Download PDF
ads:
1
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Carlos Rogério Duarte Barreiros
F
AROESTE CABOCLO: LITERATURA, CORDEL E
ROCK AND ROLL
São Paulo
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Carlos Rogério Duarte Barreiros
FAROESTE CABOCLO: LITERATURA, CORDEL E
ROCK AND ROLL
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Letras
Orientadora: Marlise Vaz Bridi
São Paulo
2007
ads:
3
Carlos Rogério Duarte Barreiros
F
AROESTE CABOCLO: LITERATURA, CORDEL E ROCK AND
ROLL
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do tulo de
Mestre em Letras
Aprovado em agosto de 2007
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________________________
Profa. Dra. Marlise Vaz Bridi
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_________________________________________________________________________
Profa Dra. Lílian Jacoto
Universidade de São Paulo
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Jo João Cury
Universidade Presbiteriana Mackenzie
4
Ao meu pai, José Adriano Campos Barreiros, que me ensinou que não havia hora para
estudar;
A minha mãe, Palmyra Duarte Barreiros, a quem devo o amor ao saber, e que me ensinou
que estudar tamm exige disciplina;
A Catharina Pugliesi Duarte, mãe do meu caráter;
A José Adriano Duarte Barreiros e Katya Cristina Duarte Barreiros, que me ensinaram que
tudo que eu aprendi é nada, se comparado aos irmãos que tenho;
Aos amigos Bernardo, Covinha, Dalê, Pixote, Rafa Araújo e Rafa Visconti (não esse, o
outro, o outro), com quem aprendi que o bar era o melhor lugar para discutir o que estudei
fora de hora, mas com disciplina;
A Ana Cristina Delgado, com quem aprendi que o conhecimento é chato e inútil, se eu já
não houvesse aprendido a amar.
5
Agradecimentos
Ao Mackpesquisa e à Capes, sem cujo apoio este trabalho não seria possível.
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquente e esfria, aperta e daí
afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus
quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e
inda mais alegre no meio da tristeza! Só assim, de repente, na horinha em que se quer, de
propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.
Aí o senhor via os companheiros, um por um, prazidos, em beira do café. Assim,
também, por que se agüentava aquilo, era por causa da boa camaradagem, e dessa
movimentação sempre. Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive questões.
Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem: a professora Gisela, que
me apresentou Pablo Neruda, na quarta série; o Luiz Cláudio Bido, espécie de ex-professor-
irmão-amigo-parceiro-afilhado, o primeiro professor do Brasil a tocar rock nacional em sala
de aula; o Martinho Marcos de Freitas, que tem toda a revolão em sua cabeça, mas não
contou para ninguém, só agiu; o José Antônio Pasta Júnior, que fez a síntese de tudo que
eu queria – e precisava – saber; o Júlio Groppa Aquino, o melhor professor de todos,
porque rompe com tudo, em nome de uma vida menos ordinária; a Kelma Assunção Souza,
professora de felicidade; o Renato Guimarães Ferreira, que sonhou – e sonha – a literatura
e a canção num meio em que as artes são só sonho; o Durval Antunes Filho, mestre de tudo,
carisma , sempre ensinamento; o Boaventura Barreiros, avôhai; o Wanderley Scatolin,
quase pai que foi e é; o Alfredo e a Eliana Chumer, que me ensinaram a ter autonomia; a
Lílian Jacoto, pelas sugestões, professora de canção; o José João Cury, pelas preciosas
observações; a Marlise Vaz Bridi, porque acreditou em mim e porque me disse, sempre, só
a verdade; o Newton Duarte Molon, o Ivan Akio Itocazo, a Ívian Lara Destro, a Daniela
Aizenstein e o Renato Aizenstein, os melhores professores deo Paulo; a Samia Sulaiman,
Rogério (Rogerinho), Marcello Bolzan e Eric (Eriquinho), meus melhores alunos, que se
tornaram grandes professores; todos os amigos da FGV, onde me esqueci
providencialmente deste trabalho, especialmente Maíra Tardelli, Luiz Montoya, Cíntia
Veríssimo e Priscila Moli; as minhas “colegas de trabalho” do Mackenzie, Katya e
Verônica, sem as quais eu jamais teria levado adiante muitos devaneios registrados neste
trabalho; o José da Conceição Gaspar, porque nunca tive a coragem de desbravar o mar, ao
contrário dele; a Taysa Duarte, só coragem, que foi, ganhou dinheiro e voltou; o César
Talarico Barreiros, professor de iniciação ao rock and roll; o Marcelo Nova, o Clemente
Nascimento e o Rodrigo Carneiro, professores de rock and roll avançado; o mestre Márcio
Guedes, pelas sugestões preciosas e pela paciência: a canção fala à alma; o Mário Henrique
Stefanoni Bernardes, professor de amizade, meu primeiro parceiro; o Michel Friedhofer,
cosmopolita que me fez – ainda bem!levar o Brasil menos a sério; a Ana Rodrigues,
boêmia amiga das antigas, daqueles tempos em que “queríamos mudar o mundo”, ouvindo
Beatles e Eagles; o Fernando Barranha, o José Humberto Costa Vecchio, o Édson Japonês
Fujimori, pois as melhores lembranças que tenho estão carregadas deles. Amostro, para o
senhor ver que eu me alembro. Afora algum de que eu me esqueci – isto é: mais muitos...
Todos juntos, aquilo tranqüilizava os ares. A liberdade é assim, movimentação. E bastantes
morreram, no final. Esse sertão, esta terra.
Os fragmentos em itálico, salvo os nomes próprios, foram descobertos em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa
6
Modernizar o passado é uma evolão musical
Cadê as notas que estavam aqui
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enchem a imaginação de donio
São demônios os que destroem
O poder bravio da humanidade
Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro
Todos os Panteras Negras
Lampo sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza eles também cantaram um dia
Chico Science e Nação Zumbi, Monólogo ao pé do ouvido
Já não era pouco essa rebeldia sem objetivo, numa terra de conformismo e usura, onde o
funcionário se agarrava ao cargo como ostra, o comerciante e o industrial roíam sem pena o
consumidor esbrugado, o operário se esfalfava à toa, o camponês agüentava todas as
iniqüidades, fatalista, sereno.
Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere
7
Resumo
Na canção Faroeste Caboclo, da banda Lego Urbana, é possível observar uma
combinação singular de elementos da literatura brasileira culta, da literatura popular em
versos – a literatura de cordele da indústria cultural. Esse cruzamento de diferentes
sistemas culturais permite observar, de um lado, a filiação dessa composição à tradição da
canção popular brasileira e, de outro, sua inserção na lógica de mercado da indústria
fonográfica do rock, sempre permvel à inovação e à diferença para manter a
lucratividade. Neste trabalho, aquela combinação é investigada detalhadamente: analisam-
se os pontos de contato entre Faroeste Caboclo e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, A
hora da estrela, de Clarice Lispector, os ciclos temáticos do cangaço e do messianismo, da
literatura de cordel, e o faroeste norte-americano; a combinação de todos esses elementos
culmina na conclusão de que a canção da Legião Urbana foge, em certa medida, à lógica da
indústria cultural, embora esteja inserida nela.
Palavras-chave: Legião Urbana, rock brasileiro, literatura de cordel, indústria cultural
8
Abstract
In Legião Urbana´s song Faroeste Caboclo, it´s possible to observe a unique combination
of elements belonging to the erudite literature, to the popular literature in verse – the
cordel” literature – and to the cultural industry. This intersection of different cultural
systems allows an observation, in one hand, of this composition´s connection to the
brazilian popular song, and in the other hand, its insertion inside the rock´s phonographic
industry market logic, always permeable to novelties and to the differences in order to
maintain the profitability. In this paper, that combination is investigated in details: all the
connection topics between Faroeste Caboclo and Vidas Secas, by Graciliano Ramos, A
hora da estrela, by Clarice Lispector, the “cangaço´s” and brazilian messianism thematic,
the “cordel” literature, as well the north-american western; all those elements combination
leads to a conclusion in which Legião Urbana´s song withdraws, in a certain way, of the
cultural industry logic, although inserted in it.
Key words: Legião Urbana, brazilian rock, cordel literature, cultural industry
9
SUMÁRIO
FAROESTE CABOCLO, DE RENATO RUSSO........................................................... 10
1. INTRODUÇÃO INFORMAL E NECESSÁRIA ...................................................... 14
2. INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 19
2.1 O
S ROQUEIROS DOS ANOS OITENTA: UM DILEMA....................................................... 19
2.2 FAROESTE À MODA BRASILEIRA ............................................................................... 28
2.3 LITERATURA DE CORDEL ......................................................................................... 33
2.4 LITERATURA CULTA ................................................................................................ 39
2.5 INDÚSTRIA CULTURAL E CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA ......................................... 41
3. FABIANO E MACABÉA: ALTERNATIVA DE FUTURO .................................... 67
3.1 VIDAS SECAS E ALTERNATIVA DE FUTURO NA METRÓPOLE ......................................... 77
3.2 TEATRO POPULAR, INDÚSTRIA CULTURAL E A FALÊNCIA DA FICÇÃO EM A HORA DA
ESTRELA ........................................................................................................................ 87
4. FAROESTE CABOCLO: A SAGA DE UM HERÓI BRASILEIRO NO PLANALTO
CENTRAL.................................................................................................................... 107
4.1 ANÁLISE DE CANÇÕES ........................................................................................... 107
4.2 A SEQÜÊNCIA INICIAL DE FAROESTE CABOCLO........................................................ 110
4.3 SANTO QUE SABIA MORRER.................................................................................... 117
4.4 TEM BAGULHO BOM AÍ! ......................................................................................... 127
4.5 REDENÇÃO PELO AMOR ......................................................................................... 129
4.6 JEREMIAS, TRAFICANTE DE RENOME....................................................................... 136
4.7 DUELO FINAL........................................................................................................ 141
4.8 E
CO DO DIREITO AO GRITO..................................................................................... 146
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 150
BIBLIOGRAFIA................................................................................................ 155
DISCOGRAFIA......................................................................................................... 158
FILMOGRAFIA ........................................................................................................ 158
10
Faroeste Caboclo, de Renato Russo
– Não tinha medo o tal João de Santo Cristo,
Era o que todos diziam quando ele se perdeu
Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu.
Quando criança só pensava em ser bandido
Ainda mais, quando com tiro de soldado o pai morreu
Era o terror da cercania onde morava
E na escola até o professor com ele aprendeu.
Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro
Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar.
Sentia mesmo que era mesmo diferente
Sentia que aquilo ali não era o seu lugar.
Ele queria sair para ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
E de escolha própria escolheu a solidão.
Comia todas as menininhas da cidade
De tanto brincar de médico, aos doze era professor.
Aos quinze foi mandado pro reformatório
Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror.
Não entendia como a vida funcionava –
Discriminação por causa da sua classe ou sua cor
Ficou cansado de tentar achar resposta
E comprou uma passagem, foi direto a Salvador.
E lá chegando foi tomar um cafezinho
E encontrou um boiadeiro com quem foi falar
E o boiadeiro tinha uma passagem e ia perder a viagem
Mas João foi lhe salvar.
Dizia ele: – Estou indo pra Brasília,
Neste país lugar melhor não.
Estou precisando visitar a minha filha
Então fico aqui e você vai no meu lugar.
E João aceitou sua proposta e num ônibus entrou no Planalto Central
Ele ficou bestificado com a cidade
Saindo da rodoviária viu as luzes de Natal.
– Meu Deus, que cidade linda,
No ano-novo eu começo a trabalhar.
Cortar madeira aprendiz de carpinteiro
Ganhava três mil pors em Taguatinga.
11
Na sexta feira foi pra zona da cidade
Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador
E conhecia muita gente interessante
Até um neto bastardo do seu bisa:
Um peruano que vivia na Bolívia
E muitas coisas trazia de lá
Seu nome era Pablo e ele dizia
Que um negócio ele ia começar.
E Santo Cristo até a morte trabalhava
Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar
E ouvia às sete horas o noticiário
Que dizia sempre que seu ministro ia ajudar
Mas ele não queria mais conversa e decidiu que,
Como Pablo, ele ia se virar
Elaborou mais uma vez seu plano santo
E, sem ser crucificado, a plantação foi comar.
Logo logo os malucos da cidade souberam da novidade:
– Tem bagulho bom aí!
E João de Santo Cristo ficou rico
E acabou com todos os traficantes dali.
Fez amigos, freqüentava a Asa Norte
E ia pra festa de rock, pra se libertar
Mas de repente
Sob uma má inflncia dos boyzinhos da cidade
Começou a roubar.
Já no primeiro roubo ele dançou
E pro inferno ele foi pela primeira vez
Violência e estupro do seu corpo
– Vocês vão ver, eu vou pegar vocês.
Agora o Santo Cristo era bandido
Destemido e temido no Distrito Federal.
Não tinha nenhum medo de polícia
Capio ou traficante, playboy ou general.
Foi quando conheceu uma menina
E de todos os seus pecados ele se arrependeu.
Maria Lúcia era uma menina linda
E o coração dele
Pra ela o Santo Cristo prometeu
Ele dizia que queria se casar
E carpinteiro ele voltou a ser
– Maria Lúcia eu pra sempre vou te amar
E um filho com você eu quero ter.
12
O tempo passa e um dia vem na porta um senhor de alta classe com dinheiro na mão
E ele faz uma proposta indecorosa e diz que espera uma resposta,
Uma resposta de Jo:
– Não boto bomba em banca de jornal nem em colégio de criaa
Isso eu não faço não
E não protejo general de dez estrelas, que fica atrás da mesa
Com o cu-na-mão
E é melhor o senhor sair da minha casa
Nunca brinque com um Peixes de ascendente Escorpião
Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse:
– Vo perdeu a sua vida, meu irmão.
Você perdeu a sua vida, meu irmão.Você perdeu a sua vida, meu irmão
Essas palavras vão entrar no coração
E eu vou sofrer as conseqüências como um cão.
Não é que o Santo Cristo estava certo
E seu futuro era incerto e ele não foi trabalhar
Se embebedou e no meio da bebedeira descobriu que tinha outro
Trabalhando em seu lugar
Falou com Pablo que queria um parceiro
E também tinha dinheiro e queria se armar
Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo revendia em Planaltina.
Mas acontece que um tal de Jeremias, traficante de renome,
Apareceu por lá
Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo
E decidiu que com João ele ia acabar.
Mas Pablo trouxe uma Winchester 22
E Santo Cristo já sabia atirar
E decidiu usar a arma só depois
Que o Jeremias começasse a brigar.
(Jeremias, maconheiro sem-vergonha, organizou a Rockonha
E fez todo mundo dançar)
Desvirginava mocinhas inocentes
E dizia que era crente mas não sabia rezar.
E Santo Cristo há muito não ia pra casa
E a saudade começou a apertar
– Eu vou me embora, eu vou ver Maria Lúcia
Já está em tempo de a gente se casar.
Chegando em casa então ele chorou
E pro inferno ele foi pela segunda vez.
Com Maria Lúcia, Jeremias se casou
E um filho nela ele fez.
13
Santo Cristo era só ódio pro dentro e então o Jeremias pra um duelo ele chamou
Amanhã, às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, é pra lá que eu vou
E você pode escolher as suas armas que eu acabo com você, seu porco traidor
E mato também Maria Lúcia, aquela menina falsa pra quem jurei o meu amor.
Santo Cristo não sabia o que fazer
Quando viu o repórter na televisão
Que deu notícia do duelo na TV
Dizendo a hora e o local e a razão.
No sábado então, às duas horas, todo o povo
Sem demora foi lá só para assistir
Um homem que atirava pelas costas e acertou o Santo Cristo
E começou a sorrir
Sentindo o sangue na garganta,
João olhou as bandeirinhas e pro povo a aplaudir
E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e
A gente da TV que filmava tudo ali
E se lembrou de quando era uma criança e de tudo que vivera até ali
E decidiu entrar de vez naquela dança
– Se a via-crucis virou circo, estou aqui.
E nisso o sol cegou seus olhos e então Maria Lúcia ele reconheceu
Ela trazia a Winchester 22
A arma que seu primo Pablo lhe deu.
– Jeremias, eu sou homem, coisa que você não é,
Eu não atiro pelas costas não.
Olha pra cá filha-da-puta sem-vergonha
Dá uma olhada no meu sangue
E vem sentir o teu perdão.
E Santo Cristo com a Winchester 22
Deu cinco tiros no bandido traidor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor.
O povo declarava que João de Santo Cristo era santo porque sabia morrer
E a alta burguesia da cidade não acreditou na história que eles viram da TV
E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília, com o diabo ter
Ele queria era falar pro presidente
Pra ajudar toda essa gente
Que só faz sofrer.
14
1. Introdução informal e necessária
A Legião Urbana foi uma banda de rock nacional de grande sucesso nos anos
oitenta – e além deles. Embora muitas bandas de rock desse período fossem chamadas de
alienadas, principalmente quando suas obras eram comparadas às das gerações anteriores,
Renato Russo – letrista, compositor e vocalista da banda – gravava canções cujas letras
revelavam preocupações com questões sociais brasileiras, como Que país é este e Faroeste
Caboclo. Não queo houvesse outras bandas em cujo trabalho se observava o mesmo
intuito: Plebe Rude, Capital Inicial, Barão Vermelho, Ira!, Paralamas do Sucesso,
Inocentes, Camisa de Vênus e muitas outras deixavam revelar, em maior ou menos
intensidade, por meio de suas letras, que, de alguma maneira, o Brasil mudava e que a nova
geração de artistas queria mostrar sua versão a respeito da realidade nacional. Nem
alienados, nem engajados politicamente à esquerda ou à direita, os jovens artistas da década
de oitenta acreditavam ter uma outra versão do Brasil. É essa versão que pretendemos
analisar neste trabalho, por meio de apenas uma canção da Legião Urbana: Faroeste
Caboclo.
Em que consistia essa outra versão de interpretação do Brasil proposta pelo
conjunto musical de Renato Russo? De que modo estava ela atada a interpretações e
canções do passado? Em que medida e de que maneira ela representava o Brasil que vivia a
redemocratização e o mundo que rumava à globalização e ao neoliberalismo? Com que
intensidade a Legião Urbana deixa entrever, em sua obra, o ponto de vista de sua geração?
Que interferências da indústria fonográfica marcam a obra da Legião Urbana? Estas são,
em linhas gerais, as perguntas a que teremos a pretensão de responder.
15
Surge, entretanto, antes das investigações teóricas e da análise do texto, uma
necessidade inevitável num trabalho que se pretende acadêmico a respeito de um texto
oriundo de uma geração que se pretendia exatamente o oposto da academia e da escola,
além de outras instituições tradicionais brasileiras – e que, por isso, foi caracterizada como
“superficial” ou “alienada”: a tentativa de atar essas duas pontas tão opostas e tão
fundamentais, a formalidade do texto acadêmico e a informalidade da geração dos anos
oitenta.
Os “legionários” – fãs da Legião Urbana –, às vezes, caracterizam-se, como
qualquer grupo de fãs, pelo fanatismo e pela idolatria; é curioso – e fascinante – observar
seu empenho em investigar, analisar e interpretar as letras das canções, relacionando-as à
vida dos autores, aos acontecimentos marcantes da história do conjunto e às próprias vidas
deles, os fãs; a “melhor música” da Legião não é escolhida por meio de critérios objetivos,
mas por meio de um emaranhado de subjetividades e acontecimentos pessoais que fazem
daquela música “a música”. Por meio daquela canção, experimentam-se saborosas
sensações passadas, ou reacendem-se convicções ou desapontamentos antigos. Segundo
Luiz Tatit (2002, p.20):
Cada vez que se repete uma canção, recorda-se um fragmento de tempo
(basta lembrarmos quantas circunstâncias em nossa vida estão ligadas a
uma caão ou, em sentido inverso, quantas caões estão impregnadas
de circunstâncias).
A recuperação de fragmentos de tempos passados, por si , já mantém viva a obra
de qualquer cancionista. É exatamente essa experiência que pretendemos pôr à prova – na
falta de uma expressão melhor.
O autor deste trabalhohoje legionário tímido, mas que, de vez em quando,
experimenta secretamente a maravilha daquelas sensações – já defendeu em bares, em
16
restaurantes, em almoços de família, nas salas-de-aula e em sua coluna A métrica do grito,
na internet, o seguinte ponto de vista: as canções da Legião Urbana inserem-se na tradição
da canção popular brasileira e da literatura brasileira culta, seja pelos temas, seja pela
forma. E pretende, agora, colocar em xeque a própria opinião, as próprias convicções. Não
se trata, em hipótese alguma, de tentar alçar uma canção de Renato Russo ao status de
cânone, clássico ou leitura obrigatória, comparando-a, para evidenciar-lhe a qualidade ou a
inovação, com obras de outros autores desse fôlego. A intenção é bastante simples:
demonstrar que um texto da Legião Urbana dialoga com as tradições da canção e da
literatura brasileiras e deixa marcas notáveis – talvez sem ineditismo, mas com alguma
originalidade – em temas que sempre são objetos de discussão: as relações entre a pobreza
e a violência urbana, de um lado, e a arte, de outro.
Mas como pode o autor escrever uma dissertação de mestrado, com todas as
formalidades que lhe são peculiares, a respeito de um texto com qual guarda tantos laços
subjetivos? Não estaria a visão do autor embada pela histeria típica de um “legionário?
Felizmente quem dá a resposta a essa questão é um crítico literário:
A alise e a interpretação, ao contrário do comentário (fase inicial da
análise), não dispensam a manifestação do gosto, a penetração simpática
no poema. Comenta-se qualquer poema; só se interpretam os poemas que
nos dizem algo. (CANDIDO, 1993, p.18)
E mais, logo depois:
Uma vez assegurada essa penetração simtica, o leitor deve apreender o
ritmo, o largo compasso do poema sobre o qual repousa o estilo, sendo o
elemento que unifica num todo os aspectos de uma obra de um artista ou
de um tempo.
Quando apreendemos pela sensibilidade o ritmo geral de uma poesia,
apreendemos no todo sua beleza própria. Esclarecer esta intuição pelo
conhecimento é a tarefa da interpretação. (Ibid., p.18)
17
É assustador para alguns professores de Ensino Médio, de cursos pré-vestibulares e
de Ensino Superior imaginar que nem todos os leitores alcançam o que Antonio Candido
chamou de penetração simpática em algum texto literário. Esta introdução informal é
escrita para que fique evidente que não se espera que todos os que ouvem a canção
Faroeste Caboclo apreciem nela o que será apontado adiante; eis aqui um vício grave de
professores de literatura: tentar inculcar, a todo custo, nas cabeças dos alunos que este ou
aquele texto é belo, interessante, relevante ou qualquer outra coisa. O autor – quando era
estudante secundário e, depois, universitárionão entendia por que não se analisavam em
aula os textos da Legião Urbana ou de qualquer outra banda de rock dos anos oitenta, mas
dispendiam-se horas em leituras com as quais era, para dizer o nimo, difícil alcançar a
penetração simpática; depois, quando se tornou professor, descobriu, graças a seus alunos,
que também é possível que a Legião Urbana não seja um meio possível para alcançar a
penetração simpática. Com inspiração nas afirmações de Eric Hobsbawn a respeito do jazz
(1990, p.285), não se trata de tentar alçar uma canção de rock ao caráter de obra “digna” da
academia ou de “clássico” da música popular – unanimidades-rótulo que podem esconder
acentuadas miopias –, mas de, investigando essa canção com uma lente acadêmica, tentar
demonstrar suas qualidades intrínsecas que, em certa medida, irmanam-na às grandes obras
da literatura erudita e da MPB e, em outra, – felizmente e sobretudo – distanciam-na delas.
Não imaginamos que se deva prescindir da investigação das obras já consagradas pela
crítica; é certo, entretanto, que é mais fácil alcançar, entre os alunos, a simpatia por textos
que digam respeito à realidade atual, à realidade dos alunos; afinal: textos que lhes digam
algo à alma. Hoje, professores do Ensino Médio e do Ensino Superior utilizam-se de
clássicos da Música Popular Brasileira para análise, o que julgamos ser extremo progresso.
Falta, contudo, espaço ao rock nacional, especialmente o da década de oitenta. Nem
18
alienada, nem engajada, acreditamos a Legião Urbana contribuiu de modo singular para a
compreensão de um período específico da vida nacional e da geração de jovens que dele
participava. Além disso, cremos também que essa contribuição tem ecos significativos em
alguns temas característicos da literatura brasileira do século XX, embora a obra da Legião
Urbana não faça parte do conjunto de obras consideradas “importantes” pela crítica literária
brasileira.
Eis, portanto, a tarefa deste autor: esclarecer, por meio do conhecimento, uma
intuição que teve, desde a adolescência, a respeito da Legião Urbana.
19
2. Introdução
2.1 Os roqueiros dos anos oitenta: um dilema
Faroeste Caboclo, canção de Renato Russo, gravada pela Legião Urbana, foi um
dos maiores sucessos do rock brasileiro da década de 80. A história de João de Santo Cristo
emplacou nas rádios do país – com fragmentos editados para evitar as restrições da Censura
Federal, que dava, ainda, seus últimos suspiros –, embora tivesse nove minutos de duração.
Por que uma canção que, em certa medida, fugia às exigências da indústria fonográfica –
longa e sem refrão, a respeito de um retirante que se torna traficante de drogas em Brasília,
temática que soava demasiadamente social para uma geração que parecia, aos olhos das
anteriores, alienada ou pouco cultateria alcançado tanto sucesso? Em entrevista dada a
Celso Araújo, no Correio Brasiliense, em 17 de novembro de 1985, Renato Russo, ao
responder uma pergunta a respeito das relações entre o rock e a MPB, respondeu:
Agora tem uma outra coisa aí que muita gente se esquece, é que o pessoal
da MPB não segurou a peteca. Todos eles se acomodaram. Então eles
falam muito mal do rock, principalmente o Fagner, que fala mal. Eu
gostaria até não é comprar briga, mas eu gostaria de deixar uma coisa bem
clara: o Fagner fala que o pessoal da geração dele tem mais cultura.
(Conversações com Renato Russo, 1996, p. 21)
Nelson Motta, produtor musical ligado às gerações anteriores, afirmava, em
depoimento a Ricardo Alexandre (2002, p.218) que
[...] minha geração acreditava que essa rapaziada, por haver crescido sem
acesso à informão, com livros e filmes censurados e aulas de educação
moral e cívica na escola, estaria totalmente perdida. Que nada! Todo
mundo saiu da ditadura botando fogo pelas ventas, botando pra quebrar,
de forma muito festiva e lúdica.
20
No mesmo fragmento de texto de Ricardo Alexandre (2002, p.218), o autor revela a
renovação que o rock trouxera à indústria fonográfica nacional:
Até a combalida indústria do disco sentia o poder miraculoso do rock. No
janeiro [de 1985] de Rock in Rio, as vendas de discos foram 241%
maiores que no mesmo período de 1984. (...) Tal entusiasmo
mercadológico faziam com que grupos outrora “difíceis”, como a Legião
Urbana, por exemplo, não precisassem mais esperar que seu clipe fosse
programado pelo Fantástico ou que sua música caísse nas graças das redes
de rádio. O primeiro LP da Lego foi disco de ouro e emplacou diversos
sucessos (como Será, Ainda é cedo e Geração Coca-Cola) graças ao
nascente circuito jovem.
Mais: em março de 1988, o LP Que país é este – 1978/1987, que continha a canção,
alcançava recordes de vendagem, com 240 mil cópias. A declaração de Renato Russo a
respeito impressionava (DAPIEVE, 2006, p. 103): “Isso é uma honra! O público tem
inteligência, ele escuta Legião Urbana sem jabá”.
Os dados apresentados acima oferecem uma visão apenas parcial a respeito do
sucesso obtido pela Legião Urbana. É certo que as canções dessa banda – Faroeste
Caboclo, em especial –, de alguma forma, tocaram e ainda tocam a sensibilidade de jovens
ouvintes. Atente-se, aqui, à ausência de jabá – (DIAS M., 2007, p.180): “jabaculê,
sinônimo de propina”, pagamento das gravadoras às emissoras de rádio, em troca da
execução de músicas –, o que confirmaria que a Legião Urbana teria, de alguma forma, um
forte apelo entre o público. Embora prescindisse de um procedimento típico da instria
fonográfica para a divulgação de bandas, a Legião Urbana alcançava sucesso.
Faroeste Caboclo é a história de João de Santo Cristo, garoto rebelde e corajoso
nascido, provavelmente, numa fazenda do interior nordestino, de cujo marasmo foge depois
de uma passagem pelo reformatório. Sensibilizado pelas “coisas que via na TV” e pela
vontade de ver o mar, João parte para Salvador, mas um encontro casual na rodoviária o faz
ficar pouco tempo nessa cidade. É em Brasília que ele viverá a história que encantou a
21
juventude da década de oitenta. Lá, inicialmente, ele ganha a vida como carpinteiro,
trabalhando arduamente, até, nos bordéis da cidade-satélite de Taguatinga, conhecer Pablo,
“um peruano que vivia na Bolívia”, e iniciar carreira no tráfico de drogas. Depois de
alcançar prestígio e freqüentar a Asa Norte, região da cidade de Brasília que faz parte do
Plano Piloto, João faz sua primeira “visita ao inferno”: ele é preso, por má influência dos
“boyzinhos da cidade”. Sua carreira de bandido do Distrito Federal dá, então, lugar à
dedicação a Maria Lúcia, a quem ele promete amor. Por ela, João abandona o tráfico e volta
à carpintaria. Sua vida teria sido tranqüila até o final, não fossem a rejeição a um convite
para participar de atentados militares a escolas e bancas de jornal e o surgimento de um
outro traficante: Jeremias, aquele que lhe toma o coração de Maria Lúcia e a vaga de
traficante. A traição da esposa cega João de Santo Cristo, baleado pelas costas no duelo que
encerra o texto. Depois de ser surpreendido por Jeremias, João assassina seu inimigo com a
ajuda de Pablo e da arrependida Maria Lúcia, que se suicida.
Narrada assim, em breves palavras, a trajetória de João de Santo Cristo parece
extraída, de fato, de um faroeste ambientado no Planalto Central, uma escie de spaguetti-
western brasileiro cantado por uma banda de rock, com influências musicais, sobretudo, do
country-folk e do punk rock, que dominava a cena musical jovem no final da década de 70
e início da década de 80. Uma análise mais atenta da canção, contudo, pode demonstrar que
ela transcende o universo da indústria fonográfica do rock daquele período.
São notáveis, por exemplo, alguns comentários publicados no encarte do LP Que
país é este – 1978/1987, porque deixam entrever elementos fundamentais para tal análise.
Ao comentar a canção que dá nome ao LP, a banda registra sua descrença na afirmação de
que o rock é alienado e alienante, ou seja, mero produto-mercadoria da indústria
fonográfica:
22
Jimmy Page dizia que o bom do rock é que não se aprende na escola.
Outros atacam: “para ser roqueiro basta pendurar uma guitarra no pescoço
e sair por aí, fazendo a música mais primária do mundo.” Oras, mas é este
mesmo o espírito da coisa! O ataque continua: “O rock é isso mesmo, um
bate-estaca, a coisa mais elementar que existe, mais primitiva, menos
inventiva que pode acontecer. O rock não é novidade, é uma imposição,
uma ditadura. É um sistema estético com a intenção de embotar a cabeça
do jovem. Sim, pois se você fica com aquele bate-estaca o dia inteiro na
cabeça, você se esquece da realidade que o cerca, de coisas realmente
importantes.” Dois apartes aqui. Realmente o rock não pode ser novidade
que é uma forma musical que nasceu em 1955, tem mais de trinta anos
portanto. Bate-estaca ouo, juvenil ou o, preste atenção à letra de
“Que país é este”. Não nos parece coisa de quem se esquece da realidade
que o cerca. Comparar rock com ditadura? Que país é este? Quem é
Jimmy Page?
O texto acima, embora se refira diretamente a apenas uma música do LP, pode ser
considerado uma espécie de manifesto em que a Legião Urbana apresenta suas convicções
quanto ao papel que exerce na música brasileira
1
. Os trechos entre aspas, que representam
uma voz que duvida do papel crítico do rock e que o julga alienado e alienante, revelam
com bastante clareza o dilema em que se encontravam os roqueiros da geração de oitenta:
sem a necessidade e a motivação de compor “canções de protesto” contra a ditadura, já que
o Brasil, ainda que de forma “lenta e gradual”, se encaminhava para a redemocratização;
sem comprometimento integral com a tradição da música regional – que valorizava os
elementos populares e a adversidade às tendências estrangeiras do mercado fonográfico,
sobretudo norte-americanas –, porque se identificava com o punk rock, gênero urbano e
estrangeiro; e, finalmente, sem desvalorizar toda a tradição da canção popular brasileira –
porque, quase sem querer, devia-lhe tributo, ainda que fosse para rejeitá-la –, mas aceitando
1
Essa mesma convicção pode ser observada em fragmento de entrevista dada por Renato Russo a Renato
Lemos Dalto, no jornal O Estado, de Florianópolis, em 17 de julho de 1988: “A gente não está mais em
Brasília, mas foi divertido porque éramos filhos da classe média com casa, comida, papai e mamãe e falando
mal de tudo. Mas vingou porque o pessoal do Rio de Janeiro, quando foi reclamar das mensalidades das
escolas, cantou músicas do Legião, Ultraje, Titãs. Então todos aqueles ataques feitos ao rock, de que era sem
consciência, irresponvel, caiu por terra. A garotada cantava “Que país é este?”, “Inútil” do Ultraje ou eno
“Desordem” dos Titãs”. Conversações com Renato Russo, 1996, p. 59.
23
as referências estrangeiras sem julgar-se alienada, a geração dos roqueiros dos anos oitenta
propunha fazer rock sem prescindir do questionamento da realidade brasileira, cujos
horizontes permaneciam sombrios, a despeito do final do Regime Militar. Em suma: uma
fórmula impossível para os puristas da MPB. Leve-se em consideração, também, que as
afirmações acima nada mais são do que breve generalização, com a finalidade única de
apresentar o contexto em que Faroeste Caboclo ingressou no mercado da canção brasileira.
Cada uma das bandas adaptou-se à lógica desse mercado à sua maneira, resistindo mais ou
menos às exigências das gravadoras, imprimindo a suas canções diferentes influências.
Os Paralamas do Sucesso, por exemplo, com o LP Selvagem?, fugiam à tendência
corrente de “fazer rock” segundo o formato de sucessos da época:
Selvagem? desembarcou nas lojas em abril de 1986, rachando o rock
brasileiro.Os Paralamas trocam o rock rangente pelo mantra jamaicano e
saem por cima”, dizia o Estadão
; “Os Paralamas trocam rock por
reggae e samba”, acreditava a Folha; “Os Paralamas alteraram a
direção de suas lentes”, afirmava O Globo. (ALEXANDRE, 2002,
p.277)
Havia, inclusive, compositores dessa geração que rejeitavam a designação “rock
brasileiro” e reivindicavam o espaço da própria MPB, como Lobão, no mesmo ano de
1986, quando gravou um disco com o sugestivo título O rock errou:
Ainda que musicalmente o cantor estivesse muito mais próximo do rock
formal, Lobão aderiu a um engajado discurso de cisão sobre o que se
convencionava chamar rock brasileiro. “Estávamos nos cristalizando num
subgrupo, o do ‘rock brasileiro’. Tínhamos de entrar na MPB e implodir
aquilo. Porque em 1988 começariam as premiões [o prêmio Sharp de
música], com a categoria ‘pop-rock’. Aí pronto: seria o gueto, o subgrupo,
algo que poderia deixar a MPB incólume, vetusta e cheia de varizes,
representando a gente no Grammy, como se fôssemos 160 de milhões de
Carmens Mirandas”.
(Ibid., p.279)
Outras bandas revelavam o enfrentamento a ícones da MPB de maneira ainda mais
incisiva. Com efeito, o fragmento do encarte transcrito acima não alude diretamente à
24
resistência sofrida pelos roqueiros como faz a banda Camisa de Vênus na música Passamos
por isso, de seu primeiro LP, Camisa de Vênus, de 1983:
O ambiente é tão sério
Não há lugar para ação
“Vê se conserva suas raízes”, eles disseram
“Camisa de Vênus é alienação”
“Vocês vão obedecer”, eles disseram
“Vocês vão entender”, eles disseram
“Vocês vão aprender a curtir MPB”
E me falaram dos perigos
Que eu encontraria aqui
Enquanto os mestres do bom gosto
Botavam samba pra eu ouvir
“Vocês vão obedecer”, eles disseram
“Vocês vão entender”, eles disseram
“Vocês vão aprender a curtir MPB”
Eles têm medo do que não entendem
Eles gritaram: “Isso não é música, é barulho!
Vocês não vão a lugar nenhum com isso”
Hmmmmmmmm, seus otários,
s atropelamos vocês
Nós passamos por isso
Quiseram mudar nosso nome
Deixar tudo arrumadinho
Nos deram até a liberdade
De tocar brasileirinho
“Vocês vão obedecer”, eles disseram
“Vocês vão entender”, eles disseram
“Vocês vão aprender a curtir MPB”
Vá curtir MPB, e vá curtir MPB
e vá curtir MPB, e vá curtir!
Instala-se, desde os primeiros versos, o conflito enfrentado pela banda em nome de
sua identidade; seu nome é sinônimo de “alienação”, sua música não conserva as raízes
brasileiras da música popular e do “brasileirinho”. O refrão revela o tom imperativo das
recomendações para se fazer boa música: antes é preciso “obedecer”, submeter-se às
25
recomendações “deles”, referência direta aos empresários e produtores da música e às
expectativas das grandes gravadoras, agentes da indústria fonográfica; somente depois é
que se entenderão as premissas de que “eles” partem; ao final, os músicos aprenderão a
curtir” a Música Popular Brasileira. A progressão semântica obedecer-entender-aprender
marca o autoritarismo que, no texto, curiosamente, advém dos antecessores da geração 80 –
a MPB, representação direta das ideologias progressistas das décadas anteriores.
A crise exposta no texto é reveladora dos dilemas pelos quais passou a geração 80
que, para afirmar-se, teve de, em certa medida, rejeitar a tradição da canção popular.
Observe-se o uso do vocábulo “alienação” e a alusão aos “perigos”, que pode ser entendida
como a “autocensura” reinante nas gravadoras ainda no início da década de oitenta para
evitar represálias do Regime Militar
2
. A expressão “mestres do bom gosto” é claramente
irônica e inaugura o sarcasmo marcante da banda Camisa de Vênus frente ao passado. Com
efeito, a ironia ocupa o primeiro plano das últimas estrofes: depois da afirmação de que
eles têm medo do que não entendem”, grafa-se um risinho ácido, de mofa, seguido do
vocativo “seus otários”, mais nitidamente percebido na oitiva da canção; o olhar irônico ao
passado, entretanto, alcança sua maior expressão na rima “arrumadinho-brasileirinho”, em
que o sufixo diminutivo deprecia o valor do gênero musical que leva em seu nome o
adjetivo pátrio nacional e o associa ao bom comportamento, ao conformismo, à submissão.
Da mesma maneira, a ambigüidade do verbo “curtir”, nos últimos versos, remete ao
envelhecimento que fica sugerido na rejeição à MPB e na sua eventual superação.
2
As manifestações chamadas de “autocensura”, uma espécie de corolário traumático da censura oficial ligada
à Ditadura Militar, eram, supostamente, “vetos” que os artistas impunham a si próprios no ato da criação de
suas obras por saberem – ou suporem – que elas não seriam aprovadas pelos censores. (GASPARI; DE
HOLLANDA; VENTURA, 2000).
26
Passamos por isso expressa, por meio do olhar irônico ao passado, o processo de
afirmação pelo qual a geração dos roqueiros de oitenta teve de passar no mercado
fonográfico brasileiro: a superação – nesse caso, por meio da contestação – dos ícones das
gerações anteriores, curiosamente associadas às exigências da indústria fonográfica.
Também é notável a declaração de Clemente Nascimento, da banda punk paulistana
Inocentes – e, atualmente, também integrante da banda Plebe Rude –, na revista Penthouse,
no final de 1982:
Nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, para dizer
a verdade sem disfarces (e não tornar bela a imunda realidade): para pintar
de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de
Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer. (BRYAN, 2004,
p.80)
A fala de Clemente surpreende pelo forte apelo intertextual por meio da citação a
cssicos da sica popular, sempre para rejeitá-los. Am disso, também é mais que
evidente a crítica às composições populares que tornavam “bela a imunda realidade”, isto é,
ao fato de que
[...] as canções de protestos eram feitas por artistas de classe dia, que,
com sucesso e dinheiro, romantizavam a pobreza; as românticas estavam
preocupadas exclusivamente com paixões desencontradas, traições e
humilhações; e as nordestinas eram regionais, religiosas e supersticiosas
demais ao retratar paisagens inacessíveis.
(Ibid., p.80).
Em outras palavras, de modo geral, a geração dos anos oitenta não podia se
identificar com as gerações anteriores por motivos de ordem ideológica – “idealização da
pobreza” –, de ordem temática – as relações pessoais descritas nas músicas românticas
passavam longe das mudanças comportamentais que viviam os jovens dos oitentas – e de
ordem contextual – o regionalismo perdia força frente à urbanização vivida no Brasil ao
longo do século XX. Faziam-se necessárias, portanto, canções que dissessem respeito à
27
realidade do jovem urbano da década de oitenta; elas deveriam atar-se às novas tendências
que assolavam a indústria fonográfica, sem submeterem-se totalmente às expectativas do
mercado; deveriam questionar a realidade nacional, na tradição da música de protesto, sem
contudo, idealizar a miséria; deveriam explorar a realidade nacional sem afundar-se em
regionalismos que os jovens da cidade desconheciam (embora, como se observará adiante,
em Faroeste Caboclo, elementos da cultura popular nordestina sejam fundamentais). Essa
combinação de elementos aparentemente excludentes é, segundo José Miguel Wisnik
(2004,
p.210-211), marca da canção popular brasileira contemporânea:
De certo modo, esse processo todo da década de 60 acentuou o lugar
original que a música popular vinha ocupando no Brasil, pela sua
pertinência simultânea e contraditória a vários sistemas culturais. Meio e
mensagem do Brasil, pela tessitura densa de suas ramificações e pela sua
penetração social, a canção popular soletra em seu próprio corpo as linhas
da cultura, numa rede complexa que envolve a tradição rural e a
vanguarda, o erudito e o popular, o nacional e o estrangeiro, o artesanato e
a indústria. Originária da cultura popular não-letrada em seu substrato
rural, desprende-se dela para entrar no mercado e na cidade; deixando-se
penetrar pela poesia culta, não segue a lógica evolutiva da cultura literária,
nem se filia a seus padrões de filtragem, obedecendo ao ritmo da
permanente aparição/desaparição do mercado, por um lado, e ao da
circularidade envolvente do canto, por outro; reproduzindo-se dentro do
contexto da indústria cultural, tensiona muitas vezes as regras da
estandardização e da redundância mercadológica. Em suma,o funciona
dentro dos limites estritos de nenhum dos sistemas culturais existentes no
Brasil, embora se deixe permear por eles.
É fértil observar que, embora rejeitasse os ícones e os modelos da canção popular
brasileira, o rock dos anos oitenta, exatamente por fazê-lo, inseria-se em sua tradição.
Faroeste Caboclo parece-nos, com efeito, uma das canções do rock brasileiro em que
melhor se revela o imbricamento entre a indústria cultural fonográfica e cinematográfica de
influência estrangeira, a literatura de raízes populares e rurais e a tradição literária culta.
28
2.2 Faroeste à moda brasileira
Observe-se, inicialmente, otulo da canção: parece haver, nele, a sugestão de que
ela se liga, de alguma maneira, à tradição da indústria cinematográfica norte-americana,
que, segundo A. C. Gomes de Matos (2004), no livro Publique-se a lenda: a história do
western, considera-se, muitas vezes, o western como o cinema norte-americano por
excelência: é nesse gênero cinematográfico que se relata a conquista do Oeste, fragmento
significativo e recente da história dos EUA.
De modo geral, os elementos que compõem um faroeste clássico são: a) o espaço
hostil, o Oeste, a terra a desbravar, que promete um futuro promissor àqueles que consigam
superar-lhe os obstáculos; b) o conflito básico – intrínseco a esse espaço – entre a
civilização e a selvageria; c) as personagens que, de maneira geral, representam um desses
dois “lados” do conflito, às vezes ambiguamente: a populão, os selvagens ou os fora-da-
lei e os heróis e; d) alguns elementos iconográficospicos, como o cavalo, a arma e o
vestuário
3
.
É evidente a associação entre as estruturas básicas do faroeste e alguns elementos
que comem a trajetória de João de Santo Cristo, em Faroeste Caboclo.
O primeiro elemento comum entre a canção da Legião Urbana e onero
cinematográfico é a relação alegórica entre a história da personagem e a história da nação
que ela representa. Em outras palavras: da mesma maneira que as vidas das personagens
dos faroestes são representação concreta da trajeria do povo norte-americano rumo ao
3
Curiosamente, segundo o autor, o registro das aventuras do Velho Oeste não começou no cinema, mas na
literatura, com as chamadas “dime novels”, gênero literário barato, por meio do qual iniciou-se a divulgação
dos mitos do Oeste norte-americano. De maneira geral, pode-se considerar essas publicações uma espécie de
literatura popular norte-americana, o que pode reforçar as relações estabelecidas abaixo entre Faroeste
Caboclo e a poesia popular nordestina. A comparação exige maior exame, mas fica sugerida, aqui, a
semelhança.
29
Oeste, a história de João de Santo Cristo é representação concreta da trajetória dos
retirantes brasileiros, especificamente daqueles que foram tentar a sorte em Brasília. A
semelhança entre os espaços em que se dão as narrativas, aliás, pode ser assim traçada:
tanto o Oeste americano como a nova capital brasileira são terras que devem ser
desbravadas porque nelas estão as promessas da prosperidade pessoal e do
desenvolvimento nacional, variantes atuais da “Terra da Promissão”. No faroeste – norte-
americano ou caboclo –, portanto, por meio do relato de fatos geralmente violentos,
ocorridos em um ambiente inóspito, mas promissor, conta-se a história de personagens que,
na verdade, deixa entrever a história de um país.
As aproximações que é possível fazer entre o faroeste norte-americano e o faroeste
caboclo, no entanto, transcendem os elementos gerais; elas podem ser observadas, inclusive
– e principalmente – nos detalhes e clichês: as personagens secundárias do velho oeste são
chineses e mexicanos, imigrantes indiferentemente associados aos vilões ou aos heróis; na
canção de Renato Russo, esse papel é ocupado por Pablo, “um peruano que vivia na Bovia
e muitas coisas trazia de lá”; a população que freqüenta os saloons, que viaja em caravanas
vitimadas em emboscadas de índios selvagens ou ladrões inescrupulosos, que se esconde
apavorada quando ocorrerá um duelo entre o xerife e o bandido, em suma, a população
indefesa que é protegida pelo “mocinho” assemelha-se a “toda essa gente que só faz
sofrer”, em nome da qual João de Santo Cristo teria ido a Brasília, com o intuito de falar
com o presidente; a personagem feminina, Maria Lúcia é responsável, num primeiro
momento, pela redenção do herói-traficante, que abandona o tráfico de drogas e que volta a
ser carpinteiro, tudo por amor, como ocorre em muitos faroestes, em que o casamento pode
fazer vilões abandonarem a vida criminosa; note-se, por último, a ambiidade do herói
que é “fora-da-lei”, mas que também guarda um propósito nobre, a proteção da população
30
indefesa, em sua ida às terras a desbravar – e a crueldade sem limites do vilão, espécie de
ente representante do mal, sem motivo aparente para ser tão sórdido e cruel. O clímax de
Faroeste Caboclo é um duelo, talvez o clic mais conhecido dos faroestes.
Embora, em todos esses aspectos, a canção da Legião Urbana se aproxime do
cinema americano por excelência”, o faroeste dá à canção apenas as linhas gerais da
narração – nascimento do herói, migração para a terra promissora, ascensão no crime,
redenção pelo amor, traição, duelo final. Uma contribuição ainda mais significativa desse
gênero cinematográfico norte-americano para a letra de Renato Russo está nos clichês
iconográficos: o companheiro de origem estrangeira; a Winchester 22; o vilão cuja maldade
não tem fronteiras. É impossível afirmar, contudo, como se observará nos capítulos
dedicados à análise da canção, que Faroeste Caboclo seja um texto que, de alguma
maneira, se alinhe a interesses políticos ou ecomicos norte-americanos. Por mais que, no
plano da superfície, esteja recheada de alusões a clichês do faroeste, essa canção não
reproduz valores associados à cultura norte-americana, isto é, não está alienada da
realidade em que foi escrita. Em sua história ao longo do século XX, o faroeste foi veículo
dos mais diferentes discursos que permeavam a sociedade norte-americana: o nacionalismo
do início do século, representado na bravura do povo que enfrenta a hostilidade à busca de
trabalho; a idealização do Oeste, para uma população arrasada com a realidade
decepcionante após a quebra de Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929; a propagação
dos direitos das minorias, na década de 60; a crise causada pelo fracasso da campanha
norte-americana no Vietnã, na década de 70. Nenhum deles – nem o conservadorismo de
Ronald Reagan, presidente dos EUA na época da gravação da canção – se faz presente em
Faroeste Caboclo.
31
Caso se levem em consideração, contudo, os arranjos musicais, faz-se muito
presente, na canção, o elemento folk, próximo da country music, típico das trilhas sonoras
de faroestes norte-americanos. Com efeito, a linha de baixo da introdução e a seqüência de
acordes das sete primeiras estrofes têm estrutura rítmica que se assemelha à do country-folk
por evitar a síncopa característica de muitos gêneros da música brasileira. A combinação
desse gênero com outros, ao longo da canção, será analisada em capítulos posteriores e é
constituinte fundamental da canção e da obra da banda como um todo, nas palavras do
próprio Renato Russo (ALEXANDRE, 2002, p.256): “A Legião Urbana é isto: uma banda
folk, que trabalha com rock n’ roll e é percebida como pop”.
A análise da canção também nos permitirá observar que as variações de gêneros
musicais que acabam por torná-la um todo coerente fazem lembrar, de certa forma, uma
trilha sonora de cinema, em que cada um dos gêneros ganhará significado particular dentro
da narrativa enunciada pela letra. Faroeste Caboclo guarda, portanto, raízes na
cinematografia norte-americanao apenas nos clichês que a análise da letra sugere, mas
também na organização dos elementos musicais associados aos verbais. Como veremos, a
narração das aventuras de João de Santo Cristo assemelha-se ao encadeamento de cenas e
seqüências, tal qual ocorre na “narração lmica clássica”, segundo Vanoye e Goliot-Lété
(1994, p. 27):
Dominarão a cena (duração de projeção-duração diegética) e a seqüência
(conjunto de planos que apresentam uma unidade narrativa forte),
separadas – ou melhor, ligadas – por figuras de demarcação nítidas (o
escurecimento e a fusão muitas vezes eles próprios integrados na história,
como demonstrou Christian Metz, para “significar” a passagem do tempo,
a mudaa de lugar, a mudaa de estado físico ou psicológico).
É surpreendente observar que as figuras de demarcação citadas pelos autores terão
sua versão musical em Faroeste Caboclo. A linha de baixo que serve de introdução à
32
canção fará, por exemplo, por duas vezes, o papel de interlúdio, espécie de versão cancional
do escurecimento e da fusão acima citados: na primeira, logo depois de João decidir propor
casamento a Maria Lúcia, sugere a passagem do tempo, quase happy end que remete à
eternidade do amor; na segunda, quando João retorna às atividades ilícitas, logo antes do
surgimento de Jeremias. No faroeste norte-americano bem como em toda narrativa
fílmica clássica – a descontinuidade intrínseca ao significante fílmico é linearizada por
meio de recursos como a voz em off, os diálogos e – mais importante para nós – a música
da trilha sonora
(VANOYE; GOLIOT-LÉTÈ, 1994, p. 26). Na canção de Renato Russo, ao
contrário, observaremos que a unidade do significante Faroeste Caboclo é dada pela
combinação da diversidade de gêneros musicais com a letra. Segundo os mesmos autores,
citando Marc Vernet,
Num dado momento de sua evolução, um gênero se define tanto pelo que
dele é excluído quanto pelo que dele é parte integrante – o espectador
usufrui, desse modo, do prazer do reconhecimento sem correr o risco de
ser perturbado por elementos de desordem estética. (Ibid., p. 26)
A afirmação, mais uma vez, é claramente aplicável ao faroeste norte-americano e
inversamente aplicável ao faroeste que se pretende caboclo: o risco de o ouvinte ser
perturbado por elementos de desordem estética – country-folk, rock, reggae, do ponto de
vista musical; literatura de cordel, literatura culta, letras de protesto, do ponto de vista
literário – é exatamente a marca identitária da canção. O adjetivo cabocloreferente não só
ao mesto de branco com índio, mas tamm, de modo geral, ao brasileiro do campo, ao
indivíduo sem instrução, de modos rústicos, que habita ambientes rurais – será entendido
como alusão clara a características populares brasileiras, espécie de pista”, “indício” de
que, na canção, referências à cultura nacional estão associadas aos clichês do faroeste
33
norte-americano e ao country-folk. Mais especificamente, é na literatura de cordel e na
tradição literária brasileira culta que se encontrarão as referências por meio das quais
Faroeste Caboclo se insere na tradição da literatura nacional; e é no country-folk, no
reggae e no rock que se encontrarão os ritmos por meio dos quais essa canção se insere na
tradição da canção popular brasileira.
2.3 Literatura de cordel
Em estudo publicado na coletânea Literatura Popular em verso: estudos, Manuel
Diegues Júnior (1986) apresenta brevemente as origens da literatura de cordel e faz um
levantamento das características de cada um de seus ciclos temáticos. As que mais
interessam a este trabalho pertencem à categoria dos “Fatos circunstanciais e acontecidos”
– “São fatos para os quais a observação popular deteve sua atenção, e em conseqüência os
folhetos os registraram” (Ibid., p.116) –, especificamente à doelemento humano”, em que
os poetas populares registram passagens significativas da vida de personalidades poticas –
Guedes Júnior debruça-se sobre os cordéis a respeito do Presidente Getúlio Vargas –,
religiosas – como Antônio Conselheiro e Padre Cícero – e criminosas, ligadas ao cangaço,
como Antônio Silvino e Lampião. De certo modo, a história de João de Santo Cristo
condensa em si características desses três temas: Joãoqueria era falar com o Presidente
pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”, o que o ata, de certo modo, à tradição dos
heróis defensores do povo registrados pelos cordelistas; o nome do herói, João de Santo
Cristo, a sua predestinação ao destemor, a chegada a Brasília no dia de Natal, a elaboração
de um “plano santo”, as idas ao inferno, a constatação de que a “via-crucis virou circo”, a
sua canonização in partibus após a morte, todos esses elementos parecem vincular Faroeste
34
Caboclo às narrativas sobre a vida de milagreiros, como Padre Cícero; o tráfico de drogas e
a honra de “não proteger general de dez estrelas que fica atrás da mesa com o cu na mão”
associam João à galeria de bandidos que, devido à violência inerente ao sertão, acabaram na
criminalidade menos por escolha do que por força das condições em que vivem, perspectiva
a partir da qual muitos cangaceiros são observados na literatura de cordel.
Líder político, líder religioso, bandido-herói dos pobres: em João de Santo Cristo
parece haver uma convergência de todos esses heróis cantados pelos autores da poesia
popular em verso. Não é apenas a construção da personagem principal que chancela a
hipótese de que Faroeste Caboclo tem ancestralidade na literatura de cordel. Segundo
Diegues Júnior (1986, p. 31), a literatura de cordel era a principal fonte de informação das
camadas populares antes do jornal. Cabe avaliar, portanto, por que João de Santo Cristo
teria causado diferentes reações nas diferentes classes sociais: enquanto “o povo declarava
que João de Santo Cristo era santo porque sabia morrer”, a “alta burguesia da cidade não
acreditou na história que eles viram na TV”. Como veremos, a associação de Faroeste
Caboclo à tradição popular, brevemente descrita acima, sugere que a trajetória de João de
Santo Cristo, embora veiculada em LP, soa verossímil ao povo e inverossímil à alta
burguesia porque, enquanto aquele encontraria na canção elementos da tradição do cordel
que o fariam crer na história contada e canonizar seu protagonista, esta, por desconhecê-los,
a teria considerado mentira ou sensacionalismo. De todo modo, o fato de a alta burguesia
não ter acreditado na história de João parece revelar que a história de João só será
verossímil se for contada no veículo adequado, isto é, na canção popular. Por meio dela,
veicula-se informação – a história de um herói popular – combinada à diversão – o rock.
Embora tenha raízes na literatura popular em versos, Faroeste Caboclo ainda é uma canção
do rock nacional dos anos 80, gravada pela Legião Urbana em LP. Pode-se, pois, levantar a
35
possibilidade de que Faroeste Caboclo seja o principal “longo cordel urbano de Renato
Russo
(WISNIK, 2004, p. 219), com um pé na tradição popular, mas com outro na
tecnologia urbana da indústria cultural.
Aprofundando a hitese: a história de João de Santo Cristo pode ser vista como
uma espécie de folheto de cordel, escrito por um cantador que não é de origem popular,
com as mesmas pretensões, contudo, dos cantores populares: a fixação de fatos da vida de
uma personalidade notável, similar a líderes poticos, religiosos ou marginais. O veículo,
todavia, não é o folheto, mas o LP, a rádio, a TV. As feiras em que se vende o folheto
dariam, então, lugar aos shows de rock, em que o cantador, para divertir, informar e, de
certo modo, resistir à cultura da classe dominante e à indústria cultural – fugindo,
portanto, à alienação –, relata uma história que não cabe nos noticiários oficiais, mas parece
muito verossímil aos ouvidos do povo e dos jovens da década de 80. Recuperando
elementos fundamentais da cultura popular nordestina e combinando-os à aparelhagem
técnica da indústria fonográfica, a Legião Urbana ime um encontro entre a tradição do
passado e as novidades do presente, cujo resultado pode ser a conscientização dos jovens
ouvintes: trata-se de uma alternativa à excessiva regionalização da canção, sem render-se a
sua pasteurização de fins mercadológicos e lucrativos. É essa a hipótese que, de certa
forma, está por trás de todo este trabalho; retornaremos a ela, ao final para verificar-lhe a
validade.
O último aspecto geral que parece útil para a comparação é o fato de, segundo
Diegues Júnior (1986), a cultura popular renovar-se constantemente, sem abandonar temas
tradicionais; reformulação, reelaboração e embaralhamento de tradições são características
marcantes da criação do povo. Ou, ainda, segundo Jerusa Pires Ferreira:
36
Confirma-se que o poetao tem pretensão de originalidade mas que tem
a consciência de manipular um repertório de todos, fazendo-se divulgador
de matéria conhecida e, ao mesmo tempo, intensificador de sua difusão
através de recursos próprios. (FERREIRA, 1993, p.22)
O fato de o poeta não ter a pretensão de originalidade parece atar-se de maneira
significativa à intenção de resistir, de certa forma, à pasteurização imposta pela indústria
cultural, porque ele se utiliza, para tanto, de repertório coletivo, contando as histórias do
povo, a respeito de sua cultura e, sobretudo, de suas misérias. É evidente que Faroeste
Caboclo não é poema popular; trata-se, sem dúvida, de canção popular brasileira, na
tradição da MPB, a que se somam gêneros musicais estrangeiros. Acontece, entretanto, que
a filiação a poemas populares da literatura de cordel faz que a canção ganhe uma dimensão
que transcende seus pares no chamado rock nacional: além de plantar rzes na já citada
tradição da canção popular – que por si só, segundo Wisnik, guarda alguma distância da
indústria cultural –, essa canção, por tentar atar-se à multiplicidade do “texto único
popular – já sugerida por Jerusa Pires Ferreira e confirmada por Ruth Brito Lemos Terra,
segundo José Antônio Pasta Júnior (1992, p.69),
A tal ponto se trama essa unidade dos materiais componentes, os quais
religam em profundidade folheto a folheto, que a primeira pesquisadora
[Ruth Brito Lemos Terra] avança a hipótese – muito provável – de que é
praticamente possível (diríamos talvez necessário) considerá-los como um
“texto único”. Sem jogo de palavras, o grande “texto único recusa a
categoria fetichista de “unicidade” do texto, vigente na estética
tradicional.
– e por ser composta de 159 versos, sem um único refo, resiste singularmente aos
moldes impostos pela indústria fonográfica, embora apresente tros de rock, country-folk
norte-americano e reggae. Trata-se da grande contribuição da Legião Urbana.
No caso em análise [o da literatura de cordel], um dado a reter, é o da
existência de uma tensão poética e criadora pela qualo apenas o que
37
repete se considera co-autor do canto repetido mas o que escreve, em
incontáveis atos de criação recriação, ao longo de um trajeto, incorpora ao
modelo desde o seu módulo social, a sua criação mais individuante,
representação polivalente interprevel sempre sob o contexto cultural sob
o qual ele vive. (FERREIRA, 1993, p.15)
A contribuição mais individuante de Renato Russo será, pois, compor um poema de
filiação popular e cantá-lo com o acompanhamento de diferentes gêneros musicais:
primeiro o country-folk norte-americano, que remete ao faroeste do título, depois o reggae,
depois o punk rock simples, de três acordes, depois alternando todos os gêneros. Se, de um
lado, a canção se aproxima de sua matriz de mercado, pela iia específica da autoria de
uma canção transformada em produto rentável, de outro, filiando-se à literatura de cordel,
aproxima-se do popular, em que quase se anulam a idéias da autoria e da originalidade:
Parte-se da sugestão de Cavalcanti Proença, a de que ao contrário do poeta
culto, o poeta popular é tanto mais importante para os seus ouvintes e
leitores, quanto menos original se mostra, isto é quanto menos rebelde às
formas tradicionais e quanto maior soma de material e técnicas
tradicionais reúne. (Ibid., p.22)
Talvez seja essa a receita que tenha levado Faroeste Caboclo ao topo das paradas:
trata-se de canção que tem um apelo popular bastante forte – no plano da letra, a narrativa a
respeito de um retirante que se envolve, na cidade, com o tráfico de drogas, com estrutura
hollywoodiana e, ao mesmo tempo, de poesia popular brasileira; no plano da composição
musical, a seqüência de gêneros que conquistariam o público jovem, a geração
supostamente desinformada. Talvez essa singularidade da composição de Renato Russo nos
permita chamá-lo de “autor legião”, termo também cunhado por Jerusa Pires Ferreira; ao
comparar uma seqüência de folheto de cordel ao texto matriz que lhe deu origem, no
capítulo “As brechas da criação”, a autora propõe:
Cumpre reparar no teor clássico do texto, o que não comparece na matriz;
trata-se da invenção através de toda uma sedimentação prévia,
38
convergência de experiência. É o autor legião transformando-se no vórtice
e no vértice de uma legião de autores que o antecederam. (FERREIRA,
1993, p.38).
O autor do cordel é vórtice porque sorve a tradição que o antecede, manipula um
repertório que é de todos, coletivo, popular, em que a noção de autoria está diluída; é
vértice porque suas contribuições são, ainda que num ínfimo período de tempo, o ponto alto
daquela tradição, que se eterniza por meio daquela voz, naquele instante. Se quisermos
pensar com Pasta Júnior (1992, p.70), aliás, abandonaremos a iia da evolução temporal e
autoral – em que cada contribuição de um autor seria um novo ponto alto alcançado pelo
texto único” – e adotaremos a do presente contínuo, em que o autor são todos, o que nos
traria a perspectiva da poesia popular como afirmativa, pela prática de uma produção, de
um modo de atuar que é outro em relação às formas impostas e ao aparato cultural que
organiza a situação de dominação. Faroeste Caboclo, inserindo-se nessa continuidade, de
um lado, resiste, pois, a essas formas e a esse aparato cultural; de outro, contudo, bebe
também dessas fontes, ciente de que apenas a cultura popular não teria o apelo necessário
junto ao público urbano. Compõe-se, então, aqui o autor legião urbana. Entenda-se que
nesse adjetivo “urbana” estão contidas múltiplas características, desde a filiação inegável de
Renato Russo e sua banda ao punk rock até seus diálogos com a MPB de protesto,
alcançando alguns temas da literatura culta.
Essas observações parecem ecoar nas afirmações de José Miguel Wisnik a respeito
da canção popular brasileira apontadas anteriormente e, também, nas de Steven Connor
(2000, p.153), a seguir, a respeito do rock:
Se a indústria do rock exige um produto estável e reprodutível, também é
verdade que ela depende da invasão periódica da diferença e da inovação.
Com efeito, essa indústria é talvez o melhor exemplo do processo
mediante o qual a cultura capitalista contemporânea promove ou
39
multiplica a diferença no interesse da manutenção de sua estrutura de
lucros.
Faroeste Caboclo pode ser entendida como a canção popular brasileira em que se
figuram elementos da cinematografia norte-americana (os clichês, como a Winchester 22 e
o duelo final) e da literatura popular em versos, que só puderam ser combinados graças à
tradição da canção popular brasileira – afeita a múltiplas e híbridas origens, sem alinhar-se
radicalmente a nenhuma delas – e à necessidade mercadológica da indústria fonográfica de
renovar a canção brasileira por meio do rock
4
. Atender às necessidades de lucro por meio
de uma característica intrínseca à poesia e à canção populares: parece ser essa a fórmula
com que a Legião Urbana combinava as necessidades de mercado com sua forma de
engajamento, fugindo, assim, à alienação que se atribuía aos roqueiros de sua geração.
2.4 Literatura culta
Finalmente, a essa fórmula sui generis soma-se a tradição literária culta ou erudita,
cujas implicações em Faroeste Caboclo serão brevemente apontadas a seguir, já que os
textos Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e A hora da estrela, de Clarice Lispector,
merecerão capítulos à parte.
Curiosamente, a trajetória de João de Santo Cristo é iniciada no ambiente rural
brasileiro, sem alusão a algum local específico, mas conclui-se em Brasília, cidade em cujo
4
O próprio Renato Russo tinha ciência, no início da carreira, de que, no Brasil dos anos 80, o rock tinha uma
finalidade de mercado bastante específica, que respondia às necessidades da indústria fonográfica nacional:
“O que eu sinto também é que as pessoas não vêem exatamente o que está acontecendo e então elas picham o
rock brasileiro e tudo, mas, de certa forma, o rock brasileiro está dando uma força para as gravadoras, es
fazendo circular o capital, que é uma coisa muito importante, porque se ficar dependendo do pessoal da MPB
não vai para a frente porque, no momento, não é o que o público quer”. (Conversações com Renato Russo,
1996, p. 17). O assunto será retomado adiante.
40
projeto manifestava-se a ambição desenvolvimentista de construir um espaço geográfico
mais democrático, em que a população pudesse de fato fazer valer as vontades coletivas. O
que ocorreu concretamente foi que gerações de retirantes, à cata de uma vida mais digna em
Brasília, acabaram por superpovoar as cidades-satélite (PASTORE, 1969), nome algo
eufêmico da periferia a que estavam destinados esses retirantes, a quem não se prometera a
estabilidade do emprego público e a residência no Plano Piloto, pelo qual a cidade é
conhecida internacionalmente. A migração às grandes cidades supostamente promissoras
faz lembrar algumas personagens da literatura culta brasileira – a família de Fabiano ao
final de Vidas Secas, que planeja um futuro promissor para os meninos porque, na cidade,
eles teriam acesso a estudo; Severino, em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo
Neto, cuja viagem à cidade de Recife, depois de inúmeros encontros com a morte, culmina
com a explosão da vida, num dos cais do Rio Capibaribe; ou Macabéa, personagem
clariceana de A hora da estrela, que, depois de deixar o sertão, acaba por se contaminar da
cultura do consumo: ela gosta de Coca-Cola e sonha em ser Marylin Monroe. Ao final de
Vidas Secas, a grande capital servirá de ímã para os infelizes que tinham sonhos, que
aspiravam, por meio do acesso à cultura letrada, a uma alternativa de futuro; em A hora da
estrela, observaremos que, na metrópole, os retirantes não tomarão contato com a cultura
letrada, que dará lugar a produtos da indústria cultural, veiculados pelos meios de
comunicação de massas, e acabarão esvaziados de identidade e alienados da possibilidade
de formular essa alternativa.
João de Santo Cristo, embora seja retirante como Fabiano e Macabéa, difere
substancialmente de seus pares da literatura culta brasileira. Embora também vá à cidade à
cata de uma alternativa de futuro, João não busca ali a cultura letrada; ele queria ver as
coisas que via na tv, isto é, fora motivado pelos meios de comunicação de massas a ir à
41
cidade. Utilizando-se deles para migrar, mas sem deixar-se alienar por eles, João opõe-se,
também, a Macabéa. Entenderemos esse distanciamento como formulação de uma
alternativa às trajetórias dessas personagens da literatura culta, sempre caracterizadas pela
submissão, pela passividade e pela alienação; João de Santo Cristo é agente do próprio
destino, sua história nos é contada por meio de uma canção que guarda raízes na literatura
popular em versos e na cultura norte-americana, e por isso é diferente de seus ancestrais da
literatura culta.
Faroeste, literatura de cordel, literatura culta: em Faroeste Caboclo todas essas
interferências aparentemente dissonantes combinam-se para culminar naquela que talvez
seja asica mais ouvida do rock nacional, certamente uma das mais idolatradas pelos s
da Legião Urbana.
2.5 Indústria Cultural e Canção Popular Brasileira
Em um texto introdutório a respeito dos estudos da Escola de Frankfurt,rbara
Freitag (1988, p. 71). oferece uma definição bastante sintética, mas muito útil, de Indústria
Cultural: “O produto cultural integrado à lógica do mercado e das relações de troca deixa
de ser ‘cultura’ para tornar-se valor de troca. A falsa reconciliação entre produção material
e ideal de bens recebe o nome de indústria cultural”. É mais que evidente que a esmagadora
maioria das canções populares brasileiras – incluídas aí as da MPB, as do Tropicalismo e,
evidentemente, as do rock nacional – estavam integradas à lógica de mercado e às relações
de troca. Observemos alguns exemplos – todos eles extrdos do livro Dias de luta: o rock
e o Brasil dos anos 80, de Ricardo Alexandre (2002), ou O século da canção, de Luiz Tatit
(2004) – que chancelam essa afirmação.
42
Na primeira parte de seu livro, intitulada “Os primórdios”, Ricardo Alexandre faz
um levantamento da situação em que se encontrava o mercado fonográfico brasileiro no
final da década de 70 e no início da década de 80. Chama a atenção, inicialmente, uma
isenção fiscal de que gozavam as gravadoras multinacionais, nesse período:
Uma perversão da lei permitia que as gravadoras multinacionais ficassem
isentas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) apresentando
contratos com músicos brasileiros. Ou seja, quanto mais os discos do Led
Zeppelin (as tais “mercadorias”) vendessem no Brasil, tanto mais Gilberto
Gil (omúsico brasileiro”) enriqueceria – e não faltaram nesse período
baluartes que, graças à isenção fiscal, trocaram de gravadora e ganharam
apartamentos ou adiantamentos faraônicos, mesmo com suas vendas
modestas. (ALEXANDRE, 2002, p.16)
A isenção do antigo ICM está diretamente associada ao aumento da margem de
lucros das gravadoras multinacionais, o que, de antemão, já revela a integração dos
produtos culturais da canção brasileira à lógica de mercado. Surpreende, porém, a
observação do autor a respeito do enriquecimento fácil dos músicos brasileiros que se
beneficiavam dessa “perversão da lei”. Não será dicil concluir que a isenção fiscal, talvez
revestida de boas intenções, porque pretendia valorizar a promoção da canção nacional,
acabava por suprimir espaço aos artistas nacionais que já não tivessem público consolidado,
ofuscados por, por exemplo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque e Elis Regina,
só para citar os mais consagrados. Também é curiosa a observação a respeito dos discos do
Led Zeppelin, a que o autor se refere como “as tais mercadorias”. Para Freitag (1988, p.72),
oproduto cultural” é “um bem de consumo coletivo, destinado, desde o início, à venda,
sendo avaliado segundo sua lucratividade ou aceitação de mercado e não pelo seu valor
estético, filofico, literário, intrínseco”. Não cabe, neste texto, avaliar o valor estético,
filofico, literário e intrínseco a qualquer um dos álbuns do Led Zeppelin, mas não deixa
de ser significativo que sua destinação à venda terá as margens de lucro aumentadas graças
43
à contratação de músicos brasileiros, como vimos. Mais ainda: as “vendas modestas” dos
LPs de músicos brasileiros, orientadas por essa gica, inserem essas obras na categoria de
produtos culturais, porque facilitam a obtenção de lucros por meio da isenção do antigo
ICM. Na linguagem das modernas escolas de administração, poderíamos dizer que a
produção de álbuns de artistas brasileiros faz parte do “mix de produtos” necessário para
engordar as demonstrações de resultados e os balanços patrimoniais das grandes
gravadoras. Em outras palavras, é mais barato investir na produção de discos de alguns
artistas brasileiros, ainda que o retorno sobre esse investimento seja modesto ou nulo, do
que não contar com a isenção fiscal, que garantiria retornos muito maiores sobre as vendas
de LPs de bandas estrangeiras, como o Led Zeppelin. Tatit (2004, p.60) também comenta,
de forma menos específica, métodos como esse, da indústria fonográfica multinacional
instalada no Brasil, no mesmo período, para a introdução de seus produtos no mercado,
alcançando as mesmas conseqüências: “A primeira investida foi com a própria música
norte-americana que, a custo zero, inflacionou a sonoridade brasileira durante um longo
peodo”.
Não é apenas essa perversão da lei” que nos permite observar que a produção e a
difusão da canção brasileira estiveram, desde sempre, associadas à lógica de mercado. A
estratégia da gravadora WEA no Brasil, instalada no país na década de 70, incluía um
“hipotético intercâmbio entre megaartistas internacionais no país e artistas brasileiros no
exterior”, com a finalidade de romper os limites entre a música pop e a MPB, com um
pacote digerível peloblico jovem” (ALEXANDRE, 2002, p.28). Trata-se, desta vez, da
tentativa de atingir um “nicho” específico de mercado – outro termo típico das escolas de
administração – , o público jovem, que já se distanciava, de certa forma, dos grandes ídolos
da MPB. Era, também, uma iniciativa precursora, espécie de premonição da abertura do
44
mercado nacional às portas da economia globalizada, de sabor neoliberal, que será
esquadrinhada na década de oitenta e que ocorrerá, de fato, com a eleição de Fernando
Collor de Mello. “Foi assim que Elis, contrariada, teve de gravar Garota de Ipanema, na
tentativa de emplacar no Primeiro Mundo. Por isso, Gil foi contratado em 1977 e foi logo
produzindo um disco ao vivo na Suíça e outro, de estúdio, para o mercado americano”
(ALEXANDRE, 2002, p.28). A produção dessas obras está intrinsecamente ligada à iia
de que elas são produtos que podem “emplacar” em outros mercados.
O mercado interno, contudo, estava, no final da década de oitenta, sob o controle
dos “monstros sagrados” da MPB, que, no nimo, eclipsavam o surgimento de outros
talentos. É exatamente o que podeamos chamar dedemanda reprimida de mercado” uma
das maneiras de compreender o sucesso vultoso das bandas da década de oitenta. Nas
palavras de André Middani, que foi presidente da Philips do Brasil e favoreceu a chegada
da WEA ao país:
Durante toda a década de 70, essa frente MPB-Tropicália foi dominadora,
por conta de sua importância. (...) Pior que dominadora, foi asfixiadora.
Ela asfixiou o surgimento de artistas mais jovens, por muitos e muitos
anos. Quando você pensa nessa geração seguinte, de Baby e Pepeu,
Gonzaguinha, Jo Bosco, Ivan Lins, todos se ressentiam, numa boa, da
sombra que os monstros sagrados faziam. Com o passar dos anos, os
próprios monstros sagrados deixaram de representar algo novo. Então,
esse mainstream começou a baixar, e os novos não conseguiam subir – foi
um grande período de entressafra. (Ibid., p.31)
O período de entressafra será encerrado com o rock nacional, cujo público destoava
sensivelmente daquele habituado aos “grandes monstros”.
Apenas a arte “popular” ainda se dividia entre o maniqueísmo da
“situação” e da “oposição”, dois lados de um mesmo sistema
absolutamente desinteressante para o grande público. Como efeito, um
novo comportamento jovem começou a germinar, alheio à grande mídia,
imperceptível para quem não estivesse nas ruas, nas praias, vivendo com
gente de verdade eo apenas com executivos de gravadoras, diretores
45
de TV, militantes de esquerda ou técnicos de estúdio da Califórnia.
(
ALEXANDRE, 2002, p.31)
Parece surpreendente, mas custou à indústria fonográfica nacional associada à MPB
engajada ou ao Tropicalismo – a oposição”, cada uma à sua maneira – ou aos segmentos
de fato populares dessa mesma indústria – a “situação”, encarnada por cantores românticos
como Roberto Carlos ou por compositores e intérpretes considerados “bregas” peloblico
que Tatit chama de “elite popular” (2004, p.64), todos colocados no caldeirão da
alienação”, pelos primeiros – perceber que havia um novo nicho de mercado a atender. O
que se quer evidenciar, aqui, é que o próprio espaço dado aos roqueiros, nas gravadoras,
nos anos seguintes, já seria efeito da percepção de que suas canções poderiam ser – e, de
fato, foram – produtos rentáveis de um ou mais segmentos da instria cultural. A respeito
das projeções equivocadas das gravadoras, é emblemática a observação de Tatit (2004,
p.60): “Contracenando com o encaminhamento do produto, há as flutuações no âmbito do
gosto e das necessidades emocionais que singularizam os mais variados setores da
sociedade e se manifestam diferentemente em cada fase de sua evolão histórica”.
Identificada a necessidade do mercado jovem brasileiro por um “símile nacional” dos
sucessos estrangeiros do rock, dá-se o sucesso desse gênero nas rádios nacionais.
Os exemplos, contudo, não param por aí. Registrem-se, também, por exemplo, a
utilização de canções da MPB ou do rock nacional, indiferentemente, nas trilhas sonoras de
novelas da Rede Globo, “o filão de ouro do mercado fonográfico do Brasil
(ALEXANDRE, 2002, p.39), eficiente meio de divulgação, com penetração nacional; a
utilização da Região Nordeste como “mercado-teste”, em que as canções são lançadas para
a verificação de seu potencial de sucesso (Ibid., p.137); a organização do elenco das
gravadoras, planejada para potencializar os lucros e minimizar os prejuízos, “com artistas
46
que dessem prestígio, artistas que rendessem dinheiro e artistas que buscassem novas
propostas musicais”, cujos lançamentos eram feitos em formatos diferentes (LP para os
consagrados; singles ou compactos para os novatos), de acordo com os custos e as
expectativas de retorno (ALEXANDRE, 2002, p.137); a estratégia de marketing das
versões remixadas, o chamado remix; ou a espécie de livrinho de receitas para composição
de caões de sucesso, que Arnolpho Lima Filho – o Liminha, ex-integrante da banda Os
Mutantes, produtor de muitos discos de rock nacional de sucesso – confessa ter adquirido
em Los Angeles, na Tower Records da Sunset Boulevard, escrito por autores de canções
premiadas com Oscars e Grammys:
Tinha umas dicas tipo ‘É legal que o título da música esteja contido na
letra”, “A melodia precisa ser fácil o suficiente para que o ouvinte possa
assobiá-la”, “A importância do refrão” e tal. Foi uma espécie de turning
point. (Ibid., p.121)
A facilidade da melodia e a possibilidade de assobiá-la, para Adorno (2005, p.81), já
são indicadores de que se está diante de mero produto mercadoria: “A pessoa que no met
assobia triunfalmente o tema do último movimento da Primeira Sinfonia de Brahms, na
realidade relaciona-se apenas com suas ruínas”.
A pujança das vendas de discos que se observou em 1985 era, no início da década,
em que os astros do rock nacional ainda não haviam despontado, uma realidade distante.
Somada à estrutura simples das bandas, com um baixista, um guitarrista, um baterista e um
vocalista e de suas canções, no estilo “do it yourself”, inspirado no punk rock, essa
circunstância também favorecia o investimento das gravadoras nas bandas que floresciam
no Brasil da década de oitenta:
E as gravadoras adoravam aquilo. Não porque julgassem genial ou
revolucionário, mas porque era barato. Bandas que compunham o próprio
reperrio e dispensavam arranjadores, orquestras e músicos convidados.
47
Trios, quartetos e quintetos de estrutura simples e eficiente. Guitarra,
baixo, bateria, teclado e voz, uma geração providencial para quem tinha
de lidar com a queda livre do mercado de discos do país. Se em 1980 os
brasileiros compraram 40,5 milhões de LP, singles e fitas cassete, no ano
seguinte houve uma redão de 7 milhões de unidades. (...)Tive de
buscar quem fizesse música barata”, confessa André Midani, lembrando
que a WEA foi obrigada a unir-se à Odeon para distribuir os discos
produzidos. (ALEXANDRE, 2002, p.129)
Todos os exemplos acima – e muitos mais poderiam ter sido levantados –
confirmam uma hipótese que o próprio senso-comum acataria de bom grado, sem
necessidade de pesquisa: as canções de rock no Brasil dos anos 80 nada mais são do que
produtos culturais integrados à lógica do mercado e das relações de troca. Sobre essa
característica, valem duas observações: primeiramente, lembremo-nos de que, para Walter
Benjamin, a partir da análise engendrada em “A obra de arte na época de suas técnicas de
reprodução”, segundo Norbert Bolz (1992, p.92), “não há qualquer diferença entre obra de
arte e mercadoria”; além disso, segundo Tatit (2004, p.35), o que se convenciona chamar,
hoje, de canção popular brasileira teve suas origens no encontro dos sambistas com o
gramofone, isto é, com as primeiras iniciativas de introduzir no Brasil a indústria
fonográfica.
No texto antológico citado acima, Walter Benjamin avalia as mudanças que a obra
de arte sofrera com a ascensão da burguesia e com o avanço das técnicas de reprodução.
Para o autor, o valor de culto que tinham as obras de arte – associado à sua aura e à
impossibilidade de reproduzi-las – dá lugar ao chamado valor de exibição; essa mudaa
está diretamente ligada à possibilidade de reprodução dessas obras. Algumas formas de
arte, inclusive, como o cinema, têm a reprodução destinada às massas como característica
intrínseca, o que, por si, já modificou a natureza da arte como um todo. Se, por exemplo,
na Idade Média, uma pintura sacra, de exibição limitada a uma pessoa ou a pequenos
48
grupos, tinha seu valor associado à impossibilidade de reprodução, que garantia a essa obra
a aura e o valor de culto, atualmente, um filme de Hollywood te seu valor medido pela
sua exibição às massas. Os grandes lançamentos cinematográficos, hoje, dada a facilidade
de reprodução dos filmes, são mundiais; o sucesso de audiência do espetáculo de entrega do
Oscar, por exemplo, está diretamente ligado a essa capacidade reprodutiva: o público
mundial já assistiu aos filmes cujos produtores, diretores, atores e técnicos disputam pelas
estatuetas.
Em suma, para Benjamin, a reprodução transformou o caráter geral da arte. Eis,
exatamente, o ponto que nos interessa. Para esse autor, a reprodutibilidade das obras de
arte, primeiramente, faz que elas possam ser consumidas pelas massas; além disso, também
garante uma mudança de percepção do público, associada à idéia de politização,
apresentada ao final do artigo. O autor afirma, por exemplo, que os filmes de cinema têm a
capacidade de reter aspectos da realidade que não seriam apreensíveis pelo olho humano
nu, o que culminaria com o aprofundamento da percepção do público; e que, ao contrário
da pintura, destinada a um observador único ou a um pequeno grupo de observadores, o
cinema é arte destinada à exibição para as massas. Benjamin brada (1980, p.25), em trecho
próximo ao final do texto, que “A massa é matriz de onde emana, no momento atual, todo
um conjunto de atitudes novas com relão à arte. A quantidade tornou-se qualidade. O
crescimento maciço do número de participantes transformou o seu modo de participação”.
Trata-se de uma maneira quase otimista de pensar as implicações da reprodutibilidade da
obra de arte, ao contrário do que observaremos em Adorno. À “velha recriminação” de que
as massas procuram a diversão, mas a arte exige concentração” (Ibid., p. 26), Benjamin
contrapõe uma analogia com a acolhida tátil das obras de arte arquitetônicas, adquirida por
meio do bito, que determinará a acolhida visual. Em palavras mais simples: “o homem
49
que se diverte pode também assimilar hábitos; diga-se mais: é claro que ele não pode
efetuar determinadas atribuições, num estado de distração, a não ser que elas se lhe tenham
tornado habituais” (BENJAMIN, 1980, p. 26). Para Benjamin, a obra de arte, na época de
sua reprodutibilidade técnica, embora seja produto-mercadoria, não perde, necessariamente,
sua capacidade de mobilização das massas. Na arte existe uma alternativa de politização,
que se oporia à estetização da guerra, típica do fascismo, que permite às massas que
exprimam seus direitos, sem deixá-las fazer que eles valham.
É saboroso e fértil para nossa análise, ao mesmo tempo, o relato de Luiz Tatit a
respeito das origens da atual canção popular brasileira, no Rio de Janeiro do início do
século XX, nas casas das “tias” – todas descendentes de escravos e que reproduziam, na
então capital do país, as práticas dos negros de Salvador – sobretudo a da Tia Ciata, em
cujos cômodos era possível observar as diferentes manifestações da música brasileira, das
mais eruditas, nas salas principais, às mais populares, nos fundos da casa:
A relativa harmonia étnica e social administrada pelas tias em suas festas,
que chegavam a durar uma semana em permanente ebulição – pode-se
pensar na fervura das comidas fazendo liga para a convivência social –,
viu-se de repente abalada por um fator externo ao seu cotidiano: a
chagada das máquinas de gravação ao Rio de Janeiro. Os primeiros a
serem beneficiados com a nova tecnologia foram curiosamente os
representantes dos fundos. Desde 1897, alguns cantadores de serestas,
lundus e modinhas como Baiano (Manuel Pedro dos Santos) e Cadete
(Manuel da Costa Moreira) já haviam sido convidados a gravar cilindros
melicos, com voz e violão, para promover a venda dos aparelhos recém-
lançados. Suas execuções muito simples e prontas para o registro
mostravam-se compatíveis com as limitações técnicas da grande
novidade. A partir de 1904, com a entrada no Brasil do gramofone com
discos de cera, esses artistas, mais Nozinho, Eduardo das Neves e Mário
Pinheiro, formaram a primeira leva de cantores profissionais no país.
(TATIT, 2004, p.33)
O fragmento acima é bastante rico para a análise que se empreenderá neste trabalho.
Em primeiro lugar, atente-se para a “relativa harmonia étnica e social” que havia nas casas
50
das tias, organizada por meio da distribuição física dos espaços em que cada uma das
manifestações brasileiras de música se manifestava, representação clara de que havia –
talvez haja até hoje – na música brasileira uma divisão erudito-popular, extremos que, de
certo modo, se tangenciam e se interpenetram. Observe-se, também, que a promoção dos
cantores populares ocorrerá antes da dos eruditos, pela facilidade material de reprodução de
suas canções, isto é, a gênese da atual canção popular brasileira está exatamente no
florescimento do mercado de discos no Brasil. Ora, é evidente que os freqüentadores dos
fundos gozaram de promoção antes dos eruditos. Enquanto as obras destes podiam ser
registradas por meio de partituras, que lhes garantiriam a longevidade, as canções daqueles,
feitas ao sabor do momento, sem registros, eram mais simples do ponto de vista técnico, o
que facilitava a gravação em aparelhos ainda bastante primitivos. Havia, ainda, um aspecto
mercadológico que favorecia as canções dos fundos das casas das tias: sua popularidade
entre o público.
A característica mais marcante dessas canções, contudo, era sua aproximação com a
oralidade, com o improviso, de raízes indígenas e negras africanas. Com efeito, “Alheios a
qualquer formação escolar, de ordem musical ou literária, esses sambistas retiravam suas
melodias e seus versos da própria fala cotidiana. Serviam-se das entoações que
acompanhavam a linguagem oral e das expressões usadas em conversas” (TATIT, 2004,
p.34). O registro gravado – ao contrário do que ocorria com a música erudita, que contava
com as partituras para atravessar o tempo – era fundamental para esses compositores, pois
lhes garantiria, de uma só vez, as possibilidades de ganhar dinheiro com suas composições
e de registrá-las, de modo que não se perdessem como os lundus e maxixes do século XIX.
De modo geral, se o ritmo batuque favorecia a memorização, afastava-a a proximidade das
51
letras com a oralidade, improvisadas que eram no calor da hora. Daí a importância das
primeiras gravações para o que se convencionou chamar canção popular brasileira.
Surgia, segundo Tatit (2004, p.40), naquele momento,
[...] a era dos cancionistas, os bambas da canção, que se mantinham
afinados com o progresso tecnogico, a moda, o mercado e o gosto
imediato dos ouvintes. Nascia também uma noção de estética que não
podia ser dissociada de entretenimento.
A partir de então, todos os movimentos da canção popular brasileira transitariam por
essa “noção de estética que não podia ser dissociada de entretenimento”, desde os grandes
cantores das rádios da década de quarenta, passando pela explosão da Bossa Nova nos
cinqüentas, alcançando a MPB engajada e o Tropicalismo dos sessentas e setentas. Sejamos
justos com este último movimento (um pouco demonizado nas linhas acima), já que ele
cumpre, segundo Tatit, papel fundamental para a formação do rock brasileiro, se quisermos
– e queremos – inseri-lo na história da canção popular brasileira. Trata-se do gesto da
assimilação, por meio do qual
Nunca mais houve restrições que interferissem nas escolhas dos
instrumentos e repertórios, nas atitudes de palco, na configuração temática
ou construtiva das letras, nos arranjos, nas misturas de estilos e,
sobretudo, na assimilação da música estrangeira. Sobre isso, als,
somente o tropicalismo conseguiu de fato explicitar o óbvio: a música
estrangeira, em graus diversos, é parte integrante da música brasileira.
(Ibid., p. 59-60)
Depois da asfixia do mercado fonográfico nacional, anteriormente citada nas
palavras de André Midani, promovida também pela hegemonia tropicalista, a própria
assimilação por eles formulada, anos antes, teria grande responsabilidade no surgimento do
rock nacional, para atender às expectativas do mercado jovem, que pedia uma versão
nacional dos sucessos do rock estrangeiro. Não se tratava, contudo, de uma invasão
indiscriminada de gênero, que teria eliminado os elementos da canção popular brasileira
52
anteriormente descritos. Ao contrário: permaneceu – embora com a interferência da dicção
rock –, em certa medida, a oralidade combinada à melodia, marca e força do período de
nascimento da canção brasileira, como espécie de tocha entre corredores, para plagiar
Antonio Candido (1975) nas primeiras linhas de sua Formação da Literatura Brasileira,
depois das interferências da Bossa Nova, da MPB engajada, do Tropicalismo e das bandas
independentes da USP, do final da década de 70 e início da de 80, de que o próprio Tatit fez
parte, com seu conjunto Rumo:
Outras bandas reforçaram a dicção rock, mas servindo-se, também, de
forma menos explícita que a Blitz, da oralidade: Barão Vermelho, com o
canto-falado de Cazuza, os Titãs, com motes lançados em forma de
palavras de ordem e Legião Urbana, com extensas narrativas contadas por
Renato Russo. (TATIT, 2004, p.63)
Em palavras mais simples: não só qualquer canção produzida e gravada atualmente
será sempre uma mercadoria, como também aquilo que se convencionou chamar de MPB –
gênero tão saboroso para a “elite popular” – guarda suas raízes nos primórdios da indústria
fonográfica nacional. Arriscamos mais: é característica inerente à canção popular brasileira
o seu caráter de mercadoria, o que não lhe suprime o valor estético intrínseco e, mais, o
potencial de questionar e colocar em xeque os valores e as bases da própria indústria que a
engendrou, como queria Walter Benjamin, no que dizia respeito ao cinema.
Cabe-nos avaliar, agora, se as canções do rock nacional, Faroeste Caboclo
especificamente, deixam de ser ‘cultura’ para tornarem-se mero valor de troca. Seria
pretensão demais a tentativa de liquidar a questão, que transcende – e muito – os limites
deste trabalho. Defenderemos, contudo, a hitese de que, embora seja parte integrante do
mercado fonográfico e, em boa medida, possa ser considerada produto da indústria cultural,
a canção da Legião Urbana, em alguns aspectos foge – ou, pelo menos, tenta fugira essas
53
características inerentes por alguns aspectos que lhe são intrínsecos e que já foram
explicitados com maior ou menor detalhe anteriormente: a filiação à literatura de cordel e à
literatura culta, a extensão da canção e a ausência de refrão. Todos esses aspectos serão
analisados minuciosamente nos capítulos de investigação da canção.
Segundo Bárbara Freitag
(1988, p. 72),
A nova produção cultural tem a fuão de ocupar o espaço do lazer que
resta ao operário e ao trabalhador assalariado depois de um longo dia de
trabalho, a fim de recompor suas forças para voltar a trabalhar no dia
seguinte, sem lhe dar trégua para pensar sobre a realidade miserável em
que vive.
Acreditamos, de pronto, que Faroeste Caboclo não pode ser inserida gratuitamente
na categoria acima apenas por ser – e semvida é – um produto rentável da indústria
cultural. A ausência de refrão impede a memorização gratuita, automatizada; a extensão da
canção também alcança esse mesmo efeito. Acontece, pois, que Faroeste Caboclo, que
poderia ser memorizada pela regularidade rítmica, não o faz, já que contém em sua
estrutura diversos gêneros musicais. Grosseiramente, não é possível assobiar a caão,
aludindo ao manual que Liminha adquiriu em Los Angeles e à afirmação de Adorno a
respeito da Primeira Sinfonia de Brahms. O que existe, na letra da canção, é uma narrativa
– nos moldes da poesia popular – que precisa ser cantada por inteiro para ser compreendida.
As estruturas textual e musical de Faroeste Caboclo fazem que essa canção fuja, em certa
medida, à estandardização típica da indústria fonográfica – e, portanto, à finalidade do
produto cultural proposta acima.
Ao continuar a descrição dos objetivos do produto cultural, Freitag (1988, p. 73)
afirma que “A indústria cultural, além disso, cria a ilusão de que a felicidade não precisa ser
adiada para o futuro, por já estar concretizada no presente – basta lembrar o caso da
telenovela brasileira”. Como se observará nos capítulos a seguir, a letra de Faroeste
54
Caboclo versa sobre a reconstrução do presente em nome de um futuro radicalmente
diverso, exatamente o oposto da afirmação em destaque. Na canção, o presente é, a um
tempo, motor de mudanças imediatas e incubador de alternativas futuras. Para Tatit (2002,
p.20), “O núcleo entoativo da voz engata a canção na enunciação produzindo efeito de
tempo presente: alguém cantando é sempre alguém dizendo, e dizer é sempre aqui e agora”,
renovando, a cada execução da música, os traços questionador do presente e propositivo de
uma alternativa de futuro que lhe são inerentes. A filiação à cultura popular reforça essa
hipótese. Ao descrever a importância da festa na cultura popular e ao perceber que ela não
pode ser enquadrada nos moldes da obra de arte burguesa – muito menos nos da indústria
cultural –, José Antônio Pasta Júnior
(1992, p. 73) afirma que
Esse instante como que se coloca fora do tempo administrado e
meramente quantitativo e marca a sua superação. Fazendo confluir para
um instantecomo para um cristal de muitos fogos – inúmeros marcos
importantes da meria – que se fazem todos conjuntamente presentes e
ativos –, a Festa cria uma experiência do tempo que é um presente
contínuo, ivel no limiar da história, como se fosse a véspera
permanente de um acontecimento muito esperado.
Esse presente contínuo assemelha-se, para Pasta, ao caráter de texto único dos
folhetos de cordel, descrito anteriormente. O procedimento do folheto para fazer frente à
dominação não é negá-la ao nível do conteúdo, mas é afirmar, pela prática de uma
produção, um modo de atuar que é outro em relão às formas impostas e ao aparato
cultural que organiza a situação de dominação (JÚNIOR J., 1992, p.70). Dessa forma, os
folhetos de cordel, por esse modo de atuar, resistiriam às formas da arte burguesa e da
indústria cultural; inserindo-se nessa tradição, ainda que atada em alguma medida a essa
indústria, Faroeste Caboclo faria o mesmo.
Eis a terceira finalidade do produto cultural, segundo Freitag (1988, p. 73),
55
E, finalmente, ela [a instria cultural] elimina a dimensão crítica ainda
presente na cultura burguesa, fazendo as massas que consomem o novo
produto da instria cultural esquecerem sua realidade alienada. Com a
dissolução da obra de arte e da cultura no cotidiano, extinguem-se a
remessa para o futuro e a promessa de felicidade, inerentes à obra de arte
burguesa.
Note-se que a expressão que utilizada pela autora, ao final, é obra de arte
burguesa”, o que confirma a associação do fragmento acima com as análises de Jo
Antônio Pasta Júnior e Jerusa Pires Ferreira. A obra de arte burguesa prometia, por estar
fundada na cisão cultura e civilização, um futuro mais feliz. É exatamente à cata desse
futuro que veremos, por exemplo, Fabiano e sua família abandonarem o sertão rumo à
cidade; sua busca é pela cultura letrada, burguesa, pela promessa de ascensão social.
Embora, na cidade, possam até ter a sorte de ascender socialmente, só o farão por meio da
reprodução do sistema em que estão inseridos, isto é, por meio da exploração de outros,
como eles próprios. Não, portanto, nas personagens de Vidas Secas, o questionamento
radical do presente e a proposição de uma alternativa de futuro como há em Faroeste
Caboclo. João de Santo Cristo não pretende a ascensão social – embora desfrute dela em
um pequeno período de sua vida –, mas quer “falar pro presidente pra ajudar toda essa
gente que só faz sofrer”; seu projeto não é burguês, individual, mas radicalmente coletivo, o
que se materializa na filiação da canção à literatura popular em verso, aquela cujo autor é
legião, que resiste ao status quo afirmativamente, por meio do presente contínuo descrito
acima, por meio da perpetuação de sua história, que ocorre toda vez que a canção é cantada.
Toda vez que isso acontece, renova-se o protesto da letra.
Segundo Lobão, protestos como o da Legião Urbana tiveram conseqüências graves,
principalmente pries por porte de drogas, para os roqueiros brasileiros:
Enquanto todo mundo achava que nossa geração era o novo iê- iê- iê”,
estava tudo bem (...). Mas, de repente, estávamos eu, os Titãs, a Legião,
56
megaartistas, alterando comportamentos, falando coisas altamente
subversivas. Isso não estava no cardápio do establishment. Era preciso
calar essa rapaziada. (ALEXANDRE, 2002, p.303)
Da mesma maneira que a instria cultural promove o culto ao astro, utilizando-se
de todos os meios de comunicação de massas e das mais diferentes estratégias de mercado
– videoclips no Fantástico; apresentações nos programas de maior audiência, como, na
época, o do Chacrinha; entrevistas na mídia impressa, televisiva e radiofônica; divulgação
das canções por meio do jabá; versões remixadas das canções, de modo a manter sua
execução nas programações das rádio durante períodos de tempo mais longos, dentre
muitos outros –, ela também promoverá, caso seus astros firam-lhe os interesses de lucros,
sua execração nacional. O melhor exemplo parece ser a exposição mórbida da lenta morte
de Cazuza. Ao assumir a bissexualidade e a contaminação por AIDS, Cazuza foi alvo de
toda sorte de ataques da dia mais conservadora, o que demonstra o limite a que pode
chegar o protesto dentro da própria indústria cultural. Organizada para responder aos
interesses de seus acionistas, ela não poderia acatar as propostas comportamentais que
roqueiros como Lobão, Cazuza ou Renato Russo escancaravam em suas letras, dado o
conservadorismo dos consumidores das classes média e alta, já suficientemente assustadas
com os sucessivos planos ecomicos da década de oitenta e com a ascensão do então
candidato à presidência do Partido dos Trabalhadores, Luís Inácio Lula da Silva.
Para tentar dar sustentação à argumentação acima proposta, valerá também apontar
alguns fragmentos da História social do jazz, de Eric Hobsbawn (1990), espécie de resposta
à crítica severa de Adorno à chamada “música ligeira”, gênero no qual, certamente, o rock
pode ser inserido. Para Adorno (2005, p.77), “A música (...) é utilizada sobretudo nos
Estados Unidos, como instrumento para a propaganda comercial de mercadorias que é
57
preciso comprar para ouvir música”. Já vimos que exatamente a mesma descrição pode ser
aplicada à gênese da canção popular brasileira. Nossa canção seria, portanto, – e talvez ela
o seja de fato, segundo os critérios propostos por Adorno, como veremos a seguirmero
produto da instria cultural; mesmo a fina flor da MPB, aos olhos desse filósofo, figuraria,
semvida, nessa categoria: basta lembrar que, muitas vezes, o gosto de nossa “elite
popular” está condicionado ao sucesso já obtido – e, portanto, já garantido de antemão –
pelos mesmos “monstros sagrados” da MPB: “Em vez do valor da própria coisa, o critério
de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco
de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo” (ADORNO, 2005, p.66). Para o
filósofo, a moda musical – ordenada segundo a lógica de mercado, descrita exaustivamente
nos primeiros exemplos deste capítulo – dita o gosto dos ouvintes:
As reações dos ouvintes parecem desvincular-se da relação com o
consumo da música e dirigir-se diretamente ao sucesso acumulado, o qual,
por sua vez, não pode ser suficientemente explicado pela espontaneidade
da audição mas, antes, parece comandado pelos editores, magnatas do
cinema e senhores dodio. (Ibid., p.74)
A leitura atenta do artigo “O fetichismo na música e a regressão da audição”, do
qual foi extraído o fragmento acima, leva à conclusão de que o rock, em geral, e, mais
especificamente, toda canção popular brasileira, incldo aí o rock nacional, estão inseridos
na categoria adorniana de “música ligeira”: a fetichização da voz e dos instrumentos, a
prática dos arranjos, a predominância e a valorização de melodias individuais e isoladas, os
achados”,sem que a organização do conjunto possa exercer a nima influência
contrária” (Ibid., p.81) e a substituição do valor de uso pelo valor de troca, dentre outros
aspectos, caracterizam-na. Seus ouvintes são “infantis”,
Existe efetivamente um mecanismo neurótico da necessidade no ato da
audição; o sinal seguro deste mecanismo neurótico é a rejeição ignorante e
58
orgulhosa de tudo o que sai do costumeiro. Os ouvintes, vítimas da
regressão, comportam-se como crianças. Exigem sempre de novo, com
malícia e pertinácia, o mesmo alimento que uma vez lhes foi oferecido.
(ADORNO, 2005, p.96)
caracterizados pela “regressão da audição” e pela “linguagem musical infantil”:
Para tais ouvintes [os infantis], elabora-se uma espécie de linguagem
musical infantil, que se distingue da linguagem genuína porque o seu
vocabulário consta exclusivamente de resíduos e deformações da
linguagem artística musical. (Ibid., p.96)
Até as citações – componente fundamental de nossa leitura de Faroeste Caboclo
são, para Adorno, expressões dessa linguagem musical infantil dos ouvintes modernos:
Não menos características para a linguagem musical regressiva são as
citações. Seu campo de utilização vai desde a citação consciente de
canções populares e infantis, passando por alusões equívocas e
semicasuais, até semelhanças e plágios manifestos. Esta tendência triunfa
sobretudo onde se adaptam trechos ou obras inteiras do repertório clássico
ou operístico. A prática das citações reflete a ambivalência da consciência
infantil do ouvinte. As frases melódicas citadas se revestem ao mesmo
tempo de um cunho de autoridade e de paródia. É assim que uma criança
imita o professor. (Ibid., p.97)
Adorno refere-se a citações de toda ordem; em Faroeste Caboclo, a citação a vários
gêneros musicais passa, evidentemente, longe da dissonância da Schoenberg – cuja música
forma aquela angústia, àquele pavor, àquela visão clara do estado catastrófico ao qual
os outros só podem escapar regredindo” (Ibid., p.108). Cada um dos gêneros utilizados na
canção da Legião Urbana, será “música ligeirana perspectiva de Adorno. A similaridade
ao cinema – mais uma forma de citação –, contudo, pode dirigir-nos a uma alternativa de
fuga à pura estandardização: não há na canção da Legião Urbana uma história
hollywoodiana clássica, com happy end e vitória do bem sobre o mal – aliás, como se
observará nos capítulos de alise, as categorias bem e mal, na canção, são ambíguas o
bastante para que se possa encontrar ali certa resistência aos moldes da indústria cultural.
59
Mais importantes ainda são as referências à literatura popular, base do protesto da canção,
como vimos.
Analogamente, se a letra da canção contém o elemento de afirmação da cultura
popular que resiste à instria cultural, como já observamos, segundo Pasta, então é na
letra que estão os elementos de fuga à estandardização. Ainda que as filiações ao rock e à
canção popular aproximem Faroeste Caboclo da categoria de “música ligeira”, proposta
por Adorno, a ancestralidade na literatura popular em versos, talvez, faça da canção,
inclusive em termos formais, canção de resistência à própria alienação engendrada pela
indústria cultural.
Para Hobsbawn, por exemplo, o jazz – cujas origens têm surpreendente semelhança
com as da canção popular brasileira, como veremos – embora possa ser absorvido pela
indústria fonográfica, guarda suas características de protesto a ela, ainda que de forma não
direta – de forma análoga, mais uma vez, à sugerida por Pasta, no que diz respeito à
literatura de cordel e à festa popular. Sigamos o raciocínio de Hobsbawn. No último
capítulo da sua História social do Jazz,Jazz como protesto”, o autor afirma que:
O jazz, sem dúvida, faz aflorar emoções incrivelmente poderosas e
tenazes tanto entre os seus seguidores quanto entre seus oponentes.
Neste capítulo, quero sugerir que isso acontece porque o jazz não é
simplesmente música comum, ligeira ou séria, mas também uma música
de protesto e rebelião. Não necessariamente ou sempre uma música de
protesto consciente e declaradamente político, e menos ainda um tipo
especial de protesto político; embora as ligões políticas no Ocidente,
sempre que ocorreram, tenham sido entabuladas com a esquerda. (É difícil
imaginar como poderia ter sido de outra maneira, desde que mesmo o
amante de jazz mais apolítico é contra a discriminação racial, que só pode
ser publicamente defendida pela direita). (HOBSBAWN, 1990, p.272)
O trecho acima é da vasta utilidade para análise. Primeiramente porque, ao contrário
do que ocorre com Adorno, parte-se do pressuposto de que as emoções promovidas por um
gênero de música ligeira não são necessariamente – embora ele possa estar, em grande
60
medida associado à indústria culturalfrutos da alienão dos ouvintes, mas frutos de seu
caráter de protesto. Interessa-nos, mais ainda, a sugestão de que esse protesto não seja
necessariamente consciente, porque, dadas as origens populares do jazz, talvez ele se
assemelhe à literatura de cordel, nos termos propostos por Pasta, quanto à afirmação, pela
prática da produção, de um modo de atuar que dista das formas impostas e do aparato
cultural dominador. Por último, também é relevante o fato de o jazz ter estabelecido
relações apenas com a esquerda, por rejeitar posições – no caso específico dos Estados
Unidos, a virulência pública da discriminação racial – que estão intimamente associadas ao
conservadorismo de direita. Lembremos que Hobsbawn é bem mais permeável do que
Adorno à categoria da música ligeira. Para aquele, o rock era inovador em termos musicais:
Como muitas vezes acontece na história das artes, as principais revoluções
artísticaso surgem a partir dos que se intitulam revoluciorios, mas
daqueles que empregam as novidades com propósitos comerciais. Da
mesma forma que os primeiros filmes eram efetivamente mais
revoluciorios do que o cubismo, os empresários do rock transformaram
o cenário musical mais profundamente do que as vanguardas ditas
clássicas ou de free jazz. (HOBSBAWN, 1990, p.20)
São três as inovações do rock, para Hobsbawn: a tecnológica, por meio da qual
utilizam-se largamente os instrumentos elétricos e recursos eletrônicos, além dos técnicos
especializados para a criação musical; a do conceito de “conjunto” e; a rítmica. De modo
geral, é certo que todos os elementos que esse autor imagina serem inovadores serão, para
Adorno, indicadores de que o rock faz parte da categoria de música ligeira, alienante, que
só faz sucesso devido à audição regressiva de ouvintes infantis.
Ora, sugerimos, por nossa vez, que, dadas as devidas proporções, é possível apontar
o cater de protesto no rock nacional dos anos oitenta, especificamente em Faroeste
Caboclo. Primeiramente, essa canção também é incomum em seu contexto, como já
observamos, seja pela extensa duração, seja pela ausência de refrão, seja pelo hibridismo de
61
gêneros que nela se encerram; além disso, sua ancestralidade na literatura de cordel – que,
em certa medida, nos permite incluí-la na categoria do texto único, cujo autor legião (agora
urbana) repete modelos e inova, ao mesmo tempotambém faz dela música de protesto,
sem, necessariamente, expressá-lo declarada e explicitamente como potico. Finalmente, os
roqueiros cujas letras, de algum modo, incomodavam o establishment se viram perseguidos
ou detratados pelos setores mais conservadores da própria indústria cultural que os
promovia, o que pode servir de indicação de que, de certo modo, os protestos inseridos nas
canções, ainda que não fossem abertamente políticos, incomodavam empresários e
consumidores desses setores.
Também é surpreendente o paralelo que se pode traçar entre os primeiros
freqüentadores dos fundos das casas das tias, no Rio de Janeiro, e os jazzistas:
O jazz era originalmente uma sica para ser apreciada pelos menos
intelectuais ou especialistas, pelos menos privilegiados, menos educados
ou experientes, tanto quanto por outras pessoas (...). Ele também se
destinava a ser tocado por pessoas que o houvessem aprendido “de
qualquer maneira”. (HOBSBAWN, 1990, p.272)
Os freqüentadores dos fundos das casas das tias são exatamente os “músicos de
ouvido”, sem formação erudita em música, de talento inegável, de extração popular,
exatamente como os primeiros jazzistas. Para Hobsbawn, esse aspecto reforça o fato de o
jazz não fazer distinção de classe, ser uma música democrática. Interessa-nos perceber que
o rock nacional teve, também, em certa medida essa característica. Não falta nos
depoimentos dos punks, no documentário Botinada, de Gastão Moreira, a constatação de
que o punk rock internacional trazia consigo a vocação clara do “do it yourself”, de que era
possível fazer rock com apenas uma guitarra, um baixo e uma bateria, ao contrário do que
ocorria com os espetáculos megalomaníacos promovidos, por exemplo, mais uma vez, pelo
62
Led Zeppelin. Em termos gerais, no mercado fonográfico mundial, o punk rock foi a
resposta ao esgotamento do rock, contaminado pelo exagero das técnicas musicais de
bandas como essa; no Brasil, essa asfixia ocorria, então, de forma dobrada: se,
internamente, vivia-se à sombra dos grandes nomes da MPB e do Tropicalismo, não se
encontrava, nos exemplos vindos do exterior, até o surgimento das bandas punks,
possibilidade de reproduzir performances tão exageradas, que exigiam, além da
competência técnica, dinheiro para a compra de aparelhagem. O punk rock, com a
agressividade e a crueza do baixo-guitarra-bateria-voz, era a única alternativa viável. E foi,
sem dúvida, sobretudo com as bandas de São Paulo e Brasília, música de protesto
5
. Embora
a classe social de que faziam parte os integrantes da Legião Urbana seja mais privilegiada,
é possível afirmar que a composição de suas canções também era influenciada pelo punk
rock e a idéia do “do it yourself”, dispensando grande erudição musical. Tratava-se de usar
a canção como megafone, nas próprias palavras de Hobsbawn. Sambistas das casas das tias,
jazzistas de primeira geração, punks: todos “músicos de ouvido”, sem formação musical
erudita, com forte apelo junto ao público.
Além disso, o rock e o jazz guardam outra semelhança: ambos são gêneros – de
“música ligeira”, é verdade, se quisermos falar com Adorno – que acabam servindo de
porta-vozes a protestos que, inicialmente, não são políticos, mas acabam por sê-lo:
Tais protestos podem se tornar políticos pelo fato de que as pessoas contra
as quais os amantes de Jazz protestam (por exemplo, pais,es, tios e
tias) detêm pontos de vista convencionais, alguns dos quais políticos
(republicanismo nos EUA, comunismo na URSS, por exemplo). Ou
podem ser rotulados de subversivos simplesmente porque aquelas pessoas
5
Para constatar a veracidade dessa afirmação, basta ouvir às canções de bandas como Inocentes, Cólera,
Garotos Podres, Olho Seco e Ratos de Porão, emo Paulo, e Plebe Rude, Aborto Elétrico e a própria Legião
Urbana, em Brasília. Há, entre as bandas punks de São Paulo, todas oriundas da periferia e das classes médias
baixas, uma certa resistência a entender as bandas de Brasília – de filhos de funcionários públicos – como
bandas efetivamente punks, dada sua origem nas classes médias. É inegável, entretanto, a influência desse
gênero musical junto às composições dos conjuntos brasilienses, sobretudo no que diz respeito ao protesto.
63
contra as quais eles se rebelam não concebem uma rebelião contra
algumas de suas convenções que não se configure um ataque a todos os
seus pontos de vista: uma atitude anti-americana ou anti-soviética.
(HOBSBAWN, 1990, p.273)
Mais uma vez, a semelhança surpreende. Canções aparentemente inofensivas como
Rebelde sem causa, do Ultraje a Rigor – só para citar uma banda aparentemente mais
descomprometida em termos poticos, da mesma época da Legião Urbana – podem ser
entendidas como crítica aos caprichos dos jovens de classe média alta; Faroeste Caboclo
não terá menos força: a alusão ao ministro falastrão, que prometia ajuda aos moradores das
cidades-satélite e não cumpria; a impunidade dos boyzinhos da cidade, que não vão à
cadeia, apesar de roubarem; a aparição do “senhor de alta classe”, que propõe a João que
plante bombas em bancas de jornal e em escolas, em troca de dinheiro; a associação entre o
traficante Jeremias e a pocia, mais degradante para esta do que para aquele. Todos esses
elementos – associados ao sonho de João de “ajudar toda essa gente que só faz sofrer” e às
referências à literatura de cordellevam-nos à conclusão de que Faroeste Caboclo, da
mesma maneira que o jazz, acaba protestando contra a corrupção policial e potica, a
censura e o conservadorismo comportamental no qual ela se sustenta. É o ataque ao
establishment apontado por Lobão: questionar a loquacidade do ministro, a consciência de
classe dos boyzinhos da cidade e a corrupção das elites e da polícia é uma maneira de
veicular mensagens radicalmente opostas ao conservadorismo que ainda vigorava no Brasil.
As afirmações de Hobsbawn não param por aí. O autor sustenta, também, que o jazz
seria uma conquista popular sobre a cultura de minoria” (HOBSBAWN, 1990, p.274). No
Brasil, considerando-se que a MPB e a Tropicália, em um determinado momento, como
vimos, assumiram o papel de “cultura de minoria”, com o público curiosamente chamado
de “elite popular”, em oposição à canção romântica ou brega, pode-se afirmar que o rock
64
assumiu o mesmo papel que o jazz, ainda que por um breve momento e embora tenha sido,
nos anos seguintes, assimilado pela mesma lógica que resistiu a sua ascensão, nos primeiros
anos da década de oitenta. Seguem-se à constatação de que o jazz “produziu um ideal de
arte em sociedade mais amplo e socialmente mais sólido do que a cultura de minoria”
(HOBSBAWN, 1990, p.274), a de que esse gênero musical foi o que mais se aproximou da
de derrubar as fronteiras de classe e a de que as origens do jazz estão fundadas nas classes
oprimidas. Todas essas observações podem assemelhar o rock ao jazz, inclusive porque
esses dois gêneros, como o próprio autor observara na introdução, têm as mesmas origens.
Interessa-nos, contudo, uma observação específica a respeito das aproximações que faz o
autor entre o jazz e a “igreja dos pobres”:
Não é apenas o seu tipo de música que fala diretamente de e para o
homem ou mulhero educado, no qual as pessoas tocam como se fala,
como se ri ou como se chora, apenas de maneira mais contundente; e a
qual, em razão dessa postura direta, é um protesto vivo contra as
ortodoxias culturais e sociais das quais ela tanto difere. É qualquer música
feita especificamente de e para os pobres, por menor que seja a intenção
de um protesto político. Isso bem pode ser ilustrado pelo exemplo de uma
instituição que tem afinidades com a arte e que, aliás, tem a mais profunda
influência na evolução do jazz, a igreja dos pobres”. (Ibid., p.274)
Primeiramente, chama a atenção o fato de a música que fala aos não-educados ser
aquela em que se toca como se fala, como se ri ou como se chora, o que remete à força dos
cancionistas populares brasileiros, isto é, sua capacidade de trazer para o canto elementos
da fala cotidiana, sem deixar que a fugacidade desta comprometa a necessidade de
perenidade daquele, aspecto que investigaremos detidamente adiante. Além disso, também
é digno de nota que o estudioso observe nesse aspecto um protesto latente, ainda que este
não seja declarada e abertamente “potico”. A canção popular brasileira, da qual o rock
nacional faz parte, poderia, pois, estar incluída aí, na categoria da canção que protesta
65
graças a sua estrutura formal básica, ainda que esta tenha sido derivada das necessidades do
mercado fonográfico. Permitimo-nos a seguinte hipótese: o protesto estaria latente nas
canções e se faria notar mais ou menos de acordo com a letra. Eis aí, então, o que
aproximaria Faroeste Caboclo de uma música de protesto.
A “igreja dos pobres”, segundo Hobsbawn (1990, p.279), se opõe à das classes
abastadas, valorizando elementos como “fervor emocional, entusiasmo moral, austeridade”;
o autor observa que os trabalhadores mais pobresadmiravam o homem ou a mulher que
batia forte na Bíblia prometendo sangue e fogo do inferno no estilo ‘gospeliano hot’ do
ator-orador-cantor”. A descrição, embora se refira a seitas protestantes de pobres,
assemelha-se à de práticas religiosas populares brasileiras, eminentemente as que se pode
observar na região Nordeste, em figuras messiânicas como Antônio Conselheiro ou Padre
Cícero, exatamente as personagens às quais os cordelistas dedicam atenção especial e cujas
características parecem repetir-se em Faroeste Caboclo. O aspecto do autor legião urbana
e do presente contínuo, meios férteis de resistência da cultura popular, sem um protesto
potico declarado contra a exploração, parecem aproximar-se das práticas religiosas
descritas por Hobsbawn (1990, p.280):
Tal religião, mesmo quando o se constituía intencionalmente em um
gesto político ou social era um protesto. Cada elemento dela exalta os
caminhos e as aspirações dos pobres, dos ignorantes e oprimidos, dos
trabalhadores, depreciando os padrões dos ricos, dos poderosos, dos
instruídos, das classes superiores.
A leitura acima parece similar à de Pasta e Jerusa Pires Ferreira a respeito da
literatura de cordel, que é bastante revestida da religiosidade popular do Nordeste. O
messianismo de João de Santo Cristo, de ancestralidade em Antônio Conselheiro ou Padre
Cícero, parece todo revestido da gestualidade do ator-orador-cantor norte-americano; a
66
expressão “os caminhos e anseios dos pobres” poderia ser uma espécie de síntese da
história contada em Faroeste Caboclo; da mesma maneira, a depreciação da cultura de elite
residiria na afirmação do texto único do autor legião urbana ao longo do presente contínuo.
A analogia entre o jazz e a literatura popular brasileira em versos e,
conseguintemente, a canção da legião Urbana – parece ainda mais legítima quando
Hobsbawn (1990, p.282) afirma que “as raízes do jazz estão plantadas em meio àqueles
pobres que, embora extremamente oprimidos, são menos dados à organização coletiva e à
conscientização potica, e que encontram a sua ‘liberdade’ se esquivando da opressão e não
fazendo frente a ela”. Ao comentar a resistência do intelectual erudito à literatura de cordel,
José Antônio Pasta Júnior (1992, p.62) afirma que esse comportamento “tem como traço
comum o ver sempre nas manifestações culturais populares uma incapacidade de
transcender minimamente sua determinação (vale dizer sua limitão) no interior da
sociedade de classes”. Trata-se de limitação, na verdade, do próprio intelectual, que tenta,
ao analisar a literatura de cordel, fazê-lo por meio de categorias burguesas de arte. Daí sua
incapacidade de perceber que, embora o discurso não tenha a forma tida de protesto, a
característica formal de texto único no presente contínuo é sintoma radical da resistência às
moldagens que a indústria cultural impõe. O mesmo acontecerá com o jazz:
“Paradoxalmente, o jazz mais simples e menos ‘políticofoi o que resistiu às tentações de
fazer concessões por respeitabilidade e reconhecimento oficial” (HOBSBAWN, 1990,
p.286). O protesto, finalmente, e mais uma vez, não está apenas na letra da canção, mas
também em seu modo de composição e na sua forma.
Acreditamos, pois, que Faroeste Caboclo – seja na forma, seja no conteúdo da letra
– guarda um protesto às condições miseráveis em que se via o retirante que, por meio da
viagem à capital, pretendia transcender a vida que levava no sertão – conquanto esse
67
protesto não se manifeste aberta e declaradamente. Além disso, ainda que muitas de suas
características nos obriguem a classificá-la como música ligeira, segundo Adorno,
hesitamos – para dizer o mínimo – em afirmar que a canção acaba por engendrar a
alienação de seus ouvintes. Ao contrário: as raízes na cultura popular fazem dela canção
por meio da qual se conta a história dos pobres brasileiros, com uma proposta de
resistência à cultura de elite e, por conseqüência, à exploração dos mais pobres. Assim,
embora esteja inserida, em grande medida, na lógica da indústria cultural e seja um produto
bastante rentável dessa indústria, resiste de maneira sui generis a ela, por meio da
associação à cultura popular. Essa associação é entendida, portanto, como resposta ao
desafio de contar aquela história.
Verificaremos, a seguir, as associações da caão à literatura culta no plano da
forma e do conteúdo, isto é, as soluções propostas por outros dois autores brasileiros para
vencer os limites formais de contar a história de nossos pobres.
3. Fabiano e Macabéa: alternativa de futuro
Em “Literatura e subdesenvolvimento” (1989), Antonio Candido aponta, no
Romantismo brasileiro, um aspecto que pode ser estendido à literatura latino-americana
como um todo: a vinculação entre as noções de natureza e pátria, como se a exuberância
daquela fosse expressão do futuro promissor reservado a esta; tal associação teria sido
forjada para compensar o atraso material e cultural em que estava metida a América Latina
como um todo. A consciência desse atraso seria a causa, por sua vez, de um firme propósito
de lutar para alçar a nação à altura que lhe cabia:
68
Ora, dada esta ligação causal “terra bela pátria grande”,o é difícil ver
a repercussão que traria a consciência do subdesenvolvimento como
mudança de perspectiva, que evidenciou a realidade dos solos pobres, das
cnicas arcaicas, da miséria pasmosa das populações, da sua incultura
paralisante. A visão que resulta é pessimista quanto ao presente e
problemática quanto ao futuro, e o único resto de milenarismo da fase
anterior talvez seja a confiança com que se admite que a remoção do
imperialismo traria, por si só, a explosão do progresso. Mas, em geral, não
se trata mais de um ponto de vista passivo. Desprovido de euforia, ele é
agônico e leva à decisão de lutar, pois o traumatismo causado na
consciência pela verificação de quanto o atraso é catastrófico suscita
reformulações políticas. O precedente gigantismo de base paisagística
aparece então na sua essência verdadeira – como construção ideológica
transformada em ilusão compensadora. Daí a disposição de combate que
se alastra pelo continente, tornando a idéia de subdesenvolvimento uma
força propulsora, que dá novo cunho ao tradicional empenho político de
nossos intelectuais. (CANDIDO, 1989, p.142)
A despeito do envelhecimento do termo “subdesenvolvimento, que ainda vigorava
quando Faroeste Caboclo foi às rádios, acreditamos que essa canção seja, no rock nacional,
uma das mais claras manifestações do combate de que fala Antonio Candido, ao final do
trecho acima. Para demonstrar a validade de tal afirmação, seguiremos a reflexão proposta
por esse crítico, verificando o processo que culminou com esse prosito combativo;
observaremos, eno, de modo geral, os reflexos que tal propósito alcança em algumas
obras da literatura brasileira, especialmente em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e A hora
da estrela, de Clarice Lispector que dialogam especialmente com a canção da Legião
Urbana. Os pontos de contato investigados entre as obras serão, por sua vez, nosso ponto de
partida para compreender a permeabilidade da canção brasileira às interferências da
literatura culta, especialmente no que diz respeito ao rock nacional e, especificamente, a
Faroeste Caboclo.
Na segunda parte do texto citado, Antonio Candido levanta a hipótese de que os
autores latino-americanos estejam fadados a ser produtores de bens culturais para as
minorias, já que a alfabetização em suas nações, salvo raríssimas exceções, não é nem
69
nunca foi prioridade pública, o que reduz sensivelmente o público leitor. Associada à
influência da indústria cultural, a hipótese se amplia: ao longo do século XX, a população
rural que se deslocou para as cidades, em lugar de alfabetizar-se e tomar contato com a
literatura erudita, acabou mergulhada em diversos produtos culturais: as canções de rádio,
os programas de televisão, as histórias em quadrinhos e outros, ainda inviveis ao ctico
no ano de escrita do texto, 1969: os videogames, em suas mais diferentes versões, a internet
e a linguagem dos videoclipes, por exemplo, todos produtos de diferentes braços da
indústria cultural, sobretudo norte-americana. O homem rural é convertido à sociedade
urbana, de massas, rapidamente, passando muito longe dos valores que “o homem culto
busca na arte e na literatura” (CANDIDO, 1989, p.145): incutem-se-lhe no espírito
atitudes e idéias que os identifiquem aos interesses poticos e ecomicos dos países onde
foram elaboradas”. O exemplo que o autor dá, nesse mesmo trecho, já seria útil, por si,
para nossa análise: o faroeste norte-americano.
Na explanação a respeito do que chamou de “consciência amena do atraso,
Antonio Candido (1989, p.146) expõe a confiança desmedida que os primeiros autores das
nações independentes da América Latina depositavam na educação: “a instrução traz
automaticamente todos os benefícios que permitem a humanização do homem e o progresso
da sociedade”. São esses mesmos escritores que, cientes da infertilidade cultural de seu
meio, acabam por produzir obras de gosto aristocrático, europeizante, às vezes duvidoso
pelo pedantismo e pela alienação cultural em que estavam imersos. A influência da
literatura da metrópole, segundo o autor, é inevitável; se é verdade que, por um lado, ela
pode tornar-se base para aquela alienação, em que os autores americanos escreviam para
umblico europeu, na maioria das vezes, inexistente ou inexpressivo, de outro, ela pode
servir de base a contribuições significativas dos latino-americanos aos europeus. Contudo,
70
o que nos interessa mais de perto é que “Um estágio fundamental na superação da
dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por
modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores” (CANDIDO,
1989, p.153). Para o crítico, na fase de “consciência do subdesenvolvimento”, os autores
latino-americanos aceitam, sem grandes crises de consciência ou arroubos ingênuos de
patriotismo, a idéia de que recebem influências de culturas estrangeiras; porém,
[...] quanto mais o homem livre que pensa se imbui da realidade trágica do
subdesenvolvimento, mais ele se imbui da aspiração revolucionária – isto
é, o desejo de rejeitar o jugo econômico e político do imperialismo e de
promover em cada país a modificação das estruturas internas, que
alimentam a situação de subdesenvolvimento. (Ibid., p.154)
O momento de consciência do subdesenvolvimento, portanto, está carregado da
vontade de livrar as ex-colônias das interferências econômicas e poticas do imperialismo,
sem rejeitar-lhe as influências artísticas. Não há paradoxo, “tanto assim, que o
reconhecimento da vinculação se associa ao começo da capacidade de inovar no plano da
expressão e ao desígnio de lutar no plano do desenvolvimento econômico e potico” (Ibid.,
p.154). As contribuições e os modelos literários importados deixam de ser motivo de crise
ou vergonha. Mais: autores latino-americanos podem refinar as fórmulas que recebem; o
trecho a seguir, em referência a Vargas Llosa, esclarece essa afinação:
O romancista do país subdesenvolvido recebeu ingredientes que lhe vêm
por empréstimo cultural dos países de que costumamos receber as
rmulas literárias. Mas ajustou-as em profundidade ao seu desígnio, para
representar problemas do seu próprio país, compondo uma fórmula
peculiar. Não há imitação nem reprodução mecânica. Há participação nos
recursos que se tornaram bem comum através do estado de dependência,
contribuindo para fazer deste uma interdependência. (Ibid., p.155)
No período de consciência do subdesenvolvimento, o antigo regionalismo, de sabor
romântico, dado à exploração de regiões inóspitas e personagens estereotipadas, assume
uma nova forma, de grande importância, isto é, “funciona como presciência e depois
71
conscncia da crise, motivando o documentário e, com o sentimento de urgência, o
empenho potico” (CANDIDO, 1989, p.158). É exatamente esse período, carregado de
reação à consciência amena de atraso, que nos interessa aqui; é exatamente nesse período,
no Brasil, que toma forma a figura do retirante, que abandona o sertão nordestino rumo às
capitais.
A exploração do sertanejo como tema para os nossos escritores data do
Romantismo, mas é, principalmente, no século XX que esse brasileiro ganhará vulto na
literatura erudita. Trata-se, segundo Antonio Candido, de uma tentativa bem sucedida de
documentar regiões remotas em que os efeitos do subdesenvolvimento se fazem notar com
mais nitidez, o que facilita o caráter empenhado da nossa literatura. Dizendo o mesmo, de
outra forma: a consciência do subdesenvolvimento encontrará maior expressão em regiões
inóspitas como o sero e em personagens como o sertanejo, já que nelas fica sugerida a
exploração de que são vítimas as populações exploradas.
Vidas Secas, de Graciliano Ramos, desponta como obra fundamental da pré-
consciência do subdesenvolvimento, porque inova no plano da expreso, “sem vertigem da
distância, sem torneios nem duelos, sem cavalhadas nem vaquejadas, sem o centaurismo
que marca os outros” (Ibid., p.159), isto é, sem os exageros das obras regionalistas
românticas. Nesse romance, o autor “leva ao máximo a sua costumeira contenção verbal,
elaborando uma expressão reduzida à elipse, ao monossílabo, aos sintagmas mínimos para
exprimir o sufocamento humano do vaqueiro confinado aos níveis mínimos de
sobrevivência” (Ibid., p. 161), o que se configura, para Antonio Candido, como uma
contribuição do peso da consciência social para o estilo, ou seja, a necessidade de atuar
socialmente por meio da literatura pode dar origem a soluções interessantes para a
representação da desigualdade e da injustiça. Além disso, em Vidas Secas sai de cena o
72
homem simples do meio rural como “elemento refratário ao progresso” (CANDIDO, 1989,
p.160) para dar lugar à concepção de que a degradação não é sua sina, mas um corolário da
exploração econômica.
Depois do período de pré-consciência do subdesenvolvimento, tem lugar um outro,
chamado por Antonio Candido de super-regionalista, em que figuram obras de grande
refinamento técnico, que preservam a dimensão regional sem se prender exclusivamente a
ela, “levando os traços antes pitorescos a se descarnarem e adquirirem universalidade”
(Ibid., p.161). Inclui-se nessa categoria a obra de Clarice Lispector, à qual o crítico faz uma
alusão que, embora breve, abre terreno vasto para nossa análise da obra da escritora:
o se exigirá mais, como antes se exigiria expcita ou implicitamente,
que (...) Clarice Lispector explore o vocabulário sertanejo. Mas não se
deixará igualmente de reconhecer que, escrevendo com requinte e
superando o naturalismo acadêmico, Guimarães Rosa, Juan Rulfo, Vargas
Llosa praticam em sua obras, no todo ou em parte, tanto quanto Cortazar
ou Clarice Lispector no universo dos valores urbanos, uma espécie nova
de literatura, que ainda se articula de modo transfigurador com o próprio
material daquilo que foi um dia o nativismo. (Ibid., p.162)
Ora, a “nova literatura” praticada por Clarice Lispector, em diálogo direto com
Vidas Secas e Faroeste Caboclo, está em A hora da estrela, obra em que, segundo Vilma
Arêas (2005, p.81), a autora procura um modo verossímil de falar da pobreza – intento que,
como vimos, já podia ser observado no romance de Graciliano Ramos, como forma de
escancarar a exploração. O texto tem lugar especial na obra clariceana: foi o último a ser
publicado – o que o aproxima muito do período de composição de Faroeste Caboclo, a
segunda metade da década de 70 – depois de uma guinada na obra da autora, como
esclarece o trecho a seguir:
Agora, após o salto – sentido como constrangedor – de A via crucis do
corpo, e querendo também falar da pobreza, Clarice mergulha de modo
radical na penúria da linguagem, sem medo das coisas que não brilham
(“nada cintilará”, promete), construindo o texto segundo o despreparo e o
desamparo da retirante alagoana. (ARÊAS, 2005, p.88)
73
Assim, em Vidas Secas, de maneira geral, a economia da linguagem pode ser
entendida como tentativa de expressão da miséria pela qual passavam Fabiano e sua
família, os retirantes que, ao final do texto, dirigem-se à cidade grande; era o momento,
segundo Antonio Candido, de pré-consciência do subdesenvolvimento, em que tentativas
como essa deixam sugerida a intenção de revolucionar o país. Nesse mesmo período, é
abandonada a romantização do sertanejo, evitando imagens heróicas ou pitorescas. Depois,
ocorre a “nova florada novelística”, em que está inserida a obra de Clarice Lispector:
aproveitando a substância do nativismo, os autores o alçavam à universalidade. Daí as
aflições de Rodrigo SM, o narrador de Clarice, a respeito da composição de A hora da
estrela, cuja estrutura foge à linearidade e desnuda os expedientes utilizados na construção
da narrativa – aflições de autores de romances modernos, acuados (ou inspirados), em
países como o Brasil, pelo fato de terem de falar da pobreza. Na obra de Clarice Lispector,
a dilaceração do gênero do romance – a qual insere sua obra nos dilemas mais recentes da
ficção – está combinada a um tema supostamente infértil para esse gênero: a história de
uma retirante alagoana na cidade do Rio de Janeiro. Eis um exemplo claro da capacidade
que autores latino-americanos têm de emprestar aos estrangeiros fórmulas literárias e
recriá-las segundo a realidade local. Finalmente, em Faroeste Caboclo, é possível observar
uma alternativa aos dilemas da escrita em prosa: semiticos que o identifiquem no tempo
ou no espaço, o narrador da história de João de Santo Cristo está imerso na tradição popular
imemorial, em que a noção de autoria – instituição por excelência da arte burguesa –
desaparece na figura do autor legião, agora urbana. Desaparece o dilema que se observou
em Vidas Secas e em A hora da estrela a respeito da linguagem: dando espaço à tradição
74
popular em versos, não é necessário preocupar-se com um modo verossímil de falar da
pobreza. Estaria, pois, liquidada a questão da linguagem.
Não nos esqueçamos, entretanto, de que a Legião Urbana não produz romances, mas
canções de rock nacional. Fazendo parte da tradição da canção popular brasileira, como
vimos, é permeável à tradição da literatura erudita, mas guarda raízes na indústria
fonográfica, origem inevitável de toda a canção popular brasileira, o que significa que,
embora tendo, em tese, resolvido a questão da linguagem proposta acima, está, por outro
lado, completamente eivada de modelos e formas associados à indústria cultural. E, em A
hora da estrela, observaremos que a falência do romance está diretamente associada à
interferência de produtos dessa instria. Esse emaranhado de tradições pode ser
sintetizado da seguinte maneira: herdando da literatura erudita o dilema de falar da pobreza
como maneira de inovar no plano da expressão e de desvelar aos ouvintes o país que
percebia como atrasado, e tentando resolvê-lo por meio da letra associada à tradição
popular, Renato Russo viu-se às voltas com um novo problema, isto é, os limites que lhe
impunha a ancestralidade da canção brasileira com a indústria cultural, além das
interferências do rock.
Desse modo, o diálogo de Faroeste Caboclo com esses textos da literatura erudita
se estabelece por meio, primeiramente, da tentativa de formular uma linguagem verossímil
de falar da pobreza, para que a literatura e a canção possam, no Brasil, ser agentes das
mudanças sociais. Trata-se da consciência do subdesenvolvimento proposta por Antonio
Candido, que terá implicações nas nossas formas literárias. Ainda que as tenhamos herdado
dos países que nos infligem o imperialismo, nossos autores dão a elas, por meio da tradição
literária local, matizes específicos, em que se embatem a cultura erudita, a cultura popular e
a indústria cultural. Daí as propostas de Graciliano Ramos – a economia da linguagem,
75
como representação da miséria do sertão –, de Clarice Lispector – a dilaceração do
romance, como reveladora da dificuldade de falar da pobreza – e de Renato Russo – a
utilização da tradição da literatura de cordel na canção popular, como alternativa àquelas
dificuldades, mas que se defronta com os obstáculos da massificação da obra devido à
pasteurização imposta pela indústria cultural.
À inovação no plano da expressão associa-se o degnio de lutar no plano
econômico e potico, segundo Antonio Candido (1989). A tentativa de encontrar a forma
por meio da qual é verossímil falar da pobreza manifesta-se, portanto, nas obras em análise,
num tema também recorrente em todas elas: a busca por um amanhã diferente do hoje, isto
é, por aquilo que, neste texto, chamar-se-á a alternativa de futuro, que norteia, de certo
modo, os trajetos da família de Fabiano, em Vidas secas, de Graciliano Ramos, de
Macabéa, em A hora da estrela, de Clarice Lispector, e de João de Santo Cristo, em
Faroeste Caboclo, de Renato Russo. Com efeito, todas essas personagens, em maior ou
menor medida, parecem, numa primeira análise, estar à cata de ascensão social, o que lhes
garantiria, por sua vez, a condição de sujeito, que não lhes é dada na classe social a que
pertencem. Como se observará, no início de Vidas Secas, Fabiano se diz bicho e cabra
raras vezes homem –, acredita estar fadado à sina de retirante e prepara os filhos para que
levem uma vida idêntica à que ele teve; o protagonista carrega em seu nome o anonimato, a
ausência de identidade, a condição supostamente eterna, imutável, de semelhança com a
bolandeira de seu Tomás, o culto proprietário de terras que é lembrado ao longo de todo o
romance. Ao final, Fabiano planeja, graças às intervenções verbais da mulher, subverter a
suposta predestinação dos filhos ao sofrimento por meio da aquisição de cultura letrada, na
cidade, isto é, formula-se a possibilidade de experimentar uma alternativa de futuro, que
garantiria não só a ascensão social mas também a elevação à categoria de homem, de sujeito
76
dotado de capacidade de escolha, agente do próprio destino, que foge ao anonimato dos
fabianos e dos meninos mais velhos e mais novos, sem nome nem identidade.
Observaremos que, associada à cultura letrada, a alternativa de futuro forjada por Fabiano
apenas repete o modelo de dominação de que ele é refém. Também Macabéa – que não
tinha nome quando nascera no sertão, que “Nem se dava conta de que vivia numa sociedade
técnica onde ela era um parafuso dispensável” (LISPECTOR, 1998, p.29), que idolatra os
astros de Hollywood, que gosta de Coca-Cola –, também ela experimentará, ao final de A
hora da estrela, breves momentos da epifania de ter um futuro, de poder vislumbrar um
amanhã diferente do hoje, de poder se fazer a pergunta “quem sou eu?”, finalmente, de
experimentar a maravilha de sentir-se sujeito de si próprio e do próprio destino, mas será
fulminada pela lógica de mercado que a alienou por toda a vida. A alternativa proposta pela
Legião Urbana no plano formal – isto é, a utilização de elementos da cultura popular na
letra da canção, ao lado de gêneros musicais norte-americanos, como o country-folk e o
rock –, ganha corpo, na narrativa, com a formulação de que é possível forjar a alternativa
de futuro também por meio de produtos da indústria cultural. Na canção, João vai à cidade
à cata das “coisas que ele via na televisão”, e, para ele, a festa de rock existe para libertar.
Embora tenha crescido em meio às influências da industria cultural, João foi à Brasília
“falar com o presidente para ajudar toda essa gente que só faz sofrer”, isto é, não perdeu o
intuito de, em alguma medida, modificar o ps.
No Brasil, a exclusão social, de que são vítimas Fabiano e sua família, Macabéa e
João de Santo Cristo, acaba por tomar ao indivíduo sua capacidade de formular para si um
projeto diferente dos já traçados pela ideologia dominante, isto é, sonega-se a ele a
alternativa de futuro, em que ele transcenda sua condição de mera peça, parte integrante da
lógica da exploração do trabalho e parta para uma postura ativa, de sujeito de seu destino:
77
O planejamento social às vezes declarado e às vezes ocultado pelo
discurso privilegiado extra-historicamente consiste, então, em se
contrapor ao presente o passado como mais forte e, sobretudo, em fazer
com que o futuro se para com ele. O que se quer impedir é que do
presente surja um futuro radicalmente diferente. O pedaço de passado a
ser conservado é então imobilizado, estaticizado, des-dialietizado,
justamente porque se quer subtraí-lo à mudança. (ROSSI-LANDI, 1985,
p.152)
Em Vidas Secas, observar-se-á que o texto se encerra com essa formulação, isto é,
com as personagens tomando as rédeas de seu destino e se dirigindo à cidade, onde
acreditavam – se daria o plano de ascensão social pela cultura letrada que seria encontrada
nas cidades; em A hora da estrela, encontra-se o resultado da viagem dos retirantes aos
centros urbanos: a repetição da exclusão social e o seqüestro da identidade – e, por
conseguinte, da ascensão social e da alternativa de futuro – por meio da exploração do
trabalho e da alienação imposta pelos produtos da indústria cultural. Finalmente, na canção
da Legião Urbana, retoma-se a alternativa de futuro, por meio da recuperação de elementos
cultos e populares da literatura – isto é, um regresso às tradições do passado –, combinados
a outros, da instria cultural – ou seja, manifestações culturais que se utilizam de
tecnologias do presente – entendidos como instrumentos para a formulação daquela
alternativa.
3.1 Vidas Secas e alternativa de futuro na metrópole
Antonio Candido (1999), em Ficção e confissão, cristalizou o ponto de partida de
qualquer análise que se pretenda empreender a respeito do romance Vidas Secas, de
Graciliano Ramos. São bastante conhecidas as afirmações a respeito da estrutura
desmontável do romance – inspirada na qualificação “romance desmontável”, que Rubem
78
Braga lhe atribuiu –, que, com sua estrutura circular – já que a história da família de
Fabiano começa e termina com uma fuga –, desemboca na conclusão a respeito da
determinação geográfica e social da vida das personagens. É partindo desses pressupostos
que se encontrarão os pontos de contato entre a trajetória da família de Fabiano, a de
Macabéa e a de João de Santo Cristo.
Uma leitura cuidadosa do romance leva à constatação de que, embora se vejam
fadadas à condição de retirantes, as personagens Fabiano e sinha Vitória, ainda que de
forma difusa e dilda ao longo de todo o texto, planejam para seus filhos uma vida
diferente da que levam, determinada pela seca e pela desigualdade social. Capítulo a
capítulo, esboçam, aos poucos, esse projeto, que, acreditam, será alcançado por meio da
aquisição da cultura letrada que fazia de seu Tomás da Bolandeira um homem respeitado e
rico:
Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando.
Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano,
criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam
depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam escolas, seriam
diferentes deles. (RAMOS, 1992, p.126)
Ou ainda, nos períodos finais:
E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia
de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas diceis e
necessárias. (Ibid., p.126)
Transferir-se para a cidade, abrir mão da única tradição de que Fabiano faz parte (a
ocupação de vaqueiro), adquirir a cultura letrada por meio da escola (que trará prestígio e
ascensão social): eis o projeto de Fabiano e sinha Vitória. O final do romance está aberto a
múltiplas interpretações. De um lado, parece legítimo o sonho dos dois pais, já que o acesso
à cultura letrada parece mesmo estar relacionado à ascensão social e à superação da
condição subumana em que vivem as personagens de Vidas Secas; de outro, o projeto
79
parece fadado ao fracasso, porque é conhecido o destino da maioria dos retirantes nas
cidades de São Paulo e Rio de Janeiro: a vida na favela, a exploração do trabalho, as filas
nos hospitais, a péssima qualidade de ensino das escolas públicas, a criminalidade. Além
disso, deixem-se de lado, por um instante, a alienação e a ausência de identidade, versões
novas do anonimato, ligadas à indústria cultural, que serão analisadas adiante, em A hora
da estrela. Atente-se, primeiramente, para o processo de formulação do projeto de ascensão
social em Vidas secas.
Já nas primeiras páginas do romance, Fabiano se revela ciente de sua posição na
sociedade:
Pensou na falia, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa,
para bem dizer não se diferençava muito da bolandeira de seu Tomás.
Agora, deitado, apertava a barriga e batia os dentes. Que fim teria levado
a bolandeira de seu Tomás? (RAMOS, 1992, p.14)
A “contenção verbal” de Graciliano Ramos – no trecho acima, por exemplo,
revelada na ausência de conjunção entre as duas orações do primeiro período e na
predileção pela coordenação em detrimento da subordinão – é, de fato, como queria
Antonio Candido, expressão da miséria que vitima Fabiano, desnudando a estreiteza de
perspectiva das personagens. Fabiano é coisa, como a bolandeira – roda dentada do
engenho de açúcar, movida por animais – representação da sua condição social, de sua vida
e da própria estrutura do romance. Não faltarão, também, alusões à similaridade entre o
protagonista e os animais, condicionado que está aos desígnios dos proprietários de terra e
às condições adversas do sertão, que o levam a migrar quando assoma a seca, num círculo
vicioso que determina, também, a estrutura do texto. Fabiano é parte integrante, peça
dispensável da sociedade rural do sertão.
80
Se é a bolandeira a representação da vida de Fabiano, que é vaqueiro como seus
ancestrais, Seu Tomás da Bolandeira – o possuidor desse objeto – representa os
proprietários da terra, a classe dominante que reduz a vida de Fabiano às condições de
animal. É exatamente esse encadeamento simlico que deixará entrever que há, sobretudo
em Fabiano e sinha Vitória, a intenção de superação da vida que levam. Já no final do
primeiro capítulo, com a conhecida recorrência da flexão verbal no futuro do pretérito do
indicativo, diante da propriedade abandonada que servirá de abrigo e futura moradia,
assinala-se a esperança de reverter a condição de retirante na expectativa de apegar-se à
terra, de criar raízes:
Seu Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava parada. E ele,
Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia porquê, mas era. Uma, duas,
três, havia mais de cinco estrelas no u. A lua estava cercada de um halo
cor de leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado
voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta.
Chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos,
vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, sinha Vitória vestiria saias
de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria
toda verde. (RAMOS, 1992, p.15)
No capítulo “Fabiano”, o protagonista aparenta, mais uma vez, ter ciência a respeito
do lugar que ocupa na sociedade: depois de chamar-se “homem” – os “homens” se
caracterizam por ter raízes, pela propriedade da terra –, reduz-se à condição de “cabra” –
por ocupar-se em cuidar das coisas dos outros, das terras dos outros – e “bicho” – pela
capacidade de sobrevivência. Ao final, aceita sua condição: “provavelmente não seria
homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês
na fazenda alheia” (Ibid., p. 24). Surge aqui, contudo, a primeira reflexão a respeito da
sabedoria de seu Tomás da Bolandeira, toda adquirida em livros e jornais, ou seja, a cultura
letrada, que Fabiano e sua família não têm e que se traduz na capacidade de comunicação
81
verbal, deficiência de Fabiano e seus familiares ao longo de todo o romance, enfrentada
apenas no último capítulo – exatamente aquele em que sonham em superar as mazelas da
vida no sertão. Aqueles que podem ser chamados “homens” – e que, portanto, não são
fabianos, ou zés-ninguém, ao contrário: são seres providos de identidade e autoridade – são
proprietários de terra, homens cultos, que “estragam os olhos nos livros”, o que não faz
parte da vida de homens como Fabiano; sua sina é errar pelo sertão, cuidar das coisas dos
outros, descobrir-se para os proprietários. Não há, em suma, para ele, alternativa de futuro:
Fabiano está tão mergulhado na vida que lhe foi dada que sequer vislumbra a possibilidade
de subvertê-la para melhorá-la. Não há sujeito que escolhe o próprio destino; não pode
haver presente e futuro diferentes do passado.
A questão da cultura letrada ressurge quando Fabiano está preso, no capítulo
“Cadeia”:
Vivia tão agarrado aos bichos... Nunca vira uma escola. Por isso não
conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio
daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão
endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la.
Impossível, só sabia lidar com bichos. (RAMOS, 1992, p.36)
Trata-se da consciência a respeito da relevância da cultura letrada para evitar
situações como o encarceramento injusto. A última frase do capítulo exala pessimismo,
retomando a questão que será reavaliada ao final do romance: “Os meninos eram uns
brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam
pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo” (Ibid., p.38). O soldado
amarelo, representação direta do poder repressivo das classes dominantes, pisa, maltrata,
machuca para garantir o poder do “patrão invisível” sobre os filhos de Fabiano; o
encarceramento injusto reforça, portanto, a condição estática de Fabiano, que não pensa
82
poder revoltar-se, a não ser por meio da aquisição de cultura letrada, ou seja, para ele, a
única possibilidade de reversão de sua condição seria igualar-se aos patrões, adquirir a
cultura que eles têm. Não há – melhor: Fabiano não consegue formular – uma outra
alternativa. Mesmo tentando livrar-se de sua condição, o protagonista só consegue fazê-lo
segundo a lógica de seus dominadores.
Em “sinha Vitória”, sinha Vitória deseja desesperadamente uma cama como a de
seu Tomás da Bolandeira, o que se pode interpretar como desejo de ascensão social para
gozar os bens materiais de classes mais abastadas; em “O menino mais novo”, o pequeno
monta um bode para impressionar Baleia e o irmão mais velho, imitando o pai, o que
parece sugerir que a sina de Fabiano já está incutida na criança; em “O menino mais
velho”, contudo, relata-se a dúvida do garoto mais velho a respeito do significado da
palavra “inferno”, que ele considera bonita; o garoto apanha porque quer saber mais: “Não
acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir
com sinha Vitória. Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem” (RAMOS, 1992,
p.60).
O garoto tudo questiona, tudo quer saber, ao contrário do pequeno, que quer repetir
as ações do pai. É notável, também, a capacidade do mais velho em recriar a realidade
segundo suas lembranças e impressões, quando relata que o mundo fora cruel, quando
havia seca. A capacidade anatica associada aos questionamentos, além da maturidade,
pode sinalizar certa vocação para o letramento, que vai ao encontro dos planos dos pais no
último catulo. De modo geral, os três catulos brevemente citados acima apontam para o
problema da eterna repetição da condição em que vivem as personagens e as possibilidades
de subvertê-la: os desejos de sinha Vitória por bens materiais podem ser um primeiro
83
movimento rumo à formulação do plano de ir à cidade; um dos meninos parece ser mais
afeito do que o outro à aquisição da cultura letrada.
Do ponto de vista formal, além do discurso indireto livre e da contenção verbal, são
marcantes,
[...] para figurar o isolamento mental dos personagens, [...] cortes nítidos e
o eterno retorno da narrativa ao mesmo ponto (sonhos recorrentes,
obsessões, devaneios que se repetem, eternas sínteses ou recapitulações
das ocorrências, feitas por todos os personagens), retomando aquela
espécie de “calvário” dos seres subjugados pelo latindio. (ARÊAS,
2005, p.95)
A autora aponta, logo a seguir, que “a onipotência do narrador existe como feição
delirante de sua impossibilidade de falar disso”. Isso é exatamente a miséria do sertão. O
truque para alcançar a verossimilhança narrativa é, pois, esse eterno bater de tecla nas
alucinações das personagens – expressões de seu cotidiano árido – por meio do discurso
indireto livre, que, simultaneamente, pende para a isenção de perspectiva e para a simpatia
pelas personagens.
Em “Festa”, por exemplo, apresenta-se a incapacidade de Fabiano e sinha Vitória de
adaptarem-se à cidade, expressa no desconforto com as roupas tipicamente urbanas e com a
aglomeração na igreja:
Agorao podia virar-se: mãos e braços ravam-lhe o corpo. Lembrou-
se da surra que levara e da noite passada na cadeia. A sensação que
experimentava o diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como
se asos e os braços da multio fossem agar-lo, subjugá-lo, espremê-
lo num canto da parede.(RAMOS, 1992, p.75).
Eis aí um devaneio algo obsessivo de Fabiano, em que o protagonista recupera,
ainda que de forma fragmentada, a lembrança da cadeia. Para ele, o convívio com a
multidão é insuportável e aprisionador.
84
Em “Contas”, a ignorância de Fabiano e sinha Vitória compromete o sustento da
casa e Fabiano resigna-se mais uma vez à sua “sina”:
Tinha obrigação de trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia seu
lugar. Bem. Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver
nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe
dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia. Tinha
vindo ao mundo para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar
cercas de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô também. E
para tráso existia família. Cortar mandacaru, ensebar látegos aquilo
estava no sangue. Conformava-se,o pretendia mais nada. Se lhe dessem
o que era dele, estava certo.(RAMOS, 1992, p.96).
Mais uma vez, assoma a conformação ao destino inevitável – ilustrado, ao fundo,
pela sujeição aos desígnios naturais da seca – que será subvertida ao final do romance;
repetem-se, acima, os elementos apontados anteriormente: o discurso indireto livre como
recurso para expressar o calvário cotidiano em que está mergulhada a personagem e,
conseqüentemente, a impossibilidade de formular uma alternativa de futuro.
O catulo O soldado amarelo” é fundamental para apresentar ao leitor o Fabiano
que irá à cidade à cata de educação para os filhos. É nesse capítulo que o protagonista
resiste à tentação de assassinar o soldado que o humilhara na cidade:
Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro indivíduo, muito
diferente do Fabiano que levantava poeira nas salas de dança. Um Fabiano
bom para agüentar facão no lombo e dormir na cadeia.(Ibid., p.106)
Fabiano não sabe a própria idade, mas se imagina mudado por ela, amolecido,
fragilizado pelo tempo. Embora, aparentemente, a mudança indique que Fabiano está
acabado”, na verdade o que ocorre é que se operam nele as mudanças que o farão planejar
a ida à cidade; o desprezo ao soldado amarelo faz que o protagonista de Vidas Secas se
sinta homem, afinal resistira aos impulsos animais de vingança:
Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava
acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava
85
e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada
que vadiava na feira e insultava os pobres!o se inutilizava,o valia a
pena inutilizar-se. Guardava sua força.(RAMOS, 1992, p.107)
A hipótese de que a cidade é que fazia Fabiano enfraquecer-se, formulada por ele
próprio, no episódio em que é preso, parece ser verdadeira: ali, no mato, em seu ambiente,
o soldado é fraco e medroso; Fabiano é forte e se embevece por isso. É esse processo que o
levará à cidade.
EmO mundo coberto de penas”, Fabiano decide que ele e sua família vão
alimentar-se com as aves das arribações, isto é, elas serão os suprimentos das viagens que
empreenderão para fugir à estiagem. Trata-se, pois, de uma superação da condição de meras
timas da seca. Se são as arribações as culpadas pela seca, comê-las significa vencê-la,
superá-la. Mais: significa superar a submissão aos desígnios naturais; o próximo passo é a
pretensão de superar os sociais.
Com efeito, no último capítulo, “Fuga”, sinha Vitória sente, durante a viagem no
meio da catinga, uma vontade incontrolável de falar, o que lhe garante, figuradamente, a
condição de ser humano e não de animal, superando a dificuldade enfrentada pela família
em todo o romance: “Se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando,
morrendo” (Ibid., p.119). É ela a responsável pelos planos futuros que acabam por encantar
Fabiano:
O vaqueiro ensombrava-se com a idéia de que se dirigia a terras onde
talvezo houvesse gado para tratar. Sinha Vitória tentou sossegá-lo
dizendo que ele poderia entregar-se a outras ocupações... (Ibid., p.120)
.
“Entregar-se a outras ocupações” é a formulação verbal da alternativa de futuro. Ou,
mais ainda:
86
Sinha Vitória insistiu e dominou-o. Por que haveriam de ser sempre
desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no
mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos?
Fabiano respondeu que não podiam. – O mundo é grande.(RAMOS, 1992,
p.121).
O mundo é grande”: eis a ampliação dos horizontes por meio da cidade e da
educação, como se observará nos últimos parágrafos do texto. Antes deles, quando planeja
o futuro dos filhos, Vitória rejeita a idéia de que eles sejam vaqueiros como o pai: “Fixar-
se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes”. (Ibid., p.122).
O levantamento de trechos feito acima parece demonstrar que, embora no romance
coexistam as estruturas fragmentária – indicadora, segundo Antonio Candido, de que, para
as personagens, “a existência é de fato uma seqüência de quadros aparentemente
autônomos, mas contraditórios, cuja unidade só existe para o demiurgo que os animou”
(CANDIDO, 1999, p.48) – e circular – reveladora de que “a vida do sertanejo se organiza,
do berço à sepultura, a modo de retorno perpétuo” (Ibid., p.48) –, verifica-se, nas principais
personagens de Vidas Secas, o desejo de superar as condições adversas em que vivem;
pretendem fazê-lo oferecendo a seus filhos a vida na cidade, o acesso à escola e à cultura
letrada de seu Tomás da Bolandeira, cujo corolário seria a ascensão social. Essa superação,
afinal, alçaria a família de Fabiano à condição de homens, não de cabras ou de bichos,
longe da perspectiva de serem peças acessórias de uma engrenagem social que é
aparentemente imutável. Fabiano e seus filhos, na cidade, teriam identidade – teriam nomes
– porque seriam sujeitos ativos, porque conduziriam o próprio destino e fugiriam às
determinações naturais – a seca – e sociais – a exclusão. Como veremos, a resposta de
Clarice Lispector a essa expectativa, contudo, não é animadora.
87
Do ponto de vista formal, em Vidas Secas, segundo Vilma Arêas (2005), por meio
do discurso indireto livre, alcança-se o afastamento do narrador – que descreve
minuciosamente os devaneios das personagens – e sua aproximação, o que leva à
objetividade da análise social e à verossimilhança da narrativa. O desafio de Graciliano
Ramos, em poucas palavras, era descrever a vida dos futuros retirantes fugindo aos
modelos regionalistas de romance – em que abundavam referências épicas ou cavaleirescas,
como em O sertanejo, de José de Alencar, ou aspectos pitorescos, equívocos da
subliteratura sertaneja do começo do século XX (CANDIDO, 1989, p.159). O autor
enfrentou-o por meio de uma pesquisa psicológica, em que ocorre uma “deseroização do
assunto” (ARÊAS, op.cit., p.97). O resultado, como sabemos, seria, para Antonio Candido,
a pré-consciência do subdesenvolvimento, em cujo pano de fundo estava o firme prosito
de, por meio da inovação formal, alcançar a revolão social, também identificada por
Vilma Arêas (Ibid., p.91).
3.2 Teatro popular, indústria cultural e a falência da ficção em A hora da estrela
A hora da estrela, último texto de Clarice Lispector publicado em vida, parece
responder asperamente às expectativas de Fabiano e sinha Vitória. Apenas a título de
provocação, poder-se-ia considerar esse romance uma espécie de “continuação” ou
“seqüência” de Vidas Secas, bem ao gosto hollywoodiano, como se tivéssemos, na
literatura brasileira culta, uma trilogia referente à saga dos retirantes: Vidas Secas (em que
se relata a vida no sertão, suas mazelas e a idéia de superá-las, com a mudança para a
cidade), Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (em que se narra a viagem do
sertão à cidade) e A hora da estrela (cujo objeto é a vida dos retirantes que se instalaram
88
nas metrópoles). Vilma Arêas (2005, p.76) alude brevemente às semelhanças entre os dois
últimos, marcando que se assemelham, por exemplo, pela proximidade ao ciclo pastoril ou
Auto de Natal, que, por sua vez, lembra o bumba-meu-boi e os reisados de Alagoas. Esse
ciclo é religioso e profano, alternando gêneros, com interlúdios cômicos. Ambas as obras
têm a morte como tema, com a ressalva de que, em A hora da estrela, a viagem conduz à
morte, curiosamente figurada na estrela, ao contrário do que ocorre no texto de João Cabral
de Melo Neto, em que, ao final, Severino alcança a “explosão da vida”.
A vida de Macabéa, nordestina de Alagoas que vive no Rio de Janeiro, distancia-se
diametralmente do que planejavam Fabiano e sinha Vitória para seus filhos. A protagonista
clariceana não adquire cultura na escola, que não freqüenta, mas na Rádio Relógio, de
forma fragmentária e pouco consistente; suas condições de vida não são diferentes daquelas
deixadas para trás pela família de Fabiano: Macabéa amontoa-se, em um dormirio na
região portuária, com mais quatro moradoras que mal conhece, todas balconistas nas Lojas
Americanas. O sonho de adquirir cultura, prestígio e bens materiais similares aos de seu
Tomás da Bolandeira dá lugar a uma vida quase miserável e totalmente alienada, sem
perspectiva de um futuro diferente do presente, de um amanhã diferente do hoje. É apenas
nas últimas páginas do texto que Macabéa vislumbrará a possibilidade de superação da
realidade em que vive, violentamente interrompida por um atropelamento que lhe ceifa a
vida e que parece representar-lhe o aprisionamento à lógica do trabalho quase forçado e da
alienação, da ausência de identidade. Em outras palavras: no lugar da cultura letrada, que
promove socialmente, o que se oferece aos retirantes são os produtos estandardizados da
indústria cultural exatamente como apontava Antonio Candido (1989) – veiculados pelos
meios de comunicação de massas, que os encarcera na eterna repetição, similar à vivida por
Fabiano, e que os assemelha aos animais da bolandeira de seu Tomás. Conquanto tenha
89
mudado o espaço geográfico do sertão para a cidade; embora não se trabalhe na terra, mas
nos escritórios e nas Lojas Americanas; ainda que tenham sido trocados os escassos
recursos alimentares da catinga pelo cachorro-quente e pela coca-cola; por mais que tenham
ocorrido todas essas alterações circunstanciais, permanece idêntica a condição de vida do
retirante, agravada pelo desenvolvimento tecnológico que ele encontra ao chegar a
metrópole. Tendo deixado para trás os escassos bens materiais e toda a cultura popular que
poderia cultivar e de que poderia ser transmissor, como forma de resistência à cultura
dominante, o retirante não encontra, nas grandes cidades do Sudeste, a vida melhor com
que sonhava, mas uma outra, ainda pior, em que sua identidade é anulada pela lógica do
mercado, de que é peça dispensável.
Já vimos que Antonio Candido (1989, p.162) via na obra de Clarice Lispector, ainda
antes da publicação de A hora da estrela, “uma espécie de nova literatura, que ainda se
articula de modo transfigurador com o próprio material daquilo que foi um dia o
nativismo”; no mesmo sentido, Vilma Arêas (2005, p.75) afirma que “já se observou que a
obra de Lispector contém elementos (a oposição entre província e metpole, o seco e o
úmido) que fazem dela [...] uma ‘transubstanciação do regional’”. E também sabemos
que a semelhança entre Vidas Secas e A hora da estrela está no desafio de falar da pobreza
de modo verossímil. É preciso investigar no texto clariceano os elementos formais de que a
autora lança mão para responder a ele, o que nos permitirá verificar as implicações da
literatura erudita e da literatura popular em Faroeste Caboclo, nos moldes apontados por
Wisnik (2004). Para tanto, serão utilizados os textos de Vilma Arêas (2005) e Berta
Waldman (1992).
De maneira geral, em A hora da estrela, podemos observar as crises em que está
mergulhada a ficção contemporânea. Waldman (1992, p.103) afirma, em sua conclusão a
90
respeito da obra, que “a mais significativa contribuição de Clarice para a literatura
brasileira é ter tornado mais nossa língua mais afinada, mais flexível, mais expressiva,
além de ter levantado, no Brasil, as questões da “diluição dos gêneros, a quebra do tempo
linear e do espaço físico, o desnudamento contínuo do processo narrativo e dos problemas
da ficção”. Mais uma vez: a esses dilemas da ficção contemporânea, articula-se uma crise
típica da narrativa brasileira, a verossimilhança para falar da pobreza. Daí a solução que
investigaremos adiante.
Para analisá-la, é preciso, primeiramente, perguntar-se “quem é Rodrigo SM?”,
narrador do texto. “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a
escrever”, ele avisa na página 11, logo no terceiro parágrafo do texto; sua aflição é a
existência do “direito ao grito”, e é por isso que ele grita. Incomoda-o a existência de
[...] milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num
quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa.o notam sequer que
o facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam.
Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a
quem. Esse quem será que existe? (LISPECTOR, 1998, p.14)
É possível identificar aí a revolta pelas condições de vida de moças nordestinas,
como aquela em cujo rosto o autor vira, de relance, um sentimento de perdição, nas ruas do
Rio de Janeiro (Ibid., p.12). Para escrever sobre essas condições e exercer seu “direito ao
grito”, há, ainda, um outro dilema: a tentação de usar “termos suculentos”, “adjetivos
esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios” (Ibid., p.15). A questão da
verossimilhança surge, nas linhas do próprio texto:Tenho então que falar simples para
captar a sua delicada e vaga existência”. Trata-se, segundo Berta Waldman (1992, p.100),
de um rompimento das regras do jogo do jogo da ficção, isto é,
Ela [Clarice Lispector] tira a máscara de romancista e desloca-se para
dentro do texto quando se declara idêntica ao narrador. Elao quer mais
91
disfarçar-se por trás do texto ao mesmo tempo que desnuda a literatura
como literatura porque indica os artifícios de que se utiliza para captar o
real. Mas o fato de desnudar-se não retira da literatura seu status de
representação, mimese, espaço vicário da realidade. A angústia que fica é
a de como, dentro desses limites inerentes ao fazer literário, recuperar o
sangue quente do real?
A pergunta proposta pela estudiosa está exatamente nos recursos de linguagem
utilizados por Clarice Lispector para compor o texto, em que é transgredida a forma
tradicional do romance: “a recusa aos florilégios da escrita, à preocupação de fazer estilo, e
a imposição do improviso verbal, semelhante à técnica musical da variação, é o modo
privilegiado de transformar a linguagem em exercício verbal” (WALDMAN, 1992, p.101).
Esses recursos estão intimamente associados à revolta pelas condições de vida da
nordestina, como se pode observar no trecho a seguir:
E eis que fiquei agora receoso quando pus palavras sobre a nordestina. E a
pergunta é: como escrevo? Verifico que escrevo de ouvido assim como
aprendi inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever? sou
um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz
de mim de algum modo um desonesto. E só minto na hora exata da
mentira. Mas quando escrevo não minto. Que mais? Sim,o tenho classe
social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro
esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a
baixa nunca vem a mim. (LISPECTOR, 1998, p.19)
Escrever de ouvido, assim como aprender as línguas estrangeiras, é abandonar os
moldes tradicionais do romance, deixá-lo fluir num ritmo muito próximo ao da oralidade
(analogamente ao que ocorre com o cancionista, como veremos); a posição social do
narrador, embora confortável do ponto de vista financeiro, faz dele um mentiroso, daí a
necessidade, apontada por Berta Waldman, de desnudar os processos de crião do texto.
Rejeitando as formas tradicionais da ficção, Rodrigo SM torna-se um marginalizado: a
classe alta, cultora daquelas formas, o como um monstro esquisito; a classe dia,
posição social ambígua por excelência, teme que aquelas formas – e o protesto nelas
92
embutido, como os que existem na literatura popular – frustrem suas ambições de ascensão
social. Evidentemente, as baixas não podem aproximar-se do narrador: é exatamente esse o
desafio do texto, isto é, falar delas sem pertencer a elas.
Qual é a solução formal de Clarice Lispector, afinal? Vilma Arêas (2005, p.81)
propõe que:
A inacessibilidade dos bens materiais e culturais, a condição de pária
social, faz dela [Macabéa] um ser inacabado pela impossibilidade de
desenvolvimento adequado. Em suma, Macabéa não é um ser humanizado
em sentido profundo, e essa é a fratura que o livro procura expor. A sua é
uma condição de iminência ou latência, de habitante do limiar, e a única
forma capaz de dar conta desse aparente absurdo foi encontrada por
Clarice na tradão da arte popular, que transfigura essa mesma
descontinuidadevive dela – e cuja estrutura sustenta o livro.
Da mesma forma que em Faroeste Caboclo, o mergulho na arte popular é a
alternativa para contar a história do retirante. Em A hora da estrela, segundo Arêas (Ibid.,
p.99), o universo circense de Fellini – mais uma vez, as obras analisadas associam-se ao
cinema – mantém relações surpreendentes com os folguedos dramáticos brasileiros: “Esse é
o sopro que movimenta as folhas desse brinquedo, os elementos dessa novela”. E ainda
mais, em um fragmento que impressiona, se consideradas as diferenças entre a canção e o
romance, pela proximidade com a análise que empreenderemos a respeito da canção da
Legião Urbana:
Ora, à semelhança do teatro circense, o jogo cênico de A hora da estrela
utiliza de forma ostensiva máscaras e trejeitos, improvisação, delírio
verbal, material remendado (lugares-comuns colados no esmalte do
discurso “literário), enfim, “a mesma rutilância das roupas, de material
pobríssimo, mas incrível de invenções” que Marlyse Meyer observou a
propósito das daas dramáticas populares que estão na base de Morte e
vida Severina. São formasbridas em que o sagrado e o profano se
misturam, em que deboche e lirismo o vizinhos. Meyer anota ainda que
o teatro do bumba-meu-boi, por exemplo, embora mantenha semelhaas
a olho nu com a commedia dell’arte, por conta da presença do
“Arriliquim” e de outras máscaras, na verdade guarda com aquele teatro
popular italiano uma “parecença mais profunda, estrutural”: sua ligão
com a pobreza. (Ibid., p.100)
93
As máscaras, o discurso, e a “remenda” do teatro popular ganham uma nova forma
no “esmalte” do discurso literário em Clarice Lispector, forrado de lugares-comuns da
linguagem, fugindo aos clichês da tradição do romance a respeito dos pobres. O hibridismo
em que o sagrado e o profano, o deboche e o lirismo se combinam se expande: em A hora
da estrela, há interferências do cinema de Fellini, em tecnicolor, ou da música erudita de
Schönberg, na dedicatória, ou do “rufar enfático de um tambor batido por um soldado”, que
lembra a música de um espetáculo dirigido ao “respeitável público”. Da mesma forma, em
Faroeste Caboclo, a tradição híbrida da canção popular urbana carrega a canção de clichês
de cinema norte-americano, de temas da literatura de cordel e da literatura erudita
brasileiras, colados” no esmalte dos ritmos da música ligeira, associada à indústria
cultural. Repetimos: a pretensão parece ser a mesma; diferem as tentativas. Como pano de
fundo a muitas das polêmicas que analisamos até agora – o jazz como música de protesto,
sua associação aos pobres e às igrejas dos pobres, protestando sem politizar as próprias
letras; a literatura de cordel como protesto, resistindo às formas dominantes de arte, sejam
elas da burguesia ou da instria cultural, por meio do texto único e do autor legião –,
emerge, mais uma vez, no fragmento acima, “a ligação com a pobreza”. Com efeito, parece
ser ela – ou a tentativa de aproximar-se dela – a linha determinante das obras analisadas até
aqui.
No texto de Vilma Arêas, a partir do fragmento acima transcrito, sobram exemplos
daquela associação de A hora da estrela ao teatro popular: as “momices e caretas” do
narrador (2005, p.100); a alternância de comicidade e dor; o papel de Macabéa como a
grande estrela do circo, clown cujo espetáculo culmina com a própria morte; a comparação
dessa personagem com Gelsomina ou Cabiria, de Fellini; a descrição primorosa e detalhada
94
da maquilagem do narrador e de Macabéa; as analogias entre a ambiidade do clown e a
de Macabéa, figuras assexuadas, e entre o texto de Clarice e o circo, em que, nas palavras
de Fellini (Arêas, 2005, p. 103), há “esse clima tanto de jogo como de execução, de festa e
tragédia, de graça e loucura, que é o circo”; as “tiradas”, em que se destacam o humor e a
sátira social. Enfim, uma profusão de exemplos em que se finca “a pobreza desse texto
singular, construindo-se A hora da estrela na linha oscilante – alto trapézio– que o ameaça
constantemente de ruína ou fracasso literário” (Ibid., p. 108). Para a autora da análise,
[...] a estrutura circense, antinaturalista por excelência, permite que se fale
da miséria urbana brasileira pela intermediação de uma forma fria, isto é,
de efeitos calculados e bastante dependente da perícia de desempenho. Ao
mesmo tempo, essa perícia é o que rege o thos que ra o
melodratico. Qualquer outra questão fica submissa à sua lei formal,
embora todas elas brilhem além da superfície impolida [...] que costura
todos esses nossos tristes destros: a questão da pobreza, a questão da
arte. (Ibid., p.108)
Eis o princípio formal que rege a condução de A hora da estrela. Como exemplo,
tomem-se as brincadeiras, os trechos engraçados, as palhaçadas – como aquele em que
Olímpico confunde o nome de Macabéa com “morféia”, isto é, lepra, doença que atinge
gravemente as classes populares do Norte e Nordeste, o que faz a piada perder a graça –
que deixam entrever o páthos tragimico da obra, em que se confundem sua graça e sua
crítica social. Eis, portanto, a resposta de Clarice Lispector ao desafio de falar da pobreza,
que contracena com a que observamos em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Devemos a
comparação entre as duas obras a Vilma Arêas, no texto já exaustivamente citado. Nossa
contribuição será, apenas, levantar a hipótese de que haja, em Faroeste Caboclo, uma nova
resposta ao mesmo desafio.
Além das observações a respeito do princípio formal que rege A hora da estrela,
chama a atenção, também, a afirmação de Rodrigo SM a respeito do patrocínio do livro, a
95
qual remete diretamente à associação entre a impossibilidade de formular a alternativa de
futuro, de um lado, e a lógica de mercado, alimentada pela indústria cultural, de outro:
Também esqueci de dizer que o registro que em breve vai ter que começar
– poiso aento a pressão dos fatos o registro que em breve vai ter
que começar é escrito sob o patrocínio do refrigerante mais popular do
mundo e que nem por isso me paga nada, refrigerante esse espalhado por
todos os países. Als foi ele quem patrocinou o último terremoto em
Guatemala. Apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de unhas, de sabão
Aristolino e plástico mastigado. Tudo isso o impede que todos o amem
com servilidade e subserviência. Também porque – e vou dizer agora uma
coisa difícil que só eu entendo – porque essa bebida que tem coca é hoje.
Ela é um meio da pessoa atualizar-se e pisar na hora presente.
(LISPECTOR, 1998, p.23)
Esse trecho encadeia-se a outro, que se relaciona ao primeiro por meio da referência
ao tempo:
Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim,
que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o
dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das
coisas neste momento. (Ibid., p.18)
O eterno repetir dos dias alude à afirmação, feita anteriormente, de que a lógica do
trabalho engoliria Macabéa de maneira tal que ela seria incapaz de formular para si uma
alternativa de futuro. Curioso, contudo, é o fato de o narrador inserir-se na mesma lógica: o
dia de amanhã também se, para ele, um hoje. Lido o primeiro fragmento, formula-se a
seguinte hipótese: o fato de Rodrigo SM não auferir ganhos com o patrocínio da Coca-Cola
– “o refrigerante mais popular do mundo” – representaria a inserção inerente do narrador e
de sua obra na lógica de mercado e a ciência de que, nela, a arte se torna produto-
mercadoria. É essa mesma lógica que o iguala a Macabéa e que orienta elementos
fundamentais para que se entenda o texto de Clarice Lispector como espécie de “resposta”
ao sonho de Fabiano e sinha Vitória; é essa a lógica que aliena Macabéa e que a impede,
antes da consulta a Madama Carlota, de formular uma alternativa de futuro. Macabéa,
96
assim como Fabiano e sua família, não se entende como agente do próprio destino nem tem
identidade. No texto clariceano, a personagem, esvaziada de si mesma, é literalmente
preenchida pela exploração do trabalho e pelos ícones do consumismo: “Só depois é que
pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola” (LISPECTOR,
1998, p.36). Ou ainda:
Mas o que ela queria mesmo sero era a altiva Greta Garbo cuja trágica
sensualidade estava em pedestal solitário. O que ela queria, como eu já
disse, era parecer com Marylin. (Ibid., p.64)
A alternativa de futuro sugerida nas linhas finais de Vidas Secas não se concretizará
para os retirantes que se instalam na cidade grande; eles não alcançarão, em sua grande
maioria, o domínio das palavras difíceis” que lhes garantiriam o eventual acesso a uma
vida diversa da que levavam no sertão. Na verdade, a cultura que Macabéa obterá na cidade
se resume aos anúncios que coleciona (Ibid., p.38.), às gotas esparsas e desconexas de
sabedoria da Rádio Relógio e à idealização de um ícone do cinema; todos produtos da
indústria cultural e dos meios de comunicação de massas, que tomam a Macabéa a
faculdade de reconhecer sua condição de sujeito, de ser humano, sua identidade. Para o
retirante, como ela, resta um hoje eterno, sem perspectiva de um amanhã diferente.
O resultado clariceano é, entretanto, ainda mais cruel, ainda que ponteado pelas
“brincadeiras” apontadas por Arêas. Depois da consulta a Madama Carlota, Macabéa
vislumbrará uma alternativa de futuro, mas será simbolicamente atropelada por um dos
maiores “ideais de consumo” do mundo moderno, um automóvel da marca Mercedez, como
a sugerir que a lógica de mercado atropelará qualquer um que vislumbre a possibilidade de
transcendê-la. Aqui, rigorosamente, cabe o alerta de Antonio Candido a respeito da
influência da indústria cultural, que incute, no homem rural das populações latino-
97
americanas, interesses poticos e ecomicos sobretudo norte-americanos, já observado
anteriormente. Desejosa de futuro, de transcender o eterno hoje em que se encontrava,
Macabéa, simbolicamente, rompe com toda a lógica de mercado, daí sua violenta sentença
de morte.
O texto é ainda mais explícito, quando SM afirma que Macabéa “Nem se dava conta
de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável” (LISPECTOR,
1998, p.29). A alusão à lógica de mercado – que, por meio do trabalho, aliena – é direta. A
idéia de que Macabéa está rendida às influências da indústria cultural é recorrente no texto,
embora não apareça de forma organizada. Os fragmentos espalham-se:
Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um
dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de
estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de
cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral
se ouvem agudos sibilantes. (Ibid., p.29)
O fragmento acima contém um exemplo claro do prinpio formal descrito por
Arêas: Macabéa morreria como atriz, “estrela”, o que alude à figura do clown, que adquire
tom sinistro na constatação de que o brilho viria na hora da morte, inversão da trajetória
descrita em Morte e vida severina – mas muito similar à de João de Santo Cristo. O canto
coral de agudos sibilantes é imagem musical que reforça o hibridismo da obra, também
fundado na alusão ao cinema. O desejo de ser estrela – na lógica de mercado, uma
celebridade, um ser humano transmutado em produto – também pode, pois, ser entendido
como forma de aludir aos produtos da indústria cultural que encantam Macabéa. O mesmo
se observa num diálogo com Olímpico:
Sabe o que eu mais queria na vida? Pois era ser artista de cinema. Só vou
ao cinema no dia em que o chefe me paga. Eu escolho cinema poeira, sai
mais barato. Adoro as artistas. Sabe que a Marylin era toda cor-de-rosa?
(Ibid., p.53).
98
Nota-se, no fragmento, o “culto ao astro” identificado por Walter Benjamin
em “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. Para ele, a tecnologia da
indústria cinematográfica transformava o ator em peça, em parte integrante da produção de
um filme: “Nesse mercado dentro do qual não vende apenas a sua força de trabalho, mas
também a sua pele e seus cabelos, seu coração e seus rins, quando encerra um determinado
trabalho ele fica nas mesmas condições de qualquer produto fabricado” (BENJAMIN,
1980, p.17). Conquanto goze do caráter de “celebridade”, o astro é ainda produto-
mercadoria, inserido na mesma lógica em que estão Macabéa e Rodrigo SM. Já vimos que,
para Benjamin, o cinema pode transformar a percepção das massas de maneira tal que a
diversão por ele oferecida possa mobilizá-las; não parece ser essa a perspectiva apresentada
em A hora da estrela. O texto clariceano parece dialogar, nesse aspecto, com o
posicionamento de Horkheimer e Adorno (1995, p.128), na constatação de que a diversão
do cinema é “doença incurável”, extensão direta da exploração do trabalho: “Ao processo
de trabalho na fábrica e no escritório se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio”.
Mais, logo adiante: “O prazer acaba por se congelar no aborrecimento, porquanto, para
continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de se mover
rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais”. O esvaziamento identitário de
Macabéa é, afinal, resultado de influxos da indústria cultural. Não pode haver, pois,
alternativa de futuro, já que o espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento
próprio”. Alcançaremos a conclusão de que, para Clarice Lispector e Renato Russo, a
alternativa para a arte, como já vimos, está na inovação formal da obra, que resistiria à
lógica de mercado, protestaria, exerceria o direito ao grito, se estivesse amarrada à cultura
popular.
99
A perda da cultura popular associada ao sertão será, portanto, de importância
fundamental para entender a alienação de Macabéa, cujo contato com a história de Carlos
Magno, por exemplo, ocorre por meio da dio Relógio, meio de comunicação diretamente
associado à indústria cultural, e não por meio da literatura de cordel, como seria plausível
para uma nordestina:
E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas
de minuto para dar anúncios comerciais – ela adorava anúncios. Era rádio
perfeita pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos
dos quais talvez algum dia viesse precisar saber. Foi assim que aprendeu
que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus.
Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação. Mas nunca
se sabe, quem espera sempre alcança. (LISPECTOR, 1998, p.37)
O dito popular “quem espera sempre alcança” é um dos muitos lugares-comuns que
estão colados, por meio doesmalte” do discurso literário clariceano, à condução do texto
por meio do teatro popular. Trata-se de uma outra espécie de texto único, mas que, na obra,
ganha outros matizes: é também pobreza de linguagem, que remete aos dilemas literários
do narrador e às limitações da personagem, afinal é possível afirmar que aquele dito induz à
passividade, como se a pretensão fosse expor a alienação de Macabéa. A incapacidade de
aplicação, de historicização e de contextualização dos dados obtidos no rádio é
representativa da fragmentação do conhecimento imposta a Macabéa pelos produtos da
indústria cultural. É plausível a hitese de que, se tivesse ouvido a história de Carlos
Magno no sertão, na voz de um cantador, Macabéa poderia, talvez, ser detentora e
transmissora da cultura popular, que resiste às formas dominantes de cultura, como vimos.
Na classificação de Manuel Diegues Júnior (1986, p. 54-55), o episódio de Carlos Magno
ou dos Doze Pares da França insere-se nos “temas tradicionais”, aos quais ainda se somam
os “fatos circunstanciais ou acontecidos” e as “cantorias e pelejas”; os dois primeiros
100
subdividem-se em diversos outros itens, apenas para ilustrar a enormidade de temas que se
encontram na literatura popular a que Macabéa não teve acesso. Ela não pôde ouvir os
relatos dos poetas populares a respeito de Lampião, Padre Cícero, ou Getúlio Vargas; não
teve acesso às histórias de Carlos Magno, dos Doze Pares da França ou do Cavaleiro
Roldão; nunca soube quem foi Pedro Malasartes; desconheceu as trágicas descrições de
secas que assolaram o Nordeste; não teve, enfim, contato com nenhum elemento da cultura
popular que lhe pudesse oferecer, ao menos, a perspectiva de mundo dos poetas do cordel,
em cuja obra convivem a tradição e a crítica à sociedade global:
Nesta literatura popular, que se produz no Nordeste brasileiro, dá-se como
não podia deixar de ser uma démarche arcaizante em vários níveis,
preservadora de uma série de valores já postos de lado pela sociedade
global, enquanto que aí se realizam também os seus padrões. Acontece
que ela avança e se vanguardiza, no sentido em que procede
constantemente a um processo de crítica a esta sociedade, mesmo sem o
pretender, conscientemente. (FERREIRA, 1993, p.13)
Toda a concepção de mundo que está por trás da tradição do cordel – e sua
perspectiva de resistência à cultura dominante, por meio do texto único e do autor legião –
não foi absorvida por Macabéa, o que acaba por mergulhá-la na mais profunda alienação:
As formas objetivadas de sua existência [de Macabéa] como ser-no-
mundo, os liames que ela estabelece com os sistemas de cultura, com a
organização social, com a História, são tão tênues que se pode dizer que
ela vive num limbo impessoal. O mundo é fora dela e ela é fora dela
também porque não se pensa. (WALDMAN, 1992, p.94)
No lugar da tradição popular, as “gotas” da Rádio Relógiomigalhas de sabedoria
veiculadas por um meio de comunicação de massas – é que são responsáveis pela
“formação” da personagem clariceana, situada fora do mundo e de si mesma.
Um dos treze títulos do livro, História lacrimogênica de cordel, também alude ao
compromisso da obra com a tradição popular. Para Arêas (2005, p. 89), a palavra
“lacrimonica” já é, por si só, uma violação da linguagem e do registro culto, com a
101
função clara e realista de expor odespreparo e o desamparo” da retirante. Uma “história
de cordel que causa lágrimas” corresponde à recorrente afirmação de Rodrigo SM a
respeito da tristeza da trajetória de Macabéa. Mais além: o gás lacrimogênico é aquele que
impede a visão, porque leva ao choro. Talvez a tristeza que as trajetórias de retirantes
causam nos leitores não os deixe observar que, no texto de Clarice Lispector, há uma
história popular de significado esvaziado, já que a designação “história de cordel” está
corrompida pelo adjetivo “lacrimogênica”, em referência ao gás industrial, utilizado, por
exemplo, nas cidades, para inibir manifestações populares e coletivas, outra vez sufocadas e
embaçadas pela lógica do trabalho e do capital.
Com efeito, Macabéa
Às vezes lembrava-se de uma assustadora caão de roda de mãos dadas
ela só ouvia sem participar porque a tia a queria para varrer o chão. As
meninas de cabelos ondulados com laço de fita cor-de-rosa. ‘Quero uma
de vossas filhas de marré-marré-deci.’ ‘Escolhei a qual quiser de marré.’
A música era como um fantasma pálido como uma rosa que é louca de
beleza mas mortal: pálida e mortal a ma era hoje o fantasma suave e
terrificante de uma infância sem bola nem boneca. Então costumava fingir
que corria pelos corredores de boneca na mão atrás de uma bola e rindo
muito. A gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e só a
imaginação maléfica a trazia para o presente, saudade do que poderia ter
sido e não foi. (Eu bem avisei que era literatura de cordel, embora eu me
recuse a ter qualquer piedade.). (LISPECTOR, 1998, p.32-33)
Sinaliza-se mais uma vez, no fragmento acima, a anulação da cultura popular, que
dá lugar à lógica do trabalho, primeiro pela dominação da tia, depois pelo emprego de
datilógrafa. Macabéa teve “uma infância sem bola nem boneca”, sem brincadeiras de roda,
sem o contato com as rimas populares infantis; desde a mais tenra idade, não teve campo
onde pudesse fundar as linhas gerais de sua identidade. Criança sem infância, que deu lugar
ao trabalho; nordestina sem cordel, que deu lugar aos filmes de Hollywood: adulta sem
102
alternativa de futuro, que deu lugar às repetições maquinais do emprego de datilógrafa, às
gotas da Rádio Relógio e a um hoje interminável.
O sertão dá lugar, no trecho abaixo, à lógica do mercado, que emerge nos termos
destacados. Macabéa está mesmo fora do mundo e de si mesma:
Uma vez por outra tinha a sorte de ouvir de madrugada um galo cantar a
vida e ela se lembrava nostálgica do sertão. Onde caberia um galo a
cocoricar naquelas paragens ressequidas de artigos por atacado de
exportação e importação? (...)Bem sei que é assustador sair de si mesmo,
mas tudo o que é novo assusta. Embora a moça anônima da história seja
tão antiga que podia ser uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca
tinha tido floração. Minto: ela era capim. (LISPECTOR, 1998, p.30, grifo
nosso)
Com a personalidade fundada nos ícones da indústria cultural – a Coca-Cola como
alimentação, os artistas de cinema e os anúncios como objetos de idolatria, e as
informações esparsas e escassas da Rádio Relógio como fonte de informação –, com a
distorção e, posteriormente, aniquilação da cultura popular, difusa na lembrança, e com o
cotidiano orientado pela lógica do trabalho, de que é mera peça dispensável, Macabéa tem a
personalidade esvaziada, comparada a um povo bíblico – “Macabéa, a alagoana, é feita de
matéria rala, quase imponderável. Persistente, tem o heroísmo de seus irmãos bíblicos, os
macabeus” (WALDMAN, 1992, p.93) – e ao capim insistente que nasce nas sarjetas das
ruas e que ela observa no momento da morte, depois que Madama Carlota anunciara-lhe
que teria um futuro diferente. O resultado já conhecemos: a alternativa de futuro, em que a
retirante sonha em transcender a lógica do trabalho, leva Macabéa à aniquilação, atropelada
por um dos maiores ícones do consumismo. A morte é o encontro de Macabéa consigo
própria, encontro que se adiava devido à falta de alternativa de futuro. Já desde as primeiras
páginas do romance sinalizava-se que faltava à protagonista esse encontro:
103
Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir
vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar ‘quem sou eu?’ cairia
estatelada e em cheio no chão. É que ‘quem sou eu?’ provoca
necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é
incompleto. (LISPECTOR, 1998, p.15)
O fragmento relaciona-se ao dilema de Fabiano, em Vidas Secas, quanto à própria
identidade. É evidente que, para ele, os filhos deveriam ser vaqueiros ou cabras, já que o
protagonista do romance não conseguia vislumbrar a alternativa de futuro. É exatamente
esse o tema que se observa no fragmento acima: a consciência a respeito de si traz
necessidade, e a necessidade faria Macabéa cair estatelada. É, de fato, o que ocorrerá no
final do texto. E ainda antes: “Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu?
Assustou-se tanto que parou completamente de pensar” (Ibid., p.32)
Na chegada ao endereço de Madama Carlota, Macabéa observa o capim, a que será
comparada depois:
O apartamento térreo ficava na esquina de um beco e entre as pedras do
chão crescia capim – ela o notou porque sempre notava o que era pequeno
e insignificante. Pensou vagamente enquanto tocava a campainha da
porta: capim é tão fácil e simples. Tinha pensamentos gratuitos e soltos
porque embora à toa possuía muita liberdade interior. (Ibid., p.72)
Depois do atropelamento:
Ficou inerme no canto da rua, talvez descansando das emoções, e viu
entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra
esperaa humana. Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia da minha vida:
nasci.(...)
Voltando ao capim. Para tal exígua criatura chamada Macabéa a grande
natureza se dava apenas em forma de capim de sarjeta – se lhe fosse dado
o mar grosso ou picos altos de montanhas, sua alma, ainda mais virgem
que o corpo, se alucinaria e explodir-se-lhe-ia o organismo, braços pra,
intestino pra lá, cabeça rolando redonda e oca a seus pés – como se
desmonta um manequim de cera.
Prestou de repente um pouco de atenção para si mesma. O que estava
acontecendo era um surdo terremoto? Tinha-se aberto em fendas a terra de
Alagoas. Fixava, só por fixar, o capim. Capim na grande Cidade do Rio de
Janeiro. À toa. Quem sabe se Macabéa teria alguma vez sentido que
104
também ela era à-toa na cidade inconquistável. (LISPECTOR, 1998, p.81-
82)
A semelhança entre Macabéa e o capim que brota entre as pedras remete, mais uma
vez, à questão da identidade frustrada de Macabéa, que não conheceu a cultura popular. A
alagoana imagina que o dia que visitara Madama Carlota é, também, o primeiro dia de sua
vida porque todos os dias anteriores haviam sido iguais, inserida que estava na lógica do
hoje interminável. O vislumbre da alternativa de futuro faz Macabéa reinterpretar toda a
vida que levou. A pergunta “Quem sou eu?” faz-se, pois, necessária. E é exatamente por
isso que a personagem “prestou de repente um pouco de atenção para si mesma” e percebeu
que era semelhante ao capim que cresce à toa na cidade do Rio de Janeiro, cidade
“inconquistável” para os que não conseguem imaginar “mar grosso ou picos altos de
montanhas”; nascida capim”, isto é, fruto das fendas da terra de Alagoas, que acabara por
“fixar-se” no Rio de Janeiro, Macabéa não consegue que se lhe dê a amplitude dos
horizontes do mar ou das montanhas – afinal sonegou-se-lhe a cultura popular, em Alagoas;
ofereceu-se-lhe, apenas, o cinema e a Rádio Relógio, no Rio de Janeiro; em outras palavras,
parece fadada a “vegetar” na cidade grande (lembremo-nos de que, quando decide falar, ao
final de Vidas Secas, já tomada da alternativa de futuro, Sinha Vitória, afirma que “Se
ficasse calada, seria como um pé de mandacaru”), sem que possa alçar-se a outras
perspectivas. Conhecer-se, em suma, significaria reconhecer o lugar que ocupa na cidade –
a sarjeta, a região portria, a base da pirâmide social – e tentar transcendê-lo. No momento
em que nota que sua vida “era uma miséria” (Ibid., p.79), é atropelada pela lógica do
consumo, a que também está submetido Rodrigo SM, como vimos.
A existência de Macabéa só ocorre de fato quando os transeuntes anônimos da rua a
espiam (Ibid., p.81); depois de abraçar-se, acomodando o corpo em posição fetal, Macabéa
105
“Agarrava-se a um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar: eu sou, eu sou,
eu sou”
(LISPECTOR, 1998, p.84). O esvaziamento de que fora tima ao longo de sua vida
se encerra na hora da morte, “hora de estrela de cinema de Macabéa morrer” (Ibid., p.83). É
nessa hora que ela pronuncia a frase “Quanto ao futuro”, sem conclusão, que remete à
incompletude e à possibilidade – ainda que remota – de condução do próprio destino.
Essa multiplicidade de elementos parece sugerir, no Brasil, a falência das culturas
erudita e popular frente à indústria cultural, exatamente como alertara Antonio Candido a
respeito da populações rurais que se dirigem à cidade: abandonada a cultura popular, sem
acesso à erudita, restam-lhes os produtos da indústria cultural, que as mergulham no vazio
identitário experimentado por Macabéa. O capim que cresce na sarjeta pode ser entendido
como representação do retirante, dos “homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória,
os dois meninos”, além da própria protagonista de clariceana, metidos todos na eterna
repetição, no ambiente rural e no urbano. Humilhados pela vida no sertão – que faz deles
objetos como a bolandeira ou animais como as aves que fogem à seca –, eles buscam na
cidade a cultura letrada, a escolaridade, que promove os donos de terras, mas encontram
apenas os produtos da indústria cultural, que os esvazia, que lhes rouba a faculdade de
sonhar com um outro amanhã. Em lugar de ampliar-lhes as perspectivas, esses produtos
inculcam-lhes atitudes e idéias que os identifiquem aos interesses poticos e ecomicos”
(CANDIDO, 1989, p.145) estrangeiros, aliena-os da realidade e de si mesmos. No sertão,
os meninos de Vidas Secas não tinham nome, da mesma forma que Macabéa, até um ano de
idade; fica a impressão de que a falta de identidade, o esvaziamento do sujeito, a falta da
pergunta “quem sou eu?” eram determinações das relações sociais; na cidade, o mesmo
continua ocorrendo, com a diferença de que, nela, o acesso aos meios de comunicação de
massas parece revestir essas determinações de certo glamour hollywoodiano, como se as
106
fórmulas narrativas fáceis do cinema norte-americano pudessem transformar a história de
uma retirante nordestina na história dos self-made men, com final feliz e ascensão social
pelo trabalho. Impossível contar essa história, como vimos, na tradição do romance; é
preciso, pois, subverter-lhe a forma, de modo a exercer o direito ao grito, expressão
clariceana para o combate proposto por Antonio Candido (1989).
Privados do acesso à cultura erudita, distantes do universo da cultura popular, os
retirantes mergulham nos sonhos fáceis da alienação engendrada pelos produtos da
indústria cultural: esse é o trajeto temático que se inicia em Vidas Secas e se conclui em A
hora da estrela. Do ponto de vista formal, como resposta ao desafio de falar da pobreza,
por meio da arte, está, de um lado, a pesquisa psicológica de Graciliano Ramos e, de outro,
o resgate da cultura popular, em A hora da estrela. Resta, então, avaliar a solução proposta
por Renato Russo e a Legião Urbana, em Faroeste Caboclo.
107
4. Faroeste Caboclo: a saga de um herói brasileiro no Planalto Central
4.1 Análise de canções
O referencial teórico que será utilizado para a análise de Faroeste Caboclo é a obra
O cancionista: composição de canções no Brasil, de Luiz Tatit (2002). Aqui, serão
expostos alguns rápidos conceitos que terão grande utilidade na análise da canção da
Legião Urbana. A intenção não é – aliás, passa longe disso – esgotar o manancial teórico
riquíssimo formulado por Tatit para o exame da canção popular brasileira. Trata-se, apenas,
de lançar mão de breves instrumentos que enriqueceram sensivelmente a investigação de
Faroeste Caboclo, sem os quais este trabalho estaria, semvida, incompleto.
Para Tatit, o cancionista “mais parece um malabarista” (Ibid., p.09), pela sua
capacidade singular de equilibrar a melodia no texto e o texto na melodia. Na canção, “não
importa tanto o que é dito, mas a maneira de dizer” (Ibid., p.09). Ao expor, no primeiro
capítulo do livro, o que é a dicção do cancionista, Tatit identifica uma série de
procedimentos por meio dos quais as unidades e conjuntos de sons comem o todo a que
se chama canção. Investiguemos rapidamente alguns deles.
Primeiramente, é preciso saber que, no universo da canção, os elementos
lingüísticos verbais, em certa medida, distam de seu uso cotidiano, ao mesmo tempo que,
de certo modo, os preservam. Trata-se de um equilíbrio tênue entre o que é canto e o que é
fala. Cria-se, quase que magicamente, uma obra perene com os recursos efêmeros da fala
cotidiana:
E na junção da seqüência melódica com as unidades lingüísticas, ponto
nevrálgico da tensividade, o cancionista tem sempre um gesto oral
elegante, no sentido de aparar as arestas e eliminar os resíduos que
poderiam quebrar a naturalidade da canção. Seu recurso maior é o
108
processo entoativo que estende a fala ao canto. Ou, numa orientação mais
rigorosa, que produz a fala no canto. (TATIT, 2002, p.09)
Estabelece-se, dentro desse equilíbrio entre a fala e o canto – ou, se quisermos,
dessa extensão que vai de um a outro –, o prinpio da tensividade, em que o fluxo connuo
da melodia adapta-se às vogais, mas sofre o atrito das consoantes, o que estabelece a
oposição continuidade versus segmentação. Desse princípio e dessa oposição utiliza-se o
compositor no ato da criação da canção, em que há dois procedimentos básicos: o da
passionalização e o da tematização. Como observaremos, em Faroeste Caboclo,
predomina esta em detrimento daquela, o que, curiosamente, conferirá aos trechos
passionais uma ênfase maior, muitortil para análise.
Na passionalização, procedimento associado à continuidade,
[...] ao investir na continuidade melódica, no prolongamento das vogais, o
autor está modalizando todo o percurso da canção com o /ser/ e com os
estados passivos da paixão [...]. Suas tensões internas são transferidas para
a emissão alongada das freqüências e para as amplas oscilações de
tessituras. (Ibid., p.22)
Trata-se do procedimento cujos efeitos são o desvio da tensão para o nível
psíquico; a lentidão e continuidade da melodia; o convite ao ouvinte à inão; a sugestão de
uma vivência introspectiva desse estado. A passionalização é, finalmente, o campo sonoro
propício às tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um
objeto de desejo” (Ibid., p.23). Na canção de que trataremos, apenas a título de exemplo, o
alongamento da vogal da sílaba final de “viajar”, na segunda estrofe, sugere o desejo de
João de ir à cidade, a formulação de sua perspectiva de futuro, seu objeto de desejo.
Na tematização, por outro lado, “Ao investir na segmentação, nos ataques
consonantais, o autor age sob a influência do /fazer/, convertendo suas tensões internas em
impulsos somáticos fundados na subdivisão dos valores rítmicos, na marcação doa acentos
109
e na recorrência” (TATIT, 2002, p.22). A tematização é o campo sonoro procio às
tematizações lingüísticas ou às construções de personagens ou de valores universais. Pode-
se exaltar a pátria, a gente, a música; pode-se produzir gêneros dançantes ou inserir-se nos
da moda, de que é exemplo o rock; pode-se, ainda, por meio desse procedimento, imprimir
à canção marcas de regionalismo. Por meio desse processo, conta-se, na letra Faroeste
Caboclo, a trajetória de João de Santo Cristo, entremeada pela diversidade de gêneros
musicais como o country-folk, o reggae e o rock. Cada um deles, como veremos, ganhará
um significado para compor o todo da canção.
O projeto geral do cancionista, para Tatit, é o revezamento dos efeitos de
passionalização e tematização, somado à figurativização. Ao comparar um ator que ensaia
o texto de modo a declará-lo, diante do público, de forma natural, com o cancionista, o
estudioso afirma que
[...] as entoações são cuidadosamente programadas para conduzir com
naturalidade o texto e fazer do tempo de sua execução um momento vivo
e vivido fisicamente pelo cancionista.
Esse processo geral de programação entoativa da melodia e de
estabelecimento coloquial do texto pode ser denominado figurativização
por sugerir ao ouvinte verdadeiras cenas (ou figuras) enunciativas.
(Ibid.,
p.21)
Trata-se do processo por meio do qual, na canção, se obtém o efeito de verdade
enunciativa, isto é, “a impressão de que a linha melódica poderia ser uma inflexão entoativa
da linguagem verbal” (Ibid., p.20). Para identificá-lo, contamos com os dêiticos –
elementos lingüísticos que presentificam o tempo e o espaço da voz que canta – e os
tonemas – “inflexões que finalizam as frases entoativas, definindo o ponto nevlgico de
sua significação” (Ibid., p.21) – os quais, sempre ascendentes, descendentes ou
suspensivos,oferecem um modelo geral e econômico para a análise figurativa da melodia,
a partir das oscilações tensivas da voz” (Ibid., p.21). Mais uma vez, apenas a título de
110
exemplo, observaremos que, em Faroeste Caboclo, nas estrofes em que João descobre que
sua esposa, Maria Lúcia, havia se casado com seu inimigo, Jeremias, a voz do cancionista
inflete para o agudo, o que sugere a continuidade da tensão narrativa; depois, infletirá mais
uma vez em direção ao agudo, criando a expectativa necessária para culminar no desafio de
João a Jeremias, para um duelo. A questão dos dêiticos, que localizam o cantor da canção,
ganhará espaço especial ao longo da análise, já que Faroeste Caboclo caracteriza-se
especialmente pela ausência desse recurso.
Em termos gerais, os elementos sucintamente descritos acima, cujos efeitos seo
explorados mais detidamente ao longo da análise do texto, são suficientes para a
investigação que será feita adiante. Resta, apenas, uma lembrança: a de que Faroeste
Caboclo, à maneira de uma trilha sonora de cinema, contémneros musicais diversos, que
se ajustam às situações narradas ao longo da letra, como se a cada um deles correspondesse
uma unidade de sentido que, combinada às outras, come o todo. Daí a semelhança da
canção a uma narrativa fílmica clássica, com escies de cenas e seqüências, começo, meio
e fim, clímax, interlúdios. E daí, também, a separação do texto em partes que se
assemelham a seqüências, derivadas das variações de gêneros.
4.2 A seqüência inicial de Faroeste Caboclo
Faroeste Caboclo, primeiramente, pode ser entendida, de forma geral, como obra-
síntese da temática do retirante. Vidas Secas contém a decisão de abandonar o sertão, rumo
ao ambiente urbano, à cata da cultura letrada, erudita; A hora da estrela, o resultado da
empreitada. A canção da Legião Urbana, por sua vez, agrupa essas duas fases da trajetória
do retirante. Na primeira parte da canção, observamos a vida de João na fazenda e sua
111
decisão de abandonar o meio rural rumo a Salvador, depois a Brasília. A maior parte da
canção se concentra exatamente nas nos acontecimentos que têm lugar nessa cidade.
As sete primeiras estrofes da letra de Faroeste Caboclo – que têm estrutura métrica
e rímica muito similar – comem o que se pode chamar de Apresentação de João de Santo
Cristo, isto é, a primeira seqüência, narrativa e musical, de Faroeste Caboclo. Nela se
relata, de maneira geral, a infância do protagonista, sua inadequação ao meio rural, a
passagem pelo reformatório, a viagem breve a Salvador, o desvio para Brasília e a decisão
de ingressar no tráfico de drogas. Trata-se de fragmento marcado, do ponto de vista
musical, pelo country-folk – em apenas dois acordes, que se farão presentes em toda canção
– cujos arranjos se enriquecem em gradação e que se encerra com o reggae da oitava
estrofe. É o tema musical de Faroeste Caboclo – poderíamos chamá-lo Leitmotiv de
Faroeste Caboclo. Vale, ainda, ressaltar a existência de uma introdução musical sem
acompanhamento de letra, uma linha de baixo com base na nota Sol, que se repetirá mais
duas vezes.
Segue abaixo a escansão dos versos da primeira estrofe, com as sílabas tônicas em
destaque, de acordo com a pronúncia de Renato Russo na gravação do LP Que país é este
1978/1987:
– Não / ti / nha / me / do, o / tal / Jo / ão / de / San / to / Cris
/ to
E / ra o / que / to / dos / di / zi / am / quan / do / e /le / se / per/ deu.
Dei / xou / pra / trás / to / do o / ma / ras / mo / da / fa / zen
/ da
Só / pra / sen / tir / no / seu / san / gue o / ó / dio / que / Je / sus / lhe / deu
Quan / do / cri / an / ça / só / pen / sa / va em /ser / ban/ di
/do
A / in / da / mais /, quan / do / com um / ti /ro /de / sol / da / do o / pai / mor/ reu
E / ra o / ter / ror / da / cer / ca / ni / a on / de / mo / ra / va
E / na / es / co / la a / té / o / pro / fes / sor / com / e / le / a / pren/ deu.
Essa estrofe – cujo padrão rímico é repetido na terceira – é uma oitava cujos versos
têm, respectivamente, 12, 15, 12, 15, 12, 16, 12, 16 sílabas poéticas. Há rima nas sílabas
112
finais dos versos ímpares e há a recorrência das consoantes “d” e “t”, o que confere a essa
estrofe, de modo geral, do ponto de vista cancional, o efeito da tematização, que predomina
em toda a letra; aqui, apresenta-se o protagonista, efetua-se a construção da personagem. O
fragmento, iniciado por um travessão, apresenta a fala de “todos”, que será entendida como
a fala do povo, a respeito de João de Santo Cristo: ele é garoto destemido, porque se perdeu
e porque abandonou o ambiente rural, só pra sentir no sangue o ódio que lhe fora dado por
Jesus. Conta-se, também, nessa estrofe, com uma leve inflexão de voz para o agudo, a partir
do quinto verso, a gênese de sua vontade de ser bandido: a morte do pai, assassinado por
um soldado. Ao final, tomamos contato com sua argúcia: “até o professor com ele
aprendeu”. Em suma: na primeira estrofe, revela-se ao ouvinte quem é João e sugerem-se
os porquês de ele ter características como o destemor e a vontade de ser bandido. Não há aí,
contudo, – nem em qualquer outro fragmento da canção – dêiticos que localizem o eu que
canta, salvo pelo travessão, o que sugere a ancestralidade da música na tradição popular dos
cordéis: quem canta, ali, são todos, espécie moderna de autor legião, a que chamamos de
autor legião urbana. Embora fala do povo seja curta (ocupe apenas o primeiro verso) e
haja, de fato, um narrador, persiste, ao longo de toda a canção, a ausência dos dêiticos que o
localizem no tempo e no espaço, o que parece chancelar a hipótese, como se o cantador
fosse apenas o porta-voz de uma história que é contada por todos.
A segunda oitava apresenta estrutura rímica levemente diferente rimas em ão
no sexto e oitavo versos –, mas permanece a inflexão da voz para o agudo a partir do
quinto:
I / a / pra i / gre / ja / só / pra / rou / bar / o / di / nhei
/ ro
Que as / ve / lhi/ nhas / co / lo / ca / vam / na / cai / xi / nha / do / al / tar
Sen / ti / a / mes / mo / que e / ra / mes / mo / di / fe / ren
/ te
E / sen / ti / a / que / a / qui / lo a / li / não / e / ra o / seu / lu / gar
E / le / que / ri / a / sa / ir / pa / ra / ver / o / mar
113
E as / coi / sas / que e / le / vi / a / na / te / le / vi / são
Jun / tou / di / nhei / ro / pa / ra / po / der / vi/ a / jar
De es / co / lha / pró / pria es/ co / lheu / a / so / li dão
Com inflexão da voz para o agudo e um pequeno alogamento da última sílaba de
“morreu”, canta-se a morte do pai de João, sua vontade de ser bandido e sua sabedoria
precoce. Abre-se, portanto, do ponto de vista formal, a perspectiva da incompletude,
sugerida no quarto verso da segunda oitava, em que João “sentia que aquilo ali não era o
seu lugar”. Os alongamentos da palavra “mar” e da últimalaba de “viajar” remetem à
mesma sensação de desejo, projetam João para um horizonte mais vasto, distante, num
repente de passionalidade em meio a versos tão tematizados. É a formulação da perspectiva
de futuro: revoltado pela morte do pai, superior à autoridade do professor – logo,
insatisfeito com o ambiente rural – e tomando contato com o ambiente urbano por meio dos
meios de comunicação de massas, João forjará sua fuga à fazenda. As próximas cinco
estrofes, do ponto de vista formal, assemelham-se às duas primeiras, com pequenas
variações.
Quanto à temática dos retirantes, João de Santo Cristo não se assemelha a Fabiano e
seus familiares. Os motivos que levaram as personagens de Vidas secas, de um lado, e o
protagonista de Faroeste Caboclo, de outro, a abandonar o ambiente ruralo diferentes. Já
vimos que Fabiano e sinha Vitória haviam traçado o plano de mudar a vida de seus filhos
por meio da ida à cidade, em que as crianças teriam contato com a cultura letrada, nas
escolas em que estudariam coisas “difíceis e necessárias”. João de Santo Cristo,
matriculado na escola ainda quando morava na fazenda, era aluno que se destacava. Ao
contrário de Fabiano, João não se submete a instituições que legitimem a ideologia da
classe dominante. Enquanto aquele se apertava entre outros fiéis, no dia de festa, na igreja,
114
este “ia pra igreja só pra roubar o dinheiro / Que as velhinhas colocavam na caixinha do
altar”. Fabiano é subserviente, por exemplo, ao soldado amarelo e aceita sua condição de
cabra” ou “bicho”, destinado a cuidar das coisas dos outros; João é seu antípoda: não tinha
medo, abandonou o marasmo da fazenda para sentir o ódio que lhe fora dado por Cristo.
São essas as características que o levam ao reformatório. A innua submissão de Fabiano
à condição social em que está inserido não se repete em João, que, já que este “não entendia
como a vida funcionava – discriminação por causa de sua classe ou sua cor”, fica cansado
de tentar achar resposta e vai à cidade. Em suma: enquanto Fabiano, ao longo de todo o
romance, exceto no final, resigna-se à condição social em que nasceu, João não se
conforma, desde criança, a essa suposta “sina”.
Embora as personagens de Vidas Secas e Faroeste Caboclo sejam, portanto, bastante
distintas, a ida à cidade representa, para todas elas, uma alternativa de futuro diferente do
presente. Ainda assim, nessa aproximação, acabam por distanciar-se. Enquanto Fabiano,
convencido pela esposa, vai ao ambiente urbano à busca de melhoria de vida para seus
filhos, convencido de que eles ascenderiam socialmente por meio da cultura letrada, João o
faz motivado pela vontade de ver o mar, metáfora quase óbvia da ampliação dos horizontes,
e as coisas que via na tv, reforçada, ainda, pelo recurso da passionalização, descrito acima –
a extensão das sílabas finais de “mar” e “viajar”, na segunda estrofe; de “Brasília” e “filha”,
na quarta; de “linda” (adjetivo referente a Brasília) e “Taguatinga”, em que todas as
palavras aludem à formulação da alternativa de futuro, afinal todas elas remetem a
universos mais amplos do que o meio rural. O que motivou o herói de Faroeste Caboclo a
ir, primeiro a Salvador, depois a Brasília, foi um meio de comunicação de massas
diretamente associado à indústria cultural. Entenda-se, portanto, que, na canção da Legião
Urbana, os produtos da indústria cultural são vistos, também, como meio pelo qual se pode
115
subverter a ordem social e forjar a alternativa de futuro, o que se concretiza, no plano
musical, pela multiplicidade de gêneros, sobretudo o country-folk e o rock, e, no plano da
letra, pela filiação à literatura de cordel.
Não há, na canção, descrição detalhada das coisas” que João via na TV, o que dá
margem a múltiplas interpretações. Pode-se levantar a hipótese de que, desinformado a
respeito das mazelas que encontraria na cidade grande, João tenha se iludido com aquele
espaço supostamente recheado de oportunidades e aventuras, diametralmente oposto ao
“marasmo da fazenda”; a metrópole seria, pois, ambiente adequado para os destemidos,
como João. Como já se afirmou acima, o que se defenderá aqui, contudo, é que a instria
cultural, em Faroeste Caboclo, é tratada como catalisadora da alternativa de futuro, afinal
é por meio das coisas que via na televisão que João vislumbra uma alternativa para a vida
que leva no ambiente rural. Esse tratamento não é, contudo, uniforme, como se pode
depreender dos versos das últimas estrofes. O duelo-espetáculo-televisivo é revelador de
que o mesmo meio de comunicação que serviu de ampliador dos horizontes de João pode,
simultaneamente, transformá-lo em produto-mercadoria, à semelhança dos astros de
Hollywood, e, em certo sentido, proteger a “alta burguesia”, as classes dominantes, das
próprias conseqüências da desigualdade social por elas engendradas: veiculada sem
encadeamento lógico, como se estivesse fora do tempo e do espaço, ocorrida na Ceilândia –
cidade-satélite que foi construída para abrigar “invasores” do Plano Piloto: “A cidade
surgiu a partir da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), levada a cabo pelo Governo
do Distrito Federal em 1971. Desta campanha se originou o nome Ceilândia”
(CEINDIA, 2006) – a notícia da morte de João soou inverossímil demais para os
abastados moradores do Plano Piloto.
116
É na morte que João se assemelha a Macabéa, de A hora da estrela; é na morte que ele
e ela viram “astros”, sub-produtos da ficção da indústria cultural. A curiosidade mórbida
dos transeuntes que assistem à morte de Macabéa e do público que presencia o duelo entre
João e Jeremias transforma todas essas personagens em mercadorias rentáveis. “A gente da
tv que filmava tudo ali” e o sorveteiro exploram comercialmente o espetáculo de violência
com requintes de tragédia, com tiros pelas costas e suicídio de amantes. Mas é também na
morte, como vimos, que Macabéa se concebe como agente do próprio destino; é nessa
mesma hora que João, da mesma forma que Macabéa, faz uma retrospectiva de seu passado
e aceita “entrar de vez naquela dança” que o sagraria herói popular, santo canonizado in
partibus, espécie de líder político das massas. É na morte, afinal, que João e Macabéa
fogem à alienação e se fazem sujeitos do próprio destino, em consórcio com a própria
identidade. Embora, em A hora da estrela e em Faroeste Caboclo, a indústria cultural seja
vista como instrumento que serve para alienar as massas, suprimir-lhes a identidade e
transformá-las em mercadoria, no texto clariceano abre-se a possibilidade de questionar a
tradição do romance por meio das interferências do teatro popular; na canção da Legião
Urbana abre-se outra hitese: a indústria cultural pode também, se for combinada a
elementos da cultura popular, especificamente a literatura de cordel, servir para mobilizá-
las e facilitar-lhes o acesso à alternativa de futuro.
O mesmo povo”, que no início do texto declarava que João não tinha medo,
declara, ao final, que ele era “santo porque sabia morrer”. Talvez esteja nessa canonização
in partibus, à moda da ocorrida com personalidades como Padre Cícero, outra chave para
compreender por que a história de João pode ser considerada um “longo cordel urbano”, na
expressão de José Miguel Wisnik: trata-se de uma narrativa de matéria popular, semelhante
à dos folhetos de cordel, que se poderia encaixar, segundo a classificação de Manuel
117
Diegues Júnior (1986), nos “Fatos circunstanciais ou acontecidos”, agrupando
características dos folhetos sobre elementos humanos da política, do misticismo e do
cangaço. Além disso, a ausência de dêiticos que identifiquem o narrador e o travessão
inicial da canção parecem incrustá-la como jóia especial na tradição do texto único, em que,
como já vimos, destaca-se o universo religioso: João leva o nome de Cristo, elabora um
plano santo, entende que sua vida é uma via-crucis que virou circo.
4.3 Santo que sabia morrer
Já vimos que Faroeste Caboclo aproxima-se de ciclos temáticos do cordel,
especificamente os do cangaço, do messianismo religioso e de personalidades poticas
marcantes. João é uma espécie de cangaceiro nascido na fazenda, no sertão, que acaba por
se radicar na cidade; nela, ele se torna uma espécie singular de profeta, que “era santo
porque sabia morrer”, porque viajara até lá para interceder pelo povo junto ao presidente.
No texto, a única referência a respeito da filiação de João aponta que seu pai foi
assassinado “com um tiro de soldado”, o que o fez pensar em ser bandido desde criança;
trata-se de descrição similar à dos cangaceiros encontrada nos folhetos de cordel:
De modo geral, apesar dos crimes cometidos, Antonio Silvino é visto, na
literatura de cordel, com certa simpatia, tudo decorrendo, ao que parece,
do fato de ter ingressado no cangaceirismo como vítima de injustiça. Sua
ação visou, portanto, a reparar a injustiça sofrida, e assim vingar os que
precisam de justiça. (JUNIOR, M., 1986, p.154.)
A injustiça sofrida por Antonio Silvino é, exatamente, a morte do pai, como se observa
no fragmento de “A história de Antonio Silvino”, de Francisco Chagas Batista, citado no
118
texto de Diegues Júnior: “...Resolvi então ir mesmo / Vingar de meu pai a morte; / ... Foi
somente pra vingar-me / Que fiz a primeira morte!” (JUNIOR, M., 1986, p.154.).
Em descrições como essa fica evidente a idéia de que muitos dos cangaceiros não
escolheram o crime por pura má índole (ao contrário do que ocorrerá com Jeremias, o vilão
de Faroeste Caboclo), mas o fizeram por estar sujeitos às determinações de um ambiente
hostil e violento como o sertão. As próprias intenções de João, ao mudar-se para a cidade,
podem ser entendidas como tentativas de atenuar o “ódio no sangue”, espécie de
predestinação ao inconformismo: fugir ao marasmo, ver o mar, ver as coisas que a TV
mostrava. Em João, essa predestinação, por estar associada à determinação do meio, pode
ganhar forma na violência e na criminalidade – oódio que Jesus lhe deu”, que se
manifesta em criança nos roubos à igreja e na sexualidade exacerbada, ocorre devido ao
assassinato do pai nas mãos de soldados e à segregação racial e social –, mas também pode
expressar-se por meio das semelhanças com a vida de Cristo ou a dos santos populares; de
todo modo, muitas de suas ações são inspiradas em temas religiosos – a ocupação de
carpinteiro, em Taguatinga; a redenção pelo amor a Maria Lúcia, por meio do qual volta
àquela ocupação; a aversão a Jeremias, falso profeta, “que dizia que era crente mas não
sabia rezar; as “idas ao inferno”, isto é, a passagem pela cadeia e a constatação de fora
traído pela amada; a afirmação de que a “via-crucis virou circo”; a canonização in partibus,
popular, que o declarava santo; e, finalmente, o ideal de justiça social, expresso nos últimos
versos. As duas trajetórias, a do João bandido, com ódio no sangue, e a do João santo in
partibus, entrecruzam-se no texto, de modo a culminar com a intenção de ajudar “toda essa
gente que só faz sofrer”, sintetizando, no protagonista, parte significativa da tradição da
literatura popular: os relatos dos cordelistas a respeito de cangaceiros e personalidades
119
religiosas, sumariados no líder político popular, que foi a Brasília intervir junto ao
presidente a favor da “gente que só faz sofrer”.
É, com efeito, a determinação do meio que faz João optar pela vida criminosa. Ele já o
fizera na infância e na adolescência. Seu sonho é ser bandido devido à morte do pai nas
mãos de soldados; ele é o terror da cercania onde morava, o que faz o professor aprender
com ele; ele ia à igreja pra roubar o dízimo das velhinhas; ele “comia todas as menininhas
da cidade”; não há, portanto, instituição que ele respeite – a força policial, a escola, a igreja
e a família podem ser entendidas, aqui, como manifestações diferentes da ideologia
dominante que se resumem numa outra, o reformatório, “onde aumentou seu ódio diante de
tanto terror. É preciso reformar o indivíduo que, por meio de suas atitudes, põe em xeque
todas as instituições sobre as quais se fundamenta a sociedade rural e que legitimam o
poder da classe dominante, cuja lógica insere fabianos nas bolandeiras, como animais
desprovidos de identidade aos quais é proibida a alternativa de futuro; em todas elas
aprende-se, desde cedo, a aceitar os ditames das autoridades, a não questioná-las, a dobrar-
se aos desígnios daqueles que as encabeçam. Como a família de João foi destruída pela
força policial, desde jovem ele aprendeu a sonhar diferente; a vontade de ser bandidoo é
fruto, pois, de pura má índole de João: ela é – combinada ao inconformismo, ao ódio no
sangue, ao presente de Jesus – corolário da opressão das próprias instituições que sustentam
a sociedade, fundada na segregação e na desigualdade, e é a primeira manifestação de uma
alternativa de futuro, em que João não se submeteria à violência da pocia. É na igreja que
se aprende a aceitar as supostas “vontades de Deus”, a destinação ao sofrimento, a sina a
que Fabiano, em Vidas Secas, estava submetido; é a escola que legitima todas as outras
instituições opressoras. A vontade de ser bandido rompe com todas elas.
120
É exatamente na passagem pelo reformatório, na terceira estrofe, que João se dá conta
de que sofre discriminação por causa de sua classe social e de sua cor, em que a sensação
de “não entender como a vida funcionava” é acompanhada da inflexão da voz para o agudo,
expondo a angústia e a dúvida em que o personagem está mergulhado. Numa inflexão ainda
maior para o agudo, representativa de um trecho ainda mais passional, João “ficou cansado
de tentar achar resposta / E comprou uma passagem, foi direto a Salvador”, isto é, decide
abandonar sua terra natal e ampliar a própria perspectiva. Segregado racial e socialmente,
tima da violência pelas mãos de uma instituição que representa o poder potico da classe
dominante, João está fadado à marginalidade, porque não aceita submeter-se às
determinações a que sua classe social está sujeita. De certo modo, o ambiente rural também
é expressão desse desajuste: João está longe da cidade, espaço em que, pelo menos
hipoteticamente, segundo o que se transmite na TV, acumulam-se oportunidades para
pessoas diferentes como ele. Ir à cidade é, antes de tudo, uma maneira de transcender a
situação em que ele se encontra. Nela, estão as coisas que ele via na TV, o presidente, as
chances de fugir à discriminação, as chances de aproximar-se do poder, ainda que Brasília
não seja seu destino primeiro.
Em Salvador – cidade cujo nome contém a promessa de salvação, espécie de primeira
parada rumo à Terra Prometida –, o acaso faz João partir para Brasília, palavra cuja última
vogal é pronunciada alongadamente, passionalização do sonho que se constrói em plena
rodoviária: “Neste país lugar melhor não há”. Trata-se da promessa expressa, agora, em
palavras, não em imagens da TV. O boiadeiro – também oriundo da zona rural – é uma
referência popular fundamental para João, porque parece confirmar as suspeitas de que a
121
cidade é o melhor lugar desse país. Sobretudo aquela que prometia a participação
democrática em seu projeto
6
: Brasília.
Em Brasília se observará nitidamente a alternância entre a determinação do meio, que
leva à vida criminosa, e a predestinação, que assemelha a vida de João à vida de santos
populares, como Padre Cícero, ou do próprio Jesus Cristo. Já na chegada à capital do
Brasil, João fica “bestificado com a cidade”, principalmente quando vê as “luzes de Natal
– a cintilância do arranjo musical presentifica essa fascinação com a cidade; a ampliação
perspectiva de futuro se manifesta no alongamento das sílabas de “Deus”, “linda”,
Taguatinga”. É significativo que João de Santo Cristo chegue a Brasília num dia de Natal,
como se essa data representasse o próprio nascimento de um novo João, aquele que, agora,
fará parte do mundo urbano com que sonhava. “No ano-novo eu começo a trabalhar”: o
clichê dos finais de ano diz que “ano-novo, vida nova”; é exatamente o projeto de João, que
se ocupa da profissão do pai de Cristo: “cortar madeira, aprendiz de carpinteiro / Ganhava
três mil pors em Taguatinga.
Essa cifra não é suficiente para que João tenha uma vida minimamente digna: “E o
Santo Cristo até a morte trabalhava / Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar”. Outro
elemento que revela a exclusão social de João é o espaço em que ele trabalha – e
possivelmente mora.A cidade de Taguatinga foi a primeira oficialmente criada com o
propósito de pôr fim aos aglomerados humanos denominados ‘invasões’ que estavam sendo
formados na área urbana de Brasília” (JÚNIOR, A., 2007). Trata-se, evidentemente, de
cidade destinada a abrigar os excluídos: “se formou um núcleo habitacional, com
aproximadamente mil pessoas, na maioria viajantes deixados à beira da estrada pelos
6
Segundo os defensores da construção da nova capital do país, o projeto arquitetônico de Brasília favoreceria
uma vida mais democrática para os habitantes da cidade. PASTORE, 1969, p.03.
122
motoristas que, impedidos de atingirem Brasília, abandonavam seus passageiros entregues à
própria sorte” (JÚNIOR, A., 2007) É nessa cidade-satélite que João inicia sua passagem
pelo Distrito Federal.
Um dos clichês mais marcantes dos faroestes norte-americanos surge exatamente na
chegada de João a Taguatinga: é na “zona da cidade” – semelhante aos “saloons” – que ele
conhece seu parceiro. No faroeste norte-americano, os parceiros sempre são imigrantes
mexicanos ou chineses que pretendem “fazer a América”; em Faroeste Caboclo, o parceiro
de João de Santo Cristo é Pablo “um peruano que vivia na Bolívia / E muitas coisas trazia
de lá”, verso em que o alongamento das vogais de “Bolívia” sinaliza que, dadas as
condições sociais em que vive, João só poderá experimentar a alternativa de futuro por
meio do tráfico de drogas. Pablo, em alusão direta a Paulo, que pode remeter ao autor das
Epístolas do Novo Testamento, será o “fiel escudeiro” de João, seu parceiro de
contrabando.
Pablo é outro provocador, em João, da vontade de sair da situação miserável em que
se encontrava: ele trazia muitas coisas da Bolívia, tinha acabado de começar um negócio.
Além disso, mais uma vez, um meio de comunicação de massa cumpre papel fundamental
na tentativa de ascensão social e de obtenção de alternativa de futuro: “E o Santo Cristo até
a morte trabalhava / Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar / E ouvia às sete horas o
noticiário / que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar / Mas ele não queria mais
conversa e decidiu que, / Como Pablo ele ia se virar”. A TV foi a responsável por instigar o
abandono do ambiente rural; o rádio, por sua vez, fomenta a elaboração do “plano santo”:
E, sem ser crucificado, a plantação foi começar, em dois versos cantados numa inflexão
aguda indicadora de que a revolta com a falta de palavra do ministro – similar à
discriminação sofrida no meio rural, que o projetou para fora dele – fará João ingressar no
123
tráfico de drogas. É por meio dessa ocupação que João encontrará o acesso à vida social do
Plano Piloto, à “festa de rock pra se libertar”. Cabe, aqui, reflexão a respeito dos espaços
geográficos a que João está circunscrito.
Na proposta irrecusável que recebe na rodoviária de Salvador, João descobre que
Brasília é o melhor lugar do país para se instalar. A fala do boiadeiro está eivada da
propaganda juscelinista a respeito de Brasília: aquela cidade representava o futuro do país,
uma espécie de prova material por meio da qual se demonstrava que, embora oriunda de um
país periférico do capitalismo, a classe artística brasileira não devia nada à estrangeira. O
projeto arquitetônico e urbanístico de Brasília dava ao resto do mundo o recado de que o
Brasil se agigantava por meio de sua nova capital
7
. Mais do que isso: os dois eixos do
Projeto Piloto “se intersectam e formam a cruz indicadora do centro gerador de civilização
e dos caminhos pelos quais a cultura e o progresso deveriam propagar-se em direção ao
interior do Brasil” (PASTORE, 1969, p. 45). Em suma: Brasília encerrava em si o sonho de
uma vida melhor para os retirantes; a síntese da cultura popular, do interior do Brasil, de
um lado, com o impulso civilizador e progressista da cultura erudita, de outro; a ambição de
um país mais democrático, expressa no encontro do eixo vertical, que contém os prédios do
governo, com o eixo horizontal, em que se localizam as residências, o comércio e as
facilidades sociais. Todas essas promessas, contudo,o se concretizam, como se observa
na história de João de Santo Cristo.
7
O mesmo ocorria, na música, com o recrudescimento da bossa-nova, no Rio de Janeiro:Para um país cuja
cultura e cuja vida social se defrontavam a cada passo com as marcas e os estigmas do subdesenvolvimento, a
bossa nova representou, pode-se dizer, um momento de utopia da modernização conduzida por intelectuais
progressistas e criativos, que se estampava, à mesma época, na construção de Brasília e que encontrava
corresponncia popular no futebol da geração de Pelé. Como as demais manifestações citadas, e suas
contemporâneas, ressoam nas ruas harmonias e na sua batida rítmica os sinais de um país capaz de produzir
símbolos de validade internacional e ao mesmo tempo particulares e não pitorescos ou ‘folclóricos’”.
WISNIK, 2004, p.216.
124
Primeiramente, Joãoo é morador dos conjuntos habitacionais do eixo horizontal.
Sua primeira residência está em Taguatinga, onde leva uma vida de privações. Fica
evidente, pois, que a melhoria na qualidade de vida em Brasília está restrita aos moradores
do Plano Piloto; aos retirantes que se dirigiam à capital restava a cidade dos excluídos,
abandonados nas estradas, proibidos de ter acesso à capital e, conseqüentemente, aos
próprios sonhos de ascensão social.
Está longe de ter ocorrido, também, a síntese entre a cultura popular, do interior do
país, com o projeto arquitetônico progressista da cultura erudita; o que ocorre, mais uma
vez, é segregação. Não há acesso às vias expressas do Plano Piloto; não pode haver,
portanto, participação democrática. Uma hipótese bastante interessante é a de que Faroeste
Caboclo seja uma resposta ao projeto fracassado de Brasília: a canção pode ser entendida
como nova tentativa de síntese entre a cultura popular – em que estão expressas e
respeitadas as demandas efetivamente populares – , a cultura erudita – associada, sem
dúvida, à classe dominante, mas com um projeto progressista, que já intuía aquelas
demandas – e a indústria cultural – com cuja parafernália eletrônica seria possível, de fato,
inserir e projetar as duas anteriores no mundo.
A distância entre os moradores das cidades-satélites e o poder que emana do Plano
Piloto é expressa, na canção, por meio do noticiário das sete; nele, o “seu ministro” – com
o possessivo sensivelmente irônico promete que ajudaria os miseráveis. A transmissão
perde credibilidade pela repetição mecânica e infértil, sem que haja ações concretas. O
ministro sempre diz que vai ajudar, mas o faz de longe, no conforto das instalações do
Plano Piloto, sem conhecer a realidade dos moradores da cidade-satélite. É dessa
incoerência entre discurso e prática que surge oplano santo” de traficar drogas para
ganhar a vida: João está farto das promessas à distância, via rádio; o meio de comunicação
125
de massas, agora, assemelha-se ao reformatório, às instituições que o oprimiam no meio
rural, porque veicula, como faziam a escola e a igreja da fazenda, a ideologia da classe
dominante, os moradores abastados do Plano Piloto, e lhes serve aos interesses. Pior: as
promessas veiculadas pelo rádio soam como discursos de conservação da sociedade que
exclui os de classe social desfavorecida e/ou da cor de Jo. De todo modo, ele reconhece
que o discurso oficial tem a função de enganá-lo, de mantê-lo sob as rédeas dos mais ricos,
de relegá-lo à condição de paciente, não de agente do próprio destino. O noticiário diz que
o seu ministro ia ajudar”, o que induz à passividade; inquieto, senhor do próprio percurso,
com a alternativa de futuro sempre como pano de fundo, João mergulha no tráfico de
drogas.
Finalmente, Brasília também associa a canção de Renato Russo ao faroeste norte-
americano e à literatura erudita. O Oeste, da mesma maneira que a cidade grande, em Vidas
Secas, o Rio de Janeiro, em A hora da estrela, e a capital do Brasil, em Faroeste Caboclo, é
a terra das riquezas a conquistar, o “lar dos bravos”, que contém em si as promessas de uma
vida melhor, espécie de Terra Prometida. Além disso, a conquista do Oeste sintetiza a
história recente do povo norte-americano. As aventuras relatadas em, por exemplo, No
tempo das diligências deixam entrever a trajetória desse povo, como um todo. O mesmo
ocorre em Faroeste Caboclo: a saga de João de Santo Cristo pode ser considerada a
alegoria do retirante que vai à cidade grande à busca da alternativa de futuro. O amigo
estrangeiro, Pablo, confirma a hipótese de que, na supercie da canção de Renato Russo,
encontram-se alguns clichês do western norte-americano. Em sua estrutura musical, a
presença marcante do coutry-folk e a alternância de gêneros a aproxima de uma trilha
sonora do cinema de Hollywood. Como já se observou anteriormente, contudo, a canção
não se alinha a interesses norte-americanos veiculados à indústria cultural, ao contrário:
126
nela, sinaliza-se a possibilidade de subversão desses interesses e de criação de alternativas
de futuro que fogem a eles, por meio da ancestralidade na cultura popular.
A exclusão a que João é submetido no Distrito Federal, por meio do isolamento
geográfico, é permeada por sua predestinação messiânica, à moda da literatura de cordel. O
mesmo manto religioso que revestia João dessa vocação, no primeiro verso da canção, se
repete na chegada a Taguatinga: as luzes de Natal, a opção pela profissão de carpinteiro, o
encontro com Pablo / Paulo, arranjos cintilantes. Essa aura mística é, contudo, brutalmente
rompida pelas premências da vida na cidade-satélite. Trabalho excessivo, pouca
remuneração, exclusão social por meio do isolamento geográfico, descrença nas promessas
de um dos mais ilustres moradores do Plano Piloto: a santidade de João não pode suportar
todos esses elementos práticos da vida. Da mesma maneira que na fazenda, João descobre
nos meios de comunicação de massas que é hora de mudar, de agir, de superar a
desigualdade social que o faz viver miseravelmente. É hora de a plantação começar. Em
outras palavras: o ingresso na criminalidade é “plano santo”, sem crucificação, porque,
embora, inicialmente, tenha escolhido viver como carpinteiro, João não teve outra
alternativa a não ser tornar-se traficante de drogas. Ou, por outra: o tráfico é a alternativa
de João para fugir à alienação e ao esvaziamento identitário que Macabéa experimentou. A
opção pela vida fora-da-lei ganha forma de plano santo, o que aproxima Faroeste Caboclo
de dois ciclos temáticos recorrentes da literatura de cordel: o referente a “homens santos”,
profetas do sertão, como Padre Cícero, e o referente a cangaceiros, cuja vida criminosa é
alternativa à submissão às classes dominantes: Antonio Silvino e Lampo. A dimensão
potica de João, à moda de um líder comprometido com as massas, que, no cordel, emerge
na figura de Getúlio Vargas, manifestar-se-á nos últimos versos, em que se desvela o
127
verdadeiro motivo de sua viagem à Brasília: pedir ao presidente que ajude o povo sofrido
do sertão e da cidade. Voltaremos a ela.
4.4 Tem bagulho bom aí!
O tráfico de drogas, finalmente, faz que João ascenda socialmente, como se observa
na oitava estrofe: “Logo logo os malucos da cidade souberam da novidade / – Tem bagulho
bom aí! / E João de Santo Cristo ficou rico e acabou com todos os traficantes dali / Fez
amigos, freqüentava a Asa Norte / E ia pra festa de rock pra se libertar”. É o trecho em que
predomina o reggae, em alusão à libertação pessoal por meio das drogas. Por meio da vida
criminosa, João enriquece, ganha amigos, freqüenta áreas nobres do Plano Piloto, participa
das festas de rock. Cada um dos elementos indicadores da ascensão social de João parece
ser a antítese dos fatores de exclusão analisados anteriormente. João trabalhava demais,
mas era pobre; bastam os comentários dos malucos da cidade para que ele enriqueça, como
a indicar que o trabalho digno, honesto e legal não é compensatório, ao contrário, degrada,
o que vai ao encontro das análises feitas até aqui. João nunca teve amigos, à exceção de
Pablo; com o tráfico, sua vida social se intensifica, numa alusão clara às relações mediadas
pelo interesse e pelo dinheiro. Quando pobre, João estava na fazenda ou nas periferias; rico,
ele se vê, subitamente, no Plano Piloto, no centro potico do país. A festa de rock – outra
alusão a um produto da indústria cultural –, ele a freqüenta para libertar-se, numa sugestão
de que o desfrute da liberdade está na vida social agitada das classes dominantes, no espaço
geográfico por elas freqüentado, nos produtos da indústria cultural de que ela dispõe e no
consumo das drogas, por meio das quais se experimenta a liberdade subjetiva.
128
Dura pouco esse falso desfrute: “Mas de repente / Sob uma má influência dos
boyzinhos da cidade / começou a roubar”. E depois, numa seqüência de acordes que
marcará as duas passagens de João pelo inferno: “Já no primeiro roubo ele daou / E pro
inferno ele foi pela primeira vez / Violência e estupro do seu corpo / – Vocês vão ver, eu
vou pegar vocês”. É notável que João comece a roubar por (má) influência dos “boyzinhos
da cidade”. A expressão “boyzinho” – uma espécie de versão moderna e mais violenta do
Brás Cubas machadiano – refere-se ao jovem de classe média alta que comete atos ilícitos
por puro capricho, sempre com a certeza de que estará impune graças ao poder e às
influências do pai; suas “travessuras” acabam sendo pequenos roubos,rachas”, pixações
em muros e outros crimes
8
. É exatamente sob a influência desse tipo de jovem que João
acaba roubando e indo para prisão, numa demonstração clara de que a exclusão social e
racial continua: ele vai para a cadeia, mas não há no texto nenhuma referência à prisão de
seus pares.
A passagem pelo inferno, na nona estrofe, dá continuidade à temática religiosa do
texto. É nesse momento que o João “bandido”,tima da exclusão, tomará corpo e quase
suprimirá o João “santo”. A inflexão gradual de voz para o agudo sinaliza mais um trecho
em que, provocado pelas instituições que o oprimiam – primeiro, o reformatório; depois, o
poder público na forma do discurso do ministro; agora, a cadeia –, João se vê em estado de
aflição, busca de respostas, revolta. Embora tivesse ganhado dinheiro e prestígio, João não
se viu livre de sua condição. Enquanto ele é preso e sofre na prisão, os boyzinhos da cidade
continuam impunes. A reação de Fabiano, em Vidas Secas, à carceragem foi de submissão,
8
Para que se compreenda o que são “boyzinhos” na realidade, talvez seja adequado lembrar de casos
extremos como o dos jovens abastados de Brasília que, sem motivo aparente, atearam fogo a um índio que
dormia num ponto de ônibus. O próprio Renato Russo alude a esse tipo de jovem em uma entrevista a Celso
Araújo, em 17 de novembro de 1985: “Parece que os filhos desses corruptos são mais corruptos que os pais.
Eno houve histórias horríveis do pessoal agora estar usando revólver, dando uma de machão, etc..
Conversações com Renato Russo, 1996, p. 16.
129
manifestada no raciocínio estreito de almejar a cultura letrada para superar a injustiça de
que fora vítima; João, ao contrário, entrincheira-se na condição de bandido como
alternativa possível para não sofrer a injustiça.
Na décima estrofe, surge um rock acelerado, de três acordes, com predominância da
tematização e inflexão de voz para o grave, em que o protagonista é descrito como fruto
maduro dos maus-tratos do reformatório, do engodo do discurso potico e da primeira ida
ao inferno: “Agora o Santo Cristo era bandido / destemido e temido do Distrito Federal. /
Não tinha nenhum medo de pocia / Capitão ou traficante, playboy ou general”. Repete-se,
em Brasília, o que já ocorrera com João na fazenda: depois de sofrer a opreso das
instituições oficiais – na adolescência, o assassinato do pai e a passagem pelo reformatório;
na vida adulta, a prisão –, João decide-se por rejeitá-las todas: é bandido, não teme
ninguém, numa retomada do que dizia o povo a respeito dele. Depois da tentativa de
superar a vida medíocre da fazenda com a ida à cidade; depois de tentar trabalhar como
carpinteiro, mas não conseguir sobreviver e perceber que o trabalho, ao contrário do que
veicula a ideologia dominante,o dignifica, mas degrada o homem; depois de tornar-se
traficante e desfrutar da vida fácil e inconseqüente dos boyzinhos da cidade, João é preso e
toma ciência de sua verdadeira condição, aquela que já conhecera no passado:
discriminação por causa de sua classe ou sua cor”. Se não há espaço para João na vida do
Plano Piloto, ele adota com “ódio no sangue” sua condição de bandido “destemido e temido
do Distrito Federal” como alternativa de futuro, sem resignar-se.
4.5 Redenção pelo amor
130
Alguns componentes fundamentais do faroeste norte-americano, contudo, como já
vimos, combinam-se de maneira bastante significativa, na canção em análise, a elementos
das literaturas popular e culta, e às contradições sociais brasileiras que orientam a trajetória
de João de Santo Cristo. Surge, no exato momento em que João se auto-declara “bandido”,
Maria Lúcia, aquela a quem Santo Cristo promete o coração. Trata-se da redenção pelo
amor, clichê dos faroestes norte-americanos, quando o público surpreende o bandido – que
parecia eivado de ódio – amando uma mulher, disposto a abandonar sua vida pregressa. É
exatamente o que ocorre com João. Faroeste Caboclo, então, reveste-se, mais uma vez, do
léxico cristão – que alude à predestinação de João de Santo Cristo e à sua canonização in
partibus, que ocorrerá ao final do texto – e do country folk, idêntico ao das sete primeiras
estrofes – em referência ao cinema hollywoodiano – com alongamento das vogais de
“casar” e “amar”, passionalização evidente, pista de que a alternativa de futuro, agora, seria
orientada pelo amor, não pelo enfrentamento das instituições oficiais. Quando conheceu
Maria Lúcia – nome em referência, simultaneamente, à Virgem Maria e a Lúcifer, como
que antecipando a traição que ela cometerá –, João arrependeu-se dos pecados, prometeu-
lhe casamento e voltou a ser carpinteiro. É significativa a entrada dessa “menina linda” na
vida do protagonista: o abandono do tráfico de drogas só acaba por fortalecer a idéia de que
João não era um bandido inescrupuloso, ao contrário, optara pela criminalidade, como já
vimos, por ser essa a alternativa para fugir à alienação e à submissão. O amor cumpriria,
nesta nova fase, papel libertador: desposar Maria Lúcia e fazê-la mãe de seu filho é uma
outra alternativa de futuro.
O idílio com Maria Lúcia, contudo, dura pouco: João não consegue escapar à vida
criminosa anterior. Depois dos versos “Maria Lúcia eu pra sempre vou te amar / E um filho
com você eu quero ter”, ouve-se a mesma linha de baixo da introdução inicial, o que
131
sugeriria o encerramento de uma fase da vida de João, espécie de fechamento de ciclo que
coma e termina com a mesma frase musical – talvez uma sugestão de que João
experimentava, no casamento com Maria Lúcia, o happy end açucarado dos filmes
americanos, em que o bandido, redimido pelo amor, opta pela vida simples de carpinteiro.
A linha de baixo, aqui, contudo, faz o papel de interlúdio – termo comum à música e ao
cinema –, à moda dos escurecimentos de tela, em que se sugere passagem de tempo. Como
se afirmou anteriormente, em Faroeste Caboclo, ao contrário do que ocorre no signo
fílmico, a cuja descontinuidade intrínseca a trilha sonora confere unidade, a diversidade de
gêneros se combina de maneira tal à letra que compõe a unidade da canção. Está frustrado,
portanto, o sonho do final feliz: anuncia-se, com a linha de baixo, uma outra fase da vida de
João.
Embora esteja disposto a mudar de vida, o herói pagará por suas escolhas anteriores,
numa espécie de maldição que assombra bandidos que se regeneram: uma vez feita a
escolha pela vida fora-da-lei, João não pode mais desviar-se dela. A fama de “bandido
destemido e temidolevará um “senhor de alta classe com dinheiro na mão” a fazer uma
proposta indecorosa a João: colocar bombas em bancas de jornal e em escolas
9
, o que ele,
de imediato, rejeita. Essa negativa lhe renderá problemas futuros e culminará com o duelo
final: “Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse: / – Você perdeu a sua vida meu
irmão.
A estrofe em que a proposta é feita alterna uma seqüência de três acordes – cuja
ordenação incomum, de ritmo acentuado, representa a expectativa a respeito dos fatos,
9
Era comum, no período de distensão do regime militar, a explosão de bombas em bancas de jornal que
vendiam publicações alternativas. “No segundo semestre de 1979, começaram a explodir bombas em bancas
de jornais de vários pontos do país, com panfletos anônimos exigindo que não fossem mais vendidos nem
jornais alternativos (quase sempre de esquerda) nem revistas ou jornais considerados pornográficos”. (DIAS,
2003, p.297).
132
espécie de trilha sonora em que se cria uma atmosfera tensa, de suspense – e outra, de punk
rock, em que figura a resposta de João. Essas duas seqüências terão papel fundamental na
canção: esta, que será chamada de Leitmotiv de João, de certa forma já prenunciada nos
trechos de country-folk, ganhará uma variação ao longo do texto e, combinada à seqüência
de acordes que foi usada na passagem pelo inferno, marcará as ações de João e suas
respostas aos acontecimentos que alcançarão o clímax no duelo final; aquela, que será
chamada de Leitmotiv da Expectativa, além de assinalar trechos de grande suspense,
marcará, no texto, a presença dos inimigos de João.
Os Leitmotive são, na música, segundo o Dicionário Grove de Música (1994), temas
ou idéias musicais que servem, por exemplo, para a caracterização de personagens, objetos
ou iias, principalmente em óperas. Esses motivos condutores, que podem sofrer alguma
variação, ganharam relevância nas obras de Wagner e alcançaram importância fundamental
nas trilhas sonoras de cinema e de novelas brasileiras. Utilizamos o termo, portanto, por
Faroeste Caboclo tratar-se de narrativa cantada, em que alguns motivos caracterizam não
só as personagens, mas também, como observaremos, algumas situações narrativas
marcantes. O Leitmotiv da Expectativa, por exemplo, surge na canção, pela primeira vez,
para marcar o senhor de alta classe que tenta comprar João, situação marcada pela tensão,
que culmina com a ameaça de morte; depois, esse mesmo motivo surgirá nas aparições de
Jeremias, passagens também carregadas de expectativa; finalmente, servirá de
caracterização ao próprio João, num efeito de sentido que investigaremos adiante.
Vale apontar aqui que a negativa de João de Santo Cristo ao senhor de alta classe
reitera, pela última vez no texto, sua dimensão de personagem que se afasta dos vilões
inescrupulosos dos faroestes, do cangaço e dos telejornais sensacionalistas. Note-se que,
embora tenha feito, muitas vezes, a escolha por caminhos que o levavam à ampliação de
133
horizontes – a cidade grande – e o faziam fugir à criminalidade – o casamento, João se vê
enredado por sua condição social primeira, que determinara sua reclusão no reformatório.
Finalmente: quando criança, só pensava em ser bandido devido à morte do pai, e a igreja e
a escola não puderam conter-lhe os ímpetos, levando-o ao reformatório; os meios de
comunicação de massa lhe mostraram que havia outros mundos a explorar, mas também
veiculavam as promessas não-cumpridas do poder público, o que levou João a optar pelo
crime; com dinheiro, João freqüentou as festas dos abastados, mas deixou-se levar pelas
más influências, que não amargaram uma passagem pela cadeia; farto de tentar superar sua
condição social, resigna-se à carpintaria motivado pelo amor, última alternativa, mas já não
pode fazê-lo, relegado que está à condição de marginal, ameaçado, mais uma vez, por um
integrante da classe dominante, um “senhor de alta classe”, que protege os interesses de
um general de dez estrelas”, do poder militar. Essa intrincada seqüência de equívocos leva
à conclusão de que pessoas da classe e da cor de João, habitantes das regiões periféricas,
encantados pelas coisas que vêem na TV, vislumbram uma possibilidade de ascensão social
que, na verdade,o existe.
Depois da negativa ao senhor de alta classe, haverá dois breves versos como
acompanhamento musical do Leitmotiv da Expectativa, em que se inscreve no texto a
ameaça a João. Na décima segunda estrofe, haverá outros quatro, com o retorno do coutry
folk, marcados pela rima em “ão”, em que ecoa a frase “isso eu não faço não” dada ao
corruptor: o herói não protege o general de dez estrelas que fica atrás da mesa com o cu na
mão – o palavrão rompe com a alta classe do senhor e com as dez estrelas do general – e
avisa de que é peixes com ascendente em escorpião, agressivo, perigoso. Nos versos
seguintes, terminados em “irmão” – vocativo irônico, endereçado a João pelo senhor de alta
classe –, em “coração”, duas vezes, – termo que já antecipa a traição que o protagonista
134
sofrerá – e em “cão” – que sinaliza o calvário que ele experimentará a seguir –, a nasalação
rasura a passionalização otimista das estrofes referentes a Maria Lúcia, em que as vogais
abertas e alongadas de “casar” e “amar” sinalizavam uma vida longa ao lado da amada.
Ainda na décima segunda estrofe, mantém-se o country-folk das primeiras, com a
mesma divisão interna, com forte inflexão da voz para o agudo nos dois últimos versos.
Destaca-se, entretanto, o soar forte da bateria, como se marcasse a passagem do tempo
rumo ao confronto final, rompendo com a estabilidade do gênero musical, ou sugerindo,
ainda, os disparos da batalha que se avizinha. É o fragmento em que, assustado com o
futuro incerto, João não vai trabalhar, embriaga-se e descobre que há outra pessoa
trabalhando em seu lugar. Recorre a Pablo para armar-se, prevendo os problemas que terá:
“Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo revendia em Planaltina”, verso de
maior inflexão aguda da voz que traz à baila, no texto, as incertezas de João, mais uma vez
às voltas com a criminalidade, mas agora sob ameaça. A visita do senhor de alta classe o
fez retornar ao contrabando; Planaltina é mais uma cidade-satélite, cuja história chama a
atenção:
Os documentos existentes não indicam a data exata da fundação de
Planaltina, embora acredita-se que seja 1790. Segundo a tradição oral, o
primeiro nome do povoado foi Mestre D'armas, devido ao fato de que na
região se instalara um ferreiro, perito na arte de concertar e manejar armas
que recebeu o título de Mestre, expressão que passou a identificar o local
(PLANALTINA, 2006)
A história da cidade parece associá-la à venda de armamentos desde o século XVIII;
destaque-se também a afirmação a respeito da tradição oral, que demonstra que essa cidade-
satélite guarda raízes populares anteriores à fundação do Distrito Federal; foge, portanto, à
regra das outras, criadas como parte do projeto de Brasília. Data de 1892 a primeira
excursão de especialistas à região para a demarcação do território daquele que seria o
135
Distrito Federal. Segundo mesmo texto (PLANALTINA, 2006), Planaltina fica situada
numa encosta de agradável vista panorâmica”, o que remete, curiosamente, aos horizontes
mais amplos pretendidos por João: é nessa cidade que ele intentará, pela última vez,
transcender sua condição social. Também se confirma com esse trecho a idéia de que a
história de João é alegoria da história do povo brasileiro, já que é em Planaltina que se
lança a Pedra Fundamental da cidade de Brasília (Ibid., 2006): “No dia 7 de setembro de
1922, com uma caravana composta de 40 pessoas é assentada a Pedra Fundamental no
Morro do Centenário, na Serra da Indepenncia, situada a 9 Km da cidade de Planaltina”.
A data e o lugar de lançamento da pedra fundamental são simlicos: a cidade que será
erigida promete representar o Brasil como um todo. E o faz, não no sentido de que todos os
brasileiros terão representação nos rumos tomados pelo país naquela cidade, mas no de que
a exclusão social expressa em sua geografia poticos e funciorios públicos de alto
escalão como moradores do Plano Piloto; retirantes e excluídos como moradores das
periferias, as cidades-satélite, cujo destino parece orientado pelos desígnios, caprichos e
interesses dos primeiros é representação concreta da desigualdade social brasileira.
Na condição de cidade Satélite, Planaltina perde também sua autonomia
política. O Governador do Distrito Federal escolhido pelo Presidente da
República, escolhe os Administradores Regionais das Cidades Satélites.
Planaltina cresce, desenvolve sua estrutura urbana, mas perde sua
autonomia econômica, tornando-se uma cidade dormitório. (Ibid., 2006)
Planaltina, assim como seus moradores,o tinha autonomia potica; os interesses
deles não são defendidos pelos representantes oficiais; suas vidas giram, orbitam em torno
do Plano Piloto e seus habitantes. A condição de cidade-depósito dos que o podem
habitar a parte nobre do Distrito Federal – que, supostamente, encabeçaria a ampliação da
participação democrática e o desenvolvimento do país – é evidente: “A partir de 1966
136
Planaltina sofre alterações periódicas com a implantação de loteamentos para receberem
pessoas que não podiam se fixar no Plano Piloto (invasões e população de baixa renda de
várias partes do país)” (PLANALTINA, 2006). O reformatório, a prisão, as cidades-
satélites, as periferias das cidades grandes: eis o espaço a que estão relegados aqueles como
João de Santo Cristo, aqueles que, por infortúnio, nasceram em classes sociais mais baixas,
em regiões distantes dos pólos urbanos do país, em periferias abandonadas pelo poder
público.
A história de João de Santo Cristo pode, mais uma vez, ser considerada
representação da história dos retirantes – em oposição clara à dos desbravadores dos filmes
americanos – por sua circunscrição histórica: as exploes de bancas de jornal remetem a
ocorrências da década de 70, em que setores mais conservadores do exército brasileiro, por
meio de atos terroristas, resistiam à abertura potica e comportamental que se avizinhava.
Com a falência do milagre econômico, a promessa de progresso desmoronava, o
desemprego assomava, e os numerosos contingentes de retirantes que haviam se dirigido às
cidades amontoavam-se nas periferias e buscavam alternativas de sobrevivência, inclusive
na criminalidade. Enquanto, nos faroestes norte-americanos, ficava a mensagem de que
toda a violência do Velho Oeste culminaria com a prosperidade econômica dos bravos que
se aventuravam à busca de uma vida melhor, no cordel urbano brasileiro o herói se
refém da histórica desigualdade social do país, sem alternativas a não ser o ingresso no
tráfico de drogas e armas.
4.6 Jeremias, traficante de renome
137
O surgimento de um adversário que tomará a João a ocupação e o coração de Maria
Lúcia sinaliza o final da história relatada em Faroeste Caboclo. Depois do fragmento em
que se relata a rearticulação comercial com Pablo, ouve-se, mais uma vez, a linha de baixo
da introdução. Agora, longe de sinalizar o happy end da história de João, o interlúdio é
interrompido apressadamente, marca, mais uma vez, a passagem do tempo e aguça a
expectativa do leitor, associada ao soar forte da bateria da estrofe anterior, indicando que o
momento do conflito se aproxima.
O suspense aumenta com o retorno do Leitmotiv da Expectativa: trata-se do
surgimento de Jeremias, inimigo que leva o nome de profeta bíblico. A alise das
estudiosas Anlica Castilho e Erica Schlude
(2002. p. 95.), da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, é impecável: Jeremias é
[...] um profeta do Velho Testamento que recebeu de Deus a missão de
converter o povo de Jerusalém e a cumpre satisfatoriamente. No entanto, a
figura de Jeremias, na letra, caracteriza-se como a de um profeta às
avessas, que seduz as pessoas, a fim de conduzi-las aos vícios e desviá-las
das normas sociais.
A virtude de João, atada a sua predestinação de herói popular, bandido e profeta,
opõe-se diretamente à licenciosidade de Jeremias, personagem que pode ser associada às
instituições repressoras – a força policial, a escola, a família, o reformatório, a prisão –, aos
meios de comunicação de massas – o rádio, que veicula as promessas mentirosas do seu
ministro – e àqueles que regem e controlam esses instrumentos de alienão – o “seu”
ministro, o senhor de alta classe e o general de dez estrelas. Estabelece-se, portanto, no
texto, um embate entre João, o profeta do povo, o profeta que será canonizado pelo povo –
e já coma a se desenhar, aqui, a idéia de que ele representa o povo, isto é: de um lado,
luta pelos interesses populares, o que desembocará na afirmação dos versos finais; de outro,
138
simboliza o próprio povo brasileiro – e Jeremias, o falso profeta, que é “maconheiro sem-
vergonha”, “organizou a Rockonha / E fez todo mundo dançar / Desvirginava mocinhas
inocentes / E dizia que era crente mas não sabia rezar”. A Rockonha – segundo entrevista
com os integrantes da Legião Urbana na Revista Bizz
10
e reportagem publicada na internet
no site do Correio Braziliense (GALVÃO, 2007) – foi uma festa que de fato ocorreu em
Brasília, organizada para que os participantes consumissem maconha; o resultado:
[...] pelo menos 300 pessoas foram presas em uma mega-operação que
contou com um efetivo de 80 homens da Polícia Militar, com es
adestrados, compondo três choques: agentes da Delegacia de Repressão a
Entorpecentes da Polícia Federal; policiais da Delegacia de Menores e
agentes do Juizado de Menores.
Na letra de Faroeste Caboclo, Jeremias teria sido um dos organizadores da festa e,
ao mesmo tempo, teria feito “todo mundo dançar”, isto é, teria se associado à polícia para
que ela efetuasse as pries. Essa associação, evidentemente, sugere, mais uma vez, a
corrupção da força policial, além da maldade de Jeremias, reafirmada pela sua profanação
em desvirginar moças inocentes e dizer-se crente sem saber rezar.
Há, no caráter de Jeremias, o mesmo que havia no do ministro: desencontro entre
discurso e prática. Nele, encarnam-se todas as instituições repressoras contra as quais João
esteve em embate ao longo de sua vida. Quando se viu diante do discurso mentiroso do
ministro, João decidiu-se pelo tfico, espécie de gota d’água que fez transbordar todas as
10
“Roconha era o seguinte. Tinha uma galera com um sítio – acho que era filho de um médico, sei lá. Então
fizeram três Roconhas – a primeira parece que foi um escândalo, o máximo, mas ninguém ficou sabendo. Eles
abriam a fazenda, o pessoal chegava de carro e ficava ouvindo som: você arrumava uma menina, ficava na
boa com ela, fumava unzinho...A segunda foi mais divulgada. Fizeram um convite com um mapinha numa
sede, dizendo: “Traga o seu”. Bem, aí nos juntamos na casa do, todo mundo de gala, com correntes e tudo,
e fomos todos para a Roconha. Mas nem entramos! tinha policial para tudo quanto é parte – parecia até
cena do Kojak, com cachorro e tudo. Já entramos com a mão na cabeça, uns cinenta jovens sentados
naquele co de verão que fica uma poeira só. O que teve de vestido branco que se acabou nesse dia!”.
Fragmento de entrevista dada pelos integrantes da Legião Urbana a Sônia Maia, na revista Bizz de maio de
1989. Conversações com Renato Russo, 1996, p.120-121.
139
injustiças que sofrera ao longo da vida; o mesmo ocorrerá quando, ao voltar para casa, João
descobrir que Maria Lúcia o traíra com Jeremias e que teria um filho com ele.
Para facilitar a compreensão da análise dacima terceira à décima oitava estrofes,
segue-se o pequeno diagrama abaixo:
ESTROFE TRECHO DO TEXTO CARACTERÍSTICAS
13
Mas acontece que um tal de Jeremias, traficante de renome,
Apareceu por lá
Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo
E decidiu que com João ele ia acabar.
Leitmotiv de Expectativa; ações
de Jeremias
13
Mas Pablo trouxe uma Winchester 22
E Santo Cristosabia atirar
Leitmotiv de João (variação
01); reação de João
13
E decidiu usar a arma só depois
Que o Jeremias começasse a brigar.
Leitmotiv de João (variação
01); inflexão para o agudo;
reação de João
14
(Jeremias, maconheiro sem-vergonha, organizou a Rockonha
E fez todo mundo dançar)
Leitmotiv de Expectativa;
inflexão para o agudo;
“repente-rock”; caracterização
de Jeremias
15
Desvirginava mocinhas inocentes
E dizia que era crente mas não sabia rezar.
Leitmotiv de Expectativa;
caracterização de Jeremias
16
E Santo Cristo há muitoo ia pra casa
E a saudade começou a apertar
– Eu vou me embora, eu vou ver Maria Lúcia
está em tempo de a gente se casar.
Leitmotiv de João (variação
01); inflexão para o agudo;
ações de João
17
Chegando em casa então ele chorou
E pro inferno ele foi pela segunda vez.
Com Maria Lúcia, Jeremias se casou
E um filho nela ele fez.
Leitmotiv de João (variação
02); inflexão para o agudo;
aflições de Jo
18
Santo Cristo era só ódio pro dentro e eno o Jeremias pra um duelo ele chamou
Leitmotiv de Expectativa;
inflexão para o agudo;
“repente-rock”: ódio de João
19
Aman, às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, é pra lá que eu vou
E você pode escolher as suas armas que eu acabo com você, seu porco traidor
E mato também Maria Lúcia, aquela menina falsa pra quem jurei o meu amor.
Leitmotiv de Expectativa;
inflexão para o grave: ódio de
João
Da mesma maneira que os quatro últimos versos da décima terceira estrofe, todos os
quatro da décima sexta, em que João decide voltar para casa e casar-se com Maria Lúcia,
contêm uma varião do Leitmotiv de João. Todos se caracterizam pela inflexão da voz
para o agudo, e, neles, relatam-se as ações e as dúvidas de João, como já se apontou
anteriormente; a inflexão para o agudo, associada ao Leitmotiv de Expectativa das décima
terceira, décima quarta e décima quinta estrofes e ao conteúdo dos versos, tensiona a
canção de modo a encaminhá-la para o clímax, isto é, o duelo entre João e Jeremias; além
disso, essa inflexão colabora para diferenciar os trechos em que se alternam, de um lado, as
140
ações e aflições de João e, de outro, os atos ignóbeis de Jeremias. Assim, o surgimento de
Jeremias é marcado pelo Leitmotiv de Expectativa; a reação de João, isto é, a aquisição da
arma, e a decisão de não atacar o adversário, apenas reagir aos ataques dele, embebida de
conflito interno, são assinaladas pelo Leitmotiv de João, em uma primeira varião.
Retorna-se, a seguir, ao de Expectativa, para expor a ignomínia de Jeremias, viciado, sem
caráter, blasfemo, numa inflexão de voz e numa batida, na décima quarta estrofe, em que se
amalgamam o rock e o repente. Volta-se, mais uma vez, à variação do Leitmotiv de João,
em que João retorna à própria casa, com o firme propósito de casar-se com Maria Lúcia.
Reaparece, então, a seqüência de acordes em que se descrevera a passagem pela cadeia para
relatar uma segunda ida ao inferno, isto é, a angústia vivida por João devido à traição de
Maria Lúcia. Ora, tomar o amor de Maria Lúcia significa privar João da escolha que havia
feito pela vida de casado, pela vida de carpinteiro, pela alternativa de futuro por meio do
amor, enfim, pela vida que o afastava da criminalidade. No texto, essa é a última vez que
um representante das instituições que perseguiram João irá privá-lo da escolha pelo
caminho da virtude. Na décima oitava estrofe, o Leitmotiv de Expectativa ganha mais
agilidade, com inflexão de voz para o máximo do agudo, revelando a contaminação a que
João estava sujeito: disposto a assassinar “aquela menina falsa” e o vilão que lha tomara, o
protagonista marca o duelo que encerra o texto, ou seja, está tomado pelo ódio assassino
que deveria caracterizar seu adversário. Daí a contaminação do Leitmotiv de Expectativa,
sempre usada para referir-se aos atos dos inimigos de João, agora utilizada para expor seu
próprio ódio: “Santo Cristo era só ódio por dentro e então o Jeremias pra um duelo ele
chamou”, verso literalmente urrado, precedido de um grito, numa espécie de “repente-
rock” a respeito da violência. O cancionista não sustenta a inflexão aguda no verso
141
seguinte, mas o Leitmotiv de Expectativa é mantido: frustrada a alternativa de futuro pelo
amor, João decide assassinar a esposa traidora e o adversário que a possuiu.
4.7 Duelo final
Santo Cristo eraódio por dentro e então o Jeremias pra um duelo ele chamou /
Amanhã às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, é pra lá que eu vou”: eivado do
ódio que Jesus lhe deu, acentuado pela traição que sofrera, João propõe a Jeremias um
duelo na cidade-satélite que leva no nome a exclusão dos retirantes. Ceilândia, como já se
observou acima, é nome que deriva da CEI – Campanha de Erradicação de Invasões. Trata-
se, pois, da cidade destinada a erradicar as invasões, que poderiam comprometer o sucesso
do projeto arquitetônico e urbanístico do Plano Piloto. Com efeito, é o que ocorrerá: a
“invasão” de João terminará ali, com um tiro pelas costas, o que demonstra, mais uma vez,
a falta de dignidade de seu adversário, associado às instituições que reprimiam João desde a
inncia.
O fragmento final de Faroeste Caboclo, de certa forma, sintetiza todas as
referências observadas ao longo do texto e as faz culminar na santificação in partibus de
João, nasvidas da alta burguesia da cidade quanto à veracidade da história de João e na
afirmação de que ele fora a Brasília interceder junto ao presidente poressa gente que só
faz sofrer”.
Do ponto de vista musical, cada uma das estrofes repetirá os modelos já analisados
anteriormente. Essa repetição merece atenção especial, por conter uma espécie de síntese
sonora da canção, projetando-a, no final, para a alternativa de futuro, como observaremos.
142
Note-se, também, que o duelo final é um dos maiores clichês do faroeste norte-
americano. É nesse momento que o Bem e o Mal se confrontam e que “o mocinho
demonstra que, além de ter bom caráter, também é hábil no manuseio das armas,
competência obrigatória para os heróis desse gênero do cinema. Em Faroeste Caboclo, o
duelo ocorre, de fato, entre o bem e o mal, embora o significado desses dois substantivos
seja completamente diferente, aqui, dos significados que eles assumem no faroeste
americano. O clichê – reforçado pelo uso da “Winchester 22” – apenas sugere o esboço, as
linhas gerais das personagens envolvidas no duelo; seu conteúdo, suas personalidades,
contudo, estão preenchidas pelas contradições da sociedade brasileira, em que o mal –
traduzido na impossibilidade de desenvolvimento pessoal e na alienação, corolários
imediatos da desigualdade social – está associado às mais tradicionais instituições (como a
escola, o poder público ou a família) e veicula sua ideologia pelos meios de comunicação
de massas; nessa sociedade, o bem se manifesta por meio de um bandido revestido da aura
de profeta, lembrado pela letra que se filia à tradição do cordel, que insere aquela história
no cancioneiro popular, de autoria coletiva, do texto único, do autor legião urbana, em que
os recursos tecnológicos da sociedade de massas são meios pelos quais a vida de João pode
ser amplamente divulgada.
A cobertura televisiva do duelo final é, também, indicadora de que, embora esteja
permeado por clichês do faroeste norte-americano, Faroeste Caboclo é um texto que foge
às atitudes e idéias que o identificariam aos interesses políticos e econômicos norte-
americanos; monta-se, para a transmissão do duelo, um espetáculo à moda hollywoodiana,
em que a inflexão para o agudo carrega consigo, mais uma vez, a primeira variação do
Leitmotiv de João: “Santo Cristo não sabia o que fazer / Quando viu o repórter na televisão
/ Que deu notícia do duelo na TV / Dizendo a hora e o local e a razão”. Na estrofe seguinte,
143
marcada pelo Leitmotiv de Expectativa – cujos primeiros versos são caracterizados, mais
uma vez, pelo “repente-rock” que observamos anteriormente, fazendo que a expectativa se
eleve à máxima potência e que seja alcançado o clímax do texto –, a presença dos que
foram assistir ao duelo, a decoração do espaço com bandeirinhas, os comerciantes que
exploravam a aglomeração e, sobretudo, a gravação do canal de TV, tudo indica que a
transformação do duelo em espetáculo de massas o faz perder o significado. Não é à toa
que o trecho é marcado pelo Leitmotiv de Expectativa, que servia para narrar as ações
ignóbeis de Jeremias. A exploração comercial do duelo faz dele mais um produto da
indústria cultural, que servirá para aumentar os índices de audiência das redes de tv,
engordar-lhe os cofres e alienar a população, como notícia sensacionalista.
Na vigésima primeira estrofe, predomina a primeira variação do Leitmotiv de João e
a passionalização fala alto: baleado, João faz uma avaliação de sua vida como um todo e
aceita seu papel de mártir, o que o fará ser canonizado pelo povo: “E se lembrou de quando
era uma criança e de tudo que vivera até ali / E decidiu entrar de vez naquela dança / – Se a
via-crucis virou circo, estou aqui”. João percebia, com um tiro nas costas, que, para a
sociedade da indústria cultural, a via-crucis virou circo, ou seja, o percurso de Cristo, do
Santo Cristo, tornara-se mero espetáculo grotesco – a palavra “circo” deve ser entendida,
aqui, em sua acepção mais pejorativa, em que assume o significado de “cena excêntrica,
chocante, grotesca” – em que o público se deliciava com o derramamento de sangue, cujo
potencial comercial” sensacionalista é explorado pelos canais de TV e pelos comerciantes
locais. A via-crucis de João de Santo Cristo é concluída no Distrito Federal, cujo Plano
Piloto assume a forma de uma cruz, que pretendia representar o encontro das culturas
erudita e popular, dos moradores do eixo vertical com os trabalhadores do eixo horizontal,
enfim, da participação democrática de todas as classes sociais; essa cruz acaba por
144
representar, contudo, como na Via-Sacra católica, o sofrimento de João ou, se quisermos,
de todos os retirantes. Brasília, sua Terra Prometida, torna-se o seu calvário; da mesma
forma que a morte de Macabéa em A hora da estrela, o espetáculo da morte de João é
grotesco, acompanhado por uma multidão de curiosos que sabem que o palco – para
Macabéa, o asfalto em que foi atropelada e o livro em que nos é contada sua história; para
João, a rua em frente ao Lote 14, na Ceilândia, terra dos excluídos, e a canção por meio da
qual conhecemos sua trajetória – é espaço de sacrifício. Nos dois textos, as trilhas das
personagens as levam à morte, em que brilham como estrelas de um espetáculo dantesco,
mas fundamental para que compreendam seus próprios papéis. À maneira de Cristo, João
decide “entrar de vez naquela dança”, o que lhe renderá a canonização popular; à moda dos
Macabeus, Macabéa resiste, feito capim, àquela cidade toda feita contra ela; a frase
Quanto ao futuro”, proferida por ela na hora da morte, está incompleta, é verdade, mas
exatamente por isso alude à sensão de incompletude que provoca as alternativas de
futuro. Efeito semelhante ocorre no último verso de Faroeste Caboclo.
Na vigésima segunda estrofe, com o acompanhamento da seqüência de acordes que
marcou as duas idas ao inferno, João é ajudado por Maria Lúcia, arrependida da traição que
cometeu. Ainda numa inflexão de voz aguda, o herói recebe dela a Winchester 22, “a arma
que seu primo Pablo lhe deu”. Com os olhos cegados pelo sol, ele reconhece a amada que,
revestida de uma aura angelical, luminosa, recupera o lugar ao lado do protagonista. A
concretização do amor de João e Maria Lúcia ganhará, na estrofe seguinte, uma perspectiva
bastante romântica, já que será projetada para além da vida material.
Cessam, entre a visima segunda e a vigésima terceira estrofes, a aceleração
rítmica e a inflexão para o agudo que a canção ganhara desde a segunda ida ao inferno;
com o arrependimento de Maria Lúcia, volta-se, por meio de um rallentado, aos dois
145
acordes do country folk, como a simbolizar um retorno ao estado de paz em que João se
encontrava quando propusera casamento a Maria Lúcia. Está reabilitada, ainda que fora
desta vida, a alternativa de futuro fundada no amor.
Finalmente, nas três últimas estrofes – a vigésima terceira e a vigésima quarta
marcadas pelo coutry folk do início do texto; a vigésima quinta, pela seqüência de acordes
que acompanhou as idas ao inferno – João “perdoa” Jeremias de maneira profana,
fuzilando-o com cinco tiros; a “menina linda” se suicida e morre junto com João, “seu
protetor”; João é canonizado pelo povo; a classe dominante não acredita na trajetória de
João e, nos últimos versos, apresenta-se o verdadeiro propósito de João ao ir a Brasília:
falar com o Presidente.
A canonização popular de João já sugere, de pronto, a resistência da cultura popular
à penetração indiscriminada da indústria cultural, nos moldes propostos por José Antônio
Pasta Júnior e Jerusa Pires Ferreira. Embora o duelo tenha sido veiculado pela TV, a
população afirma que “João de Santo Cristo era santo porque sabia morrer”, ou seja, entre o
povo, prevaleceram a crença e a cultura populares em detrimento da veiculação televisiva
sensacionalista do duelo. O diverso ocorreu entre a alta burguesia da cidade, que “não
acreditou na história que eles viram na TV”. As diferentes interpretações a respeito da
história de João sugerem que suas formulações estão diretamente ligadas à classe social dos
que as engendraram. O texto único, de tradição popular, de autor legião urbana, não pode
parecer verossímil às classes abastadas, cuja perspectiva está limitada, se nos referirmos à
sua parcela mais culta, aos modelos burgueses da verossimilhança do romance; a parcela da
alta burguesia que consome os produtos da instria cultural acreditará que os boatos do
povo, sem autoria, sem comprovação técnica – embora a tv tudo tenha transmitido – são
falsos, se arrogará de seu falso esclarecimento e declarará sensacionalista – e, para ela,
146
mentiroso, portanto – o duelo de João e Jeremias. Mais: embora a indústria cultural e os
meios de comunicação de massas tenham sido fundamentais para que João forjasse sua
alternativa de futuro, diretamente associada à ida a Brasília, prevalece, entre “o povo”, a
cultura popular, que vê nele uma espécie de Lampião-Padre-Cícero urbano, sinalizando que
o texto único do autor legião pode apropriar-se da indústria cultural para ganhar projeção.
Na Bíblia cristã, João é o autor do Apocalipse
11
; para os freqüentadores da igreja “oficial”,
para a alta burguesia da cidade, para os senhores de alta classe, o fim do mundo seria a
ascensão de deres como João, para o qual a ideologia dominante, massificadora, é a
encarnação do diabo, aquele com quem o Santo Cristo foi ter em Brasília, daí a utilização
dos acordes, na última estrofe, que marcaram as idas ao inferno. A santificação popular de
João encerra em si, portanto, a inversão já sugerida anteriormente entre as noções de bem e
mal: anuncia-se uma nova alternativa de futuro espécie de inferno para as elites –, a da
revolução social, por meio da utilização dos canais da indústria cultural para a projão de
uma cultura popular renovada, citadina, cantada pelo autor legião urbana. Mais do que
resistir, agora, o cordel urbano de Renato Russo é meio de superar a alienação.
A combinação entre instria cultural e cultura popular culmina na canção de rock
Faroeste Caboclo, produzida na lógica do mercado fonográfico roqueiro, difundida nos
jornais, nas rádios e nos canais de tv, mas carregada de elementos da literatura de cordel e
do ideal de sensibilização dos ouvintes para questões sociais brasileiras como a
desigualdade social, a pobreza, a alienação e a violência urbana.
4.8 Eco do direito ao grito
11
Devemos esta lembrança à professora Lílian Jacoto.
147
Nos últimos versos de Faroeste Caboclo, surge um motivo que teria levado João a
Brasília e que o ouvinte desconhecia: sua vontade de “falar com o presidente para ajudar
toda essa gente que só faz sofrer”. Surge, com esse trecho, o encerramento da análise da
canção e o encaminhamento das considerações finais.
Primeiramente, esses versos sugerem, mais uma vez, a ancestralidade da canção na
literatura de cordel. Por meio deles, João ganha uma última faceta, a potica, a de “líder
dos pobres”, que não só os representa no sentido de que os simboliza, mas também no de
que é seu representante legítimo junto ao presidente. Trata-se de herói de origens
populares, nascido no sertão, retirante cuja história nos é contada por um cantador que se
oculta atrás do autor legião urbana, radicalmente coletivo, em oposição às ideologias
dominantes.
Mais interessante, entretanto, é a última das hipóteses a respeito de Faroeste
Caboclo: a de que é possível entrever, na canção, em alguma medida, a intenção de
conscientizar o ouvinte a respeito das mazelas experimentadas, no Brasil real, por retirantes
como João. Tentaremos demonstrar a validade desse raciocínio por meio de apenas uma
palavra: a última do texto,sofrer”, cuja última sílaba se alonga mais do que qualquer outra
em todos os momentos de passionalização do texto, num eco acompanhado pelo rock
rápido, de três acordes em guitarra elétrica, o Leitmotiv de João.
Acreditamos que o alongamento dessa última sílaba – espécie moderna de melisma
pronunciado em meio ao rock básico e antecipado por uma pequena seqüência de acordes
em violão – sintetiza muitas das outras hiteses anteriormente citadas e faz Faroeste
Caboclo brilhar na galeria das canções de protesto.
Segundo o Dicionário Grove de Música (1994, p.591), um melisma é “um grupo de
mais de cinco ou seis notas cantadas sobre uma única sílaba, especialmente no canto
148
litúrgico”. É evidente que o alongamento da última sílaba de “sofrer”, em Faroeste
Caboclo, dista sensivelmente do canto litúrgico, mas tomamos a liberdade de utilizar o
termo pela sua proximidade ao universo religioso que, como vimos, povoa o imaginário da
canção popular, seja nos Estados Unidos, nas “igrejas dos pobres” citadas por Hobsbawn,
seja no Brasil, nos coris a respeito de Padre Cícero ou Antônio Conselheiro, citados por
Manuel Diegues Júnior. Teríamos, então, o final da canção aludindo à predestinação de
João como líder popular em sua canonização in partibus, espécie de santo que intercede
pelo povo junto ao poder público.
Essa aclamação popular, por sua vez, está intimamente associada à intervenção
potica de João, personagem apartidária por natureza, que assemelha a canção, novamente,
ao jazz descompromissado de que falava Hobsbawn, aquele que, por sua filiação inerente
aos pobres, porque lhes descreve as mazelas do cotidiano, é mais protesto do que qualquer
outro, em semelhança à resistência afirmativa do cordel apontada por José Antônio Pasta
Júnior. Já vimos que o roqueiros dos anos oitenta viviam o dilema de protestar sem
associar-se explicitamente a algum posicionamento político-partirio. Nesse sentido, o
vestígio de cordel em Faroeste Caboclo parece-nos a solução mais acertada: o protesto se
faz não por meio de um receituário ideológico – prática que orientou muito da canção de
protesto das gerações anteriores de cancionistas brasileiros – embutido na canção, mas por
meio de uma prática de produção literária radicalmente coletiva, que rompe com a noção de
autoria.
Finalmente, o efeito de sentido obtido pelo alongamento da sílaba final da canção, é
a sensação de incompletude deixada pela história de João, que “não conseguiu o que queria
quando veio pra Brasília”: interceder pelo povo, junto à autoridade pública maior da nação.
Abusando dos termos religiosos: a missão de João está incompleta, mas sua via-crucis,
149
cantada numa letra de registro popular, pode inspirar os ouvintes a completar aquela
vocação para o destemor às diferentes instâncias da classe dominante que vimos no texto
a própria igreja, a escola, a família conservadora, o reformatório, a cadeia, o ministro, o
senhor de alta classe, o general de dez estrelas, a polícia corrupta.
O acompanhamento rock, com três acordes de guitarra, baixo e bateria, encerra a
análise: trata-se daquela fusão, proposta pela Legião Urbana, do registro popular, na letra,
com o rock, na música, expressão clara do sonho de que, por meio da capilaridade da
indústria cultural, seja possível propagar o protesto inscrito em Faroeste Caboclo.
Acreditamos que as considerações de Antonio Candido a respeito da literatura erudita
tenham validade, também, na canção popular urbana, especificamente no rock nacional de
Faroeste Caboclo: as inovações no plano formal, em que a adoção dos modelos
estrangeiros deixa de ser dilema, podem ser uma forma de combate de autores de países
como o Brasil, cientes que estão da injustiça social de que são vítimas seus conterrâneos
mais pobres. Ecoa, ao final da canção, o direito ao grito, que convida à revolução social.
150
5. Considerações finais
Plagiando José Antônio Pasta Júnior, cada execução de Faroeste Caboclo talvez
seja um instante para o qual confluem inúmeros marcos importantes da memória, que se
fazem todos conjuntamente presentes e ativos, no presente contínuo, radicalmente coletivo,
sobretudo porque é canção, e cada vez que se recorda uma canção, – tomando, agora, as
palavras de Luiz Tatit – recorda-se um fragmento de tempo. Talvez esse fragmento de
tempo, no longo cordel urbano de Renato Russo – expressão roubada de José Miguel
Wisnik –, seja a história do povo brasileiro, contada como cordel, respondendo, de certa
forma, aos dilemas formais da literatura erudita, usando toda a parafernália tecnológica da
indústria fonográfica – a guitarra elétrica, o baixo, a bateria, os microfones, os
amplificadores, as ondas do rádio, a prensa do LP – para tentar protestar alto, cada vez mais
alto, que há, no Brasil, gente que só faz sofrer.
É fato que o rock nacional dos anos oitenta, antes de ser tragado pelos
procedimentos de estandardização da indústria cultural, renovou o mercado de música no
Brasil, asfixiado, em certo sentido, pelos monstros sagrados da MPB. Em Faroeste
Caboclo, observamos não só a permeabilidade à literatura erudita – bastante característica
da MPB – mas também aos temas regionais, aparentemente tão adversos àquela geração
jovem que se dizia rigorosamente urbana, que, em alguma medida, tanto rejeitava a MPB
que “tornava bela a imunda realidade”, nas palavras de Clemente Nascimento, quanto os
regionalismos – a música caipira, por exemplo. Nenhum de rock nacional dos oitentas
parece ter notado, mas uma das músicas mais emblemáticas desse período e desse gênero
versa, exatamente, a respeito de um retirante que vai à capital. Nunca fomos tão brasileiros:
poderíamos fugir à Bossa Nova, à MPB, à Tropilia, fazendo nós mesmos as nossas
151
músicas, com arranjos sujos e rimas pobres, ao estilo do punk britânico ou norte-americano,
mas não podeamos fugir ao Brasil.
Os roqueiros talvez também não tenham percebido que, em Faroeste Caboclo, a
profusão de gêneros musicais sinaliza para uma característica intrínseca ao rock, sua
permeabilidade a outros gêneros, principalmente a ritmos regionais, apontada por Steven
Connor, que, de certo modo, antecipava muitas das canções e das bandas que fariam
sucesso na década seguinte, de noventa, em que o rock ficou em segundo plano. O
Sepultura, a mais importante banda brasileira de heavy metal, de sucesso respeitável no
exterior – de que, inclusive, Renato Russo gostava muito – gravou, em 1996, em seu CD
Roots, canções em que à bateria de Igor Cavalera se fundia a percussão de índios Xavantes
ou ao surdo de meio, ao garrafão d’água, ao djembe, à lataria e ao chocalho pajé de
Carlinhos Brown; Chico Science e Nação Zumbi, projetavam para o Brasil, com o CD Da
lama ao caos, o manguebeat, gênero que tamm guarda ancestralidade em ritmos
populares do Recife, além das guitarras do rock. No seu Monólogo ao pé do ouvido, ouvia-
se que
Modernizar o passado é uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enchem a imaginação de domínio
São demônios os que destroem
O poder bravio da humanidade
Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro
Todos os Panteras Negras
Lampião sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza eles também cantaram um dia
152
Uma comparação entre a canção acima – sem indicação de autoria no encarte – e
Faroeste Caboclo seria extremamente fértil para investigar desdobramentos da proposta de,
amparando-se na cultura popular, utilizar os canais da indústria cultural para tentar
aniquilar a alienação e conscientizar o público – atenção à evolução musical que é
modernização do passado, ao homem coletivo que sente a necessidade de lutar, aos
demônios que destroem o poder bravio da humanidade, às aclamações de Antônio
Conselheiro e Lampião. Mais recentes são as propostas do Cordel do Fogo Encantado e do
Teatro Mágico, cujas apresentações lembrarão o presente único apontado por José Antônio
Pasta Júnior. Estes são apenas alguns dos muitos exemplos que poderiam ser dados para
ilustrar o alcance que tem o amálgama de gêneros e registros de Faroeste Caboclo. Em
poucas palavras, é possível afirmar que o rock nacional já alcançou a maturidade, porque já
tem uma tradição – no plano da letra e no plano da música – e porque essa tradição se
insere na história da nossa caão popular urbana.
Confluem para Faroeste Caboclo, aliás, características inerentes ao rock como um
todo e à canção popular brasileira. Aquele, pela permeabilidade a outros gêneros, devido à
necessidade constante de renovação, com fins lucrativos, deixa-se contaminar de ritmos
locais; esta, pela filiação inegável ao mercado da música, com os mesmos fins lucrativos,
acaba eivando-se de elementos da cultura popular, da cultura erudita e das determinações
da indústria cultural. Com jeito de cancionista, Faroeste Caboclo talvez tenha feito tanto
sucesso pelo malabarismo com que nela se equilibram componentes tão diferentes.
Esse mesmo malabarismo talvez seja expressão da tentativa de atar o erudito ao
popular na música brasileira, até na cultura brasileira como um todo. Pasta já avisava que o
olhar do intelectual não está pronto para a literatura de cordel porque ela não cabe nas
153
categorias de que este dispõe para a classificação de textos literários. Os trabalhos de Tatit e
Wisnik já apontam para a análise de canções dos grandes compositores da MPB, em sua
maioria os consagrados pela “elite popular”; teremos nós o olhar preparado para a análise
das canções de rock nacional? Temos a pretensão de ter dado um passo nessa direção,
partindo sempre do pressuposto, ao longo de toda a análise, de que, especificamente em
Faroeste Caboclo, aquele malabarismo, além de carregar essa canção de riqueza de
recursos, é meio de protesto e tentativa de conscientização – talvez seja mais prudente dizer
de sensibilização – do público, elevado à máxima potência pela parafernália tecnológica e
pela vasta penetração, entre as massas, da indústria cultural. O risco será, sempre, o
comprometimento da integridade do artista e de sua obra.
Na breve investigação das perspectivas de Walter Benjamin e Theodor Adorno,
pretendemos, exatamente, aferir até que ponto se corria esse risco. Tentativa, talvez,
desnecessária porque, para este, é mais que evidente que Faroeste Caboclo insere-se
rigorosamente na categoria da música ligeira, alienante, passa longe das propostas de
Schoenberg, por exemplo. Para aquele, entretanto, é possível politizar a arte, já que, depois
das técnicas de reprodução, toda obra de arte é produto. Acreditamos, mais uma vez, que,
permvel à cultura popular e à literatura erudita, a canção da Legião Urbana pode conter
algum potencial de combate, nos termos de Antonio Candido, por mais que faça parte da
lógica do mercado dos produtos culturais.
É exatamente esse potencial de combate, além das temáticas do retirante e da
alternativa de futuro, o ponto de contato entre Faroeste Caboclo e a literatura erudita
brasileira. Nos textos investigados, os autores são também malabaristas, porque pretendiam
dar forma literária à pobreza, de modo que exercessem o direito ao grito e combatessem
por meio da literatura, sem submetê-la cegamente à urgência da revolução social, mas
154
fazendo desta uma emergência estética. Em Vidas Secas, identificamos a tentativa de contar
a miséria do retirante por meio de pesquisa psicológica em que autor deseroíza o assunto;
as personagens do romance depositavam, ao final, toda sua alternativa de futuro na
aquisição da cultura letrada. Em A hora da estrela, a solução formal para relatar a história
de Macabéa e os dilemas da ficção foi a utilização do teatro popular como fio condutor do
texto, cuja linguagem se dilacerava em tragicomédia; aqui, a lógica de mercado atropela a
protagonista que vislumbra uma alternativa de futuro. Em Faroeste Caboclo, contar a
trajetória do retirante era fazer que o eu que cantava desaparecesse na forma de autor
legião urbana, à moda de cordel, mas com as contribuições musicais da indústria cultural,
através das quais se vislumbrava a alternativa coletiva de futuro, que transcendia o desejo
de adquirir a cultura erudita – muitas vezes, uma outra forma de dominação – e o de
mergulhar na facilidade da alienação total. Por ser canção – isto é, por lidar não só com o
universo literário, mas também com o musical –, a proposta da Legião Urbana talvez tenha
sido a que fez mais malabarismos para falar a respeito do retirante. Três propostas
diferentes, em que se entrevê o mesmo desejo: acabar com o sofrer Brasil, grito que ecoa
em nossos ouvidos ao final de Faroeste Caboclo.
155
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão da audição in Textos escolhidos. São Paulo:
Nova Cultural, 2005.
ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos 80. [S.l.]: DBA, 2002.
ARÊAS, Vilma. Clarice Lispector com a ponta dos dedos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução in Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1980.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986.
BOLZ, Norbert W. Onde encontrar a diferença entre uma obra de arte e uma mercadoria: teoria da mídia em
Walter Benjamin. Revista da USP, São Paulo, no. 15, 1992.
BRYAN, Guilherme. Quem tem um sonho não dança: cultura jovem brasileira nos anos 80. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo, Ática, 1989.
______. O estudo analítico do poema. São Paulo, Terceira leitura, FFLCH-USP, 1993.
______. Ficção e confissão. Ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1999.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 5.ed. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
156
______. rios escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
CASTILHO, Angélica e SCHLUDE, Erica. Depois do fim: vida, amor e morte nas canções da Legião
Urbana. Rio de Janeiro: Hama, 2002.
CEILÂNDIA. Disponível em <http://www.ceilandia.com/infogerais.htm>. Acesso em 20 dez. 2006.
CONNOR, Steven. Cultura Pós-Moderna. Introdução às teorias do contemporâneo. Rio de Janeiro: Loyola,
2000.
Conversações com Renato Russo. Campo Grande: Letra Livre Editora, 1996.
DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
DIAS, Lucy. Anos 70: enquanto a barca corria. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.
DIAS, Márcia Tosta. A grande indústria fonográfica em xeque. Margem Esquerda, São Paulo, n. 08, p.177-
191, 2007.
FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel: o passo das águas mortas. 2
a
ed. São Paulo: Hucitec, 1993.
FREITAG, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1988.
GALVÃO, Leandro. Curiosidades sobre Faroeste Caboclo e sobre a Festa Rockonha. 2004. Disponível em:
<http://divirta-se.correioweb.com.br/materias.htm?codigo=1198>. Acesso em: 17 jan. 2007.
GASPARI, Elio; DE HOLLANDA, Heloisa Buarque; VENTURA, Zuenir. Cultura em trânsito. Da repressão
à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000.
157
Dicionário Grove de Música: edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
HOBSBAWN, Eric. História social do jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
NIOR, Alberto Bahouth. Pioneiros e Precursores: Sinopse histórica das Cidades-Satélites do Distrito
Federal. Revista Taguatinga. Taguatinga 1969, ano 20, n.78. Dispovel em
<http://www.taguatinga.df.gov.br/>. Acesso em: 10 jan. 2007
NIOR, José Antônio Pasta. Cordel, intelectuais e o Divino Espírito Santo, in Cultura brasileira: temas e
situações, organizado por Alfredo Bosi. São Paulo: Ática, 1992.
JUNIOR, Manuel Diegues et al. Literatura popular em verso: estudos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MATTOS, A. C. Gomes de. Publique-se a lenda: a história do western. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
PASTORE, José. Brasília: a cidade e o homem. Uma investigação sociológica sobre os processos de
migração, adaptação e planejamento urbano. São Paulo: Editora Nacional e Editora da USP, 1969.
PLANALTINA. Disponível em <http://www.planaltina.df.gov.br/>. Acesso em: 15 jan. 2006.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 63
a
ed. São Paulo: Record, 1992.
158
ROSSI-LANDI, Ferruccio. A linguagem como trabalho e como mercado. São Paulo: Difel, 1985.
TATIT, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002.
______. O Século da Canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
WISNIK, José Miguel. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.
VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994.
(Coleção Ofício de arte e forma)
DISCOGRAFIA
Camisa de Vênus. Camisa de Vênus. Som Livre. 1983. LP
Chico Science e Nação Zumbi. Da lama ao caos. Chaos. Sd. CD.
Legião Urbana. Que país é este – 1978/1987. EMI. 1987. LP
Loo. O rock errou. RCA. 1986. LP.
Paralamas do Sucesso. Selvagem?. EMI. 1986. LP.
Sepultura. Roots. Roadrunner Records. 1996. CD.
FILMOGRAFIA
Botinada: a origem do punk no Brasil. Gastão Moreira, 2006.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo