Download PDF
ads:
UFRJ
A LITERALIDADE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA: UMA QUESTÃO
TEMPORAL
Fernanda Ferreira Montes
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
A LITERALIDADE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA: UMA QUESTÃO
TEMPORAL
Fernanda Ferreira Montes
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Teoria Psicanalítica.
Orientadora: Regina Herzog de Oliveira
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2008
ads:
3
A LITERALIDADE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA: UMA QUESTÃO
TEMPORAL
Fernanda Ferreira Montes
Orientadora: Regina Herzog de Oliveira
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Teoria Psicanalítica.
Aprovada por:
______________________________________
Presidente da Banca. Prof. Dra. Regina Herzog de Oliveira
______________________________________
Prof. Dra. Marisa Schargel Maia
______________________________________
Prof. Dra. Josaida de Oliveira Gondar
______________________________________
Prof. Dra. Maria Teresa da Silveira Pinheiro
______________________________________
Prof. Dra. Marta Rezende Cardoso
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2008
4
FICHA CATALOGRÁFICA
Montes, Fernanda Ferreira.
A literalidade na clínica
psicanalítica: uma questão temporal/
Fernanda Ferreira Montes. - Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGTP, 2008.
ix, 158 f; 31 cm.
Orientador: Regina Herzog de Oliveira
Tese (Doutorado)
Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 150-158.
1. Psicologia. 2. Teoria Psicanalítica. I. Herzog, Regina. II.
Universidade Federa
l do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia,
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. III. A
literalidade na clínica psicanalítica: uma questão temporal.
5
RESUMO
A LITERALIDADE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA: UMA QUESTÃO
TEMPORAL
Fernanda Ferreira Montes
Orientadora: Regina Herzog de Oliveira
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em Teoria Psicanalítica.
A presente tese discute a relação do sujeito com o tempo a partir de
dificuldades no manejo clínico. O sujeito de hoje se relaciona com o tempo
principalmente através da modalidade de temporalidade que designamos por
presentificação, em uma forma de narrativa literal que não pressupõe uma
continuidade temporal.
Com este propósito destacamos, em um primeiro momento, duas modalidades
temporais trabalhadas por Freud: a posterioridade e o ‘tempo presentificado’ da
compulsão à repetição. Em seguida, aproximamos a última modalidade tanto da idéia
de sonho traumático apresentada por Freud em 1920, quanto da noção de tempo nos
dois tipos de trauma propostos por Ferenczi: estruturante e desestruturante. A
temporalidade da catástrofe não obedece à lógica da continuidade e produz uma
narrativa que proporciona “paradas” no tempo para que o sujeito recomponha afetos e
sentidos numa cadeia simbólica. Trazemos, ainda, a contribuição do pensamento de
Walter Benjamin sobre o mal-estar do sujeito da modernidade, que estaria remetido à
ordem das vivências (Erlebnis) e não mais a da experiência (Erfahrung) que
caracteriza a narrativa tradicional.
Com estas ferramentas conceituais propomos empreender uma releitura da
clínica, recorrendo à noção de construção e ao conceito de angústia no pensamento
freudiano; e buscando subsídios em Ferenczi para pensar a análise como uma
“costura” entre todas as imagens e afetos que circundam o mundo do sujeito a fim de
produzir uma narrativa de vida. Assim, apontaremos para os limites do analisável e
para uma dimensão psíquica não-representacional.
Palavras-chave: psicanálise, temporalidade, literalidade, técnica, subjetivação,
impressões sensíveis.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2008
6
RÉSUMÉ
LA LITTÉRALITÉ DANS LA CLINIQUE PSYCHANALYTIQUE: UNE
QUESTION TEMPORELLE
Fernanda Ferreira Montes
Directeur de thèse: Regina Herzog de Oliveira
Résumé de la Thèse de Doctorat soumise au Programme de Pos-graduation en
Théorie Psychanalytique, Institut de Psychologie, de l’ Université Fédérale de Rio de
Janeiro - UFRJ, faisant partie des pré requis nécessaires à l’obtention du titre de
Docteur en Théorie Psychanalytique.
Cette thèse a pour but de discuter le rapport de l’individu avec le temps à
partir de difficultés dans la pratique clinique. L’individu d’aujourd’hui se met en
rapport avec le temps surtout à travers la modalité de temporalité que nous désignons
comme présentification, en une forme de narration littérale qui ne présuppose pas une
continuité temporelle.
Avec ce propos, nous mettons en avant, dans un premier moment, deux
modalités temporelles travaillées par Freud: la postériorité et le ‘temps présentifié’ de
la compulsion à la répétition. Dans un deuxième moment, nous approchons la
dernière modalité de l´idée de rêve traumatique présentée par Freud en 1920, aussi
bien que la notion de temps dans les deux types de trauma proposés par Ferenczi:
structurant et déstructurant. La temporalité de la catastrophe n’obéit pas à la logique
de la continuité et produit une narration qui engendre des “arrêts” dans le temps pour
que l’individu recompose des affections et des sens dans une chaîne symbolique.
Nous évoquons par ailleurs la contribution de la pensée de Walter Benjamin sur le
malaise de l’individu moderne, qui serait renvoà l’ordre du vécu (Erlebnis) et pas
plus à celui de l’expérience (Erfahrung) qui caractérise la narration traditionnelle.
Avec ces outils conceptuels nous proposons d’entreprendre une relecture de la
clinique, faisant recours à la notion de construction et au concept d’angoisse dans la
pensée freudienne; et en puisant du soutien chez Ferenczi pour penser l’analyse
comme étant un “assemblage” entre toutes les images et affections qui entourent le
monde de l’individu dans le but de produire une narrative de vie. De cette façon, nous
mettrons l’accent sur les limites de l’analysable et à une dimension psychique non-
représentationnelle.
Mots-clés: psychanalyse, temporalité, littéralité, technique, subjectivation,
impressions sensibles.
Rio de Janeiro
Février 2008
7
AGRADECIMENTOS
A Regina Herzog, pela orientação cuidadosa, pelo acolhimento, disponibilidade e
pela delicadeza com que sempre tratou minhas questões.
Aos meus pais, Maria Stela e Vagner Montes, por tudo. Sem vocês, nada disso seria
possível.
A Igor Lima, por estar sempre ao meu lado me apoiando e incentivando com muito
amor.
A Daniela, Flavia, Carmem e a toda a minha família, pelo incentivo.
A todos os amigos, pelo estímulo constante em minha vida. Agradeço principalmente
aos que me acompanharam de perto: Alexandre Louzada, Roberta Costa, Helena
Mourão e Ludmilla Souza.
A amiga e colega de doutorado Diane Viana, pela leitura atenta e pelo carinho.
A todos da equipe de pesquisa coordenada por Teresa Pinheiro e Julio Verztman.
Nossos encontros são mais ricos a cada dia.
Aos colegas do Programa de Teoria Psicanalítica com quem mantive valiosas
discussões.
Aos que me permitiram preciosas experiências clínicas.
A Capes, pela bolsa de pesquisa.
8
SUMÁRIO
Introdução....................................................................................................................1
Capítulo I - As temporalidades na obra freudiana.................................................13
1.1- Memória, inconsciente e a lógica do a posteriori (Nachträglich).......................13
1.2 – Marcas e inscrições: o campo pulsional ............................................................19
1.3- Descontinuidade pulsional e costura narcísica.....................................................25
1.4 – Narcisismo, constituição subjetiva e temporalidade...........................................26
1.5- As instâncias ideais e o tempo da antecipação.....................................................34
1.6- A segunda tópica freudiana: Eu, Supereu e Isso..................................................36
1.7- O Isso e o aparelho psíquico da segunda tópica...................................................40
1.8- A repetição no sonho traumático e a pulsão de morte..........................................44
1.9- A presentificação..................................................................................................46
Capítulo II – Trauma e temporalidade: a perspectiva ferencziana......................51
2.1- Introjeção, corpo e trauma....................................................................................52
2.2 - Quando o tempo pára: o trauma desestruturante.................................................58
2.3- A autoclivagem narcísica.....................................................................................64
2.4- A função do analista.............................................................................................68
2.5- O sonho do bebê sábio..........................................................................................70
Capítulo III– E a questão atravessa o tempo: a clínica psicanalítica hoje...........75
9
3.1-O indivíduo moderno em Benjamin: fim da narrativa?.........................................80
3.2-Alinhavando..........................................................................................................88
Capítulo IV– Um tempo para a angústia...............................................................101
4.1- A angústia no mundo contemporâneo: de que se trata?.....................................101
4.1.2- A angústia em Freud........................................................................................108
4.1.3- O sujeito do choque.........................................................................................113
4.1.4- Os destinos do trauma.....................................................................................118
4.2- A técnica da psicanálise e o trabalho dos analistas nos últimos tempos............127
4.2.1- Transferência, repetição e interpretação..........................................................128
4.2.2- Ferenczi e a técnica ativa.................................................................................133
4.2.3- A construção....................................................................................................136
Considerações Finais...............................................................................................141
Referências Bibliográficas.......................................................................................150
10
INTRODUÇÃO
O presente trabalho surgiu no bojo de questões clínicas que têm lugar na
atualidade. Nosso objetivo é discutir a implicação da temporalidade no processo de
subjetivação a partir de dificuldades no manejo clínico quando os pacientes não
apresentam um discurso rico em fantasias e não conseguem obedecer à regra
fundamental da psicanálise: a da associação livre.
Constatamos, através de uma forma narrativa peculiar e bastante presente no
discurso dos analisandos, que o sujeito de hoje se relaciona com o tempo
principalmente através da modalidade de temporalidade que designamos por
presentificação. A narrativa a que estamos nos referindo é da ordem da literalidade:
dispensa enredo, romances, histórias carregadas de metáforas, fantasias e associações.
Trata-se de uma narrativa descritiva, onde uma cena não pressupõe a anterior, nem
remete à posterior. E ela traz à tona um discurso unívoco, ou seja, as palavras têm
apenas um único significado e essa fala não é carregada de enigma.
A narrativa literal, com toda a sua impossibilidade interpretativa e associativa
aponta para a perda da interiorização nos pacientes de hoje. Segundo Birman (2001),
a subjetividade construída no início da modernidade era pautada a partir da noção de
interioridade. Hoje, essa idéia caiu por terra e deu lugar à exterioridade e ao
autocentramento, assumindo uma configuração estetizante, quando o olhar do outro é
tomado “ao pé da letra”. Ou seja, o sujeito não interpreta o outro e constrói fantasias a
partir disso, o outro precisa estar sempre diante dele sustentando esse olhar. “Os
destinos do desejo assumem, pois, uma direção marcadamente exibicionista e
11
autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado (...)”
(BIRMAN, 2001, p.24).
A troca intersubjetiva encontra-se desinvestida, que a relação com o outro
se restringe ao oferecimento de uma imagem para que esse outro olhe e testemunhe
sem se enganar a respeito do que a imagem quer dizer. A sociedade do consumo, que
prioriza o “ter” em detrimento do “ser”, oferece a possibilidade do sujeito desejar ter
vários objetos que, emblematicamente, lhe atribuiriam predicados. O problema é que
logo esse sujeito se sente artificial, vazio e portador de uma linguagem robotizada.
Afinal, neste enquadre, apresenta enorme dificuldade para fantasiar, iludir-se, enfim,
para representar (KRISTEVA, 2002).
Isso leva alguns autores da psicanálise a relacionar os sintomas ditos
contemporâneos – síndrome do pânico, somatizações, etc – a uma falta de capacidade
de simbolização e, conseqüentemente de associação, por parte do sujeito. Esses
“novos sintomas” estariam remetidos ao tempo presentificado da compulsão e à
narrativa literal do esvaziamento subjetivo. No entanto, encontramos, tanto em
Freud a partir de 1920, quanto em Ferenczi (conhecido como o analista dos casos
difíceis), um esforço no sentido de lidar com esta narrativa construída num tempo
presentificado e que pode se mostrar como uma imagem fixa. Então, como pensar
nessa forma narrativa como um sintoma contemporâneo?
Para responder a essa pergunta, em primeiro lugar devemos circunscrever o
que chamamos de contemporâneo. Diferenciamos a contemporaneidade da
modernidade a partir de acontecimentos com um certo caráter de novidade, que
escapam à forma de organização do ideal moderno. Mas a novidade do
12
contemporâneo é o que, “simultânea e paradoxalmente, nos afasta e nos torna
herdeiros do pensamento moderno” (VAZ, 1996, p.130). Assim, podemos dizer que
os sintomas contemporâneos são herdeiros da modernidade, ainda que se afastem e
provoquem até uma ruptura no modo como eram apresentados.
A partir desta perspectiva não consideramos pertinente conceber os sintomas
contemporâneos como ‘novos sintomas’. Trata-se mais propriamente de uma
predominância maior dos sintomas relacionados ao choque traumático, fato que
relacionamos ao contexto social em que vivemos. Se na época de Freud os chamados
“pacientes difíceis” que compunham, basicamente, a clínica de Ferenczi, eram raros,
hoje não podemos dizer o mesmo. Agora, os sujeitos que procuram análise mais se
assemelham aos traumatizados de Ferenczi do que às histéricas de Freud, na medida
em que se verifica uma outra nuance no modo como o sofrimento psíquico vem se
apresentando. Da mesma forma, podemos indicar que a narrativa literal atrelada ao
tempo presentificado não é uma novidade da clínica contemporânea. No entanto, sua
freqüência hoje salta aos olhos. Sem dúvida, o que inaugurou a psicanálise foi a
questão da histeria, levando Freud a conceber o funcionamento do psiquismo pautado
no modelo do recalque. Sonhos, fantasia e sexualidade eram as figuras predominantes
no discurso psicanalítico. Este predomínio significa que os sintomas devem ser
contextualizados. E neste sentido, uma modalidade de narrativa que aponta para uma
aparente falta de subjetividade não é alguma coisa fora do campo psicanalítico.
Existem diferentes modalidades de temporalidade e, hoje, a presentificação aparece
na clínica com mais freqüência, expressa via literalidade.
13
Desta forma, podemos afirmar a contemporaneidade do sujeito freudiano. Ele
está sempre referido ao seu tempo, ou seja, ao seu contexto social. É o que nos ensina
a obra de Freud, tanto nos artigos metapsicológicos, quanto nos textos denominados
culturais. Assim, nada mais pertinente do que recorrer ao contexto cultural na
tentativa de dar conta das indagações acerca do modo como o sujeito lida com os
impasses que se colocam na atualidade. Afinal, a psicanálise não se ocupa de um
sujeito natural, mas de um sujeito constituído a partir da relação com o outro, imerso
na cultura.
A configuração que apresentamos aqui, concernente à relação do sujeito com
o tempo, derivaria de uma transformação no contexto cultural contemporâneo,
afetando a própria concepção acerca da constituição da subjetividade, visto que, para
a psicanálise, esta se dá a partir de sua inserção na cultura.
Sem desmerecer os vários ângulos com que se pode pensar a atualidade, nos
interessa, neste trabalho, enfatizar uma grande mudança relativa ao modo como o
tempo é concebido pelo sujeito e o modo como esta mudança o afeta. Essa
concomitância visa indicar que não se trata de conceber qualquer tipo de antecedência
ou primazia lógica ou cronológica no enfoque da questão. Consideramos, em
última instância, que sujeito e tempo são formas de se falar da mesma coisa, na
medida em que entendemos a subjetividade como constituída a partir de uma
narrativa. Neste sentido, entre os inúmeros aspectos que se presta a delinear esta
mudança, ressaltamos alguns dos avanços tecnológicos que tiveram lugar em vários
setores da sociedade. Como característica maior observamos, em função da
valorização da informação, a preocupação em se reduzir o tempo, praticamente
14
tornando a velocidade um bem de consumo. Do trem ao avião, do telefone à internet,
os meios de transporte e de comunicação foram um dos responsáveis pela
transformação nos modos de relação, que por princípio viabilizam a redução das
distâncias e a aproximação das pessoas (SANT’ANNA, 2001). Entretanto tudo indica
que viabilizar e realizar não pertencem ao mesmo registro. O que, sem sombra de
dúvida, deveria ser visto como possibilitando e, mesmo, promovendo um
estreitamente dos laços parece ter tido um efeito inverso. Pois essa redução das
distâncias, com sua aparente aproximação das pessoas, acabou gerando uma quebra
da fronteira que separa o público do privado, o fora do dentro, enfim, o eu do outro.
Em outras palavras, se a subjetividade é tributária do outro como limite e diferença,
este estado de coisas conduziu a um desmantelamento dos laços sociais, minando
uma concepção de sujeito que tem, na alteridade, sua consistência imaginária e sua
garantia simbólica (MONTES & HERZOG, 2005).
Além dessas questões que apresentamos nesse panorama, e por causa delas,
devemos considerar o que foi colocado por autores como Seligmann-Silva (2000) e
Sennet (1999), que descrevem a contemporaneidade como uma época em que o
choque não é mais um estado de exceção na vida das pessoas, mas faz parte do dia-a-
dia.
Quando nos referimos aos traumas inseridos no cotidiano, estamos abordando
um caráter de passividade do sujeito frente ao mundo. Esse mundo estranho não
protege e, ao contrário, surpreende a todo tempo. As informações sobre todas as
mudanças que ocorrem no mundo circulam numa velocidade muito grande; maior do
que nossa capacidade de elaboração. Mas essas situações provocadas pelo panorama
15
descrito são capazes de gerar um trauma? A esta pergunta respondemos
afirmativamente, pois não temos como prever as intensidades suportadas por cada
um. Trauma é tudo aquilo que nos invade devido ao susto; à surpresa.
Com efeito, as situações não são traumáticas em si. Tudo vai depender da
possibilidade de elaboração de cada um e do acolhimento do mundo externo, dentre
outros fatores. De todo modo, para elaborar o trauma, é preciso tempo. O problema é
que o trauma paralisa o tempo; suspende as associações; chega a ser descrito como
um acontecimento clivado. Então, como se a elaboração do trauma? Sabemos que
alguns são elaborados, porque nem todo trauma tem um destino mortífero.
Para responder a essas questões, dividiremos nosso trabalho em quatro
capítulos. Com o intuito de esclarecer o estatuto da temporalidade no processo de
subjetivação, no primeiro capítulo investigaremos o tema do tempo em Freud,
lembrando que o autor nunca dedicou um trabalho que tratasse exclusivamente desta
questão. Porém, é inegável que sua obra é atravessada por esta problemática. Nunca é
demais marcar que o tema do tempo sempre esteve presente na obra freudiana,
articulado às questões do inconsciente e do sujeito. É neste sentido que faremos um
mapeamento das idéias de Freud que são perpassadas pela questão da temporalidade e
do modo como ela incide no processo de subjetivação.
Indicamos que Freud aponta, pelo menos, para duas modalidades de
temporalidade de forma mais articulada: a posterioridade e o “tempo presentificado”
da compulsão à repetição.
16
De modo breve
1
, destacamos que a constituição da subjetividade se sustenta
na idéia de posterioridade, pressupondo uma historicização. O que a idéia de tempo a
posteriori traz de inédito com respeito à dimensão histórica é, sem dúvida, o
rompimento que propicia a propósito da linearidade na história. Ao apresentar o
aparelho psíquico como um aparelho de retardo, operando basicamente no tempo do a
posteriori ganha relevo a idéia de que “o ‘passado’ é lido como uma escritura que
se deixa perceber em um determinado ‘agora’ (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.
398).
2
A idéia de retardo inaugura o aparelho de memória a partir de uma forma
particular de conceber a temporalidade, isto é, articulando-a à temporalidade e à
causalidade psíquica; essa, por sua vez, atrelada ao funcionamento no tempo do a
posteriori. A noção de uma significação a posteriori vai permitir conceber o
inconsciente não regido por um tempo linear e contínuo; franqueando, também, seu
caráter imprevisível. Considerações que descartam, de saída, a idéia de uma relação
de causa e efeito com respeito aos processos inconscientes. É preciso ter presente que
o inconsciente funciona de acordo com uma lógica própria. Nesta medida, conforme
reitera Winograd, o sentido do que ocorre ao sujeito “deriva, [...] das articulações
atuais entre as representações que o sujeito faz, sempre prontas a novos rearranjos e
novas significações” (WINOGRAD, 2004, p. 211)
Estabelecendo uma relação entre memória e esquecimento, a narrativa,
perpassada pelos desejos inconscientes, descarta a idéia de uma “restituição e
1
Essas idéias são encontradas no artigo de MONTES & HERZOG, 2005.
2
Interessante marcar que esta citação se refere, segundo Seligmann-Silva (2003), ao caráter dado por
Walter Benjamin, à historiografia. Para este comentador Freud é “uma referência central na visão
benjaminiana da historiografia como uma grafia da memória” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 399).
17
representação total do passado” (Seligmann-Silva, 2003, p. 70); a história não está
ligada a um acontecimento de fato.
A retomada da questão do trauma (1920) problematiza a dimensão narrativa
que, de alguma forma, conferia ao sujeito um lugar. O trauma é reformulado por
Freud em “Além do Princípio de Prazer” (1920/1996), onde este tem a característica
de se manter no presente como um instante único sem vinculação alguma com algo
capaz de significá-lo. Em 1920, a compulsão à repetição no sonho traumático consiste
na repetição da cena do trauma sem elaboração alguma por parte do sujeito
traumatizado. Ocorreria a interrupção do processo de associação. O trauma aqui
estaria relacionado à impossibilidade de significação. No entanto, a cena se repete na
tentativa de ganhar sentido.
Dado o relevo que a questão do trauma ganha com relação ao tempo, no
segundo capítulo vamos nos servir da teoria do trauma de Ferenczi para avançar na
discussão. Vamos encontrar no pensamento de Ferenczi uma concepção de
constituição subjetiva traumática. O psiquismo se organizaria através de catástrofes:
rupturas nas formas de organização do Eu e do mundo. De acordo com o autor, a
inserção do sujeito no mundo é traumática por excelência. A própria introjeção é, a
princípio, da ordem do excesso pulsional. O encontro da criança com o adulto
provoca uma catástrofe no mundo infantil, que estes personagens têm
necessariamente o acesso à linguagem de formas bastante distintas: a criança através
da “linguagem da ternura” e o adulto pela “linguagem da paixão” (FERENCZI,
1933/1992). Mas o trauma não é, em si, nem estrutrante, nem desestruturante ou
patológico. Se o trauma receber um contorno e for introjetado (destacando aqui o
18
papel do outro), ele será constitutivo. Se o trauma não entrar no campo da
possibilidade narrativa e vir a “desmontar” o sujeito narcisicamente, ele será
desestruturante.
Ademais, sabemos que o trauma está relacionado ao irrepresentável, mas nem
tudo o que se encontra fora do campo da possibilidade narrativa é traumático. Os
signos de percepção (FREUD, 1896a/1996) não estão no registro da representação,
mas já se apresentam como uma primeira ligação (Bindung), no sentido de captura da
excitação. As impressões sensíveis permanecem neste registro ao longo da vida.
Nesta perspectiva, os gestos, uma forma de andar, uma certa disposição corporal, a
tonalidade da voz, enfim, as impressões sensíveis podem ser conservados como pura
intensidade ou como um registro corporal. Na concepção ferencziana, o corpo tem
função de memória e tem o estatuto de um lugar psíquico.
Sendo assim, a repetição pode não aparecer em palavras, mas em atos através
do corpo. E Ferenczi se importa com a qualidade do conteúdo que é repetido, tanto
nos sonhos, quanto no setting analítico. De qualquer forma, é uma memória referida à
história do sujeito, mesmo que ela produza uma narrativa literal: literalmente marcada
no corpo, engendrando os sonhos traumáticos ou paralisando as associações na
análise.
Com base nestas considerações, verificamos que tanto em Freud quanto em
Ferenczi encontramos um tipo de temporalidade, a presentificação, comum no choque
traumático seja ele desestruturante ou não. Essa temporalidade é expressa através da
repetição e da literalidade. Essa observação pode lançar uma luz acerca do mal-estar
do sujeito contemporâneo. A temporalidade da catástrofe o obedece à lógica da
19
continuidade e acreditamos que ela produza um outro tipo de narrativa. Uma narrativa
que proporciona “uma parada” no tempo para que o sujeito recomponha afetos e
sentidos numa cadeia simbólica. É nesta direção que abordaremos, no terceiro
capítulo, os impasses da clínica psicanalítica hoje.
Apontaremos que esse modalidade narrativa o é relativa necessariamente a
uma forma específica de constituição da subjetividade. O que encontramos na
narrativa literal é o sentimento de esvaziamento do eu, a perda da autenticidade.
Assim, ela se apresenta em diferentes configurações subjetivas.
Trataremos a narrativa literal como uma produção subjetiva a serviço das
pulsões de vida; da introjeção. Ela estaria relacionada à repetição do que não tem
sentido na tentativa de tornar isso inscrito. Guiados pela proposta de Seligmann-Silva
(2000), buscaremos uma nova concepção de memória que permita a inclusão do
evento catastrófico, incluindo outros registros, que não somente o da representação
strictu senso.
A predominância deste tipo narrativo na clínica, apesar de estranha ao modelo
de subjetividade calcado no conflito psíquico, ajusta-se ao contexto social da
atualidade: o que leva à perda da interiorização; da “vida interior”. Aqui recorreremos
a Walter Benjamin, que em 1933 anunciava este problema. No artigo Experiência
e pobreza (1933/1994), Benjamin afirma que a experiência (Erfahrung) está em
baixa. Nos primórdios da sociedade moderna capitalista a narrativa tradicional ou
alegórica entrou em crise por conta da desvalorização da experiência (Erfahrung). A
vivência (Erlebnis) toma conta da vida do indivíduo moderno. Ela não garante a
memória social, pois não é calcada na transmissão da palavra. A vivência está de
20
acordo com a estrutura de trabalho fragmentária proposta pelo capitalismo moderno,
que acelera o tempo. E Benjamin atrela a vivência à narrativa jornalística,
caracterizada pelo estilo literal. Forma narrativa que precisa ter um único sentido.
Assim, a narrativa literal não pode ser aberta a interpretações como a narrativa
alegórica, que permitia a associação livre de idéias. A narrativa alegórica estaria no
registro do que é denominado por Benjamin de “tempo de agora”
3
, quando
encontramos, no presente, a presença do passado. Benjamin indica que o “tempo de
agora” não aponta para uma “imagem eterna do passado” ou para um futuro
progressista. Neste tempo, o passado se atualiza no presente a cada vez que é narrado.
O “agoracondensa o passado, vários “agoras”, no presente. Ele estaria atrelado à
noção de experiência, quando fazer história é olhar para o passado com os olhos do
presente. Isso permite uma abertura: a produção de novos sentidos. Noção bastante
próxima do a posteriori freudiano.
Vamos ressaltar que, apesar de Benjamin empreender uma crítica acirrada
com relação à narrativa literal, ele acaba por dar um estatuto à literalidade. Pelo
menos, essa é a leitura que vamos privilegiar no intuito de positivar a narrativa literal.
Desta maneira, pretendemos delinear o tema da literalidade como uma forma
narrativa nos textos de Freud e Ferenczi. Neste sentido, desdobraremos nossa
discussão sobre a função da literalidade em relação à angústia. Quando afirmamos
que a literalidade é um recurso para fazer frente ao choque, precisamos delimitar qual
3
Não podemos confundir o “tempo de agora” com o tempo presentificado ao qual fazemos referência
ao longo deste trabalho. O “tempo de agora” tem relação com o presente saturado de “agoras”, que são
atualizações do passado.
21
sua relação com a angústia, que também é produzida a partir do trauma a fim de
proteger o sujeito.
Neste contexto, somos conduzidos ao quarto capítulo, que versa sobre a escuta
analítica a partir da idéia de manejo da angústia. Retomaremos Benjamin, que define
o sujeito moderno como “sujeito do choque”. Este autor nos auxiliará a pensar no
sujeito contemporâneo
4
, que lida com choques cotidianamente. Sujeito que não tem
mais tempo para hesitar; escolher; para construir uma interioridade. E entre um
choque e outro, não tempo para a angústia lançar mão de seus artifícios que visam
dominar o trauma. Desde a modernidade vêm se configurando esse sujeito que se
surpreende a todo momento e que, para lidar com isso, responde através da suspensão
do tempo: na palavra e no corpo. Sendo assim, nossa proposta é a de fazer uma
releitura da clínica psicanalítica através das questões da transferência e da técnica.
Com Freud, recorrendo à noção de construção - que aponta para uma invenção de si a
partir da possibilidade de fantasiar - e lançando mão do conceito de angústia como
fundamental para pensarmos o trabalho analítico. Em Ferenczi buscaremos subsídios
para pensar a análise como uma “costura” entre todas as imagens e afetos que
circundam o mundo do sujeito a fim de produzir uma narrativa de vida. Com isso,
passamos a admitir os limites da análise, incluindo a dimensão psíquica não-
representacional em nosso trabalho de analistas.
4
Consideramos Benjamin um autor ainda bastante atual, apesar de ter como referência o início da
modernidade. É nesse sentido que definimos a contemporaneidade como herdeira da modernidade,
apesar de se afastar desta última em alguns pontos.
22
CAPÍTULO I
AS TEMPORALIDADES NA OBRA FREUDIANA
O primeiro capítulo da tese introduzirá o tema do tempo em Freud. Apesar do
autor nunca ter dedicado um trabalho que tratasse exclusivamente desta questão, é
inegável que sua obra é perpassada por esta problemática. A questão da
temporalidade atravessa a obra de Freud, entretanto, não podemos afirmar que se
apresenta de uma maneira unívoca. Talvez seja mais apropriado dizer que Freud
sugere diferentes modalidades de temporalidade. De uma maneira geral, pelo menos
duas modalidades aparecem de forma mais articulada: a posterioridade, presente
principalmente na primeira tópica freudiana, e o tempo presentificado da compulsão à
repetição, do texto de 1920. Porém, nunca é demais lembrar que o tema do tempo
sempre esteve presente na obra freudiana de maneiras diversas, articulado às questões
do inconsciente e do sujeito. É neste sentido que faremos um mapeamento das idéias
de Freud que são perpassadas pela questão da temporalidade e do modo como ela
incide no processo de subjetivação. Para isso, nesse primeiro momento, trataremos
das seguintes questões: memória, inconsciente, sexualidade, narcisismo e pulsão de
morte.
1.1- Memória, inconsciente e a lógica do a posteriori (Nachträglich)
Na obra freudiana, a questão do tempo não é explorada isoladamente. Freud
apenas traz à tona a problemática do tempo quando vinculada aos processos de
23
subjetivação, ou seja, quando o sujeito é posto em questão através do tempo
(GONDAR, 1995). De acordo com Gondar (1995), Freud não se guia por uma
concepção de tempo única, mas por várias. Nesta direção, primeiramente nos
deteremos na exposição da noção de a posteriori, que ficou muita marcada como um
tipo de temporalidade que prevaleceria na primeira tópica freudiana.
Desde o “Projeto para uma psicologia científica” (FREUD, 1895a/1996),
Freud se utiliza da idéia de a posteriori para postular sua teoria do trauma. Ao
mencionar o ‘caso Emma’ Freud propõe que o trauma se em dois tempos: o
segundo tempo do trauma, uma rememoração, (re)significa o primeiro tempo, uma
cena desencadeadora do sintoma. Para melhor entendimento desse ponto,
apresentaremos um recorte do caso clínico descrito por Freud (1895a/1996). Emma
procura Freud se queixando de não poder entrar nas lojas sozinha. Como uma suposta
causa para esse sintoma, referia-se a uma lembrança da época em que tinha doze
anos. Ela entrou numa loja para comprar algo, viu dois vendedores rindo juntos, e
saiu correndo assustada. Os dois estavam rindo de sua roupa e um deles a havia
agradado sexualmente. No entanto, essas lembranças despertadas não explicam a
determinação do sintoma, ou seja, o porquê de não poder entrar sozinha em lojas. As
investigações durante o tratamento revelaram uma segunda lembrança, que ela nega
ter tido em mente na ocasião da Cena I. Aos oito anos de idade, ela esteve numa
confeitaria para comprar doces e o proprietário agarrou-lhe as partes genitais por
cima da roupa. Apesar da primeira experiência, ela retornou uma segunda vez e
somente depois parou de ir. Na época do tratamento, passou a recriminar-se por ter
retornado à loja, naquela época, como se com isso tivesse a intenção de provocar a
24
investida. Daí Freud conclui que podemos compreender a Cena I (vendedores),
combinando-a com a Cena II (proprietário da confeitaria). Basta estabelecer vínculos
associativos entre ambas. Emma indicou que um vínculo poderia ser estabelecido
através do elemento “riso”: o riso dos vendedores a fez lembrar-se do sorriso com que
o proprietário da confeitaria acompanhou sua investida. Na loja, os dois vendedores
estavam rindo e isso evocou, inconscientemente, a lembrança do proprietário. Além
disso, a segunda situação tinha ainda outra semelhança com a primeira: ela mais uma
vez estava sozinha na loja.
uma trama de representações que se associam entre estes dois tempos
(duas cenas) do trauma e isso faz com que o sintoma seja desencadeado sempre
posteriormente, isto é, na ocasião da segunda cena. O sintoma é entendido como
corpo estranho, que se trata de uma memória inconsciente. De acordo com Freud,
esse caso é típico do recalcamento na histeria: as lembranças, que se tornaram
traumáticas por ação retardada, foram recalcadas. Devemos destacar que a noção de
memória inconsciente torna-se fundamental para a posterior postulação da fantasia.
Afinal, pensar nessa memória produzindo um tecido associativo é trazer à tona um
outro registro que, mais tarde, Freud denominará “realidade psíquica”. E ao descrever
o trauma construído em dois tempos, Freud salienta a importância da rememoração,
sendo que esta não é idêntica à cena de fato. Na rememoração, o sujeito é capaz de
dar um outro sentido ao ocorrido; de resignificar. Portanto, temos que essa idéia de
temporalidade a posteriori, presente na construção do trauma, é condição de
possibilidade para a elaboração das noções de fantasia e realidade psíquica na medida
em que é um tipo de temporalidade que envolve movimentos de associações e
25
resignificações. E esses são os elementos fundamentais de que Freud precisa para
propor um tratamento baseado na interpretação.
Ainda sobre essa primeira noção de memória inconsciente, no artigo de 1895,
Freud desenvolve a idéia de um aparelho neurônico de memória. Ele relaciona a
memória ao sistema de neurônios impermeáveis Ψ e diz que ela é formada pela
diferença entre as facilitações neste sistema. Aqui, temos a idéia de uma memória
inconsciente e relacionada aos traços, ou melhor, aos trilhamentos realizados pelos
fluxos de excitações.
A propósito, na ‘‘Carta 52’’, Freud (1896b/1996) trabalha com a hipótese de
que o mecanismo psíquico tenha se formado por um processo de estratificação: o
material presente em forma de traços da memória estaria sujeito, de tempos em
tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias a uma retranscrição. Dessa
maneira, a memória não se faria presente de uma só vez, mas se desdobraria em
vários tempos.
Vale ressaltar que Freud postula já em 1893 que os histéricos sofrem de
reminiscências. Trata-se de uma lembrança que se tornou determinante do fenômeno
histérico, persistindo com bastante clareza durante um tempo consideravelmente
longo. Porém, essa lembrança seria inconsciente, pois estaria recalcada. Para Freud
(1893-1895/1996), o trauma estaria relacionado ao afeto e mais precisamente à
surpresa. A lembrança persistiria porque o trauma não fora ab-reagido
suficientemente. A ab-reação a qual Freud mencionava seria a tradução do afeto em
palavras, que haveria uma relação simbólica entre o fenômeno patológico e sua
26
causa precipitante. Nesse sentido, o autor indica que a linguagem serviria de
substituta para a ação.
Com isso, podemos concluir que vemos em Freud, desde seus primeiros
escritos, a possibilidade de uma “lembrança” ser construída a posteriori por uma via
associativa. Isto fica claro quando posteriormente Freud introduz a noção de fantasia,
ao duvidar da neurótica que se refere à lembrança de uma cena de sedução ocorrida
de fato.
Em “A Interpretação dos sonhos” (1900), Freud sistematiza o inconsciente
(Ics), dando a este o estatuto de instância psíquica. Assim, o inconsciente torna-se um
lugar que não pode ser anatômico, mas tópico e dinâmico. Ou seja, ele é definido de
acordo com sua localização e sua função. Isso porque Freud nos apresenta uma forma
de funcionamento do aparelho psíquico em que cada instância exerce sua função
obedecendo a uma ordem temporal. Tanto que, para explicar o mecanismo do sonho,
Freud lança mão da idéia de regressão. Na vida de vigília, a excitação segue do pólo
perceptivo ao pólo motor, trilhando um caminho progressivo. No sonho, a excitação
retorna ao pólo perceptivo, percorrendo um caminho regressivo e produzindo a
alucinação. A partir da regressão, o sonho é elaborado como uma produção
inconsciente. Nesta perspectiva podemos dizer que o inconsciente tem o estatuto de
um lugar temporal, pois obedece a uma gica e a uma disposição temporais. De
acordo com as palavras de Freud:
“A rigor, não necessidade da hipótese de que os sistemas
psíquicos realmente se disponham numa ordem espacial. Bastaria que
27
uma ordem fixa fosse estabelecida pelo fato de, num determinado
processo psíquico, a excitação atravessar os sistemas numa dada
seqüência temporal(FREUD, 1900/1996, p.567).
em 1915, no artigo dedicado exclusivamente ao inconsciente, Freud
esclarece que o inconsciente é atemporal em comparação à temporalidade da
consciência. Ele possui uma lógica própria de funcionamento e de temporalidade,
diferente da lógica da consciência e de sua cronologia. Neste sentido, podemos
afirmar que o inconsciente não obedece a um tempo cronológico, e sim lógico, de
acordo com o recalque, as associações entre as representações inconscientes e seus
derivados. Esse tempo obedeceria à lógica do a posteriori (Nachträglich). Segundo
Gondar (2005): “O funcionamento inconsciente não se torna inteligível segundo o
modelo científico do somatório de instantes, e tampouco se alinha ao fluxo contínuo
da duração” (GONDAR, 1995, p.70).
Portanto, frente à possibilidade dessa significação a posteriori, entendemos
que o inconsciente não é regido por um tempo linear e contínuo, o que nos permite
destacar o caráter imprevisível do inconsciente. Não é possível prever uma relação de
causa e efeito com relação aos processos inconscientes. Mas isso não quer dizer que
haja uma total descontinuidade entre esses processos; no depois podemos
estabelecer relações entre os elementos; relações inclusive de “causa” e “efeito” como
produto da fantasia (que assim se configuram na fantasia do sujeito). As
representações se associam e são produzidas a partir de um traço em comum. Assim
se faz história através de uma dimensão temporal. Winograd toca diretamente neste
ponto (1998):
28
“Para a psicanálise, tais significações constroem uma historicidade na
qual e pela qual o sujeito se constitui. Se Freud apresenta uma teoria do
trauma, se ele caracteriza o inconsciente como atemporal por oposição aos
outros sistemas, e se desenvolve a noção de posterioridade, é porque
supõe necessariamente uma dimensão histórica e temporal que atravessa o
sujeito” (Winograd, 1998, p.51).
Deste modo, a vivência do fato traumático perde importância na medida em
que a história do sujeito pode ser reconstruída a cada instante. A história ganha
sentido a posteriori. Cada sujeito escreve sua história, que é permeada pelo
inconsciente. A história não está, por conseguinte, necessariamente ligada a um
acontecimento de fato. O que entendemos por história, a partir de Freud, tem relação
com um tecido fantasmático construído singularmente no a posteriori. Neste
contexto, cabe sublinhar que essa forma de Freud abordar a temporalidade permite a
elaboração de um conceito de história que confere singularidade ao sujeito.
Para dar continuidade a nossa proposta, tratando a temporalidade atrelada às
questões referentes ao processo de subjetivação, examinaremos as noções de
sexualidade, corpo e pulsão.
1.2- Marcas e inscrições: o campo pulsional
A pré-história das pulsões, como o que estabelece o contato entre o anímico e
o corpo, tem início nos primeiros estudos sobre a histeria. A partir da escuta das
histéricas, Freud (1893/1996) pôde perceber que o sintoma da conversão apontava
29
para um corpo atravessado pela linguagem, visto que o órgão afetado no sintoma
histérico estaria relacionado a uma concepção de corpo fundada na linguagem
popular. No caso da histeria, portanto, o corpo em questão não seria o anatômico.
Ao analisar a formação do sintoma corporal da histeria, Freud (1894/1996)
afirma que este tem lugar quando uma representação precisa ser desvinculada do
afeto, isto é, recalcada, pois seria incompatível com a consciência. Sendo assim, a
soma de excitação poderia utilizar o corpo como uma via de descarga (FREUD,
1896a/1996). Desta forma, a conversão é apresentada como resultado do
deslocamento do afeto para um órgão. Freud (1893-1895/1996, p.41) refere-se à
conversão como uma “espécie de simbolização”, ou seja, “uma relação ‘simbólica’
entre a causa precipitante e o fenômeno patológico”. O sintoma corporal
substituiria assim o que de impossível de ser articulado no discurso (DAVID-
MÉNARD, 2000). E aquilo que escapa ao discurso do sujeito seria da ordem da
sexualidade, que Freud (1896a/1996) também ressalta que o sintoma histérico
estaria infalivelmente relacionado ao campo do sexual. Assim, a idéia insuportável
para o Eu seria de origem sexual.
De início, entre 1893 e 1897, Freud propõe que a etiologia da histeria estaria
relacionada a um trauma sexual, ou melhor, à lembrança deste trauma. Tal trauma
seria causado por uma cena de sedução sexual ocorrida na infância e infligida por um
adulto. Posteriormente, Freud (1897a/1996) conclui que essa cena estaria relacionada
à fantasia inconsciente do neurótico. A lembrança corresponderia à realidade psíquica
e o autor justifica esse tipo de fantasia reafirmando a sexualidade infantil. Então, ao
30
considerar a cena do trauma como fantasia inconsciente, as noções de realidade
psíquica e de sexualidade infantil passam a ocupar um lugar privilegiado na teoria
freudiana. Portanto, o recalque incidiria sobre a sexualidade, já que as fantasias
serviriam para dissimular a sexualidade infantil (LAPLANCHE E PONTALIS,
1992).
Neste sentido, o sintoma corporal na histeria estaria implicado em satisfações
substitutivas. O corpo da histérica estaria necessariamente na esfera da satisfação e do
prazer. Podemos dizer que é o corpo do sentido e da sexualidade. É através da
sexualidade que Freud nos apresenta uma nova noção de corpo, diversa da noção
postulada pela medicina da época. A pulsão sexual, a partir dos estudos freudianos
sobre a histeria, é o elo fundamental da “costura” entre corpo e psiquismo. Afinal, é
possível afirmar que o sintoma corporal na histeria tem como pano de fundo a
fantasia histérica. Trata-se de um corpo que se apresenta ao olhar do outro como um
texto. Segundo David-Ménard (2000), o sintoma traz a revivescência de uma cena
nunca completamente elaborada pela linguagem. Entre o sintoma e a cena narrada
não há, pois, mais diferença de natureza (...)” (DAVID-MÉNARD, 2000, p.31).
Vale lembrar que, embora Freud fizesse referência à pulsão desde seus
textos iniciais, o conceito de pulsão passou a ser trabalhado do ponto de vista
metapsicológico em As pulsões e seus destinos(FREUD, 1915/1996). Somente no
artigo de 1915 é que Freud propõe a pulsão como um conceito limítrofe entre o
somático e o psíquico. A pulsão seria o representante psíquico dos estímulos que se
originam no corpo e alcançam a mente, como uma medida da exigência de trabalho
feita à mente em conseqüência de sua ligação com o corpo. Desta forma, funcionando
31
como uma costura entre corpo e psiquismo, ela não é capaz de se inscrever no
psiquismo. Só temos acesso à pulsão através de uma primeira inscrição de seus
representantes psíquicos: afeto (Affekt) e representação (Vorstellungsrepräsentanz). O
primeiro teria um caráter intensivo. O afeto é a expressão qualitativa da quantidade
de energia pulsional e das suas variações (LAPLANCHE E PONTALIS, 1992,
p.9). A representação estaria ligada ao afeto e poderia ser desvinculada e recalcada.
Primeiramente, antes de serem organizadas, as pulsões funcionariam num
estado anárquico, como pulsões parciais (LAPLANCHE E PONTALIS, 1992). A
noção de “pulsão parcial” (Partialtrieb) aparece em Freud antes mesmo que ele tenha
estruturado a pulsão como conceito. Em Os Três Ensaios sobre a Sexualidade”
(FREUD, 1905a/1996) encontramos as pulsões parciais formando o corpo auto-
erótico, caracterizado por zonas erógenas dispersas umas das outras, marcadas a partir
dos cuidados maternos. Segundo Freud, podemos conceber a zona erógena como uma
parte do corpo que pode substituir os órgãos genitais no que diz respeito à obtenção
de prazer. Nesse artigo de 1905, Freud recorre à noção de apoio, que nos remete a
uma idéia de materialidade corporal. Para Freud, a sexualidade apóia-se
primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e depois se
torna independente delas. Desta forma, o corpo é pensado como base material da
sexualidade. No início, a sexualidade estaria atrelada à sensação da satisfação (pela
diminuição da tensão) e, conseqüentemente, ao diferencial prazer/desprazer.
Freud (1905a/1996) caracteriza o auto-erotismo pela busca de satisfação das
pulsões parciais, ligadas à excitação de uma zona erógena. No auto-erotismo, a pulsão
se satisfaz parcialmente no próprio corpo, sendo que este ainda não se constitui para o
32
bebê enquanto unidade. Aqui devemos destacar a contingência do objeto, pois a
sexualidade infantil, caracterizada como perversa polimorfa, indica-nos que não
existe um objeto pré-determinado para a pulsão. Nestes termos vemos que a grande
novidade postulada por Freud em 1905 não diz respeito à manifestação da
sexualidade na infância, mas a forma como essa sexualidade se configura e a
concepção de que a sexualidade é infantil. E, de início, Freud contrapõe claramente as
pulsões sexuais, que visam somente a satisfação e cuja energia é a libido, às pulsões
de autoconservação (pulsões do Eu), que preservam a integridade do Eu e cuja
energia é denominada interesse.
No registro do auto-erotismo teríamos um corpo caracterizado pela
superposição caótica de marcas; um corpo sem unidade, em um vel de ordenação
onde não encontramos qualquer separação entre os registros do sujeito e do objeto.
Sendo assim, se não podemos ainda pressupor um Eu organizado, também não é
possível pensar na inserção do sujeito na temporalidade com referência ao passado,
presente e futuro. Neste momento não haveria sequer sensação de continuidade no
tempo, pois isso é uma construção do sujeito que estaria atrelada ao narcisismo.
Assim, optamos por nos referir a este momento apenas como um tempo de
descontinuidade pulsional.
Como já foi abordado no item anterior, na ‘Carta 52’’ (1896a), Freud propõe
um rearranjo ou uma retranscrição dos traços da memória, de tempos em tempos. O
signo de percepção, que pode ser entendido como uma marca (Prägung) ou
impressão (Eindruck), é considerado por Freud como o momento primário da
elaboração mnêmica (GARCIA-ROZA, 2000) . Ele seria um primeiro registro,
33
anterior à inscrição psíquica propriamente dita. Sendo assim, estaria no registro
mesmo de uma marca exterior ao sentido; seria algo ‘‘não -representado’’ ; anterior
ao traço (Spur). Posteriormente, a marca pode transformar-se em uma inscrição, ao
mesmo tempo psíquica e corporal.
Mas se as pulsões implicam uma exigência de trabalho ao psíquico, as
impressões talvez possam fazer também uma exigência de trabalho mnêmico. Uma
hipótese seria a possibilidade de os signos de percepção permanecerem conservados
como uma intensidade que possui uma qualidade vivências de dor, apaziguamento-
que não se encontre no registro representacional.
o traço (Spur), este é traço de uma impressão e supõe uma inscrição. Ele se
constitui como memória, mas não como memória consciente, tendo em vista que no
próprio ‘‘Projeto para uma psicologia científica’’ (1895a), onde Freud desenvolve a
idéia de um aparelho (neurônico) de memória, ele relaciona a memória ao sistema de
neurônios impermeáveis Ψ e diz que ela é formada pela diferença entre as facilitações
neste sistema. Portanto, trata-se aqui de uma memória inconsciente e relacionada
aos traços, ou melhor, aos trilhamentos realizados pelos fluxos de excitações.
Em ‘‘A Interpretação dos Sonhos’’ (1900), Freud destaca que nossas
lembranças sem excetuar as que estão mais profundamente gravadas em nossa
psique são inconscientes em si mesmas. Podem tornar-se conscientes, mas não
dúvida de que produzem todos os seus efeitos quando em estado inconsciente. Por
exemplo, as impressões da primeira infância inscritas como traços são as que nos
causam maior efeito e quase nunca se tornam conscientes.
34
A propósito, podemos pensar que auto-erotismo está no registro das marcas
ou impressões, isto é, o corpo está em processo de erogeneização, mas carece de
unidade. Por sua vez, o narcisismo está predominantemente no registro da
representação, pressupõe uma inscrição e, desta forma, refere-se a um corpo cujos
traços são unificados numa imagem. Porém, lembremos que o corpo narcísico não se
constitui de uma vez por todas sem possibilidade de retorno a uma vivência do corpo
puramente pulsional, fragmentado.
1.3- Descontinuidade pulsional e costura narcísica
Dando seqüência ao nosso propósito de relacionar as questões relativas à
constituição subjetiva às noções de temporalidade na obra freudiana, pretendemos
abordar a idéia de costura narcísica, capaz de fornecer ao sujeito a noção de
continuidade no tempo, em contraste com a descontinuidade pulsional.
A pulsão sexual, como força constante inscrita no aparelho e colocando este
em movimento, funcionaria conforme a lógica do inconsciente e, então, segundo o
tempo do inconsciente. A própria possibilidade de associação livre tem como
condição a propriedade dos representantes pulsionais se deslocarem, produzindo
novos arranjos, novas ligações. É o narcisismo que, fundando o próprio Eu e as
instâncias ideais, proporciona ao sujeito a inserção na temporalidade (valeria dizer na
temporalidade de seu meio cultural, no caso, no tempo organizado
cronologicamente). Com o advento do Eu, temos a unificação das pulsões parciais e
uma função do Eu, a partir do artigo “O Ego e o Id” (1923a/1996), é justamente a
35
síntese. Assim Freud passa a descrevê-lo: O Eu é uma organização caracterizada
por uma tendência muito marcante no sentido da unificação, da síntese” (FREUD,
1926b, p.191). Desta maneira, o Eu é uma instância que “organiza” o psiquismo. Por
isso pretendemos abordar a idéia de costura narcísica, capaz de fornecer ao sujeito a
noção de continuidade no tempo, em contraste com a descontinuidade pulsional.
Como uma imagem do que estamos propondo, recorremos à idéia de
elaboração secundária. Na elaboração secundária, é como se pensamentos da vida de
vigília invadissem o sonho, participando da elaboração onírica. Freud destaca o papel
do censor na própria formação do sonho. Mas vale sublinhar que, no texto de 1900,
Freud deixa claro que é o Eu, na vida de vigília, quem sentido ao sonho e monta
uma história a partir dos recortes do sonho. O sonho, como uma produção
inconsciente, convive com ambivalências, ambigüidades, contradições. O Eu do
sonhador é quem promove uma costura nos retalhos do sonho a fim de produzir uma
história em busca de algum sentido.
Aqui, estamos relacionando esta função de síntese do Eu à própria
possibilidade de sua constituição, visando à unificação.
1.4 –Narcisismo, constituição subjetiva e temporalidade
No artigo “Sobre o narcisismo: uma introdução” (FREUD, 1914a/1996),
Freud trata da questão do Eu pelo viés do narcisismo. Ele concebe a subjetividade,
36
“Sua majestade o bebê”, como uma invenção
5
de dois adultos. Nesse sentido, Freud
nos diz:
“Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os
filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de
seu próprio narcisismo, que de muito abandonaram (...) Assim eles se
acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho - o que
uma observação sóbria não permitiria - e de ocultar e esquecer todas as
deficiências dele (...) Além disso, sentem-se inclinados a suspender, em
favor da criança, o funcionamento de todas as aquisições culturais que seu
próprio narcisismo foi forçado a respeitar (...) A doença, a morte, a
renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis
da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor” (FREUD,
1914a/1996, p.97/98).
De acordo com Pinheiro, esses adultos funcionam como um fiador na
constituição da subjetividade. É como se, a partir da invenção do narcisismo - fruto
da projeção do narcisismo dos pais sobre o filho - fosse criada no sujeito em
emergência uma onipotência sem fendas ou falhas” (PINHEIRO, 1995a, p.21).
Sendo assim, o sujeito tem de se apropriar dessa construção fantasmática - deste
projeto narcísico que já lhe estava endereçado desde antes de seu nascimento - para se
constituir.
Ainda no artigo de 1914, o corpo aparece nitidamente atrelado à constituição
subjetiva. O corpo é elemento fundamental para a noção de unidade, possibilitando a
5
Pinheiro, M. T. (1995a) “Algumas Considerações sobre o narcisismo, as instâncias ideais e a
melancolia”, in Cadernos de Psicanálise, vol.12, n.15. Rio de Janeiro, S.P.C.R.J.
37
função de síntese do Eu. É o corpo como uma unidade que favorece a assunção do
Eu. Segundo Freud, devemos supor que uma unidade comparável ao Eu não pode
existir no indivíduo desde o começo assim como as pulsões auto-eróticas. O Eu,
portanto, tem de ser desenvolvido. Mas é necessário que algo seja adicionado ao auto-
erotismo a fim de provocar o narcisismo, o que Freud denomina “uma nova ação
psíquica” (FREUD, 1914a/1996, p.84).
Nesta mesma direção, Lacan (1949/1998) nos apresenta a idéia do estádio do
espelho, apontando para a importância do olhar do outro
6
para a constituição do
sujeito. Ele destaca que a assunção jubilatória da imagem especular do bebê humano
parece manifestar uma antecipação, pois este bebê se reconhece como unidade
corporal e reconhece o adulto como um semelhante ainda mergulhado na impotência
motora:
“A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser
ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da
amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-
nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que
o [eu]
7
se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na
dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe
restitua, no universal, sua função de sujeito” (LACAN, 1949/1998, p.97).
6
Sublinhamos que, posteriormente, Lacan propõe o conceito de Outro, enfatizando a dimensão
simbólica. Portanto, numa visada lacaniana, podemos fazer uma releitura do estádio do espelho,
incluindo a noção de Outro.
7
Lacan designa o Je (sujeito do inconsciente) como [eu].
38
No texto ‘‘O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos
é revelada na experiência psicanalítica’’ (LACAN, 1949/1998), Lacan trata do Eu
como o sujeito do inconsciente (Je), articulando o que é da ordem do imaginário com
o que é da ordem do simbólico. Não se trata de compreender o advento do imaginário
e do simbólico em tempos distintos; temos aqui o advento do imaginário e do
simbólico intrincados numa mesma experiência. O imaginário exige esse outro modo
de expressão, designado por Lacan de simbólico. O simbólico é detectado no estádio
do espelho, indicando um momento de advento histórico, quando a criança se volta
para o adulto para buscar seu assentimento (LAMBOTTE, M. C., 1996). Uma
imagem idealizada da criança é possível ancorada nos valores do universo
simbólico parental (FERNANDES, 2000). Desta forma, podemos pensar o estádio do
espelho como a formação do Eu através do olhar do outro e do projeto narcísico que
este lhe endereça. Segundo Lacan, ‘‘basta compreender o estádio do espelho como
uma identificação (...), ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele
assume uma imagem’’ (LACAN, 1949/1998, p.97).
Lacan (1949/1998) indica que essa forma deveria ser designada por [eu]-ideal,
no sentido em que ela será também a origem das identificações secundárias. O Eu
Ideal seria o Eu do desejo materno, uma imagem ao mesmo tempo alienante e
constituinte. Alienante na medida em que vem de fora, oferecida por um outro, que
neste momento pode ser a mãe ou quem cuida do bebê. Mas também é uma imagem
constituinte porque o sujeito se constitui na tentativa de ser essa imagem. O espelho é
o próprio olhar da mãe que diz: “você é esta para o meu desejo, eu te vejo e te quero
assim” (KEHL, 1998, p.413). A princípio, a mãe ou quem cuida do infans – enquanto
39
representante do mundo externo - é quem “sabe” sobre esse ser em invenção, o Eu
Ideal.
Faz-se necessário destacar que o Eu do estádio do espelho é concebido como
uma organização complexa relacionada a uma imagem corporal que confere uma
unidade primeira ao sujeito, permitindo a passagem do auto-erotismo ao narcisismo
primário. Nesse sentido, Lacan (1949/1998) qualifica essa unidade de ortopédica.
Porém, uma imagem primeira não é definitiva e, portanto, não permanece sempre
idêntica em si mesma. Essa imagem pode ser renovada ou acrescentada de novos
traços na história do sujeito (GARCIA-ROZA, 2000). Isso seria o que Freud
denomina narcisismo secundário
8
, ou seja, o retorno da libido ao Eu após
investimentos objetais.
Narcisismo, corpo e Eu são, portanto, conceitos que não podem ser pensados
isoladamente. Em “O Ego e o Id” (1923a/1996), Freud afirma que o Eu é, acima de
tudo, corporal, constituindo-se como a projeção mental da superfície do corpo. É a
representação corporal que confere uma unidade primeira ao sujeito. A noção de
alteridade está intimamente articulada à possibilidade de se representar, de
representar o corpo próprio.
Desta maneira, entendemos que o Eu, constituído a partir do estádio do
espelho, assegura a imagem de si. Ressaltamos então o papel do outro que fala desse
8
Não sendo nosso propósito discutir os conceitos de narcisismo primário e secundário, cabe
esclarecer, resumidamente, que o narcisismo primário corresponderia a um “momento” anterior ao
investimento objetal. No texto de 1914, Freud nos sugere a correspondência entre narcisismo primário
e Eu ideal.
40
bebê, afirmando quem ele é. O olhar desejante da mãe permite que o bebê se aproprie
de uma imagem dotada de atributos relacionados aos ideais do universo parental.
A expressão “imagem de si” aqui utilizada ganha consistência teórica a partir
das indicações de Freud no artigo de 1914 sobre o narcisismo. Neste artigo, Freud
propõe dois tipos de escolha de objeto: anaclítica (de ligação) e narcísica. O tipo de
escolha denominado anaclítica faria referência ao objeto dos primeiros cuidados, ou
seja, aos objetos que no passado tinham a função de proteger e alimentar. A escolha
narcísica corresponderia ao amor por si mesmo. Mas Freud conclui que esse tipo de
escolha narcísica corresponde a um tipo de escolha originário. O amor por si mesmo
estaria relacionado ao sentimento infantil de onipotência, isto é, ao Eu Ideal. A
escolha narcísica, portanto, corresponderia a uma posição libidinal “abandonada”, o
narcisismo primário. Neste sentido, o conceito de narcisismo em Freud ultrapassa a
idéia de amor próprio, caracterizando-se como uma posição libidinal. A própria noção
de amor por si mesmo utilizada por Freud não corresponderia ao que é denominado
popularmente de amor próprio, mas reproduziria a idéia de posição libidinal e
constituição de uma imagem de si onipotente, característica do Eu Ideal. E sobre a
origem da onipotência e do narcisismo primário, temos que ambos corresponderiam à
revivescência e reprodução do narcisismo dos pais. Portanto, a imagem de si
corresponderia à identificação do sujeito com a própria imagem através do olhar de
um outro que deposita ali seu narcisismo.
Sobre a construção dessa imagem de si, Aulagnier (1990) tece algumas
considerações importantes. A autora relaciona o estádio do espelho ao processo de
historicização do sujeito. Esse processo de historicização tem início antes mesmo do
41
nascimento do bebê. Devemos situar hipoteticamente um ponto de partida na história
do sujeito que antecede seu nascimento. O sujeito já nasce inserido numa trama
fantasmática, ou seja, ele vem ocupar um lugar inventado anteriormente e essa
invenção está totalmente submetida à subjetividade de um outro que o desejou.
Nesta direção, Aulagnier nos fala da relação Eu corpo articulada à fantasia
materna. Antes do nascimento, o que temos é o imaginário materno e a possibilidade
de um corpo unitário ser imaginado e investido para dar suporte ao infans. No
estádio do espelho, esse corpo unitário (“corpo imaginado” e carregado de fantasias)
que existia na fantasia da mãe, passa a funcionar para o pequeno sujeito que se
reconhecerá naquela imagem. Sendo assim, o estádio do espelho deve ser entendido
como um ponto de chegada. Aulagnier sublinha que a relação imaginária com o bebê
precede seu próprio nascimento, pois, quando a mulher está grávida, por exemplo, o
bebê não é representado pelo que é na realidade. Ou seja, não um bebê constituído
ainda, e sim um embrião. Mas ainda assim, ele é representado como um “corpo
imaginado”. Esse corpo é completo e unificado, dotado de todos os atributos para
isso. O corpo imaginado antecede e acompanha a criança. A mãe investe no bebê
através do corpo desde antes de seu nascimento e é nele que a mãe vai continuar
investindo, atribuindo-lhe qualidades, dando-lhe um nome, inserindo-o numa história.
Este corpo será suporte identificatório para o pequeno sujeito.
Desta forma, voltamos a destacar que o corpo do qual a psicanálise trata é o
corpo falado pelo sujeito, que precisa de um outro para nomear suas sensações e lhe
conferir uma imagem. Somente num universo de sentido as sensações podem ser
reconhecidas. Se não reconhecemos o que sentimos, como dizer que sentimos? Não
42
cabe aqui discutirmos a questão da dor, mas podemos pensar que a própria dor,
supostamente algo tão íntimo, é estranha ao sujeito se não ganha significação. O
corpo que não é nomeado e adjetivado” por um outro, é um corpo estranho. Assim
como a imagem que só se torna própria através do assentimento de outrem.
Sendo assim, ressaltamos a importância do olhar e da palavra do outro no
estádio do espelho. Não é a imagem do espelho por si que confere uma unidade ao
Eu. Antes de tudo, é a palavra do outro sobre essa imagem idealizada que possibilita
o advento do sujeito. A imagem unificada do espelho que é apontada como sendo a
imagem do bebê, é uma imagem dotada de atributos. O bebê se identifica com o olhar
desse outro, e pode se apropriar de uma imagem de si. Lembremos o mito de Narciso,
ao qual o próprio conceito de narcisismo faz referência. Numa das versões mais
conhecidas do mito
9
, Narciso toma a si mesmo como objeto de amor e, capturado
pela própria imagem, morre fascinado, pois, totalmente paralisado, desistiu até dos
cuidados com a alimentação. Podemos pensar que Narciso não teve um semelhante
que lhe apontasse essa imagem como sua, conferindo-lhe uma unidade e uma
diferenciação do mundo externo.
O sujeito precisa da ilusão alienante e ao mesmo tempo constituinte da captura
da própria imagem, em que é necessário o olhar de um outro que idealize essa
imagem. Isso posteriormente leva o sujeito a interrogar a própria identidade e o
próprio desejo, abrindo a possibilidade desse sujeito se reinventar, isto é, apropriar-se
a sua maneira do que o outro lhe ofereceu num primeiro momento.
9
Uma das versões mais famosas da lenda de Narciso é a do poeta romano Ovídio em Metamorfoses.
43
Portanto, o Eu Ideal - Eu construído a partir do desejo de quem inventa essa
subjetividade está implicado diretamente na construção do Ideal do Eu. Se o Eu
Ideal corresponde à primeira identificação do sujeito, o que se passa em sua
constituição é fundamental para as identificações futuras.
O fim do estádio do espelho corresponde ao início do Complexo de Édipo.
Sendo assim, está relacionado à castração e ao recalque. O colapso narcisista incita o
sujeito a construir imaginariamente o Eu Ideal e o Ideal do Eu. O Complexo de Édipo
pode ser entendido como um momento lógico organizador, que impõe a necessidade
da construção destas instâncias a partir da castração.
Freud (1914a/1996) julga que o sujeito se mostra incapaz de abrir mão de uma
satisfação que outrora desfrutou. Entretanto, esse momento de satisfação deve ser
entendido como uma construção imaginária, pois o desamparo é uma condição
humana desse sujeito imerso na linguagem desde sempre. Como o sujeito não estaria
disposto a renunciar à perfeição narcísica, ao se deparar com a própria realidade,
procuraria recuperar imaginariamente tal perfeição sob a forma de ideais. O Eu Ideal
- Eu do passado - seria construído com uma enorme onipotência para fazer frente ao
desamparo humano. O que seria projetado como Ideal do Eu funcionaria como um
“substituto” para o narcisismo supostamente perdido da infância, fantasiado sob a
forma de Eu Ideal. Portanto, a formação dos ideais seria um fator condicionante do
recalque.
Retomando a noção de uma pré-história do sujeito, podemos dizer que a
construção das instâncias ideais está necessariamente intrincada na trama
fantasmática dos pais ou de, pelo menos, um outro sujeito. Logo, as instâncias ideais
44
podem ser construídas de maneiras diversas nas diferentes formas de subjetividade. O
sujeito é inventado e convidado a se re-inventar a todo momento e esses movimentos
só são possíveis mediante a construção dessas instâncias e a possibilidade de ‘‘jogar’’
com elas. Dessa forma, o sujeito é inserido na temporalidade “passado-presente-
futuro”, podendo se apropriar de um projeto com a marca da historicidade. Isto é, o
sujeito tem a sensação de continuidade no tempo, já que a noção de Eu proporciona a
certeza do “si mesmo”; da identidade que lhe permite construir uma narrativa de vida.
1.5 - As instâncias ideais e o tempo da antecipação
Operar no tempo da antecipação é uma função do Eu, que se defende da
surpresa. No texto de 1916, “Sobre a transitoriedade”, Freud postula que a
transitoriedade, e mais especificamente a finitude enquanto escassez no tempo, é o
que sentido à vida. Neste texto, Freud afirma que se as coisas belas são
transitórias, deveriam ser mais valorizadas. Quando isso não ocorre, ou melhor,
quando um desinvestimento destas em função da finitude, teríamos em processo
uma antecipação do luto. Assim, encontramos em Freud uma concepção de aparelho
psíquico funcionando num registro antecipatório. Com isso, Freud aponta para outra
modalidade de tempo, diferente da posterioridade ou do a posteriori (Nachträglich).
Trata-se de outro modo de funcionamento psíquico que opera em função da
propriedade do aparelho de interpretar, significar. Esta passagem abre para a questão
da construção do Ideal do Eu, que antecipa o futuro para fazer frente à castração; ao
desamparo.
45
A inserção na temporalidade das instâncias ideais, que apontam para o
passado, o presente e o futuro, indica a finitude. Ao mesmo tempo que a idéia de
finitude de morte - traz consigo o desamparo da própria condição humana, é esse
limite que movimenta o sujeito na vida. Diante desse limite, o sujeito erige ideais e
isso abre caminho para ele se reinventar, escolher objetos, transferir. Ademais, a
construção das instâncias ideais é o que permite ao sujeito lidar com o desamparo.
Afinal, o Ideal do Eu funciona como uma “promessa de felicidade”, uma promessa de
recuperação do Eu Ideal.
Constatamos, então, que o Ideal do Eu pressupõe uma capacidade de
antecipação. Para que ele seja instituído, é necessário que o sujeito se imagine no
futuro. É preciso que o futuro seja antecipado. Aqui vemos o funcionamento da
propriedade do Eu de antecipar. Como havíamos afirmado, é uma outra modalidade
temporal, diferente da posterioridade. Todavia, isso não constitui um impedimento do
funcionamento do psiquismo no tempo do a posteriori. O aparelho psíquico lança
mão concomitantemente de diversas modalidades de temporalidade. Neste contexto, o
Eu antecipa o futuro e constrói a imagem de um Ideal do Eu. Imagem que pode ser
modificada ao longo do tempo. O discurso do sujeito sobre si pode ser reelaborado.
Esse é o movimento próprio do psiquismo.
1.6- A segunda tópica freudiana: Eu, Supereu e Isso
A segunda tópica proposta por Freud traz à tona questões importantes para
nossa proposta de fazer um mapeamento das modalidades de temporalidade presentes
46
em sua obra. Vimos que a questão do tempo perpassa a constituição subjetiva e a
constituição do próprio aparelho psíquico. Assim, a construção da segunda teoria
pulsional, com a introdução da pulsão de morte, e a proposta de outro modelo de
aparelho, que não funciona apenas no registro da representação, alargam o conceito
de inconsciente e, necessariamente, a idéia de tempo.
Neste contexto, para discutirmos as questões pertinentes a essa segunda
tópica, começaremos por explicar o que levou Freud a sua postulação e em seguida
nos propomos a descrever o novo modelo de aparelho psíquico em conformidade com
a segunda teoria das pulsões.
O texto Sobre o narcisismo: uma introdução” (FREUD, 1914a/1996) foi
construído para responder a Jung, que questionou o lugar do Eu na teoria freudiana,
pondo a prova a própria fundamentação psicanalítica na sexualidade. Freud não
admitiu o monismo pulsional proposto por Jung:
“Podemos, então, repudiar a asserção de Jung, segundo a qual a
teoria da libido não só malogrou na tentativa de explicar a demência
precoce, como também, portanto, é eliminada em relação às outras
neuroses” (FREUD, 1914a/1996, p.88)
É neste contexto que Freud tenta manter o dualismo pulsional através do
embate entre a pulsão sexual e a pulsão do Eu ou de autoconservação, mas articula o
Eu à sexualidade ao propor a libido do Eu. Ora, se libido é a energia da pulsão sexual,
temos aqui uma pulsão sexual dirigida ao Eu. E qual o sentido daquele dualismo?
47
Por conta desta questão é que o artigo de 1914 é considerado um texto de ‘‘virada’’.
Freud procura sustentar sua idéia sobre a dualidade pulsional, mas não consegue de
forma satisfatória. Por isso propõe um outro dualismo pulsional, baseado no
confronto entre a pulsão de vida - englobando as pulsões sexuais e de
autoconservação - e a pulsão de morte. Um pouco mais tarde, apresenta uma segunda
tópica que vai dar conta da nova teoria sobre as pulsões.
No texto de 1923, O Ego e o Id”, Freud delineia a segunda tópica, onde o Eu
ganha o estatuto de lugar psíquico (instância) e desenvolve a idéia de um Eu que é
também inconsciente e serve a três senhores: ao Isso, ao Supereu e ao mundo externo.
Neste contexto, Freud indica que o Eu é um precipitado de catexias objetais
abandonadas e que ele contém a história dessas escolhas de objeto.
Nesta perspectiva O conceito de identificação passa a ser essencial para o
entendimento da constituição do Eu. Em O Ego e o Id(1923a/1996), Freud supõe
que se o Eu fosse somente uma parte do Isso modificada pela influência do sistema
perceptivo, teríamos um simples estado de coisas a tratar, já que o Eu seria apenas o
representante na mente do mundo externo real. Mas, segundo Freud, o Eu não se
restringe a ser uma parte do Isso; existem outras questões que devem ser levadas em
conta acerca do Eu.
Em primeiro lugar, considera que as considerações feitas no texto Sobre o
narcisismo: uma introdução (1914a/1996) ainda são válidas. No artigo de 1914,
Freud ressalta que não nos surpreenderíamos se encontrássemos um agente psíquico
especial que realizasse a tarefa de assegurar a satisfação narcísica proveniente do
Ideal do Eu, comparando o Eu real ao Ideal. Para Freud, o Ideal do Eu impõe severas
48
condições à satisfação da libido por meio de objetos, fazendo com que alguns sejam
rejeitados por um censor por serem incompatíveis com o ideal. Porém, Freud ainda
supõe que a consciência possuiria as características exigidas para exercer essa função
de agente observador. No texto de 1923, Freud coloca que a parte do Eu que exerceria
essa função - denominada Supereu - estaria menos firmemente vinculada à
consciência. Cabe indicar que nesta época, Freud ainda utiliza os termos “Supereu” e
“Ideal do Eu” indiscriminadamente; dez anos depois, nas Novas Conferências
Introdutórias à Psicanálise (1933), o Supereu torna-se o agente que mede a
distância entre o Eu real e o Ideal do Eu (LEMAIGRE, 1996).
No texto O Ego e o Id (1923a/1996), Freud postula que o Supereu é o
herdeiro do Complexo de Édipo. O resultado do Complexo de Édipo seria a formação
de um precipitado no Eu. Esta modificação do Eu retém a sua posição especial e se
confronta com os outros conteúdos do Eu.
Contudo, o Supereu não se restringe a mero resíduo das primitivas escolhas
objetais do Isso; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas
escolhas. A sua relação com o Eu não se exaure com o preceito: ‘Você deveria ser
assim (como o seu pai)’. Ela também compreende a proibição: ‘Você não pode ser
assim (como o seu pai), isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas
são prerrogativas dele.’ Esse aspecto duplo deriva do fato de que Supereu tem a
missão de recalcar o Complexo de Édipo, o que não é tarefa fácil. Os pais da criança,
e especialmente o pai era percebido como obstáculo à realização dos desejos
edipianos, de maneira que o Eu infantil fortificou-se para a execução do recalque
erguendo esse mesmo obstáculo dentro de si próprio. Para realizar isso, tomou
49
emprestado, por assim dizer, a força ao pai, e este empréstimo constituiu um ato
extraordinariamente momentoso. O Supereu retém o caráter do pai e quanto mais
poderoso o Complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir ao recalque, mais
severa será posteriormente a dominação do Supereu sobre o Eu, sob a forma de
consciência ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa. Freud ainda ressalta
que o Supereu se manifesta sob a forma de um imperativo categórico e coloca que tal
como a criança esteve um dia sob a compulsão de obedecer aos pais, o Eu se submete
ao imperativo categórico de seu Supereu.
A relação do Supereu com o complexo paterno resulta da transformação dos
investimentos objetais do Isso em identificações (apropriação dos investimentos
objetais abandonadas pelo Isso). O Supereu permanece próximo ao Isso e pode
representá-lo perante o Eu. Ele está profundamente mergulhado no Isso e se encontra,
por essa razão, mais distante da consciência do que o Eu. Ele revela, assim, toda a
violência coercitiva do caos pulsional que é o Isso (LEMAIGRE, 1996).
Freud (1923a/1996) esclarece que o Eu é uma parte especialmente
diferenciada do Isso e forma o Supereu a partir do próprio Isso. Sendo assim, a
comunicação abundante entre o Supereu e esses impulsos inconscientes do Isso
soluciona o enigma de como é que o próprio Supereu pode, em grande parte,
permanecer inconsciente e inacessível ao Eu.
Mas também podemos entender que por meio do Supereu se inscrevem no
psiquismo as marcas de suas relações objetais e, conseqüentemente, as marcas da
influência do mundo externo. O Supereu reúne em si influências que vêm tanto do
50
Isso quanto do mundo externo e, de certo modo, é um modelo ideal para aquilo a que
visam todas as tendências do Eu, a saber, a reconciliação de suas múltiplas
vinculações (LEMAIGRE, 1996).
Retomando o problema das funções do Eu, Freud afirma que esta instância
está voltada para o mundo externo, é o meio de percepção daquilo que surge de fora,
mas é o órgão sensorial de todo o aparelho, sendo receptivo às excitações
provenientes de fora e também àquelas que emergem do interior do aparelho. Assim,
está adaptado para a recepção de estímulos e funciona como escudo protetor contra os
estímulos. A relação com o tempo seria introduzida no Eu pelo sistema perceptual; o
modo de atuação do sistema egóico daria origem à idéia de tempo. Lembremos que o
Eu tem tendência à síntese de seu conteúdo, à combinação e à unificação nos seus
processos mentais.
1.7 - O Isso e o aparelho psíquico da segunda tópica
O Isso é descrito de acordo com a maior parte das propriedades do
inconsciente enquanto sistema apresentado na primeira tópica (LAPLANCHE E
PONTALIS, 1992). Não reconhece a passagem do tempo; a lógica do pensamento
consciente não se aplica a ele, acima de tudo, quanto à contradição: impulsos
contrários existem lado a lado. Freud ainda acrescenta, na “Conferência XXXI”
(1933/1996), que o Isso se encontraria aberto a influências somáticas. Como podemos
51
compreender essa afirmação? Para dar conta desta questão cabe fazer uma pequena
digressão.
Como vimos, desde 1900, a primeira tópica freudiana privilegia a dimensão
representacional. O aparelho psíquico delineado no capítulo sete de “A Interpretação
dos sonhos” funciona num registro puramente representacional, visto que os traços
mnêmicos são concebidos como elementos fundamentais para o estabelecimento de
sua dinâmica. A partir daí, Freud se refere ao aparelho psíquico como uma rede
associativa de representações. No entanto, em artigos anteriores como o de 1895
“Projeto para uma psicologia científica” e na Carta 52” (1896), Freud apresenta
questões que ultrapassam o registro representacional. Nesta última Freud propõe um
modelo de aparelho psíquico em que o primeiro registro, o primeiro tempo, abarca os
signos de percepções, impressões anteriores aos traços mnêmicos.
Segue abaixo uma apresentação do modelo de aparelho psíquico apresentados
por Freud na “Carta 52” (1896):
W (Wahrnehmungen) : percepções
Wz (Wahrnehmungszeichen) : signos de percepção
Ub (Unbewusstsein) : inconsciência
52
Vb (Vorbewusstsein) : pré-consciência
Como podemos observar, nesta carta temos três registros de memória. W
(Wahrnehmungen) corresponde à percepção consciente, que, enquanto tal, não
conserva nenhum traço de memória; visto que consciência e memória são
excludentes. Wz (Wahrnehmungszeichen) é o primeiro registro das percepções, já que
o psiquismo filtra as mesmas para se proteger das grandes intensidades; corresponde
aos signos de percepção, praticamente incapazes de se tornar conscientes e se
dispõem conforme as associações por simultaneidade. Ub (Unbewusstsein)
(inconsciência) é o segundo registro, disposto de acordo com as relações mais
próximas do que denominamos “causais”. Os traços Ub correspondem a lembranças
sem acesso à consciência. Vb (Vorbewusstsein) (pré-consciência) é o terceiro registro,
ligado às representações verbais; correspondendo ao Eu. Os traços mnêmicos
provenientes de Vb tornam-se conscientes de acordo com determinadas regras.
Teríamos aqui uma consciência secundária do pensamento, posterior no tempo e que
se liga à ativação alucinatória das representações verbais, pois os neurônios da
consciência seriam também neurônios da percepção, incapazes de reter memória.
Cada transcrição inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação. Quando
uma transcrição falha, a excitação é manejada segundo as leis do registro anterior.
O que vemos na “Carta 52” (1896), portanto, é um aparato psíquico que
funciona incluindo registros de memória para além da representação. Na segunda
53
tópica, Freud retoma esta questão: aquilo que não se inscreve; não se constitui como
traço. O que leva Gondar a afirmar:
“Agora, porém, Freud nos fala de algo que não pode ser lembrado e
nem esquecido, na medida em que permanece irrepresentável: não se trata
de um saber que não se sabe, mas de algo que é impossível saber. Nem
tudo poderá se transformar em produção discursiva” (GONDAR, 1999,
p.31)
Nesta direção, na segunda tópica, ao abordar o Isso e a pulsão de morte, Freud
não se restringe a pensar somente no registro da inscrição psíquica.
A pulsão de morte, como veremos adiante, é apresentada enquanto pura força
pulsional. Encontra-se fora dos domínios da representação.
O Isso, por sua vez, ultrapassa o registro representacional, na medida em que é
maior do que o recalcado e é concebido como lugar das paixões (FREUD,
1923a/1996). Mais tarde, na Conferência XXXI(FREUD, 1933/1996), Freud chega
a descrever o Isso como um lugar de caos; um caldeirão de agitação fervilhante; o
lugar primeiro das pulsões, desconhecedor da noção de tempo (o que, segundo ele,
mereceria destaque por desafiar a filosofia).
Desta forma, podemos falar na presença de um registro puramente intensivo
no Isso; uma memória intensiva como o primeiro registro dos signos de percepção.
Sendo assim, o psiquismo não é regido apenas pelo tempo do a posteriori na
medida em que não estamos mais referidos apenas ao registro representacional.
54
1.8 - A repetição no sonho traumático e a pulsão de morte
É no artigo de 1920 que Freud se depara com a compulsão à repetição da
neurose traumática, algo que não é da ordem do prazer, mas aponta para um além do
aparato psíquico, ou seja, para a pulsão de morte. Freud vai mostrar que o sonho na
neurose traumática não corresponde à realização de desejo, nem o que está aqui em
questão é uma formação de compromisso. Trata-se de uma resposta a um excesso
que irrompe no psiquismo, derrubando as barreiras de proteção. Esse excesso precisa
ser descarregado e coloca o aparelho funcionando no sentido de um retorno a um
“estado anterior de coisas” (FREUD,1920/1996, p.47), ou seja, para que um estado de
quietude se instale (princípio de Nirvana). No entanto, essa descarga total não está de
acordo com o princípio de prazer, que não funciona para a manutenção de um
mínimo de energia circulante (princípio de constância).
Neste texto, Freud descreve o aparelho psíquico como um aparelho de captura
de energia, privilegiando o aspecto econômico. E assim Freud retoma toda a
discussão acerca do princípio de prazer do ponto de vista energético para postular o
que está para além. Sob esta perspectiva, em resumo, Freud relaciona a pulsão de
morte à energia livre. Lembremos que a descarga deve ser possibilitada pela
representação, ou seja, é necessário haver a captura da energia e sua inscrição no
psiquismo através dos representantes da pulsão. Posteriormente, teremos a ligação do
afeto à representação. A primeira ligação (Bindung) corresponderia à inscrição da
pulsão no registro psíquico através de seus representantes. Freud denomina essa
configuração da pulsão como “sexual”. A pulsão, após essa primeira ligação, tornar-
55
se-ia sexual. A ligação promove a organização do aparelho, uma ordenação no caos
pulsional:
“A ligação corresponde à transformação da energia livre em
energia ligada. São essas ligações, anteriores à própria vigência do
princípio de prazer, que vão constituir um primeiro esboço de organização
a partir do Isso (...) O Eu, portanto, não é o agente da ligação, mas um
efeito dela” (GARCIA-ROZA, 2001, p.150)
A pulsão de morte é a pulsão por excelência; não inscrita; a primeira pulsão.
Assim, ela é pura força, energia dispersa. Logo, a pulsão de morte presentifica o que
não ganha sentido. Assim, a cena do trauma na neurose traumática se repete no tempo
do presente, caracterizando uma compulsão. Isso se dá devido ao esforço da pulsão de
vida no sentido de ligar, inscrever, significar. Enquanto a pulsão de morte tem um
caráter disruptivo, a pulsão de vida trabalha no sentido de promover ligações. Pulsões
de morte e de vida se apresentam imbricadas e, por isso, o que não é significado
insiste - através da repetição – na tentativa de se fazer representar.
A este respeito, temos o desenvolvimento de Zaltzman (1993), que denomina
a pulsão de morte como “pulsão anarquista”, destacando seus destinos a favor da
vida. Para a autora, a pulsão de morte não se reduz a um funcionamento mortífero.
Ela destrói toda relação fixa estabelecida nos processos subjetivantes, inclusive as
relações patológicas. D seu caráter anarquista de renovação. No caso das
experiências-limite, apenas a resistência da pulsão de morte é capaz de afrontar o
perigo.
56
A pulsão de morte instaura mecanismos a favor da vida para lidar com a
experiência-limite. A compulsão à repetição é um exemplo. Zatzman define a
compulsão à repetição como um ordenamento da pulsão de morte: A narrativa das
pulsões de morte no inconsciente divide suas figuras com o registro libidinal, mas as
ordena diferentemente” (Zaltzman, 1993, p.92).
Como a pulsão por excelência, a pulsão de morte incita o trabalho da pulsão
de vida, que provoca a repetição na tentativa de inscrever representações e dar
seguimento às associações. Ela coloca o aparelho psíquico em trabalho.
A pulsão de morte provocaria a compulsão à repetição e esta última seria
um esforço no sentido de promover uma primeira ligação (Bindung), ou seja, uma
contenção ao livre escoamento das excitações. Segundo Cardoso: “A compulsão à
repetição parece ter um papel essencial nas origens da vida psíquica, como
mecanismo de defesa arcaico (...) sua lógica devendo ser situada aquém da do
recalcamento” (CARDOSO, 2002, p.131)
1.9- A presentificação
Neste contexto, a questão do trauma é novamente formulada por Freud em
“Além do Princípio de Prazer” (1920/1996). O trauma se mantém no presente como
um instante único sem vinculação alguma com algo capaz de significá-lo. Em 1920, a
compulsão à repetição no sonho traumático consiste na repetição da cena do trauma
sem elaboração alguma por parte do sujeito traumatizado. Ocorreria a interrupção do
processo de associação. O trauma aqui estaria relacionado à impossibilidade de
57
significação. No entanto, a cena se repete na tentativa de ganhar sentido e isso já é um
indício de captura do aparelho psíquico. O tempo aqui é o do presente, o da repetição
promovida pelas pulsões de vida no sentido de estabelecer uma ligação. Porém, não
há significação possível ainda e, portanto, não é o tempo do a posteriori que “está em
curso”. Na impossibilidade de significar a posteriori, o que resta é a repetição de uma
cena fixa, mesmo que essa repetição tenha o caráter de uma tentativa de significação
e seja uma forma de captura funcionando num registro que não é o da representação.
Logo, destacamos que o trauma na segunda tópica freudiana estaria relacionado à
problemática do tempo, num tempo que permanece sempre presente.
Enquanto o trauma na primeira tópica e até nos textos ditos pré-
psicanalíticos aponta principalmente para a possibilidade de resignificação e para o
tempo do “só depois”, o trauma na segunda tópica colocaria em primeiro plano um
tempo diferente, onde a cena é fixa e o “só depois” não pode ser agenciado.
Le Poulichet (1996) coloca este problema nos termos de duas gicas
distintas: a do a posteriori e a do a priori. O tempo do a posteriori é o lógico, da
formação do sintoma. A temporalidade do a priori remete ao instante catastrófico,
que agiria como um “buraco no tempo” (LE POULICHET, 1996, p.82).
Mas isso não quer dizer que estas modalidades de tempo não se entrelacem, pois
essas modalidades de temporalidade não se excluem, ao contrário, podem coexistir.
Portanto, na segunda tópica depreendemos a noção de tempo presentificado e,
no entanto, também encontramos um aparelho psíquico que funciona por associações,
no registro da posterioridade. Da mesma forma, na primeira tópica, encontramos
alguns pontos que nos remetem a esse tempo presentificado. Destacamos, a este
58
propósito, a noção freudiana de umbigo do sonho, lançada no texto de 1900, como
um exemplo bastante rico.
Lembremos que, para Freud (1900), os pensamentos oníricos não têm uma
única causa, ou melhor, uma única interpretação. Eles se enredam em uma intrincada
rede de associações. Um conteúdo manifesto do sonho pode levar o sujeito a uma
pluralidade de pensamentos latentes. Isso se deve à idéia freudiana de
sobredeterminação, que caracteriza as formações inconscientes como um todo. Como
vimos, a lógica inconsciente permite a convivência de contradições, de idéias
antagônicas, etc. O inconsciente se organiza através dos mecanismos de condensação
e deslocamento. Sendo assim, a sobredeterminação é condição de possibilidade para o
inconsciente freudiano.
No caso dos sonhos, várias interpretações são possíveis e isso aponta para a
idéia de superinterpretação. Isso quer dizer que uma interpretação simplesmente não
basta. Ela sempre será substituível porque não existe uma única interpretação
verdadeira. E de acordo com a lógica que rege o inconsciente, temos que nenhuma
interpretação é falsa, mesmo que tenhamos duas interpretações antagônicas para um
mesmo conteúdo. Por isso, Freud acaba por incluir o relato do sonho como parte do
trabalho onírico. Neste relato, o sonhador daria continuidade às suas associações
iniciadas no próprio sonho. Porém, Freud se refere a um momento em que a
associação do sonhador é paralisada. Existem cenas que apenas ficam registradas na
memória do sonhador, mas a elas não é atribuído qualquer sentido. Freud denomina
esses pontos cegos de umbigo do sonho. Ele o descreve como um emaranhado de
associações que não se deixa desentrelaçar. Desta maneira, com relação ao umbigo do
59
sonho, podemos pensar que o tempo em curso é o tempo presentificado. Isto é, a
rememoração de uma cena que não é dotada de sentido justamente para que ela possa
ter alguma significação. No entanto, é este ponto sem sentido do sonho que coloca o
sujeito em trabalho, capaz de produzir um leque de associações que não se esgotam
visto que o ponto cego não é desfeito.Temos aqui duas modalidades de temporalidade
caminhando juntas no relato do sonho: o tempo presentificado em que o sujeito se
encontra face ao umbigo do sonho, que o impulsiona a produzir associações outras a
posteriori.
Sobre este tema, David-Ménard (2000) traz uma contribuição muito
importante. Ela indica que a melhor tradução para o conceito freudiano de
Darstellung seria apresentação” ou “presentificação”. Assim, o elemento
“figurabilidade” do sonho caracterizado como Darstellung - não seria uma
representação. Não é à toa que Freud emprega esse termo em relação aos sonhos e a
certos sintomas.
“Com certeza, jogos de palavras e metáforas nos sonhos e nas
neuroses, mas, nos casos dos quais nos ocupamos, trata-se de uma
metáfora esmagada nos movimentos que petrificam e isolam o jogo dos
significantes” (David-Ménard, 2000, p.105).
Compreendemos que isso não quer dizer que todos os sonhos e sintomas
estejam no registro da presentificação, e sim que o aparelho funciona com diferentes
modalidades de temporalidade simultaneamente. Se a presentificação tem lugar
60
quando entra em cena o irrepresentável, vimos que pulsões de morte e de vida estão
sempre atreladas, dando movimento ao aparelho.
Dando continuidade a esse estudo sobre as modalidades de temporalidade
presentes no processo de subjetivação e no próprio funcionamento psíquico,
abordaremos, no próximo capítulo, a obra de Ferenczi.
Veremos como Ferenczi conjuga as idéias de atemporalidade inconsciente,
lógica do a posteriori, tempo presentificado e o funcionamento antecipatório do Eu.
Além disso, Ferenczi é um autor bastante importante no que diz respeito à discussão
sobre as impressões, os signos de percepção - esse registro anterior à inscrição, mas
que instaura uma forma de lidar com o que é da ordem do excesso; da pulsão de
morte.
61
CAPÍTULO II
TRAUMA E TEMPORALIDADE: A PERSPECTIVA FERENCZIANA
No segundo capítulo vamos nos debruçar sobre o pensamento de Ferenczi, um
dos principais interlocutores de Freud que, sempre guiado pela clínica, mais
especificamente por uma “clínica dos casos difíceis”, inovou com algumas idéias
relativas à temporalidade, à técnica da psicanálise
10
e ao corpo.
Com o objetivo de ampliar nossa discussão sobre a temporalidade e sua
implicação no processo de subjetivação, vamos nos voltar, neste capítulo, a questões
colocadas a partir da construção freudiana da segunda teoria das pulsões e da segunda
tópica. Depreenderemos dos textos de Ferenczi preciosas contribuições neste sentido.
No presente trabalho vamos abordar alguns dos principais textos de Ferenczi
tendo como fio condutor a questão do tempo e para tratar dessa problemática é
necessário proceder a uma análise criteriosa do conceito de introjeção em Ferenczi,
um conceito-chave em sua produção teórica. Ademais, o tema do tempo está
articulado à introjeção como produtora de subjetividade.
2.1- Introjeção, corpo e trauma
A introjeção é o mecanismo que funda o aparelho psíquico; é como o esboço
de uma formação egóica. A introjeção é a forma de funcionamento do aparelho
10
Suas contribuições acerca da técnica, examinaremos no quarto capítulo desta tese.
62
psíquico que compreende a introdução primeiramente dos afetos (tonalidades do
diferencial prazer e desprazer) e posteriormente dos objetos externos na esfera do Eu
como um “alargamento do Eu”. Ferenczi afirma textualmente que “o neurótico
procura incluir em sua esfera de interesses uma parte tão grande quanto possível do
mundo externo, para fazê-lo objeto de fantasias conscientes ou inconscientes
(FERENCZI, 1909/1992, p.84, grifo nosso). Assim, é através da introjeção que o
sujeito pode atribuir sentido ao mundo e a si mesmo.
O conceito de introjeção é bastante abrangente, de modo que, para Ferenczi,
as primeiras impressões do sujeito, os primeiros registros sensoriais, seriam
introjeções. Ferenczi nos diz que tudo começa no corpo. Todas as experimentações
do sujeito se iniciam no próprio corpo. Esse corpo se deixa afetar pelo mundo ao
mesmo tempo que compreende o mundo através dele mesmo. O sujeito primeiro
experimenta o corpo para depois experimentar o mundo. Assim, o Eu descobre o
mundo numa comparação ao que é conhecido: o corpo e suas intensidades. Nesta
perspectiva:
“As percepções e a organização das percepções que se o nesse
plano de semiotização por intermédio do processo de introjeção
constituem ‘a nova ação psíquica’ (...) O eu não é tematizado aqui como
uma instância psíquica constituída, e sim como a capacidade característica
do ser humano de se singularizar como membro de um coletivo, no quel
atua como elemento que afeta e é afetado. Essa mútua capacidade de
afetação compõe a matéria introjetada que constitui o ‘mundo próprio’ do
eu” (REIS, 2004, p.112)
63
Em “O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estádios”
(1913/1988), Ferenczi afirma que o sujeito, em certo momento, é obrigado a
distinguir as coisas que resistem à sua vontade, e por isso são sentidas como
malignas, do seu próprio Eu. Isso corresponderia à distinção entre os conteúdos
psíquicos subjetivos sentimentos - e os conteúdos objetivados impressões
sensíveis. A introjeção seria o primeiro estádio em que todas as experiências
permanecem incluídas no Eu; um estádio de onipotência. O estádio de realidade
corresponderia à fase de projeção do desenvolvimento do Eu, quando a criança
investe no mundo externo com qualidades que descobriu em si mesma. Ou seja, ela se
relaciona com o mundo tentando encontrar nele qualquer semelhança com seu corpo,
seus órgãos e o funcionamento destes. A criança atravessaria, com isso, um período
animista em sua apreensão da realidade.
Neste sentido, Ferenczi inclui o narcisismo como um estádio de onipotência
do erotismo e ressalta que o narcisismo persiste, ou seja, não é superado. Sendo
assim, é possível conservar a ilusão da onipotência por toda a vida. Esta será
imprescindível face a qualquer estado de desamparo.
O narcisismo protegeria o sujeito diante da catástrofe que é o
desenvolvimento do Eu. Para o autor, o desenvolvimento do sentido de realidade é
alcançado através de “arrancadas sucesssivas de recalcamento, a que o ser humano
é constrangido pela necessidade, pela frustração exigindo adaptação...”
(FERENCZI, 1913, p.86). Assim, o narcisismo propiciaria sentimento de onipotência
suficiente para a produção de ficções sobre heróis, princesas, magos e tudo aquilo que
o adulto insere no mundo infantil sobre seus desejos insatisfeitos e recalcados.
64
Na realidade somos fracos e os heróis do conto serão então fortes
e invencíveis; somos limitados pelo tempo e pelo espaço em nossa
atividade e em nosso saber: nos contos, vive-se eternamente, está-se em
mil lugares simultaneamente, prevê-se o futuro e conhece-se o passado”
(FERENCZI, 1913, p.87).
Assim, temos em Ferenczi uma idéia de constituição subjetiva traumática, que
se dá através de sucessivas catástrofes. São rupturas nas formas de organização do Eu
e do mundo. Por isso a denominação de estádios do sentido de realidade. Não são
estádios os quais o sujeito precisa superar para se desenvolver. São formas de
organização psíquica que não são superadas e podem ser “reativadas” a qualquer
momento. Afinal, o inconsciente é atemporal, ou melhor, tudo permanece no
presente, e assim, todos esses tempos dos estádios do sentido de realidade são
conservados.
O narcisismo, com sua característica de propiciar o sentido e a unidade,
responde ao processo que se por sucessivas catástrofes, minimizando os efeitos do
trauma. Também temos em Ferenczi a imagem de um Eu que se refaz na relação com
o mundo, através da introjeção. Isso estaria bem próximo da idéia freudiana de que o
Eu é a história de seus investimentos objetais. O sujeito, então, pode se preparar para
a surpresa através da antecipação e se defender com a busca de sentido para os
acontecimentos. Logo, o sujeito lança mão do a posteriori para significar e do tempo
da antecipação para lidar com o futuro desconhecido. Afinal, os traumas não cessam
de ocorrer com a entrada do sujeito numa ordem social (FERENCZI, 1927/1992).
65
Portanto, para Ferenczi, o encontro do sujeito com o mundo é traumático por
excelência. A própria introjeção é, a princípio, da ordem do excesso pulsional.
“É a introjeção desse “outro” possuidor de um código e de uma
linguagem que ultrapassam as capacidades do bebê que, ao forçar
barreiras e criar novas capacidades, constitui o paradoxo presente no
caráter traumático dos processos de estruturação psíquica” (REIS, 2004,
p.62).
Cabe a um outro significar o que deve ser introjetado, propiciando a ligação
entre o afeto e a representação; a integração entre o sentido e a intensidade. Por isso
podemos afirmar que o trauma não é, em si, nem constitutivo, nem desestruturante ou
patológico. O que define o trauma de uma forma ou de outra é justamente seu destino.
Se esse excesso receber um contorno, ele será constitutivo. Se o trauma não entrar no
campo da possibilidade narrativa, a ponto de ser capaz de colocar em xeque a
montagem narcísica do sujeito, ele será desestruturante. É importante ficarmos
atentos para esse apontamento de Ferenczi: o trauma desestruturante se configura a
partir da perda da certeza de si.
Além disso, apesar do trauma estar relacionado ao irrepresentável, nem tudo o
que se encontra fora do campo da possibilidade narrativa é traumático. As primeiras
impressões do bebê, fora do campo representacional, permanecem apenas como
impressões sensíveis, nunca se transformando em texto. Elas estariam no registro dos
signos de percepção apresentados por Freud na “Carta 52” (1896a/1996),
correspondendo a uma memória intensiva. Nesta direção, Ferenczi nos fala da
66
conservação de uma intensidade como uma memória no registro corporal. Na
concepção ferencziana, portanto, o corpo tem função de memória. Sua obra dá lugar a
um “corpo que pensa”, ou seja, um corpo que funciona como um lugar psíquico.
Para o autor (FERENCZI, 1920-1932/1992), nos primeiros anos de vida, as
crianças não têm consciência do desenvolvimento das coisas, mas apenas sensações e
reações corporais às mesmas. A “lembrança” permanece imobilizada no corpo e
somente aí pode ser despertada. O corpo é capaz de despertar lembranças de qualquer
tempo. Ou seja, Ferenczi aponta para dois “destinos” possíveis da memória:
articulada enquanto uma seqüência de idéias e gravada no corpo. Em nossa
concepção, a memória corporal pode ser compreendida como uma marca, o primeiro
registro de elaboração mnêmica apontado por Freud na Carta 52’’ (1896a), um
primeiro momento intensivo caracterizado pelos signos de percepção. Seu destino
pode ser a ligação do afeto à representação ou mesmo sua conservação como uma
impressão sensível. Essas idéias estão de acordo com o modelo de aparelho psíquico
reformulado por Freud (1933/1996) na Conferência XXXI”, onde fica sugerida uma
ligação do Isso com o somático.
É nesse sentido que Ferenczi (1921a1993, p.88) aborda o “sistema mnésico do
ego” como tendo a tarefa de gravar os processos psíquicos ou somáticos do sujeito e
faz um estudo acerca dos tiques como uma lembrança traumática, concluindo que os
tiques não podem ser entendidos como um sintoma que faz acordo; eles seriam
derivados de ações estereotipadas, pois estes apontariam para “uma fixação mnêmica
excessiva na atitude que tinha o corpo no preciso momento do traumatismo”
(FERENCZI, 1921a/1993, p.89).
67
Ferenczi também enfatiza o que ele nomeia de “linguagem dos órgãos”
(FERENCZI, 1932/1990, p.38), apostando numa possibilidade do corpo exprimir
desejos e sensações. De acordo com Ferenczi, o corpo é capaz de materializar desejos
reprimidos. Como afirma Abraham (1964, p.17), na apresentação de “Thalassa”
(FERENCZI, 1924/1967, p.17): “Assim, utilizamos nosso corpo para a simbolização,
como o artista se serve de seus materiais para criar a obra de arte”. A
“materalização histérica” (FERENCZI, 1919/1993, p.41) é o que escapa à
significação e encontra no corpo uma possibilidade de “se fazer falar”, ou melhor, de
descarregar. Esses fenômenos de materialização, tais como ruborizar ou ter um
“ataque de riso”, serviriam para a realização gica de um desejo via corpo. Aqui, o
corpo tem total “maleabilidade” e é despertado para concretizar representações
plásticas. A materialização remonta a um tempo arcaico, aos primeiros estádios do
desenvolvimento do sentido de realidade, quando o bebê só podia reagir ao mundo
através de reações corporais como o choro, o grito, o enrijecimento do corpo, etc.
Portanto, podemos dizer que o corpo é um elemento fundamental para
Ferenczi pensar a subjetivação. Ele serve como registro de memória para o que não é
representável e é um recurso para a simbolização. Mas é a partir da introjeção que o
sujeito pode fantasiar, associar e produzir imaginariamente (PINHEIRO, 1995b). O
trauma constitutivo é relacionado aos mecanismos da introjeção e Ferenczi destaca o
papel do outro, como catalisador, na organização da subjetividade. Desta maneira,
esse processo também compreende a transferência e a identificação. “O mecanismo
dinâmico de todo amor objetal e de toda transferência para um objeto é uma
extensão do ego, uma introjeção” (FERENCZI, 1912/1992, p. 182). Para Ferenczi, o
68
objeto de amor é introjetado e integrado ao Eu. Essa seria a origem da identificação.
A criança se apropria do adulto, de suas qualidades, tornando este adulto um
semelhante, e mais propriamente, alguém igual a ela. Ela chega a sentir prazer em
obedecer aos pais e reafirmar a onipotência dessas figuras, pois é uma forma de se
apropriar dessa imagem onipotente. Com isso, qualquer movimento desse adulto, que
venha perturbar esse equilíbrio, provoca a cisão do Eu.
2.2- Quando o tempo pára: o trauma desestruturante
Na construção de uma teoria do trauma desestruturante, Ferenczi (1933/1992)
monta uma cena mítica: a criança seduz um adulto no registro da ternura (“linguagem
da ternura”) e o adulto faz uma leitura dessa sedução a partir da “linguagem da
paixão”. Vale ressaltar que Ferenczi distingue criança e adulto justamente através
dessas duas “leituras de mundo”. A princípio, a confusão de línguas é inevitável e
estruturante. “É responsável pela transmissão de toda sorte de interditos, regras e
tabus impostos pela sociedade e cujo porta-voz é o adulto” (PINHEIRO, 1995, p.80).
A linguagem da criança é a da ternura, que ela ainda não se reconhece num mundo
de parcialidades, no mundo da diferença sexual e do recalque. Esse é o mundo
habitado por sujeitos inseridos na linguagem da paixão. Assim, a sedução da ternura é
lúdica, narcísica. Mas a linguagem da paixão pode fazer o adulto “perder a cabeça”,
agindo unicamente guiado pela paixão. Ocorre, então, uma confusão de línguas capaz
de resultar na violência sexual praticada por um adulto em quem a criança confia e
que se sente absolutamente culpado após o ato. A criança, sem poder dar sentido ao
69
que acabara de acontecer, procura um outro adulto - em quem deposita uma cega -
que possa ajudá-la a compreender o ocorrido. Porém, não suportando ouvir o relato
da criança, esse adulto a desmente de forma absoluta. Ferenczi considera que o
desmentido é o fator traumático, pois impede a introjeção. O fato vivido, ao invés de
ser introjetado, foi desmentido. É dessa negação que advém o trauma desestruturante:
“O pior é realmente a negação, a afirmão de que não aconteceu
nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e
repreendido quando se manifesta a paralisia traumática do pensamento ou
dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo
patogênico” (FERENCZI, 1931/1992, p.79).
Como uma saída possível, a criança se identifica com o agressor através do
sentimento de culpa. A criança não compreende o sentimento de culpa do adulto
agressor, mas esse sentimento é um indício de que aquilo aconteceu. O agressor não
pode ser abandonado, pois é ele quem detém a verdade daquele sujeito. Entre
abandonar o objeto idealizado e clivar-se, a criança escolhe a segunda opção,
introjetando o agressor e tornando-se culpada. De acordo com Ferenczi:
“A mudança significativa, provocada no espírito da criança pela
identificação ansiosa com o parceiro adulto, é a introjeção do sentimento
de culpa do adulto: o jogo até então anódino apresenta-se agora como um
ato merecedor de punição” (FERENCZI, 1933/1992, p.102).
70
Nesta situação, restaria ao traumatizado tentar significar aquela cena da
maneira que lhe fosse possível. Porém, face à impossibilidade de dar sentido ao
ocorrido, a cena não pode entrar numa cadeia simbólica. Podemos pensar que se trata
de uma imagem parada, sem enredo, sem continuidade, impossível de ser narrada,
sem historicização. O trauma em Ferenczi, portanto, pertenceria sempre ao tempo do
presente (FERENCZI, 1873-1933/1990). Ele não se encadeia numa trama,
corresponde a uma cena sem sentido que a todo tempo se repete. Aqui podemos
constatar uma correlação com as considerações feitas anteriormente sobre o tempo do
trauma na segunda tópica freudiana. Trata-se de um tipo de repetição que não produz
alteração nas significações; é uma repetição que não permite qualquer elaboração por
parte do sujeito. Em seu “Diário Clínico”, Ferenczi nos diz:
“Após a descoberta e a reconstituição do suposto trauma, registra-
se uma série quase infinita de repetições nas sessões de análise, com todas
as explosões de afeto possíveis e imagináveis. As expectativas presentes
da psicanálise justificavam a esperança de que, com cada uma dessas
explosões, uma certa quantidade do afeto represado fosse emocionalmente
e muscularmente revivido, e de que, uma vez esgotada a quantidade total,
o sintoma cessaria por si mesmo (...) Mas, na realidade, a acumulação de
experiências confronta-nos, a esse respeito, com decepções cada vez mais
freqüentes (...) Na maioria das vezes, a noite seguinte já traz um sonho de
angústia e, com ele, o material da repetição do trauma para a próxima
sessão. Tampouco se pode pretender que essas repetições, seja qual for a
freqüência de seu retorno, forneçam material fundamentalmente novo”
(FERENCZI, 1873-1933/1990, p.144/145).
71
Ferenczi (1873-1933/1990) considera como repetição também as
manifestações corporais do paciente no setting analítico que remontam ao momento
do trauma: aumento dos batimentos cardíacos, sensação de sufocamento, etc. O
desmentido inviabiliza a inscrição psíquica do trauma, mas a lembrança sensorial
marcada no corpo permanece. No trauma, a função do corpo estaria relacionada com
o que não se inscreve no psiquismo por uma recusa do outro em dar sentido ao
ocorrido. O que não ganha sentido para o sujeito apareceria em um outro tipo de
cadeia, como memória corporal. Afinal:
“Nos momentos de grande aflição, em face dos quais o sistema
psíquico o está à altura, ou quando esses órgãos especiais (nervosos e
psíquicos) são destruídos com violência, forças psíquicas muito primitivas
despertam e o elas que tentam controlar a situação perturbada. Nos
momentos em que o sistema psíquico falha, o organismo começa a
pensar” (FERENCZI, 1873-1933/1990, p.37).
Seguindo a teoria do trauma desestruturante em Ferenczi, quando ocorre o
desmentido, a criança perde a certeza de si (PINHEIRO; JORDÃO; MARTINS,
1998). O desmentido coloca o sujeito em dúvida sobre suas experiências, isto é, sobre
o que percebe. “Se a criança se recupera de tal agressão, ficará sentindo, no entanto,
uma enorme confusão (...) e sua confiança no testemunho de seus próprios sentidos
está desfeita” (FERENCZI, 1933/1992, p.102).
Podemos justificar a perda da certeza de si através da idéia de hipnose
materna/paterna (FERENCZI, 1909/1992). Não é de grande importância fazer uma
72
diferenciação entre a hipnose materna e a paterna, afinal pai e mãe trocam
freqüentemente de papéis. Mas é importante marcar que o hipnotizador é uma pessoa
que intercala uma imagem de onipotência e certo tom de intimidação com um
acolhimento tranqüilizador. Os adultos que ocupam essas funções teriam uma relação
hipnótica com a criança e, assim, a palavra deles seria da ordem de uma verdade
absoluta. Logo, na cena do trauma, a criança é capaz de duvidar de si mesma, e não
da mãe. Desta maneira, o desmentido torna o sujeito incapaz de significar suas
experiências dali em diante.
Mas a vivência do trauma arrebata o sujeito num tipo de comoção psíquica
semelhante a um estado psicótico, quando o sujeito perde sua identidade e a noção de
“si mesmo”. O choque leva à aniquilação do sentimento de si, da capacidade de
resistir, agir e pensar. Além disso, leva à perda de confiança no mundo. O seguinte
trecho do texto ferencziano nos esclarece sobre estes pontos:
“Também pode acontecer que os órgãos que asseguram a
preservação do Si mesmo abandonem ou, pelo menos, reduzam suas
funções ao extremo (...) A comoção psíquica sobrevém sempre sem
preparação. Teve que ser precedida pelo sentimento de estar seguro de si,
no qual, em conseqüência dos eventos, a pessoa sentiu-se decepcionada;
antes, tinha excesso de confiança em si e no mundo circundante; depois,
muito pouca ou nenhuma” (FERENCZI, 1934/1992, p.109)
A vivência traumática, não sendo introjetada, não é capaz de entrar em
nenhuma cadeia associativa a posteriori e a experiência de comoção psíquica fica
73
registrada no corpo. Ocorre uma clivagem no psiquismo desse sujeito, tornando a
vivência traumática inacessível à lembrança.
“Enquanto no recalcamento perde-se a memória de um primeiro
tempo, que será significado como sintoma a posteriori, em um segundo
tempo sobrecarregado de sentido, na clivagem traumática esses dois
momentos não apresentam solução de continuidade. Eles o o mesmo,
isto é, um não sentido ao outro porque ambos escapam à possibilidade
de sentido” (REIS, 2004, p.70).
Portanto, tanto a identificação com o agressor quanto o registro do trauma no
corpo seriam tentativas de significar ou, ao menos, registrar o que não pôde ser
significado e foi desmentido. Esse registro permaneceria no tempo do presente, sem
sofrer qualquer atualização, na medida em que ele é clivado.
O que Ferenczi apresenta é que o acesso ao sentido é viabilizado pelo objeto.
É o objeto quem fornece o sentido. No trauma, o outro se recusa a fornecer o sentido.
Logo, o sujeito se apropria mimeticamente do agressor, tornando-se o agressor a fim
de se apropriar de suas significações. Além disso, ainda guarda a lembrança
traumática no corpo, mas esse corpo se torna um estranho, como se não lhe
pertencesse (FERENCZI, 1873-1933/1990).
É nesse contexto que Ferenczi utiliza a noção de autotomia. Originalmente, a
autotomia corresponde ao movimento de alguns animais que destacam do corpo uma
parte deste que provoca dor ou excitação demasiada forte. Ferenczi se apropria desse
conceito, trazendo-o para o campo psicanalítico, onde a autotomia passa a constituir o
74
precursor do recalcamento, definindo-se como uma fuga psíquica diante do que
provoca dor (FERENCZI, 1928/1967).
2.3- A autoclivagem narcísica
Podemos aproximar o trauma desestruturante de Ferenczi ao modelo de
trauma da segunda tópica freudiana apenas pelo viés da repetição, que testemunha a
força da pulsão de morte. Ferenczi se diferencia de Freud, pois, ao abordar esse tipo
de trauma, indica uma possibilidade particular de subjetivação como uma saída do
sujeito. O que o autor nos lembra é que Freud propôs que os sintomas patológicos são
tentativas do sujeito curar-se a si mesmo. O que podemos entender aqui é que o
sujeito tenta se organizar psiquicamente da melhor maneira possível, mesmo que para
isso ele “lance mão” de sintomas ou defesas patológicas.
Ferenczi trata da possibilidade de uma organização psíquica nos moldes da
artificialidade identitária (1933/1992) através da noção de identificação com o
agressor. A descrição desta identificação consistiria basicamente na apropriação
mimética do agressor a fim de decifrá-lo. O sujeito se apropria mimeticamente do
outro e forja uma identidade para si. Ferenczi, inclusive, nos fala do amadurecimento
precoce “sob a pressão da urgência traumática” (1932, p.104). Isso seria uma
tentativa da criança violentada dar sentido ao ocorrido que não foi introjetado. A
violência seria desmentida, mas deixaria marcas através do enigma da culpa do
agressor lembremos que a culpa seria um elemento fundamental na medida em que
a criança da teoria do trauma não teria condições de elaborá-la. Como propõem
75
Abraham e Torok (1995), na impossibilidade de introjetar um sentido, o traumatizado
incorpora. Tal modelo de identificação com o agressor deveria ser denominado,
segundo esses autores, de incorporação. A introjeção corresponderia a um
alargamento do Eu e o objeto serviria como um mediador. Já a incorporação seria a
introdução do objeto proibido no interior de si. A incorporação comportaria um
segredo ou um não-sentido. Ainda segundo os autores, a fantasia de incorporação
seria uma linguagem, uma tentativa de significação. (ABRAHAM & TOROK,
1995.).
Encontramos significativas semelhanças entre o conceito de identificação
narcísica utilizado por Freud (1917/1996) em “Luto e Melancolia” e o conceito
ferencziano de identificação com o agressor. Abraham & Torok (1995) apontam essa
semelhança ao propor o mecanismo da incorporação.
No texto “As pulsões e suas vicissitudes (1915), numa rápida passagem,
Freud considera a incorporação ou devoração um tipo de amor que não comportaria a
separação do objeto. Em 1917, ao problematizar a melancolia, ele propõe que o
objeto é incorporado ao Eu como na fase oral canibalística. Ou seja, o objeto seria
“devorado” pelo Eu.
Esse mecanismo de oralidade também é encontrado na descrição de Ferenczi
(1932) no que viria a ser a identificação com o agressor ou a introjeção do agressor. O
autor sugere que o agressor desapareceria enquanto realidade exterior, tornando-se
intrapsíquico.
Nesta mesma visada, o que Abraham e Torok (1995) acrescentam é que o
conceito de incorporação diferentemente da introjeção - teria como pressuposto a
76
perda de um objeto. Tal perda, a do adulto em quem confiava, seria uma interdição
que impediria a introjeção. Isso aproximaria a incorporação de Ferenczi à
identificação narcísica de Freud (1917/1996), já que este postula que o objeto perdido
seria incorporado ao Eu na identificação narcísica. O Eu não se modificaria a partir da
identificação aos traços do objeto como acontece na histeria, quando o sujeito
interpreta o outro e é capaz de se colocar em seu lugar. A identificação histérica seria
uma articulação fantasmática que promoveria uma mudança no Eu. na
identificação narcísica, o sujeito se apropriaria do objeto como um todo, sem
qualquer fantasia para recobri-lo, cindindo o Eu.
Ferenczi (1931/1992) postula uma autoclivagem narcísica resultante do
abandono: “Tem-se nitidamente a impressão de que o abandono acarreta uma
clivagem da personalidade. Uma parte da sua própria pessoa começa a desempenhar
o papel da mãe ou do pai com a outra parte (...)” (FERENCZI,1931, p.76). Para
Ferenczi (1931/1992), o choque traumático permite que uma parte da pessoa
amadureça de repente a partir de um tipo de clivagem que é da ordem da
fragmentação. Haveria uma ruptura entre a parte destruída e a parte que a
destruição. Uma parte nada sabe e guarda uma lembrança sensível do trauma e a outra
parte sabe tudo e nada sente (FERENCZI, 1873-1933/1990):
“Tudo se passa verdadeiramente como se, sob a pressão de um
perigo iminente, um fragmento de nós mesmos se cindisse sob a forma de
instância autoperceptiva que quer acudir em ajuda, e isso, talvez, desde os
primeiros anos da infância. (...) as crianças que muito sofreram, moral e
77
fisicamente, adquirem os traços fisionômicos da idade e da sabedoria.
Também tendem a cercar maternalmente os outros” (FERENCZI,1931.,
p.78).
Ferenczi ainda ressalta que a clivagem psíquica tem lugar quando a criança,
incapaz de suportar a solidão, é abandonada pela falta de benevolência materna. Esse
adulto, representante do mundo externo e de quem a criança não duvida (deposita
nele uma cega), desqualifica por completo as percepções da criança, seu
sofrimento, seu prazer, enfim, seu modo de compreender e se relacionar com o
mundo.
Portanto, reconhecemos a possibilidade de um tipo particular de subjetivação
a partir de um tipo de identificação via apropriação mimética no mecanismo de
identificação com o agressor em Ferenczi. Seria uma montagem psíquica defensiva,
pois o traumatizado de Ferenczi se organizaria através da clivagem, tornando-se
cuidador de si. A criança traumatizada entraria numa temporalidade acelerada,
amadurecendo precocemente a partir da incorporação de uma linguagem que não faz
parte de seu repertório: a linguagem da paixão, cuja intensidade provoca uma ruptura
no Eu infantil.
Mas a autoclivagem narcísica de que fala Ferenczi não inviabiliza pensarmos
no recalque. São configurações que podem se apresentar concomitantemente. Afinal,
como coloca Reis (2004):
78
“Os fantasmas relacionados ao trauma são produções que convivem
com as representações inconscientes recalcadas, conferindo a elas
intensidade e fixidez em seu retorno como sintoma” (REIS, 2004,p.70).
2.4 - A função do analista
Ferenczi nos chama a atenção a todo tempo para a importância do fenômeno
da transferência, considerada por ele uma introjeção, na direção da cura. E assim,
uma lembrança sensorial do momento do trauma tem lugar no setting analítico.
Tendo em vista sua concepção de corpo autoplástico, Ferenczi afirma que o
analista deve estar atento às manifestações corporais do paciente, e não apenas a sua
fala. Esse corpo é capaz de despertar memórias arcaicas e, assim como o
inconsciente, sua memória é atemporal. Ou seja, o corpo é capaz de despertar
lembranças de qualquer tempo, trazendo essas lembranças, esses resquícios, para o
presente. Se o corpo guarda indícios de um trauma que não pode ser verbalizado, ele
deve ser visto em sua encenação até que aquele trauma que se apresenta como
memória sensível se transforme em texto. Nesse sentido, a repetição da sensação da
cena traumática no setting estaria endereçada ao analista, um outro, na verdade
entendido como um catalisador capaz de propiciar um sentido:
“(...) podemos comparar a psicanálise, na medida em que a
transferência aí desempenha um papel, a uma espécie de catálise. A
pessoa do médico atua como um catalisador que atrai provisoriamente
79
os afetos liberados pela decomposição (...)” (FERENCZI, 1909/1992,
p.80).
Nesta direção, Ferenczi é um autor que aponta para o estatuto do corpo e do
tempo no choque traumático. Na medida em que o traumatizado perde a certeza de si,
o corpo ganha a cena no setting analítico endereçando ao analista (catalisador) a
repetição da cena do trauma. Ou seja, o analista é convocado a significar/introjetar o
que não pôde ser elaborado pelo analisando. Sem a possibilidade de introjeção, a cena
vivida não ganha sentido. Sendo assim, o sujeito não se encontra no registro do a
posteriori, e sim no de uma cena fixa que se presentifica na análise. Aqui vemos uma
aproximação ao trauma freudiano do artigo de 1920. Assim como o neurótico
apresentado por Freud no “Além do princípio de prazer”, podemos dizer que o
traumatizado de Ferenczi é um sujeito que se encontra em incessante trabalho.
Trabalho no sentido de produzir uma significação; de ligar representações aos afetos
em jogo; de dar um contorno a uma intensidade causadora de angústia. No entanto,
diferentemente de Freud, Ferenczi propõe uma forma de organização psíquica
defensiva, montada em resposta ao trauma, que se constituiria na tentativa de
restabelecer a certeza de si. Essa montagem subjetiva se daria através da
autoclivagem narcísica. Daí, a angústia de que fala Ferenczi é a de uma perda radical
de identidade; a da falta de uma narrativa autêntica sobre si mesmo.
80
2.5- O sonho do bebê sábio
Ferenczi (1923 /1993) aborda um tipo de sonho, denominado “sonho do bebê
sábio”, não muito raro no discurso dos pacientes em análise. Trata-se de um sonho
em que um bebê, ou algo que o represente, se apresenta como um adulto. Esse bebê
saberia falar, escrever, discursar sobre assuntos científicos, etc.
Podemos exemplificar com o sonho de um paciente em análise. Ele conta que
o sonho parecia bobo, mas causou muita angústia, fazendo-o acordar. No sonho,
entrara uma barata em sua casa e ele logo se prontificou a matá-la. Começou a correr
atrás da barata quando, de repente, percebeu que ela usava fraldas. A barata parou
olhando fixamente em seus olhos e disse: “você não vai me matar porque eu sou mais
esperta do que você”. Neste momento, ele acordou.
Fazendo uma leitura desse tipo de sonho a partir das indicações de Ferenczi,
lembramos que as crianças pequenas têm acesso a conteúdos que mais tarde serão
recalcados. Retomando o texto freudiano de 1905, “Os três ensaios sobre a teoria da
sexualidade”, concluímos que a sexualidade é perversa-polimorfa, isto é, tem um
caráter infantil. Com o texto de 1914, “Sobre o narcisismo”, podemos ir mais longe e
afirmar que o Eu, em seu caráter mais arcaico, é infantil. O Eu real - do presente -
aceita o recalque, o desamparo, porque acredita que o Eu ideal será reeditado. “Sua
majestade o bebê” continua presente em cada um e daí a necessidade de se pensar em
partes inconscientes do Eu. Esse Eu que deriva do Isso e seus desejos infantis. O
narcisismo estará envolvido nas escolhas objetais, identificações e transferências.
Nesse sentido, Ferenczi afirma que a criança está presente em todo adulto. No mais
81
profundo de nosso ser somos crianças e o permaneceremos toda nossa vida”
(FERENCZI, 1909/1992, p.98). Afinal, conforme a atemporalidade do inconsciente,
todos os tempos do desenvolvimento do sentido de realidade podem ser reeditados,
mesmo que através de sintomas. Esse funcionamento infantil se manifesta nas
produções do inconsciente, o que inclui atos falhos, chistes e sonhos.
Sendo assim, a barata-bebê”, causadora de angústia, que deve morrer e não
provocar tumultos, é realmente mais esperta! Ela sabe daquilo que o sujeito não pode
saber.
Uma outra possibilidade de interpretação desse tipo de sonho aponta para os
efeitos do trauma desestruturante. Diante do horror desse trauma patogênico, o sujeito
experimentaria uma dor psíquica insuportável a ponto dele “escolher” aniquilar sua
consciência. Trata-se de uma comoção psíquica com efeito anestésico como um
estado de transe, quando o sujeito sente-se partir, explodir, tem dores de diferentes
tipos, sensação de sufocamento. É uma dor sem conteúdo e, portanto, inatingível pela
consciência. A criança localiza-se fora de si, fora do espaço e do tempo (FERENCZI,
1873-1933/1990). A primeira reação ao choque é semelhante a uma psicose
passageira, uma ruptura com a realidade sob a forma de alucinação negativa, que
comporta sintomas como vertigem e desmaio histérico. No entanto, logo após, o
sujeito muitas vezes experimenta a compensação alucinatória positiva, uma ilusão de
prazer. Prazer de ser ativo, executando a própria fragmentação psíquica. A criança sai
da posição de vítima e ocupa a de agressor, não precisando lidar com o abandono do
adulto (FERENCZI, 1929/1992). O choque promove uma ruptura no Eu, que resulta
na autoclivagem narcísica. Essa clivagem promove o nascimento de um bebê,
82
desprotegido e desamparado, que se transforma repentinamente num adulto.
Lembremos que a autoclivagem narcísica nos remete à imagem de um Eu
fragmentado em duas partes: uma que tudo sabe este bebê sábio e outra que
apenas sente. É claro que este saber é forjado, é a forma encontrada pela criança de
sobreviver ao impacto traumático. É um saber que causa enorme dor psíquica por ser
fruto da incorporação. “O desejo de vir a ser um sábio (...) seria apenas, portanto,
uma inversão da situação em que a criança se encontra” (FERENCZI, 1923 /1993,
p.207).
Vale ressaltar que Ferenzci enfatiza que o sonho é uma tentativa de cura
(FERENCZI, 1934/1992). Ao falar sobre os sonhos traumáticos abordados por Freud
em 1920 em Além do princípio de prazer”, ele lembra que estes preparam o sujeito
para o choque, ao dar lugar para a angústia. São sonhos que produzem angústia a fim
de proteger o sujeito do susto.
Para Ferenczi (1934/1992), o retorno dos restos do dia ou da vida não é um
produto mecânico da pulsão de repetição. uma tendência para a resolução dos
traumas e, através da realização de desejo, o sonho consegue chegar a uma solução de
forma mais ou menos satisfatória. Nesta perspectiva, o autor indica:
“Por conseguinte, os restos do dia e da vida são impressões
psíquicas tendentes à repetição, não resolvidas nem dominadas,
inconscientes e que, talvez, jamais foram conscientes, as quais surgem
mais nas condições do sono e do sonho do que em estado vígil, e
exploram para seus fins a capacidade de realização de desejo do sonho”
(FERENCZI, 1934/1992, p.112).
83
O estado do sono não favorece apenas a realização de desejo do sonho. Ele
proporciona o retorno das impressões sensíveis traumáticas, “não resolvidas, que
aspiram à resolução (função traumatolítica do sonho)” (FERENCZI, 1934/1992,
p.113).
Para encontrar um caminho para a cura, o sonho promove algumas ligações
entre afetos e representações, promove a recordação, a repetição e a elaboração. Ele
toca nos pontos mais dolorosos das catástrofes humanas. O sonho também pode
produzir associações a posteriori na medida em que faz enigma e justamente por isso
Freud (1900/1996) compreendeu o relato do sonho como efeito do trabalho do sonho.
O objetivo da análise dos sonhos é o estabelecimento de um acesso às impressões
sensíveis, para que os acontecimentos traumáticos sejam repetidos e, com a ajuda do
analista, introjetados (FERENCZI, 1934/1992). Mesmo um sonho que é pura
descrição de uma cena ou de uma sensação tem essa função de tentar significar um
trauma. Claro que, se esse trauma é um vivido inominável, o relato do sonho será
apenas uma repetição idêntica da cena. Isso evidenciará a permanência do trauma e
do sujeito - no tempo do presente, sem qualquer atualização. Mas a lembrança contida
no sonho é importante, pois faz esse sujeito entrar em trabalho. Nesse ponto Ferenczi
se importa com a qualidade do material da repetição e não somente com a intensidade
do choque provocando um “boot”
11
no aparelho psíquico. Essa lembrança versa
sobre a história do sujeito e pode vir a produzir uma narrativa, mesmo que ela seja
marcada pela literalidade.
11
Achamos interessante o uso desse termo, pois ele procura dar a imagem de um processo
aparentemente impossível pelo qual o sistema se coloca em funcionamento por seus próprios esforços.
84
CAPÍTULO III
E A QUESTÃO ATRAVESSA O TEMPO: A CLÍNICA
PSICANALÍTICA HOJE
Investigando as modalidades de temporalidade presentes no processo de
subjetivação tanto em Freud quanto em Ferenczi nos capítulos anteriores,
encontramos um tipo de temporalidade, a presentificação, comum no choque
traumático. Essa temporalidade é expressa através da repetição e da literalidade. O
discurso do traumatizado não é rico em metáforas, repleto de alegorias. Ao contrário,
é uma narrativa literal, dura, sem eufemismos. Em Freud, essa narrativa aparece no
texto de 1920 com os neuróticos de guerra. Em Ferenczi, o tempo presentificado em
que o sujeito se encontra, resultante mais claramente do trauma desestruturante,
coloca em cena a narrativa literal tanto no setting analítico quanto nos sonhos e
sintomas. Pretendemos mostrar que essa narrativa é uma resposta à catástrofe e pode
ser engendrada frente a qualquer tipo de trauma, inclusive, traumas estruturantes.
Desta forma, entendemos que o choque traumático estaria no registro do
tempo presentificado e produziria este tipo de narrativa literal. De uma maneira geral,
temos que a literalidade é conseqüência de um tempo presentificado, que está
relacionado à compulsão à repetição. Podemos fazer uma aproximação entre a
literalidade e a compulsão à repetição, pois ambas são mecanismos que buscam
promover uma primeira ligação (Bindung).
Esse modalidade narrativa não aponta necessariamente para uma configuração
traumática organizadora da subjetividade nos termos propostos por Ferenczi em
85
relação ao trauma desestruturante (1933/1992). O que encontramos na narrativa literal
é o esvaziamento do eu, a perda da autenticidade. Assim, ela se apresenta em
diferentes configurações subjetivas. O trauma desestruturante ferencziano
(FERENCZI, 1933/1992) produz uma constituição subjetiva defensiva que se dá
através da clivagem. A teoria do trauma em Ferenczi remete o sujeito a cenas literais
e clivadas, onde ele não se reconhece e guarda lembrança do ocorrido como
impressões corporais (FERENCZI, 1873-1933/1990). Como vimos anteriormente, o
que marca o trauma desestruturante é a perda da certeza de si. No choque traumático
descrito por Freud (1920/1996) não perda da certeza de si; não a produção de
uma forma particular de organização psíquica. O trauma em 1920 (FREUD,
1920/1996) inaugura uma nova dualidade pulsional no plano psíquico, quando
pulsões de vida e pulsões de morte trabalham imbricadas. Os efeitos das pulsões de
vida são agregadores e os das pulsões de morte, desagregadores. A figura da
compulsão à repetição é um bom exemplo. a repetição daquilo que é
irrepresentável e que denominamos pulsão de morte. Mas esse movimento é uma
tentativa de inscrição e, sendo assim, um esforço da pulsão de vida nesse sentido.
A narrativa literal seria da ordem desse esforço da pulsão de vida. Pretendemos
trabalhar com a idéia de que essa narrativa literal é uma produção subjetiva que visa
integrar impressões, cenas e afetos. Ela estaria relacionada à repetição do inominável
que visa ligar a excitação.
Como apontamos que a literalidade seria uma maneira de lidar com o choque,
vale aqui estabelecer uma ligação entre a predominância desta modalidade narrativa
na atualidade e a indicação de Seligmann-Silva (2000) sobre a inclusão do choque no
86
cotidiano. Conforme Seligmann-Silva (2000), tratar a realidade como catástrofe
implica em repensar o estatuto da representação: “com a nova definição da realidade
como catástrofe, a representação, vista na sua forma tradicional, passou ela mesma,
aos poucos, a ser tratada como impossível” (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.75).
Nesta perspectiva, buscamos uma concepção de psiquismo que inclua registros
diferentes do representativo. Afinal, o evento catastrófico, da ordem do choque
traumático, não se inscreve psiquicamente como memória através da representação
12
.
Hoje, quando se fala em “novas formas de subjetivação” ou “novos sintomas”,
os sintomas relacionados à pulsão de morte, ao choque, à compulsão ou à passagem
ao ato ganham destaque. Além disso, muito se fala na perda da interiorização nos
pacientes atuais. Trata-se da perda de um mundo rico em fantasias, quando o sujeito
pode se imaginar ocupando outros lugares, fazer projetos para o futuro, reavaliar seu
passado, enfim, romancear a vida. Nossos pacientes trazem freqüentemente um
mundo vazio, de solidão e depressão. São pessoas que não aprenderam a conversar
com elas mesmas. Nestes termos, a vida psíquica, atualmente, encontra-se numa
encruzilhada entre os sintomas somáticos e a transformação dos desejos em imagens
(KRISTEVA, 2002). Os sintomas somáticos não dizem nada ao sujeito. Ele nem se
interroga sobre isso. É algo exterior ao sujeito, que vem de fora e não tem sentido. E
as imagens capturam o desejo, subtraindo seu sentido. A imagem oferecida pela
mídia provoca o desejo e logo lhe oferece um objeto. Com esta perspectiva Kristeva
afirma (2002):
12
Isso foi tratado no capítulo II a partir da noção ferencziana de memória corporal
87
“(...) pressionados pelo estresse, impacientes por ganhar e gastar,
por desfrutar e morrer, os homens e mulheres de hoje economizam essa
representação de sua experiência a que chamamos vida psíquica (...) Não
se dispõe nem do tempo nem do espaço necessários para constituir uma
alma” (KRISTEVA, 2002, p.14).
Neste contexto, essas pessoas nos apresentam o mundo através de um discurso
por imagens, que parece sem afeto, sem interiorização, sem interpretação. Um tipo de
narrativa que nos remete ao tempo presentificado ou “tempo do instante”: aquela cena
narrada existe no instante que é descrita e não tem um passado, um enredo, não se
associa a nenhum pensamento, nenhuma idéia. Podemos ter uma primeira impressão
de que se trata da resistência, porém todo o tratamento segue assim e logo nos damos
conta que aquela forma que nos parece tão estranha é a forma daquele sujeito falar de
si.
Mas por que chamar essa narrativa de literal? Bem, a literalidade é a
insistência de se compreender ao da letra. E compreender desta forma é
semelhante a decifrar. Logo, é a inclusão de cada detalhe de algo novo em nosso
mundo. Cada detalhe daquilo que não tinha nome. Tendo um nome, ganha um
contorno, faz parte da memória enquanto seqüência de idéias. No entanto, a
literalidade exclui a possibilidade de metaforizar; de narrar de modo figurativo. Daí a
necessidade da referência a cenas imobilizadas no tempo presente.
Pretendemos mostrar que nessa narrativa literal existe a tentativa de integrar
as cenas, sensações, ou melhor, as impressões com os afetos e formar um texto.
88
Assim, compreendemos que a literalidade estaria, sobretudo, no registro das
impressões sensíveis e o sujeito fala sobre sua vida a partir de cenas que contém ou
remetem a essas impressões para que elas sejam significadas, para que possam
compor uma história. Por isso esse sujeito procura a análise e, muitas vezes, não
desiste de seu tratamento mesmo quando não tem o que dizer ao analista além de, por
exemplo: “O tempo está chuvoso hoje...” Ou quando esse sujeito diz claramente:
“Não sei como é que eu sinto, não sei o que é amor, gostar, ter raiva... Só sei que às
vezes o coração bate mais forte, passam uma idéias pela minha cabeça, tenho vontade
de ficar com outras e não sinto nada. Mas logo passa tudo”. Se significar os afetos
não é possível, se não é possível fazer um texto sobre si mesmo, falar de emoções e
ansiedades, o sentimento é de não ser autêntico.
Essa configuração, apesar de estranha ao ideal de sujeito psicanalítico,
calcado no conflito, não é nada estranha ao contexto social da atualidade. O mundo
atual concebido como o mundo do curto prazo, do capitalismo flexível, da velocidade
da informação, não confere um grande valor à narrativa de uma história, entendendo-
se, com isso, o que permite ao sujeito se representar para o outro e para si próprio
(MONTES & HERZOG, 2005). Configuração que nos conduz a indagar se, hoje, o
discurso do sujeito, não apontaria muito mais para um texto imagético, no sentido de
um discurso que remete à descrição de imagens sem conexão entre si:
“Na experiência analítica, o texto imagético se sobressai por meio
da descrição minuciosa de um cenário que captura a linguagem em uma
concretude espacial, delimitando uma narrativa muito distante do que
89
propõe o convite freudiano à associação livre” (PINHEIRO &MARTINS,
p.59).
Claro que podemos falar do ponto de vista da psicanálise e quando nos
referimos à narrativa literal, trata-se de um discurso dirigido ao analista – pelo menos,
enquanto analistas, supomos que assim seja. Mas nesse momento recorreremos a
Walter Benjamin, que não é um autor da psicanálise, e sim da filosofia, pois podemos
extrair dele algumas idéias a respeito do homem moderno e sua narratividade. Apesar
de Benjamin se referir à modernidade, ele aponta para o futuro e suas idéias
continuam atuais. Benjamin não fala da produção de subjetividade privilegiando o
referencial psicanalítico, no entanto, faremos alguns recortes com o olhar da
psicanálise, a fim de pensar no processo de subjetivação na atualidade a partir da
questão do tempo.
3.1-O indivíduo moderno em Benjamin: fim da narrativa?
Walter Benjamin faz uma crítica à modernidade capitalista através das
questões do tempo e da narrativa. Em Experiência e pobreza (1933/1994),
Benjamin afirma que as ações da experiência estão em baixa. Essa pobreza da
experiência não é privada, mas de toda a humanidade. No texto O narrador
(BENJAMIN,1936/1994) chega a afirmar que estamos diante do fim da narrativa. A
sociedade moderna capitalista não valoriza a narrativa, pois não valoriza a
experiência (Erfahrung). Benjamin explicita isto nos seguintes termos:
90
“(...) a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais
raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num
grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como
se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e
inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”. (BENJAMIN,
1936/1994, p.198)
Um exemplo da perda desta capacidade seria o fato de que aconselhar se
tornou antiquado. Para Benjamin, não podemos aconselhar quando as experiências
não são comunicáveis. Não podemos dar conselhos ao outro, nem a nós mesmos. E
assim perdemos a capacidade de conversar conosco, o que chamamos de
interiorização. Aconselhar é dar continuidade a uma história que está sendo narrada.
Ao falar sobre a narrativa, Benjamin se refere à narrativa oral, que tem como
condição de possibilidade a experiência. Assim, para o autor, o primeiro indício de
fim da narrativa está no surgimento do romance. Em primeiro lugar, o romance está
vinculado à escrita. Por isso, o romancista é segregado. Nas palavras de Benjamin:
“A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não
recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na
descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos
limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, romance
anuncia a profunda perplexidade de quem a vive” (BENJAMIN,
1936/1994, p.201).
91
Benjamin coloca que o romance, cujos primórdios remontam à antiguidade,
encontrou na burguesia moderna os elementos para sua ascendência. A narrativa foi
ficando arcaica, mas conseguiu se modificar e agregar novos conteúdos provindos do
romance. A principal responsável por sua derrocada foi o surgimento de outro tipo de
comunicação muito caro à burguesia: a informação. Ela surge juntamente com a
imprensa, um importante instrumento do capitalismo moderno. E, mesmo falando em
fim da narrativa, Benjamin reconhece que a imprensa inaugura outra narrativa, a
jornalística, calcada na literalidade da informação. O que a distancia do conceito de
narrativa benjaminiano é que ela se afasta da experiência, tratando do vivido; não se
pauta pela oralidade; não faz referência ao miraculoso, não comportando sonhos e
fantasia. Sobre a relação do homem com a informação, Benjamin ressalta:
“(...) Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto,
somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos nos
chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do
que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da
informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações (...) O
extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o
contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para
interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge
uma amplitude que não existe na informação” (BENJAMIN, 1936/1994,
P.203)
Quando Benjamin critica a literalidade da informação jornalística porque esta
se contrapõe ao que seria a narrativa tradicional - aberta a interpretações e evitando
explicações - reconhecemos uma similaridade entre essa narrativa com a regra
92
fundamental do tratamento analítico: a associação livre. E é exatamente a falta de
capacidade de associar livremente por parte dos pacientes que instiga os analistas
ultimamente, levando-os a declarar que esses pacientes possuem dificuldade para
representar. Kristeva (2002) discorre sobre este assunto:
“Os analistas são levados então a inventar novas nosografias que dão
conta dos ‘narcisismos’ feridos, das ‘falsas personalidades’, dos estados-
limite’, dos psicossomáticos’. Em que pese às diferenças dessas novas
sintomatologias, há, unindo-as, um denominador comum: a dificuldade de
representar” (KRISTEVA, 2002, p.15-16).
Acontece que o texto do paciente não flui, não entra em um fluxo temporal.
Ele é parado, restringe-se ao presente. Esse é o tempo da informação. A linguagem
jornalística narra o atual e exclui o sujeito da experiência, que a informação acaba,
pois só vale enquanto é novidade. Por isso precisa ser explicada rapidamente. Na
experiência, o passado é eterno porque permanece como o que poderia ter sido; ele é
sonhado. A narrativa seria uma forma artesanal de comunicação, é um compartilhar
da experiência. Compartilhar da experiência sobre a vida, a cultura, a tradição. Na
origem da narrativa deve estar o saber e a autoridade.
Como salienta Gagnebin, no prefácio das Obras escolhidas - vol I” (1994),
para Benjamin, a historiografia burguesa e progressista se apóiam na concepção de
um tempo vazio, ou melhor, cronológico e linear. Benjamin propõe um tipo
“materialista” de se fazer história em contraposição a isso. O historiador materialista
é capaz de identificar no passado os germes de uma outra história, capaz de levar em
consideração os sofrimentos acumulados, dando uma nova face às esperanças
93
frustradas. Assim, fundaria um outro conceito de tempo, o “tempo de agora”
(Jetztzeit), caracterizado por sua intensidade e sua brevidade. Brevidade porque o
passado não é um bloco imóvel, mas se atualiza no presente. Em lugar de apontar
para uma imagem eterna do passado” ou para um futuro progressista, como faz o
historicismo, o historiador materialista deve constituir uma experiência (Erfahrung)
com o passado. O tempo de agora” estaria atrelado à noção de experiência e busca
analogias entre o passado e o presente. Encontramos no presente a presença do
passado. O presente atualiza o passado. É a abertura para novos sentidos. Desta
maneira, a idéia de Benjamin sobre o “tempo de agora” pode ser aproximada ao a
posteriori freudiano: posteriormente, o presente, tornando-se passado, ganha uma
nova significação. O passado nada mais é do que a apropriação por parte do sujeito de
uma reminiscência.
Segundo Gagnebin (1994), nos textos de 1930, Benjamin aponta o
enfraquecimento da experiência no contexto capitalista moderno. A vivência
(Erlebnis) toma a cena na vida deste indivíduo que se torna solitário. E isso está
relacionado ao esfacelamento do social na medida em que a vivência (Erlebnis) não é
o suficiente para garantir a memória da sociedade como um todo, a transmissão da
palavra. Benjamin atrela o fracasso da experiência ao fim da arte de contar porque ela
parte da transmissão da experiência, cujas condições não existem na sociedade
capitalista moderna. A experiência transmitida deve ser compartilhada pelo narrador e
o ouvinte, mas o capitalismo moderno, com sua estrutura de trabalho fragmentária,
veio impossibilitar uma comunidade de vida e de discurso na medida em que acelera
o tempo e não permite uma sedimentação progressiva das experiências e da palavra.
94
Com a emergência do pensamento capitalista, tivemos o declínio da tradição e da
memória, que garantiam a existência de uma experiência coletiva, ligada ao trabalho
e ao tempo partilhados, em um mesmo universo de prática e linguagem. Sennet
(1999) aponta para a radicalização dessas questões na atualidade. Segundo ele, na
época do chamado “capitalismo burocrático”, a experiência de cada um se acumulava
física e materialmente e a vida era construída numa narrativa linear que apontava para
um amanhã. Ainda segundo as palavras de Sennett:
“O sinal mais tangível dessa mudança talvez seja o lema Não
longo prazo’. No trabalho, a carreira tradicional, que avança passo a passo
pelos corredores de uma ou duas instituições está fenecendo; e também a
utilização de um único conjunto de qualificações no decorrer de uma vida
de trabalho” (2004: 21).
Para o autor, o princípio de que “não longo prazo” limita a formação de
laços sociais, assim como a criação de laços de confiança. Adverte, ainda, que
também no âmbito social mais amplo, a dimensão do tempo no novo capitalismo
afeta diretamente a vida das pessoas. Afinal, este lema significa, conforme ressaltado
acima, não se comprometer e não poder acreditar que o outro esteja comprometido.
Tendo como foco a questão do trabalho, Sennett (2004) vai apontar as dificuldades
com que o ser humano se defronta, na contemporaneidade, para formar uma imagem
de si, levando-o a formular a seguinte indagação: “Como pode um ser humano
desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta
de episódios e fragmentos?” (2004: 27).
95
Retomando Benjamin (1936/1994), a partir da relação existente entre
experiência (Erfahrung) e a arte de contar, uma reconstrução da experiência deve ser
acompanhada de uma forma de narrativa que regate esta arte.
Na narrativa alegórica a abertura se apóia na profusão de sentidos que tem
lugar devido a seu não-acabamento essencial. Nesse tipo de narrativa um texto aponta
para outro; uma história desencadeia outra. um grande destaque para a
interpretação. A história admite interpretações diferentes e, portanto, permanece
aberta. A narrativa antiga tem esse caráter de alegoria, ancorando-se na experiência
(Erfahrung).
A narrativa moderna é referida à experiência vivida isolada ou o que
Benjamin conceitua como vivência (Erlebnis). É representada pelo romance e a
informação jornalística (narrativa literal), que são pautados pela busca da verdade.
Assim, o herói da modernidade busca sua verdade. Anteriormente, a existência seguia
regras determinadas e reconhecidas por todos. O sujeito moderno busca no romance o
que não é encontrado na sociedade: o sentido explícito e reconhecido do existir.
Enquanto a narrativa antiga estava baseada na abertura para sentidos diversos, o
romance está baseado na conclusão, no sentido final. A narrativa antiga mantinha um
olhar para o passado que, atualizado, era um “espaço de possibilidades de sentido” e
abertura para o novo. A modernidade, sem a certeza da ordem da razão sobre o
passado, lança o olhar para o futuro. Sendo assim, é a experiência vivida que funda o
sujeito moderno angustiado com o existir; com um fim último para sua existência.
Experiência com o passado é abertura e, para Benjamin, cada um deve construir uma
experiência com o passado. Benjamin propõe que se busque sentidos no passado
96
através da interpretação. Isso é o “tempo do agora”. O presente é uma atualização do
passado. Isso é próximo à idéia de posterioridade em Freud, que, assim como
Benjamin, preza pela abertura do sentido. Sem essa noção, não seria possível a
construção de todo arsenal psicanalítico baseado na interpretação. O funcionamento
do inconsciente demonstrado no capítulo VII da Interpretação dos sonhos” (1900)
pressupõe a sobredeterminação, que nada mais é do que a abertura do sentido. O
aparelho psíquico de interpretação segue o método alegórico. A psicanálise produz
um sujeito com uma narrativa alegórica. Dizemos “produz” porque o sujeito do
inconsciente é produzido na clínica e ele passou a ter lugar em resposta à crise da
modernidade. O sujeito moderno é aquele do fim da narrativa. Daí a psicanálise surge
com uma proposta de construção de narrativas sobre si mesmo. Narrativas
essencialmente alegóricas.
Nesta perspectiva, a literalidade resiste desde Freud. Vemos isto no conceito
de neurose traumática. Em Ferenczi, temos a literalidade presente na teoria sobre o
trauma patológico e buscamos mostrar que esta forma narrativa é, de fato, uma
resposta ao choque. Assim, admitimos a narrativa literal como uma possível
conseqüência dos dois tipos de trauma: uma suspensão do tempo. A literalidade, em
Benjamin, aparece exprimindo a experiência vivida, solitária, pontual. Ela pertence
ao presente, sem remetimento ao passado e à tradição. Não nenhuma inserção no
“tempo do agora”, quando o presente contém uma história e é uma atualização do
passado. A experiência vivida aponta para o futuro, para o desvelamento de um
sentido único. A palavra pretende a univocidade, não é polissêmica.
97
3.2-Alinhavando...
De acordo com Benjamin (1936/1994), desde o início da modernidade
estamos diante de um processo que põe fim à narrativa, que é o da desvalorização da
experiência (Erfahrung). Transpondo para termos psicanalíticos, sugerimos que a
experiência pode ser entendida como o processo de subjetivação, visto que também
se realiza através do outro e da cultura. Se pensarmos nos termos do narcisismo,
constatamos a necessidade desse outro para que um sujeito seja inventado. E esse
outro está imerso numa cultura, identificado com diversos outros...
A vivência ou experiência vivida (Erlebnis) é pontual, não faz referência ao
outro, ao social, à cultura. É representada pelo sujeito isolado em busca de uma
verdade que dê sentido à vida. Benjamin atrela a narrativa literal, informativa e
rasteira à vivência em contraposição à narrativa alegórica da experiência.
Diante deste quadro lançamos três questões que, direta ou indiretamente,
rondam o campo psicanalítico. A primeira diz respeito à idéia de fim da narrativa: “a
narrativa teve fim?” A segunda questão, versa sobre a literalidade: “a literalidade não
é uma forma narrativa?” E a terceira envolve as condições de possibilidade para a
psicanálise ser exercida: “Por que falar em fim da psicanálise no contexto
contemporâneo?”
Ora, a psicanálise teve início na modernidade, inserida naquele panorama que,
segundo Benjamin, apontava para o fim da narrativa. A modernidade, produzindo o
sujeito da vivência (Erlebnis), inaugurou um tipo de sofrimento em torno do existir
que propiciou a emergência da psicanálise. Portanto, a derrocada da narrativa
98
alegórica não pode estar relacionada ao fim da eficácia da psicanálise. O projeto
moderno, que privilegiou a vivência (Erlebnis) em detrimento da experiência
(Erfahrung) e alimentou a ascensão psicanalítica, ganhou desdobramentos na
contemporaneidade que levaram ao que chamamos de perda da interiorização
13
.
Sobre as duas primeiras questões, escolhemos tomar a literalidade como uma
forma narrativa e resolvemos positivá-la ao invés de apenas contrapô-la à narrativa
alegórica. Logo, consideramos não estarmos diante do fim da narrativa, mas frente a
uma predominância da narrativa literal, o que é justificado pelo contexto social em
que vivemos.
Sendo assim, precisamos resgatar a literalidade como uma forma narrativa nos
textos de Freud e Ferenczi. Em ambos, essa forma narrativa expressa o tempo
presentificado em que se encontra o sujeito. Em Freud, através da figura da
compulsão à repetição e do choque, que podem estar presentes em qualquer
configuração psíquica. E em Ferenczi, como uma resposta ao trauma, sendo que o
trauma desestruturante produz uma forma peculiar de subjetivação.
A compulsão à repetição em Freud inaugura um tempo imóvel, presentificado.
A forma menos dúbia onde podemos identificá-la é no sonho traumático. Esse sonho
não traz prazer para nenhuma instância psíquica. Ele repete o mesmo: o trauma.
Repete na tentativa de dominá-lo, de ligá-lo, representá-lo. Ou, ao menos, repete para
livrar o sujeito da surpresa e gerar a ansiedade, que o protege do choque.
Essa repetição é diferente daquela encontrada no jogo infantil do fort-da, na
transferência e na própria neurose. O que caracteriza a compulsão à repetição no
13
Estes desdobramentos serão abordados no próximo capítulo
99
sonho traumático é a pulsão de morte e esta parece presente em silêncio nesses outros
fenômenos. Porém, nesses outros fenômenos verificamos a existência de algum tipo
de prazer. Na brincadeira infantil que repete a experiência desprazerosa o prazer
de dominar a situação; na transferência a necessidade da repetição do sintoma
como uma experiência contemporânea, dirigida à figura do analista. A neurose, que
tende a repetir o sintoma, torna-se neurose de transferência. A repetição da neurose
causa desprazer para o ego, mas gera prazer para outra instância: o inconsciente. Esse
entrave é objeto de tratamento na análise. E a partir de 1920 compreendemos que tal
entrave é gerado pelo conflito das pulsões de vida e de morte. É o embate que temos
na repetição de uma maneira geral. Nesse palco, prazer e sofrimento. Porém, no
caso do sonho traumático desprazer e sofrimento. Mais do que sofrimento, que
pode ser colocado em palavras, um estado de choque que impossibilita que o
tempo siga seu curso.
Mas o que é sofrimento, desprazer? Qual a diferença entre esses termos e o
choque traumático? Afinal, não basta dizermos que o choque produz desprazer. Ele
parece ser mais do que isso.
Apesar de, no texto de 1920, Freud privilegiar o aspecto econômico do
aparelho psíquico, ele se questiona sobre o papel da qualidade no diferencial
prazer/desprazer. Neste contexto, sugere a importância da percepção temporal: o
tempo de espera pela satisfação, que só pode ocorrer numa dimensão do vivido
singular (Reis, 2004). Em 1924, em O problema econômico do masoquismo”, Freud
(1923b/1996) retoma esta questão, lembrando que o estado de excitação sexual
constitui o exemplo mais notável de um aumento prazeroso de estímulo. Conclui
100
mais uma vez que o prazer e o desprazer não podem ser referidos somente a um
aumento ou diminuição de uma quantidade, embora este seja um fator importante. E
coloca que tais sentimentos dependem de alguma característica qualitativa: talvez o
ritmo, a seqüência temporal de mudanças, elevações ou quedas na quantidade de
estímulo. Para Freud, desde o texto do Projeto” (1895a/1996), a qualidade está
relacionada ao fator tempo; ao período de espera entre os estímulos. A novidade
trazida pela segunda teoria das pulsões é que o fator traumático rompe com a
percepção temporal e instaura um tempo único e imóvel que somente se repete
(REIS, 2004). Desta forma, o choque impossibilitaria a existência de um período de
espera entre os estímulos, o ritmo. O mesmo estímulo se repete incessantemente.
Segundo a sugestão freudiana, não há, neste caso, espaço para a qualidade. Assim,
não há espaço para qualquer diferencial. As diferenças se apagam. O sujeito é
invadido por um quantum de energia insuportável que rompe qualquer barreira de
proteção. Não como dominar, capturar e dispor essa energia numa determinada
ordenação própria do aparelho. Ela não será transcrita para a ordem psíquica, não se
transformará em representação. Ela se presentifica na repetição do trauma e por isso o
esforço desse sujeito é no sentido de esquecer o evento traumático, afinal, uma das
sintomatologias do trauma é a literalidade da recordação da cena traumática. Mas esse
não é o único trabalho do sujeito diante do trauma. Primeiramente, ele precisa
integrar a cena de modo articulado à sua vida a fim de se desviar da patologia e
somente assim será possível esquecê-la. Mas como representar algo que está para
além da capacidade imaginativa? (SELIGMANN-SILVA, 2000) Como narrar um
101
evento na temporalidade da experiência em termos benjaminianos quando este evento
transborda nossos sentidos e ameaça a integridade narcísica?
Diante destas questões, observamos que, ao propor o conceito de pulsão de
morte, Freud contribui para uma melhor compreensão sobre as origens e o
funcionamento do psiquismo. No texto de 1920 fica bastante claro que a pulsão
exige uma ação psíquica para ser transcrita para a ordem psíquica. Podemos dizer
que essa ação é a introjeção das qualidades percebidas e apreendidas pelo
psiquismo infantil (...)” (Reis, 2004, p.45). Os estímulos endógenos e exógenos
capturados pelo aparelho psíquico passam a compor uma ordem de sentido: a
realidade psíquica. Aquilo que não é ligado permanece enquanto um resto, uma
energia dispersa, denominada pulsão de morte.
No entanto devemos lembrar que não podemos reduzir a questão da
representatividade desta forma. Não há apenas o representado figurando a pulsão de
vida e o irrepresentável caracterizando a pulsão de morte. Entre o inscrito e o não-
inscrito no aparelho psíquico, temos os signos de percepção apontados por Freud na
Carta 52 (1896b/1996). Como vimos no primeiro capítulo desta tese, para Freud, o
sistema mnêmico, responsável pela inscrição psíquica, é composto de três registros.
Os signos de percepção, concebidos como marcas ou impressões, são as primeiras
transcrições da percepção.
Nesta direção, cabe adotarmos o conceito ferencziano de “introjeção” para
falarmos sobre o que é apreendido pelo psiquismo, já que a introjeção abarca desde as
impressões sensíveis, que estariam no registro dos signos de percepção, até as
representações. A introjeção abrange todos os registros mnêmicos, alargando o Eu
102
com afetos e palavras. Assim como Freud propõe o corpo sensório no início do
sistema de memória na Carta 52 (1896b/1996), Ferenczi considera as percepções
corporais como o início do processo de introjeção no bebê. E quando Ferenczi fala
em atribuição de sentido também se refere ao mesmo processo: a introjeção. Portanto,
se a introjeção se refere ao que é apreendido psiquicamente, o que não é introjetado é
da ordem da pulsão de morte. Por isso o desmentido, impedindo a introjeção, é da
ordem da pulsão de morte. É desagregador e carrega toda a sua violência, diante da
qual o sujeito sucumbe. A confusão de línguas em si é estruturante. É uma catástrofe
necessária, parte da constituição subjetiva. É o outro quem introjeta novos sentidos.
Esse outro é o adulto, que está num registro diferente do que está a criança. A
linguagem do adulto é a da paixão enquanto a criança domina a linguagem da ternura.
No trauma patológico, o desmentido é o fator decisivo. A palavra do trauma o é
recalcada, não entra numa cadeia inconsciente. Ela é clivada e, dessa criança, é
retirada a possibilidade da polissemia. É o outro quem tudo sabe e ela perde a certeza
de si. A palavra torna-se literal e fica gravada no corpo literalmente (PINHEIRO,
1995).
Para abordar essa estranha e familiar relação entre o corpo e as palavras,
lançaremos mão da diferenciação proposta por Dolto (2000) entre o esquema corporal
e a imagem do corpo. O esquema corporal é a realidade de fato: nosso corpo
biológico, que se relaciona com o meio físico. A imagem corporal é o corpo da
linguagem, o corpo narcísico, que contém uma história singular. O esquema corporal
oferece suporte à imagem do corpo para que esta entre em contato com o outro. Ele
permite uma relação “linguageira” com os outros. A imagem corporal é memória
103
inconsciente e, ao mesmo tempo, é atual e se relaciona com o mundo através de
mímica, gestos, etc. Ou melhor, é a imagem corporal que empresta plasticidade ao
esquema corporal. O esquema corporal é o vivido pontual do corpo; a imagem
corporal comporta uma história e lança mão de um sistema de memória. Por isso a
mímica “conversa” diretamente com a imagem do corpo. Segundo Dolto, de uma
maneira geral, a compreensão de uma palavra depende simultaneamente do esquema
corporal e da imagem do corpo. O esquema corporal captaria o som e a imagem do
corpo traduziria a palavra em termos singulares. Sobre essa tradução, Dolto nos diz
que quando duas pessoas se referem à cor azul, não sabemos a que tom de azul cada
um está se referindo. Lógico que a palavra tem sentido simbólico em si mesma. Mas
o esquema corporal não tem como compreendê-la caso ela não faça parte do
repertório da imagem corporal. É o caso da diferença de línguas entre adultos e
crianças na teoria ferencziana. A linguagem adulta da paixão não faz parte do
repertório infantil; não é compreendida pela imagem do corpo da criança. Assim
sendo, se não é introjetada, não entra numa cadeia simbólica e fica retida no corpo.
Antes de a palavra ter sentido, ela precisa tomar corpo. A linguagem é uma
continuação da elaboração que começa no corpo, nossa primeira referência. O bebê
apreende o mundo através de uma comparação de tudo o que vem de fora com suas
percepções, sensações, movimentos (FERENCZI, 1913/1988). O trauma, na medida
em que transborda a capacidade do sujeito lidar com sua intensidade, impede que a
palavra tome corpo, sendo ele desestruturante ou não.
Se pensarmos a partir da perspectiva de Seligmann-Silva (2000) e Sennet
(1999), tratando o choque não mais como um estado de exceção, mas como um fator
104
do dia-a-dia, devemos pensar que respostas o sujeito desenvolve para lidar com tais
traumas. Nem todos transformam esses choques em traumas patológicos em termos
ferenczianos. É nesta direção que Ansermet discorre sobre o tema:
“Sedução, agressão (...), doença grave, operação cirúrgica, que
lugar tais fatos marcantes ocupam na história do sujeito? Um traumatismo
pode ser também o resultado de uma coerção psíquica prolongada, de uma
situação de alienação ou mesmo de um fato não muito importante,
amplificado em razão de sua sujeição à fantasia” (ANSERMET, 2003,
p.137).
A forma como cada um vai lidar com o trauma é muito particular. Depende da
possibilidade de elaboração por parte do sujeito e do acolhimento do mundo externo. O que
vai acontecer a partir daí tem relação direta com a maneira como o sujeito afeta e é afetado
pelo mundo.
Quando o trauma desestruturante ocorre, as saídas encontradas o a
identificação com o agressor e o apelo à memória corporal. São tentativas de
introjetar e dar sentido ao que foi vivido. Mas se esses choques não são seguidos do
desmentido, não há a perda da certeza de si e o trauma não é desestruturante. A forma
que o sujeito encontra para lidar com tais choques também é através da introjeção.
Para isso, ele pode lançar mão, por exemplo, de sintomas remetidos à memória
corporal ou fazer uso da narrativa literal. Como no sonho, o que temos aqui é uma
tentativa de cura; uma primeira captura ou uma primeira forma de ligar as impressões
a imagens (figurabilidade). Nesse sentido, a literalidade é estruturante, pois está a
105
serviço da introjeção, lembrando que esta inclui as impressões, os afetos, os objetos,
as idéias e os sentidos no Eu.
O choque imobiliza o sujeito no tempo presente, impedindo a experiência. Ele
tem apenas a vivência do fato a ser descrito. Sem poder ser representado, o trauma
permanece num primeiro registro, o das impressões sensíveis.
Trata-se de uma concepção de aparelho psíquico que inclui outros registros,
não somente o registro da representação. E, desse modo, inclui a literalidade da
palavra e do corpo enquanto uma narrativa que expressa uma modalidade de tempo
presentificado. Portanto, precisamos pensar no domínio psíquico de maneira mais
abrangente, incluindo o verbal e o não-verbal; o dizível e o indizível. Devemos olhar
para o corpo, para os pequenos gestos, escutar aquilo que, a princípio, não parece
uma narrativa. Se considerarmos a narrativa em seu sentido tradicional (a narrativa
alegórica), a literalidade gerada pelo trauma não é uma narrativa porque não há
representação sem metáfora e a cena traumática permanece imutável no registro
literal, sendo impossível metaforizá-la (SELIGMANN-SILVA, 2000).
No intuito de empreender uma leitura que considera a literalidade uma forma
narrativa que não se reduz à informação, retomaremos Benjamin, no que este
apresenta Kafka como um dos maiores narradores modernos, tal como Proust
(GAGNEBIN, 1994). Kafka, apesar de fazer uso da literalidade, representa uma
“experiência” única: a da perda da experiência, da desagregação da tradição e do
desaparecimento do sentido. E em Kafka não encontramos a totalidade do sentido,
mas trechos de histórias e sonhos. Fragmentos que tratam da perda da identidade e da
univocidade da palavra: uma ameaça de destruição e abertura para a possibilidade de
106
novas significações (GAGNEBIN, 1994). Assim também podemos descrever o
embate das pulsões de vida e de morte. Desagregação e reunificação. Desligamento e
ligação. É o embate do sujeito moderno, que agora se sobressai com outra roupagem.
Não se mascara de drama romântico, não tem o tempo da tragédia. Aparece como um
drama atual que pode se desenrolar no corpo, no horror da perda da certeza de si ou
na busca de um sentido através da narrativa literal.
Benjamin critica severamente a literalidade, relacionada à vivência (Erlebnis).
Mas ele próprio sublinha que Proust mostra como a experiência vivida, particular e
privada (Erlebnis), pode se transformar em uma busca universal (GAGNEBIN,
1994). A noção de memória involuntária de Proust mostra como é possível essa
transformação. A memória involuntária intervém em função dos signos sensíveis, a
apreensão de uma qualidade sensível como signo. Ela nos torna sensíveis aos signos
e, em momentos privilegiados, permite-nos interpretar alguns desses signos. Para
Proust, as reminiscências são metáforas da vida porque a memória involuntária une
dois momentos, vinculando-os a duas sensações através da identidade existente entre
elas. E a memória involuntária é capaz de realizar esta vinculação através dos
signos sensíveis. “Os signos de memória constantemente nos preparam a armadilha
de uma interpretação objetivista, mas também, e sobretudo, a tentação de uma
interpretação inteiramente subjetivista” (DELEUZE, 1987, p.64). A memória
involuntária, desta forma, transforma uma experiência vivida solitária (Erlebnis)
numa busca pela eternidade; pelo tempo perdido: o passado puro; o ser em si do
passado. Não pretendemos aqui realizar um estudo sobre o estatuto do tempo em
Proust, mas apenas indicar, a partir da forma como Walter Benjamin (1929/1994)
107
interpretava sua obra, que Proust conseguiu elevar o que seria uma vivência
(Erlebnis) - um momento solitário, um instante - à categoria de experiência
(Erfahrung), suscitando significações e afetos que podem ser partilhados a partir de
um evento particular. Proust parte de uma vivência (Erlebnis) para abordar um tema
universal: o tempo.
Talvez possamos dizer que Freud também procurou transformar a experiência
vivida em uma experiência humana universal ao postular o Complexo de Édipo tal
como colocou na carta a Fliess (1897):
“Sendo assim, podemos entender a força avassaladora de Oedipus
Rex, apesar de todas as objeções levantadas pela razão contra a sua
pressuposição do destino; e podemos entender por que os “dramas do
destino” posteriores estavam fadados a fracassar lamentavelmente. Nossos
sentimentos opõem-se a qualquer compulsão arbitrária e individual [do
destino], tal como é pressuposto em Die Ahnfrau [de Grillparzer] etc. Mas
a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque
sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da platéia foi, um dia,
em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual
recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui transposta para a
realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil
do seu estado atual”(FREUD, 1897b/1996, p.316-317).
A princípio, a experiência coletiva (Erfahrung), não tem nenhuma relação
com a vivência particular e privada. Mas podemos escutar os dramas privados,
incluindo-os num contexto maior e, quiçá, resgatar a experiência subjetiva no sentido
benjaminiano. Como afirma Seligmann-Silva (2000), a passagem do “literal” para o
108
“figurativo” é terapêutica. No entanto, nem sempre essa transformação é possível.
Queremos apontar que, nos momentos em que o abandono da literalidade não é
possível, devemos trabalhar com o material de que dispomos e positivá-lo.
No próximo capítulo abordaremos a problemática da escuta no processo
analítico, quando o sujeito apresenta uma narrativa literal que impede o livre fluxo
das associações. Qual deve ser o manejo do analista?
Para dar conta deste problema, daremos continuidade à discussão sobre a
função da literalidade através do conceito de angústia. Afinal, afirmamos que a
literalidade é utilizada a serviço da introjeção, como uma resposta frente ao trauma.
Em Freud, temos que a angústia é produzida a partir de numa situação de choque a
fim de proteger o sujeito. Então, qual foi o destino da angústia quando a narrativa
literal entrou em cena?
Claro que nossa proposta de dar seguimento ao presente trabalho através dos
caminhos da angústia deve ser contextualizada. Nossa indagação somente faz sentido
porque estamos inseridos num determinado contexto social. Ao nos reportar à
sociedade contemporânea, inevitavelmente indagamos: como lidar com a angústia
numa época em que não é permitido se angustiar?
Estamos num tempo repleto de incertezas sobre o futuro. Como a sociedade é
cada vez mais competitiva, precisamos nos reinventar a todo momento sem direito a
um tempo de espera para a hesitação. Não podemos nos angustiar, pois isso é sinal de
insuficiência. E a categoria da insuficiência é o terror do sujeito que vive numa
sociedade em que “a norma não é mais fundada sobre a disciplina e a culpa, mas
sobre a responsabilidade e a iniciativa” (SANT’ANNA, 2001, p.26). Neste
109
panorama, para sermos indivíduos suficientes, a medicina busca remédios para todo
tipo de transtornos; para aplacar a angústia. Desta maneira, a angústia não consegue
proteger o sujeito contra o choque e ele, de trauma em trauma, não consegue
desenvolver o que era chamado de interioridade. Daí a narrativa literal, pontual,
apenas no tempo presente. Narrativa que não tarda em causar angústia na medida em
que não é plena de sentido; é fragmentada. Mas, na busca de um sentido, essa
narrativa pontual, que pode recorrer à descrição de imagens e sensações, impede um
transbordamento de intensidades que ameaçariam o Eu.
110
CAPÍTULO IV
UM TEMPO PARA A ANGÚSTIA
4.1- A angústia no mundo contemporâneo: de que se trata?
Neste catulo teremos como fio condutor a indagação: como escutar os
dramas privados atuais que se expressam numa narrativa literal? Dramas que não são
romanceados e nem sempre aparecem tão claramente. Afinal, eles se expressam
através de uma narrativa num tempo parado, “presentificado” como optamos por
denominar. Vimos no capítulo anterior que este tipo de narrativa literal está no
registro das vivências (Erlebnis) em termos benjaminianos. Também apontamos que
a literalidade pertence, sobretudo, ao registro dos signos de percepção ou das
impressões sensíveis em termos psicanalíticos. A literalidade seria um recurso para o
sujeito vir a construir uma forma discursiva plena de afetos e sentidos. Comparamos a
literalidade com a figura da compulsão à repetição, quando há a repetição daquilo que
se conserva enquanto marca psíquica para que possa ser inscrito. Entendemos que
este recurso está inserido num determinado contexto social que vem se configurando
desde a modernidade até os tempos atuais. A seguir delinearemos este contexto na
tentativa de compreender como o sujeito lida com os impasses que se colocam na
atualidade.
Como foi sublinhado no capítulo anterior, vivemos numa época em que o
cotidiano é repleto de choques. Vivemos no tempo da catástrofe; do trauma
111
(SELIGMANN-SILVA 2000). Mas quais são as características específicas dessa
sociedade?
Uma característica do mundo de hoje é a velocidade da informação e o modo
como ela é capaz de influenciar nossas vidas. Todos devem ser dinâmicos, ágeis. A
temporalidade da ordem do dia o se num tempo linear e dispensa enredo, ou
seja, dispensa texto: é a temporalidade da era digital.
A sociedade de consumo, que traz o imperativo do gozo de forma tão
marcada, prega que o sujeito deve gozar hoje porque o amanhã é incerto. Como nos
diz Fortes (2000), o sujeito é obrigado a ser feliz na atualidade. E logo! Diante do
imperativo de gozo, não possibilidade de adiamento. O tempo a ser vivido é o do
presente, pois não possibilidade de idealizar o futuro. Não idealizar o futuro é não
jogar com as instâncias ideais, constitutivas da subjetividade. Vivemos no tempo da
antecipação. O passado tornou-se virtual e o futuro é “vivido” no presente,
antecipadamente. Ou seja: o futuro determina o presente, descaracterizando-se como
futuro a ser imaginado. Sendo assim, resta apenas o presente como um instante.
Instantaneidade que não pressupõe história. Uma imagem sem conexão com uma
cena anterior e que é antecipada a fim de proteger o sujeito do engano e da dúvida.
Mudou a relação do sujeito com o tempo. Isso não poderia deixar de ter
conseqüências subjetivas. Neste contexto, por exemplo, o número de deprimidos
cresce na medida em que, diante da exigência de velocidade e dinamismo, não é raro
o sujeito considerar-se ineficiente. Se é o presente que importa, o sujeito deve ser
rápido, flexível, precisa estar disposto a se modificar constantemente para lidar com
112
as diferentes situações impostas pela vida. Com isso, temos um presente catastrófico
no sentido ferencziano, quando precisamos introjetar algo novo, desconhecido,
“alargar” o Eu.
Ao pensarmos no cotidiano como catástrofe, não podemos deixar de abordar a
idéia de trabalho no mundo globalizado, que foi muito modificada. Afinal,
geralmente nosso cotidiano, ou boa parte dele, é ocupado justamente pelo trabalho.
Segundo Sennet (2004), o trabalho atualmente gera muita insegurança porque a
incerteza existe entremeada nas práticas cotidianas do capitalismo e não depende de
um desastre histórico. É um exemplo da catástrofe cotidiana.
O novo capitalismo, o “capitalismo flexível”, repele a burocracia e a
hierarquização em função da velocidade dos negócios, enfatizando a noção de
flexibilidade (SENNET, 2004). De acordo com Sennet (2004):
“A expressão ‘capitalismo flexível’ descreve hoje um sistema que é
mais que uma variação sobre um velho tema. Enfatiza-se a flexibilidade.
Atacam-se as formas rígidas de burocracia, e também os males da rotina
cega. Pede-se aos trabalhadores que sejam ágeis, estejam abertos a
mudanças a curto prazo, assumam riscos continuamente, dependam cada
vez menos de leis e procedimentos formais” (SENNET, 2004, p. 9).
O autor ainda ressalta que hoje a incerteza faz parte do cotidiano. Atualmente,
com a ênfase no trabalho a curto prazo, as empresas buscaram se tornar mais planas e
flexíveis, propondo contratos instáveis. Não se modificar a todo o momento é como
um sinal de fracasso, a estabilidade é quase uma morte em vida, é ser deixado de fora.
113
Assim, as novas regras da livre concorrência geram enorme insegurança com relação
à vida profissional devido à instabilidade da economia e do mercado de trabalho. A
forma atual de organização do trabalho é mais competitiva e está permanentemente
em rápida transformação.
De acordo com Sennet (2004), a concepção de flexibilidade cria a ilusão de
que atacando a questão burocrática e enfatizando o risco, surge mais liberdade para
cada um moldar a própria vida, mas, na realidade somente cria-se novos controles ao
invés de apenas abolir regras do passado. O sistema de poder por trás das modernas
formas de flexibilidade se desdobra em três elementos: a reinvenção descontínua de
instituições, a especialização flexível de produção e a concentração de poder sem
centralização. A reinvenção descontínua de instituições tende a defender a mudança
como algo necessário, mas remeteria a um tipo de mudança que rompe com um
estado anterior de coisas, promovendo descontinuidade. Seriam rupturas abruptas que
colocam em xeque a possibilidade de organização do trabalho. Por sua vez, a
especialização flexível de produção promove a rotação de um maior número de
produtos no mercado. Por fim, vale ressaltar que a concentração de poder sem
centralização promoveria um tipo de descentralização do poder do alto da pirâmide,
que todos contariam para as decisões. No entanto, essas decisões precisam de
rapidez e o poder acaba por ser centralizado em pequenos grupos administrativos,
mas sem qualquer negociação com o que seriam as outras camadas da pirâmide.
Portanto, um regime flexível, que promove mudanças na rede, no mercado e na
produção, acaba por ter como conseqüências a concentração do poder sobre o
114
trabalho nas mãos de um grupo pequeno, alta rotatividade dos empregados e baixo
custo de mão de obra.
Permanecer num estado de vulnerabilidade é a proposta da empresa flexível.
Neste caso, estar em risco é estar desamparado, que e o mundo atual o garante
muita coisa, nem econômica, nem socialmente, para a construção de uma narrativa de
vida. O Estado não ocupa mais o lugar de Estado-nação. O que regula a relação entre
os Estados é a troca econômica. E, neste contexto, vive-se na “corda-bamba” a cada
dia. O risco tornou-se um fator do dia-a-dia com o capitalismo flexível. Não como
se planejar uma carreira numa única empresa a partir de um plano de cargos e salários
no mundo de hoje. Como sublinhou Sennet (2004), hoje, um jovem americano pode
esperar mudar de emprego pelo menos onze vezes no curso do trabalho e trocar sua
aptidão básica pelo menos três vezes em quarenta anos de trabalho. Isso não é muito
diferente da nossa realidade brasileira.
Sendo assim, o indivíduo passou a ser o único responsável por si mesmo e a
livre escolha se tornou uma norma. O “espírito de iniciativa” deve ser adquirido vinte
e quatro horas por dia (SANT’ANNA, 2001). Nas palavras de Sant’Anna:
“Não por acaso, em empresas de várias partes do mundo, a
valorização do espírito de iniciativa é evidente, especialmente quando
associada ao abandono dos sistemas de hierarquia de inspiração fordista
em favor de estruturas leves e pouco autoritárias. Em contrapartida,“esta
nova leveza” resulta no aumento da insegurança material e psicológica
dos trabalhadores, na criação de indivíduos ansiosos, fortalecida pela
adoção de empregos temporários, precários e incertos” (SANT’ANNA,
2001, p.26).
115
Dentro deste panorama, os que não conseguem ser responsáveis e ter
iniciativa, são insuficientes (SANT’ANNA, 2001). Daí o medo do fracasso tão
presente nos indivíduos de nossa sociedade atual. Aqui, o risco não faz um par com a
ousadia. Ele é uma obrigação. Ser suficiente, cuidar de si, ser o único responsável
pela própria vida, o único responsável pelo próprio sucesso e fracasso, ter iniciativa,
ser o senhor do próprio destino, etc, são ditames da sociedade em que vivemos. O que
importa é ter todas essas capacidades e ter felicidade.
Mas a própria felicidade também aparece como um bem de consumo. Ter
felicidade inclui ter sucesso, ter as coisas que esse sucesso possibilita comprar e ter a
imagem de uma pessoa de sucesso. E, claro, o discurso científico se enquadra nesta
perspectiva do consumo. Afinal, discurso social e discurso científico apresentam uma
relação de concomitância dependente. Eles surgem concomitantemente, um
regulando o outro.
Desta forma, a ciência moderna, trata o corpo como um bem de consumo,
como a imagem do sucesso e da eficiência. O sujeito deve ter um corpo que obedeça
a determinados padrões. Para isso, ele precisa obedecer a determinadas regras, como
técnicas de emagrecimento, rejuvenescimento, etc. E apoiada no ideal progressista, a
ciência vai cada vez mais longe, buscando ultrapassar as últimas fronteiras no
domínio do corpo. Afinal, o corpo é lento diante da velocidade da realidade digital. E,
principalmente, ele adoece, envelhece e não resiste ao tempo. Numa visão
psicanalítica, o corpo encarna a finitude, o desamparo. Sendo assim, a atualidade
comportaria um projeto de exclusão do corpo em sua materialidade, como se o corpo
116
fosse um empecilho (SANT’ANNA, 2001; LE BRETON, 2003). De acordo com esse
discurso, o corpo deve somente dar prazer e a morte é negada. Ou o corpo permanece
eterno ou deve ser eliminado em função da realidade virtual, tal como é proposto pelo
“discurso sobre fim do corpo” (LE BRETON, 2003, p.136).
A este respeito Sant’Anna (2001) afirma:
“Depois do direito ao rejuvenescimento, o direito à permanência.
Nem que para permanecer seja preciso trocar de sexo, de sangue, de
cabelo, em suma, de corpo. E não apenas uma única vez, nem de uma vez
por todas. Trocar de corpo sem cessar, de acordo com as circunstâncias,
como quem troca de site, de roupa de shampoo. Evitar que o corpo seja
um obstáculo para poder entrar em todos os lugares, passar por todos os
tempos, navegar em meio a diferentes culturas. Por isso, o homem voltado
à transparência também é inquieto e incerto, amedrontado de não ser
suficientemente ágil, criativo, flexível” (Sant’Anna, 2001, p.24).
Enfim, todo esse panorama serve para nos indicar que as mudanças sociais
que tivemos interferem no modo de produção subjetiva. Discutimos no capítulo
anterior que a narrativa literal seria uma forma discursiva que se encontra no registro
de um tempo presentificado em conseqüência dos choques, agora cotidianos. Ela
seria uma resposta ao trauma; como uma primeira captura de um excesso pulsional
exógeno. Também apontamos que uma outra resposta pode ser dada pelo viés do
corpo, quando este é convocado a pensar, trazendo consigo a memória intacta das
impressões e sensações. Daí a questão do corpo ter ganho relevo na clínica
psicanalítica hoje.
117
De uma forma geral, a constituição subjetiva - entendida como um processo
contínuo tem sofrido conseqüências em função das mudanças de contexto social.
Vinculamos a idéia de suficiência e velocidade da cultura atual à noção de choque,
que produz um indivíduo sempre surpreendido e sem tempo para a hesitação. E
sabemos que o sujeito é constituído nesta hiância, num gap entre o estímulo e a
resposta. Portanto, aqui devemos nos deter nessa falta de tempo para a hesitação.
Também podemos falar em falta de tempo para a angústia. Diante da exigência de
velocidade, o sujeito é mais ato do que pensamento e, assim, não antecipa o susto.
Diante desta colocação, torna-se interessante explorar o tema da angústia para
encontrar subsídios para nossa discussão, que envolve o trabalho do analista frente a
essas especificidades.
4.1.2- A angústia em Freud
A fim de explorar o tema da angústia para podermos avançar em nosso
trabalho, faremos um breve panorama em Freud no intuito de esclarecer o
mecanismo de angústia e, principalmente, sua relação com o choque.
Em Inibições, sintomas e angústia” (1926a/1996), Freud questiona o
medo da castração como a única força motora do recalque ou da defesa. Nas
mulheres, por exemplo, não há como se falar em medo da castração, pois esta já se
verificou. Ele conclui que a angústia produz o recalque, e não o contrário. O
recalque seria um esforço no sentido de desfazer a experiência traumática. Desta
118
maneira, Freud aponta que a angústia é fundamental para a formação de sintomas.
Ele exemplifica esta situação através da fobia, quando o Eu, sede da angústia, é
capaz de fugir desta através do sintoma. Assim, aponta que a angústia é um sinal
que protege o Eu. Nesse caso, o autor se refere à neurose de angústia, mas percebe
que o mecanismo da angústia na neurose não difere de seu mecanismo enquanto
angústia realística – relacionada à proteção contra um perigo real exógeno.
Freud, em “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma
síndrome específica denominada neurose de angústia” (1895b/1996),
diferenciava a angústia enquanto afeto e a neurose de angústia. O afeto seria um
estado que passa rapidamente, enquanto a neurose seria um estado crônico, que
a excitação exógena age de uma vez e a excitação endógena atua como uma
força constante.
Retornando nossa atenção para o artigo “Inibições, sintomas e angústia”
(1926a/1996), temos que a angústia, seja enquanto neurose ou enquanto puro afeto,
constitui-se como uma reação ao perigo. Sendo assim, Freud (1926a/1996) menciona
a possibilidade de considerarmos as neuroses traumáticas como resultado do medo do
aniquilamento; da morte. Seria uma defesa em favor da vida.
No caso da neurose traumática, o escudo protetor contra os estímulos é
desfeito e grandes quantidades de excitação invadem o psiquismo (FREUD,
1926a1996). Essa idéia estava presente em “Sobre os fundamentos para
destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de
angústia” (1895b/1996), quando Freud considerava a angústia como produto de
119
um excesso não elaborado psiquicamente. Ele colocava o problema nos seguintes
termos:
“A psique é invadida pelo afeto de angústia quando se sente
incapaz de lidar, por meio de uma reação apropriada, com uma tarefa (um
perigo) vinda de fora; e fica presa de uma neurose de angústia quando se
percebe incapaz de equilibrar a excitação (sexual) vinda de dentro - em
outras palavras, ela se comporta como se estivesse projetando tal
excitação para fora” (FREUD, 1895b/1996, p.112)
Essa definição da angústia enquanto defesa frente ao choque também está de
acordo com a idéia de trauma do texto de 1920, “Além do princípio de prazer”. Mais
tarde, no artigo de 1926, Freud (1926a/1996) relaciona a situação traumática ao
desamparo. Além disso, esclarece que, por um lado, a angústia como sinal é a
expectativa de um trauma, mas por outro, é a repetição dele em forma atenuada. Para
fazer funcionar um sinal de perigo, de se conhecer o perigo. Daí, a angústia é
sempre uma repetição; uma antecipação do afeto. Nos casos dos sonhos traumáticos,
por exemplo, primeiramente o sujeito experimentou o trauma passivamente. Na
repetição da cena sonhada, o sujeito busca desenvolver a angústia e ficar numa
posição ativa através da antecipação do perigo. É uma forma de atenuar o trauma
(FREUD, 1920/1996; 1926a/1996).
Como foi debatido no capítulo II do presente trabalho, tanto Freud quanto
Ferenczi entenderam os sonhos como uma tentativa de cura; uma tentativa de
120
dominar o excesso traumático. O sonho da neurose traumática funciona como uma
primeira ligação do afeto. A este propósito Maia considera que:
“(...) colocar a dor psíquica em imagens oníricas, ou melhor, circunscrever
a dor psíquica provocada pelo afeto de terror oriundo das impressões
traumáticas patógenas em um espaço de sonho, pode favorecer o processo
de perlaboração da experiência traumática” (MAIA, 2003, p. 201).
Circunscrever a dor psíquica através dos sonhos, proporcionando um mínimo
de dominação dos estímulos, pode vir a favorecer a elaboração de uma fantasia, ou,
pelo menos, de uma narrativa em torno do trauma. Isso faz sentido na medida em que,
em “Além do princípio de prazer” (1920/1996) Freud sustenta a noção de que o
responsável pelo trauma é o fator surpresa, atenuado no sonho. A surpresa provoca o
susto ou terror (Schreck), que é diferente do medo (Furcht) e da angústia (Angst). A
angústia descreve o estado de espera pelo perigo e preparação para enfrentá-lo, ainda
que desconhecido. O medo está sempre em relação a um objeto definido e o susto ou
terror é a denominação do estado em que alguém fica quando entrou em perigo sem
estar preparado para ele.
Relembrando um pouco do que foi dito no segundo capítulo desta tese, para
Ferenczi (1873-1933/1990), não os sonhos traumáticos visam liquidar o trauma. A
repetição das sensações corporais do momento do trauma tem a mesma função.
Podemos, inclusive, fazer uma leitura de Freud onde a própria angústia pode
ser carregada de sensações corporais que remetem ao trauma. Em “Inibições,
121
sintomas e angústia (FREUD, 1926a/1996), Freud observa que a angústia tem
caráter de desprazer e se manifesta no corpo, através de sensações físicas mais ou
menos definidas. Ele havia descrito as formas de expressão da angústia,
basicamente corporais, no artigo “Sobre os fundamentos para destacar da
neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia” (FREUD,
1895b/1996). Neste texto temos a afirmação de Freud sobre os estados afetivos se
incorporarem na mente: as experiências podem ser revividas no corpo como
símbolos mnêmicos. Neste sentido, aqui podemos nos remeter à idéia ferencziana
de memória corporal
14
, em que o corpo é capaz de guardar lembranças dessas
formas de expressão dos afetos, inclusive do trauma. O que nos permite afirmar
que o mecanismo de angústia poderia acionar um sinal de perigo também através
da memória corporal.
Um outro fator importante sobre a angústia foi levantado no texto escrito por
Freud e Breuer em Estudos sobre a histeria” (1893-1895/1996). Os autores
consideram que todas as perturbações do equilíbrio psíquico caracterizadas por afetos
agudos como a angústia acompanham um aumento da excitação. E todos os afetos
intensos restringem a associação; o fluxo de representações. Apenas as representações
que provocaram o afeto persistem na consciência. E permanecem com extrema
intensidade a ponto da atividade associativa não conseguir aplacar o excitamento. Daí
a necessidade da repetição deste grupo de representações que persiste na consciência
para que o psiquismo possa dominar a excitação a partir do surgimento da angústia.
14
Vide capítulo II
122
Desta maneira o aparelho psíquico tem mais chances de retornar à atividade
associativa (FREUD, 1920/1996).
Portanto, vemos o quanto a angústia é um afeto fundamental para a
manutenção da vida psíquica. Freud concebe a angústia como um mecanismo de
defesa, que protege o sujeito do terror e do desamparo. Afinal, “todo indivíduo tem,
com toda probabilidade, um limite além do qual seu aparelho mental falha em sua
função de dominar as quantidades de excitação que precisam ser eliminadas”
(FREUD, 1926a/1996, p.146).
A partir dessa conceituação da angústia como um mecanismo fundamental
para o psiquismo, abordaremos a seguir a questão da angústia na atualidade.
Retornaremos a Benjamin (1939/1989) em sua concepção de “sujeito do choque”,
que, a nosso ver significa que o sujeito está, a todo momento diante do limite além do
qual seu aparelho mental falha. Essa noção de “sujeito do choque” ainda é bastante
atual por estar de acordo com a inclusão do trauma no cotidiano da sociedade
contemporânea
15
. Portanto, como tocam em pontos fundamentais acerca dos
processos de subjetivação, são questões imprescindíveis para que possamos avançar
em nossa argumentação sobre a escuta do analista.
4.1.3- O sujeito do choque
No capítulo anterior apresentamos algumas idéias de Walter Benjamin que
nos ajudam a encaminhar nosso trabalho. Aqui, retomaremos essas noções,
15
Tema que foi abordado no capítulo anterior
123
destacando a discussão sobre a diferença entre “vivência” (Erlebnis) e “experiência”
(Erfahrung). Para este autor a experiência, que está sempre em relação à tradição e à
cultura, acumula-se ao longo do tempo; a vivência é sempre do indivíduo solitário e
precisa ser assimilada às pressas para produzir efeitos imediatos. Nestes termos, a
vivência é relacionada à figura do jogador. Esse indivíduo que produz atos sem
hesitação; sem tempo de espera. O tempo do jogador é o tempo do choque, da
repetição de uma mesma cena. O êxtase do jogo é alcançado a partir de seu tempo
veloz. O jogo não produz um acúmulo de conhecimento, pois ele sempre recomeça
sem qualquer ligação com o passado. Para Benjamin (1939/1989), a descontinuidade
constitui o caráter da experiência vivida (Erlebnis) e encontra no jogo uma expressão
catastrófica. A vivência não pressupõe história, nem constrói uma história. Ela é
superficial e se esfumaça sem guardar memória. Daí Benjamin (1939/1989) conclui
que a vivência ou experiência vivida é pontual e consciente. a experiência,
Benjamin (1939/1989) relaciona à memória involuntária de Proust. Ou à memória
inconsciente de Freud.
Benjamin (1939/1989) destaca que Freud, em Além do princípio de prazer”
(1920/1996), tem clara a idéia de que a permanência do traço mnêmico e a
conscientização são incompatíveis para um mesmo sistema psíquico. E ainda lembra
que, neste mesmo sentido, Reik ressalta que a função da memória é proteger as
impressões enquanto a lembrança voluntária – consciente - tende a desagregá-las.
Desta forma, Benjamin (1939/1989) nos remete a Freud (1920/1996), que
postula que a consciência não é capaz de registrar os traços mnemônicos. A memória
pertence a outro sistema. A memória é inconsciente. Neste ponto Benjamin também
124
nos remete a Proust, afirmando que de acordo com este autor a memória involuntária
pertence a “outros sistemas” diferentes da consciência e considera o corpo como um
sistema de memória. As imagens mnemônicas contidas nos membros do corpo podem
repentinamente invadir a consciência. Notamos que essa concepção proustiana é
bastante próxima à concepção de memória corporal em Ferenczi, como discutimos no
capítulo II desta tese. Temos em Ferenczi (1913/1988) uma idéia de constituição
subjetiva traumática que promove rupturas nas formas de organização do Eu e do
mundo. São estádios do sentido de realidade. Formas de organização psíquica que
podem ser “reativadas” ao longo da vida. A “lembrança” dos primeiros anos de vida,
por exemplo, permanecem gravadas no corpo e podem despertar em qualquer tempo
(FERENCZI, 1920-1932/1992).
Desde o texto do “Projeto para uma psicologia científica” (1895a/1996),
Freud admite que a memória é inconsciente e pertence a um sistema diferente da
consciência. Neste texto, Freud esclarece que os “neurônios impermeáveis” seriam
responsáveis pela memória e “neurônios permeáveis” os responsáveis pela
consciência. Em Além do princípio de prazer” (FREUD, 1920/1996), essa
concepção é mantida apesar de não se tratar mais de sistemas de neurônios, mas de
instâncias psíquicas. E a função da consciência é a de agir como proteção contra os
estímulos. Afinal, uma grande intensidade desses estímulos causa o choque. Desta
forma, quanto mais correntes os registros dos choques na consciência, menor o efeito
traumático, pois diminui o efeito surpresa. A recepção do choque é atenuada por meio
do controle dos estímulos através da lembrança e do sonho. É a função da antecipação
que produz angústia. Angústia que protege do susto e, conseqüentemente, do trauma.
125
Citando Valéry, Benjamin (1939/1989) aponta que a lembrança consciente
organiza a recepção do estímulo; ela abre uma lacuna temporal para a organização
destes. Desta forma, o choque é atenuado através da antecipação. O fato de o choque
ser amortecido pela consciência e pelo sonho empresta ao evento caráter de
experiência vivida. Nos termos de Benjamin (1939/1989):
“Quanto maior é a participação do fator choque em cada uma das
impressões, tanto mais constante deve ser a presença do consciente no
interesse em proteger contra os estímulos; quanto maior for o êxito com
que ele operar, tanto menos essas impressões serão incorporadas à
experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência”
(BENJAMIN, 1939/1989, p.111).
Sendo assim, quanto menos o choque é amortecido pela consciência, mais o
sujeito se encontra no registro da vivência. Então, podemos apontar que a repetição
da neurose traumática é uma experiência vivida e se repete porque somente através da
repetição é possível o amortecimento do estímulo.
Como foi discutido no capítulo anterior, para Benjamin (1936/1994) a
modernidade privilegia o indivíduo da vivência (Erlebnis). E cada vez mais temos
acesso a informações de forma mais rápida no mundo globalizado, somos expostos a
mais estímulos e mais choques. Cada vez mais a experiência (Erfahrung), tão
valorizada na cultura antiga, vai dando lugar à vivência (Erlebnis). No entanto, nossa
cultura barra a angústia na medida em que o sujeito que sofre é um perdedor; um
126
insuficiente. Desta maneira o sujeito fica mais suscetível ao choque traumático na
medida em que ficará no registro das experiências vividas, sem a proteção da
angústia. Neste ponto vale a pena retomar à problemática da literalidade abordada no
capítulo anterior. Se a narrativa literal é uma forma de aplacar o trauma, é justamente
porque houve uma “falta na predisposição para a angústia”
16
. Na narrativa literal
uma tentativa de dominar um “não sei o quê” que incomoda, insiste e se repete. Não
se trata de um susto ou de se sentir em perigo. Trata-se de um excesso que irrompe no
psiquismo e permanece como algo intraduzível. Alguns sujeitos respondem a essa
intensidade narrando suas sensações e impressões, inclusive o funcionamento de seu
próprio corpo: os batimentos cardíacos, a sudorese, etc. Lembremos que Benjamin
(1936/1994) relaciona o fim da narrativa antiga, referida à experiência e a
predominância da literalidade referida à vivência ao advento da modernidade
17
.
Desde o início da modernidade verificamos mudanças nas categorias de
espaço, tempo, vida e morte. Isso aponta para uma revolução ímpar no processo de
subjetivação. Bauman (2001, p.131) associa a era moderna à emancipação do tempo
em relação ao espaço, sua subordinação à inventividade e à capacidade técnicas
humanas”. Antes, medíamos o tempo através da medição do espaço percorrido. Com
o desenvolvimento moderno o tempo se diferenciou do espaço, pois passou a ser
manipulado. E não o tempo passou a ser manipulado. Vida e morte também. Na
atualidade, inclusive, essas questões são radicalizadas. No campo da medicina, por
16
Expressão utilizada por Freud em “Além do princípio de prazer” (1920/1996) para designar o susto
(schrek)
17
Conforme capítulo III do presente trabalho
127
exemplo, a questão da imortalidade nos ronda como possibilidade efetiva. De acordo
com Baudrillard (2000, p.11), a morte deixou de ser “um evento fatal ou simbólico”,
tornando-se tão somente uma “realidade virtual”. Na atualidade, a categoria do
impossível perdeu o lugar: se ainda não podemos encontrar a cura ‘definitiva’ de uma
doença, ou criar com sucesso tantos órgãos quanto necessários para promover a vida
eterna, trata-se simplesmente de uma ‘questão de tempo’. Enquanto isso não
acontece, a indústria farmacêutica busca remédio para todos os males da alma e do
corpo para aplacar o sofrimento muito rapidamente, antes mesmo que o sujeito que
sofre pense sobre aquele sofrimento. Como disse um paciente em análise: “não pega
bem mostrar que está sofrendo”. O sujeito moderno precisa ser auto-suficiente para
ser aceito. O discurso da eficiência acaba por gerar exclusão social, segregando os
“estranhos”: deprimidos, tímidos, fóbicos, panicados e vários outros “rotulados”. No
entanto, essa exclusão do insuficiente é velada. Após a violência da exclusão, o
desmentido. Numa leitura ferencziana, se esse sujeito passar por sucessivos
abandonos, traumas da ordem da violência inominável, ele perderá a certeza de si. O
terror de que fala Ferenczi é o da perda da identidade; o da falta de uma narrativa
autêntica sobre si mesmo. No mundo contemporâneo encontramos essa queixa sobre
a falta de narrativa autêntica, mas esta pode estar relacionada ou não à perda
identitária.
128
4.1.4- Os destinos do trauma
Como foi proposto no capítulo anterior, a narrativa literal seria produzida pela
inserção do sujeito numa modalidade de tempo que denominamos de
“presentificado”. Esse é o tempo do trauma, da catástrofe, que pode ser estruturante
ou desestruturante de acordo com Ferenczi. A literalidade se apresentaria como
resposta aos dois tipos de trauma. Quando afirmamos que hoje esse tipo de narrativa
é bastante comum na clínica psicanalítica e relacionamos este fato à idéia de
Benjamin sobre a predominância da vivência (Erlebnis) em contraposição à
experiência (Erfahrung), não queremos dizer que uma predominância de sujeitos
traumatizados segundo o modelo do trauma desestruturante. Estar diante de um
sujeito que faz uso da narrativa literal não é necessariamente estar diante de uma
configuração traumática onde há perda da certeza de si.
Portanto, quando recebemos um paciente com uma narrativa literal, não
necessariamente em curso uma autoclivagem narcísica. A narrativa literal seria
apenas uma resposta ao choque, que ocorreu na falta do mecanismo de angústia.
Resposta que pode ser acompanhada de atos compulsivos diversos no sentido de se
livrar do acúmulo de intensidade.
Nos dois tipos de trauma propostos por Ferenczi, o sujeito é surpreendido pelo
novo, por alguma coisa que ele não tem introjetado no Eu. No trauma estruturante,
isso faz parte do próprio processo de introjeção. A introjeção é traumática. A
129
confusão de línguas é inevitável, pois criança e adulto não estão no mesmo registro
18
.
Então, se as catástrofes são inevitáveis ao longo do processo de constituição subjetiva
(e são inevitáveis sempre, pois este processo nunca é superado), não como o
sujeito se preparar para o susto de toda nova introjeção por mais que se conserve um
mínimo de angústia. Desta forma, a literalidade, em seu tempo presentificado, serviria
como um tempo de espera pela conciliação entre as impressões e o sentido; o Eu e o
mundo. Se hoje vivemos numa época de choques cotidianos, não devemos estranhar a
predominância da literalidade.
Em relação ao trauma desestruturante, fica bastante clara a ausência do
mecanismo de angústia. Mas, nesse caso, o sujeito é surpreendido, sobretudo, pelo
desmentido. O que define o trauma como desestruturante é o desmentido
(FERENCZI, 1931/1992). Como conseqüência temos a identificação com o agressor,
que produz uma construção identitária nos moldes da artificialidade
19
. Este trecho do
texto de Ferenczi (1933/1992) nos exemplifica bem esta situação:
“O medo diante de adultos enfurecidos, de certo modo loucos,
transforma por assim dizer a criança em psiquiatra; para proteger-se do
perigo que representam os adultos sem controle, ela deve, em primeiro
lugar, saber identificar-se por completo com eles. É incrível o que
podemos realmente aprender com nossas ‘crianças sábias’ (...)”
18
Vide capítulo II
19
De acordo com as considerações efetuadas no capítulo III
130
Aqui vale fazer referência a Winnicott, que, como Ferenczi relaciona o trauma
a uma ameaça à certeza de si. Ambos, a partir de perspectivas teórico-clínica bastante
distintas, positivam um modo de subjetivação para fazer frente ao trauma
desestruturante. Além disso, consideramos essencial o fato de Winnicott, assim como
Ferenczi, destacar o papel do outro, seja como representante do mundo externo, seja
como catalisador, na organização da subjetividade. Neste sentido, os dois autores
relacionam o abandono ou a falha desse outro ao trauma.
Winnicott (1960/1982) também trata da possibilidade de uma construção da
organização psíquica nos moldes da artificialidade identitária a partir do trauma. Aqui
podemos aproximar o falso self de Winnicott (1960/1982) ao traumatizado de
Ferenczi (1933/1992). Em Winnicott (1960/1982), uma das características do falso
self seria a de não se sentir verdadeiro. O falso self possuiria um sentimento de grande
estranheza com relação a si.
De acordo com Winnicott (1960/1982), apenas o verdadeiro self teria a
capacidade de ser criativo e produzir uma ação no mundo. E a constituição do
verdadeiro self dependeria da relação deste com o mundo externo nas fases precoces
da vida. Dependeria, então, da criatividade primária, possibilitada pela experiência da
ilusão:
“No decorrer do tempo surge um estado no qual o bebê sente
confiança em que o objeto do desejo pode ser encontrado, e isto significa
que o bebê gradualmente passa a tolerar a ausência do objeto. Desta forma
inicia-se no bebê a concepção da realidade externa, um lugar de onde os
objetos aparecem e no qual eles desaparecem. Através da magia do
131
desejo, podemos dizer que o bebê tem a ilusão de possuir uma força
criativa mágica, e a onipotência existe como um fato, através da sensível
adaptação da mãe. O reconhecimento gradual que o bebê faz da ausência
de um controle mágico sobre a realidade externa tem como base a
onipotência inicial transformada em fato pela técnica adaptativa da mãe”
(WINNICOTT, 1990, p. 126).
Nessa perspectiva, ao pesquisar a etiologia do falso self, Winnicott
(1960/1982) examina o estágio das primeiras relações objetais e, particularmente, o
modo como a mãe responde à onipotência infantil revelada em um gesto ou
associação sensório-motora. Winnicott (1960/1982) relaciona a idéia de um self
verdadeiro ao gesto espontâneo. Ao formular o conceito de falso self, o autor recorre
à noção de mãe suficientemente boa, que sustentaria a onipotência do bebê e com isso
possibilitaria a emergência do verdadeiro self. O bebê poderia, desta forma, acreditar
que é ele quem cria a realidade externa e a mãe não colidiria com sua onipotência.
Assim, o bebê poderia gozar da ilusão de criar e controlar até poder vir a reconhecer o
elemento ilusório, no brincar e imaginar. Na visão winnicottiana, esta seria a base do
símbolo: a espontaneidade, a alucinação, enfim, o objeto externo criado. Portanto, a
mãe suficientemente boa conduziria o bebê à simbolização.
A mãe que não é suficientemente boa, não seria capaz de assegurar a
onipotência do bebê. Desta maneira, ela substituiria o gesto do bebê pelo seu próprio.
O bebê não teria condições de acreditar que cria a realidade externa, permanecendo
completamente submetido a ela. Isso corresponderia ao estágio inicial da constituição
do falso self . Na base dessa constituição temos que:
132
“Em vez do relacionamento com a realidade exterior atenuado pela
utilização temporária da onipotência ilusória, desenvolvem-se dois
diferentes tipos de relação objetal, que podem existir desconectados um
do outro (...) De um lado estará a vida privada do bebê (...), e de outro
lado estará um falso self, que se desenvolve sobre uma base de submissão
e se relaciona com as exigências da realidade de forma passiva”
(WINNICOTT, 1990, p.128).
O autor propõe que existe uma cisão entre o falso self e o verdadeiro self.
Aqui, o falso self pode ser concebido como uma defesa contra o que seria
inimaginável, ou seja, o aniquilamento do self verdadeiro. A este respeito, ele se
refere a graus de cisão, sendo que a esquizofrenia corresponderia ao maior grau. Se o
grau ou intensidade de cisão não é tão grande, o indivíduo teria a possibilidade de
construir uma vida através da imitação. Esse seria o indivíduo denominado falso self.
Winnicott (1960/1982) também classifica as organizações do falso self desde a
concepção deste como uma apropriação mimética do outro, quando o indivíduo tem
sentimentos de vazio e irrealidade, passando pela idéia de defesa do verdadeiro self,
até a abordagem do falso self como responsável pela atitude social polida. Na saúde,
isto é, no indivíduo criativo que se sente real, não seria possível apenas a emergência
do verdadeiro self. O falso self teria lugar na atitude social. Assim, ora o falso self
estaria relacionado a uma patologia, ora à normalidade.
Em linhas gerais, o indivíduo cuja organização subjetiva estaria
completamente atrelada ao funcionamento falso self, possuiria um sentimento de
futilidade em relação à vida e construiria relacionamentos falsos. Por meio de
133
introjeções, poderia obter uma aparência real, tornando-se exatamente como a mãe ou
o representante do mundo externo. Além disso, quando um falso self se torna
organizado em um indivíduo que tem um grande potencial intelectual, haveria uma
forte tendência para a mente (a racionalidade) se tornar a referência do falso self .
Contudo, isso não indicaria que esse indivíduo estaria isento de sofrimento, pois se
sentiria um impostor ao obter qualquer êxito. Ademais, teríamos uma dissociação
entre a atividade intelectual e a existência psicossomática. (WINNICOTT,
1960/1982)
Ainda sobre a clivagem do intelecto, também é importante lembrarmos que,
nesse tipo de organização, o pensamento substituiria os cuidados maternos, como se o
bebê exercesse sua própria maternagem. Daí, a noção de self cuidador no
funcionamento falso self.
O que nos interessa em relação ao conceito de falso self para esse trabalho é a
possibilidade de concebermos uma forma de organização subjetiva a partir desse
conceito. Neste sentido propomos a noção de falso self como referência a uma
ordenação subjetiva com fins defensivos tendo em vista que Winnicott, apesar de
muitas vezes se utilizar do termo self como Eu, diferencia o self deste. O autor
esclarece que o Eu seria uma parte do self responsável por organizar e integrar a
experiência e o self representaria o sentimento de ser subjetivo (ABRAM, 2000).
Desta forma, entendemos que o falso self corresponderia a um sentimento de
subjetividade falsa, se assim podemos dizer. E, de fato, o que Winnicott (1960/1982)
propõe é que essa subjetividade apontaria para uma submissão ao objeto que aparece
e desaparece. Seria uma defesa face à falha do ambiente num momento muito precoce
134
da vida do indivíduo. O bebê não poderia confiar no ambiente, que não teria
garantia do retorno do objeto. Sendo assim, ele o teria a garantia da continuidade
deste objeto quando ainda não diferencia Eu de não-Eu. Logo, o bebê não teria a
garantia da continuidade da própria existência.
Aqui propomos uma aproximação ao conceito ferencziano de identificação
com o agressor. Reconhecemos a possibilidade de subjetivação a partir de um tipo de
identificação via apropriação mimética tanto no falso self de Winnicott quanto no
mecanismo de identificação com o agressor em Ferenczi. O falso self de Winnicott e
o traumatizado de Ferenczi se organizariam através da clivagem e tornando-se
cuidadores de si.
Essa aproximação é bastante importante para nosso trabalho, pois permite
exemplificar e aprofundar as conseqüências de um trauma desestruturante.
Pretendemos deixar claro que a narrativa literal e o tempo presentificado não definem
este tipo de trauma e não são suas principais características. A narrativa literal como
expressão da presentificação seria uma resposta frente a qualquer tipo de trauma
diante da falha do mecanismo de angústia. Assim como a compulsão à repetição
20
.
Este será definido como estruturante ou desestruturante de acordo com a
possibilidade de acolhimento do mundo externo.
Neste sentido, Gil (1999) denomina o terror, e podemos ler como trauma
desestruturante, como um “duplo-esmagamento”: depois de uma primeira injustiça,
tenta-se limpar e inscrever a violência com uma segunda injustiça. Por exemplo,
quando o adulto pune a criança para justificar uma primeira punição que foi feita
20
A relação entre a compulsão à repetição e a narrativa literal foi discutida no capítulo III
135
injustamente e força a criança à obediência. Gil compreende que o desmentido é
fundamental para a instalação do terror, seja num indivíduo ou na sociedade. Em suas
palavras:
“É preciso pelo menos uma condição para que haja obediência ao
terror: que, a partir de um certo momento, o terror não seja reconhecido
como tal; que, de algum modo, se esqueça a sua origem e a sua existência
(...)Aí, ele estabilizou-se no espírito dos dominados; em vez de
engendrar pavor e angústia, faz nascer solicitude, amor e servilismo”
(GIL, 1999, p.37, grifo nosso).
O trauma desestruturante instalado, portanto, não desperta angústia. Ao ser
surpreendido pelo desmentido, o sujeito é invadido pela necessidade ou até obrigação
de satisfazer as exigências do sistema e dos superiores (GIL, 1999).
Mas ao pensarmos na realidade enquanto trauma, ou seja, no trauma cotidiano
da sociedade contemporânea, não estamos remetidos necessariamente ao trauma
desestruturante. O trauma se configura enquanto tal pelo aspecto do transbordamento
das intensidades a partir da falha do mecanismo da angústia. Um evento que
surpreende pode ser traumático; pode provocar o choque; o afeto de terror. E esse
evento pode não ter as condições necessárias para provocar a perda da certeza de si.
O que ele provocará nesse caso? Suscitará no sujeito formas de lidar com o que não
tem ainda um sentido. O sujeito tentará introjetá-lo. Consideramos que a literalidade
tem lugar nessa tentativa de introjeção, e não apenas nos mecanismos construídos
para dar conta do trauma desestruturante (o trauma gravado literalmente no corpo e a
136
identificação com o agressor). Com isso, o problema que nos resta complementa a
indagação colocada por Benjamin (1936/1994). Ele questionou se seria possível
recuperarmos a experiência na sociedade moderna; transformar a vivência e o choque
em experiência. Nossa posição é a de que essa transformação pode ser mediada
pela introjeção, incluindo o papel do outro neste processo. E nós perguntamos: é
possível o analista funcionar como um catalisador, cuja função é introjetar, sem
produzir angústia?
4.2- A técnica da psicanálise e o trabalho dos analistas nos últimos tempos.
Compreendemos que o sujeito de hoje se relaciona com o tempo se utilizando
muito de uma modalidade de temporalidade que designamos por presentificação.
Constamos isso através de uma forma narrativa peculiar e bastante presente no
discurso dos pacientes atualmente: a narrativa literal. Ou seja, a literalidade estaria no
registro da presentificação. Aproximamos essa noção de tempo presentificado tanto
da idéia de sonho traumático a repetição idêntica de uma cena - apresentada por
Freud em 1920, quanto da noção de tempo nos dois tipos de trauma propostos por
Ferenczi. Essa aproximação pode lançar uma luz acerca do mal-estar do sujeito
contemporâneo. A temporalidade da catástrofe não obedece à lógica da continuidade
e acreditamos que ela produza um outro tipo de narrativa. Uma narrativa que
proporciona “uma parada no tempo” para que o sujeito recomponha afetos e sentidos
numa cadeia simbólica; uma forma de atenuar o trauma no lugar da angústia, já que o
choque pressupõe a falta de predisposição para a angústia.
137
O discurso daqueles que padecem muitas vezes se restringe à descrição de
imagens pontuais (quando os momentos da vida parecem não ter ligação). Isso leva
alguns autores da psicanálise a relacionar os sintomas ditos contemporâneos
síndrome do pânico, somatizações, etc – a uma falta de capacidade de simbolização e,
conseqüentemente de associação, por parte do sujeito. No entanto, encontramos, tanto
em Freud a partir de 1920, quanto em Ferenczi (conhecido como o analista dos casos
difíceis), um esforço no sentido de lidar com esta narrativa construída num tempo
presentificado e que pode se apresentar como uma imagem fixa.
Portanto, nossa proposta é a de fazer uma releitura da própria clínica a partir
de Freud e Ferenczi. Recorreremos ao conceito de construção em Freud - que aponta
para uma invenção de si a partir da possibilidade de fantasiar - e lançaremos mão do
conceito de angústia como fundamental para pensarmos o trabalho analítico.
Contrastaremos a noção de Freud sobre técnica da psicanálise com as idéias de
Ferenczi.
4.2.1- Transferência, repetição e interpretação
Para pensar a clínica, antes de mais nada, devemos nos voltar para o tema da
transferência. Não temos a pretensão de aprofundar este tema, mas tomá-lo no que
interessa para a nossa argumentação. Talvez possamos dizer que a transferência é, na
verdade, o tema principal da psicanálise, na medida em que a teoria se faz a partir da
clínica. Freud deixa isso bastante claro no seguinte trecho de “A questão da análise
leiga: conversações com uma pessoa imparcial” (FREUD, 1926b/1996, p.219):
138
“Tudo agora depende disso. E toda a habilidade para lidar com a
‘transferência’ é dedicada a ocasioná-la. Como o senhor está vendo, as
exigências da técnica analítica alcançam seu máximo nesse ponto. Aqui se
podem cometer os erros mais graves ou os maiores êxitos podem ser
registrados. Seria estultície tentar fugir às dificuldades suprimindo-se ou
negligenciando-se a transferência; qualquer outra coisa mais que se
tivesse feito no tratamento não mereceria o nome de análise”.
Além disso, a transferência nos remete a questões cruciais tais como: o papel
do analista, a função da análise, a repetição e a resistência.
Começaremos por analisar o próprio termo “transferência”. Um dos primeiros
textos em que Freud utiliza este termo é A Interpretação dos sonhos(1900/1996).
Nele, a transferência é relativa aos afetos. O que se transfere o afetos. Estes o
transferidos de uma representação a outra; de uma instância a outra.
A transferência como um mecanismo que permite a análise claramente, “com
todas as letras”, aparece no posfácio do caso Dora (FREUD, 1905b/1996). Freud
define a transferência como reedições, reproduções das moções e fantasias que
despertam com o decorrer da análise. Experiências psíquicas passadas o revividas
como atuais, a partir do vínculo com o analista. Algumas transferências são
substituições apenas. São simples reimpressões ou reedições inalteradas. Outras, no
entanto, têm caráter de edições revistas. Ocorreria uma moderação de conteúdo ou
uma sublimação.
Neste momento, a partir do fracasso no caso, Freud se convence de que a
transferência é uma exigência indispensável. E também apresenta a transferência em
139
seu caráter paradoxal, como uma resistência. Ela é utilizada para produzir empecilhos
que tornam o material recalcado inacessível ao tratamento. Porém, somente na
transferência surge no paciente “o sentimento de convicção sobre o acerto das
ligações construídas durante a análise” (FREUD, 1905b/1996, p.112).
Freud admite que o manejo da transferência é a parte mais difícil do trabalho,
pois tem de ser apurada quase que independentemente, a partir de indícios ínfimos e
sem incorrer em arbitrariedades.
Em “Recordar, repetir e elaborar (1914b/1996), compreendemos que o
manejo da análise consiste em substituir a neurose comum por uma neurose de
transferência e a cura está relacionada à elaboração das resistências, não mais à
recordação do material recalcado.
Freud faz uma digressão e explica que, anteriormente, a tarefa do analista era
descobrir, a partir das associações livres do paciente, o que ele não recordava. Assim,
a resistência deveria ser interpretada pelo analista e comunicada ao paciente. As
situações que haviam contribuído para a formação do sintoma se constituíam como
foco de interesse.
Neste artigo de 1914, Freud propõe que o analista abandone a tentativa de
colocar em foco um momento específico. Ele deve escutar tudo o que paciente
associa e usar a interpretação para identificar as resistências e torná-las conscientes. A
finalidade é fazer com que o paciente supere as resistências devidas ao recalcamento.
No entanto, Freud admite que, com extraordinária freência, o paciente
recorda algo que nunca foi esquecido; nunca foi consciente. E, surpreendentemente,
para o tratamento isso parece um simples detalhe, pois não faz diferença para o
140
paciente se determinado pensamento foi consciente e depois esquecido ou se nunca
foi consciente. “A convicção que o paciente alcança no decurso de sua análise é
inteiramente independente deste tipo de lembrança” (FREUD, 1914b, p.164).
Desta forma, afirmamos que o paciente não recorda coisa alguma recalcada,
mas expressa isso em ato, pela repetição, sem saber o que está repetindo. E o
tratamento terá início a partir deste tipo de repetição. Mas o que se repete? A resposta
encontrada em Freud é que o sintoma se repete, as inibições e os “traços patológicos
de caráter” (FREUD, 1914b/1996, p.167). E a repetição não é só na análise, ela
acontece a todo momento, na vida. Podemos, então, fazer uma leitura disto da
seguinte maneira: o que se repete é a forma de estar no mundo, a maneira de
interpretar, as impressões sensíveis, o jogo de forças pulsionais da neurose, enfim,
tudo o que compõe a subjetividade.
Neste sentido, Freud aponta que temos aqui configurado um mecanismo de
compulsão à repetição, do qual não se pode fugir na análise, pois é essa a forma
privilegiada de repetição.
Sobre a relação desta compulsão à repetição com a transferência e com a
resistência, Freud é categórico: “(...) a transferência é, ela própria, apenas um
fragmento da repetição (...). Quanto maior a resistência, mais extensivamente a
atuação (acting out) (repetição) substituirá o recordar (...)” (FREUD, 1914b/1996,
p.166). E aqui acrescentamos: quanto maior a resistência e quanto mais se repete no
setting, maior o poder da transferência. Pois a repetição é dirigida ao analista. Para
que este escute e olhe o drama vivenciado. A especificidade da transferência na
análise é o fato dela ser manejada para que o tratamento aconteça. A transferência é o
141
que sustenta a análise. E ela tem lugar sob as condições da resistência. É
necessário que o analista saiba respeitar o tempo da resistência; aguardar a elaboração
da resistência. Trabalho que, concordando com Freud, é bastante difícil. A
dificuldade reside no fato da transferência se expressar de diferentes formas. Através
de atos, palavras e até de impressões sensíveis. É nesta direção que Reis (2004) se
refere ao termo “perlaboração”
21
para designar o tempo da transferência capaz de
promover a elaboração das resistências ou, simplesmente, a introjeção:
“A idéia de perlaboração supõe um trabalho feito por meio de
registros mnêmicos não-representacionais, ou seja, desde sempre
inconscientes. Ela atua no vel mnêmico dos signos de percepção,
ativada pela ‘poeira das pequenas percepções’ de que se compõe a
transferência. Com ela, constroem-se novos sentidos, que são percebidos
não pela tomada de consciência de conteúdos recalcados, e sim pelas
metamorfoses vividas durante o processo. Em outros termos, a
perlaboração trabalha com a matéria formada por vivências muito
primárias, que permanecem inacessíveis à lembrança e se apresentam pela
repetição de pequenos gestos, hábitos, posturas corporais, sensibilidades
somáticas específicas, todas componentes do que chamamos caráter”
(REIS, 2004, p.113).
Neste momento, pretendemos resgatar a idéia - trazida no capítulo II, a partir
de Ferenczi - de que a escuta analítica envolve mais do que palavras; envolve uma
dimensão não-representacional. A literalidade, conforme estamos compreendendo
21
O termo “perlaboração” diz respeito ao trabalho feito em análise. Consideramos mais apropriado do
que o termo “elaboração” em “Recordar, repetir e elaborar” (FREUD, 1914b), apesar da edição
brasileira não utilizá-lo.
142
neste trabalho, pressupõe a repetição de “alguma coisa” nesse registro. A literalidade,
em seu tempo parado, também comporta a repetição na descrição de cenas e
acontecimentos. E, muitas vezes, o que importa não são as palavras repetidas, mas o
afeto que elas despertam. Afeto que não tem um contorno, não adquiriu sentido. Com
isso, passaremos a delinear a técnica da psicanálise segundo Ferenczi, que inclui esta
“alguma coisa” que não pode ser posta em palavras.
4.2.2- Ferenczi e a técnica ativa
Para lidar com a resistência que impedia o fluxo de associações na análise de
pacientes que realizavam o tratamento muito tempo, e a partir de sua noção de
corpo, Ferenczi propôs a técnica ativa (FERENCZI, 1921b/1993). A noção de corpo -
de memória corporal - foi fundamental para a invenção desta técnica, porque a
observação da disposição corporal de seus pacientes, de seus afetos, gestos e
sensações era um modo de Ferenczi capturar algo daquele sujeito que não associava.
A técnica consistia num artifício a ser usado pelo analista, no sentido de fazer
interdições, sugerir tarefas, enfim, o que ele considerasse preciso, caso a caso, para
que um movimento acontecesse na análise. A idéia não era substituir a técnica
elaborada por Freud, e sim retomar a regra fundamental da associação livre. Ferenzci
tinha a intenção de provocar ou acelerar a investigação da análise. As ordens do
analista provocariam angústia no paciente que abandonaria suas defesas, e, ao se
exporem a esse afeto, superariam a resistência. A técnica ativa provocaria a repetição
do trauma nos moldes propostos por Freud em “Recordar, repetir e elaborar”
143
(1914b/1996) e liberaria o paciente para associar livremente. Para Ferenczi
(1921b/1993), a técnica ativa visa revelar certas tendências para a repetição. Essa
revelação é feita através da ação. Até porque, de acordo com o autor:
“Também pode acontecer que certos conteúdos psíquicos
inconscientemente patogênicos, datando da primeira infância, que nunca
foram conscientes (ou pré-conscientes), mas provêm do período dos
‘gestos incoordenados’ ou dos ‘gestos mágicos’, portanto, da época
anterior à compreensão verbal, não possam ser rememorados mas somente
revividos no sentido da repetição freudiana (FERENCZI, 1921b/1993,
p.125).
Com a técnica ativa, Ferenczi visava tornar ativo o paciente, que até então se
comportava passivamente diante do “parto dos pensamentos” (FERENCZI,
1921b/1993, p.110) e da interpretação. Ele considerava a interpretação uma atividade
por parte do analista. Como explica Pinheiro:
“O termo ‘atividade’, segundo Ferenczi, aplica-se mais ao paciente do que
ao analista, pois este último, no processo analítico clássico, já desempenha
um papel ativo. A interpretação seria, para ele, uma interferência ativa
no psiquismo do paciente, pois privilegia uma associação em detrimento
de outras e interrompe o livre curso das associações” (PINHEIRO, 1995,
p.104).
No entanto, a dificuldade de Ferenczi residiu principalmente na intenção de
tornar o paciente ativo. O que ele encontrou nesses sujeitos foi uma disposição bem
acentuada para a obediência. Percebeu que, em certos casos, o paciente se
144
comportava tal qual a criança do trauma desestruturante. Ele parecia estar submetido
à hipnose materna/paterna. E mais, Ferenczi pôde constatar que a resposta do sujeito
à repetição do trauma na análise é a mesma do momento do trauma desestruturante: a
saída através da identificação com o agressor, sentindo-se culpado no lugar deste
(PINHEIRO, 1995).
Sendo assim, Ferenczi modificou esta técnica, e em Elasticidade da técnica
psicanalítica” (FERENCZI, 1928/1992) admitiu que não é adequado fazer
interdições, dar ordens ou sugestões ao paciente. Isso estaria relacionado à pressa do
analista e à busca por um certo conforto. Ferenczi defende que ser analista é estar
numa posição desconfortável. É ser paciente e esperar pelo momento do paciente
entrar em atividade; é suportar a transferência negativa – que, para ele, é fundamental
para o tratamento no que diz respeito à superação da identificação com o agressor. E
como Freud já havia desenvolvido, ser analista é saber em que tempo da transferência
interpretar. De acordo com o autor:
“Ser parcimonioso nas interpretações, em geral, nada dizer de
supérfluo, é uma das regras mais importantes da análise; o fanatismo da
interpretação faz parte das doenças de infância do analista. Quando se
resolve as resistências do paciente pela análise, chega-se algumas vezes,
na análise, a estágios em que o paciente realiza todo o trabalho de
interpretação quase sozinho, ou apenas com uma ajuda mínima”
(FERENCZI, 1928/1992, p.33).
Claro que, ao colocar nestes termos, Ferenczi está de acordo com Freud que
considera que o analista deve, ele próprio, passar pela experiência de análise. Afinal,
145
“a modéstia do analista não é, portanto, aprendida mas a expressão da aceitação
dos limites do nosso saber” (FERENCZI, 1928/1992, p.31). O analista precisa, para
exercer sua função, saber abrir mão do próprio narcisismo. Essa idéia está presente na
noção ferencziana de tato apresentada neste texto de 1928. É o tato que permite ao
analista saber o momento de interpretar, de aguardar e calar. Através do tato, o
analista pode se pôr atento às forças da resistência. Ter tato é poder “sentir com”. É
se colocar no lugar do outro a partir da lógica de funcionamento desse outro, e não a
partir de sua própria subjetividade. Parece algo muito óbvio, mas é uma tarefa árdua
porque não requer nenhum tipo de racionalização. O “sentir com” é estar em sintonia
afetiva e nos remete ao que Maia (2004) denomina “campo de afetação”, apontando
“para a existência de um atravessamento entre domínios psíquicos” (MAIA, 2004,
p.235). Trabalhar a partir da noção de “sentir com” é admitir que as impressões
sensíveis são imprescindíveis no circuito da transferência.
4.2.3- A construção
No artigo Princípio de realaxamento e neocatarse” (FERENCZI,
1930/1992), Ferenczi esclarece que a função de muitas análises é a de permitir que o
paciente reviva o trauma. O analista funcionaria como um catalisador, promovendo a
introjeção do trauma a partir de seus indícios, geralmente despertados enquanto
memória corporal
22
.
22
Conforme capítulo II do presente trabalho.
146
Para Ferenczi, a técnica do relaxamento tem a potência de transformar o que é
uma tendência à repetição em rememoração. Esta técnica pressupõe um analista
benevolente, que ocupa um lugar diferente do ocupado tanto pelo agressor quanto
pelo adulto que provocou o desmentido. Neste momento Ferenczi aceita que o
paciente tenha a liberdade de se colocar no lugar da criança traumatizada. E justifica
sua posição através da observação clínica de que “a semelhança entre a situação
analítica infantil incita, mais, portanto, à repetição; o contraste entre as duas
favorece a rememoração” (FERENCZI, 1930/1992, p.67).
Essa benevolência do analista não é a mesma coisa que a evitação da angústia.
Na primeira parte deste capítulo indagamos se era possível o analista funcionar como
um catalisador, cuja função é introjetar, sem produzir angústia. Concluímos que a
resposta seria negativa. Ferenczi (1930/1992) concorda que não há como evitar o
sofrimento e o surgimento da angústia na análise. O paciente deve, inclusive,
aprender a suportar esse sofrimento. No entanto, ele indaga se, por vezes, não se
inflige ao paciente mais sofrimento do que o necessário. Ou seja, mais sofrimento do
que ele é capaz de suportar.
Lembremos que a análise lida com o manejo da angústia. A análise não
funciona se proporcionar angústia exacerbada e pode fazer com que o sujeito desista
do tratamento. Entretanto, se não causa angústia, não progresso no tratamento. Se
entendemos a análise como uma “desmontagem” e uma nova “montagemsubjetiva,
ela de gerar angústia frente ao desconhecido da nova “montagem”. Ela
proporciona um reequilíbrio no edifício egóico e nas forças pulsionais. O analista
precisa saber até onde pode modificar esse equilíbrio. O único dispositivo de que
147
dispõe é o tato. Desta forma, o processo de análise não é confortável nem para o
analista, nem para o paciente. Quando Ferenczi sugere o relaxamento, ele não
aconselha ao analista a hipocrisia. Esta tem lugar quando o analista se sente
confortável. Muito ao contrário, a técnica de relaxamento deixa o analista numa
posição desconfortável de quem precisa construir mais do que interpretar. É
necessário que se construa uma fantasia sobre o trauma. Alguma palavra que um
contorno mínimo aos afetos; às impressões sensíveis. Uma palavra que retire o sujeito
do tempo presentificado do choque, inserindo-o numa temporalidade com passado,
presente e futuro para que ele possa dar continuidade à invenção de si com maior
liberdade. Isso vale para os dois tipos de trauma. Vale para o tratamento do trauma
desestruturante, que visa à recuperação da certeza de si. Vale para o tratamento das
respostas ao choque cotidiano, dentre elas, a utilização da narrativa literal.
A técnica de relaxamento e neocatarse sugerida por Ferenczi em 1930,
portanto, consistia num trabalho de construção analítica. O termo utilizado por ele foi
“neocatarse” justamente porque ele abre espaço para a catarse ao permitir que o
paciente reviva o trauma no setting analítico - despertando as sensações corporais do
momento do trauma, as erupções emocionais e mnêmicas para que o trauma seja
atenuado. A catarse não basta. É necessário construir a partir dela.
Para Ferenczi, a análise sempre aponta para uma invenção, inclusive para a
invenção da fantasia:
“Não se justifica exigir da análise a rememoração consciente de
algo que nunca foi consciente. é possível reviver alguma coisa, com
148
uma objetivação a posteriori, pela primeira vez, na análise. Reviver o
trauma e interpretá-lo (compreendê-lo) - (...) - é, portanto, a dupla tarefa
da análise (...). Reviver as coisas de maneira muitas vezes repetida com
uma interpretação que se torna cada vez mais segura deve bastar ao
paciente” (FERENCZI, 1920-1932/1992, p.268).
No artigo As fantasias provocadas” (1924/1993), Ferenczi exemplifica essa
construção através do empréstimo de fantasia ao paciente empobrecido de atividade
fantasística. Ferenczi demonstra como suscitar fantasias “artificialmente”, a partir de
sua coolaboração na construção das mesmas. No entanto, ele aproxima este artifício
da técnica da interpretação, na medida em que esta direciona as associações e
produções do paciente em análise. Freud corrobora esta aproximação no texto
“Construções em análise(1937/1996) quando apresenta a interpretação envolvendo,
na verdade, uma construção. A interpretação faz inferência as partir de fragmentos de
lembranças, da associação e do comportamento do sujeito em análise. Ela realiza a
reconstrução de uma história a partir dos restos que sobreviveram (podemos pensar
que sobreviveram ao recalcamento ou ao choque). A tarefa do analista é “a de
completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou,
mais corretamente, construí-lo” (FREUD, 1937/1996, p.276). Freud apresenta essa
construção como um trabalho preliminar, porém, ao abordar a psicose, afirma que a
construção (do delírio, no caso) é uma tentativa de cura. Não pretendemos discutir a
psicose especificamente, mas essa colocação é importante por demonstrar que, em
alguns casos, Freud considera a construção na direção da cura. Ao falar sobre a
construção do delírio, não deixa de dar importância à construção de uma narrativa.
149
Esta afirmação é importante visto que coloca a necessidade, primeiramente,
do testemunho de um outro para que se faça uma “costura” entre todas as imagens e
afetos que circundam o mundo do sujeito a fim de produzir uma narrativa de vida; um
tecido fantasmático. Acreditamos que, além de interpretar, este seja nosso trabalho
como analistas nos últimos tempos (MONTES & HERZOG, 2005).
No entanto, esbarramos nos limites do analisável. A construção, assim como a
interpretação propriamente dita, tem limites. Quando nos remetemos à construção,
estamos referidos ao sentido. Porém, devemos levar em conta que o psiquismo está
para além disso. Algumas impressões permanecerão sempre como impressões.
Algumas vivências nunca se tornarão experiência. Alguns sujeitos privilegiarão a
narrativa literal. Por que querer enquadrá-los no modelo proposto originalmente pela
psicanálise: o da fantasia histérica? Gestos, tons de voz, tonalidades afetivas
continuarão remetendo a traumas e estes não cessarão de acontecer. Cada um
responderá a isso da maneira que for possível e até onde for possível. Como ressaltou
Jerusalinsky em relação às análises de crianças e aqui ficamos muito à vontade em
assemelhar as análises de crianças e de adultos, que Ferenczi assim fez com a
técnica de realaxamento (1930/1996) : “O terapeuta terá de fazer uma renúncia à
sua pretensão narcísica de ver sua obra acabada” (JERUSALINSKY, 1999, p.96). E
devemos fazer essa renúncia porque a obra a invenção de si ou os processos de
subjetivação nunca se acaba. A análise deverá ensinar ao sujeito a lidar com seu
sofrimento e com seus limites. E ela acaba ensinando isso aos analistas também.
150
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreendemos, a partir da escuta psicanalítica, que o sujeito de hoje se
relaciona com o tempo utilizando uma modalidade de temporalidade que designamos
por presentificação. Constatamos isso através de uma forma narrativa peculiar e
bastante presente no discurso dos analisandos atualmente: a narrativa literal. Uma
narrativa que não é rica em fantasias e paralisa a associação livre. No entanto,
tratamos a literalidade relacionando-a ao registro da presentificação no sentido de
positivá-la.
Indicamos que a narrativa literal, apontando para uma dificuldade
representativa, suscitou que se falasse, no meio psicanalítico, em perda da
interiorização nos pacientes de hoje e “novas subjetividades”. Além disso, fez com
que as questões do trauma e da pulsão de morte ficassem em primeiro plano.
Diante deste quadro, delineamos algumas características da sociedade
contemporânea que contribuem para o incremento dessa forma narrativa. Abordamos
um quadro bastante complexo, que envolve basicamente: o consumismo, o
capitalismo flexível e a relação com o tempo pautada na velocidade. Enfim,
ingredientes que nos remeteram a autores, como Benjamin, Seligmann-Silva e
Sennet, que definiram a realidade enquanto catástrofe, incluindo os choques no
cotidiano. No trecho seguinte do texto de Herzog e Pinheiro, encontramos uma
descrição que nos dá a dimensão de como o cotidiano se tornou traumático em
conseqüência do projeto moderno:
151
“O século XX foi o século das duas grandes guerras, o século da industrialização e
o século da comunicação e da tecnologia. E, como decorrência, o século do consumo.
Ao mesmo tempo, é o século da morte de Deus – conforme afirmam alguns filósofos –
e o século do homem feito Deus. Tanto assim que os mais variados inventos
tecnológicos permitiram ao homem ir à lua; produziu-se a pílula anticoncepcional,
liberando a sexualidade; os antidepressivos modernos; fomos, como num passe de
mágica, da fecundação in-vitro à Dolly que revolucionou a crença quase absoluta que
se tinha nos cromossomos, liberando a vida da morte. Em cerca de 30 anos o muro de
Berlim foi erguido e demolido. Inventou-se a televisão e o fax, o telefone celular e a
internet e a globalização. Em um curto espaço de tempo, num ritmo alucinante,
produz-se verdades que se tornam mentiras, certezas que não se sustentam. Não se tem
tempo sequer para acreditar.”(HERZOG E PINHEIRO,2003,p.3)
Apesar desta relação entre o choque, a literalidade e a contemporaneidade,
indicamos que é possível encontrar tanto no pensamento de Freud quanto no de
Ferenczi uma preocupação com o tempo presentificado e a literalidade. Então,
concluímos que não se trata de uma nova configuração subjetiva, e sim da
predominância de um modo de funcionamento psíquico que se insinua através de
sintomas relacionados ao trauma, fato que relacionamos ao contexto social em que
vivemos.
Para falar sobre esse modo de funcionamento psíquico predominante ao qual
nos referimos, mostramos que existem diferentes modalidades de temporalidade e
que, atualmente, a presentificação expressa pela literalidade ganhou a cena. Nesta
perspectiva, vimos que a literalidade aponta para uma aparente falta de subjetividade,
mas isto não significa necessariamente que a psicanálise esteja ultrapassada como
forma de dar conta do sofrimento psíquico. Essa idéia faz com que nosso problema
152
mude de figura. Não se trata de delinear uma nova nosografia, mas de fazer uma
releitura da clínica a partir de noções que já conhecemos, dentre elas: trauma, choque,
angústia, pulsão de morte. Isso não nos impede de olhar para este campo teórico que é
a psicanálise com novas lentes.
Com o intuito de esclarecer o estatuto da temporalidade no processo de
subjetivação, investigamos o tema do tempo em Freud. Constatamos que o aparelho
psíquico lança mão concomitantemente de diversas modalidades de temporalidade.
Na primeira tópica freudiana, o aparelho psíquico é apresentado como um
aparelho de retardo, operando basicamente no tempo do a posteriori. Assim, o
passado é atualizado no presente, abrindo a possibilidade de novas significações
serem construídas. Desta maneira, a concepção da temporalidade baseada no a
posteriori é condição de possibilidade para a elaboração das noções de fantasia e
realidade psíquica. Esta modalidade de temporalidade envolve os mecanismos de
associação e resignificação, elementos fundamentais para a concepção do aparelho
psíquico de interpretação, proposto no texto de 1900, “A interpretação dos sonhos”
(FREUD, 1900/1996).
Essa conceituação sobre o aparelho psíquico é fundamental para a postulação
acerca da constituição subjetiva através das instâncias ideais (1914/1996). A
construção das instâncias ideais está necessariamente atrelada à trama fantasmática
dos pais ou de, pelo menos, um outro sujeito. O que pressupõe a relação entre, no
mínimo, dois psiquismos. Relação esta que só pode estar baseada na interpretação das
mensagens vinda do outro. Neste contexto, o sujeito se apropria de um projeto
narcísico e é inserido na temporalidade “passado-presente-futuro”. É com a entrada
153
no narcisismo que temos a sensação de continuidade no tempo, que a noção de Eu
é o que nos permite construir uma narrativa de vida.
Nesta abordagem, vimos que o Ideal do Eu indica uma antecipação do futuro.
Aqui temos vigorando a função do Eu de antecipar. Trata-se de uma outra
modalidade temporal, diferente da posterioridade. No entanto, ela não impede o
funcionamento do psiquismo no tempo do a posteriori. Afinal, o aparelho psíquico
lança mão concomitantemente de diversas modalidades de temporalidade.
Tendo isso em vista, passamos a analisar o artigo “Além do Princípio de
Prazer” (1920/1996), onde encontramos uma noção de tempo presentificado a partir
do mecanismo dos sonhos traumáticos: a repetição idêntica de uma cena congelada
no tempo, pois não é elaborada e interrompe o fluxo de associações. É através desse
tipo de sonho que Freud consegue melhor exemplificar o que denomina “compulsão à
repetição”: a tentativa de realizar uma primeira ligação (Bindung) a fim de dominar a
excitação.
Aproximamos essa noção de tempo presentificado extraída dos sonhos
traumáticos da noção de tempo nos dois tipos de trauma propostos por Ferenczi, a fim
de melhor compreender o mal-estar do sujeito contemporâneo. Segundo Ferenczi
(1913/1988), a constituição subjetiva se através de sucessivas catástrofes. O
desenvolvimento do sentido de realidade (FERENCZI, 1913/1988) é realizado
através de rupturas nas formas de organização do Eu. Assim, depreendemos que a
narrativa literal, extremamente descritiva em torno das imagens e sensações,
proporcionaria “uma parada” no tempo para que o sujeito pudesse responder ao
trauma, introjetando afetos e sentidos no Eu. Vale ressaltar que isso corrobora a idéia
154
sobre as diferentes modalidades de temporalidade funcionando concomitantemente
no psiquismo. Porque se a catástrofe é inevitável para a subjetivação, essa paralisação
do tempo momentânea também deve ser considerada parte do processo subjetivante.
A partir dessas noções, temos que o trauma em si mesmo não é estrutrante,
nem desestruturante. O trauma será estruturante se for introjetado (destacando aqui o
papel do outro) e será desestruturante se for incorporado, entendendo a incorporação
como um mecanismo que funciona a partir da ausência de introjeção.
Assim sendo, marcamos que o que define o trauma desestruturante é o
desmentido, que promove a perda da certeza de si e, conseqüentemente, a
autoclivagem narcísica (FERENCZI, 1931/1992). De acordo com Ferenczi, esse
trauma configura uma forma de subvetivação mimética a partir da identificação com
o agressor. É neste contexto que Ferenczi fala sobre as crianças sábias demais;
psiquiatras da família. Uma construção ferencziana que aproximamos do falso self de
Winnicott (1960/1982), guardadas as devidas diferenças entre esses dois autores.
Uma outra idéia lançada a partir do trauma desestruturante é a de memória
corporal. O corpo teria um estatuto de lugar psíquico e, na impossibilidade do
traumatizado guardar lembrança da cena do trauma, esta ficaria registrada
literalmente no corpo (FERENCZI, 1873-1933/1990). Tal memória do corpo pode
invadir a cena analítica. Ela está relacionada à formação das impressões sensíveis
(FERENCZI, 1913/1988), que pertenceriam ao registro dos signos de percepção
(FREUD, 1896a/1996). Estes não são representações, mas marcas que proporcionam
uma primeira transcrição da memória: a primeira ligação (Bindung), no sentido de
captura da excitação.
155
Através da conceituação desse registro anterior à representação, tratamos a
narrativa literal pertencendo a esse registro, como uma produção subjetiva a serviço
das pulsões de vida; da introjeção. Ela estaria relacionada à repetição do que não tem
sentido na tentativa de tornar isso inscrito. Seria, portanto, um mecanismo de defesa
do Eu para protegê-lo da invasão de grandes quantidades de excitação. Serviria como
uma proteção face ao choque. Por isso abordamos sua relação com a angústia, que
também é produzida a fim de proteger o sujeito da surpresa que caracteriza o choque
traumático. Propomos que a narrativa literal funciona visando a introjeção, mas não
substitui a angústia. Ela entra em cena quando o mecanismo da angústia falha.
Vimos que na contemporaneidade, o sujeito lida com choques cotidianamente
e não tem tempo para hesitar. Ele precisa reagir mais e tem menos tempo para
escolher a resposta adequada. Não tem tempo para a angústia. Ademais, estar
angustiado foi relacionado a ser insuficiente. Logo, busca-se aplacar a angústia,
esquecendo que ela é fundamental para a manutenção da vida psíquica.
Nesta visada, recorremos a Benjamin (1939/1989), que associou a
modernidade ao surgimento do “sujeito do choque”, valorizando a vivência (Erlebnis)
em detrimento da “experiência (Erfahrung). A vivência (Erlebnis) está de acordo
com a estrutura moderna fragmentária, que acelera o tempo. Temos que admitir que
Benjamin parecia antever o futuro, pois essas questões se radicalizaram na atualidade.
Podemos compreender o que chamamos de “esvaziamento subjetivo” ou “falta de
interioridade” à derrocada do sujeito da experiência (Erfahrung).
Como conseqüência deste movimento, a narrativa tradicional ou alegórica
entrou em crise por conta da desvalorização da experiência (Erfahrung). E Benjamin
156
atrelou a vivência (Erlebnis) à narrativa jornalística, caracterizada pelo estilo literal e
pela univocidade do sentido.
Assim, a narrativa literal não pode ser aberta a interpretações como a narrativa
alegórica, que permite a associação livre de idéias. Inclusive, aproximamos a
narrativa alegórica àquela produzida pelo a posteriori freudiano por conta de sua
abertura para o novo; para a produção de sentidos.
Destacamos que Benjamin empreendeu uma crítica vigorosa com relação à
narrativa literal, mas ele acabou por dar um estatuto à literalidade. Notamos que
Benjamin atrelava o termo “narrativa” à narrativa alegórica, como se ela fosse a ideal.
Mostramos que foi nesse sentido que ele falou em fim da narrativa. Com Kafka e
Proust esse pensamento se relativizou. Benjamin teve acesso a dois autores os quais
considerava geniais e que conseguiram partir da literalidade ou da vivência em
direção à experiência partilhada.
No intuito de positivar a narrativa literal, partindo da vivência em busca da
experiência, propomos uma releitura da clínica psicanalítica através das questões da
transferência e da técnica. Afinal, a psicanálise não se propõe a normalizar o sujeito e,
desta forma, não deve trabalhar no sentido de enquadrá-lo numa única forma
narrativa. É preciso saber escutar a literalidade da palavra e do corpo. Sem engano,
sob um céu que não protege, interpretação e descrição se apartam como
possibilidades solidárias de estratégias narrativas” (PINHEIRO, & MARTINS,
2001, p.72).
Logo no início destas considerações afirmamos que a literalidade aponta para
uma aparente falta de subjetividade. Agora é hora de esclarecer que utilizamos o
157
termo “aparente” porque tomamos a narrativa literal como uma defesa para que o Eu
não seja invadido por excitações insuportáveis. Afinal, “o funcionamento do
aparelho psíquico como um todo é compreendido nos moldes da defesa, na medida
em que sua função primordial é, em última instância, defender-se dos excessos de
energia (...)” (SOUZA, 2003 p.118).
A análise proporciona um reequilíbrio no edifício egóico e nas forças
pulsionais. O analista precisa ter tato (FERENCZI, 1928/1992) para descobrir o
limite de cada paciente em relação a esse movimento que comporta desconstruções e
novas construções.
No artigo As fantasias provocadas” (1924/1993), Ferenczi propõe o uso de
um artifício para lidar com pacientes empobrecidos de atividade fantasística, quando
a análise se encontra paralisada: o empréstimo de fantasia por parte do analista. Ele
aproxima este artifício da técnica da interpretação, pois esta direciona as associações
do paciente em análise. No texto “Construções em análise (1937/1996) Freud
admite, inclusive, que a interpretação envolve a construção. O autor apresenta a
análise enquanto uma reinvenção de si.
Todavia, um dos pontos que consideramos mais importantes nesse trabalho
diz respeito aos limites do analisável. Vimos ser necessário levar em conta que o
psiquismo está para além do campo representacional. Ele abarca os signos de
percepção, as impressões sensíveis e a memória corporal. Nesse sentido, a
transferência suscita a repetição de impressões. Conceber a análise como o manejo da
angústia é afirmar que devemos estar atentos às impressões, que a angústia é a
expressão de uma intensidade sem conteúdo representacional. Voltando o olhar para a
158
clínica, nos perguntamos o que leva alguns sujeitos ao encontro do analista, que,
através da narrativa literal parecem fazer apenas relatórios durante a análise. No
entanto, a transferência está presente propiciando a repetição das impressões
traumáticas. Se a escuta no analista estiver pautada no dispositivo que privilegia o
conflito psíquico e o recalque, não será possível perceber o que se repete. É preciso
estar aberto para um outro tipo de escuta, que comporta o corpo, o gesto, o tom de
voz, além da palavra. Essa escuta funcionaria como um testemunho para que o
sujeito consiga introjetar as imagens, palavras, sensações e afetos que circulam em
seu mundo, produzindo uma narrativa de vida.
159
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAM, J. (2000) A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões
utilizadas por D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter.
ABRAHAM, N. & TOROK, M. (1995) A casca e o núcleo. São Paulo: Escuta.
ANSERMET, F (2003) Clínica da origem: a criança entre a medicina e a
psicanálise. Rio de Janeiro: Contra capa.
BAUDRILLARD, J. (2000) The vital illusion New York: Columbia University Press.
BAUMAN, Z. (2001) Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
BENJAMIN, W (1929/1994) “A imagem de Proust”, in Obras escolhidas vol I
Magia e cnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense.
BENJAMIN, W (1933/1994) “Experiência e pobreza”, in Obras escolhidas vol I
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense.
BENJAMIN, W (1934/1994) “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de
sua morte”, in Obras escolhidas vol I Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.
BENJAMIN, W (1936/1994) “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov”, in Obras escolhidas – vol I – Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.
BENJAMIN, W (1939/1989) Obras escolhidas vol III - Charles Baudelaire: um
lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense.
160
BIRMAN, J. (2001) - Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de
subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
BREUER , J & FREUD (1893-18951996) “Estudos sobre a histeria”, in Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, vol. II.
CARDOSO, M. (2002) Superego. São Paulo: Escuta.
DAVID-MÉNARD, M. (2000) A histérica entre Freud e Lacan. São Paulo: Escuta.
DELEUZE, G. (1987) Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
DOLTO, F (2002) A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva
FERENCZI, S. (1909/1992) “Transferência e introjeção”, in Psicanálise I. São Paulo:
Martins Fontes, p.77-108.
FERENCZI, S. (1912/1992) “O conceito de introjeção”, in Psicanálise I. São Paulo:
Martins Fontes, p.181-183.
FERENCZI, S. (1913/1988) “O desenvolvimento do sentido de realidade e seus
estádios”, in Sandor ferenczi- escritos psicanalíticos: 1909-1933, Rio de Janeiro:
Taurus, p.74-88.
FERENCZI, S. (1919/1993) “Fenômenos de materialização histérica”, in Psicanálise
III. São Paulo: Martins Fontes, p.41-54.
FERENCZI, S. (1920-1932/1992) “Notas e Fragmentos”, in Psicanálise IV, São
Paulo: Martins Fontes. p.235-283.
FERENCZI, S. (1921a/1993) “Reflexões psicanalíticas sobre os tiques”, in
Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes, p.77-104.
161
FERENCZI, S. (1921b/1993) “Prolongamentos da técnica ativa em psicanálise”, in
Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes, p.109-125.
FERENCZI, S. (1923 /1993) “O sonho do bebê sábio”, in Psicanálise III. São Paulo:
Martins Fontes, p.207.
FERENCZI, S. (1924 /1993) “As fantasias provocadas”, in Psicanálise III. São
Paulo: Martins Fontes, p.241-248.
FERENCZI, S. (1924/1967) Thalassa: psicanálise das origens da vida sexual. Rio de
Janeiro: BUP.
FERENCZI, S. (1927/1992) “A adaptação da família à criança”, in Psicanálise IV.
São Paulo: Martins Fontes, p.1-14.
FERENCZI, S. (1928/1992) “Elasticidade da técnica psicanalítica”, in Psicanálise IV.
São Paulo: Martins Fontes, p.2536.
FERENCZI, S. (1929/1992) “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte”, in
Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, p.47-51.
FERENCZI (1930/1992) “Princípio de relaxamento e neocatarse”, in Psicanálise IV.
São Paulo: Martins Fontes, p.53-68.
FERENCZI, S. (1931/1992) “Análises de crianças com adultos”, in Psicanálise IV.
São Paulo: Martins Fontes, p.69-83.
FERENCZI, S. (1933/1992) “Confusão de língua entre os adultos e a criança”, in
Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, p.97-106.
FERENCZI, S. (1934/1992) “Reflexões sobre o trauma”, in Psicanálise IV. São
Paulo: Martins Fontes, p.109-117.
162
FERENCZI, S. (1990) Diário Clínico. São Paulo: Martins Fontes.
FERNANDES, L. (2000) O Olhar do Engano: Autismo e Outro primordial. São
Paulo, Escuta.
FORTES, I. (2000) O sentido do sofrimento: a positividade da dor em Freud.
Orientadora: Anna Carolina Lo Bianco. Rio de Janeiro: UFRJ/IP. Doutorado
(Doutorado em Teoria Psicanalítica).
FREUD, S. (1996) - Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
(1893) “Algumas considerações para um estudo comparativo das
paralisias motoras orgânicas e histéricas”, vol. I, p.199-216.
(1894) “As neuropsicoses de defesa”, vol. III, p.51-72.
(1895a) “Projeto para uma psicologia científica”, vol. I, p.335-454.
(1895b) “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma
síndrome específica denominada neurose de angústia”, vol III, p. 91-
115.
(1896a) “A etiologia da histeria”, vol. III, p.187-215.
(1896b) “Carta 52” , vol. I, p.281-287.
(1897a) “Carta 69”, vol I, p.309-311.
(1897b) “Carta 71”, vol I, p.314-317.
(1900) “A interpretação dos sonhos”, vol IV e V, p.15-652.
163
(1905a) “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, vol.VII, p.119-
123.
(1905b) “Fragmento da Análise de um Caso de Histeria”, vol. VII,
p.15-116.
(1914a) “Sobre o narcisismo: uma introdução”, vol. XIV, p. 77-108.
(1914b) “Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a
técnica da psicanálise II)”, vol. XII, p.161-171.
(1915) “As pulsões e seus destinos”, v. XIV, p.117-149.
(1915b) “Repressão”, v. XIV, p.151-162.
(1916) “Sobre a transitoriedade”, v. XIV, p.317-319.
(1917) – “Luto e Melancolia”, vol. XIV, p.245-266.
(1920) “Além do princípio de prazer”, vol XIX, p.13-75.
(1921) “Psicologia de Grupo e a análise do Ego”, vol XVIII, p.79-154.
(1923a) “O Ego e o Id”, vol. XIX, p.15-80.
(1923b) O problema econômico do masoquismo, vol. XIX, p.175-188.
(1926a) “Inibições, sintomas e angústia”, vol.XX, p.81-171.
(1926b) “A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa
imparcial”, vol XX, p.175-248.
(1933) “Conferência XXXI: a dissecção da personalidade psíquica”,
vol XXII, p.63-84.
(1937) “Construções em Análise”, vol XXIII, p.275-287.
164
GAGNEBIN, J.M. (1994) Prefácio: Walter Benjamin ou a história aberta, in Obras
escolhidas vol I Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense.
GARCIA-ROZA, L.A (2000a) A interpretação do sonho, 1900. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar.
GARCIA-ROZA, L.A (2000b) Artigos de Metapsicologia, 1914-1917: narcisismo,
pulsão, recalque, inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
GARCIA-ROZA, L.A (2001) Sobre as afasias; O projeto de 1895. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
GIL, J (1999) “Euforia e terror”, in Elipse gazeta improvável: terrores quotidianos.
Lisboa: Relogio dagua, v.3, n. primavera 99, p.33-41
GONDAR, J. (1995) Os tempos de Freud. Rio de Janeiro: Revinter.
GONDAR, J. (1999) A noção de verdade em Freud, in Cadernos de psicologia série
clínica. Rio de Janeiro: UERJ, v. n.10, p. 23-34.
HERZOG, R. ; PINHEIRO, T. (2003) Impasses da clínica psicanalítica: a invenção
da subjetividade, Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, Rio de
Janeiro. Disponível em http://www.estadosgerais.org . Acesso em: 18/01//2008.
JERUZALINSKY, A (1999). “A direção do que não se cura, in Psicanálise e
desenvolvimento infantil. Porto Alegre:Artes e Ofícios, p.92-96.
KEHL, M. (1998) “Masculino/ Feminino: o olhar da sedução”, in NOVAES, A (org)
O olhar. Rio de Janeiro: Companhia das Letras.
KRISTEVA, J. (2002) As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco.
165
LACAN, J. (1949/1998) “O estádio do espelho como formador da função do eu (tal
como nos é revelada na experiência psicanalítica)”, in Escritos. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar.
LACAN, J. (1949/1998) “A agressividade em psicanálise”, in Escritos. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar.
LAMBOTTE, M.C. (1996) “Espelho, Estádio do”, in KAUFMANN, P (org)
Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
LAPLANCHE E PONTALIS (1992) Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes
LE BRETON, D. (2003) “Adeus ao corpo”, in O homem-máquina: a ciência
manipula o corpo (org. NOVAES, A). São Paulo: Companhia das letras.
LEMAIGRE, B (1996) “Supereu”, in KAUFMANN, P (org) Dicionário
Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar.
LE POULICHET, S. (1996) O tempo na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
MAIA, M (2003) Extremos da alma: dor e trauma na atualidade e clínica
psicanalítica. Rio de Janeiro: Garamond.
MONTES, F & HERZOG, R (2005) “A relação do sujeito com o tempo na
atualidade”, in Pulsional Revista de Psicanálise. São Paulo: Escuta, ano XVIII,
n.184, 12/2005 p.49-59.
PINHEIRO, M. T. (1995) Do Grito à palavra. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, UFRJ.
166
PINHEIRO, M.T.; JORDÃO, A.; MARTINS, K. P. (1998) A certeza de si e o ato de
perdoar, in Cadernos de Psicanálise. Rio de Janeiro, SPCRJ, vol.14, n.17, p.160-175.
PINHEIRO, M.T.; MARTINS, K. P. (2001) “O texto imagético: parnasianismo e
experiência analítica”, in LO BIANCO, A.C (org.) As Formações teóricas da clínica.
Rio de Janeiro: Contracapa.
REIS, E (2004) De corpos e afetos: transferências e clínica psicanalítica. Rio de
Janeiro: Contra capa.
SANT’ANNA, D. (2001) Corpos de passagem, São Paulo, Estação Liberdade.
SELIGMANN-SILVA, M. (2000) A história como trauma, in SELIGMANN-SILVA,
M. & NESTROVSKI, A. (orgs) Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo,
Escuta.
SELIGMANN-SILVA, M. (2003) Catástrofe, história e memória em Walter
Benjamin e Chris Marker: a escritura da memória, in Seligmann-Silva, M. (org)
História, memória, literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes. Campinas: Edit.
da UNICAMP.
SENNET, R (1999) A corrosão do caráter: as conseqüências pessoais do trabalho no
novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record.
SOUZA, O (2003) “Trauma, defesa e criatividade”, in Tempo psicanalítico. Rio de
janeiro: Sociedade de psicanálise Iracy Doyle, v.35, p.115-135.
VAZ, P. (1996) “A história da experiência de determinação à abertura tecnológica”,
in TAVARES D’AMARAL (org) Contemporaneidade e novas tecnologias. Rio de
Janeiro: Sette Letras, p.129-147.
167
WINNICOTT, D. (1960/1982) “Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro
self”, in O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do
desenvolvimento emocional. Porto Alegre, Artes médicas, p 128-139.
WINNICOTT, D. (1990) Natureza Humana. Rio de Janeiro, Imago.
WINOGRAD, M (1998) Genealogia do sujeito freudiano. Porto Alegre, ArtMed.
ZALTZMAN, N. (1993) A pulsão anarquista. São Paulo: Escuta.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo