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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
MESTRADO ACADÊMICO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
FATORES DE RISCO E MECANISMOS DE PROTEÇÃO NAS NARRATIVAS DAS
FAMÍLIAS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA CONJUGAL
Mestranda: Marisol Lurdes de Andrade Seidl
Orientadora: Drª. Sílvia Pereira da Cruz Benetti
São Leopoldo, Julho de 2008.
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2
FATORES DE RISCO E MECANISMOS DE PROTEÇÃO NAS NARRATIVAS DAS
FAMÍLIAS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA CONJUGAL
Marisol Lurdes de Andrade Seidl
Dissertação apresentada como exigência parcial
para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia
sob a orientação da
Profª Drª Sílvia Pereira da Cruz Benetti
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Centro de Ciências da Saúde
Curso de Pós-graduação em Psicologia
Mestrado Acadêmico em Psicologia Clínica
Julho, 2008
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3
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Drª Maria Ângela Mattar Yunes
___________________________________________________
Drª Débora Dell’ Aglio
_____________________________________________________
Dr. Maycoln Teodoro
4
DEDICATÓRIA
“Às famílias Brasileiras por suas incansáveis possibilidades
de transformação e construção de significados
diante das adversidades”.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu marido por toda a paciência que me dedicou durante este período do
mestrado e dizer aos meus filhos o quanto tornam a minha história mais colorida e cheia de
vida ao me confirmarem como mãe com seu amor. Aos meus pais por terem sido capazes de
construir uma história familiar que me lançou para a vida de forma livre e construtiva.
Agradeço à minha orientadora Drª Sílvia Pereira da Cruz Benetti por sua dedicação,
carinho e compreensão que teve ao orientar minha pesquisa, e dizer-lhe que acredito que
ambas aprendemos muito com esta experiência.
Agradeço ao professor Dr. Maycoln Teodoro por sua contribuição e olhar crítico à
pesquisa realizada.
Agradeço à Delegada Rosane Oliveira e sua equipe da delegacia para a Mulher do
Município de novo Hamburgo, por aceitarem participar da pesquisa, de forma tão rica e
fornecendo opiniões tão importantes acerca da violência conjugal e suas conseqüências tanto
à nível intrafamiliar como social.
Agradeço a todos os colegas a oportunidade que foi conhecê-los e compartilhar de
tantos momentos agradáveis. Aos professores que ajudaram a construir um espaço de ensino-
aprendizagem de uma riqueza inigualável.
Agradeço à UNISINOS pela oportunidade de realizar o curso de mestrado.
Obrigada,
A Autora.
6
SUMÁRIO
Lista de tabelas..............................................................................................................07
Resumo …………………………………………………………………………….....08
Abstract ……………………………………………………………………….............09
Introdução da Dissertação …………………………………………….........................10
Seção I - Relatório de Pesquisa …………………………………………………........12
1. Introdução …………………………………………………………………................12
2. Objetivos ………………………………………………………………………..........17
3. Método ………………………………………………………………………….........17
3.1 Tipo de estudo …………………………………..............................................17
3.2 Participantes …………………………………….............................................18
3.3 Procedimentos de pesquisa …………………..................................................19
3.4 Procedimentos éticos ………………………………………………………...20
3.5 Procedimentos de coleta de dados ...................................................................20
3.6 Procedimentos de análises de dados …………................................................22
4. Resultados ……………………………………………………………………............24
4.1 Inserção Ecológica ………...............................................................................24
4.2 Síntese das entrevistas com os profissionais …................................................27
4.3 Análise das entrevistas ……………………………………………………….31
4.4 Síntese interpretativa da Inserção Ecológica …………………………….......33
4.5 Famílias e Violência ……………………........................................................37
4.6 Análise das Narrativas caso Lílian e Beatriz ……………………................39
Sistema de Crenças da Família ………………………………...................39
Padrão de organização da Família …………………………......................46
Processos de Comunicação da Família ………………………...................51
4.7 Análise das Narrativas caso Rosângela e seus filhos ...................................54
Sistema de Crenças da Família ………………………………...................55
Padrão de organização da Família …………………………......................65
Processos de Comunicação da família ………………………....................65
4.8 Síntese Interpretativa das famílias……............................................................67
4.8.1 Mecanismos de proteção e fatores de risco no caso Lílian e beatriz ……....67
4.8.2 Mecanismos de proteção e fatores de risco no caso Rosângela …………....71
5. Discussão dos Resultados ………………….................................................................74
5.1 Processos de Resiliência para as famílias da pesquisa ……………................76
5.2 Fatores de Risco para as famílias da pesquisa …………………….................80
5.3 Compreendendo a violência conjugal ..............................................................81
6. Conclusão …………………………………………………………………….............83
Seção II Revisão Teórica ………………………………………………….............87
Seção III Empírico ………………………………………………………….........102
7. Considerações Finais da Dissertação ……………………………….........................122
8. Referências …………………………………………………………………….........124
9. Anexos ……………………………………………...................................................130
7
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Processos-chave da Resiliência ............................................................23
Tabela 2. Análise das Narrativas na Inserção ecológica ......................................32
Tabela 3. Sistema de Crenças ..............................................................................40
Tabela 4. Padrão de Organização ........................................................................46
Tabela 5. Processos de Comunicação ..................................................................51
Tabela 6. Sistema de Crenças ..............................................................................55
Tabela 7. Padrão de Organização ........................................................................61
Tabela 8. Processos de Comunicação ..................................................................65
Tabela 9. Processos de Resiliência ......................................................................74
Tabela 10. Fatores de Risco e Vulnerabilidade .....................................................78
Tabela 11. Processos-chave da Resiliência ...........................................................95
Tabela 12. Processos de resiliência .....................................................................115
Tabela 13. Fatores de Risco e Vulnerabilidade ...................................................118
8
RESUMO
Tomando como referência a noção de resiliência em famílias como um processo
interativo e dinâmico, numa abordagem ecológica das relações humanas, esta dissertação está
voltada para a identificação dos processos de resiliência em famílias com história de violência
conjugal, através das narrativas familiares sobre os fatores de risco e mecanismos de proteção.
A violência conjugal tem sido amplamente investigada em função das conseqüências
marcantes e traumáticas para as vítimas e por ser um modelo relacional de difícil
enfrentamento por parte dos próprios membros da família como também dos setores mais
amplos da sociedade. Através da técnica da narrativa foram investigados dois casos de
famílias com histórias de violência conjugal. E através da inserção ecológica da pesquisadora
na Delegacia para a Mulher, foi compreendida a violência conjugal através das percepções
destes profissionais. Foram identificadas tanto as crenças familiares, os padrões
organizacionais e as formas de comunicação em relação aos eventos violentos, como os
mecanismos de proteção e as situações de risco nas famílias nos diferentes contextos. Entre os
fatores de risco que geraram vulnerabilidade identificaram-se crenças sobre o papel da mulher
como mantenedora da família, a passividade diante do marido e a função de principal
educadora e protetora dos filhos. As características masculinas são oriundas de um modelo
relacional de violência à mulher vivenciado em suas famílias de origem e perpetuado através
da herança transgeracional. Um aspecto na promoção do processo de resiliência para essas
duas famílias se relacionou à forma como construíram suas histórias de afeto, cuidado e
proteção aos filhos, um fator de proteção que diminuiu os prejuízos da exposição à violência
tanto para as mães como para os filhos. O fenômeno violência aparece nesta pesquisa sob a
ótica do social, compreendida na inserção ecológica pela narrativa dos profissionais,
confirmando a influência da sociedade que mantém e tolera a violência do homem contra a
mulher. Concluindo, é necessário ampliar o olhar das redes sociais de suporte e amparo às
famílias em situação de violência conjugal, no sentido de buscar um entendimento destes
processos violentos não a partir de uma ótica da doença ou de uma falha familiar, mas como
um fenômeno muito maior que se constitui e se mantém na sociedade.
Palavras-chave: família; resiliência familiar; violência conjugal; fatores de proteção e risco.
9
ABSTRACT
Taking as reference the notion of family resilience as interactive and dynamic process,
in an ecological framework of human relations, this dissertation is geared to the identification
of resilience in families with a history of couple violence. Couple violence has been largely
investigated as a result of the traumatic and strong consequences for the victims and for being
a relational process of difficult response by family members as well as by larger sectors of
society. Throughout the narrative technique two cases were investigated of families with a
history of violence. And through the ecological participation of the researcher in the Deputy
Office it was studied the perceptions of the professionals. Family beliefs, organizational
patterns and ways of communication were identified in relation to the violent events, the
protection mechanisms and risk situations in families in different contexts. Among risk
factors that generated vulnerability, beliefs about women´s roles as family support, passive
and the pedagogical role in child socialization were identified. Masculine characteristics were
originated and perpetuated trough transgeracional heritage. An aspect in promoting resilience
in these families was the way they built a history of affect, care and protection of the children,
a protection factor that minimized the damages of violence exposure, for mothers as well as
for the children. A violence phenomenon emerges in this study under the social realm,
understood in the ecological participation by the narratives of the professionals, confirming
society influence that sustains and tolerates man´s violence against woman. As a conclusion,
it is necessary to look at social networks to families in violence situation, in the sense of
searching for an understanding of these processes not from a perspective of illness or failure,
but as a much larger phenomenon that is constituted and sustained in society.
Key-words: family, family resilience, couples violence, protection and risk factors
10
INTRODUÇÃO DA DISSERTAÇÃO
Esta dissertação tem como objetivo identificar os processos de resiliência em famílias
com história de violência conjugal, através das narrativas familiares sobre os fatores de risco e
mecanismos de proteção. A pesquisa realizada faz parte da linha de pesquisa da Infância e
Adolescência sob a orientação da profª Sílvia Pereira da Cruz Benetti. O interesse pelo tema
surgiu a partir da experiência da pesquisadora como terapeuta de família e também de sua
atuação na esfera pública em posto de saúde e em conselho tutelar. Desta maneira, o tema da
resiliência foi se tornando apaixonante em virtude das vivências com famílias que viviam em
situações de alto risco e que, no entanto, demonstravam atitudes positivas e otimistas diante
da vida. Esta pesquisa além de nortear futuras políticas públicas dirigidas às famílias em
situação de violência conjugal, também ampliou os conhecimentos da própria pesquisadora
sobre a resiliência em famílias.
As conseqüências da violência conjugal são graves e afetam a todos os indivíduos
envolvidos direta e indiretamente, principalmente as crianças. Portanto, identificar os
processos familiares promotores de resiliência são etapas necessárias para o trabalho com
famílias. Entretanto, são poucos os estudos que investigam a família como capaz de contribuir
para a resiliência individual. A maioria dos estudos está centrada no clima emocional ou na
dinâmica de famílias disfuncionais, portanto, baseadas no paradigma do déficit. No entanto, a
questão da resiliência volta-se para os aspectos sadios e de sucesso que as famílias podem
alcançar e, a partir de processos-chave, encorajarem o crescimento individual e familiar
(Walsh, 1998/2005; Yunes, 2001).
A resiliência é tecida por uma rede de relacionamentos e experiências que vão se
desenrolando durantes os ciclos de vida e entre as gerações. Esse olhar exige uma perspectiva
ecológica e desenvolvimental que se dirige para além do vínculo diádico e de disposições
individuais, focalizando a resiliência nos contextos sociais e no correr do tempo (Walsh,
1998/2005). Esta perspectiva ecológica leva em conta as múltiplas influências do ambiente
sobre o desenvolvimento do indivíduo durante seu tempo de vida (Bronfenbrenner,
1979/2002).
A metodologia qualitativa baseada na abordagem da narrativa considera importante
conhecer como o sujeito organiza e dá sentido a sua experiência. Desta forma, a narrativa
permite a compreensão dos significados específicos de construção e constituição da realidade
(Bruner, 1991), identificando como as pessoas dão sentido às suas experiências a partir de
11
referências pessoais, familiares, sociais, culturais e incluindo também os aspectos
transgeracionais. Portanto, facilita a escuta e a reflexão sobre as maneiras como são
entendidas “nossa memória, intenções, estórias de vida e os ideais de nosso self, ou nossas
identidades pessoais, em padrões narrativos” (Brockmeier & Harré, 2003, p. 526).
Neste sentido, é crescente o interesse dos estudos sobre o desenvolvimento humano na
identificação e compreensão da resiliência fundamentado na noção de promoção de saúde
face às circunstâncias adversas de vida. Ao priorizar os aspectos de enfrentamento das
situações de risco e ao tentar compreender as características desses processos, as pesquisas
sobre a resiliência destacam-se por sua ênfase nas características individuais e coletivas de
transformação e saúde. Esta compreensão dos processos envolvidos em resiliência objetiva o
desenvolvimento de ações de promoção e de prevenção em saúde em várias instâncias, tais
como familiar, social, pública (Junqueira & Deslandes, 2003; Sapienza & Pedromônico,
2005; Yunes, 2001).
A apresentação da dissertação iniciará com o relatório de pesquisa, que consiste nas
atividades realizadas durante o desenvolvimento da pesquisa: “Fatores de risco e mecanismos
de proteção nas narrativas das famílias em situação de violência conjugal”. Seguido do
relatório, apresentam-se dois dos artigos produzidos durante o mestrado, um teórico e outro
empírico, como exigência parcial da dissertação. O artigo teórico “Resiliência em Famílias:
uma perspectiva para a promoção e a prevenção em saúde mental”, revisa a literatura sobre o
tema. O artigo empírico: “Fatores de risco e mecanismos de proteção nas narrativas das
famílias em situação de violência conjugal”, discute os resultados da pesquisa realizada. Para
finalizar a dissertação, são apresentadas as considerações finais e as referências bibliográficas
referentes a todas as sessões deste documento.
12
SEÇÃO I - RELATÓRIO DE PESQUISA
1. Introdução
A pesquisa realizada faz parte da linha de pesquisa da Infância e Adolescência sob a
orientação da profª Sílvia Pereira da Cruz Benetti. Nesta pesquisa procurou-se identificar os
processos de resiliência em famílias com história de violência conjugal, através das narrativas
familiares sobre os fatores de risco e mecanismos de proteção, considerando-se o enfoque de
Walsh (1998/2005) sobre a resiliência familiar. Para tal, foram investigados dois casos de
famílias com histórias de violência conjugal encaminhadas pela Delegacia para a Mulher.
Estas famílias participaram de um atendimento psicoterápico familiar baseado na técnica da
Terapia Narrativa, a qual tem se mostrado um recurso interessante para o trabalho com
famílias em situação de risco, pois permite uma aproximação compreensiva dos fenômenos
interativos baseados na noção da complexidade de significados e na possibilidade de relatos
múltiplos dos eventos. Portanto, a narrativa funciona como um modelo flexível, que opera
como forma de mediação extremamente mutável entre o indivíduo e o padrão cultural, dessa
forma, as narrativas são ao mesmo tempo modelos relacionais e modelos internos do
indivíduo (self), preenchendo a condição humana com abertura e plasticidade (Brockmeier &
Harré, 2003; Bruner, 1991).
Dessa forma, foi utilizada a narrativa (externalização) para conhecer a resiliência no
contexto da violência intrafamiliar. A abordagem da Terapia Narrativa de Michael White e
David Epston (1990) permite que as pessoas saiam de uma história dominante de descrições
de vida, com os impedimentos negativos que as acompanham, para experimentarem vidas
com muitas histórias e habilidades. Nas conversações de Terapia Narrativa, histórias e
habilidades da vida das pessoas que tenham sido ignoradas ou negligenciadas tornam-se
ricamente conhecidas. A técnica foca na história de vida das pessoas e diz respeito a encontrar
caminhos pelos quais as pessoas possam mudar seu relacionamento com qualquer problema
ou dificuldade que estão lidando. Nesse sentido, esses problemas não mais definem quem elas
são permitindo que as pessoas sejam capazes de seguir em direção a um diferente sentido de
identidade. Portanto, através da escuta das narrativas familiares foram identificados os fatores
de risco e os mecanismos de proteção que permeiam o construto da resiliência.
O conceito de resiliência utilizado nesta pesquisa tem um caráter processual. Mais que
um conjunto de traços disposicionais, o enfrentamento e a adaptação positiva abrangem
processos multideterminados pelas circunstâncias de vida ao longo do tempo (Rutter, 1987).
13
Portanto, a resiliência é definida a partir de quatro fatores: fatores individuais, contexto
ambiental, acontecimentos ao longo da vida e fatores de proteção (Slap, 2001). A resiliência,
além disto, não se restringe somente às características individuais, mas também pode ser
compreendida na abordagem dos processos familiares.
A resiliência familiar refere-se aos processos de enfrentamento, adaptação e coping na
família como uma unidade funcional, em que o fenômeno resiliência passa a ser caracterizado
não só pelo foco individual, mas também pelo processo interacional familiar. Não se
caracteriza pela configuração da família, mas como os processos internos e externos à família
interagem para o seu funcionamento saudável e de resiliência (Hawley & DeHann, 1996;
Walsh, 1998/2005; Yunes, 2003). Esta interação dos fatores de proteção internos e externos à
família contribui para a promoção da resiliência, através de um processo compartilhado pela
família como um todo e por processos individuais de seus membros, constituídos pelas
características individuais de seus membros; pela coesão familiar e pelo apoio conjugal/social
(Rutter, 1987).
Outro aspecto fundamental nos estudos sobre resiliência refere-se à questão da própria
avaliação e mensuração dos processos resilientes. A literatura apresenta estudos que se
utilizam de delineamentos quantitativos através de instrumentos específicos de avaliação de
variáveis individuais ou contextuais associadas à resiliência (Ahern, Kiehl, Sole, & Byers,
2006; Pesce, Assis, & Avanci, 2006) e estudos com delineamentos qualitativos que visam à
descrição e compreensão de processos interativos, dos significados de experiências ou das
trajetórias individuais, familiares e coletivas (De Antoni, 2005; Yunes, 2001).
Smokowski, Reynolds e Bezruczko (2000) consideram que um delineamento
metodológico numa perspectiva mais qualitativa concebe a resiliência “menos como uma
característica individual e mais como um processo determinado pelo impacto de experiências
particulares de vida entre pessoas com distintas concepções sobre sua própria história de vida
ou narrativa pessoal (p. 428)”. Esta característica da abordagem qualitativa é amplamente
utilizada no trabalho com famílias sob a ótica da técnica das narrativas. A utilização da
narrativa em situações traumáticas individuais ou familiares tem sido amplamente utilizada a
fim de identificar como são construídos os significados e atribuições dos eventos e os
movimentos realizados no sentido de estabelecimento de coerência e ordem (Murray, 2004).
No Brasil, estudos sobre a resiliência familiar constituem importantes estratégias para
ampliação de conhecimento sobre famílias em situação de vulnerabilidade e risco. Neste
14
sentido, os trabalhos têm se voltado para questões associadas a famílias de grupos
minoritários economicamente ou envolvidas em situação de violência (Cecconello, 2003;
Daniel, 2006; De Antoni, 2005; Garcia & Yunes, 2006; Hawley & DeHann, 1996; Lietz,
2006; Walsh, 1998/2005; Yunes, 2001; Yunes, Mendes, & Albuquerque, 2004/2007).
Yunes (2001), ao pesquisar sobre a resiliência em famílias de baixa renda, constatou que
existe uma tendência social de atribuir a priori a esta população pobre, uma condição de não-
resiliência. No entanto, a pesquisa apontou que estas famílias “enfrentaram e enfrentam as
adversidades da pobreza à sua maneira e no seu estilo de ser família (2001, p.11)”. Uma das
famílias enfrentava a crise como um desafio, seus membros se mostravam unidos, sendo que a
confiança era fortalecida, propiciando maior solidariedade e possibilidades de transformação
da crise. Na segunda família, o enfrentamento da crise estava relacionado mais com a coesão
e introspecção do grupo, numa relação mais espiritualizada que reforçava a crença da ajuda
divina na superação dos problemas. Portanto, “o sentido atribuído às crises pelas duas
famílias é diferente, o que leva a concluir que não há um sentido hegemônico que defina a
condição de resiliência” (p. 158). Dessa forma, Yunes (2001) conclui que os critérios que
indicam a resiliência em famílias não são universais. Além dos aspectos sociais e históricos
que permeiam os processos familiares, os fatores relacionais são dinâmicos e complexos,
tornando-se difícil de categorizar as famílias pobres como resilientes ou não.
Em outra pesquisa com famílias monoparentais em situação de pobreza, Yunes,
Mendes e Albuquerque (2004/2007) identificaram situações e processos que causam risco ao
convívio familiar e conflitos familiares, tais como o alcoolismo, a violência doméstica, perdas
materiais e infidelidade. A monoparentalidade mostrou-se como um evento-chave para a
melhoria da qualidade de vida e das relações familiares, pois a ausência da violência nas
relações conjugais proporcionou as melhorias e a reaproximação de outros familiares bem
como o apoio destes e a conseqüente melhora da situação financeira da família. No entanto,
alguns fatores de risco continuaram a existir no cotidiano destas famílias, como a moradia e
alimentação inadequada, emprego e renda instáveis. Também se destacavam como fatores de
risco a vivência das perdas afetivas e a falta de apoio social eficiente apesar da ausência dos
companheiros (Garcia & Yunes, 2006).
Ao investigar os processos de resiliência em famílias em situação de vulnerabilidade
Cecconello (2003), também identificou a presença de alguns fatores de risco externos à
família, como a pobreza e a violência na comunidade, que tiveram um efeito negativo sobre
15
os fatores de risco internos, como a violência doméstica, o alcoolismo e a depressão materna,
potencializando-os. Em relação aos fatores de proteção foram observadas as características
pessoais dos seus membros, a coesão familiar e o apoio conjugal/social. Portanto, através de
um processo compartilhado pela família como um todo e por processos individuais de seus
membros houve a promoção da resiliência.
Em outra pesquisa sobre coesão e hierarquia em famílias com história de abuso físico,
De Antoni (2005), constatou que há severos indicadores de risco que são agravantes para a
vulnerabilidade social e familiar, entre eles, as condições socioeconômicas como o
desemprego, precariedade da moradia e a falta de recursos financeiros e a violência física
decorrente do estresse parental e das interações familiares. Os fatores de proteção
identificados nas famílias estavam relacionados às características pessoais de seus membros
como talentos especiais, valorização dos estudos, religiosidade, afiliação comunitária e
determinação em mudar a situação financeira. A autora refere que o enfrentamento das
adversidades e sua superação pela família dependem em muito do suporte social, como as
redes de serviço e de políticas públicas voltadas para amenizar a pobreza e a violência.
Segundo Bronfenbrenner (1979/2002), as realidades familiares, sociais e econômicas
bem como as culturais estão organizadas como um todo articulado num sistema, que se
compõe em subsistemas, que se comunicam de maneira dinâmica. Portanto, as forças que
atuam na família, na comunidade e na cultura determinam a aparição de relações violentas
(Belsky, 1980). Assim, a violência é construída socialmente e está relacionada ao isolamento
social, à falta de uma rede de apoio social e afetivo e aos eventos de vida estressantes, como
dificuldades financeiras e desemprego (Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003; Doise, &
Papastamou, 1987).
Nesta pesquisa os fatores de risco e os mecanismos de proteção foram compreendidos
a partir de três domínios, o sistema de crenças familiares, o padrão organizacional e o
processo de comunicação. Assim, a compreensão dos processos familiares no enfrentamento
das situações de violência foi realizada tomando-se como referência a questão central de
como a família responde à violência, os recursos utilizados, as crenças, os padrões de
organização e os processos de comunicação, orientados para a direção de uma transformação
dos padrões interativos. Além disto, estes elementos de análise foram contextualizados numa
compreensão ecológica das relações familiares, ambientais e individuais, segundo o modelo
ecológico proposto por Bronfenbrenner (1979/2002). Este referencial procura integrar
16
aspectos do indivíduo e do ambiente associados com o fenômeno a ser investigado, portanto,
se constitui em uma abordagem que possibilita a compreensão do desenvolvimento em
situações atípicas, privilegiando aspectos de resiliência, vulnerabilidade, risco e proteção. A
perspectiva ecológica leva em conta as múltiplas influências do ambiente sobre o
desenvolvimento do indivíduo durante seu tempo de vida. Considera que a interação com o
meio ambiente o transforma, possibilitando-lhe novas respostas adaptativas aos contextos
sociais. A teoria privilegia a compreensão do desenvolvimento humano no contexto, levando
em conta os aspectos relativos à pessoa (características físicas, biológicas e emocionais), ao
processo (como a experiência é vivenciada) e o tempo (meio-ambiente).
O contexto é analisado através de quatro sistemas que se interconectam: a)
Microssistema: é um padrão de atividade, papéis e relações interpessoais, num ambiente
específico (família); b) Mesossistema: inclui as inter-relações entre dois ou mais ambientes no
qual a pessoa em desenvolvimento participa ativamente (escola, amigos, trabalho e vida
social); c) Exossistema: refere-se a um ou mais ambientes que não envolve a pessoa em
desenvolvimento como um participante ativo (trabalho dos pais, amigos dos pais); e d)
Macrossistema: compreender a cultura, crenças e ideologias (Bronfenbrenner, 1979/2002).
Nesta pesquisa o Eu ecológico inclui as características pessoais dos protagonistas da pesquisa,
mãe e filhos, e os aspectos principais que caracterizam esta relação.
Esta abordagem investigativa baseada no delineamento ecológico de investigação
considera que além do reconhecimento da influência dos aspectos contextuais nos processos
investigados também deve ser levada em consideração a própria inserção do pesquisador no
ambiente pesquisado. Desta forma, a inserção ecológica do pesquisador também faz parte do
processo investigativo. Na presente pesquisa, portanto, se configuraram dois âmbitos no
processo investigativo. O primeiro constituído pelo envolvimento do pesquisador no contexto
específico do trabalho na Delegacia para a Mulher, com o objetivo de conhecer a percepção
dos profissionais sobre a violência conjugal. E, o segundo pelo trabalho focalizando as
famílias que participaram do processo terapêutico. Assim, os resultados da pesquisa são
apresentados primeiramente através da Inserção Ecológica da pesquisadora na Delegacia para
a Mulher, as entrevistas com os profissionais que atendem as vítimas de violência conjugal,
seguido das narrativas das famílias atendidas.
17
2. OBJETIVOS
Objetivo geral:
- Identificar os processos de resiliência em famílias que convivem com a violência
conjugal, através dos fatores de risco e mecanismos de proteção compreendidos nas
narrativas familiares.
Objetivos específicos:
- Compreender o significado atribuído nas narrativas familiares à violência,
identificando as crenças familiares, os padrões organizacionais e as formas de
comunicação em relação aos eventos violentos;
- Identificar, a partir dos processos-chave de resiliência, os mecanismos de proteção e
as situações de risco nas famílias nos diferentes contextos;
- Compreender a violência conjugal através das percepções dos profissionais da
Delegacia para a Mulher.
3. MÉTODO
3.1 Tipo de estudo
Pretende-se com este estudo conhecer e compreender como a resiliência é tecida em
famílias que vivenciam a violência conjugal, através dos fatores de risco e mecanismos de
proteção compreendidos nas narrativas familiares. Para tanto, foi utilizada a abordagem
descritiva qualitativa baseada no modelo narrativo (Murray, 2004; Walsh, 2005; White &
Epston 1990). A complexidade do fenômeno resiliência está além de análises reducionistas
que priorizam as características ou traços individuais, que buscam um estereótipo universal
para os fatores de risco e de proteção (Libório, Castro, & Coelho, 2006). O método qualitativo
baseado na abordagem da narrativa permite a compreensão dos significados específicos de
construção e constituição da realidade (Bruner, 1991), identificando como as pessoas dão
sentido às suas experiências a partir de referência pessoais, familiares, sociais, culturais e
incluindo também os aspectos transgeracionais. Seguindo nesta ótica de conhecer melhor
como as famílias da pesquisa dão significado e sentido às suas experiências, valores e crenças,
optou-se pela realização de psicoterapia com estas famílias. Portanto, além do objetivo de
explorar os significados dos eventos de vida, também ajudá-las a construir uma percepção
mais positiva para o sentido destes eventos, ou seja, atribuir sentido à adversidade, superá-la e
18
fortalecendo-se com a própria experiência. Dessa forma, pode-se dizer que a pesquisa tem
uma preocupação social de reforçar emocionalmente estas famílias e conseqüentemente
promover respostas de resiliência. Também foi utilizada a abordagem bioecológica de
Bronfenbrenner (1979/2002), com a inserção ecológica do pesquisador no ambiente imediato
onde estas famílias buscam suporte e proteção quando a violência é vivenciada, no caso, a
Delegacia para a Mulher.
3.2 Participantes
a) Descrição dos participantes
As famílias que participaram da pesquisa tinham as seguintes características: a
primeira família que aceitou a proposta da terapia breve e focal foi Lílian (mãe-29 anos) e
Beatriz (filha-9 anos). A configuração familiar era monoparental, pois Lílian estava separada
do ex-marido há três anos. Morava na mesma casa desde a separação, que ficava nos fundos
do pátio da casa dos ex-sogros. Desempregada há alguns meses, contava com a ajuda
financeira da irmã mais velha e com a pensão alimentícia da filha.
A segunda família era constituída da mãe, Rosângela (28 anos), e filhos, Rodolfo (11),
Elvis (10) e Elisa (6) e também possuía uma configuração monoparental. A separação
conjugal era recente, havia completado apenas um mês quando Rosângela iniciou a terapia
proposta pela pesquisadora. Moravam em uma casa alugada. Rosângela, logo após a
separação, começou a trabalhar em um banco de empréstimos aos pensionistas do INSS. As
crianças continuaram na mesma escola e no turno contrário ficavam na casa de uma senhora.
Na Delegacia para a Mulher foram entrevistados os profissionais que atendem as
mulheres vítimas de violência conjugal, entre eles a Delegada, a secretária e duas escrivãs.
b) Procedimentos de seleção e justificativa do número de participantes ou do tamanho
da amostra
A partir do contato estabelecido na Delegacia, foram selecionadas duas famílias que
correspondiam aos critérios adotados para a seleção, que foram a faixa etária dos filhos até 12
anos, a situação familiar de violência conjugal e finalmente os aceites na participação do
processo terapêutico. Este último se caracterizou por uma intervenção breve e focal com
duração máxima de dez encontros. Foram realizadas seis sessões psicoterapêuticas com a
família de Lílian e Beatriz e sete sessões com a família de Rosângela e seus filhos, todas no
consultório da pesquisadora, gravadas, transcritas e analisadas. Os dois casos eram de
19
mulheres que haviam solicitado atendimento para tratar de questões relativas às agressões do
cônjuge e encontrava-se em um processo de separação conjugal em função da violência
vivenciada.
A escolha de duas famílias para a realização da pesquisa teve como objetivo principal
a possibilidade de comparação dos dados obtidos e a confirmação dos achados empíricos. Em
relação à Delegacia para a Mulher a escolha de quatro profissionais para serem entrevistados
se deu em função do número reduzido, ao todo nove funcionários e pela negativa de
participação de duas escrivãs.
c) Critérios de inclusão
Os critérios adotados tiveram como objetivo principal manter uma coerência com os
objetivos da pesquisa. Portanto, os filhos deveriam ter no máximo doze anos e estarem
vivendo com a mãe, o tipo de violência vivenciado pelos membros da família deveria ser a
conjugal e o aceite pela terapia breve e focal oferecida em troca pelos dados para a pesquisa.
d) Critérios de exclusão
Os critérios de exclusão visaram diminuir ao máximo as variáveis intervenientes para
a pesquisa, como filhos adolescentes que atravessam um período de transição que poderia
adicionar questões emocionais, dificultando a análise de dados. O tipo de violência precisaria
ser definido claramente, pois uma abrangência maior também dificultaria a análise dos dados,
correndo o risco de perder-se a fidedignidade da pesquisa. Portanto, todos os cuidados
buscaram manter a coerência e a ética que são pertinentes ao trabalho de pesquisa.
3.3 Procedimentos de pesquisa
a) Contato com o local
Na Delegacia para a Mulher, o primeiro contato se deu com a Delegada, com o
objetivo de informá-la sobre os objetivos da pesquisa e obter seu consentimento para
realização tanto da triagem das famílias quanto da inserção ecológica. Assim, foram
realizadas várias visitas e conversas informais e formais que se iniciaram em Setembro de
2006 até Dezembro de 2007. Vários contatos foram iniciados com os profissionais que
atendem as vítimas de violência conjugal, dentre eles a psicóloga local que ajudou na triagem
das famílias. A Delegacia não é exclusiva para os casos de violência à mulher, pois também
atende todo tipo de violência, sejam físicas ou sexuais contra mulheres adultas, crianças e
adolescentes.
20
b) Contato com os participantes
O contato com os participantes se iniciou na própria Delegacia para a Mulher onde a
pesquisadora contratou a terapia breve e focal de até dez encontros com as famílias
selecionadas. Neste período o contato com os profissionais da Delegacia resultou na maior
familiaridade da pesquisadora com a instituição, culminando inclusive na realização de uma
palestra sobre violência conjugal para os profissionais da Delegacia. Posteriormente, o fato de
ter estabelecido um contato inicial permitiu uma melhor comunicação e um maior
comprometimento com a própria pesquisa durante a realização das entrevistas com estes
profissionais. Primeiro foi realizado a psicoterapia com as famílias no consultório da
pesquisadora, durante este período várias visitas à Delegacia continuaram sendo realizadas
com o objetivo da inserção ecológica da pesquisadora no ambiente da Delegacia e por último
as entrevistas com os profissionais que escutam as vítimas de violência conjugal e
encaminham o processo judicial.
3.4 Procedimentos éticos
a) Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa
Os procedimentos de entrevista com finalidade de pesquisa com as famílias estudadas
estavam de acordo com as resoluções 196 do Conselho Nacional de saúde e a 016/2000 do
Conselho Federal de Psicologia, bem como da aprovação pelo Comitê de Ética da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) comunicação número 14. Todos os
participantes maiores de idade foram consultados quanto à participação no trabalho através da
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo A). Os participantes
menores de idade foram consultados e solicitada autorização do responsável para participação
nas entrevistas.
b) Termo de Consentimento Livre e Esclarecido-Anexo A
3.5 Procedimentos de coleta de dados
Após o contato inicial na Delegacia, foram feitos os agendamentos das entrevistas com
a Delegada, secretária e duas escrivãs. Estas entrevistas foram realizadas na própria Delegacia
de forma individual e respeitando a disponibilidade dos profissionais. Estas entrevistas
duravam em torno de uma hora e foram gravadas. Após a realização das mesmas, o material
obtido foi transcrito em sua totalidade para posterior análise.
21
A coleta do material das entrevistas realizadas com as famílias foi obtida durante as
sessões terapêuticas. Todas as sessões foram gravadas, transcritas e analisadas. Estas
entrevistas foram feitas no consultório particular da pesquisadora, em horário previamente
agendado.
b) Entrevistas
As entrevistas com as famílias dentro do modelo de psicoterapia focalizaram as
narrativas das famílias quanto ao funcionamento familiar, a situação de violência e os
processos relacionais de seus membros nos contextos de vida, bem como a história de vida e o
relacionamento familiar. O modelo sistêmico interacional foi utilizado para conhecer e
compreender as distintas significações de crenças e valores dos protagonistas da pesquisa.
Portanto, foi utilizada a narrativa (externalização) para conhecer a resiliência no contexto da
violência intrafamiliar. A abordagem da Terapia Narrativa de Michael White e David Epston
(1990) permite que as pessoas saiam de uma história dominante de descrições de vida, com os
impedimentos negativos que as acompanham, para experimentarem vidas com muitas
histórias e habilidades. Nas conversações de Terapia Narrativa, histórias e habilidades da vida
das pessoas que tenham sido ignoradas ou negligenciadas tornam-se ricamente conhecidas.
Entre as técnicas utilizadas nesta abordagem, a externalização, consiste no indivíduo
representar seus sentimentos em relação aos fatores estressantes, caracterizando-o e
nomeando-o. A técnica foca na história de vida das pessoas e diz respeito a encontrar
caminhos pelos quais as pessoas possam mudar seu relacionamento com qualquer problema
ou dificuldade que estão lidando. Nesse sentido, esses problemas não mais definem quem elas
são tornando as pessoas capazes de seguir em direção a um diferente sentido de identidade
(Anexo 2).
Na Inserção Ecológica realizada na Delegacia para a Mulher uma das atividades
propostas foram as entrevistas com os profissionais. As questões que nortearam estas
entrevistas foram: a percepção sobre a violência conjugal; os fatores que favorecem o
aparecimento e a continuidade da violência do homem contra a mulher; os fatores que
favorecem a saída da história de violência e o papel da Delegacia no enfrentamento da
violência conjugal. As sessões com os familiares e as entrevistas com os profissionais da
Delegacia foram registradas e gravadas para posterior análise do material colhido.
22
3.6 Procedimentos de análises de dados
Após a transcrição do relato das entrevistas foi realizada a análise das narrativas
familiares através do roteiro interpretativo de Flick (2004). Este roteiro organiza-se em etapas
de análise que incluem a obtenção da narrativa, a exposição do texto como unidade, a
subdivisão do texto em unidades experimentais ou função-chave, a análise lingüística
interpretativa de cada unidade, desdobramento em série, interpretação dos significados e
desenvolvimento de interpretações funcionais do texto. Finalmente, as últimas etapas
compreendem a compreensão do texto em sua totalidade e a exposição das múltiplas
interpretações (Flick, 2004).
No relatório de pesquisa, por questões de apresentação dos resultados, não será
discutida toda a análise do relato das narrativas das famílias, que ao todo foram de treze
sessões. No anexo B discute-se uma entrevista analisada para exemplificar a parte inicial do
método utilizado na análise dos dados. No corpo do relatório, portanto, é apresentada uma
síntese das entrevistas e posteriormente os quadros com as análises lingüístico-interpretativas
e os desdobramentos dos processos-chave de resiliência familiar.
Além disto, neste trabalho, para a interpretação funcional do texto foram utilizados os
processos de resiliência em famílias de Walsh (1998/2005) para organizar a compreensão dos
processos individuais, relacionais e os recursos disponíveis e a interpretação subjetiva que
cada família atribui aos eventos adversos e o reflexo deles em suas vidas. Estes elementos de
análise foram contextualizados numa compreensão ecológica das relações familiares,
ambientais e individuais, no modelo ecológico proposto por Bronfenbrenner (1979/2002). A
perspectiva ecológica leva em conta as múltiplas influências do ambiente sobre o
desenvolvimento do indivíduo durante seu tempo de vida. Considera que a interação com o
meio ambiente o transforma, possibilitando-lhe novas respostas adaptativas aos contextos
sociais. A teoria privilegia a compreensão do desenvolvimento humano no contexto, levando
em conta os aspectos relativos à pessoa (características físicas, biológicas e emocionais), ao
processo (como a experiência é vivenciada) e o tempo (meio-ambiente).
O contexto é analisado através de quatro sistemas que se interconectam: a)
Microssistema: é um padrão de atividade, papéis e relações interpessoais, num ambiente
específico (família); b) Mesossistema: inclui as inter-relações entre dois ou mais ambientes no
qual a pessoa em desenvolvimento participa ativamente (escola, amigos, trabalho e vida
social); c) Exossistema: refere-se a um ou mais ambientes que não envolve a pessoa em
23
desenvolvimento como um participante ativo (trabalho dos pais, amigos dos pais); e d)
Macrossistema: compreender a cultura, crenças e ideologias (Bronfenbrenner, 1979/2002).
Nesta pesquisa, o Eu ecológico, inclui as características pessoais dos protagonistas da
pesquisa, mãe e filhos, e os aspectos principais que caracterizam esta relação.
Este modelo estratégico de análise dos dados foi realizado para cada caso atendido e
posteriormente todos os casos foram discutidos, permitindo uma reflexão sobre os processos
familiares no contexto de violência. Após a análise de todas as sessões, foi feito uma síntese
organizada em quadros (3,4,5,6,7,8) demonstrativos dos processos-chave de resiliência,
identificando os fatores de proteção e de risco para cada família, depois são contextualizados
nos diferentes níveis dos sistemas ecológicos. Posteriormente, os quadros (quadro 9 e 10) são
apresentados com o resultado geral de ambas as famílias pesquisadas apontando os fatores de
proteção e os fatores de risco diante da violência conjugal, considerando os diferentes níveis
dos sistemas ecológicos. Estes quadros foram baseados no demonstrativo elaborado por
Koller e De Antoni (2004) acerca dos indicadores de risco e de proteção para avaliação da
violência intrafamiliar. No presente estudo, entretanto, foram considerados os processos-
chave de Walsh (1998/2005).
As entrevistas na Delegacia foram analisadas também a partir do roteiro das narrativas
de Flick (2004), porém discutidas somente em referência aos fatores de risco e proteção
mencionados pelos profissionais. Estas entrevistas também foram categorizadas a partir dos
sistemas ecológicos de Bronfenbrenner (2002).
Tabela 1-
Domínios dos processos-chave de resiliência familiar elaborado por Walsh (1998/2005).
Sistema de
crenças:
(Coração e alma
da Resiliência)
Atribuir sentido à adversidade:
-valor afiliativo nas relações interpessoais;
-orientação do ciclo de vida familiar nos contextos de estresse e
crises;
-senso de coerência frente às crises como desafios a serem vencidos;
-avaliação da crise a partir das crenças da família.
Perspectiva Positiva:
-iniciativa e perseverança;
-encorajamento e foco no positivo;
-esperança e confiança na superação das adversidades;
-força e potencial;
-domínio do possível e aceitar coisas que não podem ser mudadas.
Transcendência e espiritualidade:
-propósito, valores e objetivos na vida;
24
-espiritualidade: fé, comunhão e rituais;
-inspiração, criatividade, modelos de papéis;
-aprendizagem e saída da crise, através da experiência vivida.
Padrões
Organizacionais:
Flexibilidade:
-capacidade para mudanças e reorganização;
-estabilidade como sentido de rotina;
Conexão: apoio mútuo, respeito às diferenças, forte liderança e busca
de reconciliação;
Recursos sociais e econômicos: mobilização da família extensa,
trabalhar junto e segurança financeira.
Processos de
Comunicação:
Clareza:
-mensagens consistentes;
Expressão emocional aberta:
- sentimentos compartilhados, empatia nas relações, interações
prazerosas e bemhumoradas;
Resolução colaborativa dos problemas:
-identificação e opções diante dos problemas;
-criatividade no lidar com o problema e compartilhar decisões: focar
nos objetivos e ter uma atitude preventiva em relação a futuro.
Adaptado de Walsh (1998/2005)
4. RESULTADOS
4.1 Inserção Ecológica
Descrevendo a Delegacia para a Mulher - Esta funciona em um prédio ao lado da
Central de Polícia do Município. É um prédio pequeno dividido internamente com divisória
Eucatex, sendo a parte de cima em vidro martelado que dificulta a identificação das pessoas
no interior das salas. Há uma recepção com secretária e mais sete salas onde os profissionais
fazem a escuta das vítimas e encaminham o inquérito policial que será posteriormente
encaminhado ao fórum dando continuidade ao processo de queixa crime contra o agressor. A
denúncia é feita na Central de Polícia e depois o inquérito é encaminhado para a Delegacia
para a Mulher, onde novamente é feito a escuta, agora mais detalhada, e que irá dar
prosseguimento ao processo judicial. É oferecido às vítimas atendimento psicológico no local,
pois a Delegacia conta com uma psicóloga cedida pela Prefeitura Municipal.
Quando a pesquisadora foi conversar com a Delegada para contratar a pesquisa houve
uma recepção muito positiva da proposta, no sentido do seu interesse pelo trabalho, inclusive
solicitando uma devolução e uma palestra sobre o assunto. Comentou, neste dia, que a
psicologia não era bem aceita na Delegacia por alguns policiais e escrivãs, mas que ela
25
sempre a considerou indispensável. Quando a pesquisadora tentou contratar as entrevistas
com alguns profissionais, percebeu algumas resistências e receio quanto à utilização dos
dados. Assim, com alguns profissionais conseguiu a aceitação com mais facilidade e com
outros não. Segundo a Delegada estes profissionais eram os mais resistentes à psicologia. No
entanto, esta conduta não revelava o caráter da instituição, pois durante as observações
naturalísticas e as entrevistas, foi possível perceber o empenho e o interesse da maioria pela
causa da mulher espancada. Em relação à Delegada, a pesquisadora ficou muito
impressionada com sua postura profissional de valorização da psicologia, sobre sua percepção
sobre a violência conjugal e de sua luta por esta causa em que se coloca também como
mulher.
Conforme Cecconello e Koller (2004), a proposta bioecológica de investigação deve
se sustentar na inserção ecológica do pesquisador no ambiente de pesquisa. Para tal, a teoria
ecológica propõe que o delineamento de pesquisa inclua os quatro componentes da inserção: o
processo, a pessoa, o contexto e o tempo. Neste trabalho os processos proximais foram
compreendido a partir da inserção da pesquisadora no ambiente, através de procedimentos
como observação naturalística, conversas informais e entrevistas com os profissionais da
Delegacia para a Mulher e também entrevistas com as famílias selecionadas para a pesquisa.
Segundo Bronfenbrenner (1979/2002), há cinco critérios que norteiam o processo proximal.
No presente trabalho estes critérios se constituíram da seguinte forma:
1) Para que o processo proximal ocorra é necessário que o pesquisador esteja envolvido em
uma atividade interativa com o objeto de estudo: Para isso as entrevistas com os familiares
tiveram a dimensão de terapia breve-focal, possibilitando um contato progressivo numa
relação terapêutica. Com os profissionais da Delegacia para a Mulher a interação ocorreu
através das observações naturalísticas e das entrevistas sobre a percepção destes
profissionais em relação à violência conjugal e o papel da Delegacia no enfrentamento deste
tipo de violência.
2) Para ser efetiva a interação deve ocorrer num intervalo regular de tempo, não podendo
acontecer em atividades meramente ocasionais: As observações naturalísticas aconteceram
no período de triagem das famílias que participaram da pesquisa, foram vários encontros e
conversas informais com os profissionais da Delegacia, além de uma palestra sobre
26
violência que a pesquisadora ministrou. Num segundo momento, as entrevistas formais
foram realizadas e tiveram a duração mínima de uma hora. As entrevistas com os familiares
foram realizadas a partir de um contrato terapêutico entre a pesquisadora e as famílias com
duração de no máximo10 encontros de uma hora cada.
3) As atividades devem ser progressivamente mais complexas: Para tanto, os encontros com
as famílias foram tornando-se extremamente terapêuticos, e na Delegacia para a Mulher, os
contatos foram possibilitando uma interação mais transparente. Esta última favoreceu a
comunicação e o relato de questões mais críticas como o papel do policial no acolhimento
das vítimas de violência conjugal.
4) Para que os processos proximais sejam efetivos deve haver reciprocidade nas relações
interpessoais: Dessa forma, a entrevistadora interagiu com as famílias através da terapia que
possibilitou além da coleta de dados, também o fortalecimento destas famílias diante da
violência. E com os profissionais da Delegacia para a Mulher, a pesquisadora compartilhou
opiniões, ministrou palestra e conheceu as percepções destes sobre a violência conjugal.
5) Para que a relação recíproca ocorra, os objetos e símbolos do ambiente imediato devem
estimular a atenção, exploração, imaginação e manipulação da pessoa em desenvolvimento:
Nesta pesquisa, os temas abordados nas entrevistas despertaram os interesses dos
participantes por estarem relacionados com suas histórias de vida. E com os profissionais da
Delegacia para a Mulher os temas abordaram suas percepções e seus posicionamentos diante
da violência conjugal.
Os quatro níveis ambientais foram incluídos na análise: o microssistema, o
mesossistema, o exossistema e o macrossistema. Ao longo de toda a investigação, diversos
processos proximais ocorreram. A pesquisadora, ao interagir com as famílias e a instituição
que as acolhe, conseguiu construir um entendimento sobre os fatores de risco e fatores de
proteção tão importantes para responder às questões de pesquisa e desenvolver novas
hipóteses teóricas. A pessoa envolveu a presença física do pesquisador na Delegacia e na
relação terapêutica com as famílias. O contexto foi analisado através das entrevistas com os
profissionais da Delegacia e a partir dos relatos das famílias. Foi atribuída uma atenção
especial à percepção das famílias sobre o ambiente em que vivem, pois, de acordo com
27
Bronfenbrenner (1979/2002), é necessário examinar o ambiente conforme ele é percebido e
experienciado pelas pessoas, não somente conforme ele poderia existir na realidade objetiva.
Portanto, o ambiente foi percebido e analisado a partir das percepções dos profissionais da
Delegacia e também das famílias atendidas. O quarto componente do modelo bioecológico, o
tempo, permite analisar as múltiplas influências que ocorrem para o desenvolvimento humano
ao longo do ciclo vital, sendo analisado através de três níveis: microtempo, mesotempo e
macrotempo. O microtempo permitiu analisar continuidade e descontinuidade dentro dos
episódios de processo proximal através da interação do grupo de profissionais da Delegacia e
a clientela atendida e também através da interação mãe x filhos das famílias atendidas. O
mesotempo refere-se à periodicidade dos episódios de processo proximal através de
intervalos de tempo maiores, como dias e semanas. Na Delegacia foi observada a rotina da
instituição e com as famílias as mudanças durante o período de terapia que girou em torno de
dois meses. O macrotempo compreende as expectativas e eventos em mudança dentro da
sociedade ampliada, tanto dentro como através das gerações e a forma como estes eventos
interferem nos processos e resultados do desenvolvimento humano ao longo do ciclo vital. Na
Delegacia focalizaram-se as expectativas e os eventos em mudança, como a troca de prédio e
a vinda de mais profissionais e policiais para aumentar o grupo e conseguir responder melhor
à demanda da comunidade. Nas famílias se focou as mudanças ocorridas na história de vida
após as denuncias de violência conjugal, que gerou um aumento da percepção sobre os
prejuízos da violência, tanto para as mães como para os filhos. E sobre seus relatos em
relação às crenças e valores familiares.
4.2 Síntese das Entrevistas com os profissionais
A seguir, apresentam-se as principais percepções dos profissionais em relação à
violência conjugal e o papel da Delegacia em relação ao enfrentamento da violência. Estas
entrevistas não foram identificadas em relação quanto ao profissional participante. Este
cuidado foi tomado para não expor os indivíduos.
a) Entrevista 1
A primeira entrevistada está trabalhando na Delegacia desde sua implantação, há dois
anos. Considera que a violência conjugal é um modelo aprendido na família e posteriormente
repetido, formando um círculo de agressão entre o agressor e a vítima. Alguns fatores
28
favorecem o aparecimento da violência como o alcoolismo, a falta de dinheiro e a desestrutura
familiar. Os casamentos são muito rápidos, os casais pouco se conhecem. Há dificuldades em
conviver e aceitar as diferenças na relação conjugal. Também há o fator social do preconceito
contra a mulher que apanha do marido, tipo: “mulher tem que apanhar e apanham porque
gostam”. A sociedade, ao construir o preconceito contra a mulher, torna a violência conjugal
algo natural. Essa banalização da violência favorece a crença dos homens de que não serão
punidos. Mesmo com a Lei Maria da Penha que pune com prisão o agressor, eles continuam
agredindo. A questão está relacionada ao fato de que pagando a fiança são liberados. O
policial também é influenciado pelo preconceito e fica estressado com o fato de não dar conta
da demanda gerando um sentimento de impotência. Os funcionários da Delegacia ficam
contaminados com o sofrimento das vítimas. O policial deveria ter um acompanhamento
psicológico para poder lidar melhor com a clientela. O papel do policial, é interromper a
violência inibindo-a, muitas vezes faz o papel de um intermediário como um juiz de paz. A
ação da polícia promove amparo e segurança à vítima, fortalecendo-a para fazer a denúncia
da violência. No geral, considera que a Delegacia está proporcionando mais amparo e
segurança à mulher, além de apoio psicológico para fortalecê-las emocionalmente, porque
muitas desistem do processo, mesmo na frente do juiz. Muitas vezes desistem pela lentidão do
processo.
b) Entrevista 2
Esta entrevistada também está na Delegacia desde sua implantação. Para esta
profissional, a questão central da violência conjugal está na frustração das expectativas na
relação conjugal. O que inicialmente era uma união afetiva se torna violência. A mulher cria
expectativas em relação ao marido de que vai mudar com o tempo. Há elementos essenciais
num relacionamento como respeito mútuo, aceitar as dificuldades um do outro e a
comunicação. A falta de comunicação entre o casal favorece o aparecimento da violência,
além do desemprego e problemas psíquicos que já trazem da infância. Outros fatores
geradores de violência é a drogadição, desamor, falta de estrutura familiar, falta de controle de
natalidade, falta de educação, descaso do governo.
Existem padrões culturais que determinam a conduta da mulher na sociedade e no
casamento, “não vendo com bons olhos” a separação e definindo regras que precisam ser
cumpridas, tais como: criada para sofrer, cuidar dos filhos, padecerem no paraíso. A mulher
29
assume esse lugar de sacrifício pelos filhos e pela família de forma resignada. Portanto, a
sociedade não olha para o ser humano que está atrás de cada homem e de cada mulher, e cria
padrões e papéis diferentes para cada um. Dessa forma, a mulher acaba assumindo um
compromisso maior com os filhos do que o homem e se vendo a principal responsável pelos
exemplos dados aos filhos. Em relação aos filhos, a violência causa uma ameaça à construção
da personalidade e dos valores morais como pessoa.
Todas as questões culturais e sociais atravessam o processo de violência conjugal e
também todas as outras formas de violência. A violência não é um problema em si, origina-se
muito na educação das pessoas, pois acredita que o ser humano é violento por natureza, e a
sociedade atual consumista estimula a frustração e acaba gerando violência. Outro fator
promovedor da violência na sociedade é o próprio sistema social-econômico-político que é
falho, não funciona para prevenir nem combater o crime. Pessoas sérias que querem trabalhar
acabam sem saber por onde atacar, porque falta estrutura social e governamental, que mostre
o caminho e dê uma direção. A questão política acaba atravessando as questões sociais porque
estas não dão votos para manter um partido no poder.
Em relação aos fatores que podem ajudar uma mulher a sair da violência, um deles é a
auto-estima, pois através do atendimento psicológico essas mulheres podem se fortalecer para
enfrentarem toda a violência que virá contra elas quando denunciarem o agressor. A mulher
precisa estar preparada para enfrentar a situação porque a vida é dela, e o basta à violência
tem que partir dela.
A Delegacia para a mulher tem duas funções a de oferecer suporte e apoio para a
vítima de violência e de reprimir o agressor. O trabalho na Delegacia também exige muita
tolerância à frustração porque os resultados são poucos.
c) Entrevista 3
Esta profissional também iniciou junto à implantação dos trabalhos na Delegacia.
Segundo ela a mulher que não consegue sair em definitivo da violência não tem auto-estima
suficiente para isso. A violência conjugal é um processo de vida doentio para estas mulheres.
Como é uma situação que faz parte da vida delas precisam de tratamento para sair desta
doença. A pessoa precisa resgatar seu eu interior e quando a mulher não consegue sair sozinha
da relação violenta precisa de ajuda psicológica. Há fatores que lhe ajudam a enfrentar a
violência como o suporte da religião, no entanto, muitas mulheres usam a religião para
30
justificar a permanência na violência. Através do sofrimento a mulher consegue resgatar a
vontade de mudar e de buscar a felicidade, ou seja, aprende com a experiência. No entanto, há
fatores que dificultam a saída da violência como a questão financeira e a vergonha em contar
para a família sobre a situação que estão vivendo e impedindo também a denúncia da
violência. A família extensa precisa ajudar a mulher vítima e não censurá-la. O apoio da
família é muito importante, mas não chega a 50% dos casos.
Dificuldade em se manter financeiramente é um fator que favorece a permanência na
violência e na grande maioria dos casos o alcoolismo também está associado. Outro fator que
mantém o controle do homem sobre a mulher é o machismo, pois eles se acham superiores,
não acreditam na lei, já que a impunidade é muito grande. A lei por si só não vai diminuir a
violência, é só uma proteção a mais para a mulher. Portanto, entre o homem e a mulher se
fecha um ciclo de violência e esta violência surge quando a mulher decide ser menos passiva
e mais independente.
A frase que circula na polícia (militar/brigada que faz a abordagem da denúncia) é de
que mulher gosta de apanhar. A escuta dessas mulheres já faz diferença para elas, sendo a
Delegacia um espaço privilegiado para darem um basta à história de que gostam de apanhar.
Portanto, a Delegacia para a mulher favorece o resgate social da imagem da mulher
espancada. Além da Delegacia para a Mulher há a assistência social do município, mas ali
acaba só em assistencialismo. Seria necessário aumentar os programas de atendimento
psicológico à comunidade.
d) Entrevista 4
Iniciou suas atividades na Delegacia seis meses depois das demais. Para ela a maioria
das mulheres que fazem a denúncia é de classe média baixa e na maioria das vezes tem o
objetivo de dar um susto no marido. Elas não levam adiante o processo e essa atitude ao
desistirem dá a idéia de que gostam de apanhar. Algumas mulheres se sujeitam em função do
financeiro. É muito importante o apoio da família de origem, mas às vezes eles estão muito
longe no interior e voltar significa passar por mais dificuldades. A criança exposta à violência
como vítima direta ou indireta levará para sua vida esse modelo interacional vivido na família
de origem. Outro fator importante é a falta de amor próprio da mãe agredida, que dificulta a
proteção aos filhos. Nessas famílias existe um modelo que é repetido porque os filhos ao
assistirem o pai bater na mãe acham que isso é normal. No entanto, é uma doença que envolve
31
o poder do homem sobre a mulher no qual ele cria as regras. O desejo pelo controle e o poder
é um grande fator da violência do homem contra a mulher. O alcoolismo é também um fator
que se manifesta na maioria dos casos, mas o desejo de controle e de poder sobre a mulher é
visto como uma doença, que nem sempre está associado com o alcoolismo.
Depois que a Delegacia para a Mulher foi implantada observou-se uma maior procura
da mulher de seu espaço, porque ela se sente mais protegida. Portanto, a Delegacia está
fazendo a diferença. Entretanto, seria necessário maior suporte social para as mulheres, como
uma casa de passagem, que além de fornecer proteção poderia fornecer cursos, oficinas que as
ajudassem a ganhar uma renda e prepará-las para o trabalho.
A Delegacia é uma boa aquisição para a sociedade e a Delegada é muito requisitada
nos eventos da cidade e em palestras. Porém, mas ainda falta mais envolvimento e interesse
por parte do policial, pois as ocorrências são preenchidas faltando dados importantes para dar
maior suporte à mulher. Falta também orientação no plantão para que elas dêem continuidade
ao processo e falta uma maior percepção para identificar os casos mais graves. O policial
mostra pouco interesse em ajudar a vítima de violência. Eles precisam de uma capacitação,
mas são muito orgulhosos para admitirem isso. Já a policial mulher parece mais interessada
nos casos dando as informações necessárias para que a vítima encaminhe o processo
corretamente. Mas como é algo novo, a Delegacia para a Mulher, com o tempo, se estruturará
melhor e o policial terá adquirido um olhar diferente para atender as vítimas de violência
doméstica. Os próprios profissionais da Delegacia não conversam entre si sobre os casos de
violência atendidos. Mas acredita que o policial deveria aprender no curso de formação a
ouvir os colegas e discutir as questões pertinentes, mas eles não dão valor para isso, acham
bobagem. Está na estrutura do policial não haver troca entre o grupo, porque são muito
individualistas.
4.3 - Análise das Entrevistas
A partir das entrevistas foram identificados os principais fatores de proteção e de risco
associados pelos profissionais aos casos de violência conjugal. Além disto, estes aspectos
foram categorizados por níveis de sistema ecológico, conforme o contexto situacional do fator
descrito. No quadro abaixo seguem a análise das narrativas, segundo o roteiro de Flick (2004).
32
Tabela 2-
Análise das Narrativas
Sistemas
Ecológicos
Fatores de Proteção Fatores de Risco
Microssistema
- Características positivas da
relação conjugal: respeito
mútuo, aceitar as dificuldades
e comunicação. Auto-estima
da mulher - o basta à
violência tem que partir dela
mesma.
- Capacidade de aprender
com a experiência: o
sofrimento gera experiência e
motivação para sair da
situação.
- Apoio familiar: muito
importante, para a mulher ser
menos passiva.
- Círculo da violência
(transgeracionalidade): A violência
conjugal como modelo aprendido na
família, círculo de agressão entre o
agressor e a vítima.
- Dificuldades maternas: Falta de amor
próprio da mãe, dificuldades na proteção
aos filhos, vergonha de solicitar auxílio.
Problemas familiares de alcoolismo e
problemas psíquicos.
- funcionamento familiar: casamentos
rápidos; frustração, dificuldade em
conviver e aceitar as diferenças na relação
conjugal.
Mesossistema e
Exossistema
- Treinamento e
acompanhamento do policial:
A ação da polícia interrompe
a violência, promove
segurança à vítima
fortalecendo-a para fazer a
denúncia.
- Papel da Delegacia: A
Delegacia proporciona
amparo à mulher, apoio
psicológico para a vítima e
reprime o agressor.
- Suporte da religião.
- Dificuldades do policial: Preconceito do
policial que mulher gosta de apanhar, sem
envolvimento e interesse, falta de preparo
técnico dos profissionais.
- Demanda intensa no serviço: Os
funcionários da Delegacia ficam
contaminados com o sofrimento das
vítimas
- Lentidão do processo: Muitas mulheres
desistem do processo por causa da
lentidão do processo.
33
- Suporte da Assistência
social do município:
Atendimento psicológico à
comunidade, casa de
passagem e cursos .
Macrossistema
- Leis municipais, estaduais e
federais: A lei Maria da
Penha é uma proteção a mais
para a mulher.
- Crenças culturais: O preconceito contra
a mulher (mulher gosta de apanhar), a
banalização da violência; crença dos
homens de que não serão punidos;
padrões culturais que consideram que a
mulher foi criada para sofrer, cuidar dos
filhos, padecer no paraíso.
-Situação social: A falta de
emprego/dinheiro, controle de natalidade,
educação e descaso do governo
-Violência estrutural: A sociedade atual
consumista gera frustração e violência,
próprio sistema social-econômico-político
falho, a impunidade. A lei por si só não
vai diminuir a violência.
4.4 Síntese Interpretativa da Inserção Ecológica
Microssistema
Fatores de Risco
Observa-se nas narrativas dos profissionais da Delegacia para a Mulher que um dos
fatores que mantém a violência conjugal é o processo de violência interacional e
intergeracional destas famílias, construído na relação familiar e repetido na escolha do
parceiro. Segundo Ostyn (1995) a violência é um modelo interacional que se repete através de
várias gerações da constelação familiar do agressor. Na relação conjugal se evidencia o
processo de transmissão multigeracional, um mecanismo que pode interferir na relação do
34
casal e está relacionado às experiências vividas dentro da família de origem. No entanto, esta
violência é vista como uma doença em que ambos os cônjuges estão envolvidos, cada um com
um papel específico a desempenhar. Já os autores Lundy Bancroft e Jay Silverman (2002),
porém, referem que os espancadores não têm doença mental, nem depressão e
tradicionalmente a psicoterapia é raramente efetiva. Tipicamente aparentam normalidade nos
testes psicológicos e poucos deles são sociopatas, são simplesmente maus e abusam com
propósito e intencionalidade. O homem traz um desejo grande de controle e poder sobre a
mulher a quem ele vê como inferior e que lhe deve obediência, pois este abuso de poder e
controle o motivam à violência (Walker, 2006).
Fatores de proteção
Em relação aos fatores que podem favorecer a saída da violência conjugal está a
característica da relação conjugal como o respeito mútuo, aceitar as dificuldades um do outro
e a comunicação na relação do casal. O enfrentamento da violência pela mulher aumenta sua
auto-estima, pois o basta à violência tem que partir dela, que pode aprender com a experiência
do sofrimento a resgatar a vontade de mudar e de buscar a felicidade. O apoio da família de
origem é muito importante, pois além de promover suporte e proteção também favorece uma
atitude menos passiva e mais independente desta mulher em relação ao parceiro.
Mesossistema e Exossistema
Fatores de risco
Entre os aspectos considerados negativos está a dificuldade do policial, como a falta
de mais envolvimento e interesse pelos casos de violência à mulher, pois estes policiais
também se influenciam pelo preconceito de que a mulher gosta de apanhar. Trabalham de
forma muito individualista e falta preparo técnico para estes profissionais realizarem um
trabalho mais consistente. Outro fator é a demanda intensa no serviço o que favorece o
sentimento de impotência, além do envolvimento com o sofrimento das vítimas. A lentidão do
processo também é um fator gerador de estresse, pois muitas mulheres desistem em função da
demora para as audiências.
Fatores de proteção
Indicado como um fator importante no enfrentamento da violência - o treinamento e o
acompanhamento psicológico do policial. A ação da polícia promove amparo e segurança à
vítima a fortalecendo para fazer a denúncia da violência. Dessa forma, a delegacia
proporciona mais amparo e segurança à mulher, além de apoio psicológico. Assim, a
delegacia possui duas funções, a de oferecer suporte e apoio à vítima de violência, como
35
reprimir o agressor. Este apoio e suporte social que a Delegacia para a Mulher tem
proporcionado à vítima de violência têm demarcado um novo espaço para a mulher na
sociedade. Outro fator identificado como promovedor de suporte é a religião, pois através dela
a vítima pode se fortalecer para enfrentar a violência. Em relação ao suporte da Assistência
Social do município, esta precisa aumentar os programas de atendimento psicológico à
comunidade, bem como criar uma casa de passagem que fornecesse cursos e oficinas, dessa
forma, preparando-as para o mercado de trabalho.
Macrossistema
Fatores de risco
Outro fator importante na compreensão do fenômeno da violência é a sociedade, que
contribui fortemente para que a violência conjugal se mantenha, pois além de definir papéis e
regras para o homem e a mulher, também tolera a crença da superioridade masculina.
Segundo Lenore Walker (2006), a teoria ecológica incorpora o trauma da violência conjugal a
outros fatores situacionais, que incluem uma estrutura de sociedade ainda patriarcal que tolera
e facilita a violência do homem contra a mulher. Para os profissionais da Delegacia o
preconceito criado pela sociedade em relação à mulher que apanha do marido dificulta o
enfrentamento por parte da vítima e também inibe a ação do policial.
Citando em específico a sociedade atual consumista e mantenedora de padrões de
comportamento muito competitivos de gênero, raça e ideologias, que gera conflitos de âmbito
individual e social, no Brasil estas questões se intensificam em função da percepção de
impunidade. Esta tem se caracterizado como um processo social que suscita a descrença no
poder público e governamental, o que tem favorecido a manutenção da violência, entre elas a
conjugal.
A violência de um modo em geral, é encarada por alguns profissionais da Delegacia
para a Mulher como fazendo parte do ser humano. Segundo Minayo (1984), a violência tem
estado presente em toda a história da humanidade. Este fenômeno vem sendo estudado há
muito tempo, pois é uma preocupação entender a essência da violência. Embora não faça
parte da natureza humana e tampouco tenha raízes biológicas, a violência, faz parte da própria
condição do ser, como um complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial, que se gera e se
desenvolve na vida em sociedade.
36
Ainda em Minayo (1994), um dos fenômenos sociais é a violência estrutural,
entendida como aquela que se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da
família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de
grupos, classes, nações e indivíduos, impedindo-lhes de alcançar conquistas sociais e assim
tornando-os vulneráveis ao sofrimento e a morte, bem como os fazendo aceitar ou a infligir
sofrimentos de uma forma naturalizada. Portanto, pode-se dizer que o desemprego, a pobreza
e a impunidade são fenômenos sociais que geram e mantêm a violência da sociedade sobre o
indivíduo, família, grupos e comunidades.
Fatores de proteção
A Lei Maria da Penha veio dar mais visibilidade a questão da violência à mulher com
a prisão do agressor, embora não resolva a questão da violência, mas já retrata um
posicionamento social frente a ela. Outro fator seria o aperfeiçoamento do policial para o
enfrentamento da violência conjugal e a criação de abrigos que oferecessem oficinas para
capacitar as mulheres ao mercado de trabalho.
Comentário da pesquisadora sobre as percepções dos profissionais que atendem
as mulheres vítimas de violência conjugal na Delegacia para a Mulher:
A violência conjugal é compreendida pelos profissionais da delegacia como alicerçada
em aspectos individuais, familiares (transgeracionais), sociais e culturais. Neste sentido, a
violência é narrada como resultando de diversos aspectos associados ao fenômeno, indicando
que estes profissionais têm uma visão ampla desta questão. Mesmo assim, deve ser ressaltado
que há certa especificidade em cada fala dos entrevistados, isto é, cada profissional contribuiu
com sua percepção particular na compreensão do fenômeno.
Pode-se afirmar que são otimistas as mudanças que poderão ser construídas através do
trabalho da Delegacia para a Mulher a favor de um novo espaço social para as mulheres, pois
se percebe o empenho destas profissionais em lutar pela causa mostrando um discurso crítico
e proativo, com sugestões importantes como a casa de passagem com cursos e oficinas que
promoveriam uma maior autonomia e independência financeira para as mulheres. Também
causou surpresa a crítica quanto à postura do policial que faz a primeira escuta da denúncia de
violência, pois além da crítica, os profissionais apontaram alternativas possíveis de serem
realizadas que resultariam em um maior enfrentamento da violência à mulher. Estas
profissionais possuem uma crítica muito importante em relação à sociedade que mantém a
37
violência através de preconceitos, padrões de gênero predeterminados com regras rígidas para
a mulher, que de certa forma tolera a violência do homem contra elas. Concluindo, é possível
se observar um grupo de profissionais muito conscientes do lugar da violência e do papel da
mulher neste contexto. Com certeza fazem parte de um movimento social que para muitos
ainda pode passar despercebido, mas que já acontece na Delegacia para a Mulher e no
discurso de outros profissionais (deputados) que lutam por uma sociedade mais justa para
todos os cidadãos brasileiros.
4.5 Famílias e violência
Nesta pesquisa, embora a inserção do pesquisador não se dê necessariamente no
ambiente imediato de vida da família, o encontro com seu objeto de estudo se deu através da
intervenção terapêutica. E é justamente na relação terapêutica, através da disponibilidade,
empatia e entendimento dos significados atribuídos pela família aos eventos de suas vidas que
o terapeuta constrói os processos proximais e o entendimento destes na história de vida das
famílias. As famílias participantes desta pesquisa foram identificadas a partir de contato
estabelecido na Delegacia da Mulher em um município da região metropolitana de Porto
Alegre/RS. Foram escolhidas duas famílias com configuração monoparental que
correspondiam aos critérios adotados para a seleção, os quais foram a faixa etária dos filhos
de até 12 anos, a situação familiar de violência conjugal e finalmente os aceites na
participação do processo terapêutico. Os dois casos eram de mulheres que haviam solicitado
atendimento para tratar de questões relativas às agressões do cônjuge e encontravam-se em
processo de separação conjugal. A primeira família pesquisada foi a de Lílian (29) e Beatriz
(9). O primeiro contato com Lílian se deu na própria Delegacia, durante a triagem das famílias
para a pesquisa. Lílian estava na Delegacia fazendo uma ocorrência contra o sogro por
ameaça de agressão física. Este episódio estava relacionado ao fato de Lílian ter encaminhado
ao judiciário queixa quanto ao não pagamento da pensão alimentícia da filha, o que resultou
na prisão do ex-marido. A segunda família pesquisada foi de Rosângela (28) e seus três filhos,
Rodolfo (11), Elvis (10) e Elisa (6). Meu primeiro contato com ela foi por telefone, sendo que
a psicóloga da Delegacia intermediou o encaminhamento. Rosângela estava vivendo sob forte
impacto emocional, pois a separação do marido Hamilton (35) era recente e ele a ameaçava de
morte. O marido tinha sido preso em flagrante pela polícia que fora acionada pela vizinha que
38
denunciara o espancamento que Rosângela estava sendo vítima. Foram realizadas seis sessões
psicoterapêuticas com a primeira família e sete sessões com a segunda.
Família 1-Lílian e Beatriz
Lílian (29) e Beatriz (9)
a) Síntese da história
Lílian (29) e Alan (28)
1
viveram juntos em torno de seis anos. Desta união nasceu
Beatriz, atualmente com nove anos de idade. Quando a menina tinha três anos, o pai se
envolveu com uma amiga do casal com quem teve um filho, hoje com quatro anos. Alan
sempre teve envolvimentos sexuais fora do casamento. Moravam em uma casa construída no
terreno dos pais de Alan, no caso, nos fundos da casa dos sogros. Neste período, a violência
física do marido para com a esposa foi aumentando aos pouco, pois segundo Lílian, ele não
aceitava que ela o criticasse por nada, tornando-se agressivo, impulsivo, e logo, respondendo
com tapas. Após as brigas, o marido pedia desculpas e prometia nunca mais repetir o
acontecido, mas as promessas não se cumpriam. Toda a violência física sofrida por Lílian era
assistida por Beatriz que tinha medo que o pai agredisse a mãe. Entretanto, com a menina
nunca houve agressão e segundo Lílian ele tratava Beatriz como uma princesinha, sempre
atencioso e amoroso. A menina gosta muito do pai, mas entende que a mãe era triste e sofria
porque ele batia nela. A violência na relação começou aos poucos e foi se firmando cada vez
mais conforme o marido se envolvia com outras mulheres. Agressões físicas e discussões
eram freqüentes e sempre na frente da filha. Lílian teve o nariz quebrado em uma das brigas
do casal. Segundo Lílian o marido não aceitava crítica alguma e dificilmente eles
conversavam calmamente. O próprio cunhado chegou a agredi-la certa vez. Os sogros nunca a
apoiaram e, portanto, o filho sempre manteve o comportamento agressivo na relação. Lílian
relata que a sogra vive uma história de violência psicológica porque o sogro sempre teve
relacionamentos extraconjugais.
O fator desencadeante da separação foi o envolvimento do ex-marido com outra
mulher. Ele ficava dias fora de casa e, portanto, Lílian decidiu que não queria mais viver o
relacionamento conjugal daquela forma. Após a separação, Alan não apareceu mais para ver a
filha e isso deixava a menina muito triste. Lílian acionou o marido na justiça por falta de
pagamento de pensão alimentícia e ele acabou preso, fato que deixou os pais dele furiosos a
1
Os nomes mencionados são fictícios.
39
ponto de ameaçá-la de agressão caso voltasse para a casa. Lílian foi até a polícia para registrar
a ameaça de agressão por parte dos sogros. A psicóloga local indicou terapia que ela aceitou
prontamente.
A família de origem de Lílian não aceitava a forma como ela vivia: com violência e
traição e lhe dava apoio para que saísse do relacionamento conjugal. Especialmente a irmã
mais velha de Lílian, que após a morte da mãe assume este lugar de cuidadora da irmã. Esta
irmã tem sido uma base segura para Lílian, sendo quem mais lhe ajuda com conselhos e com
recursos financeiros também. Após a separação, Lílian busca ajuda espiritual para enfrentar o
sofrimento, sendo a irmã a pessoa que a leva até a igreja e que está sempre ao seu lado.
Lílian tinha dezessete anos quando a mãe morreu. São ao todo (8) oito irmãos na
família e Lílian é a quinta filha. O pai antes de casar com sua mãe já tinha três filhos de outra
relação. No entanto, esta relação foi mantida em segredo pelo pai. A história veio à tona
porque a ex-mulher apareceu com os três filhos e os deixou na porta da casa do ex-marido.
Estas crianças foram criadas pela mãe do pai. O casal acaba se separando e a mãe de Lílian se
envolve com outro homem, vindo a engravidar. Este homem é o pai biológico de Lílian.
Entretanto, o casal não fica junto, pois este homem era casado. O segredo sobre o pai
biológico de Lílian foi mantido até a morte da mãe. Revelado por uma tia, somente a própria
Lílian e uma de suas irmãs têm conhecimento do fato. Portanto, estes fatos são padrões
relacionais de segredos familiares, que acabam tornando-se conflitos graves e com
conseqüências sérias para todos os envolvidos.
4.6 Análise das narrativas - Caso Lílian-Beatriz
A análise das entrevistas é apresentada a seguir considerando os fatores de risco e de
proteção identificados nas narrativas e categorizados segundo os domínios de Walsh
(1998/2005), respectivamente o Sistema de Crenças, Padrão de Organização e Processos de
Comunicação e contextualizada nos sistemas bioecológicos. A análise das entrevistas segue o
método das narrativas do roteiro de Flick (2004).
Sistema de crenças da família
No domínio, Sistema de Crenças da Família estão incluídos os aspectos relativos à
capacidade de atribuir sentido à adversidade, perspectiva positiva, transcendência e
espiritualidade. Estes foram analisados em relação ao Eu ecológico, Microssistema,
40
Mesossistema, Exossistema e Macrossistema familiar. O quadro abaixo contém a síntese das
principais características dos fatores de proteção e de risco identificados nas narrativas.
Tabela 3
Sistema de crenças da família
Sistema de
crenças
Fatores de proteção Fatores de risco
Atribuir sentido
à adversidade
Busca por mudança,
compartilhamento da crise e
afetividade com família de origem.
Reconhecimento da violência como
prejudicial e discriminação da
situação que está vivendo.
Escolhas segundo referencial
interno de valores.
Responsabilidade da mãe e lealdade
da filha. Gradual melhora senso de
coerência e propósitos de vida.
Sentido à adversidade associando
com aprendizado.
Não era protagonista de sua
história de vida.
Senso de coerência alienado,
paralisado, sem reconhecer papel
da violência para a filha.
Falta de discriminação do papel
mãe-filha.
Reações de depressão e ansiedade
da mãe e da filha.
Atitude de passividade frente à
violência.
Perspectiva
Positiva
Perseverança e esperança na luta
por seus direitos.
Fortalecimento para enfrentar os
problemas. Força e potencial nos
aspectos cognitivos e de
temperamento.
Dificuldades de manutenção de
uma perspectiva saudável de vida
durante o casamento e nos
períodos de crise em função do
processo judicial.
Transcendência
e espiritualidade
Busca de força através da fé.
Sistema de crença da família de
origem: proteção, afeto, união.
Valorização da instituição familiar.
Culturalmente a sociedade não
aceita a violência.
Família do marido: a violência é
um modelo interacional, o homem
é superior à mulher, detentor do
poder. A mulher é responsável
pela manutenção do casamento.
Infidelidade: família de origem e
na própria. Segredos Familiares.
41
Fatores de Proteção
Eu ecológico
Observa-se no relato que Lílian teve um processo longo de amadurecimento da
decisão de romper o casamento e de enfrentar a violência. Os aspectos identificados por ela
como favoráveis a sua recuperação foram o apoio familiar, principalmente os irmãos, a
religiosidade e características pessoais de comunicabilidade, sensibilidade, empatia e clareza
na identificação de seus problemas. O desejo de atribuir um sentido positivo a sua vida
revelou seus valores e aquilo pelo qual ela acreditava e foi fundamental para a decisão de
Lílian de não permanecer numa história de opressão e sofrimento. Resgatou seus valores e
assumiu novos propósitos para sua vida, especialmente, quando percebeu o sofrimento da
própria filha, resultado da exposição à violência que foi vivenciada, marcando de forma muito
profunda o sentido de vida de Lílian. Este aumento da percepção se deu através da
interferência da família de origem de Lílian, que apontou sua vulnerabilidade diante das
histórias de violência em que ela e a filha estavam vivenciando. Portanto, através da amizade
dos irmãos, em especial da irmã mais velha, Lílian acabou melhorando seu senso de coerência
e o propósito para a sua vida. Segundo Walsh (2005), as crises podem acionar mudanças que
embora dolorosas ofereçam oportunidades de crescimento e transformação, pois possibilitam
reavaliações sobre o mundo e o lugar da pessoa neste contexto social.
Na história de Lílian e Beatriz, algumas características disposicionais favoreceram
decisões que resultaram em outras escolhas baseadas no referencial interno de valores. As
características de Beatriz, tais como auto-estima positiva, inteligência acima da média e
temperamento fácil e dócil favoreceram seu aproveitamento escolar de forma a não se
prejudicar, apesar da exposição à violência do pai contra a mãe. “Aprendizagem...nenhuma
dificuldade graças a Deus, mas aquele lado emocional dela, que afetava”.
Ao longo da história de violência, ambas foram aprendendo a compartilhar a dor e
sofrimento. Esta experiência ensinou-as a atribuir sentido à vida de forma a fazer novas
escolhas, além de promover a responsabilidade e a lealdade entre ambas. Segundo Whitaker e
Keith (1981), a responsabilidade e o compromisso mútuo estimulam as relações familiares em
direção de um senso de inteireza que permite resistir ao estresse e a desorganização. O desejo
de atribuir um sentido positivo a sua vida revelou seus valores e aquilo pelo qual ela
acreditava sendo fundamental para a decisão de Lílian de não permanecer em uma história de
42
opressão e sofrimento. Percebe-se também que tanto a mãe quanto a filha conseguiram
atribuir significado ao sofrimento e que juntas estão enfrentando e superando o conflito.
Ainda em Walsh (2005, p. 66) “as famílias precisam de um sistema de valores e crenças que
transcenda os limites da sua experiência e do seu conhecimento, permitindo encarar a
realidade que pode ser ameaçadora e dolorosa, sob uma perspectiva que extraia algum sentido
dos eventos e permita a esperança”.
Lílian desenvolveu uma percepção de aprendizado pela experiência: “que a vida é uma
escola e eu aprendi muito, claro que não foi na base do amor, foi na base digamos assim, da
pancada mesmo que eu amadureci”. Antes qualquer coisinha eu chorava, não tinha ação, eu
tinha medo de tudo, eu só chorava, então não passava segurança, agora não. “Eu acho que de
tanto que eu levei pancada, que eu me fortaleci, mas eu era bem frágil mesmo”. Por que
Lílian consegue extrair sentido da adversidade associando com aprendizado? As experiências
adversas apesar de causarem sofrimento, ensinaram-na a olhar para a dor e para seus valores,
os quais ela passou a valorizar porque voltou a vê-los na sua vida. Outro fator importante é
Lílian reconhecer a importância do lugar da violência como prejudicial à filha (empatia da
mãe). “O que mais pesou para minha filha foram as agressões do pai dela para comigo, que
ela tinha medo que a qualquer momento eu ia apanhar”. Lílian desenvolve uma crítica sobre
a forma como a violência acabou prejudicando-as, “minha mãe sempre falava, que “a gente é
o espelho dos filhos da gente” e se a minha filha crescesse vendo o pai dela sempre me
agredindo, qual era o futuro da minha filha, eu pensava”. Que espécie de vida que eu vou dar
pra minha filha? Tanto que as minhas irmãs sempre falavam: - Lílian, que vida tu queres pra
ti, uma vida com um homem te agredindo a vida inteira, a tua filha vendo isso, tu não está
vendo que ela está passando por um monte de problemas? Ela está com depressão...”. Para
Walsh (2005, p. 53), “o senso de coerência está relacionado com o que é significativo,
incluindo os sentimentos existenciais de integração social e propósito na vida, em oposição a
um senso de alienação, desvio ou paralisação”. A religiosidade também se mostrou
importante para a saída do sofrimento e da depressão. Através da espiritualidade buscou
consolo e conforto para aceitar eventos que não podiam ser modificados, mas encarados de
outra forma. Quando eu comecei sabe, a freqüentar a igreja, eu fui procurar uma coisa
assim, que me preenchia sabe, aquele vazio que eu tava sentindo”. Segundo Walsh (2005), a
espiritualidade engloba valores internos que levam a um senso de significado interior que se
conecta com os outros.
43
Microssistema familiar
A presença da família de origem na vida de Lílian e Beatriz através do apoio dos
irmãos e do pai foi um fator muito relevante para a saída da história de violência, promovendo
uma estabilidade emocional para ambas. Este apoio da família de origem é marcado por
sentimentos de afeto e carinho muito intensos entre seus membros, em especial, a irmã mais
velha, que sempre desempenhou um papel muito importante na vida de Lílian e Beatriz. É
possível identificar que na história familiar o afeto é um sentimento transgeracional que
permite transcender a dor, como se percebe no relato de Lílian em relação aos sentimentos do
pai para com ela. Embora o pai nunca tenha dito nada referente ao fato dela não ser sua filha
biológica, Lílian tem a impressão de que ele sabia. “Mas pra ti ver que ele tinha amor e tinha
coração, ele nunca falou nada. Eu tenho certeza que ele sabia, mas não queria me contar”.
Outro fato diz respeito à mãe de Lílian, a qual ela tem em grande consideração sempre a
colocando como alguém muito especial em sua vida, mesmo depois de saber que a mãe tivera
um caso com outro homem e que ela era fruto deste relacionamento. Lílian descreve a mãe
como alguém que sacrificou sua felicidade amorosa pela família, porque seria seu bem maior.
Segundo Walsh (2005, p.69) “o cuidado e a preocupação com os outros tanto nos sustenta
quanto dá significado às nossas vidas”.
Observa-se que no modelo relacional da família de origem de Lílian, há fatores
protetores como o compartilhamento dos problemas, bem como carinho e afeto que
promoveram sua auto-estima e sentimentos de se proteger contra ofensivas e não se deixar
iludir e muito menos ter dúvidas quanto às suas escolhas. Ela conseguiu resgatar seus valores
e assumir novos propósitos para sua vida, especialmente, quando percebe o sofrimento da
própria filha, resultado da exposição à violência que foi vivenciada, marcando de forma muito
profunda o sentido de vida de Lílian. “Então foi esse tipo de vida que eu não quis pra mim, o
que eu não quero pra mim eu também não quero para minha filha, como eu vou mostrar tudo
de bom para ela, se eu vivo num relacionamento onde meu marido me espanca dia e noite,
que eu vivo com a cara roxa, que eu já fui ao hospital com o nariz quebrado, que eu já passei
tanta humilhação, que chegou uma hora que eu disse eu não quero mais, se tu me
perguntar se eu gostava dele, demais, mas não dá. Como eu ia continuar vivendo, ou eu me
amava, ou não me amava”. Observa-se a retomada da auto-estima promovendo o desejo de
mudança em sua vida..
44
Macrossistema
As crenças, a cultura e os valores da família de origem de Lílian aparecem nitidamente
em seu relato da história familiar: “os pais são como espelho para os filhos; aprendi que por
mais que doa tem que dizer a verdade; se minha mãe estivesse viva, ela veria isso e ela não
teria nada de orgulho de mim”. Lílian se refere ao fato de que, provavelmente, a mãe não
aceitaria vê-la vivendo uma história de violência e sofrimento. No entanto, esta questão
também é dúbia, pois a mãe escondeu da filha a verdade sobre sua paternidade.
Fatores de Risco
Eu ecológico
Durante o convívio com o marido mostrava-se submissa e passiva diante da violência
a qual era submetida e também não via as necessidades da filha. “Só que eu era muito
imatura, acho que era muito burra naquela época, sabe”. “Tudo eu aceitava, tudo eu dizia
sim, tudo eu dizia amém, pra mim tudo estava bom, eu não sabia qual era as minhas
vontades, as minhas opiniões”. Portanto, percebe-se que Lílian não era protagonista de sua
história de vida e tão pouco assumia a autoria, se deixando conduzir pelo marido. Não
enxergando o sofrimento da filha e o que a violência causava para ambas, permitiu que o
processo se mantivesse por mais tempo. “Eu te confesso que naquele momento, eu não falava
nada para ela, porque eu só pensava em mim... minha vida era só chorar... e nesse momento
eu não enxergava nada, só eu... só depois eu percebi que ela precisava de ajuda”. Para
Ravazzola (1999, p. 96) a pessoa abusada reforça as condutas do abusador, porque “não vê
que não vê seu próprio sofrimento, a injustiça de sua própria situação, o perigo que corre sua
saúde e sua vida, tão pouco, sua capacidade de reação e seu direito a defender-se (duplo
cego)”. Outra questão crítica no relacionamento mãe-filha é a falta de discriminação do papel
entre elas, onde a relação assume a característica de irmãs, pois a mãe compartilha tudo com a
filha a expondo muito aos problemas. “ A Beatriz sabe de tudo, eu não escondo nada dela”.
Microssistema familiar
Percebem-se no padrão de funcionamento da família do marido algumas crenças que
favorecem o aparecimento e perpetuação da violência nas relações. Algumas dessas crenças
dizem respeito ao lugar da mulher na relação, passiva, inferior ao homem, o qual é detentor do
controle e autoridade sobre a esposa e filhos. Segundo os autores Bancroft e Silverman
(2002), o abusador acredita que o cônjuge e seus filhos é sua propriedade. A família deveria
45
se envolver em torno dele. O abusador com freqüência confunde abuso com amor, pois vê
seus atos abusivos como prova de amor. Muitos espancadores são vistos pelo público em
geral como bons, e geralmente, tentam enrolar os profissionais. Acrescentam que o abusador
abusa com propósito, eles sabem o que estão fazendo e fazem intencionalmente, e muitos, são
simplesmente maus, não são doentes e nem depressivos e não são confiáveis.
Walker (2006) salienta que o abuso de poder e controle estimulam o abusador. Lílian
relata como o ex-marido repetia o padrão de violência, “ele vinha e pedia perdão e dizia que
o ia mais fazer, que sabia que estava errado, mas era uma coisa que ele não conseguia
controlar e quando via estava me agredindo de novo”. Em relação à Beatriz (filha), o pai não
se preocupava em poupá-la da exposição à violência. Depois da separação continuou expondo
a filha, portanto, sendo negligente com os sentimentos e necessidades da menina. Quando
ainda casados, o ex-marido levava a menina junto com ele em encontros com outras mulheres.
Portanto, o pai sempre manteve uma conduta abusiva diante da filha, sem se preocupar com as
conseqüências emocionais desta exposição para ela.
A violência é um modelo interacional da família de origem do marido. Lílian relata
como a sogra sofre calada com a violência psicológica do marido (sogro). Segundo Ostyn
(1995), a violência é um modelo interacional que se repete através de várias gerações da
constelação familiar do agressor. Na relação conjugal se evidencia o processo de transmissão
multigeracional, um mecanismo que pode interferir na relação do casal e estão relacionados às
experiências vividas dentro da família de origem. Lílian questiona se isso é felicidade, e refere
que para ela segurança financeira não compra a felicidade, nem o amor e o respeito.
Comentários de pessoas de fora da família de origem de Lílian e da própria ex-sogra de que
ela não soubera segurar o marido ou que não fora competente para isso, exemplifica as
crenças sociais sobre a responsabilidade, regras e papéis da mulher na manutenção do
casamento. Também se observa como a infidelidade é um processo relacional que se repete
nas famílias, tanto de Lílian como de Alan e que novamente é vivenciado na história atual.
Os segredos familiares aparecem nesta família promovendo a violência psicológica,
pois o pai de Lílian já tinha uma família antes de casar com sua mãe, e a descoberta acarretou
um grande conflito conjugal e familiar levando à separação do casal. A partir deste evento da
separação, a mãe engravida de outro homem, o qual seria o pai biológico de Lílian, e este fato
fica em segredo até a morte da mãe. Assunto nunca conversado em família e, portanto, Lílian
nunca soube se o pai sabia da verdade. Segundo Imber-Black (2002, p. 21), “os segredos são
46
fenômenos sistêmicos, e estão ligados ao relacionamento, moldam as díades, formam
triângulos, aliança encoberta, calibrando a intimidade e o distanciamento nos
relacionamentos”.
Padrão de Organização da Família
No domínio, Padrão de Organização da Família estão incluídos aspectos relativos à
capacidade de flexibilidade, conexão e recursos sociais e econômicos. Estes aspectos foram
analisados em relação ao Eu ecológico, Microssistema, Mesossistema, Exossistema e
Macrossistema familiar, considerando os fatores de proteção e de risco. O quadro abaixo
contém a síntese das principais características dos fatores de proteção e de risco identificados
nas narrativas.
Tabela 4
Padrão de organização da família
Padrão
Organizacional
Fatores de proteção Fatores de risco
Flexibilidade
Conexão
Recursos sociais e
econômicos
Mãe encoraja, acolhe os
sentimentos da filha e reconhece
seus méritos.
O respeito do pai de Lílian pela
sua escolha de permanecer na
relação conjugal.
A coesão da família de origem,
o compartilhar dos problemas.
Apoio da escola e da igreja.
Disponibilidade da terapia.
Apoio financeiro dos irmãos
Atitude de passividade de Lílian
diante da violência.
Falta de controle sobre eventos
estressores.
Regras rígidas e inalteráveis
Mulheres desvalorizadas, padrão
familiar de promiscuidade sem
compromisso com vínculo.
Pouca diferenciação dos limites
geracionais e sem proteção às
fronteiras do casal.
Família do marido: não há respeito
pelas diferenças, as regras são
rígidas, punitivas e coercitivas.
Pai expõe a filha à violência,
negligente com suas necessidades
físicas, emocionais e psicológicas.
Falta de apoio da família do marido.
47
Fatores de Proteção
Eu ecológico
Mãe encoraja e acolhe os sentimentos da filha e reconhece seus méritos. “Consolar
ela, acalmar e dizer que eu estava ali do lado dela, que não precisava ter medo de nada”.
Todas as respostas dela me surpreendiam bastante sabe, por que bem madura, parecia uma
menina de quinze anos falando”. “Da aprendizagem ela não teve, nunca teve nenhuma
dificuldade graças a Deus, mas aquele lado emocional dela que afetava”. Beatriz também
melhorou seu entendimento sobre a violência e porque a mãe se separou do pai, “porque ela
sofria muito”. Confirma o medo que tinha dele machucar a mãe e identifica o que está
ajudando-a a melhorar, “minha mãe que conversa comigo”. Segundo Walsh (2005) as
famílias possibilitam um amplo contexto de aprendizagens essenciais para o desenvolvimento
de seus membros, onde os pais encorajam o sucesso das crianças e os recompensam com
atenção, aprovação e reconhecimento. Observa-se nas atitudes de Lílian que ela foi promotora
das competências da filha.
Microssistema familiar
A coesão da família de origem e o compartilhar dos problemas têm se mostrado
grandes suportes para Lílian e Beatriz conseguirem enfrentar as dificuldades. “Meus irmãos
todos me apóiam, já saí de sacola de roupa, sempre me ampararam, sempre disseram que era
pra eu largar essa vida. O meu pai e minha mãe já morreram, mas não era esse tipo de vida
que eles queriam para mim”. O respeito do pai de Lílian e seu acolhimento pela escolha da
filha em permanecer na relação conjugal. “Ele dizia para as minhas irmãs: eu sei que a Lílian
gosta dele e está sofrendo o que eu vou fazer?”. “Ele sofria calado, mas ele não falava pra
mim, vontade ele tinha de dizer que ele não prestava, mas ele me poupava”.
Mesossistema e Exossistema
Observa-se que outros promotores de resiliência na história de vida de Lílian e
Beatriz, como o apoio da escola e da igreja desempenharam um papel reforçador da
necessidade de buscar outros propósitos e sentido para a vida. A escola apontando o
sofrimento da Beatriz bem como seu potencial e capacidade de aprendizado. A igreja
possibilitando sua re-conexão com a fé. A terapia se mostrou promotora de reflexão e
reconhecimento de suas habilidades, capacidades e valores, bem como seus direitos como
cidadã. Também facilitou o vínculo terapêutico com confiança, possibilitando as expressões
48
de sentimentos de vulnerabilidade. Terapeuta: “é que são pensamentos que abalam a
autoconfiança, como se tu fosse a causadora dos problemas”. Lílian: “é assim que eu me
sinto, eu sou o pivô sabe, disso tudo, a onde eu estou ali está a confusão”. Terapeuta: “talvez
tu estejas olhando isso de uma forma muito pesada, exigindo muito de ti mesma, porque tu
não entraste sozinha nesta história, no entanto, está fazendo de tudo para sair”. Portanto, a
terapia possibilitou a ela e a filha uma melhor organização emocional e um posicionamento
mais adequado diante das adversidades enfrentadas, bem como um encorajamento e um
otimismo na superação destes.
A Delegacia para a Mulher se mostrou um grande promotor de suporte judicial e
emocional, pois propiciou a denúncia da violência e garantias quanto a sua segurança e acesso
a seus direitos como cidadã. A delegacia favoreceu a comunicação dos eventos violentos bem
como favoreceu o controle sobre eles, o que de outra forma não era respeitado. Também
tornou público e expôs a violência e o agressor. Desta forma, a instituição possibilitou
apropriar-se de uma autoridade que resultou em maior liberdade interior e fortalecimento
emocional.
Fatores de Risco
Eu ecológico
Em relação aos fatores de risco foi possível se observar que a violência é um modelo
interacional da família de origem do marido, que se manteve através de algumas crenças que
dizem respeito ao lugar da mulher na relação, passiva, inferior ao homem, o qual é detentor do
controle e autoridade sobre a esposa e filhos. Também se observou que o processo de
transmissão multigeracional se perpetuou através das relações conjugais, passando de pais
para filhos. Na família de origem de Lílian, também houve história de violência, relacionada
aos segredos familiares, que aparecem nesta família promovendo a violência psicológica.
Portanto, Lílian na escolha do cônjuge acabou repetindo uma história de violência
psicológica, muito diferente das escolhas de suas irmãs, denotando o quanto a violência
psicológica do segredo em sua vida foi marcante e destrutiva. Mãe e filha se sentiam
rejeitadas e abandonadas e não recebiam apoio da família do ex-marido. “Eu tenho a
impressão, às vezes, que eles querem me ver lá no fundo do poço, me arrastando, é isso que
eu penso”. Dessa forma os eventos estressores assumiram uma dimensão maior e geraram
insegurança e perda da autonomia por parte de Lílian. Conseqüência da violência para a
menina: ansiedade prévia e medo de ser cobrada. Lílian relata como a Beatriz estava ansiosa
49
pelo início das aulas, estava estudando a tabuada, disse que a filha é uma menina preocupada,
“é um interesse, mas acompanhado de preocupação, ela está ansiosa e preocupada, porque
se a professora perguntar e ela não souber, Deus me livre”. Acha que a filha é muito
parecida com ela, que ambas são ansiosas. Lílian continua relatando as preocupações da filha,
“se ela falta, no outro dia fica desesperada porque a professora vai xingá-la”. Parece um
medo aprendido na relação familiar ao ver o pai repreendendo a mãe.
Microssistema familiar
Percebe-se que na família do marido não há respeito pelas diferenças e as regras são
rígidas, punitivas e coercitivas. Durante o casamento e mesmo após a separação a família de
origem do ex-marido continuou a exercer influência dominadora e manipulativa sobre Lílian e
Alan. Portanto, há uma dificuldade com limites e fronteiras do casal que acabou gerando um
problema no processo de separação/individuação. Whitaker (2002) coloca que a mudança da
família de origem para a família atual é a forma mais rica e produtiva de se adquirir
individuação e pertencimento. Esta aquisição se dá através de um processo evolutivo.
Portanto, “o casamento consiste em um particular e poderoso processo dialético que oscila
através de um continuum fusão/individuação (p. 101)”. Este processo, quando bem elaborado
na família de origem, garante o sucesso no casamento. Bowen (1978) também refere que o
casal quando apresenta uma maior dependência emocional um do outro, apresenta menos
tolerância quanto às diferenças do outro.
O ex-marido se envolveu com uma menina de treze anos e que esta engravidou, mas
que perdeu o bebê, esses eventos ocorreram quando ainda era casada. Percebe-se aqui, que o
padrão familiar é de promiscuidade e sem compromisso com vínculo afetivo e que as
mulheres são desvalorizadas e exploradas sexualmente como objetos de prazer descartável.
Segundo Ravazzola (1999), o abusador não registra a indignação e a vergonha frente aos seus
próprios atos violentos. Portanto, não vê que não vê sua perda de limite em suas ações, sua
periculosidade, dependência e arbitrariedade, nem o prejuízo de seu abuso.
Ainda em relação ao modelo de violência familiar o ex-marido está tentando
desestabilizá-la novamente, usando para isso a própria filha. Lílian relata que soube através de
um amigo, que estão “arrumando falsas testemunhas para depor contra mim, para me tirar a
Beatriz”. Conforme Bancroft e Silverman (2002), o abusador abala a autoridade e capacidade
da mãe, e esse abalo continua depois com o divórcio. Na briga da custódia, o abusador usa a
50
criança como uma arma contra a mãe. É comum o abusador tirar a guarda da criança da mãe
para provar que ela é uma mãe inapta. Essa necessidade de menosprezo e degradação moral
está relacionada ao fato do abusador não aceitar que a mulher tenha desafiado sua autoridade
ao deixá-lo. Finalmente, a falta de posicionamento de pai de Lílian favoreceu sua
permanência na história de violência, “se houvesse um posicionamento firme do pai acho que
me separaria, de repente poderia ter evitado um monte de coisa que aconteceu”.
Mesossistema e exossistema
Lílian não confiou no judiciário para ajudá-la a resolver seus problemas, pois este se
mostrou lento e pouco resolutivo. Pois já se passou três anos da separação e sua situação
continua a mesma, ou seja, morando no mesmo pátio que os sogros e tendo que engolir
desaforos e ofensas, além da ausência de apoio financeiro por parte dos sogros. “É como
minha irmã disse, esse filme de terror tem que acabar e eu penso assim, sozinha no mundo e
muita cobra sabe, vivendo com o inimigo”.
Macrossistema
A estrutura da sociedade patriarcal que tolera, senão facilita a violência do homem
contra a mulher, segundo Minayo (1994), é um fenômeno social ao qual denomina de
violência estrutural. Esta violência é entendida como aquela que se aplica tanto às estruturas
organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e
políticos, conduzindo à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos e impedindo-lhes de
alcançar conquistas sociais. Assim, tornando-os vulneráveis ao sofrimento e a morte, bem
como os fazendo aceitar ou a infligir sofrimentos de uma forma naturalizada. Embora não
faça parte da natureza humana e tão pouco tem raízes biológicas, a violência faz parte da
própria condição humana, como um complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial, que se
gera e se desenvolve na vida em sociedade (Minayo, 1994).
Portanto, segundo Bronfenbrenner (1979/2002) as realidades familiares, sociais e
econômicas bem como as culturais estão organizadas como um todo articulado num sistema,
que se compõe em subsistemas, que se comunicam de maneira dinâmica. E, as forças que
atuam na família, na comunidade e na cultura determinam a aparição de relações violentas
(Belsky, 1980). Na história de Lílian foi possível se observar, que o modelo de violência da
51
família de origem do ex-marido possui muito dos aspectos acima mencionados pelos autores,
se configurando num processo de difícil manejo e mudanças.
c) Processos de comunicação
No domínio, Processos de Comunicação da família, os aspectos relativos à capacidade
de clareza, expressão emocional aberta e resolução colaborativa dos problemas foram
analisados em relação ao Eu ecológico, Microssistema, Mesossistema, Exossistema e
Macrossistema familiar, considerando os fatores de proteção e de risco. O quadro abaixo
contém a síntese das principais características dos fatores de proteção e de risco identificados
nas narrativas.
Tabela 5
Processos de Comunicação.
Processos de
comunicação
Fatores de proteção Fatores de risco
Clareza
Lílian se comunica de forma
clara com a sua família de
origem e lhes fala de sua
situação de violência após a
separação.
Lílian não conseguia conversar com sua
filha sobre a violência durante o
casamento, não via o alcance da
violência. Atualmente se sente acuada
pela família do ex-marido.
Expressão
Emocional
Aberta
Lílian compartilha seus
sentimentos com os irmãos
Há empatia nas relações
afetivas entre as irmãs e de
mãe e filha.
Pobreza no compartilhamento das
emoções e da comunicação, pois não há
abertura nem negociação na relação do
casal.
Resolução
Colaborativa dos
Problemas
Lílian conta com a ajuda dos
irmãos para resolver seus
problemas e enfrentar o ex-
marido e os sogros.
Não pode contar com o apoio da família
do ex-marido e com ele não consegue
resolver nada referente à filha, a sogra é a
intermediária dos assuntos.
52
Fatores de proteção
Eu ecológico
A resolução dos problemas, a comunicação clara e a expressão emocional
aberta na relação entre mãe e filha têm facilitado e promovido a recuperação da auto-estima e
autoconfiança de ambas. A comunicação entre elas melhorou muito depois que Lílian
começou a acolher os sentimentos da filha e compartilhar dúvidas, receios e decisões para
suas vidas. Conforme Lílian, ela foi se fortalecendo emocionalmente e recuperou o controle
sobre alguns eventos de sua vida. “Eu não preciso disso, eu tenho que me dar valor, como eu
vou ficar com um homem que não me dá valor. Eu não tinha mais valor na sociedade, minhas
irmãs, minhas amigas, porque todo mundo sabia o que ele fazia. As pessoas me falavam
assim e tu está aceitando? Tu vai querer levar uma vida assim? Mas eu pensava que ele ia
mudar, mas chegou o dia que não deu”.
Isso gerou, além de uma melhor comunicação entre ela e a filha, um sentimento mútuo
de união e força para seguir adiante. Lílian também se mostrou empática para com as
necessidades emocionais da filha.
Microssistema familiar
A amizade e comunicação aberta entre os membros da família, sem vergonha de expor
sua situação e seus sentimentos, este desabafar abre as possibilidades de uma comunicação
sem bloqueios. A escuta dos familiares de forma empática, carinhosa e prestativa geram
confiança e um sentimento de não ser sozinha no mundo (proteção) e também de perceber
como ela e a filha são importantes para a família. É possível se identificar que a empatia é um
modelo relacional entre as mulheres da família, que facilita a organização e a manutenção dos
relacionamentos baseados na confiança, proteção e afeto positivo. “Irmã assim que só no
olhar já sente o que a outra está pensando, se ela me olha já sabe se eu estou bem ou mal e
foi ela que me ajudou bastante, ela é uma pessoa muito importante na minha vida”.
Fatores de Risco
Eu ecológico
Lílian não conversava com a filha durante o casamento porque não via o alcance da
violência para a menina. “Eu te confesso que naquele momento, eu não falava nada para ela,
porque eu só pensava em mim... minha vida era só chorar... e nesse momento eu não
enxergava nada, só eu... só depois eu percebi que ela precisava de ajuda”.
53
Microssistema Familiar
Segundo Grosman e colaboradores (1992), o modelo relacional é cerceador da
autonomia, no qual seus membros se relacionam rigidamente. Há forte adesão aos modelos
dominantes de gênero ou estereótipos, o que gera contradição na prática interacional; de
comunicação de significados que negam a agressão e impõe naturalidade ao fato dentro da
família e dão legitimidade ao agressor, deixando a vítima sem recursos para enfrentar a
situação. O que se percebe na relação de Lílian com a família de origem do ex-marido é que a
comunicação é distorcida e que ela não é ouvida em suas necessidades nem da filha e acaba
guardando suas angústias e se sentindo acuada.
Há pobreza no compartilhamento das emoções e a comunicação não são abertas a
negociações na relação do casal. Lílian relata que sempre tentou conversar com a sogra e com
o ex-marido, questionando “porque ele não pode conversar comigo?”. Lílian se queixa que a
sogra é sua intermediária junto ao ex-marido, “ela é quem fala por mim, e não eu, isso me
incomoda muito”. Observa-se que a família do ex-marido funciona de forma a dificultar as
coisas para ela, mantendo um controle coercitivo e vingativo. Eles não aceitam o fato dela ter
deixado o filho e ainda tê-lo denunciado à polícia, gerando sua prisão, por não pagamento da
pensão. Eles tentaram lhe agredir e impedir de entrar em sua própria casa. Confirmam o
modelo de violência nas relações familiares. Muitos abusadores são rígidos, autoritários
disciplinarmente e por causa de suas intimidações e violência força suas regras (Bancroft &
Silverman, 2002). Neste caso a família de origem do ex-marido de Lílian também apresenta
estas características, como autoritarismo, intimidação e violência para mantê-la sobre controle
e tirar-lhe a autonomia e equilíbrio emocional.
Família 2-Rosângela e seus três filhos
Rosângela (28), Rodolfo (11), Elvis (10) e Elisa (6)
b) Síntese da história
Rosângela saiu de casa para morar com o namorado Hamilton quando tinha 15 anos.
Havia sido criada pela avó paterna, visto que sua mãe falecera quando a menina tinha 12 anos.
O pai de Rosângela, por sua vez, afastou-se totalmente da família e envolveu-se com outra
mulher a qual Rosângela não aprovava. Não havia vínculo afetivo entre ela e a madrasta,
resultando no total afastamento do pai. Já no início do relacionamento de Rosângela com
54
Hamilton, havia indícios de opressão e violência psicológica, como o fato de ter que dar todo
seu salário para o marido e o envolvimento dele com outra garota. Neste momento pede para a
avó paterna que a estava criando, após a morte da mãe, para voltar para casa, mas a avó
recusou aceitá-la de volta. Nesta ocasião, não pediu ajuda para seu pai, porque tinha lhe
desafiado ao decidir viver com o namorado. Além disto, não aceitava o envolvimento
emocional dele com outra mulher. Dessa forma, o pai acabou não enxergando a situação de
vida de sua filha. Portanto, Rosângela não pode contar com o apoio de sua família de origem
quando quis sair do relacionamento amoroso. Como se sentiu excluída e abandonada pelos
familiares acabou também se distanciando deles, permanecendo na relação conjugal.
A violência sempre existiu no casamento, em especial, a psicológica, pois o marido
cantava à noite em bares e freqüentemente ficava dias sem voltar para casa, além de envolver-
se com outras mulheres. A violência física tornou-se mais presente quando Rosângela decidiu
desafiar sua autoridade ao buscar trabalho e não aceitar mais suas regras sobre não ter
amizade com vizinhas. Ele mandava as crianças brincarem na rua quando queria lhe bater e
ela tinha que ficar em casa durante alguns dias até as manchas roxas desaparecerem. No
último episódio de agressão, uma das vizinhas acionou a polícia que ao chegar à residência do
casal flagrou o fato e levou ambos para a Delegacia para a Mulher. O inquérito policial foi
encaminhado como também foi assinado a preventiva na qual o agressor não poderia se
aproximar da vítima num raio de cem metros, sob pena de prisão. O marido ficou preso por
vinte e quatro horas e solto pela fiança.
Neste período pós-prisão do marido, Rosângela ficou com medo de voltar para sua
casa e somente após quatro dias fora retorna. Passados um mês desde sua decisão em não
voltar para o marido, Rosângela pode contar com a ajuda financeira de seu pai e emocional de
alguns familiares como a avó, tias e cunhada. Conseguiu emprego em um banco de
empréstimos e se sentiu mais confiante para enfrentar uma nova vida. Neste período se
iniciam as sessões de psicoterapia.
4.7 Análise das Narrativas - Caso Rosângela
A análise das entrevistas é apresentada a seguir considerando os fatores de risco e de
proteção identificados nas narrativas e categorizados segundo os domínios de Walsh
(1998/2005), respectivamente o Sistema de Crenças, Padrão de Organização e Processos de
55
Comunicação e contextualizada nos sistemas bioecológicos. A análise das entrevistas segue o
método das narrativas do roteiro de Flick (2004).
Sistema de crenças da família
No domínio, Sistema de Crenças da Família estão incluídos os aspectos relativos à
capacidade de atribuir sentido à adversidade, perspectiva positiva, transcendência e
espiritualidade. Estes aspectos foram analisados em relação ao Eu ecológico, Microssistema,
Mesossistema, Exossistema e Macrossistema família. O quadro abaixo contém a síntese das
principais características dos fatores de proteção e de risco identificados nas narrativas.
Tabela 6
Sistema de Crenças da Família
Sistema de
crenças da
família
Fatores de proteção Fatores de risco
Atribuir sentido
à adversidade
Encorajada em vencer os
desafios e sair vitoriosa.
Valor afiliativo - afirma a
importância da vida familiar,
cuidar e proteger seus filhos.
Constrói self e sentido de vida
na relação com os filhos.
Responsabilidade e lealdade na
relação mãe/filhos.
Enfrentamento e confirmação
de enfrentar a violência.
Durante o casamento, o senso de
coerência estava alienado e paralisado.
O marido não apoiava a esposa,
desencorajava trabalho e amizades.
Sem controle sobre os eventos. O
medo lhe limitava emocionalmente.
Perspectiva
Positiva
Perseverança em se manter
financeiramente.
Otimismo, sonhos de futuro se
projetando em ideais
profissionais.
Reconhece o impacto da
violência para os filhos.
O enfrentamento da violência
dependente do apoio externo (avó,
pai), não conseguindo por si mesma
sair da situação.
O pai é negligente com as necessidades
emocionais dos filhos e os usa para
56
Auto-estima melhorada.
Decisão ao enfrentar o marido.
atingir a ex-esposa.
Transcendência
e Espiritualidade
O místico como superação das
adversidades. Crença de que o
sofrimento ensina a fortalecer.
Valorização da instituição
família.
Família de origem do casal: Homens:
modelo relacional de violência,
negligência e falta de compromisso
afetivo. Mulheres: casam com homens
opressores e violentos. Modelo
transgeracional de violência.
Crenças familiares: casamento é
solução de problemas, casal re
nuncia
felicidade pelos filhos, mulheres como
cuidadoras, cedem ao marido.
Fatores de Proteção
Eu Ecológico
O que mais chamou atenção na história de Rosângela foi a questão de como uma
pessoa pode suportar tanta opressão e sofrimento, viver isolada da família de origem, sem
amizades, sem poder se desenvolver profissionalmente e não adoecer física e mentalmente? E,
além disto, como pode encontrar motivação e investimento afetivo para conseguir romper
com anos de uma relação violenta. Segundo Beavers e Hampson (1990/1993), o cuidado
genuíno mostra-se eficaz mesmo nas famílias nas quais as habilidades dos pais são modestas.
Este valor afiliativo foi considerado na pesquisa dos autores como vital para o bom
funcionamento da família. Rosângela não entrou em depressão porque construiu o sentido de
sua vida não na relação conjugal, mas no significado da maternagem. Atribuir significado a
sua vida como alguém capaz de cuidar e amar os filhos foi seu grande protetor diante das
adversidades e sofrimentos, “eles são a minha família, são tudo para mim e eu vivo por eles e
por mim, tanto que eu suportei tudo por eles”. Ainda que sua saída da violência tenha se dado
por intervenção de outros fatores (denúncia da vizinha), observou-se no momento em que
decidiu romper, uma perseverança e coragem em arrumar emprego e se manter
financeiramente para cuidar dos filhos. Não estava cega pela violência, mas se sentia sem
condições de sair da história, porque não recebia apoio de sua família de origem e muito
imatura para buscar outras soluções. Assim, foi suportando o sofrimento em silêncio e
57
passivamente, reforçando a idéia de dedicação e devoção aos filhos renunciando à felicidade
pessoal.
Rosângela construiu na história de maternagem com os filhos um significado de vida
tão forte, capaz de mantê-la viva, otimista e perseverante apesar de todas as dificuldades, a
ponto de arrumar emprego e se manter financeiramente sem depender totalmente de seu pai.
Conseguindo atribuir sentido a sua vida, ela superou as adversidades e se projetou para o
futuro. Não deixou de sonhar e acreditar na vida e nas possibilidades de mudança, estando
envolvida com o compromisso de criar os filhos, havendo uma intencionalidade em suas
ações que transcendeu a si mesma e a projetou para o outro, no caso, os filhos. Segundo
White e Epston (1990), fazemos escolhas de acordo com nossos estados intencionais de
consciência que norteiam nossas intenções e propósitos na vida. A religiosidade se mostrou
outro fator protetor importante, pois através do místico fortaleceu suas crenças pessoais de fé
e transcendência da dor e buscou sentido para os eventos de sua vida. “Eu quero ter a minha
loja com produtos esotéricos”. Eu não consigo me vê sem, eu não me vejo sem, eu tentei já,
tentei ignorar assim, não vou lê, não vou... mas, é como um imã, se eu to passando e tem
aquela loja eu entro pra vê o que tem de diferente”. Rosângela logo cedo aprendeu a lidar
com a dor da perda, com a morte da mãe aos doze anos. Percebeu-se como intuitiva e isso
teve um grande valor para ela na superação da dor, porque conseguiu dar sentido ao
sofrimento associando com misticismo e superstição e ao manter o otimismo quanto à
realização de seus sonhos conseguiu se proteger da desesperança e da tristeza.
Rosângela enfrentou a autoridade do marido inicialmente, quando percebeu que ele
não a amava e sim a humilhava e maltratava. Ao desafiá-lo desencadeou uma violência cada
vez maior, pois o agressor precisava manter o controle sobre a esposa, o que acabou
confirmando para ela que realmente não havia mais nada em seu casamento. “Eu pensei assim
que ele não me amava realmente, e ele não me ama, ele quer me maltratar mesmo”. O
segundo momento de enfrentamento ao ex-marido se deu na audiência, quando ela o encarou
sem medo e com isso se fortaleceu, porque se viu tendo controle e autonomia sobre ele, o que
ela não tinha anteriormente, assim confirmou sua decisão em não voltar atrás, pois além do
amor dos filhos outro fator que a levou a acabar com a violência em sua vida foi o desejo de
ser feliz, “eu quero ser feliz de novo, eu queria que as crianças entrassem em casa sem medo,
sem pensar que o pai vai chegar, poder ligar o rádio e ouvir música, jogar vídeo game, olhar
o que eles querem sem ter que está cuidando, todo mundo tenso”. Ela se viu mais forte (auto-
58
estima) e surpreendendo muitas pessoas, especialmente o ex-marido, pois ele não acreditava
que ela pudesse conseguir um emprego e sustentar os filhos. “Eu sou capaz, eu não sou o que
ele dizia que eu não era capaz de conseguir um emprego que eu queria”. “Eu escrevi na
minha agenda que ele queimou que dizia que o que não nos mata nos torna mais forte, eu
acredito muito nisso e eu fiquei muito forte, tanto que ele não acreditava que eu tinha
registrado e que iria depor contra ele e eu fui forte pra fazer, eu acredito assim, porque eu
mesmo com medo eu fui lá e registrei”. Portanto, além da crença de que o sofrimento ajuda a
fortalecer a auto-estima é um fator disposicional importante na resiliência, porque a pessoa
percebe seu sucesso como resposta ao seu esforço e competência (Brooks, 1994).
Microssistema Familiar
Boszormenyi-Nagy (1987) enfatizou a dimensão ética dos relacionamentos familiares
em legados multigeracionais de responsabilidade dos pais e lealdade dos filhos, que guiam
seus membros no decorrer do ciclo de vida. Quando os filhos de Rosângela tentavam protege-
la do ataque do pai demonstraram uma grande lealdade para com ela e isto lhe confirmou
como importante para eles e merecedora de seu amor, mantendo sua auto-estima e sua
esperança na superação das dificuldades. “A mãe não queria ver vocês chorando, a Elisa via
o pai me bater, começava a chorar e querer secar as minhas lágrimas e ficar cuidando de
mim, o Rodolfo ficava na dele e o Elvis me defendia a mãe não queria que vocês vissem isso”.
O afeto também desempenhou um papel importante na história pessoal de Rosângela,
pois foi um modelo interacional de sua família de origem (história de afeto com a mãe) que
ela repetiu em sua relação afetiva com os filhos e que se mostrou um grande protetor diante da
violência. Portanto, ela construiu sua história com os filhos tendo em sua base valores como o
afeto e a proteção, “sim, eu passo a eles, eu quero que eles sintam isso, eu quero que eles
vivam isso entendeu? Eu não quero que eles me vejam como uma estranha, como o Hamilton
(pai) via a própria mãe, como uma mãe que nunca disse eu te amo, nunca abraçou”. O ex-
marido continuou tentando manter controle sobre ela e usando as crianças para atingi-la, no
entanto, Rosângela teve crítica quanto às atitudes dele e percebeu o alcance deste tipo de
violência para os filhos, “Em vez de aproveitar o domingo com eles e fazer se sentirem bem,
não, daí eles ficam mal também”.
Macrossistema
A valorização da instituição família no sistema familiar de origem de Rosângela estava
relacionada à proteção e afeto entre seus membros, embora em alguns momentos tenha
59
faltado a proteção e apoio necessários para que ela não ficasse casada. Estes fatores protetores
voltaram a aparecer em sua relação familiar e garantiram sua permanência fora da história de
violência. “Tchau, te amo e te cuida, isso tem muito assim na minha família, demonstração
de carinho de afeto, entende”? “A violência não faz parte da minha família”.
Fatores de Risco
Eu Ecológico
A história pessoal de Rosângela indicou que o relacionamento conjugal foi motivado
por uma tentativa de sair de uma situação problemática, tanto a nível financeiro como
emocional e familiar. Rosângela iniciou um relacionamento com uma posição de dependência
e imaturidade que foi se refletindo ao longo dos anos durante os quais se manteve casada. Esta
dependência emocional e a violência somente foram encaradas e enfrentadas, após a denúncia
da vizinha. No relacionamento estabelecido, o marido não valorizou a esposa, ao contrário,
manteve sua auto-estima sempre baixa com comentários sobre outras mulheres, garantindo o
controle emocional sobre ela. O marido não funcionou como apoio e proteção da esposa e
desencorajou o emprego e suas amizades. Durante o casamento, o senso de coerência de
Rosângela estava alienado e paralisado, e ela não tinha controle sobre os eventos estressantes
como a violência vivenciada no casamento. O medo lhe limitava emocionalmente para cuidar
de si mesma, “me limita, me limitava a não comer, a cuidar dos filhos, tomar um banho e se
eu usasse maquiagem era para os outros, eu não podia me maquiar, não podia conversar
com a vizinha, então eu me limitava a comer uma vez por dia e não podia botar música, não
podia rir muito porque senão tinha acontecido alguma coisa ou com alguém, tudo tinha
limites”. Rosângela descreveu sua vida com o ex-marido como uma prisão, na qual ela não
queria ver a verdade, contornando sempre a situação para não ter de tomar uma atitude, “vou
dizer assim, uma prisão, camuflada, tem certo conforto, mas é uma cela, eu vou tentando
contornar, tapando com a peneira, daí quando tu tentas abrir a cela ele começa a tirar as
coisas”.
Microssistema Familiar
A decisão de romper com um modelo relacional cerceador da autonomia, opressor e
dominador da figura feminina causou estranheza e revolta nos familiares de ambas famílias,
confirmando a força do modelo relacional e a dificuldade de sair dele. “Ela disse: ah
coitadinho - daí eu olhei pra ela e disse como assim coitadinho, tia? Ela disse a gente fica
60
meio assim, 14 anos ele como um sobrinho, bom ele gostava de todas, atencioso”. “O que dói
eles não vêem, não sentem que dói, é essa a coisa”. O pai foi negligente com as necessidades
emocionais dos filhos, usando-os para atingir a ex-esposa, “falou pras crianças que eu sou
ruim, que ela inventa as leizinhas dela pra depois mandar prender o pai”. Portanto, ele
continuou expondo os filhos à violência e demonstrando falta de discriminação de seus atos
ao negar a autoria da violência. Segundo Ravazolla (1999, p. 89) uma das razões pela qual o
abuso se repete e perpetua é que o agressor “não vê que não vê”, ou seja, possui um
pensamento que é percebido como coerente e que, portanto, impede de ver as conseqüências
de seus atos. É um fenômeno de negação, porém de uma peculiaridade que inclui a “negação
da própria anestesia”.
Na família de origem do marido, o modelo relacional se caracterizou pela violência à
mulher e na família de origem de Rosângela, as mulheres casavam com homens opressores e
violentos. “Todas as minhas tias são assim, eu tenho uma tia que ela é casada e o marido fez
e aconteceu , vou dizer com essas palavras, que até eu me apavorei, pensei nossa, como a tia
ta com ele, será que eu vou ser assim também?” “A tia é daquelas que casou é pra sempre, o
homem pode ta torto pro lado, ela fica com ele, daí quem vê de fora se apavora”. Fechando-
se um círculo de violência que foi perpetuado nas gerações, confirmando um modelo
transgeracional. “O pai dele bateu na mãe dele, e aprontava muito, a traía direto e era
casado e tava ficando noivo de outra guria, teve que sair lá de Carazinho corrido... é o que
eu sei assim, que ele tinha um ar de machão”. A valorização da instituição família foi
representada pela figura da avó paterna, que vê no casamento a solução para os problemas, em
especial, quando estes são financeiros e pesam para a sobrevivência da família e também
acredita que o casal deve renunciar à felicidade pessoal pelos filhos. “A minha avó disse que
eu tinha que ficar com ele porque as despesas iam ficar grandes e eu ia ter que suportar,
chegou ao ponto dela ir lá pra falar com ele porque tava me batendo com fio nas costas, que
ela ficou sabendo e que ele não me tirou de casa pra me bater e me maltratar não sei o que,
que ele me pegou lá sem filho e se fosse pra me levar de volta era sem filho, eu me senti muito
triste, não gostei disso”. As mulheres são cuidadoras da família, por isso renunciam à
felicidade pessoal em prol da instituição família. Esta crença confirmou Rosângela, como
mais uma das mulheres que sofrem calada e mantém este modelo de ser mulher, parada,
calma, como a própria mãe, a mulher que cuida do marido e cede. “Se ele dissesse, vamos a
tal lugar, eu concordava e ia, ele nem perguntava a minha opinião, a gente ia, e pra mim tava
61
bom, daí a gente foi morar junto e continuou assim, só que daí ficou assim como um pai, eu
tinha que trabalhar e dar o dinheiro pra ele”. “Eu tava vendo isso normal, como se fosse pra
ser assim, e assim tinha que ser e a minha avó, ela era um pouco antiga, que a mulher tinha
quer servir o marido e perguntava se eu tava cuidando do meu marido”. Durante a terapia,
Rosângela se deu conta do lugar destas mulheres dentro de um casamento repleto de
violências psicológicas e cerceador da autonomia, conseguiu nomeá-lo e de certa forma,
confirmou para si mesma que não quer mais viver neste modelo. Segundo Azevedo e Guerra
(2005), a origem da violência intrafamiliar é compreendida a partir de um modelo interativo
em que há uma multicausalidade que decorre de fatores macro (sistema sócio-econômico-
político) e micro (história de vida dos pais x estrutura e funcionamento familiar). Portanto, é
possível se identificar na história de vida de Rosângela, que a falta de apoio/suporte de sua
família de origem se configuraram nos fatores de estrutura e funcionamento familiar que
promoveram sua permanência na história de violência.
Padrão de Organização
No domínio, Padrão de Organização da Família estão incluídos aspectos relativos à
capacidade de flexibilidade, conexão e recursos sociais e econômicos. Estes aspectos foram
analisados em relação ao Eu ecológico, Microssistema, Mesossistema, Exossistema e
Macrossistema familiar, considerando os fatores de proteção e de risco. O quadro abaixo
contém a síntese das principais características dos fatores de proteção e de risco identificados
nas narrativas.
Tabela7
Padrão de Organização
Padrão de Organização Fatores de Proteção Fatores de Risco
Flexibilidade
Rosângela permite entrada
de outras pessoas em sua
vida, como vizinhos,
familiares, terapeuta e
judiciário.
As regras do casamento são
rígidas, coercitivas e
punitivas, impedem a
autonomia e
interdependência entre os
cônjuges.
Conexão Acolhe os sentimentos dos
filhos, reconhece seus
O marido mantém o poder
e o controle sobre a mulher
62
méritos, os protege e
orienta em um sentido
positivo.
Mãe e filhos se apóiam.
Colaboração no
enfrentamento das crises.
Rosângela consegue se
reorganizar para trabalhar e
cuidar dos filhos.
e os filhos, sua autoridade é
lei.
Não há diferenciação no
sistema
conjugal/fusionamento dos
cônjuges.
Recursos Sociais e
Econômicos
A denúncia da vizinha
A confiança na polícia e no
judiciário, na terapia e nos
novos amigos.
Compartilhar com os
familiares a violência
vivida e receber apoio
emocional e financeiro do
pai, avó e tios.
A falta de apoio da avó. O
isolamento social, a falta
de profissão e a
dependência.
O pai de Rosângela não
cuidou da filha, gerando
sentimentos de abandono
que a distanciaram da
família de origem.
Fatores de Proteção
Eu Ecológico
Rosângela acolheu os sentimentos dos filhos, reconheceu seus méritos, os protegeu e
orientou em um sentido positivo, e tem conseguido se reorganizar para trabalhar. “Eu digo
pra eles, a mãe precisa de vocês, tem que se comportar na tia que a mãe ta pagando pra
cuidar de vocês, a mãe não pode deixar vocês sozinhos em casa, a gente precisa se ajudar, eu
disse pra eles, a mãe precisa trabalhar”.
Microssistema Familiar
Mãe e filhos se apoiaram e houve colaboração no enfrentamento de situações adversas
bem como no compromisso de se manterem sem a presença do pai. Rosângela conseguiu se
reorganizar para trabalhar e cuidar dos filhos e as crianças aceitaram com tranqüilidade a nova
forma familiar, adaptando-se rapidamente para surpresa dos familiares. “Até o irmão dele
falou, como pode as crianças vão à casa da mãe e parece que não aconteceu nada, ta tudo
63
normal”. Outro fator que favoreceu a saída da história de violência foi o apoio do pai que a
encorajou e lhe mostrou caminhos, “meu pai disse que eu tinha que fazer alguma coisa por
mim, se eu amo meus filhos eu teria que fazer alguma coisa, ele dizia faz por ti que vai
refletir neles, arruma um emprego bom, trabalha, cuida dos teus filhos e cuida de ti, começa
a ouvir música, assistir o que tu gosta e ir cuidando de ti”. Percebeu-se muito encorajada em
vencer os desafios e sair vitoriosa, compartilhando com os familiares sobre a violência vivida
e recebendo apoio emocional e financeiro do pai, avó e tios, pois houve o reconhecimento do
lugar da violência na história conjugal. “Sabe, eu abdiquei da minha juventude pra ele, amei
ele, criei os filhos, daí eu fui traída, eu apanhei, depois que fica velha ta tudo bem, ta tudo
ótimo, eu não consegui ver isso, eu não absorvi, não é pra mim, eu pensei, vou aproveitar
essa mãozinha que o pai ta me dando e vou trabalhar e vou criar eles e vou enfrente,
entendeu”?
Mesossistema e Exossistema Familiar
Rosângela permitiu a entrada de outras pessoas em sua vida, como vizinhos, terapeuta
e judiciário e confiou nesta ajuda. A denúncia da vizinha chamando a polícia foi fundamental
para fornecer à Rosângela uma alternativa para sair da história de violência. A confiança na
polícia e no judiciário que agiram rapidamente lhe garantindo segurança mínima necessária
para se fortalecer e se manter fora da história de violência. Houve confiança na terapia,
porque a terapeuta reconheceu uma habilidade importante em Rosângela: a de
empreendedora, alguém que visualiza uma oportunidade de trabalho e pensa em como
desenvolvê-la. “Coisa que eu olhei nas outras e não tinha daí eu pensei assim, eu tenho que
ter isso na minha loja”. “Eu anotei em casa o que poderia fazer e o que eu gosto é de
trabalhos manuais, eu sou ótima nisso, se tiver que bordar alguma coisa eu pego bem
rapidinho, depois eu vi que eu poderia fazer aquilo também”. A terapeuta reconheceu a
determinação de Rosângela em conseguir emprego e em lutar por aquilo em que acreditava,
além de mostrar-se coerente em relação ao dinheiro, pois colocou a prioridade para os filhos,
ou seja, sustentá-los. Porém foi muito importante para que ela se mantivesse firme em seus
propósitos, o apoio da rede familiar e social. Quando os terapeutas encorajam as pessoas a
mudar suas crenças repressoras e buscar novas histórias alternativas de vida, precisam
também acionar redes de apoio para que os sonhos possam ser realizados. Segundo Walsh
(2005, p. 75) “para um compromisso sustentado, um sistema de crenças capacitador deve ser
validado pela experiência e reforçado por estruturas sociais maiores”.
64
Fatores de Risco
Microssistema Familiar
O isolamento em que Rosângela vivia propiciava a manutenção da violência e a falta
de autonomia e flexibilidade na relação homem e mulher. Os limites no casamento eram
rígidos, coercitivos e punitivos. O marido não a deixava trabalhar e decidia sobre suas
amizades, proibindo a aproximação de alguém que não fosse da família, inibindo qualquer
possibilidade de Rosângela se socializar. Dessa forma, mantendo o controle total sobre ela e
diminuindo os riscos de perder este controle. Embora os limites precisem ser claros, o sistema
familiar necessita de flexibilidade em relação à autonomia e a interdependência de seus
membros para manter a integridade e a continuidade do crescimento psicossocial e poder se
reestruturar diante das crises (Walsh, 2005). Para uma igualdade na parceria do casal é
necessário haver reciprocidade, equilíbrio, confiança mútua e lealdade, de forma que cada
parceiro arque com uma parcela de responsabilidade e desfrute de iguais privilégios com o
passar do tempo (Whitaker & Keith, 1981). No entanto, no caso de Rosângela não se
evidenciou flexibilidade, autonomia, nem confiança e lealdade na relação conjugal, pois o ex-
marido via a família como sua propriedade e impedia a aproximação de pessoas de fora com
receio de que seu poder fosse afetado, portanto não houve diferenciação neste sistema
conjugal e as diferenças não foram respeitadas.
Ao desafiar sua autoridade, Rosângela enfrentou a vingança e o desejo de retaliação de
parte do ex-marido, como ameaças de morte e de perda da guarda dos filhos. O agressor
tentou considerá-la inapta e louca para cuidar e criar os filhos, o que Bancroft e Silverman
(2002) descrevem como uma forma de retomar o controle e a autoridade sobre a vítima. “Eu
vou tirar eles de ti, faz o que eu digo senão eu vou te internar como louca, tu não vai tê-los”.
A maior vulnerabilidade de Rosângela foi a falta de apoio de seu pai e da avó, quando
Rosângela pediu para voltar para casa. Houve descaso do pai que não cuidou da filha e a
deixou a própria sorte, gerando sentimentos de abandono e falta de amor que a distanciaram
da família de origem. “Me senti arrasada, não diria sem apoio, eu me senti excluída, e eu
fiquei sem alternativas e não tinha amiga e não tive cabeça pra pensar em algum outro
parente, eu não pensei nisso”. Segundo Rutter (1987) um dos mecanismos de proteção que
atuam na redução do impacto do risco sobre o indivíduo são os fatores familiares, como
coesão, estabilidade, respeito mútuo, apoio/suporte. Portanto, na falta deste fator de proteção
Rosângela ficou mais vulnerável emocionalmente frente à violência no seu casamento.
65
Mesossistema e Exossistema
Outro fator de proteção que estava pouco acessível a ela era o fator social, pois o
isolamento social, a falta de profissão/emprego e a dependência financeira do marido a
deixaram em uma situação passiva que gerou alienação.
Processos de comunicação
No domínio, Processos de Comunicação da família, os aspectos relativos à capacidade
de clareza, expressão emocional aberta e resolução colaborativa dos problemas foram
analisados em relação ao Eu ecológico, Microssistema, Mesossistema, Exossistema e
Macrossistema familiar, considerando os fatores de proteção e de risco. O quadro abaixo
contém a síntese das principais características dos fatores de proteção e de risco identificados
nas narrativas.
Tabela 8
Processos de comunicação.
Processos de
comunicação
Fatores de proteção Fatores de risco
Clareza A comunicação na relação da mãe e filhos é
aberta e clara, permite acolhimento e respeito.
Não desfaz a imagem do pai para os filhos.
A comunicação no casal
é distorcida e marcada
por mentiras e omissões.
Expressão
emocional
aberta
Mãe compartilha dos sentimentos com os
filhos, tenta confortá-los, protegê-los.
Rosângela compartilha com seu pai sobre os
problemas no seu casamento. Verbaliza seu
desejo de trabalhar e desafia o marido ao não
aceitar suas regras, demonstra sua coragem.
Não há tolerância
amorosa, o marido não
respeita a esposa a
expondo às situações
violentas e embaraçosas.
Resolução
colaborativa
dos problemas
Resolução do conflito da separação.
Reorganização emocional.
Pouco envolvimento e
compromisso do marido
com a família.
66
Fatores de Proteção
Eu Ecológico
Mãe compartilhou dos sentimentos com os filhos, tentou confortá-los, protegê-los com
acolhimento e respeito. “Porque estavam brigando muito ela chorava muito e eles também e
ela não queria que eles chorassem mais”. Houve apoio mútuo e tolerância quanto às
diferenças e dificuldades. “A Elisa secava as lágrimas da mãe e o Elvis a defendia do pai e o
Rodolfo ficava na dele”. A mãe foi empática com os filhos e a comunicação era aberta e clara,
eu queria que as crianças entrassem em casa sem medo, sem pensar que o pai vai chegar e
poder ligar o rádio e ouvir música, jogar vídeo game e olhar o que eles querem sem ter que
está cuidando, todo mundo tenso”. Ela não desfez a imagem do pai para os filhos, tão pouco
os usou para agredi-lo. “Ele batia em mim, mas eles sabem que o pai e a mãe se separaram,
eu expliquei dessa forma assim pra não ficar ruim pra eles, porque eles o amam, porque ele é
pai e eles não podem vê-lo como um monstro, ele nunca fez nada pra eles”. O fato de
Rosângela logo conseguir um emprego foi muito importante para que ela se sentisse capaz de
cuidar dos filhos e dela própria sem depender totalmente do pai, se observou um grande
potencial de auto-ajuda e decisão nos objetivos, ou seja, ela estava decidida a resolver os
problemas de sua vida e sair do conflito. Quando ela verbalizou seu desejo de trabalhar e
desafiou o marido ao não aceitar suas regras, demonstrou sua coragem. “Tanto que naquele
dia que ele rasgou os currículos e disse: tu não vais, eu pensei, eu vou sim e fui, quando
voltei ele me deu soco e me bateu, eu disse agora chega eu vou trabalhar”.
Microssistema familiar
Rosângela e os filhos conseguiram resolver o conflito da separação, a mãe tem
conseguido transmitir segurança para os filhos que unidos se reorganizaram emocionalmente.
Elvis (10) disse que os pais não são mais um casal e acredita que um relacionamento legal não
deve ter violência e conta que tentava proteger a mãe, mas que ficava com medo do pai. As
crianças acreditavam que podiam viver felizes mesmo com os pais separados. Rosângela
assinalou que um dos fatores que favoreceu o bem-estar dos filhos e a reorganização deles
como uma família, após a separação, foi o fato de ela estar com eles, “Eu acredito que é
porque eu to sempre com eles, eu só trabalho e to com eles”. Portanto, pode-se dizer que a
confiança na relação mãe e filhos foi um grande protetor.
Atualmente, Rosângela tem compartilhado com seu pai as dificuldades e resgatou a
amizade com sua avó, dessa forma a comunicação está mais aberta e clara. “Meu pai disse
67
que eu tinha que fazer alguma coisa por mim, se eu amo meus filhos eu teria que fazer
alguma coisa, ele dizia faz por ti que vai refletir neles, arruma um emprego bom, trabalha,
cuida dos teus filhos e cuida de ti, começa a ouvir música, assistir o que tu gosta e ir
cuidando de ti”. Há uma reorganização emocional da família de origem para ajudá-la na
superação da crise. A família ressurge quando ela precisa com isso resgata o que faltou no
passado. Segundo Beavers e Hampson (1993, p. 115), “quando os problemas são identificados
é fundamental envolver os membros da família em uma discussão criativa em que as
contribuições de todos sejam respeitadas como valiosas”.
Fatores de Risco
Microssistema familiar
A comunicação no casal era distorcida e marcada por mentiras e omissões por parte do
marido, que passava dias fora de casa em noitadas de boemia e vários envolvimentos
extraconjugais, desrespeitando a esposa e tampouco os filhos, demonstrando com isso pouco
envolvimento afetivo e emocional com a família. “Porque sempre depois que ele me batia,
ele fazia o que fazia, ele ficava dentro de casa uns quantos dias, ele não saia. Por ser
vendedor autônomo ele sai à hora que ele quer. Daí saía o roxo eu ficava melhor... e não
dava pra fazer o exame de corpo delito”. Para Walsh (2005, p. 105), “quando a comunicação
é vaga, distorcida ou não resolvida, gera confusão e mal entendidos”. Não havia tolerância
amorosa, o marido não respeita a esposa, expondo-a a situações violentas e embaraçosas, a
comparando a outras mulheres e a considerando inferior, sem direito de reclamar de nada.
Todo o dinheiro tinha que dar a ele, dessa forma, sua autonomia era mínima e sob controle
dele, que era inseguro e desconfiado. “Ele chegou e disse que tinha saído com uma mulher
que era maravilhosa e tal”. Segundo Grosman, Mestermann e Adamo (1992) na violência
conjugal a comunicação nos casais é distorcida e o sistema responde a uma demanda
emocional de ação e reação. O maltrato surge da distorção deste sistema e se alimenta de
atitudes tais como: desprezo, agressão verbal e de submissão.
4.8 Síntese interpretativa das famílias
4.8.1 A partir das interpretações derivadas da análise das narrativas foram identificados
os mecanismos de proteção e os fatores de risco e vulnerabilidade no caso de Lílian e
68
Beatriz. Pode-se observar que as relações familiares da família de origem de Lílian servem
como modelo interacional de crenças e valores acerca do funcionamento familiar e também de
apoio efetivo no momento atual de crise. Estes fatores servem como referências para o
enfrentamento da violência e funcionam como proteção em relação aos riscos que Lílian
enfrenta.
Na narrativa de Lílian e Beatriz acerca da história de violência, ambas foram
aprendendo a compartilhar juntos a dor e o sofrimento, sendo que esta experiência ensinou-as
a atribuir sentido à vida de forma a fazer novas escolhas, além de promover a
responsabilidade e a lealdade entre ambas. Whitaker e Keith (1981) consideram que a
responsabilidade e o compromisso mútuo estimulam as relações familiares em direção de um
senso de inteireza que permite resistir ao estresse e a desorganização.
Lílian consegue atribuir sentido à adversidade associando-a com aprendizado, porque
apesar das experiências adversas causarem sofrimento elas ensinaram-na a olhar para a dor e
para seus valores, os quais passou a valorizar porque voltou a vê-los na sua vida. Este
aumento da percepção se dá através da interferência da família de origem de Lílian que aponta
a sua vulnerabilidade diante das histórias de violência às quais ela e a filha estavam
vivenciando. Portanto, através da amizade dos irmãos, em especial da irmã mais velha, Lílian
acaba melhorando seu senso de coerência e seu propósito de vida. Segundo Walsh (2005), as
crises podem acionar mudanças que embora dolorosas ofereçam oportunidades de
crescimento e transformação, pois possibilitam reavaliações sobre o mundo e o lugar da
pessoa neste contexto social.
Outro fator importante foi Lílian reconhecer a importância do lugar da violência como
prejudicial à filha. Esta percepção estava relacionada à crença de sua família de origem de que
“os pais são espelho para os filhos”. E assim desenvolveu uma crítica sobre a forma como a
violência acabou prejudicando-as, demonstrando um resgate de seu senso de coerência, antes
alienado pela violência. Para Walsh (2005, p. 53), “o senso de coerência está relacionado com
o que é significativo, incluindo os sentimentos existenciais de integração social e propósito na
vida, em oposição a um senso de alienação, desvio ou paralisação”. A religiosidade também
se mostrou um fator importante para a saída do sofrimento e da depressão. Através da
espiritualidade buscou consolo e conforto para aceitar eventos que não podiam ser
modificados, mas encarados de outra forma.
69
A presença da família de origem na vida de Lílian e Beatriz, através do apoio dos
irmãos e do pai foi um fator muito relevante para a saída da história de violência, promovendo
estabilidade emocional tanto para Lílian quanto para Beatriz. Este apoio da família de origem
de Lílian é marcado por sentimentos de afeto e carinho muito intensos entre seus membros,
sendo a empatia na relação das irmãs um fator extremamente valioso. É possível se identificar
na história familiar, que o afeto é um sentimento transgeracional nesta família e que permite
transcender a dor. Outro fato diz respeito à mãe de Lílian a qual ela tem em grande
consideração e a descreve como alguém que sacrificou sua felicidade amorosa pela família,
porque seria seu bem maior. Segundo Walsh (2005, p.69) “o cuidado e a preocupação com os
outros tanto nos sustenta quanto dá significado às nossas vidas”.
Observa-se que no modelo relacional da família de origem de Lílian há fatores
protetores, tais como o apoio/suporte, o compartilhamento dos problemas, bem como carinho
e afeto que promovem sua auto-estima e sentimentos de se proteger contra ofensivas.
Especialmente, quando percebe o sofrimento da própria filha, resultado da exposição à
violência que foi vivenciada, marcando de forma muito profunda o sentido de vida de Lílian.
As crenças, a cultura e os valores da família de origem de Lílian aparecem nitidamente
em seu relato da história, sendo possível se afirmar que a família não aceitava a forma como
ela estava vivendo. Uma crença de grande relevância está relacionada à forma como os pais
sacrificam seus desejos para com isso manterem a família unida (valorização da instituição
familiar). Esta crença tem em sua base um fator interacional muito importante e impactante
para seus membros que é o afeto e proteção.
Outros aspectos também promoveram resiliência na história de vida de Lílian e
Beatriz, como o apoio da escola e da igreja, que desempenharam um papel reforçador da
necessidade de buscar outros propósitos e sentido para a vida. A escola apontando o
sofrimento da Beatriz bem como seu potencial e capacidade. A igreja possibilitando sua re-
conexão com a fé. A terapia também se mostrou promotora de reflexão e reconhecimento de
suas habilidades, capacidades e valores, bem como seus direitos como cidadã. Portanto, a
terapia possibilitou a ela e a filha uma melhor organização emocional e um posicionamento
mais adequado diante das adversidades enfrentadas, bem como um encorajamento e um
otimismo na superação destes.
A Delegacia para a Mulher foi um grande promotor de suporte judicial e emocional,
pois propiciou a denúncia da violência e garantias quanto a sua segurança e acesso aos
70
direitos como cidadã. A delegacia favoreceu a comunicação dos eventos violentos bem como
favoreceu o controle sobre eles, tornou público e expôs a violência e o agressor sem receio de
fazê-lo. A instituição lhe possibilitou se apropriar de uma autoridade que acabou promovendo
liberdade interior e fortalecimento emocional.
Em relação aos fatores de risco observa-se que a violência é um modelo interacional da
família de origem do marido, que se mantém através de crenças que dizem respeito ao lugar
da mulher na relação, passiva, inferior ao homem, o qual é detentor do controle e autoridade
sobre a esposa e filhos. Também se observa que o processo de transmissão multigeracional se
perpetua através das relações conjugais, passando dos pais para os filhos.
Na história de Lílian também havia violência, relacionada aos segredos familiares, que
aparecem na família de origem promovendo a violência psicológica. O pai de Lílian já tinha
uma família antes de casar com sua mãe e a descoberta deste segredo acarretou um grande
conflito conjugal e familiar, levando à separação do casal. A partir deste evento da separação,
a mãe engravida de outro homem, o qual seria o pai biológico de Lílian. Este fato fica em
segredo até a morte da mãe. Assunto nunca conversado em família, Lílian nunca soube se o
pai sabia da verdade. Segundo Imber-Black (2002, p. 21), “os segredos são fenômenos
sistêmicos, e estão ligados ao relacionamento, moldam as díades, formam triângulos, aliança
encoberta e calibram a intimidade e o distanciamento nos relacionamentos”. Portanto, Lílian
na escolha do cônjuge acaba repetindo uma história de violência psicológica, muito diferente
das escolhas de suas irmãs, o que denota o quanto a violência psicológica do segredo em sua
vida foi marcante e destrutiva. A partir deste entendimento se compreende o fato dela se
mostrar submissa e passiva diante da violência a qual era submetida, a ponto de não ver as
conseqüências para a filha. Dessa forma, não se torna protagonista de sua história de vida e se
deixa conduzir pelo marido e pelos sogros. Desde o início se percebe que a dependência
emocional dela em relação ao marido acaba favorecendo as dificuldades no processo de
separação/individuação do casal e facilitando uma história de fusionamento.
As características do padrão de funcionamento da família do ex-marido também
favoreceram a aparição das relações violentas, tais como a falta de respeito pelas diferenças e
as regras se mostrando rígidas, punitivas e coercitivas. Há promiscuidade nas relações
extraconjugais e desvalorização da mulher como pessoa e esposa. Em relação ao fator de
apoio social, Lílian se recente da ação do judiciário, que se mostrou lento e não resolutivo
71
para resolver seus problemas da separação e divisão de bens, dificultando sua saída em
definitivo da história de violência.
4.8.2 A partir das interpretações derivadas da análise das narrativas foram identificados
os mecanismos de proteção e os fatores de risco no caso de Rosângela e seus filhos.
Observa-se que as características disposicionais de Rosângela e o apoio social foram os
fatores de proteção fundamentais para a saída da história de violência. O que mais chamou
atenção na história de Rosângela é como uma pessoa pode suportar tanta opressão e
sofrimento, viver isolada da família de origem, sem amizades, sem poder se desenvolver
profissionalmente e não adoecer física e mentalmente?
Segundo Beavers e Hampson (1990/1993) o cuidado genuíno mostra-se eficaz mesmo
nas famílias nas quais as habilidades dos pais são modestas. Este valor afiliativo foi
considerado na pesquisa dos autores como vital para o bom funcionamento da família.
Rosângela não entrou em depressão porque construiu o sentido de sua vida não na relação
conjugal, mas no significado da maternagem. Atribuir significado a sua vida como alguém
capaz de cuidar e amar os filhos é seu grande protetor diante das adversidades e sofrimentos.
Percebe-se que ela não estava cega pela violência, mas se sentia sem condições de sair
da história porque não recebia apoio de sua família de origem e muito imatura para buscar
outras soluções foi suportando o sofrimento em silêncio, assim acaba reforçando a idéia de
dedicação e devoção aos filhos renunciando à felicidade pessoal. Rosângela constrói na
história de maternagem com os filhos um significado de vida tão forte capaz de mantê-la viva,
otimista e perseverante apesar de todas as dificuldades, a ponto de arrumar emprego e se
manter financeiramente sem depender totalmente de seu pai. Conseguindo atribuir sentido a
sua vida supera as adversidades e se projeta para o futuro, porque não deixa de sonhar e
acreditar na vida e nas possibilidades de mudança. Está envolvida com o compromisso de
criar os filhos, há uma intencionalidade em suas ações que transcende a si mesma e a projeta
para o outro, no caso, os filhos. Segundo White e Epston (1990), fazemos escolhas de acordo
com nossos estados intencionais de consciência que norteiam nossas intenções e propósitos na
vida.
A espiritualidade se mostrou outro fator protetor importante, pois através do místico
fortaleceu suas crenças pessoais de fé e transcendência da dor buscando sentindo para os
eventos de sua vida. Logo cedo aprendeu a lidar com a dor da perda com a morte da mãe aos
72
doze anos. Deu sentido ao sofrimento associando-o com misticismo e superstição e ao manter
otimismo quanto à realização de seus sonhos conseguiu proteger-se da desesperança e da
tristeza.
Rosângela enfrentou a autoridade do marido inicialmente quando percebeu que ele não
a amava e sim a humilhava e maltratava. Ao desafiá-lo desencadeou uma violência cada vez
maior, pois o agressor precisava manter o controle sobre a esposa, o que acabou confirmando
para ela que realmente não havia mais nada em seu casamento. O segundo momento de
enfrentamento ao ex-marido se deu na audiência, quando ela o encarou sem medo e com isso
se fortaleceu. Percebeu-se tendo controle e autonomia sobre ele, o que não tinha
anteriormente. Assim, confirmou sua decisão em não voltar atrás. Com esta atitude
surpreendeu muitas pessoas, especialmente o ex-marido, pois ele não acreditava que ela
pudesse conseguir um emprego e sustentar os filhos. Portanto, a auto-estima é um fator
disposicional importante na resiliência, pois a pessoa percebe seu sucesso como resposta ao
seu esforço e competência (Brooks, 1994).
Boszormenyi-Nagy (1987) enfatizou a dimensão ética dos relacionamentos familiares
em legados multigeracionais de responsabilidade dos pais e lealdade dos filhos, que guiam
seus membros no decorrer do ciclo de vida. Quando os filhos de Rosângela tentavam protegê-
la do ataque do pai demonstravam uma grande lealdade para com ela e isto lhe confirmava
como importante para eles e merecedora de seu amor. O afeto também desempenhou um
papel importante na história pessoal de Rosângela, pois é um modelo interacional de sua
família de origem (pai e mãe) que ela repetiu em sua relação afetiva com os filhos. Destaca-se
que a dimensão temporal foi um elemento importante no nível das relações interpessoais no
microssistema familiar, visto que houve uma mudança qualitativa no vínculo entre pai e filha.
Isto é, inicialmente o pai não se colocou como uma figura presente e protetora da filha.
Entretanto, quando esta já adulta pede auxilio ele resgata a relação afetiva com a filha.
A valorização da instituição família no sistema familiar de origem de Rosângela
estava relacionada à proteção e afeto entre seus membros. Embora em alguns momentos tenha
faltado a proteção e apoio necessários para que ela não ficasse casada, estes fatores protetores
voltaram a aparecer em sua relação familiar e garantiram sua permanência fora da história de
violência.
Os fatores sociais também promoveram seu fortalecimento e superação da crise, pois
ao permitir a entrada de outras pessoas em sua vida, como vizinhos, terapeuta, polícia e
73
judiciário ela confiou nesta ajuda. A denúncia da vizinha chamando a polícia foi fundamental
para fornecer à Rosângela proteção necessária para sair da história de violência. Igualmente
importante foi a confiança na polícia e no judiciário que agiram rapidamente, garantindo-lhe
segurança mínima necessária para se fortalecer e se manter fora da história de violência.
A confiança na terapia, que reconheceu suas habilidades e determinação em conseguir
emprego e em lutar por aquilo em que acreditava também a encorajou a buscar apoio de sua
família de origem e de sua rede social. Quando os terapeutas encorajam as pessoas a mudar
suas crenças repressoras e buscar novas histórias alternativas de vida, precisam também
acionar redes de apoio para que os sonhos possam ser realizados. Segundo Walsh (2005, p.75)
“para um compromisso sustentado, um sistema de crenças capacitador deve ser validado pela
experiência e reforçado por estruturas sociais maiores”.
Em relação aos fatores de risco é possível se observar que a história pessoal de
Rosângela indicou que o relacionamento conjugal foi motivado por uma tentativa de sair de
uma situação problemática, tanto a nível financeiro como emocional e familiar. Rosângela
iniciou um relacionamento com uma posição de dependência e imaturidade que foi se
refletindo ao longo dos anos que se manteve casada. Esta dependência emocional e a
violência somente foram encaradas e enfrentadas após a denúncia da vizinha. Durante o
casamento, o senso de coerência de Rosângela estava alienado e paralisado, e ela não tinha
controle sobre a violência vivenciada no casamento. O medo lhe limitava emocionalmente a
capacidade de cuidar de si mesma.
Além disto, o isolamento em que Rosângela vivia propiciou a manutenção da violência,
a falta de autonomia e flexibilidade na relação homem e mulher. Os limites no casamento
eram rígidos, coercitivos e punitivos. O marido não a deixava trabalhar e decidia sobre suas
amizades, proibindo a aproximação de alguém que não fosse da família, inibindo qualquer
possibilidade de Rosângela se socializar. Dessa forma, não se evidenciou flexibilidade,
autonomia, nem confiança e lealdade na relação conjugal, pois o ex-marido via a família
como sua propriedade e impedia a aproximação de pessoas de fora com receio de que seu
poder fosse afetado. Portanto não houve diferenciação neste sistema conjugal e as diferenças
não foram respeitadas.
Na família de origem do marido o modelo relacional é de violência à mulher.
Igualmente, na família de origem de Rosângela, as mulheres casam com homens opressores e
violentos. As mulheres assumem o papel de cuidadoras da família e renunciam à felicidade
74
pessoal em prol da instituição família, o que confirmou Rosângela como mais uma das
mulheres que sofre calada e mantém este modelo de ser mulher, passiva e submissa ao
homem.
Ao desafiar sua autoridade Rosângela enfrenta a vingança e o desejo de retaliação de
parte do ex-marido, como ameaças de morte e de perda da guarda dos filhos. A maior
vulnerabilidade de Rosângela foi a falta de apoio da sua família de origem, pai e avó, quando
ela pediu para voltar para casa. Houve descaso do pai que não cuidou da filha e a deixou a
própria sorte, gerando sentimentos de abandono e falta de amor que a distanciou da família de
origem. Segundo Rutter (1987), um dos mecanismos de proteção que atuam na redução do
impacto do risco sobre o indivíduo são os fatores familiares, como coesão, estabilidade,
respeito mútuo, apoio/suporte. Portanto, na falta deste fator de proteção, Rosângela ficou mais
vulnerável emocionalmente frente à violência no seu casamento.
5- DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Nas tabelas 9 e 10 são apresentados os processos de resiliência e os fatores de risco
para ambas as famílias da pesquisa, possibilitando uma interpretação ampla dos indicativos
que foram considerados relevantes tanto para a saída da história de violência quanto para
potencializá-la. Em seguida os resultados são analisados em relação aos objetivos específicos
da pesquisa, em que se apresenta uma compreensão da violência a partir da inserção ecológica
realizada na Delegacia para a Mulher, discutindo-se os efeitos do fenômeno. Por último, as
conclusões e considerações finais sobre os mesmos.
Tabela 9
Processos de resiliência relevantes para a saída da história de violência no contexto
ecológico das famílias da pesquisa:
Fatores de
Proteção
Eu Ecológico Microssistema
Familiar
Mesossistema e
Exossistema
Macrossistema
Sistema de
crenças
Enfrentamento
dos desafios.
Cuidado e
proteção aos
filhos.
Responsabilidade
dos pais e
lealdade dos
filhos.
Vínculos afetivos
Valorização da
instituição
família
75
Maternagem
como sentido de
vida.
Espiritualidade e
misticismo.
Auto-estima.
Sentido à
adversidade.
Referencial
interno de valores.
Força e potencial
nos aspectos
cognitivos e de
temperamento.
na família de
origem.
Compartilhamento
dos problemas.
Sistema de crença
da família de
origem: proteção,
afeto e união.
Os pais são
espelhos para os
filhos.
Culturalmente a
sociedade não
aceita a
violência.
Padrão de
organização
Capacidade de
acolher os
sentimentos dos
filhos.
Orientação
positiva.
Reorganização
para trabalhar e
cuidar dos filhos.
Apoio e
colaboração entre
mãe e filhos no
enfrentamento dos
problemas.
Adaptação dos
filhos a nova
forma familiar.
Apoio emocional
e financeiro dos
familiares.
Reconhecimento
da história de
violência.
A coesão da
família de origem.
Apoio dos
vizinhos,
Escola, igreja,
Terapia,
polícia.
Delegacia para a
Mulher.
Ação do
judiciário
Compartilhamento
dos sentimentos e
Amizade e
comunicação
Acesso aos
serviços de
Conscientização
cultural de
76
Processos de
Comunicação
proteção.
Tolerância quanto
às diferenças e
dificuldades.
Resolução dos
problemas,
comunicação clara
e expressão
emocional aberta.
aberta entre os
membros da
família.
Empatia nas
relações
familiares.
ajuda.
Acolhimento
por parte dos
profissionais.
valores de
proteção à
mulher (Lei
Maria da Penha).
5.1 Respondendo as questões norteadoras da pesquisa é possível se identificar a partir
dos processos-chave de resiliência, os mecanismos de proteção e as situações de risco nas
famílias nos diferentes contextos.
No Sistema de Crenças da família, ao nível do Eu Ecológico, observa-se que a
perseverança e a coragem no enfrentamento dos desafios foram um grande protetor
individual, promovendo a auto-estima das mulheres que se viram capazes de lutar por elas
mesmas e pelos filhos. Outro aspecto protetor estava ligado à construção da maternagem
como sentido de vida, quando o cuidado e a proteção aos filhos foram os valores afiliativos de
maior sustentação emocional destas mulheres dentro da história de violência e sofrimento
(Beavers & Hampson, 1990/1993).
Atribuir sentido à adversidade através da crença de que através do sofrimento a pessoa
aprende a se fortalecer, favoreceu o reconhecimento do alcance da violência e a discriminação
da situação que estavam vivendo e promoveu ações para a saída da história de violência.
Voltar a fazer escolhas segundo seu referencial interno de valores favoreceu a busca por apoio
e suporte. Outros aspectos de caráter individual, que promoveram a saúde mental e
diminuíram o impacto da violência para os membros da família foram a força e o potencial
dos aspectos cognitivos e de temperamento. Finalmente, a espiritualidade se mostrou um
protetor importante para as famílias, promovendo a fé, esperança e otimismo na superação dos
problemas.
Ao nível do Microssistema Familiar, os fatores de proteção foram a responsabilidade
dos pais e lealdade dos filhos, considerados verdadeiros legados multigeracionais, que guiam
seus membros no decorrer do ciclo de vida (Boszormenyi-Nagy, 1987). Quando os filhos
77
tentavam proteger a mãe do ataque do pai demonstravam uma grande lealdade confirmando-a
como importante para eles e merecedora de seu amor, mantendo sua auto-estima e sua
esperança na superação das dificuldades. Outro fator que promoveu a saída da história de
violência estava relacionado à afetividade nos vínculos familiares, que acompanhava as
famílias através de várias gerações, como um modelo do sistema de crenças familiar voltado
para a proteção, união e afeto entre seus membros. Este modelo favoreceu o
compartilhamento das dificuldades e confirmaram os pais como os principais formadores da
personalidade dos filhos (os pais são espelhos para os filhos). No Macrossistema, se observa
que a sociedade valoriza a instituição familiar e que culturalmente não aceita a violência.
No domínio, Padrão de Organização, ao nível do Eu ecológico, é possível se observar
o acolhimento dos sentimentos dos filhos e o reconhecimento de seus méritos. Há orientação
positiva frente à vida e reorganização emocional para trabalhar e cuidar dos filhos. No
Microssistema familiar, observa-se o apoio e a colaboração entre mãe e filhos no
enfrentamento dos problemas o que facilitou a adaptação a nova forma familiar. Na família de
origem disponibiliza-se suporte emocional e financeiro, que promovem a coesão da família,
bem como o reconhecimento da violência como prejudicial. No Mesossistema e Exossistema,
verifica-se a importância do suporte social na promoção de novas respostas à violência
conjugal, entre elas o apoio dos vizinhos, escola, igreja, terapia, Delegacia para a Mulher e
ação do judiciário. A ação e interferência de sistemas externos à família, como no caso de
vizinhos e da polícia na família de Rosângela foram aspectos essenciais no fortalecimento
pessoal e no enfrentamento da violência.
No domínio, Processos de comunicação, no Eu Ecológico, além do compartilhamento
dos sentimentos entre a mãe e os filhos há acolhimento e proteção. A empatia da mãe para
com os filhos favoreceu uma comunicação tolerante em relação às diferenças. No
Microssistema Familiar, observa-se a importância da relação de amizade entre os membros da
família, em especial da família de origem que funciona como um suporte no enfrentamento
dos problemas. No caso de Rosângela, o resgate da amizade com o pai e a avó foi
fundamental para sua permanência fora da história de violência, pois favoreceu uma melhor
comunicação sobre os eventos violentos. Outro fator importante que também promoveu a
saída da história de violência foi a empatia nas relações familiares, como no caso de Lílian,
em que a empatia entre as irmãs tinha um sentido de vida muito forte e, portanto, protetor.
78
No Mesossistema e Exossistema, acesso aos serviços de ajuda e acolhimento por parte
dos profissionais, se tornaram possíveis a partir da criação da Delegacia para Mulher. No
Macrossistema, conscientização cultural de valores de proteção à mulher, a partir da criação
da Lei Maria da Penha.
No quadro abaixo são apresentados os fatores de risco que potencializaram a violência
para ambas as famílias da pesquisa.
Tabela 10
Fatores de risco e vulnerabilidade que potencializaram a violência nos contextos
ecológicos das famílias da pesquisa:
Fatores de
Risco
Eu Ecológico Microssistema
Familiar
Mesossistema
e Exossistema
Macrossistema
Sistema de
crenças
Senso de
coerência
alienado e
paralisado.
Pouco controle
sobre eventos.
Medo e
passividade.
Não enxergar o
alcance da
violência.
Problemas
emocionais.
Papel do homem: Não
valorizar, não apoiar e
nem proteger a esposa.
Desencorajar emprego
e amizades. Negligente
com os filhos. A
violência é um modelo
interacional.
Crenças: casamento
como solução para os
problemas.
Renúncia pessoal pela
felicidade dos filhos.
Mulheres são
cuidadoras da família,
cedem ao marido,
realizam a manutenção
do casamento. O
homem é superior à
mulher e detentor do
A sociedade não
aceita a
separação.
79
poder. Infidelidade:
família de origem e na
própria.
Segredos familiares
Padrão de
Organização
Distanciamento
afetivo e
abandono na
relação do
homem com a
mulher e filhos.
As regras são rígidas,
punitivas, coercitivas.
O marido mantém o
poder e o controle
sobre a família.
Impede a entrada de
outras pessoas no
sistema familiar. Não
há diferenciação no
sistema conjugal e
nem respeito.
Padrão familiar de
promiscuidade sem
compromisso com
vínculo.
Isolamento
social.
Falta de
profissão e
Emprego.
Dependência
financeira do
Marido.
Falta de apoio
da família do
marido.
Judiciário
lento e não
resolutivo.
Padrões culturais
que determinam a
conduta da
mulher na
sociedade.
A estrutura da
sociedade
patriarcal que
tolera senão
facilita a
violência do
homem contra a
mulher.
Processos de
Comunicação
Falta de diálogo
entre mãe e
filhos durante o
casamento sobre
a violência
vivenciada.
Não há tolerância, nem
respeito à esposa.
Pouco compromisso
com a família.
Envolvimentos
extraconjugais.
Casal: sem
compartilhamento das
emoções e da
comunicação. Mentiras
e omissões.
Interferência de
terceiros.
80
5.2 Respondendo as questões norteadoras da pesquisa, observa-se que foi possível
compreender o significado atribuído nas narrativas familiares à violência, identificando o
Sistema de Crenças Familiares, os Padrões Organizacionais e os Processos de Comunicação
em relação aos eventos violentos. Fazendo um paralelo entre as duas famílias é possível se
identificar que os Sistemas de crenças familiares que mantém as histórias de violência no
Microssistema familiar apresentam algumas características semelhantes. Dentre elas, podem-
se citar crenças associadas ao papel da mulher como mantenedora da família, passivas diante
do marido e principal educadora e protetora dos filhos. Igualmente, crenças sobre o papel do
homem como dominador e opressor, demonstrando também pouco envolvimento emocional.
Estas características masculinas são percebidas como oriundas de um modelo relacional de
violência à mulher vivenciado em suas famílias de origem e perpetuado através da herança
transgeracional. Ao nível do Eu Ecológico, ambas as mulheres apresentaram um senso de
coerência interno paralisado e alienado frente à violência vivenciada, limitando suas ações e
tentativas de mudança. Na família de Lílian e Beatriz, a paralisação interna chegou a
desenvolver um processo emocional de cegueira da mãe frente às conseqüências da violência
para a filha, que acabou gerando depressão e ansiedade para ambas.
No domínio Padrão de Organização, ao nível do Eu Ecológico, observa-se um
funcionamento familiar caracterizado pelo distanciamento afetivo do homem na relação com a
mulher e filhos. As regras familiares são rígidas, coercitivas e punitivas e sustentam uma
posição masculina de poder e controle sobre a família. Há uma significativa pobreza na
diferenciação dos parceiros no sistema conjugal, sendo que a falta de respeito pelos limites
geracionais e às fronteiras do casal levam a um padrão de promiscuidade sem compromisso
com vínculo e conseqüente desvalorização da mulher. Ao nível do Mesossistema e
Exossistema, alguns aspectos foram fundamentais para gerar vulnerabilidade diante da
violência como o isolamento social, a falta de profissão e emprego, a dependência financeira
do marido e a falta de apoio de alguns familiares.
O judiciário lento e pouco resolutivo também se caracterizou como um risco para estas
famílias no enfrentamento da violência conjugal. A lentidão em solucionar os conflitos de
guarda e divisão de bens coloca as mulheres em situações ainda mais difíceis, considerando
que muitas delas não têm renda própria e dependem de familiares para sustento.
Principalmente, no Macrossistema verifica-se que a sociedade constrói padrões culturais
81
baseados em uma estrutura patriarcal tolerante e facilitadora da violência do homem contra a
mulher (Walker, 2006).
Finalmente, o último pilar de resiliência familiar destacado por Walsh refere-se ao
domínio Processos de Comunicação. Ao nível do Eu Ecológico, há falta de diálogo entre mãe
e filhos durante o casamento sobre a violência vivenciada, porque a mãe não via o alcance da
violência. Ao nível do Microssistema familiar, a relação conjugal se configurou pela pobreza
do compartilhamento afetivo e na comunicação caracterizada por mentiras e omissões. A
resolução de conflitos era alcançada através da violência, indicando a dificuldade de interação
e diálogo na construção de soluções. Somente com o enfrentamento da violência foi possível
um maior compartilhamento e honestidade nas trocas entre os familiares, permitindo
interações mais empáticas.
5.3 - Compreendendo a violência conjugal através das percepções dos profissionais da
Delegacia para a Mulher
Observa-se nas narrativas dos profissionais da Delegacia para a Mulher que um dos
fatores que mantém a violência conjugal é o processo de violência intergeracional destas
famílias, construído na relação familiar e repetido na escolha do parceiro. Segundo Ostyn
(1995), a violência é um modelo interacional que se repete através de várias gerações da
constelação familiar do agressor. Na relação conjugal se evidencia o processo de transmissão
multigeracional, um mecanismo que pode interferir na relação do casal e está relacionado às
experiências vividas dentro da família de origem. O homem traz um desejo grande de controle
e poder sobre a mulher a quem ele vê como inferior e que lhe deve obediência, pois este abuso
de poder e controle o motivam à violência (Walker, 2006).
Em relação aos fatores que podem favorecer a saída da violência conjugal, o
enfrentamento da violência pela mulher aumenta sua auto-estima e o apoio da família de
origem, além de promover suporte e proteção também favorece uma atitude menos passiva e
mais independente desta mulher em relação ao parceiro, portanto, na esfera do microssistema
este apoio é identificado como muito importante.
No entanto, as dificuldades do policial associadas à falta de maior envolvimento e
interesse pelos casos de violência à mulher, ao preconceito de que a mulher gosta de apanhar,
ao trabalho individualista e a falta de preparo técnico, constituem situações graves que
impedem o trabalho adequado no contexto da violência. Outro fator é a demanda intensa no
82
serviço que favorece sentimentos de impotência, além do envolvimento com o sofrimento das
vítimas. A lentidão do processo também é um fator gerador de estresse, pois muitas mulheres
desistem em função da demora para as audiências.
Neste sentido, foi indicado como um fator importante no enfrentamento da violência o
treinamento e o acompanhamento psicológico do policial em função da complexidade do
envolvimento com os casos. A ação da polícia promove amparo e segurança à vítima,
fortalecendo-a para fazer a denúncia da violência. Dessa forma, a Delegacia tem duas
funções, a de oferecer suporte e apoio para a vítima de violência e a de reprimir o agressor.
Pelas falas dos entrevistados, observa-se que o apoio e suporte social que a Delegacia para a
Mulher tem proporcionado à vítima de violência, têm demarcado um novo espaço para a
mulher na sociedade.
Outro fator importante na compreensão do fenômeno da violência é a sociedade, que
contribui fortemente para que a violência conjugal se mantenha, pois além de definir papéis e
regras para o homem e a mulher, também tolera a crença da superioridade masculina.
Segundo Lenore Walker (2006), a teoria ecológica incorpora o trauma da violência conjugal a
outros fatores situacionais, que incluem uma estrutura de sociedade ainda patriarcal que tolera
e facilita a violência do homem contra a mulher.
Para os profissionais da Delegacia, o preconceito criado pela sociedade em relação à
mulher que apanha do marido, dificulta o enfrentamento por parte da vítima e também inibe a
ação do policial. Citando em específico a sociedade atual consumista e mantenedora de
padrões de comportamento muito competitivos de gênero, raça e ideologias, que geram
conflitos de âmbito individual e social, no Brasil, estas questões se intensificam em função da
percepção de impunidade. Esta tem se caracterizado como um processo social que suscita a
descrença no poder público e governamental, o que tem favorecido a manutenção da
violência, entre elas a conjugal. Portanto, pode-se dizer que o desemprego, a pobreza e a
impunidade são fenômenos sociais que geram e mantêm a violência da sociedade sobre o
indivíduo, família, grupos e comunidades. Assim, a Lei Maria da Penha, veio dar uma maior
visibilidade a questão da violência à mulher com a prisão do agressor, embora não resolva a
questão da violência, mas já retrata um posicionamento social frente a ela. Em suma, partindo
de uma aproximação mais ampla e considerando o grupo como um todo, este se apresenta
com um posicionamento proativo e respeitador das necessidades das mulheres vítimas de
violência conjugal e também reconhecendo as próprias limitações.
83
6. CONCLUSÃO
Nesta pesquisa foi possível identificar que o processo de resiliência foi construído
tendo como fatores principais os aspectos marcantes da família como uma unidade funcional
frente à superação das dificuldades, em que habilidades e competências de seus membros
foram elementos muito valorizados, favorecendo a saída da história de violência. Um aspecto
muito marcante na promoção do processo de resiliência para estas duas famílias se relacionou
a forma como as mães construíram suas histórias de afeto, cuidado e proteção aos filhos,
diminuindo os prejuízos da exposição à violência para as crianças. Esse fator de proteção
também propiciou às mães se manterem mais inteiras emocionalmente apesar do sofrimento,
confirmando as pesquisas de Beavers e Hampson (1990/1993) sobre o valor do cuidado e da
proteção no desenvolvimento emocional dos membros da família. Portanto, pode-se dizer que
em geral, nos núcleos familiares a manutenção de saúde mental e resiliência ocorrem quando
pelo menos uma relação significativa de proteção e afeto entre os membros se desenvolve
como de mãe para com os filhos, ou entre os irmãos.
No entanto, pode-se observar que os fatores de proteção não se apresentaram da
mesma forma para cada família. Assim, não se pode generalizar e categorizar as famílias em
modelos estanques de resiliência. Ao contrário, cada família manteve suas próprias
características de identidade diante da violência, respondendo a sua maneira e de acordo com
seus valores e crenças familiares. Alguns protetores embora se mostrassem semelhantes
tinham um peso diferente para cada família. Na família de Rosângela, os maiores fatores de
proteção estavam relacionados à construção do sentido de vida da mãe através da relação com
os filhos e suas características individuais de temperamento, além do fator social (vizinha e
polícia). Na família de Lílian, os fatores de proteção que tiveram o maior impacto foram o
apoio da família de origem, em especial a amizade entre as irmãs e as características
individuais, como a religiosidade.
Comparando os resultados desta pesquisa com os achados de Yunes (2001) é possível
se identificar que as famílias que vivem tanto em situações de pobreza como em situações de
violência conjugal respondem ao risco de uma forma singular e própria de cada família, que
tem em sua base uma construção de valores e crenças que lhes possibilitam respostas
positivas diante das adversidades. Em relação à violência conjugal, Yunes, Mendes e
Albuquerque (2004/2007) observaram em seus achados de pesquisa com famílias
monoparentais em situação de pobreza, que a ausência da violência nas relações conjugais
84
proporcionou as melhorias e a reaproximação de outros familiares bem como o apoio destes e
a conseqüente melhora da situação financeira da família. No entanto, o risco em si não foi
totalmente excluído da história destas famílias. Na pesquisa atual também é possível
identificar que alguns riscos continuaram a existir na história destas duas famílias, tais como a
dependência financeira, outrora do marido, agora da família de origem, e as atitudes
opressoras dos ex-maridos que usavam os filhos para agredir as ex-esposas numa tentativa de
colocá-las como inaptas para cuidar dos filhos. Portanto, apesar do risco maior da violência
conjugal direta ter sido excluída da vida familiar, após a separação, a violência continuou se
apresentando como um risco, agora de uma forma indireta.
Segundo Ravazzola (2005), o enfoque da resiliência, como qualquer outro, não é
absoluto. Portanto, não proporciona todas as respostas e não está livre de ser utilizado dentro
de um modelo que enfatiza os déficits e conceitua as pessoas em mais resilientes e menos
resilientes. A autora assinala que o desafio atual é estudar as interações familiares, a fim de se
conhecer as competências e potencialidades humanas que ficaram postergadas pelas
tradicionais pesquisas que tinham seu foco nos déficits familiares e nas funções maternas e
paternas. Portanto, é possível se observar como o processo interacional familiar promoveu as
respostas de resiliência para as famílias, no caso, a mãe e os filhos. Reiterando o que Walsh
(1998/2005) considera como fundamental em relação à resiliência familiar, esta precisa ser
compreendida como se referindo aos processos de enfrentamento, de adaptação e coping na
família como uma unidade funcional. Assim, o fenômeno resiliência passa a ser caracterizado
não só no foco individual, mas também no processo interacional familiar. Dessa forma,
quando os terapeutas encorajam as pessoas a mudar suas crenças repressoras e buscar novas
histórias alternativas de vida precisam também acionar redes de apoio para que os sonhos
possam ser realizados.
Em relação à rede de apoio social, vimos na inserção ecológica na Delegacia para a
Mulher, através das percepções dos profissionais que atendem às mulheres vítimas da
violência conjugal, que a promoção da resiliência nestas instituições atravessa muitas
barreiras que a própria sociedade impõe. Os preconceitos e papéis predeterminados do lugar
do homem e da mulher na família e na sociedade acarretam julgamentos de valor em relação à
violência conjugal. Portanto, o fenômeno violência, também aparece nesta pesquisa sob a
ótica do social, especialmente na fala dos profissionais da Delegacia para a Mulher,
confirmando a opinião de muitos autores sobre a influência da sociedade que mantém e tolera
85
a violência do homem contra a mulher (Grosman, Mestermann, & Adamo, 1992; Lundy
Bancroft & Jay Silverman, 2002; Walker, 2006). Minayo (1994) expõe sua teoria sobre a
violência estrutural como um complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial, que é gerado e
se desenvolve na vida em sociedade, aplicando-se tanto às estruturas organizadas e
institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos. A
violência conduz à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, impedindo-lhes de
alcançar conquistas sociais e assim tornando-os vulneráveis ao sofrimento e a morte, bem
como fazendo-os aceitar ou infligir sofrimentos de uma forma naturalizada. Portanto, a
violência conjugal está inserida neste contexto maior do processo social e por isso seu
enfrentamento encontra tantas resistências, tanto a nível interno da família quanto do suporte
social das redes públicas. Dessa forma, se faz necessário uma melhor capacitação dos
profissionais que trabalham em contextos de violência, para que o enfrentamento destas
situações de risco seja possíveis.
86
SEÇÃO II - Revisão Teórica
Resiliência em famílias: Uma perspectiva na promoção e prevenção em saúde mental
Resumo
A perspectiva da resiliência em famílias é importante para o desenvolvimento de
estratégias de prevenção e intervenção voltadas para famílias em situação de risco. Portanto, é
importante conhecer como os processos internos e externos à família interagem e afetam seu
funcionamento e a capacidade de transformação da adversidade. Dessa forma, o objetivo
deste artigo é discutir o conceito de resiliência em famílias, considerando os principais
modelos dos processos familiares envolvidos na resiliência e apresentar os principais
resultados identificados em estudos brasileiros sobre famílias e resiliência. Destacam-se,
também, as implicações desta abordagem para o trabalho preventivo com famílias e
desenvolvimento de políticas públicas voltadas para as relações familiares.
Palavras-chave: resiliência familiar, família, risco, políticas públicas.
Abstract
Family resilience perspective is important to the development of strategies of
prevention and intervention geared to families in risk situations. However, it is important to
know how internal and external processes to the family interact and affect its functioning and
the capacity to transform adversity. This way, the objective of this article is to discuss the
concept of family resilience, considering the principal models of family process involved in
resilience and to present the principal results identified in Brazilian studies about families and
resilience. The implications of the approach to preventive work with families and the
development of public policies are highlighted
Key-words: family resilience, family, risk and protection, public policies
87
É crescente o interesse por estudos sobre o desenvolvimento humano na identificação
e compreensão dos processos de resiliência considerando a noção de promoção de saúde face
às circunstâncias adversas de vida. Ao priorizar os aspectos de enfrentamento das situações de
risco e ao tentar compreender as características desses processos as pesquisas destacam-se por
sua ênfase nas características individuais e coletivas de transformação e saúde. Esta
compreensão dos processos envolvidos na resiliência objetiva o desenvolvimento de ações de
promoção e de prevenção em saúde em várias instâncias, tais como familiar, social, pública
(Junqueira & Deslandes, 2003; Sapienza & Pedromônico, 2005; Yunes, 2001).
O conceito de resiliência refere-se ao processo de superação dos efeitos negativos da
exposição aos riscos, de forma que o enfrentamento dos eventos traumáticos não conduza a
trajetórias negativas de desenvolvimento (Rutter, 1985/1987). Assim, Pesce (2005) resume o
conceito de resiliência como “o conjunto de processos sociais e intrapsíquicos que
possibilitam o desenvolvimento saudável do indivíduo (p.436)”, envolvendo, portanto,
características de personalidade individual, de coesão e bom relacionamento familiar e
disponibilidade de suporte externo.
Associados à noção de risco estão os fatores de proteção que podem ser
compreendidos como situações que promovem a saúde ou mitigam o impacto negativo do
trauma. Estes fatores incluem desde características individuais, como também recursos do
ambiente social e contextual onde o indivíduo está inserido que agem de forma interativa na
determinação das trajetórias individuais (Fergus & Zimmerman, 2005). Neste sentido,
considerando-se o aspecto interativo dos processos em relação às características internas
individuais e os recursos disponíveis no contexto proximal e distal, verifica-se que são
diversas as possibilidades de se desenvolverem estratégias de promoção de resiliência nestes
diferentes níveis, dirigidas a indivíduos ou grupos em situação de vulnerabilidade
(Bronfenbrenner, 1979/2002). Como conseqüência, o conceito de resiliência é um construto
importante para o trabalho com crianças e famílias em situação de vulnerabilidade e risco, por
enfatizar a compreensão das respostas emocionais e comportamentais que se orientam ao
crescimento e por permitir a promoção de diferentes abordagens preventivas (Luthar &
Cicchetti, 2000).
Nesse sentido, as pesquisas sobre resiliência têm abordado diferentes situações de
estresse no desenvolvimento humano, como traumas, violência, doenças e perdas, tanto sob a
perspectiva da resiliência individual como familiar e comunitária (Daniel, 2006; Lietz, 2006).
88
Na última década, o foco na compreensão dos processos familiares nas situações de
adversidade e crise com objetivo de identificar as formas pelas quais as famílias enfrentam as
situações de risco passou a receber especial atenção. Principalmente, destacando-se a
importância das relações familiares na promoção de resiliência individual e grupal (Hawley &
DeHann, 1996). Desta maneira, a abordagem na resiliência familiar volta-se para o
conhecimento e compreensão dos processos que capacitam as famílias a superar crises e
estresses, tanto no presente como ao longo do tempo (Walsh, 1998/2005).
Entretanto, são poucos os estudos que investigam a família como capaz de contribuir
para a resiliência individual (Lietz, 2006). A maioria dos trabalhos está centrada no clima
emocional ou na dinâmica de famílias disfuncionais, portanto, baseada no paradigma do
déficit. Ao contrário, a abordagem da resiliência familiar volta-se para os aspectos sadios e de
sucesso que as famílias podem alcançar e, a partir de processos-chave, encorajaram o
crescimento individual e familiar. Partindo destes aspectos, o objetivo do presente artigo é
discutir o conceito de resiliência familiar, considerando os principais modelos dos processos
familiares envolvidos na resiliência e apresentar os principais resultados identificados em
estudos sobre famílias e resiliência. Para tal, apresenta-se uma breve revisão do conceito de
resiliência, seguido da discussão dos modelos processuais da resiliência familiar destacando o
trabalho de Walsh (1998/2005). Finalmente, identificam-se, a partir das pesquisas em
famílias, os principais processos envolvidos nas trajetórias familiares de resiliência.
Destacam-se, também, as implicações desta abordagem para o trabalho preventivo com
famílias e desenvolvimento de políticas públicas voltadas para as relações familiares.
A resiliência: desenvolvimento de um conceito
A origem do termo resiliência fundamenta-se em três pontos de vista: o físico, o
médico e o psicológico (Tavares, 2001). No primeiro, a resiliência é a qualidade de resistência
de um material ao choque, à tensão e à pressão, qualidade que lhe permite voltar, sempre que
é forçado ou violentado, à sua forma ou posição inicial - por exemplo, uma barra de ferro,
uma mola, elástico etc. No segundo, a resiliência seria a capacidade de um sujeito resistir a
uma doença, a uma infecção, a uma intervenção, por si próprio ou com a ajuda de
medicamentos. E, no terceiro, o psicológico, a resiliência é uma capacidade das pessoas,
individualmente ou em grupo, de resistirem às situações adversas sem perder o seu equilíbrio
inicial, isto é, manter a capacidade de se acomodar e se re-equilibrar constantemente.
89
O estudo da resiliência é recente na psicologia. O termo resiliência tem sido usado
para conceituar os processos de enfrentamento de adversidades na qual o ser humano sairia
fortalecido, superando as dificuldades e não retornando ao estado inicial como no exemplo da
física. Entretanto, tanto a definição conceitual do termo como os aspectos metodológicos de
avaliação dos processos resilientes não são tão precisos como na física (Yunes, 2001). A
diversidade de termos utilizados na conceituação da resiliência bem como os diferentes
instrumentos e delineamentos dos estudos sobre os processos de resiliência geraram
dificuldades metodológicas na operacionalização do conceito e na adequada avaliação dos
processos envolvidos na resiliência. Neste sentido, na última década, os pesquisadores da área
recomendam que os trabalhos orientados para a identificação dos processos de resiliência
fundamentem-se em sólidas definições operacionais dos conceitos e em opções metodológicas
adequadas às questões investigadas, evitando a utilização de conceitos estanques que
compreenderiam os indivíduos como resilientes ou não-resilientes (Luthar & Cicchetti, 2000;
Yunes, 2001; Zimmermann & Arukumar, 1994).
Desta maneira, considera-se que o conceito de resiliência refere-se a processos
dinâmicos no qual o indivíduo manifesta adaptação positiva apesar de experiências adversas
ou traumáticas (Junqueira, 2003; Luthar & Ciccheti, 2000; Slap, 2001; Yunes, 2001). Não é
um traço de personalidade ou uma qualidade pessoal, devendo ser compreendido a partir de
uma perspectiva interativa, pois o indivíduo pode apresentar características resilientes em
determinada situação e não em outra. Portanto, o conceito de resiliência não se refere
unicamente à adaptação a situação adversa ou a superação de seus efeitos e, sim, a processos
mais complexos que envolvem diferentes elementos.
Inicialmente, o enfoque das investigações sobre resiliência tentava compreender como
algumas crianças em situações adversas e de risco não desenvolviam problemas psicológicos
ou de adaptação social, apesar das predições de teorias desenvolvimentais. Portanto,
orientava-se pelo interesse em identificar quais características humanas tornavam certos
indivíduos imunes às situações de vida adversas, num esforço de utilizar esta compreensão
para a prevenção de sofrimento psicológico. O conceito de resiliência, fundado na noção de
imunidade, considerava que os indivíduos resilientes eram invulneráveis, resistiam às
diferentes situações traumáticas devido às suas características pessoais que não se alteravam
ao longo da vida. Conforme, o avanço dos trabalhos, esta compreensão modificou-se e,
90
contrário, observou-se que a diversidade de respostas individuais frente à adversidade variava
e dependia grandemente das situações enfrentadas (Rutter, 1993).
A partir deste enfoque, uma primeira geração de pesquisadores buscou descobrir quais
os fatores protetores que estavam na base da adaptação positiva diante da adversidade. Um
estudo que marcou este primeiro momento foi a pesquisa longitudinal de Emmy Werner e
Ruth Smith (1993) em Kauai, Havaí. Durante 32 anos, foram estudadas 505 pessoas, do
período pré-natal até a vida adulta. O objetivo deste estudo era conhecer os efeitos
cumulativos das situações de risco sobre o desenvolvimento emocional e psicológico das
crianças. Os pesquisadores observaram que nem todas as crianças expostas a quatro ou mais
fatores de risco desenvolveram problemas de aprendizagem ou de comportamento. Estas
crianças foram denominadas como resilientes.
Os primeiros trabalhos sobre resiliência indicaram que algumas características
tornavam alguns indivíduos resilientes frente às situações de adversidade. Num dos modelos
iniciais, Masten e Garmezy (1985) identificaram três níveis de fatores associados a maior
proteção e resiliência: as características disposicionais da criança, tais como atividade,
autonomia, positiva orientação social e auto-estima; as características familiares, como coesão
familiar, ausência de conflitos, e maus-tratos; e as características do contexto social, como a
disponibilidade de uma rede de apoio social definida. Além destes fatores, Rutter (1993)
salientou a importância de se considerar o momento evolutivo da criança e a fonte de origem
da situação de adversidade.
Na medida em que os estudos avançavam ficou evidente, porém, que somente a
ocorrência de eventos traumáticos e a presença dos fatores de proteção mencionados não eram
condições suficientes para explicar trajetórias de resiliência. Constatou-se que, ao invés de
uma compreensão estática de resiliência, era necessária uma abordagem compreensiva dos
processos interativos (Tusaie & Dier, 2004). Entretanto, mesmo que se compreenda a
resiliência como processo interativo e dinâmico, dois aspectos são básicos na compreensão do
conceito. Um deles implica em exposição à adversidade e o outro em superação. Desta
maneira, estes dois aspectos, adversidade ou trauma e adaptação positiva, constituem os
fundamentos do construto da resiliência (Luthar & Cicchetti, 2000). A adversidade refere-se
às situações de vida que colocam o indivíduo frente às situações de desafio ou dificuldades e a
adaptação seria compreendida como a superação destas dificuldades e o êxito na aquisição das
tarefas evolutivas. Neste sentido, associados ao próprio construto de resiliência estão os
91
conceitos de risco, coping, vulnerabilidade e proteção (Infante, 2005). “Falar de resiliência
sem mencionar estes conceitos seria como abordá-la sem a complexidade e a abrangência que
o conceito requer” (Libório, Castro, & Coelho, 2006, p. 89-90).
Os fatores de risco referem-se aos eventos negativos de vida e quando presentes
aumentam a probabilidade de o indivíduo apresentar problemas físicos, sociais ou emocionais.
A presença de fatores de risco gera maior vulnerabilidade e maior probabilidade de ser
desencadeado um processo desenvolvimental negativo para a criança, principalmente
associado a transtornos emocionais (Pesce, Assis, & Avanci, 2006). Contudo, o risco também
é compreendido como um processo e não uma variável em si (Luthar & Cicchetti, 2000). Os
fatores de risco geram maior vulnerabilidade e maior probabilidade de desencadear um
processo desenvolvimental negativo para a criança. A vulnerabilidade, portanto, se
caracteriza pela susceptibilidade de emissão de respostas desadaptadas que produzem
resultados negativos para o desenvolvimento psicológico dos indivíduos submetidos a
situações de risco. A vulnerabilidade ocorre apenas quando o risco está presente, pois sem o
risco ela não possui efeito. As variações na sensibilidade da criança aos riscos do ambiente
tanto podem ser influenciadas geneticamente quanto derivadas de experiências vividas
anteriormente (Rutter, 1985; Zimmermann & Arunkumar, 1994).
Já os mecanismos de proteção (Rutter, 1987) atuam na redução do impacto dos riscos,
diminuindo os efeitos da exposição do indivíduo a um evento estressor, reduzindo as reações
negativas em cadeia que acompanham a exposição do indivíduo às situações de risco. Os
mecanismos de proteção são provenientes de fatores individuais como: auto-estima positiva,
autocontrole, autonomia, temperamento afetuoso e flexível, estratégias de coping e
competência social; de fatores familiares como: coesão, estabilidade, respeito mútuo,
apoio/suporte; e de fatores do meio ambiente como: relações interpessoais (relacionamento
afetuoso com adulto significativo e amizades significativas), suporte social e comunitário.
Em síntese, a compreensão de que os fatores de risco, vulnerabilidade e proteção
atuam de forma interativa fundamentou o desenvolvimento conceitual da resiliência como um
conjunto de processos (Yunes, 2001). A mudança de uma abordagem estática de compreensão
da resiliência para outra processual e dinâmica originou o desenvolvimento de modelos
explicativos das diferentes formas de interação entre os fatores de risco e os de proteção.
92
Modelos conceituais de resiliência
Basicamente, os modelos de resiliência organizam-se em torno da noção de que as
situações de adversidade que ocorrem no processo de desenvolvimento humano geram
mudanças do equilíbrio homeostático (equilíbrio entre os fatores internos e externos ao
indivíduo). Dependendo da interação entre estes fatores internos e externos, podem ocorrer
distintos desfechos - a reintegração da experiência adversa resultando num processo de
crescimento e modificação pessoal; o retorno à posição homeostática anterior; reintegração
com perdas e, por último, a reintegração disfuncional (Lansford & cols., 2006). Dois modelos
foram propostos para explicar como se dá a relação entre os diversos fatores de risco e
proteção e como estes interagem e influenciam as trajetórias de desenvolvimento. O modelo
aditivo considera que os fatores acumulam-se e têm maior efeito quanto mais freqüentemente
ocorrerem. Por exemplo, uma criança em presença de diversas situações de risco, como
pobreza, violência familiar e comunitária tem mais chances de risco no desenvolvimento que
outras crianças em situação diferente. Já o modelo interativo considera que tanto os fatores de
risco como os de proteção interagem entre si, resultando em diferentes respostas individuais
ou grupais (Lansford & cols., 2006).
Inicialmente, Garmezy, Masten e Tellegen (1984) propuseram três mecanismos
interativos pelos quais os processos de proteção podem mediar o relacionamento entre o
estresse e a competência, aumentando a resiliência: desafio, imunização e compensação. Tais
mecanismos podem ocorrer mutuamente ou em fases diferentes do desenvolvimento. No
mecanismo de desafio o estresse é encarado como um estímulo que ao ser enfrentado aumenta
a competência do sujeito e diminui o impacto do risco. Há, portanto, uma interação do fator
de risco (estresse) com o fator de proteção (competência). No mecanismo de imunidade o
risco reforça a capacidade de adaptação do sujeito, pois diante da superação do estresse há um
aumento das estratégias e das habilidades no enfrentamento do estresse. O reforço das
estratégias e das habilidades diante da superação do estresse aumenta concomitantemente a
competência social do indivíduo. No mecanismo de compensação o estresse é neutralizado
por uma variável que diminui o efeito negativo da exposição ao risco. Outros modelos
utilizam-se igualmente de diferentes abordagens para a compreensão de situações mais
especificas de enfrentamento da adversidade. Porém, o conceito de resiliência não se restringe
a modelos individuais de enfrentamento das situações adversas, mas também é considerado
93
um instrumento importante para situações ou contextos mais amplos, como a resiliência em
famílias e comunitária (Tusaie & Dier, 2004).
O conceito de resiliência familiar
As pesquisas baseadas no construto da resiliência familiar ainda são pouco exploradas
(Hawley & DeHann, 1996; Walsh, 1998/2005; Yunes, 2003). Poucos estudos investigam o
sistema familiar como capaz de contribuir para a resiliência individual, sendo a maioria
centrada no clima emocional ou na dinâmica de famílias disfuncionais, portanto, baseadas no
paradigma do déficit (Lietz, 2006). No entanto, o enfoque a partir da resiliência em famílias
volta-se para os aspectos sadios e de sucesso da família, numa visão mais positiva das
motivações e das capacidades humanas.
Os trabalhos sobre resiliência e estresse familiar de McCubbin e colaboradores
(Gardner & cols., 2008; McCubbin & cols., 2002) contribuíram para o desenvolvimento de
conceitos e avaliação de características do funcionamento da família associados à crise.
Hawley e DeHann (1996), entretanto, destacam que apesar dos estudos sobre resiliência já
terem se estabelecido como um foco importante de investigação, o interesse no estudo dos
processos familiares de resiliência ainda está na etapa de consolidação.
Segundo Lietz (2006), o modelo tradicional de trabalho com famílias era voltado para
a redução de riscos, uma aproximação que visava identificar os problemas, os conflitos e os
sintomas presentes no contexto familiar. Mesmo sendo este um foco necessário e válido, ao
contrário, a ênfase nos aspectos de saúde e resiliência familiar nas situações de adversidade é
uma forma alternativa de auxiliar as famílias a identificarem seus próprios recursos para o
enfrentamento das dificuldades. Nesta perspectiva, o foco nos processos de transformação e
procura de soluções destaca o esforço de enfrentamento da adversidade (Hawley & DeHann,
1996; Walsh, 1998/2005; Yunes, 2003). Assim, a resiliência familiar compreende os
processos de enfrentamento, de adaptação e coping no sistema familiar, compreendido como
uma unidade funcional. Isto é, a resiliência familiar abrange um conjunto de características
baseadas na capacidade da família em ter um funcionamento flexível e de contenção dos
problemas, não deixando outros domínios do funcionamento familiar interferir no
funcionamento de seus membros (Gonçalves, 2003).
Esta interação de fatores de proteção internos e externos contribui para a promoção da
resiliência tanto através de processos compartilhados pela totalidade da família como de
processos individuais de seus membros, da coesão familiar e do apoio conjugal e social. Mais
94
que um conjunto de traços disposicionais, o enfrentamento e a adaptação positiva abrangem
processos multideterminados pelas circunstâncias de vida ao longo do tempo (Rutter, 1987).
Assim, a resiliência familiar não se restringe somente às características individuais de seus
membros, mas refere-se aos processos de enfrentamento e adaptação na família como uma
unidade funcional.
Uma importante contribuição para a compreensão da resiliência familiar é o trabalho
da terapeuta de família Froma Walsh que desenvolveu um modelo o qual chamou de
processos-chave de resiliência em famílias. Segundo Walsh (2005), a compreensão da
resiliência em famílias fundamenta-se numa ótica sistêmica e ecológica do desenvolvimento.
Nesta perspectiva, “o contexto relacional da resiliência dentro de uma ótica sistêmica expande
a nossa visão da adaptação individual para processos transacionais mais amplos no sistema
familiar e social e trata da mutualidade das influências através destes processos” (p. 11).
Conseqüentemente, a resiliência familiar é tecida por uma rede de relacionamentos e
experiências que vão se desenrolando durantes os ciclos de vida e entre as gerações,
resultando de diferentes relações interpessoais nos diversos contextos sociais e ao longo do
tempo (Walsh, 1998/2005).
A perspectiva ecológica leva em conta as múltiplas influências do ambiente sobre o
desenvolvimento do indivíduo durante seu tempo de vida, considerando que a interação com o
meio ambiente o transforma, possibilitando-lhe novas respostas adaptativas aos contextos
sociais (Bronfenbrenner, 1979/2002). A teoria privilegia a compreensão do desenvolvimento
humano no contexto, levando em conta os aspectos relativos à pessoa (características físicas,
biológicas e emocionais), ao processo (como a experiência é vivenciada) e o tempo (meio-
ambiente). Além disto, esta análise do contexto se dá através de sistemas que se
interconectam incluindo o microssistema (padrão de atividades, papéis e relações
interpessoais, num ambiente específico); o mesossistema (inter-relações entre dois ou mais
ambientes, escola, amigos, trabalho e vida social); o exossistema (ambientes não envolvendo a
pessoa como participante ativo, trabalho dos pais, amigos dos pais); e o macrossistema
(cultura, crenças e ideologias).
Para Walsh (1998/2005), a resiliência é promovida quando as adversidades e os
problemas são vistos como um meio de crescimento e superação dos próprios limites. Alguns
processos-chave, entretanto, se constituem como pilares do funcionamento familiar
associados à construção da resiliência em três domínios: o sistema de crenças da família, os
95
padrões organizacionais e os processos de comunicação. Os sistemas de crenças estão na raiz
de todo funcionamento familiar e são forças muito poderosas na construção da resiliência,
pois são compartilhadas na família e moldam as normas, regras e papéis deste sistema. As
crenças são construídas socialmente e evoluem através de processos transacionais com outras
pessoas e o mundo (Mcnamee & Gergen, 1998; Walsh, 2005). As principais crenças
associadas à resiliência familiar podem ser organizadas em três áreas: atribuir sentido à
adversidade, perspectiva positiva, transcendência e espiritualidade. Atribuímos significados a
nossa experiência quando enfrentamos as crises e as adversidades: “vinculando-as ao nosso
mundo social, às nossas crenças culturais e religiosas, ao nosso passado multigeracional e às
nossas esperanças e sonhos para o futuro” (Walsh, 2005, p. 43). Os padrões organizacionais
da família são considerados os verdadeiros amortecedores dos choques familiares -
flexibilidade, conexão e os recursos sociais e econômicos integram a unidade funcional da
família regulando e definindo os relacionamentos e comportamentos os quais são reforçados
pelas crenças culturais e familiares. Para um bom funcionamento familiar é necessária uma
estrutura flexível, porém estável. Esta estabilidade requer regras, papéis e padrões
interacionais. Desta forma, as rotinas da vida diária bem como os rituais familiares mantêm
um senso de continuidade ao longo do tempo. Finalmente, um dos desafios para o bom
funcionamento do modelo transacional proposto por Walsh é a comunicação. Fortalecer a
resiliência familiar é facilitar o processo de comunicação da família, aumentando a
capacidade dos membros de se expressarem e negociarem novas demandas. Para tal, três
aspectos são fundamentais: a) clareza; b) expressão emocional aberta e c) resolução
colaborativa dos problemas (Walsh, 2005).
Tabela 11
Esquema dos processos-chave de resiliência familiar.
Sistema de
crenças:
(Coração
e alma
da Resiliência)
Atribuir sentido à adversidade: valor afiliativo nas relações
interpessoais; orientação do ciclo de vida familiar nos contextos de
estresse e crises; senso de coerência frente às crises como desafios a
serem vencidos; avaliação da crise a partir das crenças da família.
Perspectiva Positiva: iniciativa e perseverança; encorajamento e foco
no positivo; esperança e confiança na superação das adversidades;
força e potencial; domínio do possível e aceitar coisas que não podem
ser mudadas.
96
Transcendência e espiritualidade: propósito, valores e objetivos na
vida; espiritualidade: fé, comunhão e rituais; inspiração, criatividade,
modelos de papéis; aprendizagem e saída da crise, através da
experiência vivida.
Padrões
Organizacionais
Flexibilidade: capacidade para mudanças e reorganização;
estabilidade como sentido de rotina;
Conexão: apoio mútuo, respeito às diferenças, forte liderança e busca
de reconciliação;
Recursos sociais e econômicos: mobilização da família extensa,
trabalhar junto e segurança financeira.
Processos de
Comunicação
Clareza: mensagens consistentes;
Expressão emocional aberta: sentimentos compartilhados, empatia
nas relações, interações prazerosas e bemhumoradas;
Resolução colaborativa dos problemas: identificação e opções diante
dos problemas; criatividade no lidar com o problema e compartilhar
decisões, foco nos objetivos e atitude preventiva em relação a futuro.
Adaptado de Walsh (1998/2005)
Famílias e resiliência
Através da ênfase na forma como os processos internos e externos à família interagem
e afetam seu funcionamento e capacidade de transformação da adversidade, a perspectiva da
resiliência em famílias é importante para o desenvolvimento de estratégias de prevenção e
intervenção voltadas para famílias em situação de risco (Walsh, 1998/2005). Em função disto,
os estudos voltados para a identificação dos processos familiares de resiliência procuram
identificar as características das relações familiares nas situações de enfrentamento de
adversidades. Os trabalhos sobre a resiliência familiar incluem investigações sobre diversas
situações do ciclo vital da família, envolvendo desde questões traumáticas associadas a
processos intrafamiliares de enfrentamento de doenças, crises financeiras, perdas, separações,
até situações mais amplas do contexto social como guerras, acidentes naturais como
terremotos e furacões, por exemplo. No Brasil, estudos sobre a resiliência familiar constituem
importantes estratégias para ampliação de conhecimento sobre famílias em situação de
vulnerabilidade e risco. Neste sentido, os trabalhos têm se voltado para questões associadas a
97
famílias de grupos minoritários economicamente ou envolvidas em situação de violência
(Cecconello, 2003; De Antoni, 2005; Garcia & Yunes, 2006; Yunes, 2001; Yunes, Mendes, &
Albuquerque, 2004/2007) os achados empíricos destas pesquisas seguem abaixo.
Yunes (2001), ao pesquisar sobre a resiliência em famílias de baixa renda, entrevistou
oito profissionais que atendiam famílias pobres e realizou entrevistas reflexivas para a
obtenção de histórias de vida de duas famílias indicadas por enfrentarem as dificuldades da
pobreza e viverem bem. Um de seus objetivos era investigar a historia de vida deles e
compreender os processos que determinaram sua atual condição. Através do discurso das
profissionais a autora identificou que existe uma tendência social de atribuir a priori a esta
população pobre, uma condição de não-resiliência. No entanto, a pesquisa apontou que estas
famílias “enfrentaram e enfrentam as adversidades da pobreza à sua maneira e no seu estilo de
ser família (2001, p.11)”. Uma das famílias enfrentava a crise como um desafio, seus
membros se mostravam unidos, sendo que a confiança era fortalecida, propiciando maior
solidariedade e possibilidades de transformação da crise. Na segunda família, o enfrentamento
da crise estava relacionado mais com a coesão e introspecção do grupo, numa relação mais
espiritualizada que reforçava a crença da ajuda divina na superação dos problemas. Portanto,
“o sentido atribuído às crises pelas duas famílias é diferente, o que leva a concluir que não há
um sentido hegemônico que defina a condição de resiliência” (p. 158). Dessa forma, Yunes
(2001) conclui que os critérios que indicam a resiliência em famílias não são universais. Além
dos aspectos sociais e históricos que permeiam os processos familiares, os fatores relacionais
são dinâmicos e complexos, tornando-se difícil de categorizar as famílias pobres como
resilientes ou não.
Em relação aos fatores de proteção Yunes (2001) destacou: o senso de coesão familiar,
o apoio afetivo e financeiro da família extensa, a valorização do trabalho e do estudo, o olhar
positivo e a esperança das melhorias na condição de vida futura, a consciência de seus direitos
políticos como cidadãos bem como a disposição para reivindicá-los. Segundo Yunes, estes
fatores de proteção poderiam ser identificados como elementos dos processos-chave do estudo
de resiliência em famílias proposto pela autora Froma Walsh (1998/2005). Entretanto, os
processos ocorrem de formas diferentes de acordo com a dinâmica relacional de cada família
o que dificulta que se categorizem os processos de resiliência para qualquer família.
Em outra pesquisa com famílias monoparentais em situação de pobreza, Yunes,
Mendes e Albuquerque (2004/2007) identificaram situações e processos que causam risco ao
98
convívio familiar e conflitos familiares, tais como o alcoolismo, a violência doméstica, perdas
materiais e infidelidade. A monoparentalidade mostrou-se como um evento-chave para a
melhoria da qualidade de vida e das relações familiares, pois a ausência da violência nas
relações conjugais proporcionou as melhorias e a reaproximação de outros familiares bem
como o apoio destes e a conseqüente melhora da situação financeira da família. No entanto,
alguns fatores de risco continuaram a existir no cotidiano destas famílias, como a moradia e
alimentação inadequada, emprego e renda instáveis. Também se destacaram como fatores de
risco a vivência das perdas afetivas e a falta de apoio social eficiente apesar da ausência dos
companheiros (Garcia & Yunes, 2006). Ainda em relação a esta pesquisa, os autores também
identificaram nas percepções dos agentes sociais uma visão fatalista, pessimista e determinista
sobre estas famílias monoparentais em situação de pobreza. Isso requer urgentemente, novas
propostas de programas públicos de educação, que visem modificar estas visões dos agentes
sociais, para que então, as ações promovedoras de saúde e bem estar para estas populações
carentes realmente cumpra com o objetivo de mudanças e transformação (Yunes, Mendes &
Albuquerque, 2007).
Cecconello (2003), ao investigar os processos de resiliência em famílias em situação
de vulnerabilidade, entrevistou três famílias num estudo desenvolvido em duas etapas. O
objetivo do primeiro estudo foi apresentar o método de inserção ecológica e os dados obtidos
através da análise do contexto no qual vivem as famílias. A inserção ecológica consistiu no
acompanhamento das famílias, por quatro anos, pela equipe de pesquisa na comunidade e
incluiu observações, conversas informais e entrevistas formais com os membros das famílias.
O objetivo do segundo estudo foi analisar os processos de vulnerabilidade e resiliência
familiar através do método de estudo de caso com as três famílias.
Foram analisados os fatores de risco e proteção em nível intra e extrafamiliar, com
base na teoria dos sistemas ecológicos. Em nível intrafamiliar verificou-se que cada família
apresentava situações específicas de vulnerabilidade. A primeira família tinha uma estrutura
nuclear. Era formada pelo casal e oito filhos, apresentando uma história de violência
doméstica envolvendo a esposa e filhos e alcoolismo paterno. Uma segunda família
reconstituída era formada pelo novo casal e o filho de onze anos da primeira união da mulher
e tinha história de maus tratos na relação mãe e filho. A última família, uniparental, era
formada pela mãe e dois filhos com história de infidelidade. Portanto, todas viviam em
condições adversas (Cecconello, 2003).
99
A autora identificou a presença de alguns fatores de risco externos à família, como a
pobreza e a violência na comunidade, que tiveram um efeito negativo sobre os fatores de
risco, como a violência doméstica, o alcoolismo e a depressão materna, potencializando-os.
Em relação aos fatores de proteção foram observados as características pessoais dos seus
membros, a coesão familiar e o apoio conjugal/social. Portanto, através de um processo
compartilhado pela família como um todo e por processos individuais de seus membros houve
a promoção da resiliência. Em relação à inserção ecológica da equipe de pesquisa na
comunidade e nas histórias das famílias, esta garantiu a validade ecológica da tese. Pois
possibilitou, além do compartilhamento das relações familiares, também conhecer as
dificuldades enfrentadas, como promover reflexão, apoio emocional e melhorias na qualidade
de vida destas famílias (Cecconello, 2003).
Em outra pesquisa sobre Coesão e hierarquia em famílias com história de abuso
físico, De Antoni (2005), estudou o fenômeno da violência física intrafamiliar, através da
Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano, Teoria Estrutural Sistêmica Familiar e da
Psicologia Positiva. Participaram deste estudo vinte famílias de nível sócio-econômico baixo
com história de abuso físico intrafamiliar. O método utilizado foi a inserção ecológica, através
da participação da equipe de pesquisa nos contextos de interação familiar (residência,
hospital, escola e organização não-governamental). Com a família foram utilizadas entrevistas
semi-estruturadas e o Teste do Sistema FamiliarFAST. A pesquisa se organizou em três
estudos. O primeiro analisou o perfil destas famílias, em relação ao sistema bioecológico,
relacional e ao perfil da violência. O segundo analisou quantitativamente as representações
dos membros familiares sobre a coesão e a hierarquia, obtidas através do FAST. O terceiro
apresentou três casos, nos quais é aprofundado o estudo do fenômeno do abuso físico
intrafamiliar, de forma qualitativa.
Os resultados mostram a presença de indicadores de risco agravantes para a
vulnerabilidade social e familiar, entre eles, as condições socioeconômicas como o
desemprego, precariedade da moradia e a falta de recursos financeiros e a violência física
decorrente do estresse parental e das interações familiares. Os fatores de proteção
identificados nas famílias estavam relacionados às características pessoais de seus membros
como talentos especiais, valorização dos estudos, religiosidade, afiliação comunitária e
determinação em mudar a situação financeira. A autora refere que estes fatores não são
suficientemente capazes para promover a resiliência e evitar a violência, em função de sua
100
severidade. Há divergências entre os membros sobre a coesão e a hierarquia da família. Sendo
que os agressores não se reconhecem como tal e tendem a representar a família coesa, mesmo
diante de situações conflituosas. Estes resultados foram confirmados nos estudos de casos,
que demonstraram também o papel da violência associado à necessidade do abusador em
manter o controle sobre a família, repercutindo em todo o sistema, e se tornando um modelo
interacional, substituindo o afeto amoroso. A autora refere que o enfrentamento das
adversidades e sua superação pela família dependem em muito do suporte social, como as
redes de serviço e de políticas públicas voltadas para amenizar a pobreza e a violência (De
Antoni, 2005).
Em relação às redes de serviço e de políticas públicas, Siqueira e Dell’Aglio (2008),
observaram em um estudo sobre a reinserção na família de uma jovem institucionalizada, que
a falta de acompanhamento desta transição pela rede de apoio, acarretou no retorno à
institucionalização, pois não havia condições de segurança para o desenvolvimento sadio
desta jovem no ambiente familiar. Portanto, as pesquisas têm confirmado a importância do
suporte da rede no acompanhamento das famílias em situação de risco e adversidades.
Segundo Bronfenbrenner (1979/2002) as realidades familiares, sociais e econômicas
bem como as culturais estão organizadas como um todo articulado num sistema, que se
compõe em subsistemas, que se comunicam de maneira dinâmica. Portanto, as forças que
atuam na família, na comunidade e na cultura podem determinar a aparição de relações
violentas (Belsky, 1980). Assim, a violência é construída socialmente, estando relacionada ao
isolamento social, à falta de uma rede de apoio social e afetivo e aos eventos de vida
estressantes, como dificuldades financeiras e desemprego (Cecconello, De Antoni, & Koller,
2003; Doise, & Papastamou, 1987).
Discussão
No Brasil, estudos sobre a resiliência em famílias têm se constituído em importantes
estratégias para a ampliação de conhecimento sobre famílias em situação de vulnerabilidade e
risco. Neste sentido, os trabalhos têm se voltado para questões associadas a famílias de grupos
minoritários economicamente ou envolvidas em situação de violência (Cecconello, 2003; De
Antoni, 2005; Garcia & Yunes, 2006; Yunes, 2001; Yunes, Mendes, & Albuquerque,
2004/2007). Desta maneira, os estudos nacionais sobre os processos de resiliência em famílias
em diferentes situações de risco têm se mostrado importante fonte de conhecimento sobre as
101
características de funcionamento e enfrentamento destas famílias, a partir de uma ótica
contextualizada de investigação. Além disto, considerando-se o significativo número de
famílias brasileiras que vivem de alguma maneira em situação de risco, observa-se a
importância e a necessidade de ampliar trabalhos baseados no fenômeno da resiliência. Neste
sentido, os trabalhos destacados nesta revisão são contribuições fundamentais tanto para
embasar o desenvolvimento de novas pesquisas sobre famílias brasileiras como para
fundamentar planejamentos de ações de intervenção e prevenção. Outro aspecto importante
dos trabalhos nacionais é o desenvolvimento da metodologia de Inserção Ecológica (Prati et
cols., 2008) que sistematiza a contribuição de Bronfenbrenner (1979/2002), a qual leva em
conta as múltiplas influências do ambiente sobre o desenvolvimento do indivíduo durante seu
tempo de vida. Portanto, na Inserção Ecológica, a investigação deve se sustentar através da
participação do pesquisador no ambiente de pesquisa, sendo que o delineamento do estudo
deve incluir os quatro componentes da inserção: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo.
Além da ênfase nos aspectos interativos e proximais dos delineamentos baseados na
Inserção Ecológica, esta abordagem permite que o fenômeno investigado seja apreendido em
sua singularidade. No caso de estudos sobre resiliência, esta metodologia constitui-se como
instrumento fundamental de investigação.
Como foram verificados nas pesquisas sobre resiliência em famílias, os fatores de
proteção não se apresentaram da mesma forma para cada grupo. Assim, não se pode
generalizar e categorizar as famílias em modelos estanques de resiliência, pelo contrário, cada
família apresentou suas próprias características de identidade diante das dificuldades,
respondendo a sua maneira e de acordo com seus valores e crenças familiares. Portanto,
políticas públicas para as famílias precisam levar em conta estas questões de singularidade e
de identidade. Dessa forma, o enfrentamento dos riscos externos e internos à família requer
uma rede de apoio social e políticas públicas voltadas para amenizar o impacto das situações
de risco, além de capacitação para os profissionais que atendem estas famílias. Somente
promover a resiliência familiar sem atacar estes fenômenos sociais, seria um paradoxo, no
qual certamente se estaria promovendo uma adaptação da família a um modelo dominante de
sociedade desigual e injusta.
102
SEÇÃO III - Empírico
Fatores de risco e mecanismos de proteção nas narrativas das famílias em situação de
violência conjugal.
Resumo
Estudar as interações familiares a fim de se conhecer as competências e
potencialidades humanas que ficaram postergadas por pesquisas tradicionais tornou-se um
desafio. Portanto, tomando como referência a noção de resiliência em famílias como um
processo interativo e dinâmico, numa abordagem ecológica das relações humanas, este artigo
está voltado para a identificação dos processos de resiliência em famílias com história de
violência conjugal, através das narrativas familiares sobre os fatores de risco e os mecanismos
de proteção. O entendimento destes processos violentos não se deu a partir de uma ótica da
doença ou de uma falha familiar, mas como um fenômeno muito maior que se constitui e se
mantém na sociedade. Para tanto, utilizando-se da técnica da narrativa, estes processos foram
investigados através do estudo de dois casos de famílias com histórias de violência conjugal,
que foram compreendidos a partir do significado atribuído nas narrativas familiares à
violência. Foram identificadas tanto as crenças familiares, os padrões organizacionais e as
formas de comunicação em relação aos eventos violentos, como os mecanismos de proteção e
as situações de risco nas famílias nos diferentes contextos. Os fatores de proteção não se
apresentaram da mesma forma para cada família, embora se mostrassem semelhantes tinham
um sentido diferente, pois cada família manteve suas próprias características de identidade
diante da violência respondendo a sua maneira e de acordo com seus valores e crenças
familiares. Conclui-se que a presença dos mecanismos de proteção foi fundamental para a
construção dos processos de resiliência para as famílias da pesquisa.
Palavras-chave: família; resiliência familiar; violência conjugal; fatores de proteção e risco.
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Abstract
To study family interactions in order to know the human competences and
potentialities that have been postponed by traditional research has become. This way, taking
as a reference the notion of resilience in families as an interactive and dynamic process in an
ecological frame of human relations, this article aims to identify resilient processes in families
with a history of violence. The comprehension of these processes were not based on an
illness approach or as a family´s fault, but on a bigger phenomenon constituted and
maintained by society. Thus, using the narrative technique, the processes were investigated
through the study of two families with a history of violence, which were understood from the
meaning attributed in the narratives to violence. Family beliefs, organizational patterns and
communication style in relation to violent events, and protection mechanisms and risk
situations in the families in different contexts were identified. Among the risk factors
associated with vulnerability there were beliefs about women`s role as family keeper,
passivity when facing the husband and the function of the main educator and protector of the
children. Masculine characteristics are originated from a relational model experienced in both
families and perpetuated through multigenerational heritage. Protection factors were not
presented in the same way for each family, although different they weighted differently. As a
conclusion, we cannot generalize and categorize families in rigid models of resilience; on the
contrary, each family sustained its own identity characteristics when facing violence,
answering it their own way, following their family values and beliefs.
Key-words: family; family resilience; couple violence; risk and protective factors.
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As pesquisas baseadas no construto da resiliência familiar ainda são pouco exploradas
(Hawley & DeHann, 1996; Yunes, 2003), sendo escassos os estudos que investigam o sistema
familiar na promoção dos processos de resiliência individual. A maioria dos trabalhos está
centrada no clima emocional ou na dinâmica de famílias disfuncionais, portanto, baseada no
paradigma do déficit (Lietz, 2006). Segundo Ravazzola (2005) o desafio atual é estudar as
interações familiares para se conhecer as competências e potencialidades humanas que
ficaram postergadas pelas tradicionais pesquisas e tinham foco nos déficits familiares e nas
funções maternas e paternas. Portanto, o enfoque da resiliência em famílias volta-se para os
aspectos sadios e de sucesso da família, numa visão mais positiva das motivações e das
capacidades humanas. A partir deste enfoque, a resiliência em famílias passa a ser
compreendida como um conjunto de características baseadas na capacidade da família em ter
um funcionamento flexível e de contenção dos problemas, não deixando outros domínios do
funcionamento familiar interferir no funcionamento de seus membros (Gonçalves, 2003).
Neste sentido, a ênfase nos processos de enfrentamento, de adaptação e coping na família
como uma unidade funcional ampliam o foco da perspectiva individual para o processo
interacional familiar como cerne da resiliência. Esta, portanto, não se caracterizaria pela
configuração familiar e, sim, pela forma como os processos internos e externos à família
interagem para o seu funcionamento saudável e de resiliência (Hawley & DeHann, 1996;
Walsh, 1998/2005; Yunes, 2003).
As pesquisas sobre resiliência têm abordado diferentes situações de estresse no
desenvolvimento humano, como traumas, violência, doenças e perdas (Cecconello, 2003;
Dalbem & Dell’Aglio, 2007; Daniel, 2006; De Antoni, 2005; Garcia & Yunes, 2006; Hawley
& DeHann, 1996; Lietz, 2006; Siqueira & Dell’ Aglio 2008; Walsh, 1998/2005; Yunes, 2001;
Yunes, Mendes, & Albuquerque, 2004/2007). Para Walsh (1998/2005), a resiliência em
famílias é tecida por uma rede de relacionamentos e experiências que vão se desenrolando
durantes os ciclos de vida e entre as gerações, considerando a resiliência como resultado de
diferentes relações interpessoais nos diversos contextos sociais e ao longo do tempo. Neste
sentido, Walsh (2005) desenvolveu uma abordagem compreensiva da resiliência familiar a
partir de uma ótica sistêmica e ecológica do desenvolvimento, “o contexto relacional da
resiliência dentro de uma ótica sistêmica expande a nossa visão da adaptação individual para
processos transacionais mais amplos nos sistemas familiar e social e trata da mutualidade das
influências através destes processos (p.11)”. A autora considera que alguns processos-chave
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no funcionamento familiar são fundamentais para a promoção de resiliência. Estes seriam
baseados em três domínios familiares que incluem o sistema de crenças da família, os
padrões organizacionais e os processos de comunicação.
Os sistemas de crenças estão na base do funcionamento familiar. As principais crenças
associadas à resiliência incluem a capacidade familiar de atribuir sentido à adversidade, a
perspectiva positiva no enfrentamento das crises e a transcendência e espiritualidade. Outro
domínio são os padrões organizacionais considerados amortecedores dos choques familiares,
incluindo flexibilidade para mudanças e reorganização, conexão e apoio mútuo entre os
membros e os recursos sociais e econômicos. Finalmente, os processos de comunicação
familiar que se caracterizam por clareza nas mensagens, expressão emocional aberta, empatia
nas relações e resolução colaborativa dos problemas, focalizando nos objetivos a serem
alcançados.
Tomando como referência a noção de resiliência em famílias como um
conjunto de processos interativos e dinâmicos, em uma abordagem ecológica das relações
humanas (Bronfenbrenner, 1979/2002), este artigo está voltado para a identificação dos
processos de resiliência em famílias com história de violência conjugal através da técnica da
narrativa. Os fatores de proteção e de risco foram investigados e compreendidos a partir do
significado atribuído nas narrativas familiares à violência. As famílias procuraram ajuda na
Delegacia para a mulher e realizaram psicoterapia. Dessa forma, foram identificadas tanto as
crenças familiares, os padrões organizacionais e as formas de comunicação em relação aos
eventos violentos (Walsh, 2005), como os mecanismos de proteção e as situações de risco nas
famílias nos diferentes contextos bioecológicos. Além disto, estes elementos de análise foram
contextualizados numa compreensão ecológica das relações familiares, ambientais e
individuais, segundo o modelo ecológico proposto por Bronfenbrenner (1979/2002). Este
referencial procura integrar aspectos do indivíduo e do ambiente associados com o fenômeno
a ser investigado, portanto, se constitui em uma abordagem que possibilita a compreensão do
desenvolvimento em situações atípicas, privilegiando aspectos de resiliência, vulnerabilidade,
risco e proteção. A perspectiva ecológica leva em conta as múltiplas influências do ambiente
sobre o desenvolvimento do indivíduo durante seu tempo de vida. Considera que a interação
com o meio ambiente o transforma, possibilitando-lhe novas respostas adaptativas aos
contextos sociais. A teoria privilegia a compreensão do desenvolvimento humano no
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contexto, levando em conta os aspectos relativos à pessoa (características físicas, biológicas e
emocionais), ao processo (como a experiência é vivenciada) e o tempo (meio-ambiente).
O contexto é analisado através de quatro sistemas que se interconectam: a) Microssistema: é
um padrão de atividade, papéis e relações interpessoais, num ambiente específico (família); b)
Mesossistema: inclui as inter-relações entre dois ou mais ambientes no qual a pessoa em
desenvolvimento participa ativamente (escola, amigos, trabalho e vida social); c)
Exossistema: refere-se a um ou mais ambientes que não envolve a pessoa em
desenvolvimento como um participante ativo (trabalho dos pais, amigos dos pais); e d)
Macrossistema: compreender a cultura, crenças e ideologias (Bronfenbrenner, 1979/2002).
Método
Delineamento
Neste estudo, utilizou-se a abordagem descritiva qualitativa baseada no modelo
narrativo (Murray, 2004; Walsh, 2005; White & Epston 1990). O método qualitativo baseado
na abordagem da narrativa permite a compreensão dos significados específicos de construção
e constituição da realidade (Bruner, 1991), identificando como as pessoas dão sentido às suas
experiências a partir de referência pessoais, familiares, sociais, culturais e incluindo também
os aspectos transgeracionais. O modelo sistêmico interacional através da abordagem da
Terapia Narrativa de Michael White e David Epston (1990) foi utilizado para conhecer e
compreender as distintas significações de crenças e valores dos dois casos de famílias
atendidas na pesquisa. Especificamente, no campo da terapia familiar a técnica da narrativa
tem sido utilizada como parâmetro terapêutico (Walsh, 2005; White & Epston, 1990) e
também investigativo (Rober, Eesbeek & Elliot, 2006).
Participantes
A partir do contato estabelecido na Delegacia para a Mulher, foram escolhidas duas
famílias com configuração monoparental que correspondiam aos critérios adotados para a
seleção, os quais foram, a faixa etária dos filhos de até 12 anos, a situação familiar de
violência conjugal e finalmente os aceites na participação do processo terapêutico. A primeira
família foi Lílian (mãe-29 anos) e Beatriz (filha-9 anos). A segunda família foi constituída da
mãe, Rosângela (28 anos) e filhos, Rodolfo (11), Elvis (10) e Elisa (6). Foram realizadas seis
sessões psicoterapêuticas com a primeira família e sete sessões com a segunda. Os dois casos
eram de mulheres que haviam solicitado atendimento para tratar de questões relativas às
agressões do cônjuge e encontravam-se em processo de separação conjugal em função da
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violência vivenciada. Os procedimentos de entrevista com finalidade de pesquisa com as
famílias estudadas estavam de acordo com as resoluções 196 do Conselho Nacional de saúde
e a 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia, bem como da aprovação pelo Comitê de
Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) comunicação número 14.
Análises de dados
As entrevistas (ao todo 13) com as famílias a partir do modelo de psicoterapia se
focalizaram nas narrativas das famílias quanto ao funcionamento familiar, a situação de
violência e os processos relacionais de seus membros nos contextos de vida, bem como a
história de vida familiar e o relacionamento familiar. Após a transcrição do relato das
entrevistas foi realizada a análise das narrativas familiares através do roteiro interpretativo de
Flick (2004). Este roteiro organiza-se em etapas de análise que incluem a obtenção da
narrativa, a exposição do texto como unidade, a subdivisão do texto em unidades
experimentais ou função-chave, a análise lingüística interpretativa de cada unidade,
desdobramento em série, interpretação dos significados e desenvolvimento de interpretações
funcionais do texto. Finalmente, as últimas etapas compreendem a compreensão do texto em
sua totalidade e a exposição das múltiplas interpretações (Flick, 2004). Para a interpretação
funcional do texto foram utilizados os processos de resiliência em famílias de Walsh
(1998/2005) na compreensão dos processos individuais, relacionais e os recursos disponíveis
e a interpretação subjetiva que cada família atribui aos eventos adversos e o reflexo deles em
suas vidas. Estes elementos de análise foram contextualizados numa compreensão ecológica
das relações familiares, ambientais e individuais, conforme modelo ecológico proposto por
Bronfenbrenner (1979/2002).
Resultados
A partir da análise dos domínios de Walsh nas trajetórias de Lílian (Caso 1) e
Rosângela (Caso 2)
os nomes são fictícios- foram identificados nas entrevistas os fatores de
proteção e de risco nas narrativas familiares, conforme os diferentes sistemas ecológicos, (eu
ecológico), microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema.
Família 1 - Lílian
A primeira família pesquisada foi a de Lílian (29) e Beatriz (9). O primeiro contato
com Lílian se deu na própria Delegacia, durante a triagem das famílias para a pesquisa. Lílian
estava na Delegacia fazendo uma ocorrência contra o sogro por ameaça de agressão física.
Este episódio estava relacionado ao fato de Lílian ter encaminhado ao judiciário queixa
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quanto ao não pagamento da pensão alimentícia da filha, o que resultou na prisão do ex-
marido. A represália da família de origem do ex-marido era resultado desta ação que causou
impacto e gerou mudanças na organização dos eventos de vida de Lílian e Beatriz, até então
sob o controle autoritário desta família. Isto porque Lílian ainda morava nos fundos da casa
dos sogros, apesar da separação conjugal ter completado três anos. Entretanto, o processo
judicial de separação ainda estava tramitando na justiça, impedindo a resolução da questão da
moradia e da divisão dos bens do casal.
Sistema de Crenças da família
Fatores de proteção e risco
Eu Ecológico/proteção: Gradualmente, Lílian reconheceu a violência e esta experiência
ensinou-a a atribuir sentido à vida de forma a fazer novas escolhas, além de promover a
responsabilidade e a lealdade com a filha, “que a vida é uma escola e eu aprendi muito, claro
que não foi na base do amor, foi na base digamos assim, da pancada mesmo que eu
amadureci”. Gradualmente reconheceu o impacto da violência, “minha mãe sempre falava,
que “a gente é o espelho dos filhos da gente” e se a minha filha crescesse vendo o pai dela
sempre me agredindo, qual era o futuro da minha filha, eu pensava”. “Então foi esse tipo de
vida que eu não quis pra mim,... eu também não quero para minha filha, como eu vou mostrar
tudo de bom para ela, se eu vivo num relacionamento onde meu marido me espanca dia e
noite... ou eu me amava, ou não me amava”. Isto melhora seu senso de coerência e propósito
de vida, além de aumentar sua responsabilidade no cuidado com a filha. Identifica também a
religiosidade e fé, Quando eu comecei a freqüentar a igreja, eu fui procurar uma coisa assim, que
me preenchia sabe, aquele vazio que eu tava sentindo”.
Fatores de risco: Lílian durante o convívio com o marido mostrava-se submissa e passiva
diante da violência a qual era submetida e não via as necessidades da filha. “Só que eu era
muito imatura, acho que era muito burra naquela época, sabe”. “Tudo eu aceitava, tudo eu
dizia sim, tudo eu dizia amém, pra mim tudo estava bom, eu não sabia qual era as minhas
vontades, as minhas opiniões”. Não enxergar o sofrimento da filha e o que a violência
causava para ambas permitiu que o processo se mantivesse por mais tempo. “Eu te confesso
que naquele momento, eu não falava nada para ela, porque eu só pensava em mim... minha
vida era só chorar... e nesse momento eu não enxergava nada, só eu... só depois eu percebi
que ela precisava de ajuda”.
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Microssistema Família/proteção: O apoio da irmã e do pai foi um fator de proteção muito
relevante para a saída da história de violência, promovendo uma estabilidade emocional tanto
para Lílian quanto para Beatriz. O afeto é um sentimento transgeracional nesta família e que
permite transcender a dor, “Irmã assim que só no olhar já sente o que a outra está pensando...
Se ela me olha ela sabe se eu estou bem ou se estou mal e foi ela que me ajudou bastante”.
Fatores de risco: O modelo interacional da família do ex-marido baseado em crenças que
favorecem o aparecimento e perpetuação da violência, por exemplo, o lugar da mulher na
relação, passiva, inferior ao homem, o qual é detentor do controle e autoridade sobre a esposa
e filhos, “ele vinha e pedia perdão e dizia que não ia mais fazer, que sabia que estava errado,
mas era uma coisa que ele não conseguia controlar e quando via estava me agredindo de
novo”. Houve comentários de pessoas de fora da família de origem de Lílian e da própria ex-
sogra de que ela não soubera segurar o marido, exemplificando as crenças sociais sobre a
responsabilidade, regras e papéis da mulher na manutenção do casamento.
Macrossistema/proteção: A valorização da instituição familiar está relacionada às crenças, a
cultura e aos valores da família de origem de Lílian de não aceitar a violência: “os pais são
como espelho para os filhos; aprendi que por mais que doa tem que dizer a verdade; se
minha mãe estivesse viva, ela veria isso e ela não teria nada de orgulho de mim”.
Padrão de organização
Fatores de proteção e risco
Eu ecológico/proteção: Lílian encoraja e acolhe os sentimentos da filha e reconhece seus
méritos, demonstrando uma capacidade de conexão com a menina. “Consolar ela, acalmar e
dizer que eu estava ali do lado dela, que não precisava ter medo de nada”. Fatores de risco:
Mãe e filha se sentem rejeitadas e abandonadas e não recebem apoio da família do ex-marido.
“Eu tenho a impressão às vezes, que eles querem me ver lá no fundo do poço, me arrastando,
é isso que eu penso”. Dessa forma os eventos estressores assumiram uma dimensão maior e
geraram insegurança e perda da autonomia por parte de Lílian e muita ansiedade em Beatriz
na escola, “ ela está ansiosa e preocupada, porque se a professora perguntar e ela não
souber, Deus me livre”.
Microssistema familiar/proteção: A coesão da família de origem e o compartilhar dos
problemas mostraram-se grandes suportes para Lílian e Beatriz conseguirem enfrentar as
dificuldades. “Meus irmãos todos me apóiam, já saí de sacola de roupa, sempre me
ampararam, sempre disseram que era pra eu largar essa vida. O meu pai e minha mãe já
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morreram, mas não era esse tipo de vida que eles queriam para mim”. Fatores de risco: Na
família do marido, porém, não há respeito pelas diferenças e as regras são rígidas, punitivas e
coercitivas. Durante o casamento e após a separação a família de origem do ex-marido
continuou a exercer influência dominadora e manipulativa sobre Lílian e Alan, indicando
dificuldades com limites e fronteiras do casal e gerando um problema no processo de
separação/individuação. O marido se envolveu com uma menina de treze anos que
engravidou, o que denota um padrão familiar de promiscuidade sem compromisso com
vínculo afetivo em que as mulheres são desvalorizadas e exploradas sexualmente como
objetos de prazer descartável.
Mesossistema e Exossistema/proteção: O apoio da escola e da igreja, que desempenharam
um papel reforçador da necessidade de buscar outros propósitos e sentido para a vida, a escola
apontando o sofrimento da Beatriz bem como seu potencial e capacidade de se manter bem na
escola, a igreja possibilitando sua re-conexão com a fé foram fatores positivos para a saída da
violência. A terapia também proporcionou reflexão e reconhecimento de suas habilidades,
capacidades e valores, bem como seus direitos como cidadã. A Delegacia para a Mulher
também promoveu suporte judicial e emocional ao propiciar a denúncia da violência e
garantias quanto a sua segurança. Fatores de risco: Lílian não confia no judiciário para ajudá-
la a resolver seus problemas, pois este se mostra lento e pouco resolutivo. Já se passaram três
anos da separação e sua situação continua a mesma, ou seja, morando no mesmo pátio que os
sogros e tendo que engolir desaforos e ofensas, além da ausência de apoio financeiro. “É
como minha irmã disse, esse filme de terror tem que acabar e eu penso assim, sozinha no
mundo e muita cobra , sabe, vivendo com o inimigo”.
Macrossistema/fatores de risco: A estrutura da sociedade patriarcal que tolera e facilita a
violência do homem contra a mulher bem como aos sistemas econômicos, culturais e políticos
que conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos perpetuam a violência.
Processos de comunicação
Fatores de proteção e risco
Eu ecológico/proteção: A resolução dos problemas, a comunicação clara e a expressão
emocional aberta na relação entre mãe e filha têm facilitado e promovido a recuperação da
auto-estima e autoconfiança de ambas. “Eu não preciso disso, eu tenho que me dar valor,
como eu vou ficar com um homem que não me dá valor. Eu não tinha mais valor na
sociedade, minhas irmãs, minhas amigas, porque todo mundo sabia o que ele fazia”. Lílian
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também se mostrou empática para com as necessidades emocionais da filha. Fatores de risco:
Durante o casamento, Lílian não conversava com a filha porque não via o alcance da
violência para a menina, “É que na época do conflito eu não enxergava nada e o que tava em
volta de mim era a Beatriz, e eu não prestava atenção nela antes”.
Microssistema familiar/proteção: A amizade e comunicação aberta entre os membros da
família, sem vergonha de expor sua situação e seus sentimentos, geraram confiança e um
sentimento de não ser sozinha no mundo (proteção) e também perceber como ela e a filha são
importantes para a família. É possível se identificar que a empatia é um modelo relacional
entre as mulheres da família, que facilita a organização e a manutenção dos relacionamentos
baseados na confiança, proteção e afeto positivo. “Irmã assim que só no olhar já sente o que
a outra está pensando, se ela me olha já sabe se eu estou bem ou mal e foi ela que me ajudou
bastante, ela é uma pessoa muito importante na minha vida”. Fatores de risco: Na relação
de Lílian com a família de origem do ex-marido a comunicação é distorcida e ela não é ouvida
em suas necessidades nem da filha e acaba guardando suas angústias e se sentindo acuada. Há
pobreza no compartilhamento das emoções e a comunicação não é aberta a negociações na
relação do casal. “porque ele não pode conversar comigo?”. Lílian se queixa que a sogra é
sua intermediária junto ao ex-marido, “ela é quem fala por mim, e não eu, isso me incomoda
muito”. Observa-se que a família do ex-marido funciona de forma a dificultar as coisas para
ela, mantendo um controle coercitivo e vingativo. Eles não aceitam o fato dela ter deixado o
filho e ainda tê-lo denunciado à polícia, gerando sua prisão.
Família 2 Rosângela
A segunda família pesquisada foi de Rosângela (28) e seus três filhos, Rodolfo (11),
Elvis (10) e Elisa (6). Meu primeiro contato com ela foi por telefone, sendo que a psicóloga
da Delegacia intermediou o encaminhamento. Rosângela estava vivendo sob forte impacto
emocional, pois a separação do marido Hamilton (35) era recente e ele a ameaçava de morte.
O marido tinha sido preso em flagrante pela polícia que fora acionada pela vizinha que
denunciara o espancamento que Rosângela estava sendo vítima. A ação da polícia promoveu
segurança e proteção necessária para que Rosângela pudesse se separar do marido. Ela e os
filhos moravam em uma casa de aluguel e permaneceram ali após a separação. Rosângela
estava procurando emprego e contava com a ajuda de seu pai para as despesas da casa. A
sogra e os cunhados, com exceção de uma cunhada, estavam todos contra ela e não
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acreditavam na história de violência. Portanto, Rosângela não contava com apoio da família
do ex-marido.
Sistema de Crenças da Família
Fatores de proteção e risco
Eu Ecológico/proteção: Atribuir significado a sua vida como alguém capaz de cuidar e amar
os filhos é seu grande protetor diante das adversidades e sofrimentos, “eles são a minha
família, são tudo para mim e eu vivo por eles e por mim, tanto que eu suportei tudo por eles”.
Demonstrou perseverança, coragem e enfrentamento dos desafios, “eu quero ser feliz de
novo, eu queria que as crianças entrassem em casa sem medo, sem pensar que o pai vai
chegar, poder ligar o rádio e ouvir música, jogar vídeo game, olhar o que eles querem sem
ter que está cuidando, todo mundo tenso”. A religiosidade e misticismo são importantes para
Rosangela, “Eu quero ter a minha loja com produtos esotéricos, porque eu não consigo me vê
sem”. Consegue dar sentido à adversidade, o que não nos mata nos torna mais forte, eu
fiquei muito forte, tanto que ele não acreditava que eu tinha registrado e que iria depor
contra ele e eu fui forte pra fazer... mesmo com medo eu fui lá e registrei”. Fatores de risco:
A história pessoal de Rosângela indica que o relacionamento conjugal foi motivado por uma
tentativa de sair de uma situação problemática, tanto a nível financeiro como emocional e
familiar. Rosangela inicia um relacionamento com uma posição de dependência e imaturidade
que vai se refletir ao longo dos anos que se manteve casada. Esta dependência emocional e a
violência, somente são encaradas e enfrentadas após a denuncia da vizinha. Durante o
casamento, o senso de coerência de Rosângela estava alienado e paralisado, e ela não tinha
controle sobre os eventos estressantes como a violência vivenciada no casamento. O medo lhe
limitava emocionalmente para cuidar de si mesma, “me limita, me limitava a não comer, a
cuidar dos filhos, tomar um banho”.
Microssistema Familiar/proteção: Quando os filhos de Rosângela tentavam protegê-la do
ataque do pai demonstravam uma grande lealdade para com ela e isto lhe confirmava como
importante para eles e merecedora de seu amor, mantendo sua auto-estima e sua esperança na
superação das dificuldades. “A mãe não queria ver vocês chorando, a Elisa via o pai me
bater, começava a chorar e querer secar as minhas lágrimas e ficar cuidando de mim, o
Rodolfo ficava na dele e o Elvis me defendia. A mãe não queria que vocês vissem isso”.
Portanto, ela constrói sua história com os filhos tendo em sua base valores como o afeto e a
proteção, “sim, eu passo a eles, eu quero que eles sintam isso, entendeu? Eu não quero que
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eles me vejam como uma estranha, como o Hamilton (pai) via a própria mãe, como uma mãe
que nunca disse eu te amo e, nunca abraçou”. A decisão de rompimento de um modelo
relacional cerceador da autonomia, opressor e dominador da figura feminina causou
estranheza e revolta em ambas as famílias, o que confirma a força do modelo relacional e a
dificuldade de sair dele. “Ela disse: ah coitadinho - daí eu olhei pra ela e disse como assim
coitadinho, tia? Ela disse a gente fica meio assim, 14 anos ele como um sobrinho, bom ele
gostava de todas, atencioso”. Fatores de risco: Na família de origem do marido o modelo
relacional é de violência à mulher e na família de origem de Rosângela as mulheres casam
com homens opressores e violentos. “Todas as minhas tias são assim, eu tenho uma tia que
ela é casada e o marido fez e aconteceu, a tia é daquelas que casou é pra sempre”. Fecha-se
um círculo de violência que se perpetua nas gerações se confirmando como um modelo
transgeracional. “O pai dele bateu na mãe dele, e aprontava muito, traía direto e era casado e
tava ficando noivo de outra guria, teve que sair lá de Carazinho corrido”. Crenças de que o
casamento é solução para os problemas; o casal renuncia à felicidade pelos filhos, as mulheres
são cuidadoras da família e cedem ao marido.
Macrossistema/proteção: A valorização da instituição família no sistema familiar de origem
de Rosângela estava relacionada à proteção e afeto entre seus membros, embora em alguns
momentos tenham faltado proteção e apoio necessários, estes fatores voltaram a aparecer em
sua relação familiar e garantiram sua permanência fora da história de violência. “Tchau, te
amo e te cuida, isso tem muito assim na minha família, demonstração de carinho de afeto,
entende”? “A violência não faz parte da minha família”.
Padrão de organização
Fatores de proteção e risco
Eu Ecológico/proteção: Rosângela acolhe os sentimentos dos filhos, reconhece seus méritos,
os protege e orienta em um sentido positivo, e tem conseguido se reorganizar para trabalhar.
“Eu digo pra eles, a mãe precisa de vocês, tem que se comportar na tia que a mãe ta pagando
pra cuidar de vocês, a mãe não pode deixar vocês sozinhos em casa, a gente precisa se
ajudar, eu disse pra eles, a mãe precisa trabalhar”.
Microssistema Familiar/proteção: Rosângela consegue se reorganizar para trabalhar e
cuidar dos filhos, as crianças aceitam com tranqüilidade a nova forma familiar e se adaptam
rapidamente, para surpresa dos familiares. “Até o irmão dele falou, como pode as crianças
vão à casa da mãe e parece que não aconteceu nada, ta tudo normal”. O apoio do pai que a
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encorajou e lhe mostrou caminhos, “meu pai disse que eu tinha que fazer alguma coisa por
mim, se eu amo meus filhos, eu teria que fazer alguma coisa, ele dizia faz por ti que vai
refletir neles, arruma um emprego bom, trabalha, cuida dos teus filhos e cuida de ti, começa
a ouvir música, assistir o que tu gosta e ir cuidando de ti”. Fatores de risco: O isolamento
em que Rosângela vivia propiciava a manutenção da violência e a falta de autonomia e
flexibilidade na relação homem x mulher. Os limites no casamento eram rígidos, coercitivos e
punitivos. O marido não a deixava trabalhar e decidia sobre suas amizades, mantendo o
controle total sobre ela. Ao desafiar sua autoridade Rosângela enfrenta a vingança e o desejo
de retaliação de parte do ex-marido, como ameaças de morte e de perda da guarda dos filhos.
O agressor tenta considerá-la inapta e louca para cuidar e criar os filhos, “Eu vou tirar eles de
ti, faz o que eu digo senão eu vou te internar como louca, tu não vai tê-los”. O maior fator de
risco que gerou vulnerabilidade à Rosângela e favoreceu sua permanência na história de
violência foi a falta de apoio da sua família de origem, “me senti arrasada, não diria sem
apoio, eu me senti excluída, e eu fiquei sem alternativas e não tinha amiga e não tive cabeça
pra pensar em algum outro parente, eu não pensei nisso”.
Mesossistema e Exossistema/proteção: Rosângela permite a entrada de outras pessoas em
sua vida, como visinhos, terapeuta e judiciário e confia nesta ajuda. A denúncia da vizinha
chamando a polícia foi fundamental para fornecer à Rosângela uma alternativa para sair da
história de violência. Fatores de risco: Outro fator de proteção que estava pouco acessível a
ela era o fator social, pois o isolamento social, a falta de profissão/emprego e a dependência
financeira do marido a deixavam em uma situação passiva que gerava alienação.
Processos de Comunicação
Fatores de proteção e risco
Eu Ecológico/proteção: Mãe compartilha dos sentimentos com os filhos, tenta confortá-los,
protege-los com acolhimento e respeito. “Porque estavam brigando muito ela chorava muito
e eles também e ela não queria que eles chorassem mais”. Há apoio mútuo e tolerância
quanto às diferenças e dificuldades. “A Elisa secava as lágrimas da mãe e o Elvis a defendia
do pai e o Rodolfo ficava na dele”. A mãe é empática com os filhos e a comunicação é aberta
e clara, “eu queria que as crianças entrassem em casa sem medo, sem pensar que o pai vai
chegar e poder ligar o rádio e ouvir música, jogar vídeo game e olhar o que eles querem sem
ter que está cuidando, todo mundo tenso”. Quando ela verbaliza seu desejo de trabalhar e
desafia o marido ao não aceitar suas regras, demonstra sua coragem. “Tanto que naquele dia
115
que ele rasgou os currículos e disse: tu não vais, eu pensei, eu vou sim e fui, quando voltei ele
me deu soco e me bateu, eu disse agora chega eu vou trabalhar”.
Microssistema familiar/proteção: Rosângela e os filhos têm conseguido resolver o conflito
da separação, a mãe transmite segurança para os filhos que unidos se reorganizara
emocionalmente, “eu acredito que é porque eu to sempre com eles, eu só trabalho e to com
eles”. Portanto, pode-se dizer que a confiança na relação mãe e filhos é um grande protetor.
Rosângela tem compartilhado com seu pai as dificuldades e resgatou a amizade com sua avó,
dessa forma a comunicação está mais aberta e clara. Portanto, a família ressurge quando ela
precisa com isso resgata o que faltou no passado. Fatores de risco: A comunicação no casal é
distorcida e marcada por mentiras e omissões por parte do marido, que passa dias fora de casa
em noitadas de boemia e vários envolvimentos extraconjugal, não respeitando a esposa e tão
pouco os filhos, demonstrando com isso pouco envolvimento afetivo e emocional com a
família. “Porque sempre depois que ele me batia, ele fazia o que fazia, ele ficava dentro de
casa uns quantos dias, ele não saia, daí saía o roxo eu ficava melhor e não dava pra fazer o
exame de corpo delito”.
Síntese dos processos de resiliência familiar e de risco e vulnerabilidade nos contextos
ecológicos das famílias da pesquisa.
A partir da análise dos domínios de Walsh nas trajetórias de Lílian (Caso 1) e
Rosângela (Caso 2) foram identificados os diferentes sistemas ecológicos. Destacaram-se as
situações imediatas (eu ecológico), seguidas de outros aspectos correspondentes aos níveis do
microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema, possibilitando uma interpretação
ampla dos indicativos que foram considerados relevantes tanto para a saída da história de
violência quanto para potencializá-la.
Na tabela 12, são apresentados os processos de resiliência para ambas as famílias da
pesquisa e na tabela 13, os fatores de risco. Em seguida os resultados são analisados em
relação aos objetivos específicos da pesquisa, fornecendo as considerações finais sobre os
mesmos.
Tabela 12
Processos de resiliência no contexto ecológico das famílias da pesquisa:
Sistema de crenças
Eu Ecológico Micro Meso/Exo Macro
Enfrentamento dos desafios. Vínculos afetivos na Valorização da
116
Cuidado e proteção aos
filhos.
Sentido de vida, maternagem
e religiosidade.
Sentido à adversidade.
Referencial interno de
valores.
Potencial cognitivo e
temperamento.
família de origem.
Compartilhamento dos
problemas.
Papel dos pais.
instituição família
Culturalmente a
sociedade não
aceita a violência.
Padrão de Organização
Capacidade de acolher os
filhos.
Orientação positiva.
Reorganização pessoal.
Adaptação dos filhos a
mudanças.
Apoio familiar,
emocional, financeiro e
reconhecimento da
violência.
Coesão da família de
origem.
Apoio de
vizinhos,
Escola, Igreja,
Terapia,
Polícia,
Delegacia.
Ação do
judiciário.
Processos de Comunicação
Compartilhamento dos
sentimentos. Tolerância das
diferenças e dificuldades.
Comunicação clara e
expressão emocional aberta.
Amizade e
comunicação aberta na
família.
Empatia nas relações
familiares.
Acesso aos
serviços.
Acolhimento
por parte dos
profissionais.
Conscientização
cultural de valores
de proteção à
mulher.
(Adaptado de Koller e De Antoni, 2004)
Através das narrativas, foi possível se identificar os processos-chave de resiliência, os
mecanismos de proteção e as situações de risco nas famílias nos diferentes contextos. Ao
nível do Eu Ecológico, no Sistema de Crenças da família, observa-se que a perseverança e a
coragem no enfrentamento dos desafios foram um grande protetor individual, promovendo a
auto-estima das mulheres, pois se viram capazes de lutar por elas mesmas e pelos filhos.
Outro aspecto protetor estava ligado à construção da maternagem como sentido de vida, onde
117
o cuidado e a proteção aos filhos foram os valores afiliativos de maior sustentação emocional
destas mulheres dentro da história de violência e sofrimento (Beavers & Hampson,
1990/1993).
Atribuir sentido à adversidade, através da crença de que o sofrimento auxilia a pessoa
a se fortalecer, favoreceu o reconhecimento do alcance da violência e a discriminação da
situação que estavam vivendo e promoveu ações para a saída da história de violência. Desta
forma, voltar a fazer escolhas segundo seu referencial interno de valores favoreceu a busca
por apoio e suporte. Outros aspectos de caráter individual, que promoveram a saúde mental e
diminuíram o impacto da violência para os membros da família foram a força e o potencial
dos aspectos cognitivos e de temperamento. A religião se mostrou um protetor importante
para as famílias, promovendo a fé, esperança e otimismo na superação dos problemas.
Ao nível da Microssistema Familiar, os fatores de proteção foram a responsabilidade
dos pais e lealdade dos filhos, considerados verdadeiros legados multigeracionais, que guiam
seus membros no decorrer do ciclo de vida (Boszormenyi-Nagy, 1987). Outro fator também
muito importante que promoveu a saída da história de violência estava relacionado à
afetividade nos vínculos familiares, que acompanhava as famílias através de várias gerações
mostrando-se um modelo do sistema de crenças da família voltado para a proteção, união e
afeto entre seus membros. Este modelo favoreceu o compartilhamento das dificuldades e
confirmaram os pais como os principais formadores da personalidade dos filhos (os pais são
espelhos para os filhos). No Macrossistema, se observa que a sociedade valoriza a instituição
familiar e que culturalmente não aceita a violência.
No domínio, Padrão de Organização, ao nível do Eu ecológico, é possível se observar
que as mães foram melhorando a percepção sobre seus filhos e com isso se tornando mais
acolhedoras. O enfrentamento dos problemas favoreceu uma orientação positiva frente à vida
e conseqüente reorganização emocional para trabalhar e cuidar dos filhos. No Microssistema
familiar, observa-se o apoio e a colaboração entre mãe e filhos no enfrentamento dos
problemas que facilitou a adaptação a nova forma familiar. Na família de origem o apoio e
suporte emocional e financeiro, promoveram a coesão da família, bem como o
reconhecimento da violência como prejudicial. No Mesossistema e Exossistema, verificou-se
a importância do suporte social na promoção de novas respostas à violência conjugal, entre
elas está o apoio dos vizinhos, escola, igreja, terapia, Delegacia para a Mulher, polícia e ação
do judiciário.
118
No domínio, Processos de comunicação, no Eu Ecológico, se observa que além do
compartilhamento dos sentimentos entre a mãe e os filhos, há acolhimento e proteção. A
empatia da mãe para com os filhos favoreceu a tolerância em relação às diferenças. Ao
transmitir segurança para os filhos, as mães favoreceram a comunicação entre eles, a
reorganização emocional e a resolução do conflito da separação. No Microssistema Familiar,
observa-se a importância da relação de amizade entre os membros da família, em especial, a
família de origem que funciona como um suporte no enfrentamento dos problemas. Outro
fator importante que também promoveu a saída da história de violência foi a empatia nas
relações familiares, como no caso de Lílian, em que o relacionamento entre as irmãs era muito
protetor. No Mesossistema e Exossistema, acesso aos serviços de ajuda e acolhimento por
parte dos profissionais, se tornaram possíveis a partir da criação da Delegacia para Mulher.
No Macrossistema, conscientização cultural de valores de proteção à mulher, a partir da
criação da Lei Maria da Penha.
Tabela 13
Fatores de risco e vulnerabilidade nos contextos ecológicos das famílias.
Sistema de crenças
Eu Ecológico Micro Meso/Exo Macro
Senso de coerência
alienado e paralisado,
sem controle sobre os
eventos.
Não enxergar o alcance
da violência.
Atitude de passividade e
medo.
Papel masculino - superior,
desvalia e controle da mulher,
negligência com filhos.
Papel feminino - cuidadora,
manutenção do casamento.
Violência como modelo
interacional.
Relações femininas com
homens opressores.
Casamento como solução
para os problemas. Segredos
familiares.
A sociedade não
aceita a
separação.
Padrão de organização
Distanciamento afetivo e
Regras rígidas e punitivas.
Marido - poder, impede
Isolamento
social.
A estrutura da
sociedade
119
abandono na relação do
homem com a mulher e
filhos.
entrada de pessoas no sistema
familiar, padrão de
promiscuidade. Pouca
diferenciação no sistema
conjugal.
Dependência
financeira.
Falta de apoio
da família do
marido.
patriarcal que
tolera e facilita a
violência.
Processos de Comunicação
Falta de diálogo entre
mãe e filhos durante o
casamento sobre a
violência vivenciada.
Marido: Sem tolerância e
respeito à esposa.
Casal: sem partilhar as
emoções, mentiras e
omissões. Interferência de
terceiros.
(Adaptado de Koller e De Antoni, 2004)
Em relação aos fatores de risco e vulnerabilidade, observa-se que fazendo um paralelo
entre as histórias das duas famílias, identifica-se que o Sistema de crenças familiares que
mantém as histórias de violência no Microssistema familiar é extremamente semelhante nos
dois casos. Pode-se citar o papel da mulher como mantenedora da família, passiva diante do
marido e a função de principal educadora e protetora dos filhos. Os homens são dominadores
e opressores, não valorizando a esposa e demonstrando pouco envolvimento emocional. Estas
características masculinas são oriundas de um modelo relacional de violência à mulher
vivenciado em suas famílias de origem e perpetuado através da herança transgeracional. Ao
nível do Eu Ecológico, ambas as mulheres apresentaram um senso de coerência interno
paralisado e alienado frente à violência vivenciada, limitando suas ações e tentativas de
mudança. Na Família de Lílian, a paralisação interna chegou a desenvolver um processo
emocional de cegueira da mãe frente às conseqüências da violência para a filha, que acabou
gerando depressão e ansiedade para ambas. Esta cegueira, provavelmente, foi alimentada em
função da manutenção do segredo na família de origem de Lílian.
No domínio Padrão de Organização, ao nível do Eu Ecológico, observa-se o
distanciamento afetivo e abandono na relação do homem com a mulher e filhos ao se envolver
em relacionamentos extraconjugais e em ficar dias fora de casa. Após a separação, o não
pagamento da pensão alimentícia. Ao nível do Microssistema familiar, as regras são rígidas,
coercitivas e punitivas e o homem mantém o poder e o controle sobre a família. Há uma
120
significativa pobreza na diferenciação dos parceiros no sistema conjugal, onde a falta de
respeito pelos limites geracionais e pelas fronteiras do casal levam a um padrão de
promiscuidade sem compromisso com vínculo e conseqüente desvalorização da mulher. Ao
nível do Mesossistema e Exossistema, verifica-se que alguns aspectos foram fundamentais
para gerar vulnerabilidade diante da violência como o isolamento social, a falta de profissão e
emprego, a dependência financeira do marido e a falta de apoio de alguns familiares. O
judiciário lento e pouco resolutivo também se caracterizou como um risco para estas famílias
no enfrentamento da violência conjugal. No Macrossistema é possível se observar que a
sociedade constrói padrões culturais que determinam a conduta da mulher na sociedade e que
em sua estrutura patriarcal tolera e facilita a violência do homem contra a mulher (Walker,
2006).
Finalmente, o último pilar de resiliência familiar destacado por Walsh refere-se ao
domínio Processos de Comunicação. Ao nível do Eu Ecológico, há falta de diálogo entre mãe
e filhos durante o casamento sobre a violência vivenciada, porque a mãe não via o alcance da
violência. Ao nível do Microssistema familiar, a relação conjugal se configurou pela pobreza
do compartilhamento afetivo e na comunicação caracterizada por mentiras e omissões. A
resolução de conflitos era alcançada através da violência, indicando a dificuldade de interação
e diálogo na construção de soluções. Somente com o enfrentamento da violência foi possível
um maior compartilhamento e honestidade nas trocas entre os familiares, permitindo
interações mais empáticas.
Considerações Finais
Nesta pesquisa foi possível se identificar que o processo de resiliência foi construído
tendo como fatores principais os aspectos marcantes da família como uma unidade funcional
frente à superação das dificuldades, em que habilidades e competências de seus membros
foram elementos muito valorizados por estas famílias e que favoreceram a saída da história de
violência. Um aspecto muito marcante na promoção do processo de resiliência para estas duas
famílias se relaciona a forma como as mães construíram suas histórias de afeto, cuidado e
proteção aos filhos. Esse fator de proteção familiar diminuiu os prejuízos da exposição à
violência para as crianças e também propiciou às mães se manterem mais inteiras
emocionalmente apesar do sofrimento, confirmando as pesquisas de Beavers e Hampson
(1990/1993), sobre o valor do cuidado e da proteção no desenvolvimento emocional dos
membros da família. Portanto, pode-se dizer que em geral, nos núcleos familiares a
121
manutenção de saúde mental e resiliência ocorrem quando pelo menos uma relação
significativa de proteção e afeto entre os membros se desenvolve como de mãe para com os
filhos, ou entre os irmãos.
No entanto, pode-se observar que os fatores de proteção não se apresentam da mesma
forma para cada família, de forma que não se pode generalizar e categorizar as famílias em
modelos estanques de resiliência, pelo contrário, cada família manteve suas próprias
características de identidade diante da violência respondendo a sua maneira e de acordo com
seus valores e crenças familiares. Alguns protetores embora se mostrassem semelhantes para
cada família tinham um peso diferente. Na família de Rosângela, os maiores fatores de
proteção estavam relacionados à construção do sentido de vida da mãe através da relação com
os filhos e suas características individuais de temperamento, além do fator social (vizinha e
polícia). Na família de Lílian, os fatores de proteção que tiveram maior impacto foram o apoio
da família de origem, em especial a amizade entre as irmãs e as características individuais,
como a religiosidade.
Comparando os resultados desta pesquisa com os achados de Yunes (2001) é possível
se identificar que as famílias que vivem tanto em situações de pobreza como em situações de
violência conjugal respondem ao risco de uma forma singular e têm em sua base uma
construção de valores e crenças que lhes possibilitam respostas positivas diante das
adversidades. Em relação à violência conjugal, Yunes, Mendes & Albuquerque, (2004/2007)
observaram em seus achados de pesquisa que a ausência da violência nas relações conjugais
proporcionou as melhorias e a reaproximação de outros familiares bem como o apoio destes e
a conseqüente melhora da situação financeira da família. No entanto, o risco em si não foi
totalmente excluído da história destas famílias, alguns fatores de risco continuaram a existir
no cotidiano. Na pesquisa atual, alguns riscos também continuaram a existir na história destas
duas famílias, como a dependência financeira, outrora do marido e agora da família de
origem. As atitudes opressoras dos ex-maridos, usando os filhos para agredir a ex-esposa
numa tentativa de colocá-las como inaptas para cuidar dos filhos. Portanto, apesar do risco
maior da violência conjugal direta ter sido excluído da vida familiar, após a separação, a
violência continuou se apresentando de uma forma indireta.
Concluindo, é necessário ampliar o olhar das redes sociais de suporte e amparo às
famílias em situação de violência conjugal, no sentido de buscar um entendimento destes
processos violentos não a partir de uma ótica da doença ou de uma falha familiar, mas como
122
um fenômeno muito maior que se constitui e se mantém na sociedade. Para tanto seria
necessário ampliar as redes de atendimento em saúde coletiva, através da capacitação de
agentes de saúde, aperfeiçoamento do policial e a criação de casas abrigo com oficinas que
favorecessem o ingresso das mulheres vítimas de violência conjugal ao mercado de trabalho.
Também uma conscientização maior da sociedade sobre a violência em geral, através de
campanhas publicitárias que circulariam na mídia de forma a construir junto à população uma
percepção mais coerente em relação aos tipos de violência que hoje fazem parte de um
processo social que se alimentam da impunidade em nosso país.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS DA DISSERTAÇÃO
Esta dissertação procurou identificar os processos de resiliência em famílias com
história de violência conjugal. Através da técnica da narrativa e dos sistemas ecológicos de
desenvolvimento humano, foi possível conhecer os fatores de risco e os mecanismos de
proteção nas trajetórias de vida das famílias pesquisadas frente à violência conjugal. A
inserção ecológica realizada nesta pesquisa ampliou a compreensão sobre a violência
conjugal, de forma, a não considerá-la somente como um processo transgeracional das
famílias, mas também como um fenômeno social que se constitui e se mantém na sociedade.
Portanto, buscar um entendimento destes processos violentos não a partir de uma ótica da
doença ou de uma falha familiar, mas como um fenômeno complexo, construído e mantido
socialmente com certeza nos leva a questionarmos e repensarmos as ações sociais e as
políticas públicas voltadas para o enfrentamento deste tipo de violência ( Belsky, 1980; Doise
& Papastamou, 1987; Bronfenbrenner, 1979/2002; Minayo, 1994).
Em relação ao método de pesquisa utilizado gostaria de tecer alguns comentários.
Desde o início, a proposta se mostrou desafiadora sob o ponto de vista científico, mas ao
mesmo tempo falou da trajetória clínica e profissional da pesquisadora que se viu inserida na
proposta de pesquisa. Portanto, poder-se-ia dizer, que os significados construídos na interação
com as famílias também refletiram novos significados para a realidade da pesquisadora, uma
vez que a postura adotada não foi neutra e sim de um observador-participante do processo de
mudança. A narrativa se mostrou como um instrumento válido na coleta de dados, pois as
crenças, as idéias e as práticas da cultura na qual vivemos têm uma grande importância com
relação aos significados que damos aos contextos nas quais as histórias de vida foram
123
formadas (Mcnamee & Gergen, 1998). Esta questão interacional permeia as relações dos
indivíduos possibilitando amplas e variadas respostas às situações vivenciadas, entre elas a
resiliência.
Conforme as famílias narravam sua história, também se apropriavam dela de uma
forma mais autônoma, atribuindo sentido às experiências de adversidade e sofrimento, vendo-
se capaz de transcendê-las e projetando-se para o futuro em busca de novos sentidos. A
técnica da abordagem da Terapia Narrativa (White & Epston, 1990/1998) permitiu que as
famílias saíssem de uma história dominante de descrições de vida, com os impedimentos
negativos que as acompanhavam, para experimentarem vidas com muitas histórias e
habilidades.
7.1 Pontos fortes e limitações do trabalho
Os pontos fortes desta pesquisa estão relacionados à importância de estudos que
busquem uma compreensão mais dinâmica, sem juízos e conceitos predeterminados sobre os
fenômenos relacionais, entre eles a violência conjugal. A utilização de uma abordagem
metodológica que busca conhecer os significados que cada família atribui aos eventos de suas
vidas sem uma preocupação, a priori, de definições de causas e efeitos, com certeza expande o
olhar clínico psicológico do pesquisador e dos achados empíricos da pesquisa. O atendimento
psicoterápico das famílias escolhidas forneceu uma quantidade de material clínico riquíssimo,
que possibilitou um conhecimento maior dos significados atribuídos aos eventos estressores,
como também conhecer os vários fatores que contribuíram para a construção de uma trajetória
de resiliência diante do risco. As pesquisas no âmbito da clínica psicológica fornecem um
material fidedigno com poucas possibilidades de distorções dos fatos narrados, portanto, a
interpretação dos dados se dá de forma transparente. A relação ética entre a família e o
psicólogo clínico que assume uma atividade de pesquisador, foi facilitada pelo vínculo
terapêutico que se estabeleceu naturalmente na clínica. Na pesquisa em questão, a interação
do psicólogo clínico não se deu de forma neutra, como na clínica tradicional. Através do
enfoque sistêmico utilizado pela psicóloga houve uma contribuição ativa para a construção
desse lugar de escuta e ajuda psicológica. Aqui o terapeuta também é a platéia que confirma a
autoria das histórias de vida do cliente.
Em relação às limitações do trabalho apontaria o pouco conhecimento sobre a inserção
ecológica, que embora tenha sido um desafio, trouxe dúvidas quanto a sua realização, no
entanto, o desejo de expandir a inserção do pesquisador no ambiente imediato de pesquisa e o
124
conhecimento adquirido a partir desta experiência foram motivadores para a tentativa de
realizá-la.
7.2 Aplicações da pesquisa desenvolvida
Geralmente, a implicação social de uma pesquisa possibilita aumentar as redes de
atendimento em saúde coletiva, tendo como objetivo melhorar e ampliar a promoção da
resiliência através da capacitação de agentes de saúde, aperfeiçoamento do policial e a criação
de casas abrigo com oficinas que favorecessem o ingresso das mulheres vítimas de violência
conjugal ao mercado de trabalho. Também seria importante uma conscientização maior da
sociedade sobre a violência em geral, através de campanhas publicitárias que circulassem na
mídia, de forma a construir junto à população uma percepção mais coerente em relação aos
tipos de violência, que hoje fazem parte de um processo social que se alimenta da impunidade
em nosso país.
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sobre resiliência. Revista Ciência, Cuidado e Saúde, 3, 12-15.
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130
Zimmermann, M. A., & Arunkumar, R. 1994. Resiliency research: implications for schools
and policy. Social Policy Report: Society for research in child Development, 8, 1-18.
9. ANEXO A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Gostaríamos de convidá-lo para participar de um trabalho de pesquisa que tem como
objetivo conhecer como as famílias se organizam para enfrentar situações de violência. Este
trabalho faz parte da pesquisa do Mestrado em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS) que tem como interesse compreender os aspectos positivos da família na
procura de solução de seus problemas. Estas informações serão obtidas através da análise das
sessões realizadas com os familiares. É importante destacar que a identidade das famílias e de
seus membros não será divulgada, além disso, sua participação é voluntária e você poderá
desistir a qualquer momento, sem prejuízo do trabalho. Portanto, não há nenhum risco
envolvendo os atendimentos e os resultados deste trabalho possibilitarão a melhoria do
atendimento das famílias nestas situações. Qualquer dúvida e esclarecimentos podem ser
obtidos através do contato com a Mestranda Marisol Seidl (99790980) e/ou a profa. Sílvia P.
C. Benetti (3591-1122 r: 1253).
Eu, _________________________________________________________________
(participante) fui informado (a) dos objetivos da pesquisa. Recebi as informações necessárias
e esclareci minhas dúvidas, fornecendo livremente o consentimento para a utilização dos
dados referentes aos atendimentos para fins de coleta de dados para a pesquisa. Declaro
também que recebi uma via do presente termo de consentimento.
São Leopoldo, ____ de __________ 2007.
__________________________________ __________________________________
Assinatura Participante Assinatura- Marisol Seidl
131
Anexo B
Fragmentos do relato da sessão inicial Caso Lílian-Beatriz
Relato da
narrativa
Unidades-chave Análise lingüístico-
interpretativa
Desdobramento dos
processos-chave de
resiliência familiar
L: Que o caso que
eu tava lá na
Delegacia, era um
caso de violência,
né... como eu te
expliquei, que eu
dei parte dele por
não pagamento da
pensão e ele foi
preso. Ficou 24
horas detido. Daí eu
tava lá na Delegacia
registrando uma
ocorrência de
ameaça de agressão
por parte do meu
ex-sogro.
L:queriam me
agredi e não
queriam me deixar
entrar na minha
casa, em virtude que
eu moro nos fundos
do terreno da minha
ex-
sogra e do meu
eu dei parte dele
por não
pagamento da pensão
e ele
foi preso
Queriam me agredi e não
queriam me deixar entrar
na minha casa, em
virtude que eu moro nos
fundos do terreno da
minha ex-sogra e do meu
ex-sogro.
Lílian está
enfrentando os
problemas,
buscando solução
para eles e
assumindo as
conseqüências.
Família do marido:
Padrão de
organização
familiar rígido, os
membros não
possuem autonomia,
diferenças não são
respeitadas e as
regras e papéis são
definidos por
coerção e punição.
Perspectiva positiva:
está se sentindo mais
forte e capaz de lutar
por aquilo em que
ela acredita.
Padrão de
organização rígido,
pouca flexibilidade,
conexão de forma
vulnerável e
interação violenta.
132
ex-sogro.
L: E em
conseqüência disso,
teve os problemas
que a minha filha
teve no colégio, ela
teve bastante
problema por causa
da separação, por
causa das agressões.
Ela chorava muito
no colégio.
L: Ela só tinha esse
lado. Da
aprendizagem ela
não teve, nunca teve
nenhuma
dificuldade graças a
Deus, mas aquele
lado emocional
dela, que afetava.
L: eu não sabia o
que falar pra minha
filha, eu não sabia,
sabe! A única coisa
que eu tentava fazer
era consolar ela,
acalmar ela e dizer
pra ela que eu tava
ali do lado dela, que
Os problemas que a
minha filha teve no
colégio, por causa da
separação, por causa das
agressões. Ela chorava
muito...
aprendizagem...nenhuma
dificuldade graças a
Deus, mas aquele lado
emocional dela, que
afetava.
consolar ela, acalmar ela
e dizer pra ela que eu tava
ali do lado dela, que ela
não precisava ter medo de
nada e então era isso.
Percepção das
dificuldades
emocionais da
menina relacionadas
ao abandono do pai.
Aspectos cognitivos
e de temperamento
foram positivos para
a menina conseguir
aproveitamento
escolar.
relação significativa
com a mãe de
confiança e apoio
mútuo.
A mãe acolhe o
sofrimento da filha e
compartilharam
juntas a dor.
Conexão vulnerável
com o pai.
Capacidade materna
de empatia.
Foco na força e no
potencial:
perspectiva positiva
Valor afiliativo,
perspectiva positiva
e conexão: a família
se fortalece quando
juntos enfrentam as
crises.
Atribuir sentido à
adversidade;
valor afiliativo;
perspectiva positiva.
133
ela não precisava ter
medo de nada e
então era isso.
M: O que tu achas
que esta te ajudando
a melhorar?
B: Minha mãe que
conversa comigo.
L: Porque aprendi
uma coisa quando
eu era pequena que
a minha mãe sempre
falava, que “a gente
é o espelho dos
filhos da gente” e se
a minha filha me
visse sendo
agredida pelo pai
dela, e crescesse
neste ambiente, qual
era o futuro da
minha filha, eu
pensava. Que
espécie de vida que
eu vou dar para ela?
... agora assim,
agora morreu esse
sentimento assim,
mas antes pra mim
B:
Minha mãe que
conversa comigo
minha mãe sempre
falava, que “a gente é o
espelho dos filhos da
gente” e se a minha filha
me visse sendo agredida
pelo pai dela, e crescesse
neste ambiente, qual era o
futuro da minha filha.
Agora eu vou à Igreja,
busco Deus, por que se
não eu não saberia o que
seria de mim.
Fortalecimento para
enfrentar os
problemas.
Sistema crença da
família de origem de
Lílian. Os pais
funcionam como
espelho para os
filhos.Relação
afetiva com mãe.
Busca de força
através de fé.
conexão e resolução
colaborativa dos
problemas.
Sistema de crença da
família de origem e
afetividade.
Espiritualidade e
transcendência
134
relembra disso que
eu to te falando pra
ti agora, era que
nem eu acho, que
nem tu bate em mim
sabe. Doía muito
mais, era como se
batesse em mim. E
eu aos poucos que
nem agora eu vou à
Igreja, busco Deus,
por que se não eu
não saberia o que
seria de mim.
L: Ah, meus irmãos
assim, eles todos me
apóiam sabe,
momentos assim de
sair assim com uma
sacolinha de roupa,
sempre me
ampararam,
disseram pra mim
larga essa vida, que
não era esse tipo de
vida que...O meu
pai e minha mãe já
morreram, mas não
era esse tipo de vida
que eles iam querer
pra mim.
Meus irmãos assim, eles
todos me apóiam sabe.
O meu pai e minha mãe
já morreram, mas não
era esse tipo de vida que
eles iam quere pra mim.
Apoio dos irmãos.
A família não
concordava com a
violência que existia
na vida da irmã.
Conexão positiva
Sistema de crença
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