Download PDF
ads:
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A LINGUAGEM COMO CARÁTER CONSTITUTIVO DO SER-AÍ EM
SER E TEMPO DE MARTIN HEIDEGGER
TATIANE PEREIRA BOECHAT
ORIENTADOR: PROF. DR. BENTO PRADO DE ALMEIDA FERRAZ NETO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Filosofia da Universidade
Federal de São Carlos, como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Mestre
em Filosofia, área de concentração: História
da Filosofia.
São Carlos - SP
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar
B669lc
Boechat, Tatiane Pereira.
A linguagem como caráter constitutivo do ser-aí em Ser e
Tempo de Martin Heidegger / Tatiane Pereira Boechat. --
São Carlos : UFSCar, 2008.
134 f.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São
Carlos, 2008.
1. Linguagem. 2. Compreensão. 3. Interpretação. 4.
Discurso. I. Título.
CDD: 100 (20
a
)
ads:
TATIANE PEREIRA BOECHA T
A LINGUAGEM COMO CARÁTER CONSTITUTIVO DO 'SER-AÍ 'EM 'SER E TEMPO'
DE MARTIN HEIDEGGER
Dissertação apresentada à Universidade Federal de São CarIos, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Aprovado em 28 de fevereiro de 2008
BANCA EXAMINADORA
1---10
Presidente ~ u_-- .
(Dr. Bento Prado de Almeida Ferras Neto)
10Examinador
(Dr. Marco Antônio Valentim - UFPR)
20Examinador
(Dr. Marco Aur. .
~~~~u~t--.
. ,
Universidade I~ederal de São Cal"ios
Rodovia Washington LuÍs, Km 235
- Cx.Postal676
Tel./Fax: (16) 3351.8368
FWW.ppglil.ufscar.br/ Dl'[email protected]
CEP: 13.565-905 - São Carlos - SP- Brasil
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Centro de Educação e Ciências Humanas
3
A minha mãe Hilda,
pela confiança e apoio incondicional.
4
AGRADECIMENTOS
Aos professores: Bento Prado de Almeida Ferraz Júnior (in memoriam),
Bento Prado de Almeida Ferraz Neto, Marco Antônio Valentin, Libânio Cardoso,
Débora Morato Pinto e Silene Marques por estarem sempre presente e
contribuírem nos momentos difíceis, cada um a sua maneira, para a realização
desse trabalho. Agradeço ainda à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo – FAPESP pela bolsa de pesquisa.
5
RESUMO
Em Ser e Tempo, Heidegger nos fala da co-originariedade
(Gleichursprünglich) entre os existenciais fundamentais que constituem a
abertura do ser-no-mundo: disposição afetiva (Befindlichkeit), compreensão
(Verstehen) e discurso (Rede). Procuramos entender de que modo esses
existenciais são articulados entre si, de maneira a perceber como Heidegger
estrutura um conceito de linguagem. Segundo interpretamos, há uma noção
implícita de “linguagem” nesta obra, estabelecida a partir da lida cotidiana do
ser-aí. Desse modo, investigaremos a relação entre discurso (Rede) e
linguagem (Sprache), buscando entender o “estado de expressão” do discurso
através da linguagem. Assim, podemos compreender como Heidegger procura
legitimar a problemática ontológica. Perceberemos a inviabilidade desta
questão se, como admitimos, ela estiver ancorada na relação que vincula
discurso e linguagem. Essa impossibilidade se torna ainda mais clara ao
analisarmos a proposta do termo Gleichurprünglich relacionada aos
existenciais fundamentais.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 7
CAPÍTULO I
FENOMENOLOGIA COMO ONTOLOGIA
1.1.Heidegger e Husserl: a busca da questão do ser a partir da intuição
categorial....................................................................................................... 12
1.2.O programa ontológico de Ser e Tempo ............................................ ... 25
1.3.O primado ôntico e ontológico da questão do ser: a ontologia
fundamental.....................................................................................................31
1.4.O conceito heideggeriano de Fenomenologia......................................... 37
CAPÍTULO II
A CONCEPÇÃO DE SER-NO-MUNDO
2.1.A condição de ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) .................................... 56
2.2.A mundanidade do mundo e o mundo circundante ................................ 61
2.3.Os entes disponíveis (Zuhandenheit) e os entes simplesmente dados
(Vorhandenheit) ........................................................................................... 66
2.4.O fenômeno da referência (Verweisung) e o sinal (Zeichen) ................ 76
CAPÍTULO III
DISCURSO E LINGUAGEM
3.1.A estrutura da compreensão (Verstehen)............................................... 88
3.2.Interpretação (Auslegung) e sua estrutura reguladora: o “como
hermenêutico” .............................................................................................. 93
3.3.O enunciado (Aussage)........................................................................ 101
3.4.A distinção entre discurso (Rede) e linguagem (Sprache) ................... 112
CONCLUSÃO .......................................................................................... 127
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 133
7 7
INTRODUÇÃO
Em Logik. Die Frage nach der Wahrheit, Heidegger diz que o modo de
ser do fenômeno que chamamos linguagem segue sendo até o momento algo
obscuro.
1
Sabemos que Heidegger se dedica à questão sobre a estrutura da
linguagem desde o início de seu pensamento, principalmente ao tratar das
noções de fundamento, verdade e lógica entre outras. Em 1927, na obra Ser e
Tempo, ele afirma que para se procurar definir a linguagem é decisivo “elaborar
previamente a totalidade ontológico-existencial da estrutura do discurso com
base numa analítica do ser-aí” (HEIDEGGER, 1927, § 34 / 1999, p. 222). Para
alcançar tal definição Heidegger teria deixado transparecer nessa obra, ainda
que não de maneira explícita, certo “conjunto de articulação de sentido”
inerente ao modo de ser-no-mundo. Desse modo, ele teria em seu poder os
elementos necessários para uma possível determinação da linguagem e de sua
estrutura. Encontramos este conjunto de articulação através da estrutura
fundamental própria ao ser do ser-aí, os existenciais: compreensão
(Verstehen), disposição (Befindlichkeit) e discurso (Rede). Nossa pesquisa
procura esclarecer o conceito de “linguagem” intrínseco a Ser e Tempo ao
investigar a estrutura que possibilita a linguagem enquanto enunciado. O que
deve ficar claro, inicialmente, é o modo como Heidegger procura apreender
esse conceito, a partir de uma intenção mais própria e originária de
1
Cf. HEIDEGGER, 2004, p. 126 § 12.
8 8
questionamento. Este será o objetivo do capítulo inicial desta pesquisa que
trata do conceito fenomenológico.
No pensamento de Ser e tempo, a gênese do significado é entendida
desde os existenciais de abertura do ser-aí, entre os quais encontramos o
discurso (Rede), isto é, a possibilidade de articular a compreensão aberta pelo
ser-no-mundo. O discurso aparece como uma instância instauradora de
sentido. Enquanto um modo de ser do ser-aí, seria preciso perguntar-nos:
como o discurso pode expressar-se por meio de palavras, por meio da
linguagem. Esse questionamento se encontrará em desenvolvimento ao longo
dos dois últimos capítulos.
Em Ser e Tempo, a relação entre ser e linguagem é formulada em meio
a uma analítica da existência, mediante um modo originário de abertura que
pertence à estrutura mesma do ser-aí vista através da originariedade
aguardada entre o discurso (Rede) e os outros existenciais fundamentais.
Abarcados em sua totalidade e entrelaçados uns aos outros, estes existenciais
articulam-se enquanto sentido ou significância advindo da lida cotidiana do ser-
aí. Na perspectiva heideggeriana, a instrumentalidade do instrumento que
emerge ou vem ao encontro possibilita a rede de sentido que antecede as
enunciações lingüísticas. A disponibilidade de algo, orientada em função do
ser-aí e de sua familiaridade com o mundo, aponta para o sentido. O sentido,
por sua vez, emerge da totalidade referencial aberta pelo modo de ser do ente
intramundano através do qual se perfaz a estrutura “ser-no-mundo” (In-der-
Welt-sein). A finalidade à qual o instrumento é remetido é o que unifica isto que
concede sentido a totalidade. Isto significa que é em função do ser do ser-aí
que as coisas são articuladas de modo a mostrarem-se com sentido. Contudo,
9 9
segundo Heidegger, este processo não precisa, necessariamente, exercer-se
através de nenhuma tematização explícita, isto é, ele não precisa vir à palavra,
transformar-se em conceito. A interpretação (Auslegung) se encontra nessa
articulação de sentido. Ela fornece a possibilidade primeira de tomarmos algo
como algo. Ou seja, tomarmos algo a partir da disponibilidade que o orienta. Na
ocupação é que algo “tem sentido”. Para Heidegger, o nível proposicional não é
a única dimensão do sentido. O conjunto dos existenciais que chamamos aqui
de “lógos”, nos mostra que a sua estrutura se caracteriza não pelo enunciado,
por se dizer algo de algo, mas em um puro admitir o ente ou deixar que
compareça através da sua instrumentalidade.
A interpretação heideggeriana do discurso sugere que a linguagem não
deve ser vista como uma diversidade de estruturas logicamente articuladas. O
discurso supõe um imediato contato com o ente que ocorre como realização do
sentido; ele designa a prévia relação que se dá entre mundo e linguagem. Isto
quer dizer que a linguagem também não deve ser vista como uma réplica do
mundo. O discurso não surge posteriormente ao mundo, pois ele é um caráter
constitutivo do ser-aí; a discursividade-compreensiva compete-lhe
constitutivamente. Ela encontra-se estruturada pelo esquema interpretativo
implícito em toda forma de relação do ser-aí com o ente. Diríamos, ainda, que é
o modo de ser mundano do ser-no-mundo que constitui o discurso e procura
viabilizar sua expressão como linguagem. A estruturação prévia do sentido
viabiliza as proposições lógico-semânticas. A linguagem deixará, então, de
cumprir o papel de mediadora funcional entre homem e mundo. No entanto, ela
deixará de ser uma ordem subordinada a alguma instância superior? Aí entra a
nossa abordagem sobre o discurso. Ele é o sentido originário que funda a
10 10
linguagem. Assim, nossa investigação se detém na análise da relação entre
discurso (Rede) e linguagem (Sprache) para verificarmos até onde esta relação
se estende e como isto se dá. O entendimento das estruturas ontológicas
mostrará que a linguagem pode surgir como caráter ontológico de
desvelamento dos entes se orientada, como pretende Heidegger, por uma
estrutura possibilitadora de acesso ao ente enquanto tal, a estrutura co-
originária (Gleichursprünglich) dos existenciais fundamentais. Ao expor esta
estrutura será possível à investigação entender como é possível remeter a
linguagem à dimensão ontológica. E como foi possível a Heidegger subordinar
o âmbito da linguagem, leia-se enunciado e comunicação, ao discurso e,
conseqüentemente, aos outros existenciais. Assim, procuramos apreender o
problema da gênese da linguagem em Ser e Tempo, investigando as instâncias
através das quais ela pode ser explicada e às quais, de alguma maneira, ela
encontra-se subordinada. Abordaremos o caráter de “ser-no-mundo”, ou seja, a
“relação” que o ser-aí guarda com “mundo”, nos limitando a discutir alguns
conceitos que procuram apontar para a constituição originária da linguagem.
Num segundo momento, entraremos diretamente na interpretação da estrutura
do ser-aí, os existenciais fundamentais (die fundamentalen Existenzialien) que
constituem a abertura (Erschlossenheit) do ser-no-mundo. Principalmente a
compreensão e o discurso, visto que, o modo de ser da compreensibilidade do
ser-no-mundo é articulado, traz à tona o sentido. Ao tematizar os existenciais,
veremos como se dá esta constituição ontológica e como isso se pronuncia. Os
existenciais são indissociáveis uns dos outros, encontram-se entrelaçados,
esta é a sua principal característica, a co-originariedade
(Gleichursprünglichkeit) que os mantém enquanto tais. Tal característica nos
11 11
concede o apoio necessário para entendermos qual o caminho traçado por
Heidegger no que diz respeito à linguagem ainda na sua primeira grande obra.
12 12
Capítulo I
FENOMENOLOGIA COMO ONTOLOGIA
1.1. HEIDEGGER E HUSSERL: A QUESTÃO DO SER A PARTIR DA INTUIÇÃO CATEGORIAL
O pensamento filosófico de Heidegger e seu contato com a idéia de
fenomenologia se intensificaram no período em que foi assistente de Husserl
em Freiburg. Período extremamente frutífero que possibilitou a edificação da
sua principal obra, Ser e tempo (Sein und Zeit, 1927). Heidegger diz que esta
obra somente foi possível sobre a base lançada por Edmund Husserl. Nela, o
autor assume a sua própria leitura da fenomenologia como a maneira de tornar
o seu objeto tema de uma abordagem, o que chamaremos aqui de um
“procedimento metódico”. Seu primeiro contato com a fenomenologia foi
através das Investigações Lógicas (Logische Untersuchungen, 1900) de
Husserl como afirma em Meu caminho para a fenomenologia (Mein Weg in
die Phänomenologie - 1963) e numa série de textos e seminários surgidos no
decorrer dos anos 60 a respeito da sua relação com a fenomenologia. A
literatura comentada, na grande maioria dos trabalhos que confrontam Husserl
e Heidegger, procura investigar a influência, ou não, que Heidegger tenha
sofrido de seu mestre; qual a extensão do pensamento husserliano, em
especial sua idéia de fenomenologia, no pensamento hermenêutico de
13 13
Heidegger. Já o proposto por nós, neste capítulo, é consideravelmente menos
ambicioso no que diz respeito a esta relação, pois possui um valor apenas
indicativo e de inserção no tema central da nossa pesquisa, a saber, a noção
de linguagem construída por Heidegger em Sein und Zeit. Para tanto,
seguiremos a indicação deixada por Heidegger no protocolo do Seminário de
Zäringen (Seminar in Zäringen) professado em 1973. Nele, Heidegger afirma
que sua abordagem à questão do ser estaria enraizada na noção husserliana
de intuição categorial. Segundo Heidegger, Husserl toca a questão do ser no 6º
capítulo da Sexta Investigação Lógica através do conceito de intuição
categorial. Procuraremos, então, num primeiro momento, ainda que
timidamente, uma aproximação a este ponto referencial da fenomenologia
através das Investigações Lógicas de Husserl.
2
Poderíamos eleger outras
fontes para investigar o surgimento e delineamento da questão do ser em
Heidegger, tais como Aristóteles, Duns Scotus, Dilthey, Kieerkgaard, no
entanto, nos limitaremos a abordá-la em Husserl, ainda que não possamos
atingir aqui todas as influências que o jovem Heidegger sofreu quando do
surgimento da sua questão filosófica. Seguindo este caminho preliminar,
tentaremos entender qual a importância do conceito de intuição categorial no
que se refere à elaboração da questão do ser (Seinsfrage).
A fenomenologia está centrada no objeto visado ele mesmo e no modo
como é dado. O que significa que, para Husserl, o nível perceptivo em que o
objeto visado é imediatamente dado é o ponto de partida para que o objeto seja
descrito e explicitado em seu aspecto intencional. O que não significa que o
2
Privilegiamos esta obra não apenas por ser aquela em que Husserl primeiro apresenta sua concepção
de fenomenologia, mas por ser a obra a que Heidegger mais freqüentemente se refere para elucidar sua
relação com a fenomenologia de Husserl.
14 14
nível da representação seja reduzido a um momento anterior de realidade em
que o objeto possa ser explicado. O nível perceptivo ou da objetividade dá o
objeto de modo imediato sem a mediação de esquemas pré-estabelecidos. Se
tomarmos o objeto no seu dar-se imediato poderemos dizer que a “coisa
mesma” funda o sentido dando origem ao conhecimento. A partir da presença
intuitiva da coisa visada, o conhecimento se efetiva. Entendemos, assim, a
ausência de pressupostos como uma forma de mostrar que o método da
fenomenologia deve se desenvolver, enquanto modo reflexivo ou descritivo, em
nível intuitivo. A reflexão não se desenvolve a partir dos objetos dados, mas de
“objetos” não surgidos da percepção sensível. Este nível é que torna possível a
reflexão e no qual o caráter intencional da consciência pode ser dado. Assim, a
intuição, empreendida através da concepção prévia de sentido ou de
significação, e não desde uma região de objetos da experiência empírica, só é
possível em meio à vivência na qual o ato de visar é vivido e não
necessariamente tematizado. Isto é, não se faz necessário considerar qualquer
ordem de realidade anterior à coisa em si mesma.
3
O nível de investigação da
fenomenologia deve considerar a coisa no próprio ato intencional em que é
visada. Desse modo, a fenomenologia husserliana abre um novo âmbito de
questionamento: o âmbito transcendental da experiência da consciência, a
partir da descrição dos conteúdos intencionais em seu modo de ser ou de
aparecer, sem projeções indevidas. Consideradas as coisas mesmas, tal como
são visadas numa total ausência de pressupostos, se afirma o primado da
3
A fenomenologia só poderá se realizar em nível reflexivo. A fenomenologia se desenvolve, levando em
conta a orientação objetiva das vivências, no entanto, esta vivência não é auto-transparente, somente a
reflexão torna possível “descrever, hierarquizar e sistematizar a multiplicidade dos atos intencionais”.
(Paisana, 1992, p. 63). “A consciência vive na realização da própria constituição sem se saber, de modo
temático, como constitutiva”. (Husserl, 1999, p. 356, II).
15 15
percepção, tida, na fenomenologia reflexiva de Edmund Husserl, como a mais
simples intuição.
4
O objeto próprio à ciência fenomenológica, como se refere Husserl, seria
o fenômeno enquanto tal. Como método reflexivo, a fenomenologia seria uma
ciência descritiva dos fenômenos. No artigo publicado em 1911, Filosofia como
Ciência de Rigor (Philosophie als strenge Wissenschaft), o filósofo afirma que o
“ser” deve ser considerado correlato da consciência (Bewusstsein), enquanto
algo visado por um modo da consciência.
5
A fenomenologia seria, portanto, a
ciência descritiva da vivência intencional. Para visualizarmos isto e projetarmos
a noção de intuição categorial, é preciso ampliar a noção de objeto intencional
da fenomenologia reflexiva.
Distinguiremos entre as concepções husserlianas de intuição sensível e
intuição categorial. O critério para tal distinção ocorre entre seus respectivos
objetos: o objeto sensível e o objeto categorial. No pensamento de Husserl, a
intuição sensível não se opõe a uma faculdade de apreensão intelectual. A
intuição sensível, bem como a categorial, surge do modo do objeto.Na
perspectiva de Heidegger, na intuição sensível, Husserl apreende o objeto
como um objeto que ocupa uma função. Um tinteiro (exemplo fornecido por
Husserl nas Investigações Lógicas) já traz em si a relação que guarda com o
seu funcionamento. Mas, no contexto da reflexão husserliana acerca da
intuição sensível, o tinteiro é tomado enquanto exemplo de objeto sensível e
4
Tal posição afirma ainda o método fenomenológico não apenas como reflexivo e explicitativo, mas como
a priori. O a priori husserliano não se opõe à experiência. Em Husserl pode-se falar de um a priori dado,
isto é, material. Para o autor, a validade do conhecimento é fundada de modo imediato na intuição.
5
A fenomenologia deve ter como objeto de estudo a consciência. É preciso conhecer a consciência em
sua essência, isto é, em todas as suas formas e nos distintos modos em que visa o objetivo. A relação da
consciência com o mundo será esclarecida pela elucidação do sentido dos vários atos intencionais. Já
que o objeto real pressupõe o objeto intencional.
16 16
não de “um” objeto sensível determinado. Afirma Heidegger: ”O tinteiro
significa: objeto da percepção sensível”. (HEIDEGGER, 1990, p.463) Isto quer
dizer que os dados sensoriais
6
, como a cor, a forma espacial, etc., apenas
quando animados por uma intenção à qual reenviam, podem ser percebidos já
como momentos da coisa.
7
O que é percebido são os dados sensoriais
mesmos. Através dos dados sensoriais o objeto aparece na percepção.
8
A
coisa, seja ela qual for, torna-se perceptível. O que é dado na percepção
sensível são os dados sensoriais, não o objeto. Entende Heidegger que a
objetualidade (Gegenständlichkeit) do objeto sensível não consiste num
simples dado sensorial, isto é, não surge da intuição sensível
9
. Logo, a questão
que se põe ao autor é a de compreender qual o fundamento da objetualidade
do objeto sensível. Grosso modo, perguntar pela estrutura que pergunta pelo
ser. Isto se formaliza em Ser e Tempo em uma fenomenologia do ser-aí. O que
se conclui, e que deixa entrever o caminho heideggeriano, é que a
objetualidade do objeto não pode ser percebida sensivelmente, mas de alguma
forma, ela é “dada”. Pois, o percebido é sempre tomado como um objeto, uma
coisa. O que sugere que: o que fundamenta o ser-objeto é o modo de ser do
ente enquanto coisa. Para Heidegger, o fundamental da intuição categorial é
6
Dados chamados: hyléticos, originado de Hylè, que significa: “o que afeta sensivelmente”, os dados
sensoriais.
7
Cf. Paisana, 1992, p. 116.
8
Na terceira Investigação Lógica, Husserl afirma que “o ato da percepção é sempre já uma unidade
homogênea que presentifica o objeto de um modo simples e imediato”. (HUSSERL, III Investigação, 1999)
9
Podemos aludir aqui à crítica de Heidegger à tradição filosófica através da abordagem da concepção
kantiana de experiência, segundo a qual traria em sua interpretação uma noção de realidade que não foi
radicalmente questionada, pois, segundo a leitura de Heidegger, Kant eleva o nível da objetividade a um
tipo de realidade anterior, ou melhor, a uma realidade que serviria como base ou fundo do qual permitiria
explicar os objetos. Kant reduz todo o dado na experiência à experiência empírica e, conseqüentemente,
caracteriza o dado como conteúdo material determinado. Supondo, portanto, para o que não existe, que
nenhuma função sensorial poderia ser dada. Desse modo, o objeto surge num a priori que depende do
juízo e da linguagem, isto é, que se encontra referido a uma subjetividade.
17 17
considerar a categoria como dada. Segundo Heidegger, “intuição categorial
quer dizer: uma intuição que dá a ver uma categoria; ou uma intuição que é
imediatamente dirigida para uma categoria”.(HEIDEGGER, 1990, p. 463) A
categoria substância não pode ser acessada pela sensibilidade, no entanto, o
tinteiro aparece por ser uma substância. O que significa que, de algum modo, a
substância se dá a “ver”. Heidegger (1990, p. 465) afirma:
Quando vejo o livro, vejo uma coisa substancial, sem por tanto ver a
substancialidade tal como vejo o livro. Ora, é, portanto, a
substancialidade que, em sua inaparência, permite ao que aparece
aparecer.
Ao ver o livro, vejo uma substância sem ver, portanto, a própria
substancialidade no livro. No entanto, para que veja o livro é preciso que a
substancialidade apareça de algum modo, já que sem ela o livro não se daria a
ver. Heidegger encontra aqui a idéia husserliana de excedente (Überschuss)
correspondente à intuição categorial. Na frase, “O tinteiro é pesado” o “é” torna
possível a constatação do tinteiro como objeto ou substância. O “é” teria um
estatuto que “transcende” a predicação. Entre as impressões sensíveis, como a
do peso e a da cor, o “é” pode ser visto como o que as excede. Por não estar
junto das impressões sensoriais, ele não pode ser percebido sensivelmente, no
entanto, é “visto” através da presença da coisa. Ver aqui não tem referência
com o visível, o ver sensível, mas com o ver fenomenológico que emerge do
caráter reflexivo da fenomenologia de Husserl. Surge assim o dado
18 18
fundamental que nos guia para o caminho da leitura heideggeriana da
fenomenologia: o categorial. As formas, por serem dadas, tornam-se
abordáveis, acessíveis.(HUSSERL, 1999, p. 136, III)
Entendemos, então, que o objeto da intuição categorial não se constitui
a partir de uma síntese advinda de elementos sensíveis e conceituais. Husserl
diz que a intuição categorial não visa um objeto sensível simplesmente dado,
mas um “estado de coisas” articulado (Sachverhalt) considerando que as
categorias são mostradas na experiência. Por exemplo, a intuição pode
fornecer um preenchimento intuitivo: o ouro é amarelo. No caso dos símbolos
literais, a intuição fornece um preenchimento direto pela sensibilidade, no caso
da fórmula do tipo S é P, ou outras, corresponde o preenchimento intuitivo do
tipo categorial.
10
É o ser “dado”, intuído, que forma o juízo. Não esqueçamos
que, nessa perspectiva, o objeto é dado a uma consciência, como “consciência
reflexiva”, de um puro sujeito de conhecimento. De modo que o “ser” daquilo
que se dá já se encontra determinado em função desse sujeito. Logo, o
fundamento da objetualidade do objeto é a própria consciência intencional.
Para que o objeto categorial encontre seu fundamento a nível intuitivo, o
próprio “é” copulativo deve ele mesmo ser “dado”. No entanto, o excedente de
significação somente pode ser mostrado se situarmos ao nível de um “estado
de coisas” já articulado. Segundo Husserl (1999, p. 131, III):
10
(Id. Ibid., p. 136) Contudo, tanto o preenchimento pela sensibilidade quanto o preenchimento pela
intuição devem ser considerados como procedimentos intuitivos apesar de terem objetos intencionalmente
visados diferentes.
19 19
A intenção da palavra ‘branco’ coincide apenas parcialmente com o
momento cor do objeto que aparece, permanece um excedente de
significação uma forma que não encontra no próprio fenômeno nada
que a confirme. Branco quer dizer papel que é branco.
A cor remete necessariamente para uma superfície, de igual modo, o “é”
do juízo reenvia para uma substancialidade. O que quer dizer que uma
significação como a da palavra ser apenas encontra um correlato objetivo
possível na esfera da intuição categorial, inversamente à esfera sensível. O ser
é dado numa presença que excede a intuição sensível. Esta alteração do
estatuto do ser é que permitirá a Heidegger formular a questão do “sentido do
ser do ente”, isto é, da condição de possibilidade do ente enquanto tal.
Husserl faz, na primeira seção da Sexta Investigação Lógica, uma
distinção entre o ser como cópula e o ser como posição. O ser surge, para
Husserl, como uma posição (Setzung), como correlato de um ato posicional; ou
seja, como correlato de um ato que põe ou afirma o ser do objeto. (HUSSERL,
1999, p. 121) Assim, ainda que o horizonte de doação não seja determinado
pelo ato judicativo, ele o é pelo ato intencional de uma consciência, para qual o
que “é” é necessariamente como objeto. Aqui o conceito de ser encontra sua
edificação na coisa mesma. A percepção afirma o ser objeto
11
. A percepção
nos dá a coisa ela mesma, isto é, em seu ser, fundando assim o conhecimento.
O ser não aparece fundado no “é” da cópula do juízo, mas é a evidência da
coisa em si mesma, o ser dado, intuído, que funda o juízo. Contrariamente à
11
Ser-objeto aqui tem o sentido de considerar a objetividade como necessidade e universalidade do
conhecimento.
20 20
concepção de ser entendida através da cópula do juízo encontrado num
“estado de coisas” já articulado, o ser como posição seria encontrado, em
presença, no objeto de uma percepção simples. Tomando este “estado de
coisas” como um dado, em que o “é” da cópula, ou qualquer outra fórmula
sintática (um, e, ou, etc.), é dado, o objeto categorial encontra seu fundamento
a nível intuitivo.
12
O ser encontra-se como presença imediata do visado ele
mesmo. Logo, o ser pode ser intuído.
A concepção de ser que o concebe como o ser presente no juízo pelo
“é” da cópula, possui um estatuto justo e exato, mas não-verdadeiro (unwahr =
uma inverdade), como afirma Heidegger (1990, p. 465). Perguntamos, então,
quais os traços da fenomenologia de Husserl que Heidegger assimila? Para
ele, esse modo é justificado desde que se pergunte pelo fundamento da
objetualidade do objeto sensível pressuposto na construção do juízo. Com
efeito, se o juízo não cria originalmente o aparecer do ente, então, é preciso
que o ente já se tenha manifesto previamente como objeto possível de uma
determinação predicativa para que a conformidade do juízo com o ente seja
estabelecida. Esta relação abre, para Heidegger, um âmbito de manifestação
do ente que não tem originalmente a estrutura da proposição nem o caráter da
representação. Considerando isto, o ser teria como estatuto um momento pré-
predicativo. Segundo as análises da intuição categorial, se o ser é dado na
percepção, então, supomos que nem todo ato intuitivo pressupõe
12
Percebemos aqui que, para que o ser possa ser pensado enquanto ato posicional é preciso que nos
situemos novamente ao nível predicativo. Somente pela predicação se constitui o objeto que estaria
presente de modo imediato na intuição.Surge, então, a critica de Heidegger a Husserl que possibilitará ao
primeiro edificar sua estrutura hermenêutica. Segundo Heidegger, o local onde se deve procurar o ser
estaria na estrutura do como hermenêutico, isto é, em nível pré-predicativo, porque para que a predicação
se realize é necessário que a estrutura do como hermenêutico – estrutura da compreensão em geral – já
tenha sido pressuposta.
21 21
necessariamente o nível predicativo. Portanto, o ser teria como estatuto um
momento anterior ao juízo. A proposta de uma significação pré-predicativa da
intuição é a contribuição fundamental da fenomenologia husserliana na
formação do pensamento hermenêutico de Heidegger. Entendemos, então, que
a fenomenologia de Husserl abre caminho para a proposta heideggeriana de
uma ontologia fundamental à medida que possibilita a investigação do ser do
ente a partir de um novo âmbito no qual o interesse teórico e experimental pelo
mundo, tal como a tradição filosófica interpretou – como um agregado de entes
independentes uns dos outros –, fica de lado. Na terminologia husserliana,
seria a passagem da subjetividade mundana à “subjetividade” transcendental.
O que significa que a fenomenologia não pretende investigar os objetos do
mundo, é contrária ao conhecimento de regiões ônticas. Assim, Husserl “reduz”
tudo à subjetividade e rompe com a distinção entre natureza (o mundo das
coisas corpóreas) e espírito (o mundo anímico, o pensamento), tornando
possível alterar a própria significação do conceito de “mundo”. O que, para
Heidegger, tem extrema importância no que diz respeito à edificação da
ontologia fundamental, é entender que Husserl não opera uma descrição
“adequada” do modo de ser da consciência intencional, no sentido de que
restringe a intencionalidade à visada objetiva da consciência. A
intencionalidade teria uma amplitude que não é considerada por Husserl: o
visado pela intencionalidade seria o ser em geral, do qual o ser-objeto é um
modo. A fenomenologia reflexiva (entenda-se, a intencionalidade), não permite
a formulação da questão ontológica. Segundo Heidegger, é somente a partir da
possibilidade de se perguntar por algo assim como “ser” que a ontologia pode
vir a ser possível. Como veremos, a subjetividade transcendental de Husserl
22 22
nada tem a ver com o ser-aí heideggeriano. Na medida em que Husserl passa
da vivência concreta à ideação da consciência ele desconhece, segundo
Heidegger, o que há de mais característico na estrutura do ser-aí, a finitude de
suas possibilidades de ser. (PAISANA, 1992, p. 301) O projeto heideggeriano
se edifica sobre a pergunta pelo sentido do ser do ser-aí, isto é, sobre o
entendimento do seu modo de ser ôntico desde suas possibilidades de ser.
Para Heidegger, a redução fenomenológica deve conduzir à compreensão do
ser. O modo de ser do ser-aí se revela através da compreensibilidade, da
estrutura da compreensão enquanto uma possibilidade de ser do próprio ser-.
A compreensibilidade é seu poder-ser (Seinkönnen) caracterizado pelas suas
possibilidades enquanto tais que podem vir a ser eleitas ou não. Enquanto o
ser-aí é compreensão ele guarda precisamente em si a possibilidade de
“mundo”, isto é, de abertura ou desvelamento dos entes. A compreensão abre
um círculo de possibilidades que dá origem ao questionar pelo sentido do ser.
Já a investigação reflexiva de Husserl compreende a consciência a partir de um
substrato último sobre o qual ela deveria se constituir e, desse modo, não é
questionável desde si mesma. A pergunta pelo sentido do ser do ente não é
possível pela perspectiva da consciência reflexiva. Como diz Paisana (1992, p.
302): “[...] o sentido do ser da consciência nunca pode ser libertado como
questão, isto é, a partir da abertura das suas possibilidades” Contudo, é
através do contributo husserliano da libertação do ser da cópula do juízo que
Heidegger constitui a noção central para se entender o existencial discurso
(Rede) em Ser e tempo, a saber, a “mundanidade do mundo”. A questão agora
é entender como Heidegger coloca em consonância o seu interesse pela
questão do ser com a significação pré-predicativa encontrada na noção
23 23
husserliana de intuição categorial. Já que admitimos que o conceito
heideggeriano de fenomenologia distancia-se da noção de seu mestre.
Mediado pela análise da intuição categorial na qual o ser foi liberado da
cópula do juízo e considerado como dado, isto é, “dado” não ao modo do dado
sensível, Heidegger foi conduzido a perguntar: “o que significa [então] ser?”,
“qual o sentido do ser do ente? Segundo Heidegger, Husserl não fez esta
pergunta visto que, “para Husserl não havia aí sombra de uma questão
possível, porque para ele era de si compreensível que ‘ser’ quer dizer: ‘ser-
objeto’”. (HEIDEGGER, 1990, p. 466) Contrariamente a ele, Heidegger entende
que, se o ser enquanto “presencialidade constante” (Gegenwart) for
questionado, é possível, sim, indagar pelo seu sentido. Para Heidegger, ser
não significa necessariamente ser-objeto, a objetividade é que é um modo
possível de ser em presença.
13
A objetividade é um modo possível de
apresentar “ser”, modo este que deve pressupor já certa significabilidade. Na
terminologia heideggeriana, o modo da objetividade deve contar com uma
prévia abertura (Ouvertüre) ao mundo.
14
Entendemos, então, que a formulação heideggeriana da pergunta pelo
ser (Seinsfrage) e seu sentido somente efetivou-se porque a noção de ser
estabelecida por Husserl foi a de um ser dado (anwesend), intuído e que
13
Desde 1907 Heidegger se debruça sobre a obra de F. Brentano, Sobre a múltipla significação do ser
segundo Aristóteles (1862). Foi a partir dela que o autor trouxe consigo a intuição da problemática
ontológica e se uniu ao estudo da fenomenologia visto que Husserl também tinha um trânsito direto com a
obra de Brentano. A questão fundamental do pensamento heideggeriano surge desde os argumentos
brentanianos acerca dos diversos sentidos do ser. Haveria quatro modos possíveis de se pensar e dizer o
ser: o ser por si, o ser como possibilidade e realidade, o ser como verdade e o ser por acidente. Mas para
Heidegger a questão definitiva de tal interpretação é saber qual a determinação fundamental de ser cujo
domínio atravessa todas as múltiplas significações. Advém assim a pergunta pelo sentido do ser. Ver:
Carta a Richardson, 1962.
14
Para que o ser dado de Husserl surja, é preciso contar com uma significabilidade inicial ou originária do
conceito de ser.
24 24
possibilitou o questionamento do ser em um modo possível de aparecer,
enquanto objeto intencional. Husserl inaugura um âmbito promissor de
questionamento através da indagação pelo ser, mas trabalha nele com o ente
considerado em seus atributos sensoriais. Na perspectiva de Husserl, o sentido
fundamental em que surge a palavra “ser” ocorre antes mesmo de toda
possível predicação através do objeto da percepção simples. Já na perspectiva
de Heidegger, seja esta substancialidade pensada como presença ou em
vários outros modos de aparecimento ou de significado, para que ser possa
alcançar algum modo possível de aparecimento, é preciso contar com um
âmbito de mostração da coisa em si mesma, o âmbito hermenêutico. Estaria
nesta dimensão a tentativa de Heidegger de pensar a unidade dos significados
múltiplos de ser, enquanto a pergunta pelo seu sentido? Caso seja, a análise
ontológica não poderia mostrar que estes múltiplos significados da palavra “ser”
não se reduzem uns aos outros impossibilitando pensar “ser” a partir de uma
significação fundamental? A dimensão hermenêutica de questionamento não
possibilita que aceitemos um significado fundamental para a palavra “ser” e,
ainda assim, possamos ordenar as outras significações em função desta?
15
15
Em Günter Figal (2005, p. 13/14) esta elaboração leva a considerações muito frutíferas. Caso seja
aceita uma postura cética em relação à pergunta pelo “ser”, seria possível contestar a posição
proeminente deste verbo tanto na linguagem cotidiana quanto no uso filosófico da própria palavra. Se
admitirmos os vários momentos de uso deste verbo em toda a obra heideggeriana, admitiremos, não uma
unicidade no seu uso, mas “a possibilidade de acolher diversas questões e análises heideggerianas no
contexto de outras questões filosóficas e de outras concepções, frutificando-as a partir daí”. Contudo, se
supomos a questão do ser como plena de significado, então, além de admitirmos que sua intenção era
distanciar-se da tradição filosófica para deixar para trás “um discurso objetivo e comprometido com
argumentos”, admitimos ainda um diálogo extremamente rico entre o que conduz e mantém em curso a
questão filosófica desta tradição. Diz Figal (2005, p. 13-14)., “essa questão é uma vez mais a questão do
ser, e, assim, parece que só podemos nos inserir na autocompreensão de Heidegger na medida em que
supomos essa questão como plenamente significativa”.
25 25
O domínio principal de investigação do filósofo é o da interrogação
acerca do ser; a esfera da existência. Ao contrário de outros problemas que se
esgotam na interrogação e na resposta, o problema do ser está implicado na
questão do próprio interrogar. Interrogar o sentido do ser significa perguntar
pela estrutura da pergunta pelo ser, visto que a nossa estrutura pré-reflexiva é
a possibilitadora da reflexão, e não o contrário. A questão do sentido do ser
deve ser encontrada no questionamento da existência; a pergunta está imersa
no acontecer mesmo. Para Heidegger, é desde a análise da existência que se
poderá encontrar o fio condutor de todo o indagar filosófico. A interrogação
filosófica surge do existir e para ela se volta, inicia e termina no âmbito da
existência. Dá-se, assim, o salto heideggeriano para a pergunta pelo ser. Abre-
se o caminho para a fenomenologia hermenêutica, para o estudo da
significabilidade pré-predicativa. Alcançado o ponto que nos interessa, a saber,
a possibilidade de pensar o ser fora do horizonte da presença, cabe-nos agora
tematizar a proposta heideggeriana de questionamento do ser em Sein und
Zeit.
1.2. O PROGRAMA ONTOLÓGICO DE SER E TEMPO
Revela-se fundamental para o filósofo, neste momento, saber qual o
sentido fundamental que domina as múltiplas significações assumidas pela
palavra ser. A multiplicidade de modos em que o conceito de ser se desdobra
levanta o problema da determinação unitária do seu sentido. Para Heidegger, é
preciso haver um sentido dominante nesta diversidade que auxilie na
investigação da questão central da filosofia: o que é o ente? O autor dá a este
26 26
problema a forma de uma pergunta pelo sentido do ser. Edifica-se, assim, a
mais expressiva obra do filósofo: Ser e tempo (Sein und Zeit, 1927). Esta obra
é um tratado filosófico que tem como objetivo principal apresentar o sentido do
ser em geral, apresentar a estrutura possibilitadora de toda significação
possível de “ser”. Ela é organizada através da delimitação das condições de
possibilidade do desenvolvimento da questão do ser tendo em vista a
construção de uma ontologia fundamental.
Segundo Heidegger, o horizonte de sentido do conceito de ser é tarefa
da elaboração de uma ontologia fundamental. Se a pergunta pelo sentido do
ser é caracterizada como uma pergunta fundamental, como pretende o filósofo,
a investigação a que esta dá origem também deve ser tomada como
“fundamental”. Como entender isto? Perguntar pela unidade de significação do
conceito ser e, mais especificamente, por sua condição de possibilidade,
significa reconhecer a necessidade de uma fundação para a ontologia. Assim,
através da elaboração da ontologia fundamental (Fundamentalontologie) torna-
se possível reconhecer mais facilmente esta carência. Como veremos mais à
frente, esta designação de ontologia fundamental deve ser entendida em
função das ontologias regionais.
Logo, na tentativa de legitimar a problemática ontológica, Heidegger
apresenta, na parte introdutória de Ser e Tempo, a necessidade de colocar
novamente a questão do ser. Heidegger diz que a questão sobre o sentido do
ser foi simplesmente deixada de lado em sua abordagem.
16
A exegese
dominante interpretou o conceito ser desde o esquema da presença
(Gegenwart). O que significa que o representar metafísico, ao longo da história
16
Cf. HEIDEGGER, 1999, § 1.
27 27
da filosofia, impediu a colocação adequada da pergunta pelo sentido do ser.
Múltiplas são as significações concedidas ao ser no decorrer da história da
ontologia, como investigou o autor.
17
No entanto, na perspectiva heideggeriana,
o modo de acesso à pergunta pelo ser do ente encontra-se limitado por uma
idéia específica de ser surgida de determinada região deste mesmo ente: a
idéia de ser como “constância do ser simplesmente dado”. (HEIDEGGER,
1999, p. 144, § 21) O ser é apreendido da mesma forma que se apreende o
ente, enquanto substância. Nesta forma de operar, o ser permanece
inacessível porque é apreendido com base no entendimento lógico e em suas
regras fundamentais. Ao se colocar a questão do ser a partir de certa
rigorosidade representativa extrai-se o investigado do âmbito que lhe é próprio,
o âmbito ontológico. Como afirma Heidegger, “enquanto questionado, o ser
exige, portanto, um modo próprio de ‘demonstração’ que se distingue
essencialmente da descoberta de um ente” (id. Ibid. p. 32, § 2).
Ao afirmar ser necessário que a atitude filosófica execute a retomada do
problema do sentido do ser, Heidegger discute no § 1 de Ser e Tempo alguns
preconceitos que favorecem e mantêm a falta de um questionamento do ser
ou, como dissemos, a carência de fundação da ontologia. Esses preconceitos
são os seguintes: “‘Ser’ é o conceito ‘mais universal’, [...] uma compreensão do
ser já está sempre incluída em tudo que se apreende do ente”.
Constantemente empregamos o conceito ser e compreendemos o que ele, a
cada vez, pretende designar. Falar acerca da universalidade deste conceito,
para Heidegger, não é de modo algum resolver o problema de sua significação,
17
Ver os cursos pronunciados por Heidegger na Universidade de Marburg durante o semestre de verão
de 1926 e o semestre de inverno de1927, respectivamente, “A filosofia antiga” e “A história da filosofia de
São Tomas a Kant”.
28 28
pelo contrário, é somente perceber sua extrema obscuridade. 2) O que se pode
concluir da sua máxima universalidade, é que o conceito ser é, também,
indefinível, pois a palavra a ser definida, ser, já é empregada na própria
definição: O ser é... Neste caso, a indefinição do conceito assinala para o fato
de que o ser não poderia ser conhecido ao modo do ente; e, 3) Ser é um
conceito evidente por si mesmo. “Em todo conhecimento, proposição ou
comportamento com o ente e em todo relacionamento consigo mesmo, faz-se
uso do ‘ser’ e, nesse uso, compreende-se a palavra ‘sem mais’” (Id. Ibid.. p.
28/29, § 1). De acordo com Heidegger, é justamente o caráter de indefinição e
de auto-evidência do conceito de ser que dispensaria um questionamento
acerca de seu sentido. Um problema que ele verifica estar enraizado na história
da Filosofia. No entanto, pergunta Heidegger: “A questão do sentido do ser e a
tarefa de um esclarecimento deste conceito não formam pseudoquestões, se
acreditamos dogmaticamente - como é a regra – que o ser é o conceito mais
universal e o mais simples?”.(HEIDEGGER, 1985, p. 33, § 4) Considerando
isto, como compor essa interrogação pelo ser? Por onde avançar até a questão
do seu sentido? A partir de que o determinar? Como o analisar? Sobre qual
caminho se deve avançar até a questão do sentido do ser em geral? Na
perspectiva de Heidegger retomando um dos procedimentos da
fenomenologia reflexiva de Husserl para transpor o campo de interrogação
em direção a um desligamento da representação e do pensamento do ser
como presença, inicialmente, esse caminho deve encontrar-se desvinculado do
pensamento filosófico que tem como base pressupostos aceitos sem um
profundo questionamento. Segundo Heidegger, faz-se necessário romper com
os sistemas filosóficos que inverteram a questão do ser ao perguntarem pelo
29 29
ser desde o ente e retroceder à origem do pensamento acerca do seu sentido.
O que significa: a retomada do problema da fundação da ontologia e a
exploração das suas possibilidades encobertas.
A análise dos preconceitos que impediram o questionamento originário
da questão do ser garante a proposta de retomada da questão, pois atesta que
ela nunca foi colocada de forma clara, ou pelo menos, de maneira suficiente.
Ela nos mostra, fundamentalmente, que o conceito ser é comumente utilizado
por nós. Uma interpretação do ser é oferecida sempre que nos relacionamos
com o ente. É fato para o autor que já dispomos de certa compreensão do ser
(Seinsverständnis) do ente ao nos relacionarmos com ele; experimentamos a
sua realidade, a sua estabilidade, decidimos a sua verdade, etc.
Compreendemos este conceito porque ele é subjacente a toda atitude em
relação ao ente. Considerando isto movemos sempre numa compreensão do
ser, numa “anterioridade” que possibilita compreendermos os entes que saem
ao encontro dentro do mundo. Alguma coisa como o ser se oferece a nós na
compreensão do ser do ente. O que significa que o sentido do ser deve
encontrar-se, de alguma maneira, já disponível ao ser-aí. Na interpretação
heideggeriana, a pergunta fundamental pela possibilidade do conceito ser
conduz à pergunta, mais originária, sobre a concepção pré-ontológica de ser.
Apesar de fazermos uso do conceito ser não podemos determiná-lo
teoricamente, ele se apresenta a nós numa total incompreensão. Ao fazer uso
desta palavra deparamo-nos com uma variedade de significados alcançada
pelo conceito. Esta idéia confusa de ser Heidegger chama de concepção pré-
ontológica do ser ou, podemos dizer também, uma concepção pré-conceitual.
Contudo, segundo o autor, é a partir da tematização dessa compreensão
30 30
indeterminada do conceito de ser, a qual “se move no limiar de um mero
conhecimento verbal”, que ela pode ser superada. (HEIDEGGER, 1999, p. 31,
§ 2) Esta compreensão em que desde sempre nos movemos é a indicação que
Heidegger segue como âmbito fundamental da procura pelo sentido do ser.
Apesar de ser uma indicação um pouco vaga e indeterminada, ela auxilia na
busca da questão heideggeriana. A compreensão que sempre mantemos de
ser em todas as nossas relações fornece o acesso à questão do seu sentido.
Vemos, então, que a questão do sentido do ser somente surge porque, desde
sempre nos movemos numa compreensão do ser, ainda que obscura,
favorecida pelo próprio existir. Segundo o filósofo, “nós não sabemos o que diz
'ser'. Mas quando perguntamos o que é 'ser' nós nos mantemos numa
compreensão do 'é', sem que possamos fixar conceitualmente o que significa
esse 'é'" (Id. ibid., p. 31, §2). Como dissemos, na compreensão pré-ontológica
o sentido do ser encontra-se de algum modo disponível ao ser-aí. Esta
afirmação diz ainda que, tal ente, desde sempre, encontra-se envolvido em
uma compreensão de ser da qual brota a pergunta pelo seu sentido e a
tendência para a conceituação.
Como, então, se dá o acesso ao ente enquanto tal, nossa relação com
ele? É preciso que haja algo que nos encaminhe a este acesso. Será esta a
função ocupada pela compreensão ontológica? Visto que o ente enquanto tal
não se dá a conhecer conceitualmente, ele deve se mostrar numa significação
inicial. Isto quer dizer que é preciso compreender algo como o ser para se ter
experiência do ente enquanto tal. Desse modo, a ontologia fundamental
concretiza-se como Analítica do Ser-aí. A fundação da ontologia se torna uma
explicação da possibilidade intrínseca da compreensão do ser. Desse modo, é
31 31
somente através da análise da constituição ontológica do homem enquanto
existência que a pergunta sobre a compreensão pré-ontológica do ser pode ser
entendida. Nessa proposta de investigação da estrutura da existência, de uma
Analítica do ser-aí, Heidegger intenta trazer à luz novamente a compreensão
originária que temos do ser e que ficou esquecida ao longo da história da
Filosofia.
1.3. O PRIMADO ÔNTICO E ONTOLÓGICO DA QUESTÃO DO SER: A ONTOLOGIA
FUNDAMENTAL
Nos parágrafos 3 e 4 de Ser e Tempo, Heidegger fala do alcance do
conceito de ciência e a posição que ela ocupa em relação à colocação do
problema do ser. As ciências positivas se ocupam do estudo de uma região
determinada dos entes (Sachgebiet), previamente aberta por um esforço
desenvolvido como ontologia regional. Para que haja certo avanço para as
ciências, é necessário que o domínio correspondente a elas esteja de antemão
descoberto, de modo a que os conceitos-base, isto é, os conceitos sobre os
quais suas teorias se apóiam, e mesmo os objetos investigados, fiquem
disponíveis a uma primeira aproximação possibilitadora da investigação. É o
que Heidegger chama de experiência pré-científica. A experiência pré-científica
propõe uma interpretação inicial das diferentes regiões dos entes. A partir
desse domínio é que surgem os pressupostos que guiam todas as ciências
positivas. No entanto, há um rompimento da ciência com esse domínio pré-
científico. A investigação científica acaba por desconsiderar a “natureza” de
seu campo de pesquisa, ou seja, do campo que dá origem aos pressupostos
32 32
do qual parte. Desse modo, os conceitos condutores que abrem o campo de
estudo de determinada ciência não são investigados e muito menos
esclarecidos; seus conceitos condutores são operados cegamente.
Podemos retomar aqui a discussão de Heidegger com Husserl no que
diz respeito à diferença entre a analítica existencial e a fenomenologia
transcendental. O escopo husserliano era o de uma concepção de filosofia
como ciência, isto é, de uma filosofia fenomenológica; sendo assim, o âmbito
pré-predicativo que é aberto pela vivência intencional mostra que o estudo
fenomenológico deve ser considerado como anterior a toda relação da
consciência com o mundo. O que significa que o caráter prévio da investigação
fenomenológica serviria de base a todos os ramos do conhecimento, ou
melhor, se colocaria antes de toda a ciência explicativa do real, antes da
ciência física da natureza, da psicologia e antes mesmo de toda
metafísica.(HUSSERL, 1999, p. 21, II) Assim, o conhecimento seria explicitado
numa total unidade desde a fundação concedida pela intencionalidade.
Somente esta investigação permitiria elucidar verdadeiramente, segundo
Husserl, a experiência mundana. No caso de Heidegger, a analítica existencial
se apresenta como ponto de partida da análise de fundamentação das
ontologias regionais. A analítica do ser-aí não pretende ser um corpo
doutrinário totalmente incontestável, mas, ao contrário, propõe ser uma
interpretação que deixa em aberto a possibilidade de ramificar-se e continuar
crescendo.
Seguimos com a análise crítica de Heidegger às ciências regionais.
Segundo o filósofo, é necessário um questionamento acerca do domínio em
que a ciência se move, para, a partir daí, chegar a um questionamento radical
33 33
capaz de antecipar a interpretação do ente em sua constituição fundamental. A
pergunta da ciência deve ser pela própria estrutura que a possibilita obter seus
conceitos-base. Não obstante, o método utilizado pelas ciências é incapaz
dessa elaboração. Ela apenas consegue se firmar metodologicamente porque
não se volta para os problemas de fundação; ela não pode através de seus
métodos e princípios compreender a estrutura que a torna possível. Somente
através da ontologia é que o setor científico tem como pensar os conceitos do
qual parte. Através da análise do ser dos entes com o qual as ciências se
ocupam é que elas poderão saber mais sobre si mesmas. Assim, a carência de
fundação somente pode ser contornada através de uma ontologia regional, isto
é, o que deve ser questionado são as estruturas possibilitadoras que permitem
ao ente investigado aparecer como tal. Para Heidegger, antecipar um
determinado setor do ser é liberá-lo em sua constituição ontológica e
disponibilizar para as ciências “as estruturas obtidas enquanto perspectivas
lúcidas de questionamento". (HEIDEGGER, 1999, p. 37, §3)
A ciência deve, portanto, ser pensada como um modo de ser possível ao
ser-aí. Um modo de ser no qual o ser-aí se comporta com entes que “ele
mesmo não precisa ser”. (Id. Ibid. p. 39, §4) Este ente carrega em si uma
compreensão de sua constituição ontológica, de sua existencialidade, que está
implicada na idéia de ser em geral. Isso faz dele um ente que existe
compreendendo “ser”. Como dissemos anteriormente, o ser-aí, por ser em si
mesmo ontológico, é determinado pela existência, e para tanto, carrega uma
compreensão pré-ontológica do ser. Assim, é na estrutura do ser-aí que as
ontologias se fundam. Isto justifica porque a ontologia fundamental deve ser
procurada na Analítica existencial. Pois é na Analítica que serão apresentadas
34 34
a condição de possibilidade da projeção de ser pela compreensão de ser.
Portanto, a tarefa originária de uma ontologia regional exige a elaboração de
uma ontologia fundamental. As ontologias regionais dos diversos domínios dos
entes que fundam as ciências precisam estar fundadas numa ontologia
fundamental. Considerando, portanto, que ”o questionamento ontológico é mais
originário do que as pesquisas ônticas das ciências positivas”, as investigações
sobre o ser dos entes devem considerar ainda o questionamento acerca do
sentido do ser em geral. (Id. Ibid. p. 37, §3). Deste modo, a ontologia
fundamental deve ser vista como uma investigação sobre o sentido do ser em
geral, isto é, uma investigação sobre o horizonte no qual o ser se mostra. Uma
ontologia fundamental deve ser realizada a fim de que se possa apreender o
ser. A questão do ser visaria não apenas “às condições a priori de possibilidade
das ciências”, mas ainda, “às condições de possibilidade das próprias
ontologias que antecedem e fundam as ciências ônticas”. (Id. ibid. p. 37, § 3).
Além do primado ontológico, a questão do ser possui ainda um primado
ôntico frente aos demais questionamentos que o ser-aí pode se colocar. Para
entendermos este primado é preciso considerar, primeiramente, que no
discurso teórico das ciências, no que diz respeito aos determinados domínios
do ente, as teorias científicas encontram-se enraizadas em atitudes e
comportamentos. Como foi dito, a ciência ou o fazer científico é um modo de
ser possível ao ser-aí. Ela enraíza-se no “ente que escolhe se comportar de tal
ou tal maneira”. (GREISCH, 1994, p. 85). Desse modo, para esclarecer o
primado ôntico da questão do ser é preciso, antes, abordar o primado ôntico do
ser-aí na colocação do problema ontológico.
35 35
Há um ente entre todos os outros que possa guardar em si a
possibilidade de uma elaboração acerca do sentido do ser? Se há, o que o
distingue de todos os outros entes? Na perspectiva ontológica, todos os
objetos, sejam eles naturais, culturais, ideais, reais e etc., possuem sua
dignidade ontológica porque dizem respeito ao ser ou a maneiras de ser. No
entanto, elaborar a questão do sentido do ser significa trazer à luz o questionar
mesmo. Nos Prolegômenos à História do Conceito de Tempo, Heidegger
(2006, p. 182, § 16) afirma que o nexo entre a questão do ser e o ente
interrogante, o ser-aí, ocorre porque nós somos esta questão. Este perguntar
pelo ser já é, por sua vez, um ente. (Id. ibid., p. 185, § 17). Afirma o autor
(2006, p. 185): perguntar pelo ser é ele mesmo um ente que se dá junto com a
questão acerca do ser ao empreender o perguntar, caso se o perceba
explicitamente ou não. No conteúdo da questão encontramos o mesmo que
pergunta. Heidegger procura legitimar esta questão quando afirma ser preciso
entender corretamente o que se pergunta ao perguntar pelo ser. (Id. ibid., p.
185, § 16). O que está em jogo quando nos colocamos esta questão? É preciso
entender que o interrogar está intrinsecamente relacionado ao ente que
pergunta: o ser-aí. Privilegiar o ser-aí como o ente capaz de acessar o conceito
de ser significa que ele é o ente habitado pela questão do sentido do ser. O
que se busca, portanto, é tornar acessível esse ente que pergunta e que
projeta questões. Pois faz parte do seu modo de ser o questionar. O que
significa que o ser-aí existe estabelecendo uma relação com o seu próprio ser.
Ele não é nunca uma “ocorrência” ou algo que “tem lugar”, ele é sempre mais e
outra coisa que uma simples ocorrência. Existindo se relaciona com e por sua
existência. O ser-aí possui o privilégio frente aos demais entes de
36 36
compreender-se como possibilidade de ser deste ou daquele modo. Existindo o
ser-aí está decidindo-se a todo o momento, pois se compreende na lida
consigo mesmo. A compreensão que esse ente tem de seu ser ou de sua
existência se dá onticamente, ou seja, esta compreensão se dá no próprio
existir, no fato concreto da existência. A partir de sua existência é que o
homem se compreende; no existir mesmo ele compreende seu ser. Portanto, “a
questão da existência sempre só poderá ser esclarecida pelo próprio existir”
(Id. ibid., p. 185, § 16).
A tese de Heidegger é de que da compreensão ôntica resultam
estruturas ontológicas. Na compreensão de seu ser, o ser-aí compreende
também o mundo e os entes que estão dentro dele. Desta forma, uma Analítica
existencial já se encontra em tal compreensão ôntica. A possibilidade de uma
construção ontológica encontra-se ou funda-se na compreensão ôntica da
existência, onde se dá uma compreensão pré-ontológica do ser. Pois na
compreensão do ser o ser-aí é caracterizado em seu ser mesmo previamente à
elaboração de toda ontologia explícita.(GREISCH, 1994, p. 86) Uma
investigação ontológica é sempre uma possibilidade a ser projetada por um
ente que existe. De modo que o fundamento da própria compreensão de ser,
ou da ontologia, é o ser-aí. O ser-aí possui a capacidade teórica de
desenvolver uma ontologia por ser em si mesmo um ente ôntico e ontológico.
Como ente ontológico, isto é, que acolhe em si uma compreensão pré-
ontológica de ser, é possível perguntar-se ontologicamente com anterioridade
aos outros entes. Perguntar-se pelo sentido do possível. Desse modo, o ser-aí
é a condição ôntico-ontológica de possibilidade de todas as ontologias
37 37
regionais e o primeiro ente a ser interrogado no questionamento pelo sentido
do ser.
Como afirma Heidegger, a analítica existencial possui raízes ônticas
existenciárias. (HEIDEGGER, 1999, p. 40, § 4). Na cotidianidade mediana se
determina o que constitui o aspecto ôntico do ser-aí. Interpretar este ente
ontologicamente implica abordar a possibilidade mesma do existir, a
existencialidade da existência. Isto significa que na cotidianidade o ser-aí deve
ser visto não pela diferença de um modo de existir, isto é, a partir de uma
determinada idéia de existência, mas como um modo indeterminado que é
próprio da cotidianidade do ser-aí, na qual ele se encontra “de início e na maior
parte das vezes”. (Id. ibid., p. 79, § 9). Este modo indeterminado do ser-aí deve
ser considerado ontologicamente, pois é na indiferença cotidiana que
encontramos as estruturas ontológicas que compõem a existência. Segundo
Heidegger (1999, p. 80, § 9), estas estruturas são encontradas a priori na
cotidianidade.
1.4. O CONCEITO HEIDEGGERIANO DE FENOMENOLOGIA
No período de 1926 a 1927, Heidegger profere um curso em Marburg
publicado sob o título: Os problemas fundamentais da fenomenologia (Die
Grundprobleme der Phänomenologie). Esta é a primeira elaboração formal,
desde a assimilação do pensamento de Husserl como seu assistente,
diretamente ligada à fenomenologia enquanto procedimento metódico. Este
trabalho surge contíguo à preparação de Ser e tempo, marcando a autonomia
filosófica do filósofo alemão. Assume Heidegger, assim, sua própria versão da
38 38
fenomenologia. No referido curso, o filósofo admite a fenomenologia como
método para se investigar a compreensão de ser do ser-aí e determinar seus
elementos fundamentais. Ao contrário das demais ciências, a fenomenologia se
ocupa dessa compreensão que pertence ao ser-aí. O que significa que ela é “a
interpretação teórico-conceitual do [sentido do] ser, de sua estrutura e de suas
propriedades” (HEIDEGGER, 1985, p. 28, § 3) O ser e o que o constitui é o
fenômeno privilegiado na investigação fenomenológica porque o ser funda e
confere sentido ao que se mostra diretamente. Então, seria uma busca pelo
indeterminado, o ser, e como ele é experimentado frente ao determinado, ou
seja, frente ao que se mostra diretamente. Segundo o filósofo, a pergunta pelo
sentido do ser é uma pergunta eminentemente fenomenológica. Heidegger
entende que “ser é sempre ser de um ente”.(HEIDEGGER, 1999, p. 35 - § 3)
Essa é a intencionalidade do “ser”. A fenomenologia é, portanto, em seu
conteúdo, a ciência do ser dos entes, ela é ontologia. Consideremos, então,
que a fenomenologia de Heidegger tem como meta investigar o sentido do ser
a partir de um único modo de ser entendido em sua possibilidade e unidade
inversamente ao que pensava a ontologia antiga que entendia o ser numa
diversidade de significações.
18
O propósito deste capítulo, portanto, é apresentar a definição de
fenomenologia exposta em Ser e Tempo, bem como, sua articulação com a
analítica existencial do ser-aí. Na análise do que seja este procedimento
fenomenológico, é preciso que nos debrucemos sobre a interpretação do § 7
que trata da fenomenologia. Como nos informa o autor, esta é uma exposição
provisória e de índole terminológica do conceito de fenomenologia. Este caráter
18
Conferir nota 19.
39 39
provisório ou preliminar do método fenomenológico nos avisa que ele não pode
ser elaborado explicitamente fora do movimento da própria análise do seu
objeto. Por conseqüência, este procedimento não poderá partir da
demonstração e da dedução, mas de uma “mostração” (Aufweisung). De
acordo com a constituição fundamental do ser-aí, o “conceito de método”
apenas poderá ser distinguido e devidamente delineado, se considerado desde
a análise do ser e do sentido. O âmbito em que transita o método
fenomenológico não pode ser determinado por um ente previamente dado. Ao
contrário, é na não delimitação do objeto que se forma propriamente o todo.
Com a expressão fenomenologia Heidegger refere-se a um “conceito de
método”. Este termo não pretende exprimir o conteúdo essencial dos objetos,
mas o modo como os objetos são, isto é, tal como se mostram em si mesmos.
A fenomenologia para Heidegger não é um mero método formal que pode ser
justificado antes mesmo da própria investigação. A originariedade do “conceito
de método” está em prender-se à estrutura possibilitadora das coisas em si
mesmas, contrariamente à qualidade essencial de determinada coisa. A
fenomenologia se caracteriza por “manter aberta a tendência para as coisas
mesmas e liberá-las dos atrelamentos inautênticos e constantemente
emergentes e sorrateiramente atuantes”
(Figal, 2005, p. 34). Portanto, o
procedimento fenomenológico se determina por um questionar próprio que
surge do comportamento existencial do ser-aí, o questionar hermenêutico.
Justifica-se, assim, a necessidade de reiterar expressamente a questão que
interroga pelo ser apresentada no primeiro parágrafo de Ser e Tempo. Desse
modo, o questionar filosófico que caracteriza o “conceito de método”
fenomenológico, interroga-se pelo sentido do ser e, não mais, pelo ser do ente.
40 40
Contrariamente às ciências positivas que se perguntam pelo ser de um ente
previamente dado. Com efeito, é apenas a partir do que procede da
investigação existencial juntamente com a aplicação dos seus principais
momentos (reduktion, konstruktion e destruktion. (HEIDEGGER, 1985, p. 41 - §
5)).
que se torna possível determinar propriamente a noção de fenomenologia
heideggeriana. O que significa, que o conceito de fenomenologia apenas
poderá ser apresentado se estiver em movimento na analítica do ser-aí. Deste
modo, o método fenomenológico encontra-se em estrita relação com a analítica
existencial porque, como explicitamos um pouco atrás, é através da análise das
estruturas do ser-aí que o ser e seu sentido se revelam. Na dinâmica própria da
analítica existencial é que este conceito pode adquirir “forma”. Ele se determina
desde o âmbito de interrogação próprio ao ser-aí pelo ser e seu sentido, e
não antes dele. Heidegger planejava uma teorização mais completa e definitiva
sobre o conceito de fenomenologia a ser elaborada na terceira seção do
tratado Sein und Zeit quando da análise do ente interrogante. Mas seu intento
não chegou a se efetivar. Uma tentativa neste sentido é encontrada na
elaboração do curso de 1927, Die Grundprobleme der Phänomenologie obra
utilizada parcialmente em nossa pesquisa. Em conseqüência dessa mudança
de planos, decisiva para a tematização do método de Heidegger, um
procedimento que, como vimos, fugia de toda possível determinação explícita,
passa, no pensamento posterior do filósofo, a uma abordagem do ser como
evento da verdade.
19
Retomamos a abordagem do parágrafo sobre a fenomenologia.
Primeiramente, recuperaremos a análise dos termos fenômeno e logos
19
Conferir: BLANC, M. F. 2001, p. 215.
41 41
ambas as partes componentes do termo fenomenologia. Em seguida,
exporemos os três momentos constitutivos do método fenomenológico:
redução, construção e destruição na tentativa de alcançar uma primeira idéia
de sua significação. Visamos recuperar a preparação inicial deste
procedimento na edificação da análise da questão do ser fora do âmbito que
subjuga o ser à presença.
20
Vemos que a retomada da questão sentido do ser está claramente
associada à máxima fenomenológica: “às coisas em si mesmas”. Pois, o
procedimento fenomenológico pretende descrever tudo o que aparece tal como
se apresenta em si mesmo numa tentativa de tomar os fenômenos a partir
deles mesmos. Entendido, então, que a abordagem fenomenológica tem como
meta a busca do ser, o que nesta investigação será questionado é o ser
mesmo. Este "[ir] às coisas mesmas!" deve ser compreendido como
possibilidade existencial do ser-aí; como um procedimento que tem caráter
transcendental. Em Ser e Tempo esta máxima é vista de duas maneiras.
Primeiro, "ir às coisas mesmas" possui o significado de ir contra "construções
soltas no ar" e "pseudoquestões que se apresentam". (HEIDEGGER, 1999, p. 57,
§ 7)
Este conceito está vinculado às discussões críticas que Heidegger mantém
com as elaborações teóricas da tradição filosófica. Segundo o autor, para um
esclarecimento do método fenomenológico não se deve recorrer às ontologias
historicamente dadas. A investigação fenomenológica não deve partir de teses
já enunciadas sobre o ser. Este procedimento também não deve prescrever
"um ponto de vista" ou uma "corrente" filosófica na qual tratar o objeto ou
mesmo ancorar-se em artifícios técnicos. (Id. Ibid., p. 57, § 7). Ainda que o
20
Será empregada nesta abordagem a obra de Heidegger intitulada: Die Grundprobleme der
Phänomenologie.
42 42
conceito ser seja um termo comum para a tradição e possa ser simplesmente
empregado, sem mais, ele não pode, no entanto, ser considerado desde uma
perspectiva exterior, isto é, com base em princípios ou pressupostos. Num
segundo momento, no qual esta máxima é explicitada através da análise dos
termos lógos e fenômeno, veremos que a fenomenologia será esboçada a
partir de um horizonte teórico que toma os objetos como fenômenos, visando
certa maneira de abordá-los.
Como vimos, para que os objetos alcancem a forma de fenômeno é
preciso transpor os encobrimentos proporcionados pelas construções teóricas
inadequadas da tradição filosófica. É preciso considerar, segundo Heidegger,
que um fenômeno pode encobrir-se de variados modos. Primeiramente, ele
pode nunca ter sido descoberto e, por isto, encontrar-se velado. Ou ainda, o
fenômeno pode encontrar-se entulhado, isto significa que ele foi descoberto e
voltou a encobrir-se. Neste caso, o encobrimento pode ser total ou parcial. Por
estar na forma de fenômeno, o objeto encontra-se, já que parcialmente
encoberto, na forma de total aparência (Schein) aproximando-se a uma
desfiguração. De acordo com o filósofo, para se entender de modo originário o
termo fenômeno é preciso recuperar, num primeiro momento, a significação
que esta palavra alcança entre os gregos. Para estes, fenômeno quer dizer "o
que se mostra, o que se revela". Neste mostrar-se o ente revela-se em si
mesmo, tal como é. Daí não se exclui, no entanto, a possibilidade do ente
revelar-se como aquilo que ele não é, ou seja, de “mostrar-se” como parecer
ser. Neste caso, o fenômeno seria visto tal “como ele não é”, caracterizando-se
como parecer ou aparência. A coisa não é mostrada tal como é em si mesma.
O fenômeno mostra a coisa como ela parece ser. Neste sentido, fenômeno
43 43
“designa um bem, que se deixa e faz ver como se fosse um bem, mas que ‘na
realidade’ não é assim como se dá e apresenta”.(Id. Ibid., p. 58, § 7) Contudo,
o fenômeno como aparência, somente ocorre quando algo pretende mostrar-se
assim como é. Este significado originário de fenômeno fundamenta e sustenta
o “aspecto de...” do ente. O que significa que a primeira significação de
fenômeno como “mostração”, revelação, como algo que tende a “mostrar-se”,
funda o seu segundo sentido, mais ou menos negativo, de parecer, aparência,
semelhança e ilusão, etc., e não o contrário.
A palavra fenômeno pode ainda ser entendida num segundo sentido
ainda mais derivado: como manifestação (Erscheinung). Porém, esta distinção
não exprime o mesmo que aparência. Manifestação indica algo que em si
mesmo não se mostra, contrariamente à aparência que mostra algo que em si
mesmo não é. Ou seja, a manifestação indica o que é e a aparência mostra o
que não é. Por exemplo, as manifestações de uma doença não mostram a
doença, mas apenas deixam dela uma indicação. A doença não se mostra
como tal. A manifestação aponta a doença que em si mesma não se mostra.
Deste modo, a manifestação tem o sentido de um “anunciar-se de algo que não
se mostra”. O não-mostrar da manifestação não é o mesmo que o da aparência
já que a manifestação nunca poderá ter aparência de algo, pois apenas indica
algo que não se mostra. O manifestar-se não se mostra enquanto tal, apenas
anuncia-se. Por isto, a manifestação nunca será um mostrar-se no sentido do
fenômeno. O fenômeno da manifestação se sustenta no fenômeno em sentido
originário, isto é, no mostrar-se de algo. Para que a manifestação seja possível
ela deve ter como suposto o mostrar-se de alguma coisa, visto que ela indica
algo que se manifesta, e justamente por isso, é manifestação. Deste modo, na
44 44
medida em que algo pode anunciar-se a partir do que se mostra, o fenômeno
pode transformar-se em aparência, isto significa que a manifestação pode
tornar-se também simples aparência. Por exemplo, o rosto vermelho pode ser
interpretado como anúncio de febre. No entanto, a ocorrência do rosto
avermelhado pode ser devido à iluminação. O rosto parece vermelho, ele não
está vermelho. Neste caso, o rosto vermelho não é anúncio de febre. Logo, a
manifestação é uma simples aparência.
Prender-se ao fenômeno enquanto o que aparece, desde suas
características empíricas e acidentais significa um modo não originário, e
mesmo deturpador, do autêntico modo de dar-se das coisas. Na maioria das
vezes o fenômeno encontra-se desfigurado comprometendo a análise que dele
fazemos. Precisamos considerar como fenômeno a estrutura mesma que
possibilita que o ente seja aquilo que é, ou seja, pensar o inaparente, o que
subjaz ou encontra-se encoberto no ente. O fenômeno ocorre num duradouro
jogo entre ocultamento/desocultamento do ente. No processo de surgimento do
ente uma parte da sua estrutura se vela para que o ente surja em totalidade,
ainda que esta totalidade seja parcial, vista da perspectiva fenomenológica. A
parte que volta a encobrir-se possibilita o próprio aparecer do ente. Por isso,
um momento estrutural do ente continua necessariamente encoberto. Contudo,
é preciso perguntar: se a fenomenologia de Ser e Tempo visa justamente
tematizar essa estrutura ontológica, como ela pode fazê-lo? Há segundo
Heidegger, uma situação existencial própria do ser-aí que prepara toda questão
sobre o ser. Essa situação existencial ou modo de ser próprio é expresso pelo
fenômeno da compreensão ontológica, constitutivo e subsistente a ele. Isto
quer dizer que a indicação formal da idéia de existência e de ser sempre esteve
45 45
orientada por esta compreensão ontológica. Falemos dela, pois, é através de
sua elaboração que poderemos perceber que tais idéias guardam em si certo
“conteúdo” ontológico. (Id. ibid., p. 107, § 63). Qualquer modo de ocupação
pressupõe que o ser-aí já tenha se compreendido de algum modo. Apesar da
“falta de determinação ontológica suficiente” (Id. ibid., p. 106)., é preciso admitir
que desde sempre o ser-aí se mostra e se percebe enquanto ser-no-mundo, e
não como algo simplesmente dado. Essa antecipação própria do ser-aí é que
torna possível a ele compreender-se em qualquer situação. Assim, é através da
elaboração ontológica constitutiva do ser-aí que se poderá obter um
esclarecimento ontológico da idéia de ser. E, diz Heidegger, essa elaboração
só é possível com base numa interpretação originária do ser-aí feita pela idéia
de existência. Desse modo, a fenomenologia de Ser e Tempo tematiza aquilo
que só pode ser conceituado na medida em que já é compreendido. A
conceituação fenomenológica pressupõe necessariamente o que pretende
conceituar, de modo que mantém com o indicador formal uma relação de
circularidade. O conceito fenomenológico “deixa e faz ver o ente em si mesmo
tal como se mostra a partir de si mesmo”. O que está pressuposto e deve ser
compreendido é o próprio interpretar constitutivo do ser-aí. O interpretar
entendido como um modo de ser em relação ao ser.
Assim, retomando a análise, é preciso reconhecer que o conceito de
fenômeno, tal como é utilizado até aqui, é um conceito puramente formal. Pois,
não sabemos ainda a qual “gênero de realidade ele pode ser aplicado”.
(GREISCH, 1994, p. 103). Justifica-se, desse modo, a necessidade de separar
o conceito fenomenológico e fundamental de fenômeno, o fenômeno como “o
mostrar-se em si mesmo”, do conceito não fenomenológico e derivado, isto é,
46 46
em que a coisa não é tomada propriamente, mas sua característica mais
essencial provém de vários preconceitos admitidos acerca do sentido de ser do
ente no decorrer da história da Filosofia. Segundo Heidegger, uma apreensão
do conceito fenomenológico de fenômeno requer que o ente interpelado esteja
determinado como o que se mostra enquanto tal. Caso este critério não seja
admitido, teremos apenas uma noção formal de fenômeno, o que significa que
não teremos um conteúdo ao qual aplicá-lo. Ou seja, se entende por fenômeno
“o que já sempre se mostra nas manifestações [...] e que pode mostrar-se
tematicamente, [ou, como aparência]”. Continuando a explicação terminológica
do termo fenomenologia com vistas a alcançar uma idéia mais verdadeira deste
conceito, passamos à interpretação da noção grega de lógos.
Para alcançar o sentido próprio do conceito de lógos, Heidegger
recupera a polissemia que este conceito teve com os filósofos gregos Platão e
Aristóteles, mostrando que seus vários significados fizeram com que seu
significado fundamental tendesse à dispersão, aparentando não haver um
significado básico. Para Heidegger, há um significado primordial para este
conceito: discurso. A plurivocidade do conceito de lógos guarda em sua base
a significação de discurso. No entanto, como entender essas variadas
significações (tais como: razão, julgamento, conceito, definição e fundamento)
imbricadas na noção de lógos como discurso? Inicialmente, entendemos que
Heidegger toma esta questão como um problema fenomenológico e não
semântico. Entre os gregos, o significado da noção de lógos como discurso,
quer dizer: tornar manifesto, colocar à vista, fazer visível, revelar, fazer
47 47
conhecer. Sua significação básica é, portanto, “revelar aquilo de que trata o
discurso declarativo”. (HEIDEGGER, 1999, p. 62 - § 7)
21
.
Este “deixar e fazer ver as coisas” que acontece como modo de ser do
ser-aí se efetiva na linguagem. Segundo Heidegger, “em seu exercício
concreto, o discurso (deixar ver) tem o caráter de fala, de articulação em
palavras”. (Id. ibid., p. 63 - § 7). Justamente por ter a função de “tornar
manifesto” é que o lógos pode ser verdadeiro ou falso. Na perspectiva
fenomenológica, portanto, a verdade do lógos entendido aqui como deixar
ver, deixar conhecer significa desvelar o ente sobre o qual se discorre no
dizer. A verdade é, então, desveladora do ente, ela deixa e faz ver o ente como
algo desvelado. Em referência à verdade enquanto desvelamento é que a
proposição é definida. Contrariamente ao ser-verdadeiro, tem-se a falsidade do
lógos no sentido de encobrimento. A falsidade deixa e faz ver algo como o que
ele não é. Ela encobre o ser-verdadeiro do ente. Ela encobre o em si mesmo
do ente. A falsidade interpreta algo a partir de outro algo, ou seja, recorre
sempre a alguma outra coisa e, assim, o propõe como o que ele não é. Nesta
estrutura encontra-se, portanto, tanto a possibilidade de descobrimento quanto
de encobrimento.
Na interpretação de Heidegger, torna-se importante afirmar a
impossibilidade da concepção de verdade numa teoria lógica da proposição ou
do julgamento. O lógos no sentido proposicional não é o lugar primário da
21
Para justificar a escolha da noção de discurso como o significado básico e primordial do lógos
Heidegger remete-se a Platão e Aristóteles, pois eles utilizavam o verbo “tornar manifesto” (Offenbar
machen) para caracterizar a função fundamental de discurso. Desse modo, eles seriam os primeiros a
acenar para a essência fenomenológica da linguagem mesmo aceitando a plurivocidade do conceito. Cf.
(Greisch, 1994, p.104).
48 48
verdade.
22
O discurso declarativo é apenas uma modalidade particular do
“deixar e fazer ver”. O que Heidegger pretende, então, é alargar o conceito de
verdade, e para isto tem como via a perspectiva grega de lógos, segundo a
qual inclue na análise do lógos um poder relevante próprio da sensação
(aisthêsis). Segundo o autor, a verdade anterior ao lógos é a simples
percepção sensível de algo. Na percepção originária só há descobrimento, algo
nunca se encontra encoberto. Perceber alguma coisa significa já poder captar
as determinações do ser dos entes enquanto tais. Esta percepção nunca será,
portanto, falsa. O que pode acontecer é não haver percepção. Pois, nela, o
ente só pode estar descoberto; na percepção o ente só se mostra como o que
ele é, nunca como o que ele não é. Através do fenômeno ontológico
característico da noção de lógos enquanto “deixar e fazer ver” é que a questão
do ser e de seu sentido pode ser pensada enquanto uma possível elaboração.
A partir desta elucidação a fenomenologia pode ser expressa do
seguinte maneira: é um "deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra,
tal como se mostra a partir de si mesmo". (HEIDEGGER, 1999, p. 65, § 7)
Como indicamos anteriormente, este seria o conceito formal de fenomenologia.
Ele não apresenta conteúdo, não apresenta um tema a ser investigado, como
ocorre, por exemplo, com os termos teologia, biologia, etc., que se referem a
um objeto de estudo específico - o ente divino, os viventes. Este conceito
formal de fenomenologia apresenta-se como um modo de abordar e de mostrar
o “fenômeno” em questão, afastando toda determinação que não leve “para as
coisas elas mesmas”.
22
Segundo Greisch (1994, p.104), Heidegger reconhece que a função sintética que caracteriza o discurso
declarativo tem uma significão puramente aponfântica.
49 49
O conceito de fenomenologia deve apresentar como conteúdo: a
questão do ser. Com a desformalização, pretende-se deixar e fazer ver o ser e
suas estruturas. Assim, a fenomenologia conduz os objetos à forma de
fenômeno, do que se mostra em si. Com efeito, o fenômeno privilegiado na
investigação fenomenológica é o ser, visto ser a estrutura que concede “sentido
e fundamento” ao que se mostra diretamente. Fica, portanto, justificada a
afirmação de Heidegger de que a fenomenologia apenas se realiza enquanto
ontologia.
23
Na perspectiva fenomenológica, os fenômenos, “de início e na
maioria das vezes”, não se dão. (HEIDEGGER, 1999, p. 66, § 7). Isto significa
que justamente o que deve ser considerado como fenômeno é “o que não se
mostra diretamente e na maioria das vezes”. De início, o ser não é acessível
senão a partir do ente. Como já aludimos, a tese de Heidegger é a de que
“fenômeno é somente o que constitui o ser, e [que] ser é sempre ser de um
ente”. (Id. ibid., p. 68, § 7). O ver fenomenológico recai, então, sobre o ente de
tal modo que possibilita a tematização do ser deste ente. Visar
fenomenologicamente o ente reflete numa recondução ao ser.
Realizada a aproximação inicial na tentativa de explicitar o procedimento
fenomenológico a partir da análise do fenômeno e do lógos, veremos ainda que
ele é constituído de momentos ou etapas que devem ser pressupostas para o
reto andamento da elaboração fenomenológica.
24
Este procedimento é composto de três momentos constitutivos que são
os seguintes: redução, construção e destruição. A redução fenomenológica é
23
A partir desta idéia de fenomenologia Heidegger delimita, em seus trabalhos posteriores, de modo
mais concreto, o conceito de filosofia. Aqui já se encontra a tese de que a fenomenologia é o método
próprio da investigação filosófica.
24
Como indicamos anteriormente, a fim de apresentarmos as etapas constitutivas do método
fenomenológico, utilizamos a obra de Heidegger intitulada: Die Grundprobleme der Phänomenologie.
50 50
descrita como a "recondução do olhar fenomenológico de apreensão do ente –
qualquer que seja sua determinação – para a compreensão do ser desse ente".
(HEIDEGGER, 1985, p. 40, § 4). Este momento refere-se a um direcionar-se
para o ser em si mesmo desviando o olhar da simples efetividade do ente.
Percebemos que a redução aponta para a diferença entre a filosofia e as
ciências positivas, ou melhor, para seus respectivos objetos. A filosofia dirige
sua investigação para o ser, enquanto as ciências positivas dirigem aos entes.
Na literatura comentada há intérpretes que vêem a etapa da redução
como um procedimento negativo do método fenomenológico, pois esta etapa
captaria a diferença entre filosofia e ciências positivas sem apresentar o
pressuposto sobre as estruturas e o sentido do ser com o qual a filosofia conta.
Ou seja, faz-se uma relação entre elas sem ter presente os dados concretos
quanto ao âmbito e o objeto do questionar filosófico proposto pelo filósofo.
Heidegger afirma em Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia que o
procedimento não é negativo visto que ele apenas busca um reenvio em
direção ao ser. Segundo o autor (1985, p.40, § 5): “O método fenomenológico,
bem como todo método científico, desenvolve-se e transforma-se em função do
progresso que ele próprio se permite cumprir no acesso às coisas”. Nesta
discussão é preciso considerar a qualificação hermenêutica que possui a
descrição fenomenológica. No curso de 1923, Ontologia – Hermenêutica da
Facticidade, parágrafo 3, Heidegger afirma que os objetos da hermenêutica só
têm o ser que têm enquanto for susceptível e necessitar da interpretação. O
vínculo entre hermenêutica e investigação ontológica aparece em Ser e Tempo
(1927) através da tese: “Fenomenologia do Ser-aí é hermenêutica no sentido
originário da palavra em que se designa o ofício de interpretar”. (HEIDEGGER,
51 51
1999, p. 68, § 7). O termo hermenêutica não designa, entretanto, uma teoria da
interpretação. Em seu significado originário, hermenêutica tem o sentido de
“uma determinada unidade na execução do interpretar” (HEIDEGGER, 2005, §
3) ou, como mostra Ser e Tempo, interpretação significa: a apropriação das
possibilidades projetadas pela compreensão. (HEIDEGGER, 1999, p. 206, §
32). A facticidade mesma exige a hermenêutica, visto que, o fenômeno que a
hermenêutica investiga é a compreensão do ser desde a qual nos movemos.
No entanto, o pressuposto da compreensão do ser exclui a necessidade de se
ter previamente um conceito expresso de ser. Segundo Heidegger, ”atribuir [ao
conceito de ser] um ideal de evidência, ou [...] o exagerado ideal de evidência
que representa o ideal da ‘intuição da essência’” seria um desconhecimento
total do papel hermenêutico na fenomenologia (HEIDEGGER, 2005, § 3). A
tarefa da hermenêutica filosófica não consiste em negar os seus
“pressupostos” ou aceitá-los passivamente, mas em interrogá-los e colocá-los
autenticamente em questão. Desse modo, discordamos do caráter negativo da
etapa fenomenológica da redução apresentada por alguns comentadores de
Heidegger, visto desconsiderarem a íntima ligação e dependência que os três
momentos do procedimento fenomenológico guardam entre si. Esta afirmação
se justifica ainda mais ao explicitarmos as outras duas etapas do método
fenomenológico, a da construção e da destruição.
A construção fenomenológica aparece como o momento que propõe
alcançar o sentido do ser. Na construção o ente é projetado de modo a
esclarecer seu ser e suas respectivas estruturas. A construção fenomenológica
tende a converter o ser em tema de investigação. Com a tematização do ser de
um ente dá-se a possibilidade da investigação ontológica. Esta é uma
52 52
possibilidade a ser projetada pelo ente que está voltado para o sentido do ser e
suas estruturas: o ser-aí. Afirma o autor: "a construção fenomenológica é uma
interpretação conceitual do ser e de suas estruturas" (HEIDEGGER, 1985, p.
41 - § 4). Apreender o ser tem o caráter de uma interpretação. Com a
hermenêutica do ser-aí é obtido o sentido de seu ser, bem como a perspectiva
ou horizonte em que deve ser colocada e tratada uma investigação ontológica.
A tarefa fenomenológica apenas se completa se aos dois momentos
apresentados se unir um terceiro: a destruição fenomenológica. A destruição
fenomenológica é descrita como crítica à tradição. Para Heidegger, o ponto de
partida da investigação ontológica sempre foi o ente. Na tradição filosófica o
ser surge num projeto “redutivo” desde o ente, isto quer dizer, que o ser é
tematizado à maneira do ente enquanto algo simplesmente dado. Este modo
equivocado de tematização direciona a crítica heideggeriana aos conceitos
recebidos e assimilados da tradição filosófica. Logo, o problema que se coloca
é o do modo como o ente deve ser abordado nesta investigação. Segundo
Heidegger, é através dessa posição crítica que se pode assegurar à ontologia a
autenticidade de seus conceitos. No entanto, é preciso considerar que, embora
seja uma crítica à tradição, a destruição não tem o aspecto de negação. Ela se
apresenta como uma crítica positivamente apropriadora da herança filosófica.
Rever os conceitos com os quais a ontologia trabalha significa fornecer a
possibilidade de um avanço na investigação abrindo caminho a uma
reconstrução dos conceitos em bases mais originárias. A apropriação não
significa uma repetição do que foi legado pela filosofia, mas que o legado
filosófico deve despertar um questionamento que possibilite uma transformação
do que foi recebido da tradição filosófica. Desse modo, entendemos que a
53 53
fenomenologia não pode ser vista como um método tal como entendemos o
modo de prescrição científico. Ela perfaz-se frente a necessidade de se recuar
a um ponto em que possamos nos desfazer de atrelamentos lingüísticos que
estão pressupostos no interior da história da filosofia e que impedem assumir
uma atitude verdadeiramente investigadora. O procedimento fenomenológico
procura liberar o seu modo de pensar das perspectivas que se debruçam sobre
sua auto-evidência. Tornando necessário voltar ao momento em que a
pergunta pelo ser mobilizou o pensamento, ou seja, voltar ao momento de uma
“apropriação originária” da questão sobre o ser.
Contudo, é necessário pensar estes três momentos numa estrita
relação. A redução como estabelecimento da diferença ontológica corrobora a
construção de uma nova interpretação; a construção possibilita novos
questionamentos justificando a destruição; e a destruição enquanto crítica-
apropriativa da tradição perpassa a redução, a qual aponta para a
compreensão do ser em si do ente mediante um olhar crítico sobre a tradição.
As três etapas do método cumprem a função, portanto, de possibilitar que o
tema da filosofia apresente-se na forma de fenômeno, retirando os
encobrimentos legados pela tradição filosófica.
Nesta tematização expomos as diretrizes básicas da investigação
fenomenológica mostrando o procedimento adequado para a realização da
retomada da questão do ser.
25
A fenomenologia é, portanto, o acesso que
25
Ainda que ao interrogar-se pelos termos que compõe a palavra fenomenologia a elucidação se
apresente, de início, puramente terminológica, a análise desses elementos constitutivos é determinante
para a investigação. Daí que as considerações feitas por Heidegger em direção à procura por um
procedimento ajustado ao questionamento ontológico apóiem-se na contraposição ao conceito não
fenomenológico de fenômeno. Isto é, num conceito utilizado seguramente apenas na simples intuição
sensível e empírica (HEIDEGGER, 1999, p. 61, § 7). Segundo Heidegger, o proceder fenomenológico
transita “atrás” dos fenômenos em sentido vulgar. Este trânsito dá-se no âmbito em que o fenômeno, em
54 54
Heidegger encontra para que o que permanece esquecido no âmbito das
ordenações lingüísticas possa ser questionado. Realizada a exposição do
programa ontológico de Ser e tempo e do método fenomenológico passaremos
ao capítulo seguinte que tem como meta principal apresentar os elementos
necessários para mostrar o caráter derivado do enunciado e a relação que ele
guarda com o que se entende em Ser e tempo por discurso (Rede). Supomos,
para tanto, a relação de “co-originariedade” entre as estruturas ontológicas da
disposição e da compreensão e, conseqüentemente, o caráter obscurecedor
das perspectivas lingüísticas que se orientam primeiramente pelo enunciado na
busca da questão do ser. Assim, nossa tarefa será determinar como estes
existenciais de abertura, fundamentalmente a compreensão (Verstehen) e o
discurso (Rede), relacionam-se e condicionam-se entre si, considerando o
caráter estrutural que compartilham, e, a partir daí, tematizar esse fenômeno
estrutural. Iniciamos pela análise da noção heideggeriana de mundo na
tentativa de compreender o ente antes de ser delimitado no enunciado. Isto é,
como algo que ainda não se encontra determinado vem a se determinar ou,
como experimentar o indeterminado. Nessa análise investigaremos,
principalmente, a dimensão originária de significações que funda a esfera da
linguagem propriamente dita. Desse modo, entenderemos quais as
implicações do conceito de mundo para o entendimento da noção
sentido fenomenológico, em si mesmo se encontra velado. A passagem ao conceito fenomenológico de
fenômeno mostra a abrangência que o conceito de fenômeno adquire com relação à noção vulgar que
atua na intuição sensível. Com este conceito de fenômeno, Heidegger vê abertas novas perspectivas para
a investigação ontológica. Além disso, a passagem do conceito vulgar de fenômeno ao fenomenológico
vem legitimar a proposta indicada na etapa da redução fenomenológica, descrita por Heidegger na
elaboração do conceito de fenomenologia, que propõe desvincular-se das construções da tradição que
encobrem o sentido originário de fenômeno.
55 55
fenomenológica de enunciado (Aussage) em Ser e tempo, ou seja, qual as
suas condições de possibilidade. Através desta abordagem abriremos caminho
para expor a tese de que para haver discurso não há primeiramente a
necessidade da articulação em proposições enunciativas. No entanto, nos
caberá expor se esta dimensão não-lingüística, fundamento da linguagem,
pode possuir um caráter lingüístico. Logo, o capítulo a ser exposto tem por
função discutir e preparar a problemática da linguagem na obra de 1927.
56 56
Capítulo II
A CONCEPÇÃO DE SER-NO-MUNDO
2.1) A CONDIÇÃO DE SER-NO-MUNDO (IN-DER-WELT-SEIN)
Para tornar acessível o ente que pergunta e que projeta questões é
preciso, como afirma Heidegger, esclarecer o momento estrutural mundo. O
ser-aí está intrinsecamente ligado a mundo. Desde sempre o ser-aí se encontra
numa referência essencial com os entes. Através do esclarecimento deste
momento estrutural veremos que a sua compreensão somente se estrutura
caso esteja relacionada ao caráter fundamental do modo de ser do ser-aí: o
modo de ser-no-mundo.
Segundo Heidegger, a constituição fundamental deste ente, o ser-aí, é a
condição de ser-no-mundo. Em Os Problemas Fundamentais da
Fenomenologia, Heidegger (1985, p. 203, § 31) diz: “o ser-aí existe no modo de
ser-no-mundo. Tal é a determinação fundamental de sua existência, o que
constitui a pressuposição de toda a possibilidade de apreensão de alguma
coisa em geral”. Apenas sobre esta base devemos compreender suas
determinações. Por já ser sempre em um mundo, é preciso que tomemos, de
antemão, alguns caracteres ontológicos do ser-aí. No § 9 de Ser e Tempo,
Heidegger nos diz que “o ser-aí é um ente que, na compreensão de seu ser,
[isto é, sendo], com ele se relaciona e comporta” (HEIDEGGER, 1999, p. 90, §
12). Ademais, “o ser-aí é o ente que sempre eu mesmo sou” (id. ibid. p. 90).
57 57
Isto significa que é a partir de sua existência que esse ente deve ser
interrogado e que, em sua essência, o ser do ser-aí se encontra jogado à
singularização, a um caráter de “meu” (Jemeinigkeit). Pode-se dizer, então, que
o ser-no-mundo é o modo de ser do “ente que nós mesmos somos”, o ente que
torna possível a compreensão de algo. Sendo-no-mundo o ser-aí se
compreende a partir do que ele mesmo não é. Compreende-se sempre num
relacionar-se com as coisas. Isto nos assinala para o entendimento do ser-aí
não como uma consciência (Bewusstsein) tal como vimos em Husserl. A
consciência entre parênteses de Husserl constituía um escândalo para
Heidegger. Contrariamente a noção tradicional de consciência, Heidegger
apresenta o ser-aí não mais como um sujeito contraposto a um objeto ou
enquanto um âmbito não-mundano capaz de constituir mundo.
Assim, através da descrição heideggeriana da mundanidade do mundo,
exposta nos §§ 14 a 18, podemos analisar a teoria da significância exposta em
Ser e Tempo. Com esta análise veremos que um aspecto fundamental desta
teoria da “significação” é a existência de uma ordem de significações anterior à
linguagem. E que consiste na tentativa de explicar as significações fora do
quadro da filosofia da consciência. Para vermos como Heidegger desenvolve
este tema, explicitaremos, num primeiro momento, a constituição fundamental
do ser-aí: ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), supondo para isto que a noção de
mundo heideggeriana somente pode ser colocada a partir do ser-aí e,
considerando que esta noção é de fundamental importância no que se refere à
elaboração fenomenológica da linguagem. Faremos isto através do
entendimento dos elementos estruturais do ser-aí apresentados nos parágrafos
em questão.
58 58
Heidegger nos introduz ao entendimento da estrutura ser-no-mundo a
partir da caracterização orientadora do momento constitutivo “ser-em” (In-sein)
para, assim, posteriormente, realizar a análise dos outros elementos
constitutivos desta estrutura, a saber: o mundo e o que caracteriza o mundo
enquanto tal, isto é, o que ele chama: a mundanidade do mundo (die
Weltlichkeit der Welt) e, num segundo momento, o ente que existe “no-mundo”
(id. ibid., p. 91, § 12). Faremos uma breve exposição desta “caracterização
orientadora” e, em seguida, passaremos propriamente à análise do momento
estrutural mundo.
26
O autor pergunta: “O que diz ser-em?” E responde: “De saída,
completamos a expressão dizendo: ser ‘em um mundo’ e nos vemos tentados a
compreender o ser-em como um estar ‘dentro de...’” (HEIDEGGER, 1999, p.
91, § 12). O que Heidegger quer dizer é que embora tenhamos essa inclinação,
o significado de ser-em não é o de estar dentro de. O ente que é ser-em
(Dasein) não deve ser entendido como um ente que está dentro de outro ente.
Esse ente não é uma coisa que ocorre ‘dentro’ do mundo e que se mantém
numa relação espacial.
27
A característica de algo dentro ou em cima de outro
algo pertence aos entes que possuem o modo de ser dos entes intramundanos.
26
Para Heidegger, a expressão “ser-no-mundo”, apesar de ser uma expressão composta, refere-se a um
fenômeno unificado ou de unidade. Interpretar um dos seus momentos estruturais significa destacar
também os outros momentos constitutivos. Estes momentos encontram-se ligados entre si, ou melhor,
estão totalmente entrelaçados a ponto de ser uma unidade. Isto significa que ao examinar o momento
“em” é preciso ter em vista a totalidade do fenômeno. A análise do momento estrutural “em” é antecipada
na analítica existencial para mostrar que a análise dos diversos momentos singulares do Dasein deve
considerar numa “visão prévia toda a estrutura e evitar qualquer fragmentação e disseminação da
uniformidade do fenômeno”. Assegurar a uniformidade dos momentos constitutivos é de grande
importância para a discussão que nos orienta.
27
Isto não quer dizer que o homem não possua certa espacialidade. O que Heidegger defende é que a
espacialidade não pode ser entendida inicialmente desde o espaço puro. Ao contrário, é através da
transformação do espaço (por abstração) que o espaço geométrico e/ou científico se torna possível.
59 59
Assim, temos, por exemplo: a roupa “dentro” do armário, o armário “dentro” do
quarto, o quarto “dentro” da casa, a casa “dentro” da cidade, assim por diante.
O ser-em, enquanto constituição ontológica do ser-aí, não é uma categoria,
mas um existencial. Esta distinção entre o ser-aí e os entes intramundanos
permite a Heidegger separar os elementos que se referem à estrutura do ser-
, e que são nomeados “existenciais”, dos elementos que se referem aos
intramundanos, as categorias. Compreendido como um existencial, ser-em
indica uma familiaridade do ente que eu mesmo sou com o mundo que habito.
“A expressão ‘sou’ se conecta a ‘junto’; ‘eu sou’ diz, por sua vez: eu moro, me
detenho junto... ao mundo, como alguma coisa que, deste ou aquele modo, me
é familiar [ou mesmo, conhecida]”. (HEIDEGGER, 1999, p. 92, § 12). Habitar
em um mundo (no sentido de ser familiarizado com ele) é um habitar junto ao
mundo. O que significa que, de algum modo, esta familiaridade em que sempre
nos mantemos nos liga a esse ser-junto ao mundo. Enquanto existencial, o
”ser-junto” não deve ser compreendido como algo que está próximo de algo.
Apenas os entes que subsistem dentro do mundo, os entes intramundanos,
cujos caracteres ontológicos são denominados categorias é que possuem tal
característica. Os entes intramundanos não são entes existentes como o ser-aí,
mas entes subsistentes. Portanto, o estar em não é um “estar junto”
equivalente ao estar junto dos entes subsistentes, por exemplo, a cadeira junto
à mesa. Nesta perspectiva, não seria correto a afirmação: “a cadeira está perto
da mesa”, porque a cadeira não existe para “estar perto de...” Ela não pode
manter nenhum comportamento com relação à mesa, nenhuma relação de
familiaridade com a mesa. Os entes subsistentes são entes destituídos de
mundo e, por isso, estes entes jamais podem estar juntos uns dos outros. Só
60 60
pode estar junto o ente que possuir o modo de ser-em, o ser-aí. Apenas ele é
estruturalmente capaz de descobrir um mundo. Pois o mundo não está pronto
desde já, mas encontra-se sempre num processo incessante de interpretação.
Aqui, a palavra “interpretação” já atravessa, ainda que de modo tímido, a
análise e, por ser o ponto central da nossa investigação, ela somente se
explicita de forma mais abrangente no decorrer da abordagem. Assim, a
investigação da noção de mundo a partir da análise do ser-aí se justifica, visto
que o aparecimento das coisas intramundanas somente ocorre desde a
investigação do ente que se encontra mais próximo ou na origem desta relação
de surgimento, o ser-aí.
Por possuir certo caráter fático, ou seja, uma consolidação ôntica, o ser-
também pode, de algum modo, ser compreendido como um ente
simplesmente dado. Para que isto aconteça é preciso que o “existente” tenha
uma compreensão prévia de si mesmo para que possa, assim, tomar-se como
um ente simplesmente dado. Tal tipo de compreensão somente é possível a
partir de seu modo de ser próprio. Apesar de possuir um caráter fático, a
consolidação ôntica do ser-aí difere do caráter contingente dos entes
intramundanos, por exemplo, difere do caráter fático de uma determinada
espécie de pedras.
28
O caráter fático do ser-aí é denominado por Heidegger,
facticidade. Esta indica o caráter fático de um ente que é ser-no-mundo, mas
não de um ente “destituído de mundo”. A facticidade do ser-aí difere da dos
28
Em sua onticidade o ser-aí se mostra fragmentado em vários modos de ser-em, como os seguintes: ter
o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de alguma coisa, renunciar ou omitir
alguma coisa, etc. Os modos de ser-em possuem o modo de ser da ocupação (Besorgen). Com “a
caracterização orientadora do momento constitutivo ser-em”, Heidegger mostra que existe uma diferença
ontológica “entre o ser-em, como existencial, e a ”interioridade” dos entes simplesmente dados, como
categoria”. (HEIDEGGER,1999, p. 94, § 12).
61 61
entes simplesmente dados porque este existe contando com um mundo ao seu
redor (Umwelt). Ou melhor, ele conhece as relações que mantém com as
outras coisas. Já as coisas, estão simplesmente justapostas, não mantém uma
“relação” com as outras coisas. Na perspectiva da facticidade, há um contexto
circundante considerado de antemão pelo ser-aí para que ele possa entender a
si e ao outro como algo simplesmente dado.
2.2.A MUNDANIDADE DO MUNDO E O MUNDO CIRCUNDANTE
A noção de ser-no-mundo pretende mostrar um modo novo de conceber
o ser-aí enquanto uma maneira de ser. Nesta abordagem será aprofundada a
noção de mundo que compõe a expressão ser-no-mundo. Veremos de modo
mais abrangente que a expressão mundo é tomada por Heidegger como um
caráter fundamental do ser-aí, e por isto, possui um sentido ontológico-
existencial. Por conseqüência, a diferença entre a condição de ser-aí e a dos
entes intramundanos será mais acentuada. O que podemos supor com base na
interpretação anterior é que o que o autor procura investigar através da noção
de mundo não é o que há no mundo, tal como os objetos, a natureza, os
animais, etc., a busca é pelo sentido do mundo como tal. Isto é, pelo que faz
com que o mundo seja isto que ele é. Entramos, assim, na diferença entre o
que é ôntico e o que é ontológico. De modo breve, elucidaremos esta relação
que se encontra implícita em toda a analítica existencial. Através do que nos
deparamos, podemos considerar o que é (o ente) assim como ele é. Temos um
ponto de vista, portanto, ôntico, pois se refere ao ente (Seiendes). Mas
podemos considerar a estrutura fundamental desse ente, o que faz com que
62 62
ele seja aquilo que é, ou seja, o ser do ente. Desse modo, a abordagem
heideggeriana do mundo se detém na questão do mundo enquanto mundo, tal
é um problema ontológico. Heidegger não pretende pensar simplesmente o
mundo tal como um ente real, já pronto para ser decifrado. O que importa para
ele é saber como se estrutura o sentido, a conceitualidade de “mundo”. Como é
possível compreender algo assim como mundo? Como surge a significação de
mundo para que a empreguemos habitualmente enquanto um termo ôntico? A
concepção de mundo, considerada como caráter existencial-ontológico do ser-
aí, é questionada por Heidegger através do conceito de mundanidade do
mundo (Weltlichkeit der Welt). Para chegar à idéia de mundanidade, Heidegger
parte do caráter existencial de ser-no-mundo cotidiano. A partir da investigação
do mundo circundante (Umweltlichkeit) em que o ser-aí sempre se encontra é
que ele pretende interpretar o ente intramundano mais próximo. Por se tratar
de um ente intramundano é que entrevemos a possibilidade de entender, de
certa maneira, seu caráter mundano.
Heidegger procura compreender primeiramente alguns dos significados
que esse conceito obteve no decorrer das investigações habituais. Poder
reconhecer estes vários sentidos como insuficientes faz com que ele mude de
posição e passe a admitir que somente é possível encontrar o significado de
mundo sob a forma de um caráter existencial do ser-aí visto ser preciso
pressupor sempre o conceito de mundo caso o entendamos como caráter dos
objetos. Em Ser e Tempo, Heidegger apresenta quatro significados correntes
para o uso do conceito de mundo: 1) mundo como a totalidade dos entes
subsistentes (encontrada dentro do mundo); 2) mundo em sentido ontológico,
significando o ser da totalidade dos entes subsistentes; 3) mundo entendido
63 63
onticamente como o contexto no qual o ser-aí vive e, por fim, 4) mundo designa
o conceito ontológico-existencial de mundanidade. (HEIDEGGER, 1999, p. 105,
§ 14) Notamos que o termo “mundo” pode, segundo a descrição heideggeriana
de categorias e existenciais, indicar tanto um conceito ontológico-existencial
(mundo no quarto sentido), quanto um conceito ontológico-categorial (mundo
no segundo sentido - ser dos entes subsistentes). A busca de Heidegger é pela
apreensão do conceito de mundo no sentido de um conceito ontológico-
existencial, isto é, alcançar este conceito ontológico-existencial de
mundanidade. Para atingir tal propósito, afirma Heidegger, não se deve partir
de uma interpretação ontológica-categorial, isto é, de uma interpretação dos
entes que são subsistentes. Isto significa que a interpretação do fenômeno do
mundo não deve deter-se meramente à descrição do mundo, mas liberar sua
estrutura essencial, como já indicamos. No entanto, o que nos faz pensar que
esta noção de mundanidade, considerada como caráter existencial do ser-aí
pode possuir uma fundação mais sólida do que aquela que identifica o mundo
aos entes? Talvez Heidegger não pretenda aqui nos persuadir da sua escolha,
mas apenas indicar uma direção na qual buscar uma resposta.
29
Vimos que a mundanidade do mundo deve ser interpretada a partir do
ente que tem o modo de ser do ser-aí. A mundanidade pode vir a ser entendida
pela investigação da estrutura de ser-no-mundo. Como afirma Heidegger
(1999, p. 105, § 14): “Mundo” é um caráter do próprio ser-aí. A estrutura da
mundanidade encontra-se enraizada na relação que o “existente” humano
mantém com seu mundo cotidiano circundante. Na apreensão da idéia de
mundanidade os entes a serem primeiro tematizados serão os entes
29
Esse passo recupera a intenção investigativa da fenomenologia de Heidegger.
64 64
subsistentes porque são eles os entes mais próximos do ser-aí, pois fazem
parte do mundo que o circunda. Neste caso, o que precisamos ter em vista é o
modo como se estrutura o caráter mundano desses entes que fazem frente ao
ser-aí no mundo cotidiano; esses entes devem ser interpretados em seu ser.
Para isto, é necessário apreendê-los tendo como “fio condutor o ser-no-mundo
cotidiano”, ou seja, o “modo de lidar” no mundo e “com” o ente intramundano.
(id. ibid., p. 108, § 15). Esses entes que se encontram mais próximos do ser-aí
serão esclarecidos em seu ser na ocupação (Besorgen). Isto quer dizer que a
apreensão do ente intramundano consiste em uma interpretação
fenomenológica do ser-aí. Uma interpretação fenomenológica deve apreender
o ente intramundano em seu ser no modo que é característico do ser-aí, no
“modo de lidar” no mundo e “com” o ente intramundano.
Heidegger trabalha em cima da tese de que “o ser é sempre o ser de um
ente”. (id. ibid., p. 35, § 3). Logo, toda tematização do ser não pode prescindir
do ente. Desde o ente é que se pode entrever a estrutura possibilitadora dessa
maneira de ser do ser-aí. Isto significa que o ente que vem ao encontro e torna-
se acessível fenomenalmente na ocupação do mundo circundante também
deve ser interpretado a fim de que se possa apreender a mundanidade. O que
justifica a tese de que a apreensão da idéia de mundanidade deve ser buscada
na tematização do mundo mais próximo do ser-aí cotidiano. O mundo mais
próximo do ser-aí é o mundo circundante (Umwelt). O mundo circundante é
um caráter existencial do ser-no-mundo. Assim, Heidegger propõe uma
interpretação ontológica do ente intramundano (Innerweltlich) mais próximo,
65 65
visando alcançar seu caráter mundano
30
. Interpretá-lo significa aqui expor a
estrutura de seu ser, contrariamente à determinação das suas propriedades.
Heidegger diz que a interpretação deve “afastar-se das tendências de
interpretações [...] que encobrem o fenômeno da ‘ocupação’”. (HEIDEGGER,
1999, p. 109, § 15) O que interessa ao ser-aí cotidiano não é o conhecimento
puro do ente com o qual ele lida, mas o manejo, a utilização, o emprego. Dado
o caráter ontológico da investigação do ente com o qual o ser-aí se ocupa, é
importante não esquecer a máxima fenomenológica, “ir às coisas mesmas”. É
preciso olhar o ente tal como ele se manifesta em si mesmo, isto é, como ele
habitualmente encontra-se na ocupação e por ela. Assim, perguntamos: em
que consiste este conhecimento comum, habitual do ente? Comumente nos
deparamos com “coisas”. Mas, o que faz com que uma coisa seja algo assim
como coisa? Qual a condição que habilita algo ser caracterizado como “coisa”?
Ou, ainda, o que significa a coisidade da coisa?
Na perspectiva ontológica, os entes interpretados não devem ser
entendidos como coisa. O conceito de coisa encobre o modo fenomenológico
de descobrimento do ente na ocupação. Pois, segundo o autor, os entes
intramundanos que não tem o modo de ser do ser-aí se manifestam “imediata e
regularmente” como instrumentos (Zeug) e não como meras coisas. Lançar
mão do conceito de coisa no questionamento do ser do ente indica que a
análise detém previamente determinada característica ou conceituação sobre o
ente a ser tematizado o que foge da perspectiva fenomenológica de
desfazer-se dos pressupostos. Designar o ente como “coisa” é, neste caso, um
procedimento deficiente na medida em que o caracteriza, inicialmente, por
30
Heidegger (1999, p. 109, § 14) diferencia o adjetivo mundano como estando relacionado ao modo de
ser do Dasein do adjetivo intramundano ligado propriamente ao modo de ser do ente simplesmente dado.
66 66
exemplo, em função do aspecto da materialidade e da extensão. Segundo
Heidegger, os gregos nomearam a palavra coisa como instrumento, como
aquilo com o que se lida na ocupação. Enquanto pragmáta, as coisas não eram
apreendidas em suas propriedades, mas eram vistas como aquilo que o ser-aí
utilizava diariamente. No entanto, dirá Heidegger (Id. ibid.), os gregos não
esclareceram ontologicamente o caráter propriamente pragmático dos
instrumentos e acabaram determinando-os como “meras coisas”.
2.3.O
S ENTES DISPONÍVEIS (ZUHANDENHEIT) E OS ENTES SIMPLESMENTE DADOS
(VORHANDENHEIT)
O ente intramundano, na medida em que é descoberto no contexto das
práticas cotidianas, tem o modo de ser da disponibilidade ou instrumentalidade
(Zuhandenheit). Na ocupação cotidiana, veremos que o ente não é dado como
algo material ou algo de valor, mas surge, primeiramente, como instrumento
desde o modo peculiar de ser do ser-aí. Ao determinar que o ente que primeiro
vem ao encontro no mundo não deve ser apreendido como coisa, mas como
instrumento, Ser e Tempo passa a expor o modo de ser dos instrumentos, ou o
caráter pelo qual um instrumento é instrumento.
A ocupação cotidiana possui uma compreensão ou ponto de vista que
lhe é próprio, que descobre a referência fundamental do instrumento. A partir
de um conjunto instrumental (Zeug-ganzes) é que os instrumentos encontrados
no lidar, tais como instrumentos para escrever, para pregar, para varrer, para
calçar, etc., devem sempre ser compreendidos. Um instrumento nunca é
67 67
apreendido por si fora desse todo conjuntural.
31
Nessa totalidade os
instrumentos sempre são apreendidos numa relação de finalidade. A estrutura
do instrumento é constituída por um complexo de para-que no qual cada
instrumento guarda determinada relação com outros. Nunca um instrumento é
visto (compreendido fenomenalmente) separado de uma totalidade de
instrumentos para depois se unir a esta totalidade. O ser em si do instrumento
consiste sempre numa remissão a outro, seu modo de ser é estritamente
referencial. De modo sucinto, o instrumento isolado do todo referencial não é.
O instrumento é compreendido fenomenalmente apenas no conjunto dos
instrumentos, isto é, em sua instrumentalidade.
O instrumento sempre corresponde à sua instrumentalidade a partir
da pertinência a outros instrumentos: instrumento para escrever,
pena, tinta, papel, suporte, mesa, lâmpada, móvel, janela, portas,
quarto. Essas 'coisas' nunca se mostram primeiro por si para então
encherem um quarto como um conjunto de coisas reais. Embora não
apreendido tematicamente, o que primeiro vem ao encontro é o
quarto, não como ‘vazio entre quatro paredes’, no sentido de espaço
geométrico, mas como instrumento de habitação. (HEIDEGGER,
1999, p. 110, § 15).
O instrumento só pode ser apreendido de modo essencial quando
lidamos com ele. É no modo de lidar que esse ente mostra-se tal como é. O
31
Vemos que a noção que Heidegger nos apresenta de “instrumento” não se encontra restrita às
doutrinas utilitaristas e instrumentalistas. Para entender esta noção é preciso tomá-la em sentido mais
amplo do que freqüentemente usamos.
68 68
lidar é visto em uma significação bem ampla e quer dizer todo e qualquer
comportamento em relação a algo. Por exemplo: o martelo revela-se por si
mesmo naquilo que ele é no martelar executado pelo ser-aí ao empregar tal
instrumento. Este modo de ser do instrumento, em que ele se manifesta, é
denominado: disponibilidade (Zuhandenheit).
32
O instrumento só pode ser
usado porque possui um “ser em si”, isto é, o seu para-que que o torna
disponível para o uso. Enquanto modo de ser do instrumento, a disponibilidade
é uma categoria ontológica deste ente. O que nos diz que a partir do “para que”
de sua disponibilidade o instrumento já se encontra colocado numa
interpretação, se encontra significado. O que Heidegger nos sugere aqui é que
no âmbito das práticas cotidianas e sociais pode haver uma dimensão de
inteligibilidade anterior à linguagem.
Assim, ao possuir uma finalidade, todo instrumento é um instrumento-
para (Um-zu), serve para algo, é aplicado para algo. Ele somente pode ser o
que é caso esteja em relação a outros instrumentos. Os instrumentos ocorrem
porque há uma finalidade à qual se remetem. Daí segue, que esta finalidade
abrange a totalidade dos instrumentos, por exemplo: martelos, pregos e tábuas
só são compreendidos se estiverem em relação uns com os outros e, ainda, se
dirigidos ao mesmo fim. A finalidade à qual o instrumento é remetido é o que
unifica esta totalidade que, assim, torna-se significativa. Contudo, este
complexo finalizado não deve ser visto como o produto acabado da
32
É o fato de poder ser empregado que caracteriza o ser do instrumento. O instrumento não é
inicialmente dado como um objeto isolado que eventualmente poderia vir a ser utilizado. “O martelar [...]
não sabe do caráter instrumental do martelo [...]” (HEIDEGGER, 1999, p. 108 – 111, § 15). Sua
característica própria já é ser um ente disponível. O seu “ser-em-si” não é um conhecimento meramente
teórico, pois é a ocupação cotidiana que descobre o complexo referencial do instrumento. Em sentido
estrito, o próprio conhecimento teórico, ou um ponto de vista, necessita do esclarecimento da
disponibilidade.
69 69
concorrência entre vários elementos, mas, sim, como a totalidade estrutural na
qual este complexo se constitui. Segundo Biemel (2005, p. 30): “O instrumento
não se apresenta de início como um objeto isolado que poderia eventualmente
ser empregado, mas é o fato de poder ser empregado, [(de se remeter a uma
finalidade)], que constitui seu ser, seu caráter em-si (An-sich)”. O caráter de
totalidade da relação de finalidade entre os instrumentos é o que primeiro
constitui o aparecimento do ente com suas diversas determinações. A
totalidade instrumental não deve ser entendida, portanto, como uma simples
soma dos instrumentos, como uma justaposição de algo que possui tais
propriedades com outro algo também já determinado. Ou, como afirma
Heidegger: “uma compenetração de coisas no interior das quais circulamos [...]
para nelas instaurar finalmente certa coesão reunindo progressivamente coisas
isoladas”. (HEIDEGGER, 1985, p. 201, § 31). A possibilidade dessa
justaposição de coisas pressupõe já sempre a totalidade instrumental na qual
nos movemos e que é unificada pelo emaranhado de relações entre os
instrumentos formadores do complexo instrumental.
Nessa estrutura de ser “algo para...” encontra-se algo como uma
referência (Verweisung) de algo para algo (HEIDEGGER, 1999, p. 110, § 15) É
necessário ressaltar aqui que a noção de referência empregada por Heidegger
dá margem a várias discussões principalmente com os filósofos da linguagem.
As objeções giram em torno do pressuposto heideggeriano de que o ser- é
abordado desde seu já estar em um mundo. Ser e Tempo parte do fato de que
“o modo de ser originário do ser-aí” é compreender e que o ser-aí possui um
compreender tanto de seu ser como de algo assim como “mundo” (id. ibid., p.
40, § 4). A tese de Heidegger é a de que: “nos movemos sempre numa
70 70
compreensão do ser. [...] Essa compreensão do ser, vaga e mediana, é um
fato”. (id. ibid., p. 31, § 2). No que diz respeito à análise da Zuhandenheit,
afirmam alguns comentadores que não se pode recorrer inicialmente ao
instrumento visto que ele é constituído pela referência que pretende esclarecer,
não oferecendo, assim, base alguma para explicar sua constituição enquanto
tal. Heidegger afirma acerca do instrumento, como vimos, que ao seu ser
pertence uma totalidade (referencial) de instrumentos, e que um instrumento
somente pode ser entendido enquanto encontrar-se em referência a outros
instrumentos para formarem o que há de fundamental no instrumento, a
totalidade conjuntural. Mas, segundo esses comentadores
33
, para entender o
lidar com os instrumentos é necessário que já esteja pressuposto os diversos
modos do para-que...; é preciso que se tenha alguma compreensão antecipada
das referências que o instrumento mantém com os outros instrumentos do
complexo. Para inserirmo-nos nessa discussão é preciso determinar como
entender o termo “compreensão” tal como é usado por Heidegger. Inicialmente,
é preciso recordar que na ocupação os vários modos do para-que... de um
instrumento ainda não foram tematizados. São relações que surgem sem que
se saiba explicitamente qual a maneira de ser do instrumento. A estrutura
dessas relações, que aqui distinguiremos pelo termo Verweisung, é o que tem
de fundamental na abordagem da instrumentalidade, como veremos em
seguida. Segundo Heidegger, não observamos o instrumento primeiramente de
modo teórico, como um ente simplesmente dado. Descobrimos o instrumento
numa compreensão orientada para as nossas ocupações diárias. A mesmidade
do instrumento reside na lida, na ocupação com a coisa de uso. Na ocupação o
33
Cf. Cristina Lafont, Lenguaje y apertura Del mundo: el giro lingüístico de la hermenéutica de Heidegger.
Madrid: Alianza, 1992.
71 71
ente aparece imediatamente em sua relação à instrumentalidade. O que quer
dizer que o tomamos nas mãos e o empregamos. Quando não conhecemos um
instrumento perguntamos imediatamente para que ele serve. Isto é, o
tomamos, ainda que não expressamente, como algo que está voltado para
alguma finalidade, ou melhor, para determinados fins humanos. Esta
perspectiva existencial-ontológica torna possível o surgimento das referências
fundamentais de um instrumento.
Assim, a noção de referência empregada por Heidegger deve ser vista
de modo a que o caráter referencial do instrumento seja remeter sempre para
além de si, numa referência constitutiva. A relação de um instrumento a outros
representa o fenômeno ôntico a ser entendido a partir da perspectiva
fenomenológica heideggeriana. Considerando isto, o que passa a ser estudado
ontologicamente sob o conceito de referência (Verweisung) é a
instrumentalidade do instrumento representada pela totalidade referencial que
caracteriza um instrumento enquanto tal. Contamos com o auxílio de um
exemplo: uma caneta possibilita pela primeira vez o escrever, contudo, também
a superfície sobre a qual se escreve, a tinta que risca, etc. viabilizam o
escrever; há um conjunto possibilitador. Logo, a caneta é interpretada no
escrever. Podemos entender, então, que o caráter disposicional dos
instrumentos não é apenas acessível em razão do uso fáctico, isto é, não é
algo que se dá em razão de uma compreensão direta.
34
É através da atividade
de escrever que se confirma o caráter disposicional do instrumento. O caráter
disposicional faz com que nos orientemos sobre as coisas. No momento da
descoberta do ente enquanto instrumento, incide sobre eles certa “orientação
34
Caso esta tese fosse admitida não se poderia chegar ao entendimento de como se chega em geral à
possibilidade do uso.
72 72
prévia”. Quando manuseamos um instrumento ele deve ser entendido sempre
enquanto “algo para...”. Compreendo um instrumento a partir daquilo para que
ele serve. Na totalidade instrumental o instrumento corresponde propriamente à
sua instrumentalidade, ao caráter pelo qual um instrumento é um instrumento.
O “ser algo para” escrever da caneta não pode ser observado junto a ela. A
instrumentalidade do instrumento caracteriza-se por não se encontrar presente
no objeto. Ela somente é compreendida quando a utilizamos na atividade de
escrever. Posteriormente, trataremos mais especificamente do caráter
referencial do instrumento através da noção de conformidade (Bewandtnis).
Nesse momento, abriremos espaço para reintroduzir a discussão com
Husserl ao entendermos que a apropriação feita por Heidegger da noção
husserliana de intencionalidade – enquanto “caráter fundamental” da vida da
consciência –, pouco tem a ver com o modo como a entende Husserl, a saber,
no sentido de fundação do conhecimento dos objetos em si. A fenomenologia
reflexiva pressupõe necessariamente um modo intencional do sujeito; um modo
fixo de constituição do objeto desde o qual é possível retroceder do resultado
acabado (o objeto enquanto unidade) até o modo de sua formação na
consciência. Para Husserl, o fundamento não é um modo de ser ôntico. Voltar-
se para o mundo circundante ou mundo mais próximo do ser-aí significa
interpretá-lo em função das possibilidades transcendentais de seu ser e não
em função dos modos de ser existenciais em sua efetividade. Husserl entende
o surgimento do significado desde a apreensão teórica da consciência. Os
entes são constituídos na consciência transcendental por intenções
significativas. Para ele, a consciência constitui intencionalmente os objetos
através da multiplicidade de seus atos. Essa prática constitutiva que desvia o
73 73
foco do objeto para os seus modos de aparecer permite considerar o objeto
como resultado desse processo. Para Heidegger, a questão da
intencionalidade trata, antes, da disponibilidade ou manualidade do instrumento
enquanto tal. Na sua perspectiva, o “visado” não é mais objeto para uma
consciência, mas instrumento para o uso. Os objetos são apreensíveis desde a
sua possível empregabilidade. Os entes significam a si mesmos no uso; na lida
com o instrumento é que surge a significabilidade do ente. Podemos dizer que
a apropriação da noção de intencionalidade ocorre em Heidegger de modo que
podemos entendê-la como ocupação. Toda significação, intenção, é
originariamente ocupação, uso. Se toda significação é em função de seu uso,
então, o que está em questão é a lida ocupada mesma. Quando Heidegger faz
a análise, segundo a qual, fora da totalidade referencial o instrumento não “é”,
mostra que o instrumento já aponta para o seu caráter de possibilidade. Do
mesmo modo acontece com a obra como um todo, a possibilidade de suportar
a totalidade referencial se apóia na possibilidade do instrumento. Assim, nela
mesma está a sua finalidade e a sua realidade. Mais abaixo veremos que o
instrumento se torna manifesto em sua não-objetualidade quando se mostra
inapropriado para o uso, inutilizável. Isto possibilita perceber que o instrumento
não é nenhum objeto, mas uma conjuntura, uma conformidade (Bewandtnis).
Contrariamente à constituição intencional dos objetos por uma consciência,
Heidegger entende que o ser-aí mesmo se encontra “referido” no modo da
conformidade ao ente do qual se ocupa, de modo que esse ente disponível
só “faz sentido”, só significa o que ele é, na ocupação do ser-aí. Algo somente
é descoberto em sua conjuntura; na realização da sua interpretação é que ele
se deixa interpretar como algo. Para que o instrumento seja liberado para a
74 74
conjuntura, é preciso que o ser-aí o “deixe conformar”. Para isso, ele deve ser
pensado conjuntamente com um deixar ser. Na terminologia heideggeriana,
“deixar ser” significa já sempre se ter descoberto um ente em sua
disponibilidade e, desse modo, deixá-lo vir ao encontro como ente desse ser.
Nesse caso, descobrir não tem o sentido de trazer algo à luz ou de produzir
algo. A possibilidade de descoberta do ente diz respeito a já se estar “inserido”
em sua abertura, isto é, de se estar “inserido” num modo determinado no qual o
ente tem que ser. O “inserir-se no ente” deve ser entendido na perspectiva da
lida ocupada com o ente. Desse modo, o ser-aí “libera o ente” antecipadamente
para a disponibilidade da circunvisão. A realização da interpretação, portanto,
está em estrita relação com o deixar-ser. Assim, o ser-aí o deixa ser em meio
ao uso sob a maneira específica da abertura na qual ele é.
Com relação ao objeto intencional de Husserl podemos relacioná-lo, em
termos heideggerianos, à Vorhandenheit na medida em que só se pode pensar
um objeto separado da totalidade conjuntural em que se encontra inserido, e da
qual adquire sentido, se já tiver feito parte do todo conjuntural enquanto
instrumento. É apenas desde a Zuhandenheit que algo pode ser tomado como
objeto de uma consciência. Desse modo, a ontologia fundamental se mostra
necessária para tornar confiável toda elaboração teórica. Antes de uma
abordagem da filosofia como ciência (proposta husserliana) seria preciso
interpretar o sentido do ser do ser-aí. Na descrição da gênese existencial que
Heidegger faz do objeto entendemos que há alguns elementos (instrumento,
referência, sinal, conformidade) que, no contraste com Husserl, surgiriam como
pressupostos implícitos de uma análise puramente intencional. A matéria
intencional para Husserl possibilita e orienta o acesso ao objeto, como
75 75
significação, no entanto, enquanto intuição, ela pressupõe o objeto constituído.
Logo, podemos entender que o objeto já se encontra constituído quando se fala
em dados sensoriais, o que implica que está constituído ao nível da
significação. Na perspectiva de Heidegger, como descrevemos na análise da
mundanidade, o mundo não é considerado como o conjunto dos objetos da
experiência e não remete para a realidade em si. Os elementos existenciais
utilizados pelo filósofo, em Ser e Tempo, mostram que eles não são
propriedades dos entes, mas reenviam apenas à condição de possibilidade de
que os entes sejam encontrados. Isto é, os objetos já estão sempre
condicionados pela compreensão do ser-aí enquanto ser-no-mundo. Com
efeito, é a significabilidade que constitui a estrutura daquilo sobre o fundo do
qual o ser-aí se “comporta” – “comportamento” não no sentido empírico, mas
como condição de possibilidade; o “comportamento” do ser-aí possibilita a
atitude empírica. A ação de significar está implícita no caráter de remetimento
da referência que trataremos a seguir. Assim, os entes são compreendidos a
partir do comportamento próprio do ser-aí. Significância é, portanto, a
familiaridade na qual o ser-aí se encontra desde sempre inserido enquanto ser-
no-mundo. São precisamente a partir da estrutura da significabilidade pela qual
o ser-aí se compreende que se pode abrir algo como “significações”, e que, por
seu lado, fundam o ser possível da palavra e da linguagem. (Heidegger, 1999,
p. 132 – 133, § 18).
Consideramos, então, que a análise e descrição da lida com o
instrumento possuem papel importante na totalidade do pensamento de Ser e
Tempo. O valor conjuntural dessa abordagem diz respeito, antes de tudo, ao
escopo heideggeriano de tornar compreensível a estrutura da predicação a
76 76
partir da ocupação com os instrumentos. Percebemos que a ocupação
cotidiana encontra-se submetida ao caráter constitutivo de referência do
instrumento. O significar tem sua origem nas práticas cotidianas, no modo
como os instrumentos se relacionam entre si e os fins humanos. Esta estrutura
referencial que liga vários instrumentos uns aos outros é a condição mínima
para que haja significado. Pois, sob certas condições, a referência implícita que
os instrumentos mantêm com outros instrumentos pode assumir uma função
referencial explícita. É no âmbito desta rede de instrumentos, de referências e
finalidades que os entes se manifestam e que, por conseguinte, se pode falar
de significações. Desse modo, toda interpretação será pensada pela
perspectiva do uso, o que marca a inserção da análise do fenômeno da
referência na ordem do sentido. O que nos importa daqui pra frente é entender
como Heidegger articula a idéia de tornar compreensível a estrutura da
predicação a partir da ocupação com os instrumentos para chegar a uma
concepção propriamente fenomenológica da significação. Mas, antes,
precisamos nos deter por mais tempo na abordagem do fenômeno da
referência que serve como fio condutor à análise do sinal e da significação.
2.3.O
FENÔMENO DA REFERÊNCIA (VERWEISUNG) E O SINAL (ZEICHEN)
Ao descobrir o modo de ser dos instrumentos, ainda não entendemos de
que modo esta descoberta auxilia na apreensão do fenômeno do mundo. Como
apontar, no modo de lidar da ocupação, a mundanidade do mundo? Sob que
forma nós devemos pensar “mundo” e “mundanidade”? Investigaremos aqui a
via de acesso a esta questão, que, como já sabemos, é uma via determinada
77 77
por uma possibilidade ontológica do ser-aí, o ser-no-mundo. Esta questão é
abordada no §16 por Heidegger e tem como título: A determinação mundana
do mundo circundante que se anuncia no ente intramundano. O filósofo
apresenta a determinação mundana do mundo circundante (como se dá o
anunciar de “mundo”) através da exposição dos instrumentos encontrados nos
modos da surpresa, da importunidade e da impertinência. Nesses modos os
instrumentos perdem, de certa forma, sua disponibilidade; seu caráter de ser
disponível não pode mais ser empregado. A impossibilidade do emprego pode
se dar de alguns modos, o primeiro analisado por Heidegger é o modo da
surpresa. O instrumento surpreende porque, no todo referencial, encontra-se
indisponível para o uso, mostra-se inutilizável. Nessa desordem, o instrumento
pode perder seu caráter de disponível caso não seja reparado ou substituído.
Fica evidente o rompimento que ocorre no conjunto referencial que o
fundamenta. Outro modo da indisponibilidade é a importunidade. O instrumento
é importuno quando se constata sua falta. Quanto maior for a necessidade do
instrumento, mais intensa é a perturbação devido à ausência na ocupação.
Através da ausência de um instrumento determinado é que todos os outros
instrumentos que compõem a totalidade referencial se impõem. É preciso
considerar que nesse evidenciar-se estéril os instrumentos podem se
apresentar parcialmente indisponíveis, no entanto, é impossível utilizá-los na
falta de um dos componentes que integram a totalidade conjuntural. No
entanto, o modo perturbado em que o instrumento se encontra, de algum
modo, não insinua certa disponibilidade? Ainda que o caráter de disponibilidade
do instrumento pareça esvair-se, a paralisação do lidar, quer seja pela falta ou
pelo não emprego do disponível, aponta para um modo deficiente da ocupação
78 78
que não deixa de ser uma disponibilidade à indisposição. Por fim, o terceiro
modo de desordem na ocupação é a impertinência. O instrumento está
presente, pode ser empregado, no entanto, não é apropriado para determinada
ocupação. O instrumento é impertinente porque não pertence à tarefa que nos
ocupa. Ele aparece como obstáculo, impede a visualização da disponibilidade
dos instrumentos em questão mostrando-os enquanto entes que estão
simplesmente dados. Aparece assim a Vorhandenheit. O instrumento de algum
modo deficiente (que de algum modo importuna por perder sua disponibilidade)
torna visível o todo do qual ele faz parte, o “canteiro da obra” e, portanto, a
totalidade instrumental. O “canteiro da obra” remete-se para a mundanidade do
mundo porque através dele o mundo se anuncia. No entanto, a disponibilidade
e a totalidade de referências não desaparecem. Quando os objetos encontram-
se de algum modo inadequados ao uso, o ser-aí é forçado a considerar “o que”
e “para que” eles estavam disponíveis, e, assim, considerar a totalidade das
relações de referência, as quais fundamentam sua conveniência. Com o
instrumento inadequado o ser-aí não consegue realizar uma tarefa, então, a
tarefa e tudo que a cerca se evidencia. A totalidade significativa da lida é o que
primeiramente se mostra, isto é, a totalidade conjuntural.
35
Na circunvisão o conjunto instrumental é visualizado como um todo. Diz
Heidegger: “Nesse todo, anuncia-se o mundo”. (HEIDEGGER, 1999, p. 117, §
16) O mundo é que possibilita o encontro primário com entes enquanto entes
individuais. Ele não é a totalidade dos entes, mas o plexo referencial que
envolve tanto uma possibilidade existencial, quanto totalidades de remissões
vinculadas a uma possibilidade existencial. Nesta perspectiva, mundo não é a
35
Nesta frase é preciso reconhecer a prioridade existencial do termo “significativo”. Posteriormente
veremos que este termo não assume um sentido semântico-lingüistico.
79 79
totalidade dos entes, não se identifica com tal ou qual ente, nem com o
conjunto dos entes. E, menos ainda, mundo se interpõe entre ser-aí e os entes,
senão que é a condição de possibilidade de que estes se mostrem. Mundo diz
respeito ao todo de relações de significância (Bedeutsamkeit), como
explicitaremos mais tarde.
Assim, nos modos deficientes em que os instrumentos podem se
apresentar, a referência se mantém explícita permitindo que o mundo
circundante se evidencie. Na falta ôntica do instrumento é que tal explicitação
se efetua. Segundo Heidegger: “Numa perturbação da referência – na
impossibilidade de emprego para... a referência se explicita, se bem que
ainda não como estrutura ontológica, mas onticamente, para a circunvisão, que
se depara com o dano da ferramenta”.(id. ibid. p.117) Isto significa que o
caráter de instrumento é explicitado primeiro onticamente, visto que o
instrumento, pela desordem referencial, aparece como ente simplesmente
dado. Somente quando o instrumento aparece como ente simplesmente dado é
que o caráter de disponível que possui se mostra. Aqui a indicação de
Heidegger diz respeito à referência enquanto estrutura ontológica. Esta relação
será explicitada, em seguida, através da abordagem do sinal já que no exemplo
encontrado em Ser e Tempo ele é o instrumento escolhido por Heidegger para
uma abordagem mais precisa e aprofundada do fenômeno da referência.
36
Para concluir essa análise, podemos dizer que os modos deficientes em
que os instrumentos podem ser encontrados se tornam tema da Analítica do
36
A análise da referência em bases ontológicas ressalta um segundo sentido do termo referência que
surge da ação de mostrar do sinal. A noção de referência é colocada em bases ontológicas diferenciando-
se, segundo Heidegger, “da estrutura ontológica do sinal enquanto instrumento” já que o sinal se mostrará
com uma peculiaridade especial. (Id. ibid. p. 122, § 17).
80 80
ser-aí com o escopo de mostrar que no lidar da ocupação pode-se visualizar o
fenômeno do mundo. Além disso, ao tematizar a desmundanização dos
instrumentos, isto é, as referências e conjuntos referenciais nos modos
deficientes da ocupação, Heidegger pretende tornar compreensível a estrutura
da predicação através da lida com os instrumentos. Em condições privativas,
enquanto ente simplesmente dado, o instrumento aponta para o todo
significativo no qual estava inserido. Isto quer dizer que a Vorhandenheit é
indicadora de mundo quando não pertence mais a ele. Ao perder seu “para
que...”, ou sua disponibilidade, ocorre que o instrumento não cumpre mais sua
função no todo conjuntural. O instrumento pode aceder ao modo de ser da
simples presença quando abstraído de seu contexto prático. Devido a isto, o
instrumento no modo da deficiência é um ente desmundanizado. Somente
através da noção comum de mundo, isto é, mundo como “o todo dos entes
intramundanos”, os instrumentos podem ser tomados desde sempre como
objetos. Podemos inferir daí, portanto, que é a partir da desmundanização do
ente que se torna possível o enunciado. Dito de outro modo, o enunciado pode
ser construído apenas se o contexto com que o ser-aí está familiarizado estiver
minimamente perturbado. Veremos posteriormente, no terceiro capítulo desta
pesquisa, que a desmundanização do instrumento não possui necessariamente
um caráter negativo, pois é ela quem viabiliza a construção do enunciado. Na
análise da estrutura do instrumento é possível interpretar a lida com algo como
uma descoberta em sentido expressivo, como afirma Figal: “quem sabe lidar
com algo não pode iludir nem a si nem a outros quanto a isso”. (FIGAL, 2005,
p. 55) Esta estrutura referencial constitutiva pode ser melhor visualizada na
81 81
análise que Heidegger faz do sinal, isto é, da referência enquanto estrutura
ontológica.
Heidegger fala da peculiaridade do sinal em relação aos outros tipos de
entes disponíveis, pois ele consiste em ser um ente que se refere ou indica
estruturas ontológicas. Seu exemplo se concentra apesar da grande variedade
de sinais, na seta indicadora dos veículos. Este sinal é empregado para nos
“orientar” no mundo circundante. O modo da “orientação” é uma função geral
dos sinais. Sua função é indicar como se concretiza o “para que” de um
instrumento. Heidegger diz que “o ser sinal de... pode ser formalizado e
transformado numa espécie de relação universal. Deste modo, a própria
estrutura do sinal apresentaria um fio ontológico capaz de orientar uma
‘caracterização’ de todo e qualquer ente”. (HEIDEGGER, 1999, p. 120, § 17) A
diferença que o sinal apresenta em relação aos demais entes disponíveis é
possuir “sentidos múltiplos de remissão”. O sinal é um ente disponível que, ao
contrário dos demais, não necessita encontrar-se nos modos deficientes da
surpresa, importunidade e impertinência para tornar visível o contexto mundano
em que está inserido. Ele torna visível tal contexto justamente quando é usado
para desempenhar a sua finalidade, isto é, estando apto ao uso. Esta atitude
de emprego através da qual o sinal é instituído diz respeito ao mundo
circundante, mais especificamente na Vorsicht (visão-prévia) como veremos
posteriormente. O caráter específico do sinal se concretiza em mostrar
(Zeichen). Mostrar significa elevar à circunvisão um todo instrumental; trazer à
luz a rede referencial em que o ser-aí se encontra constitutivamente referido.
Para o sinal mostrar a referência enquanto tal é preciso considerar inicialmente
a disponibilidade própria ao instrumento. Desse modo, ele torna possível a
82 82
concreção ôntica da disponibilidade. A possibilidade de orientação no mundo
circundante surge da necessidade de se munir de indicadores. O sinal auxilia
na constatação de algo porque em sua estrutura é um ente capaz de indicação
referencial. Ou seja, o sinal, ao mostrar, determina onticamente o instrumento
em sua instrumentalidade. Ele não aponta para alguma referência possível no
plexo referencial como faz o instrumento, mas, em sua estrutura, faz com que a
própria conjuntura relacional se evidencie, pois consiste simplesmente nesse
“referir-se a...” algo que é uma totalidade referencial. Assim, ao pôr em relevo a
totalidade de instrumentos, ele assegura certa orientação no trato com as
coisas. O sinal possui ainda o caráter peculiar de poder fundar outros signos ou
sinais. O instrumento, como vimos, possui o caráter de “não se sobressair e
nem se deter em si mesmo”, por isto, numa previsão própria da circunvisão, o
sinal cria outros sinais. (id. ibid., p. 124, § 17). Isto se dá, não apenas na
produção de um instrumento que não se achava disponível, mas,
principalmente, quando algo que se encontra disponível é tomado como sinal.
Esta capacidade de criar do sinal pode, ainda, principiar um movimento de
descoberta. A capacidade mais originária do sinal é reler algo que se
encontrava disponível. Por exemplo, o vento sudeste “vale” como sinal de
chuva em algumas regiões. Segundo Heidegger (id. ibid. p. 124), o vento é
considerado como sinal quando a circunvisão peculiar ao cultivo do campo
descobre justamente aí o vento sudeste em seu ser enquanto orientação na
previsão do tempo. Temos aí um movimento de descoberta do sinal. Heidegger
explica a peculiaridade dos sinais da seguinte forma: “O sinal é um ente
onticamente à mão que [...] desempenha, ao mesmo tempo, a função de
alguma coisa que indica a estrutura ontológica do instrumento, da totalidade
83 83
referencial e da mundanidade”. (id. ibid., p. 127, § 17) Logo, se o privilégio
desse ente disponível, como afirma o autor, está em indicar a estrutura
ontológica da disponibilidade, da totalidade referencial e da mundanidade,
então, fica claro que, sendo o fenômeno da referência fundador do sinal,
referência e totalidade referencial são constitutivas da mundanidade.
37
No
entanto, no parágrafo 16 de Ser e Tempo a interpretação fenomenológica do
sinal é ainda provisória. Vimos que Heidegger propõe uma primeira
aproximação a este fenômeno, no que diz respeito ao vínculo existente entre
sinal e referência, afirmando que: 1) toda mostração está fundada na estrutura
geral da instrumentalidade, 2) toda mostração pressupõe uma totalidade de
instrumentos (Zeugganzheit) e um complexo de referências
(Verweisungszusammenhang) e 3) podemos entender o complexo de
referências já como certa abertura (Ouverture) já que o mundo circundante
permite que nele nos orientemos. Mas, é preciso que a referência seja
entendida ao considerar a afirmação de Heidegger segundo a qual a
referência, enquanto fundamento do sinal, não poder ser ela mesma concebida
como sinal. Esta determinação guia nosso próximo passo em direção a
compreender o estatuto ontológico da referência.
Inicialmente podemos pensar que, se a totalidade conjuntural aberta por
um ente disponível que vem ao encontro “guarda em si uma remissão
ontológica ao mundo” (HEIDEGGER, 1999, p. 130, § 18) e, se o caráter
referencial do instrumento é entendido enquanto determinação ontológica do
ser-aí, então, a mundanidade do mundo pode ser apreendida como “significar”
(Bedeuten). O sinal explicita as referências visto que elas mantêm um vínculo
37
Contrariando as análises em que o conceito de Verweisung é tomado como obscuro e, portanto, ponto
central das críticas ao modo da compreensão do ser.
84 84
com o ser-aí. Como vimos na análise do sinal, o mundo anunciado não
abrange a finalidade, o “para que...” último das referências, isto é, o “em função
de” (worumwillen) próprio do ente que é ser-no-mundo, é preciso, portanto,
considerá-lo mediante a apreensão das referências. Ou seja, as referências e
as totalidades de referências, nas quais os instrumentos são apreendidos como
tais, são apreendidas ontologicamente na sua relação com o ente que possui
compreensão de ser. Neste sentido, o sinal mostra as referências do ponto de
vista ontológico, pois tal mostrar abrange a finalidade última da rede de
referências, o “em função de”, o ser-aí. Isto assinala a compreensão do mundo
com que o ser-aí está originariamente familiarizado. Assim, Heidegger afirma
que a possibilidade de se contar com uma conjuntura que libera os entes,
caracteriza o modo de ser próprio do ser-aí. Nessa perspectiva, os entes
intramundanos são liberados, abertos em seu ser. No lidar com algo o ser-aí
descobre os entes, conforma-se com algo. O termo conformidade, como
analisamos anteriormente, diz que o ser do instrumento tem a estrutura da
referência, ou seja, tem em si o caráter de “ser referido...”, ou ainda, que
assinala para a possibilidade de descobrir. A conformidade com o martelo se
dá no martelar, a conformidade com o copo se dá no beber. O que significa que
a abertura do ente pertence essencialmente ao modo de ser do ser-aí. Esta
relação de simultaneidade na qual o ente chega a ser o que é remete à
conformidade do ser-aí com a totalidade de referências à qual está referido a
priori. (id. ibid., p.130) O que salienta que a referida totalidade de referências
está estruturada em função do modo como o ser-aí projeta seu ser. Podemos
pensar, então, que na projeção do seu ser, o ser-aí se encontra referido a uma
totalidade referencial que, por conseguinte, apresenta-se como fundamento do
85 85
sinal, isto é, da possibilidade de se indicar algo no todo conjuntural. Esses três
momentos de significatividade estão entrelaçados, de modo que o sinal deve
pressupor a referência e a conformidade. O sinal corresponde à linguagem
propriamente dita, que Heidegger vai chamar de sprache, e, à rede referencial
possibilitada pelo “deixar-ser” da conformidade corresponde o “discurso”
(Rede). Assim, Heidegger não fala apenas em uma “totalidade referencial”,
mas passa a referir-se a uma “totalidade conjuntural” ou de conformidades.
Desta maneira, a compreensão (leia-se “discurso”) tem o caráter da
conformidade (Bewandtnis). Diz respeito ao relacionar constitutivo do ser-aí ao
mundo como conjunto de referências, ou seja, à existência enquanto tal. De
modo geral, o “’compreender’ se deixa conceber como ‘poder se comportar na
totalidade referencial’” (FIGAL, 2005, p. 82).
38
A familiaridade do homem com o
mundo constitui a estrutura significativa que possibilita a projeção da
existência. Percebe-se, portanto, que Heidegger fundamenta as significações
não na figura do sujeito ou da consciência, como viemos afirmando em
Husserl, mas situa sua origem no ser-no-mundo. Desse modo, o sentido de
algo é próprio da “significância” constitutiva de ser-no-mundo. Nessa
perspectiva, mundo é a abertura do ente sob o modo da conformidade, isto é, é
“significância” (bedeutsamkeit). Este “referir-se a...” do instrumento caracteriza
propriamente a existência, pois o ente é descoberto a medida em que está
referido a algo como o ente que ele mesmo é; é um prévio estar referido que
faz possível todas as referências. É precisamente na instância desta rede de
referências e finalidades cotidianas que os entes se manifestam e que, por
conseguinte, se pode falar de significações.
38
Contudo, ainda não se alcança a significação terminológica deste termo em Heidegger; veremos,
posteriormente, numa análise minuciosa deste termo, que a compreensão não é um comportamento.
86 86
No caso do ser-aí, “existir” é significar (Bedeuten). “Significar” deve ser
entendido como a forma de toda significação, como um modo fundamental de
ser da nossa existência. O significar tem, deste modo, a sua origem nas
práticas cotidianas, no modo como os instrumentos se relacionam entre si e
com os fins humanos. Significar é poder interpretar algo enquanto algo. Assim,
a mundanidade do mundo, ou significância a totalidade relacional inerente a
tal significar , guarda a possibilidade de toda significação. Diz Heidegger
(1999, p. 132, § 18):
A própria significância, com que o ser-aí sempre está familiarizado,
abriga em si a condição ontológica da possibilidade de o ser-aí, em
seus movimentos de compreensão e interpretação, poder abrir
‘significados’, que por sua vez, fundam a possibilidade da palavra e
da linguagem.
Nesta passagem afirma-se claramente a existência de um âmbito de
inteligibilidade anterior à proposição. Todavia, entendemos que o fato de as
significações emergirem de contextos levou Heidegger a atribuir-lhes um
estatuto mais fundamental do que a linguagem, o do discurso. Desse modo,
um dos fenômenos que marcam a entrada na ordem do sentido ou do discurso
é o fenômeno da referência, do remetimento, do reenvio (Verweisung). Como
afirma Greisch, “a condição mínima para que haja sentido é a existência de
uma estrutura de remetimentos que liga vários [instrumentos] uns aos outros”
(GREISCH, 1994, p. 132)
87 87
Na seqüência da abordagem, procuraremos expor de forma mais
precisa a noção de significância e de totalidade de referências através da
discussão da compreensão e da interpretação, procurando, deste modo,
alcançar uma noção menos obscura de linguagem.
88 88
Capítulo III
DISCURSO E LINGUAGEM
3.1.A ESTRUTURA DA COMPREENSÃO (VERSTEHEN)
O fenômeno da compreensão do ser é apresentado em Ser e Tempo,
primeiramente, na abordagem da mundanidade do mundo. A familiaridade que
o ser-aí guarda com o contexto relacional em que se encontra desde sempre
constitui a compreensão do ser. “Familiaridade” deve ser entendida, de acordo
com a análise do fenômeno da mundanidade, como a possibilidade de uma
interpretação ontológico-existencial explícita das referências, sem a exigência
de transparência teórica das referências. Este contexto relacional com o qual o
ser-aí está originariamente familiarizado é o que caracteriza a significância
(Bedeuten).
39
O que quer dizer que a própria significância traz em si os
movimentos da compreensão (Verstehen) e da interpretação (Auslegung), bem
como, do discurso (Rede). Como vimos, Heidegger descreve “mundo” a partir
do caráter de disponibilidade do ente privilegiando o caráter relacional do ser
do instrumento. Tal disponibilidade do ser do instrumento torna visível o todo
do qual faz parte e desde o qual se mostra. O ente apenas mostra-se em si
mesmo, numa funcionalidade conjunta, se inscrito numa rede referencial, num
contexto; ele só “é” em relação a outros entes. Assim, a descrição de mundo
desde o caráter de instrumento direciona a investigação heideggeriana para o
39
Conferir, HEIDEGGER, 1999, p. 132, § 18.
89 89
âmbito do sentido. Pois, como explicitamos anteriormente, é juntamente com o
todo referencial que se anuncia o ente em si mesmo. Encontrar o ente em seu
ser significa tomá-lo referencialmente, sempre preso a uma rede de
conformidades. Isto nos diz que ao interpretar “mundo” como um conjunto de
relações se permite aceder aos entes enquanto entes disponíveis. Desse
modo, toda possibilidade de entender o ente enquanto “algo para”, ou seja,
todo vir ao encontro de algo implica a possibilidade de um comportar-se. Isto
pressupõe que lidemos com algo ou que o experimentemos em função de uma
possibilidade já aberta pela referencialidade constitutiva do ser-aí.
Referencialidade que abre, que “deixa-ser”, antes de qualquer coisa, a própria
vigência do ente enquanto tal. Desse modo, há segundo Heidegger, um
compreender que se estabelece referencialmente. Ser e Tempo diz: “Na
medida em que ‘é’ o ser-aí já se referiu a um ‘mundo’ que lhe vem ao encontro,
pois pertence essencialmente a seu ser uma referencialidade”. (HEIDEGGER,
1999, p. 132, § 18) A abertura da significância é a condição para se descobrir
uma totalidade conjuntural e, conseqüentemente, para o “poder” que se
encontra na lida ocupada; a este “poder” Heidegger chama, num primeiro
momento, de poder-ser (Seinkönnen) e, posteriormente, o caracteriza de forma
mais acentuada como compreensão (Verstehen). Assim, pretendemos
entender em que consiste o compreender originário que compete
constitutivamente ao ser-aí e torna possível todo comportamento frente ao ente
e consigo mesmo. Dito de outro modo, e dando continuação à indagação do
capítulo anterior, em que consiste a mundanidade do mundo enquanto caráter
existencial-ontológico do ser-aí?
90 90
Na analítica existencial, compreensão (Verstehen) é um existencial
fundamental, um modo fundamental do ser do ser-aí. Isto quer dizer que a
compreensão (numa relação co-originária com disposição (Befindlichkeit) e
discurso (Rede)) é um modo de abertura (Erschlossenheit) ou de
descerramento do ser do ser-aí. O “estar aberto” do ser do não descreve
algo que se faz, nem algo que o atinge e o põe no aberto, mas caracteriza-se
simplesmente como um modo de ser. Tomado ontologicamente, o “estar
aberto” não é nenhum modo determinado de ser, mas o ser-aí mesmo. (FIGAL,
2005, p. 144). Desse modo, o existencial “compreensão”, enquanto um
existencial fundamental, não deve ser tomado como “um modo possível de
conhecimento entre outros” ou como ato de conhecimento ou como atividade
cognitiva do intelecto. (HEIDEGGER, 1999, p. 198, § 31) A compreensão deve
ser entendida primordialmente como constituindo o existir.
40
Ela é um
existencial que revela a maneira pela qual o ser-aí se relaciona com seu
próprio ser. Pois, existindo, o ser-aí joga com seu ser, estabelece uma relação
de ser com seu próprio ser – não podemos entender aqui o termo “relação” do
mesmo modo que entendemos uma ligação entre duas coisas, primeiro porque
o ser-aí “existe” (ek-siste) e não poderia ser relacionado a algo simplesmente
dado e, em segundo lugar, porque “relação” supõe unidades, estruturas
separadas e independentes. É característico deste ente que seu ser se revele
com e por meio de seu próprio existir. O que significa ainda que o ser-aí se
compreende de algum modo em seu ser; as possibilidades, tanto do interpretar
quanto do comportar-se, são abertas a partir das possibilidades pelas quais o
ser-aí já é. Esta possibilidade mais própria é oferecida pela compreensão.
40
“Existir” quer dizer aqui, ser ao modo de ser-aí e não ao modo do ente subsistente ou simplesmente
dado.
91 91
Podemos dizer, com o apoio de Figal (2005, p. 68), que “ser-aí” é uma
estrutura e cabe ao pensamento de uma analítica existencial pensar o
comportar-se desta estrutura; o ser-aí deve necessariamente ser caracterizado
como ser-no-mundo, grosso modo, este é o papel que a compreensão e os
existenciais de abertura, enquanto co-originários, irão cumprir.
A compreensão torna possível que “mundo” seja a cada vez
interpretado. Esta liberação da significância dos entes intramundanos
corresponde à lida ocupada do ser-aí em suas possibilidades mais próprias. As
possibilidades de ser do ser-aí o determinam enquanto “poder-ser”.
Existencialmente ele sempre é possibilidade de ser e somente assim se
compreende de algum modo. Na compreensão o ser-aí se encontra como o
que se projeta “em” meio a possibilidades, resultando num abarcar a si mesmo.
As possibilidades de ser deste ou daquele modo realizam-se nas ocupações
com instrumentos e nas preocupações consigo mesmo e com os outros que
possuem o seu modo de ser. Deste modo, ele é possibilidade de lida, de
recusa, de decisão, etc.
Como havíamos dito, Heidegger indica que a compreensão carrega
consigo um poder, pois, é em meio a um poder-ser que algo é compreendido.
O entendimento de alguma coisa só é possível se tomamos a nós mesmos e a
tudo mais desde uma possibilidade originária. Ou seja, o compreender não se
dá em função da realidade, ou de algo real, mas de uma possibilidade já aberta
e com a qual o ser-aí pode contar em toda interpretação de algo ou de si
mesmo. Enquanto modo de existir, compreender diz respeito à “poder-ser”
(Seinkönnen), à possibilidade de ser. O que se pode na compreensão
enquanto existencial é o ser como existir. Dizer que “compreendo os
92 92
movimentos necessários para nadar” ou que “posso nadar” significa o mesmo.
Eu sei nadar na medida em que posso manter-me e avançar sobre a água.
(GARCIA, 1987, p. 108). Segundo Heidegger, “o ser-aí não é algo
simplesmente dado que ainda possui de quebra a possibilidade de poder
alguma coisa”. (HEIDEGGER, 1999, p. 198-199, § 31) Ser-aí é originariamente
possibilidade, é sempre num movimento de referência a si e nunca uma
efetividade. Como diz Figal: ”Realizações são sempre modos de
comportamento [...]”. (FIGAL, 2005, p. 68) A compreensão, portanto, abre
possibilidades, nela se torna possível o desvelamento dos entes. Desde a
compreensão transparece ao ser-aí sua existência: o ocupar-se, os
instrumentos da ocupação e os entes dotados do caráter de ser-aí. O que nos
diz que “toda e qualquer percepção de um instrumento disponível ou à mão já é
compreensão e interpretação” (id. ibid., p. 206, § 32), ou seja, já está de
alguma forma articulada e circunscrita pelo sentido.
O ser-aí compreende a sua existência a partir da projeção de
possibilidades. Isto é, compreende sua existência como sendo de uma ou de
outra maneira no sentido de “projeção das suas possibilidades de ser”. Projetar
não significa aqui um modo de comportar-se frente um plano pré-estabelecido,
pois o ser-aí, enquanto ser-no-mundo, já sempre se projetou. O modo de ser
do ser-aí é projetivo porque se compreende enquanto “é” a partir de
possibilidades. O que significa que tais possibilidades originárias são aquelas
em que o ser-aí antes de tudo encontra-se imerso; estas possibilidades são
elas mesmas “projeção”. Se entendermos compreensão como Seinkönnen
compreender relacionado à existência como possibilidade de ser – podemos
dizer que o ser-aí pode ser deste ou daquele modo porque, existencialmente, é
93 93
possibilidade originária. E, enquanto projeção originária, as possibilidades
podem surgir onticamente. Ser deste ou daquele modo significa que o ser-aí
pode explicitar ou articular as possibilidades abertas pela compreensão. A
seguir, veremos como a compreensão projeta o ser do ser-aí para a
significância, isto é, como a abertura do ser-aí para suas possibilidades mais
próprias pode ser expressamente apropriada.
3.2. A INTERPRETAÇÃO (AUSLEGUNG) E A ESTRUTURA REGULADORA: O COMO
HERMENÊUTICO
A interpretação é uma realização particular da própria compreensão, ela
surge enquanto compreender mesmo e não vice-versa. Compreensão e
interpretação correspondem a um fenômeno unitário. Tal como expõe Ser e
Tempo, a interpretação não é posterior ao entendimento de algo. Não possuo
certo entendimento sobre alguma coisa para, conseqüentemente, poder
interpretá-la. Este conceito não corresponde aqui ao termo interpretação no
sentido de uma técnica ou arte da qual o exegeta se serve. Na abordagem do
§32, Heidegger define a interpretação (Auslegung) como sendo a elaboração
do que já foi compreendido, ou seja, a explicitação das possibilidades abertas
na compreensão. Se entendermos que compreensão e interpretação não são
dois momentos que se relacionam um com o outro, mas o movimento
compreensivo fundamental, um fenômeno unitário, visto que toda interpretação
se move numa estrutura prévia, então, legitima-se o fenômeno da
“compreensão do ser” como o movimento do próprio compreender elaborando-
se em formas.
94 94
A interpretação permite apreender os entes que a circunvisão nos faz
descobrir. Isto se dá através da totalidade conjuntural já aberta na
compreensão que serve de base para o desdobramento da explicitação. Na
apropriação das possibilidades de ser o ente é explicitado. Esta explicitação é
formada por uma estrutura prévia (Vorstruktur) caracterizada por Heidegger
como estrutura prévia da compreensão e que possui os seguintes momentos:
Vorhabe (posição prévia), Vorsicht (visão prévia) e Vorgriff (concepção prévia).
A posição prévia corresponde ao referir-se ao mundo como totalidade
significativa. Ou melhor, ao conjunto de instrumentos com o qual o ser-aí está
envolvido na ocupação. O que significa que a compreensão sempre parte de
uma rede referencial. A partir da posição prévia (Vorhabe) é que algo pode ser
inicialmente interpretado. A posição prévia é, portanto, ontologicamente
“anterior” à interpretação. É ela que fornece à interpretação uma conjuntura
que é a totalidade de um caso. A Vorhabe pode ser entendida, portanto, como
o contexto (o “sentido”) em que o ser-aí se encontra com os entes que
encontra. A partir desse todo compreensivo é que ocorre a explicitação de
entes particulares, ou seja, a elaboração interpretativa. O segundo momento
constitutivo da compreensão é a visão prévia (Vorsicht). Toda interpretação de
algo compreendido na posição prévia possui sempre uma visão prévia do que é
compreendido. A posição prévia refere-se a uma totalidade de conformidades
na qual um ente é interpretado. A visão prévia fixa, por assim dizer, a "direção"
ou a perspectiva aberta na posição prévia – a qual servirá à interpretação. Este
“recorte” na posição prévia aponta para uma determinada possibilidade de
interpretação. A Vorsicht aponta uma direção ou algumas direções particulares
do todo de conformidades a que se refere a Vorhabe. A visão prévia constitui a
95 95
possibilidade de o ente ser interpretado numa determinada perspectiva.
Greisch (1994, p.198) dá como exemplo a Batalha de Verdun, um mesmo
acontecimento é compreendido numa perspectiva pelo Estado e em outra pela
família que perdeu um de seus filhos no conflito. Ou seja, os entes encontrados
em um todo de conformidades são interpretados em sua referência
instrumental, considerando que esta referência está vinculada à finalidade da
totalidade conjuntural. A perspectiva da família que perdeu um filho está no
domínio da ausência de seu ente querido, já a ótica do Estado é a do bem-
comum. Se alguma coisa se está “fazendo” (noção de lidar que está
relacionada a todo e qualquer comportamento em relação a algo seja este um
ente, um pensamento, um fato, etc.), é, portanto, tal ação que determina o
encontro dos entes que encontramos. Ontologicamente, a visão prévia é a
instância que norteia esse direcionamento em meio a um contexto. Assim, a
interpretação dos entes só ocorre em relação à totalidade referencial da
posição prévia. O todo da posição prévia é que permite a visualização da
direção ou das direções específicas. Por último, a interpretação possui ainda
uma concepção prévia (Vorgriff). O estabelecido na posição prévia e assumido
na visão prévia é trazido a um entendimento conforme a posição e visão
prévias. A concepção prévia torna explícita a estrutura “como”, isto é, explicita
certa interpretabilidade acerca do ente. Para que o trabalho da compreensão
possa se efetivar é preciso criar conceitos que assegurem algo sobre a coisa.
Com a conceitualização surgida com a concepção prévia algo chega a mostrar-
se como ou enquanto algo. Ao apresentar o “para que” de uma coisa, a
interpretação coloca em evidência a totalidade referencial à qual ele se
encontra remetido. Nesse sentido, a interpretação acompanha o movimento da
96 96
própria existência cotidiana ao destacar a totalidade conjuntural na qual o ser-
sempre se encontra. Vimos, então, que estes momentos constitutivos que
perfazem a estrutura da compreensão precisam ser entendidos numa
complementaridade mútua, visto serem estruturas intrínsecas que, formando
uma unidade, operam de modo a que algo seja compreendido em sua
instrumentalidade. Desse modo, é preciso entender que a elaboração
interpretativa somente é possível a partir do caráter aberto de possibilidade do
ente, da compreensão do ser, isto é, desde o ser-no-mundo.
41
Segundo
Heidegger, a partir da análise existencial do “ente que lida com seu próprio ser”
podemos reconhecer algo como sentido. (HEIDEGGER, 1999, p. 208, § 32)
Isto é, “a perspectiva em função da qual se estrutura o projeto pela posição
prévia, visão prévia e concepção prévia. [Pois], é a partir [desta perspectiva]
que algo se torna compreensível como algo”. (id. ibid., p. 208, § 32) Através da
análise existencial podemos entender a fundação da linguagem como
possibilidade ontológica do ser-aí. Segundo Heidegger (id. ibid. p. 208),
“sentido” é o que circunscreve a abertura constitutiva do ser-aí.
Assim, é preciso entender o termo interpretação (Auslegung) como a
explicitação ou elaboração da compreensão que torna possível o
desenvolvimento das possibilidades de desvelamento dos entes. Isto quer dizer
que é na compreensão que se funda a já mencionada significância do mundo.
Na estrutura existencial da interpretação, o ente é visualizado como ente útil
41
Lembremos que o escopo da analítica existencial é explicar a compreensão do ser, recuperando assim
a estrutura fundamental do ser-aí. Como nos afirma Bay: “[...] a compreensão do ser é um fato
insuperável de que temos que partir, isto é assim inclusive no conhecimento científico. É impossível sair
do mundo para observá-lo sem enganos porque ser e interpretar o mundo ocorre simultaneamente” (BAY,
1998, p.176). O ser-aí será visto, portanto, como estrutura que deixa os entes serem em seu sentido, pois,
ser e compreender forma um único momento, devem ser pensados simultaneamente.
97 97
para cumprir determinada função. Na lida o compreendido pode explicitar-se
em seu “para que” e daí ser apreendido a partir daquilo para que ele serve.
Segundo Heidegger (1999, p. 205, § 32), a tematização dos entes é possível
porque são tomados desde já em seu caráter de instrumento. Heidegger vai
chamar de estrutura “como” hermenêutica (als-struktur) a estrutura prévia da
compreensão que acessa ou interpreta o que foi aberto na compreensão
enquanto projeção de possibilidades de ser. É justamente nesta interpretação
de algo como algo que os entes podem vir a adquirirem significado. Os entes
aparecem em meio (compreendidos) a uma possibilidade e são interpretados
como entes para algo. Algo pode ser visto como algo (Etwas als etwas) a partir
da rede de remetimentos que possibilita certa articulação e explicitação do
ente. Como dissemos acima, a interpretação acompanha o movimento da
própria existência cotidiana. Todo comportamento se dá em vista de uma rede
referencial. Em toda e qualquer atividade o ser-aí lida com o ente enquanto
alguma coisa, isto é, com o ente já explicitado em sua disponibilidade. Na
referência de um instrumento a outro, a interpretação da circunvisão indica a
função do ente e o denomina enquanto algo que está em questão na totalidade
referencial. A estrutura “como” expressa a funcionalidade possível dos entes
encontrados na ocupação. Assim, toda e qualquer atividade só pode ser
executada desde que se tenha apreendido algo como algo. Inicialmente, tudo
o que “é” é interpretado em meio a esta estrutura. Isto nos indica certa
antecipação do “como hermenêutico” às demais formas de conhecer. Já que a
estrutura da expressividade do que é compreendido, isto é, a sua possível
elaboração em formas interpretativas, é regulada por esta estrutura. Daí que
Heidegger distingue o “como hermenêutico” do “como apofântico”. O primeiro
98 98
revela o ente através de práticas cotidianas e o segundo, revela o modo como
ele é a partir do enunciado teórico. Assim, nos parece que a compreensão de
ser, desde a qual a existência se projeta, surge com a estrutura “como”
hermenêutica. Isto sugere que a possibilidade da determinação predicativa
está enraizada nas interpretações operantes no lidar cotidiano. Desse modo,
de acordo com a análise heideggeriana, é no contexto das práticas cotidianas
que se apreende algo como algo e que se encontra a condição de possibilidade
das enunciações lingüísticas, como veremos mais detalhadamente na análise
seguinte.
Todo e qualquer lidar com relação a algo ou alguém – entendamos aqui
o “lidar” de forma ampla – somente se torna possível através da estruturação
do “como” hermenêutico. Isto quer dizer que o contato inicial que temos com a
realidade é desde sempre interpretativo; um “ver” articulado de possibilidades
existenciais.
42
Todo vir ao encontro de algo já é experimentá-lo em função de
uma possibilidade. Tal possibilidade tem em vista “um comportamento em
geral, ou seja: uma possibilidade de ser por si mesmo de uma maneira
determinada”. (FIGAL, 2005, p. 65). Afirma Heidegger: “Toda visão pré-
predicativa do que está à mão já é em si mesma uma compreensão e
interpretação”. (HEIDEGGER, 1999, p. 205, § 32) Isto significa que uma
totalidade conjuntural é desde sempre uma elaboração compreensivo-
interpretativa que não precisa necessariamente ser explícita. Nesta
perspectiva, esta elaboração interpretativa não pode ocorrer ou não ocorrer.
Não vemos a ponte como um amontoado de pedras, mas como ponte, nem
42
Afirma Figal (2005, p. 65) que “todo vir ao encontro de algo não é, no fundo, nada além de uma
possibilidade de comportar-se”.
99 99
meu corpo como um amontoado de carnes, mas como um corpo unificado.
(GREISCH, 1994, p. 196) Isso explica a incapacidade de se poder sair da
ordem significativa desde a qual algo é ontologicamente acessível para, então,
explicar teoricamente o ente.
Visualizamos, assim, esta projeção de “sentido” que surge do “como
hermenêutico” como legitimação da compreensão do ser de que parte o ser-aí,
ou seja, da totalidade de relações de conformidade que constitui o mundo, sem
o qual não seria possível o desvelamento dos entes. Excluímos desse
entendimento o sentido como uma noção lingüística de significação, como uma
composição entre significante e significado. Se atentarmos para o fato de que a
compreensão dispõe de certa interpretação articuladora mesmo que não tenha
a necessidade de ser expressa em uma proposição, tal afirmação se torna
mais clara.
43
Não podemos, portanto, entender a estrutura ontológica da
linguagem no nível de uma estrutura lógico-enunciativa, esta é a proposta de
Heidegger. Antes mesmo de se compreender algo teoricamente é preciso ter
entendido antes o “mundo” como significância. Heidegger afirma, “a falta da
palavra não pode ser entendida como falta de interpretação”. (HEIDEGGER,
1999, p. 215, § 33) Tal sentença legitima um estatuto secundário para a
linguagem em relação a um âmbito mais originário de sentido.
Podemos notar que os existenciais compreensão e interpretação
oferecem uma definição mais precisa da noção de sentido (Sinn) quando
entendemos que a compreensão, ainda que não precise ser formalizada
explicitamente, necessita de certa estruturação ou elaboração para que suas
possibilidades possam ser assumidas. Esta elaboração é o operar do discurso
43
Conferir, HEIDEGGER, 1999, p. 206, § 32.
100 100
(Rede) que será apresentado em seguida. Podemos inferir que nas análises
em que Heidegger fala dos fenômenos da referência, da significância e da
circunvisão, que possibilitam a apreensão do mundo como uma totalidade
referencial, a noção de sentido é abordada de modo ainda muito obscuro e
segmentado. Pois poderíamos apreender a rede referencial numa descrição
meramente relacional, como se a noção de sentido se aplicasse a uma
ontologia da Vorhandenheit, enfim, sem a perspectiva ôntico-ontológica
pretendida por Ser e Tempo. Com a elaboração dos existenciais da
compreensão e da interpretação, o conceito de sentido significa agora aquilo
que, junto com o ser do ser-aí, descobre aquilo que faz com que o ente
intramundano chegue a uma compreensão, ou ainda, “o que sustenta a
compreensibilidade de alguma coisa”. (id. ibid., p. 208, § 32) Quando a abertura
do ser-no-mundo for preenchida por um ente que se “deixa” interpretar, então,
devemos entender a noção de sentido como um existencial do ser-aí; como
algo que lhe compete enquanto “ser-em”. Investigaremos esta noção através
da análise que Heidegger faz no §33 e que diz respeito à estrutura do
enunciado e seu caráter derivado, tentando entender esta estrutura a partir da
abertura de significância do ser do ser-aí, ou da compreensão do ser do ser-no-
mundo. Supomos, para tanto, que entender o ser-aí como um ente que
“compreende ser” significa poder apreender a estrutura constitutiva da
linguagem e que um questionamento sobre o sentido do ser deve, de certo
modo, passar pelo problema da verdade. Com isso admitimos que, para o
autor, a pergunta pela estrutura ontológica da linguagem é intrínseca à
pergunta pelo ser-aí e, conseqüentemente, entendemos que a questão do
sentido subjaz, operando, ao longo de toda a analítica existencial.
101 101
3.3. O ENUNCIADO (AUSSAGE)
O que expomos até o momento mostrou que o compreender tem como
forma a estrutura de algo como algo. Todo e qualquer comportamento é desde
sempre interpretativo, há sempre uma articulação de sentido. O que nos parece
é que o escopo de Ser e Tempo é perseguir a trajetória do sentido dentro da
perspectiva fenomenológico-hermenêutica de uma analítica existencial. Ao final
do parágrafo sobre o enunciado Heidegger diz: “A ‘lógica’ do lógos se radica na
analítica existencial do ser-aí”. Através da abordagem fenomenológica das
estruturas que constituem o ser-aí será possível expor a estrutura ontológica da
linguagem entrevendo-a enquanto possibilidade originária. Pretendemos,
então, entender como se justifica o sentido frente à proposição enunciativa.
Nos conduziremos mais claramente a tal investigação, analisando a
abordagem do §33 O enunciado como modo derivado da interpretação. Nele,
Heidegger aborda a linguagem propriamente dita ao desenvolver a análise do
enunciado (Aussage). Investiga a concretização desta estrutura a partir do
alcance da compreensão e da interpretação.
A análise que Heidegger faz da estrutura do enunciado direciona-se
para uma crítica à tradição filosófica. Segundo ele a noção de verdade
subjacente a todo pensamento filosófico ocidental sempre esteve ligada à
dimensão judicativa, ainda que formulada de diversas maneiras. Para esta
tradição, a verdade só se torna apreensível a partir da estrutura formal da
proposição. É característico desta tradição, como entende Heidegger, que toda
e qualquer investigação se paute pelo esquema da presença (Anwesenheit). A
102 102
investigação da linguagem e, conseqüentemente, do ser, se dá ao modo da
investigação do ente. Heidegger diz que isto ocorre porque [a linguagem] de
fato “não é acessível como os entes, então ela passa a ser expressa por
determinações ônticas dos entes [que estão] em questão, isto é, pelos seus
atributos”. (id. ibid., p. 140, § 20). O horizonte que estimula esta reflexão é o
horizonte do sujeito e do objeto no qual “ser” e “linguagem” são pensados a
partir da representação e do representado. Nessa perspectiva, o significado
indica o limite do ente enquanto objeto, limite do qual, segundo o escopo
heideggeriano, não é possível retroceder sem uma investigação
fenomenológica. Deste modo, o enunciado caracteriza-se como o ente a ser
investigado na questão filosófica da linguagem. Pertence ao enunciado a
correspondência ou a concordância entre formas lingüísticas e a conseqüente
extração do significado que pode ser tanto verdadeira quanto falsa. A relação
de correspondência liga representação e realidade, fornecendo acesso ao
mundo exterior; em razão da correspondência é que se acredita na verdade do
enunciado. “Na medida em que descrevem corretamente os fatos (ou as coisas
e as suas propriedades), os enunciados (ou os juízos) parecem ‘corresponder’
à realidade e, por isso, podem ser verdadeiros”. (LANDIM, 1992, p. 11).
Segundo Heidegger, a tese do enunciado como “lugar” próprio e
primário da verdade parte da perspectiva de que é possível falar do ente se
este já se determinou cognoscitivamente, ou seja, se o ente já se deu em seu
caráter de objeto; nesse caso, objetividade, realidade e verdade caminhariam
juntas. A linguagem, assim entendida, se fundamentaria necessariamente no
conhecimento do real, pois ao enunciado corresponde um caráter de
determinação que é sempre sobre algo dado. Nele as coisas se fazem
103 103
evidentes de tal maneira que ocorre a verdade. Segundo a análise feita por
Landim (1992, p. 33) em Evidência e Verdade no Sistema Cartesiano, as idéias
estão relacionadas com as coisas exteriores a partir do momento em que são
negadas ou afirmadas nos juízos, desse modo, elas podem ser ditas
semelhantes às coisas exteriores que se apresentam ao pensamento, podendo
ser consideradas enquanto representações. Logo, o ato judicativo comprovaria
a existência de coisas exteriores ao pensamento. Existe verdade no enunciado
na medida em que o pensamento é positivamente conforme aquilo que é; nesta
perspectiva, verdade é a adequação do conhecimento à realidade. Segundo
Heidegger, a tradição filosófica entende que “[...] aquilo com que a verdade se
corresponde original e propriamente, o que faz possível a verdade como tal, é o
enunciado”. (HEIDEGGER, 2004, p. 108, § 15). Para que a verdade possa vir a
ser o que é, é preciso que se dê o enunciado, que haja correspondência entre
ideal e real. Entretanto, no entendimento do filósofo, a verdade é que torna
possível o enunciado como tal e não o contrário, como veremos. Segundo
Heidegger, o âmbito do sentido é que deve ser vinculado à verdade. Desse
modo, a tradição filosófica apresentaria um enorme problema ao admitir o
enunciado como fio condutor de acesso ao ente enquanto tal e da sua
determinação ontológica. No entanto, cabe perguntar o que legitima o privilégio
da posição heideggeriana em detrimento da interpretação tradicional da
linguagem? É o que pretendemos entender. Com a análise da tese tradicional
sobre a linguagem podemos perceber que o problema é posto num âmbito no
qual a semelhança entre representação e coisa é, de certo modo, justificado a
priori.
44
Nesta investigação seria importante que ocorresse o questionamento
44
Seria interessante inserir aqui um breve comentário do pensamento de Husserl de Erfahrung Und Urteil
104 104
das unidades enunciativas no que diz respeito a uma “referência” extra-
judicativa. Para o autor, o procedimento a partir da lógica do enunciado
somente constata a relação entre dois entes, pensamento e realidade. Não há
um questionamento sobre se esta relação entre ente psíquico e ente real é o
que originariamente ocorre na estrutura do enunciado. Podemos dizer que o
pensamento ocidental, segundo Heidegger, apresentou a verdade da
proposição como conseqüência da correspondência entre proposição e fato.
Isto é, o enunciado aparece como “o lugar originário da verdade”.
Há uma afirmação que precisamos verificar neste momento e encontra-
se expressa no título do citado parágrafo: o enunciado apresenta caráter
derivado (abkünftig) em relação à interpretação. Concordamos aqui com
Greisch quando diz que o enunciado é, de algum modo, uma “especialização”
particular da interpretação. O que não significa que ele possua um caráter de
menor valor na análise fundacional da linguagem. Pois não se trata de eliminar
ou reduzir o papel do enunciado na análise heideggeriana, mas mostrar que a
estrutura interpretativa, condição de possibilidade de acesso ao ente, é a base
fundamental para a estrutura judicativa. Apoiamo-nos na suposição de que o
objetivo principal de Heidegger, na investigação da linguagem em Ser e
no que diz respeito a investigação do enunciado. Nesta obra o filósofo questiona a origem do julgamento
predicativo, procurando deixar de lado o teor material do substrato ou objeto do julgamento adquirido
desde Aristóteles, o hypokêimenon. Sua implicação no juízo refere-se ao seu ponto de partida que é o de
um objeto já dado, desde sempre constituído e que é sobre ele que se forma parte da enunciação. Assim,
antes de trabalhar sobre uma teoria do juízo investigando o modo de ligação entre os membros de
formação da proposição: síntese e diairése é fundamental interrogar o que subjaz a esta teoria e que
torna possível a coisa tal como ela se apresenta no ato do julgamento. A teoria do julgamento pressupõe
um objeto que possibilita a formação do juízo. Segundo Husserl, é preciso interrogar sobre o dado
evidente dos objetos do julgar. No entanto, nessa análise de Husserl, o lugar da verdade ainda se apoia
no ato de julgamento, como afirma De Waelhens (1953, p. 04) em Phénoménologie et vérite. O
conhecimento ocorre apenas porque há o conceito que se refere ao objeto enquanto um predicado. O
julgamento é esta operação de referência constitutiva da verdade. Só pode haver evidência e verdade,
ainda que a evidência seja um ato em cumprimento, na “presença” efetiva do objeto.
105 105
Tempo, é investigar as condições pré-lingüísticas da linguagem. Assim, sem o
aparecer de algo como algo não se explica o enunciado. Apenas com a
abertura do ente pelo ser-aí é que a estrutura do enunciado pode surgir como
um dos modos de relacionar-se com o ente. Além disso, o caráter derivado se
contrapõe à co-originariedade dos modos de abertura do ser-aí, pois são
modos de ser fundamentais que, em sua unidade, são capazes de promover a
“referência ao mundo” constitutiva do ser-aí.
O compreender, a interpretação e o enunciado correspondem a uma
relação de fundamentação na qual os dois últimos supõem o primeiro e que se
deixa transparecer através da estrutura-prévia da compreensão. A estrutura-
prévia justifica a afirmação de que a interpretação e o enunciado sejam formas
do compreender. Portanto, é desde esta procedência comum que se torna
possível entrever a articulação de sentido que subjaz a estas estruturas.
Heidegger (1999, p. 208, § 32) afirma que aquilo que se deixa articular na
abertura da compreensão é o sentido. Apresentaremos, então, como os modos
da compreensão/interpretação (posição, visão e concepção-prévias)
atravessam a estrutura do enunciado, procurando entender como ele traz em si
a referência à estrutura interpretativa. Inicialmente, Heidegger destaca três
determinações do termo enunciado que são extraídos do próprio fenômeno,
são elas as seguintes: indicação, predicação e comunicação. Em primeiro
lugar, o enunciado tem como função indicar fenomenologicamente o ente, ou
seja, “deixa e faz ver o ente a partir dele mesmo”. (id. ibid., p. 212, § 33) Na
terminologia heideggeriana, indicação é um permitir ver; um descobrir que
106 106
simplesmente evidencia.
45
A indicação mostra o ente desde ele mesmo, quer
dizer, desde a totalidade referencial em que se encontra enquanto instrumento.
Lembremos que é na ocupação que o ente se torna evidente; sua
disponibilidade é considerada através da relação que guarda com o todo
relacional. O ente somente aparece desde a ordem de relações que constituem
seu modo de ser. Contudo, ainda não há nenhum modo de determinação no
“tornar manifesto” o ente. Ao contrário, supõem se que sem o momento
apofântico da “indicação” nenhuma determinação ou predicação ocorreria. O
que significa que a estrutura do enunciado se funda no enunciado como
indicação. Dito de modo mais abrangente, a estrutura do enunciado mantém
uma relação de dependência com a compreensão, isto é, com o descobrir
originário constitutivo do ser-aí. A análise do enunciado justifica, portanto, o
papel da compreensão e da interpretação, bem como, a sua função derivada.
Com a passagem da indicação ao segundo momento do enunciado (a
predicação) veremos que, em seu momento determinante, ele é uma
modificação da estrutura “como”. Assim, nessa segunda determinação,
enunciado significa predicação. A predicação tem o caráter de definir algo.
Visto a partir dele mesmo, ou seja, indicado, o ente se torna o predicado que
caracteriza o sujeito de uma oração. O ente é destacado da ordem de relações
em que, inicialmente, é indicado. Ou seja, o ente não é mais tomado a partir
dele mesmo, como um disponível, pois se encontra restringido em sua
funcionalidade.
46
Heidegger diz: “a [predicação] não descobre, mas, como
45
Segundo Bay, “o enunciado como indicação reúne o sentido antigo de lógos como apofansis, isto é,
puro descobrir no qual, por assim dizer, permanece no umbral, não se afirma nem se nega, simplesmente
se evidencia – permite ver, em termos heideggeriano”. (BAY, 1998, p. 183)
46
No final de Ser e Tempo (§83) Heidegger pergunta por que na história da Filosofia predominou o
entendimento do ente como “coisa”, entendida a partir do modo como comparece no enunciado, se, como
107 107
modo de demonstração, ‘restringe’ a visão inicial ao que se mostra como tal o
martelo. ‘Restringindo’ a visão, mostra-se, ‘explicitamente’, a determinação do
que se revela”. (HEIDEGGER, 1999, p. 212, § 33). Contudo, é preciso entender
como ocorre a limitação do ente a uma de suas determinações. Como se
justifica, na predicação, o privilégio a uma determinada perspectiva e não
outra? Mais amplamente perguntaríamos, segundo quais critérios ocorre a
passagem do evidenciar da indicação a uma determinação predicativa? E,
ainda, como a indicação pode manter o ente em seu contexto relacional já que
é um momento predicativo tornando-o manifesto em suas possíveis
perspectivas predicativas? Segundo Heidegger, o que caracteriza a passagem
da indicação à predicação, isto é, da estrutura “como” à estrutura judicativa é a
ausência do ente enquanto disponível. Mas, como explicar esta passagem
desde a perspectiva que temos do ente enquanto disponível na qual sempre
estamos inseridos, para o ente enquanto algo simplesmente dado? Essa
diferenciação não pressupõe a possibilidade de poder lidar tanto com o ente a
partir de uma perspectiva quanto de outra, enquanto somos-no-mundo?
Contudo, suas afirmações não são totalmente esclarecedoras. Trataremos
mais detidamente dessa relação a seguir, procurando perceber como
Heidegger articula estes dois momentos, o fundante e o fundado.
Por último, o que foi apresentado na predicação possui o caráter de
comunicação. Esse modo do enunciado encontra-se vinculado à indicação e à
predicação. A comunicação aos outros provém do que foi indicado e predicado.
Logo, o termo enunciado pode ser descrito por Heidegger como sendo uma
"[indicação] que determina através da comunicação”. (id. ibid., p. 214, § 33)
mostrou sua investigação, o modo mais imediato do ente se mostrar é enquanto instrumento, como ente
disponível.
108 108
Nesse caso, o enunciado aparece como um tipo específico de disponibilidade,
serve como “instrumento” de comunicação essa relação já foi igualmente
exposta por Heidegger na análise do sinal (Zeichen).
47
Enquanto “instrumento”
para comunicar, o ente, recortado do enunciado pela predicação, pode ser
partilhado; o enunciado se “expressa” na comunicação. A comunicação
expressa o indicado no modo do enunciado. Assim, o “deixar e fazer ver o
ente” é comunicado aos outros e o proposto no enunciado pode ser
“transmitido”. (HEIDEGGER, 1999, p. 213, § 33). Esta transmissão exige um
destacamento do ente do conjunto relacional em que é indicado; a
comunicação põe ao alcance do outro o ente destacado do contexto. O que se
torna acessível na comunicação é o ente destacado, recortado do seu pano de
fundo. Quanto à totalidade referencial da qual esse ente faz parte e desde a
qual se mostra em sua instrumentalidade, fica recolhida e, desse modo, é
desconsiderada na comunicação do enunciado. O ente que é destacado anula
de certa forma a mundanidade do instrumento que opera como pressuposto do
que aparece. O ente deixa de ser visto em sua significância para mostrar-se
como algo dado. Para que o enunciado ocorra e possa ser partilhado é preciso,
primeiramente, que o ente já tenha sido descoberto e, só num segundo
momento, que tal característica pertença à índole das palavras.
Portanto, é através da modificação na estrutura prévia da compreensão
ocorrida no enunciado que o ente não é mais apreendido como útil, mas passa
a ser apreendido como um ente sobre o qual o enunciado discorre, mostrando
propriedades ou caracteres deste ente. Assim, para que seja possível o
enunciado, de certo modo, o ente deve deixar de comparecer tal como aparece
47
Conferir, capítulo II desta pesquisa.
109 109
no compreender não deve ser apreendido como ente disponível, mas como
ente subsistente. A modificação da estrutura “como” nos leva a entender o
enunciar, como a expressão de nossas representações, há um domínio do ente
para que se possa falar dele, contrariamente à nomeação, o enunciar não
deixa o ente ser aquilo que ele é, não diz respeito ao ente enquanto puro
fenômeno.( HEIDEGGER, 1990, p. 417). Na nomeação não é preciso adequar
a representação e o seu conteúdo, nem mesmo as representações entre si.
Vemos que a nomeação é contraposta à enunciação, uma é irredutível à outra.
Apenas a primeira é tomada como o solo que constitui as experiências
ontológicas acerca do ente. Com base no texto do Seminário de Thor de 1969,
vemos que Heidegger revê esta caracterização do enunciado quando, apesar
da irredutibilidade da nomeação à enunciação e vice-versa, as coloca na
condição de experiências fundamentais do ente. Desse modo, procuramos
acenar para o fato de que não pretendemos conceder um papel mais
importante à linguagem em Ser e Tempo. Admitimos que, já nessa obra,
Heidegger indica que a visão que ele procura ter da linguagem não se limita a
ser como meio de expressão; através da co-originariedade que o discurso
guarda com os existenciais fundamentais, a coloca como compartilhando do
caráter constitutivo do mesmo. Entendemos que ela compartilha ou guarda
determinada relação com o discurso e os outros existenciais, mas não possui a
mesma estrutura que eles. É possível entrever certo delineamento do conceito
fenomenológico de linguagem através da estrutura hermenêutica da
interpretação, contudo, isto não concede a mesma importância à linguagem
quanto para o discurso no todo da obra. Nela, a linguagem não pertence à
mesma dimensão, se assim se pode falar, que admite o estatuto do
110 110
pensamento posterior de Heidegger. Apesar das restrições, podemos
exemplificar com a noção de comunicação, vemos que ela surge porque indica
ou faz referência à totalidade conjuntural, isto é, ao ente em meio à lida, pois
aponta para a compreensão do ser, no entanto, a estrutura como se transforma
ao alcançar o estatuto do enunciado e, de igual modo, da comunicação.
Entendemos que há uma tentativa do filósofo de pensar a relação entre o
discurso nomeativo e o enunciado predicativo através do modo como ele
apresenta a estrutura dos existenciais como Gleichursprünglichkeit. As
estruturas de abertura que são os existenciais fundamentais já nos mostram a
tentativa de Heidegger de pensar a linguagem numa dimensão originária de
questionamento, basta saber se o discurso possibilita isso. Percebemos que
Heidegger desmonta a estrutura do enunciado de modo a poder encontrar nela
a interpretação (Vorhabe, vorsicht e vorgriff) possibilitando assim apresentar a
originariedade do enunciado. Inferimos daí, portanto, a grande dificuldade de
Heidegger, no momento de Sein und Zeit, para conceber outro modo de pensar
a linguagem que esteja fora das amarras comum à concepção tradicional da
filosofia.
Para o filósofo, os entes em si mesmos enquanto puros fenômenos se
mostram na vivência imediata, direta e pré-reflexiva do mundo. Existir equivale
a compreender, isto é, à possibilidade de articulação do que está em torno.
Podemos perceber que ao considerar um referir originário ao ente, Heidegger
tenta salvar a estrutura da linguagem do representacionismo em que cai na
teoria da adaequatio, segundo a qual o que está relacionado no enunciado são
construções intelectuais. Na indicação, predicação e comunicação do ente a
Vorhabe, a Vorsicht e a Vorgriff (momentos estruturais da interpretação) se
111 111
modificaram. Através da modificação ocorrida na estrutura “como”
modificação esta que não a transforma totalmente, mas que simplesmente a
determina os entes tornam-se tema de um enunciado determinante, já que
são entendidos como algo que possui tais e tais propriedades. Na
compreensão e interpretação os entes são desvelados, no enunciado, eles são
determinados em suas propriedades. O que significa que “o 'como' separou-se
da significância constitutiva do mundo circundante”. (id. ibid., p. 216, § 33).
Contudo, é difícil admitir a linguagem numa ligação intrínseca com o sentido
(mundanidade do mundo) se, como entendemos, o momento de determinação
do enunciado supõe um certo afastamento do nível propriamente ontológico.
A relação de fundação entre o enunciado e a interpretação aparece aqui
como uma tentativa de desligar a verdade ou o sentido da estrutura do
enunciado. Heidegger parte da suposição de que o modo tradicional do
pensamento, o modo lógico, não é suficiente para a indagação sobre o ser.
Nesse caso, se o enunciado for fundado na circunvisão interpretativa da
compreensão, então, a teoria do enunciado como local autêntico da verdade
torna-se problemática. Na teoria da correspondência, a verdade é justificada a
partir da relação que ocorre entre um sujeito psíquico e um ente real, por
exemplo, os predicados que alguma coisa suporta. Para Heidegger, o
enunciado não deveria ser reduzido à tarefa de ligação de elementos distintos.
O enunciado deve consistir em deixar ser o sentido. Heidegger pode, com esta
posição, legitimar o conhecimento efetivo que surge no enunciado ao mostrar
que ele se funda no compreender, que ele se enraíza no âmbito do sentido.
Vimos que no âmbito pré-reflexivo aberto pelo “como” hermenêutico o ser-aí
não é mais a instância legitimadora do conhecimento. Para o autor, a verdade
112 112
não é outra coisa que um modo de ser do ente. Está na coisa em si mesma e
no modo de ser-no-mundo, ou melhor, no ser do ser-aí, a possibilidade do
conhecimento. Contudo, considerando o que foi exposto, não há entre a
interpretação e o enunciado certa distância no que diz respeito a seus âmbitos
próprios? Pode o indeterminado determinar? Se admitirmos esta relação sem
maiores questionamentos não estaremos incorrendo na mesma distinção e
respectiva relação entre duas instâncias feita pela tese da adaequatio? A
Zuhandenheit e a Vorhandenheit? A exposição de Heidegger no que diz
respeito a este ponto é extremamente breve. No entanto, podemos admitir
relações subjacentes incorporadas nos modos de dizer, porém, não ditas, que
possibilitam, dentro de certo limite e este é ainda obscuro para nós a
comunicação. Obscuro também é o modo como é possível ao âmbito do
sentido ou, podemos dizer aqui, não-linguístico, “determinar” a dimensão da
enunciação lingüística. Tentaremos, no próximo capítulo, encaminhar esses
questionamentos investigando o papel desempenhado pelo fenômeno do
discurso (Rede) no ser do ser-aí.
3.4. A DISTINÇÃO ENTRE DISCURSO (REDE) E LINGUAGEM (SPRACHE)
No §34 de Ser e Tempo, Heidegger descreve o discurso como a
“articulação da compreensibilidade do ser-no-mundo”. (1999, p. 220). Na
análise da interpretação vimos que é através dos contextos de desvelamento –
contextos que levam em conta os entes que tem o mesmo modo de ser do ser-
, os instrumentos e o ser-aí ele mesmo que a estrutura de algo como algo
pode conceder significado aos entes.
(id. ibid., p. 215, § 33). A dinâmica da
113 113
estrutura como da compreensão nos indica o modo próprio de operar do
discurso. Sabemos que qualquer ente que apareça como coisa já se encontra
estruturado pelo sentido. Assim, a forma geral do discurso aparece a partir da
estrutura “como”. Ao descrever o discurso (Rede) Heidegger nos informa que
ele deve ser caracterizado desde uma perspectiva existencial; não é algo dado,
portanto, não deve ser considerado objetivamente. Devemos entendê-lo como
uma estrutura indiscernível da constituição mesma do ser-aí capaz de tornar
possível o sentido. Isto quer dizer que o discurso é a condição prévia de
desvelamento do ente. As análises que viemos fazendo dos existenciais
fundamentais do ser-aí têm o objetivo de apresentar a estrutura deste possível
desvelamento do ente, bem como, mostrar o alcance deste conjunto de
abertura. Entendemos que, desde o início da analítica até o parágrafo 34, o
que está em andamento é a elaboração da noção de linguagem através dos
existenciais da compreensão, da disposição e do discurso.
No início do parágrafo sobre o discurso, Heidegger apresenta a seguinte
tese: “do ponto de vista existencial, o discurso é igualmente originário à
disposição e à compreensão” (id. ibid., p. 219, § 34). O discurso (Rede), a
disposição (Befindlichkeit) e a compreensão (Verstehen) são os modos de
abertura do ser-aí. Como analisamos anteriormente, a abertura é a forma do
ser-aí. Estes existenciais perfazem o movimento mediante o qual a existência
se realiza, perfazem a abertura do ser-aí enquanto ser-no-mundo; é através
deles que se decompõe o ser-em (In-sein). Segundo o filósofo, esses
existenciais guardam em si uma relação de co-originariedade
(Gleichursprünglichkeit). Isto mostra que para ser fiel à caracterização que
Heidegger faz da linguagem é preciso ressaltar o modo fundamental que o
114 114
discurso mantém com os outros existenciais e que o caracteriza enquanto tal. A
essa unidade mantida entre os existenciais fundamentais chamaremos aqui de
“lógos”, principalmente para sublinhar que ao falar de discurso queremos nos
remeter ao que caracteriza enquanto tal as estruturas da compreensão e da
disposição.
A característica da co-originariedade entre os existenciais permite que
os percebamos em um entrelaçamento indissociável, numa continuidade
essencial, numa total interdependência, o que não nos parece poder ocorrer
entre o discurso e a linguagem. Ao explicitar esta relação diz Heidegger:
“disposição e compreensão são, de maneira igualmente originária,
determinadas pelo discurso”. (id. ibid., p. 187, § 28). Contudo, o inverso é
verdadeiro também. O discurso só cumpre a sua função caso esteja
perpassado por uma disposição afetiva, e puder exercer-se desde uma
totalidade conjuntural. Até este momento não expomos a noção de disposição
e o faremos a título de informação somente. Como todos os existenciais de
abertura envolvem um modo de “ver”, de abrir, a disposição (Befindlichkeit)
possibilita experienciar o próprio ser através de uma disposição afetiva, seja ela
qual for. A disposição supõe certo compreender, e o compreender se vê
sempre acompanhado pela interpretação, que, por sua vez, requer a função
articuladora do discurso. É desde uma disposição afetiva, que perpassa a
compreensibilidade do ser-no-mundo, que a compreensão pode ser articulada
(subentende-se a Verweisung) pelo discurso. Nesse caso, o ser-aí
“compreende-se” desde a disposição afetiva em que se encontra; o ser-aí
“sabe-se”, compreende que “é”. Esse irromper articulador-compreensivo é, de
certo modo, explicado pela co-originariedade guardada entre os existenciais. É
115 115
precisamente este vínculo essencial entre os três existenciais, capaz de abrir
ou estruturar a dimensão pré-reflexiva, que freqüentemente é desconsiderado
na interpretação do existencial discurso feita por alguns comentadores de Ser e
Tempo. Há algumas interpretações que nos mostram essa posição, é o caso
da interpretação de W. Franzen, apud Bay (1998, p. 265). Ele entende que o
discurso tem apenas a função de unir o que já foi captado pelo compreender e
que, portanto, este existencial não tem a mesma importância na determinação
essencial do ser-aí quanto os outros modos de abertura.
48
Diz Franzen, “o
discurso é somente a desmembração da compreensibilidade do ser-no-mundo”
(BAY, 1998, p. 265) No parecer deste comentador, “ainda que Heidegger diga
que o discurso é tão originário quanto os outros modos de abertura, no
desenvolvimento mesmo da questão, subordina o discurso ao compreender e,
portanto, também à disposição”. (id. ibid., p. 265) Nesta perspectiva, o discurso
seria reduzido a um modo de conectar o que foi aberto na compreensão, seria
apenas mais um existencial “entre outros” e poderia ser mais facilmente
entendido se relacionado à linguagem (Sprache). Esta posição é contrária a
nossa, visto que o discurso tem uma função posterior aos demais existenciais e
tal tese se apresenta extremamente problemática já que nenhum modo de
48
Podemos indicar também a interpretação de Otto Pöggeler que assume a posição de que a
compreensão e a disposição possuem maior importância e radicalidade que o discurso. Isso se deve ao
fato de que considere a questão da facticidade da existência como o elemento dominante na analítica
existencial. Entendemos que Pöggeler faz a leitura do problema da linguagem dando maior ênfase aos
elementos da analítica que se relacionam com o caráter do estar-lançado (Geworfenheit) a partir do qual a
existência se define (Conferir, PÖGGELER A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto
Piaget, 2001). Ele se apóia no problema que projeta a relação entre discurso e decadência (Verfallen). Ao
contrário da nossa perspectiva que entende que a herança husserliana tem um valor importante na
problemática da linguagem em Ser e Tempo ao pretender manter-se ao nível da lógica e de seus
problemas fundamentais, ou seja, que a investigação do componente lógico possui maior peso na
investigação da questão do ser do que a situação fáctica do ser-aí, a decadência. È o que procuramos
mostrar ressaltando a dimensão pré-ontológica da linguagem aberta pelo discurso e os outros existenciais
como seu principal escopo.
116 116
abertura pode ser explicado a posteriori em relação ao existir próprio ao ser-aí.
Nesta interpretação, a co-originariedade dos existenciais de abertura é
claramente desconsiderada. Franzen ignora a interdependência entre os
existenciais de abertura que, nesse entrelaçamento, e sem nenhuma relação
hierárquica, garante o desvelamento do ente e concede ao discurso um caráter
originário. A totalidade significativa da compreensibilidade fica comprometida,
principalmente, no que diz respeito ao alcance que possui a noção de abertura
(Erschlossenheit).
Ao descrever a função da interpretação, Heidegger diz que a
apropriação do compreendido, operada por ela, não tem, necessariamente, que
possuir o caráter de uma determinação proposicional, isto é, não requer a
expressão em palavras. A interpretação se estrutura desde uma posição-
prévia que tem como base o situar-se empreendido pelas disposições afetivas
e, conseqüentemente, o ser-no-mundo, uma visão-prévia que tem relação com
a circunvisão do compreender, e desde uma concepção-prévia que mantém
como estruturação e articulação o discurso. Estes momentos da interpretação
se edificam desde os existenciais de abertura, mostrando a forma que concede
sentido aos entes. Assim, podemos admitir que a estruturação do como
hermenêutico perfaça, num momento originário, o movimento mesmo do
discurso ao supor que “sentido” é algo no qual nos movemos. Desse modo,
vemos que o discurso é a função desde a qual Heidegger procura explicar a
correspondência significativa com o mundo. No entanto, levantamos uma
questão: Ao considerar que a interpretação não necessita da determinação
proposicional para ser tal como ela é, então, como se realiza a linguagem?
117 117
Através da noção de discurso pretendemos mostrar que Heidegger, ao
ressaltá-la e conceder a ela o mesmo grau de importância ontológica que dá
aos outros dois existenciais, já procurava estruturar uma concepção de
linguagem com base numa dimensão mais originária, para tanto apresentou
este âmbito desocultador como um determinado “lógos”, ou, como estrutura de
edificação de sentido. “Lógos” designa aqui a prévia unidade que se dá entre
mundo e linguagem. Na apresentação da totalidade referencial desde a qual o
ser-aí se move e se interpreta surge o discurso em sua função. Essa totalidade
referencial não se encontra estruturada de início tal como se dá no
conhecimento teórico da linguagem. Através da estrutura “como” é que o ente
pode ser destacado significativamente, pode ter sentido, como vimos na
análise do enunciado. Contudo, entendemos que essa estruturação originária
que culmina com o enunciado nos induz a apreender o ato de julgar, tomado
desde a perspectiva aberta pelos existenciais, na função de responder a uma
ordem com a qual ele não deve e nem pode confundir-se, mas que, de certo
modo, ele reconhece. O enunciado, portanto, não criaria nada de novo, apenas
cumpriria a função de explicitar, dentro de certas regras lógicas, a totalidade
referencial aberta pelo ser-aí. Segundo Heidegger, o que põe em movimento a
possibilidade da palavra é esta ordem pré-lingüística aberta pelos existenciais
fundamentais do ser-aí. No entanto, como uma dimensão de ordem pré-
lingüística que é sustentada por condições ontológicas pode determinar a
esfera da linguagem que é de ordem lingüística? A posição de fundamentação
que Heidegger pressupõe ao edificar a noção de discurso em Ser e Tempo
evidencia que todo e qualquer questionamento acerca da linguagem não deve
iniciar-se pela investigação do enunciado teórico da lógica, mas pelo âmbito
118 118
que concede sentido ao ente enquanto algo que “serve para”, isto é, ao ente
visto desde sua instrumentalidade. Assim, assumir a investigação da linguagem
desde a perspectiva de uma ontologia fundamental, é admitir que Heidegger
supõe um certo “lógos” ou ordem pré-lingüística de desvelamento dos entes
que surge do caráter transcendental do ser-aí mesmo e que funda a linguagem
propriamente dita. Esta transcendência ao nível do sentido se daria pela
compreensão e não pelo conceito, como pretendeu a tradição filosófica ao
definir a verdade a partir da concordância de uma afirmação com um objeto.
Logo, esta noção de “lógos” encontrar-se-ia desligada das estruturas lógico-
gramaticais. Então, entendemos que é esta perspectiva almejada pelo filósofo
o que inviabiliza edificar os existenciais fundamentais, o “lógos”, como
expoente de um pensamento mais originário acerca de uma essência da
linguagem. Heidegger separa as ordens do discurso e do enunciado, no
entanto, precisa que entre elas se dê alguma ligação para que a relação de
fundamentação possa ser justificada. Desse modo, entendemos que a
originariedade guardada entre os existenciais de abertura é o que inviabiliza a
intenção heideggeriana de pensar a linguagem em seu conjunto
(discurso/enunciado) como caráter constitutivo do ser-aí.
Entender que a linguagem é questionada desde o caráter existencial do
ser-aí, isto é, a partir das estruturas existenciais fundamentais, não significa
que se pretenda referir e fazer equivaler tal interpretação à concepção posterior
da linguagem como “abertura de mundo”. Pretendemos apenas mostrar que
em Ser e Tempo já há um delineamento através dessa estrutura para uma
possível edificação da linguagem como abertura de uma dimensão originária
de questionamento, isto é, da linguagem em sua essência. Talvez isso possa
119 119
ser reconhecido através de outras análises, mas a que aqui apresentamos é
pela relação do existencial discurso e do enunciado, procurando entender esta
relação. O próprio pensamento heideggeriano mostra que o tema da linguagem
é importante desde o início do seu trabalho filosófico. Em Ser e Tempo
percebemos que os existenciais fundamentais possuem um papel de extrema
importância em toda a analítica e isso impossibilita pensar que o discurso
possui um papel privilegiado na formação do enunciado. Ele não se impõe aos
outros existenciais, mas ao partilhar do caráter de co-originariedade concedido
à compreensão e à disposição mostra-se como um dos momentos formadores
da linguagem. Somente assim é valido entender a função do discurso. Esta
interpretação se baseia na (co-)originariedade guardada entre os modos de
abertura do ser do ser-aí. Através do modo de ser das disposições afetivas o
ser-aí “vê” possibilidades desde as quais ele “é” e estas possibilidades são,
enquanto tais, sempre articuladas. O que justificaria pensar que toda
experiência do mundo encontra-se mediada por uma certa ordem. Por um
“lógos”. Assim, o discurso não precisa ter o modo de ser do signo lingüístico,
pois este “lógos” encontra-se na origem de contato com o ente e pode
apresentar algo com sentido independentemente de ancorar-se em estruturas
lógico-gramaticais. Este contato acontece imediatamente como um “dizer”, um
“compreender”, um “situar-se”. Essa tentativa de buscar a linguagem desde sua
origem ontológica faz com que Heidegger reformule a perspectiva de verdade
que tem prevalecido na lógica tradicional. Quando falamos na constituição
fundamental do ser-aí como ser-no-mundo já nos encontramos na ordem da
verdade. O esquema de sentido desde o qual a existência se projeta já implica
a verdade.
120 120
O que queremos dizer é que a distinção entre discurso e linguagem é
menos problemática do que a proposta de relacioná-las positivamente entre si.
Algumas propostas interpretativas mostram que a relação existente entre
discurso e linguagem não é descrita em Ser e Tempo de forma tão
esclarecedora. Concordamos com elas. Heidegger deixa de explicar a
linguagem a partir de sua dimensão comunicativa ou desde o fenômeno da
expressão ao supor uma dimensão originária de desvelamento dos entes. Se a
linguagem for discutida como “capacidade de falar” não se poderia alcançar
sua origem ontológica ou existencial. Somente desde uma perspectiva
ontológico-existencial é que ele pode tomá-la como um fenômeno cuja
fundação é o discurso. Antes de ressaltar a distinção entre discurso e
linguagem pretendemos pensar seu caráter de relação no sentido de uma
subordinação do âmbito da linguagem à dimensão do discurso. No §34 de Ser
e Tempo, Heidegger afirma que o discurso é “o fundamento ontológico-
existencial da linguagem” (HEIDEGGER, 1999, p. 219) E, portanto, “se acha à
base de toda interpretação e proposição” (id. ibid., p. 219) Ele é a articulação
da compreensibilidade do ser-no-mundo e possibilita a linguagem enquanto
predicação (ou determinação) e comunicação. Na proposta de encontrar algum
vínculo entre discurso e linguagem, nos valemos da dimensão do discurso
aberta por Heidegger, vemos que esta dimensão se distancia da ordem própria
da linguagem. Consideramos as análises expostas do instrumento, da
referência e da significância, e percebemos que ao afirmar o caráter fundante
do discurso em relação à linguagem Heidegger pressupõe um fundamento de
ordem não-lingüístico para a linguagem. Em uma passagem do §11 da Logik.
Die frage nach der Warheit (1925-26) Heidegger (2004, p. 118, § 16) diz:
121 121
Trata-se de captar um fenômeno que é em si mesmo ligação e
separação e que é prévio às relações de expressões lingüísticas,
antes de seu atribuir e denegar, e por outro lado, é o que faz
possível que o lógos possa ser verdadeiro ou falso, descobridor ou
encobridor.
Isto nos mostra que em Ser e Tempo Heidegger estava preocupado em
investigar as condições ontológicas e, portanto, pré-lingüisticas, de
possibilidade da linguagem. Essas condições encontram-se ligadas ao contexto
das práticas cotidianas, nelas algo pode ser apreendido enquanto algo e as
enunciações lingüísticas se tornam possíveis. É, portanto, a estrutura “como”
hermenêutica que deixa entrever uma dimensão mais fundamental de
significações. Logo, é a partir da compreensão do ser que o discurso pode
fundar a linguagem propriamente dita, isto é, a partir da originariedade desta
estrutura é possível a manifestação ôntica do compreendido pelo ser-no-mundo
através da enunciação lingüística. No entanto, se torna cada vez mais
conflituosa a hipótese segundo a qual algo que não possui o modo de ser do
signo mantém uma relação de fundamentação com ele. É possível justificar
essa situação quando se trata de âmbitos diferentes de questionamento?
Ainda no §34, Heidegger afirma que “a linguagem é o pronunciamento
do discurso”. (HEIDEGGER, 1999, p. 219) Desse modo, a origem ontológica da
linguagem é evidenciada na conclusão de que “o discurso possui um modo de
122 122
ser mundano” (id. ibid. p. 219) Esta gênese ontológica da linguagem é
mostrada na seguinte passagem da obra heideggeriana:
Uma vez que, enquanto articulação da compreensibilidade do aí, o
discurso é um existencial da abertura, constituído primordialmente
pelo ser-no-mundo, ele também deve possuir, em sua essência, um
modo de ser mundano. (HEIDEGGER, 1999, p.219)
Logo, o discurso pode expressar-se porque possui um modo mundano
circunscrito à linguagem. O discurso funda a linguagem e esta o traz à forma.
Ou seja, o discurso se expressa no enunciado, mais especificamente, em um
de seus momentos constitutivos, o da indicação. E as palavras podem ser
entendidas como entes disponíveis através dos quais as relações de
remetimento, isto é, de significância, vem à tona. Diz Heidegger: “Por preservar
a descoberta, o que se pronuncia e assim se acha à mão traz, em si mesmo,
uma remissão ao ente sobre o qual toda proposição se pronuncia”. (id. ibid., p.
292, § 44). Nesse caso, podemos entender que a proposição teria uma
importante função na edificação do caráter ontológico da linguagem ao
funcionar como ente indicador da estrutura ontológica fundamental. Uma
ressalva, isso não implica que a linguagem possa de alguma maneira fundar o
discurso, algo claramente inviável para a interpretação heideggeriana. O seu
papel é o de viabilizar a “remissão descobridora”. Agora precisamos entender
como o discurso passa à linguagem.
123 123
Lembremos que na análise do sinal feita por Heidegger no §17 de Ser e
Tempo já se revela certa dificuldade ao conceber a estrutura da linguagem. O
autor concebe os sinais, ou signos, como entes intramundanos que possuem a
função de apontar para uma rede referencial de instrumentos. E ressalta que a
referência que surge desde o sinal não deve ser ela mesma um sinal ou um
ente intramundano, já que deve ser o fundamento ontológico do sinal. (id. ibid.,
p. 120 - 121 - 122 - § 34) Por este motivo, Heidegger vai utilizar o termo “relação”
(Beziehung) quando trata da ligação ôntica dos entes intramundanos e o termo
“referência” (Verweisung) quando trata do direcionar-se à rede de remetimento
dos instrumentos a partir de sua origem ontológica. Segundo esta perspectiva,
nos parece que ao considerar um momento anterior de articulação
possibilitadora da organização judicativa, Heidegger relaciona intimamente a
distinção entre discurso e linguagem com a distinção entre o plano ontológico,
relativo ao ser dos entes, e o ôntico, relativo aos entes. Esse desentendimento
também ficou expresso na investigação do enunciado, exatamente na
configuração da passagem do “como” hermenêutico ao apofântico. Do mesmo
modo a relação entre discurso e linguagem esbarra em um obstáculo comum: o
que legitima a subordinação da esfera da linguagem a uma dimensão mais
fundamental de significações? Caso aceitemos esta subordinação, como se dá
a relação entre o plano ontológico, ou do discurso, e o plano dos entes, ou dos
signos? Admitimos que Heidegger não fala a respeito desta passagem ou
modificação. Para tentarmos entender isso, encaminhamo-nos pela afirmação
de Heidegger segundo a qual a linguagem é o “estado de expressão” do
discurso, ou, seu “pronunciamento”. Com isso podemos entender que para a
linguagem poder “preservar” algo do discurso e, conseqüentemente, poder
124 124
expressá-lo, o discurso deve guardar em sua estrutura certo caráter lingüístico.
O que não é o caso da perspectiva na qual Heidegger procura expor os
existenciais, em particular, o discurso. O âmbito de edificação dos existenciais
diz respeito à significância, mas não ao significar, isto é, à predicação
propriamente dita.
Em algumas passagens fica evidente que ao discurso não é dada a
possibilidade de partilhar do caráter determinativo da linguagem e, em outras,
evidencia-se o alcance que a linguagem tem ao apresentar-se como “estado de
expressão” ou de “pronunciamento” do discurso. O discurso não pode ser
fundamento ontológico existencial da linguagem justamente porque ele
pertence a um domínio diferente. Ele se constitui desde a dimensão ontológica,
de articulação de significância, ao passo que o modo de expressão do
discurso, o enunciado, é estruturado apenas na dimensão ôntica, da
representação, pelos signos lingüísticos. Nos Prolegomena zur Geschichte des
Zeitbegriffs Heidegger (2006, p. 327, § 28) afirma que:
A linguagem torna manifesto. Não que venha a produzir pela
primeira vez o que se diz do estar descoberto; pelo contrário, o estar
aberto e sua realização de ser [...] baseados na constituição básica
do ser-em, são condições de possibilidade de tal manifestação. E,
posto que a linguagem é uma possibilidade de ser do ser-aí, terá,
então, que poder explicar-se em suas estruturas básicas a partir da
constituição do ser-aí.
125 125
No entanto, o problema é tornar explícita esta relação ou possível
ligação entre linguagem e discurso. É possível ao enunciado predicativo
exercer a função indicativa de estruturas ontológicas? Que a linguagem não
produz pela primeira vez o “estar aberto” podemos entender. Mas como a
linguagem “o torna manifesto”? Apesar da obscuridade e das inconsistências
da reflexão sobre a linguagem em Ser e Tempo, entendemos que o que aí se
configura é uma proposta de investigação das condições ontológicas e,
portanto, pré-lingüísticas da linguagem, fundamentalmente quando Heidegger
trata da co-originariedade dos existenciais fundamentais. Entendemos que com
a noção de Gleichursprünglichkeit Heidegger procurava conceder um caráter
ontológico à linguagem. No entanto, o caráter de originariedade que concede
aos existenciais é o mesmo que inviabiliza falar de um pronunciamento do
discurso por parte da linguagem. Talvez Heidegger tenha se dado conta tarde
demais que esta noção é extremamente perigosa. Na relação entre discurso e
linguagem a co-originariedade pretende dispensar à linguagem um estatuto
que ela não pode admitir. O enunciado, como se viu, ao transformar o “como”
hermenêutico em aponfântico desmundaniza o instrumento. Na formação do
enunciado o caráter mundano de algo é corrompido e transforma o instrumento
em pura coisa, objeto. No entanto, é através do enunciado que Heidegger
resgata o âmbito representacional para que o discurso possa se tornar explícito
e ser pronunciado de alguma maneira.
Caso o pronunciamento ou dizer da linguagem possa ser referido à
possibilidade de partilhar do caráter estrutural do discurso, então, a linguagem
deve poder expressar as estruturas ontológicas. Mas, tal como entendemos na
análise do enunciado, isso não ocorre. A linguagem não pode expressar o
126 126
discurso nem, em último caso, o discurso pode ser tomado como uma instância
lógica, visto que, comprometeria negativamente a dimensão constitutiva do
sentido aberta pelo “lógos”. Concluímos que a linguagem não poderia ser
pensada como uma estrutura ontológica que, segundo entendemos, parece ser
a intenção de Heidegger. Principalmente, porque o discurso não pode ser
expresso pela linguagem/enunciado tal como Heidegger o entende. O discurso
é originário e a linguagem não, ela é mundana e ao se formar “corrompe” a
mundanidade do mundo. O enunciado deveria ter um caráter originário para
que possa manifestar, “dizer” o discurso, só que isso não ocorre. Assim, a
linguagem não pode ser pensada com base no segmento
discurso/fundação/enunciado. A originariedade que caracteriza o discurso
impossibilita o seu “pronunciamento” pela linguagem.
127 127
CONCLUSÃO
O objetivo principal da nossa investigação foi procurar delinear e
esclarecer a noção ontológica de linguagem que Ser e Tempo guarda. Para
atingir esse objetivo apresentamos o programa ontológico exposto na obra e a
sua relação com os estudos de Husserl, juntamente com a exposição do
procedimento ou método de investigação considerado adequado para o
tratamento da questão do ser. Com a exposição da constituição fundamental
do ser-aí, o ser-no-mundo, procuramos perceber o caráter implícito do discurso
que vem sendo preparado e tratado aos poucos desde as análises iniciais da
obra. Diz Heidegger no §34: “Embora tenhamos excluído esse fenômeno de
uma análise temática, dele nos servimos continuamente nas interpretações
feitas até aqui da disposição, compreensão, interpretação e enunciado”.
Entendemos que já na análise da “mundanidade do mundo” vem à tona o
sentido sob o signo da totalidade referencial ou significativa aberta pelas
relações de remetimento que os instrumentos guardam entre si. Na totalidade
referencial, os existenciais de abertura, ditos acima, já se encontram em
movimento como caráter de ser-no-mundo. Isso foi investigado mais
profundamente com as análises feitas da Zuhandenheit, Vorhandenheit, do
fenômeno da referência (Verweisung) e do sinal (Zeichen). É através de uma
teoria do “objeto”, não mais do juízo, que Heidegger pretende edificar sua
ontologia. Ele transita numa dimensão pré-enunciativa ao pensar a gênese da
linguagem. Ser e Tempo diz que antes mesmo de toda possível tematização já
encontramos no lidar cotidiano a edificação de sentido, chamada: significância
(Bedeutung). Fica claro que a significância é estruturada a partir do caráter de
128 128
co-originariedade mantido entre os existenciais fundamentais: disposição
(Befindlichkeit), compreensão (Verstehen) e discurso (Rede). Como havíamos
dito, é desde uma disposição afetiva, que perpassa a compreensibilidade do
ser-no-mundo, que a compreensão é articulada pelo discurso e que se dá
sentido. A disposição supõe um certo compreender, e o compreender se vê
sempre acompanhado pela interpretação, que, por sua vez, requer a função
articuladora do discurso, possibilitando assim o entendimento do ente. Os
fenômenos da interpretação (Auslegung) e do enunciado (Aussage) têm uma
função extremamente importante nessa questão já que é na elaboração e
vínculo destes dois momentos que se dá a passagem do que é discurso para o
que se distingue por linguagem, isto é, em enunciado, comunicação. Essa
passagem é pontual para o nosso questionamento. Entendemos que
Heidegger procura mostrar o discurso como fundamento existencial-ontológico
da linguagem, no entanto, não fica devidamente exposto como o discurso pode
vir à linguagem. Como algo que é, de certo modo, uma “percepção”, pode
passar a ter o caráter de uma determinação lingüística. Daí surgem problemas
que nos impedem de entender e afirmar o discurso, tal como propõe
Heidegger, como fundamento ontológico da linguagem. Justamente porque não
fica esclarecido como se dá a passagem ou tramite que leva do discurso ao
seu pronunciamento como enunciado. Supondo que deva haver um fio
condutor que faça o entrelaçamento dessas duas ordens; que haja um
momento no qual elas não se distinguem uma da outra. Isso não fica
esclarecido. Porém, antes disso, perguntamos: é possível esta passagem?
Esta questão é conjeturada afirmativamente por Heidegger. Acreditamos que
este foi o ponto no qual o filósofo não pode levar a diante o escopo de
129 129
apresentar ou, preparar o caminho para se pensar a linguagem em sua
essência. Aquilo que foi elaborado como discurso não se encontra
devidamente entrelaçado ao caráter lingüístico próprio ao enunciado.
Quando o filósofo trata da interpretação diz que aí se dá a
transformação do “como” hermenêutico em apofântico. O que é sentido para o
lidar cotidiano passa a ser significado já no enunciado. Contudo, há uma perda
significativa nesta passagem, diz Heidegger. O que antes exprimia o ente
enquanto instrumento, isto é, tendo a possibilidade de sentido desde sua
relação com o mundo, desde uma rede de remetimentos, agora, ao pertencer
ao enunciado, encontra-se desmundanizado. Para vir à palavra o sentido é
desmundanizado enquanto instrumento, é retirado do todo relacional que o
caracteriza e transformado em coisa, objeto de um enunciado. A relação
constitutiva que o ente mantinha com o ser-aí enquanto ser-no-mundo dá lugar
à possibilidade de comunicação. Nessa argumentação percebemos que a
apresentação do ente ocorre a partir de diferentes posições, primeiramente,
visto e definido desde o todo relacional mundano e, em seguida, como num
salto argumentativo, ele é caracterizado fora desse todo, pertencendo a um
lócus enunciativo. Entendemos que esta passagem não se encontra
devidamente justificada e, isso fica ainda mais evidente ao adentrarmos na
noção de gleichursprünglich. Para afirmar a linguagem como caráter
constitutivo do ser-aí é preciso admitir que o discurso esteja em estrita relação
com a linguagem, ou que esta possua a estrutura ontológica adequada para
ser “pronunciamento” do discurso. Mas, à linguagem, tal como se dá enquanto
evidenciação do ente, cabe a função de explicitar ou indicar estruturas
ontológicas? Entendemos que Heidegger procura afirmar esta possibilidade ao
130 130
apresentar o momento “indicação” do enunciado. Segundo ele, na indicação há
certo tipo de “evidenciação” do ente enquanto instrumento. Essa é a tentativa
de Heidegger de mostrar que nesta passagem o que é significância torna-se
um momento estrutural do enunciado, justificando assim um possível “estado
de expressão”. Na indicação o ente é visto desde ele mesmo na lida ocupada
do ser-aí e não como parte estrutural da totalidade referencial na qual se
encontra como instrumento. Heidegger apresenta esta passagem como uma
relação aparentemente clara. Com relação ao momento da predicação no
enunciado, percebemos que o predicado, o qual determina o instrumento,
fazendo com que ele compareça determinado, surge de redes de remetimentos
que articulam uma totalidade conjuntural e possibilitam uma certa familiaridade
(redes que emergem de acordo como a posição, visão e concepção-prévias),
um determinado “mover-se ‘em’ mundo”, em que se encontra o ser-aí. O que
são ou possuem estas redes para alcançarem sua determinação através do
conceito? Sabemos que elas surgem e se perfazem respondendo à lida
cotidiana do ser-aí e, portanto, não podem estar previamente determinadas,
mais que isso, elas estão fora do alcance da determinação. Vimos que o papel
do instrumento enquanto tal é abrir e possibilitar a interpretação, isto é, o
sentido. Eles indicam as possibilidades conjunturais de uma totalidade
significativa sem serem tomados ou aparecerem como conceitos. Eles apontam
para uma significância que não é totalmente delineada e clara como a palavra.
O que nos mostra que eles mesmos não podem ser determinados previamente
ao lidar cotidiano como exige e supõe o enunciado. Eles se “mostram” no
próprio desenrolar da lida e somente aí. Caso estes instrumentos possam ser
determinados ou caracterizados enquanto tais, anteriormente ao seu exercício,
131 131
eles não cumpririam a função de abrir a totalidade significativa. Somente
enquanto não são expressos é que mantém a possibilidade de apontar para
uma rede referencial. Concluímos daí, que não se pode entrever claramente,
através da instrumentalidade do instrumento, o que será exposto pelo
enunciado ou mesmo predicado dele, e nem se esse movimento é possível.
Pois, a linguagem, nos moldes de Ser e Tempo, não pode caracterizar-se como
pronunciamento do discurso. A transformação ou modificação da estrutura
hermenêutica em estrutura apofântica não pode ser explicada a partir da
estrutura discurso/linguagem. Até afirmar que “a linguagem é o
pronunciamento” do discurso, Heidegger fornece uma análise bastante concisa
sobre o caráter constitutivo da linguagem. Contudo, é de se notar que ele
recorre ao enunciado para trazer o discurso à manifestação. Heidegger ainda
trabalha com o enunciado dentro do modelo sujeito e objeto. O enunciado é
tomado como modo de determinação e instrumento de expressão, como se
arraigou na tradição filosófica; o que compromete negativamente toda tentativa
de colocar o questionamento sobre a linguagem em bases mais originárias.
Através da noção de co-originariedade (Gleichursprünglichkeit) fica mais
propriamente caracterizada a impossibilidade de se pensar a linguagem sob a
perspectiva ontológica edificada através da noção de discurso. Esta
característica, própria aos existenciais, os impede de serem expostos pelo
enunciado, ou melhor, de partilhar das mesmas propriedades, de se entrelaçar
ao seu modus operandi e possibilitar a determinação enunciativa. A relação
entre discurso e linguagem é um momento no qual podemos antecipar a
falência das intenções heideggerianas no que diz respeito a um
questionamento mais originário sobre a questão do ser com base em uma
132 132
analítica da existência. Entendemos que Heidegger, na tentativa de abrir
caminho para a retomada da questão do ser, procura caracterizar
ontologicamente a linguagem.
Porém, não podemos deixar de ressaltar que é através da análise do
discurso que o filósofo nos mostra que a forma fundamental da verdade não se
esgota na análise da estrutura enunciativa ou proposicional. O saber não se
encontra no enunciado nem se subordina a ele. A reformulação da questão da
“verdade” desde a dimensão do discurso a apresenta como um dar-se imediato
de contato com o ente que ocorre como realização de sentido. Isto implica que
a proposta heideggeriana de pensar a linguagem a partir de uma ordem pré-
predicativa, uma ordem anterior de sentido, surge com o propósito de eliminar
um obstáculo à adequada colocação da questão do ser. Se o “lógos” (o
conjunto dos existenciais fundamentais do ser-aí) faz referência ou, se
pronuncia através do juízo ele acaba por cair em uma interpretação unilateral
do que seja o conhecimento. Como dissemos, ele acaba por se mostrar
incapaz de dar conta da problemática ontológica. E, por sua vez, apresenta
uma interpretação reducionista do ser-aí. Para Heidegger (1999, p. 277, §43), o
conhecimento é uma “relação ontológica”, não se dá primeiramente ao
pensamento e, por isso, o próprio conhecimento não é julgamento.
133 133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Rio de
Janeiro: Vozes, 8º ed. 1999. (parte I e II).
__________. L’Etre et le Temps. Trad. R. Boehm e A. de Waelhens. Paris:
Gallimard, 1964.
__________. Les Problèmes Fondamentaux de la Phénoménologie. Paris:
Gallimard, 1985.
__________. Prolegómenos para una Historia del Concepto de Tiempo.
Trad. Jaime Aspiunza. Madrid: Alianza, 2006.
__________. Lógica – la Pregunta por la Verdad. Trad. J. Alberto Ciria.
Madrid: Alianza, 2004.
__________. Meu Caminho para a Fenomenologia. Trad. Ernildo Stein. São
Paulo: Abril Cultural, 1979. (Col. Os Pensadores).
__________. Sobre a Essência da Verdade. Trad. Ernildo Stein. São Paulo:
Abril Cultural, 1979. (Col. Os Pensadores).
__________. Questions III e IV - Le Séminar de Zähringen. Trad. Jean
Beaufret. Paris: Gallimard, 1990.
__________. Carta-prólogo a “Heidegger: Trough Phenomenology to
Tought” de William Richardson. Disponível em: www.philosophia.cl. Acesso
em: 01 mar 2004.
__________. Ontologia – Hermenéutica de la Facticidad. Disponível em:
www.heideggeriana.com.ar
. Acesso em: 10 jan 2005.
__________. Carta ao Colóquio sobre “O Problema de um Pensamento e
de uma Linguagem Não-objetivantes na Teologia Atual”. Trad. Gilvan Fogel
(texto publicado em Phaenomenologie und Theologie). Frankfurt: Vittorio
Klostermann, 1970.
HUSSERL, E. Investigaciones Logicas, 1 e 2. Madrid: Alianza, 1999.
__________. Recherches Logiques, v. 1, 2 e 3. Paris: P.U.F, 1990.
__________. A Filosofia como Ciência de Rigor. Trad. Albin Beau. Coimbra:
Atlântida, 1965.
__________. Expérience et Jugement. Paris: Puf, 1970.
BAY, T. A. El Lenguaje en el Primer Heidegger. México: Fondo de Cultura
Económica, 1998.
BIEMEL, W. Le Concept de Monde chez Heidegger. Paris: Vrin, 2005.
134 134
BLANC, M. F. Estudos sobre o Ser (parte II). Lisboa: Calouste, 2001.
COURTINE, J-F. Heidegger et la Phénoménologie. Paris: Vrin, 1990.
DE WAELHENS, A. Phenomenologie et Vérité: essai sur l’evolution de
l’idée de vérité chez Husserl et Heidegger. Paris: P.U.F., 1953.
GAOS, J. Introducción a “El Ser y el tiempo” de Martín Heidegger. México:
F.C. E., 1996.
GARCIA, R. Rodriguez. Heidegger y la Crisis de la Epoca Moderna. Madrid:
Cincel, 1987.
GREISCH, J. Ontologie et Temporalité. Paris: P.U.F, 1994.
LANDIM, R. F. Evidência e Verdade no Sistema Cartesiano. São Paulo:
Loyola, 1992.
LAFONT, C. Lenguaje y Apertura del Mundo – El giro lingüístico de la
hermenéutica de Heidegger. Trad. Pere Fabri i Abat. Madrid: Alianza, 1992.
MOURA, C. A. R. Racionalidade e Crise. São Paulo: Discurso editorial e
editora UFPR, 2001.
NUNES, Benedito. Heidegger e Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002.
PAISANA, J. M. Fenomenologia e Hermenêutica: a relação entre as
filosofias de Husserl e Heidegger. Lisboa: Editorial Presença, 1992.
PÖGGELER, O. A Via do Pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto
Piaget, 2001.
STEINER, G. As Idéias de Heidegger. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix,
1978.
VATTIMO, G. Introdução a Heidegger. Trad. João Gama. Lisboa: edições 70,
1987.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo