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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FANTASIAS VAZIAS:
UM DESAFIO À CLÍNICA
PSICANALÍTICA
Autor: Ricardo Salztrager
2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
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FANTASIAS VAZIAS:
UM DESAFIO À CLÍNICA PSICANALÍTICA
Autor: Ricardo Salztrager
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Ori
entadora: Regina Herzog
Rio de Janeiro
Janeiro / 2006
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FANTASIAS VAZIAS: UM DESAFIO À CLÍNICA
PSICANALÍTICA
Autor: Ricardo Salztrager
Orientadora: Regina Herzog
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por:
______________________________________
-
Orientadora
Presidente da Banca. Prof. Dra. Regina Herzog d
e Oliveira
______________________________________
Prof. Dra.
Gilsa Freiblatt Tarre de Oliveira
______________________________________
Prof. Dra. Josaida de Oliveira
Gondar
______________________________________
Prof. Dra.
Maria Teresa da Silveira Pinhei
ro
______________________________________
Prof. Dra. Marta Rezende Cardoso
Rio de Janeiro
Janeiro de 2006
4
FICHA CATALOGRÁFICA
Salztrager, Ricardo.
Fantasias vazias: um desafio à clínica psicanalítica/Ricardo Salztrager. -
Rio
de Janeiro: UFRJ/ PPGTP, 2006.
viii, 182
f.; 29
,7 cm.
Orientador: Regina Herzog
Tese (doutorado) UFRJ/PPGTP/ Programa de Pós-
graduação em Teoria
Psicanalítica, 2006.
Referê
ncias Bibliográficas: f. 176
-
182
.
1. Psicologia. 2. Teoria Psicanalítica. I. Herzog, Regina. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-
Graduação em Teoria
Psicanalítica. III. Título.
5
Resumo
Fantasias vazias: um desafio à clínica psicanalítica
Autor
: Ricardo Salztrager
Orientadora: Regina Herzog
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro
- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Teoria Psicanalítica.
Resumo:
A presente tese visa analisar o estatuto metapsicológico de uma
modalidade peculiar de fantasmatização para a
qual propomos o nome de fantasias
vazias. Trata-se de fantasias conscientes, neutralizadas, anestesiadas e apartadas
das demais produções discursivas do sujeito. Para proceder a esta investigação,
estabelecemos uma analogia deste tipo de fantasia com o registro dos signos de
percepção, apresentado por Freud na "Carta 52". Em seguida,
reco
rremos à noção
de clivagem, com o objetivo de examinar sua origem e função na dinâmica
psíquica. Para finalizar, abordamos a questão da direção do tratamento, dada a
singularidade destas produções fantasísticas que resistem ao dispositivo analítico
da inte
rpretação e da construção.
Palavras
-
chave:
fantasias vazias; signos de percepção; clivagem; interpretação;
psicanálise.
Rio de Janeiro
Janeiro de 2006.
6
Résumé
Fantasias vazias: um desafio à clínica psicanalítica
Autor: Ricardo Salztrager
Orientadora: Regina Herzog
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro
- UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Teoria
Psicanalítica.
Résumé:
Cette thèse a pour objet l’analyse du statut métapsychologique d’une
modalité particulière de fantasmatisation que nous nommons « fantaisies vides
».
Il s’agit de fantaisies conscientes, neutralisées, anesthesiées et éloignées des
autres
productions discursives du sujet. Pour effectuer cette investigation nous avons
établi une analogie de ce type de fantaisie avec le registre des signes de perception
presenté par Freud dans la « Lettre 52 ». Ensuite, nous avons fait appel à la notio
n
de clivage en vue d’examiner son origine et sa fonction dans la dynamique
psychique. Enfin, nos avons abordé la question de la direction de la cure, vue la
singularité de ces productions fantaisistes qui résistent au dispositif analytique de
l’interpréta
tion et de la construction.
Clés
-
mots:
fantaisies vides; signes de perception; clivage; interprétation;
psychanalyse
.
Rio de Janeiro
Janeiro de 2006.
7
Agradecimentos
A Regina Herzog, orientadora desta tese, pela dedicação e atenção dada a
mim durante a produção do trabalho. Agradeço a Regina também pelo
investimento, pela disponibilidade constante e pela consideração ao meu trabalho.
À Dra. Julia Kristeva, por ter aceitado a co-orientação da tese durante o
meu Estágio de Doutorado na Universidade Paris 7
-
Denis Diderot.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, que me acompanham desde a graduação, por terem sempre se
mostrado disponíveis em auxiliar, esclarecendo minhas dúvidas durante as aulas e
também contribuindo em
bibliografia para a produção da tese.
Ao grupo de pesquisa da Regina que, mediante as discussões que temos
toda semana, em muito contribuíram para que este trabalho assumisse a sua
versão final.
Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica que
sempre se mostraram abertos para a discussão das questões expostas nesta tese.
Ao amigo Tiago Ravanello, doutorando do Programa, pela leitura atenta
do segundo capítulo e pelas dicas que, em muito, ajudaram a esclarecer minhas
dúvidas a respeito
da lingüística.
Aos meus pais, Helena e Davi e ao meu irmão Márcio, pelo carinho,
dedicação e investimento afetivo.
À CAPES, pelo apoio financeiro.
8
Sumário
Introdução
.....................................
..
.........................................
................................
09
Capítulo 1
Os paradoxos da fantasia
.................................................................
19
1.1. Freud e a realidade da fantasia.........................................................................
.
20
1.2. A fantasia enquanto cenário narrativo...............................................................
28
1.3. A fantasia enquanto cena indizível....................................................................
41
1.4. A fantasia enquanto cen
a originária..................................................................
48
1.5. A fantasia enquanto cena anestesiada...............................................................
53
1.6. Sobre as fantasias vazias...................................................................................
58
Capítulo 2
A questão do referencial discursivo
.....................
.
...........................
69
2.1. A “Carta 52” e seus desdobramentos..........................................................
......
70
2.2. Da cadeia significante ao referencial discursivo...............................................
83
2.3. A simbólica freudiana.......................................................................................
10
9
Capítulo 3
Sobre
a clivagem psíquica
................................................................
1
21
3.1. Do recalque à clivagem psíquica.......................................................................
1
22
3.2. Da clivagem psíquica às fantasias vazias........
..................................................
1
41
3.3. A dimensão mítica da atividade fantasmática...................................................
1
45
Capítulo 4
Da desconstrução de fantasias à produção de enigmas
.................
1
60
4.1.
O fracasso da interpretação...............................................................................
161
4.2. A nomeação de fantasias...................................................................................
16
8
4.3. Sobre a produção de en
igmas............................................................................ 1
72
Considerações finais
......................................
.
.........................................................
1
82
Referências bibliográficas
...............
.......................................................................
1
84
9
Introdução
Mesmo se configurando como uma figura de grande relevância na clínica
psicanalítica, a fantasia possui, no pensamento freudiano, um estatuto
metapsicológico paradoxal. A dificuldade de defini-la em termos teóricos, se
deve, em grande parte, pelo amplo campo de fenômenos que ela recobre e,
também, pelas múltiplas acepções que recebeu ao longo do desenvolvimento da
psicanálise. Assim, dentre as diversas roupagens da atividade fantasística,
podemos incluir as lembranças encobridoras, os devaneios, a
s teorias que o sujeito
inventa sobre o seu passado, presente ou futuro, além de todas as concepções
construídas sobre si e os outros. Com efeito, o próprio discurso do sujeito é
profundamente perpassado por uma série infindável de produções fantasísticas.
Do mesmo modo, suas ações e condutas são sempre atravessadas pela atuação de
uma fantasia.
No âmbito clínico, por sua íntima articulação com o discurso, a fantasia
assume uma importância crucial. Nesta perspectiva, entendemos o convite feito ao
analisando
para associar livremente durante a sessão como uma convocação para
que ele relate ao analista suas formações fantasísticas. De acordo com a regra
fundamental da psicanálise, o sujeito discorreria sobre seus castelos no ar, sobre
suas paixões e sua história, experimentando, ao longo da narrativa, os mais
diversos sentimentos, sejam eles relacionados à vergonha, ao temor ou à
satisfação. Desta forma, a fantasia merece ser considerada como uma espécie de
fio condutor do tratamento, pois é através do seu relato que o trabalho analítico se
desenvolve.
10
Acompanhando a amplitude conceitual que a figura da fantasia comporta,
encontramos, na clínica, múltiplos modos dela se manifestar: a fantasia pode
aparecer como um cenário propício à realização de desejos; sob a forma de uma
organização discursiva que visa a correção da realidade insatisfatória; ou, ainda,
como uma estrutura inconsciente subjacente à formação de um sonho, sintoma ou
criação artística. Ademais, vemos que a atividade fantasística tem um papel
fundam
ental no advento dos fenômenos transferenciais. Assim, durante o
tratamento, o analisando irá atualizar suas diversas produções fantasísticas com a
figura do analista, revestindo-o de acordo com seus anseios e protótipos afetivos.
Em suma, a própria realidade narrada no decorrer da análise é, em última
instância, uma realidade eminentemente fantasística. Trata-se, aqui, da realidade
do desejo, singular a cada sujeito e que rege, de modo sobredeterminado, todas as
suas formações psíquicas.
Considerando toda esta complexidade que envolve a figura da fantasia, a
presente tese tem como objetivo analisar uma modalidade bastante peculiar de
fantasmatização que vem se apresentando de forma crucial na clínica
contemporânea. Trata-se de fantasias conscientes, expressas pelo analisando com
certa naturalidade e que surgem apartadas do restante de suas produções
discursivas: “fantasiei que estava num buraco negro”. O fator marcante neste tipo
de construção fantasística remete à escassez de associações produzidas a partir de
seus relatos, parecendo impossível ao paciente ligar, por exemplo, o “buraco
negro” a quaisquer outros elementos discursivos. Também chama a atenção,
nestas fantasias, o aparente caráter de neutralidade que elas comportam; em
decorrência destes aspectos, a dificuldade de associar livremente acaba por
11
dificultar o próprio trabalho de interpretação, impondo um sério obstáculo ao
processo analítico. Para investigar este tipo de formação fantasística, propomos
designá
-las “fantasias vazias” ou “fantasmas va
zios”
1
, expressão que merece ser
devidamente justificada.
O termo vazio
2
será utilizado em referência a estas fantasmatizações
devido à observação clínica de que tais fantasias se mostram, antes de tudo, como
organizações psíquicas esvaziadas de uma narrativa. Ou seja, não se trataria, neste
domínio fantasístico, da constituição de uma história, romance ou teorização. Pelo
contrário, as fantasias vazias remetem à simples produção de cenas nas quais se
manifestam algumas imagens fixas e dissociadas umas das outras. Conforme
assinala Pinheiro (2002), elas também possuem uma relação bastante peculiar
com a temporalidade, na medida em que, por não se configurarem enquanto uma
história, não se reportam a uma idéia de continuidade temporal, na qual uma cena
iria
se sucedendo à outra, de modo a estabelecer um vínculo de causa e efeito
entre seus elementos.
O atributo de vazio também remete a estes fantasmas na medida em que, a
partir de seus relatos, as associações livres produzidas são quase nulas, ou mesmo,
inex
istentes. De fato, o analisando não consegue ligar os elementos presentes na
cena anestesiada a coisa alguma. Ademais, ele igualmente fracassa na tentativa de
mencionar a razão ou a situação específica que o levou a construir a fantasia. Em
decorrência disto, a cena anestesiada não conduz a lugar algum, a nenhuma outra
formação discursiva: ao relatar estas cenas, o discurso torna-se congelado e
1
Cabe ressaltar que, ao longo da tese, os termos “fantasma” e “fantasia” serão empregados sem
discriminação conceitual.
2
Para uma abordagem mais ampla acerca da temática do vazio no pensamento psicanalítico, ver
Herzog (1999).
12
imobilizado em torno de uma mesma frase. Enfim, tudo se passa como se
houvesse uma ruptura fundamental entre a cena inerte e as demais construções
psíquicas do sujeito.
Também é importante delimitar a freqüência com que estas fantasias se
repetem no discurso, mas sem que nenhum outro elemento lhes seja associado.
São sempre as mesmas cenas paradas e apáticas que, embora recorrentes, se
perpetuam na fala tal como relatadas pela primeira vez. Estas fantasias são
igualmente vazias de predicados, coloridos ou detalhes; enfim, de tudo o que
poderia funcionar como uma brecha para a interpretação. Da mesma forma,
símbolos e metáforas são elementos ausentes em seus conteúdos. Ademais,
conforme veremos ao longo da exposição, parece difícil detectar, em seus
domínios, uma formação desejante.
Com base nestas considerações, verificamos que, se por um lado, estas
fantasias são esvaziadas de narrativa, de associações, de afetos e de desejos, por
outro, elas consistem em formações psíquicas cujo sentido é dado de antemão.
Esta é a característica que mais nos intriga, pois o fato do relato da cena vazia soar
aos ouvidos do analista e do paciente como algo extremamente claro e não
enigmático implica em sua distinção das outras modalidades fantasísticas
abordadas pelo pensamento freudiano. De fato, no campo das fantasias vazias, a
ambigüidade e a polissemia das palavras são postas de lado e, assim, elas se
tornam absolutas e unívocas, de modo a anularem quaisquer possibilidades
metafóricas ou simbólicas. Em outros termos, estas cenas inertes não abrem
espaço para a dúvida, o vacilo ou o tropeço como se os elementos nelas presente
13
estives
sem atados a uma significação rígida, fixa e manifesta no próprio
instante do relato.
Desta forma, observamos que, no domínio dos fantasmas vazios, os
elementos que aparecem na fala do sujeito sempre reenviam a eles próprios e
não a uma formação inco
nsciente
o que vem a dificultar o processo de
atribuição de sentidos diversos para o discurso congelado. Segundo o nosso
entender, é este o fator que explicaria a irredutibilidade dos fantasmas vazios aos
trabalhos de associação livre e de interpretação. Por isto, devemos ressaltar que as
fantasias vazias representam um grande desafio à clínica psicanalítica, tal como
concebida em seus moldes tradicionais.
Igualmente instigante é o fato delas sempre se manifestarem no discurso
ao lado de outros fantasmas mais elaborados e frente aos quais, de certo modo, o
trabalho analítico se efetiva. No relato destes últimos, sempre uma riqueza de
detalhes, um colorido especial ou uma narrativa que favorece a interpretação.
Contudo, no tocante às fantasias vazias, a dinâmica é completamente diferente:
sua neutralidade contrasta com a riqueza do cenário devaneativo; seu
congelamento numa única imagem anestesiada se opõe ao colorido próprio ao
romance relatado no devaneio; a univocidade de seus elementos passa à margem
da fertilidade associativa característica da narrativa propícia à realização de
desejos. Deste modo, a única semelhança observada entre uma fantasia vazia e um
devaneio, por exemplo, parece remeter à constatação de se tratarem, nestes dois
domínios, de fa
ntasias propriamente conscientes.
Para ilustrar esta modalidade fantasística que designamos de fantasias
vazias remetemos à obra freudiana, mais especificamente, à “Análise de uma
14
fobia em um menino de cinco anos (FREUD, 1910a/1995). Cabe salientar que
es
tamos extraindo do texto freudiano um exemplo de fantasia que não recebeu
tratamento conceitual específico, mas que atraiu nossa atenção por comportar as
mesmas características por nós assinaladas. Trata-se da cena relatada por Hans a
respeito do cavalo que possuía um estranho objeto preto na boca, objeto que o
menino não conseguia associar a qualquer outra representação. Apesar das
múltiplas tentativas de Freud e de seu pai, o menino dizia que o referido objeto
não simbolizava, de modo algum, um arreio, um bigode ou qualquer outro
elemento. Com efeito, esta cena contrastava com suas outras produções
fantasísticas que, geralmente, assumiam a forma de devaneios ou de lembranças
encobridoras; e, sempre que o trabalho associativo esbarrava neste estranho objeto
preto, o discurso de Hans, a então bastante fértil, tornava-se congelado. Do
mesmo modo, sempre que a cena retornava, as mesmas reticências se
manifestavam. A cena, em si, era clara, não fazia enigma e se mostrava
irredutível aos esforços interpretat
ivos.
Assim, tendo em vista a inespecificidade conceitual desta modalidade
fantasmática, o objetivo da tese é circunscrever o estatuto metapsicológico das
fantasias vazias, analisando em qual medida elas se diferem das demais estruturas
fantasmáticas apresentadas na obra freudiana. Também, partindo de sua
irredutibilidade ao trabalho interpretativo, será investigada
a questão da direção do
tratamento face à singularidade destas produções fantasmáticas.
A discussão se encaminhará ao longo de quatro capítulos. No primeiro,
intitulado “Os paradoxos da fantasia”, são examinados os principais escritos
freudianos sobre a atividade fantasmática, visando delimitar as ambigüidades
15
manifestas em suas concepções sobre o tema. Assim, veremos que, nestes textos,
a atividade fantasística se mostra sob diferentes roupagens, seja como aquilo que
chamaremos de cenários narrativos, de cenas indizíveis, de cenas originárias e de
cenas anestesiadas. No início de sua teorização, após o abandono da teoria da
sedução sexual (FREUD, 1897/1995), a fantasia foi privilegiada enquanto um
cenário narrativo. Trata-se aqui da fantasia historicizada, que se manifesta na
forma de relato propício à realização de desejos e corrigindo a realidade
insatisfatória. Neste contexto, delimitaremos as relações que tais fantasmatizações
possuem com a interpretação psicanalítica, na medida em que este dispositivo
clínico operaria na decomposição destes cenários narrativos, com o propósito de
trazer à tona os desejos inconscientes que os fundamentam. As lembranças
encobridoras (FREUD, 1899/1995), os devaneios (FREUD, 1908a/1995) e as
organizações inconscientes subjacentes aos sintomas neuróticos (FREUD,
1908b/1995) e às criações artísticas (FREUD, 1910b/1995) são exemplares desta
modalidade fantasmática.
Também destacaremos, no decorrer do capítulo, que estas
fantasmatizações contrastam com outras modalidades fantasísticas analisadas por
Freud no desenvolvimento de sua obra. Estas últimas podem remeter às cenas
indizíveis e às cenas originárias. Para uma investigação metapsicológica acerca
das cenas indizíveis, nossa atenção se voltará para os ensaios “Historia de uma
neurose infantil” (FREUD, 1918/1995) e “‘Uma criança é espancada’: uma
contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais” (FREUD, 1919
a/1995).
Nestes artigos, a fantasia é circunscrita como o que, justamente, escapa ao
encadeamento discursivo, não consistindo numa organização psíquica passível de
16
expressão por meio da fala. Assim, no tocante a tais fantasmatizações, restaria ao
trabalho
analítico a tarefa de construí-las. Já no campo das cenas originárias,
teríamos fantasmatizações reportadas às temáticas da sedução, da castração e da
cena primária (FREUD, 1917b/1995): fantasias que, remetidas a um acervo
filogenético, estruturam toda a vida fantasmática do sujeito. Para finalizar,
veremos que, na obra de Freud, a fantasia também pode se apresentar enquanto
uma cena anestesiada. Nesta oportunidade, propomos retomar a fantasia
neutralizada do Pequeno Hans (FREUD, 1910a/1995)
a do estranho
objeto preto
ao redor da boca do cavalo
com o propósito de examinar sua analogia com o que
designamos por fantasias vazias.
No segundo capítulo “A questão do referencial discursivo” trabalharemos
alguns aspectos que vão possibilitar a circunscrição do estatuto metapsicológico
dos fantasmas vazios. Primeiramente, apresentaremos o modelo de aparelho
psíquico arquitetado por Freud (1896a/1995) na “Carta 52” ; em especial, no que
diz respeito ao contraste entre os signos de percepção e os registros da
incon
sciência e da pré-consciência. Deste modo, será elaborada uma discussão
que conduza à associação das fantasias vazias com o registro mnêmico dos signos
de percepção. Nesta perspectiva, as fantasias em questão seriam consideradas
enquanto uma formação psíqu
ica que escapa ao domínio significante, sendo, desta
maneira, configurada enquanto uma escritura eminentemente cifrada e ainda
estranha à organização narrativa propriamente dita. Em seguida, retomaremos o
ensaio “Contribuição à concepção das afasias” (FREUD, 1891/1987), com o
propósito de explicar o estranho fato de, nesta modalidade fantasística, as palavras
serem unívocas, não ambíguas e de sempre reenviarem a si próprias. Nesta
17
perspectiva, veremos que seus elementos comportam-se, na fala do sujeito, com
o
aquilo que denominaremos de referenciais discursivos. De acordo com nossa
proposta, a nomenclatura de referenciais discursivos servirá para designar alguns
elementos do discurso cujas significações são unívocas, diretas e passam à
margem do processo de formação simbólica. Conforme veremos, tal designação
servirá para evitar o equívoco de conceber estes elementos fantasísticos como
reportados seja a um referente concreto, seja a um referente idealizado.
No terceiro capítulo, intitulado “Sobre a clivagem p
síquica”,
investigaremos a questão do mecanismo psíquico responsável pela formação dos
fantasmas vazios através de algumas considerações acerca da noção de clivagem,
tal como pensada por Freud e por Ferenczi. Com esta noção, pretendemos mostrar
que as cenas anestesiadas se perpetuam no discurso do sujeito sem jamais serem
tocadas pelas outras fantasmatizações de cunho narrativo. Dando prosseguimento
à argumentação, nos voltaremos para o exame das figuras da incorporação e da
cripta, presentes na obra de Nicolas Abraham e Maria Torok, visando analisar o
modo peculiar através do qual a figura da fantasia se manifesta no pensamento
destes autores. Trata-se, para eles, de uma estrutura situada para além dos jogos
metafóricos e metonímicos na qual os diversos elementos parecem não consistir
em substitutos simbólicos de algo recalcado. Por estes fatores, será proposta sua
analogia com os fantasmas vazios. Com base nesta discussão, efetuaremos uma
investigação acerca da dimensão mítica própria à atividade fantasmática, o que
levará a conclusão de ser justamente esta vertente que falta aos fantasmas vazios,
o que os distinguiria dos devaneios e das lembranças encobridoras.
18
no último capítulo, intitulado “Da desconstrução de fantasias à
produção de enigmas”, partimos da irredutibilidade dos fantasmas vazios à
interpretação psicanalítica, para investigar outros artifícios de intervenção clínica.
Retomaremos o contraste existente entre os devaneios e os fantasmas vazios para
explicitar em qual medida a interpretação psicanalítica se exerce frente aos
primeiros e vacila face aos segundos. Nesta medida, será discutido o artifício
clínico proposto por Kristeva (2002) referente à nomeação de fantasias no caso
Didier, paciente cujo discurso neutralizado e desafetado funcionava como uma
espécie de limite aos esforços analíticos. Mesmo considerando não se tratar,
exatamente, de um extrato clínico paradigmático daquilo que denominamos de
fantasias vazias, esta discussão será útil para delimitarmos a importância da
produção de enigmas no decorrer do tratamento analítico. Segundo nosso
entender, a estratégia clínica de produzir enigmas viabilizaria a promoção da
dimensão eminentemente mítica dos fantasmas vazios, permitindo ao sujeito em
análise o trabalho de elaboração psíquica de suas fantasias neutralizadas. Esta
discussão será ilustrada por uma releitura do caso clínico do Pequeno Hans
(FREUD, 1910a/1995), com o objetivo de mostrar em qual medida a produção de
enigmas possibilitou o resgate, e a conseqüente apropriação, de sua f
antasia
neutralizada pelos cenários narrativos fantasísticos.
19
Capítulo 1
Os paradoxos da fantasia
Tendo em vista o objetivo de circunscrever o estatuto metapsicológico das
fantasias vazias, a proposta deste primeiro capítulo é analisar os escritos
f
reudianos que tratam da questão da atividade fantasmática, a fim de lançar alguns
subsídios que auxiliem em nossos propósitos.
De um modo geral, a figura da fantasia possui, no pensamento
psicanalítico, um estatuto de difícil precisão teórica. Ou seja, naquilo que Freud
designa por atividade fantasística, podem incluir-se as lembranças encobridoras
(FREUD, 1899/1995), os devaneios que expressam de maneira deformada o
material recalcado (FREUD, 1908a/1995), e as organizações inconscientes
subjacentes aos sin
tomas neuróticos (FREUD, 1908b/1995) e às criações artísticas
(FREUD, 1910b/1995). É sobre tais formações fantasmáticas que nos
debruçaremos no início do capítulo, visando delimitar que, apesar das diferenças
em suas situações topográficas, todas elas possuem a característica comum de se
manifestarem enquanto cenários narrativos. Ou seja, é através delas que o sujeito
pode falar, por exemplo, sobre seus desejos, sua história de vida ou seus planos
futuros. Em seguida, será exposto que tais manifestações fantasísticas contrastam
com aquelas que, paradoxalmente, se configuram enquanto um conjunto de cenas
indizíveis. Incluem-se o fantasma de cena primária do Homem dos lobos
(FREUD, 1918/1995) bem como o segundo tempo da fantasia de espancamento
(FREUD, 1919a/1995). Estes não são passíveis de expressão por intermédio da
fala e, por isso, merecem ser considerados como espécies de resíduos da atividade
psíquica. Uma terceira forma de presentificação da atividade fantasmática aponta
para as cenas originárias (FREUD, 1917b/1995), tidas como esquemas
20
filogeneticamente adquiridos e que, assim, estruturam e organizam todas as
produções fantasísticas do sujeito. Para Freud, são três as formações fantasísticas
originárias: fantasia de sedução, fantasia de castração e fantasia da cena primária.
Por fim, consideramos que a atividade fantasística também abrange, no
pensamento freudiano, um conjunto de cenas anestesiadas que, embora manifestas
no discurso subjetivo, não se vinculam a nenhuma formação desejante recalcada.
Co
nforme veremos, estas últimas resistem ao trabalho de associação livre e à
interpretação psicanalítica e, em muito, se assemelham ao que designamos de
fantasias vazias.
A discussão acerca dos paradoxos da figura da fantasia na obra freudiana
se encaminhará rumo ao estabelecimento de um contraste entre estas múltiplas
acepções
a fantasia enquanto um cenário narrativo, cena indizível, cena
originária e cena anestesiada para que, finalmente, possamos delimitar em qual
medida elas contribuem para o propósito de circunscrever o estatuto
metapsicológico dos fantasmas vazios.
No entanto, antes de entrarmos diretamente nesta investigação proponho,
num primeiro momento, voltarmos nosso interesse para os motivos que
respondem pela importância da figura da fantasi
a no pensamento psicanalítico.
1.1. Freud e a realidade da fantasia
A figura da fantasia está intimamente ligada, nos textos freudianos, ao conceito de
realidade psíquica. Trata-se, nesta última, da própria realidade do desejo, da
realidade operante no aparelho psíquico e que, assim, predomina no mundo das
neuroses e justifica a produção dos sintomas (LAPLANCHE & PONTALIS,
21
1998). Neste aspecto, a realidade psíquica deve ser associada àquilo que a língua
alemã designa por Wirklichkeit
, ou seja, uma realidade efetiva e construída e que,
deste modo, se opõe à
Realität
, esta referente a um dado objetivo específico e ao
próprio mundo material
3
.
Com efeito, a postulação do conceito de realidade psíquica se deu no
livro “A interpretação de sonhos” (FREUD, 1900/1995). Antes disto, foi
necessário a Freud percorrer um longo caminho, repleto de volteios e percalços
com respeito a quais os fatores determinantes na causação de uma neurose. Um
retorno às publicações pré-psicanalíticas nos leva à conclusão de que apena
s
quando se deu a percepção das limitações da teoria da sedução sexual (FREUD,
1897/1995)
teoria que focalizava a função da realidade material na formação
dos sintomas histéricos é que foi possível ao pensamento freudiano destacar a
importância da realidade fantasmática na dinâmica de funcionamento do aparato
psíquico. Nesta perspectiva, faz-se necessário descrever de que modo,
gradativamente, a fantasia passou a assumir um lugar de relevo na clínica
freudiana.
A teoria da sedução sexual elaborada, em sua forma definitiva, no artigo
“Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (FREUD,
1896b/1995)
foi o primeiro modelo teórico construído na tentativa de esclarecer
a etiologia das neuroses. De acordo com tal concepção, os sintomas se torna
riam
inteligíveis na medida em que fossem considerados como conseqüências de uma
cena na qual uma criança era seduzida por um adulto. O acontecimento em
questão seria interiorizado pela criança na forma de um corpo estranho, ou seja,
3
Para maiores detalhes acerca da distinção dos termos “
Wirklichkeit
” e “
Realität
” na língua alemã,
remeto a Garcia
-
Roza (1996).
22
uma marca mnêmica não dotada de significação traumática, até que uma segunda
cena, ocorrida na puberdade, a evocasse mediante alguns traços associativos.
Somente neste segundo instante, o momento do trauma propriamente dito, o
caráter sexual é fornecido à lembrança da sedução, fazendo derivar o processo de
recalcamento.
Em suma, o recalque foi circunscrito, nestes primórdios do pensamento
psicanalítico, como um mecanismo de defesa patológico aplicado a representações
sexuais que provocassem um sentimento de desprazer. Posto em prática contra a
evocação da lembrança da cena de sedução, o procedimento em questão teria o
objetivo de mantê-la o mais afastada possível da consciência. No caso da histeria,
o afeto ligado à representação intolerável desloca-se para o corpo do sujeito,
d
ando origem aos sintomas conversivos (FREUD, 1896b/1995).
Contudo, em pouco tempo, Freud (1897/1995) percebe as limitações da
teoria da sedução sexual revelando, ao longo da “Carta 69”, os diversos fatores
responsáveis pelo abandono destas hipóteses iniciais. O primeiro argumento diz
respeito à dificuldade de conduzir algumas análises aa rememoração do evento
patogênico. Tal fator foi reforçado pelos resultados obtidos com o tratamento de
psicóticos nos quais, a princípio, o inconsciente parecia mais acessível e, ainda
assim, a recordação não ocorria. Ademais, para que sua teoria tivesse consistência,
seria necessário supor um mero imenso de adultos perversos na sociedade. No
entanto, dentre todos os argumentos, o que mais interessa ao presente estudo
concerne, segundo suas palavras, à “descoberta comprovada de que, no
inconsciente, não há indicações de realidade, de modo que não se consegue
23
distinguir entre a verdade e a ficção que é investida com afeto” (FREUD,
1897/1995, p. 310).
De fato, a hipótese
de o inconsciente desprezar, por completo, os signos de
realidade enviados ao aparelho psíquico vinha se insinuando algum tempo
em seu pensamento, principalmente, a partir da construção do modelo da vivência
de satisfação, sistematizado ao longo do “Projeto para uma psicologia científica”
(FREUD, 1895/1995). No ensaio em questão, Freud menciona o caso de um
recém nascido que tenta suprimir a estimulação de fome por intermédio de
respostas motoras, tais como o choro e o agito dos membros. Estas respostas, no
entanto, não produzem o alívio desejado, sobretudo, por ainda persistir a
estimulação desagradável. A eliminação do desprazer só é obtida mediante a
realização de uma ação específica, neste caso, a mãe lhe fornecendo o alimento.
Ao momento mítico de supressão da tensão pela ação específica, Freud denomina
vivência de satisfação.
Com o alívio da tensão, se estabelece no sistema
uma facilitação entre os
neurônios que correspondem à lembrança do seio e os que foram informados da
descarga pela ação específica. Conseqüentemente, em virtude do caminho
facilitado no sistema neuronal, o reaparecimento do estado de desejo provoca em
um impulso que reinveste a lembrança do seio. Neste segundo momento, a
satisfação não é alcançada, pois a situação tem como resultado uma alucinação.
Freud (1895/1995) designa por processo primário, o funcionamento em
que,
partindo da estimulação desagradável, culmina na alucinação do objeto desejado.
A frustração obtida pela via alucinatória provoca o surgimento dos
proce
ssos psíquicos secundários, possibilitados pelo advento de uma organização
24
em
denominada
ich
(
eu
), que tem por função a inibição da regressão, caso o
objeto desejado não se encontre presente no mundo externo. Ou seja, a percepção
do seio excita os neurôn
ios
, provocando uma descarga neste sistema neuronal
que, por sua vez, funciona como um signo de realidade para
Assim, estes
conseguirão distinguir entre o objeto real e o objeto representado, e efetuar uma
descarga mais segura da excitação (FREUD, 1895
/1995
)
4
.
De acordo com o modelo em questão, verificamos que o desconhecimento
das indicações de realidade, por parte do inconsciente, desencadeia um modo de
funcionamento bastante peculiar a este sistema: é plausível que uma formação
originada no inconsciente possa ser tida como pertencente à realidade material.
Foi, justamente, com base nesta argumentação que a questão da autenticidade da
cena de sedução se tornou problematizada. Por conseguinte, Freud (1897
/1995
)
contrapôs a possibilidade de uma fantasia produzir, na vida subjetiva, os mesmos
efeitos de uma cena real.
Quando a temática do funcionamento do sistema inconsciente é retomada,
anos mais tarde, no artigo “Formulações sobre os dois princípios do
funcionamento mental”, Freud (1911
/1995
) faz a se
guinte afirmação:
“A característica mais estranha dos processos inconscientes (recalcados), à qual
nenhum pesquisador se pode acostumar sem o exercício de grande autodisciplina,
deve
-se ao seu inteiro desprezo pelo teste de realidade; eles equiparam a rea
lidade
do pensamento com a realidade externa e os desejos com sua realização com o
fato
tal como acontece automaticamente sob o domínio do antigo princípio de
4
Deste modo, tanto os processos primários quanto os processos secundários são inconscientes, por
estarem atrelados ao sistema de neurônios. Contudo, cabe ressaltar que numa revisão da
questão, apresentada no livro “A interpretação de sonhos”, Freud (1900/1995) relaciona as funções
de alucinação de rastreamento da realidade a dois sistemas psíquicos distintos, a saber, o
inconsc
iente e o pré
-
consciente/consciente, respectivamente.
25
prazer.
Daí a dificuldade de distinguir fantasias inconscientes de lembranças que se
tornaram
inconscientes. Mas nunca os devemos permitir ser levados erradamente a
aplicar os padrões da realidade a estruturas psíquicas recalcadas e, talvez, por causa
disso, a menosprezar a importância das fantasias na formação dos sintomas sob o
pretexto de elas
não serem realidades” (FREUD, 1911
/1995
, p. 243).
A configuração da cena de sedução enquanto efeito de construções
fantasmáticas forneceu à figura da fantasia um lugar de destaque no pensamento
psicanalítico. Nesta perspectiva, a atividade fantasística foi circunscrita,
inicialmente, como um artifício do qual o sujeito dispõe para dissimular as
diversas manifestações da sexualidade infantil. No contexto da sedução, por
exemplo, uma fantasia masturbatória é convertida em lembrança real, mascarando
uma atividade sexual espontânea mediante uma cena de passividade frente a um
adulto (FREUD, 1906
/1995
). Portanto, subjacente às construções fantasmáticas
estaria, em toda a sua amplitude, a vida sexual de uma criança imersa em seus
amores edipianos, sendo a interpretação da fantasia necessária para, justamente,
trazer à consciência as diversas situações experimentadas pelo sujeito em sua mais
primitiva infância, sob o pano de fundo de seus complexos infantis.
Este deslocamento clínico conduziu Freud no caminho de suas grandes
elaborações teóricas. Assim, pressupondo que a fantasia de sedução seria uma
produção inconsciente, tornou-se inevitável examinar o funcionamento do
aparato, visando destacar o mecanismo que respondesse pela construção destas
fantasias. Tal investigação culminou na construção da primeira tópica (FREUD,
1900/1995), com a postulação de um inconsciente sistematizado, ou seja, um
espaço psíquico dotado de características e funcionamento próprios. As múltiplas
análises empreendidas acerca dos sonhos e sintomas neuróticos levaram à
26
postulação de que o inconsciente é a base fundamental de todos os mecanismos
psíquicos, restando à consciência a mera função de percepção seja dos processos
do mundo externo, seja dos sentimentos de prazer e desprazer. De acordo com a
passagem a seguir:
“O inconsciente é a base geral da vida psíquica. O inconsciente é a esfera mais
ampla, que inclui em si a esfera menor da consciência. Tudo o que é consciente
tem um estágio preliminar inconsciente, ao passo que aquilo que é
inconsciente
pode permanecer nesse estágio e, não obstante, reclamar que lhe seja atribuído o
valor pleno de um processo psíquico. O inconsciente é a verdadeira realidade
psíquica;
em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a
realidade
do mundo externo, e é tão incompletamente apresentado pelos dados da
consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos
sensoriais
” (FREUD, 1900/1995, p. 637, grifo do autor).
Deste modo, a postulação de uma realidade psíquica implicou num
deslocamento fundamental na clínica psicanalítica na medida em que esta deveria
operar, tal como os processos inconscientes, com base na suspensão do
julgamento de realidade. Por exemplo, para a psicanálise pouco importa se um
determinado paciente realmente vivenciou as diversas experiências narradas
durante o tratamento pois, no que tange ao estabelecimento de um sintoma, a
realidade psíquica vigora como realidade decisiva. Conforme apresentado no
ensaio “Totem e tabu”, Freud (1913/1995) considera errôneo remontar o
sentimento de culpa de um neurótico obsessivo a um malfeito real, pois é
perfeitamente plausível que o sujeito seja acometido de uma culpa exacerbada,
mesmo comportando-se socialmente como alguém altamente escrupuloso e
27
respeitável. Ne
ste caso, um simples desejo infantil de morte dos seus semelhantes,
ainda ativo no inconsciente, basta para despontar o sentimento de culpa.
Com base nestes pressupostos, verificamos que a realidade em jogo nas
neuroses é a realidade do desejo: o desejo inconsciente, ao ser encenado numa
determinada fantasia, adquire o potencial de inventar a própria realidade psíquica
regendo, de forma crucial, todas as produções subjetivas
5
. Em outros termos,
trata
-se de considerar que o pensamento psicanalítico atribui ao desejo
inconsciente o poder de criação de uma realidade própria ao sujeito; uma
realidade fantasmática que é construída, justamente, para servir à satisfação de
seus impulsos mais desconhecidos. De acordo com a famosa metáfora, o desejo
inconsciente se configura como o verdadeiro motor de todas as produções do
aparelho psíquico, estabelecendo-se como o capitalista do sonho, ou seja, como
aquele que dispõe da energia psíquica necessária e suficiente para o acionamento
do aparato (FREUD, 1900/1995).
São, portanto, estes os fatores que respondem pela importância da figura
da fantasia no pensamento freudiano. Articulada ao desejo inconsciente e à
realidade psíquica, a atividade fantasmática vai sendo, cada vez mais, privilegiada
na clínica psicanalítica, passando a ganhar um lugar de destaque na
metapsicologia freudiana. Foi, justamente, por ter em vista o papel fundamental
desempenhado pela fantasia no mecanismo de estruturação dos sonhos, sintomas
neuróticos e demais produções psíquicas, que Freud se debruçou, ao longo dos
primeiros anos de sua obra, sobre uma investigação teórico-conceitual da
atividade fantasmática. Nesta perspectiva, os principais escritos desta época de
5
Para maiores detalhes a respeito desta questão, remeto a Herzog (2001).
28
1899 a 1914 que versavam sobre a função da fantasia na dinâmica de
funcionamento do aparelho psíquico, explicitavam suas articulações com a
temática do recalque, com a divisão topográfica do aparato e com o primado do
princípio de prazer.
Passemos, então, a uma análise destes escritos nos quais a fantasia se
manifesta, basicamente, enq
uanto um cenário narrativo.
1.2. A fantasia enquanto cenário narrativo
Como o analista pode obter o conhecimento necessário desta realidade psíquica,
efetiva e singular a cada um de seus pacientes? De quais artifícios clínicos ele
dispõe para trazer à tona o desejo inconsciente que se liga às construções
fantasmáticas de seus analisandos?
Para estas questões, Freud (1905c/1995) fornece a seguinte resposta: o
analista deve fazer com que o paciente fale acerca de si mesmo. Mas, nesta
perspectiva, cabe indagar: o que vem a ser este convite à livre associação senão a
convocação para que o paciente discorra sobre as suas mais variadas
fantasmatizações?
Com efeito, no processo de associação livre, o paciente fala de seus
devaneios, das lembranças encobridoras re
ferentes a eventos infantis, dos diversos
romances e teorias inventados sobre si e sobre a realidade circundante, além das
concepções arquitetadas acerca do seu passado, presente ou futuro. Cabe à
interpretação psicanalítica a desmontagem destes circuitos fantasmáticos, em
vistas de exprimir o desejo inconsciente subjacente a toda e qualquer construção
fantasística deste gênero. Ou seja, considerando o discurso do sujeito em análise
29
como um conjunto de enunciados eminentemente fantasmáticos, o artifício da
interpretação permite ao analista, partindo de tais enunciados, chegar ao desejo
inconsciente que os fundamenta. Para tal, é necessário operar a decomposição dos
elementos presentes no discurso subjetivo, desconstruindo o conjunto de teorias
arquitetadas sobre si e sobre a realidade circundante, a fim de conceder a devida
expressão aos desejos recalcados (FREUD, 1905c/1995).
Nestes termos, a interpretação psicanalítica consiste basicamente na
decomposição incessante de produções fantasmáticas que, em si mesmas, são
interpretações, fornecidas pelo próprio sujeito em análise, para as mais variadas
experiências de sua vida. Desta forma, não haveria um símbolo primário,
totalmente purificado e isento de qualquer apreciação subjetiva que se oferece à
interpre
tação psicanalítica, sendo todos os elementos da cadeia associativa tidos
como interpretações de outros elementos, e assim por diante. Nesta perspectiva,
devemos
atentar para o pano de fundo de violência sobre o qual a interpretação
psicanalítica se exerce, na medida em que ela se apodera de uma construção
fantasmática pronta, com o objetivo de destroçá-la e arruiná-la, para que uma
outra fantasia seja recomposta (FOUCAULT, 1987).
Entretanto, é necessário também destacar que, para se operar de modo
efica
z, a interpretação deve necessariamente vencer alguns obstáculos. Neste
contexto, Freud (1914a/1995) coloca a necessidade de diminuir a força das
resistências oferecidas pelo sujeito em análise, resistências que teriam por função
proteger, ao máximo, o
eu
do desejo inconsciente propulsor das fantasmatizações
em questão. Tal modalidade de resistência se presentifica na medida em que, após
o processo de recalque, o
eu
ainda se na obrigação de empregar um certo
30
dispêndio de energia psíquica, com o propósito de manter o recalque e de impedir
o acesso dos impulsos inconscientes na consciência.
Com base nestes pressupostos, cabe destacar que as formações
fantasísticas consistem em estruturas passíveis de interpretação pelo procedimento
analítico por se fazer presente, em seus conteúdos, uma série de entrelinhas,
equívocos e contradições
6
. Deste modo, as lacunas evidenciadas no
discurso
neurótico funcionam como espécies de brechas a serem privilegiadas pelo
procedimento analítico, com a finalidade de percorrer a trama de pensamentos
inconscientes, subjacentes aos enunciados do paciente.
Lembranças encobridoras, devaneios, concepções acerca do futuro: todas
estas formas de presentificação da atividade fantasmática relatadas no processo de
associação livre se configuram enquanto cenários narrativos propriamente ditos
7
.
Quando decompostas pelo artifício da interpretação, algumas outras fantasias, que
em virtude de seu conteúdo ameaçador se tornaram inconscientes, são também
trazidas à tona. Mas, pode-se dizer que, apesar desta diferença topográfica, todas
estas construções fantasmáticas se apresentam enquanto estruturas passíveis de
ordenação e expressão por intermédio da fala. É justamente esta a característica
comum às manifestações fantasísticas estudadas por Freud nos primeiros quinze
anos de sua elaboração teórica. Com base nestes pressupostos, passemos ao
exame destas diversas modalidades fantasmáticas.
A primeira modalidade fantasística analisada por Freud é a lembrança
encobridora (FREUD, 1899/1995). A investigação sobre este gênero fantasmático
tem como ponto de partida a observação de que as mais remotas recordações de
6
Para maiores detalhes, remeto a Pinheiro (2002).
7
As relações destes cenários narrativos com a interpretação e com a associação livre serão
retomadas em outros momentos da tese. Ver, por exemplo, a primeira seção do quarto capítulo.
31
seus pacientes se referem a eventos infantis irrelevantes e, portanto,
aparentemente nada justificaria sua retenção na memória. O encaminhamen
to
teórico elaborado para esclarecer tal paradoxo culmina na proposta de considerar
estas recordações como lembranças encobridoras, ou seja, como produções
fantasísticas erigidas para, justamente, ocultar o que foi de suma importância na
história do sujeit
o.
Assim, a confecção de uma lembrança encobridora é resultante de um
mecanismo de distorção dos traços mnêmicos referentes à cena original e
relevante para o sujeito. Duas forças psíquicas antagônicas interagem no processo:
uma que impõe a fixação dos traços na memória consciente e outra que resiste a
tal propósito. Resulta deste conflito uma conciliação entre as duas exigências
contrárias, de modo que uma cena suficientemente distorcida, por intermédio de
condensações e deslocamentos, ascende à consciênc
ia (FREUD, 1899/1995).
Deste modo, Freud (1899/1995) pressupõe que as impressões advindas da
realidade material jamais sobrevivem na memória do sujeito da maneira tal como
elas foram percebidas. Pelo contrário, o processamento de uma lembrança é
fatalmente
contaminado pela atuação do aparelho psíquico, que dissimula os
dados materiais, mediante a reelaboração e reorganização das impressões
referentes à realidade. Nesta medida, a atividade fantasmática, manifesta na
clínica na forma de lembranças encobridoras, possui um estatuto metapsicológico
semelhante ao de uma formação de compromisso.
Visando ilustrar suas elaborações teóricas, Freud (1899/1995) se volta para
a análise de uma cena aparentemente irrelevante de sua infância que, no entanto,
permaneceu gravada na memória. A cena se passa num relvado onde ele, um
32
primo e uma prima estão colhendo diversos ramos de flores amarelas. Quando,
num dado momento, Freud arranca as flores da mão da prima, esta se põe a chorar
e, como consolo, lhe é oferecido um pedaço de pão pela governanta. A fim de
também receber o pedaço de pão, os dois meninos escondem suas flores.
Com o objetivo de apreender o verdadeiro significado da cena em questão,
Freud é remetido à outra recordação datada de seus dezessete anos, na qual se
um retorno à terra natal. Nesta viagem, ele se apaixona por uma jovem, passando
o restante da viagem a fantasiar acerca de um possível casamento. De fato,
morando ao lado dela no campo, poderia provar diariamente o gosto do pão que é
produzido no interior. Entretanto, o que mais lhe chama atenção nesta viagem é a
lembrança do primeiro encontro com a moça, no qual ela trajava um vestido
amarelo. As associações prosseguem com outra recordação, agora datada dos
vinte anos, quando volta novamente para o interior e reencontra a prima que
estava presente na lembrança encobridora. Neste segundo momento, Freud é mais
uma vez tomado por devaneios, agora concernentes a um plano de casamento com
a prima, arquitetado minuciosamente pelo pai e pelo tio (FREUD, 1899/19
95).
Com base nestas associações, Freud (1899/1995) conclui que a cena
infantil, na qual as flores da prima são arrebatadas, representa uma dissimulação
de um desejo inconsciente de defloramento, tanto da prima, quanto da outra
jovem, sendo a lembrança encobridora construída para, justamente, atender à
satisfação deste desejo. Trata-se, em outros termos, de uma construção
fantasmática que, apesar de servir de cenário à realização de um desejo recalcado,
consegue ascender à consciência, por simbolizá-lo de maneira disfarçada. A
33
necessidade de oferecer um disfarce às impressões da infância se faz presente em
virtude de suas associações com o desejo sexual recalcado.
A temática da fantasia é retomada no livro “A interpretação de sonhos”, no
qual Freud (1900/1995) esboça uma primeira distinção concernente à sua situação
topográfica. De acordo com o encaminhamento proposto, a atividade fantasmática
se manifesta, em primeiro lugar, sob a forma de devaneios. Ou seja, cenas e
romances inventados pelo sujeito são também apresentados como formações de
compromisso, expressando o material recalcado de maneira deformada para
conseguir o acesso à consciência. Por outro lado, a fantasia também se configura
como uma estrutura inconsciente, devendo assim permanecer, em virtude de seu
conteúdo ameaçador. Freud declara que ambas possuem um papel crucial no
mecanismo de formação dos sonhos: enquanto as fantasias inconscientes
encontram
-se atreladas ao desejo instigador do sonho, os devaneios são utilizados
pelo trabalho de elaboração secundária, servindo como um importante recurso
para a finalidade de fornecer uma fachada inteligível aos sonhos.
Estas duas formas de presentificação da atividade fantasmática no aparelho
psíquico são objetos de uma análise mais detalhada em alguns escritos posteriores
da obra freudiana. No artigo “Escritores criativos e devaneio”, por exemplo, Freud
(1908a/1995) focaliza a vertente consciente da fantasia circunscrevendo-a, em
linhas gerais, como uma atividade imaginativa que visa à correção da realida
de
insatisfatória. O devaneio é, neste sentido, uma produção psíquica que fornece o
suporte necessário para o sujeito retirar seus investimentos libidinais do mundo
externo, rearrumando-o de modo tal que propicie a satisfação dos desejos
inconscientes. Desta maneira, o objetivo do devanear é a obtenção de um prazer
34
que a realidade material, com todas as suas limitações e privações, não
proporciona.
A discussão se inicia com a comparação entre as atividades do brincar e do
devanear, mediante a constatação de que ambas objetivam a criação de uma
realidade própria ao sujeito a partir do rearranjo dos elementos da realidade
material. As duas realizações são impulsionadas por um desejo insatisfeito, mas
diferem quanto à natureza e conteúdo deste desejo: enquanto no brincar, trata-
se
do anseio inofensivo de se tornar adulto, os devaneios funcionam como uma
espécie de cenário para a realização de um desejo recalcado e vinculado à
sexualidade infantil (FREUD, 1908a/1995).
Ainda com respeito à articulação entre o brincar e o devanear, Freud
(1908a/1995) postula que o sujeito jamais consegue renunciar a uma satisfação
outrora experimentada; lhe é possível, apenas, substituir uma atividade
prazerosa por outra. Ou seja, o homem adulto troca a satisfação que obtinha ao
brincar pelo prazer de devanear, passando a construir seus romances e castelos no
ar, tomando suas fantasias como seus bens mais íntimos e investindo nelas uma
grande quantidade de emoção. No entanto, ao contrário da criança que brinca, o
adulto faz questão de esconder seus fantasmas dos outros, e isto, em virtude dos
desejos ameaçadores que impulsionam seus devaneios.
O estabelecimento do devaneio enquanto a atividade psíquica encarregada
de corrigir a realidade frustradora conduziu Freud (1908a/1995) à p
olêmica
afirmação de que “a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita” (p. 137).
Deixando de lado a controvérsia passível de ser gerada por tal afirmação
8
,
8
Principalmente, se tivermos em mente o fato de que, para o pensamento psicanalítico, não há
sujeito plenamente satisfeito.
35
podemos ainda examinar uma outra característica importante da atividade
devaneativa. De fato, Freud postula que o devaneio conduz o sujeito à
revivescência de um estado mítico de sua história analisado de modo mais
abrangente no artigo “Sobre o narcisismo: uma introdução” (FREUD,
1914b/1995)
no qual ele tivera, supostamente, todos os seus desejos realizados.
Trata
-se de um fenômeno eminentemente narcísico no qual a criança – que,
segundo as fantasias parentais é situada enquanto “Sua Majestade, o bebê”
poderá realizar todos os desejos que os pais tiveram de abandonar ao longo da
vida. Assim, não haveria limites para a criança, bem como restrições às suas
vontades, de modo a promover a ilusão de que o mundo inteiro pode ser
modificado a seu bel prazer. De acordo com o desejo dos pais, é considerado que,
por exemplo, o menino se tornará um grande homem e um herói no lugar do pai;
já a menina se casará com um príncipe para compensar as frustrações de sua mãe
9
.
Por este viés, Freud (1908a/1995) indica que o devaneio nada mais é do
que um retorno fantasmático para esta condição narcísica. Isto porque, no
devaneio, o próprio sujeito, tido como o personagem principal do romance, por
muitas vezes se imagina como um verdadeiro herói: ele parece estar protegido por
uma espécie de Providência especial; todas as atenções lhes são dirigidas; nada de
mal
lhe acontece, ou se acontece, é em virtude de um desejo inconsciente; ele é
invulnerável aos perigos enfrentados; todas as personagens femininas por ele se
apaixonam; e, enfim, os outros personagens bons do devaneio lhes são aliados,
enquanto que os maus s
ão tidos como inimigos ou rivais.
9
O modelo da “Sua majestade, o bebê” (FREUD, 1914b/1995) é de suma importância para esta
tese e será retomado adiante, na última seção do terceiro capítulo.
36
Também é mencionado que a produção de devaneios se dá de forma
constante no decorrer da vida subjetiva. Em outros termos, os devaneios não se
constituem enquanto estruturas inalteráveis; pelo contrário, a cada nova frustra
ção
com a qual o sujeito se defronta, um novo devaneio é erigido com o propósito de
ocasionar a realização do desejo insatisfeito.
Em respeito às relações da atividade devaneativa com o tempo, Freud
(1908a/1995) assinala que o devaneio é uma produção psíquica que articula o
passado, o presente e o futuro. Nesta perspectiva, a motivação para sua
constituição encontra-se no presente, tempo no qual uma determinada impressão
desperta um desejo do sujeito. Deste ponto, retrocede ao passado, época na qual
este desejo fora realizado. Por fim, produz-se uma cena futura que representa,
justamente, a realização do desejo. De acordo com suas palavras: no devaneio, “o
passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une”
(FREUD, 1908a/1995, p. 138). O exemplo fornecido é o de um pobre órfão que,
ao procurar emprego numa determinada firma, fantasia que consegue o trabalho,
torna
-se indispensável e amado para o seu chefe que, assim, entrega-lhe a mão de
sua filha em casamento. Segundo Freud (1908a/1995), com o desfecho deste
devaneio, o órfão revivenciaria o lar protetor que tivera na infância, bem como o
amor que lhe fora depositado pelos pais.
a vertente inconsciente da atividade fantasmática é analisada em outros
artigos desta mesma época. Nestes, ela é considerada, de modo geral, como uma
espécie de solo comum tanto à criação artística quanto à formação dos sintomas.
Ou seja, por um lado, as fantasias inconscientes constituem as verdadeiras fontes
através das quais os artistas retiram a inspiração para a confecção de suas obras.
37
Em contrapartida, caso o sujeito não consiga sublimar a libido, as fantasias podem
se tornar profusas e poderosas, dando origem aos diversos transtornos neuróticos.
O mecanismo de formação sintomática a partir de uma f
antasia
inconsciente é discutido, de maneira mais abrangente, no artigo “Fantasias
histéricas e sua relação com a bissexualidade”, no qual Freud (1908b
/1995
)
postula que os mais variados sintomas constituem a manifestação de uma fantasia
inconsciente que não consegue forma de expressão mais adequada. O processo
tem seu início com o recalcamento de uma fantasia outrora construída pela criança
durante um ato de masturbação. A partir daí, a ausência de interferência por parte
da consciência provoca um desenvolvimento desinibido da fantasia e, quando esta
é despertada por algum acontecimento fortuito, um sintoma se estabelece como
formação de compromisso. Em outros termos, os sintomas neuróticos são
concebidos como a resultante de uma espécie de conciliação entre uma fantasia
inconsciente que busca realização e um impulso contrário que tenta recalcá
-
la.
É neste sentido que devemos entender a afirmação de Freud (1908c/1995),
presente no ensaio “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna”, de que
o sintoma é a atividade sexual do neurótico. Com efeito, o sintoma é tido, nesta
época de sua teorização, como uma espécie de satisfação substitutiva de uma série
de fantasmas sexuais inconscientes que não conseguem expressar-se em virtude
dos padrões morais vigentes na cultura. De acordo com tal concepção, o neurótico
seria aquele que cede às exigências da moralidade e, de fato, recalca sua
sexualidade. Entretanto, o processo de recalque falha e as tendências perversas
continuam a existir no inconsciente, sendo ainda mantidas na esfera da fantasia.
Tal constatação clínica levou Freud (1905b/1995) à famosa formulação de que “a
38
neurose é (...) o negativo da perversão” (p. 157), assim estabelecendo que as
fantasias conscientes dos perversos e os fantasmas inconscientes dos neuróticos
coincidem até em seus mínimos detalhes. Nesta medida, no domínio fantasmático
inconsciente, o impulso sexual desejante do neurótico continuaria a existir, se
desenvolvendo à espreita de alguma oportunidade para se revelar. Quando tais
fant
asmas se tornam exageradamente investidos, de modo a forçar sua entrada na
consciência, concebe
-
se a formação sintomática.
Os exemplos mais claros a respeito de como uma fantasia inconsciente
ao se tornar profusa e desinibida se transforma num sintoma podem ser
encontrados nos “Fragmentos da análise de um caso de histeria” (FREUD,
1905a/1995). Nele, é demonstrado que a tosse nervosa de Dora se constituiu como
uma formação substitutiva de uma fantasia de felação, embora haja controvérsias
quanto a qual
o objeto das fantasias de Dora
se seu próprio pai, ou o Sr. K. O elo
intermediário entre o fantasma inconsciente e o sintoma seria a sensação de
cócegas na garganta.
Do mesmo modo, os sintomas de apendicite e de arrastamento da perna
simbolizariam uma fantasia inconsciente de parto. Ou seja, o sintoma de dor no
abdômen, por surgir exatos nove meses após a cena do lago, corrigira o desfecho
infeliz de suas relações com o Sr. K.: mediante a formação sintomática, Dora se
lamentava por não ter cedido às investidas do homem amado. Assim, uma fantasia
de relação sexual não realizada tornou-se inconsciente, desenvolveu-
se
profusamente neste sistema psíquico e, nove meses depois, foi substituída por um
sintoma que, em si, simulava uma situação de parto. Igualmente, o sintoma
39
referente ao arrastamento da perna simbolizaria um “passo em falso” que não fora
dado, porém intimamente fantasiado, na ocasião da cena do lago.
Retomando o artigo “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa
moderna”, constatamos conforme foi acima ressaltado que Freud
(1908c/1995) ainda concebe uma outra vicissitude para a sexualidade humana que
não o recalque e a conseqüente formação de sintomas. Trata-se do destino da
sublimação: com ela, demonstra
-
se a singular característica da pulsão
de substituir
um objetivo sexual por outro não-sexual e compatível com as exigências sócio-
culturais. A partir da circunscrição da noção de sublimação, o pensamento
freudiano passa a considerar que os artistas retiram a energia necessária para suas
criaçõ
es da força de suas tendências sexuais. Assim, ao longo de vários outros
ensaios, Freud põe
-
se a analisar as obras de alguns de seus artistas prediletos, com
o propósito de estabelecer que, tal qual os sintomas, elas também se configuram
como um substituto
disfarçado de uma série de fantasias inconscientes.
Dentre todos estes ensaios, “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua
infância” (FREUD, 1910b/1995) é o mais expressivo. Nele, Freud propõe uma
interpretação da fantasia do milhafre, visando ao preenchimento das lacunas da
infância do artista. O conteúdo manifesto da fantasia refere-se a um milhafre que
desce sobre o berço de Da Vinci, abre-lhe a boca com a cauda e fustiga-lhe os
lábios por repetidas vezes. Em linhas gerais, tal fantasia consciente simbo
lizaria,
de maneira deformada, uma relação sexual inconscientemente fantasiada na
qual a mãe de Leonardo introduz seu pênis na boca da criança. Trata-se, portanto,
de uma construção fantasmática erigida a partir da crença na universalidade do
órgão sexual masculino. Em si, o conteúdo latente dessa produção fantasmática
40
remete a um período ainda mais remoto, encontrando seus alicerces em
impressões indestrutíveis concernentes ao período de amamentação, no qual o
seio da mãe era introduzido por entre os lábios de Da Vinci. Concluída a
interpretação, destaca-se que a fantasia indica que o artista passou os primeiros
anos de sua infância apenas na companhia da mãe; ela, por sua vez, compensava a
falta do marido com a figura do filho, despertando precocemente
sua sexualidade.
Deste modo, no momento em que Freud (1910b/1995) submete à análise
algumas obras de Leonardo da Vinci, torna-se irresistível recorrer a tais
impressões da infância. Assim, por exemplo, o duplo significado de “promessa de
ternura infinita” e “sinistra ameaça” do misterioso sorriso da Mona Lisa é
retomado para se reconhecer, aí, a expressão da lembrança do sorriso de uma mãe
abandonada que muito fascinara o artista em seus primeiros anos de vida.
São, portanto, estas as formas de presentificação da atividade fantasmática
analisadas ao longo dos quinze primeiros anos da obra freudiana, período no qual
vigorava a primeira tópica do aparelho psíquico. Cabe destacar, mais uma vez,
que à parte de suas mais variadas peculiaridades, todas estas estr
uturas
fantasísticas consistem em um cenário narrativo. Em outros termos, tanto as
lembranças encobridoras, quanto os devaneios e ainda as fantasias inconscientes
quando tornadas conscientes se manifestam na clínica enquanto organizações
através das quais o paciente encontra os devidos meios para falar sobre seu
passado, presente ou futuro, bem como expressar seus anseios insatisfeitos ou
corrigir a realidade insatisfatória. É justamente esta a peculiaridade que une todos
os tipos de fantasias em questão: trata-se, aqui, de fantasias passíveis de serem
expressas e ordenadas por intermédio da fala.
41
1.3. A fantasia enquanto cena indizível
No decurso da obra freudiana, deparamo-nos com duas outras formações
fantasmáticas que, ao contrário das analisadas até então, não se apresentam na
clínica na forma de um cenário narrativo. De modo paradoxal, elas se manifestam
enquanto cenas indizíveis, resíduos da atividade psíquica. Trata-se do fantasma da
cena primária, mencionado por Freud (1918/1995) ao longo da anál
ise do Homem
dos lobos e do segundo tempo da fantasia de espancamento estudado no artigo
“Bate
-se numa criança” (FREUD, 1919a/1995). Em si, elas possuem um estatuto
metapsicológico distinto do das lembranças encobridoras, devaneios ou dos
fantasmas inconscientes até então investigados. Isto porque elas não se ligam
originalmente a nenhuma formação desejante recalcada, não almejam a correção
da realidade insatisfatória e, embora digam respeito ao passado do sujeito, não
funcionam na dinâmica psíquica como um
a lembrança encobridora.
Temos, assim, um primeiro paradoxo presente na circunscrição
metapsicológica de Freud acerca da figura da fantasia. Aqui, a atividade
fantasmática resiste ao encadeamento narrativo, não se tratando de algo que o
sujeito consiga exprimir por intermédio da palavra. Dada a impossibilidade do
sujeito falar sobre tais fantasias, percebemos que elas consistem em estruturas
inacessíveis aos esforços da associação livre e da interpretação, funcionando como
uma espécie de limite à clínica psicanalítica, tal como concebida por Freud até
então.
Ao se deparar com tais limites clínicos, Freud foi conduzido a uma
complexificação da sua proposta terapêutica inicial, lançando mão do artifício da
construção em análise (FREUD, 1937/1995). Com efeito
, a existência de um
lócus
42
não interpretável no aparelho psíquico já vinha se insinuando desde “A
interpretação de sonhos”, quando Freud (1900/1995) postulou a existência do
denominado umbigo dos sonhos. Com o desenvolvimento de sua obra, alguns
impasses relacionados ao conceito de repetição (FREUD, 1914a/1995), em
conjunto com o destaque concedido à “inquietante estranheza” (FREUD,
1919b/1995) e aos fenômenos compulsivos (FREUD, 1920/1995), levaram-no a
radicalizar a impossibilidade de levar adiante a proposta clínica de vencer as
resistências do paciente para trazer à consciência a totalidade do material
recalcado. Neste sentido, se antes a ênfase na dificuldade da condução do material
recalcado à consciência recaía sobre as resistências do
eu
, a partir de então, tal
impossibilidade passa a ser referida a algo que escapa ao encadeamento
discursivo; àquilo que o paciente não consegue colocar em palavras e expressar
por intermédio da fala. O conjunto destas tendências inacessíveis à fala podem ser
relacionada
s com o
lócus
pulsional situado para além do princípio de prazer e que,
portanto, resistem ao trabalho de inscrição psíquica (FREUD, 1920/1995).
Deste modo, o recurso à construção é utilizado quando a interpretação, a
rememoração e a associação livre se tornam vacilantes. Assim, no artigo
“Construções em análise”, Freud (1937/1995) define o procedimento em questão
como a ferramenta analítica que visa o preenchimento das diversas lacunas
deixadas pelo processo interpretativo. É exposto que os fragmentos mnê
micos dos
quais o sujeito não consegue se lembrar freqüentemente aparecem de maneira
disfarçada em seus sonhos, em atos dentro ou fora do
setting
analítico ou na
própria relação transferencial. É a partir destes fragmentos que o analista poderá
extrair o material que está a procura e reuni-lo, para uma posterior comunicação
43
ao paciente. Assim, num dado momento do artigo, o trabalho do psicanalista é
comparado com a incumbência do arqueólogo, sendo também enfatizado que
ambas atividades objetivam uma reconstrução mediante os procedimentos de
suplementação e combinação dos resíduos sobreviventes. Todavia, o psicanalista
situa
-se, de certa forma, numa posição privilegiada, pois o material que lhe
interessa não foi extinto, e ainda se encontra preservado na memória do sujeito,
embora inacessível à interpretação
10
.
Com base nestes pressupostos a respeito dos fantasmas indizíveis e do
artifício da construção, passemos à análise da “História de uma neurose infantil”
(FREUD, 1918/1995). Nela, veremos que este fragmento da história subjetiva
configurado enquanto algo inacessível à fala e a quaisquer outras tentativas de
verbalização aponta, justamente, para uma cena fantasmática.
Aos vinte e dois anos de idade, o Homem dos lobos foi se consultar com
Freud. O diagnóstico estabelecido foi de neurose obsessiva, caracterizada por
inúmeros sintomas, tais como dependência extrema das outras pessoas e profunda
desadaptação social. Porém, sabe-se que não foi esta neurose o objeto de
investigação ao longo do relato do caso, mas uma neurose infantil, que se
apresentava no contexto de uma fobia animal (FREUD, 1918/1995).
O objetivo de Freud (1918/1995) ao publicar o caso, foi tentar demonstrar
que a neurose adulta do paciente estava apoiada na neurose infantil, surgida a
partir da noite de seu quarto aniversário. Durante o tratamento, o interesse clínico
se dirigiu para a construção de uma cena que justificasse a fobia do Homem dos
lobos. Para tal, foi tomado como ponto de partida um sonho, datado da noite de
10
Retomaremos adiante, ainda neste capítulo, o tema da construção em análise, com o propósito
de oferecer uma nova leitur
a para o tema.
44
seu quarto aniversário, no qual haviam alguns lobos sentados sobre os galhos de
uma nogueira, diante da janela de seu quarto. Em linhas gerais, a interpretação do
sonho consistiu em mostrar que, em seus pensamentos oníricos, o paciente estaria
revivendo uma cena sucedida aos dezoito meses de idade, no qual testemunhara
uma relação sexual entre os pais. A cena em questão foi denominada de cena
primária.
Após uma série de impasses quanto à fornecer o estatuto de realidade ou
de fantasia à cena primária,
pouco antes da publicação do caso, Freud (1918/1995)
acrescenta duas longas passagens ao relato original, nas quais se manifestam
algumas tentativas de recuperação do caráter fantasmático da cena primária. Num
primeiro momento, é levantada a hipótese da cena ter sido fruto de uma pro
dução
fantasmática arquitetada a partir de impressões deixadas pela observação
ocasional de uma cena de cópula entre cães pastores. Todavia, não foi esta a
solução definitiva para o problema. Num segundo acréscimo, Freud (1918/1995)
retoma os impasses acerca da justificativa da neurose pela realidade material ou
pelo viés da fantasia, para lançar mão da proposta de considerar a cena primária
enquanto expressão de uma fantasia originária
11
.
Deste modo, a opção por considerar a cena primária como fantasmática
trouxe para o pensamento freudiano uma concepção diversa da que, até então, se
tinha a respeito da figura da fantasia. Conforme ressaltado acima, concebe-
se,
neste momento, a fantasia como algo que não pode ser recordado e nem mesmo
transformado numa produção discursiva. Pelo contrário, ela permanece no
aparelho psíquico na forma de uma cena indizível, possuindo um estatuto
11
Voltaremos a este tema na próxima seção.
45
metapsicológico distinto daquele dos devaneios, lembranças encobridoras ou dos
fantasmas inconscientes analisados na última seção.
A mesma conclusão pode ser obtida se nos debruçarmos sobre o artigo
“Bate
-se numa criança” (FREUD, 1919a/1995). No ensaio em questão, a
discussão acerca da origem e desenvolvimento das produções fantasmáticas se
apresenta a partir da análise dos três tempos d
a fantasia de espancamento:
1.
“Meu pai bate numa criança que eu odeio”;
2.
“Meu pai bate em mim”;
3.
“Bate
-
se numa criança”.
Segundo Freud (1919a/1995), a formação destes três tempos da fantasia se
torna inteligível quando nos voltamos para uma investigação minuciosa das
diversas manifestações psíquicas de uma menina imersa em seus complexos
parentais. Nesta perspectiva, o instante no qual a criança que acreditando ser o
objeto privilegiado do amor paterno é surpreendida com o nascimento de um
irmão, fornece os subsídios necessários para a construção do primeiro momento
da fantasia de espancamento. Em outros termos, a cena na qual o pai bate na
criança odiada é estruturada pela menina numa tentativa de gratificação tanto de
seu ciúme quanto de seus interesses egoístas. Trata-se, portanto, de uma fantasia
visivelmente incestuosa, pois realiza os desejos edipianos da menina, exprimindo
que o pai, por estar batendo na outra criança, ama apenas a ela.
Com o recalcamento destes impulsos libidinais, dois fatores int
eragem
para a transformação do conteúdo da fantasia de espancamento: o surgimento do
46
sentimento de culpa e a regressão da libido à fase sádico-anal. O primeiro,
justificado pela persistência dos desejos incestuosos no inconsciente, não poderia
encontrar punição mais rigorosa à menina do que a reversão da formação
fantasística inicial para “o meu pai está me espancando”. Em contrapartida, o
desmantelamento da organização genital da libido, como efeito do processo de
recalque, também favorece a gênese da fantasia masoquista. Nesta medida, a
fantasia “sou espancada pelo meu pai” deve ser encarada como uma substituta
regressiva da fantasia genital “o meu pai me ama” (FREUD, 1919a/1995).
Cabe ressaltar que a segunda forma de presentificação da fantasia é
incons
ciente, e assim permanece, em virtude da intensidade do processo de
recalque. O conteúdo que assoma à consciência é um derivado deste material
recalcado, no qual o adulto que espanca não é o pai, mas um professor ou
qualquer outra pessoa que exerça algum tipo de autoridade. Há, na cena, muitas
crianças sendo espancadas, e a menina é uma mera espectadora. Ou seja, por um
lado, a figura do professor toma o lugar do pai e, por outro, as várias crianças
funcionam como substitutas da própria menina. Neste sentido, o terceiro tempo da
fantasia de espancamento, apesar de aparentemente exprimir um sentido sádico,
também possui um conteúdo masoquista, em razão de suas ligações com o
fantasma inconsciente (FREUD, 1919a/1995).
Muitos são os comentadores que classificam como reducionista esta
interpretação de Freud para os fantasmas de espancamento à luz do complexo de
Édipo. Devemos, assim, destacar que, no artigo em questão, a análise freudiana é
bastante paradoxal, pois mesmo partindo da contextualização destas fantasias no
seio da dinâmica edipiana, constatamos um importante fator que favorece a
47
circunscrição dos fantasmas de espancamento como situados para além do jogo do
recalque e do retorno do recalcado. O fator a ser ressaltado remete, justamente, à
afirmação de que o segundo tempo da fantasia foi fruto de uma construção em
análise. Com efeito, não foi através de uma interpretação dos sintomas de seus
pacientes que Freud (1919a/1995) foi levado ao reconhecimento deste tempo da
fantasia. Conforme a passagem a segui
r:
“Essa segunda fase é a mais importante e a mais significativa de todas. Pode-
se
dizer, porém, que, num certo sentido, jamais teve existência real. Nunca é
lembrada, jamais conseguiu tornar
-se consciente. É uma construção da análise, mas
nem por isso é
menos uma necessidade” (FREUD, 1919a/1995, p. 201).
Deste modo, cabe perguntar: qual o fator responsável pela impossibilidade
do acesso a tal configuração fantasmática mediante a interpretação? Trata-se da
ação de uma resistência ao trabalho analítico?
Com base nestes questionamentos, Miller (1998), por exemplo, assinala
que o caráter inapreensível do segundo tempo das fantasias de espancamento
conduz para mais além desta situação, não dizendo respeito exatamente à força de
uma resistência do
eu
, que atuaria no sentido contrário ao da associação livre. De
fato, algumas passagens do texto freudiano justificam o ponto de vista de que este
momento da fantasia não consiste exatamente num núcleo patogênico recalcado.
Em outros termos, o que responde pela dificuldade de assimilação da fantasia em
questão parece não concernir às resistências do paciente, mas à articulação
assumida por tal configuração fantasmática com algo que é da ordem do indizível.
Assim, ao contrário do primeiro e do terceiro tempo da fantasia, o segundo
48
momento se constitui como um
lócus
fantasmático residual que, desta maneira,
não se oferece ao movimento de interpretação.
De acordo com tal ponto de vista, mais uma vez, a atividade fantasmática
se apresenta como algo inacessível à fala e que, portanto, não pode ser
interpretado, mas apenas construído em análise. Neste sentido, por se manifestar
na clínica não como um cenário narrativo, mas como uma cena indizível, o
segundo tempo da fantasia de espancamento possui um estatuto metapsicológico
em muito semelhante ao da cena primária do Homem dos Lobos. Isto serve,
enfim, para demonstrar o quão paradoxal é a concepção freudiana acerca do tema.
Se retomarmos o tema dos fantasmas originários, verificamos que tais
paradoxos não terminam neste ponto e que ainda há, no pensamento freudiano,
uma terceira forma de presentificação da atividade fantasmática.
1.4. A fantasia enquanto cena originária
Conforme foi acima mencionado, os fantasmas originários foram ganhando
espaço na metapsicologia freudiana a partir da análise do Homem dos lobos
(FREUD, 1918/1995). Vimos que, no caso clínico em questão, Freud se debatia
com a problemática da eficácia da realidade psíquica no processo de causação de
uma neurose oscilando, ora por considerar a cena primária como fruto de uma
fantasia de seu paciente, ora como algo realmente por ele vivido. O conflito
culminou, justamente, na postulação da cena primária enquanto expressão de uma
fantasia originária, resposta decisiva de Freud para a questão. Segundo Laplanche
e Pon
talis (1988), a postulação de um esquema de fantasias originárias foi a forma
encontrada por Freud de conciliar realidade psíquica e realidade material num
49
mesmo postulado, pois tal esquema remeteria, ao mesmo tempo, a um grupo de
fantasmas inconscientes, porém reportados a situações realmente vivenciadas por
nossos ancestrais.
Cabe assinalar que, apesar da temática das fantasias originárias só ter
obtido uma maior importância no caso do Homem dos lobos, a primeira referência
ao tema data do artigo “Um caso de paranóia que contraria a teoria psicanalítica
da doença” (FREUD, 1915c/1995). Nele, é relatado o caso de uma senhora, ainda
solteira, que mantinha um romance proibido com um homem de seu ambiente de
trabalho. Certo dia, numa visita à casa do amante, ela é surpreendida por um
ruído, no instante em que se encontrava parcialmente despida. Ao ir embora,
encontra dois homens murmurando na escada e percebe que um deles carregava
uma pequena caixa. A partir daí, a mulher constrói o delírio de que a pequena
cai
xa continha uma máquina fotográfica e os dois homens haviam fotografado a
cena de amor. A interpretação para o caso narrado pela moça consistiu,
basicamente, em remeter o delírio de ser fotografada durante uma cena de amor à
fantasia originária de observação do coito parental. Desta forma, Freud depreende
que toda construção fantasmática atual se baseia num fantasma originário.
A temática volta a ser discutida por Freud (1917b/1995) na conferência “O
caminho da formação dos sintomas”, na qual é novamente repensada a
problemática concernente à consolidação da realidade psíquica na clínica
psicanalítica. Para tal, empreende-se uma longa discussão acerca do estatuto
fantasmático ou realístico de três cenas infantis constantemente trazidas à tona
pelo procedimento analítico: a cena de observação de um coito entre os pais, a
cena na qual uma ameaça de castração é proferida à criança e, por fim, a cena de
50
sedução por um adulto. A escolha por examinar estas três cenas específicas, ao
invés de outras, se justifica por suas freqüentes manifestações nas histórias de
vida da maioria dos sujeitos submetidos à análise.
O encaminhamento proposto para o exame destas três cenas é marcado por
inúmeros volteios. Com relação à observação da cena primária, por exemplo,
Freud (1917b/1995) julga bastante provável a existência de um número suficiente
de crianças que tenham realmente presenciado um ato sexual dos pais, quando
ainda não lhes era possível obter a exata compreensão da cena observada. Por
outro lado, considerando que, em vários casos, o ato é descrito como uma cena de
coito a tergo, Freud levanta a hipótese da cena em questão ser fruto da produção
fantasmática da criança, construída a partir de impressões deixadas pela visão de
uma cópula entre animais.
Quanto à cena de ameaça de castração, Freud (1917b/1995), de certa
maneira, considera muito comum que, durante um ato masturbatório, o menino
seja repreendido pelos pais com a possibilidade da mutilação de seu pênis. Em
contrapartida, também é suposto que a criança, por si só, possa estruturar
fantasmaticamente tal ameaça, por intermédio de alguns indícios de que a
satisfação auto
-
erótica lhe é proibida.
Finalmente, no que diz respeito à cena de sedução, quando não há pistas de
sua factualidade e mesmo assim ela é narrada na análise, contempla-se o seu
caráter fantasmático. Nesta perspectiva, a fantasia de sedução é utilizada como um
artifício erigido com o objetivo de dissimular a atividade auto-erótica da criança.
Ou seja, uma fantasia masturbatória é convertida em lembrança real, mascarando
51
uma atividade sexual espontânea, mediante uma cena de passividade frente a um
adulto (FREUD, 1917b/1995)
12
.
Quanto ao impasse relacionado à decisão de considerar tais fantasias como
um produto da atividade fantasmática da criança, ou então, de configurá-las como
resíduos mnêmicos de situações realmente vivenciadas, a seguinte solução é
encontrada: demonstrar que, na verdade, elas representam um misto de realidade e
ficção. Assim, caso estas cenas não encontrem apoio em dados factuais, elas são
erigidas a partir do agrupamento de alguns indícios provenientes da realidade
material e, posteriormente, suplementadas pela fantasia. Nesta perspectiva, Freud
(1917b/1995) recorre novamente à noção de fantasias originárias, configurando-
as
com
o uma espécie de roteiro preestabelecido, encarregado de organizar toda
atividade fantasmática posterior. Portanto, as fantasias em questão possuem um
valor estruturante pois, no que concerne à história de vida do sujeito, elas
funcionam como uma invariante, remanejando imaginariamente todas as
experiências que não se adaptam ao esquema preexistente. A passagem a seguir
é
bastante clara a este respeito:
“Acredito que essas fantasias primitivas (...) constituem um acervo filogenético.
Nelas, o indivíduo se contacta, além de sua própria experiência, com a experiência
primeva naqueles pontos nos quais sua própria experiência foi demasiado rudimentar.
Parece
-me bem possível que todas as coisas que nos são relatadas hoje em dia, na
análise, como fantasia sedução por um adulto, surgimento de excitação sexual por
observar o coito dos pais, ameaça de castração (ou então, a própria castração) –
foram,
em determinada época, ocorrências reais dos tempos primitivos da família humana, e
que a criança, em suas fantasias, simplesmente preenche os claros da verdade
individual com a verdade pré
-
histórica” (FREUD, 1917b/1995, pp.372
-
373).
12
Conforme a discussão apresentada no início deste capítulo.
52
Trata
-se, portanto, de uma terceira forma de acepção da atividade
fantasmática presente no pensamento freudiano. A fantasia é, aqui, vista enquanto
uma cena originária, ou seja, algo que possui, na dinâmica psíquica, o valor de um
roteiro ou esquema universal que governa a atividade psíquica de todos os
sujeitos.
Com efeito, a postulação de um esquema filogenético preexistente à
historia subjetiva gerou inúmeras controvérsias ao longo do desenvolvimento do
pensamento psicanalítico. De fato, foram suscitados vários questionamentos
acerca da possibilidade do recurso à filogenia conduzir à postulação de uma
influência exacerbada do biológico no processo de constituição subjetiva. Cabe
assinalar que, para responder a tais questionamentos, através de uma abordagem
estruturalista, a escola francesa reconheceu no recurso à filogenia não o
revestimento de uma indumentária biologizante no campo psicanalítico, mas a
necessidade da circunscrição de uma anterioridade da ordem simbólica em relação
dos sujeitos. Tratar-
se
-ia, em outros termos, de trazer à tona a preexistência de
uma organização significante da qual os sujeitos dependem de modo absoluto e se
constituem como seus efeitos.
No entanto, não cabe entrarmos aqui numa discussão sobre esta
problemática, que o objetivo do capítulo é um estudo acerca do estatuto da
figura da fantasia na obra freudiana. Assim, podemos avançar um pouco mais em
nossa investigação e analisar uma última forma de apresentação da atividade
fantasística na metapsicologia freudiana. Nesta perspectiva, constataremos, a
partir de algumas indicações, que a fantasia não se presentifica na clínica
freudiana apenas na forma de um cenário narrativo, de uma cena indizível ou de
53
uma cena originária. Ao lado destas manifestações, deve-se destacar que a
atividade fantasmática também se apresenta enquanto um conjunto de cenas
anestesiadas. Podemos adiantar, desde já, que estas, em muitos aspectos, se
assemelham às denominadas fantasias vazias, objeto da presente tese.
1.5. A fantasia enquanto cena anestesiada
Com efeito, algumas indicações presentes no caso clínico do Pequeno Hans
(FREUD, 1910a/1995) conduzem-nos ao encontro de uma modalidade bastante
peculiar de fantasmatização. Trata-se da fantasia enquanto cena anestesiada,
simples descrição de uma imagem fixa, neutralizada e sem maiores contornos ou
predicados.
Apesar de conscientes e manifestas na fala do sujeito, estas cenas ao
con
trário dos devaneios e das lembranças encobridoras não se apresentam na
forma de uma narrativa historicizada ou de um romance. Os elementos nelas
presentes parecem também não consistir enquanto substitutos simbólicos de algo
inconsciente. Conforme veremos a seguir, elas também funcionam como espécies
de limites aos esforços da interpretação. Temos, portanto, uma acepção diversa da
atividade fantasmática que, se devidamente analisada, em muito poderá contribuir
para nossos propósitos. Passemos a este exame
.
No tocante à questão da fantasia, a “Análise de uma fobia em um menino
de cinco anos” (FREUD, 1910a/1995) é um dos textos mais ricos da obra
freudiana. De acordo com a interpretação de Freud, quadro era o de uma criança
imersa em seus complexos parentais, atormentado, principalmente, pelas
problemáticas concernentes à diferença sexual e à origem dos bebês; e, ao longo
54
de suas pesquisas sexuais, vislumbramos uma série infindável de produções
fantasísticas. Nesta perspectiva, os devaneios, lembranças encobridoras e mesmo
os fantasmas inconscientes da criança giravam em torno das temáticas da
universalidade do pênis, dos amores edipianos e da castração
13
. Os esforços de
Freud e do pai de Hans se dirigiram, ao longo do caso, para a interpretação destes
fantasma
s, com o intuito de trazer à tona os conflitos edipianos inconscientes do
menino. A proposta era demonstrar que a fobia a cavalos estaria, de alguma
forma, relacionada com os sentimentos ambivalentes da criança para com a figura
paterna.
De certo modo, diversos fatores convergiam para a concepção de que o
medo do cavalo era um substituto consciente de um temor inconsciente do pai.
Todavia, o constante remetimento do cavalo à figura paterna vacilava sempre que
o Pequeno Hans falava sobre uma “coisa preta” que o cavalo tinha na boca. De
fato, os cavalos que o menino mais temia eram aqueles com o estranho objeto
preto ao redor dos lábios; mas, no entanto, ele não sabia dizer que enigmático
objeto era este e nem associá-lo a coisa alguma. Sempre que o discurso de Hans
esbarrava neste ponto, as associações, até então abundantes, tornavam-se nulas. E
por mais que seu pai ou o próprio Freud insistissem em relacionar o objeto preto
na boca do cavalo com o bigode do pai, os esforços eram em vão. Hans respondia
apenas
com reticências. Assim, ao que tudo indica, a estranha coisa preta na boca
do cavalo não consistia em nenhuma formação simbólica. Parecia impossível
substituí
-
la por qualquer elemento inconsciente.
13
Uma nova releitura para o caso do Pequeno Hans (FREUD, 1910a/1995) e que passa à margem
desta interpretação eminentemente edipiana será
empreendida no último capítulo.
55
Este objeto enigmático é mencionado pela primeira vez por Hans pouco
antes da única consulta que teve com Freud. Este mesmo confessa que as
observações da criança sobre este elemento não condiziam com o conhecimento
que, até então, se tinha da história de sua fobia. Segundo o relato de Freud:
“Determinados detalhes que acabo de saber no tocante ao fato de que ele se
incomodava, em particular, (...) com o preto em torno de suas bocas certamente
não se explicaria a partir daquilo que sabíamos. No entanto, (...) ao ouvir a
descrição que Hans fazia da angústia que lhe causavam os cavalos, vislumbrei um
novo elemento para a solução, e um elemento que eu podia compreender que
provavelmente escapasse a seu pai. Perguntei a Hans, à guisa de brincadeira, se os
cavalos que ele via usavam óculos, ao que ele, contra toda evidência, em contrário,
repetiu que não. Finalmente lhe perguntei se para ele ‘o preto em torno da boca’
significava um bigode; revelei-lhe então que ele tinha medo de seu pai, exatamente
porque gostava muito de sua mãe. Disse-lhe da possibilidade de ele achar que seu
pai estava aborrecido com ele por esse motivo; contudo, isso não era verdade, seu
pai gostava dele apesar de tudo, e ele podia falar abertamente com ele, sobre
qualquer coisa, sem sentir medo” (FREUD, 1910a/1995, pp. 44
-
45).
Verificamos,
de acordo a citação, ser Freud e não o Pequeno Hans
quem associa o objeto preto com o bigode. A criança nada tinha a dizer sobre o
estranho objeto preto, não remetendo
-
o a nenhuma outra coisa.
O assunto retorna uma semana depois, desta vez, numa conversa entre pai e
filho. Vale a pena também transcrever a passagem na íntegra:
“À tarde saímos novamente para a frente da porta e, quando voltei, perguntei a
Hans: ‘De que cavalos você realmente tem mais medo?’.
Hans: ‘De todos’.
Eu [pai de Hans]: ‘Isso não
é verdade’.
Hans: ‘Tenho mais medo dos cavalos que têm uma coisa na boca’.
56
Eu: ‘O que você quer dizer? O pedaço de ferro que eles têm na boca?’.
Hans: ‘Não. Eles têm uma coisa preta na boca’. (E cobriu a boca com a mão).
Eu: ‘O quê? Talvez um bigode?’.
Han
s: (rindo): ‘Oh, não!’.
Eu: ‘Eles todos têm essa coisa?’.
Hans: ‘Não. Só alguns deles’.
Eu: ‘O que é que eles têm na boca?’
Hans: ‘Uma coisa preta’.
Eu: (Na realidade, acho que deve ser aquela parte grossa do arreio que os cavalos
de tração usam por sobre
o nariz)” (FREUD, 1910a/1995, pp. 50
-
51).
De fato, Hans não consegue associar o objeto preto a nenhuma outra
representação. Sempre que o menino falava sobre esta enigmática coisa preta,
todo o discurso se congelava numa mesma cena anestesiada: a de um cavalo com
um preto na boca, cena esta da qual nada mais conseguia dizer. O preto na boca
do cavalo não era um bigode, um pedaço de ferro e, muito menos, a parte mais
grossa de um arreio.
Nesta medida, percebemos o contraste desta cena anestesiada e as dema
is
produções fantasísticas, extremamente numerosas e férteis, apresentadas pela
criança ao longo do relato clínico. Enquanto os devaneios ou lembranças
encobridoras de Hans remetiam a romances por ele inventados, visões sobre os
mais variados fenômenos presentes em seu mundo e anseios sobre o futuro, nada
disso pode ser observado na cena anestesiada do cavalo com o objeto preto na
boca. Igualmente instigante é o fato de, frente aos devaneios ou lembranças
encobridoras, o tratamento analítico avançar com maior ou menor dificuldade,
driblando as resistências e fazendo com que a criança se defronte com as
tendências inconscientes que justificam a formação da fobia; de modo contrário,
57
frente à cena anestesiada, as associações vacilam e, deste modo, a interpretaç
ão
não pode avançar. À nada o menino conseguia remeter o preto na boca do cavalo;
nenhum outro elemento lhe era relacionado.
Assim, por tais fatores, podemos traçar uma correlação entre esta cena
anestesiada e aquilo que denominamos de fantasias vazias. T
ratar
-
se
-
ia, em ambos
os casos, de cenas extremamente claras, nas quais a ausência de símbolos ou
formações metafóricas salta aos olhos.
Poder
-
se
-ia argumentar contra o fato de considerarmos como fantasística,
esta cena do cavalo com o preto ao redor da b
oca. Todavia, dois fatores conduzem
à circunscrição desta cena como fantasmática. O primeiro deles, remete ao fato do
pai de Hans afirmar nunca ter visto um cavalo com tal coisa preta ao redor dos
lábios e achar estranho que seu filho, algum dia, o tivesse visto embora Hans
insistisse em dizer que tais cavalos realmente existiam. O outro fator remete à
questão referente à predominância da realidade psíquica no discurso subjetivo. Ou
seja, de acordo com o que foi estabelecido no início deste capítulo, pouc
o
importaria se o Pequeno Hans realmente viu algum cavalo com o objeto preto ao
redor da boca; relevante é a concepção de que, tendo visto ou não, a cena assume
um valor de verdade no seu aparelho psíquico, configurando-se enquanto uma
realidade efetiva e contraposta à realidade material. Em outros termos, trata-se de
destacar que, no domínio discursivo, a realidade psíquica encenada numa cena
fantasística
vigora como realidade decisiva
14
.
Portanto, mediante a análise da fantasia anestesiada do Pequeno H
ans
(FREUD, 1910a/1995), demos um importante exemplo daquilo que chamamos de
14
Na segunda seção do próximo capítulo, produziremos nova visada para este tema que
responderá, de forma definitiva, pela decisão em considerar esta cena como fantasística.
58
fantasia vazia, o que nos auxiliará no propósito da circunscrição de seu estatuto
metapsicológico. Mostramos assim, através desta correlação, suas principais
características e o modo peculiar através do qual elas se apresentam na clínica e
resistem à associação livre e à interpretação. Passemos, agora, ao estabelecimento
de um confronto entre os fantasmas vazios e as outras manifestações fantasísticas
analisadas no decorrer deste capítulo, a fim de lançarmos mais subsídios para a
discussão.
1.6. Sobre as fantasias vazias
Circunscritas as semelhanças das fantasias vazias com a cena anestesiada do
Pequeno Hans e apresentada também a forma equivalente pela qual ambas se
manifestam na clínica, vejamos agora em qual medida os fantasmas vazios
diferem das demais modalidades fantasísticas analisadas neste capítulo.
Comecemos pelo contraste entre as fantasias vazias e as fantasmatizações
configuradas enquanto cenários narrativos.
Vimos que as lembranças encobridoras e os devaneios são
fantasmatizações conscientes e, portanto, manifestas no discurso do sujeito em
análise. Ademais, por consistirem em estruturas através das quais o sujeito
exprime seus romances, concepções de vida, teorias inventadas sobre sua história
e seu porvir, etc, foi estabelecido que tais fantasias se configuram como cenários
narrativos manifestos ao longo do processo de associação livre
15
. Conforme foi
acima demonstrado, o discurso do sujeito em análise nada mais seria do que um
15
Cabe relembrar que esta também foi uma peculiaridade atribuída às fantasias inconscientes
quando trazidas à consciência pelo procedimento analítico.
59
conjunto destes enunciados fantasísticos, nos quais ele fala de si, dos seus
semelhantes e da realidade circundante.
Também explicitamos que tanto as lembranças encobridoras quanto os
devaneios são estruturas temporalizadas: neles, o passado, o p
resente e o futuro do
sujeito se articulam numa trama historicizada. Deste modo, num romance, relato
ou narrativa deste tipo, os elementos se articulam uns aos outros por intermédio de
elos causais, temporais ou de contigüidade. Igualmente importante é o fato de tais
produções fantasísticas consistirem em processos psíquicos passíveis de sofrerem
as mais diversas reelaborações ao longo da vida do sujeito. Assim, destaca-se que
elas podem ser alteradas ou enriquecidas a partir de novas impressões que o
sujei
to recebe. De fato, é raro uma lembrança encobridora ou um devaneio se
repetir, por muitas vezes, no discurso do sujeito, sem que nenhum outro elemento
lhe seja adicionado, retirado, ou então, modificado.
Ressaltamos também que verifica-se, na estrutura de uma fantasmatização
deste tipo, uma série infindável de enganos e paradoxos. Ou seja, ao associar
livremente acerca de suas fantasias, o sujeito se equivoca, cai em contradição ou
percebe que seus devaneios ou lembranças encobridoras não condizem uns com
os outros. Trata-se, com isso, de demonstrar a existência de diversas lacunas no
cenário narrativo fantasmático, brechas estas que são privilegiadas na clínica, na
medida em que, através delas, o processo analítico trabalha para operar a
decomposição do discurso. Em outros termos, como tais fantasmatizações trazem
consigo algo da ordem do engano, da contradição ou do paradoxo, faz
-
se possível,
frente a elas, o trabalho de interpretação.
60
A interpretação promoveria a desmontagem destes cenários fantasísticos
com o propósito de trazer à tona o desejo inconsciente que lhes serve de base.
Para tal, conforme foi acima exposto, o trabalho analítico luta contra as
resistências oferecidas pelo
eu
. Pressupondo também que as fantasias em questão
são realizações de desejos, foi igualmente mencionado que elas possuem o
estatuto de uma formação de compromisso. De acordo com tal concepção, elas se
configuram como uma das maneiras do desejo inconsciente se manifestar na
consciência, porém de forma disfarçada e compatível co
m os preceitos morais.
Nesta perspectiva, a única semelhança observada entre tais
fantasmatizações e as fantasias vazias remete ao fato de ambas consistirem em
estruturas conscientes e passíveis de expressão por intermédio da fala. Todavia, é
importante salientar que o modo pelo qual elas se manifestam no discurso é
diferente. Não se trata, no domínio das fantasias vazias, de um romance, história,
teoria, concepção de mundo ou qualquer outra forma narrativa. Pelo contrário, a
partir da analogia traçada entre os fantasmas vazios e a cena anestesiada do
Pequeno Hans, verificamos que elas se configuram simplesmente como a mera
descrição de uma imagem fixa, não consistindo numa trama complexa de
pensamentos com maior riqueza de detalhes.
Também, ao contrário de uma lembrança encobridora ou de um devaneio,
que podem ser enriquecidos quando ressurgem na fala do sujeito, as fantasias
vazias se apresentam como estruturas inalteráveis, constantemente reimpressas no
discurso exatamente da mesma maneira como foram anteriormente relatadas.
Tomemos, assim, mais uma vez, o exemplo da cena anestesiada do Pequeno
61
Hans: é sempre a mesma cena que se repetia e nenhum colorido ou predicado à ela
se acrescentava.
Uma outra diferença: de modo distinto das lembranças encobridoras e dos
devaneios, as fantasias vazias são cenas extremamente claras e não ambíguas. Os
elementos nelas presentes estão completamente atados aos seus referentes, de
forma que as palavras usadas na descrição da cena não são ambíguas ou
polissêmicas, e qualqu
er construção metafórica é deixada de lado
16
. Nesta medida,
tais fantasias se apresentam como imunes à dúvida, sendo difícil para o analista
encontrar, em seus domínios, qualquer engano, equívoco ou contradição.
Ademais, o fato do sujeito não conseguir associar livremente sobre
fantasmatizações deste tipo dificulta bastante o trabalho de interpretação. Não
havendo associação livre, também não brechas para o processo interpretativo.
Ou seja, por se tratarem de formações discursivas claras e não ambíguas,
o
analista não consegue exercer a função hermenêutica daquilo que lhe é relatado.
Vimos, a partir da cena anestesiada do Pequeno Hans, que não se conseguia
encontrar quaisquer lacunas para o trabalho de interpretação, ao contrário do que
facilmente aconte
cia com as outras formações devaneativas da criança.
Parece igualmente impossível vislumbrarmos uma formação desejante
inconsciente subjacente às fantasmatizações vazias. Com efeito, o processo
analítico do Pequeno Hans foi bastante abrangente e lograva em remeter às
produções devaneativas da criança aos seus desejos edipianos; mas, com respeito
à cena anestesiada, quaisquer tentativas deste tipo fracassavam.
16
Vale alertar que esta característica dos fantasmas vazios é de capital importância para a tese e
será o tema do próximo capítulo.
62
A dificuldade de intervir na clínica frente aos fantasmas vazios, em
conjunto com a observação de que eles representam um limite à interpretação
psicanalítica poderia, por sua vez, conduzir à uma analogia com a fantasia de cena
primária do Homem dos lobos e com o segundo tempo do fantasma de
espancamento. No entanto, devemos alertar para o fato de que,
apesar de ambas as
modalidades de fantasmatização funcionarem como um obstáculo aos progressos
da interpretação, é por diferentes razões que tal dificuldade se efetiva. Ou seja,
frente aos fantasmas vazios, a interpretação vacila porque o paciente a nada
consegue associar os elementos presentes na cena anestesiada. Como os
componentes da cena não se constituem como metáforas de algo inconsciente, é
difícil ao trabalho analítico operar a substituição de um discurso manifesto por seu
correlato latente.
Com
respeito às cenas indizíveis, a dificuldade clínica é de outra ordem,
bem como são diferentes os limites que elas impõem à interpretação. Ao contrário
dos fantasmas vazios, a cena primária e o segundo tempo da fantasia de
espancamento jamais estiveram manifestos no discurso do sujeito em análise:
tanto o Homem dos lobos quanto os pacientes mencionados em “Bate-se numa
criança” jamais relataram a Freud os fantasmas em questão. Pode-se, até mesmo,
contestar a afirmação freudiana de que se tratava de algo efetivamente fantasiado
durante a infância remota dos sujeitos. Conforme destacamos acima, elas foram
cenas construídas durante o procedimento analítico, possuindo, portanto, o
estatuto de uma ficção inventada para fornecer sentido às tendências psíquicas até
então não simbolizadas.
63
Com efeito, o artifício da construção em análise, pode ser relido como uma
tentativa de incluir na vida fantasística do sujeito algo que escapa à própria
possibilidade de fantasmatização. Não que os fantasmas de cena primária e de
espancamento estivessem presentes no inconsciente dos pacientes de Freud à
espera de serem descobertos pela análise; foi a partir do ato da construção que
eles foram criados e passaram a influenciar a dinâmica psíquica dos sujeitos
analisados. Neste contexto, devemos destacar que a entrada em cena da
construção na clínica freudiana foi corolária da constatação de tendências
psíquicas que não podem ser recordadas, posto que nem mesmo foram
representadas pelo sujeito, de modo a sofrer uma inscrição em seu discurso. De
acordo com Gondar (1999):
“Até então, Freud havia trabalhado com o par esquecimento/lembrança, um par
passível de representação e inscrição discursiva. Agora, porém, [com a construção],
Freud nos fala de algo que não pode ser lembrado e nem esquecido, na medida em
que permanece irrepresentável: o se trata de um saber que não se sabe, mas de
algo que é impossível saber. Nem tudo poderá se transformar em produção
discursiva” (GONDAR, 1999, p. 31).
Assim, conforme o exposto na citação, tanto a cena primária do Homem
dos lobos quanto o segundo tempo da fantasia de espancamento foram fantasias
produzidas pelo procedimento analítico. Não se tratava, portanto, de um discurso
fantasístico a ser desvelado, mas de uma fantasia a ser construída para preencher
as lacunas na fala dos sujeitos em questão. Nesta medida, embora tais
fantasmatizações digam respeito ao passado do sujeito, devemos destacar que este
passado não corresponde a um tempo histórico propriamente dito, sendo apenas
a
64
posteriori
, que ele é construído pela via da fantasmatização. Nesta perspectiva, se
retomarmos a analogia traçada entre os fantasmas vazios e a cena anestesiada do
Pequeno Hans, verificamos que ambas não precisam ser construídas em análise na
medida em que já se encontram manifestas no discurso consciente do sujeito. É
exatamente por isto que as fantasias vazias em nada parecem se assemelhar nem
ao fantasma de cena primária do Homem dos lobos e nem ao segundo tempo do
fantasma de espancamento.
Da mesma forma, as fantasias vazias parecem também não possuir o
mesmo estatuto metapsicológico que as cenas originárias. De fato, os fantasmas
vazios não possuem necessariamente como tema nem a problemática da castração
e nem a da sedução ou da cena primária. Ademais, elas também não parecem
remeter a tendências herdadas filogeneticamente e que, assim, se vinculam a toda
atividade fantasística do sujeito, influenciando-a e governando-a. Pelo contrário,
conforme demonstramos acima com respeito ao caso do Pequeno Hans, as
fantasias vazias permanecem à margem das demais produções fantasmáticas do
sujeito, não possuindo com elas quaisquer ligações. Com efeito, a cena do cavalo
com o objeto preto ao redor da boca não estava, de maneira alguma, relacionada
com os devaneios edipianos da criança e nem com suas lembranças encobridoras
ou fantasmas inconscientes. Tratava-se de uma cena fantasística independente das
outras e que, apesar das múltiplas tentativas de ligação e síntese empreendidas
pelo pai de Hans ou pelo próprio Freud jamais a elas se ligava: Hans hesitava
bastante em confirmar a hipótese do objeto preto se associar ao bigode do pai,
como se a cena anestesiada representasse um resíduo de sua fobia, imune aos
esforços de elaboração psíquica.
65
Outras diferenças marcantes entre os fantasmas vazios e as cenas
originárias são igualmente cruciais e incisivas. De acordo com o exposto acima, as
fantasias originárias devem seus aparecimentos na metapsicologia aos diversos
impasses de Freud para justificar a neurose seja pela realidade material, seja pela
realidade psíquica. E, na grande maioria das ocasiões, elas foram consideradas um
misto de realidade e ficção, como podemos observar no caso do fantasma
originário de cena primária: como, muitas vezes, ela era descrita na forma de um
coit
o a tergo, Freud considerou que a cena primária era, de fato, uma fantasia
inventada pela criança a partir da visão de uma cópula entre animais. Nesta
perspectiva, as impressões da realidade se convertiam numa fantasia a partir de
uma operação psíquica de
deslocamento
dos animais para as figuras parentais
,
“como se [a criança] tivesse deduzido que seus pais faziam a coisa do mesmo
modo” (FREUD, 1918, p. 68).
Esta simples observação pode nos conduzir à conclusão de que o estatuto
metapsicológico dos fantasmas vazios não é o mesmo daquele do fantasma
originário de cena primária. Ou seja, neste último, devido à operação de
deslocamento, a cena de coito entre as figuras parentais passa a se constituir como
uma substituta da cena de cópula entre os animais. Quanto aos fantasmas vazios,
vimos que eles se apresentam como estruturas imunes ao mecanismo de formação
simbólica e que um trabalho de substituição deste tipo está ausente de suas
estruturas. Igualmente, a interpolação como se [a criança] tivesse deduzido que
seus pais faziam a coisa do mesmo modo” demonstra que um processo de
pensamento subjacente ao fantasma de cena primária, o que não parece ser
estabelecido com respeito aos fantasmas vazios. Caso existisse um processo deste
66
tipo, eles não seriam produções psíquicas imunes aos esforços da associação livre
e, conseqüentemente, da interpretação.
Quanto à cena originária de castração, o que mais salta aos olhos, remete
ao fato dela ao contrário dos fantasmas vazios – consistir numa narrativa
fantasmát
ica historicizada, romanceada e temporalizada. Nesta perspectiva, Freud
(1917b/1995) assinala que a cena de castração é construída pela criança da
seguinte maneira: num primeiro momento, o menino apresenta uma crença na
universalidade do órgão genital masculino; em seguida, ele se depara com a
ausência de pênis na mulher, visão esta que lhe causa angústia e abala as suas
convicções fantasmáticas anteriores; por fim, mediante indícios de que a atividade
masturbatória lhe é proibida, ele se põe a fantasiar uma determinada cena de
castração, na qual o agente pode ser o pai, o médico, a governanta, ou qualquer
outro adulto de seu meio. Trata
-
se, portanto, na fantasia originária de castração, da
criação de um romance propriamente dito, no qual uma cena é causa ou
conseqüência de uma outra, de modo que elas se articulam entre si na forma de
uma trama historicizada.
Com efeito, nada disso é observado no domínio das fantasias vazias: elas
não se desenrolam no tempo e não constituem uma trama de pensamentos. Da
mesma
forma, aparentemente, não nada por detrás delas que justifique suas
origens, ao contrário da fantasia originária de castração, motivada pela visão da
ausência de pênis nas mulheres.
Por fim, devemos destacar a diferença entre o estatuto metapsicológico
dos
fantasmas vazios e da fantasia originária de sedução. Conforme o exposto acima,
Freud considera que a sedução pode, por vezes, dizer respeito a um fato real mas,
67
na maioria dos casos, tratava-se de uma cena inventada pela criança na tentativa
de encobrir seus amores edipianos. Ou seja, com a fantasia de sedução, a criança
se pouparia da vergonha de ter se masturbado imaginando uma cena de amor com
um adulto. Nesta medida, o mecanismo de formação da fantasia de sedução é
bastante conhecido: o trabalho de recalque transforma uma cena na qual a criança
seduz um adulto numa cena na qual ela é o objeto da sedução, de modo a
dissimular as manifestações da sexualidade infantil. Portanto, este importante
fator concorre para a circunscrição do fantasma de sedução como um substituto
consciente devidamente disfarçado de uma série de impulsos desejantes
recalcados. Assim, por se apresentar balizada pelo mecanismo de recalque e por
se constituir como efeito de uma formação desejante inconsciente, a fantasia
originária
de sedução também parece não possuir o mesmo estatuto dos fantasmas
vazios.
Enfim, mediante estas analogias, demonstramos a dificuldade de conceber
o estatuto metapsicológico das fantasias vazias, se tivermos por base os ensaios
freudianos acerca da atividade fantasmática. Das múltiplas formas de
apresentação da figura da fantasia em sua obra cenário narrativo, cena indizível,
cena originária e cena anestesiada somente esta última parece assemelhar-se ao
objeto de estudo da presente tese. Nesta perspectiva, se pelo mesmo termo
fantasia
Freud denomina atividades psíquicas tão diversas, a proposta deste
capítulo foi operar na decomposição deste terreno, para que possamos, em
seguida, circunscrever o estatuto dos fantasmas vazios, sem confundi-lo com u
m
devaneio, uma lembrança encobridora, uma produção inconsciente, uma fantasia
construída em análise ou uma estrutura originária. A analogia das fantasias vazias
68
com a cena anestesiada do Pequeno Hans será, de agora em diante, nosso
principal instrumento d
e análise.
69
Capítulo 2
A questão do referencial discursivo
Mediante o estudo comparativo entre as múltiplas formas de presentificação da
atividade fantasmática na obra freudiana, demos um primeiro e importante passo
rumo ao objetivo de analisar o estatuto metapsicológico das fantasias vazias.
Agora, avançaremos um pouco mais em nosso propósito, encaminhando a
discussão para circunscrição dos fantasmas vazios enquanto uma escritura
balizada por uma série de referenciais discursivos. Por esta nomenclatura, nos
reportamos a determinados elementos discursivos, manifestos nos domínios dos
fantasmas vazios, que se comportam na fala do sujeito à maneira de um
referencial. No entanto, conforme nossa argumentação, este referencial não
remete a um dado concreto e presente na realidade. Pelo contrário, ele será
tomado como um elemento propriamente fantasístico que, no discurso do sujeito,
não cessa de reenviar a si próprio, possuindo uma significação clara, não ambígua
e já manifesta no instante da fala. O contraste entre as fantasias vazias e os
cenários fantasísticos do sujeito funcionará como pólo balizador do debate.
A base metapsicológica para a discussão é o modelo de aparelho psíquico
descrito por Freud (1896a/1995) na “Carta 52”. Trata-
se
de um texto central para
esta tese na medida em que ele traz consigo os germes de algumas temáticas que,
se devidamente desenvolvidas, serão fundamentais para a delimitação de nossa
hipótese de pesquisa. Num primeiro momento, são expostas as mais important
es
idéias presentes no texto freudiano, em especial, aquelas concernentes à proposta
de encarar o aparelho psíquico como formado por um processo de constante
estratificação do material mnêmico. Desta forma, analisaremos cada um dos
diferentes registros mnêmicos do aparato, ressaltando suas peculiaridades e
70
estabelecendo suas associações com alguns conceitos e figuras presentes tanto em
outros textos de Freud quanto em alguns dos escritos lacanianos. A partir deste
estudo, nossa atenção será voltada, na segunda parte do capítulo, para o contraste
existente entre as dinâmicas psíquicas presentes, de um lado, no registro dos
signos de percepção e, de outro, nos registros da inconsciência e da pré-
consciência. A proposta é traçar uma analogia entre as fantasias vazias e os signos
de percepção, contemplando-as enquanto um conjunto de marcas psíquicas ainda
não dispostas na trama fantasmática na forma de um encadeamento significante. A
este corresponderão, segundo nossa argumentação, as fantasias tidas enquanto
cen
ários narrativos. Veremos, assim, que é por seu embasamento significante que
se tornam possíveis as operações metafóricas e metonímicas características desta
última modalidade fantasmática e que, não obstante, faltam às fantasias vazias.
Por fim, são retomadas algumas considerações de Freud acerca do mecanismo de
formação simbólica para demonstrarmos os motivos que respondem pelo fato de
formações psíquicas deste tipo serem estranhas ao domínio dos fantasmas vazios.
Toda esta discussão será precedida por uma análise da noção de
elaboração psíquica, conceituada como o trabalho, de ligação das estimulações
que invadem o aparelho psíquico (LAPLANCHE, 1987). Nesta medida, tratemos
à tona a noção de ligação (
Bindung
), tida por Herzog (2003) como uma figura
funda
mental para a compreensão da estrutura da metapsicologia freudiana.
2.1. A “Carta 52” e seus desdobramentos
Visando circunscrever o estatuto do trabalho de elaboração psíquica, bem como o
da noção de
Bindung
, remeto ao ensaio “Além do princípio de prazer”, no qual
71
Freud (1920/1995) investiga o modo como as excitações provenientes tanto do
interior do corpo, quanto do mundo externo
atingem o aparelho psíquico e como
este é obrigado a efetuar um trabalho de ligação a fim de propiciar a emergência
do prin
cípio de prazer.
No texto em questão, é estabelecida uma importante analogia entre o modo
de funcionamento do aparato e a constante luta de uma vesícula viva para manter-
se livre da estimulação. A analogia se inicia com a investigação das possíveis
conseq
üências geradas na estrutura da vesícula pela estimulação proveniente do
mundo externo, profundamente carregado de excitações. Devido ao impacto
freqüente dos estímulos sobre a superfície, um escudo protetor é erigido em seu
envoltório, permitindo apenas a passagem de quantidades reduzidas de excitação
para as camadas subjacentes. O dispositivo em questão se constituiria a partir da
diferenciação permanente do tecido da membrana. Sua função é, portanto, a
preservação das outras camadas do impacto dos estímulos, a menos que a
excitação seja forte o bastante para atravessar o envoltório. Assim, com respeito à
estimulação exógena, o trauma é definido como a resultante de uma ruptura no
escudo protetor, provocando a propagação de uma quantidade exorbitante de
ex
citação no interior da vesícula (FREUD, 1920/1995).
Todavia, a vesícula também é atingida pela estimulação advinda do
interior do organismo e, frente à qual, não escudo protetor algum para
apaziguar os efeitos de sua propagação. Ademais, ao contrário da excitação
exógena, apresentada como uma força de impacto momentâneo, o interior do
organismo constitui uma fonte constante de excitação. Devido a tais fatores, a
estimulação pulsional adquire, segundo Freud (1920/1995), uma maior eficácia a
72
nível econômico, sendo passível de provocar efeitos mais devastadores no aparato
psíquico do que os ocasionados pela excitação proveniente do mundo externo.
Conseqüentemente, quanto à estimulação endógena, o trauma é sistematizado
como o resultado de um transbordamento
pulsional no aparelho psíquico.
Dada a incidência do trauma, Freud (1920/1995) pressupõe que o aparato
terá de empreender um certo tipo de trabalho de ligação psíquica a fim de fazer
advir o princípio de prazer. O trabalho em questão consiste em vincular a
excitação, possibilitando sua descarga de forma menos abrupta. De acordo com a
passagem abaixo:
“Seria tarefa dos estratos mais elevados do aparelho mental sujeitar a excitação
pulsional que atinge o processo primário. Um fracasso em efetuar essa sujeiçã
o
provocaria um distúrbio análogo a uma neurose traumática, e somente após haver sido
efetuada é que seria possível à dominância do princípio de prazer avançar sem
obstáculo. Até então, a outra tarefa do aparelho mental, a tarefa de dominar ou sujeitar
as
excitações teria precedência, não, na verdade, em oposição ao princípio de prazer,
mas independentemente dele e, até certo ponto, desprezando-o” (FREUD, 1920/1995,
p. 46).
Com base no texto freudiano, depreendemos a existência de diferentes
níveis de ligação (
Bindung
) implicadas no trabalho de elaboração psíquica. O
estágio mais elementar deste procedimento consiste, basicamente, na simples
vinculação da excitação através de contra-investimentos energéticos. Trata-se de
um momento logicamente anterior ao da vigência do princípio de prazer, fazendo
com que este seja suprimido por alguns instantes, até que a estimulação seja, de
certa forma, contida mediante o estabelecimento de ligações. Estas primeiras
ligações, por sua vez, fornecem os pontos de apoio nece
ssários a um trabalho mais
73
complexo de assimilação psíquica. Isto ocorre com o estabelecimento de uma rede
de ligações, decorrente de um segundo nível do trabalho de elaboração psíquica,
possibilitando a emergência e a conseqüente dominância do princípio de prazer
(FREUD, 1920/1995). A importância da noção de ligação (
Bindung
) para a
instauração e funcionamento do aparelho psíquico é exposta por Herzog (2003)
nos seguintes termos:
“Se um ineditismo no pensamento de Freud, este diz respeito ao modo como
estrutura seu arcabouço teórico-clínico a partir da idéia de ligação. (...) Ou seja, o
termo ligação e seus correlatos desligamento, laço, vínculo, energia ligada,
energia livre não portando o estatuto de conceito permeia toda a construção da
psicanáli
se. (...) Desde o âmbito do funcionamento do aparato psíquico até sua
própria instauração, a ligação aparece como o que aciona um processo complexo
que nem sempre recebeu o devido relevo” (HERZOG, 2003, pp. 38
-
39).
Com efeito, a circunscrição dos dois níveis de ligações próprias ao trabalho
de elaboração psíquica tal como apresentado em “Além do princípio de prazer”
(FREUD, 1920/1995) – impõe que nos voltemos para o modelo de aparelho
psíquico arquitetado na “Carta 52”. Nesta esquematização, Freud (1896a
/1995)
demonstra interesse em circunscrever o psiquismo como um aparato de memória,
destacando sua função de armazenamento da estimulação que o atinge. A
principal idéia presente na carta é a da constituição do aparelho psíquico mediante
um processo de estratificação permanente do material mnêmico, sendo que a cada
uma destas retranscrições corresponde um diferente registro de memória. Ou seja,
a memória não seria armazenada no psiquismo de uma vez; pelo contrário, ela
74
se desdobra em vários tempos, sendo registrada em diferentes espécies de
rearranjos.
Do ponto de vista topográfico, a partir da extremidade perceptiva do
aparelho se disporiam três diferentes registros psíquicos. Dinamicamente, o
funcionamento do aparato é concebido de forma que as retranscrições mnêmicas
ocorram na passagem da excitação de um registro para outro, e cada nova
tradução inibe a que vigorava anteriormente. Em contrapartida, quando o material
mnêmico não sofre a devida retranscrição, ele continua a ser manejado de acordo
com as leis em vigor no sistema precedente. A recusa de tradução da memória é
designada de recalcamento, processo defensivo que se impõe em virtude do
desprazer passível de ser despontado por uma nova retranscrição. O processo de
recalque promoveria, desta forma, um certo anacronismo
17
: em determinadas
regiões do aparelho psíquico persistiriam o que Freud (1896a/1995) associa aos
fueros
”, termo referente a antigas leis espanholas que, apesar de ultrapassadas,
ainda vigoram em determinadas províncias.
A primeira transcrição da memória, inacessível à consciência, é feita no
registro dos “signos de percepção” (Wz), cuja articulação dos traços se pelas
relações de simultaneidade. Por conseguinte, o material mnêmico está sujeito a
sofrer uma segunda retranscrição no registro denominado “inconsciência” (Ub),
de acordo com as leis da causalidade. Enfim, no registro da “pré-
consciência”
(Vb), os traços são ligados às representações
-
palavra, o que viabiliza o ingresso na
consciência (Bews). É de suma importância salientar que, apesar de descrever
17
O termo “anacronismo” não está sendo por nós empregado para designar aquilo que se encontra
fora de moda ou ultrapassado, mas para explicar a perpetuação de determinadas formações
psíquicas no aparato que, de certo modo, contrastam com as outras.
75
apenas estes três registros da memória, Freud (1896a/1995) não descarta a
possibilidade da existência de outras retranscrições do material mnêmico.
Neste contexto, podemos traçar uma analogia entre o registro dos signos
de percepção e o primeiro nível do trabalho de elaboração psíquica proposto por
Freud (1920/1995) em “Além do princípio de prazer”, no qual a ligação se
simplesmente por intermédio de contra-investimentos energéticos. Em
contrapartida, os registros subseqüentes corresponderiam ao estabelecimento do
circuito ou rede de ligações psíquicas, onde predomina o reinado do princípio de
prazer. Vejamos estes níveis do trabalho de ligação a partir do esquema sugerido
na “Carta 52” (FREUD, 1896a/1995, p. 282):
I II III
W Wz Ub Vb Bews
X X X X X X
X X X X
______ ______ _______ ______
X
X
X X X X X
[percepção] [signos de percepção] [inconsciência] [pré
-
consciência] [consciência]
De acordo com tal encaminhamento, a excitação penetra no aparato por
sua extremidade perceptiva (W). Cabe ressaltar que, para o pensamento freudiano,
percepção e memória são funções psíquicas mutuamente excludentes e, portanto,
o sistema encarregado da percepção não pode reter traço de memória algum, a fim
76
de exercer sua função da melhor forma possível
18
. Conseqüentemente, os traços
mnêmicos só serão preservados nos registros seguintes (FREUD, 1896a/1995).
Os processos excitatórios que passam pela extremidade perceptiva deixam
alguns sinais, designados por Freud (1896a/1995) de “signos de percepção” (Wz),
constituindo, deste modo, o primeiro registro mnêmico. Com isto, marca-se que o
aparato não registra a totalidade daquilo que fora percebido, mas apenas alguns
signos, fragmentos associados pela contigüidade própria ao evento original
(LEJARRAGA, 1996).
Nesta perspectiva, Garcia-Roza (1996) recorre ao termo alemão
Prägung
”, visando salientar que os signos em questão possuem o estatuto de
marcas, ou seja, impressões que apenas afetam o aparato, ainda não insc
ritos
enquanto traços mnêmicos, articulados uns aos outros na forma de uma cadeia.
Trata
-se, conforme acima ressaltado, do nível mais elementar do trabalho de
elaboração psíquica, momento logicamente anterior ao do reinado do princípio de
prazer e, portanto, situado para mais aquém do processo de recalque
19
.
Como ilustração destes elementos que se inscrevem no aparelho psíquico
não como lembranças, mas como marcas ou simples impressões, podemos
mencionar a “cor amarela” presente na lembrança encobridora
de Freud
20
: ou seja,
de todas as vivências que ele tivera com a prima, o tom amarelado do vestido da
18
O tema da exclusão mútua entre as funções de percepção e de memória havia sido proposto
por Freud (1895/1995) no “Projeto para uma psicologia científica”. Contudo, ele receberá uma
maior atenção em alguns escritos posteriores, tais como “A interpretação de sonhos” (FREUD,
1900/199
5), “Além do princípio de prazer” (FREUD, 1920/1995) e, principalmente, “Uma nota
sobre o ‘bloco mágico’” (FREUD, 1925/1995).
19
Pela expressão “mais aquém do processo de recalque” fazemos alusão ao mecanismo de
recalque propriamente dito, tal como concebid
o por Freud (1915a/1995 e 1915b/1995) nos escritos
metapsicológicos e que atuaria na fronteira entre os sistemas inconsciente e pré-
consciente/consciente. Um confronto teórico entre o conceito de recalque presente na “Carta 52” e
este referido à primeira t
ópica será objeto de análise da primeira seção do próximo capítulo.
20
Ver segunda seção do capítulo anterior.
77
amada permaneceu gravado em seu psiquismo dissociado do contexto original.
Um outro exemplo pode ser encontrado em “Inibição, sintoma e angústia”. Neste,
qu
ando Freud (1926/1995) situa o nascimento como o protótipo dos demais
estados traumáticos, presume-se que não se trata da conservação psíquica
completa da experiência em questão. Registra-se apenas algumas expressões
corporais ligadas à vivência, tais como hiperatividade dos órgãos respiratórios e
aceleração do ritmo cardíaco. Por conseguinte, com a ameaça de surgimento de
uma nova situação de perigo no decorrer da vida do sujeito, estas sensações
corporais serão reinvestidas e repetidas, ainda que não asso
ciadas ao evento que as
originou. Isto também pressupõe as inscrições destas sensações no aparelho
psíquico na forma de signos de percepção e não enquanto lembranças
propriamente ditas (GARCIA
-
ROZA, 1996).
Num comentário acerca deste modelo de aparelho psíquico, Braunstein
(1990) salienta que os signos de percepção possuem um estatuto bastante peculiar:
eles são escrituras ainda desorganizadas, anteriores ao processo de simbolização,
configurando
-se enquanto matrizes a serem recuperadas pelas inscrições
pos
teriores. Tratar-
se
-ia de uma escritura ainda não articulada na forma de uma
cadeia significante, consistindo, portanto, enquanto uma linguagem cifrada na
qual os elementos são estranhos à organização narrativa propriamente dita
21
.
Nesta perspectiva, a ausência de nexos causais ou temporais entre os
signos de percepção pode conduzir a sua comparação com o que, na segunda
tópica, Freud (1923/1995) denominou de
isso
. Ou seja, deixando de lado o
substrato biológico fornecido a tal conceito, bem como relativizan
do o seu aspecto
21
Estas considerações de Braunstein (1990) são de suma importância para a tese e serão retomadas
em outros momentos da nossa argumentação.
78
puramente intensivo, vemos o
isso
como um conjunto de elementos gráficos que
passam à margem da contradição lógica ou dialética, posto que não são
submetidos a nenhuma organização. Onde falta a contradição e as idéias de tempo
e de causa,
reinaria o caos
outra característica atribuída por Freud ao
isso
, caos
remetido não à configuração de um caldeirão pulsional, mas ao fato dos signos de
percepção serem desorganizados e absolutamente intercambiáveis entre si
(BRAUNSTEIN, 1990).
Retomand
o as considerações de Freud (1896a/1995) acerca do modelo da
“Carta 52”, verificamos que esta escritura desorganizada fornece o suporte
necessário para a constituição do segundo registro mnêmico denominado de
“inconsciência” (Ub), onde os elementos se encontram articulados e
organizados pelas leis da causalidade. Nesta medida, uma referência ao “Projeto
para uma psicologia científica” auxilia na compreensão deste processo de
articulação entre as diversas impressões que afetam o aparato. No ensaio em
ques
tão, Freud (1895/1995) elaborou um modelo de aparelho psíquico dividido
em três sistemas de neurônios,
e
com funções diferenciadas de acordo
com suas capacidades de armazenamento de energia. Em linhas gerais, o sistema
, por lidar com quantidades exorbitantes de excitação oriundas do mundo
externo, é apresentado como um agrupamento neuronal totalme
nte permeável, que
se diferenciou para assumir a função de percepção. Ao sistema
cabe a
percepção
-consciência, a atribuição de qualidade ao que é da ordem da pura
quantidade e a transmissão dos signos de realidade aos neurônios
. Estes, por sua
vez, recebem indiretamente a excitação exógena e estão conectados à excitação
proveniente do interior do corpo. Trabalhando com quantidades reduzidas de
79
energia, tais neurônios são capazes de armazená-la, encarregando-se, portanto, da
memória neurônica conceituada como uma alteração permanente na estrutura
neuronal promovida pela retenção da excitação.
Nestes termos, a memória é circunscrita como um fenômeno possibilitado
pelo fato da resistência nas barreiras de contato entre os neurônios
ser maior do
que a magnitude da estimulação que o atinge. No entanto, apesar de ser postulado
que a força das barreiras de contato impede o escoamento das estimulações,
também é considerado que elas se alteram constantemente, permitindo a difusão
da excitação pelos caminhos menos resistentes. Conseqüentemente, dá-se o
estabelecimento de alguns caminhos facilitados ao longo da trama neuronal, ou
seja, uma série de percursos preferenciais para os futuros escoamentos dos
estímulos (FREUD, 1895/1995).
Deste modo, podemos traçar uma analogia entre o processo de articulação
dos diversos signos de percepção e a constituição dos encadeamentos entre os
neurônios
por intermédio das facilitações na trama neuronal. Nesta medida,
Garcia
-Roza (1996) assinala que a formação das facilitações implica na
conservação permanente das impressões no aparato a impressão torna-se um
traço de memória bem como na organização dos diversos traços nos moldes de
um texto psíquico. Isto demonstra que, ao contrário do que ocorre no registro
precedente, no sistema inconsciente existe uma coerência, organização e
articulação entre os traços.
Aqui, a referência aos sonhos é fundamental, principalmente, se tomarmos
por base o pressuposto de Freud (1895/1995) de que os sonhos seguem antigas
facilitações. Em outros termos, por consistir na repetição de um caminho
80
facilitado, o sonho se apresenta propriamente como um texto psíquico. Ou seja,
apesar de concebido como caótico e sem sentido de acordo com a gica da
consciência
a metapsicologia freudiana destaca que eles obedecem a uma outra
lógica, lógica esta que rege o sistema inconsciente, aludindo às leis da
condensação e do deslocamento. Isto demonstraria a existência de uma certa
organização no registro da inconsciência.
Tido como um texto psíquico, o sonho representa uma estrutura na qual
um traço vai sempre remeter a outro traço a ele encadeado, e assim por diante.
Segundo G
arcia
-Roza (1996), se sonharmos, por exemplo, com o sol e com um
jogo de dados, podemos perceber que a imagem onírica do sol não remete
necessariamente à estrela solar, bem como os dados aos jogos e brincadeiras; pelo
contrário, as duas imagens unidas
um
a remetida a outra
pode fazer referência à
palavra “soldado”. Portanto, no texto psíquico inconsciente, é o encadeamento de
um traço mnêmico ao outro que produz a significação, sem que haja relação entre
os traços em questão e as coisas referidas.
Trata
-se aqui, nos termos de Lacan (1957/1998), do estabelecimento de
uma cadeia significante. Ou seja, no registro da inconsciência, forma-se um
discurso no qual um significante nada significa, mas se articula a um outro; e,
somente a partir deste elo, é que advém a significação
22
. Para Braunstein (1990),
na “Carta 52”, o registro da inconsciência é um ponto intermediário de ligação
entre o sistema de cifras que o precede e o do diálogo impregnado de sentido que
o segue. Assim, o inconsciente é um discurso, ainda que se apresente de forma
bastante peculiar: uma cadeia de significantes segue seu próprio destino,
22
Cabe destacar que o próprio Lacan (1959-1960/1997) havia traçado uma analogia entre a
trama de facilitações neuronais e a cadeia significante.
81
produzindo determinadas significações que, por sua vez, não são compreendidas
ou mesmo apreciadas por uma testemunha em potencial. Em outros termos,
des
taca
-se que, no caso dos sonhos, cada sonhador produz o seu próprio código e,
caso o mesmo elemento estivesse presente nos sonhos de duas pessoas distintas,
seu sentido jamais seria o mesmo.
De acordo com a “Carta 52” (FREUD, 1896a/1995), a coerência
disc
ursiva, o pensamento racional e todas as outras características atreladas aos
processos psíquicos secundários só encontram seu espaço no terceiro registro
mnêmico designado de “pré-consciência” (Vb). Neste sistema psíquico – que,
segundo a teorização freudiana corresponde ao registro do
eu
os traços
mnêmicos são ligados às representações-palavra. Tal ligação torna os traços
mnêmicos potencialmente capazes de assomar à consciência. No entanto, é
assinalado que se trata aqui de uma “consciência secundária de pensamento”
(FREUD, 1896a/1995, p. 283) e que se efetiva de acordo com a lógica do
a
posteriori
(
Nachträglich
).
Assim, mediante uma analogia bastante curiosa, Lacan (1958/1998)
compara o modelo de aparelho psíquico da “Carta 52à dinâmica de um jogo de
loteria. Nele, um conjunto de números é colocado dentro de um globo e sorteados
ao acaso. No instante do sorteio, os números que até então se organizavam de
forma caótica passam a ser dispostos numa determinada seqüência ainda
arbitrária. Por fim, os
números são postos em relação com uma matriz simbólica
no caso, os bilhetes de loteria que, assim, servirá de molde para o fornecimento
de um sentido para os números, sentido este, por todos compartilhado e
compreendido.
82
Braunstein (1990), por sua vez, recorre a uma analogia técnica para
explicitar as múltiplas retranscrições do material mnêmico da “Carta 52”.
Segundo o autor, a tecnologia para a construção de um disco laser se inicia com o
simples registro de números, cifras e dígitos sobre uma superfície metálica,
completamente estranha à arte musical. Num segundo momento, estas inscrições
são decodificadas por um raio laser que as transforma em impulsos elétricos. Por
fim, as informações são enviadas a um sistema de transformação e de tradução em
mov
imentos que, ao atingirem os auto-falantes, ressoam, aos ouvintes, como uma
música.
Seguindo esta linha de raciocínio, podemos fornecer à “Carta 52” uma
importante ilustração clínica. Retomando a história do Homem dos lobos,
verificamos que, em alguns extratos do caso, Freud (1918/1995) considera
plausível o fato da criança ter presenciado uma cena de cópula entre cães pastores.
Nesta medida, podemos lançar a seguinte hipótese: de todo este complexo
perceptivo, permaneceu inscrita em seu psiquismo apenas a imagem da posição
dos animais no instante do coito. Outras imagens referentes, por exemplo, ao
desenho do lobo no livro que sua ir constantemente lhe mostrava; ao lobo
pulando pra dentro do quarto do alfaiate quando a janela se abre (como na história
que seu avô lhe contava); ou à visão de presentes de natal dispostos sobre os
galhos de uma nogueira também foram inscritas, porém dissociadas umas das
outras. Na noite de seu quarto aniversário, tais imagens são articuladas dando
origem ao sonho dos lobos sentados nos galhos da nogueira, sonho este estranho
tanto ao Homem dos lobos quanto àquele que o possivelmente escutara. Enfim, o
trabalho de interpretação decompõe o sonho em fragmentos que são reunidos
83
numa construção discursiva coerente: quando criança, ele havia sido testemunha
de uma relação sexual entre os pais, e a posição destes no ato da cópula em muito
lembraria a postura dos lobos ilustrados nos desenhos que via constantemente.
Com efeito, a construção em análise promoveria a instauração de u
m
encadeamento discursivo coerente entre cada uma das imagens desconexas
inscritas no aparelho psíquico do Homem dos Lobos
23
. Assim, no ato da
construção em análise, os traços de memória são ligados a determinadas
representações
-palavra. Esta articulação va
i,
a posteriori, dotar de significação as
impressões até então desconexas
24
.
Retomaremos, a seguir, alguns dos tópicos analisados em nossa releitura
da “Carta 52” (FREUD, 1896a/1995), temas estes podem auxiliar na proposta de
circunscrição do estatuto meta
psicológico das fantasias vazias.
2.2. Da cadeia significante ao referencial discursivo
O primeiro ponto a ser destacado do modelo de aparelho psíquico esboçado na
“Carta 52” (FREUD, 1896a/1995) remete ao contraste entre, de um lado, os
signos de percepção e, de outro, os registros da inconsciência e da pré-
consciência. Nesta medida, guardadas as devidas diferenças entre estes dois
últimos registros, pode-se destacar que ambos apresentam a característica de, em
seus domínios, os traços mnêmicos estarem articulados uns aos outros na forma
de uma trama narrativa. no nível dos signos de percepção, as diversas marcas
23
De fato, não cabe aqui uma análise minuciosa de como cada um destes fragmentos foi
entrelaçado aos outros na cons
trução freudiana. Para tal, remeto o leitor ao quarto capítulo do texto
de Freud (1918/1995) intitulado “O sonho e a cena primária”.
24
Cabe ressaltar que estamos trabalhando com a hipótese do Homem dos lobos não ter realmente
presenciado a cena primária na infância. De acordo com a análise do capítulo anterior, preferimos
encará
-
la como algo que só teve existência a partir do ato de construção.
84
não se articulam como um todo; pelo contrário, estão desconectadas umas das
outras, situando-se para mais aquém do processo de constituição da
cadeia
narrativa historicizada e romanceada. Com base nestes pressupostos,
trabalharemos a partir de agora na circunscrição de uma articulação entre, de um
lado, os signos de percepção e os fantasmas vazios e, de outro, os registros da
inconsciência e da p
-consciência e os fantasmas que se apresentam na clínica
enquanto cenários narrativos. O objetivo desta análise será o de correlacionar as
fantasias vazias com o registro dos signos de percepção delimitando, portanto,
uma analogia entre seus estatutos metapsicológicos. Em contrapartida,
relacionaremos os cenários fantasmáticos narrativos ao registro do significante.
Começaremos por esta última correlação.
Conforme o exposto acima a respeito da “Carta 52” (FREUD,
1896a/1995), os nexos causais que se formam no registro da inconsciência
fornecem o elo necessário entre os traços mnêmicos para a constituição de uma
trama historicizada. Assim, tal como demonstrado com relação aos devaneios e às
lembranças encobridoras, as cenas dispostas na estrutura fantasística se
sucederiam umas às outras, de modo a configurar uma relação de causa e efeito
entre elas. Dada a instituição dos nexos causais, também é possível à trama
fantasmática desenrolar-se no tempo, viabilizando o advento de um cenário
fantasístico romanceado. Por exemplo, no caso da lembrança encobridora
(FREUD, 1899/1995), a prima de Freud chora porque as flores foram tiradas de
suas mãos; para acalmá-la, lhe é oferecido um pedaço de pão; enfim, o próprio
Freud esconde suas flores para receber o pedaço de pão. Vale ressaltar que esta
85
mesma organização se faz presente em todas as manifestações fantasmáticas
configuradas enquanto cenários narrativos.
A articulação destas fantasias com os registros da inconsciência e da pré-
consciência também se legitima na medida em que, de acordo com Braunstein
(1990), reconhecemos, nas retranscrições mnêmicas em questão, o espaço
propício à instauração daquilo que Lacan denominou de cadeia significante. Com
efeito, constatamos ser o registro significante subjacente às fantasmatizações em
questão aquilo que possibilita que elas apresentem as suas principais
características. Com efeito, ao fazermos tal afirmação, estamos nos servindo do
conceito de significante tal como concebido por Lacan (1957/1998) no ensaio “A
instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. Trata-se do
significante dissociado do significado e que, sobre este, possui uma primazia. Em
si, o significante não remeteria diretamente a nenhum significado a priori, mas se
articula com outros significantes, na forma de uma cadeia, para produzir a
significação:
“Se pode dizer que é na cadeia do significante que o sentido
insiste
, mas que
nenhum dos elementos da cadeia
consiste
na significação de que ele é capaz nesse
mesmo momento. Impõe-se, portanto, a noção de um deslizamento incessante do
significado sob o significante” (LACAN, 1957/1998, p. 506, grifo do autor).
De acordo com o que foi assinalado no capítulo anterior, a fantasia tida
enquanto um cenário narrativo manifesta-se como um conjunto de teorias
formuladas pelo sujeito para compreender sua história de vida, seus sintomas e
conflitos e, ainda, para a imaginação de situações futuras, bem como para o
entendimento do estranho comportamento dos outros. Trata-se, assim, de destacar
86
que o sujeito constrói uma série de fantasmatizações historicizadas e estruturadas
por intermédio de elos causais, temporais, etc, com a finalidade de oferecer uma
interpretação para os mais diversos fenômenos com os quais se defronta. Claro
está que tais fantasmatizações não possuem o estatuto de verdades; pelo contrário,
elas se manifestam como interpretações dadas pelo sujeito para os fatos em
questão. Tais interpretações, por sua vez, são subjetivas e, portanto, não devem
ser confundidas com tentativas de desvendar o sentido oculto por detrás destes
fenômenos.
Esta característica peculiar do cenário narrativo do sujeito conduz ao seu
atrelamento ao registro do significante, pois ao postular que o significante não é
signo e nem sinal da coisa, Lacan (1957/1998) retira deste registro qualquer
pretensão de dar uma significação absoluta a um determinado fenômeno. Ou seja,
o significado tido como o sentido a todos comum de uma determinada
experiência
é posto de lado e, conseqüentemente, o significante passa a resistir
ao processo de significação. Assim, para o pensamento lacaniano, o significante
não possui, de modo algum, uma significação intrínseca, perdendo a sua função
de representação do significado. Nesta medida, ele apenas ocupa uma posição ou
um lugar numa cadeia, e o sentido resultaria da combinação entre os elementos
desta trama.
Disso resulta a lei da primazia do significante frente ao significado, núcleo
balizador de toda a teoria lacaniana. Com efeito, nunca devemos imaginar o
significante sozinho na medida em que ele o é para outros significantes a ele
encadeados. Conseqüentemente, são as permutas próprias ao domínio significante
87
o que criam a significação, como se o significante preexistisse ao significado
(LACAN, 1957/1998).
Assim, pressupondo ser a ausência de significação aquilo que está na
origem da cadeia significante, motivando-a e impondo suas diversas permutas,
podemos concluir que o sentido a ser estabelecido pelo discurso subjetivo é
sempre um resultado, um efeito ou, mais especificamente, uma produção
. Ou seja,
pensar a dinâmica psíquica enquanto um conjunto de redes significantes
entrelaçadas conduz à proposta de encarar o sentido como construído pelo sujeito,
e não como algo já dado de antemão, perdido e à espera de alguém para desvendá
-
lo. Conseqüentemente, encarando a cadeia significante como algo que se
presentifica na fala do sujeito na forma de um cenário narrativo fantasmático,
podemos assinalar que o sentido a ser construído é dado, justamente, pelas
produções fantasísticas do próprio sujeito. Este é o primeiro ponto a ser destacado
na proposta de pensar as fantasias em questão enquanto vinculadas ao registro
significante.
Avancemos um pouco mais em nossa argumentação, retomando o modelo
da “Carta 52”. Conforme foi acima assinalado, Freud (1896a/1995) destaca que o
aparato se constitui mediante retranscrições permanentes do material mnêmico.
Assim, apesar de mencionar na carta apenas algumas poucas retranscrições, ele
diz ser possível que haja vários outros rearranjos do material psíquico. Trata-se de
uma afirmação fundamental para a presente análise e, nesta perspectiva, o paralelo
que estamos traçando entre a cadeia significante, o cenário fantasístico do sujeito
e os registros mnêmicos da inconsciência e da pré-consciência pode auxiliar na
sua
compreensão.
88
Deste modo, devemos ter em mente que o cenário fantasístico se manifesta
como algo passível de sofrer constantes rearranjos, de modo que o sentido dado
pelo sujeito para um elemento num determinado momento pode não ser o mesmo
fornecido em outra ocasião. Ou seja, conforme Freud (1908a/1995) demonstra no
ensaio “Escritores criativos e devaneio”, a atividade fantasmática não se apresenta
enquanto uma estrutura inalterável; pelo contrario, ela sofre reformulações
contínuas ao longo da vida subjeti
va
25
. Nesta perspectiva, é justamente o seu
atrelamento ao registro significante aquilo que fornece o substrato
metapsicológico necessário para o entendimento deste dinamismo, pois a cada
novo rearranjo na cadeia significante, uma nova fantasia é construída e,
conseqüentemente, uma nova retranscrição mnêmica é erigida.
Tomemos como exemplo algumas fantasias do Pequeno Hans. Segundo
Freud (1910a/1995), uma série de fantasmatizações da criança justificava o
quadro clínico de fobia a cavalos, sendo o objeto da fobia um substituto da figura
paterna. Nesta perspectiva, a visão de um cavalo morrendo faz surgir um desejo
de morte do pai, processo associativo este motivado por algumas semelhanças
entre o cavalo e a figura paterna: o pai, quando bravo, batia as perna
s severamente
tal qual um cavalo. Ao longo da história clinica, verificamos também que o pai
não era substituído na fantasia de Hans apenas pelo cavalo pois, numa outra
fantasia, é a girafa o animal que aparece simbolizando o pai. Assim, numa
determinada produção fantasmática da criança, havia duas girafas em seu quarto
uma grande e outra amarrotada e quando Hans senta em cima da girafa
amarrotada, a outra se põe a gritar, pois havia sido levada para longe da
25
Conforme argumentação da segunda seção do capítulo anterior.
89
companheira. De acordo com Freud (1910a/1995), o conteúdo fantasmático que
assoma à consciência consistiria num substituto disfarçado de uma outra fantasia
inconsciente composta pelo desejo de tomar posse (sentar em cima) da mãe
(girafa amarrotada) para desespero do pai (girafa grande). Também, em s
uas
fantasias, a irmã Hanna era constantemente associada a um
lumf
(fezes) e,
segundo a leitura freudiana, tal justaposição representa uma associação
inconsciente entre um bebê e um
lumf
, de modo que os dois saíam do corpo da
mãe da mesma maneira.
Deste modo, devemos destacar que são, justamente, as permutas na cadeia
significante o que possibilita as substituições dos elementos uns pelos outros de
um lado, os elementos pai, cavalo e girafa grande; de outro, mãe e girafa
amarrotada; e, ainda, Hanna e
lum
f fazendo advir uma nova fantasia e
promovendo uma nova retranscrição do material mnêmico. Nesta perspectiva, de
acordo com Lacan (1957/1998), são as operações metafóricas e metonímicas as
responsáveis pelas substituições entre os elementos da cadeia, in
staurando novas e
constantes retranscrições fantasísticas. Portanto, este é mais um motivo que temos
para articular o cenário fantasmático narrativo do sujeito ao registro significante.
Passemos ao exame desta questão.
Para explicitar suas concepções acerca dos processos metafóricos e
metonímicos, Lacan recorre a algumas diretrizes presentes nos trabalhos de
Jakobson
26
. Segundo este autor, o discurso é orientado por dois eixos: o eixo
paradigmático que abrange o tesouro da linguagem e do qual selecionamos u
m
termo entre outros para construir nossa fala; e o eixo sintagmático, referido à
26
Para maiores detalhes acerca de como os conceitos em questão são trabalhados pelo lingüista,
remeto à Jackobson (1963).
90
operação de combinação das unidades lingüísticas escolhidas. O eixo
paradigmático, associado à sincronia, viabiliza a substituição dos termos entre si,
de modo que um termo levaria ao outro pela similaridade entre eles existente; o
eixo sintagmático, por sua vez, está ligado às articulações dos elementos
escolhidos, estabelecendo entre eles uma relação de contigüidade. Assim, o
lingüista conclui que os processos metafóricos se associam ao eixo paradigmático
e as operações metonímicas se vinculam ao eixo sintagmático.
Apoiado nestes estudos, Lacan (1957/1998) define o processo metafórico
enquanto a substituição de um significante por outro que tenha com o primeiro
uma relação de similaridade; a operação metonímica, por sua vez, seria aquela
responsável pela própria conexão entre os significantes na cadeia. Deste modo, a
metáfora é o mecanismo que implanta um significante na cadeia, significante este
que assume o lugar de um outro, fazendo com que este último passe para um
estado latente. Ou seja, nas cadeias fantasísticas de Hans, o significante “pai” irá
servir de suporte para uma série de operações metafóricas, fazendo erigir, a cada
substituição significante, uma nova retranscrição do material psíquico e,
conseqüentemente, um novo remanejamento fantasmático. A primeira
substituição ocorre entre os significantes “pai” e “cavalo”, e quando o segundo
entra na cadeia no lugar do primeiro, este é jogado para o inconsciente; o mesmo
processo pode ser entrevisto na fantasia das girafas, quando os significantes
“girafa grande” e “girafa amarrotada” assumem, respectivamente, o lugar dos
significantes “pai” e “mãe”; o significante “Hanna” também é substituído por
lumf
por intermédio de uma operação metafórica, na medida em que entre eles
91
existe uma relação de semelhança, pois os dois saem do corpo da mãe do mesmo
modo.
A metonímia, por sua vez, seria, ela própria, a responsável pelo
encadeamento de um significante a outro, combinando termos provenientes de
diferentes registros. Em si, o processo metonímico é aquele que se define,
segundo Lacan (1957/1998), por levar de um significante a outro mas,
diferentemente do que ocorre na metáfora, a substituição significante não faz com
que o primeiro fique em estado latente; pelo contrário, eles permanecem em
contigüidade um com o outro. Nesta medida, o procedimento metonímico
possibilita que o discurso fantasmático do sujeito se desdobre no tempo. Em
outros termos, trata-se de destacar que, pelas articulações metonímicas, uma
determinada fantasia vai estar sempre ligada à outra por contigüidade, numa
seqüência infinita de novos rearranjos narrativos e de acordo com a linguagem
da “Carta 52” (FREUD, 1896a/1995)
de novas retranscrições mnêmica
s.
Como no procedimento metonímico o significante substituído permanece
em associação de contigüidade com aquele que o substitui, concluímos que,
mediante o artifício da associação livre, é permitido ao sujeito passar de um a
outro, evocando-o durante o tratamento analítico. Este é o último ponto a ser
destacado nesta correlação entre o discurso fantasístico narrativo e seu
embasamento significante. Ou seja, pode-se ressaltar que a narrativa fantasmática
se apresenta como uma estrutura passível de interpretação, justamente, por estar
articulado pelas leis da metonímia. Nesta medida, cabe à interpretação
psicanalítica avançar por entre os meandros do encadeamento metonímico,
92
promovendo a desmontagem destes circuitos e, conseqüentemente, o advento de
um novo
rearranjo do material psíquico.
Desta maneira, conclui-se que o discurso fantasístico do sujeito repousa
sobre o fenômeno da sobredeterminação, tal como Freud (1900/1995) postulou
em relação aos sonhos. Ou seja, pelo discurso do sujeito estar entrelaçado
por uma
infinidade de deslocamentos metonímicos, será impossível ao procedimento
analítico substituir um significante por um único significado; pelo contrário, a
interpretação tem por função a desconstrução de um cenário fantasmático para que
ele se abra em direção a uma pluralidade de outros significantes que, por sua vez,
remeterão a outros significantes, e assim por diante.
É este dinamismo que se refere o famoso axioma de que “um significante é
aquilo que representa o sujeito para um outro significante” (LACAN, 1960/1998,
p. 833). Trata-se, com isto, de destacar que o sujeito é sempre pontual e
evanescente (LACAN, 1964/1998) na medida em que ele é representado por um
significante para outro significante, sem que nenhum deles consiga responder
absolutamen
te à pergunta “o que é o sujeito?”
27
. Assim, radicaliza
-
se, na clínica, a
impossibilidade de se exercer uma hermenêutica tal como concebida nos moldes
tradicionais, na medida em que não há um significante último a ser alcançado pela
interpretação. De modo contrário, conforme foi assinalado no capítulo anterior
28
,
a interpretação se de um significante para outro significante, sendo justamente
o fato de um sempre se ligar a outro em cadeia, aquilo que torna possível tanto à
interpretação, quanto o seu correl
ato, a associação livre.
27
Com efeito, a fórmula em questão traz implicações bastante incisivas para a interpretação
psicanalítica, posto que o sujeito ao qual o axioma se refere é o sujeito do inconsciente (LA
CAN,
1964/1998).
28
Ver segunda seção.
93
Ainda com base no modelo de aparelho psíquico da “Carta 52” (FREUD,
1896a/1995), passemos, agora, à analogia dos fantasmas vazios com o registro dos
signos de percepção.
De fato, os fantasmas vazios parecem possuir um estatuto met
apsicológico
semelhante ao desta primeira inscrição mnêmica. Segundo este ponto de vista, o
registro em questão deve ser concebido não propriamente como um aglomerado
de resíduos do processo perceptivo mas, de acordo com a leitura de Braunstein
(1990), com
o um conjunto de escrituras psíquicas dissociadas uma das outras. Em
consonância com nossa hipótese, estas escrituras desagregadas se atualizariam, no
discurso do sujeito em análise, numa determinada cena ou imagem fantasística
anestesiada.
Tratar
-
se
-
ia,
portanto, no domínio dos fantasmas vazios, de algo que se
perpetua no aparelho psíquico na forma de uma escritura elementar. Em outros
termos, devemos trazer à tona o anacronismo por Freud (1896a/1995) sustentado
entre os diferentes registros mnêmicos da “Carta 52”: ao lado de rearranjos
fantasísticos mais elaborados, alguns
fueros
ainda persistem no aparato. Como
se, de acordo com a proposta freudiana, o material em questão não sofresse
retranscrição alguma e, conseqüentemente, permanecesse situado para aquém do
registro da inconsciência. Deste modo, esta escritura elementar não seria tocada
pelo mecanismo de encadeamento mnêmico, resistindo ao processo metonímico e
a qualquer possibilidade de remanejamento significante.
O anacronismo em questão ajuda, portanto, a tornar compreensível o
estranho fenômeno referente ao fato dos fantasmas vazios se manifestarem na
clínica sempre ao lado de outras produções fantasísticas bastante férteis, sejam
94
elas visões de mundo, lembranças do passado ou projeções para o futuro. Como
vimos a respeito do caso do Pequeno Hans (FREUD, 1910a/1995), existia um
contraste entre a cena fantasmática anestesiada do cavalo com o preto ao redor da
boca e os demais romances fantasísticos por ele inventados: enquanto estes
últimos eram ba
stante ricos, servindo como cenários para a realização de desejos e
correções da realidade insatisfatória, a primeira se manifestava simplesmente
enquanto uma cena neutralizada, fixa e sem coloridos ou predicados. Nem se
conseguia, ao certo, dizer qual a sua função na dinâmica psíquica de Hans, ou
seja, se ela servia à realização de desejos ou à correção da realidade insatisfatória,
pois o tratamento sempre vacilava nas tentativas de descobrir qual o papel por ela
desempenhado na história da criança.
Com efeito, a ausência de nexos causais, temporais ou de qualquer outra
ordem impossibilita, no domínio das fantasias vazias, o estabelecimento de uma
trama fantasmática romanceada e historicizada. Nesta medida, teríamos o
substrato metapsicológico necessário para explicar a estranha característica dos
fantasmas vazios de sempre se manifestarem no discurso do sujeito na forma de
uma mesma cena anestesiada.
Com base nestes pressupostos, podemos arriscar a hipótese de trabalho de
que, no campo fantasmático do sujeito, nem tudo se reduz ao registro do
significante. Em outros termos, devemos destacar, mediante a analogia dos
fantasmas vazios com a inscrição psíquica elementar da Carta 52 (FREUD,
1896a/1995), uma outra modalidade de expressão fantasística que em nada se
assemelha àquela característica do cenário fantasmático narrativo do sujeito.
95
De fato, no domínio das fantasias vazias, não o remetimento
metonímico de um elemento ao outro e tampouco a configuração de uma
formação simbólica passível de ser instaurada por uma operação metafórica.
Entretanto, cabe assinalar, que nem por isso devemos classificá-las enquanto
expressões fantasísticas mais rudimentares ou menos elaboradas que as outras
com as quais nos deparamos a todo momento na clínica. Tratar-
se
-ia, apenas, de
uma modalidade de configuração fantasmática distinta, na medida em que
encontra seus alicerces numa outra forma de escritura que não a significante.
No entanto, também seria problemático delimitar que, que as fantasias
vazias não remetem ao registro significante, elas consistiriam propriamente numa
escritura de signos. Com efeito, é necessário destacar que Lacan também faz
algumas referências ao registro do signo, circunscrevendo-o enquanto um regime
oposto ao que é observado no campo significante; mas, conforme veremos a
seguir, nem por isso, devemos apressadamente correlacionar os fantasmas vazios
à economia do signo.
As referências lacanianas ao registro do signo encontram seu ponto de
apoio na semiótica de Peirce, para quem o signo, de modo geral, remete a alguma
coisa que, aos olhos de alguém, está para outra coisa
29
. Assim, no “Seminário 7: A
ética da psicanálise”, Lacan (1959-1960/1997) nos apresenta o signo da seguinte
forma: “o signo, segundo a expressão de Peirce, é o que está no lugar de algo para
alguém” (p. 116). A mesma definição é encontrada no “Seminário 9: A
identificação” (LACAN, 1961-1962, inédito), na qual o registro do signo aparece
como contraposto ao domínio do significante: “o significante, ao contrário do
29
Para maiores detalhes acerca da concepção semiótica do signo, remeto a Peirce (1897/2003).
96
signo, não é o que representa algo para alguém, é o que representa, precisamente,
o sujeito para outros significantes” (aula de 6 de dezembro de 1961).
De acordo com estas definições, a economia do signo diverge da economia
significante, pois enquanto um significante sempre reenvia a um outro
significante, o signo reenviaria ao objeto autêntico
30
. Em outros termos, a palavra
que faz signo remete diretamente àquilo que é designado, enquanto que a palavra
entendida como significante remeteria infinitamente a outras palavras. Nesta
medida, é justamente pela presença deste rudimento de laço natural que liga a
palavra que faz signo ao objeto designado que, por muitas vezes, Lacan foi avesso
à concepção de signo. De fato, um pressuposto realista subjacente à economia
do signo, de modo que este remeteria incessantemente às impressões que o sujeito
recebe do mundo onde vive e às relações ditas naturais que desenvolve com os
objetos (LACAN, 1955-1956/1998). Desta maneira, Lacan destaca que o registro
do signo se apresenta como uma barreira para a apreensão do domínio
significante, tal como por ele pensado em “A instância da letra no inconsciente ou
a razão desde Freud” (LACAN, 1957/1998). De acordo com a passagem de
“Radiofonia”:
“Nenhuma significação, doravante, será tida como evidente. (...) Eu chamarei de
semiótica toda disciplina que parte do signo tomado como objeto, mas para ilustrar
que é isso que cria obstáculo à captação como tal do significante. (...) O signo basta
para que (...) [se] faça da linguagem a apropriação de um simples instrumento. (...)
Eis aí a linguagem como suporte” (LACAN, 1970/2003, p. 401).
30
Com efeito, são muitas as acepções que o conceito de signo recebeu ao longo do pensamento e,
para maiores detalhes acerca do tema, remeto a Deleuze e Guattari (1995). No entanto, não cabe
nesta tese um exame pormenorizado desta questão e, por isso, estamos sempre nos reportando à
concepção peirciana de signo que, em última instância, é a que o pensamento lacaniano utiliza para
diferenciá
-
la da abordagem do conceito de significante.
97
Segundo a citação, Lacan considera que o signo se apresenta como um
obstáculo à apreensão do domínio significante porque o regime do signo
pressupõe que a operação de significação se a partir da assimilação, por parte
do sujeito, do conteúdo do objeto a ser por ele representado (LACAN,
1970/2003). Tratar-
se
-ia de uma significação evidenciada no próprio conteúdo
do objeto referido, sendo a linguagem empregada, na dinâmica do signo, como
um mero suporte para a atividade de descrição. No entanto, para a concepção
lacaniana que valoriza a primazia do significante, o plano do conteúdo é colocado
à margem do processo de significantização, sendo este produzido pelas p
ermutas
na cadeia significante (LACAN, 1957/1998). Ainda de acordo com esta
concepção, a linguagem não teria como propósito a designação dos objetos
presentes na realidade. Com efeito, quando se traz para o primeiro plano a
primazia do significante, descon
sidera
-se a realidade efetiva, e caminha-se rumo à
postulação de que a própria linguagem cria a realidade
31
. Trata-se aqui, em outros
termos, de reiterar a afirmação de que o mundo das palavras é anterior ao mundo
das coisas (LACAN, 1953/1998).
Com base nestes pressupostos, cabe indagar: se o registro do signo reenvia
necessariamente a este fragmento de realidade a ser designada pelo sujeito, por
que não insistimos na proposta de relacionar as fantasias vazias ao domínio do
signo? Não se trata, no domínio dos fantasmas vazios, tal como ocorre no registro
do signo, da simples descrição ou designação de um determinado objeto, ainda
não tocado pelas operações metafóricas? Com efeito, se circunscrevêssemos uma
analogia entre as fantasias vazias e a escritura de signos, estaríamos indo
31
Conforme a discussão apresentada no primeiro capítulo, vimos que esta realidade a ser criada
pela linguagem é, em suma, uma realidade psíquica construída a partir das formações desejantes
do sujeito (FREUD, 1900/1995).
98
justamente contra os nossos propósitos de afirmar que estas cenas anestesiadas e
neutralizadas fazem referência a um campo fantasmático. Isto porque o campo do
signo se reporta a um fragmento de realidade a ser representado pelo suje
ito.
Um retorno ao ensaio “Contribuição à concepção das afasias” (FREUD,
1891/1987) pode auxiliar em nossa argumentação. No texto em questão, Freud
analisa, pela primeira vez, a questão da representação em psicanálise. Nele, se
estabelece uma série de críticas às concepções até então dominantes acerca das
afasias, concepções estas que, salvo algumas diferenças, convergiam para o que
fora denominado de teoria das localizações cerebrais. De acordo com esta teoria,
as excitações sensoriais sempre deixam traço
s permanentes na anatomia do córtex,
de maneira que as impressões advindas do mundo externo são conservadas e
armazenadas sob a forma de imagens mnêmicas na própria estrutura cerebral.
Assim, existiria uma relação ponto a ponto entre os estímulos provenientes do
mundo externo e suas representações localizadas no córtex. A excitação é
conduzida, da periferia ao córtex, por algumas fibras nervosas; estas, por sua vez,
em nada interfeririam no procedimento em questão, permanecendo imutáveis a
cada passagem da
estimulação.
Dentre todas as discordâncias de Freud (1891/1997) com estas concepções,
duas delas são de fundamental importância para nossa argumentação: a primeira
diz respeito à sua recusa em aceitar a representação como uma cópia ou mero
simulacro da impressão; a segunda, remete ao fato dele afirmar que a
transmissão da excitação nunca se de maneira uniforme e linear. Assim, de
acordo com a visão freudiana, uma representação psíquica deixa de ser
contemplada como o simples efeito mecânico do dado sensorial; pelo contrário,
99
uma série de operações psíquicas interfere na condução de uma impressão,
operações estas que correspondem a determinados processos de associação. Deste
modo, passa a ser impossível separar as funções psíquicas de representação e d
e
associação, sendo a representação sempre pensada enquanto uma organização
complexa na medida em que ela se faz a partir da reunião e da combinação dos
diversos elementos presentes em sua estrutura.
Tal como foi demonstrado no conhecido esquema psicológico do texto em
questão, a palavra é definida como uma representação complexa (FREUD,
1891/1997). De acordo com Kristeva (2000), ao fornecer tal atributo à
representação, Freud estaria substituindo a idéia de uma projeção unívoca entre
impressão e representação, para caracterizar esta última enquanto um conjunto
folheado de elementos dispostos em série. Assim, a representação-palavra é
composta por elementos acústicos, visuais e cinestésicos, englobando uma
imagem sonora, uma imagem visual da letra, uma imagem motora da linguagem e
uma imagem motora da escrita. Nesta medida, uma série de processos
associativos intervém entre tais componentes, visando suas articulações e o
conseqüente advento da representação
-
palavra (FREUD, 1891/1987).
Dando prosseguimento à sua argumentação, Freud (1891/1987) destaca
que a significação da representação-palavra decorre da sua articulação com o que
ele designa de representação-objeto. No entanto, é assinalado também que a
representação
-objeto não consiste num dado a priori; pelo contrário, ela ganha
existência efetiva a partir da ligação com a representação-palavra. Trata-se, em
outros termos, de destacar que é somente a partir de suas relações com a
representação
-
palavra que o objeto ganha uma unidade e uma identidade.
100
Seg
undo a leitura de Garcia
-
Roza (1991), o esquema freudiano mostra que a
articulação entre as representações gera, sobretudo, um efeito de sentido, de modo
que o processo de significação não resultaria da ligação da representação-
objeto
com o referente, que no próprio esquema freudiano não diz respeito a um
objeto, mas ao que ele denomina de associações de objeto. De modo contrário, a
significação resultaria dos elos da representação-objeto com a representação-
palavra. Tendo em vista a importância deste comentário para os nossos objetivos,
vale a pena transcrever, na íntegra, a passagem na qual ele é feito:
“O termo
representação
-
objeto
não designa o
referente
ou a
coisa
(da qual ele
retiraria sua significação), mas, na sua relação com a representação-
pala
vra,
designa o
significado
. A significação não está na coisa, também não está em cada
imagem (visual, tátil, acústica, etc.) como se cada uma delas representasse um
elemento da coisa, ela resultaria da associação destes vários registros pelos quais se
a representação. (...) Tudo se passa, portanto, no registro da representação e da
associação entre representações” (GARCIA-ROZA, 1991, pp. 48-49, grifo do
autor).
Ainda com respeito ao ensaio freudiano, devemos destacar que, além de
assinalar a presença de processos associativos intrínsecos aos domínios das
representações
-palavra e das representações-objeto, o esquema psicológico
também menciona que, no aparelho de linguagem, uma representação-
palavra
sempre se encontra articulada com outras representações-palavra. Tratar-
se
-ia do
fenômeno da superassociação, o que conduz à caracterização de uma estrutura
bastante semelhante à da rede de facilitações (FREUD, 1895/1995) e da cadeia
significante (LACAN, 1957/1998). Nesta medida, as representações-
palavra,
atr
eladas ao domínio significante, teriam o poder de criar e de modificar o
101
fenômeno da significação, fazendo com que um sistema de coisas ou objetos seja
substituído por um sistema de representações (GARCIA
-
ROZA, 1991).
Com efeito, de acordo com o modelo freudiano em questão, dizer que o
objeto adquire uma identidade e uma significação a partir do momento em que
se articula com uma representação-palavra conduz a uma concepção de que
nenhum ato de percepção se faz com uma independência da linguagem
(GARCIA
-ROZA, 1991). Conforme discutimos acima, este é um postulado que
prevalece no pensamento psicanalítico: a linguagem teria uma função decisiva no
processo de produção de sentido, sendo crucial para a constituição de um objeto.
Assim, para a psicanálise, a re
presentação
-objeto não diria respeito ao objeto
autêntico presentificado na realidade, mas a algo que é propriamente produzido
pelas operações de linguagem.
Com base nestes pressupostos, consideramos que a relação do sujeito com
os objetos é mediada pelo universo da linguagem e, justamente por este fator, não
podemos associar os fantasmas vazios ao registro do signo. Nesta perspectiva,
seria mais plausível destacar que, na linguagem manifesta nas fantasias vazias, a
representação
-objeto ligada à representa
ção
-palavra assume o peso de um
referencial. Em outros termos, não se trata, no domínio fantasmático em questão
da apreensão direta do objeto em si, mas de uma forma de discurso que se
manifesta como se a representação
-
objeto fizesse referência a um objeto
autêntico.
Ou seja, aquilo que no regime do signo assume o lugar de objeto realístico, no
campo dos fantasmas vazios, adquire a função daquilo que denominaremos, a
partir de agora, de referencial discursivo.
102
Assim, nos serviremos desta nomenclatura para designar os elementos
discursivos que, manifestos nas fantasias vazias, possuem uma significação
unívoca, não cambiável e alheia ao processo de formação de mbolos. Nesta
perspectiva, o adjetivo “discursivo”, atrelado a estes referenciais, está sendo
empr
egado para, justamente, recuperar o caráter fantasístico destas formações
psíquicas, de modo a evitar um possível equívoco em remeter tais referenciais a
um dado concreto ou mesmo idealizado. Com efeito, conforme a discussão
empreendida no capítulo anterior
32
, o pensamento freudiano repousa sobre a
postulação de que a realidade objetiva está para sempre perdida, sendo a realidade
da fantasia a única que realmente interessa à clínica. De acordo com a passagem
abaixo:
“Freud vai poder dizer que a única realidade que interessa (...) é a realidade da
fantasia (...), a realidade psíquica por excelência. O que está implicado nesta
construção é que o objeto não está dado desde o início, mas deve ser produzido.
(...) A despeito da particularidade dos vários modos de se conceber o objeto, fica
patente uma diferença. Assim, no pensamento do século XIX, a questão da
objetividade se apresenta como possibilidade de um discurso totalizante e
universalizante que pretende enunciar um referente ou, no caso da impossibilidade
de tal pretensão (...) para preencher esta falta de referente, este vazio. Freud, em
sua fundamentação metapsicológica, descarta esta possibilidade para o sujeito. (...)
Após 1920, coloca-se (...) a proposta de uma ausência de referência (...), a idéia
da
ausência de qualquer referência sobre a qual seria possível se apoiar” (HERZOG,
1999, p. 66
-
69).
32
Ver primeira seção.
103
De acordo com o ensaio “Contribuição à concepção das afasias” (FREUD,
1891/1987), este referencial discursivo remete, de fato, ao elo entre uma
representaç
ão
-palavra e uma representação-objeto; no entanto, esta vinculação
entre as duas representações em questão escaparia ao fenômeno da
superassociação. conforme o modelo da “Carta 52” (FREUD, 1896a/1995), o
referencial discursivo alude ao registro dos signos de percepção, perpetuado
enquanto um
fuero
e, deste modo, ainda não tocado pelo regime característico
dos registros da inconsciência e da pré
-
consciência.
É, portanto, em virtude de seu congelamento em torno deste referencial
discursivo que, no domínio das fantasias vazias, a linguagem torna-se exata e sem
equívocos. De acordo com esta perspectiva, tido enquanto um referencial
discursivo, o elemento presente na cena anestesiada reenviaria sempre a ele
mesmo e não a um substituto metafórico de algo a e
le subjacente.
Retomemos a cena fantasística neutralizada do Pequeno Hans (FREUD,
1910a/1995). Destacamos, no capítulo anterior, a impossibilidade da criança de
remeter o estranho objeto preto ao redor da boca do cavalo a um elemento
inconsciente. Com efeito, na dinâmica psíquica de Hans, tudo concorre para a
acepção de que o objeto em questão não consiste num substituto metafórico e
consciente de nenhum outro elemento latente: ao contrário do que acontecia no
tocante as suas outras fantasmatizações, a nada a criança conseguia associar a
cena anestesiada. Frente a esta cena, seu discurso vacilava e, de acordo com a
história clínica, tudo leva a crer que isto ocorria não por causa de uma resistência
do
eu
de fato, com respeito às outras fantasias de Hans, o tratamento analítico
conseguia identificar as resistências e, em seguida, contorná-
las
mas, pelo
104
simples fato da cena neutralizada já ser clara e, deste modo, nada ter a esconder. O
objeto é tomado por Hans enquanto um referencial em seu discurso e,
co
nseqüentemente, ao longo da fala da criança, não cessava de constantemente
remeter a ele próprio, e não a um outro elemento, tal como ocorreria numa escrita
significante. Neste sentido, a literalidade característica da cena fantasmática
anestesiada de Hans contrastava com o simbolismo próprio às suas outras
produções fantasísticas.
De acordo com Deleuze e Guattari (1995), quando o pensamento
psicanalítico reduz o discurso do sujeito ao domínio significante, ele deixa de
atentar para outras formas de expressão que, em si mesmas, seriam bastante
diversas. Nesta perspectiva, é justamente esta a crítica que estamos traçando: nem
tudo no discurso do sujeito deve necessariamente remeter ao domínio significante,
pelo menos tal como pensado de acordo com a lógica a
presentada em “A instância
da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (LACAN, 1957/1998). Segundo
a proposta da Carta 52” (FREUD, 1896a/1995), para que os signos de percepção
se transformem num cenário significante seria preciso fazê-los passar pela
retranscrição mnêmica que instaura o registro da inconsciência. No entanto, em
determinados processos psíquicos, este rearranjo não é feito, o que promove a
permanência dos
fueros
no aparato psíquico. Estes, por sua vez, se
manifestariam na fala do sujeito na forma de cenas neutralizadas, sem coloridos
ou predicados.
No domínio dos fantasmas vazios, a linguagem é exata, não se presta ao
processo de formação simbólica e se encontra às voltas com este referencial
discursivo. Assim, a linguagem passa a não produzir equívocos; pelo contrário, se
105
apresenta sempre de forma direta e crua. Com base nestes pressupostos, cabe
indagar: por que, no registro das fantasias vazias, o objeto fantasmático se
presentifica desta forma, como se não fosse tocado pelos processos metafóricos
que, assim, instaurariam a formação de símbolos?
Para examinar tal questionamento, remetemos à releitura empreendida por
Freud (1907/1995) do conto “Gradiva: uma fantasia pompeiana” (JENSEN,
1903/1987). Vale à pena nos determos neste ponto e analisar a interpretação
freudiana para o romance de Hanold e Gradiva, o que nos conduzirá à
circunscrição de outra importante hipótese de pesquisa acerca do estatuto
metapsicológico dos fantasmas vazios.
Em linhas gerais, o conto de Jensen (1903/1987), narra a história de um
jovem arqueólogo chamado Nobert Hanold que, certo dia, fora atraído por uma
escultura de gesso que representava a figura de uma jovem surpreendida enquanto
caminhava pelas ruas. A figura da moça lhe parecia bastante viva, sendo a
rep
resentação incomum e graciosa de seu modo de andar o que tanto seduzira o
cientista. Hanold batiza a escultura de “Gradiva”, que significa “a jovem que
avança” e, acreditando ver traços gregos em sua fisionomia, concede-lhe uma
origem. No entanto, na dificuldade de situar os traços serenos da jovem no
cotidiano agitado de uma capital deduz que, apesar de sua origem grega, ela
deveria ter habitado a cidade de Pompéia.
A partir deste instante, com a totalidade de seus pensamentos voltados à
figura de Gradiva, Hanold passa a observar o mundo, do qual havia retirado seus
investimentos bastante tempo, a fim de verificar, em vão, se alguma jovem
de sua época possuía um modo de andar semelhante. Pouco depois, por algum
106
motivo que lhe era desconhecido, o cientista viaja para a cidade de Pompéia e se
depara com Gradiva a andar pelas ruas destruídas, percebendo então que se tratava
de um ser realmente vivo. A história prossegue com a narrativa de várias
conversas entre Hanold e Gradiva, até que, num determinado momento, a moça
confessa conhecer o arqueólogo, revelando-lhe seu verdadeiro nome, Zoe
Bertgang. De fato, os dois haviam sido amigos de infância, e a amizade,
posteriormente transformada em romance, fora esquecida por Hanold quando ele
voltou seus interes
ses exclusivamente para a arqueologia (JENSEN, 1903/1987).
Assim, extraindo do conto a fantasia construída por Hanold de que
Gradiva era grega, porém residira em Pompéia, Freud (1907/1995) pontua:
“Surge
-nos a descoberta de que as fantasias do jovem arqueólogo sobre
Gradiva talvez sejam um eco dessas lembranças infantis esquecidas. Assim sendo, não
se trata de produtos arbitrários de sua imaginação, tendo sido essas fantasias
determinadas (...) pelo acervo de impressões infantis esquecidas, mas ainda nele
atuantes. Seria possível para nós, ainda que só possamos conjeturar sobre elas, mostrar
em detalhe a origem dessas fantasias. Ele imaginou, por exemplo, que Gradiva devia
ser de origem grega. (...) Isso se ajusta com perfeição ao seu conhecimento do nome
grego da jovem, Zoe” (FREUD, 1907/1995, p. 37).
Mais adiante, prossegue:
“Por trás da impressão de que a escultura era ‘viva’ e da fantasia de que o modelo era
grego, estava sua lembrança do nome Zoe que significa ‘vida’ em grego. ‘Gradiva’
(...) é uma tradução do sobrenome ‘Bertgang’ que quer dizer mais ou menos ‘alguém
que brilha ou esplende ao avançar’. (...) Sua fantasia transportou-a para Pompéia, não
porque ‘sua natureza serena e tranqüila’ assim o exigisse, mas porque em sua ciência
ele não pôde encontrar analogia mais apropriada para seu singular estado, no qual
tomou conhecimento de suas lembranças de uma amizade da infância, embora através
107
de obscuros meios de informação. Após ter feito sua própria infância coincidir com o
passado clássico (...), houve uma perfeita analogia entre o soterramento de Pompéia
que fez desaparecer, mas ao mesmo tempo preservou o passado – e o recalque”
(FREUD, 1907/1995, pp. 52
-
53).
Assim, devemos questionar em qual medida o conto de Jensen pode
auxiliar em nosso questionamento acima formulado. Com efeito, a interpretação
freudiana enfatiza a função desempenhada por uma formação desejante recalcada
no processo de construção da realidade fantasmática do sujeito. Nesta perspectiva,
devemos pressupor, de antemão, que o desejo do sujeito é o responsável pelo
processo de dissimulação fantasística dos objetos percebidos. Em outros termos,
trata
-se de destacar que o cenário fantasmático do sujeito é fatalmente
contaminado pela atuação de um desejo inconsciente, que modificaria os dados
perceptivos mediante os processos de reelaboração e de reorganização dos traços
mnêmicos.
Este procedimento é, de fato, bem ilustrado pelo conto. Se tomarmos o
referencial discursivo propulsor de todos os devaneios de Hanold no caso, a
estátu
a da Gradiva –, verificamos que ele se inscreve no cenário fantasmático do
arqueólogo profundamente afetado pela atuação de seus desejos recalcados. Ou
seja, foi em virtude destes que o nome “Gradiva” foi dado à estátua; do mesmo
modo, por causa destes mesmos desejos, traços gregos foram vistos em sua
fisionomia; ademais, a fantasia de que a jovem teria habitado a cidade de Pompéia
também foi motivada pela atuação de um desejo inconsciente. Desta forma,
devemos destacar que é o desejo recalcado aquilo que responde pela instauração
dos processos metafóricos e metonímicos na estrutura fantasmática. Mediante
estas operações, um conjunto de formações simbólicas vão, aos poucos,
108
encontrando o seu devido lugar na fantasia do sujeito e, conforme discutimos
acima
33
,
este procedimento torna possível, na clínica, a atividade interpretativa
dos fantasmas em questão.
Com base nestes pressupostos, retomando nosso questionamento, podemos
arriscar a hipótese de que, no domínio dos fantasmas vazios, o objeto é manifesto
na forma de um referencial discursivo, justamente, por não ter sido tocado por
uma formação desejante recalcada. Ou seja, quando associamos as fantasias em
questão ao registro dos signos de percepção (FREUD, 1896a/1995), verificamos
que esta escritura elementar se situa num espaço topográfico situado logicamente
antes da constituição do registro da inconsciência. Com isto, as fantasias vazias
permaneceriam inscritas no aparato enquanto
fueros
”, marcas psíquicas
possivelmente ainda não atingidas pela atuação de uma formação desejante
recalcada, visto que esta encontra seu espaço de ação no registro subseqüente.
No registro dos signos de percepção, os processos metafóricos e metonímicos
ainda não se fariam sentir, de maneira a eliminar quaisquer possibilidades
de
formações simbólicas. Portanto, situados para aquém do raio de ação de todos
estes processos, os fantasmas vazios se manifestariam no discurso subjetivo
enquanto verdadeiros obstáculos às atividades de interpretação e de livre
associação
34
.
33
Ver primeira seção do capítulo anterior.
34
Vale lembrar que Freud (1896a/1995) qualificou o registro dos “signos de percepção” de
inconsciente e, de fato, isto poderia ser um fator contrário à nossa argumentação, posto que
sustentamos a hipótese das fantasias vazias serem fantasmatizações conscientes. No entanto,
conforme nossa releitura da “Carta 52”, estamos considerando os signos de percepção não como
resíduos mnêmicos do processo perceptivo mas, de acordo com a proposta de Braunstein (1990),
como uma escritura psíquica cifrada e alheia ao encadeamento significante. Nesta perspectiva, não
vemos motivos suficientes para acompanhar a proposta freudiana de conceber os signos de
percepção como inconscientes. Este
ponto de vista só faria sentido se eles fossem tomados em suas
relações com o sistema perceptivo, pois percepção e memória são tidas como funções psíquicas
excludentes e que, portanto, devem ser associadas a sistemas distintos.
109
2.3. A simból
ica freudiana
De acordo com a análise empreendida até então, vimos que os fantasmas vazios se
configuram como uma modalidade fantasmática atrelada a determinados
referenciais discursivos e, portanto, alheia aos processos metafóricos e
metonímicos característicos do domínio significante. A proposta, agora, é
focalizar um pouco mais o dinamismo próprio à metáfora e à metonímia para, em
seguida, investigar as principais peculiaridades de uma formação fantasística
situada para mais aquém do campo de ação destas operações lingüísticas. A
discussão girará em torno da noção de símbolo, tal como circunscrita pelo
pensamento freudiano. Nesta perspectiva, serão destacados os fatores que
respondem pelo estranho fato das fantasias vazias retirarem de seus domínios a
pos
sibilidade do advento de uma formação simbólica
35
.
Com efeito, apesar de Freud empregar por diversas vezes o termo
“símbolo” ao longo de seus escritos, não podemos apressadamente concluir que,
em seu pensamento, ele se apresente enquanto um conceito. Isto porque as mais
variadas menções ao termo são bastante ambíguas e, muitas vezes, contraditórias.
Existe, de fato, um paradoxo inerente as suas concepções acerca do processo de
constituição de uma formação simbólica: conforme veremos a seguir, em algumas
pas
sagens, o símbolo encontraria seus alicerces numa relação fixa e convencional
entre a palavra e o referente a ser designado; de maneira contrária, alguns escritos
justificam uma concepção eminentemente arbitrária do símbolo, de modo a ir
35
Cabe alertar para o fato de o conceito de símbolo estar presente no pensamento de muitos
autores das mais diversas áreas científicas. No entanto, não estamos interessados nas múltiplas
acepções que este conceito recebeu ao longo da história do pensamento, limitando-nos apenas à
con
cepção propriamente freudiana do tema.
110
contra qualquer pretensão de estabelecimento de uma relação determinada e
permanente entre o símbolo e o objeto que ele representa.
A concepção do mbolo enquanto uma estrutura fixa e inalterável é
justificada por algumas passagens presentes em “A interpretação de sonhos
(FREUD, 1900/1995), principalmente, quando são analisados os chamados
sonhos típicos. Trata-se de sonhos que se utilizam de símbolos existentes e
universalmente compartilhados, fazendo com que certos elementos sejam
representados nos sonhos de forma análoga e independente do sujeito que sonha.
Deste modo, no trabalho do sonho, o sistema inconsciente poderia se apropriar de
algo pronto, de um conjunto de formações simbólicas cujas significações
transcendem ao desejo do sonhador. Dentre as formações si
mbólicas
convencionais manifestas nos sonhos típicos, podemos mencionar as figuras do
rei e da rainha como símbolos das figuras parentais; igualmente, uma espada, uma
bengala ou uma chave aparecem como símbolos do pênis; já um buraco, um cofre
ou uma caixa se apresentariam como símbolos do órgão genital feminino
(FREUD, 1916/1995). Assim, é impressionante notar como, em muitos de seus
casos clínicos, Freud constantemente recorre a estas simbólicas, visando a
interpretação dos sonhos de seus pacientes, mesmo antes deles associarem
livremente acerca dos elementos oníricos. Como exemplo desta atitude, podemos
mencionar a interpretação do primeiro sonho de Dora, no qual Freud
(1905a/1995), apressadamente, conclui que os elementos oníricos “chave” e
“caixa” repre
sentariam uma relação sexual.
No entanto, uma outra concepção, bem mais complexa, se faz presente no
pensamento freudiano, implicando não apenas numa outra teorização a respeito do
111
símbolo, mas também num manejo clínico diferente. Nesta perspectiva, em ou
tros
empregos do termo, é mencionado, por exemplo, que o sintoma histérico
funcionaria como símbolo de um traumatismo patogênico (FREUD, 1894/1995)
ou, então, de uma fantasia sexual recalcada (FREUD, 1905b/1995). De acordo
com esta concepção, podemos dizer, ainda com respeito ao caso Dora (FREUD,
1905a/1995), que os sintomas de tosse nervosa e de apendicite se apresentariam
enquanto símbolos das fantasias inconscientes de felação e de parto,
respectivamente. Nestes casos, o símbolo é arbitrário e não convencional, pois
nem todos aqueles que possuem tais sintomas os remeteriam necessariamente às
fantasias em questão. Segundo este ponto de vista, o símbolo é uma formação
singular e encontra seu campo de ação apenas na dinâmica psíquica de um sujeito
específico
. Não existiria, portanto, um código universal de interpretação para o
símbolo; e, para alcançar sua significação inconsciente, o analista teria de levar
em conta as próprias associações livres do paciente.
Podemos afirmar que esta segunda concepção é a dominante nos escritos
freudianos: um determinado símbolo assume as mais variadas significações na
medida em que estas últimas remetem necessariamente ao contexto no qual a
formação simbólica foi erigida. Como nunca devemos esquecer que o contexto em
questã
o é singular a cada sujeito, a operação de interpretação do mbolo se torna
dependente das associações e das fantasmatizações do sujeito em análise.
Ademais, esta concepção valoriza a participação dos processos inconscientes no
mecanismo de formação simbólica. Ou seja, a significação do símbolo jamais
pode ser vista como um dado universal, posto ser o desejo do sujeito aquilo que a
112
instaura. Assim, o pensamento psicanalítico destaca a possibilidade do sujeito
poder criar seus próprios símbolos, para além d
aqueles disponíveis na cultura.
De acordo com esta concepção, o mecanismo de formação simbólica
encontra seus principais alicerces na ação dos processos metafóricos. Em outros
termos, trata-se de destacar o importante fato de uma operação metafórica
subst
ituir um sentido por outro, fazendo com que o primeiro passe para um estado
latente (LACAN, 1957/1998), originando, portanto, uma formação simbólica. As
relações existentes entre o simbolismo e a metáfora são retomadas por Rosolato
(1988) que delimita algumas das principais características da operação lingüística
em questão para, em seguida, circunscrevê-la enquanto o suporte necessário ao
processo de formação de um símbolo. Segundo o autor, os mecanismos
metafóricos se definem, basicamente, por uma substituição entre significantes de
uma cadeia inconsciente e outra consciente. Não obstante, também é assinalado
que tal substituição sempre gera um efeito de não-sentido, ao qual sucederia a
emergência de novos sentidos, estes últimos por ele classificados como
polivalentes, inesgotáveis e poéticos. De acordo com este ponto de vista, é a
linguagem metafórica o que permite que o discurso do sujeito seja influenciado
pela cadeia fantasmática inconsciente, fazendo originar as formações do
inconsciente, nomenclatura forjada por Lacan (1957-1958/1999) para designar os
lapsos, chistes, sonhos e sintomas.
Nesta medida, Rosolato (1988) define o símbolo como “uma metáfora que
se mantém fora de seu contexto, isto é, num significante que pode funcionar como
metáfora qualquer que seja seu emprego, preenchido pelo imaginário individual”
(p.29). Assim, o autor destaca que o efeito de não-sentido ocasionado pela
113
operação de substituição significante aparece enquanto elemento fundamental
para a instauração do processo de formação simbólica e, conseqüentemente, para
o advento deste novo sentido ligado ao imaginário individual. Isto porque este
efeito de o-sentido evidencia a relação de desconhecimento característico dos
mecanismos metafóricos, trazendo à tona a atuação de processos inconscientes na
concepção do símbolo. A intervenção do inconsciente numa dada formação
simbólica promoveria, portanto, uma ruptura no sistema de coerência, retirando
do símbolo o seu caráter fixo, natural, ou mesmo, convencional.
Conforme foi exposto acima, a partir deste evento de não-sentido, uma
pluralidade infinita de novos sentidos poderá advir. Com efeito, seria demasiado
apressado supor que o sentido da formação simbólica se esgota na sua
significação inconsciente. De acordo com Garcia-Roza (1992), o que a simbólica
freudiana recusa, segundo esta concepção dominante, é justamente a própria
noção de um elemento primeiro na cadeia simbólica, ou seja, a idéia de que a
substituição de um elemento inconsciente por outro consciente guardaria no
primei
ro termo um significado verdadeiro e último. Pelo contrário, o psicanalista
sempre deve ter em mente que a significação de um símbolo é um efeito gerado
pela articulação entre significantes.
Com base nestes pressupostos, devemos ressaltar a afirmação de q
ue,
embora os processos metafóricos funcionem como uma espécie de suporte para a
formação de um símbolo, não existiria uma sinonímia entre os termos símbolo e
metáfora, pois também os processos metonímicos desempenham um papel crucial
na produção simbólica. Em outros termos, trata-se de destacar que subjacente a
uma formação simbólica não se encontra apenas um significante em estado
114
latente, mas um conjunto deles, articulados em cadeia por intermédio de laços
metonímicos. Assim, considerando também a atuação de processos metonímicos
na cadeia simbólica, concluímos que, para a psicanálise, algo jamais deve ser
tomado como símbolo de um dado específico inconsciente, na medida em que a
operação de simbolização remete à concepção de que o mbolo sempre abrange
algo a mais em relação ao simbolizado
36
.
Feito este levantamento sobre o estatuto do símbolo, retomemos o tema
das fantasias vazias para concebê-las como formações psíquicas alheias ao
processo simbólico. Esta afirmação seria justificada pelo fato delas escaparem às
operações metafóricas e metonímicas, bem como à atuação de um desejo
inconsciente.
Assim, visando uma melhor compreensão das afirmações em questão,
encaminhemos a discussão rumo à distinção estabelecida por Rosolato (1988)
entre uma discursividade fundamentada num sistema lingüístico digital e uma
outra sustentada por um sistema lingüístico eminentemente analógico. Segundo o
autor, o discurso pertencente ao sistema digital é aquele no qual uma
preponderância do domínio significante, onde se fazem sentir os processos
metafóricos e metonímicos. De acordo com a presente tese, a este sistema
associamos as fantasmatizações que se apresentam na clínica enquanto devaneios,
lembranças encobridoras, visões de mundo, etc. a forma discursiva na qual
pr
edomina o sistema analógico é aquela em que a palavra desempenha
36
Vale ressaltar que este aspecto do símbolo foi bastante enfatizado por Abraham (1961/1995). No
entanto, tendo em vista os limites da presente tese, não cabe aqui analisar a totalidade de suas
concepções acerca do sí
mbolo, o que nos desviaria da discussão.
115
simplesmente a função de signo do objeto a ser descrito
37
. Tratar-
se
-ia de uma
discursividade imune à metáfora, à metonímia, às manifestações inconscientes e,
portanto, ao processo de constituição de símbolos. Nela, a palavra é unívoca,
neutralizada e sem hiatos ou lacunas. A este sistema, por sua vez, podemos fazer
corresponder os fantasmas vazios.
Rosolato (1988) inicia sua investigação acerca desta modalidade peculiar
de linguagem, assinalando que uma determinada corrente da psicanálise
fascinada pela importância da dinâmica significante para a compreensão da
estrutura e do funcionamento dos processos inconscientes acabou por reduzir e,
até mesmo, descartar a importância de representações e imagens psíquicas que
visam, em última instância, à objetivação. Tratar-
se
-ia, de acordo com esta
concepção, de imagens ou representações que, segundo o autor, se atrelam a um
outro tipo de significante que se distingue do significante propriamente
ling
üístico, e que ele nomeia de significante de demarcação.
Este significante de demarcação teria, ele mesmo, um efeito de
significado. Assim, a linguagem analógica, povoada de significantes de
demarcação se restringe, simplesmente, à atividade descritiva. T
rata
-se de uma
discursividade direta e que, portanto, obtura quaisquer possibilidades de
configurações metafóricas. Ainda de acordo com Rosolato (1988), seu objetivo é
a obtenção de uma certa coerência na progressão da cadeia significante articulada,
sendo o enunciado regido por um sentido preciso. Neste sistema, estariam
37
De acordo com a discussão empreendida na seção precedente, podemos atrelar esta expressão
“signo do objeto a ser descrito” ao campo dos referenciais discursivos.
116
descartados, de seus domínios, as formações do inconsciente, o desejo do sujeito e
a dinâmica própria ao processo simbólico
38
.
Com base nestes pressupostos, devemos agora trazer para o prim
eiro plano
da discussão a constatação de que os atributos desta modalidade lingüística são os
mesmos daqueles apresentados pelo discurso científico, pelo menos se este último
for destacado em sua vertente meramente técnica
39
. Desta maneira, as
considerações
propostas até então, somadas às apreciações de alguns autores
acerca das peculiaridades do discurso técnico-científico, conduzem à
circunscrição de uma certa semelhança entre a linguagem analógica tal como
definida por Rosolato (1988) –, o discurso científico e os fantasmas vazios. Trata-
se, nestes três domínios, de linguagens claras e que trazem consigo a pretensão de
serem imunes ao engano e à dúvida. Ademais, por tentarem responder às
exigências da clareza, elas procuram manter uma relação de exclusão com as
manifestações do inconsciente.
De acordo com Lyotard (2004), uma primeira particularidade do discurso
técnico
-científico remeteria ao primado, em sua estrutura, de enunciados
meramente denotativos, com a conseqüente redução de valor dos outros jogos de
38
Devemos assinalar que a argumentação de Rosolato (1988) considera que apenas os processos
metafóricos são retirados do discurso analógico. Segundo o autor, a modalidade discursiva em
questão ainda se articula com o registro metonímico na medida em que este seria o responsável
pela coerência intrínseca à linguagem. No entanto, não convém entrarmos nesta questão, visto que
o conceito de metonímia por ele utilizado diverge daquele empregado por autores que estamos
valorizando na tese, tais como Jakobson (1963) e Lacan (1957/1998). Assim, entrar numa
discussã
o acerca da divergência entre estes autores sobre o conceito de metonímia conduziria a
uma análise eminentemente lingüística, o que não caberia nos limites desta tese. Também devemos
destacar que a concepção de Rosolato sobre o significante de demarcação é igualmente mais
complexa do que estamos mostrando, pois abrange uma investigação sobre a sua função para o
desenvolvimento da linguagem na criança. Do mesmo modo, se nos debruçarmos mais sobre este
aspecto, estaríamos nos desviando da nossa proposta.
39
Cabe ressaltar que o discurso científico está sendo analisado aqui apenas em sua dimensão
eminentemente técnica. De fato, são vários os pensadores que já investigaram a temática do
discurso científico e, muitas vezes, suas análises são bastante contraditórias. Na presente tese,
estamos valorizando apenas as concepções de ciência que podem nos auxiliar na circunscrição do
estatuto metapsicológico dos fantasmas vazios.
117
linguagem, sejam eles prescritivos, interrogativos, etc. Isto porque no domínio das
ciências, o critério para a aceitação de um enunciado é o seu valor de verdade.
Também é considerado que a supervalorização dos enunciados denotativos no
discurso científico, aliada à “tecnização” do saber que lhe é correlata, propicia o
fenômeno da exteriorização do saber em relação àqueles que sabem. Promove-
se,
assim, uma alienação dos usuários do saber, fazendo entrar em desuso o princípio
segundo o qual a aquisição do saber é indissociável da formação do espírito, e
mesmo do sujeito.
Nesta mesma linha de raciocínio, Lebrun (2004) destaca que na
discursividade técnico-científica, o saber torna-se anônimo, acéfalo e dissociado
da figura do mestre. Trata-se, aqui, do fenômeno referente à exteriorização do
saber em relação àquele que sabe. De acordo com a passagem abaixo:
“O desenvolvimento da ciência (...) produz um novo laço social, cujo motor (...)
não é mais a enunciação do mestre, seu dizer, mas um saber de enunciados, um
conjunto acéfalo de ditos. (...) O que é assim promovido é uma modalidade de laço
social que substitui a relação mestre-sujeito, uma relação saber (acéfalo)-
sujeito”
(LEBRUN, 2004, p. 53).
Com base nesta citação, depreendemos, em termos psicanalíticos, que o
progresso da ciência institui o que comumente chamamos de elisão do sujeito da
enunciação, fazendo com que estas formações discursivas sejam apartadas de
quaisquer variáveis subjetivas. De fato, o sujeito que se demite da enunciação é
aquele
que não se autoriza a pensar e a sustentar o seu desejo em seu discurso
(LEBRUN, 2004). De acordo com Melman (1995), a partir desta foraclusão do
sujeito da enunciação, os enunciados técnico-científicos passam a ser validados
118
apenas por suas consistências lógicas, pouco importando a figura de quem os
enuncia. A este restaria o papel de parasita em potencial do discurso, que pode
introduzir o erro e o estranhamento nos enunciados eminentemente lógicos.
No âmbito da transmissão destes enunciados, destaca-
se
a pretensão de
que o saber seja tecnicamente assimilado pelo destinatário, visando à otimização
de sua performance. Bastaria, portanto, informar os sujeitos, transmitir-
lhes
enunciados e fornecer-lhes noções claras. Cumprido este objetivo, o destinatário
ficaria apto a produzir uma fala tecnicamente coerente, mas sem se engajar,
enquanto sujeito, em sua enunciação: como se lhe fosse possível ler o texto que
produz, sem reconhecer
-se enquanto verdadeiro autor (MELMAN, 1995). Produz-
se, assim, um saber perfeitamente claro e imune ao engano ou à dúvida,
impedindo o destinatário de questionar-se acerca da mensagem transmitida pelo
remetente. De acordo com Lebrun (1995), como, no seio do discurso técnico-
científico, cada vez um lugar menor é concedido à experiência espontânea do
sujeito, mas este abre mão da formação de um saber que lhe é próprio, perdendo,
pouco a pouco, suas faculdades de inventar e criar.
Com efeito, o discurso da ciência, por ser eminentemente técnico, também
dispensaria o uso de metáforas e das demais formações simbólicas. Segundo
Lebrun (2004), “a técnica não pertence à ordem do mbolo, ela é, antes, seu
‘outro’” (p. 101) e, nesta perspectiva, a linguagem técnico-científica tende a
excluir, de seus domínios, tudo o que poderia dificultar a transmissão de seus
enunciados. Em outros termos, buscando a perfeição do processo de assimilação
da mensagem por parte do destinatário, as palavras devem ser dispensadas da
119
ambigüidade e da contradição, sendo a eterna repetição do mesmo o objetivo final
de todo o processo de aprendizagem.
Desta forma, depreende
-
se que o discurso técnico
-
científico toma a própria
linguagem como seu objeto, subvertendo-a em dois níveis opostos: em primeiro
lugar, enriquecendo-a, na medida em que introduz novas palavras de
dimensões
denotativas e informativas; em segundo lugar, empobrecendo-a, pois retira de seu
campo as dimensões significante e simbólica próprias a toda palavra (LEBRUN,
2004).
Com base nestas considerações, esbocemos algumas possíveis articulações
entre as fantasias vazias e o discurso técnico-científico. Conforme já ressaltado,
tal qual os fantasmas vazios, o discurso científico é situado como algo imune ao
engano e à dúvida. Ou seja, em sua estrutura, o poder enganador da fala é
silenciado, em prol da val
orização da eficácia e da clareza.
Trata
-se de uma modalidade discursiva que, como as fantasias vazias,
elimina quaisquer tipos de lacunas, não deixando espaço para a manifestação de
componentes inconscientes que poderiam vir a prejudicar sua transmissão. Nesta
perspectiva, a mensagem não chega ao destinatário como um enigma, mas como
algo perfeitamente claro e, portanto, resistente à dúvida. Deste modo, tudo
concorre para que o destinatário obtenha a compreensão exata do enunciado
transmitido pelo remetente. Assim, não seria possível exercer uma interpretação
do discurso técnico-científico. De fato, sua significação é compreendida no
próprio ato da transmissão e a ambigüidade e a polissemia das palavras são
abandonadas. Em outros termos, a dimensão simbólica do discurso é empobrecida
120
e, visando a precisão, seus elementos passam a assumir o peso daquilo que
denominamos de referenciais discursivos.
Desta maneira, concluímos que a dinâmica presente no discurso técnico-
científico é a mesma manifesta no domínio da linguagem analógica e dos
fantasmas vazios. Ou seja, não seriam estes fantasmas um mero conjunto de
enunciados denotativos, de antemão inteligíveis e que dispensam quaisquer
predicados? Não se trata, também, nas fantasias vazias, da simples descrição d
e
um determinado elemento que passa à margem da subjetividade de seu locutor?
Enfim, os fatores que respondem pela dificuldade de se exercer uma hermenêutica
do discurso técnico-científico também parecem ser os mesmo que delimitam os
obstáculos que os fantasmas vazios impõem à interpretação psicanalítica: tal qual
o discurso científico, as fantasias vazias se apresentam como um conjunto de ditos
acéfalos e possivelmente imunes a uma formação desejante.
121
Capítulo 3
Sobre a clivagem psíqu
ica
No capítulo precedente, a análise do estatuto metapsicológico dos fantasmas
vazios conduziu a uma importante acepção acerca de sua localização topográfica:
conforme o modelo da “Carta 52” (FREUD, 1896a/1995), circunscrevemos que
eles possuem uma estrutura análoga ao dos signos de percepção. Ainda de acordo
com a discussão empreendida, assinalamos também que os elementos em jogo
nesta modalidade fantasística se comportam tais como referenciais discursivos
que, assim, sempre reenviariam a eles próprios, tornando o discurso fantasmático
alheio ao processo de formação de símbolos.
Dando prosseguimento a nossa argumentação, a proposta deste capítulo é
explicitar as origens do anacronismo fantasístico entre, de um lado, os fantasmas
vazios e, de outro, os cenários eminentemente narrativos do sujeito. Nesta
perspectiva, teremos a oportunidade de investigar os fatores que respondem pela
emergência dos primeiros e, ao mesmo tempo, de demonstrar os motivos pelos
quais eles não são assimilados pelo restante das produções fantasmáticas
subjetivas.
Assim, a noção de clivagem virá em nosso socorro na medida em que,
conforme veremos a seguir, ela instaura uma barreira na dinâmica psíquica entre
dois modos de funcionamento distintos, impedindo o estabelecimento de relaç
ões
entre eles. Consideraremos um aparelho psíquico clivado como sendo, em última
instância, um aparato cindido e dissociado, que mantém lado a lado dois
dinamismos opostos e heterogêneos e que jamais se intercambiam.
Num primeiro momento, analisaremos como a idéia de recalque, tal como
concebida na “Carta 52(FREUD, 1896a/1995), pode se assemelhar à noção de
122
clivagem. Neste contexto, após uma passagem pela teoria de Ferenczi
(1933/1988) acerca da “Confusão de línguas entre os adultos e a criança”,
examin
aremos a noção de cripta, presente na obra de Nicolas Abraham e Maria
Torok, para também associá-la à noção de clivagem. Por fim, será traçada uma
investigação sobre a dimensão mítica da atividade fantasmática, com o propósito
de explicitar que é justamente desta vertente que as fantasias vazias carecem. Por
isto, elas se perpetuariam na dinâmica psíquica enquanto
fueros
(FREUD,
1896a/1995) apartados dos cenários fantasísticos narrativos e sem ser por eles
assimilados.
3.1. Do recalque à clivagem psíquic
a
Voltemos novamente ao modelo da “Carta 52”, com o propósito de analisar uma
afirmação um tanto enigmática de Freud (1896a/1995) a respeito do processo de
recalque. Conforme assinalamos no capítulo anterior, diz ele que o aparato
psíquico se constitui a partir de um trabalho constante de estratificação do
material mnêmico, fazendo erigir diferentes registros psíquicos. De acordo com
sua proposta, cada nova tradução inibe o registro anterior mas, no entanto, quando
não se instaura a devida retranscrição, o material continua a ser manejado
conforme às leis do sistema precedente. A esta recusa de tradução foi dado o
nome de recalcamento, concebido enquanto um mecanismo eminentemente
defensivo e instituído para evitar o desprazer passível de ser sentido pela no
va
retranscrição. Assim, se constituem os denominados “
fueros
que se perpetuariam
na dinâmica psíquica às custas do recalcamento.
123
O recalque seria, portanto, o responsável pelo anacronismo no aparelho
psíquico. Nesta perspectiva, segundo nossa proposta de associar os diferentes
registros mnêmicos ao domínio fantasmático, é ele o mecanismo que responde
pelo fato dos fantasmas vazios permanecerem no campo discursivo do sujeito sem
serem assimilados pelos cenários fantasísticos narrativos
40
. Deste modo, devem
os
nos debruçar sobre esta concepção de recalque presente na “Carta 52(FREUD,
1896a/1995) a fim de melhor analisar o processo que institui, no aparato psíquico,
aquilo que chamamos de fantasias vazias.
Com efeito, a definição de recalque da “Carta 52” (FREUD, 1896a/1995)
se diferencia daquela proposta nos artigos metapsicológicos. É certo que nestes
últimos, Freud (1915a/1995 e 1915b/1995) também o concebe como um processo
defensivo; entretanto, a circunscrição metapsicológica por ele apresentada é
basta
nte divergente. A principal distinção entre as abordagens é a seguinte:
enquanto nestes escritos posteriores, o recalque funda um conjunto de relações
dinâmicas e conflitantes entre os diferentes sistemas psíquicos, na “Carta 52”, de
modo contrário, ele im
pede o estabelecimento de conexões entre as retranscrições.
Ou seja, os
fueros
permanecem no aparato como alheios aos possíveis conflitos
ocasionados entre os registros da inconsciência e da pré
-
consciência.
Assim, nos ensaios metapsicológicos (FREUD, 1915a/1995 e
1915b/1995), o recalque se define como o trabalho empreendido pelo aparelho
psíquico, buscando afastar um determinado elemento da consciência. Todavia, é
mencionado que o trabalho em questão não impede que o representante-
40
Na “Carta 52”, Freud (1896/1995) também considera que o recalcamento pode se dar entre os
registros da inconsciência e da pré-consciência. Todavia, este fator não será abordado em nossa
argumentação, visto que estamos interessados apenas nos limites dos signos de percepção com as
outras retranscrições mnêmicas.
124
representação continue a existir no inconsciente, de modo que ele prolifere no
escuro, estabeleça ligações com outros elementos e origem a derivados.
Quando estes derivados se tornam suficientemente disfarçados pelos processos
primários, o acesso à consciência é permitido. A
bre
-se, com isto, o espaço para o
retorno do recalcado, sendo a passagem à consciência liberada em virtude do
derivado ter conseguido driblar a força da resistência existente entre os sistemas.
Nesta medida, Freud (1915a/1995) também destaca que o dinamis
mo
inerente ao mecanismo de recalque é precondição para o estabelecimento do
trabalho de associação livre. De acordo com a concepção em questão, é
mencionado que na livre associação o analista pede que o sujeito produza,
justamente, derivados do material recalcado. Estes, por ocasião da distorção ou da
distância no tempo, conseguem vencer a força da resistência. Deste modo,
assinalamos a mobilidade manifesta no procedimento de recalque: ele não deve
ser entendido como algo que aconteça uma só vez, produzindo um resultado
permanente; pelo contrário, o recalque impõe ao aparelho psíquico um enorme
dispêndio de energia, como se o material recalcado, por exercer uma pressão
constante em direção à consciência, exigisse desta uma contrapressão igualmente
constante
.
Segundo este ponto de vista, o recalque instaura no aparato um dinamismo
e um conflito incessante, o que, de fato, se contrapõe à ausência de progressão
mnêmica estabelecida pelo recalque tal como circunscrito na “Carta 52” (FREUD,
1896a/1995). Com efeito, são várias as divergências existentes entre as duas
concepções de recalque: com a concepção dos ensaios metapsicológicos (FREUD,
1915a/1995 e 1915b/1995), o recalque se faz na fronteira entre os sistemas pré-
125
consciente/consciente e inconsciente; na “Carta 52”, é certo que este também
possa ocorrer entre os dois registros em questão, mas também é destacado que o
recalque pode abranger a fronteira entre os “signos de percepção” e o registro da
inconsciência. Uma outra distinção: na metapsicologia, o recalque funda uma
relação de comunicação
41
entre os dois sistemas em jogo no processo dinâmico;
de modo contrário, na “Carta 52”, o recalque anula quaisquer possibilidades de
conflito, instaurando o anacronismo fantasmático. Ademais, nos artigos sobre
metaps
icologia, o recalque é tido como o alicerce sobre o qual repousa o trabalho
de formação de derivados; na “Carta 52”, ele é justamente o que invalida este
trabalho, de modo a fazer com que os fantasmas vazios se manifestem no discurso
do sujeito sempre da mesma maneira e sem que nenhum elemento lhes seja
acrescido, modificado ou retirado.
Ainda seguindo esta linha de raciocínio, na metapsicologia, o recalque
impõe ao material psíquico uma dissimulação para que se obtenha o devido acesso
à consciência, dissimulação constituída a partir dos trabalhos da metáfora e da
metonímia. Já no domínio das fantasias vazias, estes trabalhos não se fazem
sentir. Enfim, na concepção propriamente metapsicológica, o recalque é tido como
precondição para o empreendimento da associação livre. Todavia, com respeito
aos fantasmas vazios, afirmamos ser justamente de associação livre que eles
carecem, pois o sujeito em análise não consegue remeter seu enunciado a nenhum
outro elemento.
Desta maneira, vemos que Freud emprega o mesmo
termo
recalque a
dois processos psíquicos divergentes. Nossa proposta é, portanto, diferenciá-los e,
41
Cabe destacar que o termo em questão é empregado pelo próprio Freud (1915b/1995), no título
do capítulo 6.
126
assim, demonstrar que o recalque tal como pensado nos artigos sobre
metapsicologia em nada se relaciona com o campo das fantasias vazias. Com
efeito, t
rata
-se do mecanismo psíquico subjacente aos fantasmas que se
apresentam na clínica enquanto cenários narrativos. A associação, neste caso, se
justifica pelo fato desta modalidade de recalque se apresentar como pressuposto
teórico para a formação destes fantasmas: fantasias que transitam entre os
sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente, que se manifestam como
dissimuladas pela ação da metáfora e da metonímia e que são acessíveis ao
trabalho de associação livre, na medida em que existe o constante remetimento
dos elementos do domínio fantasístico uns aos outros.
Cabe salientar que o recalque, tal como circunscrito na “Carta 52”
(FREUD, 1896a/1995), também não se confunde com o que foi denominado nos
ensaios metapsicológicos de recalque originário
, este sendo definido nos seguintes
termos:
“Um
recalque primevo, uma primeira fase do recalque, (...) consiste em negar
entrada no consciente ao representante psíquico (ideacional) da pulsão. Com isso,
estabelece
-se uma
fixação
; a partir de então, o representante em questão continua
inalterado e a pulsão permanece ligada a ele(FREUD, 1915/1995, p. 153, grifos
do autor).
Segundo Freud (1915a/1995 e 1915b/1995), o recalque originário consiste
igualmente em impedir o acesso do representante-
representação
à consciência,
mas de modo que isso não implique necessariamente na fixação deste elemento no
sistema inconsciente propriamente dito. Pelo contrário, segundo Garcia-
Roza
(1995), o recalcamento originário faz referência a um momento anterior ao da
127
constitui
ção do sistema inconsciente, apenas estabelecendo uma demarcação
psíquica que funciona como uma espécie de matéria prima para sua constituição.
Ainda de acordo com o comentador, o termo inconsciente empregado por Freud
no contexto do recalque originário tem um cunho meramente adjetivo, se
reportando a processos psíquicos que não chegam a se tornar conscientes mas que,
nem por isso, pertencem ao sistema inconsciente. Neste, os representantes-
representação estabeleceriam entre si uma trama de pensamentos estr
uturada pelas
operações de condensação e de deslocamento, o que, de forma alguma, se
manifesta no campo do recalque originário
42
.
Estas considerações são importantes no sentido de marcar que o recalque
originário não remete à questão da emergência dos fantasmas vazios. Isto porque
ele faz referência a um núcleo indizível no aparelho psíquico a ser, a posteriori
,
significado pelo trabalho de construção em análise. Nesta perspectiva, o recalque
originário estaria atrelado às fantasmatizações tidas enquanto cenas indizíveis
43
,
jamais presentificadas no discurso do sujeito e que, portanto, ganham
existência efetiva a partir do ato da construção. Assim, é necessário relembrar que,
ao contrário destas últimas fantasmatizações, as fantasias vazias se manifestam no
discurso consciente do sujeito e, embora sejam inacessíveis ao trabalho de
interpretação, não precisam ser necessariamente construídas em análise
44
.
Tendo em vista a discussão empreendida com relação ao conceito de
recalque tal como concebido nos ensaios m
etapsicológicos e também com respeito
42
Também devemos reiterar que o recalque originário é, em última instância, um postulado
teórico, sendo jamais observado na clínica. Trata-se de uma delimitação conceitual da qual F
reud
(1915a/1995 e 1915b/1995) se serviu para explicar como os primeiros elementos se inscrevem
num inconsciente adjetivado e, assim, funcionarem como pólos de atração para outros elementos a
serem posteriormente recalcados.
43
Ver discussão da última seção
do primeiro capítulo.
44
Vale lembrar que alguns autores tais como Laplanche e Pontalis (1988) também
circunscrevem o recalque originário como o mecanismo fundante dos fantasmas originários.
128
ao recalcamento originário, podemos assinalar ambos não parecem ser o
mecanismo psíquico que institui os fantasmas vazios na estrutura psíquica.
Todavia, o recalque, se pensado em conformidade com o esquema da “Carta 5
2”
(FREUD, 1896a/1995), parece explicar bem o anacronismo fantasístico em jogo
na tese. Desta forma, visando evitar confusões de cunho terminológico, propomos
o termo “clivagem” para designar o recalque tal como descrito na “Carta 52”.
Passemos, portanto, ao exame desta temática, visando a justificativa desta
analogia.
A noção de clivagem
45
é mencionada por Freud (1917a/1995), pela
primeira vez, no ensaio “Luto e melancolia” para explicitar a gênese da
consciência moral. No entanto, esta noção só vai ganhar força, obtendo uma
melhor circunscrição metapsicológica em alguns escritos bastante tardios, dentre
os quais podemos citar o texto sobre o “Fetichismo” (FREUD, 1927b/1995) e
sobre “A divisão do ego no processo de defesa” (FREUD, 1940/1995). Nestes, a
cliva
gem é definida, em linhas gerais, como a resultante de uma cisão (
Splitting
)
no aparelho psíquico em duas correntes contrárias: uma que aceita a realidade
traumatizante e outra que a nega veementemente. O processo psíquico que origina
a clivagem é definido
como um ato de rejeição (
Verleugnung
).
Objetivando fornecer um melhor embasamento à questão, Freud
(1927b/1995) recorre a um caso clínico de fetichismo para enunciar que,
geralmente, o objeto do fetichista é um substituto do pênis da mulher. Trata-
se,
en
tão, da retenção no fetiche da crença infantil acerca da universalidade do pênis.
Com efeito, mesmo tomando conhecimento de que as mulheres são castradas, o
45
A clivagem não será pensada nesta tese como referida unicamente à estrutura perversa, tal como
pretende o pensamento lacaniano; pelo contrário, ela será analisada enquanto um mecanismo
psíquico bastante amplo e que, assim, pode se reportar aos diversos processos de estruturação.
129
fetichista se recusa a aceitar o fato. Nestes casos, o sujeito, ao mesmo tempo,
aceita e rejeita a castração, o que promove uma clivagem psíquica entre um lado
que não a reconhece e outro que se ajusta à realidade. De acordo com a passagem
a seguir:
“Suponhamos, portanto, que (...) uma criança se encontra sob a influência de uma
poderosa exigência pulsional que está acostumado a satisfazer, e que é subitamente
assustado por uma experiência que lhe ensina que a continuação dessa satisfação
resultará num perigo real quase intolerável. O ego deve então decidir reconhecer o
perigo real, ceder-lhe passagem e renunciar à satisfação pulsional, ou rejeitar a
realidade e convencer-se de que não razão para medo. (...) A criança não toma
nenhum desses cursos, ou melhor, toma ambos simultaneamente. (...) Ela responde
ao conflito por duas reações contrárias, ambas válidas e eficazes. Por um lado, (...)
rejeita a realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição; por outro, no mesmo
alento, reconhece o perigo da realidade. (...) Esse sucesso é alcançado ao preço de
uma fenda no ego. (...) As suas reações contrárias persistem como ponto central de
uma divisão (splitting
) do ego” (FREUD, 1940/1995, p. 293).
Entretanto, cabe assinalar que embora Freud (1940/1995) forneça um certo
embasamento metapsicológico para a noção de clivagem, o processo em questão
não se apresenta, em seu pensamento, como algo totalmente diferenciado do
recalque. Isto porque ele menciona, por vezes, que o próprio fetiche é tido
enquanto uma formação de compromisso entre os dois núcleos clivados do
aparelho psíquico. Neste caso, pressupõe-se a existência de um conflito entre as
duas atitudes contrárias do fetichista, de modo que os núcleos clivados ainda se
influenciem e mantenham relações conflitantes.
Desta maneira, a acepção freudiana para o tema caminha em sentido
contrário ao dos nossos obj
etivos de circunscrever duas correntes fantasísticas que
130
jamais convergem, tomem conhecimento uma da outra e, assim, possam entrar em
conflito. Nesta medida, devemos assinalar que encontramos nos escritos de
Ferenczi uma teorização diversa para o fenômeno da clivagem, sendo esta mais
condizente com nossos propósitos. Todavia, visando um melhor entendimento de
como a figura da clivagem se faz presente no pensamento deste autor, devemos
antes nos debruçar sobre sua teorização acerca do trauma, exposta
minucio
samente no ensaio “Confusão de línguas entre os adultos e a criança”
(FERENCZI, 1933/1988).
Num contexto específico, Ferenczi (1933) expôs as principais premissas
do embate da criança com o universo simbólico: uma confusão de línguas começa
a ser gerada quando uma cena de sedução entre uma criança e um adulto, a
primeira provida de uma linguagem eminentemente terna, e o segundo que reage à
situação com uma linguagem de paixão. Sendo, neste caso, a diferença entre as
línguas bastante evidente, a culpa sentida pelo adulto após o ato de violência, se
manifesta como algo incompreensível para a criança. Em outros termos, o
domínio da paixão remete a uma linguagem bastante complexa, da qual o infante
não possui o menor entendimento e, ante este inacessível, a criança reage com um
efeito de surpresa, sendo tomada por um afeto de profunda estranheza.
A história prossegue com mais uma confusão de línguas. Assim, é
indicado que, em função da não compreensão da culpa sentida pelo adulto, a
criança vai ao encontro de um terceiro que possa lhe explicar o ocorrido. No
entanto, este último, não suportando o relato, desmente a criança, dizendo que
tudo aquilo não passaria de fantasmatização sua. De acordo com Ferenczi
(1933/1988), o fator traumático está ligado a este momento do desmentido. Ou
131
seja, não é o ato da violência em si aquilo que responde pela emergência do
trauma, mas a negação de sua existência. Como conseqüência do desmentido,
instaura
-se o processo de identificação com o agressor, de modo que a criança
passe
a incorporar a culpa por ele sentida na cena de abuso.
Nesta medida, a partir da identificação com o agressor, abre-se espaço, no,
para uma neoformação psíquica composta por fragmentos discursivos referentes
ao momento anterior ao trauma (FERENCZI, 1990). Deste momento em diante,
uma clivagem é instaurada: de um lado, teríamos uma linguagem de ternura
sufocada e, de outro, a culpa atrelada à linguagem da paixão incorporada, sendo
os dois domínios lingüísticos estranhos um ao outro
46
. Segundo o autor, com a
clivagem, se “torna difícil (...) manter o contato com os fragmentos, que se
comportam todos como personalidades distintas que não se conhecem umas às
outras” (FERENCZI, 1933/1988, p. 354). Assim, a noção de clivagem seria da
mesma natureza do conceito de autotomia (FERENCZI, 1921/1988), oriundo da
biologia e desenvolvido a partir de observações de animais que se livram de um
pedaço de si em vistas de se protegerem de um perigo. Desta forma, aliando a
clivagem à autotomia, o autor na primeira uma estratégia propriamente
defensiva da qual o sujeito se serve para sobreviver, mesmo que para isso lhe seja
necessário fragmentar
-
se.
Com efeito, na teoria ferencziana, o trauma se associa ao desmentido,
sendo, portanto, efeito de um ato de linguagem: a criança re
corre a um adulto com
o objetivo de que ele forneça um sentido para aquilo que ainda não o tinha; e,
contudo, este nega veementemente o acontecimento. Temos o impacto
46
Para maiores detalhes acerca dest
e ponto, remeto a Verztman (2002).
132
traumatizante que se responsabiliza por toda a desestruturação psíquica decorrente
da
clivagem. Mas, desta maneira, cabe indagar: por que a palavra do adulto é tão
traumática para a criança de modo a ser incorporada de forma tão violenta e
incisiva?
Pinheiro (1995) propõe que o discurso do desmentido provoca o
traumatismo por se tratar de um enunciado eminentemente unívoco e que,
portanto, não dá margens à polissemia. Em outros termos, trata-se de destacar que
este discurso consiste em fazer referência à uma verdade absoluta e não-
ambígua.
Assim, restaria à criança incorporar, de modo violento, a palavra cristalizada e
inequívoca.
Desta forma, uma linguagem rígida não poderia, de forma alguma, ser
assimilada pela criança: o sujeito que ouve uma formação discursiva deste tipo
não consegue integrá-la, de maneira a fazê-la circular e se associar a outros
enunciados. Ou seja, o discurso do desmentido interdita a própria possibilidade do
sujeito de fornecer diferentes sentidos a ele; a palavra permanece enclausurada e
desprovida de uma significação erigida a partir das fantasmatizações da criança
.
Neste contexto, o discurso perde sua elasticidade, comprometendo o processo de
simbolização e de metaforização.
De acordo com a passagem a seguir:
“As palavras, mesmo quando m por objetivo descrever a realidade, podem ser
investidas pelo sujeito quando guardam o caráter de multiplicidade dos sentidos.
Quando este caráter fica interditado, as palavras (...) o encerradas numa rigidez
que não permite ao psiquismo integrá-las. (...) A representação do traumatismo não
pode ser associada a outras representações. Nem pode, evidentemente, circular por
entre as idéias conscientes. (...) O que se passa no trauma é que o adulto interdita à
criança não apenas as palavras, como também a possibilidade de ambigüidade, de
múltiplos sentidos. (...) É devido à ambig
üidade fornecida pelo adulto à criança que
133
esta pode produzir sentidos, construir registros psíquicos. (...) Se, ao invés disso, o
que recebe e o que fala é reduzido ao unívoco, então, a inscrição psíquica se torna
impossível” (PINHEIRO, 1995, pp. 76
-
78).
Assim, devemos destacar que a transmissão de um discurso que se
pretenda absoluto tal qual o discurso do desmentido inviabiliza a emergência
de quaisquer formações simbólicas. Visando um melhor entendimento desta
argumentação, cabe remeter a discussão à noção de cripta, figura central na teoria
de Nicolas Abraham e Maria Torok, discípulos de Ferenczi, para
circunscrevermos uma analogia entre esta noção e a figura da clivagem.
No entanto, antes de examinar a noção de cripta, é imprescindível nos
determ
os na distinção fundamental traçada por estes autores entre a figura da
incorporação
tal como por eles pensada
e o conceito ferencziano de introjeção.
De fato, Abraham e Torok alertam que o pensamento pós-freudiano havia criado
uma falsa sinonímia entre os termos “introjeção” e “incorporação”; e, para
desfazer este mal-entendido, lhes foi necessário efetuar um resgate da proposta
inicial de Ferenczi (1909/1988 e 1912/1988), com a finalidade de destacar que o
conceito de introjeção nada tinha a ver com o mecanismo da instalação
propriamente dita do objeto na esfera egóica. A este mecanismo, os autores
reservam o nome de incorporação. Na introjeção, pelo contrário, tratar-
se
-ia do
trabalho de assimilação, por parte da criança, dos desejos, valores e sentid
os
associados ao objeto investido.
Com efeito, a introjeção é definida por Ferenczi (1912/1998) como o
mecanismo de absorção psíquica, por parte do sujeito, de algumas propriedades
concernentes a um determinado objeto, em vistas de proporcionar o
134
enriqueci
mento egóico. Nesta medida, a introjeção funciona como uma espécie de
substrato necessário aos processos identificatórios e de construção do ego,
implicando também nos alicerces sobre os quais se a constituição subjetiva.
Ou seja, a introjeção não se apresenta, de forma alguma, como um mecanismo
eminentemente compensatório que, após a perda do objeto, se encarrega de
promover sua inclusão no aparelho psíquico. Pelo contrário, a introjeção não
ocorre apenas numa situação de luto objetal, mas se manifesta como um processo
constante, através do qual o sujeito se vincula ao outro.
De acordo com Ferenczi (1912/1988), a introjeção trabalha no sentido de
trazer a maior parcela do mundo externo para dentro do eu. Assim, trata-se, na
introjeção, do procedimento d
e lançar o eu para fora de si, capacitando a expansão
da criança para o mundo dos objetos. Este mecanismo, por sua vez, viabiliza a
ordenação psíquica do sujeito a partir da promoção de laços identificatórios com o
objeto. Por este viés, pode-se definir a introjeção, de acordo com Torok
(1968/1995) como o processo de “inclusão do inconsciente no ego” (p.222). Por
esta expressão, a autora designa o trabalho de apropriação, por parte de um ego
ainda incipiente, do conjunto de pulsões
47
pertencentes ao objeto, de modo que o
aparelho psíquico da criança comece a ser povoado por representações
perpassadas pelas figuras parentais. Destacando-se que a introjeção é
eminentemente uma operação de linguagem, constatamos que ela favorece a
inserção do infante no mundo simbólico (PINHEIRO, 1995), implicando assim
nos alicerces sobre os quais se dá o processo de subjetivação.
47
Pela expressão “conjunto de pulsões”, entende-se as representações e o mundo simbólico dos quais
o objeto é portador. Para maiores detalhes, ver Pinheiro (1995).
135
Conferindo um papel fundamental à linguagem com respeito aos
mecanismos introjetivos, Abraham e Torok (1972/1995) fazem uma releitura do
modelo freudiano da vivência de satisfação
48
, salientando que a introjeção se
efetiva quando o vazio da boca da criança vai, aos poucos, sendo preenchido por
palavras. Em si, a passagem de uma boca farta de seio para uma boca repleta de
palavras pode ser concebida a partir da constante e necessária atuação de uma
figura adulta que, incluída na ordem da linguagem, torna possível à criança a
apropriação do sentido das palavras. Efetivada a introjeção, as palavras poderão
substituir a presença outrora imprescindível do s
eio, segundo a passagem abaixo:
“Aprender a preencher com palavras o vazio da boca é um primeiro paradigma da
introjeção. Primeiramente, a boca vazia, depois, a ausência dos objetos torna-
se
palavras, finalmente, as experiências das próprias palavras se convertem em outras
palavras. Assim, o vazio oral original terá encontrado remédio para todas as suas
faltas por sua conversão em relação de linguagem com a comunidade falante. [...]
A linguagem que supre essa ausência,
figurando
a presença, pode ser
com
preendida
no seio de ‘uma comunidade de bocas vazias’” (ABRAHAM &
TOROK, 1972/1995, p. 246, grifo dos autores).
Conforme está sendo ressaltado, a dinâmica da introjeção tem como pano
de fundo o processo de aquisição da linguagem articulada por parte da c
riança. De
acordo com Abraham (1974/1995), a princípio, num período mítico no qual mãe e
filho viveriam de modo simbiótico, a criança não teria “outra consciência ou outro
inconsciente que não fosse os da mãe” (p.379). Nesta medida, o ato de separação
se consome pela introjeção desta relação inicial, sendo possível à criança, a partir
daí, diferenciar
-
se da mãe e assumir uma postura singular frente ao mundo.
48
Este modelo foi descrito minuciosamente no primeiro cap
ítulo desta tese.
136
Em outros termos, com a introjeção instaura-se o trabalho designado pelo
autor de “recalcamento do inconsciente materno” (ABRAHAM, 1974/1995, p.
380), permitindo à criança apropriar-se do inconsciente materno e, ao mesmo
tempo, desligar-se gradualmente deste. O infante é, pois, orientado no sentido de
sua relativa autonomização: pela palavra, ele poderá fornecer sua própria
significação para as coisas do mundo, significação agora singular, embora apoiada
nos sentidos que, outrora, foram fornecidos pela mãe. Trata-se, aí, de uma
operação fundamentalmente metafórica e que conduz ao processo de formação de
símbolos
49
. De fato, Abraham (1974/1995) considera toda criação simbólica um
efeito deste ato primordial de metaforização, fruto do corte da relação simbiótica
com a mãe. Ou seja, os sonhos, os sintomas ou quaisquer outras manifestações
psíquicas remeteriam
necessariamente a esta metáfora primordial.
a incorporação é definida como um mecanismo psíquico erigido para
compensar uma insuficiência ou, até mesmo, ausência da introjeção. Em outros
termos, quando o objeto mostra-se impossibilitado, por alguma razão, de servir de
mediador para a metabolização do sentido e das representações que lhes são
concernentes, instaura-se a apropriação e interiorização do próprio objeto na
esfera psíquica da criança. Em si, a incorporação funciona como uma resistência
ao trabalho de elaboração psíquica pois, por manter o objeto ainda vivo dentro de
si, dispensa o sujeito da árdua tarefa de recomposição do luto objetal (TOROK,
1968/1995).
Como conseqüência do mecanismo de recuperação mágica e instantânea
do objeto idealizado,
uma série de processos psíquicos eminentemente regressivos
49
A relação entre os processos metafóricos e de formação simbólica foi abordada no capítulo
precedente, conforme a discussão da última seção.
137
– e bastante próximos das dinâmicas concernentes à realização alucinatória e
imediata do desejo e ao funcionamento do princípio de prazer encontram seu
espaço. Com efeito, o princípio de prazer passa a reinar soberano, posto que a
realidade é cegamente rejeitada pela não aceitação, por parte do sujeito, da perda
objetal (TOROK, 1968/1995).
Contudo, a principal conseqüência desta regressão a um modo elementar
de funcionamento psíquico remete ao u
so peculiar que o sujeito fará da linguagem
articulada: por não ter alcançado êxito em apropriar-se do sentido concernente ao
objeto idealizado, metaforizando sua falta, o sujeito passa a empregar a linguagem
de modo a anular completamente o caráter figurativo das palavras. Desta maneira,
entra em cena um processo designado por Abraham e Torok (1972/1995) de
desmetaforização, ou seja, a tomada ao pé da letra daquilo que se poderia entender
no sentido figurado. Segundo os autores:
“Se estamos decididos a ver uma linguagem nos procedimentos que governam tal
fantasística, convém inventar uma nova figura da destruição ativa da figuração,
para a qual propomos o nome de
antimetáfora
. Precisemos que não se trata
simplesmente de voltar ao sentido literal das palavras, mas de fazer uso delas (...)
de modo que sua ‘figurabilidade’ seja como que destruída. (...)
Ela
[a
incorporação]
implica a destruição fantasística, do ato mesmo pelo qual a
metáfora é possível: o ato de pôr em palavras o vazio oral original, o ato de
introjetar
(ABRAHAM & TOROK, 1972/1995, pp.250
-
251, grifo dos autores).
Desta forma, depreendemos que a introjeção e a incorporação operam em
sentidos contrários. Trata
-
se de contrapor um mecanismo a outro e ressaltar que “a
incorporação denuncia uma lacuna no psiquismo, uma falta no lugar preciso em
que uma introjeção deveria ter ocorrido” (ABRAHAM & TOROK, 1972/1995, p.
138
245). Por isso, compreendemos que o mecanismo de desmetaforização surge
sempre que não for possível expor o objeto idealizado a uma certa tematização, a
um tratamento reflexivo. Neste contexto, duas importantes analogias foram
traçadas pelos autores: a primeira consistiu em associar a introjeção a uma
imagem metafórica e a incorporação a uma imagem fotográfica; a segunda foi
relacionar a introjeção à aprendizagem de uma língua e a incorporação à compra
de um dicionário (ABRAHAM & TOROK, 1972/1995).
Com efeito, Torok (2002) ressalta que as figuras parentais são verdadeiras
“máquinas de influência” para o futuro sujeito e, nestes termos, pressupõe que a
interação entre mãe e criança pode conduzir a duas vicissitudes distintas e opostas
uma da outra. Por um lado, pela efetivação da introjeção, a influência parental
guia a criança rumo à aquisição da linguagem articulada e à quebra da relação
dual. Por outro, no caso da incorporação, o risco de tal situação culminar na
instalação de uma cripta no seio do psiquismo da criança, impedindo a
singularização do infante e denunciando o fracasso do trabalho de metaforização.
É, pois, sobre este segundo aspecto que agora nos debruçaremos para tentar
explicitar o mecanismo que responde pela emergência das fantasias vazias no
aparelho psíquico.
Segundo os autores, a instalação da cripta no ego ocorre quando as
palavras ditas pelos pais comportam um segredo inconfessável, de modo que,
nestas condições, eles transmitirão aos filhos uma lacuna existente em suas
próprias dinâmicas psíquicas. Ou seja, subjacente à formação de uma cripta,
sempre um tormento, uma experiência vergonhosa vivenciada pelas
figuras
parentais, experiência de natureza indizível e frente à qual foi necessário guardar
139
sigilo. Por ser vergonhosa, foi impossível comunicá-la a terceiros e, assim,
qualquer possibilidade de simbolização foi excluída de seus domínios. Disto
resulta a constituição de uma cripta, agora transmitida à criança por identificação.
Com base nestes pressupostos, a cripta pode ser definida, em linhas gerais, como
o enterro, no aparelho psíquico, de uma situação vivida como traumática pelos
ancestrais do sujeito (ABRAHAM & TOROK, 1975/1995). De acordo com os
autores:
“É esse elemento de Realidade tão dolorosamente vivido, mas que escapa em nome
de sua natureza indizível, a todo trabalho de luto, que imprimiu a todo o psiquismo
uma modificação oculta. Oculta sim, porque será preciso mascarar, denegar a
realização do idílio. (...) De tal conjuntura, resulta a instalação no seio do Ego de
um lugar fechado, de uma verdadeira
cripta
, e isso como conseqüência de um
mecanismo autônomo, espécie de anti-introjeção, comparável à formação de um
casulo em torno da crisálida” (ABRAHAM & TOROK, 1975/1995, p. 279, grifo
dos autores).
Portanto, apresentada como um mecanismo anti-
introjetivo, a instalação da
cripta no aparelho psíquico deve associar-se necessariamente ao processo
de
incorporação do objeto. Ou seja, na impossibilidade dos pais em virtude do
segredo e da vergonha mediarem o sentido, as representações e as palavras que
lhes são próprios para que a criança os assimile, dar-
se
uma identificação oculta
e eminentemente imaginária com o objeto em questão, promovendo seu
alojamento no psiquismo do infante. O objeto torna-se um verdadeiro posseiro do
eu, usando
-
o como máscara para a realização de algo vergonhoso que não poderia,
em hipótese alguma, ser mostrado às claras. Em outros termos, é o próprio objeto
e suas palavras impronunciáveis que são encriptadas pelo sujeito e, assim, o
140
objeto fará com que o sujeito abra mão de sua própria identidade em prol de uma
identificação imaginária à qual Abraham e Torok (1975/1995) denominaram
identificação endocríptica.
Segundo Abraham e Torok (1971/1995), a cripta se instala no aparelho
psíquico numa região à qual eles denominam de inconsciente artificial. Em si, o
inconsciente artificial se diferencia do inconsciente tal como fora conceituado por
Freud
e que eles designam de inconsciente dinâmico por configurar-
se
enquanto um núcleo clivado no aparato e que, portanto, não estabelece relação
alguma com os demais sistemas psíquicos. Ou seja, se a introjeção resulta,
conforme mencionado acima, na inclusão do inconsciente da mãe no ego da
criança, a incorporação, pelo contrário, promove um isolamento topográfico
fundamental, criando no seio de um sistema uma estrutura análoga à tópica inteira
(ABRAHAM & TOROK, 1972/1995).
Trata
-s
e, portanto, neste inconsciente artificial de uma estrutura análoga ao
núcleo clivado do aparelho psíquico que analisamos na seção precedente. Ou seja,
o inconsciente artificial é tido como algo isolado do restante da tópica e no qual os
conteúdos não se relacionam com os demais elementos psíquicos. O inconsciente
artificial não estabelece relações ou conflitos com os outros sistemas, o que nos
permite depreender que um aparelho psíquico encriptado possui uma topografia
cindida e um dinamismo anacrônico entre dois modos de funcionamento que,
apesar de coexistirem lado a lado, se desconhecem completamente.
Nesta perspectiva, devemos correlacionar o processo de recalque, tal como
concebido por Freud (1896a/1995) na “Carta 52”, o mecanismo de clivagem, tal
com
o pensado por Ferenczi (1933/1988) e a noção de cripta presente no
141
pensamento de Abraham e Torok. Com efeito, as três figuras remetem a uma
divisão no aparato, implicando no isolamento topográfico de um cleo psíquico
que se perpetuará de modo anacrônico, se confrontado com o restante dos
elementos presentes no psiquismo. Na “Carta 52” (FREUD, 1896a/1995), este
núcleo recebe o nome de “signos de percepção” ou, então, de fueros
”; segundo a
proposta ferencziana, ele remete à linguagem de paixão incorporada; já na obra de
Abraham e Torok, o núcleo em questão se reporta à formação da cripta e do
inconsciente artificial, sendo estas duas estruturas psíquicas instauradas a partir do
mecanismo de incorporação.
Resta, portanto, examinar os processos que se fazem sentir neste núcleo
clivado e isolado do restante da tópica psíquica para, em seguida, relacioná-los às
fantasias vazias.
3.2. Da clivagem psíquica às fantasias vazias
Prossigamos no exame da obra de Abraham e Torok. Segundo os autores, com a
instalação da cripta, abre-se o devido espaço para uma série de manifestações
clínicas, a princípio enigmáticas, mas que o efeito de desmetaforização da palavra
advinda do outro ajuda a esclarecer. Tais manifestações se referem a fenômenos
que governam parte da ativid
ade fantasmática do sujeito.
Com efeito, é mencionado que a instalação da cripta no aparelho psíquico
promove a entrada em cena de uma formação fantasística que se apresenta de
modo bastante peculiar. Nesta perspectiva, Torok (1975/1995) define a fantasia
como “uma formação que não foi, enquanto tal, o produto da autocriação do
sujeito pelo jogo dos recalcamentos e introjeções” (p.403). Ou seja, ela não
142
merece ser circunscrita enquanto um retorno do recalcado; pelo contrário, trata-
se,
neste domínio fantasmático, de algo que retorna enquanto corolário do processo
de incorporação e, portanto, como uma formação psíquica situada para além dos
jogos metafóricos e metonímicos.
Deste modo, o processo psíquico que responde pela emergência destes
fantasmas não é o recalcamento tal como pensado por Freud (1915a/1995 e
1915b/1995) nos escritos metapsicológicos. Neste aspecto, podemos depreender
que tais fantasias se distanciam daquelas referentes ao cenário narrativo do
sujeito, no qual se fazem sentir os mecanismos de formação simbólica erigidos a
partir de uma série de conflitos psíquicos.
Assim, Abraham e Torok (1972/1995) declaram que suas concepções
acerca da fantasia em muito se distanciam do denominado
panfantasismo
(p.
243), restringindo a figura da fantasia a um sentido preciso: “ela não é nunca a
simples tradução do processo psíquico, muito pelo contrário, é a prova (...) de que
nenhum processo ocorreu nem deve ocorrer” (ABRAHAM & TOROK,
1975/1995, p.280). Deste modo, se entendermos por processos psíquicos o
s
trabalhos de condensação e deslocamento efetuados pelo inconsciente,
depreendemos que a fantasia configura-se como aquilo que se faz presente,
justamente, quando os referidos mecanismos falham, ou então, não encontram seu
espaço de ação. Assim, suposta o que escapa à produção simbólica, a fantasia
consiste numa estrutura psíquica distinta das produções do recalcamento
dinâmico, escapando à formação de sintomas e funcionando como algo estranho à
tópica própria ao sujeito (ABRAHAM, 1975/1995).
143
Com base nestes pressupostos, podemos destacar que a fantasia se
apresenta na obra de Abraham e Torok com um estatuto metapsicológico análogo
dos signos de percepção (FREUD, 1896a/1995). Ou seja, a fantasia consistiria em
algo alheio ao processo de tradução psíquica e, desta forma, podemos associá-
la
ao que permanece incrustado no aparelho psíquico enquanto um “
fuero
”. Segundo
a proposta da “Carta 52”, a persistência dos signos de percepção na dinâmica
psíquica também denunciaria a não ocorrência de uma tradução e de u
ma
conseqüente elaboração em virtude do mecanismo de recalque, tal como
concebido no texto freudiano em questão.
Ainda de acordo com a abordagem de Abraham e Torok (1976) acerca
deste modo peculiar de fantasmatização, é assinalado que, frente a produções
fantasmáticas deste tipo, a metáfora fracassa e o mbolo se mostra ausente. Este
é, com efeito, mais um aspecto a ser destacado em nossa analogia entre os
fantasmas vazios e a fantasia tal como pensada por estes autores. Ou seja, a
ausência de metáforas e de formações simbólicas neste domínio fantasístico, faz
com que, no tocante a elas, o dispositivo analítico da interpretação se mostre
pouco eficaz. Isto porque os discursos fantasmáticos em questão parecem não
reenviar a nenhum enigma ou brecha através da qual a interpretação poderia se
exercer. Neste sentido, suas heterogeneidades radicais em relação às demais
construções psíquicas do sujeito devem ser necessariamente reconhecidas.
Ao destacar a heterogeneidade destas fantasias frente às outras produções
psíquicas do sujeito, os autores também trazem para o primeiro plano da discussão
o anacronismo em jogo nesta tese. Nesta perspectiva, devemos retomar a
constatação de que as fantasias vazias se configuram como estruturas apartadas do
144
restante das formações discursivas do sujeito; e, para a presente articulação, o fato
marcante referente à instalação da cripta numa zona clivada do aparelho psíquico
também merece ser levado em consideração. Desta maneira, pertencendo a um
domínio clivado do aparato, elas escapariam ao encadeamento metonímico, não
estabelecendo ligação alguma com quaisquer outras elaborações discursivas mais
complexas. Todas as considerações acerca destas produções fantasmáticas nos
levam a uma aproximação, do ponto de vista metapsicológico, com as fantasias
vazias
50
.
Com base nestes pressupostos, também destacamos que as fantasias vazias
possuem a estranha característica de seus elementos estarem, de tal maneira,
atados a determinados referenciais discursivos de modo a escaparem do trabalho
de produção de símbolos. Para esclarecer tal peculiaridade, mais uma vez, as
concepções de Abraham e Torok vêm em nosso socorro, na medida em que eles
situam a fantasia como um efeito do mecanismo de incorporação. Neste aspecto,
conforme foi ressaltado, com a incorporação, o caráter figurado das palavras é
anulado, de modo que o sujeito passa a tomar ao da letra aquilo que se pode
entender no sentido metafórico. Ou seja, na incorporação, o sujeito não se
apropria do sentido das palavras, estando impossibilitado de fornecer sua própria
significação àquilo que vem do outro. Passemos ao exame desta questão.
50
Vale marcar que o ponto de vista de Abraham e Torok acerca da fantasia é bem mais complexo
do que referimos. Estamos apenas nos servindo das características que conduzem à sua analogia
com os fantasmas vazios, mas temos em mente que não se trata de duas formações psíquicas que
s
e recobrem completamente.
145
3.3. A dimensão mítica da atividade fantasmática
Assim, visando analisar o modo pelo qual o mecanismo de incorporação promove
o advento dos fantasmas vazios na dinâmica psíquica, retomemos os principais
pressupostos da discussão empreendida até então. Esta retomada conduzirá a duas
importantes hipóteses de pesquisa: a primeira remete ao estabelecimento da
introjeção como o trabalho que responde pela emergência, no aparelho psíquico,
dos fantasmas tidos enquanto cenários narrativos; a segunda se reporta à
suposição de que as fantasias vazias encontram seus alicerces no mecanismo da
incorporação.
No entanto, antes de entrarmos propriamente na discussão,
devemos
estabelecer uma ressalva. Delimitamos que tanto o recalque, tal como pensado na
“Carta 52”, quanto a figura da clivagem presente na obra ferencziana e a noção de
cripta apresentada por Abraham e Torok possuem um caráter eminentemente
defensivo. Assim, de acordo com a concepção de Freud (1896a/1995), o recalque
entra em cena para evitar o desprazer decorrente de uma nova retranscrição
mnêmica; segundo Ferenczi (1921/1988), a noção de clivagem, aliada ao conceito
de autotomia, diz respeito a uma fragmentação psíquica que visa, em última
instância, a proteção frente a um perigo; enfim, conforme Abraham e Torok
(1975/1995) a cripta se instala no aparelho psíquico em virtude de uma
experiência vergonhosa e sigilosa. Nesta perspectiva, consideramos estes t
rês
mecanismos como paradigmáticos para pensar o advento dos fantasmas vazios
mas, no entanto, não acompanhamos a proposta dos autores quanto ao caráter
defensivo que estes mecanismos comportam. Tendo em vista que os fantasmas
146
vazios não são aqui postulados como organizações defensivas, a presente análise
passará à margem deste aspecto.
Feita esta ressalva, retomemos, primeiramente, as concepções de Ferenczi
(1933/1988) acerca do desmentido. Conforme assinala Verztman (2002), a visada
ferencziana sobre o trauma é bem mais abrangente do que parece se reportada
apenas ao contexto da sedução. Em outros termos, esta teoria diz respeito a um
domínio muito mais amplo e não precisa necessariamente partir de uma cena de
abuso sexual. De acordo com esta perspectiva, as considerações acerca da
“confusão de línguas” podem abranger todo o dinamismo que remete aos embates
do sujeito com o universo simbólico. Seguindo esta linha de raciocínio, o
desmentido sai do contexto da sedução e passa a se reportar, no confronto do
sujeito com o universo simbólico, a tudo o que impede a instauração do processo
de introjeção (PINHEIRO, 1995).
Com efeito, o pensamento lacaniano concedeu o devido relevo à
formulação de que o sujeito se constitui a partir da ordem simbólica, sendo este
do
mínio referido ao campo da linguagem, dentro do qual o sujeito é aos poucos
inserido, submetendo-se a determinados padrões éticos e culturais (LACAN,
1956/1998). Tratar-
se
-ia, no universo simbólico, de um mundo de linguagem
atravessado por formações discursivas que precedem o nascimento do sujeito e
antecipam o seu porvir. No processo de subjetivação, o conjunto destes discursos
concernentes à ordem simbólica é transmitido à criança pelas figuras parentais.
De fato, muito antes do nascimento de um sujeito, um lugar já lhe é
designado no universo simbólico dos pais, na medida em que estes depositam em
seus filhos determinadas aspirações, anseios ou valores, abrindo o devido espaço
147
para o empreendimento de uma série de processos identificatórios. Tais formaçõ
es
desejantes, que permeiam os discursos dos adultos, funcionam como verdadeiros
subsídios através dos quais se empreende o trabalho de estruturação subjetiva; daí,
a proposição lacaniana de que o sujeito advém pelo desejo do Outro
51
(LACAN,
1964/1998). De acordo com tal concepção, a subjetividade seria fruto dos
discursos parentais que, perpassados por uma série de construções fantasmáticas,
vêm representar o sujeito, marcando-o profundamente e fornecendo-lhe
determinadas características singulares.
Vale ressaltar que esta argumentação não é de modo algum estranha ao
pensamento freudiano, sendo possível encontrar, ao longo de sua obra, uma série
de indicações que conduzem a tal conclusão. Talvez a mais conhecida destas
exposições é apresentada no ensaio “Sobre o narcisismo: uma introdução”, no
qual Freud (1914b/1995) se volta para a análise de algumas observações e
inferências acerca da atitude emocional dos pais para com seus filhos. Sua
investigação culmina na postulação de que o comportamento bastante amis
toso
das figuras parentais conduz à constituição de uma imagem idealizada da criança,
situando
-a enquanto “Sua majestade, o bebê”
52
. Com isto, fica marcado que,
mediante uma atitude geralmente terna, os pais se encontram absortos na
compulsão de atribuir às crianças toda a gama de perfeições e, ao mesmo tempo,
ocultar suas deficiências e fraquezas. Ademais, eles também reivindicariam para
seus filhos o direito a determinados privilégios, facilitando todos os caminhos
para que a criança não encontre o menor obstáculo para a realização de seus
anseios.
51
Convém destacar que tal formulação lacaniana é bastante complexa. Tendo em vista os limites
da presente tese, não cabe aqui uma exposição minuciosa desta proposição.
52
Ver a discussão empreendida na segunda seção do primeiro cap
ítulo.
148
O conjunto destas imagens idealizadas seria sobreposto ao corpo até então
fragmentado do infante, tornando possível a unificação das pulsões auto-
eróticas
no plano egóico. Daí, o mecanismo de fundação do narcisi
smo primário, formação
psíquica estritamente vinculada à instância denominada de eu ideal. De fato, é
assinalado que a criança se evidencia, nas fantasias parentais, como um refúgio
favorável para que eles revivam suas tendências narcisistas há muito aband
onadas,
sendo os atributos e regalias conferidas à criança, verdadeiros privilégios dos
quais os próprios pais se privaram ao longo de suas vidas. Nesta medida, Freud
(1914b/1995) ressalta as dificuldades que o sujeito encontra para renunciar a um
prazer outrora desfrutado: quando com o advento do processo de recalque, ele se
na obrigação de abrir mão da satisfação de suas aspirações narcísicas, entra em
cena um mecanismo psíquico eminentemente fantasmático que visa à recuperação
destas tendências recalcadas. Deste modo, a perfeição narcisista dos pais estaria
intimamente preservada na esfera fantasmática e deslocada em direção à
instauração do ideal do eu.
São, portanto, os ideais parentais que fornecem os alicerces necessários
para o processo de subjetivação e, sob este prisma, não cabe considerá-lo como o
efeito de um discurso meramente entusiasta e que despreza quaisquer formas de
consciência crítica. Pelo contrário, devemos reconhecer que o universo
fantasístico dos pais encontra-se também subordinado à dimensão simbólica,
abrangendo, em seus domínios, os mais variados aspectos que remetem às
exigências da lei e da linguagem
53
.
53
Para maiores detalhes, remeto a Lacan (1953
-
1954/1979).
149
Dando prosseguimento a esta temática, podemos igualmente reconhecer
um esboço metapsicológico do processo de subjetivação no modelo da vivência
de satisfação apresentado no “Projeto para uma psicologia científica” (FREUD,
1895/1995)
54
. Com efeito, está implícito no texto freudiano o dinamismo
concernente à assunção da linguagem por parte da criança, através de sua
constante interação com as figuras parentais. Segundo este ponto de vista, os pais
introduzem a criança no universo simbólico por intermédio das sucessivas
atribuições de sentido para o estado de desamparo no qual o bebê se encontra
submerso. Em outros termos, ao responder ao choro do bebê com o fornecimento
de algum alimento, por exemplo, a mãe, retroativamente, nomeia de fome o
desconforto do filho, ficando descartada a existência de um significado primitivo
e oculto por trás do choro e gestos da criança. Pelo contrário, o sentido é erigido
pela nomeação e interpretação, por parte dos pais, do desprazer experimentado
pelo bebê. Em suma, estas interpretações propostas pelas figuras parentais
possuem, no processo de subjetivação, a mesma função das fantasias atribuídas à
cr
iança, acima mencionadas na análise do modelo “Sua majestade, o bebê”: elas
também fornecem os pontos de apoio necessários para o advento de uma
subjetividade.
Com base nestes pressupostos, depreendemos que o processo de
subjetivação é estritamente dependente de uma possibilidade de fantasmatização
por parte da criança. Nos termos do “Projeto para uma psicologia científica”
(FREUD, 1895/1995), a constituição da rede fantasmática no aparelho psíquico
corresponderia à montagem do circuito neuronal de facilita
ções, permanentemente
54
Uma descrição minuciosa acerca deste modelo foi empreendida na primeira seção do primeiro
capítulo.
150
reinvestido pelas operações de pensamento. Por este viés, a cadeia fantasística
consistiria na reunião de antigas facilitações, outrora inscritas no psiquismo do
sujeito a partir dos mais variados encontros com o mundo adulto, sendo e
stas
imbricadas tramas de facilitações algo que se forma à medida que se obtém êxito
em significar as mensagens emitidas pelos adultos. Assim, através desta operação
de significantização, o sentido destas mensagens, num primeiro momento atrelado
ao discurso fantasístico do outro é, em parte, corrompido e, em seu lugar advém
uma nova significação, agora, vinculada às fantasmatizações do próprio sujeito.
Temos, neste caso, a consecução de uma operação eminentemente
metafórica posto que, segundo as palavras de Lacan (1957-1958/1999), o sujeito
vai “tomar um elemento no lugar onde ele se encontra e substitui-lo por outro” (p.
103). Com efeito, os processos metafóricos são estritamente vinculados à
possibilidade do sujeito, por intermédio de suas fantasmatizações, mediatizar as
formações discursivas do outro e empreender um trabalho de simbolização das
mensagens que lhes são perpetradas. Assim, depreendemos que a atividade
fantasmática assume uma importante função na dinâmica psíquica do sujeito: é
através da construção de uma fantasia que o sujeito tem a possibilidade de se
singularizar, mediante o fornecimento de um sentido próprio àquilo que vem do
outro. Trata-se, portanto, de trazer para o primeiro plano da discussão a dimensão
eminentemente mítica da atividad
e fantasística.
Ao destacar a dimensão mítica da atividade fantasmática, Lacan (1956-
1957/1995) enfatiza que a função assumida pela fantasia na dinâmica psíquica é a
mesma daquela desempenhada pelo mito no contexto de uma determinada cultura.
Assim, consta
ntemente, o sujeito se serviria de um conjunto de fantasmatizações
151
tidas como construções narrativas para tentar fornecer alguma representação
para aquilo que a ele se manifesta como enigmático. Esta seria, de fato, uma das
funções primordiais da atividade fantasística, se pensada enquanto um cenário
narrativo.
A fim de ilustrar o papel eminentemente mítico da atividade fantasmática
narrativa na dinâmica psíquica, voltemos nosso interesse para o ensaio “O futuro
de uma ilusão”. Neste texto, Freud (1927a/1995) investiga qual o propósito da
religião no mundo civilizado e, também, os fatores que impelem o sujeito a uma
aceitação incrédula dos preceitos perpetrados pela figura divina. A idéia central do
trabalho é de que o sentimento religioso é mantido e preservado pela condição
fundamental de desamparo que, embora possua um protótipo infantil,
freqüentemente acomete o ser humano ao longo de sua existência.
A discussão se inicia com a enumeração do montante de sacrifícios que os
sujeitos são obrigados a fazer em prol do bem-estar da civilização. Ora, a
civilização traz consigo uma série de regulamentos que regem a vida em
comunidade, impondo aos sujeitos a renúncia às suas satisfações pulsionais
imediatas, sejam elas sexuais ou agressivas. Deste modo, a cultura é apresentada
como o conjunto de relações simbolicamente estruturadas entre os seres humanos
e por eles produzidas –, permitindo-lhes a superação das condições da vida
animal. Se, porventura, estas leis fossem suspensas, os impulsos hostis à
civilizaç
ão não encontrariam obstáculos para as suas realizações e a vida em
comunidade estaria seriamente ameaçada (FREUD, 1927a/1995).
Ainda sob o pano de fundo do antagonismo entre natureza e civilização, é
assinalado que esta última abrange todo o saber adquirido pelo homem, ao longo
152
dos tempos, possibilitando o conhecimento objetivo das leis da natureza e o
usufruto dos bens por ela fornecido. Nesta medida, o conhecimento cientifico teria
por função a manipulação da natureza e a predição de possíveis desastres que
ponham em risco o bem-estar da humanidade. Entretanto, apesar de circunscrita
esta função de coibição, também é exposto que a ciência possui uma série de
limitações em seu campo de atuação, levando-nos a constatar que a pretendida
coerção das leis naturais é algo impossível de ser efetivado. Assim, sempre que o
homem julga ter desenvolvido um domínio pleno sobre a natureza, os perigos
desta retornam, seja sob a forma de terremotos, inundações, doenças e, até
mesmo, da morte. Desta forma, Freud (1927a/1995) questiona: ante à
impossibilidade de dominar as forças da natureza, de modo a compreender as leis
que regem seus fenômenos, de quais outros artifícios dispõe o sujeito para
salvaguardar
-
se de seus perigos?
A resposta fornecida é a seguinte:
“Das forças e destinos impessoais ninguém pode aproximar-se, permanecem
eternamente distantes. Contudo, se nos elementos se enfurecem paixões da mesma
forma que em nossas almas, se a própria morte não for algo espontâneo, mas o ato
violento de uma Vontade maligna, se tudo na natureza forem Seres à nossa volta,
do mesmo tipo que conhecemos em nossa própria sociedade, então poderemos
respirar aliviados, sentir-nos em casa no sobrenatural e lidar com nossa insensata
angústia através de meios psíquicos. Talvez ainda nos achemos indefesos, mas não
mais desamparadamente paralisados; pelo menos, podemos reagir” (FREUD,
1927a/1995, p. 25).
Esta passagem é exemplar para que possamos verificar a dimensão mítica
da atividade fantasística. Com efeito, diante da condição de terror à qual os
sujeitos são entregues quando confrontados com o poder superior da natureza,
153
nada mais lhes resta senão produzir algumas teorizações fantasmáticas a respeito
do extrato incognoscível do universo. Através destas, o sujeito obtém algum
consolo
e proteção. Em outros termos, mediante o processo de humanização
imaginária da morte e da natureza, o sujeito encontra as devidas condições para
pensar sobre estes inacessíveis e assumir uma posição ativa frente a tal estado de
coisas (FREUD, 1927a/1995).
Desta maneira, tais fantasias consistem em tentativas do sujeito de elaborar
alguns dados da experiência que, até então, se manifestavam como
irrepresentáveis. Por conseguinte, Freud (1927a/1995) ressalta que até mesmo o
mecanismo psíquico que culminou na formulação do conceito abstrato de Deus
merece ser vislumbrado como uma construção fantasmática deste tipo: a figura
divina interviria como aquela que, constituída à maneira de um ser humano,
governa os fenômenos naturais, exorcizando seus terrores e prot
egendo
-nos das
suas crueldades. Neste sentido, as idéias referentes à benevolência de uma
entidade superior encarregada da justiça, dos regulamentos sociais e da
assistência ao sofrimento que aflige o ser humano são circunscritas enquanto
criações fantasísticas da humanidade erigidas, justamente, para fazer frente ao
estado de desamparo inerente às subjetividades.
Este ensaio nos permite depreender que o irrepresentado, em conjunto com
as variáveis enigmáticas que comporta, opera como condição necessária ao
advento da atividade fantasística. Esta, por sua vez, é circunscrita como o artifício
através do qual o sujeito dispõe para tentar dar conta deste inacessível. Ou seja,
ela se presentifica enquanto um verdadeiro testemunho da atividade psíquica
adquir
indo, na dinâmica de funcionamento do aparato, uma função bastante
154
evidente: é através da produção de uma narrativa fantasmática que o sujeito
encontra os devidos meios para tentar significar aquilo que é da ordem do
enigmático.
Esta função da atividade fantasística pode ser vislumbrada também em
outros ensaios da obra freudiana, tais como “Romances familiares” (FREUD,
1909/1995) e “Sobre as teorias sexuais das crianças” (FREUD, 1908d/1995). No
primeiro caso, a ênfase recai no desmoronamento das idealizações, por parte do
sujeito, das figuras parentais. Desamparado, ao sentir-se negligenciado e
desprovido do amor dos pais, a criança se põe a elaborar os mais variados
devaneios acerca de sua condição familiar. Tais fantasmas girariam em torno da
temática da adoção, sendo possível a ela, por este viés, fornecer algum sentido
para a diminuição da estima de seus pais: como ele foi adotado quando criança,
pertence na verdade a outra família e, por isso, não é digno de carinho algum
(FREUD, 1909/1995). Ou seja, temos, neste caso, uma mensagem advinda dos
pais, mensagem esta que envolve alguns indícios concernentes à perda de afeição
para com o filho. Este, por sua vez, sente o comportamento dos pais como algo
enigmático (“por que eles não são mais tão afetuosos comigo tal como antes se
comportavam?”) e, assim, se na obrigação de lançar mão de uma série de
circuitos fantasísticos, em vistas de oferecer uma interpretação para o fato
estranho. Como resultante deste procedimento, vislumbra-se a construção de uma
fant
asia que, de certo modo, justifica ou explica o mistério referente às
enigmáticas atitudes dos pais.
no contexto das teorizações sexuais infantis, Freud (1908d/1995)
menciona o caso de crianças que suspeitam que o provável nascimento de um
155
irmão poderá trazer conseqüências irreversíveis para seus narcisismos. Para fazer
frente a tal estado, a atividade imaginativa da criança é acionada, e ela se põe a
empreender algumas tentativas de solucionar os grandes enigmas concernentes à
esfera da sexualidade, objetivando responder à questão da origem dos bebês.
Assim, abre-se espaço para a entrada em cena de uma série de fantasmatizações
referentes à universalidade do pênis, à concepção sádica do coito e ao fato das
crianças saírem do corpo da mãe através do orif
ício anal. Tal como ocorre no caso
das fantasias dos romances familiares, estas produções fantasísticas possibilitam à
criança atingir alguns progressos em seus esforços para o entendimento dos
enigmas referentes à origem do sujeito. Em outros termos, embora estas teorias
“cometam equívocos grosseiros, (...) se assemelham às tentativas dos adultos (...)
para decifrar os problemas do universo que são tão complexos para compreensão
humana” (FREUD, 1908d/1995, p. 195).
Também, de acordo com Laplanche e Pontalis (1988), a dimensão mítica da
atividade fantasística é observada no contexto dos fantasmas originários de
castração, sedução e cena primária. Assim, com a fantasia de castração, por
exemplo, o sujeito procuraria resolver o enigma referente à origem da dif
erença
sexual; mediante a construção do fantasma de sedução, ele visa esclarecer a
problemática da origem da sexualidade; e, por fim, com a montagem da fantasia
de cena primária, busca
-
se elucidar o enigma concernente à questão de sua própria
origem
55
.
Assim, partindo destes pressupostos, devemos retomar os processos de
introjeção e de incorporação para indicar como eles se inserem no confronto do
55
Vale lembrar que, de acordo com a discussão empreendida no primeiro capítulo, os fantas
mas
originários podem, de certo modo, se incluir nestes cenários fantasísticos narrativos.
156
sujeito com a ordem simbólica
56
. Conforme foi acima circunscrito, o trabalho de
introjeção permite ao sujeito assimilar o discurso do outro de modo não alienante,
de forma a abrir espaço para sua singularização. Isto porque o sujeito introjeta não
as próprias palavras transmitidas, mas o sentido a elas subjacente. Nesta
perspectiva, mediante a introjeção, ele assi
mila o discurso perpetrado e, ao mesmo
tempo, desliga-se gradualmente deste, pela possibilidade de fornecer um sentido
singular a tais formações discursivas. Este novo sentido é construído a partir do
processo de formação simbólica no qual se reconhecem necessariamente as
atuações da metáfora e da metonímia. Através destas inúmeras e constantes
operações metafóricas, vai sendo empreendido o trabalho de introjeção.
No entanto, conforme a discussão apresentada, vemos que só é possível ao
sujeito construir uma
fantasia a partir do discurso do outro, se este último chegar a
ele como algo enigmático. Ou seja, é pelo fato do discurso transmitido comportar
uma série de variáveis enigmáticas que o sujeito tem a necessidade de devanear a
respeito deste discurso, forn
ecendo, mediante suas fantasmatizações historicizadas
e romanceadas, um sentido para aquilo que vem do outro. Neste contexto, a
atividade fantasmática narrativa teria por função servir de mola mestra para o
trabalho de elaboração psíquica, orientando o processo de articulação e de
assimilação das variáveis enigmáticas. Trata-se, portanto, de novamente assinalar
a dimensão mítica da vertente narrativa da fantasia, destacando sua função no
advento de uma singularidade. Deste modo, a ordem do enigma é tida com
o
56
Numa abordagem que privilegia a idéia da subjetivação como um processo, fica claro que a
atividade fantasmática seja no registro dos cenários narrativos, seja no registro dos fantasmas
vazios
é concebida como produzindo a todo momento. Assim, utilizamos o termo “criança” em
conformidade com a obra dos autores que viemos trabalhando até então. Entretanto, no contexto
da tese, não nos referimos exclusivamente ao confronto do infante com o universo simbólico; pelo
contrário, consideramos que este processo se de forma permanente ao longo da vida do sujeito
e, por conseguinte, o processo de construção de fantasias também é visto como algo constante.
157
condição de possibilidade para a instauração do trabalho de introjeção na medida
em que ela estimula a função interpretativa e a capacidade devaneativa do sujeito.
Todavia, conforme o exposto acima, ante a impossibilidade da introjeção,
-se, na dinâmica psíquica, a instauração do mecanismo de incorporação. Este,
de modo inverso, inibe a singularização do sujeito frente ao discurso perpetrado,
justamente por impedir o trabalho de assimilação do sentido das palavras. Assim,
o sujeito não consegue elaborar o discurso do outro e passa a fazer uso da
linguagem de modo que a figurabilidade das palavras seja, de certa forma,
destruída
57
. Com a incorporação do discurso, anula-se, portanto, a produção
formações simbólicas, bem como de construções metafóricas e met
onímicas.
Com base na análise apreendida, cabe questionar: qual o fator que
responderia pela impossibilidade de introjeção de um determinado discurso? Por
que, frente a determinadas formações discursivas, o sujeito não consegue êxito em
delas se apropriar
para, assim, reinterpretá
-
las?
Visando responder a tais questionamentos, retomemos as afirmações de
Pinheiro (1995) acerca dos fatores que respondem pela dificuldade do sujeito de
introjetar o discurso do desmentido. Assim, conforme foi acima mencionado,
quando um discurso é propriamente unívoco e não dá margens à polissemia,
restaria ao destinatário incorporar a palavra cristalizada. Nesta medida, a
incorporação entra em cena, promovendo a não integração do discurso em questão
com outros enunciados. De fato, a palavra que guarda consigo um caráter de
rigidez, eliminando a ambigüidade, fica incrustada no aparelho psíquico do
57
Ver a citação
de Abraham e Torok (1972/1995) na página 125.
158
destinatário, de modo que seu sentido original não possa ser por outros
substituídos por intermédio de algumas operações simbólicas.
As
sim, é possível depreender que diante da inviabilidade do sujeito
fornecer um sentido singular à palavra advinda do outro, esta possa permanecer
encriptada no aparelho psíquico e dar origem às denominadas fantasias vazias.
Neste contexto, a incorporação ocorre ou pelo fato do sujeito não sentir a
mensagem do outro como enigmática, ou pelo próprio remetente, em seu discurso,
não dar margens à ambigüidade das palavras, fazendo com que o destinatário não
seja confrontado com o poder enganador da fala. Caso contrário, a atividade
devaneativa do sujeito seria estimulada, abrindo o devido espaço, de acordo com o
modelo da “Carta 52” (FREUD, 1896a/1995), para as retranscrições fantasmáticas
que instauram o registro da inconsciência e da pré
-
consciência. Na ausência
de um
enigma, restaria à palavra do outro o destino de ser encriptada no aparelho
psíquico sob a forma de
fueros
que se perpetuam na dinâmica psíquica, sem
serem assimilados pelas fantasmatizações eminentemente narrativas.
Nesta perspectiva, não devemos esquecer que, de acordo com a proposta
freudiana, o modelo de aparato psíquico em jogo se constrói e se complexifica por
intermédio de infinitos processos de retranscrições mnêmicas. Assim, quando as
retranscrições da inconsciência e da pré-consciência não são erigidas, os
fueros
permanecem no psiquismo, ainda intocados pela atividade devaneativa do sujeito
e sem ser por ela assimilados. Instaura-se, portanto, uma clivagem na dinâmica
psíquica de modo que o aparato fica cindido entre dois dinamismos disc
ursivos
excludentes que não estabelecem relações de intercâmbio ou de conflito.
159
Com base nestes pressupostos, devemos destacar que frente à ausência de
enigmas, não é possível ao sujeito exercer uma interpretação do discurso
incorporado, metaforizando-o e
fornecendo
-lhe um sentido próprio e de acordo
com suas formações desejantes. Em outros termos, trata-se de ressaltar que, na
incorporação, a dimensão mítica de sua atividade fantasística é silenciada, de
modo a empobrecer a vertente simbólica do discurso fantasmático. Assim, a
atividade fantasística do sujeito passa a se apresentar enquanto um emaranhado de
cenas nas quais os elementos assumem o papel de referenciais discursivos,
desmetaforizados e alheios ao processo de formação simbólica. O discurso
fanta
sístico do sujeito permanecerá congelado ao redor deste referencial que, por
sua vez, não cessará de reenviar sempre a ele mesmo, tornando a linguagem
fantasmática perfeitamente clara e sem equívocos.
160
Capítulo 4
Da desconstrução d
e fantasias
à produção de
enigmas
No capítulo anterior, demos prosseguimento à proposta de circunscrição do
estatuto metapsicológico dos fantasmas vazios, analisando sua forma de
manifestação na dinâmica psíquica. Nesta perspectiva, trouxemos para o primei
ro
plano da discussão a figura da incorporação, examinando-a como o mecanismo
que responde pelo fato destas fantasias permanecerem clivadas do restante das
produções narrativas do sujeito. Deste modo, foi levantada a hipótese do aparelho
psíquico consistir em algo eminentemente cindido entre dois dinamismos
independentes: de um lado, um certo êxito do trabalho de introjeção propicia o
advento de um cenário fantasístico propriamente narrativo; de outro, uma falha
ou, até mesmo, ausência dos processos introjetivos foi tida como a causa da
instauração dos fantasmas vazios na topografia psíquica.
Neste capítulo, sairemos do terreno da metapsicologia para adentrar no
domínio da clínica. Nosso propósito, agora, é analisar a questão da direção do
tratamento face à singularidade destas produções fantasmáticas. Assim, num
primeiro momento, serão expostos os fatores que respondem pela irredutibilidade
das fantasias vazias ao trabalho de interpretação. Com isto, veremos que a
interpretação fracassa, justamente, por tais fantasmatizações consistirem em cenas
petrificadas nas quais se faz sentir o peso daquilo que denominamos de
referenciais discursivos
58
. Estes funcionariam no discurso do sujeito como uma
espécie de limite aos esforços interpretativos por sempre remeterem a um
58
Ver segunda seção do capítulo 2.
161
significado fixo deixando, portanto, de reenviar a outros elementos da cadeia
significante.
Num segundo momento do capítulo, serão delimitadas as principais
características do artifício clinico proposto por Kristeva (2002) referente à
nomeação de fantasias pela via da transferência. Veremos, neste campo, tratar-
se
do trabalho efetuado pelo analista de transmissão de suas próprias
fantasmatizações ao analisando, de modo a abrir, em seguida, uma oportunidade
para que este aceite, retifique ou mesmo rejeite o processo de nomeação. Por fim,
mediante uma releitura do caso do Pequeno Hans (FREUD, 1910a/1995),
retomaremos a discussão acerca da dimensão mítica da atividade fantasmática
para destacarmos a função desempenhada pela produção de enigmas na prát
ica
clínica. Deste modo, será levantada a hipótese de ser, justamente, a produção de
um enigma aquilo que viabiliza o processo de assimilação dos fantasmas vazios
pelo cenário fantasístico narrativo, desfazendo o anacronismo fantasmático.
4.1. O fracasso
da interpretação
Com o propósito de oferecer uma visada clínica acerca do tema das fantasias
vazias, devemos partir da questão de sua irredutibilidade à interpretação.
Conforme vimos ao longo da tese, os fantasmas vazios se manifestam na clínica
de modo diferente das demais produções fantasísticas, sejam elas tomadas
enquanto cenários narrativos, cenas indizíveis ou cenas originárias. Assim,
delimitamos a freqüência com a qual tais fantasias se repetem no discurso do
sujeito, mas sempre da mesma maneira caricatural e ritualizada. De fato, os
fantasmas vazios se fixam a determinados temas, vivências e formações psíquicas,
162
numa discursividade perfeitamente coerente e sem abrir margens a dúvidas. Por
este fator, levantamos acima
59
a hipótese deles remeterem não ao domínio
significante, mas de estarem convertidos numa modalidade de discurso onde se
manifesta aquilo que denominamos de referenciais discursivos. Nesta medida, tida
enquanto uma escrita de referenciais discursivos, as fantasias vazias comportam
uma linguagem clara e sem equívocos ou ambigüidades. Ademais, seus elementos
passam a estar atados a uma significação fixa, direta e já dada de antemão. Com
base nestes pressupostos, podemos circunscrever o fato do referencial discursivo
sempre reenviar a ele pró
prio
e não a outros elementos da cadeia fantasística
como o responsável pela irredutibilidade dos fantasmas em questão à associação
livre e à interpretação psicanalítica. Debrucemo
-
nos sobre este aspecto.
Com efeito, como o referencial discursivo sempre reenvia a si mesmo, ele
impõe um sério obstáculo à atividade interpretativa, na medida em que esta se
desenvolve a partir do constante remetimento de um significante a outro. Assim,
de acordo com o acima destacado, a localização topográfica das fantasias vazias
remete a um registro situado para mais aquém daquele no qual se faz sentir o
encadeamento significante. Nestes termos, os elementos fantasísticos não
estabeleceriam elos metonímicos com o restante das produções fantasmáticas do
sujeito, estando de
las apartados pelo processo de clivagem.
Igualmente, devemos assinalar que como a interpretação psicanalítica se
exerce mediante o trabalho de desconstrução de um discurso, ela não encontraria
sua razão de ser neste domínio fantasístico, visto que não se trata, nas fantasias
vazias, de um discurso muito maleável. Ou seja, os elementos da fala do sujeito se
59
Ver segunda seção do segundo capítulo.
163
encontram articulados a alguns significados fixos, de modo a silenciar a dimensão
eminentemente arbitrária de uma formação simbólica. Em outros termos,
trata
-
se
de ressaltar que o elemento discursivo não se abre para outros significantes; pelo
contrário, ele se fecha numa significação bastante rígida, fixa e pronta no próprio
instante do relato. Este fenômeno, por sua vez, encerra com quaisquer
possibilid
ades de construções metafóricas pelo trabalho de interpretação, o que
instauraria um novo rearranjo do material fantasmático e, de acordo com o modelo
da “Carta 52” (FREUD, 1896a/1995), uma nova retranscrição mnêmica.
Deste modo, o discurso do sujeito, quando atrelado a estes referenciais
discursivos adquire, em sua totalidade, uma função de resistência à interpretação
psicanalítica. Entretanto, esta resistência merece ser melhor circunscrita na
medida em que ela não parece remeter à uma força emanada do e
u
para impedir o
reconhecimento, por parte do sujeito, de uma formação desejante recalcada. Ou
seja, o conflito metapsicológico estabelecido por Freud (1905c/1995) entre o
desejo inconsciente e a resistência egóica, embora se aplique ao domínio
fantasístic
o narrativo, não pode ser reportado às dificuldades de intervenção frente
às fantasias vazias. Conforme vimos, estas não se vinculam a nenhuma formação
desejante recalcada, sendo imunes à sua atuação pelo mecanismo de clivagem.
Ademais, elas se localizam num espaço topográfico no qual os dois sistemas
psíquicos em jogo no conflito psíquico a saber, o sistema inconsciente e o
sistema pré-
consciente
-
consciente
sequer se constituíram. Assim, por trás dos
fantasmas vazios não é possível vislumbrar tendências edipianas, elementos
imorais, vergonhosos e ligados à sexualidade infantil, bem como outras formações
psíquicas que justificariam uma resistência egóica aos esforços analíticos.
164
Ainda assim, no caso das fantasias vazias, proponho que o conjunto de
força
s com as quais a interpretação se defronta mereça ser designado de
resistência. Contudo, devemos assinalar que esta modalidade peculiar de
resistência não consiste em impulsos de origem egóica, sendo provável que esteja
vinculada ao que Freud (1926/1995) em “Inibição, sintoma e angústia” designou
por resistência do
isso
. Tratar-
se
-ia de uma resistência que se manifesta,
fundamentalmente, na forma de uma oposição ao trabalho de elaboração psíquica.
Vejamos, assim, como foi construída a abordagem freudiana pa
ra o tema.
No texto em questão, Freud (1926/1995) inicia sua teorização, retomando
os principais pressupostos do mecanismo de recalque: conforme salientado, por
diversas vezes em alguns escritos anteriores, o recalque não consistiria num
processo que ocorre uma vez; pelo contrário, ele exige um dispêndio constante
de energia por parte do aparelho psíquico que, caso cessasse, o recalque falharia.
Neste contexto, para manter o material recalcado afastado da consciência, o
eu
emprega a força da resistência que, em si, pressupõe um contra-investimento de
ordem energética. A resistência egóica se estabelece no aparato pela dificuldade
do
eu
em reconhecer impulsos contrários ao dos padrões morais que ele criou para
si.
Dando prosseguimento à sua explanação, Freud (1926/1995) destaca que a
resistência pode ser consciente ou, até mesmo, inconsciente. Esta última abrange
os casos nos quais, mesmo após o
eu
ter se livrado de suas resistências
conscientes, o material recalcado continua a exercer uma resistência ao
trabalho
de elaboração psíquica por intermédio de uma compulsão à repetição. Assim, ao
final da argumentação, o conceito de resistência é redimensionado e ampliado,
165
passando a abranger cinco modalidades distintas que, por sua vez, emanam de três
direções diferentes. Teríamos então três resistências que emanam do
eu
, a saber, a
resistência do recalque, a resistência da transferência e a resistência referente ao
benefício secundário da doença. A estas, se somariam uma resistência advinda do
isso
e uma outra proveniente do supereu. Dada a complexidade da questão em
torno da noção de resistência do
isso
, vamos transcrever, na íntegra, a passagem
na qual Freud (1926/1995) a postula:
“Verificamos que mesmo após o
eu
haver resolvido abandonar suas resistências ele
ainda tem dificuldades em desfazer os recalques; e denominamos o período de
ardoroso esforço que se segue, depois de sua louvável decisão, de fase de
‘elaboração’ (...) Pode ser que depois de a resistência do
eu
ter sido removida, o
poder da compulsão à r
epetição
a atração exercida pelos protótipos inconscientes
sobre o processo pulsional recalcado
ainda tenha de ser superado. Nada há a dizer
contra descrever esse fator como a resistência do inconsciente. Não qualquer
necessidade de se ficar desestimulado por causa dessas correções. Devem ser bem
acolhidas se acrescentarem algo ao nosso conhecimento. (...) A investigação (...) do
assunto revela que o analista tem de combater nada menos que cinco espécies de
resistência, que emanam de três direções o ego, o id e o superego. O ego é fonte
de três, cada uma diferindo em sua natureza dinâmica. A primeira dessas (...) é a
resistência do
recalque
(...) sobre a qual o mínimo a ser acrescentado. A seguir
vem a resistência da
transferência
, que é da mesma natureza mas que tem efeitos
diferentes (...) visto que consegue estabelecer uma relação com a situação analítica
ou com o próprio analista, reanimando assim um recalque que deve ser somente
lembrado. A terceira resistência (...) advém do ganho proveniente da doença e se
baseia numa assimilação do sintoma no ego. Representa uma o disposição de
renunciar a qualquer satisfação ou alívio que tenha sido obtido. A quarta variedade,
que decorre do id, é a resistência que, como acabamos de ver, necessita de
‘el
aboração’. A quinta, proveniente do
superego
(...) é também a mais obscura,
embora nem sempre a menos poderosa. Parece originar-se do sentimento de culpa
ou da necessidade de punição, opondo-se a todo movimento no sentido do êxito,
166
inclusive, portanto, à recuperação do próprio paciente pela análise” (FREUD,
1926/1995, pp. 155
-
156, grifo do autor).
Deste modo, segundo a análise de Freud (1926/1995), a resistência do
isso
se deve ao fato de o material recalcado dar prosseguimento às suas ações
sintomáticas
por intermédio da compulsão à repetição, opondo-se ao trabalho de
elaboração psíquica. Nesta acepção, a resistência do
isso
não poderia se reportar à
questão dos fantasmas vazios, justamente, por dizer respeito a uma força oriunda
do próprio material recalcado. Todavia, vale lembrar que no modelo de aparelho
psíquico da segunda tópica (FREUD, 1923/1995), o
isso
não se justapõe ao
recalcado e, por este fator, a resistência do
isso
não se vincula necessariamente à
força de um material inconsciente rebelde ao
processo de elaboração.
De fato, o
isso
é um dos conceitos freudianos mais controvertidos, ora se
justapondo ao recalcado e ao inconsciente – tal como na passagem acima
, ora se
reportando a um substrato biológico do aparelho psíquico (FREUD, 1923/1995),
ora se referindo a um caldeirão de pulsões (FREUD, 1923/1995). No entanto, de
acordo com nossa proposta
60
, o
isso
está sendo tomado como uma escritura
psíquica ainda não submetida ao encadeamento discursivo inconsciente
(BRAUNSTEIN, 1990) e, muito menos, à organização da fala pré-
consciente/consciente. Nesta medida, estamos relacionando o
isso
ao registro dos
“signos de percepção” da “Carta 52(FREUD, 1896a/1995), ou seja, como se ele
dissesse respeito a algo situado topograficamente para mais aquém do registro da
inconsciência e que, portanto, escapa à lógica inconsciente e aos processos de
ligação (
Bindung
) significante.
60
Ver segunda seção do capítulo 2.
167
De acordo com esta acepção, a noção de resistência do
isso
pode remeter à
questão dos fantasmas vazios, e, então, ser circunscrita como a responsável por
suas irredutibilidades à associação livre e à interpretação. Com efeito, os “signos
de percepção” se apresentam como escrituras ainda pouco tocadas pelo trabalho
de elaboração psíquica. Assim, com respeito às fantasias vazias, o conflito que se
manifesta na clínica merece ser vislumbrado como uma tensão entre, de um lado,
os esforços analíticos do dispositivo analítico que visam a elaboração psíquica e,
de outro, alguns fantasmas ainda rebeldes ao processo de ligação (
Bindung
).
Desta maneira, verificamos que, frente às fantasias vazias, o trabalho
analítico deve tomar um rumo distinto do que é geralmente adotado no caso do
cenário fantasístico narrativo. Ou seja, ao invés de operar na desconstrução de um
discurso fantasmático, desatando suas ligações por intermédio do artifício da
interpretação, faz-se necessário, pelo contrário, abrir espaço para que estas
ligações psíquicas sejam erigidas. Conseqüentemente, o processo psicanalítico
promoveria, a partir das diversas fantasmatizações isoladas e petrificadas
peculiares, o advento de uma formação discursiva historicizada e organizada.
Trata
-se, em outros termos, de indicar que a questão crucial gira em torno da
produção, pela via da transferência, de determinados artifícios que viabilizem a
art
iculação dos fantasmas vazios numa trama complexa de significações.
No entanto, cabe assinalar que o artifício clínico que estamos tentando
circunscrever também em nada remete ao trabalho de construção. Ou seja,
conforme assinalamos acima
61
, a construção se reporta às fantasias tidas enquanto
cenas indizíveis. Tratar-
se
-ia, na construção, de incluir na esfera fantasística
61
Ver a terceira e a última seção do capítulo 1.
168
algumas tendências psíquicas que escapam ao discurso do sujeito. Quanto às
fantasias vazias, vimos que elas não necessitam ser construídas em análise, posto
que já se apresentam no discurso do sujeito.
4.2. A nomeação de fantasias
Assim, pressupondo a irredutibilidade dos fantasmas vazios aos artifícios da
interpretação e da construção, devemos partir para a circunscrição de outra
modalidad
e de intervenção que se justifique no tocante a este tipo de
fantasmatização. Este artifício que iremos delimitar assumiria, no tratamento, a
função de revitalizar a linguagem das fantasias vazias, resgatando, em seus
domínios, o potencial de significação
da palavra. Em outros termos, tratar-
se
-
ia de
um procedimento que, por promover a elaboração psíquica dos fantasmas
elementares, viabiliza à palavra se constituir como um elemento de uma rede de
significações permeadas por formações desejantes, deixando, portanto, de ficar
encerrada num sentido único.
Ao longo desta exposição, vimos que, pelo mecanismo da clivagem, os
fantasmas vazios se manifestam como inassimiláveis pelas demais produções
fantasísticas do sujeito, sem se deixarem por elas afetar. Deste modo, teríamos, na
dinâmica psíquica, de um lado, uma performática discursiva abundante permeada
por elementos imaginários e simbólicos que não faria síntese com uma outra
modalidade discursiva perfeitamente coerente e atada a determinados referenciais
disc
ursivos. Nesta perspectiva, o artifício clínico que vamos circunscrever deve
possibilitar a absorção dos fantasmas vazios pelos cenários fantasísticos narrativos
do sujeito instaurando, neste domínio fantasístico, uma produção desejante.
169
Assim, as fantasias vazias seriam progressivamente integradas ao restante das
construções discursivas do sujeito.
Com base nestes pressupostos, devemos analisar o artifício clínico
proposto por Kristeva (2002) referente à nomeação de fantasias pela via da
transferência. No entanto, antes de entrarmos nesta discussão, devemos ressaltar
que não veremos, mediante este exemplo, uma modalidade de intervenção que
fora aplicada ao que designamos de fantasias vazias. Trata-se, apenas, de um
artifício que, segundo a autora, incitou capacidade devaneativa de alguns sujeitos
que possuíam um discurso monocórdio, desafetado e que, igualmente,
funcionavam como limites aos esforços analíticos. Mesmo assim, julgamos
importante nos determos no exame deste artifício, na medida em que isto pod
erá
contribuir para uma reflexão acerca de como deve se constituir uma modalidade
clínica de intervenção frente aos fantasmas vazios.
Como exemplo de um caso clínico no qual o artifício referente à nomeação
de fantasias foi utilizado, podemos mencionar o caso de Didier (KRISTEVA,
2002), paciente cujo discurso fantasmático muito intrigava a analista. Tratava-
se,
segundo o relato, de um caso de inibição fantasística, como se o imaginário do
paciente estivesse em pane (p. 17). Com efeito, Didier empregava um d
iscurso
operatório e indiferente para discorrer sobre todas as suas vivências e atividades,
inclusive, a pintura.
Kristeva (2002) descreve que, ao longo do tratamento, ela se sentia como
simples testemunha de um discurso erudito e polido, proferido sempre em tom
monocórdio. Neste aspecto, a fala desafetada do paciente dava à analista a
sensação de que ele parecia ignorá-la. Feita uma intervenção, Didier sempre
170
respondia: Claro, é o que eu ia dizer, exato, foi o que pensei” (p.17) para, em
seguida, prosseguir em sua fala sem se deixar afetar pela analista. O discurso do
paciente, sempre bem elaborado, informado e tecnicamente cuidado era, ao
mesmo tempo, artificial, apático e sem naturalidade.
Deste modo, Kristeva (2002) destaca que era preciso encontrar, a partir da
transferência, um acesso aos devaneios, desejos, paixões e formações afetivas do
paciente. Assim, ela percebe que, através de suas pinturas, ele poderia exprimir
seus fantasmas de maneira distinta. No entanto, como mesmo o discurso do
paciente
sobre suas pinturas era muito técnico e especializado, de forma que a
analista não conseguia visualizá-los, a analista sugere que Didier traga fotos de
suas obras ao consultório e comente
-
as uma a uma.
As obras de arte de Didier eram misturas de colagens e pinturas.
Geralmente, representavam mulheres fraturadas e despedaçadas, mas sem que
estes pedaços fossem integrados numa figura única. Ao perceber o fato, a analista
interpela o relato do paciente, apontando que as pinturas vinham a simbolizar
algumas fantasias eminentemente sádicas. Nesta perspectiva, quando ela se põe a
expor todos os afetos e sentimentos que as pinturas evocavam nela própria, o
discurso do paciente passa a assumir uma outra faceta (KRISTEVA, 2002).
De
acordo com a passagem a seguir:
“Comecei a nomear as fantasias amortalhadas. (...) Estranha interpretação, se é que
o foi, cuja parte contratransferencial se percebe sem dificuldade. Eu transmitia a
Didier
minhas
fantasias, que seus quadros
me
evocavam. Contudo, por este
caminho, estabele
ceu
-se entre nós um contato imaginário e simbólico. Embora
achasse meu discurso ‘redutor’ e ‘simplista’, Didier começou a aceitar ou a
ratificar, a especificar, a rejeitar minhas interpretações de suas colagens.
171
Doravante, chegava a nomear por si próprio sua fantasmática, subjacente à sua
técnica gelada” (KRISTEVA, 2002, pp.27/28, grifo da autora).
Fica claro com isto que a analista se põe a transmitir suas próprias
fantasmatizações ao analisando para, em seguida, conceder-lhe a oportunidade de
aceitá
-
las
, completá-las ou, até mesmo, refutá-las. Fornecendo um nome aos
fantasmas de Didier, para depois abrir espaço para que ele coloque em dúvida
suas teorizações, Kristeva (2002) vai estabelecendo as bases de apoio necessárias
para o advento de um contato imaginário e simbólico com o paciente. Por
conseguinte, a partir desta reviravolta, o tratamento progride pouco a pouco. Em
decorrência da intervenção, algumas seções depois, o discurso pudico do paciente
é rompido e ele passa a relatar em detalhes suas fantasias sexuais masturbatórias.
O discurso de Didier vai se tornando, aos poucos, menos congelado e mais
afetado e, com isto, ele tem a oportunidade de elaborar fantasmaticamente
algumas de suas vivências, bem como alguns aspectos relacionados à sua família
e
à figura da analista.
A partir deste extrato clínico, constatamos que o artifício de nomeação,
pela via da transferência, dos fantasmas de Didier, permitiu ao paciente o
empreendimento do trabalho de elaboração psíquica de seu discurso elementar.
Segundo
Kristeva (2002), o recurso à “teorização flutuante” (p. 24) por parte do
analista, produz uma brecha num determinado discurso apático, permitindo que o
sujeito reencontre a palavra, onde se faz ressoar sua polifonia, sua dimensão
comutativa e sua afetação pelo desejo. Nesta medida, o discurso do sujeito vai,
aos poucos, se constituindo enquanto uma organização narrativa complexa,
expressiva e dinâmica, deixando de ser desvitalizado, desinvestido e monótono.
172
Em termos metapsicológicos, opera-se o processo de tradução de suas fantasias
outrora estratificadas numa trama complexa de significações tornando possível o
deslocamento de ordem metonímica por entre os meandros da trama discursiva.
Com base nesta discussão, devemos agora questionar acerca do fator q
ue
responde pelo artifício da nomeação de fantasias ter surtido tais efeitos na
dinâmica psíquica de Didier. Assim, teremos a oportunidade de analisar a função
desempenhada pelo enigma na prática clínica e circunscrever um importante
questionamento acerca da intervenção frente às fantasias vazias, dada sua
irredutibilidade aos esforços da interpretação e da construção.
4.3. Sobre a produção de enigmas
Retomemos o caso clínico do Pequeno Hans. Mediante a releitura do extrato
clínico, verificamos que, de início, o interesse do menino se dirigia para o enigma
concernente à diferença entre os sexos. Profundamente empenhado em suas
pesquisas sexuais infantis, Hans era constantemente atraído pelo tema dos
pipis
(pênis), acreditando na sua universalidade e manifestando o desejo constante de
ver o pênis da mãe, da babá ou de suas amigas. O quadro clínico da criança –
que,
até então não apresentava nenhuma patologia começa a se agravar a partir da
visão de sua irmã Hanna tomando banho. Assim, durante à noite ele é
despertado
por um sonho de angústia no qual a mãe ia embora, não podendo mais dormir
junto a ele. No dia seguinte, durante um passeio no parque com a babá, Hans
chora dizendo querer voltar para casa, a fim de ficar junto da mãe. Esta resolve,
então, levá-lo para passear e, quando retornam, ao lhe perguntar sobre o ocorrido
173
no parque, Hans retruca: “Eu estava com medo de que um cavalo me mordesse”.
Trata
-
se aí do surgimento de sua fobia a cavalos (FREUD, 1910a/1995).
Com base no relato do caso, Freud (1910a
/1995) levanta a hipótese de, por
esta época, a afeição de Hans pela mãe ter se tornado bastante intensa. Assim, ele
combina com o pai para que este lhe explicasse que sua fobia não passava de uma
bobagem; Hans realmente desejava que sua mãe o levasse para a cama, pois
gostava muito dela. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, também é
assinalada a suspeita de que a fobia a cavalos estaria, de alguma forma,
relacionada com o desejo do menino de ver o pênis da mãe. Deste modo, o pai
também é aconselhado a
esclarecer
-lhe sobre a diferença sexual. Hans reage a tais
observações construindo duas fantasias: a da mãe lhe mostrando o pênis e a de
que seu membro estava preso e jamais iria se soltar.
Alguns dias depois, observa-se que o esclarecimento do enigma a r
espeito
da diferença sexual promove o surgimento da fantasia da girafa grande e da girafa
amarrotada
62
. Quanto a esta fantasmatização, o pai de Hans declara que ela
consistia na reprodução de uma cena ocorrida todas as manhãs: a criança entrava
no quarto dos pais e a mãe apesar das admoestações do pai não resistia e
deixava o menino dormir com eles. Deste modo, o pai conclui que
“Essa, portanto, é a solução dessa cena matrimonial, transportada para a vida da
girafa: à noite, ele fora arrebatado por uma ânsia de ter sua mãe, suas carícias, seu
órgão genital, e por essa razão veio para nosso quarto. Tudo isso é continuação de
seu medo a cavalos” (FREUD, 1910a/1995, p. 43).
62
Vale lembrar que esta fantasia foi minuciosamente abordada na segunda seção do capítulo 2.
Ver páginas 76
-
77.
174
Assim, com base na releitura do caso, verificamos o quão apressadas são
as conclusões tiradas por Freud ou pelo pai da criança. Com efeito, o fato da
criança sempre querer dormir com os pais não implica necessariamente que ele
almeje se deitar com a mãe e afastar o pai dela, como pretendiam as interpretações
edipianas. Neste contexto, a própria fantasia das girafas pode ser relida como a
simples reprodução da cena de briga familiar ocorrida pelas manhãs, mas sem que
aí se acrescente o colorido sexual proposto por Freud (1910a/1995): o pai, de fato,
brigava com a mãe quando esta cedia aos apelos de Hans e, nesta medida, a cena
das girafas pode ser considerada como uma transposição, para a esfera
fantasmática, da satisfação pelo triunfo por ele obtido sobre as resistências do pai.
Alguns dias depois, Hans vai se encontrar com Freud e, a caminho da
consulta, a cena do cavalo com o preto ao redor da boca é mencionada pela
primeira vez. Freud, a guisa de brincadeira, relaciona o estranho objeto preto com
o bigode do pai
63
e, em seguida, comunica ao menino que “bem antes dele nascer
(...), já sa
bia que ia chegar um Pequeno Hans que iria gostar tanto de sua mãe que,
por causa disso, não deixaria de sentir medo de seu pai” (FREUD, 1910a/1995, p.
45). Portanto, devemos destacar que a fobia de Hans assumiu uma expressão
eminentemente edipiana somente a partir das constantes interpretações de seu pai
ou do próprio Freud
64
. Igualmente, supomos ter sido o constante remetimento do
objeto preto na boca do cavalo ao bigode do pai, o que possibilitou a integração
do fantasma vazio de Hans aos seus cenários fantasísticos narrativos. Assim,
63
A transcrição da consulta de Hans com Freud já foi exposta no primeiro capítulo. Ver página 45.
64
A partir de uma releitura atenta do caso, constatamos que não havia nenhuma indicação que
possa vir a justificar a interpretação edipiana para a fobia de Hans. Ou sejam o colorido edipiano
para as formações discursivas da criança era sempre fornecido por Freud ou por seu pai, mas
nunca pelo menino.
175
vejamos, em linhas gerais, como se deu o desfecho do caso a partir do encontro
com Freud e de sua leitura edipiana para a fobia do menino.
No encontro com Freud, ele afirmou que o medo de cavalos consistia
numa formação de compromisso entre três tendências: de um lado, a expressão de
seus impulsos hostis dirigidos ao pai; de outro, a manifestação da necessidade de
ser punido por causa do desejo de infligir-lhe mal; ao mesmo tempo, encontrava-
se também na fobia a cavalos os ecos de uma afeição exagerada orientada para a
mesma figura paterna. Com efeito, alguns extratos clínicos m a confirmar a
hipótese de que a criança aceitara as interpretações freudianas e, a partir disto,
empreendera um longo trabalho de elaboração psíquic
a de seus fantasmas fóbicos.
Por exemplo, dois dias depois da consulta, quando o pai se levanta da mesa para ir
trabalhar, Hans lhe implora: “Papai, não se afaste de mim nesse trote!” (FREUD,
1910a/1995, p. 47). Do mesmo modo, após a cena na qual o pai lhe assegura não
estar aborrecido por causa de sua afeição à mãe, o menino retruca: “Nem todos os
cavalos brancos mordem” (p. 48).
A cena anestesiada aparece pela segunda vez no dia seguinte, e o pai
novamente afirma que o objeto preto simbolizava um bigode, ao que Hans
responde negativamente
65
. A história clínica prossegue com a observação de que,
por vários dias, ao brincar de ser ele próprio um cavalo, Hans vinha correndo até o
pai, mordendo-o. Desta maneira, Freud (1910a/1995) ressalta que este fato
implic
ava na aceitação de suas interpretações por parte do menino.
65
A descrição desta conversa também já foi exp
osta no primeiro capítulo. Ver páginas 45
-
46.
176
Alguns dias depois, o pai de Hans tenta, novamente sem sucesso,
convencer a criança de que o objeto preto ao redor da boca dos cavalos
simbolizava seu bigode:
“Fui com Hans até a frente da casa, à tarde. Ao passar algum cavalo eu lhe
perguntava se ele via ‘o preto na boca do animal’; ele sempre dizia que ‘não’.
Perguntei
-lhe com que se parecia de fato esse preto e ele respondeu que parecia
com um ferro preto. Portanto, não se confirmou a minha primeira idéia de que de
fato era a correia de couro que faz parte dos arreios nos cavalos de tração.
Indaguei
-lhe se ‘a coisa preta’ lhe lembrava um bigode, e ele disse: ‘Só pela cor’.
De modo que ainda não sei o que realmente vem a ser” (FREUD, 1910a/1995, p.
54).
No dia seguinte, é empreendida uma nova tentativa de saber a que se
reportava o estranho objeto preto e Hans afirma que ele se parece com um
focinho. Mais uma vez, sem sucesso, o pai faz aludir o objeto em questão a um
bigode e, dois dias depoi
s, o menino reage a tais observações da seguinte forma:
“Nesta manhã, Hans veio ver
-me, enquanto eu me lavava e estava nu até a cintura.
Hans
: ‘Papai, você é lindo! Você é tão branco’.
Eu
: ‘Sim. Como um cavalo branco’.
Hans
: ‘A única coisa preta é o seu bigode’. (continuando:) ‘Ou talvez seja um
focinho preto?’”
(FREUD, 1910a/1995, pp. 54
-
55, grifo do autor).
Assim, de acordo com a passagem acima, destacamos que, finalmente, as
intervenções do pai surtiram efeito na dinâmica psíquica da criança.
Surpreen
dentemente, após o ocorrido, o estranho objeto preto não reapareceu em
suas fantasmatizações.
177
Trata
-se, portanto, de afirmar que as constantes leituras edipianas
possibilitaram a integração do fantasma neutralizado de Hans numa trama
fantasística narrativa. Em outros termos, mediante tais intervenções, os devaneios
da criança passaram a incluir, em seus domínios, a cena anestesiada do cavalo
com o preto ao redor da boca, fazendo com que, a partir deste momento, o objeto
em questão passasse a se reportar ao
bigode do pai.
Neste caso, constatamos que, não apenas as produções fantasísticas
edipianas da criança foram inseparáveis das intervenções diretas ou indiretas de
Freud; mas também, após estas fantasias edipianas terem sido instauradas na
dinâmica psíquica de Hans, elas próprias passaram a envolver o fantasma
neutralizado da criança. Deste modo, o processo de assimilação da fantasia
anestesiada no campo devaneativo da criança desfez a clivagem psíquica e o
anacronismo fantasmático presente, até então, em seu discurso. Com base nestes
pressupostos, consideramos que, para além das controvérsias que giram em torno
das intervenções de Freud, estas assumiram um papel crucial no tratamento de
Hans, pois funcionaram como uma fonte de estimulação constante para o
trabalho
de elaboração psíquica da criança. Segundo Lacan (1956
-
1957):
“a criação imaginativa de Hans vai sempre se desenvolvendo à medida das
intervenções do pai, as quais, mesmo sendo mais ou menos hábeis ou canhestras,
são orientadas suficientemente bem para não fazer calar, mas, ao contrário,
estimular até o fim a série de suas produções” (LACAN, 1956
-
1957/1995, p. 291).
Retomemos portanto, a guisa de conclusão, nossos questionamentos acerca
do fator que responde pelo êxito destas intervenções no trabalho de assimilação e
elaboração psíquica dos fantasmas vazios. Para tal, devemos trazer para o domínio
178
clínico a análise metapsicológica acima empreendida
66
acerca da vertente mítica
da atividade fantasmática.
Assim, consideramos que a produção de um determinado enigma ou
questionamento no tratamento pode funcionar como um importante estímulo que
incite a produção fantasística de cunho narrativo. Neste sentido, com base no
procedimento clínico em questão, devemos perguntar: o que fizeram Freud e o pai
do Pequeno Hans, ao constantemente remeterem a cena anestesiada aos desejos
edipianos, senão produzirem um enigma no tratamento?
Com efeito, é lícito conjeturar que mediante o empreendimento desta
leitura edipiana para a fantasia do cavalo com o objeto preto ao redor da boca,
Hans pôde experimentar um certo sentimento de estranheza. Do mesmo modo,
Didier não deve ter deixado de vivenciar o mesmo afeto face à fantasmatização
que lhe fora comunicada
67
. Assim, com a emergência do enigma e,
conseqüentemente, frente aos afetos de estranheza despontados em tais situações,
o sujeito em análise tem de lançar mão da produção de certos circuitos
fantasmáticos na tentativa de simbolizar o que se vincula ao campo do
enigmático. Deste modo, ao abrir espaço para que o paciente se defronte com algo
da ordem da surpresa, fornecendo, em seguida, os subsídios necessários para que
ele possa ascender a uma compreensão de tal experiência, o psicanalista pode ter
em mãos um importante recurso que auxilie no tratamento das fantasias va
zias.
66
Ver terceira seção do capítulo precedente.
67
Convém lembrar novamente que, no extrato clínico de Didier, não vislumbramos exatamente
aquilo que designamos de fantasias vazias, mas um discurso no qual se ausentavam as produções
devaneativas. No entanto, este caso clínico está nos servindo como exemplo na medida em que
demonstra, tal como o caso do Pequeno Hans, a função desempenhada pelo enigma para a
produção de um cenário fantasístico narrativo.
179
No entanto, seria bastante reducionista circunscrever a questão apenas sob
este prisma. Trata-se também de assinalar que o trabalho de produção de enigmas
deve necessariamente ser perpassado pela ordem do engano ou da dúvida, de
modo que o sujeito em análise possa se engajar numa problematização do que lhe
foi comunicado, seja pela via da aceitação, da reação ou mesmo da resistência. No
caso de Didier (KRISTEVA, 2002), este teve realmente a possibilidade de
retificar as fantasias transmitidas pela an
alista. Também no caso do Pequeno Hans
(FREUD, 1910a/1995), tal possibilidade pode ser evidenciada em sua fala irônica,
durante a conversa com o pai, na saída do consultório de Freud: “O Professor
conversa com Deus? Parece que já sabe de tudo, de antemão!”
(p. 45).
Consideramos, portanto, que o artifício de produzir enigmas pode vir a
aguçar a capacidade criativa do sujeito, promovendo o acionamento da trama
complexa de significações. Se relacionarmos este artifício com a discussão
metapsicológica a respeito do trabalho de introjeção
68
, destacamos que, com isto,
o sujeito introjetaria o sentido da palavra que lhe é transmitida, sendo este
trabalho viável pelo fato da fala do outro comportar algumas variáveis
enigmáticas. Caso contrário, se a nomeação do outro fosse perfeitamente clara, a
introjeção encontraria um sério obstáculo a sua frente
69
.
Assim, mediante a manifestação do enigma no discurso do outro e,
conseqüentemente, a partir do advento do trabalho de introjeção do sentido deste
discurso, promove-se o trabalho de captura e assimilação dos fantasmas vazios
pelos cenários desejantes do sujeito. Desta forma, conforme o assinalado nos
casos clínicos acima discutidos, o sujeito em análise encontra a oportunidade de
68
Conforme a
discussão do capítulo anterior.
69
Ver citação de Pinheiro (1995) nas páginas 120
-
121.
180
criar uma realidade fantasmática própria, onde se faz ressoar suas formações
desejantes. De acordo com a passagem a seguir:
“A produção da fantasia, cerne do que institui a realidade psíquica, tem sua origem
no impulso desejante, ou seja, o desejo deve ser entendido como fonte da fantasia,
e é somente a partir da construção da fantasia que se institui o desejo como busca.
(...) Nessa configuração, a importância dada ao caráter impulsivo [do desejo]
confere relevo ao próprio ato de criação da fantasia, passando a ser valorizado
como possibilidade de produzir uma multiplicidade de modos de investimento, em
permanente devir” (HERZOG, 2003, p. 38).
Nesta medida, ao possibilitar o advento do desejo onde ele, até então, não se
fazia sentir, uma nova realidade fantasística é construída pelo sujeito em an
álise.
Desta maneira, o processo analítico se livraria da busca interminável de tentar
alcançar uma verdade própria ao sujeito, para produzi-la a partir de seu discurso
anestesiado. Claro está que esta nova cena fantasmática pode assumir um colorido
edipia
no, tal como foi demonstrado a respeito do caso de Hans; mas também, em
conformidade com a citação acima, devem ser considerados os múltiplos e
infinitos sentidos que podem adquirir estes cenários narrativos. Com base nestes
pressupostos, o espaço analítico passa a ser visto como um lugar de criação, onde
se produziria o novo, retirando o paciente de uma recorrente estagnação
discursiva.
Por fim, vale assinalar que, com esta discussão, não pretendemos atribuir
aos artifícios clínicos apresentados no caso Didier (KRISTEVA, 2002) e no caso
do Pequeno Hans (FREUD, 1910a/1995) o estatuto de técnicas privilegiadas ou
modelares para o tratamento dos fantasmas vazios. Pelo contrário, consideramos
que muitas outras artimanhas analíticas possam ser eficazes, desde que cumpram
181
seu papel de trazer, para a cena clínica, uma variável enigmática que, assim, seja
confrontada com uma discursividade fantasística perfeitamente clara e unívoca.
Deste modo, estes outros artifícios também proporcionariam a delimitação deste
ponto
de ancoragem necessário ao empreendimento do trabalho de criação
fantasmática.
182
Considerações finais
A discussão empreendida acerca da irredutibilidade dos fantasmas vazios à
interpretação serviu para demonstrar que a
psicanálise não deve se constituir como
um saber acabado. Com efeito, as fantasias vazias são por nós vistas como um dos
múltiplos exemplos que podem vir a colocar em cheque o dispositivo clínico da
psicanálise, se pensado unicamente em seus moldes tradicionais. Nesta
perspectiva, devemos destacar ser imprescindível ao psicanalista escutar a
singularidade do discurso de cada um de seus pacientes para que, assim, se
descubra outros modos de manifestação dos processos psíquicos, para além dos
muitos que foram estudados pelo pensamento freudiano. Ao agir desta maneira,
estaremos seguindo as conhecidas recomendações de Freud, para quem a
psicanálise se configura como um saber em permanente transformação, sendo
estas indissociáveis dos impasses com os quais
nos defrontamos em nossa prática.
Neste contexto, através do estudo sobre as fantasias vazias, revelamos o
quanto devem ser necessariamente repensadas algumas tendências bastante
operantes no pensamento psicanalítico. Em primeiro lugar, conforme a discus
são
empreendida no segundo capítulo, os fantasmas vazios nos mostram que nem
tudo, no campo discursivo, deve ser reduzido ao domínio significante. De fato,
vimos que os elementos presentes nas fantasias vazias se comportam, na fala do
sujeito, como o que denominamos de referenciais discursivos. Estes seriam
situados num plano diverso daquele do significante na medida em que reenviam a
um significado já dado e passam à margem da atuação dos trabalhos da metáfora e
da metonímia. Do mesmo modo, de acordo com a análise feita no terceiro
capítulo, a questão da emergência dos fantasmas vazios vem indicar que o
183
recalque não responderia pela totalidade dos fenômenos psíquicos manifestos nas
neuroses. Nesta medida, vimos ser o mecanismo da clivagem o responsável pelo
anacronismo fantasístico em jogo na tese. Ou seja, apesar de o recalque servir
como base para o dinamismo próprio ao cenário fantasístico narrativo do sujeito,
depreendemos, a partir de um redimensionamento das elaborações teóricas de
Ferenczi, Abraham e Torok, que as fantasias vazias encontram seus alicerces
metapsicológicos num processo psíquico de outra ordem. Por fim, mediante a
discussão do último capítulo, demonstramos a necessidade de se repensar o fato
de que a interpretação e a construção são os únicos artifícios que o analista pode
utilizar. De fato, conforme assinalamos, os fantasmas vazios vêm denunciar os
limites destes modelos clínicos tradicionais. Ao mesmo tempo, destacamos ser
imprescindível a criação de outras modalidades de intervenção para as tendências
psíquicas frente às quais a interpretação e a construção, de certo modo, vacilam.
São, portanto, estes os fatores que respondem pela importância da presente
pesquisa. Vale apenas ressaltar que não pretendemos, com este estudo, esgotar o
tema das fantasias vazias, de forma que todas as conclusões por nós circunscritas
não possuem um caráter definitivo, funcionando como pontos de ancoragem para
futuras discussões.
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