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qual sua finalidade. Louis-Vincent Thomas, no prefácio de O Sentido Oculto dos
Ritos Mortuários, de Jean-Pierre Bayard define:
Todas as vezes que a significação de um ato reside mais em seu
valor simbólico do que em sua finalidade mecânica, já estamos no
caminho do procedimento ritual. Com efeito, este se define como o
comportamento que chama o corpo em auxílio para encontrar a
ilusão do “como se”, repetindo modelo coerente, cuja eficácia se
reconhece (...) Também no rito funerário trata-se de teatralizar a
relação última com o defunto, de “materná-lo”, honrá-lo... em suma,
fazer como se não houvesse morrido. Para ser mais preciso,
lembrarei que o rito implica estrutura de sinalização, para, de alguma
forma, armar o cenário; agimos “como se”. (BAYARD 1996: 7-8)
Este jogo de faz-de-conta próprio do rito é, portanto, comandado e
destinado para aqueles que o praticam e não para seus “alvos”, neste caso, os
mortos. Em passado não muito distante, os familiares, amigos e até mesmo a Igreja
e o Estado acabavam determinando muito mais que o próprio morto o feitio dos ritos
funerários. Neles, a sociedade projetava “sua dor, insegurança e culpa, mas também
seus valores culturais, hierarquias sociais, ideologias políticas e religiosas” (REIS
1991: 159). Numa certa instância, o rito funerário presente em A Filha do Meio Quilo
inverte essa característica, seguindo o desejo do morto e não as práticas
tradicionais. Na verdade, se não fosse pela sensação expressa por Cota -
“Executara tudo como cumprindo um ritual” (FMQ 147) – não seria possível apontar
com clareza a existência de um ritual funerário. Isso porque na ânsia de atender ao
desejo do marido e não ser flagrada no ato, Cota não teve tempo para o agir “como
se”; ela simplesmente agiu, no intuito de proteger o marido de qualquer intervenção
externa ao seu último desejo. Contrariando o esperado, não há nada que remete às
práticas católicas típicas de uma comunidade como Parnaíba: preparo do cadáver,
velas, orações, adeus de amigos e parentes, missa de sétimo dia, etc. Mesmo o
tempo de luto, tradicionalmente uma demonstração social do sofrimento, teve que
ser vivenciado por ela no seu íntimo, para manter seu segredo longe da cidade.
Antigamente, as pessoas vinham a óbito em suas residências
cercadas por familiares e amigos, ao invés de serem abandonadas num hospital. Um
estudo de José de Souza Martins (1983) mostra que morrer em casa era uma prática
comum nas zonas rurais brasileira e, geralmente, desejada por todos e preparada
com antecedência: “A moradia é o lugar da morte porque é, também, socialmente, o