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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Laura Elizabeth Masson
FEMINISTAS EM TODA PARTE
Uma etnografia de espaços e narrativas feministas na Argentina
Rio de Janeiro
2007
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Laura Elizabeth Masson
FEMINISTAS EM TODA PARTE
Uma etnografia de espaços e narrativas feministas na Argentina
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2007
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Laura Elizabeth Masson
FEMINISTAS EM TODA PARTE. Uma etnografia de espaços e narrativas
feministas na Argentina
Tese Submetida ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutora.
Aprovada por:
Prof. ........................................................................... Orientador
Dr. Federico Neiburg
Prof. ……………………………………………………..
Dra. Lygia Sigaud
Prof. ……………………………………………………..
Dra. Adriana Vianna
Prof. …………………………………………………….
Dra. Bila Sorj
Prof. …………………………………………………….
Dr, John Cunha Comerford
Rio de Janeiro
2007
RESUMO
Este trabalho é uma etnografia de narrativas, espaços e eventos nos quais mulheres que se
identificam como feministas se reúnem, trocam idéias e informações, discutem, organizam
e realizam ações, criam categorias para classificar e interpretar a realidade, modificam o
sentido das palavras e cunham termos a partir dos quais se reconhecem e reconhecem uma
trajetória compartilhada baseada em experiências comuns. Meu objetivo é mostrar, do
ponto de vista das feministas, a construção do que elas consideram uma forma de fazer
política e o processo de configuração do feminismo como um espaço social internamente
heterogêneo, onde as identificações entre as feministas são produzidas não apenas por
semelhança, mas também a partir de oposições e categorias de acusação (feministas
políticas, feministas acadêmicas, feministas puras, lésbicas feministas, acadêmicas puras)
que só são inteligíveis à luz da história da configuração desta forma social particular. Nesta
tese me detenho no conflito como uma forma de relação entre outras; no pertencimento
destas mulheres a setores profissionais e intelectuais como a possibilidade de realizar uma
profunda reflexão sobre si mesmas e de que suas reivindicações sejam atendidas; na
política como forma de subverter categorias cognitivas, tal como as feministas entendem e
praticam; e em uma forma de fazer política que tem menos impacto devido à realização de
ações coletivas multitudinárias ou pelo seu grau de institucionalização, que pela influência
de mulheres que ocupam posições em diversos espaços sociais de inserção.
ABSTRACT
This work is an ethnography of narratives, spaces and events in which women that identify
themselves as feminists meet, exchange ideas and information, discuss, organize and
accomplish actions, create categories to classify and interpret reality, modify the sense of
words and elaborate terms through which they recognize themselves and recognize a shared
trajectory based on common experiences.
My aim is to show, from the feminists point of view, the construction of what they consider
a form of doing politics and the process of conformation of feminism like an internally
heterogeneous social space, where the identifications among the feminists spring not only
from similarities, but also from oppositions and internal accusatory categories (politic
feminists, academic feminists, pure feminists, lesbian feminists, pure academics) only
intelligible in light of the historical conformation of that particular social form. In this
thesis I analyze conflict as one form of relation among others; the belonging of these
women to professional and intellectual sectors as the possibility of a profound reflection on
themselves and of their demand to be heard; politics -in the sense that feminists understand
and practice it-, as a way of subverting cognitive categories; a form of doing politics of
which its impact has less to do with its capacity for organizing multitudinous collective
actions or its level of institutionalization, and more to do with the influence of women
occupying positions in diverse social spaces of insertion.
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................................... 13
Capítulo 1: Do individual ao coletivo, do particular ao geral, do pessoal ao político 38
1. “Feminismo por feministas”: relatos de conversão .................................................. 40
1.1 Mal-estar e rebeldia ................................................................................................ 44
1.2 A busca da verdadeira identidade ......................................................................... 46
1.3 A busca compartilhada: o pessoal é político .......................................................... 55
1.4 Não às Hierarquias ................................................................................................. 57
2. Aproximar-se do feminismo: Oficina “Aprendizas de Bruxas” ............................... 59
2.1 Ser ou não ser feminista .......................................................................................... 61
2.2 Uma liminaridade permanente? ............................................................................. 63
3. Ser feminista desde a linguagem: descrever ou prescrever ...................................... 68
3.1 Os termos que explicam a realidade de as mulheres ............................................... 69
3.2 O sexo das palavras e a “invisibilização” de as mulheres ....................................... 74
Capítulo 2: Dinâmicas Feministas: Autonomia e horizontalidade ......................... 80
1. Nosotras, Entre Nosotras, A partir de Nosotras ........................................................ 82
2. As mulheres como categoria de ação política: construindo a causa ............................ 84
2.1 A dinâmica das oficinas ............................................................................................ 85
2.2 Singularidade da causa e de desingularização dos problemas .................................. 89
2.3 Privilegiando a igualdade como equivalência ......................................................... 93
3. Construindo a igualdade ............................................................................................. 96
3.1 Autoridade e reconhecimento ................................................................................... 98
3.2 A manifestação do conflito: igualdade e reatualização de valores ............................ 102
3.3 O feminismo: um movimento subversivo ................................................................. 105
Capítulo 3:“Os Feminismos”: Oposições, acusações e conflitos .............................. 113
1. O “femistômetro”: qual feminista é a mais feminista? .............................................. 114
2. Sobre as oposições e categorias de acusação ............................................................. 118
2.1 Feministas “institucionalizadas” x feministas “autônomas”.........................................121
2.2 Feministas políticas, mulheres dos partidos?..................................................... .......... 128
2.3 As feministas acadêmicas, acadêmicas puras? ..........................................................131
3. Outras oposições.............................................................................................................136
Capitulo 4: Escalas e Feminismos ................................................................................144
1. Feministas com conexões internacionais .....................................................................146
2. A internacionalização do “tema mulher” .....................................................................152
2.1 Espaços de construção de expertise na Argentina ..................................................... 156
2.2 Sempre as mesmas: uma nova elite do feminismo? ...................................................160
2.3 Silêncio na esfera internacional? ................................................................................164
3. Um feminismo nacional, autônomo? .............................................................................169
Capítulo 5: Adesões e articulações - A causa pela descriminalização do aborto .......175
1. Direito ao aborto legal: bandeira histórica do feminismo ...........................................176
2. Articulações e desarticulações (?) em torno da causa ..................................................179
3. Ação individual x ação coletiva? .................................................................................187
3.1 As donas dos temas ....................................................................................................189
4. As articulações possíveis ..............................................................................................191
Capítulo 6: Feministas nos espaços de mulheres: O Encontro Nacional de
Mulheres.............................................................................................................................208
1. O Encontro Nacional de Mulheres ...............................................................................210
2. “Feministas nos Encontros” .........................................................................................215
3. Convocatória e organização .........................................................................................220
3.1 A Comissão Organizadora .........................................................................................220
3.2 A definição dos nomes das oficinas ...........................................................................222
4. A abertura do Encontro ................................................................................................226
5. As oficinas: divisões de interesses e busca de “consensos” .........................................235
5.1. Leitura das conclusões ..............................................................................................238
6. A passeata: “uma verdadeira batalha” ..........................................................................239
6.1 A disputa por uma identidade legítima ......................................................................244
Reflexões Finais ............................................................................................................ 249
Referências ...................................................................................................................258
Anexo A ........................................................................................................................ 269
AGRADECIMENTOS
Esta tese foi possível graças ao apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), do Brasil. Agradeço a todos os professores do PPGAS,
especialmente a Ligya Sigaud, Marcio Goldman e Adriana Vianna por suas leituras e
contribuições. A Federico Neiburg, meu orientador de tese, devo agradecer não apenas suas
leituras atentas e minuciosas, suas valiosas sugestões e sua extraordinária dedicação, mas
também seu apoio ao longo deste processo, no qual não faltaram os momentos de “crise”.
Aos funcionários do PPGAS, sua inestimável ajuda, especialmente a Carla e a Tânia.
Durante o tempo da pesquisa, e parte da redação, este trabalho foi enriquecido com os
estimulantes comentários e contribuições de meus colegas e companheiros do Grupo de
Estudos sobre Procesos de Politización en el Cono Sur do Centro de Antropología Social
del Instituto de Desarrollo Económico y Social: Virginia Vecchioli, Laura Zapata, Rolando
Silla, Horacio Sívori e Mariana Paladino. Meus interlocutores e interlocutoras durante o
processo de escrita não foram somente pessoas do mundo acadêmico. No entanto, esses
diálogos foram vitais na construção do argumento deste trabalho. Quero agradecer, por sua
disposição para escutar e para acompanhar, a Lili Fernández, Juan Carlos Masson e muito
especialmente a Hugo Echeverría, que também esteve presente no difícil pontapé inicial. A
meu pai, Juan Masson, que me permitiu dispor de sua casa para instalar meu escritório e foi
nesses meses uma companhia discreta, com muita presença e pouca demanda, o que
agradeço profundamente. A Claudia Degenarth, por seu senso de humor e por facilitar os
aspectos domésticos de minha vida durante esse período. Junto com Pilar González e
Virginia Rafael vivi os dias mágicos da viagem do antes e do depois, quando ainda não
imaginávamos o depois de cada uma. Agradeço a Nora Silvestri por ter me acompanhado
neste processo e por me ajudar a apostar
no meu desejo. A Silvia Elizalde, pelas histórias compartilhadas neste tempo. A Pilar, que
esteve muito próxima e com quem compartilhei mudanças, que não foram somente de
cidade ou de casa. A Sabina Frederic e Iris Fihman, que nos víamos menos, mas não por
isso foram menos importantes. A Alechu pelas conversas, seu caráter irremediavelmente
otimista e o bom humor. Grande parte desta tese foi escrita no Rio de Janeiro. Quero
agradecer especialmente a Gabriela Scotto por brindar-me sua casa e ter se tornado uma
interlocutora cujas sugestões foram muito valiosas para este trabalho. Durante os vitais
momentos livres desfrutei da companhia de Gabriela Scotto, Ana Murgida, Kaori Kodama,
George Flexor, Alice Flexor, Elizabeth Palatnik, Andrea Roca, Hernán Gómez, Horacio
Sívori, Fernanda Maidana e Maria Lúcia de Macedo Cardoso e a companhia “virtual” de
Alejandro Dujovne e Jorge Pantaleón. A Fernanda, agradeço também sua inestimável ajuda
para resolver os “detalhes” de último momento.
Para finalizar, quero expressar minha gratidão com todas as feministas com as quais
compartilhei eventos, encontros e conversas durante meu trabalho de campo, e aquelas que
aceitaram ser entrevistadas e responderam meus questionários. Especialmente, às
integrantes de Mujeres al Oeste e da Biblioteca Popular de las Mujeres pela calidez,
hospitalidade e boa disposição. Meu desejo é que, com um olhar distanciado que espero ter
conseguido, esta tese possa se tornar uma contribuição às contínuas e agudas reflexões que
estas mulheres realizam habitualmente sobre suas próprias práticas. Todas as pessoas
mencionadas, e muitas outras que não aprecem aqui, foram extremamente importantes para
que este trabalho tenha sido possível. No entanto, desejo esclarecer que as imprecisões e
erros que possam aparecer são de minha absoluta responsabilidade.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1. Nota publicada no Suplemento “Las 12” do jornal Página 12 sobre o grupo
Mujeres Públicas..................................................................................................... ..........194
Ilustração 2. Capa do jornal argentino Página 12 do dia 27 de setembro de 2003, sobre a
passeata realizada na cidade de Buenos Aires pela descriminalização e legalização do
aborto...................................................................................................................................199
Foto 3. Enfrentamentos entre homens jovens religiosos e mulheres jovens que se
manifestam a favor da descriminalização do aborto. .........................................................200
Foto 4. Jovens religiosos rezam e mostram panfletos “a favor da vida” numa manifestação
numa manifestação contra a descriminalização do aborto. ................................................200
Foto 5. A bandeira lilás (cor que identifica o feminismo) com a legenda: Aborto legal,
seguro e gratuito, durante a passeata do XX ENM na cidade de Mar del Plata. ..............201
Mapa 6. Cidades e datas em que foram realizados os Encontros Nacionais de Mulheres na
Argentina. ...........................................................................................................................213
Fotos 7, 8 e 9. Imagens da Abertura do XIX Encontro Nacional de Mulheres .................232
Fotos 10 e 11. Outdoors nas ruas de Mendoza próximas às escolas onde funcionavam as
oficinas do XIX Encontro Nacional de Mulheres. Mendoza, outubro de 2004 .................233
Fotos 12 a 16. Manifestações contra a decriminalização do aborto, supostamente realizadas
por grupos católicos durante o XIX Encontro Nacional de Mulheres em Mendoza. ........234
Ilustrações 17. Primeira página do jornal Página 12 com foto da passeata do XIX Encontro
Nacional de Mulheres ........................................................................................................241
Foto 18. Disfarces de Bruxa durante a passeata do XX Encontro Nacional de Mulheres..242
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADEUEM: Asociación de Especialista Universitarias en Estudios de la Mujer
ATEM: Asociación de Trabajo y Estudio de la Mujer
AxDA: Asamblea por el Derecho al Aborto
CEAL: Centro Editor de América Latina
CECYM: Centro de Encuentros Cultura y Mujer
CEDES: Centro de Estudios de Estado y Sociedad
CEDAW: Convención Sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación contra
la Mujer
CEM: Centro de Estudios de la Mujer
CENEP: Centro de Estudios de Población
CIDH: Comisión Interamericana de Derechos Humanos
CLADEM: Comité de América Latina y el Caribe para la Defensa de los Derechos de la
Mujer
CONDERS: Consorcio por los Derechos Reproductivos y Sexuales
CTA: Central de Trabajadores Argentinos
DIMA: Derechos Iguales Para la Mujer
ENM: Encuentro Nacional de Mujeres
FEIM: Fundación para Estudio e Investigación de la Mujer
FLACSO: Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales
FPNU: Fondo de Población de Naciones Unidas
GEDA: Grupo Estrategias por el Derecho al Aborto
INADI: Instituto Nacional contra la Discriminación, la Xenofobia y el Racismo
ISPM: Instituto Social y Político de la Mujer
INSTRAW: Instituto Internacional de Investigaciones y Capacitación para la Promoción de
la Mujer
MEI: Mujeres en Igualdad
MLF: Movimiento de Liberación Femenina
OEA: Organización de los Estados Americanos
OFA: Organización Feminista Argentina
OMS: Organización Mundial de la Salud
ONGs: Organizaciones no Gubernamentales
ONU: Organización de las Naciones Unidas
PPEM: Programa Permanente de Estudios de la Mujer
PO: Polo Obrero
PRIGEPP: Programa Regional para la Formación en Género y Políticas Públicas
PTS: Partido de los Trabajadores por el Socialismo
RIMA: Red Informativa de Mujeres de Argentina
RSMLAC: Red de Salud de las Mujeres Latinoamericanas y del Caribe
UBA: Universidad de Buenos Aires
UCA: Universidad Católica Argentina
UFA: Unión Feminista Argentina
UNESCO: Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura
UNICEF: Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia
UNIFEM: Fondo de Desarrollo de las Naciones Unidas para la Mujer
UMA: Unión de Mujeres Argentinas
INTRODUÇÃO
Esta tese é uma etnografia de narrativas, espaços e eventos nos quais as mulheres que se
identificam como feministas se reúnem, trocam idéias e informações, discutem, entram em
oposição, organizam e realizam ações, criam categorias para classificar e interpretar a
realidade, modificam o sentido das palavras e cunham termos a partir dos quais se
reconhecem e reconhecem ali uma trajetória compartilhada baseada em experiências
comuns. A pesquisa foi realizada entre 2002 e 2006 em várias cidades da Argentina
(Tandil, Córdoba, Rosário, Salta, Mendoza e Mar del Plata), nas quais foram realizados
eventos (militantes e acadêmicos), mas especialmente na cidade de Buenos Aires, onde
vive a maioria das feministas. A observação participante, as entrevistas, a análise de
documentos e de publicações virtuais e impressas realizadas pelas próprias mulheres foram
utilizadas para compreender e dar inteligibilidade a um processo de unificação-oposição e a
um trabalho de mobilização em torno a uma causa, necessários para dar existência ao
feminismo.
Há uma característica comum que define a maioria das feministas e sem a qual não é
possível compreender o feminismo. Trata-se do acesso destas mulheres à educação
superior. Entre elas, encontramos médicas, psicólogas, psiquiatras, sociólogas, jornalistas,
antropólogas, advogadas, filósofas, historiadoras. Muitas das que atualmente tornaram-se
líderes compartilham outra característica: suas experiências anteriores de militância em
partidos políticos, especialmente de esquerda. Estas mulheres têm um excelente domínio da
linguagem, acesso a meios de expressão pública (jornalistas, escritoras) e, em muitos casos,
devido a suas profissões, dispõem dos meios necessários para transmitir seus valores
através de decisões que têm um efeito social (professoras universitárias, advogadas, juízas,
funcionárias do governo, legisladoras, representantes de Organizações não
Governamentais). No entanto, apesar da uniformidade das propriedades sociais destas
mulheres, existem importantes diferenças dentro deste universo.
Por conseguinte, utilizarei aqui o termo feminismo para designar um espaço social
internamente heterogêneo que engloba diferentes identificações construídas a partir de
oposições e categorias de acusação (feministas institucionalizadas, feministas utópicas,
feministas políticas, acadêmicas puras, feministas puras, lésbicas feministas) que são
inteligíveis somente à luz da história da configuração desta forma social particular. Por
outro lado, usarei a palavra feministas partindo de um critério de auto-identificação. Sem
ter como pretensão traçar “a história do feminismo na Argentina”, farei referência a fatos
transcorridos em diferentes momentos para mostrar que é a partir de uma perspectiva que
incorpora determinada profundidade temporal, que se abre a possibilidade de compreender
as experiências e os processos sobre os quais são cunhados os termos que as feministas
utilizam para pensar o feminismo (e sua identificação com o mesmo), os mesmos que
tornam possível sua configuração atual
1
.
Esta etnografia situa-se em uma discussão mais ampla, e com contornos difusos, que
poderia remeter em princípio, grosso modo, às relações entre as “mulheres” e a “política”.
No entanto, minha preocupação não é mostrar que as mulheres foram excluídas
historicamente do mundo político, nem explicar as causas por que elas não ocupam lugares
na mesma proporção que os homens, mas me interessa como essa oposição é utilizada
como argumento na construção de significados compartilhados nos diversos espaços
feministas na Argentina
2
. Quero ressaltar, além disso, que não pressuponho uma oposição
(e/ou uma hierarquia) a priori entre homens e mulheres. Parto da premissa de que as
mulheres não constituem, por sua semelhança biológica, um grupo de pertencimento, mas
que a mesma noção de semelhança deve ser problematizada. Assim, não utilizarei o
conceito “mulher/mulheres” como categoria de análise, como supõem expressões como “a
situação das mulheres na Argentina”. Como tantas outras palavras, o significado de
1
Como o significado das palavras feminismo e feministas é motivo de disputa dentro do espaço do feminismo,
para diferenciar estes termos do uso analítico que faço deles, utilizarei em itálico sempre que estas palavras
apareçam no texto enunciando o ponto de vista das pessoas envolvidas.
2
Relacionado com este ponto existe uma importante produção de mulheres intelectuais feministas destinada a
mostrar que tanto a teoria marxista como a teoria liberal sobre o Estado estão construídas sobre “princípios
patriarcais” baseados em uma visão androcêntrica. A crítica feminista à concepção marxista foi
particularmente intensa até os anos 80. Ver, entre outras, Hartmann, Heidi (1985); Weinbaum, Batya (1978);
Burnham, Linda e Louie, Mirian (1985); Sargent, Lydia (1981); Rowbotham, Sheila (1978, 1981);
MacKinnon, Catharine (1983); Eisenstein, Zillah (1980). A partir dos anos 90 houve, em contrapartida, um
avanço nas discussões sobre a teoria liberal. Para uma análise feminista das bases filosóficas do pensamente
liberal ver Cono, Rosa (1985); Petit, Cristina Molina (1994); Nye, Andréa (1995); Pateman, Carole (1993);
Amorós, Celia (1985). Também foram importantes dentro da perspectiva feminista na teoria política os
trabalhos de autoras como Nancy Fraser (1993), Nancy Fraser e Linda Gordon (1997), Anne Phillips (1996),
Jean Bethke Elshtain (1993), Anna Jónasdóttir (1993), Carole Pateman (1996) e Iris Marion Young (1990).
“mulher” deve ser compreendido à luz de práticas relacionais situadas social e
historicamente.
Se tivesse que situar este trabalho na tradição teórica da disciplina, poderia dizer que se
trata de uma antropologia da política, já que construí meu objeto de pesquisa ressaltando as
formas nativas de entender a política, a não distinção entre a macro e a micro política, e
mostrando que a mesma adota significados heterogêneos e encontra-se imersa em diversos
domínios sociais e não se define somente a partir de um domínio específico e com
fronteiras precisas. Neste sentido, meu ponto de vista não pressupõe uma definição de
política, mas privilegia os sentidos que as pessoas dão às práticas que consideram
“políticas”. E são, exatamente, as práticas que as feministas definem como políticas que
analisarei neste trabalho. Por outro lado, a perspectiva adotada pela antropologia da política
também foi de grande utilidade para construir um olhar distanciado do objeto,
especialmente ao considerar os questionamentos a vários supostos sobre os quais se fundou
a especialidade que, a partir da década de 1940, denominou-se “antropologia política”
3
. No
entanto, como expressarei mais adiante, à medida que avançava em minha pesquisa e,
especialmente, no processo de escrever deparei-me com a necessidade de recorrer a outras
ferramentas teóricas.
De outra perspectiva, dado meu interesse pelo feminismo e considerando que o mesmo
questiona relações hierárquicas entre os sexos, poderia se considerar que este trabalho se
inscreve em uma antropologia de gênero. Este conceito, cunhado nas ciências sociais na
década de 70, só a partir dos anos 80 será considerado nos “estudos de gênero” como um
princípio estruturador das relações entre homens e mulheres (Moore, 1999). No entanto,
aqui tento tomar uma posição de distanciamento, já que não me interessa uma análise a
partir desta perspectiva, mas centrar a atenção nos argumentos que as feministas
desenvolvem em espaços de ação coletiva e que consideram como uma forma (a “mais
radical”, a “mais verdadeira”) de fazer política. Além disso, é necessário considerar que,
dentro do espaço do feminismo, quando a palavra gênero é utilizada em oposição ao
3
Sobre a diferença entre uma antropologia política e uma antropologia da política ver Uma antropologia da
política: rituais, representações e violência. NuAP, 1998.
feminismo, alude a categorias de classificação e acusação
4
. Proponho, assim, abordá-las
como categorias da prática e não de análise. Um dos desafios deste trabalho foi,
exatamente, subtrair o feminismo do campo de uma antropologia de gênero para situá-lo no
plano em que as próprias feministas o definem: a política. Ainda assim, é necessário
esclarecer que as pesquisas de antropólogas que se dedicaram ao estudo das relações entre
os sexos, definidas ou não como uma “antropologia de gênero”, foram de grande utilidade
para construir o problema de pesquisa a partir desta posição. Entre outras, Henrietta Moore
(1993, 1999), Annette B. Weiner (1976), Françoise Heritier (2002) e Joan Scoot (1993).
Construção do problema de pesquisa
As categorias de análise com as quais a antropologia trabalha foram resultado de pesquisas
empíricas que, em seu momento, se revelaram frutíferas na produção de novos
conhecimentos. Especialmente nas primeiras décadas de desenvolvimento da disciplina,
quando seu objeto estava limitado ao estudo de sociedades que, aos olhos dos especialistas,
eram exóticas, estas categorias sempre pareceram inovadoras, em particular, porque traziam
referências de sociedades “diferentes” e “distantes” de vários pontos de vista (geográfico,
cultural, lingüístico, sociológico). Assim, o estranhamento com o objeto e a distância
necessária para a produção de conhecimento científico estava, de alguma maneira,
garantida. Mas, o que sucede quando esse objeto não apenas é parte de nossa própria
sociedade, mas que, como pesquisadores, compartilhamos sentidos com as pessoas que
fazem parte da realidade empírica estudada? Por outro lado, como construir um novo
conhecimento ou um novo ponto de vista sobre realidades que nos atravessam e aparecem
diante de nós como evidentes em si mesmas?
Transformar o feminismo em objeto de estudo significou tempo e esforço. Minha
proximidade ideológica e social com as feministas (mulher, branca, argentina, de classe
média, universitária e dedicada a estudos sobre mulheres e gênero) dificultou-me nesta
tarefa. Como expressa Norbert Elias (1990), os pesquisadores estão, eles próprios, inscritos
4
Este ponto pode ser ilustrado a partir do caso do Brasil com a leitura do artigo de Miriam Grossi (2004) “A
Revista Estudos Feministas faz 10 anos” onde, sob o título “Estudos feministas ou de gênero: um campo ou
uma praia?”, a autora refere-se a enfrentamentos entre feministas e estudiosas de gênero, nas discussões sobre
o lugar dos estudos de gênero no campo militante e vice-versa.
na trama de motivos e não podem impedir de vivê-los por dentro ou por identificação. E
quanto mais imediatamente vinculado estão, mais difícil resulta desprender-se de seu papel,
o que está na base de todo esforço científico
5
. Talvez tenha me ajudado no distanciamento
uma característica que me diferenciava da maioria delas: ter vivido no “interior”, isto é, não
ser da cidade de Buenos Aires.
Por outro lado, se apresentava uma dificuldade relativa à legitimidade de meu objeto de
estudo. Se comentava meu tema fora da academia, as reações em sua maioria invalidavam-
no, desde considerar que o feminismo não existia na Argentina, até deslegitimar as
feministas por seu suposto radicalismo: “Na Argentina não tem feministas...” “Essas
mulheres odeiam os homens” “Todas estão loucas, não têm nada para fazer”. Em
discussões acadêmicas informais, a percepção não era muito diferente: “Quantas são, mas
quem as conhece?” “Essas mulheres são todas de classe média, as mulheres pobres nem
sabem de seus argumentos” “Mas quem se interessa pelo que propõem?”
6
. Não são muitas,
não são pobres, não são conhecidas, seus argumentos não são racionais ou sensatos e estão
todas brigadas entre si, eram alguns dos argumentos sobre os quais foi necessário fazer um
trabalho minucioso de distanciamento e reflexão, tanto teórico como metodológico, para
poder ver além e, a partir desse senso comum, poder elaborar, então, um problema de
pesquisa. Foi a partir de certas regras que caracterizam o exercício do método etnográfico,
da acumulação de leituras heterogêneas, da reflexão constante sobre a teoria e o atento e
reflexivo trabalho de campo que, finalmente, construí o feminismo como problema de
pesquisa
7
.
* * *
5
Em Compromiso y distanciamiento (1990) Elias apresenta uma importante discussão sobre a influência do
“compromisso” e do “distanciamento” na construção do conhecimento científico, tanto nas ciências naturais
como nas ciências sociais.
6
Sobre este ponto, Bila Sorj publicou, em 2005, no jornal brasileiro O Globo, um artigo intitulado “O estigma
das feministas” onde assinala, para o caso do Brasil, alguns dos estereótipos com que são identificadas as
feministas.
7
Durante o período de redação da tese, cada vez que alguém perguntava sobre meu tema de pesquisa, tanto
dentro como fora do mundo acadêmico, a reação à minha resposta era uma expressão de espanto seguida de
certo incômodo provocado pela dúvida sobre qual seria o comentário mais adequado para fazer nesse
momento.
Quando comecei meu trabalho de campo, em 2002, não estava interessada no feminismo
em si mesmo. Depois de ter analisado, em minha dissertação de mestrado, mulheres
peronistas que reivindicavam “uma forma despolitizada de fazer política trabalhando no
social” (Masson, 2004), queria investigar sobre dois temas: as mulheres peronistas que se
autodenominavam “políticas” e negavam a militância social; e, por outro lado, tratar de
entender por que, sendo que as feministas afirmavam que “o feminismo é política” e
garantiam ter conquistado direitos para as mulheres através da criação de leis, como o
Pátrio Poder Compartilhado e a Lei de Cota Feminina [Patria Potestad Compartida e la
Ley de Cupo Femenino], poucas pessoas associavam as feministas com as conquistas
desses direitos.
No início de 2003 soube, pelo Boletim virtual da Librería de las Mujeres
8
, da realização do
curso História Argentina do ponto de vista das mulheres na Faculdade de Filosofia e Letras
da Universidade de Buenos Aires (UBA). Tinha expectativas de que “a história” me daria
alguma pista para definir melhor o campo. Para minha surpresa (nesse momento
considerava isso uma grande casualidade) encontrei Zulema Palma, médica ginecologista,
militante feminista pertencente a uma organização não governamental denominada Mujeres
al Oeste, com sede em Morón (província de Buenos Aires). Tinha conhecido Zulema em
1996 quando, junto com Diana Maffía (filósofa, professora da UBA), viajaram a uma
cidade da província de Buenos Aires (Olavarría) para dar a conferência inaugural do
Programa Permanente de Estudos da Mulher (PPEM), dirigido por uma antropóloga,
também militante feminista, na Faculdade onde eu cursava a graduação em Antropologia
Social. Nesse momento, eu era integrante do PPEM.
Éramos somente três interessadas no curso, por esse motivo foi suspendido. Aproveitei para
falar com Zulema, lembrei quem era e disse-lhe que gostaria de conversar com ela. Ela
respondeu afirmativamente e que ficaria na cidade porque estava interessada em assistir
mais tarde a um painel sobre “direitos humanos”, que era na mesma Faculdade.
Conversamos em um café próximo até a hora do painel. O interesse em falar com ela, nesse
8
A Librería de las Mujeres é uma livraria especializada, dirigida por mulheres feministas, que funciona desde
a década de 80 na cidade de Buenos Aires. Além de ser o lugar ao qual se dirige quem necessita de
bibliografia específica, também foi um espaço de encontro e reunião para muitas feministas.
momento, não tinha a ver com meu tema de pesquisa, mas porque queria que viajasse
novamente a Olavarría para dar um curso a médicos ginecologistas do Hospital Municipal
sobre “Saúde e gênero”, no âmbito de uma campanha de atendimento gineco-mamário que
o PPEM estava organizando. Respondeu que não tinha problema e quando falamos das
condições materiais para a realização do curso (honorários, passagens, estadia) disse que
realizava este tipo de atividade como um “compromisso de sua militância”. Foi ela quem
comentou sobre o Encuentro de Mujeres Feministas de Argentina e me convidou para
participar, inclusive me ofereceu alojamento com “as companheiras de Mujeres al Oeste”,
na casa de uma companheira de Tandil. Não estava entusiasmada para ir, mas senti um
compromisso, devido ao meu pedido anterior e, afinal, decidi viajar quando soube que
haveria uma oficina de “Aprendizes de Bruxas” que prometia, na ficha de inscrição, uma
espécie de “batismo” que já se tinha feito no ano anterior. Assim, meu interesse em
escrever sobre o feminismo se despertou na medida em que fui conhecendo o
autodenominado “feminismo autônomo”. Embora, como mencionei anteriormente, esta
etnografia seja sobre o feminismo considerado como um espaço social heterogêneo que
inclui vários espaços (acadêmicos, governamentais, dos partidos políticos, das
Organizações não governamentais) e identidades possíveis, o ponto de vista a partir do qual
ingressei no campo é o das feministas autônomas.
* * *
Poucos meses depois de minha fracassada tentativa de fazer o curso na UBA, chegava à
cidade de Tandil para participar do Encuentro de Mujeres Feministas. Um pouco perdida,
sem saber muito bem o que fazia ali, nem com quem falar, no primeiro dia na oficina de
Aprendizes de Bruxas conheci uma das integrantes de “Las Azucenas”, da cidade de La
Plata
9
. Almocei com algumas delas, que tinham mais ou menos a minha idade. Mais tarde
descobri outra Azucena, com uns 60 anos, que tinha sido companheira de trabalho e de
9
Las Azucenas constituíram-se como um grupo em 1988. O nome desta organização feminista remete a
Azucena Villaflor, uma das fundadoras da Asociación Madres de Plaza de Mayo. Foi seqüestrada durante a
última ditadura militar e seus restos foram achados pela Equipe Argentina de Antropologia Forense em 2004
e identificados em maio de 2005 através de prova de DNA.
militância nos partidos de esquerda nos anos 70 de meu orientador de monografia de
graduação. Ela mesma me disse mais tarde: “mas você não está na RIMA?”. Era a terceira
vez que durante o Encontro me falavam de RIMA, com tanta naturalidade que tinha
vergonha de dizer que não sabia o que era. A Red Informativa de Mujeres de Argentina
(RIMA) é uma rede virtual onde circulam notícias, denúncias, pedidos, informação sobre
cursos, fatos que envolvem mulheres, seminários, encontros, subsídios, centros de
atendimento, bibliografia e muitas outras coisas. Nessa oportunidade também ouvi falar do
Encontro Nacional de Mulheres que, nesse ano, seria realizado na cidade de Rosario,
província de Santa Fé. Foi também a partir desse momento que comecei a participar das
escassas e pouco numerosas reuniões para organizar o IX Encontro Nacional de Mulheres
Feministas que, por decisão plenária, ficou sob a responsabilidade das “feministas da
Capital”. Continuei participando de outras atividades e, em outubro de 2003, viajei a
Rosario para participar do XVIII Encontro Nacional de Mulheres
10
. No entanto, foi apenas
em outubro de 2004, depois de participar do XIX Encontro Nacional de Mulheres na cidade
de Mendoza, quando comecei a pensar com maior convencimento em escrever sobre o
feminismo.
Apenas algumas semanas antes desse Encontro, as feministas que participavam da
Comissão Organizadora anunciavam em mensagens enviados à RIMA a falta de
coordenadoras feministas para oficinas como “Anticoncepção e aborto” e “Estratégias para
o acesso ao aborto legal, seguro e gratuito”. Não me lembro exatamente como surgiu, mas
por pedido ou indicação de Zulema me ofereci como coordenadora de uma das oficinas de
“Estratégias...”. Embora conhecesse bem as dinâmicas por ter estado em uma das oficinas
do Encontro de Rosario, percebi, depois, que não tinha plena consciência do lugar que me
cabia ocupar e das qualidades/condições necessárias (que se adquirem com os anos de
militância feminista) para agüentar uma coordenação de oficinas que ponham em questão
um tema como o “aborto”, que atualmente adquiriu um estatuto público e é discutido no
nível nacional em diversos âmbitos.
10
Ao longo do texto aparecerão menções a diferentes “Encontros”. É importante alertar ao leitor/a sobre as
diferenças entre eles. Os Encontros Nacionais de Mulheres Feministas reúnem somente mulheres feministas
da Argentina; nos Encontros Feministas Latino-americanos e do Caribe participam feministas de diferentes
países da América Latina e do Caribe; e os Encontros Nacionais de Mulheres reúnem mulheres de todo o país,
mas nem todas que participam são feministas.
Por que as feministas se preocupavam de que houvesse “coordenadoras feministas” nas
oficinas? De acordo com seus relatos, era necessário frear “as católicas enviadas pela
Igreja” para boicotar os Encontros
11
. Assim, pouco mais de meia hora depois de iniciar a
oficina que coordenava, encontrei-me de repente nos corredores da escola onde eram
desenvolvidas as atividades rodeada de umas vinte mulheres que se queixavam da
coordenação, gritavam, ameaçavam me denunciar aos meios de comunicação, enquanto
uma escrivã pública perguntava meu nome para elaborar uma ata na qual me acusava de
discriminação por “não deixar falar algumas mulheres que tinham opinião diferente”. Por
decisão de algumas feministas, a oficina tinha “rachado” e a indicação da organização era
que a coordenadora “não podia abandoná-la”. Enquanto eu buscava contornar essa situação
com a ajuda da “responsável de escola” (uma feminista de Mendoza), o resto das mulheres
“a favor da descriminalização do aborto” estava em outra sala, onde “continuaram o
debate”, por sua vez, duas delas bloqueavam a porta para que não entrassem “as que não
estavam interessadas em discutir estratégias (para conseguir o aborto legal, seguro e
gratuito)”. A intensidade do conflito, o enfrentamento face a face e quase físico (uma
mulher chegou a segurar meu braço) me deixaram atônita, sem poder avaliar qual seria a
melhor reação. O resto das mulheres, tanto feministas como católicas, apesar do estresse
emocional, sabiam como reagir e do que se tratava. Esse não era o primeiro “encontro”
delas. No meu caso, e nesse contexto, temia que a ameaça de denúncia pudesse ser real.
Uma feminista me disse depois: “Não tem problema, todos os anos fazem a mesma coisa.
Também já me denunciaram e depois não acontece nada”. Outra me disse: “também tiram
fotos suas e depois colocam na internet”. A partir daí, muitas perguntas começaram a surgir
e considerei que se tratava de algo sobre o que era importante escrever do ponto de vista
antropológico. Mas, por onde começar?
11
“As católicas” é a categoria de identificação que as feministas utilizam para se referirem às mulheres que,
com argumentos religiosos, opõem-se a várias das propostas que são discutidas nos Encontros Nacionais de
Mulheres, especialmente a descriminalização do aborto. Apesar de que nem todas as mulheres que se
identificam como católicas se opõem à descriminalização do aborto (por exemplo, as integrantes do grupo
Católicas pelo Direito de Decidir) e de que, nos últimos anos, nem todas as mulheres que se opõem à
descriminalização do aborto e participam dos Encontros Nacionais de Mulheres são católicas. Da mesma
forma que outras categorias de identificação associadas à defesa de valores e crenças, a denominação “as
católicas” se cristaliza em determinadas situações e adquire um tom essencialista e generalizador que permite
as feministas darem conta de si mesmas e de suas diferenças com “as outras”.
Repensando a política a partir de as mulheres: por que mulheres feministas?
Na época em que os antropólogos restringiam o estudo da política às sociedades sem
Estado, buscavam-na em outras instituições sociais, particularmente nos sistemas de
parentesco. Embora a presença das mulheres fosse garantida aqui por sua função
reprodutora, estava ausente uma análise que colocasse a relação entre os sexos como
variável central para a análise das relações sociais. Esta ausência foi salvada desde o início
dos anos 70 com o surgimento da categoria de gênero e o desenvolvimento do que se
denominou “antropologia da mulher” e, a partir dos anos 80, “antropologia de gênero”. No
entanto, as reflexões surgidas desta perspectiva e dos estudos de parentesco permaneceram
por anos como esferas que se desenvolveram de maneira independente na construção do
conhecimento antropológico, salvo algumas exceções (COLLIER, J. e YANAGISAKO, S.
1987; HÉRITIER, F. 2002)
12
. É importante ressaltar também que o lugar central que os
estudos sobre parentesco tinham na antropologia foi sendo ocupado, em parte, no final dos
anos 80, pelos estudos sobre a pessoa. E como destacam Howell e Melhuus (1993), embora
o conceito de gênero carecesse de relevância no primeiro caso, sua presença é
extremamente notável no segundo. Dado que muitas feministas pertencem ao âmbito
acadêmico e que o feminismo se constituiu em diálogo estreito com a produção nas ciências
sociais, estas discussões também tiveram impacto fora do espaço acadêmico.
Se a antropologia dos anos 30 e 40 buscava a política na organização do parentesco (onde o
gênero estava ausente), meu propósito aqui, a partir da análise dos espaços do feminismo, é
encontrá-la imiscuída na noção de pessoa que se constrói nas práticas de mulheres
feministas. Para as feministas, o corpo (e particularmente o corpo das mulheres) é o lugar
onde se definem “questões políticas”, e isto é assim porque consideram que as decisões
sobre o que acontece com “o corpo das mulheres” devem ser tomadas por cada mulher e
não, por exemplo, pelo Estado ou por alguma imposição religiosa. Assim, por exemplo, nas
12
Isto pode ser explicado, ao menos parcialmente, a partir da análise histórica que Moore (2003) faz do
desenvolvimento das categorias de gênero e sexo nas últimas décadas nas ciências sociais. Em sua origem, a
definição de gênero aludia aos significados culturais construídos sobre diferenças biológicas entre homens e
mulheres. Neste sentido, foi pensada para se diferenciar da suposta determinação biológica da categoria sexo.
Assim, o interesse dos estudos de gênero até final dos anos 80 esteve centrado nesta categoria, excluindo o
sexo como uma dimensão analítica relevante. Nas palavras da autora “Se os anos 70 e 80 estabeleceram que o
gênero existia, nos últimos anos da década de 80 sugeriram que o sexo não” (Moore, op.cit:153). (Tradução
minha)
multitudinárias passeatas dos Encontros Nacionais de Mulheres, uma das palavras de ordem
que as feministas entoam, e que vai dirigida à Igreja Católica, é “tirem seus rosários de
nossos ovários”. Os slogans da atual Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto são:
“Educação Sexual para decidir, Anticoncepcionais para não Abortar, Aborto Legal para não
Morrer”. Na última passeata pela Descriminalização do Aborto realizada na Cidade de
Buenos Aires, uma das músicas foi “Borombombom, meu corpo é meu: minha decisão!”.
Estas palavras de ordem estão orientadas, segundo as feministas, para denunciar as atuais
políticas de saúde sobre reprodução e as reivindicações buscam a garantia de que a
“decisão” sobre a reprodução humana seja de cada mulher. É comum escutar, ao ler em
cartilhas de “capacitação” sobre “saúde sexual” que “cada mulher tem direito a decidir
quando, como e quantos filhos deseja ter”, assim como “quando, com quem e em quais
circunstâncias ter relações sexuais”. Visto que as feministas consideram que cada mulher é
“dona” de seu corpo, esta decisão deve ser individual. As disputas sobre quem “decide” a
respeito da reprodução são definidas pelas feministas como uma “questão política”.
“Decisão” e “autonomia” são palavras que foram adquirindo um lugar central no que as
feministas consideram uma forma de fazer política. A partir de um exame minucioso dos
espaços do feminismo, é possível desprender dos dados recolhidos no trabalho de campo
importantes pontos de reflexão que enunciarei brevemente nos dois próximos itens.
Noções de pessoa, noções de mulher
Neste trabalho terei como marco de referência para levar adiante a discussão sobre a
construção dos significados da categoria mulher, o debate dentro do campo da antropologia
social sobre a noção de pessoa (MAUSS, M. 1979; GEERTZ, C. 1988; 1994; DUMONT,
L. 1977, 1985; STRATHERN, M. 1984)
13
. A definição que as feministas dão de “mulher”,
baseada na individualidade, numa idéia de autonomia e no slogan “o pessoal é político”
permite estabelecer uma relação entre noções de mulher, noções de pessoa e a definição
que elas dão de política. Situo a discussão sobre noções de mulher e de pessoa em um plano
de referência amplo e parte da consideração de que os argumentos mais importantes a partir
13
É importante assinalar aqui que, a partir do texto clássico de Marcel Mauss publicado em 1938 iniciou-se,
dentro da antropologia, uma linha de trabalho sobre a noção de pessoa que foi a base de uma produção que
atualmente é muito vasta e a partir da qual se explorou este tema nos mais variados contextos etnográficos.
dos quais se constitui o que as mulheres militantes denominam feminismo é um
desdobramento da ideologia individualista (FRANCHETTO et. al., 1980:35)
14
. Louis
Dumont mostra em seus trabalhos o individualismo como o sistema de representações
dominante nas sociedades modernas e considera-o uma ideologia que toma a noção de
igualdade como valor, negando a hierarquia
15
. O individualismo seria o resultado de um
longo processo de autonomização das esferas (política, econômica, religiosa, psicológica)
da sociedade. Segundo Franchetto, B; Cavalcanti, M. e Heilborn, M. (op.cit., 1980), o
feminismo expressaria outro desdobramento da ideologia individualista, neste caso, num
domínio que se mostrou resistente à destotalização: a família. Cito a seguir trechos do livro
La pasión por la libertad. Memorias de una feminista, de María Elena Oddone (ODDONE,
2001), uma figura controvertida do feminismo na Argentina, cuja militância mais ativa
aconteceu nos anos 70 e 80
16
. Seu relato retrospectivo mostra de maneira exemplar como
argumentos feministas, que foram construídos de maneira coletiva, são utilizados para dar
sentido a experiências pessoais críticas e redefinir identidades. Suas palavras também
marcam oposições onde aparecem diversos sentidos de mulher (mulher casada, mãe de
família, eu mesma, eu como pessoa), que ela diferencia e tenta re-situá-los a partir de
argumentos feministas:
Fue difícil darme a luz a mi misma, mucho más que dar a luz a mis
hijos. Mi cuerpo estaba preparado para la maternidad. Mi mente no lo
estaba para la libertad. Tuve que aprender. Es lo que cuento en este libro.
14
Dado que a palavra “individualismo” é utilizada freqüentemente como categoria de acusação, quero
ressaltar que não a uso aqui nesse sentido, mas como categoria teórica.
15
Considero necessário definir o que entende Dumont por ideologia, já que seu sentido se diferencia,
consideravelmente, da tradição marxista a partir da qual este conceito se popularizou: “A definição de
ideologia que considero baseia-se em uma distinção não de conteúdo, mas de ponto de vista. Não considero a
ideologia como aquilo que sobra do recorte do que se supõe verdadeiro, racional e científico, mas, ao
contrário, como tudo aquilo que é socialmente pensado, acreditado, a partir das hipóteses de que tudo isso
constitui uma unidade viva, escondida sob nossas diferenciações habituais. A ideologia não é aqui um
resíduo, mas a unidade da representação, uma unidade que não exclui a contradição e o conflito” (DUMONT,
1977:31. Tradução minha).
16
Segundo dados autobiográficos, Maria Elene de las Mercedes Oddone nasceu em Córdoba em 1927. Seu
pai era engenheiro civil e sua mãe dona de casa, em sua família se praticava a religião católica. Conta que sua
mãe assistia a missa vestida com o hábito branco da ordem religiosa das Mercedes. Seu pai pertencia ao
partido radical e seu tio Gabriel Oddone era médico e foi senador pela província de Córdoba. Por motivo de
trabalho de seu pai, muda-se para a Capital Federal em 1937. Em 1944 forma-se como professora, no mesmo
ano em que seu namorado, que seria mais tarde seu esposo, formou-se em alferes aviador militar. Conta que
se casou aos 19 anos e nos primeiros seis anos de casamento nasceram seus quatro filhos. Separou-se 20 anos
depois; segundo seu argumento, houve um antes e um depois em sua vida, quando leu o Segundo Sexo de
Simone de Beauvoir.
Cómo me convertí en una persona que coloca su orgullo por encima de su
condición sexual […] Soy una de las pioneras del Movimiento Feminista
que comenzó aquí en 1971. Fui fundadora y editora de la revista feminista
“Persona”. Le puse ese nombre porque nuestra condición de personas ha
sido avasallada desde siempre (13). […] “Yo había deseado a mis hijos.
Pero ese deseo no era producto de un acto consciente y voluntario.
[…] “En vísperas de salir de vacaciones fui a la librería donde compraba
habitualmente a elegir un libro. [...] El empleado puso en mis manos los
dos tomos del “Segundo Sexo”. [...] El empleado me seguía con los dos
tomos en la mano mientras me hablaba de Simone de Beauvoir.
Estaba lejos de imaginar que ese vendedor era el destino que ponía en
mis manos los libros que marcarían otro rumbo a mi vida.” (64)
En la playa comencé por el segundo tomo, en el capítulo la mujer casada.
Me sentí deslumbrada. Vi escrita mi vida de mujer casada y madre de
familia. En un lenguaje claro, directo, estremecedor, se contaba allí mi
propia historia. Allí estaban las respuestas a tantas preguntas que yo
me hacía y a las que respondía sólo con mi angustia. En esas páginas
encontraba la explicación de esa sensación de vacío, de desasosiego
que sentía a menudo y que yo combatía como algo culposo diciéndome
que si tenía todo para ser feliz y no lo era, la falla estaba en mí. […] De la
mujer que realiza ese trabajo, yo misma, Simone decía: “Por respetada
que sea, es una subordinada, secundaria y parásita. La dura maldición que
pesa sobre ella, consiste en que no tiene en sus manos el sentido mismo de
su existencia”. Se tambaleó el pedestal en el que yo creía estar situada
como reina del hogar, mujer maravilla y gran diosa madre.
Dice Betty Friedan: “Hay facetas del papel de ama de casa que hacen
imposible que una mujer de inteligencia plenamente desarrollada pueda
conservar el sentido de su individualidad, del firme núcleo de su ego o de
su yo, sin el cual ningún ser humano está verdaderamente vivo” (70).
Estaba cada día más segura de que mi vida sería lo que yo hiciera con ella.
Avanzaba en mis pensamientos tomando posesión de mí misma (84).
Mi poder estaba en haber tomado la decisión más importante de mi vida,
prescindir de él, cambiar un estilo de vida que no me hacía feliz por otro
donde yo decidiría lo que quería hacer. Mi poder era el poder bien
empleado, el autoafirmativo, el que me daba confianza en mi destino
(86). Salir de la familia equivale a penetrar en nosotros mismos (87).
Ellos [sus hijos] no veían en mí una persona que había decidido sobre su
propia vida, sino una madre que les había fallado. Me di cuenta que para
mis hijos yo no era un persona, era una madre, otra categoría que no
tiene nada que ver con la categoría “persona”, más bien es lo opuesto de
persona (100). (ODONNE, 2001, grifos meus)
No relato que María Elena faz no livro, toda sua vida (a relação com sua mãe, seu marido,
seus filhos, o trabalho doméstico) adquire um novo sentido ao ser organizada a partir de
termos cunhados por intelectuais como Simone de Beauvoir, Betty Friedan, Eric Fromm,
Virginia Woolf e Hannah Arendt
17
. Não é meu objetivo neste trabalho aprofundar a respeito
da obra de Dumont, nem sobre as diversas formas sociais nas quais é possível encontrar
traços característicos da ideologia individualista nas sociedades denominadas modernas,
mas mostrar como as mulheres feministas fazem uso do repertório de argumentos
individualistas, tanto para dar sentido a uma nova identidade, como para desenvolver
formas de ação política que priorizam valores de igualdade e autonomia
18
.
Quais são as características de uma noção individualizada de pessoa? Em “As concepções
cristã e moderna da pessoa: paradoxos de uma continuidade”, Dias Duarte e Giumbelli
(1993) abordam a noção de pessoa propondo localizar as linhas que unem concepções
cristãs e modernas. Consideram que no cristianismo a noção de uma alma individual e
universal associada a um monoteísmo transcendente conduz a uma relativização inédita do
mundo (DIAS DUARTE e GIUMBELLI, 1993:85). Neste ponto, os autores citam
Durkheim, que se expressa da seguinte maneira a respeito desta novidade: “Mais ignore-t-
on que l’originalité du christianisme a justement consisté dans un remarquable
développement de l’esprit individualiste? (....) Le centre même de la vie morale a été ainsi
transporté du dehors au dedans et l’individu érigé en juge souverain de sa propre conduite,
sans avoir d’autres comptes à rendre qu’à lui-même et à son Dieu” (DIAS DUARTE e
GIUMBELLI, op. cit.). A característica central deste novo personagem residiria em sua
vontade, que o torna ao mesmo tempo rival e interlocutor de Deus, excluindo nesta relação
– entre alma individual e divindade – o mundo. As características do individualismo não
apenas tornam possível uma relativização do mundo, mas privilegiam uma versão
interiorizada da identidade. Assim, na militância feminista dos anos 70 a identidade e a
crítica à realidade são construídas nas práticas de introspecção e reflexividade nas quais se
examinam e se recodificam os sentidos das próprias experiências. Estas mulheres
consideravam necessário refletir e olhar dentro de si mesmas para saber “verdadeiramente”
17
Sua experiência, contada neste livro autobiográfico, é das mais radicais que escutei. Segundo seu próprio
relato, dezesseis anos depois de sua separação, o esposo utilizou como argumento para pedir o divórcio sua
“militância feminista”, que pôde provar a partir de recortes de jornais e revistas onde María Elena tinha sido
entrevistada ou tinha escrito algum artigo de opinião. Foi “expulsa” (segundo suas palavras) do movimento
feminista e, segundo a versão de outras feministas “isolada por tentar impor sua liderança e por opor-se à
política de direitos humanos”.
18
Segundo Franchetto, Cavalcanti e Heilborn “A lógica que postula que as mulheres são iguais entre si, na
biologia e na história de opressão, quando é transladada para o plano da organização política, se expressa
através da tentativa de radicalizar a prática democrática” (FRANCHETTO et. al., 1980:41).
o que queriam. A recuperação do desejo pessoal, do “próprio eu” e do “próprio corpo” são
algumas das reivindicações que as feministas consideram políticas. Isto acentua a
autonomia e define, ao mesmo tempo, determinada forma das práticas. Considerando as
particularidades da ideologia individualista, é possível compreender, de outro ponto de
vista, as formas de relação que caracterizam o feminismo.
Das características da ideologia individualista, interessa-me destacar três pontos: a
relativização do mundo, a versão interiorizada da identidade e o conflito como forma de
reconhecer o “outro” (DUMONT, 1985:277). O primeiro ponto está estreitamente
relacionado com as propriedades sociais das feministas que têm, em sua maioria, um capital
cultural que lhes permite uma reflexão aguda sobre seu conhecimento do mundo e
transmitir tal reflexão a partir de uma linguagem altamente sofisticada. O segundo ponto
será de utilidade para compreender a importância da individualidade tanto no “ser
feminista” como na forma social que o feminismo adquire. As diferentes maneiras de viver
a identidade são utilizadas para acionar um sistema de afinidades e acusações que
configuram uma personalidade coletiva (o feminismo/os feminismos) na qual as feministas
encontram também uma identificação pessoal. Finalmente, o último ponto me permitirá
mostrar como os espaços feministas se conjugam sob uma forma social que encontra no
conflito um modo privilegiado de relação.
Oposições e conflitos
Grande parte da literatura que trata de movimentos sociais e movimento de mulheres na
Argentina privilegiou um ponto de vista que opõe avanços e retrocessos ou êxitos e
fracassos do movimento face o Estado ou face uma ideologia conservadora
19
. A maioria
das análises dedicadas ao movimento de mulheres trata de mostrar o trabalho político de
mobilização e, em linhas gerais, não considera o trabalho (para as feministas também
19
Elizabeth Jelin descreve desta maneira o movimento de mulheres na Argentina “A nivel nacional el retraso
es enorme, especialmente en lo que hace al reconocimiento y legitimación del problema desde el estado, así
como la implementación de acciones y programas concretos. Las orientaciones ambiguas en el peronismo
gobernante del 73-76 y la dictadura militar posterior, no solo no permitieron avanzar, fueron momentos de
retroceso. Pero la sociedad no se detiene. Junto al proyecto autoritario de continuidad del régimen fueron
surgiendo focos de resistencia y proyectos alternativos. Las mujeres fueron, en esto, protagonistas
fundamentales en diversos frentes de lucha” (JELIN, 1985:33).
político) de unificação-oposição que ocorre a partir de experiências compartilhadas e que
possibilita a existência do feminismo como tal
20
. Esta lógica obscureceu a importância das
próprias formas de organização dos denominados movimentos. Este será meu desafio nas
páginas que se seguem. Pretendo abrir uma perspectiva de análise para pensar o feminismo
de um ponto de vista que foi pouco explorado. Em vez de analisar o movimento feminista
em oposição ao Estado ou a um “sistema patriarcal”, e em vez de contrapor uma “política
feminista” a uma “política androcêntrica”, proponho olhar o feminismo em si mesmo e
tratar de compreendê-lo em seus próprios termos.
Dado que as oposições, acusações e fragmentações são uma constante dentro do feminismo,
proponho analisar o conflito como uma forma de relação tão necessária como o consenso, e
não como ausência de relação ou uma relação negativa, patológica ou anômica. Meu
interesse não é questionar por que se produzem os conflitos no feminismo e qual seria a
melhor forma de evitá-los, mas mostrar o funcionamento de uma forma social onde o
conflito tem um lugar preponderante. Sugiro, seguindo a George Simmel (2002: 142), que
o conflito tanto como a harmonia devem ser entendidos como duas caras da mesma
realidade e que é necessário outorgar a ambos o mesmo valor. De acordo com este autor,
todas as formas sociais aparecem sob nova luz quando são examinadas pelo ângulo do
caráter positivo do conflito. Assim, somente a indiferença seria puramente negativa,
enquanto o conflito sempre contém algo positivo.
* * *
Simmel inaugura com sua teoria do conflito uma tradição, tanto na antropologia como na
sociologia, onde o mesmo começa a estar presente na análise, já não como um elemento
meramente ruptor da unidade social, mas como uma verdadeira forma de socialização.
Dentro da antropologia, particularmente nos estudos dedicados à política, tanto as teorias
sobre segmentaridade como os trabalhos dedicados às facções poderiam ser situados dentro
20
Movimento de mulheres e feminismo não são sinônimos, no entanto, as feministas também participam do
denominado movimento de mulheres. Refiro-me a este último, visto que a bibliografia é mais ampla em
relação a ele que ao feminismo em si mesmo.
desta perspectiva. No primeiro caso, o papel das rivalidades e das relações de amizade
como formas complementares que constituem um sistema que se equilibra a longo prazo foi
trabalhada por Meyer Fortes e E.E. Evans Pritchard no clássico livro Sistemas Políticos
Africanos (1941), momento a partir do qual introduziram a noção de segmentaridade no
pensamento antropológico. Mais tarde, a teoria da segmentaridade seria discutida e
redefinida com a contribuição de muitos outros autores, incluindo seus próprios criadores
21
.
Um dos pontos de debate mais importantes sobre a segmentaridade trata o “morfologismo”,
isto é, a segmentaridade como um modo específico de organização social. Esta
característica deixaria fora da análise, por um lado, os valores que pudessem influenciar
essa forma de organização e, por outro, os aspectos funcionais da mesma. No início dos
anos 60, o movimento processualista da antropologia social britânica abre uma discussão
que enfatiza a diferença entre processo e morfologia, substituindo a noção de grupo pela de
redes e processos, e dando maior atenção às interações sociais concretas (GOLDEMAN e
PALMEIRA, 1996). Finalmente, a noção de segmentaridade, pensada originalmente para
compreender a política em sociedades “sem estado”, é atualmente reconhecida como um
aspecto universal da vida política e se transformou em um instrumento útil para analisar a
política em diferentes contextos, incluindo as sociedades “com estado” (HERZFELD, 1987;
1992).
Quanto aos trabalhos sobre faccionalismo, considero pertinente fazer uma breve referência
aqui. A definição das facções como unidades de conflito que são acionadas em momentos
específicos (PALMEIRA, 1996:43) foi de utilidade para pensar o feminismo. Isto permite,
no meu ponto de vista, introduzir o tempo como um elemento vital para compreender o
lugar da harmonia e o conflito como parte de uma mesma relação. Adrian Mayer (1977)
destaca como característica definitiva das facções que são ativadas em ocasiões específicas,
mais que o fato de serem mantidas por uma organização formal. Esta característica está em
consonância com a definição de política dada por Marc Swartz (1968), onde o autor ressalta
os eventos mais que as estruturas formais
22
. Por outro lado, o fato de que as facções não
21
Sobre este ponto ver Goldman, Marcio (2001) Segmentaridades e movimentos negros nas eleições de
Ilhéus.
22
Segundo Swartz (1968:1-2), “‘Politics’, as I use the term, refers to the events which are involved in the
determination and implementation of public goals and/or the differential distribution and use of power within
constituam grupos corporificados não significa que as mesmas não possam perdurar por um
longo período de tempo (NICHOLAS, 1977. Apud. PALMEIRA op.cit.).
* * *
Além dos trabalhos citados sobre segmentaridade e faccionalismo, há quatro autores que,
de diferente maneira, foram uma inspiração de vital importância para compreender o
feminismo do ponto de vista que apresento aqui. Em primeiro lugar, Georges Simmel, ao
qual já me referi, e junto com ele Edmundo Leach, Norbert Elias e Gregory Bateson. Estes
autores introduziram nas ciências sociais conceitos que não reconhecem a existência de
grupos ou identidades fixas, mas que ressaltam as relações e o caráter instável das mesmas.
Os conceitos que quero recuperar como ferramentas heurísticas importantes para este
trabalho são interação e formas de interação de Simmel, interdependência e configuração
de Elias e cismogênese e ethos de Bateson.
A interação em Simmel é sempre uma relação mútua e múltiple que produz efeitos mútuos,
uma espécie de tecido que se tece continuamente. Por esse motivo, a partir de qualquer tipo
de interação é possível entrar na trama social. Assim, Simmel considera que a sociologia
deve se dedicar não apenas à análise daquelas formas sociais que já estão cristalizadas
(corporações, formas familiares, associações sindicais), mas também as formas de relação e
modos de interação que, na aparência, seriam insignificantes. Estas interações devem,
segundo o autor, ser consideradas como “formas formadoras da sociedade”. O conceito de
figuração de Elias compartilha com Simmel o significado do social como um conjunto de
relações. Neste sentido, nas propostas de ambos os autores desaparece a oposição entre
indivíduo e sociedade. O que faz a sociedade são as relações que se estabelecem entre os
indivíduos. Ao mesmo tempo, os indivíduos só existem na sociedade. Para Elias, uma vez
que os homens são dependentes uns dos outros e se orientam uns em relação a outros, só
existem como pluralidades e/ou figurações. Os termos cunhados por ambos os autores
the group or groups concerned with the goals being considered”. […] The definitions of ‘politics’ that I am
advancing attributes no special significance to government or any other particular type of structure”.
rejeitam também o conceito de causalidade. Elias utiliza o termo correspondência para se
referir a que à transformação que ocorre em uma dimensão, “corresponde” uma
transformação em uma outra dimensão. Tanto o conceito de interação como o de figuração
referem-se a relações e não a substâncias.
Também em Bateson, da mesma forma que em Simmel e Elias, os conceitos de indivíduo e
sociedade não aparecem como opostos, visto que considera que “nossa disciplina se define
em termos das reações de uns indivíduos às reações de outros indivíduos”, enfatizando a
interdependência das relações. Através do conceito de cismogênese chama a atenção sobre
a interdependência dos vínculos tanto entre indivíduos como entre grupos. Na definição de
cismogênese simétrica, o autor identifica o alarde como modelo cultural de comportamento
de um grupo, onde outro grupo responderia também com alarde, produzindo assim uma
situação competitiva em que o alarde derivaria em mais alarde, produzindo uma mudança
progressiva (Bateson, 1990:199)
Além disso, a introdução da noção de “ethos” para se referir às “ênfases emocionais de uma
cultura” também ressalta o interesse desse autor em considerar as emoções (habitualmente
pensadas como um aspecto individual e/ou subjetivo) como um elmento ineludível na
compreensão de uma cultura.
Quanto à obra d eEdmundo Leach Sistemas Políticos da Alta Birmânia (1954), considero
que se trata de uma referência teórica significativa, uma vez que incorpora as hostilidades
como sociologiamente produtivas sem que isto pressuponha a existência de um sistema em
equilíbrio que reproduza as formas de organização. Leach chama a atenção sobre um
equilíbrio essencialmente inestável onde os processos de fisão e reagrupamento dão lugar
ao surgimento de estruturas sociais novas e de um tipo diferente ao que existia
anteriormente. Por outro lado, chama a atenção sobre a instabilidade no tempo da
organização kachin.
Num registro de discussões mais contemporâneas, e mais próximas ao tema específico
deste trabalho, situam-se as reflexões de Rogers Brubaker (2001) sobre o termo identidade.
O autor observa que este conceito, especialmente a partir dos anos 90, é utilizado ao mesmo
tempo como categoria da prática social e política e como categoria de análise. De acordo
com seu diagnóstico, o problema residiria na confluência não controlada de acepções
sociais e sociológicas no significado desta palavra. Dada a ambigüidade do termo como
conceito analítico, Brubaker propõe desdobrá-lo e substituí-lo por outros conceitos menos
carregados. Dos três grupos que propõe, destacarei aqui somente dois: “identificação e
categorização” e “autocompreensão e localização social”. Identificação e categorização são
termos que implicam uma atividade e um processo, que derivam de verbos e evocam atos
específicos de identificação e de categorização levados a cabo por “identificadores” e
“categorizadores” particulares (BRUBAKER, 2001:77). Enquanto o termo
autocompreensão permite introduzir na análise uma visão particularista do eu e de sua
localização social, centrais nas dinâmicas feministas. Segundo Brubaker (op.cit.),
autocompreensão é definido como um termo “disposicional” que designa o que poderia se
denominar “subjetividade situada”, isto é, a concepção que cada pessoa tem do que é, de
sua localização no espaço social e de como se prepara para a ação.
Por outro lado, a maneira em que o feminismo se constitui em sua dimensão coletiva é
análoga ao que Boltanski propõe em seu estudo sobre a construção de “les cadres”, na
França, como grupo social. Boltanski mostra, entre outras coisas, que os materiais que um
agente singular utiliza são produto de um trabalho coletivo e que a constituição do grupo é
produto, ao menos parcialmente, de um trabalho social de unificação comparável ao
trabalho político de mobilização (BOLTANSKI, 1982). Neste sentido, considero que tanto
a história das categorias verbais, como das oposições e dos conflitos entre as feministas é
também a história do feminismo e da construção de sentidos e significados compartilhados
que desaparecem, permanecem marginais ou chegam a se impor.
Finalmente, quero esclarecer sobre o uso de alguns dos conceitos que aparecem
freqüentemente ao longo desta tese. Utilizarei espaço social como um conceito descritivo
que trata da heterogeneidade do que denomino “espaço do feminismo”. Os termos forma
social ou formação social serão incorporados para dar conta de como a inter-relação entre
feministas está baseada em oposições e acusações como maneiras de reconhecimento e
articulação. Utilizo o conceito de figuração, tomado de Elias, como um tipo específico de
relação de interdependência e tensão onde o conflito e as tensões são centrais, neste caso,
para sustentar uma noção de pessoa e de mulher definida pela individualidade, a autonomia
e uma forma de entender a política a elas associada. O conceito de figuração, tal como é
utilizado por este autor, tem a particularidade de incluir os seres humanos em sua formação,
sendo sua característica a interdependência de uns com outros. No entanto, não se trata
apenas de uma somatória de pessoas, mas de que as figurações sempre têm uma forma
determinada.
Buscando o campo
Dado o título desta tese, Feministas en todas partes, não podia deixar de incluir na
introdução uma parte que se referisse ao “lugar” onde realizei meu trabalho de campo.
Embora atualmente alguns trabalhos discutam a pertinência da etnografia clássica num
contexto histórico em que os lugares de observação parecem cada vez más difíceis de serem
situados, considero que um dos pontos centrais a ser considerado no exercício de uma
reflexão crítica no momento de definir o “local” do trabalho de campo é o ponto de vista a
partir do qual pensar o problema de pesquisa
23
. No meu caso, considero que a definição do
“onde” do trabalho de campo ficou resolvida no momento em que defini o “como” de meu
tema de pesquisa. Como pensar o feminismo? De que ponto de vista?
Tanto Sistemas Políticos da Alta Birmânia de Leach (1954) como Naven de Bateson (1936)
desafiam a concepção de uma etnografia clássica onde o trabalho de campo se concebe
somente a partir de um “lugar” geográfico definido e um tempo delimitado. Estes autores
introduzem uma provocação que não se refere somente a uma mera razão metodológica,
mas que implica um questionamento aos supostos sobre o caráter da realidade social. Neste
sentido, Naven não responde ao modelo de realismo etnográfico próprio das monografias
funcionalistas da época, nem se submete à mística do trabalho de campo. Mais que isso, seu
autor declara abertamente que a observação participante foi deficiente e fragmentária.
Bateson não privilegia o diálogo com as pessoas envolvidas nas realidades observadas nem
23
Para o caso da realização de trabalho de campo com ONGs internacionais e a dificuldade de definir lugares
de observação ver, por exemplo, Dauvin, P. & Siméant, J. (2002) e Marcowitz, L. (2001). Sobre o lugar do
trabalho etnográfico em estudos sobre “movimentos sociais” ver Edelman, M. (2001). Para uma reflexão mais
profunda sobre este tema, que inclui o status do trabalho de campo na disciplina e as implicações da seleção
de lugares ou áreas de pesquisa na produção de conhecimento antropológico, ver Gupta, A. & Ferguson, J.
(1997).
suas experiências, mas a interação entre as pessoas e as bases inconscientes da percepção.
Define seu trabalho como uma “una descripción de cierto comportamiento ceremonial del
pueblo Iatmul de Nueva Guinea” (BATESON, 1990:18) sobre a base de três dimensões
simultâneas nas quais incorpora a expressão dos estados emocionais, uma soma de
proposições ideais e uma estrutura cultural em função das relações sociais. Além do
conhecimento que possa contribuir a respeito das cerimônias Iatmul, o autor sugere novos
métodos sobre como pensar problemas antropológicos. Por sua vez, Leach (1976:14)
justifica que o capítulo 5 de seu livro – “As categorias estruturais da sociedade gumsa
kachin” – esteja situado entre uma descrição relativamente breve de uma comunidade
kachin diretamente observada e uma série de capítulos que contêm testemunhos
etnográficos de segunda mão, com uma declaração na qual manifesta que “no considero
que los sistemas sociales son una realidad natural. En mi concepción, los hechos de la
etnografía y de la historia sólo pueden parecer estar ordenados de forma sistemática si
imponemos sobre estos hechos una invención del pensamiento”.
Ao tomar como objeto o feminismo, apresentava-se diante de mim uma multiplicidade de
lugares possíveis de observação. Por esse motivo, as referências empíricas desta pesquisa
foram variadas e itinerantes. A impossibilidade de definir um único, ou mais ou menos
homogêneo, lugar de observação não está relacionada somente com um problema
geográfico, mas também com a necessidade que meu ponto de vista me impunha de
transitar por diversos espaços, eventos e narrativas para compreender o que aqui denomino
como feminismo
24
. Como coloca Elias, os problemas somente poderão começar a receber
solução se compreendemos que as unidades observadas possuem particularidades
impossíveis de deduzir das particularidades de suas partes (ELIAS, 1990:46). Considero
24
Entre os lugares onde realizei meu trabalho de pesquisa encontram-se o Senado da Nação, onde entrevistei
feministas que ali trabalham; a Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, para cursar
o seminário sobre “história argentina do ponto de vista das mulheres”; a cidade de Tandil, na província de
Buenos Aires, onde foi realizado o último Encontro de Mulheres Feministas; as páginas de Internet com sítios
feministas e ONGs de mulheres; a Casa de Jujuy na Cidade Autônoma de Buenos Aires, para reivindicar pela
liberdade de Romina Tejerina; os seminários de gênero e política organizados pela Unión de Mujeres de
Argentina (UMA); as passeatas pela descriminalização do abordo e o Dia Internacional da Mulher; as cidades
de Rosario, Mendoza e Mar del Plata para assistir os multitudinários Encontros Nacionais de Mulheres; os
seminários financiados por agências internacionais e realizados nas salas do edifício do Congresso da Nação;
os “Cafés da Manhã de Mulheres” organizados pela ONG Mujeres en Igualdad (MEI); inaugurações de
Centros de Atendimento às Mulheres na província de Buenos Aires; entrevistas em casas particulares; leituras
de publicações feministas e reuniões em bares para definir “estratégias de ação”.
que, como espaço heterogêneo e baseado em oposições, o feminismo só é completamente
inteligível em termos das interações que pressupõe
25
.
Assim, privilegiei a análise dos contextos da militância feminista, onde as interações
adquirem densidade, e as feministas como militantes. Isto é, não busquei incluir
consistentemente estas mulheres em seus mundos sociais e pessoais, onde além de
feministas são também parentes, filhas, vizinhas, esposas, irmãs, amantes, etc. Por esse
motivo, defino este trabalho como uma etnografia de eventos, narrativas e espaços nos
quais as feministas interagem, desenvolvem seus argumentos, se enfrentam, entram em
consenso, criticam os termos que definem a realidade e os substituem por outros novos que
utilizam com toda naturalidade, fazem e desfazem grupos, pensam estratégias de ação,
estabelecem amizades e inimizades, delimitam territórios, etc.
Este trabalho está construído sobre a base de três registros diferenciados, mas que existem
simultaneamente: uma dimensão centrada na individualidade e nas emoções orientada para
definir e redefinir categorias de percepção da realidade; outra num conjunto de proposições
e valores ideais (como a “igualdade”, a “autonomia” e os “direitos”) e a última em uma
maneira de articulação das relações que, examinada de uma perspectiva histórica, permite
vislumbrar uma forma social particular. Assim, o capítulo 1 está orientado a mostrar o valor
da individualidade para se converter em feminista. Começo com relatos pessoais de
conversão de reconhecidas feministas publicados em revistas e livros. Depois, faço uma
descrição etnográfica de uma oficina de iniciação ao feminismo onde ressalto o uso de
técnicas e de um vocabulário específico, similares aos que aparecem nos relatos
individuais. Finalmente, descrevo contextos onde o uso das palavras é central para mostrar
uma identidade feminista já que a mesma requer uma recodificação das categorias
cognitivas de percepção e uma conversão da visão de mundo.
No capítulo 2 descrevo um dos espaços do feminismo, o Encontro Nacional de Mulheres
Feministas, onde se realiza um trabalho de unificação para criar a constituição de um
25
Visto que uma das características do feminismo é seu alto grau de fragmentação e a existência de espaços
diversos onde as feministas organizam ações militantes, inevitavelmente muitas pessoas, organizações e
também pontos de vista, não aparecerão neste texto. Por esse motivo, quero esclarecer que meu objetivo não
foi fazer um mapa exaustivo de todas as posições, agrupações e pessoas que se consideram parte do
feminismo, mas insistir na maneira característica que adquirem as relações que as feministas articulam entre
si e ressaltar sua importância para compreender o feminismo como uma forma particular de agrupamento.
nosotras
26
e onde se enunciam e adquirem sentido os argumentos da causa de as
mulheres. Neste contexto, adquirem pleno sentido valores tais como autonomia, igualdade e
horizontalidade, incluindo as formas em que são organizadas as atividades. O conflito
aparece então em alguns momentos como uma maneira de reconhecer a diferença e apagar
as hierarquias.
No capítulo 3 analiso os feminismos, ressaltando a heterogeneidade que caracteriza
internamente este espaço social que num determinado momento aprofunda algumas de suas
oposições e categorias de acusação. Apresento relatos e discussões sobre “o que é ser
feminista” e, especialmente, sobre “quem é mais feminista”, e descrevo os jogos de
oposição e as dinâmicas de acusação como formas de sustentar as diferenças e reconhecer a
igualdade entre as feministas que se tornaram referências nos diversos espaços que
configuram o feminismo. Além disso, detalho oposições, que denomino “outras oposições”
que, embora apareçam dentro do espaço do feminismo, não se integram de maneira plena à
dinâmica de acusações.
No capítulo 4 trato com profundidade a respeito da importância da dimensão internacional
que aparece mencionada nos capítulos anteriores na análise de vocabulários, bibliografias,
encontros e trajetórias. Indago sobre as diferentes formas da vinculação internacional na
formação do feminismo através do tempo. Tento mostrar também como esta dimensão
influencia o processo de unificação-oposição do feminismo, introduzindo os elementos que
ocasionam uma das oposições mais acentuadas no feminismo, não apenas da Argentina,
mas da América Latina, onde o nacional e o internacional se entrelaçam para modificar as
oposições de poder das feministas dentro do feminismo.
No capítulo 5 exponho, a partir da descrição de algumas das ações e associações
organizadas em prol da causa pelo direito ao aborto, definida pelas feministas como uma
bandeira histórica do feminismo, como militantes que realizam ações que poderiam parecer
dispersas ou desarticuladas se identificam com um trabalho coletivo onde reconhecem
valores, categorias, sentidos, palavras e discursos públicos que as representam. Ao mesmo
tempo, permite que se identifiquem em oposição às mulheres que se proclamam “contra o
26
Em português o pronome da primeira pessoa do plural ‘nós’, não possui diferenciação de gênero. Portanto,
para efeito da análise aqui realizada, tais pronomes serão mantidos em espanhol – nosotras e nosotros – em
itálico.
aborto”. No capítulo 6 analiso o Encontro Nacional de Mulheres como um ritual no qual as
feministas se inserem em um espaço mais amplo que o feminista e confrontam e trocam
opiniões e experiências com “outras mulheres”. Retomo as características do espaço do
feminismo, com todas suas tensões e complexidades, numa encenação em um espaço de
mulheres (não apenas feministas) e em oposição às católicas. Trata-se da descrição de um
evento crítico que, cada ano em um lugar diferente do país, condensa inúmeros e diversos
significados.
Finalmente, é necessário advertir que ao longo deste trabalho não identifico a maioria das
pessoas que deram seu testemunho. Faço-o somente naqueles casos em que seus nomes já
foram mencionados em outros espaços públicos (páginas de internet, revistas, livros).
CAPÍTULO 1
Do individual ao coletivo, do particular ao geral, do pessoal ao político
La palabra y su circulación modelan la esfera
pública aún más que el espacio material.
Michelle Perrot
Nas páginas seguintes farei uma análise de narrativas feministas. Há dois pontos que me
interessa ressaltar. Em primeiro lugar, enfatizarei como os relatos do que é o feminismo e o
que é ser feminista mostram agenciamentos típicos (FILLIEULE, 2001) que se apresentam
sob a forma de um devir, um caminho a percorrer, no qual se parte de uma mudança
interior – onde a linguagem das emoções ocupa um lugar central – para logo propor uma
mudança exterior ou social. Em segundo lugar, interessa-me deter-me na importância da
linguagem para dar sentido a estas experiências: a circulação internacional das palavras, um
vocabulário que dá sentido a experiências individuais e os termos que articulam as formas
da militância. A linguagem é constantemente transformada e reformada, e as feministas
denunciam quando consideram que as categorias, por elas cunhadas, foram esvaziadas de
significado. Tanto a modificação da “linguagem convencional” como as “publicações
feministas” onde estes relatos aparecem são parte de estratégias que propõem articular uma
visão de mundo e conseguir o que as feministas denominam “visibilidade das mulheres”.
Este capítulo se divide em três partes. A primeira está construída sobre a análise de
publicações feministas. Especialmente de Travesías 5, revista em que se traça uma
continuidade histórica no feminismo na Argentina, desde os grupos do início dos anos 70,
que se dissolvem pela irrupção do governo militar em 1976, até as que surgiram com um
perfil diferente de suas militantes no final desta década e começo dos anos 80, com o
advento do governo democrático. Proponho registrar o produto de um trabalho de
enunciação nos testemunhos de mulheres que se autodenominam feministas e “histórias” de
grupos feministas. Focalizarei minha atenção no vocabulário de motivos que articula os
relatos das experiências militantes que correspondem, por sua vez, a noções de mulher e de
pessoa que serão úteis também para explicar como estas militantes entendem e vivem as
práticas que elas denominam políticas. A grande maioria das mulheres feministas
compartilha a convicção de que suas idéias e suas ações têm um significado “político”. Este
sentido da política se constrói em oposição à “política partidária”, caracterizada por elas
como masculina, hierárquica e patriarcal. Na segunda parte, descrevo detalhadamente a
experiência de uma oficina de “aproximação ao feminismo”, que foi parte das atividades do
último Encontro de Mulheres Feministas da Argentina, realizado em 2003. Interessa-me
mostrar aqui a persistência, desde os anos 70 até os dias de hoje, de um vocabulário que é
produto de experiências coletivas e que pré-existe aos que o enunciam. Formas de “se
aproximar ao feminismo” que, apesar das transformações produzidas através do tempo,
perduram e sobre as quais as feministas articulam o que denominam uma “reflexão sobre si
mesmas”. A análise desta oficina, onde as feministas tratam de resolver o modo de
incorporar mais mulheres ao feminismo, permite-me introduzir alguns elementos para
começar a compreender como e por que o feminismo adquire a forma social que o
caracteriza.
Na terceira parte analiso como alguns termos, cunhados em eventos internacionais que
nuclearam mulheres feministas de diferentes países, foram um eixo articulador na
militância feminista. A importância desses termos, dependendo de quem os introduziu e em
que contextos, afetaram também a forma particular do feminismo na Argentina. Para isto,
baseei-me em publicações acadêmicas. Neste ponto, tento mostrar a circulação
internacional das palavras, a articulação entre diferentes âmbitos (denominemos de
acadêmicos e militantes) e a relevância que adquire o fato de que algumas feministas
possuam um alto capital simbólico e intelectual que é transmitido em eventos e
publicações.
1. “Feminismo por feministas”: relatos de conversão
“…la subversión politique présuppose une subversión
cognitive, une conversión de la vision du monde
Pierre Bourdieu
À medida que foi passando o tempo e compartilhei várias atividades com mulheres
feministas identifiquei uma linguagem específica a partir da qual relatavam suas
experiências. Comecei a reconhecer esta linguagem desde o momento em que alguns
termos se repetiam nos relatos da maioria delas, nas conversas, nos eventos, nas reuniões.
Logo, na leitura de publicações, onde se registravam testemunhos de militantes, encontrei
novamente o uso desta linguagem típica quando emitiam opinião sobre diversos temas e,
especialmente, quando se referiam ao que é “ser feminista” e a “o que é o feminismo”.
Qual é o valor destes relatos para uma pesquisa sobre as formas de militância e construção
de problemas sociais? É necessário ressaltar aqui que não considero os motivos enunciados
nos relatos como princípios ou razões subjetivas que guiam a ação das pessoas, mas os
analisarei da perspectiva de um vocabulário dos motivos e uma gramática das mobilizações
(FILLIEULE, 2001; TROM, 2001)
27
. O modo com que as militantes feministas formulam
os motivos no momento e a situação em que se realiza uma entrevista (quem a realiza, com
que finalidade, para ser publicada onde, a relação entre entrevistador/a e entrevistado/a) é
produto de acordos que prescrevem o contexto de enunciação. Assim, as narrativas aqui
analisadas devem ser consideradas como uma rede de interpretações que orientam a
maneira com que as pessoas dão sentido a suas experiências. Considero os motivos como
uma verbalização que permite, em dada situação, produzir justificativas do comportamento.
O eixo a partir do qual articulei este ponto são relatos publicados no número 5 da Revista
Travesías. Temas del debate feminista contemporáneo, que faz parte dos “Documentos del
27
Neste ponto, me distancio das teorias da ação racional que consideram que os atores tomam decisões em
função de um cálculo estratégico e da teoria da mobilização de recursos que considera que as organizações
dos movimentos sociais tornam-se atores que entram em competição com um mercado de causas, clientes,
possibilidades mediáticas e agências administrativas.
CEYM” (Centro de Encuentros Cultura y Mujer)
28
. Foi escrito pela socióloga Silvia
Chejter, titular da cátedra Teorias Feministas e coordenadora da Área de Gênero da
Faculdade de Ciências Sociais da UBA, autora de vários livros e artigos, alguns deles
publicados em Le Monde Diplomatique. O número 5 de Travesías foi publicado em
outubro de 1996 e se intitula Feminismo por Feministas. Fragmentos para una historia del
feminismo argentino 1970-1996. O título enuncia a continuidade que traça a autora entre as
organizações feministas, apesar de ser uma história interrompida no país pelo governo
militar denominado “Processo de Reorganização Nacional”. Na contracapa explica-se que
se trata de “25 anos da história do feminismo em Buenos Aires através de testemunhos,
fotos, volantes, consignas, entrevistas, pesquisas, documentos”
29
. A publicação, organizada
em três décadas (os anos 70, 80 e 90), inclui relatos sobre a história das organizações, uma
pesquisa realizada em 1984 que, segundo Chejter, tem hoje o sentido de documento
histórico, e outra realizada em 1996.
Os relatos do passado são evocados como uma forma de explicar as realidades do presente:
“Es imposible entender dónde estamos hoy, si no miramos nuestra propia historia”
(CHEJTER, 1996:65)
30
. É necessário situar estas narrativas em seu contexto: trata-se de
respostas de mulheres feministas a uma pesquisadora feminista para serem publicadas em
uma revista feminista e, possivelmente, lida majoritariamente por feministas. Os relatos
mostram, antes de mais nada, os sentidos a partir dos quais as mulheres entrevistadas
organizam seus testemunhos marcados por uma reflexão orientada por um questionário
28
Este centro foi formado como uma Associação Civil em 1993 e funciona na Cidade de Buenos Aires. A
associação enuncia entre seus objetivos “articular a pesquisa acadêmica com a ação comunitária com a
finalidade de contribuir para que as relações intergenéricas sejam mais igualitárias e não violentas”. Entre as
atividades figuram a pesquisa, publicações, assistência técnica, documentação, capacitação, consultoria,
prevenção, difusão e assessoria institucional. As fontes de recursos da associação são a venda de publicações,
agências governamentais estrangeiras e doações.
29
A publicação enuncia-se como parte de um programa chamado NO es NO, financiado por uma fundação
feminista do Partido Verde Alemão Frauen Anstiftung. Esta fundação financiava projetos dirigidos a
mulheres e iniciativas do movimento feminista em diversos lugares do mundo. No final da década de 80 se
fusiona com fundações de apoio ao movimento sindical e ao movimento ecológico na Heinrich Böll Stiftung.
30
No esforço de integração das ações militantes desde os anos 70 até os dias de hoje não se mapeiam da
mesma maneira as ações de todas as mulheres nem grupos feministas, e todos os acontecimentos não
adquirem a mesma relevância. Há um processo de seleção, embora não explícito, no qual as mulheres que
lembram com precisão conquistas, nomes e datas, as que construíram arquivos pessoais com materiais que
permitem testemunhar fatos e as que adquiriram melhor domínio da linguagem e da escrita têm mais
possibilidades de influir na constituição da experiência coletiva de militância feminista, assim como seus
nomes têm maiores possibilidades de não cair no esquecimento.
organizado em três temas que foram esboçados pela pesquisadora: Ser feminista, O
feminismo na Argentina e Feminismo e política.
Os livros que usarei como referências complementares, cujas autoras também são
feministas, são Mujeres y Feminismo en la Argentina de Leonor Calvera (1990) e o livro
autobiográfico de María Elena Oddone (2001) Pasión por la Libertad. Memorias de una
Feminista, mencionado na introdução. A primeira foi uma das ex-integrantes da Unión
Feminista Argentina (UFA), surgida em 1970. Na introdução de seu livro declara “Esta es
la historia de UFA: sus comienzos, sus avatares internos, sus repercusiones en el exterior”,
ali aparece detalhada a experiência dos grupos de autoconsciência que funcionaram nos
primeiros anos da década de 70
31
. Oddone foi fundadora, em 1972, do Movimiento de
Liberación Femenina (MLF) e, em 1980, da Organización Feminista Argentina (OFA). Em
seu livro propõe contar, segundo consta na apresentação, “Cómo me convertí en una
persona que coloca su orgullo por encima de su condición sexual”.
O número 5 de Travesías é uma fonte habitualmente citada entre as militantes quando se
trata de conhecer a história do feminismo. Comprei a revista durante o último Encuentro de
Mujeres Feministas no stand da Librería de Mujeres. Ao conversar com feministas que
tinham ao redor de 30 anos, elas me diziam: “Ali estão todas as grandes do feminismo”. As
narrativas ali publicadas funcionam como trajetórias exemplares ou bons exemplos do que
é ser feminista para militantes mais jovens. A utilização de uma linguagem comum para
expressar as experiências de cada uma delas mostra que os testemunhos, embora apareçam
como individuais, são produto de um trabalho de representação efetuado a partir de
experiências compartilhadas. Das treze feministas entrevistadas por Silvia Chejter em 1984,
obtive dados biográficos de dez delas. Oito são profissionais universitárias e dois delas se
definem como “escritoras” (ainda que não foi possível achar dados específicos sobre a
obtenção de um título universitário). As dez têm publicações, sejam artigos de revistas ou
livros, ou revistas e livros próprios. As profissionais variam entre advogadas, psicólogas,
31
No Diccionario Biográfico de Mujeres Argentinas (SOSA NEWTON, 1996) Calvera é apresentada como
escritora e tradutora. Entre seus trabalhos, mencionam-se traduções de livros do inglês, francês, italiano e
sânscrito. Publicou livros de contos e poemas, um dos quais foi premiado pela Sociedad Argentina de
Escritores. Em 1982 publicou seu ensaio “El género mujer”. Foi co-editora da revista Prensa de Mujeres. Em
1985 publicou “Camila O’Gorman o El amor y el poder”. Realizou a documentação histórica do filme
“Camila” de María Luisa Bemberg.
fotógrafas, sexólogas e jornalistas. Inclusive, a partir de sua militância e trabalho em temas
considerados “de mulheres”, algumas das entrevistadas se apresentam e são apresentadas
como “feministas” ou “especialistas em gênero” ao mesmo tempo em que apresentam sua
profissão, outorgando a mesma importância a ser feminista e, por exemplo, advogada
(como é o caso de Magui Bellotti e Marta Fontenla). Algumas delas, Alicia D’Amico e
Gloria Bonder, realizaram parte de sua formação no exterior. Outras desempenham
atividades vinculadas com formação de pós-gradução, seja participando de atividades como
convidadas (como é o caso de Hilda Rais) ou coordenando-os ou tendo alguma cátedra
como Gloria Bonder. A maioria delas tiveram ou têm contato com diversas organizações
internacionais, como é o caso de Sara Torres (Red No a la Trata), Gloria Bonder
(UNESCO e FLACSO) e Eva Giberti (OMS e UNICEF Argentina), seja por fazerem parte
delas, terem trabalhado em algum momento, ou por terem recebido subsídios, prêmios e/ou
reconhecimentos. Todas têm publicações relacionadas com o que consideram “temas de
mulheres” (violência doméstica, saúde sexual, feminismo, entre outras). Algumas foram
entrevistadas por veículos da imprensa escrita de alcance nacional, outras por pesquisadoras
e/ou foram (e são) citadas como autoridades reconhecidas em trabalhos vinculados a estes
mesmos temas ou com a história do feminismo na Argentina.
Seria impossível entender a sofisticação intelectual dos relatos destas mulheres e o alto grau
de reflexividade que os caracteriza sem considerar suas propriedades sociais e o contexto
histórico em que os testemunhos se situam. As mulheres entrevistadas por Chejter definem
o “ser feminista” a partir de um distanciamento com a realidade e com sua própria pessoa
que produzem a partir de uma revisão e reflexão sobre suas experiências de vida. “Ser
feminista” supõe “pensar o mundo a partir de uma concepção feminista”, “uma busca
permanente da própria identidade”, “uma atitude diante da vida”, “uma busca da identidade
como mulher para chegar à identidade como pessoa”, “uma forma de ver as coisas”. Por
outro lado, referem a “uma forma de vida”, “estar comprometida com uma luta contra o
sistema patriarcal”, “uma forma de fazer política”. É neste sentido que utilizo a palavra
conversão, como uma modificação cognitiva que muda a visão que estas mulheres têm do
mundo, a partir da incorporação de novas categorias de percepção que constroem na
militância
32
.
A partir do trabalho de campo foi possível vislumbrar que a definição de “ser feminista”
também é uma forma de incluir e excluir, que serve para dar valor àquelas que assim se
definem (e são definidas por outras) e para desautorizar a quem muitas vezes lhe é negada
esta condição. Por exemplo, perante a avaliação da opinião de uma mulher sobre algum
tema, antes de emitir um juízo costumam perguntar: mas é feminista? E este dado
condicionará a apreciação. Por outro lado, muitas mulheres mencionaram que nos primeiros
momentos de contato com o feminismo sentiam incômodo por não se identificarem com as
idéias e declarações de outras mulheres que “já eram feministas”. Isto lhes fazia refletir e
crer que elas não eram feministas. Até que alguém, com mais trajetória dentro do grupo,
habilitava-as, ampliando a noção de feminismo e dizendo-lhes que “existem tantos
feminismos como mulheres feministas”.
Dentro dos tipos específicos de argumentação que aparecem nas narrativas analisadas é
possível identificar a linguagem que organiza emoções, palavras de ordem e definições que
marcam particularmente a maneira em que essas mulheres constroem sentidos e
significados. Segundo Chejter, perguntar sobre o “ser feminista” coloca em jogo momentos
de um devir: primeiro há um mal-estar, logo, rebeldia, a busca da própria identidade, o
reconhecimento de que a busca é compartilhada com outras mulheres, a mudança interna, a
consciência de que é possível fazer algo e uma atitude combativa com propostas concretas.
Como estratégia de apresentação, organizarei em quatro itens.
1.1 Mal-estar e rebeldia
Nos relatos destas mulheres, converter-se em feminista exige uma transformação, pensada
como parte de um processo, que não tem, necessariamente, uma duração definida no tempo.
Cito, a seguir, algumas das respostas à pergunta: O que é ser feminista?, onde o surgimento
32
Considero importante esclarecer que “conversão” não é uma palavra utilizada pelas militantes. Em geral,
quando se referem ao “ser feminista” utilizam expressões tais como “a partir dali já era totalmente feminista
ou “nesse momento ainda não era feminista”.
do “ser feminista” aparece associado a denúncias de injustiça e discriminação, condenações
a situações de violência e direitos não respeitados das mulheres:
A primeira coisa que me surgiu foi a raiva, uma grande indignação que
continua estando presente. Esta indignação me revolve constantemente
diante de situações de discriminação e injustiça contra as mulheres
como, por exemplo, diante da violação que uma mulher sofre ou outras
situações de violência. E esse sentimento de raiva não foi sublimado de
jeito nenhum. (Grifos meus)
Ao princípio, era ter encontrado um marco ideológico para coisas que eu
tinha me questionado desde criança e sobre as quais não tinha respostas
satisfatórias.
Segundo a análise de Chejter, depois do mal-estar aparece a rebeldia e a consciência da
causa do mal-estar. Isto produziria nas mulheres sofrimento-aborrecimento-raiva e a partir
dali acontece a “busca da identidade” e o reconhecimento de que esta busca se compartilha
com outras. Nesse momento, reconhece-se uma mudança que, tanto a autora como as
mulheres que contaram sua experiência consideram que é “sobretudo interno”. Segundo
outro testemunho “As mulheres que estão descontentes com o que lhes acontece e querem
modificá-lo defendendo seus direitos são feministas. No fundo de cada mulher há uma
feminista”. A consciência de que a mudança externa é possível aparece mais tarde e junto
com ela a atitude combativa que leva à ação. Assim, o ser feminista constitui-se em um
processo que inclui dois estados que se diferenciam no relato: um interior (que rompe com
o instituído) e outro externo (que impulsiona à ação). A militância, como em muitos outros
casos, é caracterizada como uma “luta”, a particularidade do feminismo é que essa luta tem
duas frentes: dentro de cada mulher e para fora
33
. Tanto as palavras utilizadas para
organizar as experiências, como a ordem na qual se relata a conversão mostram a
33
Neste ponto é útil mencionar a distinção que Norbert Elias faz entre um conceito de emoção amplo e outro
restrito. Num sentido amplo, o termo emoção é aplicado a um padrão de reações que envolve todo o
organismo em seus aspectos somáticos, sentimentais e de conduta. Neste sentido, a síndrome de uma emoção
é vista como um padrão de reação que tem uma função claramente reconhecível em uma situação específica.
Em seu sentido estrito, que pode ser identificado na maneira com que aparece nos relatos, o termo emoção
refere-se somente ao componente sentimental da síndrome. Assim, atribuímos tacitamente ao sentimento uma
posição máster, quiçá uma função causal; ao mesmo tempo, descrevendo a conduta como expressão do
sentimento a localizamos em uma posição derivativa ou dependente, talvez ainda fazendo dela meramente um
efeito. Ao falar de expressão de uma emoção pressupõe-se o sentimento como causa e a conduta como efeito.
Segundo o autor, neste sentido estrito o termo emoção é representativo de uma auto-imagem humana de
acordo com a qual o verdadeiro self de uma pessoa está profundamente oculto inside – sem que possamos
estar completamente seguros de que o self está oculto (ELIAS, 1987:355-6).
importância central de uma versão interiorizada da pessoa para se converter em feminista,
assim como para relativizar a maneira com que se organiza o mundo. O alto grau de
reflexividade que a conversão ao feminismo requer permite que se situem fora da realidade
vivida e que pensem tal realidade a partir do que elas definem como “uma concepção
feminista”.
1.2 A busca da verdadeira identidade
A maneira com que as militantes feministas dos anos 70 se relacionavam entre si esteve
fortemente marcada pelos grupos de “autoconsciência” ou “autoconhecimento”
34
. A idéia
de autoconsciência (uma consciência de si mesma) e de um autoconhecimento (um
conhecimento de si mesma) mostra a noção interiorizada de pessoa que se promove e atua
nestas práticas onde se procura descobrir um self verdadeiro que existe inside. A forma que
estes encontros adquiriam é relatada como uma “experiência de imersão pessoal forte e
comovedora” que “marca as mulheres para sempre”. Inclusive as mulheres que
participaram deles dizem poder distinguir outras que passaram por esta experiência e as que
não o fizeram.
As que atualmente relatam sua experiência nestes grupos, evocam-nos com nostalgia e
vivem sua interrupção como uma perda
35
.
34
Farei referência a estes grupos indistintamente como grupos de autoconsciência ou autoconhecimento para
diferenciá-los da denominação “conscientização” que as mulheres da UFA deram, na qual imprimem um
sentido próprio associado a interesses definidos por um contexto específico.
35
Embora os grupos de autoconsciência não tenham hoje o lugar central que tinham nos relatos durante os
anos 70, em alguns casos ainda continuam sendo importantes.
Por exemplo, funcionam em “La Casa del Encuentro” (que se define como um espaço lesbo-feminista aberto
a todas as mulheres), na Cidade Autônoma de Buenos Aires. Num discurso dado por ocasião da celebração do
segundo ano do lugar e reproduzido em um sítio web, menciona-se o seguinte: “Josefina pegou o microfone
em nome das ‘babies-feministas’, um grupo de mulheres muito jovens que começou a se reunir todas as
quintas-feiras para falar, pesquisar e fazer feminismo, e agradeceu especialmente a Marta Miguelez, uma das
feministas históricas que coordenou essa oficina em uma primeira etapa; destacou a importância do grupo de
reflexão das quartas-feiras, cuja persistência e consolidação operaram como verdadeira coluna vertebral do
processo de construção de La Casa e terminou chamando outras ‘babies’ para entregar uma nova bandeira,
feita por elas, momento este de grande emoção que fez com que as mulheres entoassem espontaneamente uma
das canções do Encontro de Mulheres”. Extraído do sítio web:
http://www.casadelencuentroweb.com.ar/home_historia.htm
Segundo Leonor Calvera (op. cit.), um dos espaços nos quais eram organizados os grupos
de autoconsciência era a Unión Feminista Argentina (UFA), criada em 1970. No relato de
sua origem, a autora menciona a publicação de um artigo da cineasta argentina María Luisa
Bemberg em um importante jornal onde “se declara abertamente feminista” e a partir desse
momento recebe cartas e ligações de outras mulheres com “inquietudes semelhantes”
36
.
Segundo Calvera, o início das reuniões da UFA foi no Tortoni, tradicional café da Cidade
de Buenos Aires, situado na Avenida de Mayo, a poucos quarteirões da simbólica Plaza de
Mayo e da Casa Rosada. As integrantes da UFA elaboraram “as bases” do grupo onde
definem o que é um “grupo de conscientização”, neologismo que utilizaram para traduzir o
termo em inglês conscienciousness-raising. É importante citar aqui a argumentação que
justifica a escolha deste termo para mostrar o alto grau de sofisticação das técnicas
feministas de integração social e intelectual e o lugar central que dão à linguagem na
definição de formas de interação e de significados:
Atentas a que el lenguaje remite directamente al entramado de creencias y
conceptos básicos y tácitos – que en nuestra sociedad son androcéntricos –
procuramos introducir un significado no autoritario, no impositivo, para
definir esta técnica que se había convertido en otros países en el
instrumento principal del movimiento de la mujer. La traducción literal
‘elevación de la conciencia’, resultaba demasiado vaga. ´Concientizar’,
de neto corte izquierdista, implicaba un movimiento de afuera hacia
adentro, de dictar lo que la otra debía encontrar en su propio interior.
‘Concienciar’, en cambio, se adecuaba perfectamente al método casi
mayéutico que se proponía. Lograba describir ajustadamente el proceso
de sacar de sí, de dar nacimiento a la propia identidad (CALVERA,
op.cit:37, grifos meus).
36
Como em outros grupos feministas, uma das premissas identificadoras da UFA era sua oposição aos
interesses políticos, entendidos como partidários. Leonor Calvera conta que no início da UFA uma de suas
integrantes conseguiu um lugar para que se reunissem: “Ali se reuniam também as integrantes do grupo
Muchachas’. Compartilhar o mesmo lugar não significa compartilhar as mesmas idéias: seu ponto de partida
– político – não era o nosso”. A quantidade de mulheres que participavam da UFA foi aumentando, fato que
aparentemente estaria facilitado pelo acesso irrestrito ao grupo e assim começaram a participar “mulheres
com interesses políticos”. Em 1973 ocorreu uma crise com fortes tensões produzidas por “infiltração de
partidos políticos”, o grupo rachou e algumas “ativistas” decidiram continuar com o grupo fechado: eram
cinco mulheres. A UFA funcionou até 1976, ano do golpe militar. Junto com a UFA apareceram nos anos 70:
Movimiento de Liberación Femenina, MOFEP (Movimiento Feminista Popular 1974-1976), ALMA
(Asociación para la Liberación de la Mujer Argentina, 1974-1976), entre outros. O funcionamento destes
grupos foi interrompido quando o governo militar assumiu e se reatou nos anos 80, com a instauração do
governo democrático.
Os grupos de autoconsciência eram fechados, reuniam-se duas ou três horas semanalmente
e funcionavam com uma coordenação rotativa. Organizavam-se em subgrupos fixos de 6 ou
8 integrantes e o objetivo era “descobrir o subjacente social da problemática individual”. As
técnicas utilizadas tentavam garantir que:
- Não houvesse hierarquias. Esta decisão estava fundada no argumento de que as mulheres
estavam muito induzidas a adotarem papéis secundários e a “não hierarquia” devia servir
para ajudar a modificar esta atitude.
- Cada mulher devia contar sua experiência buscando “não interpretar nem teorizar”.
- Tinham que encontrar elementos em comum entre todas, determinar as experiências
individuais, tirar conclusões e escrevê-las para comunicá-las a outros grupos.
- Era obrigatório expressar-se e guardar segredo.
- Os tópicos de discussão eram propostos a partir de uma enunciação prévia de temas
possíveis à qual denominavam “temário”.
Segundo uma das organizadoras, os debates mais comuns, nesta prática feminista eram
sobre: “dependência econômica”, “insegurança”, “maternidade”, “ciúmes”, “narcisismo” e
“simulação e sexualidade em todos os seus aspectos”.
Os grupos de autoconsciência foram realizados na Argentina, mais especificamente na
cidade de Buenos Aires, numa época em que houve uma importante expansão da cultura
psicanalítica. Mariano Plotkin (2003:117) assinala que, no final dos anos 60, linguagem e
conceitos de origem psicanalíticos inundavam as revistas populares, os shows de televisão,
o teatro, a ficção e os ensaios. Segundo o autor, “se podría argumentar que a lo largo de la
década el psicoanálisis desbordó su campo original de aplicación y se transformó, al menos
para algunos sectores sociales, en un ‘núcleo de significación’, que brindaba una
herramienta interpretativa para comprender y explicar diversos aspectos de la realidad
social y política”. Dessa maneira, embora os grupos de autoconhecimento fossem
realizados em espaços claramente delimitados e envolviam poucas pessoas, não deixavam
de estar em sintonia com um clima propício para as técnicas, temas e reflexões que eram
abordados neles
37
.
Muitas das mulheres que participam nos grupos de autoconhecimento como, por exemplo,
María Luisa Bember, são portadoras de um alto capital cultural e econômico que
possibilitava uma circulação internacional de idéias e pessoas
38
. Vários dos grupos que
surgem nessa época são constituídos ao redor de projetos editoriais, alguns traduzem livros
de feministas européias ou americanas e outros também publicam artigos próprios
39
.
Como menciono mais adiante, as técnicas que estas mulheres aplicam nos grupos de
autoconsciência são tiradas das feministas norte-americanas. Inclusive, num dos
testemunhos de Travesías menciona-se a tradução do inglês do temário confeccionado
pelas norte-americanas e que as feministas argentinas tratavam de adaptar à realidade local
e utilizavam-no nas reuniões da UFA. A seguir transcrevo o testemunho de Hilda Rais
37
Plotkin também destaca que a introdução da terapia de grupo no final da década de 1950 foi central para a
difusão do discurso psicanalítico. Segundo o autor, “la introducción de la terapia de grupo tuvo consecuencias
importantes de características diversas. Primero, expandió drásticamente la clientela potencial de las terapias
de orientación psicoanalítica. La terapia de grupo era más barata que la analítica tradicional y los hospitales
públicos se volvieron receptivos a la aplicación de este tipo de tratamientos luego de la caída de Perón.
Segundo, la definición misma de psicología de grupos también se expandió para permitir un uso no sólo
terapéutico en sentido estricto sino para tratar las relaciones laborales. Grupos de orientación psicoanalítica
proliferaron entre maestros de escuela, compañeros de trabajo y músicos que esperaban mejorar la dinámica
de sus vínculos de trabajo y personales.” (PLOTKIN, 2003:136-37)
38
Em seu livro autobiográfico, María Elena Oddone comenta sobre os contatos com profissionais de outros
países que as integrantes da Unión Feminista Argentina tinham. De acordo com seu relato, “[UFA] lo
integraban sus fundadoras Gabriela Cristeller y María Luisa Bemberg junto a Nelly Bugallo, Leonor Clavera,
Alicia D’Amico y un grupo numeroso de mujeres. Se reunían en una casa en el barrio de Chacarita, tenían una
biblioteca y recibían a importantes personalidades a dar conferencias, como el psiquiatra español Castilla del
Pino y la teóloga Beatriz Melano Cauch, y otros.” (ODDONE, 2001:148). As propriedades sociais e
trajetórias de algumas destas mulheres serão tratadas com maior detalhe no capítulo 4, onde analiso as
articulações internacionais do espaço do feminismo.
39
Em 1970 cria-se o grupo Nueva Mujer, que se dissolve em 1972. As versões tanto de militantes como de
historiadores diferem entre si. Segundo Leonor Calvera, Nueva Mujer estava integrado por Mirta Henault e
Isabel Larguía e “por varios motivos no habían adherido a UFA” (CALVERA, 1990:45). Segundo a
historiadora Alejandra Vassallo, Nueva Mujer foi o grupo editor de UFA: “Cuando apareció el aviso de UFA
en el periódico convocando a quien quisiera participar, ellas propusieron convertirse en el grupo editor de la
agrupación bajo el nombre de Nueva Mujer. Desde allí publicaron algunos de los trabajos de UFA y las
traducciones de los escritos traídos de afuera. La publicación más importante fue sin duda el primer libro
escrito por feministas argentinas en aquella época sobre la liberación de las mujeres, Las mujeres dicen basta,
con artículos de Henault, Isabel Larguía y Peggy Morton, dedicado precisamente ‘a Gabriella [Christeller]’,
de quien Henault copió la frase que da título al libro” (VASSALLO, 2005:74). Segundo Silvia Chejter, a
atividade de Nueva Mujer articulou-se em torno a um projeto editorial com alinhamento político marxista.
Traduziram um livro de Juliet Mitchell Las mujeres, la revolución más larga e publicaram também Las
mujeres dicen basta, com artigos, entre outros, de feministas argentinas (TRAVESÍAS 5, 1996).
sobre sua passagem pelos grupos de autoconhecimento, escrito em 1996, “25 anos depois”,
para ser publicado no número de Travesías
40
.
Buenos Aires, 1970. Tenía diecinueve años cuando una amiga me contó
que estaba en un grupo de mujeres que habían creado la Unión Feminista
Argentina. Reaccioné como si me hubieran anunciado la aparición de una
Liga para abolir la esclavitud en Argentina. Feminismo, ¿en esta época,
para qué?
Con un par de charlas me recorrí velozmente el tramo que iba desde mi
ignorancia histórica y la mansa aceptación de la propaganda oficial, hasta
el interés por las ideas nuevas, la inquietud perturbadora y la impresión de
que una telaraña comenzaba a abrirse con chispas que iluminaban zonas
oscurecidas. Era verano cuando decidí ir a UFA, podría integrar con otras
mujeres nuevas un grupo de concientización. Entré a la vieja casa sin
tiempo para recorrerla, apenas para ver como un tesoro la biblioteca
magra, casi de exposición, y pasar a la gran sala despojada, contra una
pared las pilas de sillas que luego sabría insuficientes para las reuniones
grandes.
En este espacio, éramos siete mujeres sentadas alrededor de una mesita,
bastante tensas, curiosas, incómodas por dentro, esperando que alguien –
la única que ya era integrante de UFA- nos dijera qué hacer. Dijimos
nuestros nombres sin apellido. A primera vista registramos las diferencias
de edad, muy pronto las de extracción social, ocupación, estilo de vida. En
las bases de UFA se explicaba qué era un grupo de concientización. Se
trataba de un grupo cerrado que se reunía durante dos o tres horas
semanalmente y la coordinación era rotativa. En cada reunión se proponía
un tema relacionado con la vida cotidiana de las mujeres; cada una, por
turno contaba su experiencia tratando de no interpretar ni teorizar. Luego
entre todas, hallar los componentes en común. Determinar las
experiencias individuales, sacar conclusiones y escribirlas para
comunicarlas a los otros grupos.
Conocer las bases, el mecanismo de esta técnica, no pudo atenuar el
tremendo impacto de vivir la experiencia. Aquella vez el tema era la
relación con nuestros padres y aprendimos a confiar nuestra intimidad a
mujeres desconocidas. Lentamente, palabra por palabra, algo comenzó a
arder. Casi todas comenzamos nuestro relato diciendo ‘lo mío es algo muy
particular’. Terminamos encontrando, con asombro, algunos hilos de la
trama que nos unía.
La técnica de los grupos de concientización había sido creada por las
feministas norteamericanas. Este trabajo era el germen, la sustancia
material y el saber profundo con que sostendríamos una consigna: lo
personal es político.
En uno de los materiales traducidos se proponía un temario ordenado para
las reuniones (…) El temario era una buena guía al principio pero
pertenecía a otra realidad socio cultural. Algunos temas eran demasiado
40
Nas páginas de internet onde aparece seu nome, Hilda Rais se define como feminista lésbica argentina,
nascida em 1951, integrante do Grupo SUDESTADA – Asociación de Escritoras de Buenos Aires – e
coordenadora de oficinas de redação para mulheres e grupos de reflexão sobre feminismo. Extraído do sítio
web:
http://www.ciudaddemujeres.com
amplios o estaban demasiado dirigidos a encontrar rápidamente la
opresión con el riesgo de envolvernos en el algodón de las
generalizaciones. Nos asomamos entonces a otras zonas que no nos
garantizaban a priori las conclusiones: la menstruación, los celos, la
masturbación, una relación oculta, el llanto. Y aparecieron preocupaciones
evidentemente más locales: con quién vivimos y por qué, la experiencia
psicoterapéutica, el maquillaje, la moda, los ingresos en la relación de
pareja, el tema del dinero.
El feminismo era un mundo nuevo, sólo que era el mismo y estábamos
en él; la mirada se nos iba agudizando. Dentro de UFA crecíamos con
los temas tratados, las reuniones generales, las lecturas, las discusiones
teóricas, las volanteadas, las participaciones públicas, pero muy
especialmente con la experiencia inédita de un trabajo que modificaba
nuestra tradicional relación entre mujeres. En los grupos de
concientización teníamos un intenso vínculo cargado de afectividad sin
requerir de amistad, también tuvimos que aprender a no interrumpir, a
escuchar a la otra sin abrir inmediatamente juicios morales o de valor
ante un relato, a bucear en la profundidad de lo íntimo y luego
intentar un nivel de abstracción, a descubrir cuánto de lo político había
en lo personal, y todo esto “poniendo el cuerpo”. Desde una práctica
constante revertíamos lo que habíamos adquirido como “natural”: la
desconfianza hacia las mujeres, la división y la rivalidad, el chisme, el
solapado.
Nuestra conciencia feminista se ampliaba, y las dificultades para producir
cambios generales y en la propia vida cotidiana nos producía angustia y
algunas deserciones lamentadas por el resto, así como apenaba e irritaba
la ausencia a una reunión. Esta práctica que insistía en la igualdad
participativa exigía cierta disciplina. No era fácil la lucha interna contra
la timidez, la verborragia, las empecinadas negativas a coordinar, regular
el tiempo o escribir las conclusiones, o saber contener grupalmente las
conmociones producidas por el testimonio propio o ajeno. (TRAVESÍAS
5, 1996: 21, 22, 23, grifos meus)
O uso da palavra, a existência de condições que inspirem confiança (os grupos são
fechados, explicita-se um compromisso de se expressar e de guardar segredo, a criação de
formas para conter as comoções pessoais), condições que tendem a não hierarquizar o
grupo (as coordenações são rotativas, é obrigatório que todas falem), o compromisso em
escutar sem interromper e sem julgar (“escutar a outra sem abrir imediatamente juízos
morais ou de valor”), a desparticularização dos relatos (partindo do “íntimo” tentar um
nível de “abstração”, buscar o “componente social”) e a objetivação das experiências
particulares (redação de “conclusões” que se colocam em um papel e que circulam entre
outros grupos) foram as técnicas utilizadas pelas mulheres feministas para re-significar suas
experiências. Como expressa Rais em seu testemunho, “terminamos encontrando, com
espanto, alguns fios da trama que nos unia”. As técnicas dos grupos de autoconhecimento
tinham a ambição de propiciar um microespaço que tornassem possível o difícil trânsito de
denunciar perante um público integrado por mulheres desconhecidas problemas que até
esse momento elas consideravam íntimos, ou seja, que só podiam ser denunciados perante
pessoas com as quais se mantinha um vínculo de amizade ou familiaridade. Nas palavras de
Rais “aprendemos a confiar nossa intimidade a mulheres desconhecidas”. Neste exercício
particular é onde as denominações do que é “privado” e do que é “público” adquirem
sentido para estas mulheres. Neste exercício são alterados os espaços definidos como
“normais” para realizar denúncias de problemas considerados por estas mulheres como
íntimos
41
. Os relatos ocorrem diante de “desconhecidas” e isto causa comoção pessoal que
tenta ser contida ao dotar as experiências de novos significados e, nesse mesmo exercício,
redefinir os espaços de denúncia.
O trabalho que as militantes realizavam nos grupos de autoconsciência estava destinado,
segundo elas, a modificar o efeito de autocoerção que produz a interiorização das normas
sociais. Pretende-se produzir uma modificação a partir de imprimir um novo sentido a
normas instituídas através de experiências, de alta carga emocional, cuidadosamente
pautadas e compartilhadas. A obrigação de não fazer juízos morais durante as reuniões
procura suspender os mecanismos de controle social habituais; a obrigatoriedade de guardar
segredo é a forma de garantir que o controle social não aconteça fora do grupo, a partir de
mecanismos como a fofoca. Neste sentido é que as mulheres feministas reconhecem que o
“pessoal” é “político” e que “o corpo”, como lugar onde se instalam os mecanismos de
controle, é uma ferramenta política. Um exemplo da força que os mecanismos de
autocoerção possuem aparece no relato de Hilda Rais quando conta que, apesar das técnicas
oferecidas pelos grupos de autoconsciência, muitas delas não se “atreviam” a dizer que
eram lésbicas:
Como estoy escribiendo exclusivamente acerca de los grupos de
concientización, pienso que es necesario decir que durante ese primer
período, salvo alguna excepción, las lesbianas ocultábamos serlo. Puede
parecer increíble, desde hoy, creer que con tal grado de intimidad
compartida políticamente como la que describo, una lesbiana no se
41
Boltanski (2000) assinala que a denúncia é um exercício que todos nós realizamos cotidianamente, no
entanto, para que a denúncia possa constituir-se um ato de protesto ou uma denúncia pública deve cumprir
com certos requisitos.
manifestara como tal, y no éramos pocas. Pienso que la mezcla de
sometimiento ancestral y deshonestidad hacia el compromiso con el grupo
tiene que enmarcarse históricamente: hablo de los comienzos de la década
del 70 en Buenos Aires, Argentina. Faltaba un poco aún para que surgiera
el primer grupo de militantes homosexuales, varones; muchísimo más
para la pública existencia del movimiento gay y de lesbianas. La
invisibilidad era extraordinariamente mayor que ahora y la posible
autoafirmación individual no tenía aún la sustentación política que
también vino del feminismo. Si en una mujer lesbiana el miedo al
rechazo, el miedo al miedo de la otra, ya constituía quizás parte de la
adaptación a una forma de vida cercenada, a las feministas que
queríamos construir y ampliar el Movimiento se nos atragantaba una
encrucijada. Éramos atacadas, descalificadas, desde la derecha, la
izquierda y el centro con distintos y hasta opuestos argumentos. Sin
embargo, todos coincidían en un anatema: feminista-lesbiana. Y
sabíamos que la amenaza de ese estigma era el más eficaz para alejar
a las mujeres, a las heterosexuales de las lesbianas. Creo que aquel
ocultamiento respondía a una tácita ‘estrategia’ contaminada por la
opresión específica (TRAVESÍAS 5, 1996: 23, grifos meus).
O testemunho de Hilda Rais mostra, numa visão retrospectiva, a avaliação sobre a força da
autocoerção que se manifesta como um sentimento de “medo”, para negar aqueles
comportamentos que não são aceitos socialmente. Norbert Elias (1987) distingue entre
autocoerção consciente e automática ou inconsciente. Na autocoerção automática o medo é,
segundo o autor, uma via de união privilegiada entre a estrutura da sociedade e as funções
psíquicas individuais. Junto aos autocontroles conscientes, que vão se consolidando no
indivíduo, aparece um aparato de autocontrole automático que atua por meio de uma
“barreira de medos”, tratando de impedir aqueles comportamentos que não são socialmente
aceitos. Elias refere-se também ao medo de perder o que foi herdado, a infração das
normas, mas, neste caso, aquelas normas que definem a identidade de um dado grupo, a we
image. Este tipo de medo é sentido pelos indivíduos diante da ameaça de perder aquilo que
está emocionalmente enraizado: uma determinada forma de comportamento, uma dada
configuração emocional. O medo da perda ou da diminuição do prestígio social é um dos
motores mais poderosos da passagem de coerções externas a autocoerções. Isto se
manifesta no que o autor chama “inflexibilidade emocional” e “barreiras emocionais” que
impedem o indivíduo de adquirir pautas de comportamento plausíveis de questionar seu
pertencimento ao grupo
42
. No caso do testemunho citado de Rais, seu temor manifesta-se
com clareza quando diz: “a las feministas que queríamos construir y ampliar el Movimiento
se nos atragantaba una encrucijada […] sabíamos que la amenaza de ese estigma era el más
eficaz para alejar a las mujeres heterosexuales de las lesbianas”. (TRAVESÍAS 5, 1996:23).
A partir do exercício de reflexão e objetivação de experiências particulares e de um
trabalho cuidadoso sobre as emoções, o corpo também é proposto pelas militantes como um
ponto central de observação e reflexão. Nestes exercícios compartilhados, considera-se que
é necessário modificar a “relação com o corpo” e “a visão que se tem dele” como uma
forma de luta “contra a opressão e as estruturas patriarcais”. Constroem o corpo como tema
de reflexão e análise e, logo, como lugar a partir do qual é possível “resistir à dominação”.
Isto é assim porque consideram que nos relatos sobre o corpo, pensado por elas mesmas
como lugar íntimo e pessoal, a dominação se instala sobre as mulheres. Segundo a opinião
de algumas feministas, “o corpo das mulheres foi colonizado”, então é necessário
“trabalhar” com o corpo para poder se reapropriar dele:
El poder patriarcal se inmiscuye en nuestros cuerpos, los controla a través
de prohibiciones y tabúes, de la ley y de la moral, de la violencia y la
persuasión. Apropiarnos de nuestros cuerpos, sustraerlos de las
tenazas brutales o sutiles del poder, es una de las tareas feministas
más complejas y gozosas. (TRAVESÍAS 5, 1996:41, grifo meu)
“Colocar o corpo” não significava somente discutir sobre o mesmo, mas estarem dispostas
a suportar todas as sensações emotivas que para elas significava submeter-se à experiência
dos grupos de autoconhecimento. Discutir em espaços coletivos temas que, para quem
participava destes grupos, eram considerados “íntimos”, com mulheres que até esse
momento não tinham necessariamente uma proximidade afetiva com elas foi, na época,
uma das estratégias utilizadas pelas mulheres feministas para subverter o ideal republicano
de separação e oposição entre o público e o privado. O objetivo para elas era “converter o
espaço privado em público” e tentavam fazê-lo com técnicas tão simples como eficazes: o
uso da palavra, a criação de um público feminino e a utilização de espaços coletivos
construídos especialmente para a reunião de mulheres com interesses feministas. Por isto, a
42
Isto é particularmente evidente nas análises em Winston Parva sobre Established and the Outsiders
(ELIAS, N. & SCOTSON, J.L. 1994), mas também é extremamente ilustrativo o caso da nobreza e a
burguesia ascendente exposto por Elias (1994) em El Proceso de la Civilización.
palavra de ordem o pessoal é político foi uma das mais importantes para o feminismo dos
anos 70 e continua sendo até hoje. A partir destas estratégias, consideravam que
conseguiam transformar “problemas pessoais” em “problemas políticos”.
1.3 A busca compartilhada: o pessoal é político
“O pessoal é político” foi o slogan principal do que se denominou internacionalmente “a
segunda onda do feminismo”. Segundo o Dictionary of Feminist Theory (HUMM, 1995), a
expressão foi utilizada pela primeira vez por Carol Hanisch e publicada em Notes from the
Second Year, em 1970. Segundo Humm, o feminismo radical utilizou esse slogan para
argumentar que as diferenciações entre as esferas do pessoal e do público eram uma falácia
e que os homens dominam as mulheres na esfera pública da mesma maneira que as
dominam na casa. Segundo a autora, o feminismo radical argumenta, também, que a
experiência pessoal das mulheres revelada em grupos de autoconsciência pode prover a
inspiração e as bases de uma “nova política”
43
.
De acordo com uma das integrantes da UFA, “de esta manera [con los grupos de
autoconocimiento] vivenciamos una de las premisas básicas del feminismo: lo personal es
político. A partir de allí nos resulta evidente que el Movimiento Feminista es el único en la
historia que se ha planteado modificar profundamente las estructuras vigentes desde la
puerta de la casa hacia adentro” (TRAVESÍAS 5, 1996:11). No ponto anterior, mostrei as
estratégias que as militantes dos anos 70 utilizaram para transformar aspectos da realidade
que consideravam “privados” em algo que, a partir de sua militância, começa a ser
considerado “político”. A seguir, centrarei o foco da análise nas definições de política
dadas por feministas. Cito alguns conceitos publicados na revista editada pela Asociación
de Trabajo y Estudio de la Mujer (ATEM) Brujas (1983) e que Chejter transcreve em
Travesías 5 (op.cit. 44):
El feminismo cambia el concepto de política al decir que el sexo es
político, pues contiene relaciones de poder. Abarca tanto la esfera pública
43
Segundo Humm, “O pessoal é político” enfatizaria as bases psicológicas da opressão patriarcal, e
acrescenta que Catherine MacKinnon argumenta que a frase estabelece uma relação direta entre sociabilidade
(sociality) e subjetividade, assim, conhecer a situação política da mulher é conhecer a vida pessoal da mulher.
(HUMM, 1995:204).
como la privada y rompe con los modelos políticos tradicionales que
atribuyen neutralidad al espacio individual y que definen como política la
esfera pública “objetiva”. Toma en cuenta el carácter subjetivo de la
opresión y revela los lazos existentes entre las relaciones interpersonales y
la organización política pública [...]
A definição de outra feminista do feminismo e da política também ressalta a resignificação
da oposição público/privado que se discute ao estabelecer uma continuidade que começa no
que elas definem como “privado” ou “individual”, e mais exatamente a partir do corporal,
para chegar finalmente – num exercício de reflexão e análise – a transformá-lo em
“político”:
“El feminismo es una forma de inserción en el mundo. Es también
democracia. Democracia en el verdadero sentido y para las mujeres. [...]
Lo importante es la democracia en la vida cotidiana, el hogar, el trabajo.
Se parte de una nueva relación con una misma. Si se comienza por
conocer el propio cuerpo, si una aprende lo que quiere, puede establecer
relaciones basadas en el respeto, que parte del conocimiento de una
misma. Es un largo aprendizaje para la vida. [...]” (TRAVESÍAS 5,
1996:70).
As práticas de mobilização das feministas estão marcadas por estas reflexões. Neste
sentido, a identificação da causa da dominação corresponde com a proposta de uma
mudança para aboli-la e com o próprio processo de construção do feminismo. A seguir,
transcrevo as definições de política de algumas das feministas entrevistadas em 1984, nas
quais traçam as diferenças e oposições entre o feminismo e outras formas de fazer política:
“Los partidos políticos son instituciones dentro del sistema patriarcal y en
los que las mujeres no pueden hacer otra cosa que obedecer (...) La
posibilidad de una acción creadora feminista sólo puede darse militando
en el feminismo, que pese a su aparente desorganización, su diversidad, y
los problemas todavía discutibles y discutidos, tiene la fuerza de lo nuevo.
(...) La política bien entendida la hacen los grupos feministas”.
(op.cit.:75)
La lucha feminista es política. Tiene algunos elementos distintos a la
mal llamada política general de una sociedad. La política feminista
incorpora temas que no han sido tomados en cuenta por la política:
incorpora lo que se considera el mundo de lo privado, por entender que
también en él se dan relaciones de poder; así entran en la política de lo
subjetivo, la sexualidad, la familia, las relaciones interpersonales” (op.
cit.:77) (Grifos meus)
No feminismo constrói-se uma relação de objetividade com o próprio corpo que as
feministas tentam transformar numa ferramenta de ação coletiva. As marcas, as
experiências, as sensações vividas, os ciclos vitais são re-significados a partir de uma
linguagem e uma prática que as mostra como parte de uma lógica que as excede. Atribuir
ao corpo significados que são considerados políticos permite instaurá-lo como lugar
legítimo de disputas e sentidos. Esta característica não é própria apenas do feminismo.
Allen Feldman (1991) a define como uma característica da modernidade tardia e considera
que a situação dos militantes do IRA no Norte da Irlanda é importante para pensar sobre a
problemática do que ele define como agência política
44
.
1.4 Não às Hierarquias
Desde os grupos de autoconhecimento, as militantes colocaram o estabelecimento de
hierarquias como um problema para “as mulheres” e construíram suas práticas tentando
manter formas de organização horizontais, opondo-se em seus discursos a instituições que
elas distinguem como hierárquicas. Segundo várias das feministas entrevistadas, as
hierarquias estão presentes em todas as instituições do sistema social (igreja, família,
estado, escola) que são definidas como patriarcais, capitalistas e responsáveis pela opressão
das mulheres. O Estado e os partidos políticos são o alvo constante de suas críticas devido,
segundo elas, à estrutura hierárquica sobre a qual se sustentam:
“El feminismo es política, no en el sentido tradicional de los partidos
políticos; no se adscribe a los cánones clásicos de las estructuras de éstos
que son estructuras jerárquicas. El problema de las mujeres que actúan en
el movimiento feminista es cómo introducir la temática feminista en el
poder cultural detentado por los grupos financieros, la banca, la iglesia y
los medios de comunicación” (TRAVESÍAS 5, op.cit:74)
“El feminismo supone una actitud solidaria mientras que el partido
político, por la necesidad de poder de las personas, se contrapone a la
solidaridad. El objetivo feminista lo constituye la lucha contra el poder.
En los partidos políticos existen jerarquías, en tanto que el feminismo se
opone a ellas” (TRAVESÍAS 5, op.cit.:75) (Destacados míos)
44
Em seu livro Formations of Violence mostra como militantes do IRA utilizam seu corpo como lugar de
diversas práticas materiais. Trata-se de práticas e estratégias narrativas nas quais se constrói determinado tipo
de political agency. Um trabalho social de mobilização e integração através do qual os/as militantes tentam
deslocar formas estabelecidas de percepção da realidade.
A importância da horizontalidade como argumento para sustentar uma forma de se
relacionar dentro dos espaços feministas desse momento pode ser avaliada a partir do
testemunho de Maria Elena Oddone publicado no livro Pasión por la libertad. Memorias
de una feminista. Ali, sob o título “Mi vida en el feminismo” conta como foi “expulsa” de
vários grupos por tornar explícita sua liderança:
“Las integrantes de la UFA criticaban mi liderazgo, como también lo han
hecho otros grupos que surgieron más tarde. La identificación del
liderazgo con la masculinidad, llevaba a las feministas a tratar de eliminar
el liderazgo en los grupos. Yo no compartía ese concepto, porque creo que
es un producto de la cultura masculina. En todas las épocas ha habido
mujeres líderes. Creo que en un movimiento feminista todas las
condiciones naturales de sus integrantes son útiles si están orientadas a un
buen fin. Yo no negaba mi liderazgo, pero cuando había que hacer un
trabajo en la calle como pegar afiches y repartir volantes yo lo hacía a la
par de mis compañeras. En ese caso había una auténtica horizontalidad.
No sucedía lo mismo en otros grupos como UFA, cuyas líderes no salían a
la calle y las demás ni daban sus nombres cuando el periodismo las
requería.
Sucedía una contradicción muy curiosa, que yo atribuía a la falta de
concientización. En las reuniones de los grupos se analizaban las causas
de la opresión patriarcal y las nefastas consecuencias en la vida de las
mujeres, señalándose como las más importantes, la baja autoestima, la
inseguridad y la dependencia entre otras. Yo había logrado superar la
terrible experiencia de veinticinco años de domesticidad y el largo
encierro no había hecho mella en mi autoestima ni en mi estabilidad
emocional. Mis compañeras debieron haber valorado este milagro, porque
conocían mi vida anterior, sin embargo me criticaban y confundían
liderazgo con autoritarismo” (ODDONE, 2001:149-50)
Não é de meu interesse estabelecer através destes relatos as “verdadeiras causas” que
produziam conflitos, como a expulsão de Oddone de vários grupos feministas nos anos 70 e
80, mas ressaltar que tanto ela como outras feministas que compartilharam essa época de
militância mencionam a “liderança” como a causa do conflito. Elizabeth Borland
(2004:294) cita o testemunho de uma feminista que trabalhou junto com Oddone na
campanha pela Patria Potestad Indistinta
45
, onde expressa em termos de acusação que
Maria Elena Oddone “nunca esteve interessada na horizontalidade”. Os argumentos
45
Patria Potestad Compartida [Pátrio Poder Compartilhado] significa que é necessário o consentimento do
pai e da mãe nas decisões relativas aos filhos menores, já na Patria Potestad Indistinta [Pátrio Poder
Indistinto] qualquer um dos progenitores tem o poder de decisão sobre os filhos.
manifestados tanto por Oddone como por outras feministas para explicar sua “expulsão”
reafirmam a importância nas práticas feministas de sustentar uma retórica e uma dinâmica
de trabalho que revele intenções de “horizontalidade”. A rejeição a Oddone e o
desconhecimento a seu respeito se mantém até os dias de hoje
46
. Talvez seu erro não tenha
sido ter atitudes que denotem liderança, já que estas são observadas em outras feministas,
mas tornar explícita sua oposição à horizontalidade e seu reconhecimento da hierarquia
como valor
47
.
2. Aproximar-se do feminismo: Oficina “Aprendizas de Bruxas”
La morale commence (…)
là où commence la vie en groupe
E. Durkheim
Em Mulheres y Feminismo na Argentina, Leonor Calvera situa historicamente a etapa na
que a UFA começava a se dissolver – um clima de violência política que “acrecentaba los
riesgos en el exterior” –, e diz a respeito:
“Por ende, la incorporación de nuevas mujeres no se hacía dentro de un
panorama de conquistas significativas o conocimientos previos. Esto nos
obligaba a repetir las mismas frases, a disipar las mismas dudas e
interrogantes, a tropezar con los mismos prejuicios. Era un permanente
recomenzar que nos agotaba la paciencia y las energías, produciendo
algunos abandonos” (CALVERA, op.cit.:50) (Grifos meus)
46
Borland assinala em seu trabalho que “Oddone does not have contact with other feminist SMOs. In fact, her
appearance in October 2002 in the audience for a panel on the history of a feminist group active before the
dictatorship was met with surprise; I noted that few of the women Oddone had worked with in SMOs even
greeted her (BORLAND, 2004:291).
47
É interessante destacar as coincidências entre Elizabeth Borland (2004) em seu trabalho sobre os
movimentos contemporâneos de mulheres na Argentina e Peter Fry (1982) em sua análise da construção da
homossexualidade no Brasil sobre a “rejeição ao autoritarismo” que caracteriza os movimentos sociais em
contextos latino-americanos. Segundo Peter Fry, tanto o movimento homossexual como o movimento
feminista têm uma vertente antiautoritária mais acentuada que movimentos similares nos Estados Unidos e
Europa.
No entanto, o problema da incorporação de novas mulheres e o “permanente recomeçar”
não parece explicar-se somente pela falta de possibilidade de realizar ações externas num
clima social e político adverso a qualquer tipo de militância. Trinta anos depois, em uma
das jornadas feministas realizadas na Cidade de Buenos Aires, onde se discutiam propostas
para a realização do IX Encontro Nacional de Mulheres Feministas, a questão de como
transferir as experiências e o que acontece quando se incorporam novas mulheres
reaparece. A seguir transcrevo fragmentos do debate onde participaram mulheres de idades
diversas (desde vinte e poucos anos até sessenta):
Yo no quiero ser pedante, pero lo que pasa es que se desconocen las
experiencias y alianzas de otros momentos como la Multisectorial de la
Mujer.
Uno de los problemas es cómo incorporar a otras mujeres. Organizar
talleres de formación de historia del feminismo o dar por adelantados los
temas y que las mujeres escriban para que eso suscite un pensamiento
propio. Suscitar la producción teórica.
Yo creo que no puede ser un ámbito de formación. Pero qué hacemos las
feministas entre encuentro y encuentro para que las mujeres que se
acercan… de que manera nos damos un trabajo para generar trabajo
de aproximación al feminismo.
A expressão “as mulheres”, que as feministas utilizam, sobretudo, quando argumentam os
motivos da “luta” e nas ações militantes, adquirem novos sentidos quando mulheres que
não compartilharam suas experiências tomam contato com o feminismo. Ali é necessário
diversificar o coletivo “mulheres” e fazer diferenciações. Aparecem, assim, matizes e as
mulheres que já estão militando no feminismo falam de “outras mulheres” e “novas
mulheres”. Como incorporar as “novas mulheres”, isto é, aquelas que ainda não são
feministas?
A oficina com a qual se iniciou o VIII Encontro Nacional de Mulheres Feministas em 2003,
e da qual participei, foi de “Aprendizas de Bruxas”. Era uma oficina destinada a quem
começava a se vincular ao feminismo. Uma espécie de oficina para “principiantes”. No
convite do Encontro, convocavam-se as “companheiras” que “possam oferecer sua
experiência para coordenar esta oficina”. Na ficha de inscrição, escrita em lilás (a cor com a
qual se identificam as feministas), além dos dados pessoais, também se perguntava se “se
considera feminista”.
Nesse momento, imaginei que se queria participar – e realmente estava muito interessada –
devia me definir como “não feminista”, além do mais, entendia que era o requisito para
poder participar da atividade. Por outro lado, apesar de ter assistido, há alguns anos atrás,
eventos organizados por feministas e coordenar um programa na universidade sobre
“estudos da mulher”, ignorava se podia, por isso, chamar-me de “feminista”.
2.1 Ser ou não ser feminista
Da Cidade Autônoma de Buenos Aires saíram duas vans com mulheres, cujo ponto de
reunião foi a Librería de las Mujeres, para a cidade de Tandil, onde se realizaria o
Encontro. Uma saía na sexta-feira às 5 da tarde e a outra no sábado às 5 da manhã. Minha
intenção era viajar junto com as outras mulheres, mas não podia na sexta à tarde e, se
viajava no sábado pela manhã, não chegaria à oficina de Aprendizas. Assim, ao final, viajei
sozinha, no sábado de madrugada, num ônibus de linha. Cheguei a Tandil em torno das
6:45h, tomei café no na rodoviária, esperei ali enquanto lia a biografia de Alicia Moreau de
Justo, médica e militante socialista reivindicada pelas feministas argentinas, e quando
começava a amanhecer tomei um táxi para a casa onde me alojei. María, a dona da casa, é
feminista (esta definição é central nas conversas e dentro do movimento), pertence à
Biblioteca Popular de las Mujeres de Tandil (são quatro as feminista que ali estão e
trabalham, junto com elas, quatro mulheres que cumprem com tarefas designadas como
‘contraparte’ do dinheiro que recebem dos planos assistenciais do governo – Plan Trabajar
– que não se consideram feministas). Na sua casa vivem estudantes como pensionistas que,
nesse fim de semana, tinham deixado seus lugares livres para que María “alojasse as
mulheres”. Quem me conseguiu o lugar foi Zulema, que disse que uma amiga tinha uma
pensão, que elas ficariam lá e que tinha lugar. Assim, fiquei alojada com as integrantes de
Mujeres al Oeste. Cheguei, apresentei-me e María fez com que eu entrasse (estava muito
apressada porque tinha que ir à Universidade, onde seria realizado o Encontro, para
preparar tudo). Troquei de roupa e fui cedo para a sede da Universidade.
Muitos dos pequenos grandes descobrimentos de meu trabalho de campo – e que
retrospectivamente considero que foram os que me levaram a decidir escrever sobre o
feminismo –, ocorreram em situações nas quais me senti totalmente deslocada, quando se
evidenciava meu desconhecimento dos códigos desse espaço social. No VIII Encontro de
Mulheres Feministas vivi algumas dessas situações que são as que inspiraram, depois, a
perspectiva teórica em que me baseei para construir meu argumento. Fui a primeira pessoa
a se inscrever. Quando fui pagar a inscrição (o pagamento é optativo e, além disso, havia
diferentes preços que iam de $5 a $20), Gabriela, uma das organizadoras, me disse:
– Ah, mas você aqui respondeu que não se considera feminista, então para
que vem?
Respondi:
– Porque quero conhecer, quero participar...
O Encontro era para feministas e nessas poucas palavras, pronunciadas em função da
informação da ficha de inscrição, colocou-se em evidência minha condição de “estranha”:
Para que ia? Era ou não era feminista? A decisão da pessoa que fazia as inscrições foi a
seguinte:
– Bom, então, eu a inscrevo na oficina e, depois, você vê se quer
participar.
– Bom, não tem problema...
– Sim, melhor, porque o encontro é mais um debate entre feministas, não
deixamos todo mundo entrar. Porque tem mulheres que vêm debater
com o feminismo e não é isso o que queremos debater.
Olhando dissimuladamente a lista de pré-inscritas, percebi que era a única que tinha dito
que não se considerava feminista. O que para mim era uma posição lógica – se queria ser
“aprendiza de bruxa” não podia me definir como feminista –, não o era para elas. Como
expressa Van Gennep (1969:38), os estrangeiros não podem penetrar sem mediações no
território de uma tribo ou aldeia, devem provar, mantendo certa distância, suas intenções.
Fiquei parada, vendo o movimento da organização (mulheres que entravam e saíam,
carregando caixas, quadros, etc.), já não me lembro muito bem, mas acho que me ofereci
para ajudar. Depois de um tempo, Gabriela me disse “Se quiser, posso inscrevê-la no
Encontro”. Depois desse episódio, não tinha vontade de me inscrever nesse momento, então
respondi: Bem, acho que vou ficar... mas de qualquer forma prefiro me inscrever depois. E
ela argumentou: Sim, sim. Melhor. Porque se vai ficar é importante que você sinta
(acompanhando suas palavras com um gesto com as mãos abertas sobre o peito).
Descobri que se identificar como feminista era um ponto nevrálgico. Esse fato ficou
registrado tanto na minha memória como na das organizadoras por muito tempo (inclusive,
voltaram a mencioná-lo quanto, três anos mais tarde, nos encontramos novamente em
Tandil porque lhe pedi para ver as memórias do Encontro e entrevistá-las). O último dia do
Encontro, quando estava saindo com outras feministas do restaurante onde todas nós
tínhamos ido almoçar, a pessoa que me inscreveu me disse “você nos enganou, porque
disse que não era feminista”. Expliquei que disse não ser feminista porque minha intenção
era participar da oficina. Outra das organizadoras comenta-lhe em tom jocoso: “Essa você
não tinha pensado”.
2.2 Uma liminaridade permanente?
Durante a leitura da ‘memória” do VII Encontro de Mulheres Feministas da Argentina,
realizado em Ramos Mejías, encontrei uma definição da oficina de Aprendizas de Bruxas
48
:
Abierto a todas aquellas mujeres que quieran acercarse a conocer qué es el
feminismo como movimiento y como visión del mundo. Será un taller
vivencial, donde experiencia y reflexión estarán estrechamente vinculadas
para producir un acercamiento que nos permita continuar compartiendo
entre todas los tres días del Encuentro. (Grifo meu)
Nas palavras de abertura do Encontro registradas na “memória” há um parágrafo destinado
às aprendizas: “saludamos a quienes nos acompañan por primera vez y se animan a ser
aprendizas de brujas y soportar ‘la ceremonia de iniciación’”.
- VIII Encontro de Mulheres Feministas da Argentina – Sábado, 9:30h
Quem pretendia participar desta oficina deveria chegar mais cedo, já que dentro da
organização geral do Encontro esta “oficina de batismo” ocupava, exatamente, um lugar de
48
A comissão que organiza os Encontros é responsável por fazer um relatório das atividades que se
realizaram em cada ocasião e das discussões que houve nas oficinas e na plenária. Essa informação se
distribui, depois, entre as mulheres que participaram e para outras feministas que estejam interessadas em
recebê-la As memórias do VII Encontro de Mulheres Feministas da Argentina foi distribuída por uma
integrante da comissão organizadora, durante o XIX Encontro Nacional de Mulheres, realizado na cidade de
Mendoza.
margem (liminar). Embora a oficina fizesse parte das atividades do Encontro, realizava-se
antes da inauguração do mesmo. Da mesma forma que no Encontro anterior, houve um
horário de inscrição especial, só para as mulheres que iam participar da oficina de
Aprendizas e, uma vez finalizada esta oficina, abriu-se a inscrição para as outras mulheres.
A oficina de Aprendizas se realizava no mesmo lugar que as outras oficinas, mas, antes das
inscrições de quem já havia participado de outros encontros e, o que considero ainda mais
importante, antes da cerimônia de boas-vindas e abertura. Outra diferença com as outras
oficinas é que as coordenadoras, duas mulheres na faixa dos 30 anos, já estavam designadas
e não se escolhiam nesse momento por consenso. Esta vez, tratava-se de que mulheres com
maior experiência pudessem transmiti-la às principiantes. Estes dois aspectos foram a
marca mais forte que diferenciou a oficina de Aprendizas das outras oficinas. No
desenvolvimento da oficina não houve atividades destinadas a pautar o ingresso à mesma,
as participantes entravam sozinhas, escutavam algumas indicações muito básicas e liam as
orientações em silêncio. Seguindo a distinção que Van Gennep (1969) faz para os ritos de
passagem em ritos de separação, ritos de margem e ritos de agregação, a oficina parece que
se inscreve no período de margem. Não houve um rito de separação e, ao finalizar,
tampouco houve atividades que pudessem ser consideradas como um rito de agregação. Ao
finalizar a oficina, simplesmente saíamos e, se o desejávamos, continuávamos participando
do Encontro, ou íamos embora, mas ninguém podia mediar essas decisões. De acordo com
os relatos exemplares analisados no primeiro ponto, em que a conversão ao feminismo
começa com um mal-estar interior e uma rebeldia, do ponto de vista das feministas, a
função das coordenadoras nunca poderia ser de impor uma benção ou autorizar, através de
um ritual, o ingresso ao feminismo, a não ser sob a forma de uma orientação a partir da qual
se tentava que as mulheres tivessem uma experiência que elas definem como “própria de
cada uma”. Assim, as coordenadoras introduziam as aprendizas no uso de uma linguagem e
de argumentos específicos à luz dos quais se tratava de resignificar as experiências
particulares e de lê-las sob um mesmo sentido. Segundo as orientações, “marcar o percurso
de um caminho para o interior de cada uma”, resgatar as próprias vivências e repensá-las
num exercício coletivo. Contrariamente ao que imaginava, as mulheres que participaram da
oficina Aprendizas de Bruxas, não eram todas ‘principiantes’. Houve algumas que a
fizeram como um exercício reflexivo, segundo disseram, porque “caía bem revisar algumas
coisas”.
Éramos cerca de 20 mulheres. A oficina foi organizada na Sala Magna da Universidad
Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, cuja sede administrativa se encontra
no centro da cidade, em frente à praça principal. O salão era grande, mas cálido, com chão
de madeira e oito colunas no seu interior (quatro de cada lado) que marcavam o centro.
Estava ambientado com luz tênue e música instrumental muito tranqüila. Manteve-se a
porta fechada para evitar que as mulheres entrassem e saíssem e, desta maneira,
interrompessem a concentração que se tratou de induzir nas participantes. Buscava-se
conseguir um espaço de “intimidade” propício para a reflexão. Na porta tinha um cartaz
que dizia: CAMINHO PARA A LUA, percurso para se conectar com você mesma, com seu
interior rebelde. Contava como era o percurso e ali mesmo estavam enunciadas as
orientações: deter-se em cada parada e selecionar ao menos uma das várias frases que
estavam coladas na coluna.
O percurso previa diferentes “paradas”. Assim, devíamos passar primeiro pelo “público”,
logo pelo “privado”, para chegar finalmente ao “íntimo”. Antes de chegar à primeira
parada, cada uma de nós se detinha numa das colunas e lia as frases. As autoras eram
mulheres feministas, poetas ou acadêmicas (Teresa de Laurentis, Simone de Beauvoir,
Flora Tristán, Judith Butler, entre as que me lembro). Devíamos escolher uma ou mais
frases que nos “inspirassem algo” ou com a qual nos sentíssemos identificadas. Logo,
passávamos para a Primeira Parada (segunda coluna) denomina O PÚBLICO. Ali, havia
vários pequenos cartazes: a rua, as Forças Armadas, o Estado, etc. e devíamos apenas ler.
Depois, passávamos para a Segunda Parada: O PRIVADO. No pé da coluna havia bonecas
e outras coisas que se referiam ao mundo doméstico e, na coluna, cartazes que diziam a
casa, etc. A quarta coluna tinha várias frases, assim como a primeira. A Terceira (e última)
Parada estava montada sobre um espelho na parede que, quando nos aproximávamos, nos
víamos refletidas e se chamava: O ÍNTIMO. Tinha duas poesias e havia duas personagens
contrapostas: Lilith (a transgressora, a que não aceita as regras) e Electra (a obediente).
O eixo da oficina foi identificar um sentimento de rebeldia. Ao finalizar o “caminho da
lua”, ingressava-se ao “círculo mágico” formado por cadeiras colocadas em círculo. Ao
entrar, uma das coordenadoras aproximava duas mulheres entre si com a orientação de que
conversassem e “tratem de identificar em que momento de suas histórias tinham se
rebelado por primeira vez, a primeira vez que tiveram uma experiência de rebeldia”. A
orientação era encontrar o “eu rebelde”, o momento em que “dissemos um NÃO forte”,
depois, que “tratassem de se conectar com essa sensação” e resgatar, junto com a
companheira, “o que há de comum nessa vivência”. Logo, deviam resumir isso em uma
palavra para posteriormente colocá-la num papel que estava no chão, no centro do círculo.
Cada uma das duplas de mulheres contava qual havia sido sua “experiência rebelde” às
outras e escrevia uma palavra no papel
49
. As frases que ficaram no papel eram: romper,
aprendizagem, prazer, culpa (embora tivessem dito que tinha que ser positivo), ser eu,
pensar o pensado, poder e decisão, entre outras. Houve mulheres que não tinham frase.
Depois, as mulheres se deslocavam para a parte do salão onde não havia cadeiras. Ali,
devíamos escolher das colunas a cartela que íamos usar para participar e, logo, agrupar
segundo as cores. No grupo em que eu estava, havia só três mulheres. Cada grupo tinha
uma orientação que consistia numa forma de apresentação coletiva na que tinha que utilizar
o corpo: o primeiro era uma saudação chinesa, o segundo uma saudação de tango e o
terceiro uma saudação com uma canção. Tratava-se de se manifestar com o corpo e, ao
mesmo tempo, conseguir a integração das mulheres. Logo, uma das participantes, com os
olhos vendados, reorganizava as integrantes em novos grupos. Esses grupos tinham como
orientação debater sobre o conteúdo das cartelas: Quais eram as diferentes perspectivas que
apareciam? Nessas perspectivas se manifestava uma “posição política”? Existem ações a
respeito? Em seguida, houve uma socialização das conclusões (no nosso grupo discutiu-se
pouco).
49
Durante a oficina houve um incidente que quebrou as regras propostas pelas coordenadoras. Todas nós
permanecemos em relativo silêncio e ninguém emitiu juízos sobre o que aconteceu. Uma das participantes
disse que a palavra que escrevia nesse momento (que era mãe-filha, a mãe da menina que escreveu também
estava no círculo) não a representava porque ela era contra as rotulações. A outra participante escreveu de
qualquer forma. Ao final da tarefa, M. disse que sentia que não estava representada e que ia fazer um grafite e
pegou o lápis e escreveu ‘puto’. Houve um momento de silêncio, uma das coordenadoras disse: ‘Epa!’.
Alguém perguntou: por que ‘puto’? E ela respondeu que era um grafite, que disse que ia fazer um grafite e
que não queria que a questionassem, que respeitassem seu desejo que, de qualquer forma, contaria isso a sua
terapeuta. As coordenadoras não reagiram, não houve opiniões ou debate a respeito, o incidente ficou em nada
e passamos à seguinte orientação.
A oficina finalizou com uma explicação de uma das coordenadoras sobre o feminismo da
igualdade e o feminismo da diferença e as críticas entre uns e outros, e de cada um a seu
interior. Citou autoras acadêmicas contemporâneas como Judith Butler que “questiona a
forma de nos nomearmos e propõe finalmente que nomeemos só quando seja necessário”.
Para o feminismo da diferença citou Carla Lonzi (Escupamos sobre Hegel), Luisa Muraro
(Signos de la diferencia), Luce Irigaray (Speculum. Espéculo de la otra mujer) para quem o
corpo seria o que determina, o dado a partir do qual olham o mundo e propõem inserir-se
desde a especificidade. Algumas palavras e frases que surgiram foram: igualdade,
autonomia, criadora, afinamento, reconhecer as outras, somos sujeitas, não sentir que o
mundo nos oprime. Nessa discussão sobre o feminismo da igualdade e sobre a necessidade
de reconhecer as outras surgiu a pergunta: o que acontece que as mais jovens não podem se
reconhecer nas que têm mais experiência? Arrisquei a explicação de que talvez a idéia de
igualdade seja a que interfira na dificuldade de reconhecimento porque suporia a criação de
uma forma de hierarquia. A coordenadora me responde que “não seria uma hierarquia, mas
uma forma de reconhecimento e aprendizagemtuos”. Também se falou de “feminismo
lésbico”, “feminismo da desconstrução” e de “a heterossexualidade como uma instituição”.
Citou-se um trabalho de Margarita Pisano, La regalona del Patriarcado, em que, segundo
as coordenadoras, se mostra como as mulheres têm acesso a lugares a partir “do que os
homens querem” e não dos interesses definidos pelas próprias mulheres.
Finalizada a experiência das participantes, nos dispersamos. Como mencionei
anteriormente, o encerramento da oficina não previa uma instância de incorporação das
aprendizas às outras militantes. Parte da iniciação ou da aproximação ao feminismo era que
cada mulher, a partir de suas vivências na oficina, decidisse se queria continuar
participando do Encontro ou não. Na Oficina de Aprendizas a ênfase foi posta na
experiência individual e na importância de “reconhecermos a nós mesmas” e descobrir
“nossas rebeldias”, assim sendo, os momentos de interação entre aprendizas estiveram
focados, como nos grupos de autoconhecimento, em identificar que as vivências individuais
tinham características comuns a todas. Ali, a presença de outra/s mulher/es serviu para que
cada uma escutasse a experiência pessoal da outra e, logo, identificasse o comum dessa
emoção particular. Foram implementadas técnicas para identificar, lembrar e compartilhar
essa experiência e, mediante um ato coletivo, dar-lhe um novo significado. Como se tratava
de uma aproximação ao feminismo, nenhuma das mulheres podia sair dali convertida em
feminista, a não ser que se tenha produzido nelas uma mudança interior: a autoridade vindo
de cada uma e não do exterior.
3. Ser feminista desde a linguagem: descrever ou prescrever
A la gente nuestro discurso a veces
le cae plomo, pesado, difícil de digerir
Militante feminista
Quando comecei a escrever esse ponto e, para me orientar teoricamente, reli o texto de
Pierre Bourdieu (1988) sobre a noção de política, descobri, não sem certo espanto, que a
proposta deste autor em pouco diferia da definição de política que tinha escutado (e lido)
das militantes feministas. Assim, é necessário remarcar que as discussões que ocorrem no
feminismo só podem ser compreendidas se consideramos que quem as seguem são
mulheres com um discurso tão hiperintelectualizado e sofisticado sobre elas mesmas que
em pouco difere do discurso científico utilizado em um trabalho como este para buscar
compreender as formas de sua militância. Muitas delas são mulheres com um importante
capital intelectual e entre suas práticas militantes (não é assim para todas) figuram a leitura
e a reflexão constante sobre a teoria, mas também, e este não é um dado menor, sobre suas
próprias práticas. Como intelectuais, grande parte do vocabulário que utilizam para dar
sentido a suas experiências provém, como mostrei nos pontos anteriores, da leitura e da
análise de teorias filosóficas, antropológicas ou sociológicas. Assim, por exemplo, para
construir seus argumentos feministas partem de di-visões do mundo que traçam, inspiradas
nas análises de reconhecidos/as intelectuais
50
. A oposição público/privado é talvez a mais
significativa nesse sentido. Estas categorias são imprescindíveis para conseguir a integração
50
A maneira com que se invoca a pessoa de “os”, mas especialmente de “as “ intelectuais adquire a forma de
um diálogo quase cotidiano. Na militância, dado que não existem as formas acadêmicas, a opinião ou as
idéias das intelectuais feministas aparecem nas conversas sob uma modalidade sem distinções que leva a
confundi-las com as militantes.
das militantes, tanto como para a mobilização social. Segundo Bourdieu (op.cit.), a ação
política está orientada a produzir e impor representações do mundo social capazes de agir
sobre esse mundo atuando sobre as representações que os agentes têm dele. A ação
propriamente política é possível, de acordo com este autor, porque os agentes têm um
conhecimento social do mundo do qual formam parte e podem agir sobre esse mundo
atuando sobre o conhecimento que têm dele. A passagem pela universidade para a maioria
destas mulheres e, em alguns casos, uma formação de pós-graduação em outros países,
oferece-lhes uma importante experiência de estranhamento com seus códigos culturais e
contatos com a circulação internacional de idéias. Estas vivências facilitam-lhes também a
objetivação de seu próprio mundo e oferecem-lhes ferramentas pertinentes para agir sobre
as categorias a partir das quais o mesmo é apreendido. Nem todas as feministas são
portadoras deste capital, mas, como mostrarei nas páginas seguintes, o mesmo é transmitido
na sociabilidade militante. A recodificação das categorias cognitivas é uma tarefa que se
realiza de forma permanente, organizando grupos de leitura, encontros, jornadas,
congressos e discussões sobre temas e problemas pontuais e da atualidade. Tanto para
Bourdieu como para as feministas, a subversão política pressupõe uma subversão cognitiva,
uma conversão da visão do mundo
51
.
3.1 Os termos que explicam a realidade de as mulheres
As militantes realizam um cuidadoso trabalho de significação para conseguir a composição
de um coletivo e a criação de sentido que permita construí-lo como categoria de referência
e identificação. Como e onde se constroem estes quadros de percepção e de categorização?
As feministas definem suas práticas de militância por oposição a aspectos, características e
valores atribuídos à sociedade em geral e que são denunciados como responsáveis pela
opressão das mulheres em contextos de ação coletiva. Estas denúncias se articulam, em
geral, em torno a conceitos chaves, manipulados por mulheres feministas, que foram
articuladores do desenvolvimento da militância. Estes termos possibilitaram erigir
interpretações do mundo de um ponto de vista onde as integrantes de uma categoria social,
51
Em algumas ocasiões ouvi falar de “um mundo feminista”, como também é comum na troca de mensagens
na RIMA que as mulheres se despeçam com “um abraço feminista”. O feminismo é considerado uma visão de
mundo.
neste caso as mulheres, aparecem como particularmente afetadas pela “desigualdade” e a
“opressão”. Esta realidade é definida, habitualmente, como a “situação das mulheres”. O
uso destes termos permitiu criar padrões morais compartilhados, para explicar e julgar
circunstâncias que se identificam como “injustas” para as mulheres, que possibilitam
motivar e justificar as ações militantes. Os conceitos se originam, em geral, de âmbitos
acadêmicos e sua circulação e apropriação são garantidas através de publicações
acadêmicas (que, em muitos casos, são tradução de publicações em línguas estrangeiras),
nas dinâmicas de trabalho de encontros regionais, nacionais e internacionais, palestras,
conferências, cursos, na circulação de folhetos e publicações de divulgação destinadas à
aplicação dos mesmos. Um destes termos, que foi central para o desenvolvimento do
feminismo, é “patriarcado”.
As feministas definem o patriarcado como o sistema que oprime as mulheres. É um termo
que forma (ou ao menos formou) parte de uma linguagem utilizada pelas mulheres
militantes para que se comunicassem com outras mulheres com as quais compartilham não
só um mesmo espaço social, mas também muitos códigos. Segundo o relato de Francesca
Gargallo, historiadora italiana radicada no México, publicado em Perfiles del Feminismo
Iberoamericano (2002), a utilização do conceito patriarcado como “ferramenta explicativa”
pode ser situado no II Encontro Feminista da América Latina e do Caribe.
“Desde el II Encuentro feminista de América Latina y el Caribe, que se
efectuó en Lima, Perú, en 1982, el patriarcado fue una categoría con
que las feministas latinoamericanas explicaron la realidad entera: éste
era el responsable de la heterosexualidad compulsiva, de la represión y la
doble moral sexual, de la subordinación de las mujeres, de la violencia
contra las mujeres, de la prohibición del aborto y del maltrato de los
niños, amén que de la guerra y las formas de injusticia social, todas ellas
construidas sobre el modelo de dominación de los hombres sobre el
cuerpo de las mujeres y las voluntades de las mujeres” (GARGALLO,
2002:117-8, grifo meu)
Na Argentina, particularmente na cidade de Buenos Aires, os espaços mais importantes
onde os conceitos, articuladores dos quadros de percepção próprios das práticas feministas,
adquiriram sentido e se tornaram uma parte de uma gramática política compartilhada foram
Lugar de Mujer e as “Jornadas de ATEM”
52
. ATEM é definida como uma associação
feminista autônoma, isto é, com “independência de qualquer instituição ou organização
pública ou privada”. Surgiu em 1982 e em novembro desse mesmo ano suas integrantes
publicaram o primeiro número da revista Brujas. Esta associação argumenta sua posição a
partir da existência de “uma opressão comum para as mulheres”. As “Jornadas ATEM” são
definidas por suas organizadoras como “Jornadas feministas”. Estas jornadas e as
publicações de ATEM foram (e ainda continuam sendo) um dos espaços de discussão
teórica onde se constrói um saber feminista e se reatualizam os argumentos da militância.
As integrantes de ATEM manifestaram em mais de uma oportunidade sua vinculação com
o “feminismo latino-americano”, participando dos Encontros Latino-americanos
53
. É
possível dar um exemplo muito ilustrativo desta situação em relação à utilização do
conceito de patriarcado e como sua inserção no espaço da militância constrói sentidos e
justificativas e, ao mesmo tempo, adesões e divisões.
A seguir, cito o testemunho de uma feminista de cerca de 60 anos, socióloga, membro da
Asociación de Especialistas Universitarias en Estudios de la Mujer (ADEUEM). Enquanto
conversávamos sobre a formação da Multisectorial de la Mujer en Capital Federal, ela me
conta:
... nesse momento estou no Partido Intransigente, militando na área
mulher, e ali formamos a Multisectorial de la Mujer en Capital Federal
P: Em que ano foi isso?
R: Acho que em 83. Onde havia políticas, sindicalistas, feministas puras...
P: Como estas mulheres fazem contato, como é que se forma a
Multisectorial?
R: ... era uma ebulição...
P: Onde você as encontrava, de onde as conhecia, como criaram, onde se
reuniam?
R: ... Porque nós já tínhamos começado a nos conhecer antes de 83, já
existia a ATEM, que eram Magui e Marta, que foram uma luz... nesse
momento eram como uma espécie de guia
52
Ambos os lugares são considerados por muitas militantes como os articuladores da militância feminista
durante os anos 80. Chejter (op.cit.:27) define-os como “los dos espacios nucleares de producción y de debate
de ideas feministas […] puntos de reunión convocantes de casi todas las feministas de la ciudad de Buenos
Aires, el Gran Buenos Aires y centro de atracción para las feministas del interior del país”.
53
O nome completo de ATEM é ATEM – 25 de Noviembre. Segundo uma de suas fundadoras “La fecha
elegida como parte de su nombre lo vincula al feminismo latinoamericano: el 25 de noviembre había sido
declarado por el Primer Encuentro Feminista Latinoamericano y del Caribe - Bogotá, 1981 – el ‘Día
Internacional contra la Violencia Social, Sexual y Política que se ejerce contra las mujeres”, en homenaje a las
tres hermanas Mirabel, torturadas y asesinadas por la dictadura trujillista en 1960” (BELLOTTI, 2002).
P: ATEM é só elas duas?
R: Nãooooo, tinha umas dez, mas a gente sempre diz Magui e Marta.
Também existia Lugar de Mujer [...] Com graves dificuldades internas
entre nós porque as feministas que eram dos partidos políticos, como nós,
pertencíamos a estruturas patriarcais, que a única coisa que faziam era
reproduzir o patriarcado, porque a palavra nesse momento era patriarcado
e patriarcado, e todo o tempo com patriarcado, e isso durou, durou tanto
que [...] quando houve o Encontro Feminista Latino-americano e do
Caribe de 90 não deixaram que nós, as políticas, entrássemos na
organização, as políticas partidárias... (Grifos meus).
O testemunho citado demonstra o uso e a importância da palavra patriarcado em 1983 para
a configuração do feminismo em Buenos Aires. O que evidencia a rápida circulação destes
conceitos nesse momento na América Latina e a maneira em que, a partir de seu uso, as
feministas articularam práticas, sentidos e formas de organização. Como expressa Elias
(1989:60), são termos cunhados sobre a base de vivências comuns e crescem e mudam com
o próprio grupo do qual são expressão. São palavras que têm muito significado para as
pessoas envolvidas enquanto para os estranhos, geralmente, não dizem nada importante. O
testemunho citado mostra a intensidade do significado da palavra patriarcado durante a
década de 80 e evidencia também como seu uso e seu sentido se prolongam no tempo, ao
menos até 1990, com a mesma eficácia. Se essa era a categoria com a qual as feministas
explicavam a realidade inteira, e os partidos políticos eram estruturas patriarcais, as
mulheres que militavam em partidos políticos não eram bem-vindos entre as “feministas
puras”. Assim, a palavra “patriarcado” foi durante vários anos uma forma de estabelecer
fronteiras, identificações e oposições.
Estas palavras, que adquirem um poder quase mágico para organizar os saberes e as ações
sobre o mundo social, não apenas são úteis para orientar as práticas atuais, mas também
interpretar e reorganizar o discurso histórico. Os termos que circulam nos espaços do
feminismo e os marcos de percepção a eles associados são utilizados também para criar
uma continuidade histórica com fatos passados re-situando-os atualmente, a partir desse
vocabulário. Assim, no artigo citado de Francesca Gargallo, a autora expressa:
En la década de los setenta, el feminismo latinoamericano ya tenía
historia. Quizás las organizaciones de mujeres en México, en los años
treinta, habían exigido del cardenismo el derecho a voto y a la
participación política activa; que en Colombia, en 1912, se manifestaron a
favor de los derechos civiles de la mujer casada; que en Ecuador, en 1928,
demandaron ante la corte la aplicación de sus derechos políticos [...] no
tuvieron una conciencia explícita de la necesidad de
desconceptualizar lo femenino como naturaleza en la dicotomía
mujer-hombre construida por las culturas patriarcales sobre y contra
su cuerpo sexuado. Sin embargo, ya eran movimientos feministas que
reivindicaban transformaciones sociales y políticas tendientes a revertir la
opresión, la subordinación y la explotación de las mujeres, con base en
una idea de justicia entendida como igualdad de derechos y en una idea
nacional que las llevaba a reivindicar personajes de culturas
prehispánicas, de la época colonial o de la lucha independentista con
quien identificar su importancia femenina. [...]
La gran diferencia de las expresiones feministas anteriores y el feminismo
que empieza a expresarse en la década del 1970 en América Latina es el
descubrimiento de las mujeres de su “mismidad”. (GARGALLO, 2002:
113-14, grifos meus)
Durante o intercâmbio entre feministas, especialmente nos espaços de encontros, novas
reflexões e novos termos surgem constantemente como um modo de agir sobre as
categorias de ação e de percepção que organizam e definem sentidos. Por exemplo, o uso
da palavra “mismidad” permite às militantes referirem-se a si mesmas a partir de uma
percepção objetivada de seu corpo e de seu “eu”. Uma posição a partir da qual possam
refletir sobre “seus sentimentos”, “suas experiências”, “seus saberes” e que tem origem na
construção de uma distância que permite falar de si mesmas situando-se numa relação de
alteridade. Outra dessas expressões que organizam sentidos e que é discutida atualmente
entre as feministas é “mulheres em situação de prostituição”, que parte do princípio de que
nenhuma mulher “é” prostituta e, ao mesmo tempo, qualquer mulher pode potencialmente
estar nessa situação.
Inclusive, em alguns casos, dada a importância que adquiriu, através dos anos, a atuação
das militantes feministas dentro do âmbito acadêmico, muitas das reflexões deram origem a
conceitos que se articularam para formar o que se denomina “teoria feminista”. Segundo
algumas acadêmicas, não apenas seria diferente, mas oposta às teorias de “dominação
masculina”:
“En estos transcursos, la teoría feminista latinoamericana ha creado
significaciones distintas, y a veces opuestas, a las de dominación
masculina, manteniendo su autonomía de las ideologías de los partidos
políticos y de los estados, exigiendo igualdad de derecho a la expresión
del propio ser entre mujeres y hombres, planteando el libre ejercicio de las
sexualidades y la crítica a la heterosexualidad normativa.” (GARGALLO,
2002: 108-9)
A partir da produção acadêmica, muitas feministas criaram termos e esquemas de
interpretação que permitiram articular o sentido de práticas por fora deste espaço. A
existência e a utilização de uma linguagem específica permitem não só explicar realidades e
justificar ações, mas também articular um conjunto de performances que, apresentadas
publicamente, criam uma gramática que tenta garantir a visibilidade e a legitimidade
pública de uma determinada visão de mundo. Este trabalho minucioso que ocorre dentro do
espaço do feminismo para conseguir uma identificação cognitiva, não necessariamente, tem
como objetivo conseguir uma “identidade feminista”. Uma vez que a identificação pode se
dar através de discursos ou relatos públicos, sem que medeiem obrigatoriamente pessoas ou
instituições, mulheres que não se consideram a si mesmas feministas aderem, no entanto, a
causas construídas pelas feministas como a descriminalização e legalização do aborto.
Tratarei deste ponto no capítulo 5.
3.2 O sexo das palavras e a “invisibilização” de as mulheres
Muitas feministas consideram que o sistema patriarcal oprime as mulheres, e a ideologia
que o caracteriza está presente na linguagem que usamos na maioria das instituições e até
disciplinou o corpo das mulheres. Segundo este ponto de vista, a forma em que nos
expressamos está tingida por uma visão considerada androcêntrica e heterosexista que o
sistema nos impõe. No uso da linguagem, as feministas identificam uma percepção do
mundo na qual as mulheres estão “invisibilizadas”
54
. Ao serem designadas com termos
expressos em masculino e que se referem a homens e mulheres sem distinção, as mulheres
deixariam de existir. As feministas não apenas chamam a atenção sobre a maneira com que
habitualmente outras pessoas designam as mulheres, mas também em como as mulheres
“referem-se a si mesmas”, ou mais especificamente como as palavras com as quais são
designadas fazem com que permaneçam ausentes.
54
Desde o início dos anos 70 gerou-se também dentro das estruturas acadêmicas estratégias de visibilidade
das mulheres. Segundo Selma Leydesdorff “Gran parte de la historiografía feminista se originó en la
necesidad de tener un pasado con el cual pudiera identificarse el movimiento feminista y también las mujeres
en lo individual” (LEYDESDORFF, 1992:91).
Assim, num grupo formado só por mulheres (como os grupos de feministas) ressalta-se que
não se trata de “nosotros”, mas de “nosotras” e, desta maneira, as mulheres estariam sendo
mencionadas e, portanto, “visíveis”. O objetivo é tornar evidente, no uso da linguagem, que
palavras como “homem”, nos casos em que se usa de maneira indiferenciada como
protótipo da espécie humana (por exemplo, quando se menciona a “origem do homem”),
ocultam a existência das mulheres.
A atenção especial que requer uma vigilância epistemológica sobre o uso das palavras e seu
significado e tentar subvertê-lo, especialmente quando o mesmo é considerado político, é
para a maioria das militantes um exercício tedioso, especialmente para as mulheres que
recém começam. Além disso, já que muitas são categorias de uso cotidiano e estão
fortemente incorporadas, é quase impossível que em algum momento não sejam utilizadas
na forma corrente. Quando é assim, costuma-se criar um clima tenso e é comum que
alguma mulher chame a atenção para o uso que “mesmo sendo feministas” se faz da
linguagem. Em geral, utilizam essa situação para argumentar sobre a intensidade com que
“o patriarcado” se imiscui na vida das mulheres.
Numa entrevista coletiva com mulheres membros da “Biblioteca Popular de las Mujeres
formada por feministas, uma das integrantes que “ainda” não se autodenomina feminista –
já que considera que é um longo caminho e que lhe falta “interiorizar algumas coisas” – diz
que ela é “o fruto de suas companheiras feministas”. Outra mulher que se denomina
feminista a corrige e diz: “o fruto não, a fruta”. E ela se corrige: “sou a fruta delas”. E logo
conta que a partir das coisas que escuta de suas companheiras começa a perceber sua
realidade cotidiana de maneira diferente. Cita, como exemplo, o que lhe acontece quando
vai à igreja e escuta o discurso religioso: “As vezes na igreja dizem algo e dizem... eram
tantos homens e eu penso: as mulheres não dizem”. O capital cultural desta mulher, à
diferença de outras, é escasso. No entanto, pouco a pouco vai incorporando algumas das
reflexões das outras militantes em seu cotidiano. Mas se trata de um processo prolongado.
Outro dos diálogos que surgiu durante a mesma entrevista, desta vez entre duas mulheres
que se reconhecem feministas, foi o seguinte:
G: Ela sempre fala de nosotros e eu sempre lhe digo. Creio que é uma
maneira... veja que é uma coisa que sempre brincamos, dizemos nosotros-
nosotras... e efetivamente você tem sempre dentro de sua cabeça o que
quer incluir e acho bom, que são os Pedros ou quem seja [em referência
aos homens] e eu não. Às vezes digo, teria que dizer nosotros? Aconteceu
comigo, quando juntava as assinaturas para a campanha do aborto, em um
momento pensei, “digo nosotros” para que não dê a impressão que só nós,
as mulheres, estamos juntando assinaturas. Então, a todos lhes dizia
nosotros” porque achava que era melhor. Mas é uma diferença que
sempre existiu, mas que podemos tolerar, podemos suportar.
L: Mas está relacionado com lugares onde você circula. Se eu escrevo
alguma coisa, é muito provável que considere esse tipo de coisa, se entro a
uma sala de aula digo meninas e meninos. Agora, se estou em uma
reunião de docentes e estou falando com uma diretora, digo nosotros. Ou
com os vizinhos digo nosotros.
P: Você não diz, nosotros/nosotras, vizinhos/vizinhas. Teria que incluir...
L: Na câmara de deputados um cara disse colegas e colegos, adorei. É que
é mais fácil que a gente detecte este tipo de coisas no discurso de outros
que a gente o incorpore. Quando um cara se refere a outros e diz
“senhores, vamos fazer tal coisa”, você diz: como? nós somos de
madeira?
A subversão herética, à que se refere Bourdieu (1988), que se produz através do trabalho de
enunciação, provoca uma crise que, no exercício das práticas feministas, tem por objetivo
romper a correspondência entre os novos princípios de classificação e a ordem estabelecida.
Segundo as militantes, essa ruptura tem diferentes impactos de acordo com o espaço social
no qual é enunciada. Elas recorrem ao peso das categorias cognitivas na representação que
temos do mundo, mas também enunciam a dificuldade que têm para fazer, utilizando os
termos de Bourdieu, um “enunciado herético”. Isto é destacado especialmente por aquelas
mulheres que trabalham em relação de dependência na administração pública. Também
mencionam a dificuldade de levar esta “visão de mundo feminista” a seus espaços
cotidianos. Como diz Mary “na minha casa acham que sou feminista. Quando digo algo me
dizem: já falou Biblioteca de las Mujeres”.
A vigilância sobre a diferença sexual que se faz através das palavras para se referirem às
pessoas, também se faz em alguns casos sobre objetos aos quais mudam de gênero. Às
vezes isto implica a criação de neologismos, por exemplo, um boletim passa a se chamar
boletina” e um bar uma “barcita”. Assim, o mundo começa a ser não só mais feminino,
mas “mais feminista”, já que a inversão de gênero dos objetos e a atenção colocada para
que as palavras mencionem as mulheres é parte da estratégia política feminista.
Entre as feministas o uso da linguagem não é impugnado somente por não mencionar
especificamente as mulheres ao incluí-las no genérico “nosotros” ou “os homens” quando
se usa para se referir a homens e mulheres, mas também na maneira com que as mulheres
costumam ser mencionadas em determinadas situações. Militantes feministas contam sua
experiência numa reunião de um 8 de março (Dia Internacional da Mulher
55
) com o prefeito
de uma cidade do interior da província de Buenos Aires para discutir quais seriam as
políticas públicas dirigidas às mulheres durante sua gestão:
G: ... como aconteceu com o prefeito, quando disse meninas e houve
problema. Mas foi bem colocado
P: O que você disse?
G: Bem, nada... que era uma reunião política, era o 8 de março... estava
sentado com as mulheres para pensarem juntos que política ia desenhar
em sua gestão que recém começava, que se ele nos via como meninas era
muito pouco o que íamos poder trabalhar com ele...
L: Disse algo pior quando quis explicar. Que ele estava acostumado a
dizer meninas porque trabalhava com muitas mamães, ou seja, que às
mamães também lhes trataria como meninas...
G: Bem, são coisas de política; alguém se esquenta e fala com o coração.
E à outra pessoa nem sempre lhe cai bem. (Grifos meus)
As feministas que ali estiveram consideraram que esta reunião era política. Duas
características de como se expressa esta militante e que reforçam o significado político que
dão à reunião merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, a menção ao 8 de março, dito
com um tom que mostrava o óbvio da importância desta data para elas, onde reunião
política e 8 de março aparecem quase como sinônimos: “era uma reunião política, era o 8
de março”. Segundo, quando diz “estava sentado com as mulheres”, o uso em plural e
generalizado desta categoria (as mulheres) mostra que nessa situação elas não consideram
que estejam defendendo interesses próprios, mas que falam em representação de um
coletivo. Nesse contexto, chamar a atenção sobre a categoria utilizada pelo prefeito para se
referir a elas foi a forma de deixar registro perante este interlocutor do caráter político dessa
reunião.
Segundo Bourdieu (1988:69), a correspondência entre as divisões objetivas e os esquemas
classificatórios, entre as estruturas objetivas e as estruturas mentais está no princípio de um
tipo de adesão originária à ordem estabelecida, e a modificação dessa ordem não ocorre
55
Em 1975 a Organização das Nações Unidas declarou o dia 8 de março como Dia Internacional da Mulher.
Esta data foi apropriada pelo feminismo no nível internacional e se tornou uma referência a partir da qual
militantes organizam ações públicas como passeatas, entrega de requerimentos, performances, etc.
sem conflitos. Eles ocorrem não apenas fora do espaço do feminismo, mas também dentro
dele. No caso mencionado, tratava-se de mulheres entre 48 e 55 anos e o funcionário se
referiu a elas como “meninas”. Isto é interpretado por elas como o estabelecimento de um
status menor que as prejudicava no momento de realizar acordos sobre políticas públicas:
não se trataria de uma discussão entre iguais. O resultado desta intervenção das militantes
foi, em princípio, o ofuscamento do funcionário que, segundo elas, ao tentar remediar seu
“erro” o reafirmava. Mas também estas ações produzem desacordos entre as próprias
militantes que, muitas vezes, consideram que este tipo de intervenção é muito “radical” e
prejudicam as possibilidades de diálogo e negociação que permitem futuras ações. A
reunião entre as mulheres feministas e o prefeito da cidade era considerada pelas feministas
um encontro político com um alto conteúdo simbólico. Realizou-se na prefeitura no dia 8
de março, data carregada de significado para as militantes e um dos dias mais importantes
no calendário de ações do feminismo. Segundo Bourdieu, todas as formas de capital
simbólico são vulneráveis à ação destruidora das palavras que desvelam e desencantam.
Denunciar e reverter a forma com que o funcionário se referiu às mulheres foi considerada
uma ação política em si mesma.
Conclusões
Em seu artigo “O gênero da representação: movimento de mulheres e representação política
no Brasil (1980-1990)” Elisabeth Souza Lobo afirma que não é a natureza das
reivindicações, mas a forma de agenciamento coletivo que abre caminho para a construção
de um campo social novo e para a reflexão sobre os atores, especialmente para os atores
dominados (SOUZA LOBO, 1991). A esta asseveração gostaria de agregar que, no caso do
feminismo, a “natureza das reivindicações” realizadas pelas feministas situa a política na
própria definição de pessoa, nas emoções e nas categorias cognitivas, uma vez que a visão
de mundo é considerada uma posição política. Embora a natureza das reivindicações não
leve, necessariamente, em si mesma à construção de um “campo social novo”, se poderia
dizer que as exigências feministas, visto que partem de uma noção individualizada e
autônoma da pessoa, influem nas formas de interação a partir das quais se configura esse
espaço social. Assim, os principais termos que estruturaram as formas de interação do
feminismo desde os anos 70 foram: a rebeldia; a concepção de uma “identidade feminina
verdadeira”, que é necessário desvelar a partir de um trabalho interior orientado a uma forte
individualização; o slogan “o pessoal é político”, que habilita uma definição de política que
inclui as relações entre os sexos em suas dimensões consideradas mais íntimas ou
”privadas” como a sexualidade e o corpo; e a oposição às hierarquias.
Neste capítulo tratei, a partir da análise de narrativas desenvolvidas em diferentes espaços e
situações, de algumas das formas específicas das práticas feministas. Os relatos
demonstram um léxico e sentidos compartilhados que permitem situar trajetórias pessoais a
partir de argumentos e lógicas sociais. Trata-se de produzir uma transformação cognitiva
em cada mulher com o fim de que possa despojar-se de categorias que, segundo suas
interpretações, foram-lhes impostas por um sistema opressor. Na nota introdutória à
reedição de 1964 de Sistemas Políticos de la Alta Birmania Leach (1976:14-15) afirma que
sua tentativa de encontrar uma organização sistemática dos acontecimentos históricos não
se baseia em fatos empíricos, mas depende da variável valorização das categorias verbais. E
acrescenta que o “sistema” é um assunto de relações entre conceitos e não de relações
“verdadeiramente existentes” dentro dos dados factuais brutos. Para o caso dos kachin,
segundo o autor, o conjunto de categorias verbais, que ele descreve no capítulo 5 do livro,
constitui um conjunto estrutural persistente e é sempre nos termos desse tipo de categoria
como os kachin pretendem interpretar (a eles mesmos e a outros) os fenômenos sociais
empíricos que observam ao seu redor.
A oficina de Aprendizas de Bruxas e os relatos de conversão demonstram o modo com que
as feministas dispõem de um vocabulário e de técnicas específicas para que cada mulher se
reconheça como autônoma buscando, em primeiro lugar, a libertação “dentro de si mesma”.
De acordo com isso, é na ação individual e reflexiva onde se aloja a possibilidade de se
rebelar. Até agora ressaltei a importância que possui para as feministas a conversão das
categorias cognitivas e as maneiras, interiorizadas e individualizadas, de se transformarem
em feministas. No capítulo seguinte dedicar-me-ei a descrever o modo com que as
militantes tentam sustentar os eixos enunciados anteriormente num espaço de ação coletiva
que exige, ao mesmo tempo, uma forma de organização prática e uma mobilização social
pela causa de as mulheres.
CAPÍTULO 2
Dinâmicas Feministas: Autonomia e horizontalidade
Entre la inmovilidad de la política tradicional y
la impermanencia de las organizaciones de mujeres
media la diferencia que va de la paz de los sepulcros
a la vitalidad de una plaza de juegos.
Leonor Calvera.
Mujeres y Feminismo en Argentina
No capítulo 1 tentei mostrar como, segundo as feministas, a libertação de cada mulher
requer um intenso trabalho de reflexão sobre categorias que definem uma visão de mundo
para produzir uma nova forma de pensar e de “se pensar”. No entanto, não se trata de um
ato individual, mas de um exercício de individualização que requer técnicas, vocabulário e
sentidos construídos de forma coletiva. A transformação das categorias cognitivas é
considerada uma ação política. Neste capítulo quero destacar como se modelam e se
regulam as interações entre as militantes feministas num dos espaços de socialização ao
qual são convocadas mulheres de todo país. Trata-se dos Encontros Nacionais de Mulheres
Feministas. Tento compreender aqui a dinâmica das ações nas quais se produzem as razões
da militância (as situações onde se confrontam discursos de denúncia de injustiças e de
reivindicação de direitos) e as formas a partir das quais se enunciam e se tenta colocar em
prática princípios orientados por valores como a horizontalidade e a igualdade. Trata-se de
reconstruir, a partir da observação etnográfica, a gramática que caracteriza essas situações
de interação onde a hierarquia só é aceita sob argumentos igualitários.
Estes espaços, que as militantes definem como autônomos em oposição a outras formas de
militância e de fazer política, cumprem, em princípio, uma dupla função. Através das
mesmas práticas, e numa tensão constante entre igualdade e diferença, as mulheres
feministas constroem argumentos de mobilização social que requerem que se torne visível
uma situação particular definida como “a situação das mulheres”, a partir da qual se
constrói uma causa que deverá se tornar digna de atenção de um público; e, por outro lado,
colocam em prática uma forma de organização que elas definem como política, cujo
objetivo é desafiar a organização hierárquica através de práticas orientadas a conseguir uma
forma de organização horizontal. Esta dupla função se correlaciona com a polissemia que a
noção de igualdade adquire em situações empíricas.
Para identificar os diversos sentidos da igualdade na prática militante, considero pertinente
introduzir aqui uma diferenciação com fins analíticos. Por um lado, trata-se de um sentido
da igualdade que permite conceber “as mulheres” como uma categoria ou classe (no sentido
de classificação), isto é, definir a constituição de uma comunidade ou um “nosotras”. Por
outro lado, trata-se de uma igualdade como ausência de hierarquias nas formas de fazer
política que as mulheres feministas propõem. Utilizando a linguagem matemática, definirei
a primeira igualdade como equivalência e a última igualdade de ordem:
Definição 1: Igualdade como equivalência
Dois números reais a e b são iguais, denota-se a = b, se representam a mesma classe
Definição 2: Igualdade de ordem
Dois números reais a e b são iguais, denota-se a = b, se a relação de ordem em R ()
cumpre para eles a propriedade anti-simétrica.
O primeiro sentido da igualdade se constrói a partir de um trabalho de enunciação e
formulação de argumentos, dirigidos a um público específico, com o objetivo de conseguir
a legitimação e o reconhecimento de temas que são construídos como afetando
particularmente aos membros de uma mesma classe: as mulheres
56
. O segundo sentido
refere-se a formas de interação, definidas pelas feministas como políticas, que buscam
explicitamente negar a hierarquias e se constroem a partir do uso de conceitos que denotam
56
De maneira muito lúcida, a militante feminista Margarita Bellotti (2003:57) expressa que “El sujeto
colectivo ‘mujeres’ es una construcción política. Se trata de un sujeto situado en contextos históricos, sociales
y culturales específicos, no es estático ni homogéneo, sino cambiante y complejo”. Com esta citação tento
deixar claro que não pretendo debater com as militantes sobre as categorias que, dadas as características deste
campo, e o fato de que muitas feministas pertencem ao mundo intelectual, já foram exploradas e amplamente
discutidas. Não se trata de que as feministas ignorem a grande heterogeneidade que cabe na expressão “as
mulheres”, mas tento mostrar como a militância exige, para tornar a ação possível, um complexo jogo de
identificações, oposições e limites e, em última instância, uma leitura simplificada da realidade.
horizontalidade e práticas que tentam demonstrar a ausência de simetrias. Embora nos
contextos empíricos ambas as noções apareçam juntas, inclusive em alguns casos se
misturam, estimo que esta diferenciação é útil para compreender a forma particular do
feminismo e abordar os conflitos constantes que ocorrem nestes espaços de um ponto de
vista que os considere como uma forma de relação, uma figuração particular e não como
um problema não resolvido, a ruptura de relações ou como relações negativas.
1. Nosotras, Entre Nosotras, A partir de Nosotras
As formas de integração nas práticas feministas são construídas tentando respeitar as
noções de mulher que as feministas consideram legítimas e as visões de mundo em nome
das quais o feminismo se articula. Assim, segundo as militantes, os Encontros devem
garantir a autonomia, a horizontalidade, a fidelidade a si mesmas (ao próprio interior), a
importância do corpo como lugar de luta, a não submissão, o uso não sexista da linguagem,
etc. Os encontros feministas são organizados a partir de diferentes momentos: a oficina de
Aprendizas de Bruxas, descrita no capítulo anterior; a abertura com palavras de bem-vinda
sob responsabilidade de integrantes da Comissão Organizadora; as oficinas, propostas pela
Comissão Organizadora; tempo para o corpo e oficinas livres propostas pelas participantes
que estivessem interessadas em fazê-lo; as plenárias parciais, realizadas ao final de cada dia
de trabalho; a festa, com cantos, poesias e música; a plenária final, realizada no último dia e
a que reunia, assim como na abertura, todas as participantes; a escolha da próxima sede do
encontro, que se faz no mesmo espaço e após a plenária, e um almoço de despedida.
No último Encontro, realizado na cidade de Tandil nos dias 14, 15 e 16 de junho de 2003,
cada oficina tinha um nome e sob essa denominação a Comissão Organizadora sugeria os
eixos que articulariam o debate. Os mesmos constituíram-se a partir dos tópicos que a
Comissão Organizadora identificou como “as duas ou três preocupações importantes no
movimento”. Uma delas foram as ações políticas e a ação do movimento com outras forças,
com outros grupos ou com o Estado. Outra eram as “complicações” dentro do movimento.
E, por último, o tema da subjetividade como forma de refletir “sobre a prática de cada uma
e a forma com que se vive o feminismo”.
Sobre a base destas premissas foram definidas três oficinas, cujas denominações marcavam
o itinerário das reflexões do interior para a relação com “outros”. Uma ênfase especial foi
colocada no modo de se referir às participantes numa categoria inclusiva: nosotras. Assim,
as três oficinas foram: Nosotras, Entre Nosotras e A partir de Nosotras. Da mesma forma
que o “devir” no processo de transformação para o feminismo, mencionado no capítulo um,
os nomes das oficinas referiam-se a um movimento a partir do interior “nosotras” (em
referência a “cada uma”); logo, “entre nosotras” (em referência a o/os feminismos) e
finalmente “a partir de nosotras” (um deslocamento para um exterior).
Uma vez que a Comissão Organizadora definiu as três oficinas, decidiu “não fechá-las” e
enviar informação por correio eletrônico às demais feministas para que fizessem novas
propostas e modificassem a que elas tinham elaborado:
Fizemos algo bastante democrático porque me lembro que dissemos,
não fechemos as oficinas, convidemos as outras para que proponham ou
temas ou modificações a isso. Então, demos uma rodada para ver se
propunham algum tipo de oficina. Foi como uma espécie de pontapé
inicial sobre estas três coisas que estavam nos preocupando e depois
demos uma rodada para ver se propunham outros temas. (Grifo meu)
Também, assim como no Encontro anterior, deixou-se aberta a possibilidade de realizar
“oficinas livres” que podiam ser propostas por qualquer outra feminista interessada em
trabalhar algum tema em particular. Neste encontro, as oficinas livres foram: Aborto
Seguro, Um direito à Cidadania das Mulheres, coordenado por uma médica ginecologista
ao redor de 55 anos e uma socióloga de 28 anos, e A heterossexualidade como instituição,
coordenado por duas mulheres lésbicas com cerca de 30 anos.
O programa do Encontro, onde apareciam organizadas as atividades, estava impresso em
preto e branco e, posteriormente, fotocopiado e dobrado em três partes. Esta informação era
entregue a cada uma das participantes no momento de sua inscrição, junto com uma pasta,
com folhas em branco para fazer anotações e uma caneta. No programa estavam anunciados
os temas a serem discutidos em cada oficina. A forma de organização previa que, em cada
grupo que se constituísse em forma de oficina, fossem discutidos os eixos propostos pela
comissão para cada uma das três oficinas durante esses dois dias. A primeira oficina,
denominada “Nosotras”, propunha os seguintes temas: nossas opções sexuais; nossos
abortos; nossos corpos violentados, abusados, violados, mutilados, prostituídos,
pornografados; nossas maternidades, nossas menstruações e menopausas; nossas
espiritualidades; nossos interiores (todos) em relação com nossas políticas feministas; o
poder no âmbito privado e sua vinculação com o âmbito público; relação entre o poder
sexual e o poder político, econômico, cultural, social e religioso; nossos corpos e nossa
sexualidade para o patriarcado, o capitalismo e o Estado; continuum lésbico entre
feministas; e o feminismo dentro de minha casa e dentro do meu corpo.
A segunda oficina “Entre Nosotras”, propunha discutir os seguintes temas: nossos
feminismos. Diferenças e acordos; nossas lutas, ações e estratégias hoje na Argentina;
nosotras na América Latina e no mundo; o poder dentro do feminismo, como articulamos,
como construir um espaço feminista de debate; o impulso de ações; “as feministas em todos
os lugares” [“las feministas en todas partes”]; autonomia: Que projeto feminista queremos?
“Meu feminismo com as outras feministas”.
Na oficina três, “A partir de Nosotras”, se propôs: com ou contra as outras?; nosotras e os
partidos políticos; nosotras e as religiões; nosotras e os meios de comunicação; nosotras e
os movimentos sociais; nosotras no Encontro Nacional de Rosario; nosotras e o governo
nacional, provincial e municipal: pactos e negociações possíveis. Nos dois pontos que se
seguem, analiso a partir de uma etnografia de dois dos diversos espaços que os Encontros
de Mulheres Feministas têm, as oficinas e a plenária, os diferentes sentidos da noção de
igualdade que são parte desta forma de fazer política.
2. As mulheres como categoria de ação política: construindo a causa
Tal como Durkheim chama a atenção em As Regras do Método Sociológico, uma das
dificuldades mais importantes com que se depara um/a pesquisador/a das ciências sociais
são as representações estabelecidas sobre seu objeto de estudo. No caso deste trabalho, a
maior dificuldade que tive que lidar foi o risco de tomar a categoria “mulher” ou
“mulheres” como naturais, ou como princípio dado de constituição de um grupo social
(LENOIR, 1989). Ao ser remetida a um dado biológico, a categoria mulher parece que se
explica por si mesma. No entanto, a constituição de um coletivo, neste caso, as mulheres,
nada tem de óbvio nem de evidente. Neste ponto, insistirei no que anteriormente defini
como igualdade como equivalência. Isto é, a construção de um sentido que considera que
duas pessoas são iguais se pertencem à mesma categoria classificatória, neste caso, ser
mulher. Assim, analisarei como se constrói o coletivo mulheres em um espaço de militância
feminista e, ao mesmo tempo, a categoria que se opõe: os homens. É no desenvolvimento
das oficinas onde a construção da igualdade como equivalência adquire maior sentido, à
diferença da plenária, onde prima o sentido de uma igualdade de ordem. A definição do que
é ser mulher nestes espaços pode ser analisada em diferentes níveis: no aspecto espacial e
organizacional, no discursivo e nas práticas. Os termos que, em muitos casos, são utilizados
pelas militantes como princípios explicativos são aqui analisados como ferramentas
utilizadas estrategicamente para desafiar as visões de mundo dominantes, com a finalidade
de instalar uma nova forma de entender a política e as relações entre os sexos.
2.1 A dinâmica das oficinas
Ao mesmo tempo que cansa, é impressionante ver
esse funcionamento sem uma ordem ou um protocolo
estabelecido,onde todas falam e todas confrontam!
Militante feminista
Em relação ao primeiro nível, merecem ser destacadas algumas características. A decisão
da disposição das cadeiras em círculo e as observações nas formas da coordenação durante
o funcionamento das oficinas se sustentam no argumento de que as mulheres estão
habitualmente inscritas em estruturas hierárquicas que, consideradas moralmente
condenáveis como injustas, as feministas não querem reproduzir nesses espaços. Assim,
para as militantes é importante contestar as maneiras com que o sistema patriarcal se
organiza e não reproduzir na dinâmica de ações militantes as formas hierárquicas que,
segundo a visão feminista, são próprias do mesmo e subjugam as mulheres. Em geral,
prestam especial atenção em desenvolver formas de interação que apaguem as marcas de
possíveis desigualdades. Uma das maneiras de fazer isto é a distribuição espacial das
mulheres com o objetivo de igualar as participantes. Em geral, os Encontros são realizados
em prédios onde funcionam escolas ou universidades. A primeira tarefa antes de começar
uma oficina é mudar a disposição espacial das cadeiras nas salas de aula e colocá-las em
círculo. Algumas vezes utiliza-se o quadro-negro para registrar as conclusões e que possam
ser vistas por todas as integrantes; outras vezes, diretamente fecha-se o círculo e o quadro-
negro não faz parte da estratégia para levar a diante o debate.
No programa de 2003, junto com a menção dos temas a serem discutidos nas oficinas,
incluía-se uma recomendação sobre o funcionamento das mesmas, destinada a garantir a
“horizontalidade” na coordenação e a posterior circulação das conclusões entre todas as
participantes do Encontro. As indicações eram as seguintes: “Escolher e fazer rodízio da
coordenação para a Reflexão (2 horas); dispor ½ hora para anotar conclusões e propostas,
escolher uma relatora para leitura disto e entregar cópia (com letra clara) para a Comissão
Organizadora”. De acordo com as sugestões, a coordenadora não devia ser designada antes
da existência da oficina, mas devia ser escolhida pelas mulheres que participavam no
momento de sua formação. A coordenação rotativa aconselhada, na prática e no clima de
acalorados debates, geralmente não se respeitava, ao mesmo tempo em que, se não se
estava presente no momento da decisão, era difícil saber quem coordenava, já que as
discussões aconteciam de maneira espontânea e desordenada. Depois de cada sessão,
realizava-se uma “plenária parcial”, que consistia na reunião das participantes das
diferentes oficinas para ler as conclusões que surgiam do debate e compartilhá-las com o
resto das mulheres.
Por outro lado, com vistas a que todas pudessem fazer uso da palavra, limitava-se a
quantidade de integrantes das oficinas a não mais que quinze ou vinte mulheres. Já que,
segundo os argumentos feministas, as mulheres foram privadas da palavra durante muito
tempo, esses espaços deveriam garantir também que todas possam falar, se é que assim
desejam. A Comissão Organizadora dava uma norma geral de funcionamento, deixando
então aberta a possibilidade de que as próprias integrantes decidam, por exemplo, que
pessoa ou pessoas coordenariam a atividade. No Encontro anterior, a possibilidade de
decidir de cada grupo era mais explícita que no último, e estava incluída em uma série de
orientações definidas como “pautas de funcionamento das oficinas”.
- Cada oficina decidirá se aborda todos os temas propostos ou só alguns e
a profundidade com que os desenvolverá
- Cada oficina resolverá em que momento fazer um corte no debate para
descansar, se é que desejam fazê-lo
- Também resolverá se farão uma parada para fazer alguma atividade
física coordenada por alguma participante que tenha experiência nisso
Assim, desde a organização prestou-se atenção à autonomia com a qual se considera que
devem funcionar as mulheres agrupadas nas oficinas. Considera-se que cada oficina possui
autoridade sobre si mesma e é independente, por isso, o argumento de que “as oficinas são
soberanas” era ouvido freqüentemente. Também costuma acontecer que as pretensões de
horizontalidade façam que ninguém queira assumir papéis diferenciados, o que pode
dificultar o funcionamento da oficina
57
. Este testemunho, extraído das memórias do VI
Encontro de Mulheres Feministas, mostra como as militantes resolvem na prática estas
digressões:
No primeiro dia, ninguém quis anotar. No segundo dia melhoramos um
pouco isto, duas companheiras se ofereceram e foram anotando. Era bom
que pudéssemos registrar as coisas que foram discutidas na oficina.
Quanto à proposta da Comissão Organizadora das perguntas e eixos
temáticos, não houve um acordo de discuti-los dessa maneira, assim, os
temas meio que entraram e saíram.
Por outro lado, a decisão das integrantes das oficinas de discutir ou não os temas propostos
pelas organizadoras também é vista como uma demonstração da autonomia que as
feministas consideram a condição que garante a liberdade de as mulheres. Um exemplo
disso é uma das oficinas onde, em vez de discutir os temas sugeridos no programa, as
integrantes decidiram (com a importância que o poder de decisão tem nesse âmbito)
analisar a linguagem com a qual os tópicos estavam expressos e utilizar os resultados desta
observação como argumento para mostrar a onipresença do discurso dominante:
As integrantes dessa mini-oficina, ao invés de priorizar um tema
determinado, ao ler o temário do encontro no primeiro dia, vemos como o
discurso dominante nos filtra e caímos numa armadilha, olhando-nos
como somos olhadas. Chama nossa atenção como aparece uma
detalhada enumeração das “vitimizações” e fica desconsiderado o
corpo erótico, o corpo gozoso, o prazer, o lúdico. Ficar na vitimização nos
congela, nos tira força. Também notamos que seguimos falando de
“corpos” e não são só os corpos, nem os vitimizados, nem os gozosos,
somos “nosotras”, cada uma. (Grifos meus)
57
É comum que nas oficinas não sejam cumpridas a pautas dadas pela Comissão Organizadora.
Uma vez que se inicia o debate, as intervenções são, em geral, desordenadas e é necessário
ter voz forte e firme e/ou segurança para opinar. Uma vez que estas são características
desigualmente distribuídas entre as participantes, em geral nem todas se manifestam da
mesma maneira. No entanto, dado que não é outorgado a ninguém o poder de dar a palavra
a outras, quem queira falar deve aprender a usar sua voz para ser escutada e a sustentar sua
opinião em oposição às demais. Quando a desordem impede o entendimento, algumas
vezes se discute sobre como organizar o uso da palavra. O mais comum é que não se
implemente nenhuma modalidade específica. Por exemplo, uma lista de oradoras, que
poderia ser pensada como uma forma de garantir que todas possam falar, é rejeitada por
considerá-la uma metodologia própria dos partidos políticos. Mas, sobretudo, porque
significa que uma mulher estaria detendo o poder de dar a palavra a outras. Dentro da
dinâmica feminista entende-se que nenhuma mulher tem autoridade para dar a palavra a
outra; conforme os termos de uma militante, cada mulher “deve autorizar a si mesma”.
Como princípio “igualitário”, considera-se que a palavra de cada uma tem o mesmo valor
que a das demais. Formalmente, ninguém se submete à autoridade de ninguém. Cada
opinião deve ser respeitada e por isso são rejeitadas as conclusões por votação, onde só
estaria representada a opinião da maioria.
No uso da palavra num espaço de ação coletiva e de confrontação de idéias, põe-se em
valor a individualidade e a opinião de cada mulher. Estas práticas, onde as militantes fazem
uso da palavra e expõem seus argumentos, têm, para as feministas, um significado político
por si. Assim, imprimem nos debates dinâmicas que vão constituindo, do ponto de vista das
feministas, formas de fazer política. De forma similar ao Negara descrito por Geertz
(1991:138), onde as formas culturais que se celebram nos rituais e as instituições que o
Negara assume na sociedade são as mesmas, poderia se dizer que, nas formas de
funcionamento pautadas para o desenvolvimento dos Encontros mostram, ao mesmo tempo,
estruturas de pensamento e estruturas de ação. A forma com que funcionam as oficinas
favorece não apenas colocar conjuntamente argumentos e idéias, mas trata-se de um espaço
onde as participantes exercem um trabalho permanente de observação recíproca, de
avaliação, de comparação e de confrontação que permite a cada uma construir sua própria
posição junto às outras, mas, ao mesmo tempo, em oposição a elas (de maneira similar aos
grupos de autoconhecimento). Ao colocar em prática uma semântica da igualdade (expressa
na organização do espaço, nas formas da linguagem, nas idéias e na interação), constroem-
se os princípios e valores feministas e a prática militante. Tal como propõe Geertz, as idéias
não são algo mental, cuja observação é impossível, mas são significados que se veiculam
através de símbolos, já que “significam”. Nesta interação, onde as idéias e a ação não
aparecem como opostas (mas estão em relação de correspondência), é onde são construídas
as formas de fazer política, próprias do feminismo
58
. Os significados propostos pelo
movimento são construídos na própria ação militante em uma espécie de performance
(através da forma e do conteúdo).
2.2 Singularidade da causa e de desingularização dos problemas
No nível discursivo, o uso da palavra nas oficinas oscila entre registros de denúncias e
reivindicações. A militância exige um vocabulário e um conjunto de regras específicas para
dar inteligibilidade aos discursos de protesto e reivindicação, de acordo com o público ao
qual se dirijam. Seguindo a diferenciação feita por Perrot (1997) entre a conversa e a
palavra pública, poderíamos dizer que as oficinas são uma síntese de ambas as
modalidades
59
. Integradas por um público exclusivamente feminino, considerando que um
dos argumentos feministas é que se negou o uso da palavra pública para as mulheres, as
oficinas tornam-se uma espécie de conversas públicas. Assemelham-se a uma conversa,
uma vez que existe circulação e troca e se dissipam as fronteiras. Por outro lado, têm
características do uso da palavra pública, como a organização dos discursos a partir de um
temário e/ou de um acordo entre as participantes, inserção em lugares especiais e definição
de um estilo específico.
Como mencionei anteriormente, a primeira oficina que foi realizada durante o VIII
Encontro de Mulheres Feministas da Argentina foi denominada ‘Nosotras’. A utilização
desta palavra é central na construção da categoria as mulheres. Durante as oficinas, quando
58
Este exercício favorece também a aprendizagem do uso da voz e da argumentação em público, os
reposicionamentos identitários e uma atualização das formas de justificativa da militância.
59
Segunda a autora, a conversa, de exercício privado e às vezes público pelo seu conteúdo, é circulação e
troca, dissipa as fronteiras. A palavra pública é muito mais organizada, regulamentada, inserida em lugares,
em um estilo. A arte oratória que culmina na revolução é para Perrot “la revancha ostentosa de la virtud viril y
de la elocuencia masculina” sobre el afeminamiento de las conversaciones de salón (PERROT, 1997).
as militantes falam de nosotraso fazem distinção entre as feministas ali reunidas e as
mulheres. É um nosotras que se refere a as mulheres e às feministas, como representantes
dessa categoria. No entanto, é necessário chamar a atenção que nosotras se constrói em
diálogo com outros termos próprios da militância que vão determinando os limites, embora
difusos, dessa dominação. E, por outro lado, o uso do nosotras também leva as marcas da
diversidade que foi denunciada em vários dos espaços do feminismo ao longo dos anos
60
.
A construção desta categoria, uma vez que as militantes reivindicam a individualidade, não
obedece, necessariamente, a uma tendência de apagar as diferenças. As mesmas devem
conviver com a necessidade de criar certa homogeneização requerida pela prática política.
Assim, as discussões sobre a própria noção de nosotras não questionam a existência da
categoria em si mesma, mas, ao contrário, estão orientadas a tornar complexas as diferenças
que no desenvolvimento do feminismo, através do tempo e em diferentes países, foram
surgindo dentro da categoria mulheres (mulheres negras, mulheres lésbicas, mulheres
pobres). Assim, questionando-a torna-a mais heterogênea, mas não por isso a categoria
nosotras (as mulheres) deixa de ser utilizada.
Quem somos esse “nosotras”? Depois das apresentações, registramos
novamente que nosotras é uma MULTIPLICIDADE, NÃO UMA
UNIDADE, e que cada uma, com a sua singularidade, vai produzindo um
nosotras” situado, contextualizado e SUSCETÍVEL DE MUDANÇA.
Quando usamos o “nosotras” tentamos, cuidadosamente, cada vez mais,
não deslizarmos para a homogeneidade empobrecedora que aparece com
as sereias do “nosotras” seduzindo-nos. Usamos a palavra de maneira
situada ou estrategicamente, mas sem acreditarmos que estamos aludindo
a uma unidade permanente. Hoje, “nosotras” seriam reflexões sobre cada
uma, mas terminaríamos divididas em pedaços, esquartejadas:
menstruação, menopausa, sexualidade, maternidade, espiritualidade,
corpo. Utilizando uma linguagem que vem dada, assumimos tal
linguagem, e isso nos impede de pensarmos para além dela, que está
baseada nos paradigmas do verdadeiro-falso, e que produz as diferentes
dicotomias excludentes: dentro/fora; corpo/espírito; corpo/mente;
corpo/alma; privado/público. Este processo de estar feministas, de
desmontar linguagem, discursos, práticas, para não reproduzir o existente,
60
Nancy Saporta Sternbach (1986) relata em seu artigo “Ser feminista del Primer Mundo en el Tercer
Mundo” as acusações às feministas acadêmicas americanas de não incorporar as perspectivas da mulheres do
terceiro mundo em suas análises teóricas: “La situación explotó en 1983 en la conferencia anual de la
Nacional Women’s Studies Association (NWSA) en Columbus, Ohio. Fue a raíz de esas polémicas que esta
organización empezó un autoanálisis para tratar de entender su propio racismo”.
é um trabalho de construção, uma luta permanente com outras-outros e
com nós mesmas. Porque queremos mudar-nos e mudar a vida. (Grifos
meus)
Em outra das oficinas “Nosotras” misturávamos mulheres de 25 a 35 anos e algumas de
mais de 50, com uma longa trajetória no feminismo. Ali, decidiu-se que cada uma
escolhesse três temas dos enunciados no programa que quisesse falar e seriam discutidos os
que estivessem mais repetidos. Ao final, surgiram como temas mais repetidos “O poder no
âmbito privado e sua relação com o âmbito público”; “Relação entre o poder sexual e poder
político, econômico, cultural, social e religioso” e “O feminismo dentro da minha casa e
dentro do meu corpo”. Estas denominações mostram um discurso articulado ao redor de
palavras chaves que situam um campo de sentidos durante as discussões. Assim, nos temas
das oficinas, as organizadoras definem as noções a partir das quais se pensa essa categoria
abstrata que são “as mulheres”. A distinção entre âmbito privado e âmbito público, o poder,
o feminismo, o feminismo dentro da minha casa e o feminismo dentro do meu corpo são
parte do repertório semântico que as militantes usaram para dar conteúdo e fazer inteligível
esta categoria. Começamos a oficina falando do “feminismo dentro da minha casa e dentro
do meu corpo”.
A seguir, detalho parte do registro dos temas e as palavras usadas durante o debate, onde o
sentido da igualdade é construído como equivalência. Nestes casos, quando as integrantes
das oficinas se referem a as mulheres, trata-se de as mulheres oprimidas, as vítimas de um
sistema desigual. A discussão começou com o feminismo como prática política no
cotidiano. Alguém perguntou a que se refere quando se diz “o feminismo dentro do meu
corpo”. Uma militante de cerca de 60 anos acrescenta “desde que tomei consciência de que
sou feminista, tomei consciência de como maltratei meu corpo” e assim começa uma
discussão sobre o fato de fumar. O feminismo é mencionado aqui como o que permite tomar
distância da opressão e, portanto, como a possibilidade de reverter a desigualdade. Fala-se,
logo, da necessidade de “tomar consciência do corpo e decidir quando e como ter prazer”:
“Quando você não é feminista, faz o que te impõem, o feminismo é a liberação disso. Trata-
se de ver como as relações de poder incidem em nossos corpos e o feminismo como
resistência”. Outra mulher acrescenta que “a história está inscrita em nossos corpos e isso
se relaciona com nossos corpos violados, abusados, etc. O que acontece é que às vezes não
temos a autonomia suficiente para dizer: esta sou eu, esta é minha casa, etc.”. “Às vezes a
gente cuida do corpo para os outros, os filhos, os pais, mas nunca para a gente mesma”.
Outro ponto que se menciona é “Como nossas experiências, em nossos corpos, está
marcada pelo poder (por exemplo, a menstruação como doença) e a dificuldade de amar o
próprio corpo. Esse corpo é a base onde se construiu o patriarcado: somos feministas há
anos e como nos preocupa, por exemplo, a questão da idade”. Uma mulher de uns 30 anos
opina que “não é ruim que haja contradições”. Outra mulher chama a atenção sobre o que o
patriarcado fez com o corpo das mulheres, a dualidade mente corpo: “Durante anos o
patriarcado nos impôs determinados modelos...”. A construção de as mulheres implica, por
um lado, marcar oposições e, a partir delas, realizar uma denúncia e uma crítica. As
oposições são ao patriarcado, ao poder (econômico, político, religioso), ao Estado, aos
partidos políticos e, especialmente, à Igreja Católica. Cada uma destas figuras é identificada
como responsável por algum padecimento de as mulheres e denunciada nesse âmbito. Para
construir um coletivo é necessário também envolver as pessoas e isto acontece de três
formas nos enunciados de críticas e denúncias. Fala-se em nome próprio, em nome das
feministas ou em nome das mulheres. Os discursos em primeira pessoa têm a forma de
testemunho, em tempo real, da opressão: “tomei consciência de como maltratei meu
corpo”. Outra forma de envolvimento ocorre no nível da categoria que convoca as mulheres
presentes: “Como nossas experiências, em nossos corpos, estão marcadas pelo poder [...]
somos feministas há anos e como nos preocupa, por exemplo, a questão da idade”. Ali, o
enunciado marca uma diferença entre as feministas e o resto das mulheres. Finalmente,
existe um tipo de enunciado que se distancia pessoalmente da situação de opressão e traz à
cena pessoas ausentes. É quando na troca de argumentos e razões fala-se de as mulheres: “o
que o patriarcado fez com o corpo das mulheres, a dualidade mente corpo...”. É aqui onde a
militância feminista adquire sentido, constituindo-se uma causa que se expressa na
indignação diante do sofrimento de “outras”, na revolta diante das hierarquias injustas e em
assumir, assim, a defesa dessas vítimas definidas, em suas versões, de maneira abstrata.
O desdobramento em denúncias serve para mostrar as razões para se rebelar e lutar por uma
boa causa como o bem-estar das mulheres, os direitos das mulheres, a vida das mulheres, a
saúde das mulheres. Assim, durante as oficinas as militantes, através de um trabalho de
diálogos e trocas sobre as razões para agir, vão desenhando e reatualizando coletivamente
os argumentos da militância. O trabalho político que se desenvolvem nestas oficinas
consiste em mencionar, isto é, designar as necessidades que começam a serem construídas
como legítimas em um espaço de ação coletiva em um exercício que coloca à prova um
vocabulário de motivos
61
.
O que se coloca em prática nas oficinas desenvolvidas durante os encontros feministas é
exatamente um processo de desingularização, através de um trabalho de mobilização e
criação de recursos lingüísticos coletivos, que permitam a transformação de conflitos que,
enunciados em outro contexto, poderiam ser considerados pessoais e, assim, passam a ser
conflitos categoriais. Isto é, conflitos onde os/as participantes envolvidos/as possam ser
tratados como membros de uma categoria que possa ser substituído/a por qualquer outro/a
membro da mesma categoria (BOLTANSKI, 2000). É este trabalho o que permite às
feministas manejar, no nível de uma lógica política, problemas até esse momento
considerados singulares. Este recurso de desingularização dos conflitos é muito utilizado
em ações militantes. Por exemplo, na cidade de Tandil foi proibida a entrada a um lugar
público de uma mulher negra que exercia a prostituição. As feministas dessa cidade
realizaram, então, uma manifestação com cartazes que diziam “todas somos putas, todas
somos negras”.
2.3 Privilegiando a igualdade como equivalência
No terceiro nível das práticas, uma das formas para tentar apagar as hierarquias e garantir a
autonomia de as mulheres é a liberdade de cada uma para decidir em que oficina, das que
vão sendo criadas, deseja participar. Se os mesmos temas são tratados em todas, como são
distribuídas as militantes entre as diferentes oficinas? Neste ponto é preciso chamar a
atenção sobre a coexistência de uma mesma temporalidade de diferentes ordens de
racionalidade de inversões militantes (FILLIEULE, 2001). Enquanto algumas mulheres
levam mais de vinte anos de militância, e são reconhecidas pelas que militam há menos
tempo como portadoras da história do movimento, outras têm menos anos de militância.
Esta diferenciação coincide, em grande parte, embora não necessariamente, com uma
61
Para um estudo detalhado sobre a construção de um coletivo e de uma causa pública, com atenção especial
na experiência da vida cotidiana das pessoas envolvidas, ver “Lieux et moments d’une mobilisation
collective. Le cas d’une association de quartier” (CEFAÏ et LAFAYE, 2001).
diferença de geração
62
. Aqui se estabelece uma relação de dependência, que preocupa tanto
umas como as outras e, no caso de se romper, ameaçaria a existência do movimento
63
. As
mais jovens dependem das mais velhas para a transmissão da herança da história da
militância, enquanto as mais velhas só podem delegar suas experiências às mais jovens.
Esta diferenciação é importante para entender a distribuição das participantes nas oficinas
do Encontro. As mais jovens costumam escolher participar em alguma onde esteja uma das
mulheres mais experientes que elas admiram ou reconhecem. Já no caso das “que têm mais
anos no movimento” essa decisão está fortemente influenciada pela configuração das
relações a partir de experiências anteriores, onde se colocam em jogo afinidades e
desentendimentos, amizades e inimizades. Estas mulheres compartilham um fundo de
conhecimento comum sobre as participantes do Encontro, e os conflitos e diferenças com
outras mulheres acumulados através do tempo estão presentes na escolha da oficina. Este
fundo está feito de reputações, entendidas estas últimas como a opinião que outras mulheres
têm de uma mulher em particular (BAILEY, 1971). Nessa decisão, revela-se a intenção de
compartilhar um espaço com outras mulheres ou evitar encontrá-las. Assim, a distribuição
das mulheres nas oficinas está mediada por relações de evitação (RADCLIFFE BROWN,
1974).
Como as oficinas são o lugar onde se privilegia a troca de argumentos militantes e um
espaço para as denúncias de opressão e injustiça, não são bem-vindos possíveis conflitos
que ameacem romper a semântica da igualdade, entendida como equivalência. O risco de
que duas mulheres reconhecidas como referências do movimento participem da mesma
oficina é que para sustentar posições diferentes (ou opostas) em um mesmo nível de
hierarquia é possível que gerem uma discussão onde se monopolize o uso da palavra e se
impeça o desenvolvimento do temário e/ou que as demais falem. Simmel (2002:144-45)
considera que a oposição de um elemento diante do outro em uma mesma sociedade não é
um fator social meramente negativo, embora seja só porque muitas vezes é o único meio
62
Digo “não necessariamente” porque nem todas as mulheres que recém começam são jovens. Neste sentido,
uma idade mais avançada não é sinônimo de mais experiência.
63
Ver capítulo 1. Quando analisei a Oficina de Aprendizas de Bruxas esta preocupação surgiu em forma de
pergunta “o que acontece que as mais jovens não podem se reconhecer nas que têm mais experiência?”.
Enquanto, do lado das mais velhas, essa questão surgiu nas entrevistas: “E a questão que tínhamos nos anos
90, era a questão da substituição de geração, nos falta uma geração no meio, mulheres de 30-40 anos... Mas
agora já conseguimos, fizemos isso também.”
que torna possível a convivência com personalidades propriamente intoleráveis. Neste caso,
considero que se trata de personalidades que se tornariam “intoleráveis” em uma figuração
social que se pretende igualitária, e onde suas integrantes se vêem obrigadas a lidar com a
ameaça de que se destrua a performance da igualdade sob a qual se organizam. Segundo o
autor, a oposição nos permite adquirir consciência de nossa força e proporciona vivacidade
a relações que, de outro modo, não suportaríamos. Isto acontece não apenas quando a
oposição chega a resultados perceptíveis, mas inclusive quando apenas se manifesta
exteriormente e fica só no puramente interior, como seria o caso das evitações, onde se
produziria um equilíbrio e um sentimento ideal de poder que salva as relações. Em uma
conversa, uma militante de 28 anos me comentou, com certo espanto, e gesto de
desaprovação, que falando com uma das feministas velhas, ela lhe havia dito que não
participaria do VIII Encontro feminista porque “esse era território de B.”. E acrescenta,
indignada, quando me conta: “O que é isso de território? Afinal, parece que fazermos o
mesmo tipo de política que os partidos”. Para Simmel (op.cit.) a oposição torna-se membro
da própria relação e adquire os mesmos direitos que os outros motivos que a tornam
possível.
Quem participa pela primeira vez de um Encontro Feminista, verá discorrer, diante de seus
olhos, uma forma de relação difícil de elucidar que só ganha sentido à luz de histórias que
uma principiante geralmente desconhece. O acesso ao fundo de conhecimento das
reputações está reservado a quem compartilha os espaços de militância e é esse
conhecimento o que permite às outras participantes interpretar as lógicas que pautam as
relações de evitação. As principiantes, como era meu caso, podem ter acesso a essa
informação basicamente por terem sido reconhecidas e convidadas por uma das mulheres
de mais tempo no movimento (então, pode-se perguntar a elas “na confiança”), ou por
compartilhar dúvidas e desconcertos com outras mulheres da mesma geração que estejam
um pouco mais informadas
64
. As relações de evitação permitem minimizar nas oficinas os
riscos de que se desate algum conflito propiciado pela presença de duas mulheres que se
igualem em autoridade (igualdade de ordem) e que se vejam induzidas a sustentar sua
64
Diálogos como este, nos momentos de ócio durante o Encontro, eram mais ou menos comuns: “Não entendi
quando A ficou com tanta raiva de B”; “o que acontece é que A e B têm duas posições a respeito deste tema
que se enfrentam” ou “estão brigadas há muitos anos, então, sempre discutem... no início, quando aconteciam
essas coisas, eu também não entendia nada”.
posição por oposição a quem reconhecem como uma igual em honra (BOURDIEU, 1972).
Uma situação de enfrentamento de duas participantes colocaria em perigo a construção de
uma igualdade de equivalência. Assim, as relações de evitação mostram que nas oficinas
privilegia-se a construção de uma igualdade de equivalência acima de uma igualdade de
ordem.
3. Construindo a igualdade
La organización voluntaria está obligada, por necesidades
políticas internas, a hacer de la igualdad una virtud
Mary Douglas
Neste ponto enfatizarei como se constrói a noção de igualdade como igualdade de ordem. O
reconhecimento da individualidade e da horizontalidade como valores são centrais para
compreender o significado que as feministas dão às noções de igualdade que são
construídas na militância e, ao mesmo tempo, pautam a forma de interação entre elas.
Trata-se de se igualar na autoridade. A autoridade de uma nunca pode ser superior à da
outra, já que as feministas consideram que cada mulher tem a autoridade suficiente para
fazer valer sua palavra e sua opinião perante as demais
65
.
As militantes consideram que não apenas o conteúdo dos debates, mas também as formas a
partir das quais esse conteúdo é colocado em consideração, têm um significado político.
Assim, movimento, redes, encontros, assembléias, associações e coletivas são algumas das
palavras que as feministas utilizam para definir suas maneiras de se organizarem e
65
Numa observação sobre as formas que as práticas feministas adquirem em função da ideologia que as
próprias feministas reivindicam, Franchetto, Cavalcanti e Heilborn sugerem que a lógica que considera que as
mulheres são iguais entre si se expressa na organização política em uma radicalização da prática democrática
(FRANCHETTO et al., 1980).
rejeitarem, em termos gerais, definições que pressupõem estruturas organizativas como
grupo ou comissão que pressupõem papéis estabelecidos. Embora esta tendência seja muito
mais acentuada nos grupos de feministas que se denominam a si mesmas autônomas,
também ocorreu nos anos 80 e 90 nas estruturas acadêmicas com a criação dos “Estudos da
Mulher”
66
. Não se trata de se organizar para alcançar um fim através de meios que se
medem apenas por sua eficiência estratégica, mas os meios, nesse caso, as formas de
socialização, constituem-se em si mesmos uma expressão política. Nesse sentido, a noção
de “encontro” respeita a dinâmica feminista uma vez que não pressupõe hierarquias, tanto
como a idéia de oficina e de plenária
67
.
Além de todo o desenvolvimento cuidadoso de uma semântica da igualdade e de colocar
em prática a dinâmica feminista destinada a criar uma igualdade de equivalência, que
mostrei no ponto anterior, é importante abordar como são administradas as diferenças entre
as mulheres feministas. É neste ponto onde a igualdade de ordem adquire sentido.
Mencionei brevemente no item anterior as diferenças que os anos de militância acumulados
geram. Além dessa diferença, colocarei especial atenção em revisar o que ocorre com os
argumentos de igualdade quando confluem, nos mesmos espaços, mulheres que têm a
mesma quantidade de anos de militância e, portanto, possuem perante as demais uma
autoridade similar. Assim, nas atividades do Encontro coloca-se em jogo também a
autoridade e o prestígio de militantes que passam a ser reconhecidas como referências. Ao
considerar que se trata de um contexto onde se denunciam as hierarquias, estas diferenças
só podem ser reconhecidas a partir de argumentos de igualdade.
No caso das diferenças, que para simplificar chamarei aqui “de geração”, não são
reconhecidas de maneira explícita como hierarquias e a hierarquia que poderiam supor é
66
As acadêmicas feministas tentaram formas de organização denominadas “centros” ou “programas” que
pretendiam romper com a organização por departamentos, facilitar o trabalho interdisciplinar e instaurar uma
nova dinâmica orientada, segundo seu ponto de vista, a uma interação maior com a sociedade a fim de
facilitar ações que tendessem a reverter a situação de discriminação das mulheres na sociedade. Segundo uma
das fundadoras do Centro de Estudios de la Mujer (CEM): “Los Estudios de la Mujer se plantean una serie de
transformaciones profundas de las estructuras teóricas e institucionales tradicionales en los ámbitos
académicos. Así surge el énfasis en la interdisciplina, el desarrollo de metodologías de investigación y
prácticas pedagógicas innovadoras, etc. Sin embargo, esta propuesta de cambio radical no ha logrado quebrar
el aislamiento de nuestras universidades respecto de otras instituciones sociales” (BONDER, 2002).
67
Segundo o dicionário da língua espanhola da Real Academia Española, a palavra encontro [encuentro] é
definida como o “Acto de coincidir en un punto dos o más cosas, por lo común chocando una contra otra”.
aceita de forma implícita. Se e hierarquia é implicitamente aceita no caso de mulheres que
pertencem a diferentes gerações, não é aceitável uma hierarquização entre mulheres da
mesma geração e que têm certa quantidade de anos de militância. Assim, possíveis
diferenciações que surjam nunca são reconhecidas de forma explícita, a não ser em termos
acusatórios (“miserabilidades”, “redutos”, “exibições pessoais”, etc.), como uma espécie de
individualismo exacerbado que atentaria contra a igualdade. Essas acusações são
enunciadas (ou denunciadas) só em ocasiões de conversas mais íntimas, onde participam
poucas mulheres trocando opiniões num clima de “confiança”. Com esta observação não
pretendo contrariar o argumento de igualdade esboçado pelas militantes, mas notar esse
fato e tratar de compreendê-lo no contexto. Numa dinâmica que defende a horizontalidade e
nega a possibilidade de delegar decisões em uma representação, como funciona a
autoridade, o prestígio e o reconhecimento?
3.1 Autoridade e reconhecimento
Nos hablábamos y nos peleábamos
como se pelean las feministas
Militante feminista
Se nas oficinas as mulheres “de mais tempo no movimento” tinham a possibilidade de
colocar em prática as relações de evitação, isto não acontece na plenária do Encontro, onde
todas compartilham o mesmo espaço. A plenária do último Encontro realizou-se na Sala
Magna da Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, o mesmo
espaço onde foi realizada a Oficina Aprendizas de Bruxas. Assim como nas oficinas, não
havia nenhuma distribuição espacial que dividisse hierarquicamente as participantes.
Todas, ao redor de oitenta mulheres, estavam agrupadas em círculo. Algumas sentadas em
cadeiras, outras no chão diante das cadeiras e outras em pé atrás. À diferença das oficinas,
não havia nenhuma pauta escrita de como a plenária deveria funcionar, nem estava pautado
quais pessoas coordenariam a discussão. Trata-se de situações regidas por convenções
implícitas, que costumam ter mais força normativa que as pautas escritas. O início da
plenária, da mesma forma que em outros encontros, foi responsabilidade da Comissão
Organizadora.
Este espaço é reservado para socializar os resultados das discussões das diferentes oficinas,
na forma de conclusões (ou não), com todas as integrantes do Encontro. É o lugar onde se
radicaliza a prática política feminista da igualdade como igualdade de ordem, isto é, tenta-
se mostrar que entre elas não existem assimetrias. A reunião começou com um balanço do
Encontro realizado pela Comissão Organizadora. Os aspectos positivos mencionados foram
a possibilidade de trabalharem juntas, a experiência nova na cidade que, por ser uma cidade
pequena e distante dos centros urbanos, se considera um lugar “conservador”; que foi
possível o cuidado mútuo entre as mulheres, embora também foram mencionados aspectos
de descuido como, por exemplo, a escassa participação nas atividades de relaxamento e
“nas coisas do corpo”. Entre os aspectos negativos, citaram o fato de não ler as conclusões
do Encontro anterior, a dificuldade de avaliar permanentemente a tarefa devido a que as
organizadoras eram só cinco mulheres. Aparece uma referência a que a comissão estava
integrada por dois grupos e que “nem todas puderam participar” (isto se explica pela
ruptura de um grupo feminista da cidade denominado “Sin Moldes” que, alguns anos atrás,
dividiu as mulheres em dois segmentos). Como aspecto negativo também se mencionou
que não funcionou a estratégia de incorporar novas mulheres às oficinas e se criticou a
divulgação do encontro porque, aparentemente, algumas não tinham recebido informação.
Finalmente, prevendo uma situação de conflito, uma das organizadoras se referiu aos
“questionamentos do sistema patriarcal do qual fazemos uso, fizemos e faremos. Não
somos ingênuas ao fazê-lo. Isto gerou muito mal-estar entre nós”. Depois desta “avaliação”,
que responde a um exercício que coincide com certa rotina na modalidade dos Encontros,
chegou o momento em que as outras participantes puderam fazer uso da palavra.
À diferença das plenárias de reuniões de trabalhadores rurais no Brasil, analisadas por
Comerford (1999), onde é possível diferenciar os participantes entre os que têm a atribuição
de coordenar e os que não, na plenária do Encontro feminista não existe um lugar definido
de coordenação
68
. No entanto, apesar desta diferença entre os dois universos empíricos
68
Comeford mostra que a ou as pessoas a cargo da coordenação das plenárias, apesar de que seu controle
parece ser só relativo, exercem um poder que não deixa de ser significativo. Entre outras coisas, os
coordenadores podem mudar o rumo das discussões, serem mais ou menos rígidos com o tempo destinado a
observados, alguns efeitos descritos pelo autor também podem ser identificados no caso
analisado, no sentido de que independentemente de que exista ou não uma coordenação que
detém a atribuição de guiar a discussão, da mesma forma, acionam-se durante a plenária
critérios implícitos de hierarquização das participantes e da importância de seus discursos.
Nestes espaços, coloca-se à prova a capacidade retórica e de argumentação das militantes,
muito especialmente daquelas de “mais tempo no movimento”. Como se resolve a situação
onde o discurso de algumas mulheres tem mais importância que o das outras?
Abordar nas conversas e nas entrevistas a questão da hierarquia, num mundo social que faz
da igualdade um valor moral, foi durante meu trabalho de campo um situação no mínimo
incômoda
69
. Logo descobri que a questão não era tão difícil de falar se colocava para as
militantes individualmente. Também descobri que algumas mulheres tinham menos
preconceitos que outras para falar do tema e que esta disposição estava associada à posição
que ocupavam dentro da militância
70
. Assim, as mulheres estavam mais dispostas a dar
exemplos de autoridade quando, sendo externas a essa categorias, não se sentiam
pessoalmente questionadas:
P: Pode-se dizer que tem autoridades nos Encontros?
R: Sim, tem autoridades. E tem cacicados.
P: Quem são as pessoas?
R: Não quero dizer com nomes, mas ... se viu claramente no Encontro de
feminismo (...)
P: Mas essas autoridades se reconhecem?
R: Eu acho que sim, se reconhecem, e se disputam. Às vezes disputam
por uma frase. Se coloca a palavra genocida, se não [em um folheto]. E
você pensa, até onde é tão importante para que leve duas horas de
cada discussão, acionar critérios implícitos de hierarquização dos participantes; também, ao relatar as
conclusões, inevitavelmente, transformam o que foi expresso ao fazerem intervir outras formas de linguagem
e alteram as formas com risco de alterarem o conteúdo.
69
Borland (2004:322), em seu trabalho sobre movimento de mulheres na Argentina comenta que quando
perguntava a ativistas feministas de grupos que reivindicavam a horizontalidade sobre a liderança e as formas
em que tomavam decisões, estas freqüentemente pareciam surpresas diante do fato de que ela ainda possa
acreditar que usassem formas hierárquicas, ou outro método que não seja o consenso, para tomar decisões.
70
Boltanski (1982) chama a atenção sobre as diferenças entre as categorias dos grupos e as categorias
“naturais” (que definem formas, cores, categorias zoológicas). As primeiras devem ser entendidas como
produto da história do próprio grupo. Mas aponta também a uma propriedade que lhes conferiria, segundo seu
ponto de vista, um status original: os instrumentos de classificação do mundo social nativo são aplicados ao
mesmo universo ao qual pertence quem os usa e, ao utilizá-los para organizar objetos exteriores, determina
sua própria posição relativa. Assim, considera que as categorias comprometem interesses e não são nunca
objeto de uma recepção e uma utilização neutra ou passiva.
discussão? E eu creio que ali estão jogando outras coisas, não só a palavra
que colocam nesse folheto (...)
P: Quais seriam as pessoas e não têm autoridade, se há algumas que têm?
R: Todas as outras que estão aí. Se eu tivesse que pensar em um
encontro... penso seis ou sete ou oito dotadas de autoridade que deram a
ela ou que lhe impuseram
P: Por que acha que algumas adquirem mais poder?
R: Não sei... Algumas será a trajetória, outras porque reproduzem práticas
que são de dominação como qualquer outro grupo, algumas porque
dominam a palavra, eu acho que na maioria das que vi é um domínio
da linguagem muito forte. Porque aqui não é por prepotência, nem por
quantidade de gente que tem atrás: ‘Bom, eu tenho tantos e me torno um
caudilho’. Prepotência trabalho também, tem algumas que tiveram
muito trabalho por trás e isso as faz erigirem-se como autoridades.
Mas não é por quantidade de gente que você tenha atrás, isso é claro.
Não é por isso. Isso eu tenho claro, o outro me parece mais difuso.
(Grifos meus)
As “sete ou oito dotadas de autoridade” que esta militante se refere são mulheres com cerca
de sessenta anos ou mais que, através de suas trajetórias, creditam um compromisso com a
causa das mulheres e que são reconhecidas por suas capacidades oratórias e sua clareza
para expressar argumentos
71
. Como aparece no testemunho citado, cumprem seu
compromisso mobilizando complexos argumentos finamente elaborados. O prestígio destas
militantes é reconhecido neste espaço através da demonstração de um uso preciso da
terminologia feminista, a mobilização de argumentos complexos ou a utilização de
explicações baseadas em fatos históricos nos quais muitas participaram. A plenária é um
lugar apropriado para isso: ali está representada de alguma maneira a totalidade do
feminismo, somando também as ausências com as quais habitualmente se dialoga
72
. É o
lugar onde a manifestação das capacidades de cada uma e a encenação dos argumentos
militantes adquirem pleno sentido, já que é o espaço onde as feministas se vêem
representadas como movimento. O enorme valor que se dá à certificação do prestígio destas
71
É possível traçar um paralelo entre estas militantes e as feministas brasileiras que Miriam Grossi (1997)
denomina, para o caso do Brasil, como “feministas históricas” em oposição às “novas feministas”. A autora
descreve as primeiras como aquelas que participaram das mobilizações do peodo conhecido como “década
da mulher”, comprometidas com o movimento feminista “autônomo”, que começaram militando em suas
horas livres e, progressivamente, tornaram-se assalariadas da causa das mulheres. Embora se possa identificar
esta tendência na Argentina, considero que não se trata de uma realidade homogênea e que para uma melhor
compreensão do feminismo é necessário inscrever as trajetórias destas mulheres para além dos espaços
feministas.
72
Sobre o diálogo com as “feministas ausentes” ver o ponto 3 do capítulo 4 “Um feminismo nacional,
autônomo?”
mulheres nestes casos (ELIAS, 1996), através do cumprimento de determinadas pautas (em
alguns casos, extremamente minuciosas) não remete a insignificâncias, mas a uma maneira
de sustentar e atualizar os valores e argumentos próprios do feminismo que têm uma
importância vital, tanto para a autoidentificação como para a identificação das outras
feministas. Isto é o que acontece quando grandes discussões se desatam em torno a temas
ou palavras que aos olhos de um leigo poderiam parecer irrelevantes
73
.
Dado que a hierarquia como valor não se condiz com as formas de socialização
privilegiadas no desenvolvimento do Encontro, nenhuma das mulheres consideradas
“dotadas de autoridade” ocupou algum lugar destacado na distribuição espacial. Embora
seja possível, como mostrei para o caso das oficinas, aplicar regras e técnicas com o
objetivo de garantir a horizontalidade entre as participantes dos Encontros, neste caso é
muito mais difícil regular a tensão que provoca a economia de hierarquias implícitas
baseada nas reputações construídas durante anos de atividades e sentidos compartilhados. É
assim como se incorpora a esta figuração social uma dimensão que ameaça a pretensão de
horizontalidade própria das práticas militantes das feministas. Estas diferenças, embora
estejam presentes e sejam reconhecidas todo o tempo, manifestam-se de maneira mais clara
nas plenárias. O que acontece, então, com essas hierarquias implícitas num espaço cujas
participantes fazem da igualdade um valor? Neste ponto considero que se enfrentam dois
valores compartilhados por quem interage nos espaços do feminismo. Por um lado, o
reconhecimento dos anos de experiência e compromisso militante das feministas velhas, por
outro, o valor dado à igualdade de ordem como forma de relação privilegiada e dotada de
sentido político pelas feministas.
3.2 A manifestação do conflito: igualdade e reatualização de valores
Dumont (1985) sustenta que se os defensores da diferença exigem, ao mesmo tempo,
igualdade e reconhecimento estão exigindo o impossível. A igualdade só seria verdadeira
73
Na organização da comemoração de um 8 de março presenciei uma discussão de horas sobre o uso das
palavras para redigir um panfleto. Não se tratava de um panfleto com um slogan facilmente legível, mas um
panfleto pequeno, com vários pequenos parágrafos que, em geral, as pessoas não lêem com muita atenção. No
entanto, considero que a importância dessa discussão estava mais centrada na atualização dos argumentos da
militância e nas posições de autoridade que nos/as destinatários em si mesmos. No ato de redação de um
panfleto é possível aprender muito sobre as discussões e argumentos que circulam na militância e a articulam.
no nível da representação, enquanto as formas práticas da integração remetem a um todo e
são implicitamente hierárquicas, ou só o conflito se qualifica como integrador. Considero
que no caso observado as diferenças de geração são reconhecidas de maneira implícita a
partir de uma hierarquia mediada por formas igualitárias, enquanto as diferenças entre as
feministas de uma mesma geração são reconhecidas a partir do conflito (garantindo, desta
maneira, uma igualdade de ordem e, ao mesmo tempo, reatualizando os valores de
igualdade e autonomia). Aquelas mulheres que, recém iniciadas, não compartilham ainda o
fundo de conhecimento comum que organiza as reputações, tampouco conhecem as formas
de administrar os enfrentamentos, os conflitos e as oposições. Isto não significa,
necessariamente, que não falem durante as plenárias, mas suas intervenções eram
introduzidas na discussão coletiva pela seguinte fórmula: “Este é meu primeiro encontro...”.
Com essa expressão deixavam claro que a autoridade de suas palavras era relativa e de
alguma maneira essa condição as situava fora das disputas mais intensas. Algumas
feministas mais novas (ao redor de 30 anos), mas que já acumularam anos de experiência
de militância, pouco a pouco vão adquirindo autoridade demonstrando em seu desempenho
que elas também possuem os mesmos atributos que “as dotadas de autoridade”, apesar de
terem menos anos de experiência. São poucas, mas também falam nas plenárias e o fazem
demonstrando uma atitude de autoridade (voz elevada e palavras de ordem ou opiniões
claramente definidas), características que dependem de qualidades pessoais e que não é
necessária a quem já se sabe que possui autoridade.
Aquelas que têm alguma experiência, mas ainda não estão plenamente “dotadas de
autoridade”, nas plenárias devem aprender a (e/ou mostrar sua capacidade de) agüentar o
teste ao que são submetidas suas ações e opiniões por vozes autorizadas. Sua capacidade e
direito a réplica nestes casos dependem, além de sua capacidade de impor sua voz, da
posição adquirida na história de militância. Cito novamente um testemunho de uma das
integrantes da Comissão Organizadora do último Encontro, que conta sobre as críticas que
algumas militantes realizaram à Comissão Organizadora durante a plenária:
Nos mataram, nesse Encontro nos mataram. Eu fiquei muito mal, depois
do encontro fiquei doente, não podia respirar, depois percebi que foi por
isso, mas peguei uma bronquite. Algumas mulheres são cruéis, nos
criticaram muitíssimo.
P: Mas por que as criticaram?
R: Por tudo. Pelas canetas, pelos papéis que levamos para escrever, pelo
lugar onde fizemos o Encontro, pelo vinho, porque fizemos na sede do
Partido Radical, que isso não era feminista. Por quem havia financiado o
Encontro, se éramos independente ou não. E nós fomos independentes,
não ficamos comprometidas com ninguém, mas para que as coisas
funcionem você tem que negociar (...)
Por outro lado, e por isso lhe digo que sou contraditória. Porque venho
com raiva desses encontros, mas abre a sua cabeça (...) É tanta coisa que
aparece nessas discussões. Provavelmente a gente se cansa tanto porque
não se pode tomar partido nesse momento, mas é importante que aconteça
essa discussão. O problema é quando se agridem de tal maneira que você
se sente parte de uma... carnificina. Porque nesse encontro mais de uma
pessoa saiu chorando. Havia coisas que L. [integrante da Comissão
Organizadora com mais experiência de militância feminista] nos dizia
“Não, não responde. Não, deixa passar”.
Desta maneira, aquelas que ainda não aprenderam o sentido dos conflitos nesses contextos
com a própria experiência, muitas vezes ficam perplexas diante da encenação dessas
grandes batalhas que são geradas como uma forma de manter uma igualdade de ordem. No
entanto, há outras que entendem que esse conflito é parte da prática feminista e
desenvolvem estratégias para suportar melhor emocionalmente essas pressões, como o fato
de não responder às críticas. As disputas evidenciam a competência pela autoridade e o
prestígio entre as poucas “dotadas de autoridade”. As mais intensas ocorrem, parafraseando
uma militante jovem, entre “as vedetes do feminismo”. Segundo a opinião de uma
feminista, haveria entre as “dotadas de autoridade” uma autopercepção de serem portadoras
de um saber especial e isto geraria disputas entre elas que estão relacionadas com o fato de
se destacarem diante das outras:
E, além disso, estão muito estrelas, algumas são... palavra sagrada (...) se
consideram vanguarda e por isso podem ir dar aula de coisas... eu acho
que há exibições pessoais, vi exibições pessoais. Vi coisas que são
sanguinárias entre umas e outras, que são para exibições pessoais.
P: Outra coisa que lhe perguntava é a questão da antiguidade
R: Que pesa..
P: Parece que sim...
R: Sim, pesa... Pesam os anos, sobretudo porque ali somos portadoras de
alguma história do feminismo.
Digo isso porque também para mim já começa a pesar, que vêm
companheiras e lhe dizem, mas, você que esteve em mais encontros, isso
aconteceu antes? Então você conta um pouco da história do que foi
acontecendo e isso pesa. (Grifos meus)
Considero que o que se coloca em jogo nas brigas entre as “vedetes do feminismo”, além
de possíveis exibições pessoais, é a condição de garantir uma igualdade de ordem, um dos
valores centrais que regula as interações que caracterizam a forma social própria do
feminismo. A palavra de nenhuma das consideradas referências do feminismo pode valer
mais que a da outra sem ameaçar tornar-se representante do resto das feministas nesses
espaços. É importante ressaltar que na plenária não se trata de representar as mulheres nem
se investem esforços em conseguir uma identificação, mas é o lugar onde o que está em
jogo é o feminismo e as feministas. Enquanto nas oficinas qualquer feminista tinha
autoridade para falar em nome de as mulheres, dotando de sentido a noção de igualdade
como equivalência, na plenária nenhuma feminista pode falar em nome das feministas sem
ameaçar a igualdade de ordem.
Por outro lado, nesses contextos as “dotadas de autoridade” devem mostrar, com seus
enfrentamentos, que a individualidade, a autonomia, a igualdade e a horizontalidade são
valores preciosos nos espaços feministas. Como são reconhecidas como portadoras dos
valores e da história do feminismo, devem dar conta dele perante as demais. Sugiro que
numa dinâmica em que a hierarquia só se sustenta mediada por argumentos igualitários, a
auto-afirmação das “dotadas de autoridade” diante das outras também “dotadas de
autoridade” (isto é, suas iguais) reatualiza o valor da horizontalidade como forma
organizativa no desenvolvimento das ações militantes.
3.3 O feminismo: um movimento subversivo
Viendo el tema de si somos transgresoras, nos pareció que era importante
analizar que transgresor o transgresora no es necesariamente quien
subvierte el orden (Menem es transgresor, por ejemplo). Entonces
proponemos cambiar el concepto de transgresión por el de subversión. El
feminismo lo que quiere es subvertir el orden. Entonces somos
subversivas
74
.
Outro ponto que merece ser destacado para pensar o conflito e a necessidade de sustentar
entre as militantes uma igualdade de ordem é a forma com que a maioria relata suas
experiências de se converterem em feministas. Como mostrei no capítulo anterior, uma
74
Extraído do relatório do VI Encontro Feminista da Argentina realizado em 2001.
palavra que aparece freqüentemente nos relatos é “rebeldia”. Na oficina de Aprendizas de
Bruxas pedem às participantes que identifiquem um momento de suas vidas quando
disseram um “não grande” e se reivindica ao final do percurso uma personagem
transgressora em oposição à que acata as regras. A oposição, a rebeldia, a raiva, a
desobediência são, para as militantes, parte da identidade feminista. Embora as militantes
construam seus argumentos de mobilização baseando-se em dados que mostram que as
mulheres são oprimidas e/ou vítimas de um sistema opressor, a autoridade na militância
não se sustenta na autoridade moral da opressão e no sofrimento, mas em uma “atitude
combativa”
75
. A decisão de se aproximar ao feminismo ou a conversão ao feminismo não se
produz a partir de relatos de trajetórias de sofrimento e opressão, mas a partir de uma
ruptura com a realidade observada. Uma militante de 50 anos diz que as mais jovens “...
entram porque se rebelam contra a injustiça, a hierarquização e esse tipo de coisa, ou
entram por problemas pessoais que viveram e o notaram ali, porque a consciência começa
a surgir em algumas delas” (Grifos meus). Embora em alguns casos possam existir
problemas pessoais que influenciem suas decisões, não são os problemas em si mesmos
que se constituem um argumento de autoridade, mas a consciência da injustiça e da
hierarquização.
Durante a realização da plenária do último encontro de mulheres feministas houve uma
forte discussão porque as feministas lésbicas queriam fazer uma ação de rua que nem todas
sabiam em que consistia. Algumas das mulheres da Comissão Organizadora queriam saber
do que se tratava porque consideravam que essas ações repercutiriam, depois, em suas
vidas cotidianas, já que o tamanho da cidade permitia que fossem identificadas como “as
feministas”. A discussão se estendia enquanto escutava atentamente, procurando entender.
Num momento, tive a impressão que, independentemente da troca dos argumentos, com
vozes em tom alterado, e das respostas entre as mulheres, todas estavam dizendo a mesma
coisa. Para mim era claro que existia um acordo que não estava sendo explicitado
76
. Como
75
Aqui, desejo chamar a atenção sobre uma diferença que percebo entre os argumentos utilizados na
construção da causa e os argumentos de mobilização em nome dessa causa. No primeiro caso, as mulheres
são representadas como vítimas, no segundo, trata-se de as mulheres como capazes de subverter a ordem
estabelecida. Sugiro que este ponto é central para compreender a diferenciação entre as feministas e as
mulheres, o que será discutido no capítulo 6.
76
Como mencionei no capítulo anterior, muitas das descobertas de meu trabalho de campo ocorreram em
situações extremamente incômodas e nas quais se evidenciava o desconhecimento das regras desse mundo.
a situação de conflito me produzia grande incômodo e desejava que se resolvesse, propus,
para que o acordo que via pudesse ficar evidente a todas, que levantassem a mão aquelas
que coincidiam com essa decisão. Recebi uma virulenta resposta à minha proposta que me
desconcertou totalmente:
Não vou votar!! Somos suficientemente autônomas e feministas para fazer
sem pedir autorização. Eu não posso me responsabilizar pela
subjetividade da outra, do que acontece com a outra com minha ação. Ela
pediu que à igreja não. Eu lhe disse que não iremos à igreja e com isso
achei que cuidava dela. Mas ela considera que faça onde faça descuido
dela. Disso não me responsabilizo porque deixo de ser a feminista que me
considero. Se lhe incomoda que beije minha companheira, lamento.
Quando terminou a plenária, a mulher que tinha me convidado para o encontro me disse:
“A. exagerou, foi muito grosseira com você”. E a mulher que me respondeu na plenária, um
tanto divertida e simpática (diminuindo a importância do fato) me pediu desculpas. As
desculpas não são comuns quando o que se discute é definido como político, por isso,
considero que suas desculpas foram porque era evidente que eu recém começava e não
entendia grande parte das regras do jogo. Caso contrário, deveria ter entendido que essa
resposta era a maneira em que ela sustentava e demonstrava sua autonomia e quão
feminista era.
Esta história ficou dando voltas na minha cabeça durante muito tempo. A princípio,
interpretei como um erro de propor uma votação em espaços onde as decisões são tomadas
por consenso. Mas, embora essa explicação contivesse certa lógica, não me satisfazia.
Finalmente, depois de um tempo, articulando dados de entrevistas e outras reuniões,
percebi que as situações de enfrentamento não eram, necessariamente, mal vistas pelas
militantes. Inclusive, algumas delas conviviam com muita habilidade com o conflito
(especialmente as de maior experiência na militância) e, o que foi mais importante para
mim, não o consideravam necessariamente como algo negativo. Isso me permitiu ver que o
incômodo com o conflito era mais meu que delas, e esse ponto de vista me levava o tempo
Mas foram exatamente essas situações as que se tornaram ferramentas necessárias para construir um
distanciamento com meu objeto e, sobretudo, com minha própria perspectiva.
todo a buscar suas causas, a pensar como resolvê-lo e por que as feministas não o
resolviam.
Muitas das militantes não se preocupavam em resolver o conflito, já que ele é considerado
próprio do feminismo. Por outro lado, vale à pena destacar que a autoridade moral para falar
em nome de as mulheres que as militantes constroem não é a partir do próprio sofrimento,
mas a partir de uma distância com os próprios interesses (MEMMI, 1992). A autoridade
para a ação se constrói a partir da rebeldia, a rejeição à opressão e à proposta de elaborar
um novo conjunto de critérios para determinar formas de distribuição do poder, a maneira
de exercê-lo, a distribuição de tarefas, o reconhecimento e cumprimento de ‘os direitos’ e a
distribuição de bens e serviços entre outras coisas. Como expressa Barrington Moore
(1978), vencer a autoridade moral do sofrimento e da opressão significa persuadir-se e
persuadir os outros da necessidade de mudar o contrato social e, para isso, é necessária uma
atitude de rebeldia.
As reclamações feitas durante a plenária à Comissão Organizadora estiveram voltadas para
questionar decisões da organização que colocavam em questão valores caros ao
movimento. Assim, surgiu o tema da autonomia, da coerência na militância, das formas
com que foram tomadas as decisões, a visibilidade das mulheres lésbicas, o compromisso
militante, a paixão feminista e a escassa participação. Cito algumas das intervenções
durante a plenária:
M: Quero falar sobre os patrocínios e sponsors, tem que ser cuidadosa
com isto. É questão do coletivo decidir se vamos aceitar patrocínio de
laboratórios [as canetas tinham sido doadas por um laboratório]. Isto
compromete o coletivo feminista. A questão da casa radical [onde foi
organizada a festa] não acho graça. Qual é o critério para manter a
autonomia do movimento? A autonomia é central. Preocupa-me a pouca
participação que é responsabilidade de todas. Ver como fazemos para
chegar a mais mulheres. Depois, o encontro foi bom.
L: Em primeiro lugar, me preocupa que possamos crescer, mas são
momentos difíceis. Me preocupa mais a escassa representação federal que
a quantidade. Colocar em consideração para a próxima comissão. Há
províncias nas quais tinha que abrir debate e estamos muito relaxadas.
C: Estamos de acordo nos papéis que as lésbicas têm que ser visíveis e
depois não as deixamos fazer coisas. Que se expressem como queiram e
as outras temos que agüentá-las. As outras agüentam.
V: Tenho que agüentar ter que esclarecer o tempo todo que o feminismo
que eu entendo não é o feminismo da lei de cotas. Eu sei o que é estar em
um lugar pequeno. Os processos se fazem quando me deparo com a
diferença e para que mude tem que enfrentá-lo. Ação é isso! Eu vou ir
onde quiser e fazer o que eu quiser!
G: O que me preocupa é que eu faço e vou embora e deixo a bola para a
outra.
Este extrato, no qual aparecem algumas das discussões que ocorreram na plenária do
Encontro, é útil para mostrar como nestes espaços se coloca em joga a defesa dos valores
que orientam a prática feminista a partir de uma atitude combativa
77
. Diante de cada
situação que se apresenta como problema, desenvolve-se uma discussão na qual expõem
inúmeras explicações das quais se nutrem todas as participantes. Assim, a formulação de
motivos, a circulação de informação, a reivindicação de valores e a articulação de
argumentos se apóiam nestas interações muitas vezes, necessariamente, conflituosas.
A próxima sede
Os conflitos, sobre os quais foquei minha atenção neste capítulo, não são tudo o que
acontece nas plenárias, embora sejam fatos que se registram com intensidade na memória
das feministas. Quando as agressões eram consideradas muito intensas, a maneira de
colocar os limites ao conflito vinha de feministas menos reconhecidas que argumentavam
com ênfase na dimensão de aprendizagem destes espaços: “Por favor, um pouco mais de
respeito, tem companheiras que é a primeira vez que vêm, ninguém nasceu sabendo”. Ou
ainda colocavam no sentido da igualdade como equivalência acima da igualdade de ordem:
“É meu primeiro encontro e vejo as caras, e todas têm cara de bunda. As outras feministas
também são mulheres. Por favor, meninas, se não somos verticalistas, cuidemos mais”
77
Anthony Oberschall (1973:179) considera que as “idéias de protesto” ou “ideologias de oposição” são úteis
para produzir respostas coletivas: “It is best to think of protest ideas and opposition ideologies as producing a
collective reponse in conjunction with the presence of real or felt grievances, discontents, and suffering. The
ideas serve to explain private wrongs and sufferings experienced by individuals in terms not of private
shortcomings, of accidental events, or of eternal, inalterable status, but in terms of shortcomings of the society
that can be remedied and of particular groups responsible for the collective welfare”.
(grifo meus). Assim, a igualdade de equivalência é utilizada nestes casos para atenuar os
conflitos através dos quais se tenta sustentar a igualdade de ordem. Existe uma espécie de
inversão dos sentidos da noção de igualdade nas oficinas e na plenária. Enquanto nas
oficinas costuma-se falar em nome de as mulheres, na plenária prevalece a posição pessoal:
“vou fazer o que quiser” ou “sou o suficientemente feminista para” ou se fala do movimento
e de “como nos organizamos”. A plenária adquire uma dimensão mais teatral onde
aparecem as mulheres individualmente ensaiando um jogo de forças, à diferença das
oficinas, onde se intervém a partir do discurso individual para falar de as mulheres
78
.
Para as que privilegiam os Encontros como meios de discutir temas de interesse ou tomar
decisões e pretendem sair com propostas concretas de ação, estas reuniões costumam
produzir sentimentos de frustração. Uma militante oriunda da província de Entre Rios
expressou isso durante a plenária desta maneira:
Eu saio daqui muito preocupada. Para mim, o Movimento Feminista se
corporifica nos Encontros. Vou embora sem estratégias. Se houve alguma,
não pesquei. Não fizemos nenhuma análise política da Argentina. Têm
que ter nos encontros uma análise política, senão, falamos e depois o que
fazemos? O recurso econômico com o qual fazermos as coisas é outra
questão que não é uma questão menor. A foto que tenho do Movimento
Feminista é que não vemos o que está acontecendo.
As palavras desta participante receberam alguns aplausos, no entanto, a discussão não se
dirigiu em nenhum momento para os seus interesses. Outra das questões importantes que
foi tratada na plenária, mas sobre a qual não se chegou a um acordo de maneira unânime
sobre nenhuma estratégia, mas foram enunciadas diversas possibilidades, foi quais seriam
as estratégias a se desenvolver para enfrentar “as católicas” no Encontro Nacional de
Mulheres que ocorreria na cidade de Mendoza nesse mesmo ano
79
. A partir do que pude
78
Neste ponto é interessante relacionar as diferenças oficinas-plenária que ocorrem nos Encontros feministas
e a distinção que Palmeira e Heredia (1995) mostram nos povoados do interior do Brasil onde o “tempo da
política”, que se inicia com as eleições, subverte o cotidiano e a política é associada a “divisão”. No caso que
aqui examino, é durante a plenária que são encenadas as oposições e se legitima o conflito. Enquanto no
espaço das oficinas se privilegia a integração através de um diálogo e da troca de argumentos.
79
Os Encontros Nacionais de Mulheres foram criados por feministas em 1986 (abordo esse ponto
detalhadamente no capítulo 6). Com o transcurso dos anos, a participação de mulheres cresceu de modo
notável. De 800 mulheres que participaram em 1986, calcula-se que no Encontro de Mar del Plata realizado
em 2005 havia entre 25.000 a 30.000 mulheres. Diante da crescente participação de mulheres de setores
populares organizados sob formas diversas (“piqueteras”, “mulheres dos povos originários”, sindicalistas,
etc.) as feministas passaram a ser minoria. É assim que no Encontro realizado na cidade de La Plata as
observar, chega-se um acordo e articulam-se as estratégias de ação por fora destes espaços
de discussão coletiva, geralmente entre mulheres que têm afinidade pessoal ou baseada em
laços de amizade. Isto é, são enunciadas nestes espaços, mas no final as ações concretas
acabam sendo resolvidas de maneira prática posteriormente. Assim, em meio a discussões
que vão se perdendo, conversas entre pequenos grupos e alguma pequena ameaça de
dispersão, uma das mulheres “dotadas de autoridade” propõe que se defina a próxima sede.
Não demorou muito em decidirem que seria a Cidade Autônoma de Buenos Aires. Até o
momento, depois de várias reuniões com pouca participação, o IX encontro não foi
realizado. Antes que as participantes se dispersassem totalmente houve aplausos
prolongados em agradecimento às organizadoras.
Conclusões
Neste capítulo elaborei uma diferenciação entre dois sentidos da noção de igualdade;
igualdade como equivalência e igualdade de ordem que, embora apareçam juntos na
prática, existem determinados espaços e momentos em que um é privilegiado em
detrimento do outro
80
. No primeiro caso, a construção da causa pelas mulheres requer a
existência desta categoria abstrata, cujo princípio de classificação baseia-se numa
diferenciação biológica, que ganha sentido nas denúncias de opressão. No segundo, a
adesão a uma visão de mundo que condena a hierarquia e onde a maneira com que se
organizam as interações tem um significado político requer uma organização horizontal.
Utilizei a distinção entre igualdade de equivalência e igualdade de ordem para evidenciar
que os conflitos, que habitualmente aparecem com certa virulência entre as militantes, não
lhes impedem, necessariamente, de realizar um trabalho de mobilização destinado à
enunciação, formulação, reconhecimento e legitimação de temas que elas consideram que
afetam de maneira particular as mulheres. Deste ponto de vista, os conflitos não remetem,
feministas decidiram organizar, entre outras atividades, um grupo que se chamou “Feministas no Encontro” e
propuseram um painel denominado “ABC do feminismo” (Dados extraídos de “Mis impresiones del
Encuentro”, VASALLO, 2001).
80
Em outro contexto e em um registro diferente do que apresento aqui, mas não por isso menos estimulante,
considero importante para continuar pensando sobre os diversos significados da palavra igualdade citar a
discussão que ocorreu na França entre igualitaristas e paritaristas a propósito da Lei sobre a paridade. Ver a
esse respeito o artigo de Rose Marie Lagrave (2000) e a crítica de Eric Fassin (2002).
necessariamente, a uma disfunção do movimento, tampouco a uma contradição de acordo
com uma suposta “solidariedade” que deveria existir entre as mulheres pelo fato de todas
pertencerem a uma mesma categoria classificatória e a maneira “conflituosa” em que as
feministas se relacionam entre elas. O fato de considerar que as formas organizativas têm,
em si mesmas, um conteúdo político requer que as feministas tentem sustentar interações
não hierárquicas. Como mostrei, o conflito se acentua entre aquelas mulheres que possuem
um reconhecimento implícito do resto das feministas, geralmente, por suas trajetórias
militantes e o domínio da linguagem, como referências do movimento. No caso das
plenárias, um dos espaços onde o feminismo ganha entidade como um todo, parece ser que
só o conflito garante entre elas reconhecimento e igualdade de ordem ao mesmo tempo.
Resumindo, a construção de uma igualdade de ordem, no sentido de ausência de
assimetrias, que se garante com a expressão do conflito como possibilidade de integração,
não lhes impede de construir uma igualdade no sentido de pertencimento a uma mesma
categoria necessária para sustentar a causa. Sugiro, inclusive, que é a convivência de ambos
os sentidos o que torna possível a existência do feminismo sob sua forma particular.
Configura-se uma forma de sociabilidade específica onde as hostilidades não apenas
impedem que se apaguem as diferenças, quem até podem ser provocadas deliberadamente
como garantia das constituições existentes, mas que são sociologicamente produtivas e,
graças a elas, as personalidades encontram posições próprias (SIMMEL, 2002:144). Assim,
no próximo capítulo me deterei em analisar as oposições reconhecidas “oficialmente” pelas
militantes que conduzem à análise dos diversos espaços onde se consolidam suas posições.
CAPÍTULO 3
“Os Feminismos”: Oposições, acusações e conflitos
El brujo es el ser del cual hablan aquellos que
tienen el discurso de la brujería y aparece
solamente como sujeto del enunciado.
Jeanne Favret-Saada
Neste capítulo, analisarei a dinâmica de acusações e oposições que configuram o espaço
social do feminismo na Argentina. No capítulo anterior me referi ao fundo de reputações
comum formado pela opinião que umas militantes têm das outras. Nesse fundo comum, que
requer uma atitude de observação muito dedicada e anos de conhecimento das ações
compartilhadas, as militantes se baseiam para argumentar a respeito das acusações e
oposições a partir das quais se regulam suas interações. No entanto, o importante não é
deter-se somente no conteúdo dos enunciados ou tratar de decifrá-los, mas compreender
quem fala e a quem
81
. Da mesma forma que com o conceito de igualdade, analisado no
capítulo 2, a ênfase aqui recairá sobre as modalidades práticas de uso das categorias
reconhecidas nas oposições. As palavras “feminismo”, “feminismos”, “feminista”,
“feministas” e os adjetivos que muitas vezes dentro do espaço da militância as
acompanham, “feministas puras”, “feministas acadêmicas”, “acadêmicas puras”,
“feministas institucionalizadas”, “feministas autônomas”, “lésbicas feministas”, “feministas
políticas” não podem ser compreendidos isolados de quem as utilizam e dos processos no
qual ocorreram. Enquanto para as pessoas que não compartilham estas experiências e não
se formaram nessas situações não alcançam nunca seu significado pleno, para quem as
empregam têm uma alta carga valorativa. As diversas denominações que formam o
81
Favret-Saada (1977) mostra em seu trabalho sobre bruxaria na França que a mesma implica um sistema de
acusações. E chama a atenção de que a única maneira de poder estudar a bruxaria é aceitar estar incluída em
situações onde esta se manifesta e no lugar em que se expressa. Mostra, assim, a impossibilidade de realizar
seu trabalho de campo da posição de “testemunho imparcial” já que a mesma está ausente no discurso da
bruxaria.
feminismo e o convertem ao plural feminismos traduzem à linguagem, sob a forma de
taxonomias, o jogo de oposições a partir do qual as feministas, dotadas de propriedades
sociais específicas parcialmente diferentes, mas em parte também comuns, se reconhecem
entre si. Ao invés de tratar de oposições como impedimento para alcançar uma unidade
ideal no feminismo, como movimento, proponho tentar compreender o sentido que esta
dinâmica tem na constituição desta figuração social. No caso das feministas, não existe
nenhuma “versão autêntica” do que é ser feminista ou do que é o feminismo na qual todas
estejam de acordo, mas um determinado número de histórias que tratam mais ou menos do
mesmo conjunto de elementos, utilizam a mesma linguagem e o mesmo tipo de
simbolismos, mas que diferem umas das outras em detalhes de crucial importância segundo
quem relate os fatos. A divergência entre as versões do que é ser feminista e do que é o
feminismo servem para validar o status e a posição daquelas que a contam. Assim, estimo
que no caso que aqui apresento as contradições são mais significativas que as
uniformidades, já que em cada versão se vislumbra uma tendência a apoiar a autoridade de
quem tem ali interesses implicados (LEACH, 1976:287-8). Em síntese, são denominações
que refletem a situação e a história de uma forma social e, para compreendê-las, é
necessário situá-las a partir de quem as enunciam.
1. O “femistômetro”: qual feminista é a mais feminista?
Uma característica que despertou minha curiosidade e me surpreendeu quando entrei em
contato com as primeiras feministas e comecei a participar de alguns eventos foi a
multiplicidade não apenas de visões sobre o que é o feminismo, mas também de grupos e
organizações. Em conversas que ocorriam em pequenos grupos, por ocasião dos encontros,
jornadas ou atividades recreativas, ouvi algumas mulheres mencionarem suas dificuldades
nas primeiras incursões na militância para definir se eram ou não feministas. Uma delas
relata que quando começou a militar ouvia outras mulheres e não se identificava em
absoluto com o que diziam. Então, conta, “eu pensava, se isso é o feminismo, eu não sou
feminista. Mas logo, falando com mulheres mais experimentadas, elas me diziam que há
tantos feminismos como feministas”. O relato de outra militante durante uma entrevista
também ajuda a mostrar a complexidade que encerra “ser feminista”:
Você pode dizer, por exemplo, num partido político “sou deste
partido político” ou dizer “defendo os direitos humanos”. Tem
maneiras de se comprometer com essa luta e mostrar esse
compromisso e pronto. Aqui no feminismo é mais difícil dizer por
que você é feminista e se é ou não é feminista. Você é feminista
porque o declara? Você é feminista porque está trabalhando com as
questões das mulheres e somente por isso? Você é feminista porque
tem toda uma carreira, uma trajetória e trabalha sobre isso e isso
forma parte de sua prática diária... Como você nunca sabe os graus,
tem muitas mulheres que se aproximam e ainda não se dizem
feministas ou acreditam que não tiveram acesso. Como se fosse
um céu onde a abençoam ou a fazem entrar. Se lembra que havia
uma pergunta, você se considera feminista? [refere-se ao último
Encontro Nacional de Mulheres Feministas. Ver capítulo 1] Acho
que você respondeu que não, que não sou feminista. E tinha
meninas aí que sim, eram feministas porque brigando nas suas casas
pelos seus direitos, os pais ou a mães lhes gritavam: você é
feminista!! Fazem com que se autodefinam que são feministas.
Outras consideravam que por ter 18 ou 19 anos não podiam ser
feministas, por não ter a consciência... É a mesma discussão que
ocorreu com a consciência dos trabalhadores. (Grifos meus)
Débora Tooker (1992) coloca em questão a noção interiorizada de crença, que considera
própria da sociedade ocidental. A autora afirma que outras formas de identidade não
poderiam ser compreendidas em sua complexidade se são analisadas a partir da concepção
de crença. Considerando esta reflexão, como pensar a identidade feminista quando as
próprias militantes são as que ressaltam a importância da “interioridade”, e como opera essa
maneira de conceber a “interioridade” para estabelecer a identidade? Michel Rhum (1993)
critica esta observação de Tooker sustentando que o exemplo da tradição européia mostra
que a exterioridade pode ser importante mesmo quando a interioridade seja ressaltada.
Considero que a observação de Rhum é pertinente para pensar o caso da identidade
feminista. Esta, apesar de estar baseada numa forte interiorização, que se sustenta e se
reforça na noção de indivíduo e de autonomia, como se propõe também como prática
política tem uma dimensão de exterioridade que é tão importante como a primeira, e nesse
sentido ambas devem ser consideradas na análise. Cito, a seguir, vários testemunhos onde
estas diferentes dimensões são anunciadas:
[conta sua primeira viagem a um Encontro Nacional de Mulheres]
Eu já estava atendendo mulheres, não era feminista e não me dizia
feminista, mas foi a primeira vez que passei três dias com um grupo de
mulheres. E então começo a escutar discussões... Adorei que viajava
conosco um operador de câmara que era de um grupo de direitos humanos
e companheiro de uma delas. E tudo bem com o cara na viagem e, quando
chegamos, começamos a ir a algumas oficinas nas quais não deixavam
que ele entrasse. E eu, ao princípio perguntava, por quê? As outras que
vinham me explicavam por quê. E aí eu aprendi muita coisa. Foi como o
primeiro dia clic. (...) Quando volto do Encontro de São Bernardo, decido
me apresentar como feminista cada vez que me apresente. Até esse
momento eu me sentia feminista, mas não me animava a dizer
publicamente, e a partir desse momento, inclusive, decido incorporar o
sobrenome da minha mãe também. Para mim, o Feminista Latino-
americano, tudo que passou ali, ... eu alojei mulheres feministas depois,
aqui em Tandil, que vieram... tudo isso, toda essa cidade das mulheres...
foi como que me convenceu que essa era eu. Que esse plural era eu.
Essas éramos... eu pertencia a esse nosotras.
Ou seja, eu era feminista, sem saber que era feminista. Falemos assim.
Apesar de que a contradição principal era a classe etc., etc. Clara Zetlin,
que se apaixonou pelo filho de Rosa Luxemburgo, e todas elas que para
mim era modelos... modelos ideológicos e depois muuuuuito mais modelo
(...) Em 83 eu já estava totalmente feminista.
Porque eu, há dois anos que me digo feminista. Por uma questão
estratégica eu não me dizia feminista, mas há dois anos me digo feminista.
Era o governo radical, e eu me declarava feminista. Os jornalistas
abriam os olhos assim e lhes dizia, quem defende os direitos das mulheres
e fala da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres é feminista,
e aí tinha que esclarecer que aqui se estigmatizou a palavra. E aí vem todo
meu desenvolvimento no feminismo...
Os testemunhos mostram as distinções que estas mulheres fazem em seus relatos. A
diferença entre ser feminista, sentir-se feminista, dizer-se feminista e estar feminista
82
.
Então, como se estabelece quem é feminista e quem não é? Quais mulheres são
82
A expressão “estar feminista” quase não aparece nas entrevistas. De fato, considero que é mais recente que
as outras expressões e não aparece nos testemunhos das feministas entrevistadas por Silvia Chejter em 1984
que analisei no capítulo 1. É muito provável que esta expressão tenha começado a ser utilizada quando
apareceram críticas às teorias da identidade as advertências sobre os “perigos” da essencialização (por
exemplo, o livro de Judith Buttler, Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity, publicado em
1990).
consideradas, nos espaços de militância, as “verdadeiras” feministas? Na definição de quem
é e quem não é feminista manifestam-se os valores da militância e as formas de fazer
política que as feministas defendem. Trata-se de uma de definição complexa e em constante
mudança na qual se colocam em jogo três dimensões. Uma interior (sentir-se ou considerar-
se feminista); outra que necessita exteriorização (dizer-se feminista), na qual a própria
enunciação é considerada uma ação política; e uma dimensão de reconhecimento externo
(ser reconhecida por outros/as como feminista), que depende das práticas e/ou da trajetória
militante. A seguir, tento compreender as possíveis combinações destas três dimensões na
definição do “ser feminista”. Uma mulher pode:
- ser considerada feminista pelas demais pessoas, sem se reconhecer pessoalmente
como tal; se diz dela que “não se diz feminista, mas tudo o que faz e diz
demonstra que sim, ela é”.
- dizer que é feminista e, no entanto, não ser considerada feminista pelas demais
pessoas, especialmente por outras militantes; “diz que é feminista mas, na
realidade, não é”, considera-se que não manifesta a verdade, já que suas
declarações não coincidem com práticas que as outras militantes consideram
próprias do feminismo.
- considerar-se feminista e não dizê-lo publicamente; se considera feminista, mas
não diz publicamente pelo custo social ou por uma estratégia de inserção em
determinados âmbitos.
- considerar-se a si mesma, ser considerada pelos demais e se dizer feminista; este
seria um caso exemplar que reúne as três dimensões. Quando perguntei a
algumas militantes se manifestam publicamente que são feministas e por que,
responderam “considero que é parte do meu compromisso” ou “porque é minha
identidade política”.
Todas estas variantes que definem o “ser feminista” são utilizadas no momento de acionar
uma dinâmica de acusações que marca as adesões, oposições e conflitos que configuram e
dão existência ao que Boltanski (1982) denomina a “personalidade coletiva” quando se
refere à formação da categoria “les cadres” na França. Ao mesmo tempo, é o
suficientemente ampla para abrigar muitas formas possíveis de se vincular à categoria
feminismo. Aqui, adquire pleno sentido a proposta de Brubaker (2001:75) de substituir o
termo “identidade” por “identificação”, visto que este último exige especificar quem ou
quais pessoas identificam e, por outro lado, não pressupõe que uma identificação tem como
conseqüência necessária a similitude interna, a “grupalidade” e a distinção.
Para o caso que aqui analiso a insistência e a preocupação em determinar graus no ser
feministas, deu origem, entre as militantes, ao neologismo “femistômetro” que demonstra,
com certa ironia, a intensidade e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de definir quem é
mais feminista. Esta discussão deixa evidente a existência de uma categoria que elas
contribuem para criar e na qual, ao mesmo tempo, se baseiam para construir sua identidade.
A seguir, desenvolverei as oposições mais visíveis que configuram atualmente o espaço do
feminismo e que considero que estão relacionadas com as propriedades sociais destas
mulheres, as posições que determinam suas inserções sociais específicas e, ao mesmo
tempo, com as oposições dentro do feminismo latino-americano. As acusações
interpretadas nestes Encontros internacionais são recriadas, depois, na Argentina a partir de
lugares como publicações, onde as feministas dão testemunho e opiniões pessoais do que
aconteceu. Assim como a divulgação de determinados conceitos têm referências
internacionais (reuniões e encontros), algumas acusações também têm
83
.
2. Sobre as oposições e categorias de acusação
Ante todo debo realizar una aclaración muy importante:
para mí el movimiento feminista se compone de organizaciones feministas
propiamente dichas, feministas insertas en organizaciones sociales de mujeres,
en los partidos políticos, en los sindicatos, en la academia
y también en los espacios institucionalizados.
Cecilia Lipszic
“Los Feminismos en la Argentina (1983-2004)”
Para começar, analisarei as opiniões que aparecem com maior força no espaço do
feminismo para, logo, situá-las como acusações e/ou auto-adscrições. Só para organizar o
relato e situar o leitor/a, mencionarei primeiro o ponto de vista das feministas que se
83
Embora ao longo de toda a tese apareçam menções à dimensão internacional, tratarei deste ponto com mais
detalhe no próximo capítulo.
autodenominam autônomas. As categorias são: “feministas autônomas”, “feministas
institucionalizadas”, “feministas acadêmicas” e “feministas políticas”. Antes de continuar é
necessário dizer que, na dinâmica de oposições, quem utiliza as categorias de acusação em
primeiro lugar reconhece as outras mulheres como feministas e as definem a partir de uma
linguagem basicamente taxonômica que expressa os conflitos que acompanharam a
formação do espaço do feminismo. Trata-se da instituição de um sistema de lugares a partir
dos quais as mulheres dialogam e interpretam o feminismo. Nos casos que observei,
quando as feministas utilizam estas oposições como argumentos de acusação, não o fazem
como uma forma de insulto ou desaprovação pessoal. Estas denominações são utilizadas
habitualmente no plural (as acadêmicas, as mulheres dos partidos, as feministas puras, as
acadêmicas puras) e funcionam como um mapa de classificações no qual todas elas podem
ser situadas
84
. Como não se trata de atributos pessoais, nem de categorias que encontrem
uma expressão pura em situações empíricas, na prática, algumas mulheres transitam através
destas fronteiras demarcadas a partir desse ordenamento simbólico.
As categorias que configuram a dinâmica de oposições se referem ao espaço social onde as
mulheres inserem sua prática militante. Em cada um deles é possível identificar uma ou
várias mulheres que são reconhecidas por outras militantes mais jovens ou com menor
trajetória, como referências ou autoridades. Também é comum que as que se constituem
como referências de um desses espaços transitem pelos demais, visto que, como mencionei
anteriormente, estas categorias não representam atributos pessoais, mas adquirem sentido
no jogo de oposições. Numa entrevista realizada, ao tratar do tema das “autoridades” nos
Encontros Nacionais de Mulheres Feministas, uma militante considerava que, além da
dinâmica da horizontalidade que se tenta manter, há autoridades “cacicados”
85
. Quem são
essas autoridades?
... viu-se claramente com o Encontro de feminismo. De repente,
uma coisa era Magui e Marta falando e outra coisa era María José
84
Nunca ouvi que alguma destas acusações seja utilizada no singular e, inclusive, nos casos em que estas
classificações foram utilizadas para se referir a uma só pessoa, a formulação era a seguinte “mas acho que ela
é das feministas puras”.
85
É importante, neste ponto, esclarecer que este testemunho é o mesmo que foi citado no capítulo 2, sob o
subtítulo “Autoridade e reconhecimento”. Ali me refiro à oposição que esta mulher ocupava na militância;
sendo externa ao lugar de “referência do movimento” estava mais disposta a dar exemplos de “autoridades”
dentro do espaço do feminismo.
Lubertino e outra coisa era Zulema Palma e outra Dora Coledesky.
E outra coisa se estivéssemos em outro Encontro poderia ser...
(interrupção)
Ah, e outra da qual não lhe falei que também é uma referência
importante, que para mim foi uma referência importante, é Martha
Rosenberg. Martha para mim é palavra que ouço, mas é
complicada. Não posso levar qualquer pessoa para escutar um
discurso de Martha Rosenberg. Diana Maffia é outra, são pessoas
que falam e têm uma ... Diana é mais acadêmica.
As mulheres mencionadas acima pertencem a âmbitos diversos a partir dos quais se
enunciam as oposições que constituem o feminismo. No entanto, há uma característica
comum a todas elas: serem reconhecidas como “autoridades” ou “referências” por outras
militantes
86
. “Magui e Marta” são Margarita Bellotti e Marta Fontenla, advogadas,
fundadoras de ATEM, um dos grupos autodenominados autônomos. María José Lubertino é
advogada, fundadora do Instituto Social y Político de la Mujer (ISPM), foi congressista
constituinte da Cidade Autônoma de Buenos Aires pela Unión Cívica Radical, deputada
nacional e é considerada pelas autodenominadas autônomas uma das mulheres dos
partidos. Atualmente é presidente do Instituto Nacional contra la Discriminación, la
Xenofobía y el Racismo (INADI). Zulema Palma é médica ginecologista, uma das
fundadoras de Mujeres al Oeste, organização não governamental que trabalha com
“mulheres de base” e em articulação com o município de Morón. A ONG à qual pertence
recebe alguns subsídios de organizações internacionais e faz parte de redes como a Red de
Salud de las Mujeres Latinoamericanas y del Caribe (RSMLAC). Mas, ao não ser ela,
como pessoa, que faz parte de uma rede internacional, e como participa ativamente de
encontros, jornadas e manifestações de rua, poderia, em princípio, se arrogar no direito de
ser parte do feminismo autônomo e ser considerada pela maioria também como autônoma
87
.
Dora Coledesky é advogada e esteve exilada na França na época do governo militar, onde
86
De forma similar ao que mostra Boltanski em sua análise de “les cadres”, os casos exemplares que vêm
espontaneamente à memória e que servem de pontos de referência, constituem uma representação estilizada e
esquematizada. As militantes mencionam espontaneamente exemplos paradigmáticos pertencentes a
diferentes categorias, evitando pensar os casos limite situados nas margens. Estes exemplos se ajustam ao
produto do trabalho de representação realizado no grupo (BOLTANSKI, 1982).
87
Neste ponto, simplifico o uso das categorias próprias da dinâmica de oposições para poder traçar um mapa
inicial. Trabalharei tais categorias considerando sua complexidade nos itens seguintes. Quanto à relação entre
a dinâmica de oposições e a dimensão internacional, será aprofundada no próximo capítulo.
participou de grupos feministas. É uma das mulheres de maior antiguidade no movimento e
reconhecida pela maioria por “seu compromisso com a causa da legalização do aborto”
88
.
Martha Rosenberg é psicanalista, integrante do Fórum pelos Direitos Sexuais e
Reprodutivos e outra das porta-vozes da causa pela legalização do aborto. Diana Maffia é
filósofa e professora da Universidad de Buenos Aires, integrante do Instituto
Interdisciplinario de Estudios de Género.
Assim, junto com a constituição de uma história do feminismo foram sendo construídos,
também, a partir dos espaços onde as mulheres inserem sua militância, exemplos
destacados de feministas e feminismos com perfis diversos. Se alguma destas referências
tentasse se erigir como representante do feminismo, isto sempre seria em detrimento de
outras. As oposições entre as representantes destes “bons exemplos” podem ser entendidas
como uma tentativa de se constituir como sendo ao mesmo tempo iguais e diferentes entre
si. Iguais, no sentido de que qualquer delas teria tanta autoridade como as outras (igualdade
de ordem), mas diferentes já que inserem sua militância em âmbitos que requerem
propriedades sociais e de lógicas de inserção totalmente diversas. Como expressei no
capítulo anterior, as hostilidades são produtivas enquanto impedem que se apaguem as
diferenças e também graças a elas as mulheres encontram posições próprias.
Nas próximas páginas tento mostrar como a noção de autonomia, referente ao feminismo
como movimento (não me refiro, neste caso, à autonomia de cada mulher), começa a
adquirir importância até tornar-se uma categoria que integra o sistema de oposições. Logo,
tomando como exemplo o que ocorreu no VII Encontro Feminista Latino-americano e do
Caribe realizado no Chile, analiso como operam as categorias de acusação na prática.
2.1 Feministas “institucionalizadas” x feministas “autônomas”
Na enquete feminista realizada por Silvia Chejter em 1984 (TRAVESÍAS 5, 1996) o termo
autonomia é escassamente mencionado nos testemunhos das feministas entrevistadas,
quando se referem ao feminismo. Dado que em 1983 foi o início de um novo período
88
Numa nota publicado no sítio web Artemisa, em novembro de 2005, a jornalista Sandra Chaher descreve-a
da seguinte maneira, sob o subtítulo Camino al exilio y al feminismo, “Llegó al feminismo a través del
marxismo, y al movimiento feminista argentino después de haber militado con las francesas. Estos pasajes
determinaron su claridad y amplitud de pensamiento. Esto, y el haber transitado siempre por el centro y los
márgenes a la vez, otra sana y creativa estrategia.”
Sítio web: http://www.artemisanoticias.com.ar/site/notas.asp?id=50&idnota=1008
democrático, no item dedicado a “A Política” a maioria das opiniões se referem às
diferenças entre a política feminista e a política dos partidos. Não aparecem oposições
claramente definidas, com exceção de um dos testemunhos onde ocorre uma definição de
feminismo. Mas, nesse momento, as diferenciações dentro do feminismo eram outras:
El feminismo es un movimiento con diferentes áreas de acción: habría un
área del feminismo reformista, más vinculado a la política tradicional,
centrado en la lucha por reivindicaciones, o sea, por obtener reformas
legales, laborales, que mejoren la situación de la mujer dentro de este
sistema. Por otro lado, está el feminismo radicalizado con una acción
diversa: los estudios de la mujer en el campo académico, los grupos de
concientización, la difusión de los cuestionamientos más radicales, la
creación de espacios autónomos y alternativos de las mujeres , el trabajo
en la sexualidad, la vida cotidiana, las pautas culturales, el
cuestionamiento a los roles sexuales. Y habría una tercera posibilidad,
asumida por feministas que militan en los partidos políticos, porque
piensan que hay que modificarlos desde adentro y luchar desde allí por la
cuestión de la mujer. (TRAVESÍAS 5, op.cit.:73, grifos meus)
Alguns anos mais tarde, a preocupação pela autonomia começaria a adquirir força até se
tornar uma categoria classificatória para as feministas. Está presente na enquete realizada
por Chejter em 1996, onde reuniu feministas em dois grupos de trabalho e discutiram sobre
temas similares aos abordados em 1984. Os resultados foram publicados em Travesías 5
(op. cit.) sob o título “Ser Feminista en los 90”. Por um lado, uma mulher que também
milita num partido político declara que percebe uma melhor articulação entre movimento
autônomo e partidos políticos: “Ahora siento que esto está mucho más tolerado, que una
pueda estar no sólo en el movimiento autónomo”. A resposta da integrante de um grupo
autodenominado autônomo foi a seguinte:
…tengo la percepción contraria a la de M.J. Nosotras teníamos una posición
mucho más optimista respecto a las relaciones entre feministas autónomas y
feministas de partidos políticos en los años 83 y 84 que ahora. Y no creo que
esto sea un problema de edades, sino de políticas. Teníamos una concepción
más reformista y más gradualista. Me refiero a nuestro grupo no al conjunto
de feministas autónomas. (TRAVESÍAS 5, op.cit.:104)
Por outro lado, também aparecem opiniões onde estas mulheres falam da
“institucionalização” e a consideram prejudicial às reivindicações feitas pelo feminismo,
nestes caso, o que elas consideram autônomo:
Veo un proceso de separación del mundo público de lo privado; esa
separación contra la que luchábamos. Eso está pasando a todo nivel,
sobre todo a las feministas que están en partidos políticos y en otras
instituciones (…) Pasa en los partidos políticos y en lo que ahora se llama
‘lo institucional’, lo único que se pide son reivindicaciones y se ha
perdido el viejo slogan del feminismo ‘lo personal es político’…
(TRAVESÍAS 5, op.cit.:106, grifo meu)
Também se menciona a não discussão sobre uma ética do financiamento como um
obstáculo para uma política feminista:
El problema es que con los grupos de mujeres feministas no se puede
debatir. Por ejemplo, no se habla del financiamiento, de la dependencia
del financiamiento, no se rinden cuentas, es un tema tabú. (…) No
todos los financiamientos son iguales, ni todas las ONGs son iguales, pero
no podemos discutir sobre eso. (TRAVESÍAS 5, op.cit.:114, grifo meu)
A intensificação da oposição entre autônomas e institucionalizadas ou entre utópicas e o
feminismo do possível teve como resultado, a partir de um determinado momento, que a
palavra feminismo começasse a ser utilizada pelas militantes no plural: feminismos.
Francesca Garagallo (2002:106) em seu artigo El Feminismo Múltiple: prácticas e ideas
feministas en América Latina situa esse momento no ano de 1993 durante o VI Encontro
Feminista Latino-americano e do Caribe, onde considera que “la polarización de las
diferencias sobre los aspectos éticos de la política de las mujeres (y de su financiamiento)
llevó a un debate sobre la ‘verdadera’ identidad feminista latinoamericana”. Mas foi no VII
Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, realizado no Chile em 1996, onde
estourou a oposição entre as mulheres que trabalhavam em ONGs e estavam inseridas em
redes internacionais e aquelas que se identificaram com a denominação de “autônomas”
89
.
No que as militantes descrevem como um clima de agressão que causou estupor, as
primeiras foram acusadas de “institucionalizadas” por aquelas que se denominaram
“autônomas”. As agressões destas últimas estiveram dirigidas a Gina Vargas, acusada de
“vendida ao imperialismo”. Por sua vez, a referência das “autônomas”, acusadas de
89
Depois de 1996 é comum encontrar em publicações feministas argentinas a palavra feminismos para
descrever a militância. Alguns exemplos são o artigo de Marcela Nari (1997) “En busca de un pasado:
revistas, feminismo y memoria. Una historia de las revistas feministas, 1982-1997”, no qual incorpora um
item denominado feminismos. Outros exemplos são o artigo de Martha Rosenberg (2004) “ONGs, feminismos
latinoamericanos y movimientos sociales a 10 años del Cairo” e o capítulo de Cecilia Lipszyc “Los
feminismos en la Argentina (1983-2004)” incluído no livro Perfiles del Feminismo Iberoamericano
(FEMENÍAS, 2005).
“utópicas” por quem reivindicava um “feminismo do possível”, era Margarita Pisano. O
que ocorreu no Chile em 1996 foi o tema de duas publicações feministas na Argentina.
Brujas (Ano 16, No. 24), revista da ATEM, publicou oito artigos referentes ao tema. Entre
eles, um de Margarita Pisano, identificada com as autônomas e uma entrevista a uma
militante do Movimiento Feminista Autónomo de Chile. Feminaria (Ano X, No. 19),
segundo relatam as editoras, convocou “uma reunião ampliada entre feministas com
diferentes olhares que representam diferentes posturas refletidas no Encontro” e publicou as
versões de cinco mulheres que participaram, mais a de Margarita Bellotti (ATEM), que não
aceitou participar, mas enviou suas opiniões por escrito. Transcrevo, a seguir, alguns dos
argumentos de umas e de outras:
Hasta Chile, el feminismo latinoamericano y caribeño tenía una voz
“oficial”: la que lideró el proceso hacia Beijing, la que tiene en sus manos
los medios de comunicación feministas más importantes y los mayores
recursos, la que se arrogó representatividades nunca otorgadas. Un
feminismo cuya estrategia fundamental es el acceso a las instituciones
políticas y económicas nacionales e internacionales (incluida la Banca
Multilateral: Banco Mundial, Banco Interamericano de Desarrollo), la
consecución de cuotas de poder en las mismas y las reformas legales.
Toda voz disidente era descalificada (y lo sigue siendo) por utópica, por
imposible, nostálgica. Este proceso, que se viene desarrollando desde hace
varios años, fue creando fuertes tensiones, que se expresaron en
Cartagena. El Encuentro de Chile permitió que esas otras voces se
escucharan. Ninguna fue acallada. Incluso aquellas que, en su momento,
boicotearon el Encuentro y hasta propusieron un cambio de sede, tuvieron
espacio.
El chupetín de fondos no autogenerados es un vehículo que puede –y a
veces lo logra- hacer transitar por la vía rápida hacia la concesión. Sin
embargo, hay casos –y son muchísimos- donde esto no solamente no
ocurre sino que la entidad se convierte en todo un organismo autónomo
que extiende la mano a otras personas y organizaciones. (…) En fin, el
grito violento junto con la violencia de autoproclamarse autónomas
mientras, para ellas, las otras no solo no éramos autónomas sino
traidoras, me sigue resultando preocupante. Emplear un método usado
desde siempre contra las mujeres para llamarnos la atención me parece
inaceptable. Sin embargo me llamó la atención. Eso si, como pocas cosas,
me llamó la atención. ¿Qué hacen los movimientos feministas
latinoamericanos con ese grito? ¿Nos vamos a escuchar mutuamente?
(FEMINARIA, Ano X, No. 19, grifos meus)
Estes testemunhos ajudam a mostrar que os relatos não questionam a veracidade dos fatos
em si, mas que as feministas utilizem as acusações para discrepar sobre incidentes que se
supõem cruciais para sancionar o status das demais. Assim, a partir das categorias de
acusação, baseadas em oposições, desafiam as deduções que surgem em cada caso e fazem
um relato onde validam sua posição e negam ou desacreditam os princípios de acusação das
outras.
A constituição da mulher como tema e sua internacionalização a partir de ações vinculadas
a organismos de financiamento não é possível sem o surgimento de profissionais
especialistas em diversos países do mundo. Isto provocou um processo de elitização no
espaço do feminismo onde algumas mulheres com determinadas competências tiveram
acesso a lugares e recursos e outras não. Modificaram-se, assim, os espaços de poder e isto
levou ao questionamento de quem ocupava esses lugares:
El liderazgo alcanzado por Gina [a feminista acusada de
“institucionalizada”] en los últimos años generó, sin dudas rivalidades,
envidias que obturaron el diálogo y la posibilidad de confrontación en el
plano de las ideas. (FEMINARIA, op. cit:32)
Entre os argumentos levantados para relativizar as acusações a Gina Vargas e colocar um
limite nas acusações, esta feminista cita a causa que teria levado Gina a ocupar alguns
destes lugares “de poder”. A mesma tem sua origem na oposição do feminismo com “outras
mulheres”, diante das quais as feministas deveriam minimizar essas diferenças e
permanecerem unidas:
Quizá vale recordar que Gina ocupó el cargo de coordinadora del Foro de
América Latina, a propuesta de numerosas feministas –fundamentalmente
chilenas- quienes preocupadas por la designación de una mujer vinculada
a Pinochet, tomaron la iniciativa y con el aval de un gran número de
organizaciones de América Latina se largaron a dar batalla en N.U. y
lograron el objetivo: Gina fue designada. Se puede estar de acuerdo o no
con participar de Beijing, pero cabe reconocer que no es lo mismo que
la coordinación del Foro esté a cargo de Gina Vargas que una mujer
de la dictadura. (FEMINARIA, op. cit:32) (Grifos meus)
Além da oposição gerada sobre o financiamento internacional, a maioria se refere a vozes,
palavras, gritos, diálogos, pactos, tradição. Os fatos e o vocabulário coincidem; já as
versões variam e se opõem. Enquanto algumas mulheres dizem que os pactos se romperam,
outras interpretam que “quando os pactos se rompem, os códigos se reconstroem e a
palavra continua vigente na arena política”. Para algumas, o conflito foi extremo e não
possibilitou o diálogo, para outras foi exatamente o conflito que habilitou que “outras vozes
fossem escutadas”. De maneira similar às plenárias dos Encontros Nacionais de Mulheres
Feministas, às quais me referi no capítulo 2, o evento do Chile mostra o conflito como uma
maneira de tentar sustentar formas igualitárias em espaços hierarquizados. As diferentes
versões sobre o Encontro do Chile que se enfrentam e se opõem são uma das evidências.
Como expressa Leach (1976), dado que em qualquer sistema social, por estável e
equilibrado que seja, existem facções opostas, devem existir também distintas versões que
validem os direitos concretos das referências dos diferentes espaços.
Viver no confronto, uma particularidade Argentina?
O impacto do que ocorreu no Encontro do Chile parece não haver tido a mesma força na
Argentina como em outros países. Durante uma entrevista, uma feminista que participou
deste Encontro menciona o que ocorreu no momento em que falávamos das rupturas dentro
do espaço do feminismo:
P: O que acontece com as rupturas?
R: Esses são os redutos
P: Essas pessoas, quando ocorre a ruptura, saem do feminismo?
R: Não. Esses são os redutos e as miserabilidades.
P: Mas, são um problema para o movimento as rupturas?
R: (silêncio) Olha, felizmente na Argentina, quando foi o Encontro
Feminista de Cartagena no Chile, onde vieram as bolivianas com o cartaz
Gina Vargas traidora, vendida ao imperialismo, coisas horríveis. E um dia
perguntei: essas meninas que estão em todos os Encontros e encontro com
elas em todos os lugares, vejo-as em Nova York, vejo-as... não têm
subsídios? Se são tão autônomas, como conseguem a grana para as
viagens? Ah, porque o pai de uma delas é muito rico. Mas não tem como
justificar! Pede-se à Fundação Ford ou ao tio rico que é o dono das minas
e não sei que coisa. Qual é a diferença? Onde está a autonomia? Essas
foram as que, junto com a Pisano, que depois a casa chilena, com a queda
de Salvador Allende, recebia internacionalmente um milhão de dólares
anuais, a casa que dirigia Margarita Pisano. Depois de receber um milhão
de dólares de todo o mundo se declara autônoma! Vai à merda!! Disse a
ela assim, como estou dizendo para você. Disse, Margarita, você, porque
agora tem 70 anos, então vai à merda. Esteve recebendo um milhão de
dólares anuais todos estes anos e não era autônoma. Eu não acredito na
Margarita Pisano, entende? Então, em Cartagena o que se discutiu era a
autonomia do movimento feminista ou as institucionalizadas.
P: Que, aqui na Argentina, também está...
R: Aqui não houve tanta ruptura, felizmente. Mas no Peru foi gravíssimo
isso, no Chile isso foi muito grave...
P: Se separaram?
R: Siiiim. Aqui, tudo foi muito light. Essa briga foi uma brisa, que durou
um ano e depois ninguém mais deu bola para ela. Mas, temos um
femistômetro? Vamos ver quem é a mais...?! Por coincidência, as que
levam essa linha são as que têm profissões liberais e não necessitam estar
no Estado. (Grifos meus)
Coincidente com a interpretação do testemunho citado, onde se menciona que o conflito do
Encontro do Chile teve pouco impacto na Argentina, uma das participantes da discussão de
Feminaria utiliza em sua interpretação como argumento o que ela considera “diferenças
entre as feministas argentinas e as chilenas”, reivindicando a posição das argentinas para o
conflito e o confronto. Assim, considera que
Quizá para las argentinas, acostumbradas al conflicto y la confrontación
pública, nos es difícil aceptar que no haya sido posible encontrar otra
manera de resolver el conflicto con un costo menor para todas en aras de
defender el espacio de los Encuentros como espacios democráticos. (…)
Para quienes “envidiamos” la cultura política chilena del “pacto”, el
Encuentro nos hizo pensar que “no todo lo que brilla es oro” y que
quizá, vivir en la confrontación no es tan malo como parece. También
estimula y ayuda a crecer y que lo importante es preservar los espacios y
aceptar las diferencias. El resto – consenso y acuerdo – son un resultado
(FEMINARIA, 1997:31) (Grifo meu)
Este testemunho e o anterior mostram que, ao mesmo tempo em que os sistemas de
oposição, a partir dos quais as feministas situam seus pontos de vista estão atravessados por
discussões internacionalizadas, existe uma especificidade do feminismo local. Segundo o
relato de Marta Fontenla (2002:71-2), quando foi realizada a terceira Assembléia de
Mulheres Feministas organizada em La Plata pelo grupo “Las Azucenas”, em 1995,
“Era la época de la intervención directa de la AID en el feminismo
latinoamericano y de organización de los centros focales dependientes de
la misma para participar de la cumbre de Beijing; de consolidación de
institucionalización del feminismo y de la incorporación de muchas
feministas a los organismos multilaterales planteándose el problema de las
voces que hablaban en nombre de todas las argentinas en esos lugares”.
Mais adiante, relata que o debate sobre a autonomia e a institucionalização não pôde ser
falado coletivamente até Córdoba 2000, onde se explicitaram as diferenças. Assim, embora
a oposição autônomas/institucionalizadas tenha marcado importantes fraturas nos outros
países latino-americanos, parece que não ocorreu o mesmo na Argentina, onde o conflito é
encenado e suportado dentro de certos limites ou se evita o encontro e, desta maneira, a
ruptura. Assim, embora confronto e conflito possam ser consideradas características
próprias do feminismo, como mostrei anteriormente, também é interessante pensar como
estas características operam nas relações entre as feministas de cada país
90
.
2.2 Feministas políticas, mulheres dos partidos?
Aqui considero pertinente retomar a epígrafe deste capítulo, onde Favret-Saada menciona
em sua análise sobre a “bruxaria” na França que o “bruxo” só aparece como tal como
sujeito do enunciado. A partir do meu trabalho de campo não consegui identificar uma
categoria unânime a partir da qual outras feministas, que não militam em partidos políticos,
referem-se àquelas que sim o fazem. Ouvi falar das “mulheres dos partidos” (mas em outro
contexto isto poderia se referir também a mulheres militantes de partidos políticos que não
se consideram feministas, mas que vão aos Encontros Nacionais de Mulheres), “as que têm
dupla militância”, ou simplesmente “as políticas”. Em alguns casos, também pode se
chegar a discutir se são ou não verdadeiramente feministas, já que pertencem a “estruturas
patriarcais”. Assim, neste caso, de maneira muito clara, as categorias de acusação só
existem como sujeito de um enunciado, dependendo seu significado de quem o diz, em que
contexto e dirigido a quem.
Em seus relatos, as mulheres que se autodenominam feministas e políticas coincidem em
que não é o fato de serem feministas o que lhes permitiu ocuparem cargos no Estado, mas
sua militância nos partidos políticos e/ou a rede de relações ali construídas. Farei referência
a mulheres que têm, atualmente, cerca de 60 anos e que participaram de espaços
governamentais como funcionárias ou assessoras. Suas trajetórias são variadas. Algumas
foram militantes do Partido Comunista e depois, com a democracia, aderiram ao Partido
90
Embora não desenvolva esse ponto aqui, considero pertinente traçar uma conexão com o ensaio de
Guillermo O’Donnell (1997) “¿Y a mí, qué mierda me importa? Notas sobre sociabilidad y política en la
Argentina y Brasil”, onde analisa as diferenças entre a sociedade argentina e a brasileira para tratar a
igualdade e a hierarquia. Também é importante citar o artigo de Elizabeth Borland (2004b) “Cultural
opportunities and tactical choice in the Argentine and Chilean Reproducitve Rights Movements” que compara
as formas de oposição à Igreja Católica dos movimentos pelos direitos reprodutivos no Chile e na Argentina.
Segundo a autora, enquanto as estratégias das ativistas chilenas são mais cautelosas, as das argentinas são
mais de confronto.
Radical. Outras passaram por diversos partidos de esquerda e militaram depois no Partido
Intransigente. Outras declararam ter pertencido a um “grupo de mulheres peronistas”. Por
outro lado, é muito comum encontrar entre as feministas ex-militantes de partidos de
esquerda que abandonaram sua militância em partidos políticos, aquelas que consideram
que sua identidade política atual é o feminismo. A seguir, cito um testemunho onde o
feminismo e a militância em partidos políticos aparecem como posições excludentes:
Una de las cosas que siento es que debido al feminismo no estoy
militando en política partidista. Tuve que elegir (…) Para una política su
práctica feminista tiene que enganchar con la práctica partidaria, para
quienes no militamos en partidos la política feminista es diferente.
Hablamos de cosas diferentes cuando hablamos de política.
(TRAVESÍAS, op.cit.:104)
Para as que ainda militam em partidos políticos não é a militância no feminismo e o ser
feministas o que as legitima e as dota de autoridade nos espaços onde prima a lógica da
política partidária, mas sua militância nos partidos e seu capital de relações políticas
partidárias, de amizade e confiança e/ou familiares.
P: Qual a sua profissão?
R: Sou socióloga, formada na primeira pós-graduação especializada em
gênero da Universidade de Buenos Aires. (...) Mas trabalhei muito, tenho
uma experiência importante em matéria de políticas públicas, sociais e
mais na área de administração pública. Então, bem, é isso. Sou socióloga
e sempre tive um pé na profissão e a vida na política (...) Posso ser muito
feminista, a primeira feminista, a primeira... mas sempre tenho que
me legitimar politicamente, porque sempre... bem, é um rolo que nós,
feministas, temos. (Grifo meu)
A partir de sua inserção, estas mulheres tentam introduzir nesses espaços mudanças de
acordo com as propostas do feminismo. Como outras formas de militância, que procuram
modificar as normas sociais (e onde as decisões não dependem da aceitação de um grupo
em sua totalidade para serem levadas a cabo), na maioria dos casos, as mulheres voltam a
se envolver em seus âmbitos de inserção social. Estes variam, dependendo das
características de cada militante, da posição que ocupam na estrutura social e a partir da
qual tratarão de desenvolver suas ações e modificar seu entorno (REYNAUD, 1980).
Brubaker (2001) utiliza os temos “autocompreensão” e “localização social” para tratar de
uma ação subjetiva e não instrumentalizada da identidade. Trata-se de uma subjetividade
situada onde se coloca em jogo a concepção de quem a pessoa é, de sua localização no
espaço social e da maneira com que é possível se preparar para a ação. Outra das virtudes
do termo autocompreensão, tal como o define o autor, é que enquanto a “identidade”
implica uma similitude no tempo ou entre as pessoas, a palavra autocompreensão pode ter
tanta relação semântica com a similitude como com a diferença. A seguir, cito dois
testemunhos de feministas que relatam as mudanças que impulsionaram nos espaços sociais
onde tinham possibilidade de agir. Um caso, como militante de um partido político, e no
outro, como funcionária do governo:
Em 1983 eu estava totalmente feminista. Fizemos o primeiro congresso de
mulheres do Partido Intransigente (PI). Que não era a democracia, ainda
não. Ali entramos no index. Porque [no jornal] La Nación saiu grande
assim: o PI pede a legalização do aborto e do divórcio.
P: Eram muitas?
R: Quinhentas. Porque, como era o primeiro congresso de mulheres de
partidos (...) Eu continuo no PI, militando na Área de Mulher, e aí
formamos a Multisectorial de la Mujer na Capital Federal.
P: Em que ano foi isso?
R: Acho que em 83. Onde tinha políticas, sindicalistas, feministas puras
(...) Criamos a Multisectorial e criamos os Encontros Nacionais de
Mulheres. Isso, acho que foi em 86, na volta de Nairobi. Como as
conclusões de Nairobi era criar aqui encontros nacionais de mulheres, não
apenas de feministas, e este é o único país que continua fazendo.
(...) [Durante o governo de Alfonsín] ... comecei a criar uma coisa que
chamei Conselho Constituinte, eu dizia que na transição não havia política
pública e que a política se construía com a sociedade. Então, para
construir isto, eu convoco um Conselho Constituinte, que a burocracia não
deixou colocar Constituinte. Então disse..., gente do mundo acadêmico,
feministas e diria que esse papel que o Estado cumpriu foi o que ajudou a
que se constituísse um monte de organizações que não havia na ditadura.
Fomos um fator organizador do movimento social a partir do Estado.
Na oposição entre feministas autônomas e políticas coloca-se em jogo um dilema,
amplamente discutido entre as feministas, definido como a “dupla militância”. O problema
que se levanta é onde está a lealdade das mulheres, em seu pertencimento partidário ou na
solidariedade de gênero? Como mostrei no ponto três do capítulo um, a palavra patriarcado
foi outro dos divisores entre autônomas e políticas
91
. Num testemunho citado
91
No capítulo I citei um texto de Francesca Gargallo onde diz que a partir do II Encontro Feminista Latino-
americano e do Caribe a palavra “patriarcado” serviu às feministas latino-americanas para explicar a
realidade inteira. A advogada argentina Haydée Birgin situa também nesse encontro uma “redefinição de um
anteriormente, aparece claramente a posição das feministas autônomas, que opinam que as
estruturas dos partidos políticos reproduziam o patriarcado. Foi assim como as políticas,
segundo sua própria versão, não puderam fazer parte da comissão organizadora do
Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, realizado na Argentina em 1990. No
entanto, também há fatos que se constituíram uma espécie de marco para as militantes e que
freqüentemente são citados, tanto nos espaços de militância (jornadas, encontros), como
nos artigos que abordam a história do feminismo, como exemplo de que a articulação é
possível. A criação da Multisectorial de la Mujer, surgida com a democracia incipiente em
1983 que, segundo Nari (1997:35) reunia “‘feministas’ y ‘políticas’ (de partidos o
sindicatos) [que] iniciaron una interpelación conjunta al Estado”, é um dos exemplos. Mas
as tensões dentro do feminismo entre autônomas e políticas cresceram quando, passados os
primeiros anos, algumas feministas ocuparam gradualmente lugares nas estruturas estatais.
Isto rompeu o consenso inicial que gerava a oposição e a demanda destas mulheres ao
Estado
92
.
2.3 As feministas acadêmicas, acadêmicas puras?
O processo de institucionalização dos estudos sobre mulheres nas universidades começa em
1984, quando as integrantes do Centro de Estudios de la Mujer (CEM) criam os primeiros
seminários de pós-graduação em “Estudos da Mulher”, na Faculdade de Psicologia da
Universidad de Buenos Aires
93
. Como mostrarei no capítulo seguinte, as primeiras
setor do movimento” quanto à relação entre as mulheres e o Estado: “…en el II Encuentro Feminista
Latinoamericano en Lima, comenzaron a discutirse los procesos de transición, el lugar de las mujeres y una
política de cara al Estado. El Estado dejó de ser sólo un blanco de pura impugnación para constituirse en un
espacio de articulación con la sociedad. Era necesario, entonces, formular demandas para traducirlas en
políticas públicas” (BIRGIN, 1999).
92
Para mais detalhes sobre este ponto, ver Nari (1997), onde a autora analisa brevemente as posições teóricas
e ideológicas que subjazem estas tensões e as situa no contexto histórico e político da Argentina.
93
Nas ciências sociais, a diferenciação entre sexo e gênero surgiu no início da década de 1970. Na
antropologia, especialmente, os primeiros trabalhos estiveram destinados a documentar etnograficamente a
vida das mulheres que havia estado ausente não tanto nos registros empíricos, como na interpretação dos
dados (MOORE, 1999). Esta primeira etapa foi denominada “antropologia da mulher”. Só a partir dos anos 80
utilizou-se o rótulo de “antropologia de gênero”, isto é, o estudo de homens e mulheres em relação uns com
outros e o gênero como princípio estrutural das relações humanas. Já não se tratava de buscar a subordinação
universal da mulher e as experiências comuns entre mulheres de diversas culturas, mas a perspectiva de
gênero supunha uma nova abordagem crítica do conceito de diferença, enfatizando a relação entre homens e
instituições dedicadas aos “estudos da mulher” nasceram sob a forma de centros de
pesquisa e captação de recursos para projetos de aplicação por fora das universidades
nacionais. Em 1987, criou-se o Primeiro Programa de Estudos da Mulher numa
universidade nacional. Foi denominado “Carrera Interdisciplinaria de Especialización de
Estudios de la Mujer”, pertencia à Faculdade de Psicologia da Universidad de Buenos Aires
e estava dirigido por Gloria Bonder
94
. A criação desta pós-graduação coincide com o início
do governo democrático e um momento de efervescência da militância feminista em
Buenos Aires. Algumas feministas, quando se apresentam nas entrevistas, se definem
mencionando terem sido alunas dessa pós-graduação: “Fiz a primeira pós-graduação
especializada em gênero da UBA”. Segundo Gloria Bonder:
Las primeras graduadas eran en su mayoría, egresadas en Ciencias
Sociales y Humanidades, aunque había también egresadas de las carreras
de Arquitectura, Agronomía y Medicina. Casi la totalidad pertenecían a
organizaciones feministas y/o habían militado en el movimiento de
mujeres o partidos políticos. Con una edad promedio de alrededor de 40
años, casi todas poseían sólidos antecedentes en su campo profesional
y en algunos casos también en la temática de la mujer, así como
participación en instituciones públicas o privadas. Estas características
condicionaron profundamente la modalidad de participación en los cursos
y el ulterior aprovechamiento de la formación adquirida. Las primeras
egresadas se encuentran hoy trabajando en el Consejo Nacional de la
Mujer, son asesoras de diputados, senadores y funcionarios de
gobierno, realizan investigaciones y consultorías en organismos
nacionales e internacionales dedicados a la temática de la mujer y/o son
docentes universitarias. En todos los casos, combinan la práctica
académica y profesional con la militancia feminista, aunque
mulheres (MOORE, 1999; 2003). Sobre uma história do conceito de gênero ver Stolcke (2006). A
denominação dos centros de estudo refletiu esta distinção. Assim, aqueles que foram criados nos anos 80
receberam a denominação de centros ou programas de “estudos da mulher”, enquanto durante os anos 90 já
começam a se denominar “de gênero”. Por outro lado, dentro do feminismo existe uma distinção entre as
mulheres que dizem que “fazem gênero” e as que se reconhecem como feministas. Neste contexto, as que
“fazem gênero” e não se reconhecem como feministas são acusadas de “despolitizar” a categoria.
94
Essa primeira pós-graduação em Estudos da Mulher incorpora, no momento de sua fundação, algumas das
formas de organização próprias dos grupos feministas, que não são habituais no âmbito acadêmico, como os
“grupos de reflexão”. Segundo Bonder: “La inclusión de grupos de reflexión en la currícula de un programa
de postgrado significa una innovación importante en la concepción académica tradicional y por ello no resulta
fácil lograr su aceptación. Sin embargo, a nuestro criterio, esta actividad es ineludible en la medida en que
incursionar en los Estudios de la Mujer implica mucho más que la adquisición de nuevos
conocimientos. De hecho, problematiza de manera global tanto la identidad profesional como personal
de los/as estudiantes y sus concepciones acerca de la realidad. En este sentido, es previsible que movilice
ansiedades y conflictos difíciles de superar de manera individual.” (BONDER, 2002:19. Nota de pé de
página. Grifo meu).
obviamente existen diferencias en la cantidad y calidad de
compromiso que asumen respecto al trabajo de naturaleza más
política. Cabe destacar que este posgrado se propuso un objetivo central
altamente complejo y poco usual en los ámbitos académicos: promover en
los estudiantes interés y capacidad para integrar la investigación y el
desarrollo teórico con la formulación e implementación de políticas y
acciones concretas dirigidas a superar la discriminación de la mujer.
(BONDER, 2002:13, grifos meus)
A maioria dos estudos sobre mulheres, que a partir dos anos 90, em alguns casos, começam
a se chamar estudos de gênero, foram criados nessa década (ver Apêndice A). O grau de
institucionalização e a forma com que os mesmos foram incorporados às estruturas
universitárias variaram muito de uma universidade para outra. Em alguns casos, foram
formados como estudos de pós-graduação, projetos de pesquisa; em outros adquiriram
formas sui generis e foram incorporados sob a forma de programas, cátedras ou comissões.
Estas formas menos reconhecidas afetaram, em algumas universidades, a possibilidade de
receber financiamentos ou subsídios para seu funcionamento e/ou a possibilidade de
garantir sua continuidade
95
. Uma das acusações mais comuns que se faz às feministas
acadêmicas é sua escassa ou nula participação nas ações militantes como passeatas,
escraches
96
, Encontros Nacionais de Mulheres e Encontros de Mulheres Feministas.
95
Entre 1990 e 2000 foram criados oito espaços de estudos de mulheres e/ou gênero. Três deles na província
de Buenos Aires (dois na Universidade de Luján e o outro na Universidad Nacional del Centro de la
Provincia de Buenos Aires). Um na Cidade de Buenos Aires (Universidad de Buenos Aires) e os quatro
restantes correspondem a um Mestrado na Universidad Nacional de Rosario, um centro de pesquisas na
Universidad Nacional de Tucumán, outro centro na Universidad Nacional de La Pampa e na Universidad
Nacional de Entre Ríos. Desde 2000 e até 2006 foram abertos seis novos espaços. Também em junho de 1991
foi criado no Ministério da Cultura e Educação o Programa Nacional para la Igualdad de Oportunidades de
la Mujer en el Área Educativa (PRIOM) que foi coordenado por Gloria Bonder. Em 22 e 23 de abril de 1994
o PRIOM organizou uma Reunião Nacional de Universidades da qual participaram representantes de 26
universidades de todo o país e um número aproximado de 80 pesquisadores/as e docentes (BONDER, 2002).
A título comparativo, vale mencionar que no Brasil o primeiro encontro nacional de núcleos de estudo sobre
mulher e gênero foi organizado pelo Núcleo de Estudos da Mulher da Universidade de São Paulo em 1991
(BLAY e COSTA, 1992). Por outro lado, em 1992 já existiam no país 19 núcleos de pesquisa, número que
cresceu significativamente nos anos seguintes (GROSSI, 2004).
96
Escrachar” é o nome que se deu na Argentina a uma forma de protesto de rua, que no início revelou-se
muito original devido a que se realizava na frente dos domicílios particulares de pessoas para colocar em
evidência aqueles que se considerava que haviam cometido injustiças e/ou atos ilícitos. Os primeiros
escarches são atribuídos à organização HIJOS (Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y
el Silencio). H.I.J.O.S. se define como “una organización política en lucha por los derechos humanos que
trabaja a nivel nacional a través de la Red Nacional con diferentes Regionales a lo largo y ancho del País”.
(Extraído del sitio web:
http://www.hijos.org.ar/institucional.shtml)
Assim, numa entrevista, uma feminista que habitualmente transita pelos múltiplos espaços
do feminismo diz:
P: Você conhece a R.?
R: Conheço.
P: Ela é feminista?
R: É.
P: Mas não vai aos Encontros...
R: Nunca, jamais, não é militante feminista. Não é militante feminista.
P: Cada vez fica mais difícil de entender...
R: Deixa ver...
P: ... porque se você não é militante, o que faz com que seja feminista?
R: Essa é a questão, para mim essa é a questão. Essa pergunta é a crucial.
Se você não realiza uma prática feminista com as pessoas, não no curso de
direito penal quatro. E... sim, é feminista. Porque não tem que ser
excludente, mas essa foi uma questão muito grave das feministas que
estão na Universidade.
P: O fato de não militar?
R: Claaaaro. Elas produzem teorias. As que produzem, não? Porque
muitas não produzem. Mas, não militam, não militam.
P: Mas em algum lugar se cruzam com as outras...
R: Com que outras? Com as dos movimentos sociais, não.
P: Não, com as outras feministas que militam.
R: Sim, sim. Cruzamos-nos, cruzamos-nos o tempo todo.
P: Onde se cruzam?
R: Onde nos cruzamos? Se tem Jornadas de Gênero vamos, participamos,
discutimos, não discutimos... e todas nos relacionamos. Porque não é um
mundo tão grande. (Grifos meus)
A acusação aqui às acadêmicas é não ter “prática feminista” por fora da Universidade. Mas,
ao mesmo tempo, se reconhece que quando são organizadas reuniões, jornadas ou algum
outro evento as outras feministas se aproximam e “todas se relacionam”. Assim, criar um
centro em alguma universidade significa abrir a possibilidade de ter um espaço a partir do
qual articular a “prática feminista”
97
. Um dos eventos que reúne acadêmicas, feministas,
representantes de ONGs, estudantes de diversos cursos, militantes de movimentos pelos
direitos reprodutivos e a diversidade sexual, mulheres acadêmicas de outros países latino-
americanos e, em alguns casos, da Europa e dos EUA são as Jornadas de História das
97
No Encontro de Mulheres de Mendoza, do qual participei como coordenadora de uma oficina, minha
companheira de coordenação era uma estudante universitária. E algumas das mulheres responsáveis de várias
das escolas nas quais funcionavam as oficinas do Encontro eram feministas que trabalhavam na universidade.
Mulheres
98
. À diferença dos Encontros Feministas, as atividades destas Jornadas estão
organizadas adequando-se a um formato acadêmico que lhes propicie legitimidade dentro
desse mundo social. Assim, são apresentados trabalhos com resultados de pesquisa em
mesas com coordenadoras e comentaristas, são organizados painéis com expositoras, mas
também são criados aí espaços para projeção de vídeos, mostras de fotografia, mesas de
escritoras e poetas, apresentações de livros e venda de livros. Assim, as Jornadas Nacionais
de História das Mulheres são um espaço de intercâmbio e legitimação dos “estudos da
mulher” onde confluem acadêmicas de todo país e estrangeiras que geralmente são
convidadas como conferencistas e tornam-se as atrações do evento. Assim como nas
Jornadas anteriores, na que foi realizada em Salta foi feita uma reunião dos centros
acadêmicos dedicados a estudos de gênero de todo país. Participaram representantes dos
seguintes lugares
99
: Córdoba, Patagônia, Universidad de Buenos Aires, Misiones, Mendoza,
Jujuy, Tucumán, Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, Luján,
Entre Ríos, La Pampa e Salta. Uma das integrantes da Comissão da Mulher da Universidad
de Salta expressa sua decepção pela falta de institucionalização de vínculos entre os centros
acadêmicos dedicados aos estudos de gênero, mas, ao mesmo tempo, ressalta a importância
dos laços pessoais que lhes permitem ter conexão com outros lugares
100
.
98
A III Jornadas Nacionais de História das Mulheres foi organizada em 1994 pelo Centro de Estudios
Históricos Sobre Las Mujeres en la Universidad Nacional de Rosario. A IV Jornadas de História das
Mulheres e Estudos de Gênero foi organizada pelo Centro de Estudios Históricos Interdisciplinarios Sobre
las Mujeres da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad Nacional de Tucumán, em 1996. A V Jornadas
de História das Mulheres e Estudos de Gênero foi organizada pela Universidad Nacional de la Pampa, em
1998. Em 2000, junto com a VI Jornadas de História das Mulheres, o Instituto Interdisciplinario de Estudios
de Género de la Universidad de Buenos Aires organizou o I Congresso Latino-americano de Estudos das
Mulheres e de Gênero da Cidade Autônoma de Buenos Aires. Em 2003 a Universidad Nacional de Salta
organizou a VII Jornadas Nacionais de História das Mulheres e o II Congresso Ibero-americano de Estudos de
Gênero e a Universidad Nacional de Córdoba organizou em 2006 a VIII Jornadas Nacionais de História das
Mulheres e o III Congresso Ibero-americano de Estudos de Gênero.
99
Entrevista realizada na cidade de Salta, por ocasião da VII Jornada de História das Mulheres e Primeiro
Congresso Ibero-americano de Estudos de Gênero, junho de 2003.
100
A organização das Jornadas Nacionais de História das Mulheres é um dos espaços onde ocorrem encontros
entre militantes, acadêmicas de diferentes disciplinas, teóricas de diversos países, etc. Geralmente são
organizadas por alguns dos centros ou institutos “da mulher” e “de gênero” que existe no país. Em outubro de
2006 foi realizada a VIII Jornadas Nacionais de História das Mulheres na cidade de Córdoba.
3. Outras oposições
A característica que marca a dinâmica de oposições que ocorrem no espaço do feminismo é
que a identificação a partir de categorias refere-se aos âmbitos nos quais as feministas
desenvolvem sua “prática feminista” e como estes lugares condicionam a forma que a
mesma adquire. Se até agora ressaltei as oposições que tornam possível a convivência e a
existência das diferenças, numa tensão entre formas igualitárias e hierárquicas, é necessário
também dizer algo sobre as diferenças que, apesar de estarem presentes, parece que não se
integram da mesma maneira que as demais às categorizações acusatórias. Sugiro que há
oposições no feminismo que têm uma importância especial, mas que não se referem aos
lugares de inserção social das mulheres e não são reconhecidas abertamente como espaços
diferentes dentro do feminismo. Estas distinguem entre jovens/velhas, esquerda/direita e
lésbicas/heterossexuais. A primeira destas oposições é a de geração à qual me referi no
capítulo 2. Abordarei, a seguir, a oposição esquerda/direta.
Um dado crucial que surge no final dos anos 70 e começo dos 80 na Argentina é a adesão à
causa pela defesa dos direitos humanos. Muitas das feministas que começaram a militar nos
anos 80 vêm de uma militância anterior em partidos de esquerda e algumas, exiladas
durante a ditadura militar, possuem experiências no feminismo de outros países
101
. Assim,
oposições como esquerda e direita não prosperam e ficam fora da dinâmica de acusações.
Uma mulher que fosse acusada de ser de direita (sendo que esta palavra é associada ao
governo militar e ao terrorismo de estado na Argentina) dificilmente poderia ser
reconhecida por outras militantes como parte do feminismo. Na apresentação da associação
ATEM, uma de suas integrantes marca de maneira explícita suas diferenças com as
feministas do início dos anos 70 e reforça a luta antiditadura e a causa pelos direitos
humanos:
“El 8 de marzo de 1982 se presenta un nuevo grupo ATEM (Asociación
de Trabajo y Estudios de la Mujer) “25 de noviembre” (…) “la violencia
contra las mujeres y la vinculación con la lucha antidictatorial y por los
derechos humanos, le da a la agrupación desde sus comienzos un perfil
diferenciado en relación a los grupos anteriores, aunque recoge buena
101
Para o caso do Brasil, ver Cinthya Sarti (2004).
parte de su experiencia: el acento puesto en la opresión de género, la
defensa de la autonomía y la organización horizontal” (BELLOTTI,
2002:s/p, grifo meu)
Algumas feministas, em adesão explícita à causa dos direitos humanos, começaram a
apoiar as Mães da Praça de Maio e a considerar que essa luta estava relacionada com a luta
feminista
102
. Esta decisão aparentemente não gerou conflitos como em outros casos, mas a
expulsão (de acordo com uma das versões) e o isolamento (de acordo com outra versão) de
uma das feministas que expôs seu desacordo em apoiar as Mães da Praça de Maio,
argumentando que o feminismo não devia pegar a bandeira de “nenhuma corrente ou
partido político”. Cito mais abaixo duas versões de uma mesma situação. Uma relatada por
Magui Bellotti, integrante da ATEM e publicada em El feminismo y el movimiento de
mujeres. Una contribución al debate. Argentina 1984-1989, em 2002, e a outra por Maria
Elena Oddone, ex-integrante da Organización Feminista Argentina (OFA), publicada em
2001 em um livro autobiográfico denominado Pasión por la libertad. Memorias de una
feminista. Bellotti define a OFA, organização à qual Oddone pertence, como “un grupo de
feministas radicales que se organizan sobre las mismas bases ideológicas del MLF y con
varias de las que fueron sus integrantes” (BELLOTTI, 2002:s/p).
Versão Bellotti:
“En 1985, varios grupos se reúnen bajo el nombre de Movimiento
Feminista para realizar un encuentro en ocasión del Día Internacional de
la Mujer (…) Esta usurpación de la denominación “Movimiento
Feminista” encierra el intento de considerarse las únicas
representantes legítimas del mismo y así se presentan en los medios de
comunicación. Ese hecho, unido a posiciones contrarias a las posturas
de defensa de los derechos humanos en Argentina, determina el
aislamiento de esta agrupación del conjunto del movimiento. Nota al
pie: Para esa época las propuestas del Movimiento de Derechos Humanos
habían sido asumidas por el conjunto del feminismo en Buenos Aires
salvo por este grupo (OFA) que tenía una posición decididamente
contraria.
102
Gargallo mostra que esta tentativa de definir limites também foi parte da história do feminismo em outros
países latino-americanos. Assim, relata que no feminismo latino-americano “Acusaciones y retos mutuos
fueron lanzados por mujeres contra las mujeres que se negaron a considerar feministas a las organizadas
alrededor de los valores familiares (pobladoras, madres de desaparecidos políticos, etc.) y contra aquellas que
las consideraron parte de un movimiento de las mujeres, invisibilizando la radicalidad feminista”
(GARGALLO, 2002:105).
Versão Oddone:
“Después del 8 de marzo de 1984, Día de la Mujer en los comienzos del
gobierno del presidente [Raúl] Alfonsín, los grupos feministas resolvieron
reunirse en el local de la institución Lugar de Mujer, en las calles
Corrientes y Pueyrredón, y formar entre todos un movimiento feminista
con el propósito de realizar actividades en conjunto. Se vivía en esos días
la euforia de la democracia y los grupos de izquierda acaparaban los
primeros planos de la escena nacional (…) La popularidad de las
Madres de Plaza de Mayo tenía encandiladas a nuestras compañeras de los
otros grupos, por el éxito de prensa y de público que estas señoras tenían.
Ellas asistían al local que tenían las Madres y las invitaban a Lugar de
Mujer, la institución donde nosotras nos reuníamos. El tema de las
reuniones del movimiento eran las conversaciones y las actividades que
tenían con las Madres. (…) En una reunión surgió la propuesta de
enviar una carta de adhesión del Movimiento Feminista a las Madres
de Plaza de Mayo, con motivo de una charla. También se sugirió que
se portara una pancarta del Movimiento Feminista en esa marcha.
(…) Sugerí que también se enviara un telegrama o carta a las madres
de los muertos por la subversión que tenían una institución, FAMUS.
Fundamenté mi sugerencia diciendo que el dolor de las madres que
han perdido a sus hijos es un dolor que no tiene bandería política (...)
Mi propuesta causó estupor. Me miraron con odio. Yo estaba en una
posición humanista y feminista, más allá de cualquier sectarismo. (…)
Días después avisaron a una de mis compañeras que el Colectivo de Lugar
de Mujer había resuelto mi expulsión, haciendo la salvedad que la medida
me involucraba solamente a mí, no a mis compañeras.” (Oddone,
op.cit.:185-187, grifos meus).
Embora seu nome apareça em alguns dos relatos sobre a história do feminismo na
Argentina, Borland (2004a) conta que em 2002, quando foi organizado um ato de
reconhecimento das feministas dos anos 70, Oddone esteve presente e foi ignorada por suas
ex-companheiras
103
. Em outras oportunidades, durante reuniões e jornadas feministas,
houve mulheres que declararam “Para mim, o feminismo é de esquerda ou não é”. Outro
103
Como um elemento a mais para compreender as “outras oposições”, às quais farei referência mais adiante
neste capítulo (especialmente a oposição de geração e a oposição esquerda/direita), é importante mencionar
aqui que o interesse em organizar um “reconhecimento” às feministas dos anos 70 surgiu a partir de um
contato entre gerações. Segundo Libertad Shuster, citada por Tania Diz (BRUJASI, 2002:81), em sua crônica
do VII Encontro Feminista da Argentina “Allí Irupé C. Estudiante universitaria y feminista de tercera
generación conoció a Sarita T. quién junto a su abuela Gabriela C. [Christeller] y otras compañeras
participaron en 1970 de la fundación de la Unión Feminista Argentina UFA, primera organización feminista
en nuestro país, precursora de otras muchas que surgieron hacia fines de la década. (…) Las feministas que
observábamos la escena conmovidas nos preguntamos/planteamos por qué no generar un espacio / un
encuentro donde, por un lado intentar reproducir a través del relato en primera persona de algunas de las
integrantes de UFA esa intensa transmisión de vivencias hacia las mujeres que nos incorporamos
posteriormente al movimiento…”.
caso que mostra a rejeição a esta diferenciação para dentro do espaço do feminismo foi a
menção do nome de uma das ex-integrantes da Unión Feminista Argentina (UFA) que
produziu a seguinte troca de argumentos:
A: Mas C. é de direita
B: Desde quando o feminismo tem direita ou esquerda?
A: Bem, quis fazer uma missa quando morreu J.
Este diálogo mostra também a associação que muitas feministas fazem entre “direita” e
Igreja Católica, à qual me referirei com maior detalhe no capítulo 5, onde aparece com
maior clareza que “ser de direita” é uma característica com a qual se define o “inimigo”.
Outra das diferenças que está presente constantemente, mas que não se cristaliza como
formas de acusação, é a oposição entre heterossexuais e lésbicas. Aparece de forma mais
clara nas denúncias que as lésbicas fazem de sua invisibilidade, mas não se enuncia da
mesma forma que as oposições anteriores
104
. Como mencionei anteriormente, depois do
último Encontro feminista não foi possível organizar o IX Encontro de Mulheres
Feministas. Os rumores eram de que havia problemas entre lésbicas e heterossexuais.
Em algumas Jornadas Feministas organizadas na Casa del Encuentro, definido como um
espaço lesbo-feminista aberto a todas as mulheres, em 2004, surgiu a questão da baixa
participação das mulheres para a organização do Encontro. Em relação ao mesmo, uma
militante opina que o fato de que as reuniões sejam feitas na Casa del Encuentro provoca
“certos inquietações heterossexistas”. Nesse momento, desata-se uma discussão sobre a
questão de lésbicas e heterossexuais. Algumas contam histórias para confirmar que existem
muitas mulheres heterossexuais que têm homofobia e há algumas piadas e risos sobre o
tema. Finalmente, outra das militantes diz “é uma questão ideológica, a tensão
heterossexuais versus lésbicas sempre aparece e tem que branqueá-lo e reconhecê-lo
(grifo meu). A expressão “branquear” que esta feminista usa demanda o reconhecimento
explícito das outras militantes da existência de uma invisibilização das lésbicas ou de uma
lesbofobia. O tema volta a aparecer durante uma entrevista com uma das “velhas
feministas” quando falamos da organização frustrada do Encontro Feminista:
104
Por exemplo, segundo o relato de Marta Fontenla (2002:71) na II Assembléia de Mulheres Feministas,
realizada em Tandil em 1992, denunciou-se que muitas mulheres, especialmente de partidos, não
participaram da II Assembléia por considerarem que estava organizada por lésbicas.
Existe lesbofobia no movimento feminista. Se você coloca quatro
lésbicas à frente, não vai ter resposta; foi o que aconteceu. E quatro
lésbicas das velhas duras lésbicas, para quem as políticas são uma merda
porque têm que obedecer ao chefe e reproduzem todas as formas de
dominação da mulher. E esse discurso é dos 70, viu? E, de fato, não se
pôde fazer o de Buenos Aires. E ninguém lhes respondia, e é óbvio que
ninguém lhes responda. Tentou-se fazer uma convocação por duas
vezes. Eu falei com as companheiras que me escutem, e lhes digo bem,
de outras pessoas fazerem. E dizem: bom, faça você. E eu não tenho
mais tempo...
O que fica evidente neste testemunho é que, em lugar da acusação, aparece o silêncio.
Neste caso, a diferença não se resolve com uma troca de acusações, mas com silêncio e
com ausências nas reuniões. É a estas atitudes às quais se refere a mulher citada
anteriormente quando diz “tem que branquear a tensão entre heterossexuais e lésbicas”.
Enquanto as lésbicas reclamam que estão sendo invisibilizadas, as heterossexuais se
queixam de serem acusadas pelas lésbicas de não ter escolhido sua orientação sexual e que
são heterossexuais por imposição das normas sociais heterossexistas. Seguindo a linha
desse raciocínio, as lésbicas tornam-se as únicas que escolheram verdadeiramente sua
orientação sexual, opinião à qual as heterossexuais resistem, não de forma explícita, mas
com comentários com subentendidos. Em alguns casos, ouvi, durante conversas informais
com feministas que não participam dos Encontros de Mulheres Feministas, duros
comentários tais como “o feminismo se transformou num ninho de lésbicas. Ganharam os
espaços, e é porque têm mais tempo para a militância. Eu percebi isso, não têm que cuidar,
por exemplo, de uma família”. No entanto, além desta troca de acusações, estas diferenças
parecem estar sendo, ao menos em alguns espaços, mais toleradas. Durante a passeata do
XIX Encontro Nacional de Mulheres em Mendoza, entre a multidão junto a um grupo de
lésbicas feministas que acompanham o grupo musical de protesto Las Carmelitas en
Calzas, uma militante de cerca de 60 anos, enquanto dançava divertida ao ritmo dos
tambores, comentou: “Meninas, as heterossexuais caminhando debaixo das bandeiras das
lésbicas! Que crescimento, isto há alguns anos atrás era impensável!”.
Por outro lado, numa nota da revista Feminaria uma militante considera que embora “tenha
que pensar o movimento feminista como uma multiplicidade” tem “coisas mínimas” por
fora das quais é impossível se pensar como feminista. Uma delas é a rejeição ao
lesbianismo como uma forma de identidade:
“Bueno, pero hay cosas mínimas que te definen. Como dijo Estela Suárez
allá en El Salvador cuando se planteó la cuestión de los cupos. ¿Cómo lo
medimos? Cómo mínimo una feminista no puede ser lesbofóbica, no
puede estar en contra del aborto… hay tres o cuatro cosas que, para
llamarte feminista, tenés que aceptar, sino sos otra cosa
(FEMINARIA 19, 1997:30, grifo meu)
Embora as oposições e o conflito, a partir de um jogo de acusações, permitam manter as
diferenças entre as militantes e integrá-las, algumas diferenças por motivos que variam não
se transformam em acusações e se integram de uma forma diferente às que são parte da
dinâmica de acusações. Um caso é o da oposição entre jovens e velhas. Como mostrei no
capítulo 2, as diferenças de geração são reconhecidas a partir de uma hierarquia implícita
mediada por formas igualitárias, visto que a “história do feminismo” e sua continuidade
dependem da articulação entre estas diferenças. No caso da oposição esquerda/direita, a
mesma não é tolerada dentro do espaço feminista, e é colocada para fora, como uma
oposição do feminismo a “setores” que “estão contra os direitos das mulheres”. Por sua vez,
a oposição lésbicas/heterossexuais só é tolerada quando se manifesta como denúncia das
lésbicas em espaços coletivos de que existe “lesbofobia”. Caso contrário, pode ser
enunciada na confiança entre mulheres heterossexuais ou fora dos espaços do feminismo
quando se trata de acusar as lésbicas.
Conclusões
Meu objetivo neste capítulo foi descrever diferentes situações a fim de mostrar que são
exatamente as acusações articuladas numa dinâmica de oposições que possibilitam a
existência da categoria coletiva definida como feminismo ou feminismos, dentro da qual é
possível incluir as diferenças. As fragmentações, apesar de permanecerem nos relatos de
algumas militantes como um aspecto negativo ou que debilitam o movimento (ou como
uma crítica a “lutas de poder”, “pequenas misérias” ou “exibições pessoais”), mostram que
muitos dos grupos que se fragmentam não por isso deixam de existir. Tais grupos dão lugar
a outros ou, em alguns casos, suas integrantes, se não decidem abandonar a militância,
continuam fazendo-o como feministas independentes, isto é, que não pertencem a nenhum
grupo. Enquanto o conflito e eventuais fragmentações não impedem de continuar sendo
parte do coletivo feminista, diferente é o caso do isolamento provocado por uma
indiferença que nega tanto as forças repulsivas como as unificadoras. Os conflitos e
fragmentações podem aparecer como obstáculos, só se restringimos o foco de análise a um
grupo ou a alguns poucos grupos, mas, nas palavras de Bailey (1971), os problemas
tornam-se menos formidáveis se, em vez de olhar os atos individuais, observamos os
padrões que as interações revelam. Considero, de acordo com Simmel (2002:145), que o
desaparecimento das energias repulsivas, que consideradas isoladamente poderiam parecer
destrutivas, não produziria, necessariamente, uma vida mais rica e plena. Resultaria, talvez,
numa configuração diferente e amiúde tão pouco possível, como se houvessem
desaparecido as energias de cooperação, afeto e harmonia de interesses. Assim, como
expressa este autor, o conflito é parte de toda relação. Não se trata de um defeito, mas é
complemento de uma função própria da mesma e adquire direitos iguais que os outros
motivos.
Também propicia que não se apaguem as diferenças existentes e, de alguma maneira,
garante que as mulheres desenvolvam posições próprias nos espaços onde inserem sua
militância (academia, organismos do Estado, partidos políticos). Isto é possível também
uma vez que, como mostrei no capítulo 1, a definição de política dada pelas feministas
excede os âmbitos do Estado e dos partidos políticos e inclui as práticas mais cotidianas a
partir da premissa o pessoal é político.
Assim, as ações militantes não se desenvolvem, necessariamente, a partir do grupo em seu
conjunto, já que se trata de introduzir mudanças no contexto social onde cada uma das
mulheres se insere. Nesse sentido, só algumas das ações que as feministas realizam
requerem consenso da grande maioria e já são feitas em nome do movimento, enquanto nas
outras o exercício de uma profissão, ou qualquer tipo de relação que se constitua de
maneira estável em um lugar é potencialmente uma possibilidade de agrupação e/ou ação
militante. Como expressa Reynaud (1980:282), cada uma encontra-se, então, reintroduzida
na sua inserção social específica e nos meios que tem para atuar socialmente. Por último,
também é importante ressaltar que muitas feministas se caracterizam por sua capacidade de
transitar em espaços diversos (agências internacionais, universidade, organismos de
governo, militância feminista, participação em encontros). E esta multiposicionalidade
permite fazer circular entre os diferentes espaços uma determinada linguagem e uma
determinada visão de mundo.
CAPITULO 4
Escalas e Feminismos
Cuando nos referimos al cambio estructural,
tenemos que considerar no simplemente
los cambios de posición de los individuos
con respecto a un sistema ideal de relaciones de estatus,
sino los cambios del propio sistema ideal:
es decir, los cambios de la estructura del poder.
Edmund Leach
Como mostrei no capítulo anterior, uma das oposições mais intensas que ocorre no espaço
do feminismo é entre as feministas que se denominam autônomas e as acusadas por estas
últimas de institucionalizadas. Esta oposição implica relações internacionais em dois níveis
diferentes. Por um lado, com outras feministas de países da América Latina, visto que estas
acusações são encenadas e adquirem sentido pleno nos Encontros Feministas Latino-
americanos e do Caribe, especialmente a partir de 1996
105
. Por outro lado, entram em cena,
sobretudo a partir dos anos 80 e com maior ênfase nos anos 90, organismos e agências
internacionais de financiamento que, para constituir a mulher como um tema de interesse
internacional necessitam de especialistas (experts) de diversos países do mundo. Assim, o
feminismo não pode ser entendido sem incorporar à análise a dimensão internacional que o
constitui.
No entanto, “o internacional” em si mesmo não é suficiente como variável explicativa. É
necessário considerar também os diversos perfis que esta dimensão adquire de acordo com
o momento histórico e os contextos e pessoas específicas que a tornam possível. A
internacionalização pode ser construída a partir de migrações, exílios, relações pessoais
garantidas por uma determinada posição social, estudos acadêmicos e/ou encontros
105
O que caracteriza estes países é que são receptores de subsídios de agências internacionais, que provêm,
em geral, dos denominados “países centrais”.
militantes
106
. No caso argentino, esta circulação de idéias, teorias, palavras e pessoas esteve
garantida, no início do que se chamou a segunda onda do feminismo, por mulheres
pertencentes a famílias com um importante capital cultural e econômico. Esta situação se
modifica a partir de 1975, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o
Ano Internacional da Mulher e declarou o período compreendido entre 1976 e 1985 como a
Década da Mulher. Desde esse momento, a ONU convocou quatro Conferências Mundiais:
I Conferência Mundial sobre a Mulher, no México, em 1975. A II Conferência Mundial
sobre a Mulher foi realizada em Copenhague, Dinamarca; a III Conferência Mundial sobre
a Mulher foi em Nairobi, Quênia, em 1985
107
; e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher:
Ação para Igualdade, Desenvolvimento e Paz, realizou-se em Beijing, China, em 1995, da
qual participaram mais de 180 países e cerca de 35.000 pessoas. A criação de um dia e uma
década internacional “da mulher”, as conferências mencionadas e os fundos disponíveis a
partir de então para projetos (de pesquisa e/ou de intervenção, criação de pós-graduações,
organização de eventos) associados a “mulheres” tornaram “a mulher” um “tema” e,
especialmente, um tema no qual organismos internacionais estavam dispostos a investir
recursos.
A formulação da “mulher” como tema de interesse internacional aparece acompanhada de
um vocabulário específico, da necessidade de incorporar pessoas “experts” e de
instrumentos (especialmente jurídicos) internacionais. Com agências internacionais
subsidiando projetos associados à causa que as feministas sustentam, os valores em torno
dos quais estava sendo construído o espaço do feminismo se viram fortemente interpelados.
106
Por exemplo, a dimensão internacional da primeira onda do feminismo na Argentina, no início do século
XX, estava vinculada à organização de partidos políticos como o socialismo e organizações como as
anarquistas, marcados pela experiência vivida pelos imigrantes europeus. As integrantes das primeiras
organizações feministas se caracterizaram por um alto grau de escolaridade, em alguns casos, foram as
primeiras a ingressar na universidade, sobretudo, no curso de medicina. Algumas referências desse momento,
como Alicia Moreau de Justo e Julieta Lantteri, eram estrangeiras naturalizadas e mantiveram contatos com
organizações internacionais. A primeira, uma das mais lembradas atualmente pelas feministas, pertencia ao
Partido Socialista do qual seu esposo, Juan B. Justo, foi presidente. Por fora dos partidos políticos, também
pode ser situada neste espaço de fronteiras ambíguas que é o feminismo, Victoria Ocampo, membro de uma
tradicional família argentina de classe alta, destacada por seu trabalho no âmbito literário e sua influência na
sociedade argentina. Em 1936 foi eleita presidenta da Unión de Mujeres Argentinas (UMA), cujo objetivo
imediato era lutar contra a reforma, proposta pela Acción Católica Argentina, de uma lei sancionada em 1926,
referente aos direitos das mulheres casadas (AYERZA DE CASTILLO e FELGINE, 1993)
107
Esta conferência é citada por muitas feministas como o antecedente que levou à organização dos Encontros
Nacionais de Mulheres na Argentina.
A incorporação de experts representantes de diferentes países, o financiamento de projetos
e ações militantes e o reconhecimento internacional favoreceram as mudanças individuais
das posições de status e de poder de algumas feministas. Nas palavras de Leach (1976),
foram produzidas mudanças no foco do poder político dentro de um dado sistema, o que
alterou as dinâmicas do feminismo e produziu divisões e acusações. As possibilidades de
internacionalização do feminismo adquiriram um perfil muito diferente ao que tinham até
esse momento. Isso tampouco pode ser compreendido sem considerar as hierarquias
existentes dentro da escala nacional, as propriedades e o capital de relações sociais das
mulheres que ocuparam esses lugares. Neste capítulo, portanto, analisarei as diversas
formas da dimensão internacional no feminismo a partir dos anos 70 e seu impacto na
configuração atual deste espaço na Argentina.
1. Feministas com conexões internacionais
Neste ponto tratarei das propriedades sociais de algumas das mulheres que integraram a
UFA no início dos anos 70 e, logo, uma breve menção às trajetórias de militantes, hoje com
idade em torno de 60 anos, que se autodenominam e são reconhecidas pelas demais como
as “feministas velhas”. Começarei com o caso mencionado no capítulo 1 da cineasta Maria
Luisa Bemberg. Em um trabalho de Alejandra Vassallo (2005) sobre o feminismo argentino
nos anos 70, cujo propósito é traçar “os trajetos pessoais e políticos, individuais e coletivos
de algumas de suas protagonistas”, a autora faz uma breve descrição do perfil social de
Maria Luisa Bemberg e Gabriela Christeller, duas das integrantes da UFA. Ela mostra que
o acesso destas mulheres a redes internacionais teria vindo, em grande medida, da posição
social de suas famílias:
[María Luisa Bemberg] Proveniente de una familia de la elite que no
envió a sus hijas al colegio secundario y con una pequeña participación en
la antiperonista Unión Democrática por su casamiento con un estudiante
de arquitectura que militaba en el Partido Comunista, Bemberg no tardó
en rehusarse a cumplir el rol tradicional de madre y esposa que se
esperaba de ella. Casada a los veintitrés y divorciada poco tiempo después
con cuatro hijos, Bemberg estaba en contacto con los postulados del
feminismo principalmente a través de fuentes y amistades literarias como
Victoria Ocampo, un personaje poderoso y controversial en los círculos
literarios y feministas argentinos anteriores a la “segunda ola” (…) Así, en
1970 Bemberg buscó a Christeller y a un pequeño grupo de mujeres para
fundar la Unión Feminista Argentina, cuyo acrónimo “UFA” era también
un juego de palabras para expresar el hartazgo de las feministas con el
estatus quo de las mujeres. (VASSALLO, 2005:68).
[Gabriella Roncoroni de Christeller] …ya había recorrido un largo camino
desde su Italia nativa y el casamiento con un industrial que la había
convertido en condesa. Nacida entre dos guerras mundiales y escapando
desde Rumania hasta Suiza como refugiada, Christeller llegó a la
Argentina como una joven madre en 1946. Hija de una simpatizante de
las sufragistas inglesas de principios de siglo XIX y proveniente de
una familia con una larga historia de activismo social cristiano,
Christeller continuó en la Argentina su activismo en proyectos
comunitarios a través de su trabajo con la Orden de Foucauld, asociada a
los orígenes de la Teología de la Liberación en América latina. Durante
los años sesenta, Christeller viajó regularmente a la selva chaqueña, en el
noreste argentino, donde ayudó a crear la “Cooperativa Fraternal Fortín
Olmos”, que representaba alrededor de 2000 familias de hacheros,
desarraigadas y analfabetas. Entre otras tareas, Christeller supervisó el
programa educativo que incluía el viaje a las ciudades y la estancia en
familias receptoras de los hijos e hijas de los hacheros. Así, ella y su hijo
adolescente se convirtieron en una presencia familiar en Fortín Olmos, en
las asambleas de la cooperativa y en los hogares, donde visitaba a las
mujeres. Pero también era reconocida en los círculos sociales de
Buenos Aires de los que conseguía apoyo financiero para la
cooperativa y a los que llegaba gracias a sus conexiones familiares. De
acuerdo a Christeller, y a pesar de que conocía a Simone de Beauvoir
y sus escritos por la amistad que las unía, fue su trabajo con las niñas
y las mujeres de Fortín Olmos las que dispararon su posterior
compromiso con el feminismo. Ella recuerda cómo, mientras los
hombres de la cooperativa aprendían a recobrar sus propias voces y sus
derechos, sus mujeres permanecían silenciosas y ausentes de los procesos
de toma de decisiones dentro de la cooperativa. (VASSALLO, op.cit,
grifos meus)
A seguir, cito dados bibliográficos de Maria Luisa Bemberg e de Alicia D’amico, outra
integrante da UFA e uma das fundadoras de Lugar de Mujer nos anos 80, extraídos do
Diccionario Biográfico de Mujeres Argentinas (SOSA DE NEWTON, 1996), no qual
aparecem detalhes de conexões internacionais que foram possíveis, em grande parte, pelo
desenvolvimento de profissionais que necessitavam, para seu exercício, de um capital
inicial, tanto econômico como social, de difícil acesso para pessoas que não contassem com
recursos próprios. Neste ponto, o pertencimento social abre um amplo leque de condições
de possibilidade:
María Luisa Bemberg (1922-1995)
Nació en Buenos Aires, el 14 de abril de 1922. Autora y realizadora
cinematográfica. Escribió el libro para la película Crónica de una señora,
que ganó primer premio de interpretación femenina, con Graciela Borges,
en el Festival de San Sebastián 1970. En 1972 realizó el libro, producción
y dirección del cortometraje El mundo de la mujer, exhibido en el festival
de la UNESCO en Italia, 1976. Es autora del argumento de Triángulo de
cuatro, primer premio Argentores 1975. En 1981 escribió el libro para la
película Momentos, en colaboración con Marcelo Pichon Riviére, y tuvo a
su cargo la producción y dirección. Filmó Señora de Nadie en 1982, con
libro, producción y dirección propios. En 1984 realizó Camila, en
coproducción con Impala, de España y libro en colaboración, basado en el
trágico episodio de la época de Rosas. Este filme obtuvo premios en
festivales de Checoslovaquia, Francia y Cuba y fue elegida para integrar
la terna para la mejor película extranjera en el certamen de los premios
Oscar, de la Academia de Hollywood. En 1990 realizó el guión y dirigió
el filme Yo la Peor de todas y en 1992 De eso no se habla. Actualmente
existe una cátedra con su nombre en la Universidad Nacional de Cuyo. Su
nombre, también denomina a una de las salas del Museo Municipal del
Cine -Pablo Ducrós Hicken-, en la que se exponen objetos y elementos
escenográficos empleados en algunos de sus films.
Alicia D’Amico (1933-2001)
Nació en Buenos Aires, el 6 de octubre de 1933. Fotógrafa, periodista y
editora. Egresó de la Escuela Nacional de Bellas Artes Prilidiano
Pueyrredón con el título de profesora de dibujo y pintura en 1953. Dos
años más tarde el gobierno de Francia le otorgó una beca para estudiar
historia del arte y permaneció un año en París, viajando por otros países
de Europa. Comenzó a estudiar fotografía con su padre, Luis D’Amico,
que ejercía la profesión desde 1930. En 1958 exhibió obras en el Primer
Congreso Argentino de Fotografía y en 1960 viajó a Estados Unidos,
invitada por la firma Kodak a participar de su concurso de fotocolor. Se
asoció a Sara Facio e instalaron un estudio. A partir de entonces ganó
numerosos concursos en salones nacionales e internacionales. En 1961
organizó para el Foto Club Buenos Aires la Primera Exposición de Arte
Fotográfico Argentino en París y ocupó cargos en la comisión directiva.
En 1973 fue cofundadora, con Sara Facio y Crisitna Orive, de La Azotea,
Editorial Fotográfica de América Latina. Junto con Sara Facio publicó
diversos libros de fotografía. Entre 1960 y 1980 publicó numerosas notas
y fotos en diarios y revistas de Buenos Aires, América y Europa. Desde
1966 a 1974 estuvo a cargo de la sección “Tiempo de fotografía” de La
Nación. Ganó premios en salones argentinos y de Moscú, Washington,
Alemania, Rumania, Bélgica, Dinamarca y Autralia, como el título de
“Artista” de la Federación Internacional de Arte Fotográfico, el premio
Olivetti en 1968, el premio de honor en la sección Libros de Fotografía,
Festival del Libro Turístico Internacional, en Viena, 1969. Por invitación,
presentó carpetas con fotografías para integrar la colección permanente de
la Photo Gallery de Londres y de la Biblioteca Nacional de París. En 1978
y 1979 participó en exposiciones en México, Venecia y Arlés, Francia. Es
miembro fundador de la Academia de Ciencia y Arte de la Fotografía
Argentina, del Consejo Latinoamericano de Fotografía en México y del
Consejo Argentino de Fotografía.
A diferença das feministas dos anos 70, o caso de Bemberg, Roncoroni de Christeller e
D’Amico, o perfil social das feministas dos anos 80, após o governo militar, mostra que a
circulação internacional destas mulheres, em muitos casos, esteve vinculada a seu exílio
político em outros países devido à sua militância em partidos de esquerda. Considero que
estas diferenças entre umas e outras influenciaram na constituição do que no capítulo
anterior denominei “outras oposições”, neste caso, relacionadas com a oposição
esquerda/direita, sendo que a “direita” é habitualmente associada às elites econômicas e às
famílias “tradicionais” da Argentina. Assim, a própria maneira com que se conta a “história
do feminismo” está influenciada pelas propriedades sociais diversas de suas protagonistas.
Sem colocar nos termos que proponho aqui, Vassallo chama a atenção sobre este fato:
Aunque en la historiografía contemporánea argentina el movimiento
feminista de los años setenta está prácticamente ausente, quienes sí se
detienen en él tienden a aislar a UFA y otras organizaciones del
proceso de movilización política de esos años, al proponer que surgió
de las preocupaciones (burguesas) de una mujer que pertenecía a la
más rancia oligarquía argentina, María Luisa Bemberg, y de una
condesa italiana, Gabriela Christeller, cuyo único mérito parecía ser su
amistad con Simone de Beauvoir. Se supone entonces que, gracias a su
inserción de clase y sus viajes a Europa y los Estados Unidos, estas
dos mujeres supuestamente ‘importaron’ a la Argentina la
experiencia del movimiento internacional de Liberación de las
Mujeres (“ Women’s Lib”). Esos relatos no sólo minimizan la
experiencia feminista a un escaso número de mujeres argentinas, sino que
invisibiliza las diversas historias políticas y personales de todas sus
protagonistas, así como su accionar colectivo. (VASSALLO, op.cit:65,
grifos meus)
Interessa-me resgatar do texto citado as formas acusatórias que, a meu juízo, aparecem
sugeridas neste relato. Para aquelas pessoas que a autora denomina como “quienes sí se
detienen en el movimiento feminista de los años 70”, o fato de que a importação de “la
experiencia del movimiento internacional de Liberación de las Mujeres” tenha sido
possibilitada pela “inserción de clase” é, neste caso, um dado desqualificador. Vassallo
interpreta que isto minimiza a experiência feminista a casos pontuais e apaga as histórias
políticas e pessoais das feministas nesse momento.
Mostrarei agora a forma com que as “feministas velhas” do espaço atual do feminismo
teceram relações internacionais. Cito mais adiante parte da história de uma mulher que
reúne elementos comuns à história de muitas outras. Um deles, o fato deter se feito
feminista” no exterior, durante o exílio. Outro, é que o exílio não era sempre por causa de
sua militância, mas muitas vezes a de seus esposos ou algum parente. O relato que segue foi
publicado no Suplemento Mujer do jornal argentino Clarín:
Susana Gamba
Para la entrevista, Susana Gamba (56, separada, un hijo de 24) viajó
especialmente desde Córdoba, su provincia. Es especialista en Estudios de
la Mujer, presidenta del Consejo Municipal de la Mujer de Río Ceballos,
licenciada en Ciencias de la Comunicación, docente universitaria, ex
asesora del Consejo de Mujer del Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires
y creadora de la Agenda de las Mujeres, la primera agenda específica que
este año presenta su edición número 13. Como si esto fuera poco, también
dirige el primer "y único" portal con perspectiva de género
(
www.agendadelasmujeres.com.ar), que concentra toda la información
sobre los movimientos femeninos, investigaciones académicas, directorios
institucionales, organismos estatales, foros de discusión, y recibe más de
100.000 visitas mensuales. Exiliada en España desde el 29 de febrero
de 1976 —"año bisiesto que nunca voy a olvidar", dice— hasta 1983,
Susana cuenta que se hizo feminista de chica. "Y casi sin saberlo —
admite—. Mi padre era violento con mi madre. Emocionalmente, no
golpeador, era de rebolear cosas. Mi padre murió y mi madre se separó
hace añares. Pero viví la violencia en mi familia, la mamé, y eso te
afecta, te marca", reconoce. Separada de un ex preso político, tuvo a su
único hijo en el exilio, donde fue precursora del primer grupo de
solidaridad con el pueblo argentino. "En Barcelona también me hice
feminista y empecé a militar con un grupo de mujeres latinoamericanas",
recuerda.".
108
(Grifos meus)
Outra das formas que a circulação internacional adquiriu, como se pode deduzir das
trajetórias das mulheres que inauguraram a militância feminista nos anos 80, foi a passagem
pela universidade e a realização de cursos e pós-graduações no exterior. No entanto, nestes
casos, não significa necessariamente que a conversão ao feminismo tenha ocorrido sempre
fora do país. O que aparece em alguns relatos, com certa ênfase, é o fato de experimentar
uma realidade diferente que lhes havia permitido relativizar suas experiências anteriores de
militância em partidos políticos em alguns casos, e de exercício de sua profissão em outros.
108
http://www.clarin.com/suplementos/mujer/2006/03/07/m-00501.htm
O testemunho que cito a seguir é de uma socióloga que se reconhece feminista e conta com
uma ampla experiência de militância em vários grupos políticos de esquerda:
P: Você teve outro tipo de militância antes de militar no feminismo?
R: Comecei a militar, na pré-história, na Federação Juvenil Comunista,
por onde passamos todas as da minha geração. Eu tenho 60 anos, faço
agora, 58, 60 é a mesma coisa, é essa geração. Digo, todas que vínhamos
com certa militância e que desembocamos no feminismo.
P: Quem são elas?
R: Tem todo um grupo que se não militou na Fede [Federação Juvenil
Comunista], como dizíamos naquela época, esteve próxima porque foi
como uma espécie de coisa orientadora, a Fede, nesse momento... Isso me
durou até os 21. E na Faculdade... três anos, eu fiz sociologia na UBA.
Operários e estudantes unidos adiante. Víamos um só operário e
passeávamos com ele por todos os lados (risos)
Era uma coisa subversiva, romântica, absolutamente romântica (...).
P: Em que anos você esteve em Paris?
R: Estive no Maio francês, então foi 68, 69, 70 (...)
P: Você era estudante de sociologia?
R: Já havia me formado. Fui à França com bolsa de estudo. Fui estudar
porque, nessa época, o romanticismo do desenvolvimento comunitário...
estava na moda.
Fui estudar na Colômbia, na Universidad del Valle, primeiro, depois, fui a
Londres. Na Colômbia, fiz contato com formas de organização da
Medicina muito diferentes às daqui, baseadas no atendimento primário
com muitos componentes de planejamento familiar e vendo todos os
problemas da saúde reprodutiva das mulheres.
P: Tinha feministas lá?
R: Não, não. Não tinha feminista, mas sim, entro em contato com algo que
aqui eu não via tanto, e quando volto, aí, sim... e então começo a ler e
estudar e me vinculo relativamente cedo ao grupo de mulheres que já
estavam trabalhando no que foi a Red de Salud de las Mujeres de América
Latina y el Caraibe, criamos aqui a Red de Salud de las Mujeres, participo
no programa, me meto no Ministério e crio o programa da Mulher, Saúde
e Desenvolvimento quando começamos com a democracia, em 84.
Começo com o acesso à democracia...
Os estudos de pós-graduação, tanto quando as mulheres viajavam para cursá-los fora do
país como nos casos em que cursavam na Argentina, foram um dos espaços privilegiados
para tecer estas redes e, além disso, uma forma de acesso a bibliografia e a outro tipo de
experiência. Uma feminista com cerca de 60 anos me conta durante uma entrevista: “eu
tinha muitos amigos radicais [Partido Radical] que conhecia de uma espécie de pequena
pós-graduação que tinha feito na CEPAL e eles eram os professores. O que depois foi o
governo de [Raúl] Alfonsín”. Embora este não seja o perfil que define todas, é muito
comum que quem se tornou figura chave dentro do feminismo tenha tido alguma dessas
experiências ou ambas. O capital de relações que estas mulheres acumularam na realização
de pós-graduações e/ou nos anos de exílio, isto é, duas experiências que introduzem a
dimensão internacional, não só é importante para entender sua conversão ao femiismo, mas
também para compreender como, depois, as “idéias feministas” permeiarão determinados
espaços sociais na escala nacional, nas áreas governamentais ou nos partidos políticos, nos
quais estas mulheres se inserem, mobilizando um capital de relações pessoais que se
legitimam com suas competências internacionais
109
.
2. A internacionalização do “tema mulher”
…el trípode de los 70 era alimento, población y mujer.
Por eso aparecemos nosotras como un tema
importante y fundamental. Nacemos mal paridas….
Militante feminista
Em 1975, depois da Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada no México, a
ONU criou o Instituto de Pesquisa e Treinamento para a Promoção da Mulher (INSTRAW)
e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), declarando
como propósito “proporcionar o marco institucional para a pesquisa, a capacitação e as
atividades operacionais na esfera da mulher e o desenvolvimento”. A partir desse momento,
as agências do sistema das Nações Unidas e dos organismos multilaterais de crédito
constituíram um incentivo para a institucionalização de grupos existentes e, sobretudo, para
criação de novos. Estas agências começaram a financiar organizações e projetos, em vários
países do mundo, dispostos a demonstrar seu compromisso com “a mulher e o
desenvolvimento”. Institucionalizadas, do ponto de vista jurídico, sob a forma de
associações civis ou fundações, começaram a se multiplicar, desde os anos 80, as
109
Para uma análise das articulações entre o nacional e o internacional na reprodução das elites, ver “Les
courtiers de l’international” (DEZALAY, 2004)
denominadas Organizações não Governamentais ou Organizações da Sociedade Civil.
Dados proporcionados por UNIDAS, Directorio de Organizaciones de Mujeres (1999)
mostram que de 170 organizações levantadas e distribuídas segundo o ano de criação, a
maior concentração ocorre na década de 80 (25%) e nos anos 90 (57%)
110
. O
reconhecimento internacional esteve garantido não só pelo financiamento, mas também
pela interpelação direta que o discurso dos organismos internacionais fizeram a este tipo de
associações. As “organizações da sociedade civil” se definem por serem “não lucrativas” e
por oposição aos espaços governamentais, confessionais e partidários. Esta apresentação,
que corresponde a uma posição que se pretende desinteressada e neutra, se complementa
com objetivos orientados pelo serviço público e pelo bem-estar, mais próximos ao plano
intelectual que ao dos interesses políticos e econômicos ou à subjetividade do mundo das
crenças. Assim, durante os anos 80 e 90, com o objetivo de promover a igualdade e os
direitos das mulheres começa a se configurar uma estrutura organizacional móvel, possível
de adaptar, com relativa facilidade, sua identidade a temas diversos (violências, política,
saúde, meio ambiente). Detalho, a seguir, algumas das organizações criadas a partir de
1975 que tiveram alguma influência ou contato com o feminismo, organizadas de acordo
com o ano de criação
111
:
- DERECHOS IGUALES PARA LA MUJER – DIMA, Sara Rioja Medrano, Presidenta. Criada
em 1976
- CENTRO DE ESTUDIOS DE LA MUJER – CEM, Gloria Bonder, Presidenta. Criada em 1979
- ASOCIACION ARGENTINA DE MUJERES DE CARRERAS JURIDICAS, criada em 1982,
Presidenta, Ethel Díaz.
- LUGAR DE MUJER, Susana B. Goldberg, Presidenta, criada em 1983;
- INSTITUTO DE ESTUDIOS JURIDICO SOCIALES DE LA MUJER – (INDESO MUJER).
Equipe Coordenadora: Susana Moncalvillo, Noemí Chiarotti, Mabel Gabarra, criada em 1984,
cidade de Rosario
- FUNDACION TIDO, TRABAJO, INVESTIGACION, DESARROLLO Y ORGANIZACIÓN
DE LA MUJER, Olga M. de Hammar, Presidenta. Dolly Albergolli, Vice-presidenta. Criada em
1985.
- CENTRO DE INVESTIGACION Y SERVICIOS PARA EL CONO SUR (CISCSA), Grupo de
Estudios de la Mujer (GEM), Ana Falú, Presidenta, criada em 1986, cidade de Córdoba;
110
Por sua vez, até 1949 3 %; 1950-59 3 %; 1960-69 6 %; 1970-79 6 %.
111
A maioria destas associações pertence à Cidade Autônoma de Buenos Aires, naqueles casos que não é
assim, indico o lugar. Os dados das associações foram extraídos, na sua grande maioria, de UNIDAS -
Directorio de Organizaciones de Mujeres (op.cit)
- CATOLICAS PARA EL DERECHO A DECIDIR - OFICINA REGIONAL PARA AMERICA
LATINA Y EL CARIBE, Marta Alanís, Coordenadora da Oficina Regional para América
Latina, criada em 1987, cidade de Córdoba.
- ALIONA - CENTRO CONTRA LA DISCRIMINACION DE LA MUJER, Lidia Otero,
Presidenta Olga Pasternak, Secretária. Criada em 1987
- TALLER PERMANENTE DE LA MUJER, María Carolina Caride, Presidenta. Piera Oria,
Vice-presidenta. Criada en 1987
- FUNDACION PARA EL ESTUDIO E INVESTIGACION DE LA MUJER (FEIM), Mabel
Bianco, Presidenta. Criada em 1989;
- ASOCIACION LOLA MORA, Virginia Haurie, Presidenta. Norma Sanchís, Secretaria, criada
em 1989
- CONDICION FEMENINA, Malena López Dorigoni, Presidenta, criada em 1989, (Neuquén)
- CENTRO DE ESTUDIOS INRDISCIPLINARIOS SOBRE LAS MUJERES (CEIM), Hilda
Habichayn, Secretária Geral. Criada en 1989, Rosario (Santa Fé)
- RED NACIONAL POR LA SALUD DE LA MUJER, Mesa Coordenadora: Aida Remesar,
Alicia Ferreira, Esther Moncarz, Graciela Climent, Graciela González, M. Inés Re, Marina
Laski, Marta Bober, Zulema Palma. Criada em 1990
- MUJERES EN IGUALDAD (MEI), Fundadora: Zita Montes de Oca. Criada em 1990.
- MUJERES AL OESTE, Mariana Laski, Presidenta, Zulema Palma secretária, criada em 1995;
- ASOCIACION DE ESPECIALISTAS UNIVERSITARIAS EN ESTUDIOS DE LAS
MUJERES (ADEUEM), Silvia Werthein, Presidenta, criada em 1991;
- INSTITUTO SOCIAL Y POLITICO DE LA MUJER (ISPM), María José Lubertino, criada em
1993;
- CENTRO DE ENCUENTROS CULTURA Y MUJER – CECyM, criada em 1993;
- ASOCIACION MUTUAL DE MUJERES TRABAJADORAS DEL ESTADO (AMMUTE),
Zunilda Valenziano, Presidenta, Asociación mutual, criada em 1993.
- ASOCIACION SIMONE DE BEAUVOIR POR LA IGUALDAD DE DERECHOS, Edith
Quiroga, Presidenta. Alicia Mato, Secretaria General, criada em 1993.
- CENTRO DE ESTUDIO Y ASISTENCIA A LA MUJER (ANTIGONA), Alicia Gugliermelli,
Presidenta Liliana Cuesta, Vicepresidenta, criada em 1994, cidade de Necochea (Buenos Aires)
- GRUPO DE MUJERES SIN MOLDES. BIBLIOTECA DE MUJERES POUPÉE CÁCERES
CANO, Mesa Coordenadora Matilde Rodríguez, Liliana Giannastasio, Guillermina Berkunsky,
Patricia Londeix, Aurelia Pereyra, Luciana Ruíz. Criada em 1994, Tandil (Buenos Aires)
- ASOCIACION JUANA MANUELA, Nora Bajón, Presidenta, criada em 1994, cidade de
Rosario
- ASOCIACION MUJERES MERETRICES DE ARGENTINA – AMMAR, Elena Eva Reynaga,
Presidenta. Carmen Estrella Bazan, Secretária, criada em 1995.
- CASA DE LA MUJER, Mirta Iglesias, Presidenta. Miriam Sosa, Secretária, criada em 1995,
Puerto Madryn (Chubut)
- COLEGIO PUBLICO DE ABOGADOS DE LA CIUDAD DE BUENOS AIRES. Comisión de
la Mujer, Jorge Bacque, Presidente, constituído como entidade de Direito Público em 1995
- ESCRITA EN EL CUERPO. ARCHIVO Y BIBLIOTECA DE LESBIANAS, MUJERES
BISEXUALES Y DIFERENTES, Alejandra Sardá, Coordenadora Geral. Chela Amadío,
Coordenadora da Biblioteca. Criada em 1995.
- EQUIPO DE SEGUIMIENTO, INVESTIGACION Y PROPUESTA DE POLITICAS
PUBLICAS – ESIPP, projetos coordenados por: Ana Falú, Norma Sanchís e Haydeé Birgin,
criado en 1996.
As 30 associações mencionadas se organizaram com a finalidade de trabalhar com temas
relativos à mulher. Seus interesses podem se resumir nos seguintes: analisar a situação da
mulher nos diferentes âmbitos sociais, lutar pelos direitos das mulheres e a igualdade de
gênero. Os temas aos que se dedicam são: direitos da mulher; violência familiar; eqüidade
nas condições de trabalho; erradicação de formas de discriminação; políticas dirigidas à
mulher; direitos sexuais e reprodutivos; saúde; relações de gênero; homossexualidade. As
atividades mencionadas são: pesquisa, assessoria (por exemplo, legal ou psicológica),
publicação, difusão, capacitação, consultoria, prevenção e assistência de diferente
modalidade (por exemplo, técnica ou direta)
112
. Segundo o levantamento do Directorio de
Organizaciones de Mujeres (op.cit), as fontes de recursos destas associações estão
distribuídas da seguinte maneira
113
:
Cotas de filiação 14%
Doações individuais 11,5%
Doações 11%
Eventos de arrecadação de fundos 9%
Atividades educativas 7%
Subsídios 7%
ONGs estrangeiras 7%
Venda de publicações 5,5%
Pagamento por serviços 5,5%
Governo Nacional 5,4%
Serviços de consultoria 5%
Empresas 4%
Agências Multilaterais 3,5%
Agências governamentais estrangeiras 3%
Cooperação Bilateral 1,6%
A história das associações mencionadas, que surgiram na mesma época e influenciadas por
um mesmo contexto, foi heterogênea. Algumas muito importantes para a história do
feminismo autônomo, e citadas na história do feminismo como Lugar de Mujer ou
112
Das associações mencionadas, só 2 são definidas como feministas (ADEUEM e Condición Femenina). É
provável que num Directorio de Organizaciones de Mujeres, as organizadoras ou as responsáveis pelas
organizações tenham evitado a referência a esta categoria que delineia, dentro da categoria mulheres, um
pertencimento muito específico.
113
Dados extraídos de UNIDAS – Directorio de Organizaciones de Mujeres (op.cit.).
Derechos Iguales para la Mujer (DIMA), desapareceram. Em alguns casos, como o Taller
Permanente de la Mujer, deram lugar a outras como a Librería de las Mujeres. Algumas
delas preservam laços mais estreitos com o que se denomina militância de base, enquanto
outras se inseriram, paulatinamente, na trama das relações internacionais, especializando-se
em seus códigos.
2.1 Espaços de construção de expertise na Argentina
Houve, na Argentina, um momento histórico onde a criação de espaços alternativos de
educação superior favoreceu o desenvolvimento de estudos e projetos sobre o tema mulher
(embora não necessariamente feministas)
114
. No início dos anos 80, algumas das pessoas
que hoje integram as redes internacionais fizeram parte desses espaços, como é o caso do
Centro de Estudios de Estado y Sociedad (CEDES), fundado em 1975 por um grupo de
intelectuais das ciências sociais. Da mesma forma que as ONGs de mulheres, esses lugares,
são criados como “associações civis”, orientadas para a pesquisa, que se propõem a estudar
“os problemas sociais, políticos e econômicos da Argentina e da América Latina”. O
argumento que motiva a criação do CEDES é descrito em sua página da web como a
situação institucional grave da Argentina nesse momento e o “quadro de crise” que afetava
as instituições acadêmicas e de educação superior mais importantes. A seguir, cito o relato
de como surge o CEDES tal como aparece em sua página na Internet:
Un grupo de profesionales de las ciencias sociales, decidió entonces la
creación del Centro, con el propósito de constituir un espacio
independiente y pluralista, capaz de cobijar y dar continuidad al trabajo
de investigación y pensamiento que venían desarrollando previamente en
otros ámbitos. Se dio a la Institución la forma de una asociación civil,
independiente del Estado, de los partidos políticos y de cualquier
empresa u organización social en particular. Esta independencia ha
sido siempre uno de los rasgos centrales de la labor del Centro. (Grifos
meus)
114
Neiburg e Plotkin mostram como nos anos posteriores à Revolución Libertadora (1955) ocorre um
processo acelerado de internacionalização dominado por duas palavras-chave: modernização e
desenvolvimento. Trata-se de um amplo movimento de transformação das ciências sociais e da gestão do
Estado, em que foi crucial a importância das instituições educativas alternativas que elaboraram projetos de
ação política fora da administração estatal e da universidade. Embora os autores analisem a transformação do
campo econômico, trata-se de um processo amplo que engloba o campo das ciências sociais em geral
(NEIBURG et PLOTKIN, 2004).
Como as outras associações civis criadas a partir dos anos 80, o CEDES também destaca
sua posição “independente” do Estado, dos partidos políticos e de qualquer empresa ou
instituição, imprimindo à sua imagem desinteresse e neutralidade, complementados por
seus objetivos ligados ao saber. Foram também as conexões e o financiamento
internacional que permitiram o surgimento destas instituições
115
:
Tanto por sus numerosos vínculos internacionales como por la fuerte
presencia de la problemática regional en las investigaciones del Centro, ha
tenido y tiene actualmente un papel importante en la actividad del CEDES
la participación en redes académicas con diversas instituciones de
América Latina, de los Estados Unidos y de otros países como
Canadá, Sudáfrica e India, con las que es frecuente la realización de
trabajos conjuntos o realizados en coordinación. (Grifos meus)
Algumas sociólogas integrantes do CEDES se dedicaram aos trabalhos sobre mulheres,
entre elas, Elizabeth Jelin, María del Carmen Feijóo, Mónica Gogna e Silvina Ramos. Em
1983, criou-se a Área de Saúde, Economia e Sociedade. O objetivo da área foi definido
como “a pesquisa social em sistemas, políticas e programas de saúde, focalizando,
especialmente, o campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos”. Enquanto que a
produção da área propõe “contribuir al avance del conocimiento científico, al
fortalecimiento del debate público informado y al diseño, implementación y evaluación de
políticas públicas que promuevan la equidad social y de género”
116
.
Em 1993, foi criado o Programa de Saúde Reprodutiva e Direitos Sexuais e Reprodutivos,
com o apoio da Fundação Ford. Mónica Gogna e Silvina Ramos são atualmente
pesquisadoras principais da Área Saúde, Economia e Sociedade na qual se desenvolve o
Programa mencionado. Maria del Carmen Feijóo é atualmente Oficial de enlace, do Fundo
de População das Nações Unidas (FPNU), na Argentina, docente universitária e
pesquisadora do CONICET
117
.
115
Os dados sobre o CEDES foram extraídos da página web da instituição: http://www.cedes.org/, 2006.
116
Esta área faz parte da rede de colaboração da Organização Mundial de Saúde.
117
O FPNU financia, atualmente, um projeto do Consórcio Nacional pelos Direitos Reprodutivos e Sexuais
(CoNDERS) que, em coordenação com grupos e organizações de diferentes lugares do país, realizam
atividades para monitorar a aplicação da lei de saúde sexual e reprodutiva. As mulheres do CoNDERS se
reconhecem como militantes feministas.
Outro desses espaços acadêmicos nascido na década de 70 foi o Programa da FLACSO
Argentina, criado em 1974 e que, em 1992, viu-se firmar um acordo para o estabelecimento
de uma Sede Acadêmica no país. Também aqui se desenvolveu uma área especializada no
tema mulher que, a partir dos 90, será denominado mais comumente como “gênero”. Em
2001, foi criada a Área Gênero, Sociedade e Políticas e, depois, dois programas, que
incluem outros países da América Latina, denominados “regionais”: o Programa Regional
para a Formação em Gênero e Políticas Públicas (PRIGEPP) e a Cátedra regional UNESCO
Mulher, Ciência e Tecnologia na América Latina, ao qual estão vinculados México, Brasil,
Uruguai, Venezuela e Cuba
118
. Tanto a área como os programas estão a cargo de Gloria
Bonder, uma das feministas entrevistadas por Chejter, em 1984.
Outro centro importante, uma vez que trabalhou com o tema mulher quase desde o seu
início, é o Centro de Estudios de la Población (CENEP). Define-se como “uma associação
civil sem fins lucrativos que iniciou suas atividades em 1º. de junho de 1974, na Cidade de
Buenos Aires”. A articulação entre estas instituições e entre seus membros sugere a
existência de uma comunidade de intelectuais que na época participaram de vários
programas de internacionalização e aderiram a seus temas e projetos
119
.
Além de se concentrarem em fundações e associações criadas para a defesa dos direitos da
mulher e em instituições de educação superior, alternativas às universidades nacionais,
muitos dos trabalhos dessas intelectuais, que se tornaram especialistas em mulheres, foram
118
A título de ilustração e para mostrar as diferentes formas de internacionalização que o tema mulher
adquiriu impulsionado por organismos internacionais, vale a pena citar que o PRIGEPP foi criado com o
apoio da União Européia e que sua “comunidade de formados/as” está composta por mais de 200
profissionais de19 países da América Latina e o Caribe e 5 outras regiões responsáveis por projetos em
ONGs, Universidades, Organismos Governamentais e de Cooperação, Secretarias da Mulher. Este Programa
também firmou os seguintes convênios: Convênio de Cooperação Acadêmica com CLACSO (Conselho
Latino-americano de Ciências Sociais); Convênio de desenvolvimento de seminários com UNIFEM e seu
escritório regional para o Cone Sul, com sede no Brasil, Convênio de intercâmbio e assistência técnica com a
Unidade Mulher e Desenvolvimento da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e o Caribe).
Dados extraídos do sítio web: http://www.prigepp.org/site/presentacion/institucional.asp, 2006.
119
Na conferência inaugural da VI Jornadas de História das Mulheres e I Congresso Ibero-americano de
Estudos da Mulher e de Gênero, a historiadora Marysa Navarro conta que este processo [de criação de centros
de pesquisa em ciências sociais] foi impulsionado pelo seminário patrocinado pela Fundação Ford sobre
Perspectivas Feministas nas Ciências Sociais da América Latina, realizado no Instituto Di Tella, em 1974, o
qual foi um verdadeiro marco, pois determinou o começo de várias reuniões (em Weslley 1976, México 1977
e Rio de Janeiro 1978) nas quais, apesar dos enfrentamentos, ou talvez por eles, foram se delineando
diferenças, surgindo novas perguntas, ao mesmo tempo que se ampliavam os temas a serem pesquisados nas
ciências sociais (NAVARRO, 2001:110).
publicados pelas editoras dessas instituições. Ademais, fazem referência e citam umas às
outras solidificando, desta maneira, não apenas um campo específico de saber, mas também
um âmbito de pertencimento e um diálogo intelectual no qual geralmente também se
reconhece um vocabulário específico
120
. Um exemplo que ilustra esta situação é o seguinte
parágrafo, extraído da introdução a Unidas, Directorio de las Mujeres (1999, op.cit.), no
qual Norma Sanchís escreve:
La participación de las mujeres en las organizaciones comunitarias
comenzó a hacerse evidente como una forma de apropiación del espacio
público, en el que muchas veces desempeñaban roles que constituían una
prolongación del espacio doméstico. En los años de apertura democrática
se generaron debates e intentos de conceptualización del carácter de esa
participación social y del rol que las mujeres jugaban en ella. (SANCHÍS,
1999)
Além de dar forma a determinados conceitos habituais para falar de as mulheres (espaço
doméstico, espaço público, participação das mulheres) a autora também cita, como
trabalhos que tratam deste fenômeno, as seguintes publicações:
Jelin, Elizabeth “Las mujeres y la participación popular: Ideas para la
investigación y debate”, em UNRISD, 1982;
Jelin, Elizabeth “Familia y unidad doméstica: mundo público y vida
privada”, Estudios CEDES, 1984.
Feijóo, María del Carmen, “Las Luchas de un barrio y la memoria
colectiva”, Estudios CEDES, 1981; “La mujer en los barrios: de los
problemas locales a los problemas de género”, 1984;
Birgin, Haydée: “La transición democrática: Un desafío para la acción de
las mujeres”, Secretaría Parlamentaria, 1985;
Bianchi, Susana y Norma Sanchís: “Organizaciones de Mujeres:
potencialidades y límites”, em Participación Política de la Mujer en el
Cono Sur, Fundación F. Naumann, 1987 (Grifos meus).
120
O pertencimento a estas esferas exige, além de determinadas propriedades sociais, o uso de uma linguagem
específica. O treinamento no uso dessa linguagem é condição necessária para ter acesso aos financiamentos.
Assim, vai se reproduzindo o uso de categorias abstratas por meio das quais se descrevem as mais diversas
realidades empíricas. As organizações não governamentais e centros acadêmicos que têm acesso a
importantes financiamentos (MEI; ISPM; FLACSO; CEDES; FEIM) difundem um tipo de discurso sobre as
mulheres ou a discriminação feminina em concordância com os organismos internacionais que financiam suas
atividades. Suas práticas e interpretações sobre a situação das mulheres se organizam ao redor de conceitos
como cidadania, igualdade, transparência, empoderamento [empowerment], governabilidade, advocacy,
entre outros.
Uma breve análise das publicações do CEDES, CENEP e do Centro Editor de América
Latina (CEAL) também mostra a convergência das autoras em coleções e temas
121
.
2.2 Sempre as mesmas: uma nova elite do feminismo?
Uma das queixas que ouvi das feministas que se autodenominam autônomas é que “os
subsídios sempre são dados às mesmas, que já sabemos quem são”. Se prestarmos atenção
nos dados citados anteriormente, que indicam as fontes de recurso das organizações não
governamentais, a porcentagem de financiamento de agências internacionais é
relativamente baixo, comparado às cotas de filiados, de doadores individuais e de doações.
A seguir, menciono algumas das associações que recebem financiamento internacional e as
fontes de recurso que enunciam
122
: o Centro de Estudios de la Mujer (CEM): atividades
educativas, venda de publicações, cooperação bilateral, agências multilaterais, agências
governamentais estrangeiras, pagamento por serviços, ONGs estrangeiras, serviços de
consultoria e cotas de filiação; o Instituto Social y Político de la Mujer (ISPM): Agências
multilaterais, ONGs estrangeiras; Mujeres en Igualdad (MEI): UNIFEM, Fundación Sergio
Karakachof, British Council, Global Found for Women; a Fundación para Estudio e
Investigación de la Mujer (FEIM): doadores individuais, venda de publicações, governo
nacional, agências governamentais estrangeiras, ONGs estrangeiras, empresas, subsídios.
Estas associações e as mulheres que as dirigem são parte das redes internacionais
especializadas em mulheres e/ou gênero, às quais farei breve referência.
O CEM constituiu-se como Associação Civil em 1979 e esteve dirigido, desde o início, por
Gloria Bonder e Cristina Zurutuza, ambas formadas em psicologia na Universidad de
Buenos Aires. É o primeiro antecedente no país dos estudos da mulher que se consolidou
por fora das estruturas universitárias. Criou-se como corolário das Primeras Jornadas
Multidisciplinarias Ubicación de la Mujer en la Sociedad Actual, organizadas por um
121
As publicações sobre o que se poderia considerar “temas de mulheres” apareceram especialmente a partir
de 1983 na coleção “Biblioteca Pública Argentina” do Centro Editor da América Latina, que com a abertura
democrática começou a publicar livros de bolso semanalmente com o objetivo de “contribuir para a
reconstrução democrática e social de nosso país”. Outra das publicações que trataram desses temas é a revista
dirigida por Felix Luna, Todo es Historia, que existe desde 1967.
122
Dados extraídos de UNIDAS. Directorio de Organizaciones de Mujeres (1999) e das páginas web das
organizações, 2006.
grupo de mulheres que se reunia desde 1979 para “discutir e refletir sobre a situação da
mulher”
123
. Segundo dados publicados em UNIDAS Directorio de Organizaciones de
Mujeres (op. cit) o CEM “nuclea a un grupo de profesionales de larga trayectoria en la
temática de género provenientes de distintas disciplinas y ha incorporado como
colaboradoras a jóvenes estudiantes universitarias o graduadas recientes” (grifo meu). Entre
seus objetivos menciona-se
promover la equidad de género, a través de programas de investigación,
capacitación y acción comunitaria y contribuir a la formulación,
implementación y evaluación de políticas públicas y programas sociales
para el logro de la igualdad de oportunidades entre los organismos de
gobierno y no gubernamentales.
Atualmente, o CEM é, nas palavras de várias militantes, um “elefante branco”, mas suas
fundadoras integram a rede de experts internacionais especializadas em temas de mulheres.
Como mencionei anteriormente, Gloria Bonder é Diretora da Área Gênero, Sociedade e
Políticas Públicas da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO) e Cristina
Zurutuza é membro do Conselho Honorário Consultivo do Comitê da América Latina e o
Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), criado em 1987.
Segundo a apresentação em sua página da web a Fundación para Estudio e Investigación
de la Mujer (FEIM) é
una Organización No Gubernamental sin fines de lucro, creada en 1989
por un grupo de mujeres profesionales especialistas en género. Tiene
como objetivo desarrollar investigaciones, estudios, programas, proyectos,
cursos y otras actividades para mejorar la condición social, laboral, legal,
política, económica, familiar y de salud de las mujeres en la Argentina.
(grifo meu)
Dentro da apresentação também se menciona que “Desde su creación FEIM ha desarrollado
programas y proyectos sociales sobre Derechos de la Mujer, Mujer y Medio Ambiente,
Tercera Edad, Salud Sexual y Reproductiva, Embarazo Adolescente, Sexualidad, ETS y
123
Estas Jornadas internacionais e interdisciplinares que tiveram uma duração de dois meses foram
organizadas pelo Instituto Goethe e realizadas na cidade de Buenos Aires. Segundo o testemunho de Cristina
Zurutuza, citado por Marcela Nari, consistiam na discussão de trabalhos apresentados por pesquisadores
nacionais e estrangeiros nos quais se começava a debater sobre o feminismo e os estudos de gênero. A origem
destes debates estava nos países europeus ou nos EUA. Depois das Jornadas, o CEM se constituiu como uma
Associação Civil, integrada por mulheres profissionais como psicólogas, advogadas e sociólogas (NARI, M.,
1996).
VIH/SIDA”. Por sua vez, MEI se define como uma entidade de bem público, sem fins
lucrativos, criada em 1990 por Zita Montes de Oca, uma das primeiras funcionárias
públicas a cargo de organismos estatais dedicados a temas de mulheres
124
. Como objetivos
mencionam “promover la igualdad de oportunidades y resultados entre mujeres y varones a
través de la participación y el empoderamento de las mujeres en la vida política,
económica, social y cultural, como base permanente de una democracia partidaria”. Entre
as atividades que realizam, destacam a organização e participação de seminários dirigidos a
mulheres, a promoção e desenvolvimento de projetos de capacitação e ação em interação
com outras ONG’s
125
. Mujeres en Igualdad é particularmente conhecida pelo programa “De
representantes e representadas” que organiza uma vez ao mês os “Cafés da Manhã de
Mulheres”, nos quais reúnem, na cidade de Buenos Aires, funcionárias, legisladoras,
sindicalistas, acadêmicas, empresárias e militantes para discutir temas da “agenda política”.
Este ano os cafés da manhã de MEI, que já superaram o número cem, foram realizados pela
primeira vez em diferentes províncias e cidades do país, com o apoio financeiro de
UNIFEM. MEI denominou este projeto “federalização dos cafés da manhã”
126
.
O Instituto Social e Político da Mulher se define como uma ONG “multidisciplinar e
pluralista” que começou a funcionar como grupo de trabalho em 1986, embora tenha se
constituído juridicamente em 1993. Segundo o relato oficial, este grupo estava integrado
por mulheres provenientes de todos os âmbitos – militância social, acadêmica, feministas e
técnica – que:
sensibilizadas por la situación y la problemática de las mujeres argentinas
han decidido unir sus esfuerzos en pos de contribuir a hacer más efectivas
las acciones que posibiliten cambios en la condición de la mujer y
modificar así los comportamientos de la población en su conjunto con el
fin último de concientizar sobre los derechos humanos. (…) (Grifo meu)
124
Zita Montes de Oca foi Coordenadora da Secretaria de Desenvolvimento Humano e Família do Ministério
de Saúde e Ação Social (responsável pelo Programa de Promoção da Mulher e Família) e Subsecretária da
Mulher durante o governo de Raúl Alfonsín (1983-1989).
125
As citações e dados desse subcapítulo foram extraídos do folheto da Fundación Mujeres en Igualdad.
126
Nessas reuniões, realizadas em hotéis centrais da cidade, mulheres com estilo executivo levemente
informal trocam informações e discutem sobre encontros, seminários, nomeações de mulheres no Estado
(como é o caso de “as mulheres na Corte Suprema de Justiça”), projetos, leis, eventos, conferências,
apresentações de livros, etc. É um espaço utilizado para difundir atividades de suas próprias organizações. O
último café da manhã, número 118, foi realizado em outubro de 2006 na cidade de La Plata.
No caso de ISPM, a articulação com as agências internacionais é explícita, não só quando
se mencionam suas formas de financiamento, mas também quando se referem a sua forma
de funcionamento
127
Funcionamos en permanente articulación con el resto de las ONGs, con
UNIFEM y otras agencias de Naciones Unidas, a quienes mantenemos
informadas de nuestras actividades, de quienes recibimos información y
con quienes diseñamos y evaluamos estrategias conjuntas según la
temática (p.ej.: en materia de derechos reproductivos, integrando
"Mujeres autoconvocadas" con otras 180 ONGs.). Estamos en contacto,
también, con otras ONGs de América Latina, Estados Unidos y Europa y
con organismos internacionales, que trabajan los mismos temas. Algunas
de ellas nos han dado subsidios para implementar programas o realizar
viajes de capacitación (CEPAL), The Global Fund for Women, Mama
Cash, AWID, Friedrich Nauman Foundation, Asociación Mujeres Jóvenes
de España, Friedrich Ebert Foundation, Center for Women´s Global
Leadership, Ford Foundation y Body Shop Foundation. (Grifo meu)
Na apresentação de cada associação aparecem os elementos que caracterizam as redes
internacionais especializadas: demonstração de compromisso com a situação das mulheres,
uso de uma linguagem técnica especializada, status jurídico da associação, perfil intelectual
e administrativo da associação e de seus integrantes, realização de articulação com outras
ONGs dedicadas a temas de mulheres. As organizações mencionadas são algumas das
quais, surgidas a partir da década de 80, desenvolvem capacidades necessárias para se
tornarem intermediárias entre as agências financiadoras e outras ONGs de menor status. As
formas sobre as quais se assenta a internacionalização dos temas de mulheres (institutos,
centros, associações, redes, fóruns) permitiram que essas ONGs criassem estratégias para
interagir com outros grupos menores, evitando recorrer às instituições tradicionalmente
legítimas como o poder judicial ou os representantes legislativos. Esta articulação se vê
facilitada pelo reconhecimento oficial dos organismos internacionais e também com a
universalização do status dos direitos das mulheres a partir das Conferências Mundiais e
instrumentos jurídicos como convenções e pactos, entre outros.
O desenvolvimento de uma expertise em temas de mulheres e/ou temas de gênero exige
competências que poucas possuem e às quais outras dificilmente podem ter acesso. É
necessário dominar, no mínimo mais de um idioma (especialmente inglês), treinar na
utilização de uma linguagem específica (gender equality, empowerment, advocacy,
127
Dados extraídos da página web do Instituto, www.ispm.org.ar
sustainable development, sexual health, international legal framework), o conhecimento da
ação das redes internacionais e de seus instrumentos jurídicos. A condição de desenvolver e
sustentar estas competências, para ser parte dos espaços internacionalizados, tem como
resultado a configuração de redes fechadas que reúnem informação, recursos e interesses de
experts de diferentes nacionalidades que são vistas pelas demais feministas de cada país
como uma esfera autonomizada que desconhece as necessidades verdadeiras das mulheres
e acusadas de hegemonizar a representação do feminismo e da captação de recursos.
2.3 Silêncio na esfera internacional?
Muitos nomes de feministas argentinas, internacionalmente reconhecidas, estiveram
ausentes no meu trabalho de campo com as feministas autônomas. Comentando sobre
minha pesquisa com colegas – ou pessoas estrangeiras, ou que moram fora do país – estes
mencionaram com familiaridade nomes de mulheres que, embora eu conhecesse por ter lido
seus escritos, até o momento não haviam sido citados por nenhuma militante no espaço do
feminismo autônomo. Conheci seus nomes fora da Argentina. Outro ponto que merece ser
destacado é que na maioria dos sítios web das agências internacionais não aprecem em suas
páginas o perfil ou currículo de suas integrantes, às vezes nem sequer seus nomes. Com
exceção da International Women´s Health Coalition (Coalização Internacional pela Saúde
das Mulheres), que informa a respeito de suas representantes em diversos países do mundo,
muitas outras organizações só dão generalidades. No link “Quem somos?” aparecem
definições tais como:
UNIFEM es el fondo de Desarrollo de las Naciones Unidas para la Mujer.
Creado en 1976, provee asistencia técnica y financiera para iniciativas
innovadoras que promueven el empoderamiento de las mujeres y la
igualdad de género. En la actualidad, la labor del fondo influye en la vida
de mujeres y niñas de más de 100 países. También hace posible que las
voces de las mujeres se escuchen en el seno de las Naciones Unidas para
recalcar cuestiones fundamentales y para abogar por el cumplimiento de
los compromisos vigentes en favor de las mujeres.
IGTN (International Gender and Trade Network)
La Red Internacional de Género y Comercio surge como resultado del
Seminario de Mujeres p/ Planificación Estratégica en Género y Comercio
(Women's Strategic Planning Seminar on Gender and Trade) que se llevó
a cabo en Grenada entre 8-11 de diciembre de 1999. De esta reunión
participaron 48 mujeres de seis regiones del Norte y del Sur para
discutir el "libre" comercio y los impactos futuros de los nuevos
acuerdos comerciales sobre la vida de las mujeres. El Capítulo
Latinoamericano tiene como prioridad el seguimiento del proceso de
negociaciones del Acuerdo de Libre Comercio de las Américas (ALCA).
Ipas es una organización internacional no gubernamental que lleva tres
décadas trabajando para reducir la tasa de muertes y lesiones relacionadas
con el aborto; para ampliar la capacidad de la mujer de ejercer sus
derechos sexuales y reproductivos; y para mejorar el acceso a los
servicios de salud reproductiva, incluida la atención del aborto en
condiciones adecuadas. Entre los programas mundiales y nacionales de
Ipas figuran la capacitación, la investigación, la gestoría y defensa
(advocacy), la distribución de tecnologías en salud reproductiva y la
difusión de información. (Grifos meus)
128
As experts inseridas nas redes internacionais especializadas no tema mulher pertencem a
um universo intelectual de alto capital cultural e universitário que, a partir de suas
competências culturais e lingüísticas, souberam administrar e explorar os recursos
colocados à disposição pelos organismos internacionais desde os meados dos anos 70. Ao
analisar as trajetórias de algumas mulheres inseridas na trama da internacionalização do
tema mulher, a multiposicionalidade aparece como uma característica distintiva. Essa
característica não é só das mulheres argentinas, o mesmo perfil é requerido para as
mulheres dos diferentes países do mundo:
AWID é uma ONG global, que é a Associação pelos Direitos das
Mulheres no Desenvolvimento, que tivemos uma reunião em Guadalajara,
1200 mulheres de todo o mundo, perfil Lubertino da Índia, das
Filipinas... Por aí havia desde ex-candidatas a presidentas de alguma
país a Emma Bonino que foi Comissária Européia, a militantes de base,
meninas de Chiapas, ministras... Digo, heterogeneidadae, mas feministas
heavy, e o debate é como entramos nas instituições internacionais e
como fazemos que a globalização seja alternativa, diferente e que
distribua os bens... (...) Então, a questão é, estes movimento não esquece
sua agenda de direitos sexuais e reprodutivos, de reivindicações
específicas, mas agora está desafiado a encontrar idéias, respostas e levá-
las à prática, não só em relação aos direitos das mulheres
129
.
128
Os dados citados foram extraídos dos sítios web de cada uma das organizações: www.unifem.org.mx/,
2006;
www.generoycomercio.org/, 2006; www.ipas.org/spanish/, 2006.
129
Entrevista à advogada María José Lubertino. Ex-presidenta do Instituto Social y Político de la Mujer
(ISPM), realizada em Buenos Aires, em outubro de 2002. Conheci-a e falei pela primeira vez com ela na
apresentação do Contrainforme da CEDAW [Relatório Sombra da CEDAW] na Secretaria da Mulher do
Governo da Cidade de Buenos Aires.
As conexões internacionais do feminismo dos anos 70 dependiam, em grande parte, do
capital simbólico e econômico de algumas mulheres, que internacionalizaram a militância a
partir de uma rede pessoal de relações. De modo diferente, nas décadas de 80 e 90 a elite do
feminismo estará formada por mulheres de classe média, profissionais de diversas áreas
(médicas, advogadas, psicólogas, sociólogas), que vivem em centros urbanos, as quais se
tornaram experts no tema mulher e formaram parte de um grupo de intelectuais envolvidos
– ou relacionados – com instituições educacionais superiores, vinculadas a um circuito
internacional, não só de financiamento, mas de pessoas e instituições, tais como o Centro
de Estudios de Estado y Sociedad (CEDES), a Faculdade Latino-americana de Ciências
Sociais (FLACSO) ou a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL).
É necessário ressaltar que, após a internacionalização do tema mulher surgiram importantes
diferenças entre algumas das líderes, das centenas de associações surgidas nesses anos que
tiveram acesso às redes internacionalizadas, e o resto. Os organismos internacionais
outorgaram, a estas agentes sociais, as autorizações oficiais para trabalhar em seus países,
em nome dos direitos das mulheres e/ou falar sobre as mulheres de seu país, na cena
internacional, através do reconhecimento do status consultivo de suas associações, ou de
consultoras no caso de suas presidentas. Por exemplo, na página web de FEIM explicita-se
que desde 2006 FEIM “cuenta con Estatus Consultivo en Naciones Unidas y podrá, a partir
de esta denominación, participar con representantes oficiales ante las Naciones Unidas, a
las sedes oficiales en Nueva York, Ginebra y Viena, para asistir a todas las sesiones y
reuniones”. Por outro lado, no currículum vitae de Gloria Bonder, publicado no sítio web
da FLACSO, ela é apresentada como “consultora de organismos internacionais como
CEPAL, UNIFEM, UNICEF, DAW (UN), OEA, UNESCO e OPS e organismos
governamentais de países da América Latina”
130
.
Embora os perfis não sejam, necessariamente, homogêneos, uma das características comuns
a elas é o fato de ocuparem múltiplos papéis, tanto em espaços governamentais como não
governamentais, e não só na esfera internacional, mas também nos governos de seus países.
Assim, como mencionei anteriormente, não é possível compreender a dimensão
internacional do feminismo sem considerar os contextos históricos particulares e as
130
Dados extraídos do sítio web: http://www.prigepp.org/site/presentacion/institucional.asp, 2006
propriedades sociais das mulheres que o tornam possível. Como mostrarei brevemente nas
páginas que se seguem, a trajetória de várias delas mostra que seu capital de relações
pessoais, familiares e político-partidárias situa-as em relação privilegiada com o âmbito
nacional, onde ocuparam lugares dentro da burocracia estatal. Sua legitimidade provém,
então, de um jogo que mobiliza de maneira estratégica seus vínculos e experiências no
nacional e seus saberes e competências internacionais.
Escalas, competências e relações
Conforme já enunciado, o nacional e o internacional não podem ser compreendidos de
maneira separada. A internacionalização do tema mulher possibilitou a integração de
muitas mulheres a estas redes formadas em torno de determinadas bandeiras, nesse caso, o
compromisso com a defesa dos direitos das mulheres. Mas, por sua vez, nas trajetórias de
cada uma delas é muito comum que experiências anteriores de conexões internacionais e
relações privilegiadas no âmbito nacional lhes facilitem o aceso às redes internacionais.
Num jogo de idas e vindas, as posições privilegiadas no nacional facilitam o acesso ao
internacional, e o ingresso à cena internacional aumenta as possibilidades dos múltiplos
pertencimentos e a margem de ação destas feministas no cenário nacional.
Desse modo, as condições de acesso aos espaços governamentais costumam exigir algo
mais que as credenciais do pertencimento ao internacional. Como mencionei no ponto
“Feministas com conexões internacionais”, referindo-me ao caso das pós-graduações, o
capital de relações sociais parece ser definidor na hora de garantir um lugar nos espaços
estatais. Assim, vínculos cultivados a partir da realização de pós-graduações, no exílio, na
militância política ou em seus âmbitos de inserção profissional possibilitam a presença de
feministas na função pública. Cito, adiante, dois testemunhos que percebem que o
compromisso feminista, as competências profissionais e as expertises não são suficientes
em si mesmos para ingressar à esfera estatal e o que se requer, nesses casos, é um
conhecimento pessoal que outorgue signos de confiança. Isso nos aparece como uma
característica definidora das relações na política partidária, que no seguinte testemunho se
vislumbra sob a categoria nativa de “se conhecer politicamente”:
Acho que o feminismo, o que fez foi colocar o tema. Hoje não é possível
ignorar certos temas, porque senão simplesmente não se é moderno. É
certo que ter estado nós, todas juntas, no governo de Alfonsín foi um
aborto…
P: Você estava ocupando que papel?
R: Eu organizava o Programa. Lembro-me que [Elizabeth] Jelin, Mary
[Maria del Carmen] Feijóo me diziam: olha, nós escrevemos mais que
você e ninguém nos chamou. E eu digo, me chamaram porque não leram
o que escrevi. Me chamaram por razões estritamente políticas. Não é que
me chamaram porque era feminista.
P: Você é radical?
R: Fui radical em 89, venho da esquerda. Estive exilada no México, mas
me chamam porque me conhecem politicamente, era uma coisa como
solidária comigo. Era gente radical que também estava no exílio.
Disseram o que é o que você quer e disse quero isso. (...) (Grifos meus)
P: E no Ministério, como entra? Como é que convocam você?
R: Porque o Ministro era meu marido. E aí tinha todas as dificuldades...
P: Todas as vantagens e todas as dificuldades...
R: Todas as dificuldades! Não, não, não. Porque meu marido não é
chegado à família Sempre trabalhamos juntos. Foi um acidente de
trabalho na escola de Saúde Pública. (....) E eu levo ao Ministério todas as
minhas conexões...
Nos dois testemunhos fica claro que a rede de relações de amizade, profissionais e de
parentesco são dados relevantes para compreender como se constrói a relação entre o
nacional e o internacional. Ao colocar a ênfase nesses testemunhos, não estou sugerindo um
exercício impróprio da política, sinalizado pelo favoritismo ou pelo nepotismo. Tal como
aparece ressaltado nos testemunhos, o que prima é uma identificação ideológica num caso
(solidariedade pelo exílio compartilhado) e em outro uma identificação profissional –
“sempre trabalhamos juntos” –, mas ambas atravessadas por uma dimensão subjetiva do
conhecimento prévio.
O que tento mostrar é a importância das redes de relações que se construíram num
momento histórico particular para compreender como o pertencimento, a determinados
círculos de intelectuais ou militantes de partidos políticos e a determinadas instituições,
favoreceu o ingresso de algumas feministas, seja no cenário do feminismo internacional ou
em outros, à ocupação de cargos intermediários dentro do Estado nacional.
131
. Para fazer
131
Apesar de não ser essa a dimensão que privilegio neste trabalho, considero que seria extremamente
enriquecedor, para uma melhor compreensão do feminismo, realizar um estudo a respeito de como os
vínculos familiares e de amizade destas mulheres afetam sua prática militante. Quem são seus pais/mãe,
esposos/as, irmãos/ãs, filhos/as? Jean-Pierre Faguer (1995) em seu livro Khâgneux pour la vie. Une histoire
des années soixante mostra como influenciam de maneira diferencial, segundo se trate de homens ou
parte de determinadas redes é necessário possuir determinados capitais e, por sua vez, há
capitais específicos que só podem ser cultivados nessas redes. Essas mulheres são parte de
um ambiente intelectual que pertence especialmente à cidade de Buenos Aires, a qual não é
possível ter acesso demonstrando somente compromisso com a situação das mulheres, mas
determinadas propriedades sociais, que são as condições de possibilidade requeridas para
construir esse tipo de trajetória.
3. Um feminismo nacional, autônomo?
La onegeización del movimiento ha
hecho puré al movimiento de mujeres
Militante feminista
Considero que uma análise das “escalas” nacional e internacional, mais que representar
níveis que fazem alusão a espaços geograficamente delimitados, permite mostrar a
constituição de espaços sociais organizados baseados em determinados princípios. Assim,
as redes internacionais, cuja bandeira é a defesa dos direitos das mulheres, nucleiam
mulheres de diferentes países do mundo com propriedades sociais semelhantes. Enquanto
que os espaços onde feministas reivindicam a autonomia e atualizam as relações e os
valores do feminismo como movimento situam-se fora desta dimensão e se denominam
“nacionais”.
Depois do VIII Encontro de Mulheres Feministas da Argentina, realizado na cidade de
Tandil, em 2003, não houve mais organização de Encontros de Mulheres Feministas até o
momento. Naquela oportunidade, reuniu-se em torno de 80 mulheres provenientes de Entre
Rios, La Plata, Capital Federal, Córdoba, Rosario, Tandil, Conurbano Bonaerense e Ramos
Mejías. No Encontro anterior, realizado em Ramos Mejía, a convocatória chegou a 144
mulheres. A grande maioria das que participaram do último encontro era de profissionais –
mulheres, as diferenças de classe e de lugar de residência (Paris ou provincia) no mercado matrimonial da
época. Visto que o sistema escolar francês é um lugar de aprendizagem profissional e social. O capítulo 3
mostra especialmente que “les Khâgneuses não são as irmãs de “les khâgneux”.
advogadas, sociólogas, médicas, psicanalistas e antropólogas. Suas idades variavam entre
25 e 70 anos. O grupo majoritário estava entre as mulheres de 28 e 39 anos e entre 50 e 60
anos, com uma participação muito escassa (duas mulheres) entre 40 e 50 anos
132
. As
experts inseridas nas redes internacionais não participaram do último Encontro, salvo
algum caso excepcional. O motivo, segundo uma delas, além da idade, estaria relacionado
com a posição que “alguns setores” têm a respeito da vinculação com os organismos
internacionais:
P: Você participa dos Encontros Nacionais Feministas?
R: Bem, agora, não estou mais participando dos Encontros Feministas e
tampouco vou aos Encontros de Mulheres, procuro não ir porque já estou
um pouco velha. Já trabalhei muito nos Encontro Feministas e trabalhei
muito no último, que foi em San Bernardo, inclusive criamos lá o 28 de
Setembro como o dia pelo Direito ao Aborto com a Rede... Costumava ir,
agora procuro não ir mais a esses, mas bem...
P: Por quê?
R: Acho que já cabe a outras e porque, além disso, tem algumas coisas
dentro do movimento feminista, sobretudo na América Latina, de alguns
setores, que começaram a colocar contra isso de trabalhar nas Nações
Unidas e trabalhar vinculado aos governos. Acho que tem que trabalhar
com os governos e acho que tem que trabalhar com as Nações Unidas. E
acho que tem que trabalhar com os governos, sejam amigos ou inimigos.
E não tem que deixar se cooptar pelos governos, isso também... Eu,
quando tive responsabilidade nos governos, deixei as instituições porque
acho que não tem que misturar as coisas. (Grifo meu)
Essas ausências provocadas, de acordo com quem recebe financiamento internacional e/ou
integram redes internacionais pelas acusações das que se consideram autônomas, são
motivo de discussão nos Encontros Nacionais de Mulheres Feministas. Por exemplo, em
2001, no VI Encontro realizado em Santa Fé, na conclusão de uma das oficinas, apareceu o
tema:
Um dos temas mais debatidos e conflituosos foi o tema das correntes
feministas, se cabe falar de correntes e outros. Algumas se perguntavam
sobre algumas ausências de mulheres aqui. Relacionado com o fato de
que não são só mulheres políticas e partidárias, mas porque são
mulheres que trabalham em instituições, que estão ligadas a
132
A porcentagem de participantes do VII Encontro realizado em Ramos Mejía, conforme o lugar de
procedência das mulheres, foi o seguinte: Capital Federal: 84 (58,33%); Província de Buenos: 44 (30,55% ).
Na província de Buenos Aires a porcentagem de participantes está distribuída da seguinte maneira: La Plata
(9) 6,25%; Ramos Mejía (4) 2,77%; Morón (4) 2,77%; Claypole (4) 2,77% e Tandil (3) 2,083%; Provincia de
Santa Fe: 4 (2,77%); Provincia de Córdoba: 9 (6,25%); Provincia de Mendoza (Las Heras): 1 (0,69%); e duas
participantes da Bolívia (La Paz) que corresponde a 1,38%.
organismos internacionais. Presenças que costumam estar e que hoje
não estão. Isso foi também um tema de debate, o tema de quem está,
quem somos e quem falta. (Grifos meus)
Num balance do último Encontro, realizado por Marta Fontenla e publicado na revista
Brujas, a falta de participação aparece como um tema preocupante. Novamente estabelece-
se um diálogo com as ausências. Por um lado, menciona-se a escassa presença de
“feministas do interior” (isto é, de outras províncias que não seja Buenos Aires): “Esta es
una de las cuestiones más difíciles y críticas que enfrentamos en la construcción del
movimiento y proyecto político que incluya acuerdos con feministas de todas las provincias
y conocimiento de todas las realidades”. E, por outro lado, fala-se de uma “deserção” que
se explica pelas “tendências feministas” e os “espaços de inserção”:
Son varias las causas que han llevado a que muchas mujeres, entre las que
se incluyen especialmente las feministas de Capital Federal y conurbano,
deserten de estos espacios y de la posibilidad de llevar adelante sus
propuestas más radicalizadas. Los acuerdos se dan por grupos afines en
las tendencias feministas y por inserción en distintos espacios:
participación en partidos y grupos políticos, en el Estado, en ONGs,
feministas autónomas, feministas heterosexuales, feministas lesbianas,
etc. Lo que determina formas de hacer política y dificultades para
construir un proyecto político colectivo” (BRUJAS, 2004:69-70)
Assim, as que participam desses encontros “nacionais” geram diálogos com quem está
ausente. Outra das preocupações recorrentes é a pergunta sobre a existência do movimento
feminista. Na síntese de uma das oficinas do VI Encontro de Mulheres Feminista, na qual
se discutiu sobre o eixo Existe um Movimento Feminista na Argentina?, enfatizou-se
novamente os diversos feminismos:
No obstante hay consenso en que no existe hoy un movimiento
feminista en la Argentina. En todo caso existen diferentes corrientes,
grupos, agrupaciones feministas y feministas individuales. Hubo acuerdo
que es necesario construirlo a partir del germen que hoy existe. Dentro de
las diferentes concepciones aparecen algunas como irreconciliables
entre sí (desconfianzas mutuas entre las llamadas autónomas y las
llamadas institucionalistas), lo que nos lleva a interrogarnos si es posible
ahora un pacto entre nosotras. Consideramos que no se atenta contra los
principios éticos del feminismo si grupos u ONGs reciben fondos para
implementar programas, proyectos que contribuyan al mejoramiento de la
situación de las mujeres, siempre y cuando se lo haga en forma
transparente, se difunda y democratice toda la información y con
posibilidad de rendir cuentas. Lo mismo sucede con la participación de
las mujeres en política: cuando vemos a una mujer en una lista de
candidatos, las feministas nos embalamos, la propagandizamos, incluso la
votamos, pero luego no la acompañamos, no exigimos respuestas desde el
lugar en que ella está, nos manejamos con los prejuicios patriarcales que
las mujeres se masculinizan en el poder. Otro ejemplo es la participación
de las feministas en los llamados a las Marchas Mundiales por la Paz o
contra el Hambre: podemos dar respuestas individuales, pero no
colectivas, no como movimiento feminista. (Grifos meus)
No mesmo Encontro, enquanto em algumas oficinas as militantes discutiam a inexistência
do movimento feminista na Argentina, na plenária propunham a elaboração de um
documento do Encontro “para se visibilizar como movimento” no Encontro Feminista
Latino-americano e do Caribe – que seria realizado no ano seguinte, na Costa Rica –, e a
criação de uma lista (para comunicação via correio eletrônico) do Movimento Feminista da
Argentina com a finalidade de manter a comunicação e conhecer as ações de outros
grupos
133
. Na resenha escrita pelo coletivoHuellas Feministas”, de Córdoba, sobre o VII
Encontro de Mulheres Feministas se destaca que a pergunta sobre as possibilidades reais de
ter estratégias comuns como movimento feminista foi chave, embora não central, no
Encontro e volta-se a mencionar a urgência de construir uma rede de comunicação,
intercâmbio e informação (BRUJAS 29, 2002:85).
A dimensão internacional do financiamento e das redes internacionais insere uma
diferenciação dentro do feminismo na Argentina, em que se modificam as posições de
poder, e aquelas que se constituem experts obtêm o reconhecimento próprio deste novo
espaço internacional. Por sua vez, as que não têm acesso a ele aderem à lógica da militância
e reivindicam a autonomia do movimento e a criação de uma “agenda própria”, livre da
imposição dos temas financiados pelas agências internacionais. Os eventos “nacionais” são
o espaço em que o feminismo adquire uma dimensão “real” para as feministas, as quais não
têm acesso ou rejeitam os financiamentos e onde são cultivados os valores que orientam a
prática feminista.
No entanto, por esse motivo, essas feministas não estão excluídas da internacionalização.
Os Encontros Feministas Latino-americanos e do Caribe são um dos espaços em que muitas
delas participam. Considero que é pertinente pensar essas divisões dentro do feminismo,
fazendo uma distinção entre conexões internacionais, por um lado, e financiamento e
133
A discussão sobre a existência do movimento feminista já aparece nas Memórias da primeira Assembléia
de Mulheres Feministas, realizada em 1990 na cidade de Mar del Plata.
reconhecimento de agências e organismos internacionais, por outro. Não são, neste caso, as
conexões internacionais, mas a internacionalização do tema mulher e a consagração de
experts o que divide este espaço entre autônomas e institucionalizadas e o que marca as
ausências tanto nos Encontros Nacionais de Mulheres como nos Encontros Feministas
Latino-americanos e do Caribe. Por outro lado, para quem necessita de um reconhecimento
exterior, neste caso, proveniente da esfera internacional, é necessário criar mecanismos que
demonstrem a existência do feminismo como tal. Isso se demonstra na reiterada pergunta
sobre a existência do “movimento feminista”, a necessidade de deixar constância de fatos e
eventos através da escrita – elaboração de “documentos”, “memórias” dos Encontros,
“manifestos”, declarações, panfletos que são guardados e publicados, publicações
feministas – e a constante preocupação pela “história do feminismo”
134
.
Conclusões
Neste capítulo tratei das diversas formas da dimensão internacional no processo de
configuração do espaço do feminismo. Embora o internacional seja uma característica
própria deste espaço, a maneira particular com que influi na figuração do feminismo
depende do contexto histórico e das pessoas concretas que tornam as conexões possíveis.
Ao mesmo tempo, considero que as relações internacionais não deveriam ser pensadas em
oposição às relações nacionais, como dois níveis diferenciados, mas só são compreendidas
se observamos os lugares que as pessoas, que têm acesso à esfera internacional, ocupam no
âmbito nacional e as redes de relação que integram. Desse modo, no feminismo do início
dos anos 70, as feministas se caracterizam por seu alto capital cultural e econômico e por
suas relações de amizade com círculos de destacados/as intelectuais nacionais e
internacionais, sobretudo europeus/éias.
Por sua vez, as relações internacionais das feministas, após os anos 80, não se explicam só
pela internacionalização do tema mulher, apesar de estarem atravessadas por esta
134
Na conferência inaugural da VI Jornada de História das Mulheres e I Congresso Ibero-americano de
Estudos da Mulher e de Gênero a historiadora Marysa Navarro citou John Berger para dizer que “la pasión
por la historia es particularmente intensa, no en las universidades, sino en los movimientos populares que
luchan y buscan sobrevivir”. Considero esta observação adequada, neste caso particular, ao feminismo
(NAVARRO, 2001:107).
característica. Nestas devem ser consideradas também os vínculos internacionais e
nacionais pré-existentes de muitas delas e seu pertencimento a instituições tais como os
centros de pesquisa ou sua militância em partidos políticos de esquerda. Esses dados
também são importantes para compreender as diversas modificações que o internacional
produz dentro do feminismo. As feministas dos 80 se caracterizam por seu acesso à
educação superior, domínio de línguas estrangeiras, a realização de estudos de pós-
graduação (no exterior ou no país), e a militância em partidos políticos que lhes permitiu o
acesso a espaços privilegiados, como funções dentro do governo nacional.
O acesso dessas mulheres a espaços do governo e a redes e financiamento internacional
modificou o status de muitas delas e a figuração do feminismo. Quem não pertence a estes
lugares privilegiados (sem deixar de participar na esfera internacional) reivindica um
feminismo autônomo e exige um diálogo com aquelas que saíram dos espaços de “diálogo”
e “encontro”, como os Encontros Nacionais Feministas e os Encontros Feministas Latino-
americanos e do Caribe. Assim, mais que uma oposição entre o nacional e o internacional,
nestas “escalas” o que se coloca em jogo são os lugares das feministas dentro do feminismo
e a disputa por posições.
CAPÍTULO 5
Adesões e articulações
A causa pela descriminalização do aborto
Nos capítulos precedentes tratei de mostrar, em primeiro lugar, uma forma de fazer política
que sustenta como valores definidores o autoconhecimento e a alta valorização da
autonomia; logo, realizei uma distinção analítica entre dois sentidos diferentes da noção de
igualdade para mostrar duas formas possíveis de apropriação prática da mesma. No capítulo
3, sem deixar de lado a dimensão internacional, tentei delinear as categorias que interagem
o sistema de oposições que atualmente faz com que as militantes falem de feminismos em
vez de feminismo. No capítulo 4, detive-me, brevemente, a examinar as formas possíveis
sob as quais se pode conceber a dimensão internacional do feminismo e como essa
internacionalização não pode ser pensada com um correlato e um impacto nacional.
Neste capítulo, proponho partir da descrição de algumas das ações em pró da causa “pelo
direito ao aborto”, para mostrar a integração das práticas feministas que estão inseridas em
diversos espaços. Diferente de outras categorias sociais (os imigrantes, a terceira idade), as
feministas dispõem, elas próprias, das ferramentas que permitem o acesso à expressão
pública, ao diálogo direto com representantes legislativos e funcionários de nível médio e a
códigos profissionais diversos – especialmente médicos, jurídicos, filosóficos, jornalísticos,
sociológicos e éticos –, que lhes facilitam o trabalho de estilização, mobilização e
formatação dos discursos para converter o que, até esse momento, é considerado como um
problema particular em problema social e assunto público. Não é meu objetivo mapear
todas as ações realizadas, o que seria impossível só em um capítulo, mas mostrar como
aquilo que nos outros espaços fica evidenciado como oposições, articula-se a ações
orientadas para a construção de problemas, os quais as feministas identificam como
próprios e tentam instalar no que definem como o espaço público. Uma das objeções, que
mencionei na introdução, sobre a legitimidade do feminismo como tema de pesquisa foi
que as feministas “eram poucas”, ou que “não havia feministas na Argentina”. Por não
responder ao modelo de formas organizativas cristalizadas (corporações, sindicatos,
igrejas), o feminismo poderia ser classificado dentro do que Simmel denomina de as
imensas formas menores de relação e modos de interação que não receberam da
antropologia a mesma atenção que as primeiras. Junto com este autor, considero que são as
diligências incessantemente pequenas que estabelecem o nexo da unidade histórica, assim
como as interações aparentemente menores de pessoa a pessoa estabelecem o nexo da
unidade social.
No caso da mobilização em torno da causa pela descriminalização do aborto, a
heterogeneidade do espaço do feminismo aparece com uma clareza e uma efervescência
não habitual em que se revelam, já não apenas as oposições, mas também a articulação de
diversas ações. Não só porque quem trabalha em torno desta causa estabelece acordos para
estratégias de ação, mas também porque reconhece e compartilha valores que orientam essa
causa e, ao mesmo tempo, opõe esses valores aos das mulheres que militam contra o
“direito ao aborto”. Na descrição das ações pelo direito ao aborto torna-se evidente não
apenas que há feministas em todos os lugares, mas também que o espaço do feminismo,
neste sentido, tem fronteiras fluidas e se constrói a partir de posições nos múltiplos espaços
de permanência das militantes
135
. A inserção das militantes em diversos espaços sociais,
descrita nos capítulos anteriores, é crucial para a construção de uma causa social e seu
possível reconhecimento pelo Estado e por um público diverso.
1. Direito ao aborto legal: bandeira histórica do feminismo
As denúncias que levaram à causa pela descriminalização e/ou legalização do aborto têm
sido sustentadas, ao longo do tempo, por diferentes pessoas e organizações de formas muito
heterogêneas. Isto permite às militantes mostrar, atualmente, como argumento de
autoridade, uma profundidade temporal que compreende o que elas denominam a luta pelos
direitos das mulheres e o direito ao aborto como uma bandeira histórica do feminismo.
135
Nesse sentido, a idéia de espaço é muito mais produtiva em termos analíticos que a noção de campo
cunhada por Bourdieu, que envolve um mundo mais fechado e com fronteiras. A noção de espaço permite, ao
contrário, mostrar esta particularidade das feministas de “estar em todas partes” e o feminismo como uma
figuração que se entretece a partir de interações que incluem identificações, interdependências e tensões.
Como mencionei no capítulo 1, a Unión Feminista Argentina (UFA) foi criada em 1970 e
se dissolveu em 1976, depois do golpe de estado e da instauração de um governo militar
que declarou o estado de sítio em todo país. O mesmo aconteceu com o Movimiento de
Liberación Femenina (MLF), criado em 1972, que ressurgiu nos anos 80 com o nome de
Organización Feminista Argentina (OFA). Nesses anos, estas duas organizações
distribuíram panfletos (que reproduzo adiante), em que denunciam os “abortos
clandestinos” e manifestavam, como argumento de sua existência, o objetivo de modificar
as situações de injustiça que mencionam nesses escritos: “Por todas elas, por você e por
nós, somos feministas”.
A gravidez não desejada é uma forma de escravidão.
Basta de abortos clandestinos.
Pela legalidade do aborto
Feminismo em marcha
UFA (Unión Feminista Argentina)
Você sabe quantas mulheres educam seus filhos sozinhas porque o marido é um irresponsável que não
cumpre com suas obrigações de pai?
MUITAS
Você sabe quantas mulheres são espancadas por seus pais e maridos?
MUITAS
Você sabe quantas mulheres morrem por abortos mal feitos em nosso país?
MUITAS
Você sabe quantas mulheres são despedidas por estarem grávidas?
MUITAS
Você sabe quantas mulheres não são aceitas para trabalhar porque estão casadas?
MUITAS
Você sabe quantas mulheres e meninas são violadas a cada dia em nosso país?
MUITAS
Você sabe que o trabalho de dona-de-casa e o de mãe não são considerados como trabalhos, e sabe quantas
mulheres empregam toda sua vida nesses trabalhos que não têm pagamento nem leis especiais como para os
demais trabalhadores?
MUITÍSSIMAS
Por todas elas, por você e por nós, SOMOS FEMINISTAS
ORGANIZACIÓN FEMINISTA ARGENTINA
Em 1983, militantes do Partido Intransigente organizaram o Primeiro Encontro de Mulheres
do Partido Intransigente em que pediam a legalização do aborto, a patria potestad
indistinta, o divórcio e a socialização das tarefas domésticas. Em 1984, um ano depois da
reabertura democrática, em uma mobilização multitudinária pela comemoração do 8 de
março, Dia Internacional da Mulher, na Plaza de los Dos Congresos, em Buenos Aires,
nos cartazes carregados por algumas mulheres, liam-se várias palavras de ordem a favor da
legalização do aborto. Os slogans eram: “Descriminalizar o aborto”; “Meu corpo é meu.
Basta de mortes por aborto”; “Aborto livre. Nós parimos, nós decidimos”; “Defendamos
nossos corpos e nossas vidas”; “Basta de comércio da medicina, queremos parir e abortar
sem riscos”; “Maternidade livre e consciente”. Entre os cantos elaborados por integrantes
de Lugar de Mujer e entoados durante a mobilização, um se referia à legalização do aborto:
“Aborto clandestino não é nosso caminho, legalização é nossa decisão”. A ATEM elaborou
um panfleto que dizia: “Não queremos abortar, mas também não queremos morrer de
aborto”.
Em 1987, na VI Jornadas Feministas, a ATEM organizou uma Mesa Redonda sobre aborto,
integrada por cinco palestrantes que “lo abordaron desde un punto de vista global, legal,
biológico, ético y teológico, y una compañera italiana habló sobre la legislación en su país
y la lucha de las mujeres por conseguirla” (TRAVESÍAS 5, 1996:40). Segundo o relato de
seus integrantes, foi ali que “surgió la necesidad de formar una comisión específicamente
dedicada a esta lucha” (ROUCO PÉREZ, M.J. e SCHEJTER, A., 2002:60). Assim, no 8 de
março de 1988, criou-se a Comissão pelo Direito ao Aborto: “El 8 de marzo de 1988,
durante la convocatoria en Plaza Congreso varias de las participantes coincidimos en que
era el momento adecuado para enfrentar y sacar a la luz el tema, razón por la cual
formamos la ‘Comisión por el derecho al Aborto” (ROUCO PÉREZ, .J. e CHEJTER, A;
op.cit.). Também em 1987 começa a trabalhar na Argentina a representação do grupo
Catholics for a free choice que, entre seus objetivos, propõe retomar “as questões éticas
relacionadas com a reprodução humana(...)”.
Em 1990 o V Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe instituiu o 28 de setembro
como o Dia pelo Direito ao Aborto na América Latina e o Caribe. Escolheu-se esta data
porque em 28 de setembro de 1888 declarou-se no Brasil o “ventre livre” que convertia em
livres os filhos que nascessem de mães escravas. Em 1994, fundou-se Mujeres
Autoconvocadas para Decidir en Libertad, que nucleava organizações feministas,
feministas independentes e mulheres de partidos políticos. Nesse ano foi realizada uma
Assembléia Constituinte para levar adiante a reforma da Constituição Nacional, em que
alguns representantes da Assembléia – segundo o relato das militantes feministas, devido à
“pressão da Igreja Católica” – propuseram introduzir uma cláusula que garantia “a defesa
da vida desde a concepção”. Mulheres Autoconvocadas para Decidir em Libertad foi
criado com o objetivo de organizar ações e lobby para fazerem frente a esta posição. Uma
das ações foi a elaboração de uma “Carta aberta aos convencionais Constituintes e à
Sociedade” em que exigiam: “a) Que se respete la decisión de los ciudadanos/as expresadas
en las urnas el 10 de abril; b) Que se de status constitucional al Pacto de San José de Costa
Rica, que extiende la defensa de la vida a la prohibición de la pena de muerte; c) Que la
Constitución garantice el derecho de hombres y mujeres a decidir libre y responsablemente
sobre su reproducción, a través del acceso a la información, la educación sexual y los
métodos anticonceptivos que permitan efectivamente evitar los embarazos
involuntarios”
136
. A posição do governo nacional em relação ao tema do aborto e, logo, a
posição da delegação argentina que viajaria à Conferência Internacional de Beijing
motivaram a renúncia da então presidenta do Conselho Nacional da Mulher, Virgina
Franganillo e de Gloria Bonder, do gabinete do PRIOM, em vista da discussão sobre o
conceito de gênero no currículo escolar.
2. Articulações e desarticulações (?) em torno da causa
Ao longo dos anos, diversas organizações se formaram, dividiram-se e voltaram a se
organizar em torno da causa do direito ao aborto. Muitas delas são quase unipessoais ou
136
O texto citado é parte de um trabalho escrito por María José Rouco Pérez e Alicia Schejter (ATEM) e foi
apresentado nas “Jornadas de ONGs y Grupos Autónomos de Mujeres de Latinoamérica y del Caribe hacia
Beijing 95”, organizadas pelo “Comité de Enlace de ONGs, Grupos Autónomos de Mujeres y Mujeres
Independientes hacia Beijing 95” em setembro de 1994, na cidade de Mar del Plata. Posteriormente, este
trabalho foi publicado em Brujas Nº 29, Ano 21, em novembro de 2002, por motivo da morte de María José.
As editoras de Brujas consideraram que “este número de Brujas no es posible sin ella” (BRUJAS, 2002:50)
tem como referências pouquíssimas mulheres. Em outros casos, têm uma duração escassa
no tempo, surgem em um momento e, logo, passam por processos de divisão até que, em
alguns casos, desaparecem. No entanto, ao analisar os últimos vinte anos, é possível
vislumbrar que são muitas as “organizações” que surgiram e que o que caracteriza a
maioria delas é o fato de estarem integradas a outros grupos. Conforme mencionei na
introdução, existe uma diferença importante entre os processos de fissão e fusão dentro do
feminismo como formação social e as formas que mostram as teorias clássicas sobre a
segmentaridade. Nos casos que analisei, assim como foi proposto por Leach (1976), os
processos de fragmentação nunca resultam, durante sua reagrupação, numa forma idêntica à
anterior, mas têm como característica a instabilidade e surgem dali novas possibilidades e
novas formas. Sugiro que o tipo de interação própria dos processos constantes de fissão e
fusão pode ser melhor explicado a partir de “identificações” (mais que por um princípio
estrutural). A identificação, tal como a define Brubaker (2001:75), é intrínseca à vida
social: podemos identificar a nós mesmos/as, caracterizar-nos, situar-nos vis-a-vis a outras
pessoas conhecidas, situar-nos num relato e localizar-nos numa categoria de um
determinado número de contextos diferentes. Existe um elemento muito importante na
definição deste autor: a identificação do/a outro/a e a auto-identificação são
fundamentalmente atos situacionais e contextuais (BRUBAKER, op.cit.). A
contextualização das identificações permite explicar também o caráter não permanente das
agrupações (e aqui me inspiro na literatura sobre facções e na definição de política de Marc
Swartz)
137
.
Sugiro que as divisões e agrupações estão orientadas por identificações que podem se
mover em dois sentidos distinguíveis. Por um lado, a identificação não necessariamente
requer pessoas ou instituições específicas, mas as pessoas podem se identificar e identificar
outros através de princípios formulados num discurso. Por outro lado, as identificações não
só ocorrem em torno de princípios cognitivos ou valores, mas, em alguns casos, entre
pessoas que podem se identificar com outras pessoas específicas, não só porque estas
últimas pertencerem a uma determinada categoria ou representarem um determinado
137
Neste trabalho, foi fundamental para a compreensão do feminismo uma reflexão sobre o valor do tempo
nas formas de interação social. No começo do meu trabalho de campo, concebia a inconstância de muitos
grupos como “debilidade” do feminismo. No entanto, à medida que me aprofundei a respeito da formas de
interação próprias desta figuração social, esta “inconstância” adquiriu novos significados.
modelo, mas porque ocorre uma identificação afetiva
138
. É revelador lembrar aqui,
exatamente porque se trata de um testemunho concernente a uma das referências da causa
pelo direito ao aborto, as palavras de uma militante citadas no capítulo 3 em que esclarece:
Outra que para mim é uma referência importante é Martha Rosenberg.
Martha para mim é palavra que escuto, mas é complicada [no que tange
ao discurso]. Não posso levar qualquer pessoa para ouvir um discurso de
Martha Rosenberg. Mas [para mim] ela tem um discurso muito claro
sobre a questão do aborto.
Neste caso, a identificação não está relacionada apenas às narrativas que enunciam
significados cognitivos, mas trata-se de uma identificação particularizada. Finalmente, é
importante ressaltar que estes processos de articulação não deixam de estar atravessados, ao
mesmo tempo, por oposições e conflitos similares aos descritos em capítulos anteriores.
Faço uma breve descrição, a seguir, num período de tempo que vai de 1988 até os dias de
hoje, da formação de diversas organizações (sob diferentes nomes: assembléias, fóruns,
comissões), algumas de existência fugaz, em torno da causa pelo direito ao aborto, com o
objetivo de mostrar o surgimento constante de novos grupos, divisões e reagrupamentos, e
como as fragmentações e oposições vão fazendo com que surjam novas organizações. Um
seguimento dos nomes das integrantes de cada grupo permite destacar dois pontos.
Primeiro, muitas mulheres fazem parte de duas ou mais organizações simultaneamente e,
desta forma, quem tem maior experiência promove ações em diversos espaços. Segundo,
embora diante da fragmentação de um grupo, algumas militantes abandonam a causa,
muitas outras criam novos grupos, reintegram-se às já existentes ou continuam sua
militância como “feministas independentes”.
Comissão pelo Direito ao Aborto [Comisión por el Derecho al Aborto]
Esta Comissão surge em 1988, a cinco anos da instauração do governo democrático. As
impulsoras foram mulheres que voltaram ao país depois do exílio político durante os anos
do governo militar. Uma delas, Dora Coledesky, é reconhecida pelo resto das militantes
como uma referência iniludível na “luta pelo direto ao aborto”. Uma militante feminista da
138
Este tipo de identificação está relacionado com o fato de que a posição social destas mulheres as autoriza, à
maneira de profeta exemplar (WEBER, 1996), a fazer de sua pessoa um exemplo e se dirigir aos que
experimentam a necessidade de serem salvas e de se comprometer a seguir seu mesmo caminho.
cidade de Rosario conta que a conheceu na França durante seus anos de exílio. Segundo seu
relato “estas mulheres foram pioneiras. Falar de aborto legal na Argentina nos anos 80 era
realmente ter valentia para bancar as agressões e as discussões muito fortes, mesmo
dentro do Movimento de Mulheres” (grifos meus). Neste caso, o reconhecimento e a
identificação afetiva com a figura de Dora favoreceram, assim, o acordo de ações entre
espaços habitualmente pouco articulados, como a cidade de Buenos Aires e algumas
capitais de províncias. Essas identificações pessoais permitem às feministas, de lugares e
inserções diferentes, manter-se informadas entre si e articular ações em lugares geográficos
diversos. Integrantes da Comissão pelo Direito ao Aborto organizaram, em 1989, a primeira
“Oficina Livre de Anticoncepção e Aborto”, no espaço dos Encontros Nacionais de
Mulheres, especificamente, no IV Encontro Nacional de Mulheres, realizado na cidade de
Rosario. Essa oficina se mantém até hoje.
Fórum pelos Direitos Reprodutivos [Foro por los Derechos Reproductivos]
Este Fórum define-se como uma organização autônoma e, segundo um panfleto distribuído
durante o VIII Encontro Nacional de Mulheres, participa ativamente, desde 1991, do
movimento de mulheres na Argentina. Promove, ainda, o debate sobre os direitos sexuais e
reprodutivos, entendidos como direitos humanos que implicam a possibilidade de exercer a
sexualidade e a maternidade em liberdade, sem riscos para a saúde, sem coerção, violência
nem discriminação cultural, social e de trabalho. Tal Fórum também demanda a tomada de
decisões sexuais e reprodutivas, baseadas em informação veraz e acessível, e advoga pela
proteção social necessária para levá-las adiante. No final do panfleto, e com letras
maiúsculas e maiores que o resto da redação, estão as seguintes palavras de ordem:
Educação sexual para decidir,
Anticoncepcionais para não abortar,
Aborto legal para não morrer
O Fórum publicou, em 1998, o livro “Nuestros Cuerpos, Nuestras Vidas: propuestas para la
promoción de los derechos sexuales y reproductivos”, como produto de um seminário
organizado em Buenos Aires, em setembro de 1997. Nele foram compiladas as
contribuições de profissionais de diferentes áreas e instituições. Por outro lado, as
integrantes do Fórum pelos Direitos Reprodutivos não só realizam sua militância em meios
acadêmicos, mas, em 2004, formaram um Grupo Estratégias pelo direito ao Aborto
(GEDA) que, em maio deste mesmo ano, organizaram um Encontro Nacional sobre
Estratégias para o Direito ao Aborto. Algumas das integrantes deste Fórum são atualmente
referências da Campanha Nacional pelo direito ao Aborto e integram também o CONDERS
(Consórcio pelos Direitos Reprodutivos e Sexuais) que monitora a aplicação da lei de
Saúde Sexual e Reprodutiva no país.
Mulheres Autoconvocadas para decidir em Liberdade [Mujeres Autoconvocadas para
dedicir en Libertad]
Este grupo surgiu como articulação entre diversas organizações de mulheres (não só
feministas) e de feministas independentes, com o objetivo de “garantir o direito de decidir,
os direitos sexuais e reprodutivos, o aborto legal”. Como mencionei anteriormente, tratava-
se de organizar ações e estratégias para fazer frente à posição, de alguns constituintes, de
introduzir na Constituição Nacional uma cláusula que garantisse “a defesa da vida desde a
concepção”.
Coordenadora pelo Direito ao Aborto [Coordinadora por el Derecho al Aborto]
Esta Coordenação surge em 1999 impulsionada por diferentes grupos feministas e de
mulheres, convocadas pela Comissão pelo Direito ao Aborto, que “resolvem” constituir a
Coordenadora pelo Direito ao Aborto no espaço do Congresso de Trabalhadores Argentinos
(CTA), o organismo sindical opositor à CGT. O objetivo da Coordenadora é “levantar
discussões e avaliar as frentes nas quais se deseja intervir”. Trata-se da “articulação” de
organizações que já trabalham pelo direito ao aborto: Comissão pelo direito ao aborto,
Musas, Mujeres de Izquierda, Católicas pelo Direito de Decidir, Las Azucenas e
ADEUEM. Como mencionei anteriormente, trata-se de pessoas e grupos, comprometidos
com a causa, que criam novos espaços reagrupando organizações já existentes.
Assembléia pelo Direito ao Aborto (AxDA) [Asamblea por el Derecho al Aborto]
Esta assembléia surge na cidade de Rosario, província de Santa Fé, durante o Encontro
Nacional de Mulheres, realizado em agosto de 2003 (o segundo realizado nessa cidade).
Neste encontro, também foi organizado a primeira “Oficina de Estratégias par o Aborto
Legal, Seguro e Gratuito”
139
. Foi também em Rosario, em 1989, que integrantes da
Comissão pelo Direito ao Aborto organizaram a primeira Oficina Livre de Anticoncepção e
Aborto. Esta Assembléia foi impulsionada por diferentes organizações e ativistas que já
estavam desenvolvendo ações sobre o tema. Propõe-se como objetivo convocar um
Encontro Nacional pelo Direito ao Aborto em dezembro de 2003. Em setembro desse ano, a
Assembléia publicou uma nota com mais de 900 assinaturas no jornal Página/12 e no dia
28 do mesmo mês de setembro, Dia pela Legalização do Aborto na América Latina e o
Caribe, organizou uma passeata na cidade de Buenos Aires (ver ilustração 2). Poucos meses
depois, a Assembléia se divide, segundo o relato de várias feministas, em vista de duas
posições enfrentadas quanto aos critérios da convocatória para a realização de um primeiro
encontro nacional pelo direito ao aborto. Uma posição considerava que só deviam
participar mulheres e travestis, os homens ficariam excluídos. A outra, por sua vez,
considerava que a convocatória “devia se estender a todos os setores e atores sociais
envolvidos na problemática, sem exclusões, e com o único requisito de estar de acordo com
o objetivo de ampliar o direito das mulheres ao aborto”
140
. Dessa divisão surgirá o Grupo
Estratégias pelo Direito ao Aborto, que aderirá à segunda posição e que descrevo a seguir.
Até onde pude saber pelos relatos de uma militante que aderira à primeira posição, esta
parte da Assembléia rachou uma vez mais e finalmente se dissolveu.
Grupo Estratégias pelo Direito ao Aborto (GEDA) [Grupo Estrategias por el Derecho
al Aborto]
Grupo criado em novembro de 2003, em conseqüência do racha da Assembléia pelo Direito
ao Aborto, em que se entrara em um acordo a respeito dos princípios que orientariam a
convocatória para o Encontro Nacional. O GEDA organiza o primeiro Encontro Nacional
139
Sobre esta oficina e os enfrentamentos com “as católicas” ver o capítulo 6.
140
Este argumento foi extraído de um documento elaborado pelo Grupo Estratégias pelo Direito ao Aborto,
em que se resumem as memórias do Primeiro Encontro Nacional pelo Direito ao Aborto Legal Seguro e
Gratuito.
pelo Direito ao Aborto na cidade de Buenos Aires, em maio de 2004. Continua, ainda, em
atividade e faz parte da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto. Este grupo é integrado
por doze mulheres, muitas delas membros também das organizações mencionadas
anteriormente.
Primeiro Encontro Nacional pelo Direito ao Aborto [Primer Encuentro Nacional por el
Derecho al Aborto]
Realizado na cidade de Buenos Aires, em 29 de maio de 2004, esse Encontro foi convocado
pelo Grupo Estratégias pelo Direito ao Aborto. Dele participaram 110 pessoas
independentes ou representantes de diversas organizações. Entre as presentes, havia
delegadas sindicais, docentes universitárias, militantes de base, representantes de partidos
políticos, deputadas, representantes de ONGs de mulheres, representantes de assembléias
de bairro e jornalistas. Durante o Encontro, organizou-se um painel denominado “O
exemplo uruguaio”, em que três pessoas contaram suas experiências e foram apresentadas
ao público do Encontro como “companheiros e companheiras do Uruguai que recentemente
produziram e sustentaram, em seu país, a campanha pela Lei de Defesa da Saúde
Reprodutiva”. A apresentação pública de cada uma dessas pessoas esteve focada em
mencionar suas experiências em âmbitos específicos de inserção: Lilián Abracinskas,
integrante de Cotidiano Mujer, Movimiento Mujer e da Coordenação Nacional de
Organizações pela defesa da Saúde; Rafael Sanseviero, ex-deputado de Frente Amplio,
coordenador geral do Centro Internacional de Investigación e Información para la Paz,
autor do livro Condena, tolerancia y negación. El aborto en Uruguay; Susana Rostagnol,
antropóloga, Universidad de la República, Faculdade de Humanidades, Programa de
Gênero, Corpo e Sexualidade. Depois da realização desse painel, organizou-se oficinas em
torno de quatro eixos: Saúde, Legislação e jurisprudência, Meio de Comunicação e
Movimentos Sociais. Cada uma destas oficinas esteve coordenada por uma especialista no
tema. Saúde foi coordenada por uma socióloga, Legislação e jurisprudência, por Marcela
Rodríguez, advogada e deputada nacional, Meios de Comunicação, coordenada por uma
jornalista de Página/12 e Movimentos Sociais pela representante da secretaria de Gênero da
Central de Trabalhadores Argentinos (CTA)
141
.
Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito
Atualmente encontra-se em plena atividade. Esta Campanha surge como iniciativa no
Encontro Nacional de Mulheres de Mendoza, em 2004, na Oficina de Estratégias pelo
Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Foi lançada em 29 de maio de 2005 – Dia Internacional
de Ação pela Saúde das Mulheres – com ações militantes em várias províncias do país.
Durante 2005, foram organizadas, em todo o país, diferentes ações e juntaram assinaturas
com um abaixo-assinado sobre a descriminalização e legalização do aborto. Em 25 de
novembro – Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher – organizou-se na cidade
de Buenos Aires uma Marcha Nacional que, segundo estimativa das organizadoras, reuniu
cerca de 15.000 pessoas, ocasião em que foram entregadas as assinaturas ao Congresso da
Nação. Nos dias 3 e 4 de agosto de 2006 a Campanha organizou um Seminário
Internacional, realizado no Auditório da Câmara dos Deputados do Congresso da Nação.
As integrantes da Campanha a definem como a primeira articulação no nível nacional que
consegue impacto nos meios de comunicação, instala o debate, amplia a participação de
mulheres de setores populares e ganha a adesão de outras organizações sociais, acadêmicas
e sindicais, com uma estrutura horizontal e pluralista. “Uma ampla aliança em nível
nacional que inclui mais de 250 organizações e milhares de pessoas de todo país que
trabalham (...) para acabar com as mortes de mulheres por gestação, primeira causa de
mortalidade materna e evitáveis em 80%, além de outras graves seqüelas”. A Campanha
tem “representantes” em diversas províncias do país, organizadas em uma “Mesa de
Articulação”. As representantes são Silvia Borsellino, em Santiago del Estero; Mabel
Gabarra em Rosario; Ruth Zurbriggen, em Neuquén; Estela Díaz, na cidade de La Plata;
Martha Rosemberg, em Buenos Aires y Marta Alanís, em Córdoba.
Segundo as organizadoras, “hoje a demanda [pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito]
é assumida por múltiplas organizações, personalidades, organismos de direitos humanos,
141
A CTA surge nos anos 90 propondo-se como uma Central alternativa à Confederação Geral do Trabalho
(CGT) e para “resistir às políticas neoliberais”.
movimentos sociais e culturais, redes camponesas, sindicatos, movimentos de
desocupad@s, o âmbito acadêmico e científico e organizações religiosas e políticas.”
3. Ação individual x ação coletiva?
Na descrição das organizações e ações em torno da causa pelo direito ao aborto pode se
observar dois tipos de movimentos. Um, que denominarei generativo, no qual, a partir de
um grupo começam a surgir novas agrupações ou eventos. Por exemplo, integrantes da
Comissão pelo Direito ao Aborto criam a Primeira Oficina Livre de Anticoncepção e
Aborto; ou na Oficina de Estratégias pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito surgem as
propostas para organizar a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto e a criação de uma
página web
www.derechoalaborto.org.ar. E outro, de fragmentação e dispersão, em que os
grupos se dividem muitas vezes até desaparecer, como o caso da Assembléia pelo Direito
ao Aborto. Esses movimentos costumam correr de maneira simultânea. Como é o caso da
parte da Assembléia pelo Direito ao Aborto que se converte no Grupo Estratégia pelo
Direito ao Aborto (GEDA), organiza o primeiro Encontro Nacional pelo Direito ao Aborto
e, atualmente, faz parte da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto.
Dadas essas constantes fragmentações, que muitas vezes levam grupos a se converter em
unipessoais, considero pertinente referir-me à distinção entre ação individual e ação
coletiva sobre a qual, segundo Boltanski (1990:237), se constituem a sociologia e a história
social dos modos de protesto. O que acontece quando, como no movimento feminista, a
construção de problemas públicos nem sempre provém de forma tão clara da “ação
coletiva”, mas muitas vezes parece se tratar de uma somatória (às vezes desconexa) de
ações individuais? Ou quando as respostas, que as feministas recebem, na disputa pela
criação de um problema público, ganham a forma de denúncias realizadas por pessoas
individuais?
Em seu trabalho El amor y la justicia como competencias, Boltanski propõe abordar “o
caso” (a ação individual) como forma social e superar a oposição entre ação individual e
ação coletiva. Para tal fim, analisa denúncias públicas de injustiça realizadas por leitores de
Le Monde em cartas enviadas ao jornal a partir de uma gramática que explique as variações
que afetam os atos de protesto e a percepção que se tem deles, conforme se apresentem
como atos individuais ou coletivos (BOLTANSKI, 1990:237). O autor mostra em quais
casos a atitude que consiste em protestar publicamente tem possibilidades de ser
reconhecida como válida e em quais casos é ignorada ou desqualificada. Assim, adverte
quais são as coações de normalidade às quais estão submetidos os protestos e denúncias
públicas para explicar, então, que a “normalidade” das reclamações expressas nas cartas
depende de “la forma en que cada orden político construye la relación de lo particular con
lo general, de los intereses particulares com el bien común” (BOLTANSKI, op.cit.:263). O
que está em jogo, no sistema de regras analisado pelo autor, é a definição do que é lícito
criticar em privado e o que é lícito denunciar publicamente. A denúncia de um problema
individual para ser reconhecida publicamente necessita passar por um trabalho de
desingularização e apelar a recursos coletivos para organizar a denúncia em um relato,
torná-la pública sob formas genéricas (regulamentos, convenções, representantes) e, desta
maneira, convertê-la em aceitável
142
. Boltanski sugere que, para que um problema
individual possa elevar-se à ordem de uma reivindicação coletiva, é necessário que os
conflitos pessoais apareçam sob a forma de problemas impessoais e vinculados ao bem
comum. Em resumo, as denúncias individuais são consideradas “normais” quando são
feitas em nome de um coletivo ou do bem comum e se aproximam cada vez mais da
anormalidade quando se trata de questões particulares e envolvem pessoas com estreitos
vínculos (por exemplo, pai-filho). A maneira com que se realiza este trabalho de
desingularização foi descrita no capítulo 2.
3.1 As donas dos temas
F. se cree la autora de la Ley de Cupo.
G. se cree la autora de la Ley de Cupo,
nosotras nos creemos las autoras de la Ley,
las radicales se creen las autoras…
entonces fue de todo…
142
De fato, Boltanski identifica que grande parte das cartas publicadas na seção do jornal que analisa
corresponde a grupos em processos de formação, associações e a causas e problemas em vias de politização e
que se adaptam perfeitamente ao estudo da maneira com que se constroem as causas, formadas em torno da
denúncia de uma injustiça, e à análise da relação entre a construção de causas e a formação de grupos
(BOLTANSKI, 1990:240).
Uma frase que ouço freqüentemente entre as feministas é que “Fulana se acha a dona de...
”. Esta frase vem sempre complementada com “a lei de cotas”, “o tema da violência”, “o
tema do aborto”, etc. A inserção de feministas, que muitas vezes agem de maneira mais ou
menos solitária, em diversos espaços, cria, em cada uma delas, uma autopercepção
acentuada da importância de suas ações individuais para alcançar determinados objetivos.
Por esse motivo, aparece tão freqüentemente a acusação entre as feministas de “se acha a
dona de...”. As narrativas sobre como foi o processo de criação da Lei de Cota feminina,
votada em 1991, permite mostrar isto de maneira exemplar. Reuni, através de entrevistas e
livros autobiográficos, vários relatos sobre como se desenvolveu esse processo e as
narrativas da história em primeira pessoa eram muito comuns. Por outro lado, o intenso
trabalho que se requer, desde instalar um tema nos debates públicos, passando pela
apresentação de projetos, a “sensibilização” dos legisladores sobre o tema, conseguir reunir
o número de votos necessários para que a lei seja aprovada, até a regulamentação da mesma
necessita muitíssimas pessoas e cada uma atuando em âmbitos diferentes. A interação entre
feministas, para alcançar um objetivo determinado a partir da articulação de ações, é
definida por uma militante como “transversalidade”:
… G. levou uma briga para dentro do Partido Justicialista para que se
aceitasse a Lei que era de origem [do partido] Radical. A transversalidade
não é uma coisa que nos sentamos um dia... ao estilo da mão negra do
imperialismo que se juntam todas as transnacionais e dizem ‘vamos ferrar
com a Bolívia!’ Não é assim! Não é assim, não é que existe uma mão
negra. Por isso a transversalidade é um conceito que nós fomos
elaborando na prática porque percebemos que sozinhas nos
ferravam. Tínhamos que nos juntar...
P: Como se consegue essa articulação?
R: Olha... é se reconhecer... Há um poema de Guillen que dizia: nos
reconhecemos na fome, nos reconhecemos na tuberculose... E ele falava
em todo esse longo poema, que é o Largo Lagarto Verde, de que, sem
dizê-lo, do que fala é que não era necessário tanto as formas
organizativas, mas as pessoas se reconhecerem. Entre pares se
reconhecem! E isso é muito do que acontece no feminismo. (Grifos
meus)
A identificação entre mulheres aparece de maneira clara nas palavras dessa mulher como
“reconhecimento” ou “entre pares se reconhecem”. Também no caso da Lei de Cotas
aparece de maneira clara que essa identificação não ocorre o tempo todo, nem em qualquer
lugar, mas se ativa em situações e contextos específicos. A identificação implica uma
atividade e um processo “a transversalidade é um conceito que nós fomos elaborando na
prática”. Embora exista um esforço em cada caso de identificação por construir uma
autocompreensão coletiva, este trabalho de identificação não resulta, necessariamente, em
identidade. Como expressa Brubaker (2001:76), se consideramos que o resultado dessas
lutas é uma identidade, perdemos a possibilidade de fazer diferenciações essenciais. Dada a
tendência à fragmentação do feminismo muitas práticas podem aparecer, baseando-se numa
análise que restrinja seu foco a fatos isolados, como ações individuais. No entanto, é
necessário considerar que tais fatos só adquirem sentido em relação a um discurso e a
princípios elaborados coletivamente, pronunciados em nome do bem comum, assim como,
nas narrativas que articulam todas as ações sob um mesmo objetivo. Em sua análise de Les
Cadres, Boltanski (1985:476-7) considera que “a pesar de las diferencias, la cohesión
permanece, porque todos encuentran allí [na categoria “cadres”], de una forma u otra, su
interés al menos simbólico. El espacio del grupo está en efecto atravesado por un ciclo de
intercambios donde circula un bien que no es otro que el nombre del grupo, su emblema:
cada uno en diferentes posiciones objetivas, tiene tantos intereses en llamarse cuadro y
definirse como tal, que los otros hacen lo mismo”.
A fragmentação das ações, como mostrei nos capítulos anteriores, levou as mulheres
feministas a questionarem de maneira constante a existência de um movimento feminista na
Argentina. No entanto, esses mesmos questionamentos eram utilizados para, em seguida,
organizar práticas nas quais o movimento pudesse ser objetivado (tais como a elaboração
de documentos coletivos). De maneira análoga à análise feita por Boltanski (op.cit.), os
benefícios materiais e simbólicos que as feministas obtêm pelo fato de serem parte da
pessoa coletiva mantêm a crença na existência do feminismo. Entretanto, o conteúdo do
feminismo/feminismos aparece para as próprias feministas como continuamente
problemático e de difícil definição
143
. Cada uma delas pode se identificar individualmente
como feminista e pensar que o feminismo existe, quando garantem que outras que se dizem
também feministas não o são ‘verdadeiramente’; ou ainda quando afirmam que outras que
se dizem feministas sim, o são verdadeiramente, e dessa maneira quem ainda não se
143
Numa entrevista a Dora Coledesky realizada em novembro de 2005 e publicada no sítio web Artemisa
Noticias, enquanto fala dos Encontros Nacionais de Mulheres declara: “El feminismo en Argentina es cosa
complicada”. Também é pertinente citar aqui o artigo de Cecilia Lipszyc (2005) “Los feminismos en la
Argentina (1983-2004)”.
identifica plenamente como feminista sabe que algum dia pode chegar a sê-lo. Utilizando a
expressão de Boltanski, é necessário “invocar aquí la cohesión por el flou” para
compreender a permanência do feminismo, uma formação social que adquire coesão
através de oposições e identificações e onde as feministas criam um espaço intrincado.
4. As articulações possíveis
En Rosario las mujeres de las clases populares
tomaron la consigna del aborto
Militante Feminista
Os Encontros Nacionais de Mulheres foram um dos espaços em que as feministas tiveram
contato com “outras mulheres” não feministas, possuidoras de propriedades sociais muito
diferentes, que denominaram, especialmente, de “mulheres das classes populares”. Em
agosto de 2003, na cidade de Rosário, durante o XVIII Encontro Nacional de Mulheres, três
ações marcariam, segundo a avaliação feita por uma velha feminista, a “luta pelo direito ao
aborto”. A primeira foi a criação da oficina “Estratégias para o acesso ao aborto legal,
seguro e gratuito”, que não existia até esse momento no temário dos Encontros. A decisão
de criar esta oficina surgiu devido ao fato de que, nos últimos Encontros, começaram a
participar mulheres, que as feministas identificariam como católicas, organizadoras de
ações para fazer frente ao trabalho coletivo das feministas de construção de sentido sobre as
noções de mulher, família, gênero, sexualidade, anticoncepção e aborto. Nas oficinas que
enunciavam tais temas, as disputas ganharam a forma de duros enfrentamentos de posições
opostas, que questionavam especialmente a redação das conclusões. Por esse motivo, para
evitar o “diálogo” com as mulheres que se opunham à legalização do aborto, utilizou-se
uma estratégia retórica com o objetivo de que elas não participassem nessas oficinas.
Assim, em 2003, acrescentou-se às oficinas que já existiam a de “Estratégias para o acesso
ao aborto legal, seguro e gratuito”, que foi pensada para funcionar somente com mulheres
que estivessem de acordo com a legalização da interrupção voluntária da gravidez e
desejassem acordar estratégias comuns para alcançá-la.
Já em 2001, no Encontro Nacional de Mulheres realizado na cidade de La Plata, mulheres
feministas denunciaram a mudança do nome de oficina “Anticoncepção e Aborto” pelo de
“Mulher, Saúde Sexual e Reprodutiva”: “…es la primera vez que en 16 años que ese
nombre sustituye al del tradicional taller sobre ‘Anticoncepción y Aborto’, en una maniobra
que se interpretó fundadamente como una concesión de la comisión organizadora a las
presiones ejercidas por la iglesia católica y el gobernador de la provincia de Buenos Aires
Carlos Rukauf. De estos y otros talleres surgió como primera conclusión el repudio al
cambio de nombre y la exigencia de que a partir del año que viene el taller vuelva a
llamarse como siempre.” (VASSALLO, M., 2001).
A segunda foi a realização de uma “Assembléia Nacional” no âmbito do Encontro, por fora
da programação do evento. A terceira ação foi o uso de lenços verdes com inscrições a
favor da descriminalização do aborto durante a “Passeata do Encontro”. Segundo o relato
publicado na página web de uma das mulheres que participou da Assembléia:
“Con la presencia de casi todos los grupos feministas del país, la obrera
Cecilia Martínez de Brukman [fábrica recuperada por mulheres], mujeres
piqueteras de Barrios de Pie y el Polo Obrero, trabajadoras estatales y una
numerosa delegación de jóvenes, las compañeras del PTS asistimos a la
asamblea que reunió a más de 300 mujeres que votamos un plan de lucha
nacional, a pesar de quienes estuvieron ahí queriendo ‘canalizar’ nuestras
demandas en los despachos del Parlamento”
144
.
Não foi somente a definição de um “plano de luta” o que aconteceu na Assembléia
convocada no XVIII Encontro Nacional de Mulheres, mas também a realização de algumas
técnicas de integração e identificação como, por exemplo, o pedido de uma das mulheres da
Assembléia de que todas as que tinham abortado levantassem a mão. Uma das mulheres
feministas que participou da Assembléia (médica, casada há mais de 30 anos e dois filhos)
me disse: “eu levantei as duas mãos porque fiz dois abortos”. Essas técnicas corporais
grupais são uma das formas que essas mulheres (de diferentes classes sociais, que
144
Página web consultada: www.andreadatri.com.ar.
ocupavam posições e papéis muito diversos e reunidas num espaço definido como público)
utilizaram para transformar problemas até esse momento considerados pessoais, em
problemas públicos que, desde suas perspectivas, devem ser redefinidos desde as leis até as
políticas de saúde. É um trabalho simples e muito breve, dura apenas alguns segundos, mas
que tem uma forte eficácia. Num primeiro momento, as mulheres devem decidir
“denunciar” publicamente com um movimento corporal (levantando a mão) que realizaram
a interrupção de uma gravidez ou mais, ato até esse momento considerado ilegal. Em geral,
as primeiras a levantar a mão são militantes de longa data que já realizaram um intenso
trabalho emocional e intelectual sobre esse tema. Pouco a pouco, vão se somando mais
mulheres, até que as mãos levantadas são a maioria. Em um segundo momento, é possível
que todas vejam a quantidade de mulheres que passaram pela mesma situação. No primeiro
Encontro Nacional pelo Direito ao Aborto, realizado na Cidade Autônoma de Buenos
Aires, em maio de 2003, também foi realizada uma experiência similar. Uma das mulheres
pede a palavra e diz:
Quero pedir dois gestos nesse Encontro. Por um lado, para afirmar a
radicalidade da que fala Dora e, para continuar o trabalho que fizemos na
oficina de saúde reprodutiva de des-silenciar, gostaria que pudéssemos
levantar a mão todas as mulheres que abortamos e os homens que
acompanharam o aborto e, no momento que levantemos a mão, fazer um
minuto de silêncio para sentir um pouco a dor das 1000 mulheres que
morrem na Argentina por ano. Já não digamos 300, digamos 1000. Sim,
nós somos as sobreviventes, mas muitas estão mortas e continuam
morrendo.
Las/12|Viernes, 12 de Marzo de 2004
¿susana gimenez denunciando la falta de justicia para las mujeres violadas? ¿homero simpson
enfurecido por las estadisticas de la violencia de genero? paradojas como estas son las que
consigue el colectivo mujeres publicas con sus intervenciones sobre objetos urbanos que con
simples recursos se modifican, atraen la mirada y muestran eso que suele estar velado.
¿Qué ven mis ojos?
RESISTENCIAS
Por Florencia Gemetro
Es usted heterosexual? ¿Cómo se dio cuenta? ¿Cuál cree que
es la causa? (¿Elección? - ¿Motivos genéticos? - Psicológicos?
– ¿Económicos? - Otros). ¿Cree que tiene cura? ¿Qué haría si
su hija le dice que es heterosexual? (La echaría de su casa –
Le haría un mapeo cerebral - La rebautizaría). ¿Aceptaría que
la maestra de su hija fuera heterosexual? ¿Qué opina de que
los heterosexuales adopten? ¿Su familia sabe que usted es
heterosexual? ¿Lo saben en el trabajo? ¿Teme a que lo
despidan?”. Del formulario, en realidad, no se espera
respuesta alguna. Y ni siquiera la CHA –Comunidad
Heterosexual Argentina– ha comprometido en verdad su
firma al pie, pero era el remate necesario que encontraron
las chicas del colectivo Mujeres Públicas cuando empapelaron
las calles del centro y microcentro porteño con estas
incómodas preguntas durante mayo, junio y agosto del año
pasado ante el estupor del/la transeúnte desprevenido.
Por supuesto, no faltó el hombre de aguda inteligencia que
señalara un “error de impresión porque, ¿no debería decir
homosexual?”, como les advirtió un anónimo paseante. Otras
decenas de los mismos ejemplares, dispuestos en dameros de varias preguntas, volvieron a intervenir
la ciudad de Tandil –en ocasión al VIII Encuentro Nacional Feminista que se realizó el pasado
agosto–, además de otros dos mil, aunque bajo el formato de encuestas repartidas entre las casi veinte
mil mujeres congregadas en el último Encuentro Nacional de Mujeres en Rosario. Estas fueron
algunas de sus irrupciones públicas o las citadinas transformaciones mediante un trabajo de
“exclusión/inclusión a partir del cuestionamiento al mandato de la heterosexualidad”.
Las cinco muchachas, de una edad “promedio de treinta”, dicen, aunque preciso sería decir de entre
veintiséis y treinta y nueve, combinan una fuerte mirada estética con un discurso político, social y
cultural sobre el cuestionamiento de la problemática de las mujeres. Así desean ser presentadas. Un
colectivo de “reflexión en acción”, que interviene los espacios públicos con objetos que puedan
entrar en diálogo con quienes se acerquen, estableciendo “un vínculo entre esa persona y el material
en sí mismo, donde no sólo habla el texto escrito”. Como esos quinientos objetos, pequeños soldados
rojos, fusil en mano apuntando a un horizonte de mediano alcance, que repartieran entre las/los
infantes asistentes a una de las marchas en repudio a la invasión de Irak durante el 2003. Los juguetes
bélicos fueron recibidos con ansia por niños y niñas que llenaban sus manos y pedían más, pero con
sorpresa por sus turbadas madres y padres que debían explicar el significado del cartelito que pendía
de la botita plástica, cuya marca registrada signaba: “Mujeres violadas = Trofeos de Guerra”.
Se trata de estrategias comunicativas que formulan preguntas –en su mayoría de ácido humor o de
fuerte contraste con el lugar u objeto intervenido–, donde las y los interlocutores “se relacionan desde
un determinado lugar con la cosa y después se van desprendiendo distintos significados”.
Veamos otra obra: “acción” número cuatro o “Esta belleza...”, como gustan nombrar a sus
producciones en rechazo al circuito convencional donde circulan volantes o pancartas políticas
convencionales. Una revisión de las formas y modos de la política tradicional del feminismo, la
izquierda, los circuitos “artísticos” –término no empleado por sus integrantes que prefieren hablar de
objetos o cosas–. Una mujer joven de lozana y alegre apariencia, cuerpo esbelto, piernas desnudas y
torso cubierto, dirige su mirada hacia un centímetro que delimita la medida de su pantorrilla derecha.
Impresa sobre esa foto inmensa se yergue una pregunta: “¿Querés reducir 2,5 cm en un mes?”. Por
encima, en la vidriera de una farmacia céntrica que exhibe la publicidad, servidas de stencils y
pintura negra, las Mujeres Públicas han colocado otro texto: “Esta belleza oprime”.
Entre agosto y octubre del 2003, las anónimas justicieras que prefieren no dar sus nombres para
poner énfasis “en el mensaje, no en la propiedad o la autoría”, han multiplicado esos textos
sobreimprimiendo las figuras hegemónicas de belleza distribuidas entre los afiches publicitarios de
marquesinas o vidrieras: esta belleza duele, miente, lastima, enferma, discrimina, subestima,
destruye, asfixia. El sesgo distintivo de su trabajo en sus “modos de hacer” desde hace un año,
preciso momento en que decidieron constituirse como colectivo, podría ser la ironía en sus
contenidos, la reutilización de elementos urbanos, el despliegue de materiales sencillos, “con la idea
de que cualquiera se pueda reapropiar de lo que hacemos como una actividad cercana que sólo
requiere organización”. La forma en que se financian (o no) –”lo de los materiales es porque no
tenemos plata”, bromean– y las exhaustivas investigaciones sobre cada trabajo son también una
marca y una constante en este grupo que suele citar a las activistas norteamericanas, las Guerrilla
Girls, en quienes se han inspirado sus integrantes, algunas experimentadas militantes de distintas
organizaciones políticas y feministas.
Si el humor acorta la brecha entre el mensaje y el destinatario, esa misma ironía encuentra límites en
las formas o contenidos cuando “denuncian, develan” la opresión en ese lugar del silencio donde se
convive con la violencia, “una violencia que no se dice, ese miedo que paraliza o silencia como en el
caso de Romina –Tejerina–, la vergüenza y la posibilidad de ser víctima”. Sin embargo, han logrado
irrumpir ilesas en ese silencio. Munidas de cifras oficiales proporcionadas por el Ministerio de
Justicia, han vuelto sobre afiches publicitarios de distinta índole para transformar a varias estrellas
mediáticas en figuras comprometidas del movimiento de mujeres. Durante los últimos meses del año
pasado se han podido ver a Susana Giménez, Juan Miceli, Homero Simpson, Jorge Jacobson
señalando: “Por cada mil mujeres violadas, sólo siete violadores presos”, o “Más de 2/3 de las
violaciones que se denuncian quedan sin esclarecer”, o “De cada diez violaciones sólo una se
denuncia”. Acción frente a la cual advirtieron gran atención en lo que consideran un “efecto de
extrañamiento por la descontextualización y recontextualización de los discursos en boca de estrellas
televisivas o publicitarias”. No se alarme, no piense que está usted entrando en la dimensión
desconocida, tampoco se trata de un rollplay, son simplemente globos de diálogo prolijamente
adheridos sobre las imágenes publicitarias de las/os divas.
Y, por si acaso quiera saber más sobre los dones de estas ingeniosas, creativas muchachas, preste
mayor atención a los afiches publicitarios o vaya a ver Museo de la Tortura, una selección de objetos
de uso doméstico presentada en forma de instalación curada por las Mujeres Públicas que se exhibirá
desde esta semana hasta el 16 de abril de lunes a viernes de 15 a17, en la Sala 2 de la Galería de Arte
Arcinboldo, Reconquista 761 PB “14”.
Ilustração 1. Nota publicada no Suplemento “Las 12” do jornal Página 12 sobre o grupo
Mujeres Públicas.
Em seguida, realiza-se um minuto de silêncio. Esta técnica não apenas serve como
integradora, já que nesse momento podem se identificar umas com as outras, em vista da
mesma experiência. A frase “nós somos as sobreviventes” também estabelece a idéia de
uma comunidade que está unida por compartilhar o mesmo risco (risco de morte) e,
portanto, reforçam-se os laços de identificação e compromisso com uma causa. Seria como
dizer: “da mesma forma que elas (as mulheres que morrem por abortos clandestinos), nós
poderíamos estar mortas, mas estamos vivas e estamos aqui”. Logo acrescenta, “mas muitas
estão mortas e continuam morrendo”.
A terceira ação realizada no Encontro Nacional de Mulheres em 2003 foi o uso de lenços
verdes com inscrições a favor da descriminalização do aborto, durante a “Passeata do
Encontro”. Momentos antes do início da passeata, representantes do grupo Católicas pelo
Direito de Decidir distribuíram, entre as mulheres que participavam do Encontro, lenços
verdes com as seguintes frases: “Pelo direito de decidir”, “Descriminalização do aborto”,
“Pela legalização do aborto”. Para as militantes feministas, o Encontro realizado na cidade
de Rosário foi considerado um marco, pois as “mulheres das classes populares tinham
aderido à causa do aborto”. Outra ação que também surgiu “depois de Rosário” foi a
criação de uma página web “pelo Direito ao Aborto”, www.derechoalaborto.org.ar,
coordenada por Zulema Palma (Mujeres al Oeste) e Claudia Korol.
Embora as articulações com as mulheres das classes populares fossem possíveis, em parte,
pelos ENM, é também a dispersão de posições em diferentes campos sociais, própria da
trajetória de algumas feministas, a característica que possibilita o diálogo com mulheres
que até esse momento não se auto-identificam como feministas. Algumas possuem a
aptidão, ou a construíram a partir de sua militância, que as obrigava a circular entre espaços
com códigos diversos e a exercê-la sob uma multiplicidade de relações diferentes.
Boltanski (1973), numa análise da multiposicionalidade dos membros da classe dominantes
na França, faz uma distinção entre as posições e os indivíduos. Enquanto as posições estão
situadas num campo, os indivíduos têm a aptidão de circular entre campos e de existir sob
uma multiplicidade de relações diferentes. Isso exige desenvolver estratégias complexas
para produzir a personalidade que convém a cada lugar. Em seguida, cito o testemunho de
uma militante feminista de 60 anos que relata a maneira com que foram produzidas as
aproximações entre as feministas e as mulheres das classes populares:
P: Quais os contatos que as feministas têm com, por exemplo, as mulheres
de Barrios de Pie?
R: Estamos totalmente em contato
P: Quem faz esses contatos?
R: Barrios de Pie tem uma Rede de Mulheres dirigida por Cecilia
Marchand, que é de Córdoba mas está trabalhando aqui em Buenos Aires.
P: Se o feminismo é urbano e de classe média... como se relacionam com
o campo popular?
R: Bem, já não é tanto...Mas elas se aproximam
P: Mas, como?
R: Bem, nós temos uma espécie de... (silêncio) Reconhecimento.
P: Viram você nos Encontros de Mulheres?
R: Nos encontros, em comissões, em lugares... E vê, essa coisa que eu
digo que depois dos ENM não se viam formas organizativas visíveis, mas
os Encontros cresciam, cresciam, cresciam. Ou seja, havia organização,
mas subjacente, que nós não chegávamos, as feministas urbanas, classe
média, teóricas... eu tive que fazer toda uma aprendizagem e mudar o
vocabulário, hein? Uma aprendizagem dura, porque a linguagem da
Faculdade não, hein? Refiro-me à adequação da linguagem, uma
linguagem mais plana. Não a linguagem crítica com que nós, as feministas
teóricas, falamos. Para mim, me custou baixar de uma linguagem
universitária a uma linguagem mais plana para as pessoas. Dizem agora
que faço isso muito bem, mas me custou.
P: Como aprendeu?
R: Vendo a cara das pessoas, que entendem ou não entendem você, e isso
você pesca, assim como pesca na aula, pesca em qualquer lugar em que se
é chamada para dar uma palestra. Então você diz: o que quero dizer com
isso? Com isto quero dizer isto, isto e isto. Então, você vê que entendeu.
Me custou dois ou três anos e depois, pronto. E elas se aproximam. Houve
uma aproximação mútua, houve buscas... Fizemos uma passeata pelo
direito ao aborto deve ter uns quatro anos, já nem me lembro, que
pedimos uma reunião com as meninas da Rede de Mulheres Solidárias.
Com determinadas coisas para nós difíceis porque, o que nós fazemos
aqui em Buenos Aires? Vamos à Catedral no 8 de março. Xingamos na
Catedral e depois seguimos. Eu vou morrer gritando “Iglesia basura vos
sos la dictadura” [Igreja lixo, você é a ditadura], mas Barrios de Pie saiu
antes de nós da praça, nos esperou em Rivadavia e Bolívar, elas não foram
à Catedral e uma de nós se meteu na coluna de Barrios de Pie e distribuiu
folhetos pelo tema do aborto e nem sabiam para que tinham ido. São
levados, isso são os novos movimentos sociais, que repetem ao infinito as
formas masculinas de poder. Eu tinha bastante expectativa. Mas o
Movimiento Evita tem em sua condução só uma mulher.
Estas estratégias que as feministas utilizam, como a retradução de uma mensagem durante
uma palestra num “bairro popular” ou no “interior”, são colocadas em prática num processo
de interação em que se pretende criar uma harmonia de interesses com suas interlocutoras e
conseguir que o público se identifique com a pessoa ou com a mensagem. Uma das
palavras que aparece constantemente repetida no relato desta feminista é “conhecer”, “nos
conhecem” “me conhecem” e, de acordo com o fragmento de testemunho citado em
seguida, esse fato está associado não apenas ao trânsito pelos mesmos espaços que as
mulheres de classes populares, mas também ao fato de ocuparem posições em outros
lugares de prestígio e/ou poder como o Estado ou a Universidade:
E eu não tenho mais tempo, estou dedicando todo meu tempo à Campanha
[pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito]. Porque tem
companheiras que militam nas comunidades, tem companheiras que
militam nisso, eu cumpro outros papéis, tenho as relações institucionais
com deputados, com senadores, com os outros partidos, com as
companheiras dos outros movimentos. Digamos, uma coisa mais do tipo
institucional. Institucional entre aspas porque as deputadas me
conhecem, as senadoras me conhecem. Então ligo, falamos... E me diz,
onde nos encontramos!!?? Como posso dizer onde nos encontramos!!??
(risos)
P: Você me dizia “nos cruzamos”. Eu também posso cruzar com alguém
que se não me conhece...
R: A mim, me conhecem, a mim me conhecem, me têm certo respeito, são
companheiras...
P: Mas são mulheres que têm um perfil mais de comunidade...
R: Sim, de base, de base...
P: Então, onde você cruza com elas?
R: Porque ela trabalha... não, a Chechu [dirigente do Barrios de Pie] acho
que a conheci num Encontro Nacional de Mulheres, quando Barrios de
Pie vai a um Encontro Nacional e ela se aproxima, ela se aproxima. Bem,
porque as históricas somos as históricas, nos conhecem, nos conhecem.
P: E conhecem você da militância?
R: Da militância, dos escritos, das palestras, das conferências, das pós-
graduações, da faculdade, da política. E a gente vai ao interior e dá
palestras, e dá conferências e vai aqui, vai ali e as pessoas conhecem você.
Se depois de 26 anos as pessoas não a conhecem, não sei... tem que se dar
um tiro... Se você transitou todos estes caminhos da teoria, da política, da
militância, de ir às comunidades e dar palestras, de ir às províncias e fazer
capacitações é difícil que não a conheçam, é muito difícil que não a
conheçam. Não sou a única, heim? Somos várias... (Grifos meus)
Assim, a expressão feministas em toda parte não apenas se refere a que qualquer mulher
pode ser feminista em seu lugar de inserção pessoal e desenvolver ações militantes nesse
espaço, mas que o perfil de muitas delas, como no caso do testemunho citado, mostra que,
por ocupar ou ter ocupado determinadas posições, construíram um capital de relações
Ilustração 2. Capa do jornal argentino Página 12 do dia 27 de setembro de 2003, sobre a
passeata realizada na cidade de Buenos Aires pela descriminalização e legalização do aborto.
A foto da direita é uma “intervenção urbana” das Mujeres Públicas sobre um cartaz com
publicidade de tintura para cabelo.
Foto 3. Enfrentamentos entre homens jovens religiosos e mulheres jovens que se
manifestam a favor da descriminalização do aborto. Os enfrentamentos ocorreram nas ruas
adjacentes às escolas onde funcionavam as oficinas com o tema “aborto”. Mar del Plata,
outubro de 2005
Foto 4. Jovens religiosos rezam e mostram panfletos “a favor da vida” numa manifestação
contra a descriminalização do aborto.
Foto 5. A bandeira lilás (cor que identifica o feminismo) com a legenda: Aborto legal, seguro e
gratuito, durante a passeata do XX ENM na cidade de Mar del Plata. Na foto pode se ver as
mulheres usando os lenços verdes, símbolo da causa
p
elo “direito ao aborto”.
sociais, de prestígio, de crédito simbólico e de legitimidade. Um mapeamento detalhado da
superfície social que algumas feministas ocupam pode ser realizado a partir da localização
das posições sociais que são capazes de ocupar de maneira mais ou menos simultânea. Esta
espécie de dom de ubiqüidade de algumas delas permite compreender o efeito multiplicador
de muitas de suas práticas.
Articulação com mulheres jovens
Por isso digo, com os mais ou com os menos o feminismo é atualmente
mais numeroso, com outro cunho. Não, já não são as brancas, urbanas,
profissionais, classe média, mas são todas essas moças, as brancas,
urbanas, profissionais, classe média continuam existindo, hein? Mas
também são todas estas meninas que é como... porque são a nível
nacional, mas há movimentos provinciais, as meninas de Neuquén são
maravilhosas, no dia da passeata vieram peladas, pintaram o corpo.
Elas estão na Campanha pela Legalização, que é uma coisa forte, dura,
dura. De repente, aparece gente em La Rioja, em Santiago del Estero, este
grupo La Revuelta, que são fantásticas, criativas, maravilhosas... (Grifos
meus)
Durante a passeata realizada na cidade de Buenos Aires pela descriminalização do aborto,
em 2003, integrantes de um grupo feminista denominado Mujeres Públicas, com idades
entre 20 e 25 anos, realizaram várias intervenções no espaço urbano. A participação de
mulheres jovens nos espaços feministas marcou, de maneira chamativa, uma mudança no
que as feministas denominam estratégias de “visibilização”. Aos panfletos e cartazes
característicos das mobilizações dos anos 70 e início dos 80 se somaram, com as gerações
mais jovens, práticas de estilo publicitário (ver ilustrações 1 e 2). Durante o percurso da
passeata, aproveitando os grandes outdoors coloridos de propagandas diversas (carros,
tintura para cabelo, programa de televisão mostrando a foto de famosos, etc.) jovens
feministas colavam balões, do estilo das histórias em quadrinho, que faziam com que os
personagens falassem pronunciando frases de denúncia “morrem “x” mulheres por abortos
clandestinos” ou a favor da descriminalização do aborto “por um aborto legal, seguro e
gratuito”.
Grande parte da militância da causa pelo direito ao aborto foi construída em aberta
oposição à “Igreja”. Em vista disso, outra das ações dessas jovens feministas foi distribuir
um pequeno prospecto (“santinho”), imitando a simbologia da Igreja Católica, com uma
“Oração pelo direito ao aborto”. Reproduzo, abaixo, a imagem e a oração impressa no
verso:
Concede-nos o direito a decidir sobre nosso corpo. E
dai-nos a graça de não ser nem virgens nem mães.
Livra-nos da autoridade do Pai, do Filho e do Espírito
Santo para que sejamos nós as que decidam por nós.
Roga para que o poder judicial não faça seus os
mandatos da Igreja e ambos nos livrem de sua misógina
opressão. Venha a nós o direito a questionar se é
bendito o fruto de nosso ventre. Não nos deixes cair na
tentação de não lutar por nossos direitos. E concede-
nos o milagre da legalidade do aborto na Argentina.
Assim seja.
Também distribuíram folhetos com o título “escarpines – aborto, todo con la misma aguja
[sapatinhos de bebê – aborto, tudo com a mesma agulha], como uma forma de denunciar as
opções que uma mulher pode enfrentar quando fica grávida.
Outra das ações extremamente criativas foi colar em cada um dos espelhos dos degraus da
saída do metrô, próximas ao lugar onde se realizaria a passeata, um adesivo com a frase
“pelo direito ao aborto”, dessa forma, todas as pessoas que saíam daquela estação estavam
informadas do tema. Nesses casos, a criatividade dessas jovens aparece como uma
possibilidade de suprir a falta de recursos financeiros para transmitir mensagens a um
público amplo através de um exercício publicitário e performático. A impressão de cartazes
era impensável para estas jovens, tanto como pagar a quem pudesse colá-los. Assim, a
combinação de engenho, audácia e rapidez de movimentos, uma qualidade que corresponde
à idade, permitiu-lhes ações efetivas. A presença de mulheres de 20 a 30 anos foi muito
notável também nos Encontros Nacionais de Mulheres, como foi o caso do Encontro de
Mar del Plata quando, numa ativa militância pela causa do direito ao aborto, enfrentaram-se
cara a cara com homens da mesma idade, militantes religiosos, pelas disputas em torno
desse tema
145
(ver fotos 3 e 4).
Articulação de espaços diversos
145
Devido ao clima de tensão e considerando que estava sempre com mulheres feministas, era difícil para
mim (em alguns casos, impossível) aproximar-me dos jovens ou das mulheres que se manifestavam contra a
descriminalização do aborto. Apesar de que, em linhas gerais, qualquer manifestação contra o aborto seja
atribuída pelas feministas a “os/as católicos/as”. No ENM da cidade de Mar del Plata alguns gestos dos
manifestantes me fizeram duvidar. Troquei algumas palavras com um jovem que me confirmou que não eram
católicos, mas evangélicos. Mais tarde, durante a cerimônia de encerramento do Encontro de Mar del Plata,
me aproximei de algumas mulheres situadas num setor identificado, pelos aplausos à leitura de determinadas
conclusões, como “contra o aborto” e encontrei não apenas mulheres católicas, mas outras que se definiram
como cristãs e que declararam terem se aliado com as católicas para lutar contra o aborto.
Uma das ações da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito foi
a organização de um Seminário Internacional pelo direito ao aborto no qual participaram
profissionais de diversas áreas, de diversas províncias e também de outros países da
América Latina. O mesmo foi realizado no Auditório do Congresso da Nação. No primeiro
painel, Aspectos filosóficos, epistemológicos e políticos em relação ao aborto, expuseram
duas filósofas e uma médica; no segundo painel, O pensamento jurídico sobre o direito ao
aborto, três advogadas, uma delas ex-deputada nacional e uma jurista especialista em
direito penal. No terceiro painel, O Estado e a garantia dos direitos. Cidadania,
democracia e estado laico, expuseram um advogado professor da Universidad de Córdoba;
uma filósofa docente da Universidad Nacional de Cuyo; uma deputada nacional pelo
Partido Justicialista e uma deputada nacional pelo Partido Socialista. No segundo dia os
painéis versaram sobre Subjetividade e aborto; O aborto em diferentes discursos: religião,
medicina, meios de comunicação, vida cotidiana; e Diferentes estratégias para o acesso ao
aborto legal, seguro e gratuito. No primeiro expuseram duas psicólogas e um psicanalista.
No segundo, uma médica, uma socióloga brasileira e uma médica obstetra nicaragüense.
No último painel, sob responsabilidade da Secretaria de Gênero e Igualdade de
Oportunidades da Central de Trabalhadores Argentinos, um ex-deputado do Uruguai, autor
do primeiro projeto de legalização do aborto em seu país e uma jurista colombiana. As
exposições foram transcritas e logo circularam na Red Informativa de Mujeres de Argentina
(RIMA).
Por outro lado, tanto nos programas de gênero das universidades nacionais como nos
centros de pesquisa referidos em capítulos anteriores várias profissionais trabalham em
torno de temas relacionados à causa pelo direito ao aborto. Um dos exemplos disso são as
publicações do Centro de Estúdios de Estado y Sociedad (CEDES) que cito abaixo:
Los médicos frente a la anticoncepción y el aborto. ¿Una transición
ideológica?
Silvina Ramos, Mónica Gogna, Mónica Petracci, Mariana Romero y Dalia
Szulik. Buenos Aires: Cedes, 2001.
Szulik, Dalia; Ramos, Silvina; Gogna, Mónica; Petracci, Mónica;
Romero, Mariana. La responsabilidad de los médicos ante las políticas
sobre anticoncepción y aborto. Buenos Aires; CEDES; 2002. 20 p.
(Seminario Salud y Política Pública, 2002, 6)
Ramos, Silvina; Romero, Mariana; Karolinski, Ariel; Mercer, Raúl; Insúa,
Iván; Fortuna, Silvia del Río. Mortalidad materna en la Argentina:
diagnóstico para la reorientación de políticas y programas. Buenos
Aires; CEDES; 2004. 59 p. (Seminarios Salud y Política Pública, 2004, 2)
Os diversos espaços que fazem parte do feminismo não se caracterizam por possuir uma
atividade articulada constante. Uma das explicações dadas por uma militante é a
multiplicidade dos temas: “a outra coisa é que existem muitos temas metidos dentro do
feminismo, temas complicados como o que se relaciona com saúde sexual e reprodutiva, o
do aborto, o da violência, o da prostituição”. Forma-se, assim, o que outras denominam
quintitas” [redutos]. No entanto, diante de determinadas causas, as ações desenvolvidas de
maneira independente em espaços diferenciados terminam sendo reconhecidas pelas
feministas como parte de uma mesma “luta”: a luta das mulheres. Produz-se assim, em
determinados contextos e em determinadas situações, uma auto-identificação e uma
identificação com as outras. O que uma feminista resumiu como: “nos conhecemos”,
“somos companheiras”, ou “entre pares nos reconhecemos”.
Conclusões
Ici comme ailleurs , il ne reste aux hommes incapables
de penser en termes de configurations
que le choix entre les deux branches
également insatisfaisantes d’une alternative,
à savoir entre une approche atomistique
et une approche hypostasiante.
(ELIAS, 1990:53)
Nos capítulos anteriores mencionei, citando Simmel, como as relações de oposição e
competição favoreciam o desenvolvimento das posições das feministas em diferentes
espaços. Neste capítulo tentei mostrar, partindo de uma descrição histórica superficial, a
integração de ações militantes em pró de uma causa. Sem que as oposições e fragmentações
deixem de existir na dinâmica feminista, um seguimento da causa pelo direito ao aborto
legal seguro e gratuito permitiu-me mostrar como, através de identificações se reconhecem
ações diversas como próprias de um objetivo comum.
Nesta descrição o feminismo também aparece de maneira mais clara como espaço diverso e
heterogêneo. As feministas estão em muitos lugares e deles ativam seu compromisso
militante, acionado, em parte, por sua oposição às católicas. Por outro lado, também
utilizando o conceito de identificação, pretendi mostrar a articulação das feministas com
“outras mulheres” que, embora não se auto-identifiquem com o feminismo, fazem-no com
algumas de suas premissas. Sugiro que esses processos permaneceriam ocultos, ou não
poderiam se mostrar em toda sua complexidade, se houvesse me guiado neste trabalho pelo
conceito de identidade. A articulação das feministas com “outra mulheres” é possível, em
parte, pela ubiqüidade social, característica da trajetória de várias delas, que são as que
impulsionam a causa e possuem as propriedades sociais requeridas para se constituir como
porta-vozes autorizadas. Por outro lado, apesar de os conflitos, seguidos de fragmentações,
que caracterizam o feminismo favoreçam o exercício de ações individuais ou de muito
poucas pessoas, destaquei nestas páginas que as denúncias se realizam em forma individual,
mas se ajustam a uma estilização e a uma gramática que as militantes aprenderam no e por
meio do feminismo, conseguindo, assim, satisfazer as condições que uma denúncia pública
exige para ser considerada normal (BOLTANSKI, 2000). Desse forma, na militância
feminista as ações individuais se combinam, de maneira muito particular, com as ações
coletivas para produzir “mudanças na sociedade”
146
. As mulheres podem alimentar-se do
movimento e, então, exercer ações individuais.
146
Em muitos casos, a mudança individual é favorecida pelo fato de as militantes feministas ocuparem
lugares que lhes permitem atuar sobre mecanismos de controle social (professoras, médicas, psicólogas,
advogadas, sexólogas). É necessário destacar que, como expressa Reynaud, não se trata de uma reforma
moral, no sentido tradicional do termo, já que nenhum modelo, tal como poderiam ser alcançar o bem ou a
verdade das coisas, se propõe como objetivo (REYNAUD, 1980:285).
CAPÍTULO 6
Feministas nos espaços de mulheres: O Encontro Nacional de Mulheres
Montamos a Multisectorial [da Mulher] e criamos os Encontros Nacionais
de Mulheres. Isso, acho que foi em 86, na volta de Nairóbi. Porque as
conclusões de Nairóbi eram criar Encontros Nacionais de Mulheres aqui
[na Argentina], não apenas feministas... E este é o único país que continua
fazendo-os. Nesse sentido, encontro certo correlato com o que aconteceu
em algum momento e continua acontecendo nos Estados Unidos. Porque
nos EUA está o setor de Betty Friedan... estão as feministas e a
mulheristas. As mulheristas são as mulheres negras. Porque, na realidade,
o que era o feminismo? Urbano, classe média, profissionais e brancas...
era assim. Essa foi a marca também em Buenos Aires, urbanas,
profissionais, classe média e brancas. A primeira grande confusão que
tivemos nos Encontros Nacionais foi pelos 500 anos da colonização, que
foi realizado no sul e vieram muitas mulheres indígenas que estavam
muito mobilizadas pela questão dos 500 anos. E isso foi em 1992, e aí
começaram a aparecer outras vozes. Sempre os Encontros que no início
eram basicamente feministas, os três primeiros foram basicamente
feministas, com toda a teoria... depois começaram a entrar, e isso foi o
bom, as outras mulheres... dos setores populares. Mas tinham essa
coisa, os Encontros Nacionais, que depois não se via a continuidade. Mas
não se via na superfície, em formas organizativas, mas cresciam e
cresciam e continuavam crescendo. Quero dizer que de forma
subjacente, continuavam funcionando e foram criando uma
contracultura. Isso, os Encontros Nacionais fizeram. Isso nós fizemos
e fizemos todas as reformas liberais dos anos 80, a única que não saiu foi
a do patria potestad indistinta, saiu a compartida
147
, o que podemos
fazer... (Grifos meus)
Militante feminista
Os ENM são uma mobilização pública e coletiva que se realiza em nome dos interesses das
mulheres, todos os anos em uma cidade diferente do país, desde 1986 até o presente. No
relato citado, essa feminista que possui mais de 20 anos de militância, marca a diferença
entre feministas e mulheres. A incorporação, do ponto de vista das feministas, de mulheres
diferentes quanto ao lugar de residência (não urbanas), à classe (classes populares), ao
acesso à educação (não profissionais) e à identidade étnica (não brancas) é concebida por
meio do conflito: “a primeira grande confusão que tivemos nos Encontros Nacionais foi
147
Ver nota 45, na pág. 42.
pelos 500 anos da colonização, que foi realizado no sul e vieram muitas mulheres
indígenas”. As feministas que tinham participado da III Conferência Mundial sobre a
década da Mulher organizada pelas Nações Unidas (Nairóbi, Quênia, 1985) se
comprometeram, então, a organizar encontros de mulheres no país
148
. Assim, os Encontros
Nacionais de Mulheres (ENM) não são encontros de feministas. Apenas os primeiros foram
realizados por feministas. No entanto, esta é a imagem que muitas pessoas alheias a esse
evento têm dele e habitualmente o mencionam de forma desqualificadora: “essas são todas
feministas” ou “aí são todas feministas”. Uma das diferenças é que nos Encontros
Nacionais de Mulheres Feministas, descritos no capítulo 2, só participam feministas e
nunca são multidudinários, no máximo participam cerca de 150 mulheres. Já ao I ENM
assistiram cerca de 800 mulheres e ao realizado em Mar del Plata em 2005, mais de 25.000.
Neste capítulo, considerarei os Encontros Nacionais de Mulheres como um evento crítico
(DAS, 1996), em que o feminismo, com todas suas tensões e complexidades, é encenado
em um espaço de mulheres (não só de feministas) e, como mostrarei mais adiante, em
acentuada oposição às mulheres católicas. Utilizo algumas das características por meio das
quais Veena Das define determinadas situações sociais como eventos críticos:
heterogeneidade, incisão em várias instituições ao mesmo tempo e implicações que nesses
eventos aparecem num primeiro plano. Considero que analisar o ENM como evento me
permite compor um cenário complexo e diferenciado (de forma similar à inauguração da
ponte na Zululândia moderna, descrita por Gluckman), atravessado por diversas lógicas e
sentidos, nos quais se apóiam as modalidades que as relações ali adquirem
149
. Considero
que os ENM são um espaço de particular riqueza para se mostrar, com ênfase, as definições
contrastantes, formuladas pelos diversos grupos e facções que se formam no evento, o
impacto emocional que tais definições têm e a importância de sustentar um vocabulário e
outros suportes expressivos com os quais as integrantes de cada uma das facções se
reconhecem, representam a si mesmas e também se apresentam num espaço público.
Assim, considero que através da análise dos ENM é possível mostrar a importância que
148
Segundo o relato de várias delas, a Argentina é o único país que realizou esses encontros ininterruptamente
desde essa época até os dias de hoje.
149
Gluckman, Max (1987).
adquirem as experiências que vão do mais pessoal e informal até instâncias formais, como
exigir o cumprimento da lei.
Os ENM são espaços em que se disputa uma identidade legítima de “mulher” e o
reconhecimento de problemas e interesses coletivos como “problemas sociais” pelo Estado.
A transformação de determinadas situações em “problemas sociais” supõe um dedicado
trabalho em que, primeiro, é necessário tornar visível uma situação particular e, logo,
promovê-la para inseri-la no campo das preocupações públicas do momento. Dessa
maneira, por meio da análise do feminismo num espaço de mulheres tento mostrar como se
colocam em jogo os elementos analisados nos capítulos anteriores a respeito da pessoa, do
significado de ser mulher, da igualdade e da hierarquia, das definições de política, da
multiposicionalidade e da coesão e diferenciação, no âmbito de um ritual secular.
Este capítulo está baseado, principalmente, na descrição do XIX Encontro Nacional de
Mulheres [XIX Encuentro Nacional de Mujeres] realizado na cidade de Mendoza em
outubro de 2004, do qual participei e coordenei uma das oficinas.
1. O Encontro Nacional de Mulheres
Ano a ano, nós, mulheres de todo país, nos reunimos para tentar uma vez
mais fazer com que as vozes de milhares sejam escutadas, através de uma
modalidade aberta, democrática e participativa. São a expressão mais
importante das lutas que viemos desenvolvendo, a partir de nossos
diferentes lugares de inserção: as comunidades, o campo, a cidade, a casa,
a fábrica. Neles aprendemos entre todas; dizemos que é uma grande
escola. Ali, conhecemos as experiências das mulheres de ponta a ponta do
país. Isto foi e continua sendo possível porque se manteve o critério de
AUTOCONVOCAÇÃO de Comissões Organizadoras amplas, cada ano
na província escolhida como sede. Comissões que funcionam com
AUTONOMIA de fundações, instâncias governamentais, organizações
políticas que recebem ajuda de todos os que estão de acordo com estes
Encontros, mas SEM CONDICIONAMENTOS. Garante-se assim, este
espaço DEMOCRÁTICO, HORIZONTAL e HETEROGÊNEO que não
tem dono porque pertence a todas nós.
Definição dos Encontros Nacionais de Mulheres, publicada na página web
do XVIII Encontro Nacional de Mulheres
Há 21 anos se realizam, anualmente, na Argentina os “Encontros Nacionais de Mulheres”
(ENM). Um evento itinerante que, cada ano, tem como sede uma cidade diferente do país.
O primeiro foi realizado na Cidade de Buenos Aires, em 1986, no Teatro San Martín. Nesse
momento, declarou-se que o Encontro seria democrático, pluralista, multipartidário e
multisetorial, respeitoso de todos os credos e todas as raças humanas”. Logo, seguiram-se,
em 1987, Córdoba; 1988, Mendoza; 1989, Rosario; 1990, Termas de Río Hondo; 1991,
Mar del Plata; 1992, Neuquén; 1993, Tucumán; 1994, Corrientes; 1995, Jujuy; 1996,
Buenos Aires; 1997, San Juan; 1998, Chaco; 1999, Bariloche; 2000, Paraná; 2001, La
Plata; 2002, Salta; 2003, Rosario; 2004, Mendoza; 2005, Mar del Plata e 2006 Jujuy (ver
mapa 6).
Nas palavras de uma feminista, os Encontros são “o avanço de uma multidão de mulheres
donas por alguns dias de uma cidade na que colocamos na cena pública nosso direito de
decidir com liberdade”. Participei dos Encontros organizados em 2003, 2004 e 2005. Como
observadora de classe média, branca, universitária e residente na província de Buenos
Aires, foi impactante ver, pela primeira vez na cidade de Rosário, tantas mulheres
“diferentes”. Chamou-me a atenção, especialmente, o grupo de mulheres indígenas – ou,
como se autodenominam, “dos povos originários” – e o de mulheres das denominadas
“classes populares”, uma vez que, transitando nos espaços do feminismo, estava mais
familiarizada com a presença de mulheres brancas, de classe média e, geralmente,
universitárias.
Em 2004, no Encontro realizado em Mendoza, algumas das participantes se transladaram
de avião e se alojaram em hotéis de 4 estrelas. Outras viajaram de ônibus de linha e se
alojaram em hotéis de 2 e 3 estrelas ou em casas de famílias que ofereciam alojamento,
como foi meu caso. Houve quem utilizou ônibus pagos por alguma prefeitura, sindicato,
ONG ou com dinheiro proveniente de eventos que organizaram para tal fim, e dormiram
nas salas de aula de escolas públicas em seus sacos de dormir ou cobertores. Algumas
mulheres comiam em restaurantes, outras receberam bolsas de alimento que a comissão
organizadora do ENM outorga habitualmente com o dinheiro arrecadado na inscrição e
outras organizaram almoços populares. A diversidade também se refletia nos corpos e na
roupa. Havia mulheres de todos os portes e de todas as idades (desde 20 a mais de 70 anos).
Algumas “bem vestidas”, outras com roupas mais humildes, mas a grande maioria usava
calça comprida. Com cabelos muito curtos ou cabelos compridos, com rastafári, com
cabelos amarrados ou soltos. Mulheres brancas, indígenas, de classe média e média-alta e
mulheres pobres. Universitárias, religiosas, piqueteiras, militantes de partidos de esquerda,
feministas, independentes, entre outras. O ENM é um lugar em que se pode apreciar uma
espécie de amostra da população argentina no feminino, difícil de encontrar em outro lugar.
Durante os dias que se realizam os ENM, as cidades sede mudam completamente sua
fisionomia. Em Mendoza, podiam se ver nas ruas milhares de mulheres que circulavam em
grupos (grandes ou pequenos) ou sozinhas, mas raramente acompanhadas por homens
150
.
No terminal de ônibus houve um aumento notável da presença feminina e, próximo à praça
principal, especialmente no primeiro dia, vários ônibus lotados de mulheres circulavam em
baixa velocidade, enquanto as passageiras olhavam curiosas pelas janelas. Pouco a pouco,
na manhã do primeiro dia do Encontro, a praça principal foi se enchendo de pessoas (a
maioria mulheres), que instalavam seus postos de venda de artesanatos, comidas, e de
mulheres que passeavam conversando animadamente, estabelecendo-se com suas bandeiras
e distintivos ao redor do que seria o cenário do “ato de inauguração”. Algumas distribuíam
folhetos de seus grupos, outras vendiam publicações.
A presença das mulheres nos ENM desafiava um sentido amplamente compartilhado sobre
o cotidiano das mulheres no espaço público da cidade (a rua, a praça, as escolas). As
mulheres que vão ao Encontro, visto que encenam uma situação excepcional,
150
Ao ser definido como um encontro de mulheres, a presença eventual de homens sempre gera discussões e
posições divergentes. As mulheres das classes populares que se mobilizam em ônibus e viajam em grandes
grupos levam alguns homens com elas que, em geral, durante esses dias se encarregam de organizar a viagem,
o alojamento, a comida, etc. Durante as oficinas contam, divertidas, que no Encontro os papéis se invertem:
“aqui são eles os que cozinham”. Outras se queixam porque ao ter um homem entre elas e se alojarem em
escolas, viam-se obrigadas a compartilhar situações “íntimas” (dormir, mudar de roupa, tomar banho) com
alguém do sexo oposto. As outras mulheres que costumam estar acompanhadas por homens (que não entram
nas oficinas, mas as levam, buscam-nas ou as esperam fora das escolas) são as mulheres católicas. No
Encontro de Mendoza, perante a denúncia de um homem de que a esposa estava sendo privada de sua
liberdade, encerrada em uma das oficinas, as organizadoras impediram o ingresso de homens policiais nas
escolas. Outra questão são os jornalistas e operadores de câmara, que costumam entrar nas escolas em busca
de informação. A presença de homens sempre gera um momento de tensão. No caso das feministas, nunca vi
algum homem que tivesse viajado com elas. Mas, no caso de uma organizadora que vive na mesma cidade,
presenciei uma situação em que seu “companheiro” foi até a praça onde estavam sendo lidas as conclusões
para levar-lhe um casaco e perguntar como estava, devido a situação de conflito e tensão do momento.
spécie de amostra da população argentina no feminino, difícil de encontrar em outro lugar.
Mapa 6. Cidades e datas em que foram realizados os Encontros Nacionais de Mulheres na
Argentina.
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fazem o que habitualmente outras mulheres (as que vivem na cidade) não fazem e, tampouco,
se espera que façam. Durante esses dias, as mulheres ocupam vários espaços da cidade
(hotéis, escolas, restaurantes, praças, as ruas) de maneira pouco habitual. Perante este desafio
ao senso comum, em cada cidade em que se realiza o Encontro se estabelece uma espécie de
diálogo entre as participantes dos ENM e os/as habitantes do lugar. Durante os três dias que
dura o evento, este diálogo vai adquirindo um determinado perfil. Rosário mostrou-se uma
cidade receptora e boa parte do público, durante a passeata, acompanhava saudando e/ou
aplaudindo das varandas. Já em cidades definidas como “conservadoras”, como é o caso de
Mendoza, o diálogo estabelecido foi de oposição e rejeição. As formas de expressá-lo foram
desde encher de cartazes as paredes próximas às escolas onde funcionariam as oficinas,
pichações nas ruas e nas escolas, até colocar bombas molotov em lugares em que seriam
realizadas parte das atividades. Assim, não era estranho escutar durante a passeata, entre o
público que observava atônito, expressões como “De onde saíram todas estas loucas?”. Como
participante do Encontro, foi possível sentir a presença dessa opinião poderosa, expressa em
olhares, em pequenas atitudes de desaprovação ou em fatos violentos. Percebe-se, desse
modo, que os ENM são um espaço em que se constroem consensos, mas também se disputam
sentidos tanto no interior como na encenação, diante de um público externo.
Esse evento, circunscrito no tempo, constitui-se de diferentes atividades: oficinas temáticas,
que funcionam nas salas das escolas públicas; reuniões; assembléias; atividades recreativas
(recitais de música, jantares, mostras de arte, pequenos eventos artísticos) e a passeata que,
tradicionalmente, é realizada todos os anos – em 2004 as organizadoras estimaram que havia
em torno de 20.000 mulheres, enquanto a versão da polícia era de 18.000. As formas que
adquirem as diversas atividades e a própria organização do Encontro levam a marca feminista
que tenta, através de modos definidos como igualitários e participativos, garantir os valores da
individualidade, a autonomia e a horizontalidade. Na contracapa do Programa de Atividades
do XIX ENM lê-se um agradecimento a “todas as companheiras que, com muito esforço, uma
vez mais voltamos a nos encontrar para construir a partir de nós mesmas uma realidade
mais digna, justa e igualitária” (grifo meu). Da mesma maneira que no último Encontro
Feminista, a expressão “a partir de nós mesmas” insistiu na individualidade, assim também se
menciona o valor da justiça e da igualdade. Outra semelhança é a concepção sob a qual as
oficinas são organizadas. As mesmas são consideradas soberanas e limita-se o número de
participantes “para uma melhor possibilidade de participação de todas”. Definem-se como um
215
“grupo de discussão de caráter autogestionário” nas quais os debates devem surgir “das
participantes, desde sua história, sua origem de classe, sua experiência de vida”
151
.
Na dinâmica das oficinas pretende-se que as mulheres relatem, debatam suas experiências
cotidianas e analisem as vivências comuns. Considera-se que se deve chegar às conclusões
por consenso e se repete, incansavelmente, que “não se vota”. De maneira similar aos grupos
de autoconsciência, busca-se descobrir que os problemas, que antes eram considerados
pessoais, são comuns a muitas outras mulheres e, por isso, podem ser explicados e abordados
coletivamente. Assim, seguindo as mesmas técnicas dos grupos de autoconhecimento, as
discussões de cada oficina são registradas em forma de conclusões para, então, serem
socializadas entre todas as participantes. A socialização consiste, por um lado, na leitura das
conclusões no ato de encerramento do Encontro e, por outro lado, na entrega de uma cópia à
Comissão Organizadora, responsável por publicar um livro com as conclusões de todas as
oficinas que é distribuído gratuitamente no ano seguinte às inscritas no ano anterior
152
. Em
cada ENM, as organizadoras enunciam como propósito principal “dar voz às mulheres” e a
“transformar em palavras” suas experiências pessoais.
2. “Feministas nos Encontros”
Me atrai e fico orgulhosa em notar que é um encontro de massa, e cada vez
mais as jovens se aproximam [aos Encontros Nacionais de Mulheres]. Por
outro lado, considero uma conquista que o aborto esteja no centro do debate,
e que haja uma diversidade de opiniões sobre este e outros temas que
dominam a agenda. Da mesma forma, ainda aspiro que haja um maior
aprofundamento do debate sobre os problemas das mulheres, que os
Encontros sejam ainda mais massivos e que sejam tratados temas mais
amplos como sistemas econômicos a serem adotados, modelos de cidades
ideais, ou a relação entre gênero e pobreza.
Virginia Franganillo
151
Dados extraídos do “Material de orientação para o trabalho de coordenação das oficinas”, produzido pela
Comissão Organizadora do XIX ENM.
152
É interessante destacar que, assim como nas “memórias” dos Encontros Feministas da Argentina, o livro de
conclusões do Encontro Nacional de Mulheres inclui, ao final, a prestação de contas com as receitas e despesas
relativas à organização.
216
Nem bem se instaura a democracia em 1983, pouco tempo depois se realiza
o primeiro ENM, que teve uma notável influência dessa mudança de regime
e dos Encontros Feministas Latino-americanos que vinham sendo realizados
desde fins dos anos 70. Embora houvesse organizações que participavam,
a convocação era mais individual e pessoal, buscar no outro o que você
estava pensando. Eram muito livres. Não eram resolutórios, mas a idéia
era discutir e não dar direção. Era debater forte, mas com outro tom,
sendo todas iguais e sem impor-nos.
Assim, começou-se a trazer o formato latino-americano ao primeiro ENM, o
que foi um episódio interessantíssimo, sobretudo porque ia a mulher comum.
Era um laboratório maravilhoso no começo: os descobrimentos, o que
pensavam, o que diziam. Era uma riqueza enorme ver aflorar essas idéias no
contato com o outro. Depois, a lógica dos Encontros mudou e deixei de ir.
Eu não vou para brigar com forças que trabalham como aparatos. Isso
foi o que aconteceu basicamente no início da década de 90. Alguns setores
políticos começaram a visualizar um grupo de 10 mil mulheres que se
reuniam todos os anos. Era um campo de ação para eles. Então, começaram
a chegar em massa os ônibus do Partido Comunista Revolucionário (PCR) e
o Partido Justicialista (PJ), entre outros. Era uma disputa de partidos. Mas,
até esse momento, com tudo isso se sobrevivia de qualquer jeito. (Grifos
meus).
Haydée Birgin
As que não querem ir agora aos Encontros de Mulheres são Barrios de Pie
(...) porque dizem que não tem sentido a briga com a Igreja, porque agora
nos Encontros a Igreja se meteu. A mim, M. [dirigente de Bairros de Pie]
veio me falar para fazer um Encontro paralelo e eu disse: Não! Disso não se
fala, os Encontros são nossos e não vamos dá-los de bandeja.
Militante Feminista
Os dois primeiros testemunhos são de feministas que foram entrevistadas pelos 20 anos dos
Encontros Nacionais de Mulheres e suas opiniões publicadas no sítio web Artemisa Noticias.
O último corresponde a uma entrevista que realizei na cidade de Buenos Aires, em julho de
2006. De maneira similar às características do feminismo descritas nos capítulos 3 e 4,
também no que se refere ao ENM existem, entre as feministas, acusações, oposições e versões
diferentes. Novamente, aqui os fatos são os mesmos, mas as narrativas variam nos detalhes
que validam as posições de quem faz uso da palavra.
Durante o ENM, compartilhei um jantar com mulheres que tinham viajado a Nairóbi e
comentavam que “os ENM tinham uma origem internacional e não oficial (não
governamental)”. Segundo o relato de uma delas, “viajaram a Nairóbi como ONG sem ter
contato com a comissão enviada pelo governo em 1985”. Dois anos mais tarde, durante uma
entrevista, uma das pessoas membro da “comissão oficial” também considerava que os ENM
tinham origem em Nairóbi, mas não fez referência a uma distinção entre origem “oficial” e
217
“não oficial” dos mesmos. Tanto as que viajaram a Nairóbi na qualidade de integrantes da
comissão governamental, como as que foram representando ONGs se reconhecem partícipes
da criação dos ENM. Por outro lado, algumas das que denominam autônomas (isto é, que não
possuem vínculos com o governo nem com ONGs) citam, com a mesma importância, a
experiência das conferências mundiais e a dos Encontros Feministas Latino-americanos e
ressaltam a “necessidade pessoal”, como o que deu origem aos ENM, mais que as
“recomendações” das conferências internacionais:
Las experiencias de los encuentros de mujeres de Nairóbi y de Bertioga
habían generado en varias de nosotras la necesidad de bucear en lo más
inmediato: la situación de las mujeres y del movimiento en nuestro país.
(BELLOTTI, 1986:30)
153
As narrativas sobre a organização do primeiro ENM permitem mostrar quem são as mulheres
que participaram e como se configura o campo de inter-relações sobre o qual se constroem
estes eventos. Segundo os relatos de integrantes de ONGs, durante o jantar em Mendoza, “o
primeiro Encontro foi realizado no Teatro San Martín e a mala direta para fazer os convites
foi feito por B.”, que conta que utilizaram uma lista que os partidos políticos tinham, ela do
Movimiento de Integración y Desarrollo (MID) e C. do Partido Justicialista (PJ), “já que eram
as únicas mulheres com quem tínhamos contato”. Continuam dizendo que “depois deste
primeiro Encontro, essas mulheres não queriam continuar realizando-os e a estratégia foi
decidir rapidamente uma nova sede”. Por outro lado, o relato de Margarita Bellotti publicado
em Brujas 4 (1986) diz o seguinte:
La idea de organizar un encuentro nacional de mujeres corrió como un
reguero de pólvora. En octubre de 1985 comenzamos a reunirnos. Si bien
desde el comienzo estuvo claro que la participación era exclusivamente a
título individual, la composición de las integrantes de la comisión promotora
reprodujo la experiencia que, desde 1983, viene transitando el movimiento
de mujeres de Buenos Aires, es decir la presencia de mujeres de partidos
políticos, de sectores sindicales, de grupos feministas, de derechos humanos,
de amas de casa e independientes.
Desde esse primeiro Encontro, já se colocavam as diferenças entre feministas e “o conjunto
mais amplo de mulheres”. Para as feministas, as divergências aconteceram especialmente
quanto às formas de funcionamento. Segundo Bellotti (op.cit.), uma das contradições
principais que se manifestaram no I ENM refere-se ao “significado del hacer política de las
mujeres”. E marca uma diferença entre um ponto de vista que “plantea la participación de las
153
Bertioga refere-se ao III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, realizado em Bertioga, Brasil.
218
mujeres en una propuesta política previamente establecida, generalmente desde uno o
varios partidos políticos” e outro que propõe definir “los objetivos y modos del hacer
política de las mujeres desde las mujeres y a partir de sus propias carencias y
alienaciones”
154
(grifos meus). Estas diferentes posições se manifestaram no primeiro
Encontro, quando da formação da Comissão Organizadora, na definição dos temas das
oficinas e nas discussões e conclusões das mesmas, pontos que abordarei ainda neste capítulo.
Os “problemas” que, do ponto de vista das feministas, aparecem neste primeiro Encontro são
os que continuarão, com diversos matizes, durante todos os anos seguintes, até hoje. Cito, em
seguida, trechos de dois trabalhos escritos por feministas, um em 1986 e outro em 2002, para
mostrar as posições similares, em relação aos partidos políticos (nos dois casos, “partidos de
esquerda”), apesar de terem se passado 16 anos entre um Encontro e outro:
La cuestión de la deuda externa fue tratada en varios talleres, además de dos
dedicados expresamente a ella (…) Salvo una breve alusión a que la
situación de discriminación de la mujer se ve agravada, no se analiza en
ningún caso la relación entre deuda externa y la situación concreta de las
mujeres. (…) Pero esta valoración quedaría desgajada de contexto, si no
analizamos qué sectores impulsaron este tratamiento de la deuda externa y
por qué. Si no bastaran el conocimiento personal y el reconocimiento de
las consignas (Moratoria ya – No pago de la deuda externa), podemos
remitirnos a un artículo publicado en la revista Nueva Era (órgano del
Partido Comunista), de julio de 1986, año 4 Nº7, con el sugestivo título de:
“El Encuentro Nacional de Mujeres. Con la mira en el Frente de
Liberación”. (…) Y allí vinieron, a “enseñarnos” a las mujeres qué
necesitamos para vivir mejor y por qué cosas debemos luchar. Todo
diálogo, toda posibilidad de reflexión, todo intento de aprendizaje
mutuo, queda así clausurado”. (BELLOTTI, 1986-32-4, grifos meus)
Los talleres son autónomos, sin embargo las mujeres pertenecientes a
partidos políticos o a corrientes sindicales, llevan a esos espacios contenidos
propios a ser puestos o impuestos, y esto se refleja en las conclusiones,
donde talleres con temáticas bien diferenciadas aparecen proponiendo cosas
iguales, a modo de consignas. Por ejemplo: “libertad a Raúl Castells” (…)
En varios talleres nos llamó la atención cómo algunas mujeres, sobre todo
jóvenes, participan desde la consigna y no involucrándose con su cuerpo y
experiencias en el debate. (ALONSO e DÍAZ, 2002:88, grifos meus)
Tanto num caso como no outro, as feministas criticam a “imposição de palavras de ordem”,
como uma metodologia própria dos partidos políticos, e o fato de que esta modalidade
entorpece uma política feita a partir das mulheres, de suas próprias experiências, suas
reflexões, seus próprios corpos em aprendizagem mútua. A convivência das feministas com as
154
Neste ponto, Bellotti cita o trabalho de Julieta Kierkwood “Feministas y política”.
219
mulheres dos partidos políticos nos ENM durou tanto tempo como o que têm os Encontros.
Mas estas não foram as únicas mulheres “diferentes” com as quais, no transcorrer do tempo,
as feministas tiveram que interagir. A incorporação, em 1994, no ENM de uma oficina para
debater sobre a descriminalização e/ou legalização do aborto foi atraindo, para esse espaço de
discussão, mulheres que até aquele momento não tinham se feito visíveis. Trata-se de
mulheres que manifestam concepções divergentes às das feministas sobre o significado de
“ser mulher”. Opõem-se aos valores feministas de igualdade, da autonomia e do “direito de
decidir”, reivindicam a mulher como mãe e como esposa, pronunciam-se contra a
descriminalização e/ou legalização do aborto e consideram que palavras e expressões como
“identidade sexual”, “gênero”, “trabalhadoras sexuais” ou “modelos de família”, que
aparecem nos títulos das oficinas, são uma ameaça ao que, do seu ponto de vista, seria uma
ordem natural. Essas mulheres são definidas pelas feministas como “as católicas”, categoria
que pronunciada por elas, tanto no espaço do feminismo como nos espaços dos ENM, denota
uma grave acusação. É em 1997, na província de San Juan, que a maioria das feministas situa
a irrupção das católicas nos Encontros. Essas mulheres, diferentes das “mulheres dos
partidos” ou “dos setores populares”, não entram na categoria de “outras mulheres”, mas na
de “inimigas” ou “adversárias”
155
.
Desde o primeiro encontro, as feministas se consideram as organizadoras dos ENM, mas com
o passar do tempo, e a crescente participação de “outras mulheres” e das católicas ou da
“Igreja”, as feministas foram ensaiando outras posições em sua participação nos ENM.
156
.
Num determinado momento, deixaram de participar até que, em 2001, chegaram ao acordo de
que é necessário ter uma presença ativa, e no Encontro de La Plata decidiram tornar-se
“visíveis” sob a denominação “Feministas nos Encontros”.
155
É importante destacar aqui que estas mulheres, aos olhos das feministas, se diferenciam claramente das
integrantes do grupo “Católicas pelo Direito de Decidir”, que tiveram uma participação ativa e definidora na
militância pela causa da descriminalização do aborto. Ao mesmo tempo, as Católicas pelo Direito de Decidir não
são reconhecidas por um setor da Igreja Católica, tampouco pelas acusadas de “católicas”, como pertencentes ao
catolicismo. Com isso, repete-se neste espaço de mulheres um jogo de acusações similar ao do espaço do
feminismo.
156
Toda vez que as feministas se referem à Igreja estão falando da instituição religiosa Igreja Católica.
220
3. Convocatória e organização
Neste ponto trato de mostrar o trabalho prévio ao Encontro, em que se definem quais serão os
temas e os problemas que merecerão um espaço de debate no evento. Aqui as mulheres que
participam da Comissão Organizadora disputam uma classificação da realidade, a partir do
que definem como problemas das mulheres, que se traduzirão em enunciados públicos sob a
forma de temas que integrarão a lista “oficial” de oficinas. Visto que algumas das mulheres
que fazem parte da Comissão Organizadora pertencem também a agrupamentos (partidos
políticos, grupos feministas), seus desempenhos na Comissão não apenas tem sentido no
interior desta, mas também junto a um determinado público que costuma apelar para inserir e
sustentar temas de seus interesses ou diante dos quais se denuncia a “ausência” deles.
3.1 A Comissão Organizadora
As organizadoras dos Encontros devem ser mulheres que morem na cidade designada como
sede. Segundo sua própria definição, “ano após ano, constitui-se uma Comissão Organizadora
com sede na cidade anfitriã, que trabalha durante todo o ano coordenando as tarefas”. A
Comissão se divide em grupos de trabalho (alojamento, organização, imprensa, temas,
finanças), mas as decisões finais sempre devem ser discutidas nas reuniões plenárias em que
participa toda a Comissão
157
. As organizadoras têm a obrigação de fazer uma convocação
pública e aberta e difundir a informação necessária para que todas as mulheres que assim o
desejem possam participar. Segundo a definição dos Encontros, a Comissão deve ser ampla,
autônoma, democrática, horizontal e heterogênea e dela podem participar todas as mulheres
da região que queiram trabalhar na preparação e realização do evento. No entanto, ser mulher
e do local não é condição suficiente, é necessário também que se respeitem os valores de
autonomia, heterogeneidade, democracia e horizontalidade, avaliados de acordo com as
perspectivas das que já têm uma posição reconhecida nesses espaços.
157
A organização dos Encontros exige um árduo trabalho que não recebe compensações em dinheiro e dura um
ano inteiro. As tarefas aumentam à medida que se aproxima a data do evento. Os dias que o antecedem, e durante
a realização do Encontro, são uma verdadeira loucura. As mulheres da Comissão Organizadora do ENM em
Mendoza (em torno de 40, mas cerca de 20 trabalhavam efetivamente) realizavam todo tipo de tarefa. Desde
descarregar camionetes que trazem os materiais de limpeza para distribuir nas escolas, coordenar com a polícia a
segurança da passeata, passar notas aos meios de comunicação locais, responder demandas específicas das
mulheres que chegam à cidade, montar as pastas que se entregam no momento da inscrição, até escrever cartazes
para distinguir as salas de aula onde se realizam as oficinas.
221
Assim, os valores mencionados mudam de significado de acordo com quem os enuncia, em
quais espaços, diante de quem, em quais circunstâncias e para sustentar que tipo de posição.
Uma feminista de Mendoza define os Encontros como “un sitio de tensiones, un lugar
paradojal donde son posibles las confluencias, pero también los conflictos desde el inicio
mismo de la convocatoria”. Cita como exemplo o XVIII ENM, realizado em Rosario, no ano
de 2003, “cuando militantes fundamentalistas ligadas a la Iglesia Católica argumentaban la
legitimidad de su presencia haciendo referencia al carácter autónomo y autoconvocado de los
Encuentros” (CIRIZA, 2004:27). Embora as que são definidas pelas feministas como
“fundamentalistas católicas” não participaram até o momento das comissões organizadoras,
sempre existem conflitos e tensões dentro da própria Comissão. As acusações de exclusão são
uma constante. Logo depois do primeiro ENM, uma feminista acusa uma militante do Partido
Comunista (PC) de mentir, pelo fato desta ter denunciado, na Nueva Era (revista do PC), que
fora excluída da organização:
Aparte de algunas mentiras, que rozan la infamia, como aquella de que se les
impidió la incorporación a la Comisión Promotora, en la cual –para quienes
no lo saben- había un apreciable número de mujeres del PC, lo que importa
es la concepción que allí se expresa sobre “la cuestión de la mujer” y los
lineamientos que resolvieron llevar al Encuentro, previa discusión (así lo
dice) con las demás fuerzas del Frente del Pueblo (FREPU) (BRUJAS,
1986:33)
Diante da denúncia da militante do PC, na revista de seu partido, do acontecido segundo sua
versão, na organização da Comissão do primeiro ENM, esta feminista responde denunciando,
por sua vez, numa revista feminista, a forma de fazer política dessa mulher quando se refere a
“los lineamientos que resolvieron llevar previa discusión”. Afinal, do ponto de vista feminista,
considera-se que a política deve surgir da experiência de cada mulher e em diálogo com
outras feministas, não de imposições de palavras de ordem previamente definidas. O que
poderia ser resumido nas frases que deram nome às oficinas do último Encontro Feministas:
nosotras, desde nosotras, entre nosotras.
Outra denúncia de exclusão da Comissão Organizadora foi em relação ao XVI ENM realizado
em La Plata. Desta vez, as atingidas foram as feministas e a denunciante expõe a situação
através de um artigo publicado na Red Informativa de Mujeres de Argentina (RIMA):
Participé del XVI ENM en La Plata del 18 al 20 de agosto con el grupo ad
hoc que se hizo llamar Feministas en el Encuentro. Ese grupo surgió de la
convocatoria que hizo a otros grupos y personas feministas la Casa de la
Mujer Azucena Villaflor, de La Plata, que había sido excluida de la comisión
222
organizadora de este Encuentro, a pesar de ser una entidad feminista de
sostenida actividad desde su fundación en 1988 (VASALLO, 2001).
Também é comum que a cada ano se acione a acusação de que a Comissão “cedeu às pressões
da Igreja” ou pactuou ou chegou a um acordo com a Igreja, insinuando que algumas das
integrantes são próximas a esta instituição. Assim, nas Comissões Organizadoras interagem
mulheres pertencentes a organizações que aderem a causas diversas e nem todas
compartilham a mesma concepção sobre o que significa “ser mulher” e, especialmente, quais
são os problemas que exigem um tratamento prioritário. Desta maneira, um dos pontos que
desperta maiores conflitos é “chegar ao consenso” sobre os temas das oficinas.
3.2 A definição dos nomes das oficinas
…el cambio de nombre [de un taller] implica un asunto muy importante
porque no es solo denominarse de otra forma, sino la implicancia que esto
tiene. La primera señal de cambio empieza con los nombres
Graciela Alonso, Raúl Díaz
158
O que está em jogo na elaboração da lista das oficinas realizadas durante o Encontro é a
definição dos temas que terão um lugar reconhecido para serem discutidos nesse cenário por
três dias. É a oportunidade que as mulheres, que sustentam esses temas, possuem de
transformá-los em "problemas legítimos”, ao torná-los visíveis. Isto porque os temas que são
tratados num “encontro nacional de mulheres” – em que as que se reúnem são mais de 20.000
–, ganham legitimidade, de maneira implícita e explícita, ao serem problemas definidos como
tais por mulheres, formulados por elas mesmas e que também são mulheres as que oferecem
soluções e exigem perante “os responsáveis” o cumprimento da lei, pelo reconhecimento dos
direitos, etc. O que aparece redigido de forma organizada e cuidadosa foi produto da luta de
interesses e lógicas diversas. Assim, a definição da lista de oficinas se converte numa espécie
de “agenda pública” preliminar que se tornará efetiva com as conclusões dos mesmos e de sua
posterior divulgação
159
.
“Construir agenda” é uma tentativa de transformar uma situação particular em um problema
social, afim de que seja reconhecido pelo Estado e por um público mais amplo. As disputas
158
Extraído do livro Hacia una pedagogía de las experiencias de las mujeres (ALONSO e DÍAZ, 2002:94)
159
Não é meu interesse utilizar o conceito “agenda” como categoria analítica, mas como categoria nativa. Por tal
motivo, não indagarei a respeito das diferenças entre “agenda política”, “agenda pública” e/ou “agenda de
governo”, já que não são evocadas da perspectiva nativa.
223
podem ocorrer por criar uma nova oficina, mas também por definir os conceitos utilizados
para nomear cada oficina. Cada nova oficina é considerada uma maneira de dar existência a
um tema. Por exemplo, no ENM realizado em Córdoba em 1987, foi a primeira vez que houve
uma oficina sobre “lesbianismo” (NARI, 1997:36). Como já mencionei, em 1994 foi a
primeira oficina “sobre aborto”. Outra das quais é mencionada como uma conquista das
feministas foi a de “Estratégias para o acesso a um aborto legal, seguro e gratuito” que,
segundo elas, surgiu com a necessidade de um espaço próprio de discussão “diante do
desembarque das católicas” nos ENM. Nessa oficina, a palavra “estratégias” foi pensada
como uma forma de excluir do Encontro as mulheres que se pronunciavam contra o aborto e
de garantir um lugar de troca de “estratégias” para aquelas que, estando de acordo com a
descriminalização do aborto, quisessem avançar nas propostas. Nesse espo, não se discutiria
se se está a favor ou não da legalização, mas as estratégias para a legalização. Ou seja, supõe-
se que as participantes estão de acordo com esse ponto. Desta maneira, os termos que
compõem a denominação de uma oficina levam implícitos inúmeros significados que diante
de olhos inexperientes pareceriam sem sentido. No entanto, dentro desse espaço, são
poderosos demarcadores de fronteiras.
Em 2004 criou-se uma grande polêmica porque a comissão organizadora tentou “unificar
temas”. Desse modo, oficinas como “Estratégias para o acesso a um aborto legal, seguro e
gratuito”, cuja incorporação é considerada pelas feministas que há anos militam pela
descriminalização e legalização do aborto como “uma conquista”, desapareceriam para
unificar-se com anticoncepção e aborto
160
. As feministas que faziam parte da Comissão
apelaram para o apoio de feministas de outros lugares do país para reforçar sua posição. O
fato foi informado e “denunciado” via e-mail, através da lista eletrônica da RIMA e despertou
grandes críticas à Comissão. A partir desse momento, as feministas acionaram estratégias para
se opor a esta proposta. De diferentes lugares do país, elas se mobilizaram para impedir a
unificação das oficinas que, ao modificar sua denominação, tiraria seu status de problema
específico. Por exemplo, as mulheres do Movimiento de Mujeres de Córdoba mandaram uma
declaração à RIMA e à Comissão do Encontro, e várias feministas viajaram para participar de
uma reunião da Comissão Organizadora na qualidade de ex-membros de comissões
160
Uma situação similar foi experimentada no XVI ENM em La Plata. Ali, segundo denunciaram as feministas,
pela primeira vez em 16 anos, a oficina de “Anticoncepção e aborto” foi substituída por “Mulher e Saúde Sexual
e Reprodutiva”. Isto foi interpretado como uma concessão da comissão organizadora a pressões exercidas pela
Igreja Católica e o então governador da província de Buenos Aires, Carlos Ruckauf. (VASSALLO, M, 2001).
224
anteriores
161
. Quem teve participação ativa e constante nos ENM se reconhece e é
reconhecida como “encuentreras”, ou seja, mulheres com uma ampla história e experiência na
organização e participação dos Encontros. Ao final, conseguiram que as oficinas não se
unificassem, isto é, neste caso, prevaleceu o ponto de vista das feministas. As possibilidades
de legitimar dentro dos Encontros a “agenda feminista” foram variando através do tempo.
Muitas coincidem em que Rosário foi um ponto de inflexão, onde mulheres dos setores
populares e mulheres jovens apoiaram a proposição feminista da descriminalização do aborto;
segundo elas, fato difícil de imaginar alguns anos atrás. No entanto, algumas feministas se
queixam das resistências apresentadas na organização dos Encontros para incorporar, nos
temas das oficinas, nas palavras de ordem das passeadas e nos debates em geral os temas
identificados com a “agenda feminista”. Segundo a avaliação que faz uma filósofa feminista,
uma das organizadoras do Encontro de Mendoza, dos ENM:
Hay (...) temas en los que se ha condensado y se condensa aún el conflicto,
nudos estratégicos de discusión que se repiten pues constituyen los sitios
donde anuda la subordinación de las mujeres: la cuestión del aborto legal y
gratuito, de los derechos específicos de las trabajadoras y desocupadas, de la
violencia sexual y social contra las mujeres, es decir, las consabidas y ya
muchas veces nombradas, pero no por ello menos conflictivas relaciones
entre cuerpo y política. (CIRIZA, 2004:27)
As mulheres de organizações populares como, por exemplo, de movimentos de
desempregados, não outorgam prioridade aos mesmos temas que as feministas. Enquanto,
para estas últimas, o aborto legal é um importante direito a conquistar, pois garante a
possibilidade de que cada mulher “decida sobre seu corpo”, para as primeiras não se trata de
um tema central. Nas palavras de uma militante do movimento Barrios de Pie:
É evidente que existem grupos, existem setores do Encontro, ou seja, grupos
que vão organizados, que está bem que participem... Nós também estamos de
acordo com a legalização do aborto, mas não é nosso tema central. E
acreditamos que existem setores que vão para discutir principalmente isso,
como também tem outros setores que vão para discutir exclusivamente
outros temas gerais. Isso tem a ver, por exemplo, com o fato de que havia
muitos setores que iam para propor exclusivamente que este Encontro saísse
como opositor a este governo.
Apesar de que as mulheres das denominadas classes populares foram se apropriando de
grande parte da linguagem utilizada pelas feministas, muitas delas consideram as feministas
161
As integrantes de comissões que organizaram Encontros anteriores têm direito a participar de todas as
comissões, desta maneira, as que já participaram transmitem seu “apoio e experiência” às que o fazem pela
primeira vez. Ao mesmo tempo, isso garante a possibilidade de dar certa continuidade às visões de mundo das
que criaram estes espaços.
225
mulheres sofisticadas, que discutem “coisas abstratas” ou que se distanciam dos “problemas
reais”. Isto acontece, especialmente, nos casos das mulheres que militam em partidos de
esquerda. Durante a passeata do Encontro, dois homens jovens do PTS, que carregavam uma
bandeira enorme, diminuíam a velocidade e, desta forma, conseguiram separar a passeata em
duas. Assim, a segunda metade das manifestantes caminhava atrás da bandeira do PTS. Num
momento, me aproximei com outra mulher, que lhes pediu que não diminuíssem o ritmo
porque estavam dividindo a passeata. Responderam que “essa gente” (referindo-se às
mulheres que iam mais adiante) estava a favor do governo e que “nós não temos nada a ver
com eles”. A mulher disse que não era uma manifestação contra o governo, mas uma passeata
de mulheres e, nesse caso, eles não deveriam estar ali. Eles replicaram que discutiam
problemas reais, não coisas abstratas. Segundo o testemunho de uma feminista sobre o XVI
ENM em La Plata:
El hecho de que nos presentáramos identificándonos como feministas y que
propusiéramos actividades complementarias de los talleres previstos por la
organización, dio lugar a que se instalara desde antes de que se iniciara el
Encuentro la falsa oposición "feminismo" vs "cuestión social". ¿Qué otra
cosa que cuestiones sociales plantea el feminismo desde que existe? Eso da
la dimensión de la estrecha visión de la "cuestión social" alentada por
quienes plantearon la oposición y alimentaron la suspicacia contra el
feminismo, tras haberlo excluido deliberadamente. (VASSALLO, 2001)
A disputa das feministas é por instaurar uma visão de mundo crítica às relações hierárquicas
entre os sexos e uma forma de fazer política que seja “própria das mulheres”. Assim, tentam
mostrar, em base a uma reflexão sobre a prática cotidiana das “mulheres”, que nas relações
entre os sexos há uma distribuição desigual do poder. Tenta-se mostrar a especificidade dessa
desigualdade dentro de outras desigualdades possíveis e evidenciar que as relações sociais são
produzidas pelas relações de poder e não conseqüência de características naturais definidas
por diferenças biológicas. Ao questionar as relações entre homens e mulheres e os papéis
definidos dentro da família, as feministas tentam “politizar” âmbitos antes considerados
opostos ao “político”. O que denuncia a palavra de ordem feminista “o pessoal é político” é
que os problemas da esfera da intimidade pessoal estão atravessados pelo jogo de relações de
força entre os sexos. Segundo Remi Lenoir (1989:80), o caso das reivindicações feministas é
um caso extremo em que os problemas que existem em estado privado sob a forma de
“problemas pessoais” se convertem em “problemas de sociedade”, não tanto por se tornarem
públicos graças aos meios de informação e de formação aos que estas mulheres tiveram
acesso, mas pela posição social que as autorizava, à maneira de profeta exemplar, a fazer de
sua própria pessoa um exemplo.
226
4. A abertura do Encontro
Na Plaza Independência, uma das principais praças da cidade da Mendoza, no sábado, 10 de
outubro de 2004, pela manhã, começaram a se concentrar aquelas que haviam viajado para
participar do ENM. O ato de abertura estava programado para as 10h. Havia ônibus
estacionados e mulheres que se deslocavam até uma das escolas, localizada em frente, onde
eram feitas as inscrições. Dadas as grandes dimensões do lugar, não parecia que houvesse
tantas pessoas como no ano anterior, na cidade de Rosário – onde o ato inaugural foi em uma
esplanada que concentrava o público –, mas a passeata do domingo demonstrou o contrário.
Tanto no meu caso, como no das outras participantes, explodia a alegria e a surpresa quando
encontrávamos com alguma companheira que já conhecíamos de outros Encontros (feministas
ou de mulheres), e que há mais de um ano (às vezes mais) não nos víamos. Encontrei com
Andrea, uma menina de Córdoba que havia conhecido em Tandil em 2003, no Encontro de
Mulheres Feministas, e há apenas 3 semanas tinha estado com ela quando viajei para
participar do “pré-encontro” do Movimento de Mulheres de Córdoba
162
. É profissional, de 26
anos, e pertence ao grupo “Huellas Feministas” ao qual se vinculou através de professoras da
Universidade.
Essa manhã a mesa de inscrições estava abarrotada, assim, decidi ficar na praça com Andrea e
suas amigas. Sentamos na grama para tomar chimarrão e observar o movimento das pessoas
que estavam no lugar. Nesse momento, para nós tudo era informação importante para
diagnosticar como seria o Encontro desta vez. Assim, a conversa girava em torno às
apreciações de cada uma a partir do que víamos nesse momento, do que tínhamos visto ou
escutado anteriormente e das experiências dos Encontros anteriores. Na periferia da praça,
estavam alguns homens, guardadores de carro ou curiosos, expectantes e atentos às poucas
mulheres que circulavam próximo de onde eles estavam. Mais tarde fui até o lugar em que se
encontravam algumas mulheres com cartazes feministas. Uma delas vendia a última revista de
ATEM. Fiquei com elas, cumprimentei algumas e estive um tempo ajudando a segurar a
bandeira lilás com a inscrição “Feministas nos Encontros”. Dali, se podia apreciar todo o
colorido das roupas, a diversidade de mulheres e bandeiras.
162
Vários grupos organizam “Pré-Encontros”, em que discutem quais serão as propostas e estratégias de
participação que desenvolverão durante o ENM.
227
Tanto a abertura do Encontro como a passeata são momentos em que se colocam em jogo
complexas estratégias de apresentação. As mulheres que participam do ENM estão
organizadas em sindicatos, grupos, fundações, partidos políticos ou podem ser independentes
de qualquer grupo e ir sozinhas. Entre as diversas organizações presentes, cada uma adotou
uma forma particular de adquirir visibilidade neste evento massivo. Algumas distribuíam
folhetos, colocavam cartazes nas ruas, levavam cartazes e/ou bandeiras. Outras montaram
pequenos espetáculos artísticos e musicais ou organizavam jogos. Cada grupo desenhou uma
estratégia de apresentação relacionada com o tipo de organização à que pertencia e com os
slogans que reivindicava. Entre as bandeiras levantadas no ato de abertura, estavam as
seguintes: Red de Mujeres Solidarias, Multisectorial de la Mujer de Tucumán, Municipales de
Lanús, Mujeres de Cutral-co, Católicas por el Derecho a Decidir, Barrios de Pie-Neuquén,
Movimiento de Mujeres de Córdoba, MST, Polo Obrero, Izquierda Unida, PTS, MTL, Madres
del Dolor, Feministas en los Encuentros, Mujeres de Pie, Red de Mujeres Solidarias de
Tucumán, Movimiento Barrios de Pie y CTA-AMMAR-Mendoza. As mulheres de partidos
políticos (os únicos partidos que participaram nos últimos Encontros são de esquerda)
levavam enormes bandeiras que habitualmente são sustentadas por homens, usam bonés e
camiseta como distintivos e costumam levar bumbos. No grupo das feministas, é impensável
que participe algum homem. Identificam-se com a cor lilás e levam bandeiras, em geral, não
muito grandes porque são muito difíceis de manterem levantadas e de caminhar com elas.
Esse ano, as lésbicas feministas apelaram para estratégias lúdicas e musicais. Apresentaram-se
com um grande cartaz cor de laranja que dizia: “Las lesbianas ya no jugamos a las
escondidas jugamos a la mancha” [Nós, lésbicas, já não brincamos de esconde-esconde,
brincamos de ‘queimado’]. E debaixo do cartaz começaram um jogo com uma bola grande
que dizia “Cuidado que te toca la mancha lesbiana” [Cuidado que te toca a mancha lésbica].
Passavam a bola entre elas e a cada tanto passavam a outras mulheres (ver fotos 7 e 8). Em
alguns casos, isso produzia um grande incômodo, tinha as que preferiam não tocar a bola,
outras que a devolviam com gesto de aversão e outras que não se sentiam particularmente
ofendidas e participavam do jogo
163
. Depois, tocaram tambores na calçada com um grupo
chamado “Lesbian banda”, composto por mulheres que estavam vestidas com camisetas
163
O lesbianismo é tema de conflito dentro do próprio movimento feminista. Durante a passeata, escutei uma
senhora de uns cinqüenta anos que dançava muito divertida, falar: “Como avançamos! Há alguns anos atrás era
impensável que todas as feministas caminhassem debaixo da bandeira das lésbicas. Às vezes não se nota, mas
avançamos muito.”
228
brancas, calças compridas e lenço lilás na cabeça. Esta encenação foi produto de longos
debates nos grupos de lésbicas feministas, que consideram que existe uma “invisibilidade
lésbica” e, a partir disso, elaboram estratégias para contestar o que elas denominam “a norma
da heterossexualidade obrigatória”. Outra encenação, que ironizaram sobre as representações
das mulheres nas quais se valoriza a beleza e a juventude, foi a performance que as
Bastoneras de la Tercera Edad” fizeram. Foi uma atividade programada pela organização
em que mulheres com cerca de 60 anos, vestidas com meias, camisas brancas, saias e bonés
vermelhos, imitavam de forma satírica o tipo de exibição que habitualmente mulheres muito
jovens fazem, vestidas com saias muito curtas que permitem mostrar suas pernas. Todos
riram, aplaudiram e tiraram muitas fotos. Por outro lado, as “Madres del Dolor” (em torno de
40 mulheres), cujos filhos foram assassinados ou desaparecidos – alguns pelas forças policiais
e outros trata-se de casos ainda não resolvidos pela justiça –, exibiram uma bandeira argentina
muito comprida sustentada por todas elas. No centro, sobre a lista branca, estavam impressas
as fotos de seus filhos mortos. Mais abaixo, sobre a lista azul, havia outras fotos coladas,
provavelmente de casos mais recentes. Algumas levavam também a foto de seu filho sobre o
peito, pendurada do pescoço, e um pequeno cartaz também com uma foto. As “Madres del
Dolor” foram muito fotografadas. Integrantes do Polo Obrero (PO) e do Partido de los
Trabajadores por el Socialismo (PTS) reivindicavam, com cartazes e bandeiras, o
desprocesamiento de los luchadores populares” [suspensão dos processos dos lutadores
populares] e “liberación de los presos políticos” [libertação dos presos políticos]. As Mujeres
trabajadoras en el Polo Obrero distribuíam folhetos com reivindicações e críticas ao governo
nacional, à Igreja Católica, ao Fundo Monetário Internacional e ao presidente Nestor
Kirchner; integrantes de Mujeres al Oeste distribuíam folhetos sobre “Mitos e realidades
sobre o aborto”; as Mujeres Feministas Autoconvocadas convidavam à “calçada feminista”
onde seriam realizadas “expressões artísticas, rádio aberta, músicas, tambores, publicações”; a
Red Informativa de Mujeres de Argentina (RIMA) tinha uma pequena bandeira na calçada
feminista; Comisión de Mujeres de Subterraneos distribuíam folhetos propondo uma jornada
de 6 horas de trabalho para criar mais emprego e opondo-se ao emprego da mulher como mão
de obra barata; Mulheres da Comunidade Indígena participaram com um cartaz; ATEM
convidava para a 23ª. Jornada Feminista a ser realizada no dia 4 de dezembro de 2004 na
Cidade Autônoma de Buenos Aires; a Fundación Agenda de las Mujeres oferecia a agenda de
2005 e convidava para conhecer o primeiro portal feminista da Argentina; as Mujeres de
Camioneros de Mar del Plata estiveram presentes com um grande cartaz que foi a primeira
página de um dos jornais de Mendoza; as Mujeres de la Municipalidad de Córdoba levavam
229
sua bandeira, assim como as Católicas pelo Direito de Decidir
164
; outra bandeiras que
estiveram na praça no dia da abertura foram: Movimiento de Mujeres de Córdoba; Lesbianas
Feministas; La Plata y Mujeres del Encuentro en Avellaneda.
Alguns dos grupos comercializavam e/ou trocavam seus produtos. As feministas costumam
levar camisetas e alguns artesanatos como isqueiros, broches com as frases do feminismo e
bonecas de bruxas. Dentro das escolas também são vendidos livros e publicações. Em cada
Encontro, assim como nos Encontros de Mulheres Feministas e nos congressos acadêmicos
sobre gênero está sempre presente a Librería de Mujeres da cidade de Buenos Aires. Havia
vários grupos de indígenas vendendo artesanatos e comidas. E também apareceram aqueles
que habilmente aproveitam a conjuntura, mesmo sem participar do Encontro. Por exemplo,
um homem jovem vendia fitas de cabelo de diversas cores com a inscrição “XIX Encuentro
Nacional de Mujeres - Mendoza 2004”. Havia outro que vendia bonés para se proteger do sol
com a figura de São Caetano, que não teve muito êxito na sua empresa. As mulheres do Polo
Obrero vendiam seus jornais, assim como outros partidos de esquerda. O Encontro, em geral,
transforma-se num grande espaço de troca e difusão de informação, slogans, panfletos,
folhetos, jornais, livros, camisetas e broches, entre outros.
Com exceção de Las Bastoneras de la Tercera Edad, os atos programados pela Comissão
Organizadora para a abertura foram realizados sobre um palco num espaço da praça mais
elevado; incluíram-se alguns números artísticos como a apresentação de uma murga [grupo
musical e teatral de caráter cômico e crítico] de mulheres jovens e algumas cantoras. Grande
parte da comissão oficial subiu ao palco, deram as boas-vindas a todas as mulheres, cantou-se
o hino nacional (com ritmo do norte do país); nesse momento, todas as mulheres que estavam
no palco deram-se as mãos e permaneceram com as mãos para cima, parte do público
respondeu com o mesmo gesto, mas não as feministas. Logo, pronunciou-se um discurso, que
não despertou muitas adesões. A praça era um lugar muito amplo e o palco estava separado
das mulheres por uma ampla fonte de água, o que facilitava a dispersão do público e
dificultava o contato entre o público e as organizadoras.
Nas palavras de abertura do evento, as mulheres definiram “quais eram” as mulheres do
Encontro, referindo-se explicitamente à experiência, à história e à luta:
164
No ENM de Rosário, as Católicas pelo Direito de Decidir distribuíram lenços verdes com as seguintes frases:
“direito a decidir”, “descriminalização do aborto”, “legalização do aborto” e “católicas pela legalização do
aborto”. Os lenços verdes foram muito bem recebidos pelos diversos grupos e se tornaram um marco na “história
dos Encontros”. Em Mendoza e em Mar del Plata distribuíram novamente os lenços verdes.
230
Dezenove Encontros não é pouco. As que hoje estamos aqui fizemos o
caminho. Não somos submissas nem resignadas:
- Somos as mulheres que saímos à rua para fazer oposição à economia de
mercado e às políticas de ajuste;
- As que revelam as diferentes formas de opressão que se exercem dentro e
fora do lar
- As que renovamos o não à guerra contra Iraque
- As que não suportamos o oculto maltrato, e desenhamos estratégias para
deter a violência contra a mulher
- As inventoras dos mil recursos para aliviar a fome, nos mantermos
organizadas e resistir dia a dia.
- Somos as mulheres que as que a palavra Segurança significa: menos
uniformes, mais trabalho, mais saúde, mais educação.
- As do basta ao assédio, à invisibilidade do trabalho doméstico, à
discriminação pela opção sexual.
- As que exigimos trabalho, e igualdade no campo trabalhista e nos espaços
de poder.
- As que demandamos decidir livremente sobre nossos corpos
Nós, as encuentreras; vamos somando e já somos multidão; temos múltiplas
procedências e diferentes atividades cotidianas, mas sabemos o que
queremos e persistimos na luta que nos viu nascer.
Daqui a pouco, começaremos o trabalho nas oficinas. Todas e cada uma
teremos uma nova oportunidade para debater, aprender das outras, para nos
conhecermos e nos reconhecermos. Temos metas comuns, mas somos
diferentes, sustentamos diversas ideologias e convicções; devemos saber que
nos encontraremos com opiniões com as quais não coincidiremos. Por isso, é
indispensável que nos espaços compartilhados dialoguemos com respeito,
sejamos militantes da tolerância para nos encontrarmos em torno às
coincidências.
A fisionomia do Encontro em si mesma foi um ato de desafio para parte do público de
Mendoza. No domingo, 10 de outubro, o jornal Los Andes de Mendoza publicou uma foto da
abertura do ENM da primeira página, onde se vê várias mulheres na Plaza Independencia e
uma bandeira com a inscrição: “Anticoncepcionais gratuitos, aborto legal e gratuito”. O título
da nota é “Mulheres de todo o país debatem em Mendoza”. Debaixo desta nota anuncia-se o
suplemento “Mulher” do jornal com o título: “Dietas e exercícios para chegar bem no verão”,
que inclui uma foto de duas mulheres muito magras fazendo ginástica. As milhares de
mulheres que chegaram a Mendoza neste fim de semana, sem dúvida, não correspondiam à
representação de “mulher” do suplemento feminino do jornal. Tampouco com as outras tantas
expectativas que as representações dominantes geram sobre as práticas legítimas das
mulheres. O “Encontro” e a exposição de mulheres nas ruas de Mendoza tornou pública outra
versão da feminidade que foi contestada e causa da maior disputa que se desencadeou no
ENM, iniciada nos Encontros anteriores. Os que se sentiram particularmente ofendidos foram
alguns grupos de militantes religiosos pertencentes à Igreja Católica. Não lhes preocupava
somente a “invasão” de mulheres na cidade, que foi definida pelos mais radicais como
231
“manadas de cheirosas reses”, mas vários dos temas que seriam discutidos nas oficinas
165
,
particularmente métodos contraceptivos, legalização do aborto e os estudos de gênero.
Na sexta-feira, 8 de outubro, um dia antes do início do ENM, o jornal Los Andes publicou
uma notícia do Encontro na contracapa. Na mesma página, num pequeno box, havia outra
notícia intitulada “Convocam católicas para um ‘rito de envio’”. Ali, informava-se que o
bispo Arancibia convocava as mulheres para que participassem de uma missa preliminar,
antes que se iniciasse o Encontro de Mulheres, com o objetivo de “fortalecer os espíritos das
mulheres para que possam debater com seus pares sob os fundamentos da fé católica”. À
medida que transcorria o Encontro, os atos pela “defesa da vida” terminaram convertendo-se
numa atração, especialmente para os meios de comunicação. É uma constante nos ENM que
os meios busquem o momento de alguma briga. Por outro lado, a violência de determinados
fatos impactou a todos/as.
No dia anterior à abertura do Encontro, as várias quadras próximas à praça e às escolas onde
funcionariam as oficinas estavam cheias de impecáveis outdoors contra o aborto (ver fotos 10
e 11). Um deles tinha a foto de um bebê branco e louro, de aproximadamente um ano, sentado
de costas e uma frase que dizia: “Mulher, não dê as costas à vida”. Esta frase tinha uma
tipologia de letra e uma cor que a fazia facilmente confundível com a utilizada pelas
feministas. As letras estavam em lilás, cor com a qual se identifica o feminismo. Mais abaixo,
com letras azuis menores e sobre fundo branco (igual que a bandeira argentina) se lia:
“Argentina contra o aborto”. Sobre a borda do outdoor e com letras ainda menores e em lilás,
um endereço de e-mail: mendoza[email protected]. O outro outdoor tem uma foto da
cabeça de um bebê sustentada pela mão de um adulto e uma frase que diz: “Este é nosso
futuro”. Mais abaixo, com letras azuis: “Mendozaxlavida” e na borda superior do outdoor
novamente o endereço de correio eletrônico. Durante o ato de abertura, uma mulher jovem
grávida de uns 7 meses, passeava com a barriga descoberta e, escrita sobre sua pele com
hidrocor, a seguinte frase: “não me mate”. Isto causou um impacto emocional muito forte e
foi muito comentado por várias mulheres (ver foto 9). No mesmo dia que começava o
Encontro também apareceram pintadas nas escolas onde funcionariam as oficinas as frases:
“não matem mais crianças assassinas”, “não às autoconvocadas”, “não ao aborto”, “sim à
vida” “pela mulher, sim à vida”, “não aos esquerdistas” (ver fotos 12, 13, 14, 15, 16).
165
Nos dias seguintes à finalização do Encontro foram enviados vários correios eletrônicos à direção do
Encontro em que se burlavam das organizadoras e se auto-atribuíam os diversos distúrbios que ocorreram
durante a realização do evento. Também publicaram notas de opinião na página de Panorama Católico
Internacional, onde se definem as mulheres do Encontro como opostas ao “feminino”.
232
Imagens da abertura do XIX Encontro Nacional de Mulheres, numa praça na cidade de
Mendoza, outubro de 2004.
Fotos 7 e 8. Mulheres jogando “La mancha lesbiana”, sob uma bandeira com a inscrição “Las
lesbianas ya no jugamos a las escondidas, ahora jugamos a la mancha”. Organizado por Mujeres
Públicas. Foto: sítio web de
M
u
j
eres Públicas
Foto 9. Mulher grávida mostrando sua barriga com a inscrição
No me maten”.
Fonte: RIMA web.
233
Fotos 10 e 11. Outdoors nas ruas de Mendoza próximas às escolas onde funcionavam as
oficinas do XIX Encontro Nacional de Mulheres. Mendoza, outubro de 2004.
234
Manifestações contra a decriminalização do aborto, supostamente realizadas por grupos
católicos durante o XIX Encontro Nacional de Mulheres em Mendoza.
Foto 12.
N
o al travestismo
y
al lesbianismo
Foto 13. Si a la natalidad Foto 14. Por la mujer. Sí a la vida
Foto 15. No a la pastilla del día después Foto 16. No a la ligadura de trompas
235
5. As oficinas: divisões de interesses e busca de “consensos”
Como mencionei anteriormente, a partir de reuniões prévias ao Encontro entram num
“consenso” sobre os temas a serem tratados nas oficinas. Embora, em princípio, seja de vital
importância a existência ou inexistência de determinados temas, durante a realização das
oficinas, o trabalho pelo reconhecimento e a legitimação dos problemas como tais continua e
alcança um de seus momentos mais críticos. Ali, é determinante poder incidir nas conclusões
que, logo, serão lidas publicamente, no encerramento do Encontro e, posteriormente,
publicadas em páginas da Internet e nas memórias do Encontro. A Comissão Organizadora
define as oficinas como “um grupo de discussão de caráter autogestionário, onde o debate
surge a partir da contribuição das participantes, baseadas na sua história, sua origem de classe
e sua experiência”. A tarefa é discutir os temas propostos para cada oficina. Está estipulado
que as conclusões são alcançadas por consenso e que “não se vota”. Isto é repetido como
argumento até o cansaço, quando alguém trata de impor uma determinada versão, em função
de quem a sustenta é a maioria. No entanto, nos últimos anos, dados os conflitos suscitados
pelas opiniões opostas, em algumas oficinas são elaboradas conclusões por maioria e por
minoria. As oficinas são definidas como “soberanas” assim como as conclusões que surjam
das mesmas. A coordenação de cada oficina é designada pela comissão organizadora. Cada
oficina se divide em tantas comissões como o número de participantes exija. A proposta é não
superar o número de 40 pessoas para facilitar a participação. Em cada oficina, são designadas,
no momento, 2 secretárias, cuja função é “registrar de maneira fidedigna e ampla as
intervenções das integrantes, ler ao finalizar cada módulo os temas e as discussões feitas em
seu transcurso, entregar os registros à coordenadora ao finalizar cada módulo; sugere-se que
as secretárias sejam rotativas para dar a possibilidade às companheiras que assumem a função
de participarem no debate”
166
.
Tanto as coordenadoras como as mulheres que assistem na qualidade de participantes se
distribuem nas oficinas em função dos temas relacionados aos seus interesses. É possível
identificar três razões principais pelas quais escolhem uma oficina: porque se identificam com
o tema a partir da sua experiência pessoal (por exemplo, oficinas como “Mulheres com
capacidades diferentes” e “Mulheres e prisão”); porque o tema está vinculado a uma causa à
qual elas aderem ou pela qual militam. Nestes casos, é muito provável que várias dessas
166
Extraído do documento “Material de orientación para el trabajo de coordinación de talleres” del XIX ENM.
236
mulheres também tenham participado no trabalho de reconhecimento e legitimação dessa
oficina dentro do temário do Encontro. Por esse motivo, existe uma preocupação clara em
participar no debate, a fim de que as conclusões de consenso reconheçam, legitimem e
proponham soluções para os problemas enunciados na denominação da oficina (por exemplo,
oficinas como “Trabalhadoras sexuais”, “Estratégias para o aborto legal, seguro e gratuito”,
“19 anos de Encontros, situação atual do movimento de mulheres”); e, por último, tem
mulheres que escolhem oficinas para “romper o consenso”, evitar que as conclusões sejam
unânimes, conseguir que suas opiniões também estejam refletidas nesses espaços e, desta
maneira, evitar a legitimação de “problemas sociais” que se definem em nome das “mulheres
argentinas”.
Assim, nos últimos anos participaram do ENM mulheres que, estando totalmente em
desacordo com a existência de algumas oficinas e com as conclusões que habitualmente
surgem das mesmas, tentam contestar a identidade feminina proposta pela organização do
ENM, utilizando a mesma metodologia de “participação” proposta pelas “autoconvocadas”,
como são denominadas. Trata-se de mulheres de classe média e média alta, muitas delas
universitárias e de todas as idades (desde 20 a 60 anos ou mais). Algumas pertencentes a
organizações como “Pró-vida”, outras à UCA (Universidad Católica Argentina) e à
Universidad Austral. Segundo declarações do presidente de Pró-vida ao jornal Los Andes de
Mendoza, “alguns vinculados à Escuela Virtual para Padres também participaram da
organização” (Los Andes, 24 de outubro de 2004). Estas mulheres se distribuíram
estrategicamente nas oficinas em que foram abordados temas sobre os quais sua religião tem
uma posição clara, que elas sentem ameaçada pelo espaço dos ENM (por exemplo, “Aborto e
Anticoncepção”, “Estratégias para o acesso ao aborto legal, seguro e gratuito”, “Estudos de
gênero e movimento de mulheres”, “Mulheres e famílias”, “Mulheres e ligadura de trompas”).
A distribuição em diferentes oficinas tem como objetivo explícito que tenham
“representantes” em todas para que, segundo suas palavras, “nenhuma conclusão saísse por
unanimidade”. Segundo militantes do grupo Pró-vida, houve reuniões preparatórias para
desenhar a “estratégia que iam aplicar em Mendoza”. Cada oficina cujas conclusões foram
com “conclusões em minoria” foi considerada como uma “batalha ganha”, já que se
conseguiu romper o “consenso”. Estas “conquistas” foram anunciadas e festejadas nas
páginas de Internet da organização. Estas mulheres participaram do Encontro e geraram
atividades paralelas que contemplavam seus próprios interesses e crenças. Por exemplo, em
237
base ao programa “oficial” do Encontro, organizaram outro, que reproduzo a seguir, em que,
com letras vermelhas, incluíram e diferenciaram as atividades das mulheres católicas.
ALOJAMENTO
O alojamento foi, além de hotéis e hospedagens, em colégios. Estes estiveram habilitados a
partir do sábado, às 8 da manhã, até segunda-feira, às 9 da manhã. Algumas também foram a
um camping. As católicas se alojaram no Liceo Militar General Espejo, em que cada
participante contou com colchões ou colchonetes, além de excelente serviço. Outros lugares
de alojamento foram: Madre de Los Inmigrantes, Oratorio Seferino Namuncurá, Sede de
Cursillos de Cristiandad, e casas de famílias.
CRONOGRAMA (em negrito as atividades organizadas pelas católicas)
SÁBADO - 9 de outubro
9:00 a 13:00 ABERTURA (INSCRIÇÕES) - Plaza Independencia
14:00 a 18:00 OFICINAS
18:00 atividades culturais
19:00 Missa em Nuestra Señora de Los Dolores
DOMINGO - 10 de outubro
7:30: Missa
9:00 a 12:30 OFICINAS
14:00 a 17:00 OFICINAS
17:00 a 18hs REDAÇÃO DAS CONCLUSÕES
19:00 Passeata pelas ruas da cidade
22:00 PEÑA [show de música]
Por sua vez, a página na Internet do XVIII ENM realizado em Rosario publicou a seguinte
informação, como “conquistas” impulsionadas pelas propostas surgidas nos Encontros. A
maioria delas está relacionada com demandas ao Estado que foram consagradas pelo direito a
serem convertidas em leis:
As propostas ao longo destes anos impulsionaram ações e lutas por:
1. Regulamentação de Creches por Zonas.
2. Lei de Cotas No. 24.012.
3. Leis sobre violência familiar.
4. Lei do divórcio
5. Patria potesta compartida
6. Campanha pelo aborto legal para não morrer e contraceptivos para não
abortar.
7. Pela aposentadoria da dona de casa sem contribuições e outras causas.
238
Assim, as oficinas se tornaram um lugar de encontro para as que compartilham as mesmas
causas, que reforçam ali seus vínculos ao se identificarem com as mesmas lutas, e num lugar
de confronto para as que disputam pela legitimidade de significados enfrentados sobre
determinados temas. Depois de elaboradas as conclusões, ainda há espaço para a disputa no
cenário que se cria durante a leitura das mesmas.
5.1. Leitura das conclusões
Durante o XIX ENM em Mendoza, a leitura das conclusões estava prevista num estádio
fechado, devido a que se tinha prognosticado chuva e a entrada de uma frente fria para a
segunda-feira pela manhã. Mas, como o gerador elétrico do clube tinha sido destruído por
uma bomba molotov atirada durante a noite por “desconhecidos”, o lugar ficou inutilizado.
Por tal motivo, na segunda-feira de manhã, as mulheres do Encontro se reuniram na Plaza
Independencia e ali, novamente, houve incidentes com mulheres e homens católicos. Durante
a leitura das conclusões, um grupo aparentemente organizado de mulheres católicas “Pró-
vida” chegou à praça com uma espécie de guarda de homens que se negavam a sair do espaço
circundante do palco. Aparentemente, também tinham chamado os meios de comunicação
para denunciar a “discriminação” e “tratos violentos” e exigir que não fossem lidas as
conclusões da oficina “Estratégias para o acesso a um aborto legal, seguro e gratuito”.
Segundo a descrição de uma das mulheres da Comissão Organizadora, estes grupos se
postaram atrás do palco e queriam entrar no setor onde as mulheres estavam esperando para
ler as conclusões. Por tal motivo, fez-se, “pela primeira vez na história dos Encontros”, um
cordão de mulheres para impedir que estes homens passassem e também foram fechados
todos os acessos ao palco. Esta foi a situação com a qual me deparei quando cheguei à praça.
Ao querer ingressar no setor do palco por uma escada, mulheres do Polo Obrero não me
deixaram entrar. Ao final, cheguei por outro lado. Ali, deparei-me com um triplo cordão de
mulheres de mãos dadas que cercavam o espaço onde estava o palco. Encontrei uma feminista
que conhecia que rompeu o cordão para me deixar entrar. Enquanto eu passava, ela dizia a
alguém: “Sim, ela sim, pode entrar”. Uma vez dentro dessa parede humana, fui me inteirando
de todos os incidentes.
Em torno de meio dia, a situação era muito tensa. Uma das mulheres da organização, que
durante a realização das oficinas havia se enfrentado com um grupo de católicas que, com a
presença de uma escrivã pública tentavam anular uma oficina, não podia conter as lágrimas,
além de estar tremendo de frio, e não poder deixar o lugar para buscar um casaco dado à
239
situação dramática. Contou-me que Monsenhor Laguna, reconhecido representante da Igreja
Católica, tinha viajado e estava na praça. Os ônibus das delegações de muitas das mulheres
que estavam na “segurança” já estavam voltando e um grupo importante de mulheres ainda
não tinha lido suas conclusões. Os encarregados do som anunciaram que, se chovia muito,
deviam levar os equipamentos porque podiam queimar. Foi diante desta situação que algumas
mulheres da organização decidiram anunciar a suspensão da leitura das conclusões. Outras
participantes do Encontro interpretaram este fato como uma declinação ante a provocação
dos/as católicos/as. Nesse momento, um grupo de artesãos da Plaza Independencia ofereceu
um microfone e um par de caixas acústicas.
Depois de um inflamado debate entre as mulheres da Comissão, diante da pressão das
companheiras que queriam continuar e dado que os grupos que “estavam provocando” tinham
se distanciado um quarteirão, decidiu-se continuar com o som dos artesãos e com o frio cada
vez mais intenso. Uma mulher de Córdoba contou que “a violência tinha passado dos limites”.
Ela estava junto a um grupo de mulheres que pediu a um dos homens católicos que se
retirasse porque não podia estar no espaço do palco, já que se tratava de um encontro de
mulheres. O homem não se retirou e se mantinha a uma distância de poucos centímetros de
algumas mulheres, com uma atitude claramente provocadora. Um grupo de mulheres do Polo
Obrero o rodeou. Aparentemente, como não se retirava, o empurraram e caiu, quando estava
no chão bateram nele. Rapidamente, esta pessoa fez uma denúncia na polícia. Segundo o
relato de integrantes do Polo Obrero, uma companheira deles tinha sido agredida por um
católico, que “agarrou-a pelos cabelos”. Também circulava outro rumor de que no dia
anterior, uma feminista com uns 60 anos tinha sido agredida por um grupo de mulheres
jovens. Segundo o relato, perguntaram-lhe se estava a favor do aborto e quando respondeu
que sim, deram-lhe uma bofetada. As conclusões terminaram de ser lidas diante de um
público escasso e em meio à crescente dispersão.
6. A passeata: “uma verdadeira batalha”
A passeata é outra oportunidade na qual cada grupo pode fazer-se visível nesse espaço
público. Cada ano, esta é encabeçada pelas mulheres da Comissão Organizadora que levam
uma grande bandeira que vai de um lado a outro da rua com o nome do Encontro, o lugar e o
240
ano. É comum que integrantes das Mães da Praça de Maio caminhem juntas com as
integrantes da Comissão. As outras mulheres caminham atrás da Comissão Organizadora e há
uma grande disputa por ocupar esses lugares. Em Mendoza, a passeata demorou porque
integrantes de alguns partidos políticos de esquerda já estavam formados em coluna,
ocupando grande parte da rua onde a mesma iria iniciar. As mulheres da Comissão tinham se
localizado na esquina, atrás deles. Por isso, depois de longos minutos de espera, pouco a
pouco as mulheres dos partidos políticos se deslocaram para os lados para deixar passar a
parte encabeçada pela Comissão Organizadora.
Para os diversos grupos, é extremamente importante o lugar que ocupam na passeata, o
tamanho e os slogans das bandeiras. Ou seja, todos aqueles elementos que garantem a
visibilidade. Tudo o que acontece no transcurso da passeata também se converte numa espécie
de conquista ou triunfo que, depois, é reproduzido quando se compartilha a experiência com
quem não esteve, nos relatos que circulam de boca em boca, e nas reuniões posteriores (os
pós-encontros) onde se “avalia” o Encontro, como nas publicações virtuais ou impressas. Por
exemplo, o Partido de los Trabajadores por el Socialismo (PTS) publica nas suas páginas
duas notas intituladas: “Nossa bandeira pelo direito ao aborto foi foto do jornal UNO de
Mendoza” e “O PTS no jornal Los Andes: ‘Os movimentos políticos presentes’”. No caso das
feministas, também os fatos são relatados em forma de luta ou de triunfo. Algumas contam
que tinham deixado de ir aos Encontros, mas que agora voltaram a participar porque em
Rosario houve uma grande mudança: a bandeira do aborto encabeçou a passeata e, além disso,
as mulheres das classes populares aderiram a essa proposição. Em Rosario, por primeira vez,
o grupo “Católicas pelo Direito de Decidir” levou milhares de lenços verdes com as
inscrições: “Pelo direito ao aborto” e “Pelo direito de decidir”. Estes lenços foram
distribuídos entre todas as mulheres que quisessem usá-los e, efetivamente, muitas mulheres
que não eram feministas também os usaram (ver ilustração 17). Por outro lado, além das
bandeiras e de outras formas de identificação que as mulheres utilizaram, cada grupo tinha seu
próprio repertório de músicas. Por exemplo, as feministas entoavam, entre outras, as
seguintes: “Que destino, que destino, que destino/Morre uma mulher por dia por abortos
241
Ilustrações 17. Primeira página do jornal Página 12 com foto da passeata do XIX Encontro Nacional
de Mulheres em Mendoza. Os lenços verdes tornaram-se, desde o XVIII ENM de Rosario, o
símbolo da causa pela descriminalização do aborto.
242
Foto 18. Disfarces de Bruxa durante a passeata do XX ENM em Mar del Plata, outubro de 2005
243
clandestinos” e “Sim senhoras, sim senhores, proíbem o aborto, os padres abusadores”.
Enquanto isso, os partido políticos de esquerda cantavam “Vivam as lutas operárias, abaixo a
repressão/Liberdade aos companheiros/Basta de perseguição” e “Operária escuta, tua luta é
nossa luta”. Por sua vez, outras como “Já sabia, já sabia, dos padres violadores cuida a
polícia” era majoritariamente compartilhada. Assim como “Atenção, atenção, são a mesma
coisa padre, milico e patrão”.
Para além das disputas dentro da organização do Encontro, quando as mulheres do ENM
saíram do contexto das oficinas e ocuparam as ruas da cidade de Mendoza, o público ao qual
o evento se dirigiu foi outro. Desde o início do Encontro até o dia que finalizaram as oficinas,
tinham sido registrados vários episódios violentos que faziam temer pelo que poderia
acontecer na passeata. Alguns destes incidentes aconteceram durante a realização das oficinas.
O governo provincial tinha distribuído em todas as escolas onde havia atividades do Encontro
folhetos com informação sobre contracepção e “saúde reprodutiva”. Segundo os rumores,
alguns homens entraram e queimaram os folhetos dentro do edifício, ou simplesmente os
levaram. Também houve denúncias à polícia sobre supostos seqüestros de mulheres que
estavam participando do Encontro, o que gerava uma grande instabilidade nas mulheres da
organização que tinha que resolver situações inéditas que escapavam ao seu controle.
Cada ano há uma grande discussão para definir o itinerário da passeata. A questão central é se
se vai “escrachar a Igreja” ou não. Isso significa passar na frente da catedral do lugar, ou de
alguma igreja importante, e fazer uma manifestação de repúdio, que consiste, geralmente, em
pintar os edifícios com slogans que denunciam e acusam a instituição, ou simplesmente se
manifestar com a entoação de determinadas músicas. O só fato de que as mulheres passem
diante da Catedral é lido como um “ato político” por muitas das mulheres que participam do
evento, especialmente as feministas e as militantes de partido de esquerda. Caso decida-se
passar, certamente, a catedral vai ser pichada com determinadas palavras de ordem. Caso
decida-se que não, este fato também é interpretado “politicamente” como uma forma de
“baixar bandeiras na luta”. É importante destacar que este fato é reconhecido publicamente
como um desafio ou um insulto, tanto pelos que o realizam como por aqueles a quem está
destinado.
Geralmente, as mulheres que organizam o Encontro preferem não passar em frente à catedral.
É uma constante em cada ENM que as organizadoras tentem desalentar as ações mais radicais
devido ao temor a práticas de controle social que as afetam em seu cotidiano nas cidades onde
244
vivem. No momento de definir posições que desafiam o senso comum e as representações
dominantes, coloca-se em jogo a integridade moral (e às vezes física), especialmente das que
vivem no local
167
. No único caso em que isto não acontece é na Cidade Autônoma de Buenos
Aires, pois a dimensão da cidade não permite a identificação cara a cara. Este ponto é de
grande utilidade para mostrar que, ao considerar a relação desigual entre os sexos como um
fato universal, muitas vezes não se consideram as variações que adquire de acordo com as
diferenças de classe, de tamanho das populações e das configurações sociais próprias de cada
lugar
168
.
Durante a passeata, embora as disputas entre os grupos que participam da organização não
desapareçam, elas abrem espaço para os conflitos que, nesse espaço, reconhecem outro
“inimigo” e os/as próprios/as envolvidas o definem como uma “batalha”. A palavra de ordem
que foi repetida ao longo de toda a passeata e que unificava a grande maioria das mulheres foi
Qué momento, qué momento. A pesar de todo les hicimos el Encuentro” [Que momento, que
momento. Apesar de tudo fizemos o Encontro]. Neste caso, não se tratava de reforçar
posições diferentes internas, mas do Encontro para os “outros”: os/as católicos/as. Por sua
vez, o grupo católico denominado “Jovens pela Vida” definiu a passeata do XIX ENM como
uma “verdadeira batalha pela vida”.
6.1 A disputa por uma identidade legítima
A definição dos papéis que correspondem a homens e mulheres foi uma das grandes lutas
durante o Encontro. A presença das mulheres do Encontro nas ruas foi, em si mesmo, um
desafio para as que responderam a suas representações do que “deve” ser uma mulher e do
que “deve” ser um homem. Da mesma forma, a presença das mulheres católicas também se
tornava um problema para muitas das organizadoras do Encontro, especialmente para as
feministas. Mesmo sendo mulheres, sem dúvida, por suas características biológicas, resultava
muito difícil considerá-las como tais da perspectiva que se definiu as mulheres na abertura do
167
Norbert Elias chama a atenção a respeito de que a coerção exercida pelo costume social (neste caso, na
relação desigual entre os sexos) converte-se numa segunda natureza e, portanto, em autocoerção. “Un hombre y
una mujer educados en esa tradición no pueden romper fácilmente con ella sin perder el respeto a sí mismos así
como el respeto de su grupo” (ELIAS, 1998:202).
168
É absolutamente pertinente citar aqui, uma vez mais, o artigo de Alejandra Ciriza intitulado “Voces
feministas fuera de lugar. Sobre los Encuentros Nacionales de Mujeres vistos desde la periferia”. Quando fala de
“periferia” refere-se à “periferia conservadora” que considera que “proporciona outro olhar”. Na primeira página
do artigo, cita outra feminista para dizer que “en Mendoza son muchos más estrechos los umbrales de tolerancia
del patriarcado”.
245
Encontro
169
. Para o caso das feministas, e outras integrantes da organização do Encontro,
várias histórias demonstram esse incômodo com as definições. Durante uma conversa sobre o
“avanço das mulheres católicas”, alguém comenta que considera que estas ações são “algo
contra o Encontro, porque deve incomodar que as mulheres se ponham de pé...” e, em
seguida, declara: “Acho que deve ter mais católicas que mulheres...”. Outra apóia esta
hipótese dizendo que, efetivamente, “estão cercando tudo, ganharam aborto e contracepção,
estão em quantidade...”. Até que outra mulher reage e diz: “Mais católicas que mulheres? O
que são as católicas, hominídeos?” e todas começam a rir.
Pelo lado dos/as católicos/as, a resposta a esse desafio público que significou para eles/as a
organização do Encontro, também foi a desqualificação das mulheres como tais. Embora um
tanto mais violenta devido a que, ao se referir a elas como animais, nega-lhes não só sua
condição de mulher, mas sua “humanidade”. Além disso, com ações violentas muito concretas
como jogar bombas molotov num edifício onde seria realizada a apresentação musical de
boas-vindas, bater em alguns ônibus e apedrejamentos dos vidros de lugares de alojamento
170
,
o que Tambiah (1997) denomina “formas padronizadas de intimidação do adversário”. Em
nota publicada na página de Internet de Panorama Católico Interncional intitulada “Crónicas
desde el Corral”, um cronista descreve desta maneira as mulheres do Encontro e as relações
entre homens e Mulheres:
Cualquier varón en ejercicio, bien podría haber fabulado en su arisca
imaginación humana lo que significan veinte mil mujeres extra en una
ciudad de provincia como Mendoza: un paraíso musulmán en el que se le
concedería sentarse a contemplar bellas damiselas, paseándose por las calles
y plazas de la ciudad con andar delicado y pundonoroso, ruborizándose ante
las ávidas miradas masculinas. Pero, una vez más, el edificio construido por
la imaginación cayó estrepitosamente en el primer contacto con la realidad.
Mendoza se asimiló mucho más a un establo poblado de cerriles equinas que
a cualquier mítico paraíso, del credo que fuera. Por las calles se paseaban a
toda hora manadas de olorosas reses, vociferando con ostensible desparpajo
y grosería.
Finaliza uma parte da crônica com uma acusação ao Estado: “De este modo culminó en
Mendoza un fin de semana para olvidar, rechazado por la mayoría e incomprensiblemente
apoyado y subvencionado por autoridades nacionales, provinciales y municipales”. E continua
definindo o que caracteriza os homens de Mendoza e contra quem, segundo eles, estavam se
enfrentando:
169
Ver transcrição das palavras da abertura.
170
Algumas pessoas que se identificaram como militantes católicos atribuíram a si estes fatos, em mensagem
enviada por correio eletrônica à organização do Encontro.
246
“Pero el aguerrido espíritu del varón mendocino, que hace dos siglos supo
acompañar al general San Martín en el ejército libertador de los Andes,
encontró aquí oportunidad de demostrar nuevamente su entereza, aunque
esta vez el enemigo no fuera el noble español de estandarte rojo y gualda,
sino el vómito femenino de la izquierda nacional con las banderas del
lesbianismo y el aborto.” (Grifo meu).
Desde o início da organização do Encontro, os conflitos entre organizadoras e opositores à
realização do mesmo já começaram a ser evidentes e também públicos. Uma das formas que
adquiriram publicidade foi através dos jornais locais, por meio de cartas enviadas para a seção
de “cartas do leitor”. Também, segundo o relato de uma das organizadoras, uma jovem
feminista universitária, “no sábado, quando fomos ver como estavam as escolas para receber
as companheiras, algumas diretoras deram para trás. Posteriormente, soubermos por algumas
zeladoras que na sexta-feira tinham entregue panfletos anônimos dizendo que nas escolas se
alojariam travestis, lésbicas e aborteiras infectadas de AIDS”. Outro caso também relatado
pelas organizadoras foi o do presidente de uma comissão de pais de uma escola
[cooperadora] que considerava uma aberração que as escolas se prestem como alojamento
dado que não estavam equipadas para isso e que “iam ficar todas infectadas”, por exemplo,
com a contaminação que provocariam as mulheres que estavam menstruando e não tomariam
banho esses dias. Neste caso, se apresentou uma carta à Direção Geral de Escolas.
O ato mais lembrado durante a passeata foi o enfrentamento entre as mulheres que
caminhavam pelas ruas de Mendoza e um grupo de uns 250 homens que se alinharam de pé,
diante de uma Igreja Jesuíta, de braços cruzados e firmes para “proteger o edifício”. Assim
descreve um militante católico este fato: “E assim [os homens] se postaram em guarda,
rodeando as igrejas católicas, que sempre foram as vítimas privilegiadas da fúria desta
manada autoconvocada”. O impacto visual da cena foi impressionante. Uma parte da passeata,
em que estava a maioria das feministas, deteve-se e as mulheres começaram a gritar palavras
de ordem contra a igreja, associadas, a maioria, à atuação da Igreja Católica durante os anos
do governo militar na Argentina e ao desaparecimento de pessoas durante essa época: “Iglesia
basura vos sos la dictadura” [Igreja lixo você é a ditadura] e “Ustedes se callaron cuando se
los llevaron” [Vocês se calaram quando os levaram]. A estas palavras de ordem se somaram
outras relacionadas às denúncias atuais contra representantes da Igreja por abuso sexual: “Si,
señoras, si señores, prohiben el aborto, los curas abusadores” [Sim, senhoras, sim, senhores,
proíbem o aborto, os padres abusadores]. A estes cantos a resposta destes homens era a
seguinte: um deles gritava “Viva Cristo Rei” e o resto respondia a uníssono “Viva!”. A
imagem era de milhares de mulheres frente a frente de uma centena de homens que rodeavam
247
um imponente edifício antigo. Ambos separados pelos típicos canais que existem na cidade,
elas gritando suas palavras de ordem, eles observando-as imóveis e respondendo a viva voz,
algo que nesse momento era difícil de decifrar no meio da multidão, mas que impressionava
por sua força. Um grito que a cada tanto surgia breve e contundente. Entre estes homens havia
algumas poucas mulheres com seus filhos. Suas expressões, como as de muitas pessoas que se
instalaram nas calçadas para ver a passeata eram de espanto, desconcerto e incompreensão.
Em alguns casos, de impotência e raiva contida. Segundo Tambiah (op.cit.), quando se refere
às situações de violência comunal no sul da Ásia, existem certas situações que se repete neste
tipo de evento. Uma delas é o caso de procissões onde são carregados símbolos de alta carga
emocional, neste caso, as enormes bandeiras que exigem o aborto legal, livre e gratuito e as
estratégias de “visibilidade” que as mulheres lésbicas utilizam são as que mais impactam
emocionalmente o público. Segundo o autor, exibicionismo de um lado e assistência reverente
do outro são parte de um mesmo espetáculo.
Conclusões
Neste capítulo analisei os ENM com o objetivo de situar as feministas atuando em um espaço
de mulheres e em oposição às mulheres católicas. No que caracterizei como um primeiro
momento, mostrei as disputas dentro do ENM em que cada grupo tenta impor sua própria
visão, tendo como público de referência seus próprios grupos. Estas disputas se sustentam
durante o desenvolvimento de todo o Encontro. Mas, a partir do que identifiquei como um
segundo momento, estas lutas são substituídas por um enfrentamento e uma disputa na qual
estes grupos se unem para enfrentar outro “inimigo”. Tentei mostrar a diversidade que
caracteriza este ritual anual e como, em um mesmo espaço, vão sendo utilizadas técnicas
específicas para construir consensos e oposições em torno da idéia de “mulher”, que variam
de acordo com o momento e o lugar em que o evento se desenvolve, assim como conforme os
“públicos” aos quais se dirigem. A mesma noção de “público” é problematizada ao mostrar
seus significados diversos e mutantes e os sentidos que as próprias mulheres vão outorgando a
suas ações. Por outro lado, diante da análise das técnicas de criação de consenso, como a
tentativa de criar uma comunidade de iguais sob a denominação “mulheres”, evidencia-se a
dificuldade que gera, neste trabalho, a irrupção das mulheres católicas que se reivindicam
“mulheres”, mas desafiam a identidade proposta majoritariamente pela organização do
Encontro. Já desde a própria convocatória se coloca uma situação de conflito devido a que o
que se denomina como “as mulheres” aparece, na prática, como uma categoria difícil de situar
248
e que cria tanto afinidades como oposições excludentes. As ferramentas utilizadas pelas
pessoas definidas como “adversários” na tentativa de impor sua visão de mundo neste cenário
que se recria anualmente, vão desde a intervenção nos debates para romper o “consenso” das
oficinas, até a intimidação com pequenos atentados, agressões físicas individuais, destruição
de material de divulgação de propostas ou denúncias de seqüestros para impor a intervenção
policial num âmbito que se pretende horizontal e sem hierarquias.
Estes fatos, ao mesmo tempo que criam grande tensão, também são uma mostra de como
determinados temas tratados nos ENM adquiriram importância para determinados setores da
população. A ruptura do consenso pelas mulheres católicas está dirigida a mostrar outra
versão dos “problemas femininos”. Aqui, junto com as estratégias de visibilização para
conseguir o reconhecimento dos problemas como tais pelo Estado, encena-se uma batalha
pela definição dos princípios morais que regem as relações entre os sexos. À reconhecida
“luta” iniciada pelo feminismo por afirmar valores de igualdade entre homens e mulheres,
opõe-se outra que propõe uma ordem hierárquica e diferenciada. Sem dúvida, um evento das
dimensões do Encontro Nacional de Mulheres pode ser analisado de muitas perspectivas,
além da construção dos problemas sociais. A complexidade que supõe, certamente, não pode
ser examinada em apenas um capítulo. Propus, neste caso, reconstruir empiricamente as
estratégias e ferramentas utilizadas pelos diversos atores que participaram do ENM, na sua
tentativa de impor uma classificação da realidade e, a partir desta descrição, mostrar a
diversidade e complexidade do evento como um ponto de partida para repensar e discutir
diversas formas de fazer política.
249
Reflexões Finais
No percurso realizado nos capítulos que precedem estas reflexões finais, propus mostrar, do
ponto de vista das feministas, a construção do que elas consideram uma forma de fazer
política e o processo de configuração do feminismo como um espaço social internamente
heterogêneo. Comecei analisando o que é “ser feminista”, através de relatos individuais de
conversão. Logo, tratei da construção de um “nosotras” (como feministas e como mulheres)
para, em seguida, colocar ênfase no feminismo como um espaço interno diferenciado, mostrar
suas oposições e suas articulações e identificações. Finalmente, apresentei as feministas
atuando no Encontro Nacional de Mulheres (ENM) em que, tanto a categoria mulheres como
feministas se resignificam. A descrição e a análise do espaço do feminismo, especialmente o
fato de colocar a atenção em como cada uma das categorias de identificação que engloba
adquirem sentido em relação às outras, foi útil para descortinar, analiticamente, um espaço
heterogêneo e fragmentado, e poder colocar, de forma mais precisa, algumas discussões sobre
“identidade”, formas de fazer política e modos de interação num espaço habitualmente
observado da perspectiva dos “movimentos sociais”.
Na introdução, mencionei que, para levar adiante esta pesquisa, foi necessário fazer um
minucioso trabalho de distanciamento e reflexão sobre como as feministas são habitualmente
pensadas: não são muitas, não são pobres, não são conhecidas, seus argumentos não são
racionais ou sensatos e estão todas brigadas entre si. Quais são os supostos subjacentes a estas
percepções? Por que o conflito, a não-pobreza, a suposta irracionalidade dos argumentos e/ou
invisibilidade das ações fariam das práticas feministas um objeto de pesquisa pouco atrativo?
Nesta tese, ocupei-me, exatamente, do conflito como uma forma de relação entre outras; do
pertencimento dessas mulheres a setores profissionais e intelectuais como a possibilidade de
realizar uma profunda reflexão sobre si mesmas e de que suas reivindicações sejam escutadas;
da política como uma forma de subverter categorias cognitivas, tal como a entendem e a
praticam as feministas; de uma forma de fazer política que não tem impacto por ações
coletivas de massa ou por seu grau de institucionalização, mas pela influência de mulheres
que ocupam posições em diversos espaços sociais de inserção.
250
No capítulo 1 ressaltei a conversão individual das mulheres em feministas, a importância da
noção de indivíduo e de autonomia, e o uso de determinadas palavras para organizar suas
experiências sob um novo significado. Através de relatos pessoais de conversão foi possível
mostrar que o ser feminista é algo que, para as próprias feministas, começa no interior de cada
mulher e é uma marca que se reconhece como uma atitude de rebeldia. Essas narrativas,
publicadas, comentadas, lidas e transmitidas oralmente são parte de um repertório de palavras
e fórmulas que a maioria delas manteve através do tempo para relatar suas experiências.
Dediquei o capítulo 2 a mostrar a construção de uma identificação coletiva. Nele descrevo o
trabalho de unificação que as feministas realizam para criar umnosotras”. Tanto a forma
como o conteúdo das atividades são parte da maneira de fazer política que elas defendem.
Assim, criam uma noção de “igualdade” como pertencimento a uma mesma categoria
(igualdade de equivalência) e outra como forma horizontal de organização (igualdade de
ordem). Essa distinção analítica foi vital para compreender o conflito como parte de uma
forma de organização que condena as hierarquias e encontra na horizontalidade um valor. O
conflito aparece, então, como uma forma de relação entre as que se consideram “iguais”.
No capítulo 3 aparece novamente a importância das palavras na configuração deste espaço
heterogêneo. Os feminismos é a forma que as feministas encontram para integrar as diferenças
que se manifestam através da confrontação. As acusações em torno de “quem é mais
feminista” mostram um universo altamente fragmentado, que se integra por meio de um jogo
de oposições e dinâmicas de acusações, que se ativam em determinados momentos e lugares.
Neste capítulo, refiro-me também às “outras oposições”, já que nem todas as diferenças entre
as mulheres podem ser integradas dentro do feminismo e nem todas as que se integram o
fazem através do conflito.
A dimensão internacional sempre permeou o espaço do feminismo, através de vocabulários,
bibliografias, encontros, trajetórias pessoais. No capítulo 4 analiso as diversas formas do
internacional na configuração do feminismo e como essas formas não podem ser
compreendidas sem considerar as posições que as mulheres, as quais a tornam possível,
ocupam no espaço nacional. Estas duas dimensões (internacional e nacional) estão presentes
na configuração do feminismo, não como escalas ou lugares separados, mas como elementos
que modificam a posição de status e de poder, de algumas dessas mulheres, e afetam, desta
maneira, os valores que o articulam.
No capítulo 5, através de uma descrição, não exaustiva, das ações pela causa do direito ao
aborto legal, seguro e gratuito, tentei expor as articulações entre as feministas, que ocupam os
251
múltiplos espaços do feminismo, e as identificações possíveis em torno de uma causa, numa
forma social caracterizada pela fragmentação e pela oposição.
No capítulo 6 mostro como os elementos característicos do feminismo são encenados no
Encontro Nacional de Mulheres, um espaço que não é só de feministas. Nesse ritual, em que
participam “outras mulheres” e “as católicas”, a noção de “mulher” é intensamente discutida e
contestada. Isso ocorre a tal ponto que, nos enfrentamentos e acusações mútuas, feministas e
católicas/os negam umas às outras a legitimidade de pertencimento a essa categoria.
Permitiu-me, a pesquisa, cujo resultado aparece nas páginas desta tese, delinear posições
analíticas que pretendem constituir-se como uma contribuição, para novos olhares, sobre as
diversas formas de fazer política nos regimes “democráticos” das sociedades contemporâneas;
as maneiras de abordar as denominadas políticas de identidade; a pertinência da distinção
entre ação individual e ação coletiva e a confrontação como um modo possível de integração
em espaços sociais tal qual o feminismo, que reconhecem os valores de igualdade e
autonomia enquanto constitutivos do “ser feminista”.
O feminismo como espaço social
A versão interiorizada do “ser feminista” e o feminismo como uma maneira de pensar o
mundo e se pensar a si mesmas possibilitam, a estas mulheres, o exercício de sua prática
militante, a partir da posição social de cada uma delas. Nesse ponto, a oposição entre ação
individual e ação coletiva perderia relevância dentro do feminismo, já que uma mulher pode
agir sozinha e fazê-lo como feminista – sempre que não o faça em nome de outras feministas
– e, no entanto, esse ato não se explica simplesmente por uma abordagem individual. A
distinção entre ação individual e coletiva se desvanece devido a que, por mais que uma
mulher aja individualmente, suas práticas se tornam efetivas na utilização de argumentos
coletivos, construídos por meio de ações conjuntas. Uma ação pode ser individual e referir-se,
ao mesmo tempo, a uma pessoa coletiva, neste caso, o feminismo, sem que isto signifique que
se aja em representação da mesma. Desse modo, é possível que se desdobrem práticas
feministas em todos os âmbitos onde haja mulheres feministas. Pensar o feminismo como um
espaço social, à diferença de, por exemplo, um “movimento social”, permite compreender a
importância dessas práticas individuais que, de outras perspectivas, se perderiam de vista
171
.
171
Na década de 80 são inúmeras as publicações em ciências sociais que se referem aos diversos tipos de
militância como “novos movimentos sociais”. A denominação “movimento”, quando se usa para se referir a
“movimento social” tal como foi utilizada na literatura sociológica nos anos 80 pressupõe uma forma social
252
Neste sentido, é importante destacar que são as propriedades sociais das feministas e a
concepção de política que elas têm que nos ajudam a entendem como as ações são pensadas e
produzidas. A concepção que cada mulher tem de si mesma e a maneira com entende
pessoalmente o “ser feminista”, de acordo com sua posição social, influenciarão a forma de
suas práticas, visto que as feministas consideram que “tem tantos feminismos como
feministas”, isso as habilita, em princípio, a utilizar em cada caso estratégias adaptadas a
situações diversas. Trata-se de pensar suas ações, considerando quem as realizam e qual é sua
localização social. Como o ser feminista não é a única identificação que conta na vida dessas
mulheres, o poder que elas têm nos contextos específicos em que podem atuar depende,
geralmente, da interseção de várias redes de relações em que se colocam em jogo laços de
proximidade profissional ou de amizade que fazem com que suas ações sejam possíveis e
adquiram eficácia. Isso aparece ilustrado claramente no capítulo 4, em que analiso as escalas
nacionais e internacionais. Assim, quando digo que as propriedades sociais de algumas
mulheres lhes garantem o acesso a lugares privilegiados, não estou interessada simplesmente
em denunciar uma elitização, mas em mostrar que suas palavras de ordem podem ser
visibilizadas e escutadas através das feministas que ali estão. Estas, em muitos casos, não
ocupam esses lugares por serem feministas, mas por integrarem outras redes e colocarem em
jogo outras lógicas e estratégias de ação.
É importante deixar claro que a identificação das feministas com o feminismo é utilizada para
dar conta de suas atividades, de seu compromisso político, de suas trajetórias, mas não é
necessariamente acionada todo o tempo, nem em todas as situações. Em alguns contextos, as
feministas se valem de outras identidades, não apenas para o desempenho de sua vida
cotidiana, mas também como estratégia que lhes possibilite inserir seus argumentos em
contextos avaliados como hostis às propostas do feminismo. Considero que falar do
feminismo como movimento social dificulta a tarefa analítica de identificar, com precisão, as
distinções mencionadas. Estas, vitais para compreender as particularidades do espaço do
feminismo e das ações das feministas, partindo de uma realidade empírica, que se mostra
muito mais complexa e com maior imaginação política que a que permitiria perceber um
ponto de vista normativo o qual buscasse compreendê-las, por meio do que se espera de um
“movimento social”.
homogênea que não resulta útil para analisar a forma com que as feministas entendem o exercício da política,
exatamente porque o feminismo leva implícito na sua definição, por um lado, a diferença e, por outro, a
confrontação e a fragmentação como forma de interação social.
253
O conflito e o confronto como formas de relação
No trabalho não privilegiei somente a noção de semelhança para compreender a existência do
feminismo. À diferença de outras perspectivas, preocupadas em buscar quais são os pontos
que permitiriam às pessoas se reconhecerem como pertencentes a uma mesma categoria
identificatória, ressaltei tanto o duro trabalho de identificação que as feministas levam
adiante, como as diferenças, os conflitos e a fragmentação, para compreender a “unidade” do
feminismo como espaço social. Isto me permitiu não cair na armadilha de noções reificantes
como “identidade” e mostrar os processos através dos quais as categorias se cristalizam, em
determinados contextos e em determinados momentos.
Dentro do feminismo este processo ocorre por meio de dois modos de identificação, um
categorial, definido em função do sexo (mulheres), e outro relacional, definido pelo
pertencimento a uma configuração social (feministas). Este ponto está desenvolvido no
capítulo 2 a partir da distinção entre igualdade de equivalência e igualdade de ordem. Na
igualdade de equivalência, privilegia-se o trabalho de identificação, enquanto que a
construção de uma igualdade de ordem só pode ser compreendida se deixamos de conceber o
conflito como um elemento de disrupção e o situamos como maneira privilegiada de relação,
nesse espaço social e em determinados contextos. Sugiro que olhar o conflito do ponto de
vista positivo, junto com uma cuidadosa separação entre conceitos nativos e conceitos
analíticos, permitiu-me uma melhor compreensão do significado de determinadas categorias
próprias da prática feminista. Por outro lado, creio que situar as categorias da prática social
em seus contextos específicos de ação diminuiu o risco de estabelecer uma discussão entre
argumentos acadêmicos e argumentos essencialistas sobre a identidade. Embora estes últimos
sejam absolutamente necessários em determinados contextos da prática política para obter os
efeitos desejados, no plano analítico não deveriam ser utilizados como ferramentas
explicativas. A tarefa do pesquisador/a deveria consistir em compreender como eles são
construídos
172
. É por essa razão que não utilizei a palavra mulher/mulheres como categorias
explicativas, mas como noções cujos conteúdos devem ser compreendidos. Tanto no capítulo
2, em que trabalho com as feministas especificamente, como no capítulo 5, em que mostro as
172
A não distinção entre diversas formas de identificação dentro do espaço do feminismo e a contextualização
das mesmas podem levar a avaliar determinadas ações como contraditórias. Segundo Teixeira (1992:72), “o
feminismo, que surgiu com o questionamento feito por algumas mulheres da naturalidade dos papeis de gênero,
como agrupamento político organizou-se exatamente reificando o recorte biológico: composto por mulheres,
dirigido às mulheres”. (…). A autora continua dizendo que “Mesmo quando o feminismo reconhece a
importância da mediação da cultura na formação do ‘ser mulher’, reafirma a existência de um ‘patamar
biológico’ instituinte do que há de universal e permanente nesta identidade”
254
feministas interagindo com “outras mulheres” e com as católicas – que não estão englobadas
na categoria de “outras mulheres” –, é possível perceber claramente que enquanto em um
contexto a noção de mulher (como categoria de pertencimento) é reificada, em outros é
absolutamente relativizada ao ponto de que as católicas nem sempre são consideradas
mulheres
173
.
Os resultados incertos de uma política feminista
O trabalho realizado pelas feministas para construir as mulheres como categoria identitária, de
procurar colocar no espaço público e na agenda pública temas do âmbito da esfera íntima e
familiar, e de levar adiante uma forma de fazer política que implica uma mudança de visão de
mundo tiveram como conseqüência resultados tão variados como incertos. Assim, causas
como “o direito ao aborto legal”, pelas quais as feministas realizam ações, há mais de 20 anos,
num determinado momento, são sustentadas também pelas mulheres que não as reconheciam
como próprias ou como um direito a ser conquistado. Isso pode ser explicado, em parte, pelo
pertencimento de algumas feministas a múltiplos espaços (academia, Estado, ONGs) que
favoreceriam a circulação das narrativas e as argumentações feministas. Mas também é
importante destacar que as ações realizadas por diferentes feministas de diversos espaços –
academia, ONGs, militantes políticas, profissionais – geraram um discurso público com um
vocabulário específico com o qual começaram a se identificar mulheres que não
necessariamente se consideram feministas. Expressões tais como “desigualdades de gênero”,
“direitos das mulheres” ou “sistema patriarcal” são usadas por mulheres com baixa
escolaridade para situar, de uma nova perspectiva, suas existências e explicar, de um ponto de
vista social, problemas, até esse momento, lidos como pessoais ou produto do destino. Assim,
a identificação com determinada visão de mundo também pode exercer influência sem ser
realizada por pessoas ou instituições determinadas, ou através de contatos pessoais
proporcionados por redes de relações. Exemplos disso aparecem no capítulo 1 com o caso de
María Elena Oddone, que narra sua conversão ao feminismo por influência da leitura do livro
de Simone de Beauvoir; no capítulo 4, quando analiso como se instaura o tema mulher e nos
173
Aqui, vale a pena abrir uma linha de reflexão e discussão com as teorias construtivistas da identidade que
denunciam um essencialismo intrínseco à categoria “mulheres” por supor a existência de uma semelhança
fundamental ou um sujeito estável e permanente (por exemplo, Butler, 2003). Sugiro que neste ponto se
entremesclam argumentações acadêmicas construtivistas para responder a argumentos da prática social.
Considero que esse tipo de argumento não leva em conta que, na prática social, alguns sentidos e/ou categorias
se cristalizam somente em situações específicas. Isso significa que nos outros contextos podem ser relativizados,
sem considerar que isso se converta em uma contradição lógica.
255
casos em que mostrei a importância do uso de determinadas palavras para uma forma de fazer
política, que propõe uma transformação das categorias cognitivas. Dessa forma, mulheres das
denominadas classes populares se apropriaram de determinados discursos feministas e
tomaram algumas das bandeiras das feministas, mas não por esse motivo, necessariamente,
identificam-se com as feministas. Ao contrário, é possível que se construam, em vários
pontos, em oposição a elas. Assim, muitas vezes a força da identificação está baseada na
forma anônima e desapercebida em que esta penetra em nossa maneira de pensar, de falar e de
compreender o mundo social.
Outro resultado das ações feministas é ter conseguido politizar temas que envolvam a moral
sexual, a relação entre os sexos e, mais amplamente, a ética da reprodução humana. Isso atraiu
para os espaços de debate e confrontação, como os ENM, as mulheres “inesperadas”, as
católicas, que passaram a ser definidas pelas feministas como “inimigas”. O trabalho de
identificação, que apela às mulheres como noção de semelhança (identificação categorial),
levou a que, nos setores religiosos, as mulheres se organizassem para participar dos ENM,
onde não podem participar homens. Assim, as feministas sem que o propusessem,
conseguiram, com suas ações e seus discursos, modificar a configuração, dentro dos próprios
espaços religiosos
174
. Por outro lado, a participação das católicas obrigou as feministas a rever
não só as definições de mulheres, mas também suas formas organizativas nos ENM.
Nos ENM, a igualdade como equivalência diante das católicas desaparece e estas passam a
ser identificadas pelas feministas como “adversárias”, uma vez que estão ali para desafiar as
visões de mundo e as definições de ser mulher por meio das quais as próprias feministas
conceberam os Encontros Nacionais de Mulheres, em seu início. Ao mesmo tempo, ao se
174
Ver, sobre este ponto, o artigo de Mónica Tarducci (2005:399) em que transcreve uma carta enviada pela
arquidiocese de Rosario às paróquias de seu distrito. Parte da carta diz: “Estimado Padre: Los días 16, 17 y 18 de
Agosto tendrá lugar en Rosario, el XVIII Encuentro Nacional de Mujeres Autoconvocadas. En el mismo se
busca reunir a numerosas mujeres del país (en algunos asistieron más de 12.000), para que defiendan la
problemática de la mujer en la sociedad con una mirada parcializada sobre la dignidad de la mujer y sus
derechos. El encuentro está organizado en talleres (por Ej.: mujer y cárcel, mujer y adolescencia, mujer y deuda
externa, mujer y tercera edad, mujer y educación, mujer y partidos políticos, mujer y sindicato, etc.) pero, en
realidad, todos tienen temas transversales de fondo, tales como el feminismo de género, el aborto, el lesbianismo,
la anticoncepción, la desvalorización de la familia tradicional y de la maternidad. Al concluir el trabajo, las
conclusiones son enviadas a políticos y legisladores para urgir la elaboración e implementación de leyes.
Considerando esto y viendo la necesidad que las mujeres católicas participemos en dicho encuentro, Mons.
Eduardo V. Mirás, decidió formar en diciembre del año pasado, una Comisión de Mujeres que tiene a su cargo la
motivación y preparación de las participantes. Es por eso que le pedimos tenga a bien invitar al menos 10
mujeres de su comunidad, que fieles a su bautismo y con profundo amor a la Iglesia , se sientan movidas a
intervenir en dicho encuentro para testimoniar la defensa de los derechos de la mujer y de la vida desde una
perspectiva cristiana . Dado que este evento no es una instancia de formación sino de confrontación donde deben
quedar claros y bien fundamentados los principios de orden natural que dignifican a la mujer, será necesario
enviar mujeres con cierta formación en el tema del taller que elijan para participar”.
256
tratar de mulheres que reivindicam uma definição de mulher que nega a “autonomia”, as
católicas deixam de ser vistas como mulheres que participam desde sua individualidade, para
serem identificadas como representantes de uma instituição e de interesses que as feministas
definem como masculinos. Quando lhes é negada a participação como “mulheres interessadas
na defesa dos direitos das mulheres”, isto possibilita outras identificações elaboradas à luz de
uma interpretação da história da Argentina. As católicas são “a direita” e a Igreja, “a
ditadura”. O outro lado também identifica as feministas através de uma versão particular da
história e da configuração da sociedade nacional. Aos olhos dos/as católicos/as, as feministas,
que, nesse contexto, se confundem com as mulheres das classes populares, são a versão
feminina da “esquerda repugnante”
175
. Ao se articular com outros argumentos, na prática, os
argumentos feministas se modificam e dão lugar a um jogo em que se combinam outros tipos
de histórias, valores e identificações.
Feministas en todas partes
Finalmente, gostaria de dedicar algumas palavras ao título desta tese. Por que Feministas em
toda parte? Em primeiro lugar, trata-se da inscrição de uma bandeira que elas mesmas
confeccionaram e levam, com freqüência, aos lugares onde vão
176
. Considerando que o “ser
feminista” inclui uma versão interiorizada da identidade, não existe um lugar privilegiado no
qual de desenvolva a prática feminista. Visto que o ser feminista se define, do ponto de vista
das feministas, como uma visão de mundo ou uma atitude diante da vida, trata-se de modificar
as normais sociais nos espaços em que cada uma das que se reconhecem como tal atua
177
.
Assim, segundo elas, pode-se ser feminista na escola, na casa, com os filhos, com a mãe, na
profissão, na militância em partidos políticos, ocupando espaços na esfera estatal. Ao longo
175
Nos enfrentamentos cara a cara entre os/as portadores/as dessas duas versões, como no caso descrito em
frente à igreja de Mendoza, no capítulo 6, colocam-se em jogo argumentos sobre a “vida” e a “morte” e
acusações de “assassinos/as”. As feministas fazem alusão à cumplicidade desta instituição nos casos de
“desaparecimento” de pessoas durante o último governo militar, quando muitas delas perderam parentes: “Vocês
se calaram quando os levaram”. Do outro lado, os/as católicos/as acusam as feministas de serem assassinas das
“crianças por nascer” e se manifestam a “favor da vida”.
176
Inclusive, segundo contam, levaram-na à cerimônia religiosa do enterro de uma de suas companheiras de
militância. A presença das feministas no cemitério provocou conflitos com os parentes, que se queixaram
dizendo que “o único que está em toda parte é Deus”.
177
No número 11 da revista Travesías (2002) foi publicada a “Encuesta Feminista 2001”. A primeira pergunta é:
“O que é ser feministas hoje na Argentina?” e as respostas mostram que se sustentam os mesmos valores
ressaltados no capítulo 1, em que analiso a pesquisa de 1984. “Ser feminista hoje” é definido como “uma posição
diante da vida”; “uma maneira de pensar o mundo”; “rebelar-se contra o sistema patriarcal”; “uma posição que
leva à ação”. Por outro lado, continua-se a sustentar que “como há 30 anos, o pessoal continua sendo político”.
257
dos anos e a partir das ações das feministas, esses espaços se diversificaram e se incluíram
neles muito mais mulheres. Desta maneira, o slogan Feministas en todas partes se apresenta
como um ponto de partida iniludível para compreender o feminismo como um espaço social
fragmentado, heterogêneo e complexo.
258
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Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio Internacional y culto República Argentina.
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IV Conferencia Mundial sobre la Mujer Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo.
268
ANEXO
269
ANEXO A
Lista de Disciplinas, Programas e Institutos de Gênero e de Estudos da Mulher nas
universidades argentinas, segundo seu ano de criação
178
Década de 1990
1. AIEM - ÁREA INTERDISCIPLINARIA DE ESTUDIOS DE LA MUJER
1990 - Departamento de Ciencias Sociales. Universidad Nacional de Luján
179
En 1990 se crea el área que es definida por tener un “perfil orientado a la investigación
científica en los Estudios de la Mujer y del Género”. Desarrollan actividades de investigación
y extensión. Actualmente cuentan con una “Especialización en Estudios de la Mujer y
Género” en convenio con la Universidad Nacional del Comahue (Argentina) y la Universidad
de Granada (España). Esta especialización está dirigida a egresados-as de carreras de grado
universitarias o terciarias con formación en Humanidades, Ciencias Sociales, Ciencias
Básicas y Naturales, Económico Jurídicas, Tecnológicas y Ciencias de la Salud.
Poseen una publicación anual denominada Revista La Aljaba, segunda época. Revista de
Estudios de la Mujer en conjunto con la Universidad Nacional de La Pampa y la Universidad
del Comahue. Desde 1994 el área tiene una biblioteca especializada en “temas de género”. En
la página web se aclara que todas las actividades que se realizan dentro del área han estado
acreditadas por convenios y patrocinios de instituciones estatales, reconocidas por organismos
internacionales y universidades extranjeras.
2. PPEM – PROGRAMA PERMANENTE DE ESTUDIOS DE LA MUJER
1991 - Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires (Facultad de
Ciencias Humanas y Facultad de Ciencias Sociales)
178
Esta lista foi elaborada a partir de uma pesquisa nos sítios de internet de diferentes universidades, de
entrevistas a feministas e de publicações. Não é o objetivo de este ponto fazer uma memória exaustiva da
institucionalização dos “estudos de gênero” nas universidades da Argentina. Essa é uma tarefa que excede os
objetivos deste trabalho.
179
http://www.unlu.edu.ar/inicio.htm
270
En el año 1991 las profesoras Susana Bianchi (historiadora), Silvia Catala (Socióloga) y
Mónica Tarducci (antropóloga) propusieron a las autoridades de la Universidad Nacional del
Centro de la Provincia de Buenos Aires la formación de un área interdisciplinaria para la
promoción de la docencia y la investigación de estudios sobre la mujer. La propuesta abarcaba
a los departamentos de Historia, de Ciencias de la Educación y de Trabajo Social de la
Facultad de Ciencias Humanas (Tandil) y al Departamento de Antropología de la Facultad de
Ciencias Sociales (Olavarría), con posibilidad de extenderse a otros departamentos. Es un
Programa interdisciplinario que tiene como objetivo incentivar los estudios sobre mujer y
género dentro del ámbito académico y participar en trabajos sobre el tema en la comunidad.
El objetivo general de este Programa fue expresado en términos de “abrir una línea de
conocimiento e investigación en el nivel académico de grado, en torno a la realidad histórica,
social y antropológica de las mujeres, hasta hace pocos años oculta o desconocida”. Durante
los primeros años de su creación se dictaron seminarios de especialización de grado sobre
estudios de la mujer, dictados en 1991 por la Prof. Susana Bianchi (módulo historia), la Lic.
Mónica Tarducci (módulo antropología) y la Lic. Silvia Catalá (módulo sociología);
Conferencias sobre Movimiento Social de Mujeres (Dra. Margarita Bellotti, 1993), dirección
de Tesis de Grado sobre las problemáticas de genero, relaciones familiares y sexualidad y
organización de ciclos de mesas redondas. Actualmente el PPEM solamente funciona en la
Facultad de Ciencias Sociales.
3. CEHIM - CENTRO DE ESTUDIOS HISTÓRICOS E INTERDISCIPLINARIOS
SOBRE LAS MUJERES
1991 - Facultad de Filosofía y Letras. Universidad Nacional de Tucumán
El CEHIM surge de una propuesta de profesoras del Departamento de Historia y se crea por
Resolución del Consejo Directivo de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad
Nacional de Tucumán, en noviembre de 1991. Se presenta como “la primera institución de
nivel académico en el Noroeste Argentino que abordó la problemática de las mujeres y de las
relaciones de género desde una perspectiva científica, promoviendo líneas de investigación y
tareas de posgrado, extensión y grado como experiencia novedosa en el espacio
universitario”. El Centro está compuesto por una directora (Hilda Beatriz Garrido), una
comisión coordinadora y miembros profesores-as. Entre sus objetivos se cuentan: impulsar,
271
promover y coordinar, en el plano local, regional y/ o nacional, los estudios e investigaciones
sobre la historia de las mujeres y los estudios de género; formar recursos humanos en el
campo de la investigación; patrocinar o impulsar congresos o reuniones de carácter
específico; publicar los resultados de las investigaciones de sus miembros-as; promover
formas de extensión y convenios con otros organismos; conformar un Centro de
documentación. Publican desde 2004 una revista denominada “Temas de Mujeres”.
Actualmente se llevan a cabo proyectos de investigación financiados. Las integrantes del
Centro llevan a cabo tareas de formación (como cursos optativos para carreras de grado y
cursos de posgrado al interior de la universidad); capacitación (básicamente cursos orientados
hacia la capacitación docente en relación a las temáticas de género) y transferencia
(proyección de videos, participación en programas de TV y paneles de discusión, entrevistas
para diarios y revistas). El CEHIM organizó las Jornadas de Historia de las Mujeres que se
realizó en Tucumán en 1994.
4. IIEG - INSTITUTO INTERDISCIPLINARIO DE ESTUDIOS DE GÉNERO
1992 - Facultad de Filosofía y Letras. Universidad Nacional de Buenos Aires.
En julio de 1992 se creó el Área Interdisciplinaria de Estudios de la Mujer (AIEM), con el
objetivo de convocar actores-as que estuvieran trabajando con “estudios referidos a la mujer”.
En 1997, por resolución del Consejo Directivo, se crea el Instituto Interdisciplinario de
Estudios de Género. Dora Barrancos (historiadora) es su actual directora y ejerce dicha
función desde el año 2000. Desde este espacio de investigación se plantea promover y
desarrollar producciones científicas en cada disciplina; tareas docentes; formación de recursos
humanos; relaciones institucionales con centros del país y del exterior; realización de jornadas
y congresos.
5. INSTITUTO INTERDISCIPLINARIO DE ESTUDIOS DE LA MUJER
1993 - Facultad de Ciencias Humanas. Universidad Nacional de La Pampa
180
180
Datos extraídos de la página web:
http://www.fchst.unlpam.edu.ar/investigacion/institutos/instituto_interdisciplinario_de_estudios_de_la_mujer/in
dex.php
272
Fue creado en octubre de 1993 a partir de la iniciativa de investigadoras en diferentes
disciplinas de las Ciencias Sociales. “El Instituto Interdisciplinario de Estudios de la Mujer
realiza, difunde y promueve estudios e investigaciones sobre las mujeres y desarrolla acciones
dirigidas a mejorar su condición”. Sus objetivos son: desarrollar investigaciones, desde una
perspectiva de género; formar recursos humanos en esta área de conocimiento; asesorar a
organismos gubernamentales y no gubernamentales; editar publicaciones y libros; llevar a
cabo actividades de capacitación y extensión; mantener una mirada atenta respecto de
acontecimientos que afecten la situación de la mujer pampeana a fin de instalar la
problemática en la agenda pública y plantear un análisis de género sobre la misma. Cuenta
con una biblioteca especializada en la “problemática de género y estudios de la mujer”. Posee
más de 1000 volúmenes, obtenidos, la mayoría de ellos, a través del sistema de canje con las
publicaciones propias del Instituto. En el año 2003 la biblioteca obtuvo un subsidio por parte
de la Universidad dentro del marco de Proyectos de Extensión Universitaria (PEU). Han
realizado cursos de formación dictados por integrantes del instituto, para docentes al interior
de la facultad; para quienes se lo solicitan (como por ejemplo personal de medios de
comunicación o personal bancario). Los temas varían, por ejemplo: trabajo y relaciones de
genero, historia y mujer; mujeres y movimientos sociales, educación e igualdad de
oportunidades. También se han realizado “cursos de actualización” al interior de la facultad
dictados por especialistas invitadas. Entre las actividades que mencionan como de extensión
se cuentan: acciones tendientes a la aprobación de la Ley de Cupos; conferencias en diferentes
localidades de la provincia; co-organización de campañas y actividades sobre la no violencia a
la mujer, asesoramiento en colegios secundarios sobre género, educación no sexista,
violencia, sexualidad, historia de las mujeres, etc. Realizan actividades en el marco del día de
la mujer, eventos científicos (como por ejemplo jornadas). Establecen relaciones
institucionales y co-organizan actividades, por ejemplo con el IIEG (archivo de fotos y
testimonios orales para preservar la memoria colectiva del movimiento de mujeres); sub-
secretaria de cultura del gobierno de la provincia de la pampa (junto con el Archivo Histórico
Provincial para conformar un archivo de imágenes y palabras de mujeres). Integran la
Comisión Técnica-científica interdisciplinaria para la Elaboración anual del Informe cuanti-
cualitativo sobre la evolución de la Ley 1918 sobre “Violencia Doméstica y Escolar” Decreto
1958/2003 del Poder Ejecutivo de la provincia de La Pampa. Publican la revista “La Aljaba”
desde 1996 co-editada con Institutos de la mujer de las Universidades de Luján y Comahue.
También cuentan con becas de iniciación en la investigación para graduados y alumnos, así
273
como tesistas dirigidos por integrantes del instituto, cuyas investigaciones se enmarcan en
“temas de género”.
6. MAESTRÍA “EL PODER Y LA SOCIEDAD DESDE LA PROBLEMÁTICA DEL
GÉNERO”
1997 - Facultad de Humanidades y Artes. Universidad Nacional de Rosario
181
.
Se crea en 1997 por Resolución del Consejo Directivo de la Universidad Nacional de Rosario.
Actualmente está coordinado por la Magíster Hilda Habichayn. La maestría cuenta con un
ciclo común (en el cual la problemática de género se ubica histórica, epistemológica y
metodológicamente) y un ciclo de formación específica (compuesto por seminarios en los
cuales la temática de género se relaciona con sexualidad; sociedad; poder; familia; educación;
legislación; mundo simbólico; trabajo y movimientos sociales).
7. ÁREA DE ESTUDIOS INTERDISCIPLINARIOS DE GÉNERO Y EDUCACIÓN
1999 - Departamento de Educación. Universidad Nacional de Luján
182
.
Fue creada en marzo de 1999 por Resolución del Consejo Directivo Departamental. Su
coordinadora es la Lic. Alicia Itatí Palermo. El área cuenta, a su vez, con cinco integrantes y
dos pasantes. Entre sus objetivos se propone, generar un espacio de reflexión, investigación y
capacitación en referencia a la temática de Educación y Género dentro del Departamento de
Educación; generar intercambios con otros departamentos y otras universidades y tender a
eliminar los estereotipos de género en el ámbito de la Universidad Nacional de Luján y entre
sus graduados. Entre sus actividades se mencionan publicaciones científicas, dictado de la
cátedra optativa “Introducción a los Estudios Interdisciplinarios de Educación y Género”,
investigaciones dentro del área y en conjunto con otros departamentos de la Universidad de
Luján y con otras universidades.
181
http://www.fhumyar.unr.edu.ar/index2.html (10/06/06)
182
http://www.unlu.edu.ar/inicio.htm
274
8. ESTUDIOS DE GÉNERO
Facultad de Ciencia de la Educación. Universidad Nacional de Entre Ríos
183
.
En el Área de Investigación de la Facultad de Ciencias de la Educación, existe una sección
denominada “Estudio de Género” donde no se especifica las fechas en que se desarrollaron
los proyectos de investigación, sino sólo que estos ya finalizaron
184
. Uno de los proyectos se
denominó “Mujer y Universidad: Las relaciones de género en la Universidad Nacional de
Entre Ríos”. Su objetivos eran “relevar y analizar datos cuantitativos sobre la presencia de las
mujeres en la Universidad Nacional de Entre Ríos (UNER) (estudio cuantitativo sincrónico),
y confrontarlos con los datos disponibles referidos a otras universidades nacionales y
extranjeras así como con el marco teórico/histórico de referencia, y apoyar la conformación
de un área de género y educación, a través de la formación de recursos humanos
especializados (…)”. El segundo proyecto se denominó “Mujer y Violencia: Violencia contra
la mujer y discriminación sexista. Un estudio socio semiótico”. En términos generales el
proyecto es presentado
como un trabajo que “aborda a través de la lectura de un corpus
jurídico sobre un caso criminal, el ‘caso D”, la violencia ejercida sobre las mujeres y la
discriminación sexista no sólo en los cuerpos sino sobre todo en la letra, en los discursos
construidos en el marco de la justicia, en ese relato donde cada uno de los
participantes/protagonistas -testigos, familiares, amigos, vecinos, expertos- aporta su visión
sobre la víctima”.
Del 2000 hasta 2006
9. PROYECTOS UBACyT
2001 – 2003 Facultad de Psicología. Universidad Nacional de Buenos Aires
185
Entre las publicaciones de proyectos de UBACyT 2001-2003, figura un proyecto dirigido por
Débora Tajer: “Equidad de Género en la calidad de atención de pacientes cardiovasculares".
183
http://www.fcedu.uner.edu.ar/
184
La fecha de referencia que figura para el Área de Investigación es de 1990 a 2004.
185
http://www.psi.uba.ar/investigaciones/produccion_cientifica/2001_2003/index.php (13/6/06)
275
Entre las publicaciones de los integrantes del proyecto se presentan capítulos de libros,
artículos en revistas científicas y medios audiovisuales
10. CÁTEDRA ABIERTA DE LA MUJER
2003–2005 - Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires (UNICEN) y
Municipio de Tandil
186
.
La “Cátedra Abierta de la Mujer”, es presentada como un espacio concebido para propiciar
“la reflexión y debate sobre cuestiones de género femenino”, El primer ciclo de esta cátedra
se desarrollo durante el 2003 y el segundo en el 2005. Los encuentros del segundo ciclo se
realizaron en el centro de la ciudad y en los diferentes Centros Comunitarios municipales, con
el objetivo de que la Cátedra sea extensiva a toda la comunidad. Las cátedras se basan en
charlas debate y conferencias a cargo de mujeres especialistas en cuestiones que van desde los
derechos que las asisten hasta problemas como la violencia. En 2005, a diferencia de la
primera edición de la cátedra, solo algunos de los encuentros se realizarán en el centro de la
ciudad ya que la intención era lograr una “mayor participación comunitaria” y se considera
que los Centros Comunitarios municipales pueden ser espacios propicios para ello.
La primera charla tuvo lugar en el Centro Cultural Universitario y estuvo a cargo de Diana
Maffía, quien disertó sobre la participación de la mujer en los gobiernos democráticos de
nuestro país, dejando formalmente inaugurado este ciclo 2005.
11. GRUPO INTERDISCIPLINARIO DE ESTUDIOS DE GÉNERO
2003 - Facultad de Humanidades y Ciencias Sociales. Universidad Nacional de la Patagonia
San Juan Bosco
187
El Grupo fue creado en el año 2003 por resolución del Consejo Superior de la Universidad.
Sus objetivos se centran en “conformar un grupo que congregue a docentes e investigadores
de las distintas carreras de la Facultad interesados en la problemática de género” e “ Iniciar y
continuar con investigaciones sobre la temática de género en y desde la Patagonia”.
186
http://www.unicen.edu.ar/b/boletin/2005/31/breves.htm
187
http://www.fhcs.unp.edu.ar/ (10/06/06)
276
Actualmente el Grupo lleva a cabo encuentros para discutir bibliografía especializada;
organización de seminarios, talleres y jornadas; conformación de una biblioteca especializada
y publicación de los resultados de las investigaciones
12. PSICOANÁLISIS Y GÉNERO
2006 - Facultad de Ciencias Sociales y Humanas. Universidad Nacional de San Luis
188
Forma parte de los cursos de posgrados dictados por la Universidad durante el año 2006. La
responsable del mismo es la Licenciada Irene Beatriz Meler. El curso es destinado a
psicólogos, médicos (con formación psicoanalítica), egresados de carreras mayores de
Filosofía, Lingüística, Educación, Ciencias Sociales o Jurídicas. Entre
los contenidos mínimos
figuran: e
l concepto de género y su pertinencia para el psicoanálisis; teoría freudiana sobre la
sexualidad femenina; el debate en el campo psicoanalítico; aportes contemporáneos influidos
por las teorías feministas; escuela anglosajona y escuela europea; aportes argentinos y una
revisión de la psicopatología desde una perspectiva de género.
13. CENTRO DE INVESTIGACIONES (Proyectos 2005-2007)
2005–2007 - Facultad de Políticas y Sociales. Universidad Nacional de Cuyo
189
.
El Centro de Investigaciones de la UNCuyo actualmente cuenta con dos proyectos 2005-2007
desde la Secretaría de Ciencia, Técnica y Posgrado, que abarcan temas de género. Uno de
ellos se titula: “Competencias laborales y condicionantes de género en industrias de base
agrícola en Mendoza”. Su directora es Ana Graciela Burgardt. Sus objetivos son: “Describir y
caracterizar desde indicadores cuantitativos (condición laboral, nivel de instrucción, edad,
estado civil y sector de la economía) la situación de las mujeres en el mercado laboral.
Rastrear y sistematizar como operan las nuevas exigencias del mercado laboral en tanto
requerimientos de formación hacia las trabajadoras del sector industrial de base agrícola.
Comprender los esquemas de percepción que poseen las mujeres acerca de las competencias
requeridas para la incorporación al mercado laboral y su relación con las estrategias de
188
http://posgrado.unsl.edu.ar/fcsh/cursos/c_psico_genero.htm
189
http://www.fcp.uncu.edu.ar/contenido/index.php?tid=63&%2Fcontenido=5u4soahcdb1h62ck2ka75d5ec3
(13/6/06)
277
formación adoptadas. Indagar como la perspectiva de género y los cambios en las relaciones
familiares se hacen presentes en las expectativas de las mujeres sobre el ingreso, la
permanencia y las posibles trayectorias en el mercado laboral”.
El segundo proyecto se denomina “Género y memoria: perspectiva para una lectura crítica
de las encrucijadas de la ciudadanía y la democracia en la coyuntura actual” y es dirigido por
Alejandra Ciriza. Las disciplinas en las que se enmarca son: Filosofía; Filosofía política y
Estudios de género. Y las áreas de estudio que presenta son: Sujeto; Ciudadanía; Democracia
y Género. Por último, los objetivos específicos del proyecto son: “Proponer herramientas
conceptuales para pensar los dilemas de las democracias contemporáneas, marcadas por la
formalización jurídica y la falta de respuesta a las necesidades reales de la vida humana a
partir de los estudios de género y el análisis de la dimensión histórica de la experiencia de los
sujetos subalternos como perspectivas críticas. Analizar, desde un punto de vista teórico
feminista, la relación entre formalización jurídica y demandas de los movimientos feminista y
de mujeres en orden al logro de una ciudadanía sexual, apuntando a visualizar las tensiones
entre ficción jurídica y cuerpo real, entre lo personal y lo político, entre sujeto colectivo y
subjetividad individual. Analizas las tensiones entre el orden jurídico internacional y las
tradiciones culturales y políticas nacionales. Analizar la relación entre derechos proclamados
y mecanismos de garantía en el terreno de las políticas públicas destinadas a mujeres. Conocer
y reconstruir las distintas formas de lucha y organización popular que tuvieron lugar en la
provincia de Mendoza a partir de los años 60-70”. Alejandra Ciriza, es filósofa, se reconoce
feminista y fue integrante de la Comisión Organizadora del XIX Encuentro Nacional de
Mujeres realizado en la ciudad de Mendoza.
14. ÁREA DE ESTUDIOS SOBRE GÉNERO
2006 - Instituto de Investigaciones Gino Germani. Facultad de Ciencias Sociales. Universidad
Nacional de Buenos Aires.
Las áreas temáticas del Instituto son definidas como “unidades técnico-académico-
administrativas de organización. Son abarcativas, de carácter interdisciplinario y
multidisciplinario”. El área de Estudios sobre Género se presenta “en formación”, según la
información de la página Web del Instituto. Actualmente existe un proyecto dentro de esa
área, cuyo período de duración se ubica entre los años 2005-2006. Está dirigido por Matilde
Alejandra Mercado y financiado por la Universidad de Buenos Aires
278
Sin fecha
Buenos Aires
General San Martín
15. MAESTRÍA EN CIENCIAS DE LA FAMILIA
Escuela de Posgrado. Universidad Nacional de General San Martín
190
.
Esta Maestría que se dicta actualmente forma parte de la oferta de pos-grados dentro del área
temática de Ciencias Sociales y Humanas. Tiene por objetivo “proporcionar capacitación
interdisciplinaria para la adquisición de competencias profesionales vinculadas con la
investigación aplicada a la planificación, prevención, asistencia y docencia, dentro de la
temática de la familia”. Fue co-dirigida por Eva Giberti y actualmente su directora es la
antropóloga Mónica Tarducci, quién se reconoce como feminista, impulsó la creación del
Programa Permanente de Estudios de la Mujer en la UNCPBA y ha participado en comisiones
organizadoras de encuentros feministas.
16. CÁTEDRA LIBRE DE LA MUJER
Universidad Nacional de La Plata
Dependiente de la Presidencia de la UNLP
Responsable: Prof. Silvia Knigth
Objetivos: Propiciar el debate creador sobre la problemática de la mujer en la sociedad
contemporánea y promover la comprensión de su papel histórico en la sociedad; auspiciar el
desarrollo de estudios e investigaciones sobre temas relevantes que permitan abordar la
problemática de la mujer desde una posición crítica; constituir un espacio de encuentro y de
discusión de las distintas corrientes del pensamiento a fin de enriquecer la elaboración teórica
sobre la problemática de la mujer
190
http://www.unsam.edu.ar/escuelas/posgrado/carreras.asp
279
Ciudad Autónoma de Buenos Aires
17. CATÉDRA DE TEORÍAS FEMINISTAS. "Las mujeres cuentan su historia: teorías
feministas. Política sexual y resistencia"
Facultad de Ciencias Sociales. Universidad Nacional de Buenos Aires.
La materia forma parte de la Carrera de Sociología con orientación en Diagnóstico Social. La
profesora titular de la misma es Silvia Chejter.
18. CÁTEDRA DE INTRODUCCIÓN A LOS ESTUDIOS DE GÉNERO
Facultad de Psicología de la UBA
La Profesora Titular es Ana María Fernández. Psicóloga clínica, psicoanalista, Profesora
Titular de la Cátedra de Introducción a los Estudios de Género de la Facultad de Psicología de
la U.B.A., Profesora Titular de la Cátedra de Teoría y Técnica de Grupos de la Facultad de
Psicología de la U.B.A. y Directora del Programa de Actualización en el campo de problemas
de la subjetividad, también de la Facultad de Psicología de la U.B.A. Autora de numerosos
artículos y de libros, entre ellos, “La Mujer de la Ilusión. Ha sido compiladora de varias
publicaciones, entre ellas “Las Mujeres en la Imaginación Colectiva”.
Nota
: Existen “estudios de género” en otras cinco universidades, pero no me fue posible
recabar información detallada sobre ellos. En la Universidad Nacional de Jujuy figura el Área
Interdisciplinaria de Estudios de la Mujer y de Género de la Facultad de Humanidades y
Ciencias Sociales. En Neuquén, en la Universidad Nacional del Comahue se encuentra el
Centro Interdisciplinarios de Estudios de Género de la Facultad de Humanidades. En la
Universidad Nacional de Salta fue creada la Comisión de la Mujer, María Julia Palacios –
Violeta Carrique. En San Juan, fue creado el PRODEM- (Programa de Estudios de la Mujer)
en la Facultad de Ciencias Sociales de Universidad Nacional de San Juan. En Córdoba fue
creado el Programa Interdisciplinario de Mujer y Género en la Facultad de Filosofía y
Humanidades de la Universidad Nacional de Córdoba.
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