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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Famílias do ramo de rede:
tecelagem, negócio e viagem no sertão da Paraíba e
do Rio Grande do Norte
Elisa Ribeiro Alvares da Cunha
2006
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Famílias do ramo de rede:
tecelagem, negócio e viagem no sertão da Paraíba e
do Rio Grande do Norte
Elisa Ribeiro Alvares da Cunha
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional,
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de
mestre em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Moacir Gracindo
Soares Palmeira
Rio de Janeiro
Agosto de 2006
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Famílias do ramo de rede:
tecelagem, negócio e viagem no sertão da Paraíba e
do Rio Grande do Norte
Elisa Ribeiro Alvares da Cunha
Orientador: Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre
em Antropologia Social.
Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2006
________________________________________
Prof. Dr. Moacir Palmeira, (PPGAS/MN/UFRJ)
_________________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes (PPGAS/MN/UFRJ)
_________________________________________
Prof. Dr. Helion Póvoa Neto (IGEO/UERJ)
__________________________________________
Prof. Dr. Fernando Rabossi (PPGAS/MN/UFRJ - suplente)
__________________________________________
Prof. ª Drª Beatriz Heredia (IFCS/UFRJ - suplente)
4
RESUMO
CUNHA, Elisa Ribeiro Alvares da. Famílias do ramo de rede: tecelagem, negócio
e viagem no sertão da Paraíba e Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro, 2006.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Este trabalho analisa as famílias envolvidas na produção e no comércio de
redes de dormir, entre outros produtos têxteis, e que têm sua origem no sertão
paraibano e potiguar. A partir de pesquisas de campo naquela região e no Rio de
Janeiro, com maior ênfase na área produtora, buscou-se identificar os modos
como as famílias organizam sua experiência econômica, distribuindo-se em
diferentes atividades associadas às tecelagens, à confecção de acabamentos, às
vendas como ambulantes, ao transporte de mercadorias e ao estabelecimento de
depósitos e de lojas em outros estados Brasil.
ABSTRACT
The aim of this work is the analysis of families, from Paraíba’s sertão and Rio
Grande do Norte’s sertão, envolved in production and trading of hammock and
other textiles products. Based on fieldwork in those areas and in the city of Rio de
Janeiro, we have tried to identify the economic experience of those families and
the way their production are organized, from the producing of hammock, including
the trade made by peddler, to storage and stores in other estates of Brasil.
5
À minha mãe.
6
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Moacir Palmeira, meu orientador, pelo inestimável apoio durante a
formação no mestrado.
Ao Sebastião Menezes, o Tião, e Adalberto Oliveira (IICA), ao pessoal do
SEBRAE e ao seu Jupinha, presidente do STR de Jardim de Piranhas, por terem
me proporcionado uma boa “entrada” no campo.
Ao Zé, pela agradável companhia e pelas incursões aos sítios em sua moto.
Á Aparecida, pela inacreditável hospitalidade em Jardim de Piranhas.
E, por fim, a todos os envolvidos no ramo de rede que participaram desta
pesquisa.
7
SUMÁRIO
Introdução …………………………………………………………… p. 8
Capítulo 1 – O ramo de rede ....................................................... p. 26
A Feira da Pedra ..................................................... p. 43
Capítulo 2 – As famílias do ramo de rede ................................... p. 53
Zé do Crediário ....................................................... p. 54
Geraldo .................................................................. p. 60
D. Alice .................................................................. p. 61
Mariano ................................................................. p. 63
Luciano .................................................................. p.64
Família Nunes Rocha ............................................ p. 68
Alba de Leandro .................................................... p. 72
Ricardo .................................................................. p. 80
João ....................................................................... p. 82
Solange .................................................................. p.84
Capítulo 3 – Negócio e viagem ................................................... p. 86
Conclusão ................................................................................... p. 104
Referências bibliográficas ........................................................... p. 109
8
Introdução
O ramo de rede compreende um grupo de produtores e vendedores cuja
origem aproximadamente se circunscreve aos municípios de São Bento, Brejo do
Cruz, Paulista, Patos, Pombal, Catolé do Rocha e Vista Serrana, na Paraíba;
Jardim de Piranhas, Serra Negra e Caicó, no Rio Grande do Norte. Todos estes
municípios se localizam no Sertão nordestino, mais especificamente nas micro-
regiões, conforme a divisão do IBGE, de Catolé do Rocha (PB) e do Seridó
Ocidental (RN).
A produção de redes de dormir esassociada à presença da cultura do
algodão realizada nas fazendas e tornou-se uma das atividades econômicas mais
importantes naquela área desde a década de 1960. Atualmente as tecelagens
diversificam a produção, fazendo mantas, panos de prato, bonés, tapetes, roupas
de cama e de mesa, entre outros produtos têxteis de menor destaque. Ainda
assim, de tal modo as redes são predominantes, que se observa na entrada da
cidade de São Bento uma placa com os dizeres “São Bento – a capital das redes”.
São Bento (PB) e Jardim de Piranhas (RN) são municípios limítrofes entre
a Paraíba e o Rio Grande do Norte e concentram a maior parte das tecelagens,
sobressaindo-se São Bento, que de certo modo polariza o ramo de rede. Os
demais municípios estão articulados a este pólo através da participação da
população na confecção de acabamentos das redes e no processo de
comercialização. A despeito da maioria das tecelagens localizarem-se na área
urbana destes dois municípios, todas estas atividades tecelagem, confecção de
9
acabamentos e comercialização distribuem-se tanto pelas áreas urbanas quanto
pelas áreas rurais, isto é, na rua e no Sítio
1
.
Caicó, Catolé do Rocha, Patos e Pombal foram incluídos nesta delimitação
geográfica e, embora tenham um papel periférico no ramo de rede, são centros
regionais com comércio mais variado e com maior diversificação de serviços
(escolas, hospitais, bancos). Caicó, Patos e Pombal são os municípios que
interligam os demais ao restante do território nacional, sendo que Pombal e Patos
situam-se na BR 230, que cruza o estado da Paraíba do litoral até a divisa com o
Ceará.
A primeira vez que estive em São Bento ocorreu no ano de 2002, quando
se aproximava o período de conclusão da minha graduação em Geografia e
estava buscando um tema de pesquisa para a monografia. Em julho daquele ano
iria a um Encontro Nacional de Geógrafos, em João Pessoa. Pouco antes da
minha ida, surgira a idéia de pesquisar os vendedores ambulantes de redes que
via circular pelos bairros e praias do Rio de Janeiro. Uma notícia na internet e um
vendedor no bairro onde moro foram as primeiras referências sobre a cidade, que
me fizeram aproveitar a oportunidade de estar na Paraíba e fazer uma primeira
exploração.
Visitei algumas tecelagens e a Feira da Pedra, que acontece às segundas
feiras na cidade. Desde essa época fiquei intrigada com a impressionante
diversidade dos produtores. Tecelagens de todos os tamanhos, pessoas que
confeccionavam os acabamentos e uma trama ainda mais complexa para os
1
Rua se refere à cidade, a palavra sítio tem dois sentidos nas áreas rurais do Nordeste. Por
convenção, usa-se Sítio (com “S” masculo) quando o termo é empregado para designar a
10
sistemas de comercialização, que levava os vendedores ambulantes a todas as
regiões do Brasil e até à Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia.
11
imagem da rede como um artigo artesanal, fica difícil não tomar tais evidências
como indícios das transformações provocadas pelas relações capitalistas e que
tornaram a produção artesanal de redes uma produção fabril. Sem dúvida, somos
levados a compreender uma gama de outras relações de trabalho, comerciais,
espaciais – do modo mais coerente possível com essa história.
Claudio Egler realizou uma pesquisa em São Bento, em 1984. Naquela
época, havia ainda muitas tecelagens com teares de pau (Foto 1), o que imprimia
à paisagem um sentido ainda maior de evolução, de mudança, pois podia-se
observar diretamente a tendência dos teares de pau serem substituídos pelos
elétricos; das unidades de trabalho familiar, tornarem-se unidades de trabalho
assalariado e especializado. Paisagem ainda mais propícia às explicações que se
baseiam na teoria da transformação do artesanato em manufatura, tal qual Marx
formulou:
Em São Bento diferentes combinações deste processo de trabalho
podem ser observadas, desde o artesanato até a fábrica
mecanizada, embora formem um entrelaçado difícil de se distinguir
exatamente onde começa um e acaba o outro, representando de
maneira exemplar uma fase peculiar do desenvolvimento do
capitalismo: a manufatura doméstica. (Egler, 1984, p.64)
As combinações dos processos de trabalho se referem ao modo como as
etapas de confecção das redes podem associar as fábricas (tecelagens
mecanizadas) às manufaturas (tecelagens que ainda exigem a habilidade manual)
e às “feiteiras” (mulheres que fazem os acabamentos das redes nos sítios), ou
combinam as fábricas e manufaturas com os “artesãos” na cidade (Egler, 1984). E
12
ainda, de arranjos entre, de um lado, o trabalho de tipo fabril e especializado
como urdidores e tecelões – e de, outro, o trabalho familiar.
Foto 1
Outra pesquisa encontrada sobre a produção de redes-de-dormir em São
Bento foi a monografia de graduação de Galba Suassuna Figuerêdo (1995), que
procurava dar indicações mais precisas sobre a “evolução histórica” da produção,
provavelmente baseando-se no texto: “São Bento – Estudo sobre a manufatura de
redes-de-dormir”, de José Bolivar V. da Rocha (apud Figuerêdo, 1995). Alguns
elementos expostos remontam a um tempo mais antigo em que eram as mulheres
quem fazia as redes em teares de origem indígena, fato anteriormente exaltado
por Cascudo (2003 [1957])
2
.
Segundo a autora, teria sido a introdução do fio industrializado na década
de 1930 por comerciantes locais que estimularia os homens a produzir também,
13
assim como surgiria o “tear de batelão” ou “tear de um pano”
3
e, com ele, a
consolidação da divisão do trabalho na família: homens urdindo, alvejando,
tingindo, tecendo; mulheres fazendo os acabamentos. Na década de 1950, os
comerciantes passariam a adquirir os teares e a produzir através de uma relação
chamada de “trabalho por negócio” (Figueredo, 1995, p.41) o comerciante
fornecia fios e tintas e ficava com uma porcentagem das redes produzidas, na
tecelagem pelos homens, e em casa pelas mulheres. Este sistema proporcionaria
maior capitalização por parte dos comerciantes, concomitante ao aumento da
produção, o que levaria ao surgimento das “viagens para revenda em outros
estados” (Figueredo, 1995, p.41). Por fim, em 1958 surgiria a primeira
“manufatura” com trabalhadores assalariados.
Aqui, o esforço de apresentar o desenvolvimento das forças produtivas e
das relações de produção na “indústria das redes de São Bento” não aparece
apenas como exercício lógico, mas como possibilidade histórica. E o
encadeamento dos fatos que vão da crise da cultura algodoeira à ascensão da
indústria têxtil nos revelaria os traços fundamentais daquela paisagem, marcada
pelos momentos em que as transformações da estrutura produtiva engendram o
aperfeiçoamento do espaço urbano.
Na análise de Egler não faltaram as relações entre produção e
comercialização. Os mesmos dois aspectos são ressaltados sobre as categorias
2
Um maior contraste em relação à produção fabril e espacialmente especializada aparece nesta
passagem: “quem viveu no sertão do nordeste até 1910 sabe perfeitamente que rara seria a
fazenda onde a rede fosse objeto de compra (...)” (Cascudo, 2003, p.25).
3
A denominação “tear de um pano” se deve ao contraste com os antigos teares que faziam o pano
da rede com um terço do comprimento, precisando ser emendadas as três partes depois.
14
sociais que ele encontrou durante a fase de comercialização: a presença dos
“fornecedores de fios” e dos “viajantes”:
O controle do fornecimento do fio nas quantidades necessárias à
pequena produção doméstica permite ao atacadista montar uma
rede de artesãos sobre (sic) seu controle, fornecendo fios ou o
pano
4
e recebendo o pagamento em produto acabado (...) (Egler,
1984, p.68).
O “viajante” existe quando a produção não é comprada
diretamente na porta da manufatura, é o proprietário do caminhão,
sua função é levar o produto a grandes distâncias (Maranhão,
Pará, Acre, Goiás, um caso extremo como foi contado por um
entrevistado até a Bolívia) onde se encarrega da comercialização.
Ele é em si um resultado da produção em maior escala, portanto
nasce da necessidade do proprietário da manufatura de vender
seu produto, mas atua sobre o pequeno produtor artesanal,
levando suas redes em consignação e chegando mesmo a
encomendá-las aos artesãos (...) (Egler, 1984, p.68-69)
A introdução do processo de comercialização no esquema coloca o
comerciante em duas posições distintas: de um lado, o fornecedor de fios que
domina os produtores, de outro, o “viajante”, que é retratado como “resultado da
produção em maior escala”, da “necessidade do proprietário da manufatura” e,
ainda alhures, “é o ‘viajante’ de um modo ou de outro subordinado ao produtor
manufatureiro e que ao mesmo tempo controla o pequeno produtor artesanal".
Em ambos os trabalhos verifica-se que as categorias sociais são
construídas a partir de uma lógica evolutiva, partindo da transformação do
artesanato em manufatura, e desta em indústria, e da transição do comerciante
controlando a manufatura para a indústria dominando o comércio e os outros
produtores, desde o momento em que a introdução dos teares mecânicos teria
4
Os fornecedores de fios se tornam também fornecedores de tecidos “importados diretamente das
tecelagens de São Paulo e Santa Catarina” (Egler, 1984, p.68)
15
provocado o incremento da produção. A mesma lógica seria responsável pela
transformação das relações entre cidade e campo na região, pois o seu
desenvolvimento seria possível na medida em que correspondesse à
complementaridade entre liberação do trabalho no campo e necessidade de força
16
utilizar, em certos setores, técnicas rudimentares da produção de
bens (Araújo, 1996, p.47).
Uma leitura menos linear, tal como aparece na argumentação de Araújo,
baseando-se em Canclini (1983), vai considerar essas atividades “rudimentares”
como a própria forma de realização do capitalismo, servindo freqüentemente como
alternativa de inserção do campesinato a fim de evitar sua completa proletarização
(Araújo, 1996, p.51). Sobre este aspecto, ao se apoiar em Canclini, Araújo destaca
o desenvolvimento do “artesanato” através do interesse do Estado em evitar o
êxodo rural quando as cidades não conseguem mais absorver a força de trabalho.
Em outras circunstâncias, conforme assinalado na citação acima, o fato se devia à
própria inviabilidade do capital. Ambas interpretações negligenciam possíveis
estratégias sustentadas pelos próprios camponeses.
A proposta de análise que apresento nesta dissertação de mestrado em
grande parte está inspirada na leitura de “O Sul: o caminho do roçado”. A obra de
Afrânio Raul Garcia Jr. foi fundamental para que pudesse perceber que as
relações capitalistas não precisam ser compreendidas numa narrativa evolutiva
que sempre implica na transformação de relações pré-capitalistas ou arcaicas em
capitalistas e, consequentemente, na transmutação de camponeses/artesãos em
assalariados ou empresários. Mais precisamente ela forneceu argumentos para
analisar o contexto social em questão sem precisar antecipar a finalidade dos
acontecimentos históricos e sem precisar tomar tais categorias camponeses,
artesãos, assalariados, empresários – como entidades homogêneas e nitidamente
distinguíveis umas das outras.
17
Esses argumentos não se referem apenas a um outro tipo de concepção
metodológica, mas às formulações específicas sobre os agricultores do Brejo e
Agreste da Paraíba, pesquisados na década de 1970 por Garcia Jr. Eles se
valeriam do negócio nas feiras para permitir, simultaneamente, o uso da força de
trabalho externa ao grupo doméstico nas tarefas do roçado e a ida para o Sul com
o intuito de trabalhar na construção civil. As combinações entre agricultura, criação
e negócio e seus desdobramentos o uso do alugado
5
e o assalariamento no Sul
teriam o importante papel de garantir a condição de liberto, isto é, de não estar
sob a condição de sujeito ou morador, submissos ao poder dos senhores de
engenho, usineiros e fazendeiros.
Para o autor, se o desenvolvimento das relações capitalistas vinham
provocando a decadência da dominação tradicional no Brasil, elas não se
traduziam necessariamente na aniquilação concomitante do campesinato. Ao
contrário, estariam contribuindo até para a sua ampliação. Os camponeses
poderiam se apropriar das relações capitalistas não apenas para escapar da
dominação, como também para evitar a submissão completa às oscilações do
mercado. Isto porque, ao combinarem a produção do roçado com o negócio nas
feiras, eles podiam contornar a variação dos preços, optando pela venda ou pelo
consumo direto. Não que o negócio nas feiras fosse feito com a própria produção,
mas porque ele era uma fonte de renda constante que poderia ser usada para
reinvestir na agricultura, caso fosse mais válido consumir em casa os produtos da
lavoura do que vendê-los, ou caso a safra tivesse sido ruim.
5
Alugado se refere ao trabalhado, geralmente pela diária, em fazendas ou sítios.
18
A compra da força de trabalho ao mesmo tempo em que era possibilitada
pelo negócio, era importante para a realização do negócio, pois liberava o trabalho
do produtor para que pudesse fazer o circuito de feiras. Podia também servir para
liberar o seu trabalho ou de seu filho a fim de que fossem vender suas respectivas
forças de trabalho no Sul, o que, por sua vez, significava a possibilidade de
reinvestir o dinheiro obtido com os salários no negócio, na compra de gado ou de
terra. A ampliação do patrimônio que essas ações asseguravam cumpria um papel
essencial na reprodução social da família, pois era necessária para os momentos
de divisão do grupo doméstico e formação de novos grupos domésticos nos
períodos de casamento dos filhos.
O que estas considerações principalmente têm a acrescentar é que o uso
de certas categorias tende a nos levar a interpretações que encerram as práticas
dos indivíduos concretos naquilo que tais categorias previamente têm a
caracterizar. Trocando em miúdos, do mesmo modo que o contexto retratado por
Garcia Jr. poderia levar à interpretação de que o desenvolvimento das relações
capitalistas no Brasil provocaria a decadência tanto da dominação tradicional
quanto do campesinato e que os camponeses tenderiam a se proletarizar ao
migrar para as cidades e vender sua força de trabalho, ou se transformar em
empresários capitalistas ao comprar a força de trabalho, quando enfocamos o
dono de uma tecelagem que contrata operários, se na análise isto supõe
imediatamente que ele é um empresário, corremos o risco de descartar dados
importantes, como o fato de que ele também é dono de um sítio e que sua família
está envolvida tanto no trabalho da tecelagem, quanto no trabalho do roçado.
Estas considerações permitem construir um quadro social e espacial muito mais
19
complexo, pois elas elucidam relações mais intrínsecas no que supostamente está
dividido entre cidade e campo, agrícola e industrial e até nas articulações entre
diferentes estados, regiões, etc.
As reflexões acima foram me levando a reconstruir os dados obtidos no
primeiro trabalho de campo e a tentar confrontá-los com as indicações fornecidas
pelo contato com estudos sobre pequenos produtores rurais no Nordeste. Além
disso, pesquisas de campo foram sendo feitas durante minha formação no
mestrado aqui no Rio de Janeiro.
Neste ano de 2006, surgiu uma nova oportunidade de retornar àquela
região entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Coincidentemente, esta
oportunidade foi precedida por um encontro, o Seminário de Memória Camponesa,
que propiciou o importante contato com Sebastião Francisco de Menezes, ex-
assessor da Federação dos Trabalhadores Agrícolas do Rio Grande do Norte
(FETARN) e com Adalberto Cabral de Oliveira, ambos vinculados ao Instituto
Interamericano de Cooperação para Agricultura (IICA). Por intermédio deles
conheci seu Jupinha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em
Jardim de Piranhas, e Aparecida, funcionária do sindicato que me deu abrigo e
uma “vizinhança”.
Três “entradas” marcaram este campo: uma através do apoio institucional
do IICA, do SEBRAE e do STR, outra realizada a partir dos contatos iniciados no
Rio de Janeiro, e a última aconteceu com as visitas à Feira da Pedra. Destaco
esta informação aqui, pois considero que cada uma, separada ou relacionada às
outras, contribuiu para os recortes realizados, sobretudo na seleção das famílias
que apresento no segundo capítulo. Por exemplo, através do Adalberto (IICA)
20
conheci os consultores do SEBRAE e, acompanhando-os em suas visitas, tive
acesso aos produtores em Caicó, que forneceram questões essenciais a este
trabalho. Com o apoio do SEBRAE, também conheci um comerciante de redes em
Caicó que recebia as mercadorias fornecidas por um primo de São Bento. Daí em
diante foi se estabelecendo uma “rede” de contatos que freqüentemente faziam as
“entradas” se entrecruzar. Em certo momento, descobri que o fornecedor de São
Bento era conhecido dos fornecedores indicados pelos informantes do Rio de
Janeiro e o encontro com os dois simultaneamente proporcionou alguns diálogos
que teriam escapado, caso as entrevistas ocorressem de maneira isolada.
Tornando-me conhecida de alguns moradores de Jardim através do pessoal do
sindicato, alguns contatos da Feira da Pedra puderam ser aprofundados
posteriormente na cidade.
Embora já estivesse envolvida com a pesquisa há algum tempo, foi o
material etnográfico deste trabalho de campo que consolidou esta dissertação.
Além disso, ele teve um sentido exploratório, como se estivesse ainda para
descobrir que objetos deveriam ser privilegiados. Visto que o conhecimento
anteriormente elaborado moldava-se às teorias que buscava confirmar na época
do primeiro campo em São Bento, era necessário, então, reinventar um início para
tentar reconhecer que significados as próprias pessoas inseridas naquele universo
davam às atividades observadas. Afinal, seria este um recurso fundamental para
evitar sobrepor as minhas teorias de tal maneira a restringir as amplas
possibilidades de entender as lógicas em jogo nas práticas do grupo, ou melhor,
do ramo de rede.
21
Por outro lado, tive o cuidado de não absolutizar esta tentativa
de acessar o conhecimento nativo, assumindo que a minha compreensão dos
relatos era necessariamente uma forma de recortar os momentos de encontros
entre pesquisadora e pesquisados, encontros esses que, num plano anterior à
intencionalidade do meu recorte, isolava alguns elementos daquele contexto
social. Em outras palavras, o próprio momento do encontro, sobretudo quando os
informantes sabiam previamente que eu estava realizando uma pesquisa, teria
uma dinâmica particular que contribuiria para definir os contornos do recorte que
viria a fazer.
Portanto, cabia reconhecer que mesmo tentando deixar abertos os
diálogos, ou, em algumas situações, sentindo dificuldade de restringir o foco das
conversas – as minhas indagações necessariamente estavam informadas por
certos pressupostos teóricos e por algumas hipóteses, o que era uma forma de
orientar o percurso das entrevistas. Os dois movimentos podem parecer
contraditórios: o de tentar conhecer o que é significativo para os nativos e o de
reconhecer, ao mesmo tempo, o quanto há de nós no que recortamos como
significativo, mas isso não os invalida, pois, de outro modo, tanto a crença de que
não temos acesso a este significado, quanto a crença de que acessamos este
significado sem precisar de maiores mediações, leva à cética tautologia das
teorias. Mas, ao tentar sustentar estes dois movimentos até seu possível embate,
ao pôr em questão as teorias prontas através do diálogo com as pessoas, sim
as teorias podem dizer algo mais do que a propensão à redundância.
Devo, portanto, esclarecer três questões centrais que norteavam o meu
olhar. Primeiro, seriam válidas de alguma forma as formulações de Garcia Jr.
22
(1990) a respeito da combinação entre agricultura e negócio no Brejo e Agreste
paraibano para aquela região sertaneja? Segundo, a produção e o comércio de
redes estavam relacionados à organização familiar? Terceiro, essas duas
questões contribuem para entender a organização espacial do comércio de redes?
A predisposição de trazer a família para o centro da análise, ao mesmo
tempo em que os dados etnográficos se impunham a esse respeito, cumpria um
certo papel de instrumento capaz de mediar as minhas questões e as minhas
teorias com essa preocupação de identificar os significados da experiência nativa
daquela economia. Como sugere Lewin, a família e o sistema de parentesco
estabelecem categorias de associação humana, que podem ser definidas por
sangue, casamento ou parentesco fictício e marcam as fronteiras dentro das quais
se realiza o comportamento econômico e político (1979, p.264-265). Assim, a
família poderia indicar algumas pistas a respeito do conhecimento prático
daquelas pessoas, que seria responsável por mobilizar a produção local e o
comércio de redes a tal ponto deste se estender por todas regiões do Brasil e
ainda extrapolar as fronteiras nacionais.
Além disso, a escolha da família está relacionada a uma preocupação
metodológica em evitar hipostasiar a funcionalidade econômica dos arranjos
sociais e das ações dos indivíduos, sobrepondo a eles um ideal de racionalidade
econômica, tal como se existisse um sujeito que pensasse de acordo com o puro
cálculo matemático, dos números que devem se transformar em números maiores,
isto é, de ter por finalidade a pura eficiência técnica e econômica.
Esta perspectiva considera a crítica do economicismo como a crítica de um
sujeito autônomo, porquanto somente a racionalidade de um sujeito autônomo
23
pode agir conforme o puro interesse econômico do lucro e pode também pensar a
economia como uma esfera separada e autônoma regida por leis próprias.
nesse sentido os interesses dos indivíduos podem ser pensados como puro
interesse econômico, separado da esfera da cultura ou do espírito, que por sua
vez também aparecem autonomizados, e não apenas autonomizados, mas como
algo da ordem do simbólico, do abstrato, do separado de toda materialidade.
Estas proposições de Bourdieu (1972), que se refletem no conceito de
capital simbólico e na crítica do sujeito autônomo inspirada em Weber, não supõe
que as operações econômicas, ou outra ação distintamente qualificada dos
indivíduos localizados socialmente, passem ao largo da lógica e da história
capitalista. Pelo contrário, supõe que estas operações se realizam no marco desta
lógica, mas que não podem ser compreendidas sem apreendermos a forma
particular que lhe sentido, trate-se de valores morais, políticos ou familiares,
sob pena de reduzirmos a história a uma teoria abstrata.
Devo destacar que o foco sobre a família tornou-se a principal via de
formulação de questões durante a elaboração dos dados. O termo família ou
parentes será utilizado sem uma preocupação em definir o seu conteúdo, isto é,
se estão referidos à família conjugal, extensa, grupo doméstico, etc. Saliento ainda
que não houve a preocupação, durante as entrevistas, de demarcar relações de
parentesco que não estivessem associadas ao ramo de rede, o que
posteriormente dificultou esta análise.
Um problema se colocou a todo instante: como se definem as fronteiras da
família para os informantes? Ao perguntar a uma pessoa que parentes seus
estavam envolvidos no ramo de rede seria possível que ela enumerasse
24
indivíduos que em outro contexto não seriam considerados como tais
6
, fato que
revelaria a necessidade de um certo cuidado em não fazer das fronteiras
familiares (e comerciais) limites fixos. Outras questões advieram desta principal:
ao considerar uma unidade produtiva e/ou comercial, que princípios incluem ou
excluem membros da família no seu cálculo? Por exemplo, quando um irmão
fornece mercadoria para o outro, diferença entre este fornecimento e o
fornecimento para um não parente? Que princípios hierarquizam os familiares em
suas relações econômicas?
Essas e outras questões não encontrarão respostas completas aqui. Para
respondê-las teria sido necessário que durante o trabalho de campo estivesse
atenta a dois movimentos distintos, mas que se misturam: um que define as
fronteiras das relações econômicas e outro que define as fronteiras das relações
familiares. A não identidade entre esses movimentos não significa que pudesse
apreendê-los separadamente, e sim que é preciso evitar, por exemplo, tomar um
certo arranjo que visa o funcionamento da tecelagem, como um arranjo que
representa uma fronteira propriamente da família e vice-versa. Mesmo não tendo
procedido assim, é possível aproveitar os dados empíricos para pensar o que
estava em jogo para os informantes no cruzamento das relações entre familiares,
negócio, viagem, tecelagem, etc., conforme se estruturam seus relatos.
Com base nestas reflexões, no primeiro capítulo procuro fazer uma
apresentação das diferentes atividades que compõem o ramo de rede. Este
6
Este tipo de questão, estimulada pela pesquisa de Ana Claudia Marques, ainda que não tivesse
sido identificada nos mesmos termos que a autora formulou, contribuiu para uma maior
sensibilidade à necessidade de flexibilizar certas informações: “Quando fui visitar a fazenda
25
enquadramento pretende familiarizar o leitor com as etapas de produção e de
comercialização, apresentando como se articula através de múltiplas relações a
divisão do trabalho que se reflete no considerável alcance territorial do ramo. No
segundo, exponho a trajetória de nove famílias, analisando uma por uma, como
elas conjugaram diferentes atividades, algumas vezes articulando ramo de rede
com outras atividades comerciais e com agricultura e criação. No último capítulo,
por fim, desenvolvo um debate sobre duas atividades que considerei centrais para
a interpretação das lógicas que ordenavam e definiam as fronteiras da família em
suas relações com o ramo de rede: o negócio e a viagem.
Imburana, não pude deixar de notar como certos indivíduos podiam ser distinguidos como parentes
e estranhos ao mesmo tempo” (2002, p.126).
26
Capítulo 1 – O ramo de rede
Qualquer um que adentre as sedes municipais de São
27
Entre uma tecelagem com um tear e uma “indústria moderna” existem
tantas “gradações” quantas são (im)possíveis de se imaginar. Além disso, a
confecção de redes-de-dormir, que teve papel preponderante no desenvolvimento
desta atividade, mas que não é o único produto desta “indústria” têxtil, não precisa
apenas dos teares. Há uma série de etapas a serem realizadas antes,
paralelamente e depois da confecção do pano da rede (Figura 1), que é a parte
propriamente tecida pelo tear. Essas diversas etapas constituem uma divisão
técnica e do trabalho que possibilita diferentes inserções de produtores e
diferentes relações entre eles.
Antes de chegar aos teares, os fios primeiro precisam ser desenrolados dos
carretéis. Esta etapa é chamada urdimento, e pode ser feita manualmente pelo
urdidor, que vai formando feixes de fios, chamados cabrestios, em um suporte de
madeira, a urdideira (foto 2). Mas também a urdideira elétrica (foto 3), que
transmite os fios diretamente para o rolo do tear.
No caso das urdideiras manuais e do uso do fio cru, os cabrestios, em
seguida, passam pelo alvejamento e tingimento, sendo postos para secar no chão
das calçadas ou em varais (foto 4). Essa etapa, no entanto, pode ser suprimida
caso a tecelagem compre os fios já coloridos e utilize as urdideiras elétricas.
A partir daí os fios são tecidos. A estrutura dos teares elétricos (foto 5) ou
dos teares de pau é a mesma: eles são compostos por um rolo, com os cabrestios
enrolados, que fica transmitindo os fios para o corpo do tear. Os pentes do tear
vão cravando sobre a malha que é amarrada pelo movimento da lançadeira. Esta,
por sua vez, parece um pião, rodando de um lado para o outro. Dentro das
lançadeiras ficam as espulas, que são pequenos bastões com fio enrolado.
28
Figura 1
29
Foto 2
Foto 3
30
Foto 4
Foto 5
31
O enchimento das espulas, ou seja, quando o fio é enrolado no bastão, é
uma etapa realizada paralelamente e, para isso, existem espuleiras elétricas (foto
6) ou manuais (foto 7). Os fios que vão para essas máquinas passam antes pelas
conicaleiras (foto 8): primeiro eles são dispostos em meadas (feixes semelhantes
aos cabrestios), e, depois, encaixados nas conicaleiras que irão transmití-los aos
tubos. São estes últimos que fornecerão fios às espuleiras e máquinas de
trancelim (foto 9). O trancelim está presente na etapa de acabamento das redes:
são aqueles cordões torcidos que ligam o punho ao pano da rede.
Prontos o pano e o trancelim, chega-se à etapa de acabamentos que é
apelidada de aprontar. Com as pontas dos fios do pano da rede é feita uma
trança, onde será enganchado o cordão do trancelim ou, como se diz, passar o
ponto. O trancelim é reforçado pela mamucaba, que atrela as voltas do cordão.
Para fazer a mamucaba usa-se um pequeno suporte de madeira, onde se amarra
os fios e, na outra ponta dos fios, ficam amarrados bastões, a partir dos quais se
faz a trama da mamucaba. Na ponta do trancelim oposta ao pano é colocado o
punho, chama-se empunhar. Todos esses acabamentos são feitos nas
extremidades mais estreitas do pano da rede. Ao longo do pano, pode-se fazer
um efeito simples de desfiado, ou as varandas, que variam de complexidade. As
varandas “trabalhadas” são confeccionadas apenas nas redes chamadas
luxuosas, que são as redes mais caras. No pano da rede de dormir algumas
vezes também são feitos bordados ou estampas. Atualmente existem varandas
confeccionadas em máquinas, nas tecelagens maiores, mas elas são costuradas
ao pano manualmente.
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Foto 6
Foto 7
33
Foto 8
Foto 9
34
Como se vê, a confecção das redes de dormir demanda uma série de
outras máquinas
7
, como urdideiras, espuleiras, conicaleiras e máquinas de
trancelim, elétricas ou manuais. Uma pequena tecelagem pode contar com teares
elétricos, porém realizar o processo de urdir manualmente. Um dono de
tecelagem, por exemplo, pode comprar cordões de trancelim na feira de São
Bento a Feira da Pedra – ou, como dizem, terceirizar esta etapa em outra
tecelagem. O dono desta outra tecelagem, por sua vez, além de ter as máquinas
que garantem a confecção integral do pano de rede e do trancelim para as suas
próprias redes, realiza serviços parciais como encher as espulas e fazer os
trancelins para outros produtores. Além disso, ele leva as suas redes para as
mulheres dos sítios aprontarem, isto é, fazer os acabamentos. Daí se pode
começar a visualizar a quantidade de combinações e associações entre os
produtores, isto sem ressaltar as etapas de acabamentos, como fazer a
mamucaba, empunhar e fazer a varanda.
Os donos das tecelagens maiores estão inseridos neste ramo em diversas
frentes. Eles podem ser adicionalmente fornecedores de fios ou fornecedores de
máquinas. Os fios são fornecidos tanto pela compra, quanto pela troca, que é um
tipo de relação bastante comum no local. Ela compreende a troca de certa
porcentagem de fios por outra de panos ou redes prontas. Por exemplo, a cada
dez redes tecidas pelo dono de uma outra tecelagem, o fornecedor de fios fica
com seis redes e o dono da tecelagem pequena com quatro. As máquinas podem
ser vendidas, arrendadas ou terceirizadas. O arrendamento se refere
7
A maioria dos teares e dessas outras máquinas é comprada como sucata da indústria têxtil
paulista, principalmente na cidade de Americana, e depois adaptada para a produção de redes.
35
simplesmente ao aluguel e a “terceirização” acontece quando são fornecidos os
fios juntamente com os teares e o pagamento feito pela troca de panos.
As tecelagens maiores contam com todas aquelas máquinas: teares,
urdideiras elétricas, máquinas de trancelim, espuleiras, conicaleiras, além de
máquinas de renda para fazer as varandas.
A participação da família acontece tanto nas grandes quanto nas pequenas
tecelagens. Nas pequenas, a família trabalha diretamente com as máquinas,
combinando ou não o trabalho de seus membros com o de funcionários. Quanto
ao trabalho dos funcionários, o efetivamente especializado é o tecelão, ou melhor,
o que trabalha de tecer para os outros, que é o modo como se referem para
diferenciar o trabalhador que tece na sua própria tecelagem. Em menor proporção,
é comum os homens se especializarem também como urdidores.
As mulheres que trabalham nas tecelagens são operadoras de conicaleiras,
máquinas de trancelim, fazem as estampas, costuras, entre outros. Elas podem
até trabalhar como urdideiras, o que parece ser raro, mas não se vê mulheres
trabalhando de tecer para os outros. Porém, quando se trata de tecelagem que
conte com trabalho familiar, elas fazem de tudo um pouco, até mesmo operar o
tear, se o casal não tiver filhos homens adultos trabalhando na unidade produtiva.
As pequenas tecelagens têm de um a oito teares, enquanto as grandes
chegam a ter noventa teares, aproximadamente. Existem casos de pequenas
tecelagens onde trabalham o dono e funcionários. Os funcionários que
trabalham de tecer geralmente ganham por produção, tanto nas pequenas quanto
nas maiores. Isso pode valer também para o urdidor ou para os operadores das
36
outras máquinas, no entanto, é comum se encontrar o diarista, que exceto para o
trabalho de tecer, faz qualquer tarefa que seja necessária.
As pequenas tecelagens muitas vezes não possuem todas aquelas
máquinas, então, trocam-se ou compram-se as espulas e trancelins. Além disso,
geralmente a própria família faz os acabamentos com a ajuda dos filhos
pequenos: “Já sabe passar o ponto, trabalhando”. Existem ainda pequenas
tecelagens onde se têm apenas máquinas de trancelim e se troca trancelim por
pano e trancelim pelos acabamentos.
Entre os que aprontam, a maioria destes trabalhadores são mulheres, mas
acontece igualmente de toda a família aprontar. Os homens empunham, as
mulheres e filhos passam ponto, fazem bainhas, mamucabas, varandas ou franjas.
Às vezes o trancelim é confeccionado manualmente, às vezes comprado na feira,
às vezes fazem parte da troca do pano.
O pessoal que apronta pode fazer isso pela troca com os donos de
tecelagens, ou compram pano e aprontam. No primeiro caso, eles vão vender sua
parte da troca na Feira da Pedra, já os que compram o pano, podem fazê-lo tanto
na feira ou diretamente na tecelagem, e igualmente depois vão vender na feira.
O fato que se destaca sobre esta etapa da produção é a ampla participação
das pessoas. A tal ponto que se pode entrar numa casa onde se teria dito que
ninguém da família trabalha com rede, mas naquele dia você surpreende uma
mulher fazendo franja. “Um servicinho”. Pode ser por uns trocados, mas pode ser
apenas para ajudar alguém, por um favor.
As pequenas tecelagens e o pessoal que apronta também estão presentes
nos Sítios. Um dos Sítios que visitei fica na divisa dos municípios de Jardim de
37
Piranhas e São Bento. No único sítio onde se tinha agricultura e criação, o
proprietário era sogro do dono da maior tecelagem do local, com seis teares. Mas
havia três outros produtores. As casas eram próximas umas às outras e todos os
seus habitantes estavam envolvidos com a produção ou comércio de redes:
aprontando, fazendo frete, vendendo no Maranhão, levando para a feira.
A venda para outros estados não é privilégio dos donos de tecelagens
maiores, ela é chamada de viagem: “eu viajo para Natal toda sexta-feira”. Alguns
apenas vão e voltam na mesma semana, outros chegam a passar meses. Entre os
pequenos, aqueles que tem um carro uma F10 ou D20 outros pagam o
frete do caminhão ou de uma veraneio (quando a viagem é para uma cidade mais
próxima). Existem donos de tecelagens, pequenas ou grandes, que chegam a
alugar uma casa para servir de depósito, o ponto. Outros ainda, aproveitam casas
ou estabelecimentos comerciais de parentes que migraram para outros estados
para servir de depósito. A viagem pode ser feita pelo dono e/ou por seu filho.
Quando não se viaja, vende-se para clientes, que são parentes e conterrâneos
migrantes, principalmente nas cidades do Maranhão, Pará e Ceará.
Os donos de tecelagens maiores dispõem de caminhões e tanto fornecem
mercadorias em grosso para compradores de outros estados, quanto podem
vender através de vendedores ambulantes.
ainda outras formas de se inserir no ramo da rede. Uma pessoa pode
ser apenas um fornecedor de fios e ter um depósito em São Bento, Jardim, etc.
vendendo para outras cidades. Pode ser um dono de carro e fazer frete ou
recrutar uma turma de corretores. A turma é um grupo de vendedores ambulantes,
recrutados pelo encarregado geralmente o motorista do caminhão ou pelo
38
próprio dono do carro. Diz-se que atualmente as turmas estão menores, pode ter
apenas cinco vendedores, mas antigamente chegavam a contar trinta homens.
O encarregado é um indivíduo presente, sobretudo, quando o dono do carro
é proprietário de uma frota de caminhões e/ou é dono também de tecelagem.
os corretores os vendedores ambulantes recebem um vale, um empréstimo
que pode variar de mil a dez mil reais, a ser pago com a venda das redes e
mantas. O encarregado, além de recrutar e controlar os redeiros, geralmente é
responsável pela compra de mercadorias na Feira da Pedra. Assim, através do
encarregado, donos de tecelagens maiores e donos de carros compram produtos
de tecelagens pequenas e do pessoal que apronta.
Esta modalidade de venda também é chamada de viagem. Algumas são
feitas apenas nas Mercedes: os corretores viajam no caminhão junto com as redes
e mantas e não se fixam em nenhum lugar, acampando em postos da estrada,
que servem como ponto de encontro, onde eles organizam os almoços e amarram
suas redes à noite.
Existe uma certa tendência à especialização, ou seja, o proprietário do
caminhão prefere que as viagens se direcionem sempre para determinado estado
ou região, mas quando se pergunta a algum redeiro, seja corretor, encarregado,
dono de carro, ele provavelmente dirá que já conheceu todos os cantos do Brasil.
Alguns desses donos de carro que tem turma se tornaram donos de
depósitos, isto é, resolveram se fixar em algum ponto, numa cidade de outro
estado. Como donos de depósitos, eles podem continuar com a turma ou resolver
vender somente em grosso para lojas e outros vendedores. Esses depósitos são
39
casas onde ficam instalados durante a viagem, ou onde passam a morar junto
com suas famílias, com as mercadorias e até mesmo com a turma de corretores.
Além desses, existem os vendedores por conta e os que vendem no carro
boca de ferro. Ambos são ex-corretores, em sua maioria, que preferiram passar a
trabalhar por conta própria. Eles se juntam com um grupo de conterrâneos ou
parentes para alugar uma casa. Os que conseguem comprar um carro, colocam
um alto-falante para anunciar as mercadorias e vão circulando pelos bairros, por
isso, o termo boca de ferro. Essas vendas de porta em porta também são feitas no
crediário, quando o vendedor passa a freqüentar algum bairro, voltando a cada
mês para receber o pagamento das prestações em que o valor da mercadoria foi
dividido.
Os vendedores por conta ou os corretores, mesmo alugando uma casa
numa cidade ou alojado em um depósito, costumam circular pelas cidades
vizinhas e, quando casados, voltam para casa de três a quatro meses. os
solteiros chegam a ficar três anos seguidos sem voltar para casa. Em alguns
casos, os redeiros casados trazem suas esposas na viagem, geralmente alugando
uma casa só para o casal e os filhos. Mas se a casa onde estava antes tinha
pessoas da família, eles aí permanecem.
A maioria dessas modalidades de vendedores foi pesquisada no Rio de
Janeiro, mas durante o campo na Paraíba e Rio Grande do Norte, também
encontrava os redeiros. No início, pensei que o termo redeiro designasse apenas
o vendedor ambulante, mas depois constatei um uso mais abrangente que se
referiria a todos que participam das viagens, isto é, aqueles que vão vender em
40
outros estados do Brasil e até em outros países, independente do modo particular
como está inserido no ramo.
As formas comuns de vendas a varejo e a pé, verificadas no Rio de Janeiro,
além da famosa venda de redes nos ombros pelas praias, predominantemente
feita pelos corretores, são hoje as vendas em lona no chão, como os camelôs, ou
com as mercadorias empilhadas em carrinhos para facilitar a locomoção, inclusive
por causa dos rapas
8
41
Uma característica do ramo de rede é que em grande parte ele depende de
relações de crédito. A própria troca é uma constatação disso: não se paga em
dinheiro pelos fios, o pagamento dos fios é feito em produtos prontos. Ou, por
outro lado, não se paga em dinheiro pelo trabalho, divide-se o resultado da
produção.
Os donos de tecelagens vendem seus produtos para donos de depósitos e
lojistas através de cheques pré-datados. Os vendedores por conta pegam, em
consignação, as redes nos depósitos. O pessoal que compra pano e apronta,
pega o pano em um dia e paga na semana seguinte, na feira ou na tecelagem.
Existem pessoas na Feira da Pedra que compram fiado dos feirantes conhecidos
para depois vender fiado aos encarregados, ou outros comerciantes que lhes
sejam conhecidos também, mas que não são conhecidos dos produtores, por isso
não conseguiriam, eles próprios, comprar fiado diretamente com os produtores.
Até mesmo os vales dos corretores são pagos em cheques pré-datados e
eles investem esses cheques no financiamento de motos ou de carros usados. Um
dia estava na fábrica de Leandro e Alba e, enquanto eu e ela conversávamos
numa sala, foram entrando corretores:
Após conversarem alguma coisa que me escapou, pois se tratava de um
papo iniciado em outro momento, ela vira para mim e diz: Esse pessoal chega e
fica querendo comprar uma moto”. Creio que o verbo “chegar” não tivesse
naquele contexto o significado de “entrar na sala”, mas de “chegar em São Bento
depois de uma viagem”, porque entendi algumas frases como: “mas você não
passou nem um mês aqui!”, ou seja, o rapaz mal havia chegado, queria fazer
outra viagem e conseguir outro vale.
42
Pouco depois, ela foi entregando cheques pré-datados para 30, 60 e 90
dias, somando o valor de R$3.500,00, R$ 4.000,00 e para um dos corretores os
cheques totalizavam uma quantia de R$ 8.350,00. Era um momento de
negociação. Um dos corretores fez Alba ligar para a concessionária da Honda,
confirmando a data dos cheques. A pedido de outro co313(d)0.507(3--1.65164(r)-.65164(r)-.65164(r)-.8204(s254(o)8203Tg3(e)0.50(313( )-519(9(r)-1.323544r)-.820687( )-4.8898(d))0.507313( )-313( )0n)-4.63614(tB33 0 0941( )277.998]a )5.3914)-179.767(e)
c
43
O agiota pode servir para capitalizar um dono de carro que quer investir em
viajar com a turma, porque nem sempre os corretores aceitam o vale em cheque.
Os comerciantes do ramo de rede, principalmente os mais ricos, estão
constantemente contabilizando seus credores e seus devedores. Dão um cheque
de mil reais para o próximo mês a um corretor, e tentam prever quando o
investimento dos corretores começará a retornar: “um investimento que só começa
a retornar em 60 dias”, cálculo feito por Alba, preocupada em ter que investir
duzentos mil reais na viagem, e, ao mesmo tempo, preocupada em “segurar
corretor bom”, que é o outro elo desta cadeia de cheques a inserir dinheiro, além
do agiota. Afinal, é o corretor o principal protagonista deste ramo a desbravar os
mercados para as redes e a vender à vista ao consumidor final.
A Feira da Pedra
A Feira da Pedra (Fotos 10 e 11), em São Bento, é um evento especial para se
observar as diversas possibilidades de cruzamentos entre essas categorias. Ela
congrega diferentes tipos de produtores, de donos de tecelagens ao pessoal que
apronta, passando pelas suas variações. também se pode observar como cada
produtor/comerciante lança mão de estratégias diferencialmente combinadas.
Nem todos estão presentes enquanto feirantes, estes são principalmente os
produtores menores. Há, por exemplo, compradores os encarregados que
representam a forma de participação dos setores mais capitalizados do ramo das
redes, como donos de carro, donos de tecelagens maiores e donos de depósitos.
44
Foto 10
Foto 11
45
A venda de redes e “derivados” não é a única função da feira que acontece
todas as segundas. A Feira da Pedra é apenas uma parte de uma feira maior, de
frutas, legumes, verduras, cereais; mangaios; roupas e calçados; cada um dos
setores praticamente ocupando uma rua distinta. O setor de redes e “derivados”
não apenas expõe as redes de dormir, como as suas partes: panos de redes,
varandas, cordões de trancelim. A Feira da Pedra ocupa a avenida mais central de
comércio na cidade e é certamente a que atrai o maior número de pessoas de
fora. No fim desta avenida, ou nas ruas perpendiculares a ela, observam-se
muitas mercedinhas, veraneios, F10, D20, algumas que estão apenas para
buscar mercadorias – neste caso, as mercedinhas, com a lona por cima,
preparando-se para a viagem enquanto os outros carros costumam ir e voltar
com pessoas e mercadorias. Além disso, no entorno desta avenida, também
existem pontos de mototaxi e de veraneios que carregam passageiros para
Paulista, Patos, Catolé, Brejo, Jardim e Caicó.
Não existe nenhum tipo de ordem instituída na Feira da Pedra e, por isso,
uma certa organização espontânea que observei não pode ser considerada
absoluta. Mas o fato é que os feirantes se organizam para irem juntos, assim,
forma-se uma configuração espacial em que se grupos de Jardim, mais ou
menos separados dos grupos de Brejo, São Bento, de alguns Sítios e daí por
diante. Esses grupos são formados por amigos e parentes que muitas vezes não
vendem os mesmos tipos de mercadorias. Misturam-se, assim, pilhas de redes
com mantas, toalhas, panos de prato, isto é, não há um lugar separado para cada
tipo de produto. Acontece, entretanto, de se formar uma seqüência de pilhas de
redes que pertencem a diferentes feirantes, levando-os a diferenciarem suas
46
mercadorias através de pequenas marcas
10
, ou pela estampa, ou pela trama.
Esse tipo de organização favorece o rodízio entre os vendedores para
tomar conta dos produtos, pois as pilhas ficam (ou não) sobre uma lona no chão,
não havendo barracas para exposição senão para as mulheres que vendem
jogos de cama e mesa – o que torna o tempo despendido na Feira, debaixo do sol,
muito esgotante. Freqüentemente, um grupo sai para comer, beber ou
simplesmente descansar um pouco na sombra, enquanto alguém toma conta das
pilhas.
Em dois dias de campo pela feira, conversei com 30 feirantes, encontrando
as mais diversas situações, a ponto de ser difícil categorizá-las. Onze vivem na
cidade de São Bento, quatro em Sítios do município; oito na sede de Jardim de
Piranhas; quatro na sede municipal de Brejo do Cruz e dois em Sítios do
município; e um na cidade de Catolé do Rocha.
Um primeiro aspecto importante de se analisar é que os feirantes estão ali
vendendo seus próprios produtos e/ou não. Isso no caso de produzirem redes de
algum modo. Podem estar ali só para vender, ou para vender e comprar ao
mesmo tempo.
Foram entrevistados dez donos de tecelagem, todas elas pequenas, de um
a seis teares. Aliás, é comum se ouvir que “só o pequeno vende na feira”. Foram
nove homens e uma mulher, dentre eles, três comentaram que a tecelagem
funciona com o trabalho da família, em seis tecelagens combina-se o trabalho
10
Seu Nelson Pedreira, por exemplo, deixava alguns fios “puxados”, misturados na “franja” de
acabamento do “pano da rede”.
47
da família com o de funcionários, e, em uma tecelagem apenas, trabalham o dono
e funcionários, fato que se explica, em parte, pela ausência de filhos homens em
sua família.
Seu Nelson Pedreira era o dono desta tecelagem, com apenas dois teares,
e que teria somente funcionários trabalhando com ele, dois tecelões e um diarista.
Ele só troca as mamucabas, o restante dos acabamentos é feito na própria
tecelagem, pagando por serviço para sete mulheres. Sua trajetória é a de um ex-
morador de fazenda, que foi para São Bento trabalhar de tecer para os outros.
Assim trabalhou por dez anos e, depois, com o fundo de garantia, comprou dois
teares. “No início, tinha que trabalhar sozinho, mas quando comecei a ganhar um
pouquinho mais, passei a pagar trabalhador”. Disse ainda que, depois de ter
contratado os funcionários para a tecelagem, pôde viajar, ou seja, toda sexta-feira
ele vai para Natal vender as redes no ombro, voltando somente na segunda. Ele
toma uma veraneio, pagando R$ 0,50 pelo frete. Outra viagem que costuma fazer
é para Santarém, onde tem uma irmã morando, mas vai para “quando o
estoque fica cheio”, passando de um a dois meses.
Nelson Pedreira foi o único a dizer que faz viagens, entre os donos das
pequenas tecelagens, entretanto, três outros feirantes mencionaram vender para
clientes situados em outros estados. Quem vende para fora também costuma
comprar de outros produtores. A clientela de Josimar, por exemplo, fica em
Mossoró. O pai dele era dono de uma tecelagem em São Bento e foi morar lá,
onde ainda tentou manter a tecelagem, mas por pouco tempo. Depois passou
apenas a vender, comprando as mercadorias com outros produtores de São Bento
e levando também as redes produzidas pelo filho.
48
A única mulher entrevistada, entre os feirantes que vendiam os produtos de
sua tecelagem, foi Ivelise. Ela e o marido possuem uma tecelagem com dois
teares. Mas, além da tecelagem, eles têm um trailer de lanchonete, onde um filho
de vinte anos trabalha com eles.
Mariano estava na feira para vender a produção da tecelagem que
atualmente é administrada por dois de seus filhos. Ele não estava no meio da
feira, onde ficam os feirantes. Encostava-se na D20, que disse ser sua e dos
filhos, cuja caçamba tinha uma série de pilhas de redes e mantas. Não estava ali
apenas para vender a produção da tecelagem “nem todo mundo que chega aqui
consegue comprar fiado, mas como a gente é conhecido, pode fazer negócio”
estava também para intermediar outras compras e vendas. Disse ainda ter clientes
no Ceará, onde moram quatro filhos e um irmão. Um desses filhos adquiriu uma
propriedade no município de Jardim de Piranhas e quem cuida do tio é seu
Mariano, que apesar de morar na rua, vai para o sítio todos os dias.
Dois entrevistados disseram estar na feira para vender a produção da
tecelagem de parentes. Expedito, por exemplo, disse que a tecelagem é do
cunhado e que sua esposa também trabalha lá. Roberto Carlos vende a
produção do seu primo não apenas na Feira, como também em Cruz das Almas e
em Juazeiro do Norte.
Dos feirantes entrevistados que vendiam as redes aprontadas por eles e/ou
por membros de sua família, havia seis homens e seis mulheres. Dentre eles,
quatro homens e quatro mulheres aprontavam pela troca, dois homens e duas
mulheres compravam o pano. Outro dado interessante estava no fato de que em
quatro dessas famílias, os maridos eram corretores. Alguns deles estavam na feira
49
em casais, mas conversei somente com o casal Ciene e Lindomar. Eles vivem em
um Sítio de Brejo do Cruz, onde Lindomar planta o roçado à meia.
Francisco e Mané estavam juntos na feira. A esposa de Francisco é irmã de
Mané. Francisco é corretor e disse ainda que compra pano e apronta com a
esposa, além de trocar pano por rede pronta com o cunhado Mané. Eles vivem em
um Sítio de São Bento, onde Mané já trabalhou no alugado.
Geová também compra pano para aprontar com a esposa. Ele tem um
carro boca de ferro e viaja para Natal e Mossoró todo início do mês.
Um último tipo de produtor encontrado na feira foi Auxiliadora. Ela e o
marido têm uma máquina de trancelim, trocando assim os cordões de trancelim
por panos e acabamentos. Auxiliadora estava para vender as redes prontas da
parte de sua família da troca.
Três homens entrevistados na feira tinham o mesmo perfil: eles são donos
de sítios, trabalham no roçado, e não estão envolvidos com a produção de redes.
Levam a produção do pessoal que apronta no Sítio para vender na Feira da
Pedra. Um deles disse ter um carro.
Ilda, de Catolé do Rocha, vendia varandas feitas à mão. De algodão ou de
linha Cléia, coloridas ou de fio cru, em grades ou rendadas. Ela fornece os fios às
artesãs e paga por produção, depois vem vender na feira.
Quando estava atenta aos compradores foi que conheci seu Mariano e um
outro caso bem semelhante a ele. Jackson também estava encostado na D20, que
igualmente ficava no final da avenida central que a feira ocupa. Enquanto tomava
conta do carro, o pai negociava no interior da Feira. Eles têm um depósito em São
Bento. Jackson explicou o negócio: “nem todo mundo tem dinheiro para comprar à
50
vista na feira, então meu pai compra pra revender no crediário”. As compras e
vendas poderiam ser feitas ali mesmo, com os encarregados ou donos de carro,
que vão vender com a turma de corretores; ou no depósito, por telefone, para os
clientes de fora, para os quais ele vende fretando um caminhão.
Tabela 1
Levantamento das situações encontradas na feira
Homens Mulheres
Trabalho Familiar
2 1
Trabalho Familiar + Funcionários
6 -
Dono + Funcionários
1 -
Tecelagens
Total
9 1
Total
6 6
Compra e Apronta
2 2
Acabamentos
Troca
4 4
Vendendo para a tecelagem de parentes
2 -
Máquina de Trancelim
- 1
Vendendo varandas
- 1
Comprando (fiado)
2 -
Viagem
2 -
Clientes em outros estados
3 -
Sítio e tecelagem
1 -
Sítio e acabamentos
1 1
Sítio e vendas na feira
3 -
A apresentação da feira pretendia trazer à tona os entrelaçamentos das
atividades, ilustrando-a ainda como um espaço onde são revigorados os
significados da participação de cada um. É onde se concentra e onde se expõe as
diversas formas em que os participantes do ramo de rede representam o
conhecimento que acumulam sobre as técnicas de produção, o modo como
atribuem valor ao trabalho e aos objetos produzidos e como distribuem e
combinam as relações entre as pessoas.
No espaço da Feira da Pedra são saldadas dívidas e contraídas outras,
conhecidos se reconhecem, preços são comparados, cálculos são refeitos, é onde
51
donos de carro podem sondar o investimento” dos concorrentes. É também um
momento em que o pesquisador pode visualizar o alcance territorial do ramo de
rede, desde o encontro com os feirantes oriundos de diferentes municípios da
região, aos carros que se preparam para a viagem aos outros estados ou até
países. Por fim, é uma circunstância privilegiada para tentar reconstruir as
categorias nativas porque em um mesmo evento as pessoas se posicionam, em
suas falas, umas em relação às outras, pondo em evidência o modo como
representam essas diferenças.
52
53
Capítulo 2 – As famílias do ramo de rede
No primeiro capítulo procurei fazer uma apresentação das principais
atividades que constituem o ramo de redes. Em muitos momentos chamei atenção
para as diversas combinações possíveis entre produtores e como um mesmo
produtor pode assumir posições distintas no ramo. Por exemplo, donos de
tecelagens que são fornecedores de fios e ao mesmo tempo donos de carros que
viajam com turma. Cada uma dessas posições pode representar indivíduos
diferentes ou um mesmo indivíduo. Para facilitar a compreensão, sem
pre que me referir a essas “atividades” utilizarei o termo “posição” seja para falar
do dono da tecelagem, do dono de carro, do pessoal que apronta, daqueles que
viajam, etc.,enfim, dos diferentes modos de se inserir no ramo de redes.
As estratégias que possibilitam um indivíduo incorporar essas diferentes
posições não são construídas de maneira isolada, ou melhor, ele necessita dispor,
antes, de associações. E o principal meio de associação de que ele dispõe é a
família. Assim, uma família, para diversificar a participação de sua unidade
produtiva e/ou de seu comércio no ramo de rede pode distribuir as diferentes
posições entre seus membros.
Este capítulo pretende apresentar alguns exemplos ou trajetórias de
famílias para tentar analisar como cada uma articulou estas posições, seja num
movimento de expansão mais horizontal, havendo um aumento das unidades
produtivas/comerciais, seja para que alguns membros possam acumular essas
posições, ou, o que é mais comum, que os dois movimentos possam acontecer
simultaneamente. Um outro objetivo desta análise é reconhecer as íntimas
54
associações entre as posições, a articulação destas entre os familiares e o
alcance territorial das unidades produtivas e/ou comerciais.
A seleção das famílias que serão apresentadas não obedeceu exatamente
a uma preocupação de apresentar os casos mais ilustrativos de cada tipo de
situação, como, por exemplo, o caso mais ilustrativo das famílias que combinam o
comércio de redes com o sítio. Talvez em algum momento mais adiante da
pesquisa seja possível identificar certos padrões nas combinações, mas o que
exponho aqui abarca simplesmente as informações que melhor pude elaborar a
respeito do que as pessoas disseram sobre o cruzamento das relações familiares
com a produção e o comércio de redes.
Zé do Crediário (Caicó - RN)
11
do Crediário e Dona Francisca, sua esposa, foram moradores de
fazenda. Nesta fazenda, Dona Francisca chegou a trabalhar de “fiar” – transformar
o algodão em fios e vendia os fios para o tio Oliveira, onde se produzia rede.
Logo que casaram, foi para São Paulo, juntou dinheiro, voltou e comprou um
sítio. Viveram de agricultura e negócio.
“Meu marido sempre foi bom negociante. Negociava com frutas e era
marchante
12
. Quando o negócio estava bom, ele disse: ‘Agora tenho condições
de levar vocês para a rua’”. E, em Caicó, passou a ser negociante de roupa de
cama e de mesa no crediário. Por este motivo, D. Francisca confirmou, o marido
ficou famoso como Zé do Crediário.
Com os recursos deste negócio, montou a tecelagem. No início vendia
os produtos da tecelagem no crediário somente em Caicó, porém, dez anos
11
As localidades que aparecem entre parênteses referem-se aos lugares onde obtive as
informações que apresento em cada tópico.
12
Vendedor de carne na feira.
55
começou a viajar. No momento de minha visita, ele estava na Bahia. “Meu pai vive
mais no meio de mundo do que em casa” disse Gegê, um de seus filhos.
Segundo Gegê, lá ele vende principalmente para os donos de crediário e se
instala num ponto alugado. Gegê se apressou em dizer o problema desse
negócio: os donos pagam as redes só com cheque. A tecelagem ficou um ano
parada porque meu pai começou a ter cheque devolvido. Mas ele é teimoso,
continuou trabalhando”.
Gegê tem mais três irmãos e duas irmãs. O mais velho deles é dono uma
tecelagem própria, separada. “Ele é esperto” disse Gegê num tom de crítica,
contando que antigamente todos trabalhavam juntos, mas que “não deu certo
porque ele é esperto”. Inicialmente, as viagens eram feitas somente pelo pai, que
passou a alugar uma casa na Bahia. Depois, um dos irmãos de Gegê começou a
viajar para São Paulo, onde mora um tio, irmão de Zé, que cede um espaço de
sua casa para servir de depósito. O tio é dono de um bar.
Segundo Gegê, o irmão que vai para São Paulo é sócio do pai, enquanto
ele mesmo apenas trabalha na tecelagem, o que significa que ele ganha um
salário como os outros funcionários. Atualmente, o terceiro irmão, que até então
ficava responsável pela tecelagem, também viaja para São Paulo, mas não é
sócio. A partir daí, Gegê ficou responsável por esta tarefa de administrar a
pequena fábrica. “Mas não sei fazer isso não, não sei se vai dar certo. Porque
quando atrasa o dinheiro e eu não tenho como pagar o trabalhador, tem que ouvir
muita reclamação... Eu prefiro ficar trabalhando de tecer mesmo, é difícil lidar
com as pessoas, cada um pensa de um jeito...”.
Perguntei, então, por que os outros irmãos viajam, se ele, Gegê, não gosta
de ficar tomando conta da tecelagem. “Quando não certo num lugar, tem o
outro pra compensar. O negócio mais dinheiro no crediário. Uma rede que
custa R$8,00, aqui se vende no máximo por R$9,00, mas lá, à vista é R$15,00 e
no crediário pode ganhar até R$40,00. Só que a venda no crediário muito
cheque devolvido”.
Quanto às mulheres da família, D. Francisca é dona de casa e,
antigamente, fazia bordados “pra mim mesma, pra comprar minhas coisas, ou
56
alguma coisinha pra casa”. Uma das filhas é nova ainda tem onze anos e só
estuda, a outra apronta rede (da tecelagem do pai), recebendo por produção. A
esposa de Gegê trabalha para uma bonelaria e o casal não mora na casa do pai,
na qual fica acoplada a tecelagem.
Ainda a respeito da tecelagem, ela conta com 6 teares, 8 funcionários e
funciona das 6h da manhã até às 17h30. Os tecelões recebem R$ 0,70 por cada
pano tecido e os outros, de acordo com o tipo de trabalho que é preciso fazer em
cada período. Um deles está viajando com Zé do Crediário.
A trajetória da família de Zé do Crediário tem um início bastante semelhante
ao contexto retratado por Garcia Jr. (1990) sobre os agricultores negociantes:
inicialmente ele e a esposa são moradores de fazenda, vai trabalhar no Sul,
estratégia que lhe permitiu juntar dinheiro para usufruir a condição de liberto, que
seria vivida ao retornar, comprar um sítio e negociar com frutas e carne na feira.
“O Sul é hoje o caminho do roçado” (p.154), formulação nativa encontrada por
Garcia Jr. e que tem peso especial para os rapazes que estão para formar a
família ou que acabam de formá-la, afinal, ter a própria terra é um elemento
central para aquele que se reconhece como pai de família, pois preserva o
trabalho de sua esposa e dos filhos da dominação do fazendeiro.
Garcia Jr. também observou, em sua pesquisa, que era comum alguns
desses agricultores prosperarem e passarem a viver do negócio, bem como o
negócio se desdobrar em alguma manufatura como casas de farinha a motor,
fabricação de tijolos, ou mesmo que fosse combinado com atividades artesanais
em barro, palha ou madeira.
O negócio e agricultura combinado com a manufatura, pelo visto, também é
comum nesta região do Sertão. Aliás, não é fortuito que, aqui, a tecelagem seja
57
esta manufatura. O município de Caicó, no Rio Grande do Norte, situa-se na
região do Seridó, que inclusive deu nome ao tipo de algodão cultivado
localmente
13
. Na própria trajetória do casal esta história ficou impressa: D.
Francisca chegou a trabalhar de fiar na fazenda que produzia algodão. Depois os
fios eram vendidos para o sítio Oliveira, onde as redes eram produzidas.
Outra situação que remete ao mesmo contexto da pesquisa de Garcia Jr. é
o fato de Dona Francisca ter se referido aos bordados “para fora” como algo que
não está inserido nos cálculos da tecelagem ou da família como um todo, pois o
que ganhava com isso era “pra mim mesma, pra comprar minhas coisas, ou
alguma coisinha pra casa”. Esta expressão lembrou o sistema de oposição casa-
roçado: o roçado seria a esfera de realização do grupo doméstico como unidade
de produção e estaria sob comando do pai, chefe de família e a casa seria a
realização da unidade de consumo, sendo a esfera de responsabilidade da mãe.
No caso em questão, a tecelagem passaria a equivaler ao roçado e os bordados,
o roçadinho ou a criação de miunças
14
ou bichos da casa, que costuma ficar a
cargo da mãe ou das filhas, e cujo destino é por elas mesmas decidido, sendo
geralmente utilizado para compra de objetos pessoais, roupas para a família e
utensílios para a casa.
Conforme argumentado por Heredia (1979), ocupando-se também dos
pequenos produtores no Nordeste, o que esta proposição vai indicar é toda uma
hierarquia e distribuição das tarefas e do tempo de trabalho que revelam uma
diferenciação individual do que é produzido e consumido, distinguindo as tarefas
13
A produção de algodão não é mais comum na região desde que o bicudo infestou as plantações
na década de 1980.
58
que devem ser executadas pelas mulheres, daquelas realizadas pelos homens, e
ainda a das crianças, por mais que continue sendo válido o princípio de que o
esforço está voltado para a reprodução da família como um todo.
O relato de Gegê, neste sentido, evidenciou as relações familiares que se
sobressaem quando se trata do funcionamento da tecelagem e de todos os
rearranjos entre pai e filhos que foram necessários para garantir a combinação
entre tecelagem e viagem.
Para que pudesse viajar à Bahia, o que significa uma possibilidade de
ganho maior no negócio, era necessário que alguém tomasse conta da tecelagem,
ou que algum de seus filhos estivesse em condições de administrá-la. Verifica-se,
nesse momento, uma transferência de papéis no ordenamento familiar da
tecelagem permitindo ocupar, no ramo de rede, a posição de dono de
tecelagem que viaja.
De acordo com o relato de Gegê, os prejuízos dos cheques devolvidos
provocaram um segundo reordenamento, fato bem significativo: um dos filhos
também deveria ser disponibilizado para a viagem, enquanto um outro ficaria
administrando e o terceiro (Gegê) trabalhando de tecer. Até que a viagem se torna
atividade central daquela unidade de produção e comércio”: Zé, dois de seus
filhos e um funcionário viajando, enquanto somente um dos filhos, aparentemente
a contragosto, ficaria administrando, ou seja, há aí um terceiro reordenamento.
Todos esses rearranjos promoveram uma articulação espacialmente ampla
da família no ramo de rede e o negócio passa a poder transitar entre Caicó, a
Bahia e São Paulo. Neste movimento, o irmão de é incorporado indiretamente
14
Cabra, ovelha, aves, etc.
59
no negócio, quando sua casa em São Paulo passa a ser um outro ponto. Será
essa uma estratégia que tanto garante a extensão da viagem, quanto mantém os
laços familiares, as fronteiras da família a despeito da não contigüidade de seus
espaços
15
? Uma tal questão tem por fundamento que as categorias de parentesco
não são dados “naturais”, evidentes, que falam por si só, mas que é necessário
desvelar outras mediações responsáveis por revigorar os vínculos familiares, isto
é, um irmão pode ser identificado como um irmão porque nasceu dos mesmos
pais, mas isso não necessariamente diz alguma coisa sobre a identidade, o
pertencimento ou a inclusão de alguém numa mesma fronteira.
Enquanto o irmão de Zé, tio de Gegê, passa a ter seu vínculo com a família
reforçado, sendo inserido na fronteira que reúne a tecelagem e o negócio segundo
as formulações de Gegê, um dos irmãos de Gegê aparece excluído desta
fronteira, ao ser proprietário de uma outra tecelagem.
Entre os irmãos de Gegê inseridos nesta fronteira da tecelagem e do
negócio, neste modo de representar a família, como unidade de produção e
consumo, forma-se uma hierarquia, pois um dos filhos é sócio do pai, enquanto o
outro viaja e Gegê administra. Uma das filhas também trabalha para a tecelagem
do pai e ganha por produção, mas não foi incluída por Gegê nas situações de
reordenamentos dos esforços familiares no que diz respeito à centralidade da
viagem e da administração da tecelagem.
15
Novamente resgato um exemplo apresentado por Ana Claudia Marques (2002) “Quando algum
de seus membros abandona a fazenda e passa a residir em uma cidade próxima, a ligação não
precisa ser desfeita, muito embora ao longo do tempo seja bastante possível que algo se
modifique. De algum modo se pode ser e deixar de ser, ao mesmo tempo, um Albuquerque da
Imburana. Considerando que o mesmo se pode passar com a geração seguinte daquele que
mudou a residência, notaremos que uma pessoa pode ser um Albuquerque da Imburana sem
jamais ter morado lá” (p.126).
60
Geraldo (Caicó - RN)
Para Geraldo, os membros de sua família são: ele, a esposa e seus dois
filhos. Por serem muito pequenos, eles não contribuem para o trabalho e ainda
ocupam o tempo de sua esposa.
Geraldo compra tecido ou pano, gabardine, e apronta redes de sol a sol
com sua esposa. Ela faz os bordados e ele o cordão de trancelim, passa o ponto,
faz as mamucabas e empunha. Às vezes, compra ou troca linha pelas varandas.
Essas redes de gabardine e com bordados, são consideradas mais caras e por
isso não são muito vendidas na Feira da Pedra. São feitas sob encomenda das
lojas aos atravessadores.
A estranha conversa com Geraldo seguiu em tom de reclamação sobre o
papel da D. Arlete que, segundo ele, usa seu prestígio como presidente da
Associação das Bordadeiras para atuar como atravessadora. Visto ter acesso às
encomendas feitas por lojas de todo o Brasil, ela monopoliza o preço e o trabalho
dos artesãos, se apropriando da margem de lucro sobre valor oferecido pelas
lojas. “É como se ela estivesse fazendo um favor, se você não aceita trabalhar
para ela, depois fica sem trabalho. Eu já pensei em viajar, ir pra Natal, vender
direto para as lojas. Assim ia ganhar melhor, sem atravessador. Mas somos só
nós dois trabalhando aqui, não posso parar o trabalho. Com o trabalho de artesão
assim só dá pro comer”.
A história de Geraldo ilustra uma situação oposta à de do Crediário: ele
não pode deixar o trabalho de sua unidade produtiva para viajar e, não
61
compensando a venda na feira, fica mais vulnerável aos atravessadores. É um
caso que confirma, pela negação, a importância que os familiares assumem na
conjugação das oportunidades de inserção no ramo de redes.
D. Alice (Jardim de Piranhas - RN)
A família do marido de D. Alice era proprietária de uma fazenda, onde havia
exploração de xelita. Ela e o marido recebiam 17% do minério explorado na
fazenda e ainda compravam mais dos sítios da região para revender em Caicó.
Com o dinheiro deste negócio investiu na tecelagem, que hoje tem três teares
para redes, cinco para sacos e onze para panos de prato, mas ela ainda terceiriza
mais três teares para panos de prato. D. Alice chegou a fazer bordados e teve
oitenta e cinco bordadeiras trabalhando para ela. O marido é falecido.
Um dos filhos é geólogo e fornecedor de fios (troca fios por rede), vendendo
para o Rio, São Paulo, Ceará e Pareoa Td[( )0.253657(m)-0.238588(a)0.5073136m507313( )-272.349(x)-4.058507313(07313(m)4.90487( )-19.8898(r)-1.3238507313(.38204(a)0.50d[(o131344368(o)0.507313(p)]TJ2783131.507313(g)0.507313(o)0.507313( )-7a2.349(x)-4.058507313(507313( )-272.349(x)-4.058507313(071291(o)0.507313(s)-4507313(o)-406686( )0.253657( )-25.4636(e)0.507392.( ).506686e)0..32354()0.50736(z)-9..998]TJ-278.872 -20.1 To1313443506686(x)-4.05851(p)0..8898(e)0.507313( )-198.067(o)0..0333(d)0.506686(r)-1.32479(d)0.507313(a)0.507313( )-10.0307(d)0.)1(o)0.504(a)0355(e)-2507313(o)0.507313(ó)0.507313(c)-4508569(i)0.831291(o)0.507313(s)-4.05851( )-7J278.872 0253657(5)0.)1(o)0.504(a)038.872 05.1767(f)0.831291(c)-4.05851(e)0.507313( )-71.7522(c)-4,1(o)0.504(a)038.872 090.054(i)0.83138.872 090.054(c)-4508569(i)0..32354(ê)0.507313(s)-4.05851( )-7J2755(e)-2831291(o)0.507313(s)-4507313(o)0.507313(s)-4.0071(p)0.507355(e)-2“07313(t)-4.8898(o)0.5507313(s)-4.05851( )-4507313(.)0.253657( )-2”Td[( )98]4.054(q)0.507355(e)-2.05851( )-7J2755(e)-2.65077( )-4.880196(e)5.650291(o)0.504802( )-1.65077( )-4.507313(d)0.507313(o)-4507313(,)-4.8898( )-2583138.872 0507313( )-1507313(p)]TJ278.872 007313(c)-4.056(e)0.507313(l)l)0.831291(i)0.831291(t)0.507313(e)0.507313(m)-0.238588(,)]TJ333(136TJ278.879-25.4636(o)5.65040[(c)-2.05851( )-7J.88 -20.16 Td)98]4.0.253657(a)0.506686(z)-9507313(s)-4507313(o)0.507313(r)-198.067(R)-3.22713(a)0..507313(r)-1.32479(i)0.20196( )-128.333(d)0.507313(m)-5507313(e)0.880196(e)5.650291(o)0.0.3202(d)0.507313(e)0.7313(l)l)0.u32479(i)0.20196( )-1507313( )-25.4636(t)0.253613(e)0.507313( )-1.89231(e)0.507313(m)-5253657(t)0.25313(c)-4831291(o)0.507313(s)-4.05851( )-198.067(C)-3.22713(e)0.q0.054(i)0.u0071(p)0.5.1767(D)-3.22722(.)0.507313( )-71.7547(t)0.251722(.)0.07313(c)-4.0071(p)0.v07313(i)5.97223(r)-6.251722(.)0.507313(d)0.507313(o)-4507313(m)-0.238588(,)]n05851( )-4507313(s)-4.0d[( )3.98.054(q)0.98.067(C)-3.22713(e)0.831291(o)0.50288.356 0.8898(o)0.5507313(s)-407313( )-198071(p)0.ç07313(4)-4507313( )-298.067(P)-1.64722(.)0.507313( )-15.1767(D)-3.22722(.)0..32354()0.507313(e)0.565077(c)-4.05851(a)]T507313(r)-198.067(C)-3.22713(e)0.07313(r)-1.32354(i)0.9.48(v)1.0849713(e)0.507313(e)0.50313(r)-6.46699(t)0.253657(9-25.4636(a)0.50.88 -20.16 Td)3.98.0506686(x)-4253657(t)0.ó8.067(R)-3.22463(e74007313(c)-4.056(e )-190.054(o)0.50651.1809.507313(ç)-4.06102(ã)0.507313(.)-4.89253( )]TJ-231S)-1.6451.1809.“07313(a)0.O.4833lauuçeos P7(t.u0-657( )-190487( )-19.8898(r)-1.32351.1809..507313(i)0.831291(s)1.08495( )-169.898(()-1.32363(e7407313(l)l)0.u32479(i)0.207313(a)0.507313(d)-4.63614(e)0..8898(r)-1.32351.1780.507313(s)-9.20196(,)5..2251.1809.507313(s)-4.06102(ã)0.50d[( )41314368(o)0.507313(p)]T”3657( )-4.8-231S)-1.6451.1809.831291(n)-4.63614(h)0.9.898(()-1507313(r)3.81071(p)0.50751.1809.5.4636(t)0.253363(e74065077(c)-4..05851( )-71.7547(p)0.507313(l)0.831291(a)0.20196( )-107313(.)0.253657( )-7.6451.1809.831291(n)-4253657( )-7.6451.1809.508517 )-4í07313( )-4507313(v)-9.05851(ó)0..89253( )]TJ636(46289.856 -20.1 Td413143.253657(a)0.O53658(r)50.238588(a)0.507313(r)-1.32479(a)0.506686( )-2207313(a)0.50313( )278]TJ/R31 11.313(e)0.507313( )0.5.4636(t)0.25898(i)5.97475(o)0.507313(s)-9507313(a)0.507313(n)0.507313(d)0. 5313(c)-4831291(o)0..238588(,)]TJ333(o)0.50613(c)-4u238588(,)]TJ333(r)-1.32354(i)0.50613(c)-4507313(g)0.507313(o)0.507313( )-7a2.349(x)-4.0513(e)0.50-657( )-190487( )-1925898(i)5.9507313(l)0.831291(a)0.507313(o)5.a5851( )-25.4636(e)0.50713(a)0.507313(r)-1.3479(d)0.507313( )-25.4636(p)5.6538588(a)0.5073136 )278]TJ/R31 1507313(,)-4.8898( )-255.4636(e)0..d[(o)04.57313(u)( )’2.2702 0 Td[(-)04.573506686(x)-48497604.3 0 Td[(Td[(A)-1.64877( )-1O.4833)-3.2211(e)0.565014(s)-4.05851(o)-25.4636(e)0.84.911(d)0.507313(e)0.507313(s)-4.0476(c)-4.05879.. fce cdo44-4.8898( )-25.507313(i)0.831291(s)1..05879..sdestf
62
trabalhadores rurais. Este fato se opõe ao tipo de posição que Dona Francisca
ocupava na sua família (Zé do Crediário), em que a esfera feminina se caracteriza
pelo cuidado da casa e não das atividades que centralizam a unidade de produção
da família, ou da responsabilidade de prover a família. O exemplo de liderança de
Dona Alice somado ao de Ivelise e Auxiliadora, na Feira da Pedra, revelam
também que o ramo de rede pode ser uma forma de abrir espaço para uma
participação mais ativa das mulheres no que diz respeito à experiência econômica
familiar.
D. Alice também destacou sobre os negócios de família a sua relação com
os filhos, semelhante ao enquadramento de Gegê, sobre do Crediário e seus
filhos. Um filho aparece completamente incorporado em seu negócio, o que “anota
o movimento da tecelagem”. O outro tem um negócio próprio, de fios e tintas para
estamparia, valeria descobrir se ele fornece tinta e fios para a tecelagem da mãe,
e se ele troca ou compra mercadorias produzidas por ela para vender para fora.
Neste caso, tratar-se-ia da diferenciação entre negócios, cuja separação seria
fonte de novos tipos de relação entre mãe e filho.
O outro filho cuida do sítio, do qual ela continua sendo reconhecidamente a
dona. Creio que seja por conta da própria presença do gado que D. Alice disse “o
pessoal não quer cuidar...”. Provavelmente ela considera que a criação, em
comparação com uma época em que havia plantação e engenho no tio, não tem
o significado de cuidar do sítio, até porque a criação de gado diminui
significativamente o investimento de trabalho. Como é comum as famílias terem
sítios, mas ninguém morar lá, a preferência do filho pelo sítio é, por outro lado,
63
mais um aspecto do arranjo da família para conjugar diferentes formas de
participação econômica.
Por fim, a inclusão do genro no relato não estava abstraída de sua própria
participação na conversa. Quando cheguei na casa de D. Alice, foi ele quem me
recebeu e chamou-a depois. Ele e a filha moram na casa dela. Também foi o
próprio que citou seu negócio de peças para motos, quando conversávamos sobre
os negócios da família.
Mariano (Jardim de Piranhas - RN)
Conheci Mariano na Feira da Pedra e depois fui até casa dele. Chegando
lá, conversei primeiro com sua esposa. Ela me contou que, antes e um pouco
depois de casarem, eles eram moradores de fazenda. Mais adiante ele se tornou
negociante: comprava animais nos Sítios, abatia e vendia na rua. Depois
montaram a tecelagem.
Então, Mariano chegou e iniciamos nossa conversa pelo assunto
tecelagem. “Tenho muitos filhos, eles sempre me ajudaram”. Não é à toa que no
cartão que me deu diz: “Tecelagem Dez Irmãos Org.: Mariano 10 filhos”.
Atualmente, são os filhos que cuidam da tecelagem, mas quatro deles foram para
Fortaleza.
Depois contou que o irmão da esposa montou uma fábrica de material de
couro no Ceará. Dentre os quatro, dois filhos têm suas próprias fábricas e
fornecem material para as lojas do tio (ele tem uma rede de lojas no Ceará). Um é
gerente de uma das lojas e o outro trabalha com um dos irmãos.
Emendamos o papo da história dos filhos no Ceará com a história do sítio.
A terra foi comprada por um de seus filhos, dono de fábrica de couro. O filho
comprou, mas é Mariano quem cuida. “É um sonho pra mim. Sempre tive o sonho
de ter uma terrinha”. O sítio tem criação de gado e plantação de milho e mamão.
Há também um morador.
64
A conversa terminou e nós praticamente não falamos mais sobre a
tecelagem e sobre os outros filhos de Mariano. Mas duas informações obtidas na
Feira da Pedra são importantes acrescentar: eles têm clientes no Ceará, além do
negócio da feira.
A trajetória de Mariano repete a mudança da condição de morador à
negociante, mas dessa vez a combinação de sítio e negócio não é intermediária.
Ela se realiza muito tempo depois, com a ajuda do filho. É provável que a própria
oportunidade de cuidar do sítio tenha sido o motivo que fez Mariano relembrar o
desejo de ter a própria terra em tempos passados. Por sua vez, fica em questão
as motivações do filho, do Ceará, comprar um terreno em Jardim de Piranhas. A
aquisição da terra pode ser um excelente meio de revigorar os vínculos com o
local e a família, para quem prospera nos negócios em outro estado.
O enquadramento de Mariano também se voltou para as relações pai-filhos
e é interessante que nele tenham sido destacados os filhos que estão no Ceará,
do que os filhos que cuidam da tecelagem. Decerto, são nculos que exigem
maior elaboração do que os naturalizados pela presença, sobretudo quando é o
cunhado que propicia e polariza este outro negócio de família.
Luciano (Jardim de Piranhas - RN)
A origem da trajetória de Luciano no ramo de rede é a tecelagem do pai.
Esta tecelagem inicialmente estava instalada no sítio e, em 1969, Chiquinho do
Ouro, pai de Luciano, levou sua esposa e os filhos para morar na sede do
município. O sítio era herança do avô paterno e viviam, além deles, o irmão de
65
Chiquinho. Os dois eram sócios da tecelagem. No sítio havia gado, roçado e
Chiquinho ainda negociava com jóias:
E.: E na tecelagem tinha funcionários ou era só a família?
L.: Tinha os funcionários e a família.
E.: E para cuidar do sítio?
L.: Tinha, tinha pra tudo. A gente veio pra cidade pra colocar a gente pra
estudar. Agricultura tinha, mas só era bom no inverno. Basicamente a gente vivia
de tecelagem, e naquela época meu pai tinha um negócio com jóias. O apelido
66
de rede. A tecelagem foi transferida para a cidade, mais tarde que o irmão de
Chiquinho também se mudou.
Os dois filhos de Chiquinho do Ouro trabalhavam na tecelagem e
ganhavam um salário. Ambos chegaram a administrá-la por um tempo, mas,
depois, com o falecimento do pai em 1993, eles dividiram:
E.: Por que vocês fizeram isso?
L.: A gente tava vendo que tudo num canto não compensava. Tirar
despesa para várias pessoas. Cada um foi constituindo família, não dava pra todo
mundo. Cada um formou sua empresa, foi trabalhar para si.
E.: Antes de vocês separarem, como ganhava cada um?
L.: Cada um ganhava o seu, papai pagava pelo trabalho de cada um.
E.: Pelo trabalho?
L.: Pelo trabalho, tinha aquele... salário.
E.: E era igual pra todo mundo?
L.: Dependia do trabalho de cada um... variava, cada um tinha um trabalho
diferente, né? Primeiro ele era o chefe, quando foi passando o tempo a gente
passou a administrar.
Hoje a tecelagem de Luciano tem seis teares e produz somente pano de
prato. Ele ainda terceiriza oito teares, isto é, troca fios por tecido. A esposa faz
bainhas e, além dos funcionários homens nos teares, havia cinco mulheres na
estamparia dos panos. Os seus dois filhos são novos, um com dezenove e outro
com dez. Só estudam.
E.: Como é, agora que vocês estão independentes, a sua relação com seu irmão?
Tem algum negócio juntos?
67
L.: A gente tem umas parcerias aí. Por exemplo, eu não tenho urdideira,
eu terceirizo com ele.
E.: E como é que você paga?
L.: Eu pago o carretel. eu não tenho o alvejamento. Ele alveja pra mim,
eu pago a ele. Ao invés de fazer um investimento desses que sai caro, eu pago a
ele. E a gente também tem outro rapaz, que ele terceiriza para mim. Eu dou a ele
tantos quilos de fio, ele me tantos quilos de tecido, depois eu pago a diferença.
Ele tem os teares, eu dou o fio, a matéria prima, ele me dá o tecido.
O relato de Luciano traz seqüências de associações e separações
significativas. Os irmãos, pai e tio de Luciano, se unem para montar a tecelagem
mas fazem negócios separados e, com isso, demarcam negócio e tecelagem
como relações distintas. A tecelagem que era uma unidade na família, em duas
gerações de irmãos – “Nós saímos tudo dum canto só” – se divide com a morte de
Chiquinho, mas isso não significa um apartamento completo das possibilidades de
associação entre, pelo menos, Luciano e seu irmão. As parcerias entre os irmãos
configuram tanto relações em que um completa as etapas para o outro, quanto
relações entre negócios, um negociando com o outro, sendo necessário, para
tanto, a existência de duas empresas diferentes.
Finalizando, Luciano vende os panos de prato na Feira da Pedra e para
clientes em quase todas as regiões do Brasil. E ainda apresentou um tipo de
vendedor que não tinha sido identificado até então:
E.: Você viaja?
L.: Eu tenho os clientes que eu mando direto. Tem outros que eu vendo
aqui, vão vender lá na região. Os clientes são tudo daqui, da região de São Bento.
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A gente vende pra Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste, é mais difícil pro
Sul, é o ramo que a gente tem mais dificuldade de entrar, o produto daqui. Ainda
mais pra mim que vendo pano de prato, pra rede e manta é mais fácil, tem em
todo o Brasil.
E.: Na época do seu pai era pano de prato também?
L.: Na época dele era rede, colcha de cama... o básico era rede na época.
E.: E vendia para onde naquela época?
L.: Naquela época era mais Norte e Nordeste. Ele tinha os clientes e
vendia pros clientes daqui vender lá. Nesse sistema que você viu no Rio de
Janeiro. O caminhão leva um monte de vendedores, aluga uma casa, e bota os
vendedores pa...
E: O dono do caminhão comprava de vocês?
L.: Comprava... Ainda tem muita gente que trabalha com esse sistema aqui em São Bento.
E: Vocês têm caminhão?
O: Não.
E: Pano de prato também vende assim?
L.: Vende também.
E.: Tem comprador seu que faz isso?
L.: Tem, mas é pouco. A gente tinha um vendedor que ia pro Pará,
arrumava os clientes e fazia o pedido. Trabalhamos assim por dois anos.
E.: E quem é ele?
L.: É um cara aí da Paraíba.
E.: Como era? Como vocês faziam?
L.: Ele vendia assim pra um outro produtor, nós entramos em contato
com ele. Ele levava o mostruário, trazia os pedidos e a gente mandava entregar.
Passei 2004 e 2005, depois houve um problema a gente parou.
E.: Ele ia para onde?
L.: Estado do Pará e Maranhão.
Família Nunes Rocha (Sítio Barra de Cima - São Bento - PB)
69
Quando encontramos Vanessa no Sítio Barra de Cima, na divisa dos
municípios de São Bento e Jardim de Piranhas, estávamos em frente à tecelagem
onde ela trabalha, operando uma máquina de trancelim. Na mesma tecelagem, o
pai trabalha de tecer. Perguntei se o dono da tecelagem era parente deles: “Não é
parente mesmo, é gente conhecida da gente. Mas aqui quase todo mundo é
parente”. As terras no entorno da tecelagem, com seis teares, são do pai da
esposa do patrão, que é proprietário de caminhões que tanto fazem frete, quanto
viajam com turma.
Durante o encontro com Vanessa e a prima Aparecida, apareceu a mãe de
Aparecida, D. Maria. Aparecida é casada com um rapaz que faz frete de rede para
o Pará. Quando ele não está, ela fica na casa do avô, onde nos sentamos para
conversar, enquanto Aparecida fazia mamucaba. As redes que apronta, ela troca
com o marido da prima legítima que tem uma tecelagem com três teares. Ao
perguntar o que ela faz com a parte dela da troca, ela disse: “Eu não ganho nada
disso não, quando preciso de alguma coisa, é meu marido que dá. Isso aqui é só
pra não ficar parada, quando dá dinheiro é muito pouco”.
O pai de Aparecida também faz frete, é dono de carro. Eles moraram
durante três anos no Pará. “Ele vinha e comprava rede no cheque, pra vender lá”.
Comprava do próprio pessoal do Sítio, dos primos, dos cunhados.
A uma certa altura da conversa, resolvemos mapear o que faz cada irmão
de Maria. São nove irmãos. Roberval e o filho, Lindomar, têm uma tecelagem com
cinco teares e ainda viajam para Juazeiro do Norte. Mané, e Chico, vendem
rede no Maranhão, compram no Sítio ou em São Bento para vender lá. O pai de
Vanessa trabalha de tecer para os outros. Zefa apronta pro irmão e “pra fora”. Gigi
foi para o Pará com o marido, mas se separaram. Ela tem quatro filhos que
vendem rede. Com a ajuda dos filhos e dos irmãos ela está pagando um carro,
para vender rede no boca de ferro. Nego também vendia rede com os irmãos no
Maranhão, mas se casou e foi morar na terra do sogro em Santarém. E, por fim, a
Tia Sonia, que mora e ajuda a cuidar da casa do pai.
70
O pai de Maria, avô de Vanessa e Aparecida, é o dono do sítio que chegou
a ter roçado, mas hoje é ocupado apenas com as casas. Aparecida tem sua
própria casa onde mora com o marido, entretanto, quando ele está viajando ela
fica na casa do avô, que continua exercendo uma centralidade para a família.
Este encontro no Sítio Barra de Cima lança um prisma completamente
diferente dos anteriores sobre o modo de uma pessoa representar as fronteiras de
sua família em relação ao ramo de rede. Esta diferença se explica, em parte, pelo
posicionamento familiar e o papel das informantes neste ramo: Vanessa é uma
operária de tecelagem, Aparecida faz mamucabas e é esposa de dono de carro e
D. Maria também é esposa de dono de carro. Assim, não estava em questão a
transmissão do patrimônio, questão que talvez imprima uma fronteira de parentes
muito referida à tecelagem. Pergunto-me, se tivesse conversado com Roberval, se
seria este o quadro que teria montado sobre sua família no ramo de rede. Além
disso, sendo três pessoas, nos referimos às relações de parentesco que considera
o cruzamento entre as três. Por este motivo, mapeamos os irmãos de Maria, mãe
de Aparecida e tia de Vanessa.
Nota-se que entre os dez irmãos, oito estão envolvidos diretamente no
ramo de rede, um esteve e o outro cuida da casa, que acaba sendo um papel
importante para a reprodução social da família. A mãe é falecida, o pai está bem
idoso, mas a casa está sendo mantida, e mantida como ponto de referência para a
família no Sítio. Não é sem razão que a Tia Sônia foi a última a ser lembrada,
Maria teve dificuldade de apontar a irmã, mas quando seu nome veio à tona, era
como se tivesse faltado perceber o óbvio. Estávamos lá, na casa onde ela mora.
71
Quanto às associações entre os familiares no que concerne o ramo de
rede, demonstrou-se que alguns dos irmãos têm seu negócio separado, mas eles
se apóiam mutuamente. Em algumas circunstâncias relações entre negócios
entre os parentes: primos e cunhados podem estabelecer relações de compra e
venda entre si. A maioria dos irmãos é vendedor por conta ou dono de carro, e
através desses posicionamentos caracteristicamente móveis, constitui-se uma
constante circulação entre o tio e o Pará ou entre o Sítio e o Maranhão.
Mantém-se o Sítio como um ponto de referência que articula esses fluxos, seja
enquanto lugar onde a família pode se reencontrar, seja como espaço onde se
estabelecem relações comerciais, como espaço que provê as mercadorias.
Certamente para os parentes (primos ou cunhados desses irmãos, conforme elas
destacaram), o funcionamento de suas tecelagens deve depender desses fluxos
de outros parentes que “compram aqui, vão vender lá”, ou que estão
estabelecidos lá.
Uma relação curiosa que apareceu foi entre Aparecida e o marido da prima
legítima. Ela faz mamucabas para a tecelagem dele e disse não ganhar dinheiro
nem rede por esta atividade. Comparando com a situação da irmã de Gegê (Zé do
Crediário), que faz mamucabas para a tecelagem do pai e ganha por produção,
fica realmente em questão que tipo de relação pode estar em jogo. Considerando
o argumento de que fazia as mamucabas “para não ficar parada”, esta relação
teria a ver com algum tipo de troca menos evidente associada à sociabilidade do
sítio? Ou teria a ver com as relações entre o seu marido e o marido da prima?
A perspectiva da Família Nunes Rocha revela uma composição inédita até
aqui: em um pequeno grupo de parentes distribui-se uma série de
72
posicionamentos do ramo de rede, como por exemplo, dono de tecelagem que
viaja, dono de carro, vendedores por conta, vendedor no carro boca de ferro,
pessoa que trabalha de tecer para os outros (tecelão), operador de conicaleira,
pessoa que apronta. Se podemos pensar que a distribuição destas categorias
entre os familiares contribui para a constituição de um sistema de coordenadas em
que cada um dos membros vai se orientando e reconhecendo as inúmeras
possibilidades de inserção nesta economia, o mesmo raciocínio podemos
transferir para o modo como se constrói um conhecimento sobre os diversos
espaços que a família ocupa, o que deve favorecer o significativo deslocamento
entre essas áreas, notadamente, entre a Paraíba, o Maranhão, o Pará e o Ceará.
Daí se pode inferir o quanto o ramo de rede acumula um conhecimento que vai
ampliando as oportunidades econômicas e espaciais.
Este tipo de abordagem foi suscitada pelos estudos de Patrick Champagne
(1975) que observou como a forte dispersão espacial e social das famílias rurais,
que vêem a maior parte de seus membros deixar a aldeia e abandonar o trabalho
da terra, constituem as mediações concretas mais importantes pelas quais se
opera a mudança da percepção do espaço social pelos camponeses, e são o
principio de uma transformação do sistema de coordenadas sociais por onde se
situam os indivíduos que permaneceram na aldeia (p. 47).
Alba de Leandro (São Bento - PB)
Ao chegar em frente à fábrica de Alba em São Bento achei que estivesse
mais uma vez diante de uma tecelagem com uns 6 teares. Entretanto, aquele
pequeno galpão velho ao lado de outros como ele fazia parte do patrimônio
73
industrial de Leandro e Alba. No total contam-se 99 teares, entre a produção de
redes, mantas e panos de prato. Mostrando-me um dos galpões anexos, Alba
disse estar aprimorando a qualidade do tecido do pano de prato para poder
concorrer no fornecimento para uma rede de supermercado.
E.: – Como vocês começaram a trabalhar com rede?
A.: Meu esposo era solteiro e a gente morava em cidade vizinha, São
José, e a gente se deslocou para São Bento. Me casei, ele possuía caminhões,
carregava rede de frete. Quando a gente se casou, ele, por cinco meses, tentou
colocar essa indústria: comprou cinco máquinas. Então, passou 8 anos sem viajar,
parou de viajar em caminhão e foi fabricar. que as dificuldades do comércio
vieram, eu tive que tomar conta da tecelagem e ele fica sempre viajando, Minas,
Rio. E eu fabrico, trabalho com cerca de 90 pessoas, fabrico em torno de 15 mil
unidades por semana. Então eu fico mandando por caminhões, a gente tem
caminhões, fica transportando até ele lá (Rio) e ele fica distribuindo em grosso. Ele
passa, ultimamente ele está passando 60 dias sem vir em casa, então eu tenho
dois filhos, eu tenho que tomar conta de comércio, de filhos, e graças a Deus,
Deus me deu esse dom, me deu essa fortaleza pra tomar conta e dar conta. No
início, ele passava 15 dias por lá, passava 15 aqui, que o comércio vai
aumentando, as vendas vão aumentando e ele está chegando a passar 60 dias lá.
E eu que estou me deslocando, passando 5 dias com ele lá, de vez em quando.
Deixo meus filhos com uma menina que mora comigo que é muito responsável; e
o comércio com três pessoas à frente, muito responsável, sempre controlando por
telefone: uma venda, uma entrega, um carro para carregar, eu fico meia hora no
telefone fazendo esse serviço, controlando. Tendo que passar cinco dias e
voltando. Vai fazer 60 dias que ele está vindo, dia 15 de junho.
E.: – Ele vende para os vendedores que ficam por lá? Ou ele vende com
turma?
74
A.: É o seguinte, a turma que a gente tem trabalha em São Paulo. Quem
fornece para a turma sou eu daqui. Ele, eu forneço pra ele hoje e ele distribui em
grosso, ele só vende atacado. Não trabalha com varejo, não.
E.: – Ele vai aos depósitos?
A.: Vai aos depósitos fazendo entregas. Por exemplo: cada pessoa pega
mil redes, cobertas, outras 500, ele tem um carro ali que entrega. Ele tem
um ponto alugado lá, ele guarda a mercadoria e controla tudo por telefone. Ele
mesmo que faz entrega.
E.: – É em Campo Grande também o ponto?
A.: – É, em Campo Grande.
F.: – E Jardim Bangu – disse uma funcionária que estava por perto.
A.: – Também, mas em Jardim Bangu é o irmão dele que mora.
E.: – Ele tem um irmão lá também?
A.: Tem um irmão dele que foi para 7 anos. Foi através do comércio
de rede e lá já construiu casas, construiu família.
E.: – Ele é casado com...
A.: É casado com uma parente minha, prima. Foram embora, se fixaram
e a gente que fornece mercadoria para ele. E além do irmão tem primos. A
gente vende tudo entre família, entendeu?
E.: – Então quem está lá da família?
A.: São primos, primos legítimos, sobrinhos, são vários, são tantos,
porque a gente mora numa comunidade onde existe 5 famílias: Santos, Andrade,
Pereira, Sales e Rocha. Então todo mundo é parente um do outro.
E.: – Lá no Rio?
A.: em São José que é a minha cidade. todo mundo mexe com
rede, quando não é, é São Bento, Serra Negra, é Patos. Mas esse pessoal tem
outro parentesco, eu estou falando da minha ligação aqui com a indústria e minha
venda. A gente também fornece para outras pessoas, além de família, que hoje
o grupo redeiro se familiarizou, porque é todo mundo junto. Todo mundo trabalha
em conjunto, todo mundo se loca num canto só, onde está um, estão todos.
75
E.: E tem alguém que começou? O pioneiro? Foi seu marido
mesmo?
A.: na minha cidade são dois que começaram. Jackson e Manel. Até
hoje Jackson continua vendendo rede, que Jackson começou a trabalhar de
empregado. Hoje ele é patrão. Manel parou de trabalhar. Hoje são os filhos
que trabalham. Meu esposo, Leandro, a vida dele começou, ele botava água na
rua pra ganhar dinheiro para sobreviver, ele começou trabalhando para hoje é o
atual prefeito de São Bento. Ele era empregado dele. que foi indo, ele foi muito
econômico e daí a pouco comprou um carro, passou a trabalhar com o irmão
dele que mora hoje no Rio. Eles trabalhavam juntos, que o tempo foi passando
e cada um foi ficando independente, hoje cada um trabalha para si.
E.: – Fale um pouco mais sobre a família que está lá...
A.: – Tem um outro irmão dele que trabalha em São Paulo, tem um depósito
também com redes. Um irmão do meu esposo. A gente trabalha juntos. Eu, meu
esposo e o irmão dele.
E.: – Tem dois irmãos, um está no Rio, em Jardim Bangu...
A.: – É, o que mora em Jardim Bangu trabalha com redes, mas que a gente
fornece. O que trabalha em São Paulo é sócio com a gente. Tem depósito lá.
E.: – Sócio no capital?
A.: – Sócio no capital. Então ele faz a mesma coisa que Leandro faz no Rio:
entrega em grosso. Eu forneço para ele, ele tem o ponto e ele tem o carro que
faz entregas também pro pessoal lá. em São Paulo tem muita gente também,
família, como primos, sobrinhos. (...) Esse pessoal, primos, por exemplo,
sobrinhos, eles começam a trabalhar...
E.: – São filhos de quem?
A.: Filhos de irmão de Leandro. Eles começam a trabalhar da seguinte
maneira. A gente tem um carro, uma Mercedes que tem 30 homens em cima.
Dentro, desses homens vai ter sobrinho, primo. Então eles trabalham quatro, cinco
anos. Vão economizando. Dão duas viagens, compram uma moto, vão guardando,
compram outra moto, e chegam um ponto que compram uma D10 para ele. Um
sobrinho, por exemplo, já passa a trabalhar para ele. Entendeu?
76
E.: – Uma D10?
A.: D10 é um carro, uma caminhonete. passa a trabalhar para eles. É
assim que funciona, quando esse pessoal vai ficando com quatorze, quinze anos,
quer ganhar algum pra trabalhar, pra ganhar a vida. Então é dessa forma que
eles ganham a vida em família. Um ajuda o outro, entendeu? Quando eles não
têm como ser independente, um tio já ajuda, um primo já ajuda, lhe completa, e dá
uma mão, uma chance de trabalho. E assim prossegue.
E.: – Como é essa diferença? Você falou que tem um irmão do Leandro que
é sócio, ele não está comprando de vocês, e outro irmão, que aí compra de vocês,
no caso...
A.: Esse irmão que compra, foi sócio de Leandro, que no passar do
tempo os negócios não estavam dando certo. Então teve que separar, e eles
separaram, cada um foi trabalhar para si, amigavelmente. E o de São Paulo entrou
e ficou trabalhando com a gente. Esse aí é muito econômico, vai dando certo.
E.: – Houve algum desentendimento?
A.: – Não houve, não. comercial, mas nunca deixou de comprar, sempre
a gente dá continuidade no negócio.
E.: por curiosidade: como vocês são sócios, como é o acesso ao
lucro?
A.: Vou lhe falar: ele por ser irmão, eu cunhada, ele tem muita
organização, é um cara direito, a gente não faz conta de lucro, entendeu? Tudo o
que a gente ganha a gente investe e sempre um balanço, de ano em ano, mas
é na base da confiança entre família, a gente não faz conta de centavos, nem... O
que eu mando para ele eu anoto, o dinheiro que ele manda é anotado. que é
uma coisa confiável, porque a gente sabe com quem trabalha. É amigável. Ele é
solteiro, eu sou casada, eu tomo conta aqui, meu esposo no Rio e ele em São
Paulo. Então é uma coisa que a gente confia um no outro, entre família.
E.: – Esses sobrinhos, primos...
A.: Tem um sobrinho dele que trabalha com a gente, é caminhoneiro. Ele
trabalha com meu esposo... aliás morou comigo. Morou cinco anos na minha casa.
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E sempre trabalhou comigo, até hoje, se casou e é caminhoneiro nosso hoje.
faz dez anos que trabalha conosco.
E.: – E ele vende no carro com a turma?
A.: Não, ele puxa mercadoria para Leandro e pra São Paulo, pro Rio e
São Paulo. Minas, Rio e São Paulo. Eu coloco a produção em cima do caminhão,
que o caminhão é nosso, então ele sai fazendo as entregas. Sobrinho, né?
E.: – E o pessoal que trabalha como redeiro? Tem redeiro da família lá?
A.: Tem, muitos, família. Veja só. Hoje tenho cerca de 20 Mercedes
que carrega aqui comigo. É tudo de primo. Eu forneço mercadoria pra esse
pessoal. A confiança é tanta que eles nem cheque me passam. Eu vendo a
mercadoria, ele já deposita em conta minha. É uma coisa confiável.
E: – Geralmente tem um encarregado, né?
F: Tem um encarregado. Por exemplo: o encarregado coloca 20 homens
em cima, entendeu? E passa a trabalhar fora. que a vida do redeiro é muito
sofrida. O lucro em si, disso aqui é muito pequeno. Eles sofrem muito, só que hoje,
eu vou lhe dizer, ele que vende na rua, ele tem um lucro melhor na mercadoria do
que o próprio dono do carro. Antes a gente ganhava muito, devido a crescer e ter
menos vendedor, então isso ficou ruim para fabricante e o dono do carro. O
redeiro, que vive no meio de rua, hoje ele ganha um pouco melhor, porque aplica
um pouco mais, é independente. Antes eu colocava a mercadoria por X, dava
R$1,00 para ele. Hoje não é, hoje tem muita mercadoria no mercado. Hoje eles
passaram a comprar e a ter seu próprio lucro. Mas é tudo entre família.
E.: – E aí são essas famílias, essas quatro famílias...
A.: Cinco famílias. são cinco, porque é tudo primo. É, às vezes primo
casado com primo, porque acontece às vezes, uma tia minha é casada com primo
legítimo. Geralmente lá casam com eles mesmos, cidadezinha pequena, eles
costumam casar entre família. Eu ainda sou parente do meu esposo, né, o
parentesco da gente é: as avós são primas legítimas. É tudo... primo namora
com prima... cidadezinha pequena que eles se entendem entre eles mesmos...
Entrou um homem na sala.
78
A.: – Ó, esse que chegou aqui é primo de Leandro, veio carregar um
caminhão para viajar. É tudo assim.
Alba de Leandro é a maneira que Solange (final deste capítulo) se refere à
Alba. Ela e o marido são fornecedores de redes e mantas para Solange e Manuel
no Rio de Janeiro. Observar-se-á, na trajetória das duas, um momento em que
serão chamadas a cumprir um papel bastante importante no negócio de sua
família.
Esse momento aconteceu para Alba quando o marido precisou viajar e ela
passou a administrar a tecelagem. Uma vez mais, a viagem marca uma situação
de reordenamento das relações familiares que constituem a unidade produtiva e
comercial. Este momento, aqui, também aparece associado às “dificuldades no
comércio”.
Na narrativa, os reordenamentos do negócio da família não aparecem numa
ordem cronológica como uma história da tecelagem, mas que foram relatados
conforme as diferentes associações de Leandro com seus familiares.
Outro reordenamento se refere ao irmão de Leandro que atualmente está
Jardim Bangu, no Rio de Janeiro. Quando Leandro estava apenas começando
antes ainda seu pai era morador de fazenda, e ele, empregado do atual prefeito de
São Bento – eles eram sócios e donos de carro. Continuaram como sócios quando
criaram a tecelagem e, mais tarde, “se separaram amigavelmente”, pois tiveram
desentendimentos comerciais, passando, mesmo assim, a estabelecer um outro
tipo de relação: o fornecimento de mercadorias. “Sempre a gente continuidade
ao negócio”.
79
Mais tarde, um outro irmão foi incorporado ao negócio de Leandro. “Esse
é muito econômico. Vai dando certo”, disse Alba. Então se formaram três pontos
desta trama: Alba em São Bento, Leandro no Rio e o irmão de Leandro em São
Paulo.
Muitos outros parentes estão incorporados ao comércio de Leandro e Alba,
e, em outros casos, Leandro e seus familiares estabelecem relações entre seus
respectivos negócios. Distinguem-se três tipos de relações de Leandro com
familiares no ramo de rede: primeiro, os sócios, com quem Leandro compartilha o
capital da unidade produtiva e comercial; segundo, os que fretam, trabalham como
corretores e encarregados, portanto, os que trabalham para o comércio de
Leandro e; terceiro, com quem Leandro negocia: donos de depósito, vendedores
por conta, vendedores no carro boca de ferro, vendedores no crediário.
Além disso, ocorrem transferências entre os tipos. Viu-se o caso do irmão
que, de sócio, passou a negociar com Leandro através do fornecimento de
mercadorias. Alhures, Alba descreveu o caso dos primos (legítimos ou não) que
começam trabalhando para Leandro como corretores e se tornam vendedores por
conta.
Elencando os familiares conforme suas posições no ramo de rede, temos:
entre os encarregados e os que fretam, primos e sobrinhos. Entre os corretores,
primos e o cunhado, pois a vi recebendo o pagamento do vale do marido da irmã.
Somando-se a estes, Alba e Leandro fornecem ainda para o irmão dela em
Cabo frio, que é redeiro por conta, e para o marido de uma irmã de Leandro, em
Belo Horizonte.
80
A localização de parentes apresentada por Alba é expressiva. O caso
revela uma articulação ainda mais ampla entre a distribuição das posições e sua
configuração espacial do que a apresentada pela família Rocha Nunes. É provável
que este fato se deva à centralidade do negócio de Leandro, que através dos
parentes pode acumular uma série de posições no ramo de rede: dono de
tecelagem, dono de depósito (ponto), vendas através da turma de corretores, dono
de carro, além de ser fornecedor de máquinas. Por outro lado, sua centralidade
também favorece a inserção dos familiares no ramo, inclusive em suas formas
independentes, isto é, nas relações entre negócios.
Ricardo (São Bento - PB)
Ricardo é fornecedor de fios e gabardine, trocando fios e gabardine por
rede pronta. Vive no Sítio São Paulo e tem um depósito em São Bento. O pai é o
dono do sítio, que já teve uma tecelagem com quatro teares.
E.: – Por que você começou a trabalhar com esse ramo?
R.: – Quando eu comecei a trabalhar com rede, meu pai trabalhava com rede.
E.: – Ele fazia o que?
R.: – Ele tecia. Fazia a mesma coisa que Alba faz aqui.
E.: – Ele tinha quantos teares?
R.: no Sítio ele tecia com quatro teares. Eu comecei ajudando ele. Aí
quando ele parou, eu tava encaixado. Ele disse: “Ricardo eu vou parar,
você fica”.
E.: – Mas aí você não quis ficar com os teares.
81
R.: É como eu tava dizendo a você, eu não gosto de trabalhar com muita
gente, aí eu parti pra comprar e vender porque ganha bem mais.
No sítio, plantação de milho, feijão e arroz, gado e um criatório de peixe.
Ricardo tem duas irmãs casadas e professoras, é o filho mais propenso a dar
continuidade ao patrimônio do pai:
E.: – Você pretende manter o sitio do seu pai?
R.: – É, eu não quero vir pra cá de jeito nenhum, só venho aqui na segunda, que é dia da feira. Acostumado no sítio.
E.: – E ele arrenda terra?
R.: Não, não, ele arrenda ainda por fora pra criar o gado dele. Nessa
época agora de inverno. Até do outro pessoal que é pra poder botar o gado dele,
porque ele cria bastante sabe? Compra, vende. Ele compra magro, pra poder
botar gordo.
Embora em termos da situação das famílias no ramo de rede, o caso de
Ricardo não ilustra grande amplitude, selecionei-o com o objetivo de apresentar
um contexto em que o sítio tenha um papel mais central para as experiências
econômicas da família.
Entre os exemplos apresentados anteriormente os momentos de crise
levaram a acomodações no negócio que geralmente implicavam em mudanças de
posicionamentos dos familiares em relação ao negócio: membros que deixaram de
trabalhar de tecer para administrar e liberar o trabalho de um outro para a viagem,
incorporação de um parente (irmão, esposa) no funcionamento da unidade
produtiva/comercial, divisão do negócio em negócios. Neste caso, as
acomodações implicaram em desfazer-se da tecelagem para poder dedicar-se
82
mais integralmente ao negócio e na transferência de investimentos entre sítio e
negócio. Nesta passagem, Ricardo revela como não quebrou porque tinha
respaldo do seu patrimônio, entre eles, gado:
E.: – Ele (o pai) nunca foi fazer negócio fora?
R.: Não, não, no mesmo esquema que eu faço. começou perdendo
também... Ele trabalhava com o mesmo setor que o meu. Maranhão, Pará, Ceará..
Mas chega a um certo ponto que de tanto você perder, porque esse comércio da
gente é delicado demais. Eu, por exemplo, em 2002, eu perdi 220 mil Reais, eu
praticamente não quebrei porque eu tinha muito patrimônio. Eu vendi pra pagar o
credor, pra poder não cair de vez. Esse comércio da gente aqui é muito
complicado. É muito alto o índice de cheque sem fundo de rede. Muito, muito,
brincadeira, não...
João (Rio de Janeiro - RJ/Paulista - PB)
Fui à Paulista procurar a família do João, corretor que conheci no Rio de
Janeiro. Ele me indicou que procurasse primeiro a casa de Juca, que fica na rua, e
pedisse a alguém que me levasse até o sítio onde mora a família dele.
Juca e João trabalham de corretor para Manuel e Solange. Aliás, foi Juca que
chamou João para trabalhar com ele. João se refere a Juca como irmão de criação. A família
de João morava no sítio da família de Juca. O pai de João trabalhava no roçado para os
donos do sítio e negociava com rede na feira. Comprava pano e a esposa e os filhos
aprontavam.
O sítio onde D. Vera e os filhos vivem hoje foi posse transferida pelo tio
paterno de João antes de morrer. Atualmente, o pai de João também é falecido.
No início da década de 1990, a família tinha o tio e morava na rua, quando
montaram uma pequena tecelagem com teares de pau. O sonho de João é voltar
a ter a tecelagem para os irmãos produzirem e fornecerem mercadoria para ele no
83
Rio. João chamou o irmão Guto para viajar, mas D. Vera contou que ele não se
acostumou, “o rapa levou o fardo de rede dele”.
Na época de inverno, por conta das chuvas, o rio enche e, para chegar até
o sítio é necessário atravessar de canoa. Nego, pai de Juca é o dono das canoas
que fazem a travessia das pessoas. Durante nossa travessia, minha e de D.
Selma, mãe de Juca, estava na canoa um primo de João que disse: “João é muito
bom, muito controlado. O sítio já tem uma boa rês de gado”.
Diversas vezes havia perguntado a João se ele ajuda a família no sítio e
que tipo de ajuda ele daria, mas ele nunca falou que comprava gado.
Provavelmente porque comprar gado não deve significar propriamente uma ajuda
à família. Fiz a mesma pergunta à D. Vera e ela se referiu ao dinheiro que ele
manda: “Cem reais tá bom mãe?bom meu filho”. Foi, no entanto, esta situação
inusitada do campo que revelou um fato tão importante.
Depois que voltei do trabalho de campo na região fronteiriça entre a
Paraíba e o Rio Grande do Norte, reencontrei o João. Nos cumprimentamos, dei
as notícias sobre a viagem, e, em seguida disse: “você não falou que mandava
dinheiro pra sua mãe comprar cabeça de gado”. E ele: “Já comprei até sete”,
contando ainda que o sítio tem um total de trinta reses. Adquiriu ainda uma parte
do terreno da tia, e agora quer comprar um chão de morada na rua, tudo isso
trabalhando como corretor.
Entre os corretores, é muito comum irmãos, primos e cunhados chamarem
uns aos outros para serem marinheiros, isto é, fazer a primeira viagem. Neste
caso, a inserção de João aconteceu através de seu irmão de criação, pois a
família de João morava no sítio da família de Juca e eles foram criados juntos. É
muito comum nesta região a existência de moradores de tio e, mesmo que a
situação de morador a impressão de subalterno, aqui um bom exemplo de
como certas hierarquizações devem ser pensadas de uma maneira flexível: uma
pessoa que trabalha para outra indica que eles ocupam posições distintas, mas
84
observadas em sua transitoriedade, isso não necessariamente implica numa
ruptura entre classes sociais.
É a partir das relações com os parentes, além das relações de vizinhança,
que os corretores acumulam e transmitem informações sobre o valor do vale,
sobre os lugares bons para vender em determinadas épocas, sobre os carros que
estão indo ou voltando, para mandar alguma coisa para casa, para pegar uma
carona, para mudar de patrão. Estas articulações são fundamentais
principalmente entre os vendedores por conta própria, pois precisam ainda alugar
casa, saber em que depósito pegar as redes e mantas, etc.
O caso de João ilustra também que a viagem como corretor pode ser uma
importante estratégia para a manutenção do sítio e para conquistar um negócio
próprio no futuro.
Solange
Solange veio para o Rio de Janeiro com o marido Manuel em 1994, porque
o mesmo precisava fazer um transplante de rins. “E foi por isso que a gente ficou,
se dependesse dele, só ia trabalhar viajando. Não era só o transplante, era
preciso fazer o acompanhamento pra ver se não ia dar rejeição”. Ela passou um
tempo explicando que o tratamento do marido poderia ter sido feito em Recife,
porque havia um bom médico conhecido da família e, além disso, Recife seria
bem mais próximo de Serra Negra (RN) do que o Rio. Mas, como eles teriam que
permanecer por um longo tempo na cidade onde fosse realizado o tratamento,
optou pelo Rio, onde tem um irmão militar e a cunhada morando na Ilha do
Governador, próximo ao Hospital do Fundão.
Um tempo depois de Solange e o marido, vieram sua irmã e o cunhado, que
também “trabalhava no caminhão” com Manuel. Foi através de Manuel que
Juvenal (cunhado de Solange) e Edith (irmã de Solange) se conheceram. Quando
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os dois vieram para o Rio, recém-casados, Juvenal deixou de ser corretor, vindo
trabalhar aqui em carro boca de ferro. Nessa época, outros negociantes que
Juvenal conhecera tinham se estabelecido em Campo Grande. A irmã e o
cunhado de Solange compraram, então, um terreno na mesma área, em 1996,
logo sucedidos por Solange e Manuel.
Solange falou da luta de “cuidar das redes e dos meninos”, pois foi ela que
ficou administrando o comércio, além de cuidar do marido doente. “Fiquei 17 dias
sem dormir”. Houve uma época que ela resolveu parar de trabalhar com os
redeiros porque “nem todos têm responsabilidade e redeiro gosta muito de
cachaça”, “ter que cuidar daqui e ir para o hospital todo dia tava dando muito
trabalho, os meninos vêm para e não têm ninguém. Eu me sentia responsável
por eles se acontecesse alguma coisa”. Desde então resolveu começar a vender.
“Também era um sonho aprender a dirigir”. Ela percorre os bairros (Senador
Camará, Vila Kennedy) numa D10, vendendo redes, mantas, edredons, panos de
prato, toalhas de mesa e fraldas. É uma espécie de comércio de porta em porta,
podendo pagar à vista e no crediário. “Fiz muitas amigas por lá. Dizem que é
perigoso nesses lugares, eu até vejo aqueles homens com metralhadora, mas eles
sabem que sou do trabalho e me deixam passar”.
Além do irmão e da irmã que estão no Rio, a mãe de Solange acabou vindo
também. Ela trabalha de diarista e mora em Campo Grande. A família é de
Pombal.
Nem sempre as acomodações são provocadas por uma situação crítica no
negócio. A crise pode ter origem na própria família, como é o caso de uma doença
que leva ao deslocamento de mãe, pai, filhos, irmãos, etc. O deslocamento desta
família para o Rio de Janeiro não foi apenas espacial, ocorreu também nas
posições que ocupavam no ramo de rede, portanto, o conhecimento das
oportunidades do ramo de rede permitiu a esta família contornar os seus
problemas. Manuel deixou de ser dono de carro e tornou-se dono de depósito.
86
Junto com essa mudança reverberou uma seqüência de reordenamentos: Solange
se incorporou às atividades do negócio, tomando conta da turma e vendendo no
crediário. Juvenal se incorporou à família, casando-se com a irmã de Solange e
deixou de ser corretor, tornando-se vendedor por conta no carro boca de ferro. E,
por fim, todas essas mudanças trouxeram conseqüências ainda mais amplas: a
família de Solange praticamente se transferiu para o Rio, fato marcado pela vinda
da mãe, pois ela diz que não tem vínculos importantes com os parentes na
Paraíba e há doze anos que não retorna.
87
Capítulo 3 – Negócio e viagem
Em “Com parente não se neguceia”, Klaas Woortmann procura aprofundar
o sistema de oposições entre trabalho e negócio, segundo o código moral
camponês. Ele sustenta a idéia de que o “comércio era atividade negativamente
valorizada por se basear na capacidade de ocultar informações” (1990:40). Assim,
com base nas apreciações de Garcia Jr. e Garcia (1984), recupera o sentido da
ênfase que certos feirantes, principalmente aqueles que dedicavam mais tempo às
feiras, tinham em afirmar que não “viviam do negócio”, que “trabalhavam”, isto
é, trabalhavam no roçado. Era uma forma de assegurar a honra, pois a
“invisibilidade do negócio torna duvidosa a honestidade do comerciante. Em outros
termos, o lucro do negócio escapa ao controle do grupo, ao contrário do ganho na
agricultura (...)”(1990:40).
Como se observa no primeiro e segundo capítulo, o grupo social que minha
análise recorta está amplamente envolvido com o negócio. Diria mesmo que,
nesta análise, o negócio é a própria forma que o recorta, pois é o que marca uma
identidade entre pessoas que, observando-as por outro prisma, podem ser muito
distintas umas das outras. Mesmo o negócio não tendo significado igual para
todos que tecem (são donos de tecelagem), tecem para os outros (tecelões),
aprontam, compram pano para aprontar, donos de sítio que negociam com rede,
redeiros, etc., o modo como estas posições foram sendo distribuídas e ampliando
as possibilidades de inserção das pessoas no ramo de rede, faz parecer inegável
a centralidade do negócio na sociabilidade local.
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O presente capítulo pretende indicar tanto as continuidades quanto as
descontinuidades de um contexto que parece ter sido compartilhado entre as
pessoas que se utilizaram do negócio para escapar da condição de moradores ou
sujeitos, que aparecem tanto naquelas pesquisas citadas, quanto nesta daqui.
Tive a oportunidade de ouvir a declaração de Francisco, ex-morador de fazenda,
na Feira da Pedra: “meu filho trabalha pros outros, mas me deu condição, são dois
tearzinhos só, eu e meu filho, mas pelos menos não estou sujeito a ninguém”.
No contexto das pesquisas de Woortmann e Garcia Jr., se por um lado o
negócio poderia ser valorizado porque “salva do cativeiro” (Woortmann, 1990:41),
ou porque assegura a preservação do esforço da família em relação ao trabalho
pesado na agricultura ao permitir o pagamento do alugado, por outro lado ele
também carrega um sentido negativo de “negação da reciprocidade”, por se
basear no “monopólio de informações”, na capacidade do negociante ocultar estas
informações (Woortmann,1990:41). Logo, o espaço de realização do negócio tem
de estar fora do território do Sítio, na medida em que os seus habitantes são
parentes ou parentes em potencial, dada a condição de reprodução social estar
calcada na aliança entre os grupos domésticos para formação de novos grupos
domésticos através do casamento. Justifica-se aí, portanto, a expressão “com
parente não se neguceia”.
O mesmo já não se pode dizer, sem maiores ponderações, sobre o ramo de
rede. Afinal, vimos irmão fornecer mercadoria para irmão, a princípio, tal como
fornece para outros donos de depósitos, entre outras situações. Contudo, não
haverá, ainda assim, uma certa tensão, um reconhecimento de que o negócio é
89
negação da reciprocidade, monopólio de informações? Nesta conversa com
Ricardo:
E.: E você vende pra onde mesmo?
R.: Eu vendo pra todo canto. Essa semana eu vendi pra um rapaz daqui
que mora no Rio.
E.: Quem?
R.: Acho que ele tem mostruariozinho, tipo uma lojinha em Copacabana.
Ele bota uns cordãozinhos e aí pendura.
E.: Como você chegou a ele?
R.: Ele é daqui, de Jardim de Piranhas.
E.: E como você manda pra ele? Você tem caminhão?
R.: Não. Tem caminhão aqui toda semana.
E.: Você paga o frete?
R.: Ele é quem paga lá. Eu ajeito tudo aqui, boto no caminhão, quando
chega lá, ele é quem paga o frete. Mas quando não querem pagar, a gente aqui
paga.
E.: Mas como é que vocês se conheciam?
R.: Desde criança que a gente se conhece. Quando eu comecei com rede,
eu comecei vendendo a ele, faz muito tempo.
E.: E ele morava aqui?
R.: É ele morava aqui, trabalhava com rede em Jardim, a família dele é de
lá.
E.: Ele fazia o que?
R.: Ele tecia.
E.: Por que ele foi parar lá no Rio de Janeiro?
R.: Porque as coisas nem sempre é como a gente quer. errado pra uns.
Você tem seus tearzinhos aqui vem um, lhe compra, lhe engana. você vai
caindo. chega um tempo que o povo de tanto lhe enganar você não tem mais
como trabalhar. Aí tem que partir pra ir vender lá. ele foi, tinha família dele lá.
90
Ele foi pra disse: “Ricardo eu vou tentar um trabalho lá”. ele foi trabalhar com
rede de novo.
A passagem revela uma estranha combinação entre viagem e ser
enganado. Nesta concepção, a viagem aparece como conseqüência de ser
enganado: “Aí chega um tempo que o povo de tanto lhe enganar você não tem
mais como trabalhar. tem que partir pra ir vender lá”. Na história de do
Crediário, por exemplo, ela é ao mesmo tempo causa e conseqüência. Gegê diz
que quando seu pai começou a vender para os donos de crediário na Bahia, ele
passou a ter muito cheque devolvido e, por conta disso, a tecelagem chegou a
ficar parada por um ano. Esta situação, no entanto, provocou uma outra viagem, a
do irmão de Gegê, para São Paulo: “quando não certo num lugar, tem o outro
pra compensar”.
Mas, se voltamos a questionar por quê viajar, encontramos também a
seguinte resposta: “O negócio mais dinheiro no crediário. Uma rede que custa
R$8,00, aqui se vende no máximo por R$9,00, mas lá, à vista é R$15,00 e no
crediário pode ganhar até R$40,00”. Ou ainda:
R.: É como eu tava dizendo a você, eu não gosto de trabalhar com muita
gente, eu parti pra comprar e vender porque ganha bem mais. Porque você
comprando e vendendo, você tem chance de vender a fulano mais caro, varia de
preço. Por exemplo, você chega e diz “Ricardo, eu quero mil peças”. tem
condição de fazer um precinho melhor pra você, entendendo? chega outro
rapaz e diz: “Ricardo eu quero cem, você não... né? E aqui não. Aqui, quem
tem o tear é só aquele preço. Tanto faz pra mim, quanto pra outro, pra outro.
E.: Por que quem tem o tear é só aquele preço?
91
R.: Porque ele só vende aqui. E eu não, eu mando pra Belém, pra o Pará,
São Paulo, Rio. Vai variando de cliente. tem deles que não entende bem do
preço, não vem aqui, né, não sabe... Tem deles que sabe, mais do que a gente.
Pronto. O que é daqui mesmo, daqui de São Bento, a gente vende a ele por
aquele preço x, mas o que é de lá, a gente vende mais caro um pouquinho,
porque eles não entendem. Aí, por isso que eu parti pra comprar e vender, porque
ganha bem mais.
Quem vende apenas na região, segundo o modo de Ricardo elaborar o
conhecimento desta economia, pode vender por “aquele preço”, mas vendendo
para fora, ou viajando, então se pode conseguir os clientes que “não entendem
bem do preço”. Entretanto, vender para fora, ou viajar, não é apenas vender em
outras regiões, é vender para quem é de fora, para aqueles que não compartilham
um certo conhecimento comum às pessoas inseridas no ramo de rede: “O que é
daqui mesmo, daqui de São Bento, a gente vende a ele por aquele preço x,
mas o que é de lá, aí a gente já vende mais caro um pouquinho”. Essa fronteira do
“ser de fora” precisa ser muito mais social do que espacial para que possa vigorar
o principio do “monopólio de informações”.
As expressões “aqui o preço é um só” ou aqui, quem tem o tear é
aquele preço” podem ainda revelar que localmente o monopólio de informações
que caracteriza o negócio foi relativizado, afinal, formula-se que “quem é daqui”
sabe qual é o preço, isto é, há um controle público a respeito de como são
atribuídos os preços das mercadorias. Além disso, o conhecimento sobre o
negócio passa a ser compartilhado entre os parentes, ganhando assim um espaço
92
maior nos sistemas de classificação do grupo em comparação aos contextos em
que se buscava mantê-lo separado dos valores morais internos.
Vimos, no capítulo anterior, que as inserções combinadas dos familiares no
ramo de rede podiam gerar um sistema de coordenadas que possibilita a cada
membro o conhecimento das diversas posições de que ele é constituído, isto é, da
própria divisão do trabalho no ramo. Este conhecimento é ainda mais
compartilhado quando se verifica uma maior permeabilidade entre as esferas
feminina e masculina das atividades. O negócio não precisa ser necessariamente
realizado pelos homens, há uma presença bastante significativa de mulheres
negociando os mesmos produtos que os homens, seja entre donos de tecelagem
(Ivelise, D. Alice, Alba), donos de depósito (Solange) ou entre o pessoal que
apronta (mulheres na Feira da Pedra). Além do mais, nas tecelagens que
contam com trabalho familiar, as mulheres também trabalham de tecer, atividade
que, em geral, é considerada masculina, bem como, entre os que aprontam, as
tarefas são predominantemente consideradas femininas, mas os homens também
podem realizá-las.
um modelo de divisão do trabalho, mas em suas atualizações ele é
flexibilizado. Esta flexibilidade colabora para a existência de um modelo fluido de
orientação espacial e vice-versa. Um exemplo disso aparece na exposição da
família Nunes Rocha. Quando Gigi foi para o Pará com o marido vendedor por
conta própria, ela pôde permanecer aí, mesmo tendo se separado do marido,
porque pôde assumir, ela própria, a venda no carro boca de ferro, que não é nada
comum entre mulheres. Para comprar o carro, recebeu ajuda dos filhos e dos
irmãos que estão no Maranhão. Através das articulações que o ramo de rede
93
forma, o núcleo de referência da família continua sendo o Sítio, mais
especificamente a casa do pai, e, assim, a família se distribui entre a Paraíba, o
Pará e o Maranhão, enquanto o negócio de redes sustenta os constantes
deslocamentos espaciais que permitem aos familiares dar suporte uns aos outros
mesmo distantes entre si. Ressalta-se também que a articulação espacial da
família pôde ser reiterada tanto por estes fluxos, quanto pela flexibilidade das
posições que os indivíduos incorporam no ramo de rede.
Se, por um lado, estes diversos aspectos indicam um alargamento do
significado social do negócio, por outro, este fato vai entrando em contradição com
a necessidade de “invisibilidade” do negócio, sobretudo se considerarmos a
existência somente da Feira da Pedra como locus privilegiado para a sua
realização na região de origem do ramo de rede.
Por isso, se torna tão necessário que as fronteiras do negócio sejam
alargadas para outros espaços através das viagens ou da venda para clientes em
outros estados, a fim de constituir um novo lugar de invisibilidade. Estas fronteiras
vão definindo, nos outros espaços, tanto a visibilidade interna das relações no
ramo de rede, pela presença crescente e associada de paraibanos e potiguares no
Maranhão, no Pará, no Rio de Janeiro, em São Paulo, quanto a invisibilidade
externa.
Contudo, o negócio não deve ser visto como o próprio limite da fronteira,
considerando que os que estão do outro lado desta são sempre passíveis de ser
enganados, pois negociantes dentro, como negociantes fora. Esta fronteira
não significa uma separação, mas a própria possibilidade de acessar, de entrar
em contato, reconhecendo que o que está fora é tão obscuro para o que está
94
dentro, quanto o que está dentro é oculto para o que está fora. As associações
que estendem as fronteiras do ramo de rede são, portanto, um movimento em que
os negociantes de dentro acessam os negociantes de fora para garantir as
possibilidades de enganar e, ao mesmo tempo, acessam os negociantes de
dentro, para se proteger das possibilidades de ser enganado.
E.: – Mas e o seu primo, em Caicó?
R.: – Tiquinho. Jorge, o nome dele. O apelido é Tiquinho..
E.: – E você vende o quê para ele?
R.: – Eu vendo rede.
E.: – Pra ele vender em loja?
R.: – É, ele vai vender justamente no Maranhão.
E.: – Ele vai vender lá... mas ele vende como? Ele é dono de carro?
R.: Ele é dono de carro. Ele tem uma Mercedes. Por exemplo, ele chega
numa cidade como Caicó. Ele chega no cliente. no Maranhão tem loja de rede,
tem roupa, tudo misturado, sabe?
E: – Ele só vende pra loja, então?
C: – Só vende pra loja, crediarista também.
E: – E lá no Maranhão, ele tem alguém conhecido, algum parente?
C: Não. Tem, assim, os cliente. Tem muita gente daqui, a maioria dos
clientes da gente lá, da gente não, deles, é gente daqui lá, morando lá. Eles vão
daqui. Ficam morando lá, a gente vende pra eles. 80% é de gente daqui que mora
lá. Paraibano que mora lá. Porque mesmo, se você for vender para o
maranhense é 90% de chance de perder. Eles são ruim pagador. Aí você tem
cheque devolvido. De dez cheques lá do Maranhão, 9,8 voltam..
E.: Então os clientes são gente daqui... Daqui, de onde?
R.: É daqui, a maioria de São Bento, Brejo do Cruz, Paulista. daqui, do
setor, dessas três, quatro cidadezinhas.
E.: Interessante, como tem gente daqui que vai pra todo canto...
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R.: Em todo canto que você pensar hoje tem gente daqui de São Bento
vendendo essas coisas. no Rio eu atendi um ou outro. E o canto que tem
mais é o Maranhão e o Pará. Onde tem mais paraibano vendendo mercadoria é o
Maranhão e o Pará. É um setor que vende muito, vende mais do que no Rio.
(...)
R.: Pra vender é o mesmo esquema, eu mando a mercadoria daqui pra lá, quando
chega lá a mercadoria, eles enviam os cheques por sedex. Eu envio dez mil reais de
mercadoria, quando chega lá, eles conferem e enviam os cheques no sedex.
E.: É tudo gente conhecida?
R.: Se não for conhecido é a mesma coisa que jogar o carro dentro do rio. É
gente daqui e às vezes, os daqui conhecem os de e ligam pra gente e diz:
“Ricardo, fulano daqui é bom, quer comprar um pouco...”. a gente vende
através dos daqui, sabe? Porque se vender pros de sem conhecer, é o mesmo
que você tá dando, é melhor dar, viu?
Em sua linguagem de comerciante, Ricardo calcula que “80%” dos clientes,
no Maranhão, por exemplo, são os conhecidos e que conhecem bem do preço,
“gente daqui, morando lá”. Quanto ao restante 20%, os daqui conhecem os de lá e
ligam pra gente e diz: ‘Ricardo, fulano daqui é bom, quer comprar um pouco...Aí
a gente vende através dos daqui”. Assim, os conterrâneos e os parentes vão se
inserindo no ramo de rede para que as fronteiras geográficas de sua origem se
estendam a outras cidades, estados, ampliando conseqüentemente as fronteiras
sociais num processo semelhante ao que Strathern (1988) chamou
metaforicamente de encadeamento (enchainment). Ela supõe um movimento, uma
vibração (switch), que é o modo como uma relação é transmitida ou transformada
em outra. Essa vibração é como um eclipse, ela obscurece e revela. Estendem-se
relações que dão visibilidade (revelam) ao negócio, ao acessar, principalmente,
96
conterrâneos e parentes, para estender relações que dêem invisibilidade
(obscurecem) ao negócio, assegurando a venda por um preço mais alto aos que
“não sabem bem do preço”.
A visibilidade também é indicativo da importância de se manter um certo
controle social sobre essas relações e não é feita apenas quando existem
relações entre negócios. Na história de Mariano, por exemplo, não comércio
entre o ramo de couro e o ramo de rede, mas a presença de um cunhado e dos
filhos no Ceará envolvidos no ramo de couro, provavelmente contribuiu para
localizar os clientes com quem Mariano negocia. Não serve apenas para
encontrar conhecidos, mas para demonstrar a um cliente que ele é
permanentemente reconhecido.
R.: Todos esses agiotas que emprestam dinheiro aqui, saíram do comércio
de rede.
E.: são daqui todos?
R.: São todos daqui. Sei de uns que vendiam rede, venderam os carros, juntaram
dinheiro e começaram a trocar cheque, esses nunca mais viajaram, acharam melhor o ramo
de trocar cheque, porque eles só trocam com gente conhecida daqui. A gente não engana, a
gente atrasa, mas paga. Nem que fora o pessoal não paga a gente daqui. Mas a gente vai
trabalhar aqui e vai pagar. Se desfaz de um bem, divide a conta, mas paga. Esses lá fora
nem dividem, nem pagam. um cara ficou me devendo setenta e seis mil e cem reais.
Ele morava em Caicó, foi pra Teresina, mas ele nunca se preocupou de me pagar. Meus
amigos disseram: “Rapaz, ele tem muito dinheiro aqui. Ele não lhe paga porque não
quer”. Se matar não resolve, a gente vai gastar mais com justiça. O jeito é trabalhar mesmo
pra pagar o povo.
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Nesta outra conversa com Ricardo se destaca como os amigos são
importantes para dar a ele informações de seu devedor, mesmo que, em última
análise, conclua que não muito o que fazer. Na passagem, igualmente
sobressai um aspecto importante: seu devedor é de Caicó, mas aparece, para
Ricardo, posicionado no lado de fora da fronteira, uma vez que o enganou e que
Ricardo precisou acessar seus amigos para reforçar o fato de que ele está sendo
reconhecido, procedimento exigido somente quando alguém de alguma forma
escapa do controle. Destarte, isto nos revela o quanto esta fronteira não pode ser
pensada de modo rígido, não é o mero pertencimento às cidades da região de
origem do ramo de rede que faz de alguém um conhecido. Por outro lado, quando
os clientes no Maranhão acessam para Ricardo outros possíveis compradores que
não entendam bem do preço, estes compradores podem tornar-se conhecidos,
clientes. Por isso, sugeri a idéia do eclipse, pois conhecido, desconhecido,
visibilidade, invisibilidade são relações presentes simultaneamente, aquilo que
serve para obscurecer, está revelando um outro lado da situação.
Nota-se ainda a participação dos agiotas locais nesta dinâmica: ele troca
cheques para dar respaldo aos prejuízos dos enganos e se vale das vantagens de
um negócio que pode ser realizado do lado de dentro da fronteira, “acharam
melhor o ramo de trocar cheque, porque eles trocam com gente conhecida
daqui. A gente não engana, a gente atrasa, mas paga. Nem que fora o pessoal
não paga a gente daqui”.
Muitas das situações apresentadas no segundo capítulo, em que foram
observados alguns reordenamentos das posições dos familiares no negócio
também podem ser interpretadas sob esta lógica das articulações feitas para
98
garantir as possibilidades de enganar e se proteger das possibilidades de ser
enganado, sobretudo as que se referem à viagem.
No caso de Leandro e Alba, que são produtores/negociantes bem
capitalizados, várias formas de conjugar visibilidade, isto é, a venda para quem
entende do preço; e invisibilidade, a venda para quem não entende do preço.
Leandro vende tanto para o irmão em Jardim Bangu, por exemplo, quanto através
dos corretores, que acessam os consumidores que não entendem do preço.
Os corretores e os redeiros por conta própria são os responsáveis pela
maior elasticidade desta fronteira ao desbravar regiões realmente externas,
inclusive no que diz respeito à língua, nas viagens a outros países da América do
Sul. Em outros momentos, eles se valem do menor entendimento dos turistas
estrangeiros. Talvez não seja por acaso que esta representação da habilidade em
ocultar informações aparece nele de modo mais marcante e até caricatural, pois
eles se tornaram um personagem famoso por suas barganhas: “o redeiro pede um
milhão, para ganhar um tostão”.
Se por um lado, quando Leandro negocia com seu irmão de Jardim Bangu
visibilidade por ele ser um familiar, alguém da mesma cidade de origem que
ele, por outro lado, também invisibilidade quando consideramos que eles
foram sócios, mas para este nível de relação não há mais confiança suficiente.
Assim também, se por um lado Leandro quer garantir sua invisibilidade para
o consumidor através dos corretores, por outro lado, quando os corretores são
primos ou cunhados existe a garantia de localizar socialmente os indivíduos que
se endividarão com ele ao fazer o vale. Esta dívida, por sua vez, é a principal fonte
de pressão sobre os corretores para que eles estejam preocupados em saldá-la,
99
vendendo o ximo de mercadorias pelo melhor preço possível. Uma
circunstância do campo pode ilustrar a importância da localização dos corretores:
acompanhei Alba numa visita à sua família em São José, passamos por Paulista,
Patos e Pombal para voltar a São José. Durante o percurso ela entrou na casa de
muitos corretores para pessoalmente cobrar as dívidas.
Incorporar uma pessoa aos parentes é uma outra forma de garantir
relações de confiança necessárias para se proteger das possibilidades de ser
enganado. Leandro e Alba convidaram Solange e Manuel, a quem são
fornecedores, para serem padrinhos de sua filha.
Tornar um irmão um sócio ou um filho, como fez do Crediário, pode ser
uma forma de dar maior visibilidade às responsabilidades e às relações de
confiança que estão sendo atribuídas, principalmente quando se trata de fazer
uma oposição às situações que não deram certo. Parece haver uma considerável
simetria na oposição entre o familiar que é considerado sócio e o que remete a
uma situação de fracasso: Leandro em relação aos seus irmãos, um com quem se
desentendeu “comercialmente”, o outro que foi tornado sócio; em relação aos
seus filhos, um que “não deu certo”, o outro que passa a ser sócio. É interessante
que a própria noção de família pode ser acessada para corresponder confiança,
mesmo que a situação de fracasso também tenha ocorrido entre familiares:
Vou lhe falar: ele por ser irmão, eu cunhada, ele tem muita organização, é um cara
direito, a gente não faz conta de lucro, entendeu? Tudo o que a gente ganha a gente investe
e sempre um balanço, de ano em ano, mas é na base da confiança entre família, a gente
não faz conta de centavos, nem... O que eu mando para ele eu anoto, o dinheiro que ele
100
manda é anotado. que é uma coisa confiável, porque a gente sabe com quem trabalha. É
amigável. Ele é solteiro, eu sou casada, eu tomo conta aqui, meu esposo no Rio e ele em
São Paulo. Então é uma coisa que a gente confia um no outro, entre família.
Por isso, certas maneiras de hierarquizar as relações familiares servem
para demarcar as fronteiras da família, fazendo com que os indivíduos possam, ao
mesmo tempo, ser ou não considerados parentes de acordo com o contexto em
que eles são acionados. E fazendo com que, em certa medida, uma das fronteiras
que delimitam a família no ramo de rede continue se caracterizando pelo ideal de
que “com parente não se neguceia”, ou “a gente não faz conta de lucro”, ou ainda
que fazer um acabamento signifique apenas um favor.
Recuperando a idéia de que os reordenamentos familiares possam se
compreendidos a partir desta lógica de visibilidade/invisibilidade, os esforços que
são empreendidos para garantir que os donos de tecelagem e até seus filhos
viajem, isto é, que permitem o deslocamento justamente dos indivíduos que têm
maior peso nas próprias tomadas de decisão do funcionamento da tecelagem, são
importante indício de que a ênfase da prosperidade da unidade produtiva é dada
aos sucessos do negócio e, consequentemente, da habilidade do negociante em
conjugar as estratégias disponíveis para alargar as fronteiras do seu negócio, bem
como de sua habilidade para lidar com as possibilidades de enganar e se proteger
dos enganos.
Esta lógica deslocou Leandro para o Rio e colocou Alba à frente da
tecelagem, de modo que, hoje, as visitas dos esposos implica na mobilidade de
101
ambos, Leandro retorna à São Bento de dois em dois meses e eventualmente ela
vêm ao Rio de Janeiro.
do Crediário sucessivamente transferiu a posição dos filhos.
Primeiramente, para garantir a liberação do seu trabalho na tecelagem, colocando
um dos filhos para administrar. Como a própria viagem provocou as crises dos
cheques devolvidos, para compensar as possíveis perdas que é uma forma de
se proteger dos enganos um filho também foi liberado para viajar. E depois o
outro filho: “quando não dá certo num lugar, tem o outro pra compensar”.
Nelson Pedreira (ver capítulo 1), não tinha filhos para liberá-lo do trabalho
na tecelagem, tendo que pagar pela força de trabalho de outros para poder viajar.
Se restringisse o seu negócio à Feira da Pedra poria em risco sua condição de
negociante, isto é, de tentar conseguir um preço melhor para os seus produtos.
Afinal, ali o preço é um e são reduzidas as chances de ocultar as informações
sobre os cálculos de sua tecelagem.
O exemplo de Geraldo revela a consciência da importância das relações
familiares na conjugação dos esforços da unidade produtiva, a fim de liberar o
trabalho do produtor para que ele possa negociar e, com isso, garantir um preço
melhor para os seus produtos. Sendo somente o seu trabalho e o de sua esposa,
que ainda precisa ser dividido com o cuidado da prole, seu trabalho na produção
acaba imobilizando-o e, sem poder viajar ou negociar, Geraldo fica vulnerável aos
atravessadores, não conseguindo um preço melhor para os seus produtos. “Com o
trabalho do artesão assim só dá pro comer”.
O negócio, mais uma vez, se associa à condição de realização da
autonomia que encontra, nesta pesquisa, um deslocamento em relação ao lugar
102
de seu exercício. Se no contexto dos agricultores negociantes apresentados por
Woortmann e Garcia Jr. a autonomia era garantida pela combinação da produção
agrícola com o negócio, embora fosse vivida na relação do trabalho com a terra,
aqui a autonomia é vivida diretamente na possibilidade do negócio valorizar o
próprio trabalho e o trabalho de sua família, ao conseguir um preço melhor para os
próprios produtos. No entanto, o fato se revela como uma contradição: para
valorizar o próprio trabalho e o de sua família na produção da tecelagem, e dos
acabamentos como extensão da tecelagem, é preciso liberá-los para o negócio ou
para a viagem.
Não estar submetido aos atravessadores quando se negocia os próprios
produtos, que considerei uma idéia de autonomia do trabalho para Geraldo, o
único a citar o termo atravessadores, no limite, leva à negação do trabalho
produtivo que é realizado pelo próprio produtor, dono da tecelagem. Assim, as
representações desta economia voltam a reforçar a identidade entre tecelagem e
negócio, que tanto podem ser apreendidas em seu sentido histórico, no que
concerne à pequena manufatura ser um desdobramento do negócio entre os
agricultores negociantes, quanto pode ser apreendida em seu sentido lógico, no
que concerne à consciência das pessoas envolvidas no ramo de rede de que a
manufatura têxtil faz sentido quando se pode garantir as melhores condições
de entrada do seu produto no mercado.
Por isso, vai aparecer também nas formulações de Ricardo este sentido de
imobilidade do trabalho na produção, pois, para ele, manter a tecelagem era
sinônimo de estar submetido a um preço: “Aqui, quem tem o tear é aquele
103
preço”, logo, seria melhor investir o seu esforço de uma vez no negócio, o que o
levou a desfazer-se dos teares de seu pai e “partir para comprar e vender”.
Por fim, pondero que a idéia de autonomia em relação à terra não foi
absolutamente transmutada, conforme apareceu no próprio exemplo de Ricardo,
que se desfez dos teares do pai, mas de modo algum pretende abrir mão do sítio;
e de João, que instrumentaliza sua situação transitória de corretor para garantir a
prosperidade do sítio e, quem sabe, no futuro, poder conjugar o sítio, a tecelagem
e o negócio com seus próprios produtos.
É interessante comparar, neste sentido, a idéia de autonomia representada
nas melhores condições de vender os próprios produtos com a idéia de autonomia
em relação ao trabalho na terra. Não está em questão para os agricultores
negociantes necessariamente garantir as melhores condições de venda dos seus
produtos, pois a possibilidade de eles não serem vendidos, mas consumidos
em casa, pela família. Não chega a ser um problema direto a venda dos produtos
do roçado aos atravessadores. Por isso, os produtos da lavoura não são
calculados como os mais rentáveis, mas aqueles que vão assegurar a reprodução
social da família, seja através da venda e aquisição de dinheiro, quando está
“dando preço”; seja através do consumo direto. O negócio serve para garantir
ao pai de família uma margem maior de manobra em relação às oscilações do
mercado, portanto, para poder lidar com elas mais de acordo com as
necessidades de reprodução social da família, assegurando uma renda em
dinheiro, mesmo quando os produtos da lavoura não estão adequados à venda.
No ramo de rede, sem levar em conta os agricultores, não dúvida que a
reprodução social da família é um elemento central da dinâmica social, mas outras
104
manobras precisaram ser inventadas para poder dar conta do princípio aqui
absoluto (lá relativo) de rentabilidade dos produtos da tecelagem no mercado. É
neste sentido, no modo como as famílias precisam ampliar suas fronteiras
espaciais e sociais em busca das melhores condições de venda dos produtos, que
o negócio se transmuta em viagem.
105
Conclusão
A trajetória desta dissertação partiu da elaboração de uma crítica à primeira
abordagem que propus sobre o mesmo recorte empírico na monografia de
graduação. Não me preocupei em fazer uma apresentação prolongada sobre as
formulações da monografia, mencionando apenas a fundamentação teórica em
que me apoiava, bem como apoiava os autores citados que trataram da produção
de redes em São Bento e, no caso de Araújo (1996), da produção de redes no
Nordeste.
Na introdução, no que concerne às análises expostas, a perspectiva
marxista de temas como a contradição entre o desenvolvimento das forças
produtivas e das relações de produção e a transição do artesanato para
manufatura, foi questionada mais no sentido metodológico do que propriamente
em relação à validade das proposições teóricas. A crítica se voltava para o uso
dessas teorias como modelos explicativos que poderiam ser aplicados e que
geralmente eram aplicados sem maiores ponderações.
A primeira ponderação feita aqui se dirigiu à necessidade de confrontar
estas teorias com os significados que certas transformações nas relações de
produção poderiam ter para as próprias pessoas envolvidas com o ramo de rede.
O verbo confrontar deve ser tomado em seu sentido enfático, ou seja, é
necessário ter a preocupação de não conceber tais significados como reflexos
dessas teorias, mas em oposição a essas teorias, mesmo que eventualmente eles
– significados e teorias – venham a confluir.
106
Trazer a esta “arena” outras orientações teóricas é também uma forma de
estimular o confronto. No caso desta pesquisa, as outras teorias se voltavam para
os estudos sobre família e campesinato, que acabavam sendo situados, na
abordagem anterior, no passado do desenvolvimento da indústria e do comércio
de redes e “derivados”.
A família se tornou central para esta análise sobretudo a partir do trabalho
de campo realizado na região sertaneja. Desde as primeiras visitas aos
produtores, que aconteceu em Caicó (RN), num momento que considerava não ter
chegado ainda ao meu destino, que estava simplesmente de passagem, o
funcionamento das unidades produtivas e comerciais pareciam não poder ser
compreendidos em sua dinâmica particular sem levar em conta as relações
familiares.
Hipoteticamente, a história que Gegê me contou sobre seu pai, Zé do
Crediário, poderia simplesmente ter confirmado que o início das viagens de à
Bahia é concomitante à introdução dos teares elétricos em sua tecelagem. Se não
fosse concomitante, no entanto, isto não significaria que o aumento da
produtividade não tivesse qualquer relação de causalidade com a necessidade de
expansão de mercado para os produtos das tecelagens. O caso particular das
viagens de poderia ser simplesmente a atualização de uma regra geral a
necessidade de expansão dos mercados devido ao aumento social da
produtividade – e não específico da produtividade da tecelagem de Zé.
As considerações metodológicas que me permitiram perceber uma maior
riqueza de dados empíricos em relação à minha monografia, bem como atentaram
à maneira em que as atividades do ramo de rede poderiam ser distribuídas tanto
107
conforme a divisão social do trabalho, quanto conforme os ordenamentos
familiares, movimentos presentes no primeiro e segundo capítulo, atentaram,
igualmente, para os princípios particulares que estruturam o modo das pessoas do
ramo de rede elaborar a experiência desta economia. E aconteceu, no último
capítulo, de estes princípios revelarem suas semelhanças com a abordagem
discutida na introdução, a saber, a correspondência entre as motivações da
viagem com a idéia de que o mercado de redes precisava se expandir.
As explicações fundadas na ampliação de mercados, no entanto, serviram
também para obscurecer uma série de operações que efetivamente sustentam a
possibilidade das famílias constituírem uma articulação territorial razoavelmente
extensa. Isto porque, neste caso, as explicações atribuiriam uma causalidade aos
fatos econômicos que seria absoluta, negligenciando tanto o conhecimento que é
elaborado por essas pessoas sobre tais fatos, quanto o modo como este
conhecimento permite uma apropriação das relações econômicas que os insere
na sociedade mais ampla e, ao mesmo tempo, garante a reprodução de suas
formas de sociabilidade específicas. Vale considerar até que esta dinâmica cria
novas formas de sociabilidade, como creio que tenha se sucedido no ramo de
rede.
Sahlins (1997) analisou uma série de experiências que tiveram tlmesnçõi
108
Culturalmente focalizada na terra natal, e estrategicamente
dependente dos lares periféricos no estrangeiro, a estrutura é
assimétrica de duas maneiras opostas. Considerada como uma
totalidade, a sociedade translocal está centrada em suas
comunidades indígenas e orientada para elas. Os imigrantes
identificam-se com seus parentes na região de origem, e é a partir
dessa identificação que se associam transitivamente entre si no
estrangeiro. Esses habitantes da cidade e do mundo exterior
permanecem ligados a seus parentes na terra natal, especialmente
por entenderem que seu próprio futuro depende dos direitos que
mantêm em seu lugar de origem. Assim, o fluxo de bens materiais
favorece em geral os que ficaram em casa: estes se beneficiam
dos ganhos obtidos e das mercadorias adquiridas por seus
parentes na economia comercial externa. (Sahlins, 1997)
A citação remete a diversas circunstâncias retratadas neste trabalho. A
dependência que a produção das redes, e das pessoas que dela vivem, tem dos
paraibanos e potiguares que se estabeleceram em outros estados; dos fluxos
constantes de bens materiais e de pessoas entre as duas áreas; a importância das
relações entre os parentes e conterrâneos situados no meio de mundo para se
manterem e reiterarem os laços que os identificam com sua origem; bem como a
necessidade de se salvaguardar a centralidade do lugar de origem.
As reflexões do segundo capítulo abriram oportunidades de
aprofundamento sobre o que está em jogo nas relações familiares que são
estabelecidas para sustentar as articulações entre os diferentes espaços de
realização do negócio de redes, principalmente no que se refere à distribuição das
atividades entre os familiares. Isso poderia ter levado, no prosseguimento do
trabalho, ao questionamento da maneira como se organiza a distribuição entre
produção, trabalho e consumo no interior de uma dada fronteira familiar. Questão
que se desdobraria no tema da reciprocidade e que poderia ter apontado para um
109
campo de relações caracterizado por uma maior alteridade em relação à lógica
capitalista.
Entretanto, pelo tipo de formulações que surgiram nos depoimentos durante
o trabalho de campo, o foco apresentado no terceiro e último capítulo afunilou o
espectro de relações do ramo de rede para o tema do negócio, ou comércio. O
negócio revelou-se, neste contexto, como o principal símbolo da mediação entre
os princípios de autonomia e anonimato (Rubin, 1980), de invisibilidade que
fundamentam as relações mercantis e que de certa maneira se contrapõem às
necessidades de reconhecimento dos laços sociais quando duas pessoas travam
algum tipo de relação, reconhecimento representado aqui pela confiança.
Em seu papel de símbolo, daquilo que permite que a prática se torne
cognoscível entre as pessoas que compartilham um código comum, a prática das
relações comerciais enquanto negócio foi perpassando outras relações, sobretudo
as de parentesco. E o campo de realização da autonomia e do anonimato,
necessário à realização do negócio, precisou incorporar novos espaços, o que foi
simbolizado pela viagem.
A partir desta seqüência de operações e simbolizações concluí, nesta
dissertação, um certo modo de explicar a extensão territorial do ramo de rede.
Como evidenciei anteriormente, esta compreensão não exclui a existência de
outras lógicas que talvez pudessem estar centradas em outros aspectos das
relações familiares e que pretendo que sejam foco do próximo investimento teórico
e empírico sobre o ramo de rede.
110
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