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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Simone Aparecida Lino da Silva
Fabiano: uma personagem dialógica
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA
LITERÁRIA
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Simone Aparecida Lino da Silva
Fabiano: uma personagem dialógica
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA
LITERÁRIA
SÃO PAULO
2008
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Simone Aparecida Lino da Silva
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Literatura e
Crítica Literária sob a orientação do
Profa. Dra. Maria Rosa Duarte de
Oliveira.
São Paulo
2008
ERRATA
Folha Linha Onde se lê Leia-se
17 07 á fratura à fratura
19 23 periodos períodos
24 29 inverossímilhança inverossimilhança
25 09 prolétarios proletários
27 21 conseguia caminhar não conseguia caminhar
45 35 o homem que não está o homem não está
47 29 pontos de vista pontos de vistas
52 01 constituem constitui
52 13 é sobre essa que ele o ajuda é sobre essa que o ajuda
58 38 Colocamos-nos Colocamo-nos
67 11 Mas quietismo de Fabiano Mas o quietismo de Fabiano
68 03 que no aspecto quer no aspecto
68 04 pronfundo profundo
70 25 não retomas questões não retoma questões
72 07 existente Vidas Secas existente em Vidas Secas
Banca Examinadora:
......................................................................................
.......................................................................................
.......................................................................................
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus por tudo que realizou em minha vida, por
ter me dado uma família maravilhosa, que me incentivou em todos os momentos
e lutou junto comigo para alcançar esta vitória.
E, principalmente, ao meu marido, José, que, muitas vezes, abriu mãos de
seus sonhos para apoiar o meu.
E por fim, os meus sinceros agradecimentos a todos que colaboraram para a
realização deste trabalho: minha orientadora, Maria Rosa Duarte de Oliveira, meus
professores e meus amigos que contribuíram para esta conquista.
RESUMO
Esta dissertação interpreta o romance Vidas Secas sob a perspectiva do
dialogismo, em decorrência da consciência esboçada por personagens tão
rudimentares e do interesse de Graciliano Ramos em revelar a percepção dessas
personagens não apenas sobre si mesmas, mas também sobre a realidade
circundante. Por isso, os estudos de Mikhail Bakhtin constituem fundamentação
teórica de base desta pesquisa, pois Vidas Secas apresenta os mesmos princípios
do romance polifônico: realidade em formação, inconclusibilidade, dialogismo e
polifonia. Nosso objeto de estudo - a personagem Fabiano - trava um conflito
interior, questionando-se sobre sua identidade e sua atuação no mundo. Um aspecto
da personagem dialógica, porque, para Bakhtin, onde começa a consciência inicia-
se o diálogo. Além disso, Fabiano não é um intérprete do autor, tem independência e
liberdade para expor suas opiniões e para tomar decisões. Vidas Secas é
constituído basicamente por monólogo interior e a personagem dialógica é
construída por um processo de comunicação interativa. Como ocorrerá a construção
da autoconsciência de Fabiano? Entendemos que o narrador se pauta pelo discurso
indireto livre para encenar os pensamentos da personagem de forma autêntica,
que por meio dessa palavra bivocal foi possível dar voz a quem não tinha, porém,
marcando a diferença tonal entre o ponto de vista do narrador, detentor da palavra, e
o da personagem, que o a possui. Durante todo o romance, nos defrontamos com
esse discurso ambivalente e dialogal no qual ouvimos o ressoar de duas vozes - a
de Fabiano e a do narrador – que tecem relações dialógicas entre si ora por
consonância, ora por dissonância, fazendo de Vidas Secas um verdadeiro
espetáculo plurilíngüe.
Palavras-chave: Graciliano Ramos; Vidas Secas; personagem; dialogismo;
discurso indireto livre.
ABSTRACT
This dissertation interprets the novel Vidas secas according to the perspective of the
dialogism, derived from the consciousness sketched by rudimentary characters and
the Graciliano Ramos interest of revealing the perception of these characters not
only by themselves, but also by the surrounding reality. For this reason, the studies
of Mikhail Bakhtin constitute the theoretical basis of this research because Vidas
secas presents the principles of the polyphonic novel: reality’s information, lack of
conclusion, dialogism, and polyphony. Our object of study Fabiano character has
an interior conflict, asking himself about his identities and his action in the world. It is
an aspect of the dialogic character because, to Bakhtin, the consciousness begins
where the dialogue begins. Moreover, Fabiano is not the interpreter of the author, he
has independence and freedom to expose the opinions and to take decisions. Vidas
secas is constituted basically by interior monologue and the dialogic character is
formed by a process of interactive communication. How is going to happen the
Fabiano’s consciousness of himself? We understand that the narrator uses the free
indirect discourse to stage the thoughts of the character in an authentic way because
by this double-voiced word it was possible to offer the voice to the one without it but
indicating the tonal a difference between the point of view of the narrator, owner of
the word, and the character, that has not that word. In the novel, we face this
ambivalent and dialogical discourse in which we listen to two voices the Fabiano’s
one and narrator’s one that build dialogic relations, sometimes in consonance,
sometimes in dissonance, and it turns Vidas secas a plurilingual spectacle.
Key-word: Graciliano Ramos; Vidas Secas; character; dialogism; free
indirect discourse
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................p.08
1. O HOMEM SUBTERRÂNEO: GRACILIANO RAMOS................................p.15
2. FABIANO: UMA PERSONAGEM EM FORMAÇÃO...................................p.26
2.1 Fabiano ao espelho: o reflexo das personagens em sua........................p.28
consciência
2.2 Fabiano e a voz da autoridade................................................................p.36
2.3 A autoconsciência de Fabiano................................................................p. 39
3. FABIANO E O PONTO DE VISTA NARRATIVO........................................p.47
4. O PRINCÍPIO REALISTA EM VIDAS SECAS...........................................p.58
4.1 O dialogismo: um método de construção................................................p.64
4.2 Fabiano é o homem de seu tempo..........................................................p.68
CONCLUSÃO...............................................................................................p. 73
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................p.76
8
Introdução
Optar pela análise do romance Vidas Secas (1938) implicou abandonar
todo o preconceito que ronda os estudos de obras de caráter regionalista, afinal
Graciliano Ramos, apesar do tempo e de toda discussão crítica acerca da sua obra,
ainda é classificado como escritor do “romance social nordestino de 30”:
a crítica de natureza histórica ou sociológica, que se debruça sobre o
chamado Romance de 30, no geral ainda não concedeu ao texto de
Graciliano Ramos a temporalidade que marca os clássicos da língua, como
Machado de Assis e Eça de Queiroz. A razão disto reside no fato de que
estamos acostumados a ler Graciliano Ramos como materialização
singular de um gênero, o 'romance social'. (DÓRIA, 1993, p. 21).
Em razão disso, nem sempre se avalia a grandeza universal existente em
Vidas Secas, um romance que trata não apenas dos problemas tocantes à seca,
mas muito mais dos “problemas humanos de ontem, de hoje e de sempre, ligados
fundamentalmente à sobrevivência do Homem em Sociedade” (COELHO, 1978,
p.61). Por esse motivo, ao ler Vidas Secas com a profundidade necessária à sua
compreensão, é possível ao leitor identificar-se com Fabiano, devido às temáticas de
caráter universal que esta personagem coloca em questão: o desejo de viver, a força
de superação e a esperança que se mantém viva, mesmo diante das situações mais
adversas.
Destarte, embora esse romance mostre a luta de uma família de retirantes
pela sobrevivência diante da perseguição implacável da seca, o que mais nos
impressionou não foi a batalha entre o sertanejo e o meio natural, nem a fuga
incessante dos retirantes que sempre buscam “um lugar menos seco para enterrar-
se” (VS, p, 117)
1
. O que, de fato, nos chamou a atenção foi a percepção da
consciência de suas personagens no confronto consigo próprias e com o “outro”, ou
seja, as demais personagens, o narrador e o autor.
Sendo assim, a originalidade de Vidas Secas na literatura brasileira não se
caracteriza somente pela forma sucinta da narração, ou por ser um romance
1
Todas as referências do livro Vidas Secas referem-se à edição 93 da editora Record, 2004. Daqui
em diante, usaremos a sigla VS seguida da página para identificarmos os trechos selecionados.
9
desmontável como classificou Rubem Braga devido à autonomia dos capítulos
mas, principalmente, por “mostrar paradoxalmente a riqueza interior das vidas
culturalmente pobres” (CANDIDO, 1992, p. 106).
A nossa proposta de pesquisa é, portanto, a de empreender uma reflexão
crítico-analítica sobre Vidas Secas à luz da construção da consciência da
personagem Fabiano nosso objeto de estudo que trava um conflito interior a
respeito da sua identidade e sobre a sua atuação no mundo, logo nas ginas
iniciais: “e pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em
guardar coisas dos outros” (VS, p. 18).
Por essa razão, os estudos de Mikhail Bakhtin constituem-se como
fundamentação teórica de base para esta pesquisa, que a nossa hipótese
norteadora é a de que a personagem Fabiano se estrutura sob um princípio
dialógico. De início, porque toda sua realidade serve de reflexão para a construção
de sua autoconsciência e, além disso, porque se apresenta como uma consciência
independente do ponto de vista do autor, tendo liberdade para expor suas opiniões e
para tomar decisões. Ademais, como toda personagem dialógica, Fabiano se
constrói por meio de um processo interativo no qual sua autoconsciência se define
pela alteridade, isto é, pelo diálogo com outras consciências, inclusive com a sua
própria.
Sendo assim, a proximidade entre Fabiano e a personagem dialógica leva-
nos a refletir a respeito do seguinte problema: como será representado esse diálogo,
se o romance é basicamente constituído por monólogo interior? Como ouviremos as
outras vozes se é raríssimo o discurso direto e se é somente o narrador que
expressa a consciência de suas personagens no seu discurso, pois elas somente se
comunicam por gestos, onomatopéias e exclamações?
Entendemos que Graciliano Ramos, na obra em foco, recorreu à narração
em terceira pessoa, porque essas personagens são incapazes de comunicar-se por
não dominarem o código lingüístico. Mas como apreender o discurso interior das
personagens sem manipulá-lo pela visão do narrador, mantendo sua autenticidade?
De acordo com Candido, o narrador em Vidas Secas não pode reduzir-se a
um reprodutor, a um tradutor, nem a:
1
um intérprete mimético, mas alguém que institui a humanidade de seres
que a sociedade põe à margem. Um narrador que ao usar o discurso
indireto livre trabalhou como uma espécie de procurador do personagem,
que está legalmente presente, mas ao mesmo tempo ausente. O narrador
não quer identificar-se ao personagem, e por isso na sua voz uma certa
objetividade de relator. Mas [...] sem perder sua identidade sugere a dele
[do personagem].
(CANDIDO, 1992, p. 106-107).
Desse modo, o narrador estaria procurando interpretar a voz dessa gente
quase muda e transmiti-la. Mas como se dá a organização desse discurso e, mais,
dos pensamentos transformados em discurso que é nesse trabalho que emerge a
construção de uma possível autoconsciência?
Eis questões que a estratégia do discurso indireto livre pode resolver por
meio da estruturação de um campo híbrido entre dois pontos de vista – o do
narrador e o da personagem sob o prisma do princípio dialógico de construção. O
discurso indireto livre parece-nos o recurso apropriado para produzir a bivocalidade
do verdadeiro diálogo, que é confronto e diferença entre “o próprio e o alheio”
2
e,
desse modo, erigir as relações dialógicas entre Fabiano e as outras vozes do
romance.
Bakhtin (1997a, p. 182), ao referir-se ao discurso indireto livre, diz que “seu
valor estilístico é imenso, é a forma por excelência do imaginário”, porque a razão do
leitor tem ciência de que o discurso pertence ao narrador, mas para a imaginação
viva é a personagem quem fala. Ele produz, portanto, um efeito bivocal, pois num
mesmo enunciado ouvimos ressoar duas vozes a de Fabiano e a do narrador
que tecem relações dialógicas entre si ora por consonância, ora por dissonância.
Isso nos leva ainda a uma outra questão: como se Vidas Secas, ou
ainda, como deve se portar o leitor da obra, uma vez que ela clama por essa
“imaginação viva”? Não estaria justamente a ebulição de um discurso bivocal
sobre a obra? Não estaria no cerne do discurso construído literariamente o ponto
nevrálgico da posição dialética que sustenta esse projeto narrativo?
O que não se pode negar é a habilidade com que Graciliano Ramos
manteve a palavra do sertanejo no discurso do narrador. É isso, sobretudo, que nos
leva a abraçar, nessa pesquisa, o processo de construção das relações dialógicas
entre Fabiano, o narrador e as outras personagens do romance, embasados na
2
Essa expressão é de Tânia Franco Carvalhal, homônima ao seu livro publicado em 2003 (mais
detalhes, ver referências bibliográficas)
1
mudança estratégica no método composicional do autor de Vidas Secas, conforme
atesta Bezerra:
O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande
coro de vozes que participam do processo dialógico. [...] Trata-se de uma
'mudança radical da posição do autor em relação às pessoas
representadas, que de pessoas coisificadas se transformam em
individualidades' (BEZERRA, in BRAIT, 2005, p. 194).
Tal mudança no nível autoral relaciona-se à exotipie
3
, expressão proposta
por Todorov ao traduzir do russo para o francês os estudos de Bakhtin, e diz
respeito a um lugar exterior fundamental ao trabalho estético e de objetivação. A
exotopia, assim, justificaria o aspecto dialógico de Vidas Secas, pois Graciliano
Ramos era um autor comprometido com o conhecimento do objeto a ser
romanceado, ele necessitava vivenciar o fato, que transformaria em acontecimento
artístico (BULHÕES, 1999, p. 158).
Prova disso é que, apesar de sertanejo e da vontade de escrever um
romance sobre os flagelados do nordeste
4
, Graciliano se sentiu capaz de
escrevê-lo após ter convivido com esses homens na prisão durante dez meses,
compartilhando a mesma dor:
Não era mais um observador estranho aos acontecimentos. Tomava parte
neles era massa, era número... Vivia identificado, misturado com o povo,
sentindo suas dores, chorando suas misérias, lutando lutando sempre.
(RAMOS apud REIS, 1993, p.73).
Sendo assim, Graciliano Ramos pode ser classificado como um “autor-
contemplador” (Bakhtin, 2000, p.88), que experimenta os acontecimentos e as
sensações, mas na posição da própria personagem. No entanto, Bakhtin também
adverte que o autor, ao deslocar-se para dentro da personagem para vivenciar os
sentimentos do herói e a sua percepção sobre si e sobre a sua realidade, deve
regressar à posição de criador do acontecimento estético fora da personagem
para dar forma e acabamento ao material recolhido. Esse princípio da alteridade é
que confere, segundo nossas hipóteses, o caráter realista ao romance Vidas Secas.
3
Exotipie tradução do russo para o francês feita por Todorov, responsável pela difusão e
introdução no Ocidente da obra de Bakhtin, a tradução de Todorov ficou consagrada” (AMORIM,
2006, p. 95). A tradução para a Língua Portuguesa do termo é exotopia.
4
Graciliano Ramos “vira coisas pelos sertões dos Estados Nordestinos de arrebentar o coração -
miséria, fome, sofrimento, 'vidas secas'... Massas humanas acuadas pela fome a assaltar
fazendas, na marcha angustiosa em busca de pão”. (CRUZ apud REIS, 1993, p.73)
1
Todavia, esse novo enfoque interpretativo de Vidas Secas implicará uma
revisão da interpretação determinista, naturalista e regionalista que se tem
habitualmente do romance, tendo em vista que a personagem está submetida a uma
condição contra a qual não pode lutar. Esse é o posicionamento de alguns críticos
quando dizem que as personagens nunca fazem o que querem, mas o que as
circunstâncias impõem, de modo que as concepções que têm da vida estariam
limitadas, de um lado, pelos instintos humanos e de outro, por um destino cego e
fatalista, devido ao “terrível determinismo de Graciliano Ramos” (GONÇALVES, in
GARBUGLIO, 1987, p.252).
Por essa razão, questionaremos essa visão acabada e concluída da
personagem, pois Graciliano Ramos, ao auscultar o pensamento do sertanejo, notou
que merecia anotação o conteúdo e a expressividade emocional-afetiva de suas
palavras interiores. Propôs-se a representá-lo, retratando a profundeza dessa alma
sem concluí-la à revelia.
Justamente porque a personagem dialógica é vista como um ser
imprevisível, as personagens de Vidas Secas sonham: Fabiano com um mundo
sem seca, Sinhá Vitória com a cama de lastro de couro e Baleia com um mundo
cheio de preás, o menino mais novo em ser um vaqueiro como o pai e o mais velho
em entender o significado das palavras. Esses sonhos lhes dão força para viver e,
enquanto o homem está vivo, a última palavra ainda não foi dita: elas estão abertas
às mudanças decorrentes da sua condição de estar no mundo. Dessa forma, a
personagem está propensa à transformação validando, assim, o suposto tratamento
dialógico do autor.
Ademais, Graciliano nutre um intenso desejo de afirmar seu testemunho
sobre o homem, principalmente em momentos de crise e de reviravolta da alma, pois
são nessas situações desesperadoras que a personagem resgata a humanidade
perdida, retoma a lucidez e tem a consciência despertada. Essa postura frente à
imagem romanesca do homem nordestino assolado pela seca confirma a
validade da hipótese de que Fabiano aproxima-se da personagem dialógica, uma
vez que o interessante para o autor é revelar a percepção do sertanejo sobre si e
sobre a sua realidade por meio do discurso interior. É isso o que pretendemos
demonstrar com nossa pesquisa: que Vidas Secas é um romance edificado sobre o
princípio dialógico, no qual a representação da personagem é, acima de tudo, a
1
imagem de sua linguagem e de sua consciência.
Para isso, nosso estudo se desenvolverá em quatro capítulos. No primeiro,
O homem subterrâneo: Graciliano Ramos, em que percorreremos a fortuna crítica
de Vidas Secas, buscando detectar esse “homem subterrâneo” que foi Graciliano
Ramos, subvertendo a própria condição do modelo naturalista-regionalista no qual
grande parte da crítica o coloca. Nessa direção, apontaremos aquelas leituras que
ultrapassaram a concepção de Vidas Secas enquanto romance regionalista, uma
vez que a obra em foco “supera as principais vicissitudes de que foi marcado o
romance nordestino de 30 (MONTENEGRO, in FELDMANN, 1967, p. 23), ao
integrar o regional ao universal, conforme atesta Carpeaux:
Esse romancista tipicamente nordestino tem pouca coisa em comum com o
romance tipicamente nordestino do seu tempo (e sinto, neste momento,
que ele está de acordo comigo). O romance nordestino dos anos de 1930
foi neonaturalista. Graciliano não é neo nem naturalista. Se naqueles anos
estivesse existido o termo “neo-realista”, seria mais exato; mas também
seria, ainda, inexato
.
(
CARPEAUX
,
2001, p. 146).
No segundo capítulo, Fabiano: uma personagem em formação, em que
focaremos a personagem à luz do método dialógico de sua construção, tendo por
substrato as concepções teóricas de Bakhtin. É dessa forma que, ao auscultar esse
“espírito bronco (RAMOS,C., 1979, p. 125), o autor procura ouvir a voz do seu
pensamento, justamente para não concluir a personagem enquanto uma imagem
estável e rígida, a partir da realidade exterior.
O capítulo 2 divide-se em:
2.1 Fabiano ao espelho: o reflexo das personagens em sua
consciência, em que analisaremos que tipo de relações dialógicas há entre Fabiano
e as outras vozes do romance;
2.2 Fabiano e a voz da autoridade, em que desenvolveremos o estudo de
como a voz autoritária do soldado amarelo inscreve seu discurso na consciência de
Fabiano;
2.3 A autoconsciência de Fabiano, em que abordaremos como se edifica
o diálogo interior de Fabiano e como a voz do outro ressoa no seu discurso.
No terceiro capítulo, Fabiano e o ponto de vista narrativo, ainda a partir
do referencial teórico bakhtiniano, em que analisaremos o discurso indireto livre, um
1
discurso bivocal que, por não apagar totalmente as fronteiras entre o discurso da
personagem e o do narrador, permite “a coexistência, na mesma voz gramatical, de
dois pontos de vista distintos” (TEZZA, 2003, p. 222). Isso permite-nos descrever o
tipo de relação dialógica existente entre a consciência do narrador e a de Fabiano,
oscilando entre a proximidade e a divergência de visões de mundo.
E, finalmente, no quarto capítulo, O princípio realista em Vidas Secas, em
que analisaremos o posicionamento autoral ao se confrontar com o modelo
naturalista-regionalista da década de 30 por meio da construção de uma
personagem apreendida não como um elemento estático e submissa à seca, mas
como um sujeito dinâmico, que constrói a sua consciência ao mesmo tempo em que
modifica seus valores, abrindo a possibilidade de ruptura com a hereditariedade e
com a força determinante do meio. Trata-se, então, de um realismo inscrito em outra
chave: a que prevê, à luz do princípio da alteridade bakhtiniana, um outro eu o da
personagem e o discurso interior de sua consciência - campo de observação e
interpretação de outras consciências: a do narrador e a do próprio autor.
O capítulo 4 divide-se em:
4.1 O dialogismo: um método de construção de Vidas Secas, em que
apontaremos como a forma e conteúdo dialogam com o homem e seu tempo;
4.2 Fabiano é o homem de seu tempo, em que demonstraremos como
Fabiano reflete em si mesmo o tempo histórico e como relacionam-se passado,
presente e futuro em Vidas Secas.
1
Capítulo I. O homem subterrâneo: Graciliano Ramos
Trataremos “o homem subterrâneo” na direção que nos coloca frente à
fortuna crítica do romance, trazendo para a superfície um autor e uma obra Vidas
Secas que desafiam o plano de superfície com que o comumente analisados:
um autor engajado no modelo de romance regional dos anos 30 e um livro-denúncia
da força determinante do meio sobre o homem.
À medida que nos aprofundamos nesse romance, verificamos que o homem
subterrâneo é aquele que supera a crítica de que em Vidas Secas “homem e animal
convivem ali sem qualquer barreira que os separem” (MOURÃO, 1969, p. 127; grifos
nossos). Da mesma forma, esse homem subterrâneo não está associado ao
inconsciente, porque Graciliano Ramos não deseja “que seu romance seja um
simples campo de aplicação de análise psicológica” (CÂMARA, 1978, p. 278).
Apesar disso, Martins considerou cada capítulo de Vidas Secas um estudo
psicológico:
o estudo de Fabiano, de Sinha Vitória, o dos meninos, o de Baleia, o do
soldado amarelo. A paisagem comparece predominantemente no primeiro e
último capítulos, porque ‘Cadeia’, ‘Inverno’, ‘Festa’ e ‘o mundo coberto de
penas’, são ainda estudos psicológicos. (MARTINS, 1978, p.41- 42).
Embora haja leituras de Vidas Secas que enveredaram pelo psicologismo,
por entenderem a introspecção como um todo psicológico; a interiorização nesta
obra é um princípio para representar o discurso interior de Fabiano. Nele se esboça
o ponto de vista da personagem, revelando as reações sucedidas de acordo com os
acontecimentos. Graciliano, portanto, expressa a atividade mental do sertanejo, por
meio da introspecção que se orienta para compreender o signo interior e convertê-lo
em signo exterior.
Desse modo, tem-se acesso aos pensamentos do outro, um discurso não
verbalizado, mas cheio de evasivas, ressalvas, réplicas, no qual se registra a sua
percepção sobre a realidade e sobre si mesmo. Por esse motivo, Vidas Secas é
mais que um romance regionalista com tendência à crítica social, porque o autor
1
preferiu representar as reações interiores do caboclo ao invés de desenvolver tese
social.
Em conseqüência da postura subversiva do escritor, alguns críticos da
esquerda decepcionaram-se, pois o romance de Graciliano escapava dos moldes
do romance proletário. A propósito disso, afirma Guimarães:
O romance proletário é uma espécie de necessidade histórica por ser a
forma que quadra bem a um capitalismo decadente e tem que ter os
seguintes elementos: valorização da massa, rebeldia, descrição veraz da
vida proletária (apud BUENO, 2006, p.164).
Jorge Amado, em artigo sobre Os Corumbas de Amando Fontes, reitera
esses mesmos pontos, somando a eles: a ausência de enredo e o fim do herói
5
.
Diante do ambiente ideológico da época, Aderbal Jurema, em 1934,
expressou claramente sua decepção a respeito de Caetés, entretanto, nota-se que
sua critica pode ser estendida aos outros romances de Graciliano Ramos:
Eu julgava encontrar no romance de Graciliano Ramos, aquele silencioso
companheiro de banco do Café Central de Maceió, o desenvolvimento de
uma tese social. Daquele homem que falava muito pouco, dando a
impressão de que seu cérebro pesava, media e contava as letras das frases
que ia pronunciar, não podia esperar um livro somente humano,
introspectivo, mas completamente alheio à desigualdade de classes na
sociedade e fora de órbita da literatura revolucionária do momento.
(JUREMA apud BUENO, 2006, p. 231).
Para o crítico acostumado à estética regionalista dominante, Caetés e São
Bernardo deveriam evidenciar o movimento de massa, o caráter documental sobre
a vida dos humildes e o espírito de revolta. Talvez essa percepção tenha levado
Bueno a afirmar que a obra de Graciliano Ramos está engajada socialmente,
embora acabe privilegiando sempre o indivíduo:
Arquitetada pela fusão de preocupação social com a manifesta visão de que
o romance não pode abrir mão da introspecção, isso o coloca em posição
central na história do romance de 30, indicando de forma clara o caminho
que os melhores livros do período vão acabar, de um modo ou de outro,
seguindo. [...]
É dessa maneira que Graciliano se coloca, desde sua estréia, como o mais
importante romancista da década, ao mergulhar nos problemas sociais e
psicológicos sem fazer média com a crítica de seus próprios amigos nem
abdicar de uma posição política que sempre estivera muito clara e mais
clara ficaria com sua prisão em 1936. (BUENO, 2006, p.243)
5
Graciliano Ramos, no artigo O romance de Jorge Amado (1935), rebate esse posicionamento do
escritor: “o Sr. Jorge Amado tem dito várias vezes que o romance moderno vai suprimir o
personagem, matar o indivíduo. O que interessa é o grupo uma cidade inteira, um colégio, uma
fábrica, um engenho de açúcar. Se isso fosse verdade, os romancistas ficariam em grande
atrapalhação. Toda a análise introspectiva desapareceria. A obra ganharia em superfície, perderia
em profundidade”. (RAMOS, 1962, p.97)
1
Sendo assim, é impossível enquadrar a obra de Graciliano Ramos em
moldes ou esquemas preconcebidos, devido à própria diversidade estética e
temática de seus romances. Bosi interpreta essa produção variada como uma
recusa à regra:
Graciliano não compôs um ciclo, um todo fechado sobre um ou outro pólo
da existência (eu/mundo), mas uma série de romances cuja
descontinuidade é sintoma de um espírito pronto à indagação, á fratura, ao
problema. (BOSI, apud SSEKIND, 1984, 170).
Por outro lado, é inegável seu vínculo com a tradição regionalista e a
preocupação com o social, motivadoras do discurso narrativo, conforme afirma o
escritor:
Para sermos completamente humanos, necessitamos estudar as coisas
nacionais, e estudá-las de baixo para cima. Não podemos tratar
convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a
estrutura econômica de uma região que desejamos apresentar em livro.
(RAMOS, 1962, p. 261).
Nesse sentido, no caso de Vidas Secas, repete-se o tema do drama da seca
intrínseco ao sertanejo, tão abordado na literatura, mas sempre válido e
importante socialmente. Contudo, para o autor, o sertanejo e a miséria devem ser
abordados com verossimilhança, pois se encontra a novidade da literatura: no
modo como se presentifica essas relações. Para Graciliano, então, “a grandeza da
arte não vem diretamente dos tipos e situações representadas, mas sim da forma
que eles ganham dentro da obra” (BUENO, 2006, p. 236).
Por isso, o autor considerou sua obra inédita em muitos aspectos, conforme é
possível notar na carta enviada ao jornalista José Condé:
Fiz o livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E sem amor. Nisso, pelo
menos, ele deve ter alguma originalidade. Ausência de tabaréus bem-
falantes, queimadas, cheias e poentes vermelhos, namoro de caboclos. A
minha gente, quase muda, vive numa casa velha de fazenda. As pessoas
adultas, preocupadas com o estômago, não têm tempo de abraçar-se. Aa
cachorro é uma criatura decente, porque na vizinhança não existem galãs
caninos. (RAMOS,C., 1979, p. 129; grifos nossos).
Vidas Secas é um “livrinho” com muitas negativas, pois desejava uma
narrativa que se assemelhasse à realidade de suas personagens e, para isso,
eliminou tudo que o era essencial, reduzindo a linguagem ao mínimo de recursos.
Entende-se, agora, porque Graciliano Ramos combateu a linguagem artificial, que se
caracteriza pela ênfase ao acessório: justamente porque desnatura o fato e mente.
1
Desse modo, Graciliano Ramos manifesta-se negativamente com relação a certos
estratos da literatura tradicional, da Academia e de seguidores do cânone:
uma literatura antipática e insincera que usa expressões corretas, só
se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso
ignora que pessoas que não podem comprar capas de borracha.
Quando a chuva aparece, essa literatura fica em casa, bem aquecida, com
as portas fechadas. E se é obrigada a sair, embrulha-se, enrola o pescoço e
levanta os olhos, para não ver a lama nos sapatos. Acha que tudo es
direito, que o Brasil é um mundo que somos felizes. Está claro que ela não
sabe em que consiste essa felicidade, mas contenta-se com afirmações e
ufana-se o país. Foi ela que, em horas de amargura, receitou o sorriso
como excelente rémedio para a crise. Meteu a caneta em poetas da
Academia e compôs hinos patrióticos: brigou com estrangeiros que
disseram cobras e lagartos desta região abençoada; inspirou estadistas
discursos cheios de inflamações , e antigamente redigiu odes bastante
ordinárias [...] Essa literatura é exercida por cidadãos gordos, banqueiros,
acionistas, comerciantes, proprietários, indivíduos que não acham que os
outros tenham motivo para estar descontentes. (RAMOS, 1962, p. 94).
Nota-se que a grande preocupação de Graciliano Ramos foi contrapor-se à
produção literária de caráter conservador, vinculada à Academia, que optou pela
estética fixada em modelos estáveis, descomprometida com as questôes sociais
devido à manifestação de um nacionalismo ufanista, tendência à exaltação lírica da
pátria ou da paisagem, como se o Brasil fosse um Eldorado ou paraíso terrestre. Por
esse motivo, segue em direção contrária juntamente com Jorge Amado e outros:
Os escritores atuais foram estudar o subúrbio, a fábrica, o engenho, a
prisão da roça, o colégio do professor cambembe. Para isso resignaram-se
a abandonar o asfalto, o café, viram de perto muita porcaria, tiveram a
coragem de falar errado, como toda gente, sem dicionário, sem gramática,
sem manual de retórica. Ouviram gritos, pragas, palavrões, e meteram tudo
nos livros que escreveram. Podiam ter mudado os gritos em suspiros, as
pragas em orações. Podiam, mas acharam melhor pôr os pontos nos ii.
O Sr. Jorge Amado é um desses escritores inimigos da convenção e da
métáfora, desabusados, observadores atentos.(RAMOS, 1962, p.95).
A proposta para reabilitar o romance brasileiro estaria, portanto, embasada
no conhecimento do escritor acerca do objeto a ser ficcionalizado, além do
abandono dos recursos exibicionistas e do rebuscamento da linguagem. Tanto que
Graciliano Ramos elogiou a obra Porão
6
de Newton Freitas, por ser uma narrativa
de linguagem simples e sem exagero:
6
Porão é a história sobre a colônia correcional de Dois Rios, na qual mostra-se o tratamento
violento que os soldados dispensavam aos presos. Em 1936, Newton Freitas passou alguns
meses preso, tal qual Graciliano, que considerou o lugar como uma razoável amostra do inferno”
(RAMOS, 1962, p.100).
1
Essa história que Newton Freitas está publicando em jornal e certamente vai
publicar em volume poderia ser um dramalhão reforçado, com muita
metáfora e muito adjetivo comprido. O assunto daria para isso. E até julgo
que pouca gente no Brasil resistiria à tentação de pregar ali uns enfeites
vistosos, que agradariam com certeza leitores bisonhos, mas estragaria a
narrativa.
Não aconteceu semelhante desastre. (Ramos, 1962, p. 99).
Para Bulhões (1999, p. 160), Graciliano Ramos adere a uma das questões
fundamentais proposta pelo Modernismo de 1922, ao romper com a tradição
acadêmica, ao criticar as formas beletristas da linguagem, ao inserir na expressão
escrita os recursos da oralidade. Essa "poética da escassez e da negatividade" foi
uma manifestação de repúdio "do estilo empolado e exibicionista” (Idem, p. 156),
conservado por alguns autores como Coelho Neto
7
e Humberto de Campos
8
.
Essa nova “estrutura composicional” pode ser percebida na crônica
Justificação de voto, na qual relata os seus critérios para selecionar os contos do
concurso promovido pelo semanário D. Casmurro:
Comoveu-me a valentia do sertanejo que em noite de festa, canta, dança,
entra em barulho, quebra as forças da morena vestida de chita, depois se
casa com ela, é enganado e mata dois meliantes. Essa tragédia foi contada
muitas vezes [...] Contemplei vários poentes ensangüentados, é claro, como
todos poentes que se respeitem, e reli as duas descrições úteis a
românticos e realistas: a queimada e a enchente. A água e o fogo ainda são
elementos no interior, pelo menos em literatura. Admirei periodos muito bem
compostos, embalei-me com ritmo binário e com o ritmo ternário. Vi de perto
sequazes de Coelho Neto, de Humberto de Campos [...]
Afastei isso tudo. E como era necessário escolher treze contos, separei
casos simples e humanos, alguns bem idiotas, mas sem francês, sem
inglês, sobretudo sem a ponta de faca da honra cabocla, mentirosa e besta
sem ritmos, infalíveis, o binário e o ternáro, sem enchente e queimada, sem
tapeações do modernismo. (Ramos, 1962, p. 151; grifos nossos).
Além disso, Graciliano refere-se ainda às formas diferentes de valorar o
objeto estético, porque os outros quatro jurados também escolheram treze contos
cada um e não houve coincidência de voto. Desse modo, havia sessenta e cinco
histórias dignas de premiação. Para desempatar nomearam o crítico Almir de
Andrade, que premiou as histórias selecionadas por Graciliano Ramos. Coração de
D. Iaiá, de José Carlos Borges, classificou-se em primeiro lugar. No entanto,
alegaram que "ao trabalho escolhido faltavam coisas indispensáveis: a cadência, o
7
Coelho Neto foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira número
2, cujo patrono é Álvares de Azevedo, no período de 1897 à 1934. Tendo chegado a presidente da
casa de Machado de Assis no período de 1926
8
Humberto de Campos, membro da Academia Brasileira de Letras, foi eleito para a cadeira de
número 20, cujo patrono é Joaquim Manuel de Macedo, da qual foi o terceiro ocupante durante o
período de 1920 a 1934.
2
adjetivo grudado ao substantivo e o advérbio engatado ao adjetivo" (RAMOS, 1962,
p. 152). Graciliano justifica seu voto, expondo o seu critério para valorar o objeto
artístico e a sua concepção literária:
O Sr. José Carlos Borges não pratica os erros voluntários de certos
cidadãos que tentaram forjar uma língua capenga e falsa. Exprime-se
direito, sem penduricalhos, e isto a sua prosa uma aparência de
naturalidade que engana o leitor desprevinido. Não percebemos o artifício,
temos a impressão de que que aquilo é espontâneo, foi arranjado sem
nenhum esforço. [...]
Certamente houve paciência e demora na composição. [...] Conhece
perfeitamente a sua personagem [D. Iaiá], mas não se confunde em
nenhuma passagem com ela. A redação [das cartas] não é da velha, mas
parece-nos que é. A correspondência tem [...] uma verossimilhança obtida
às custas de repetições oportunas e dum vocabulário pequeno,
presumivelmente o que adotam as senhoras de escassos recursos
intelectuais e muita devoção. (RAMOS, 1962, p. 153-154; grifos nossos).
Diante desses apontamentos, percebe-se que a prosa, para o escritor, deve
representar artisticamente a diversidade social de linguagens e constituir-se a partir
da combinação de estilos: "a redação não é da velha, mas parece-nos que é".
Somente assim, é possível reconhecer a personagem pelo seu discurso, que o
vocabulário pequeno estaria de acordo com a idade da senhora e com o seu nível
cultural. Essa reflexão revela, ainda, que a preocupação de Graciliano não se
restringe à escrita, mas ocorre também com relação ao discurso oral da
personagem.
Tal postura colabora para a construção de um romance que prima pelo
vocábulo preciso e decisivo e pela redução da eloqüência do discurso. Esse novo
enfoque dado pela forma sucinta de narração, pela propositada economia descritiva,
foi a maneira de Graciliano Ramos opor-se "ao pitoresco, ao descritivismo e ao
gosto hiperbólico presentes na tradição do romance da seca, desde o naturalismo do
século XIX até o regionalismo de 1930" (MIRANDA, 2004, p. 43).
Em conseqüência dessa subversão, Graciliano Ramos alcança a
originalidade almejada, porque o que poderia ser um romance de paisagens, mais
um a explorar o tema do drama social causado pela seca no Nordeste, segue em
direção oposta à maioria dos textos literários, que no período desempenhavam a
função de desvendar socialmente o Brasil. Ao falar da terra, da seca, centraliza seu
romance no homem que sofre ora com a perseguição do espaço físico, ora com a
exploração e submissão ao espaço social, como observa Álvaro Lins:
2
Ele [Graciliano Ramos] exprime o ambiente com fidelidade, mas somente
em função de seus personagens. A ambiência é um incidente; o
personagem que é a vida romanesca. A paisagem exterior torna-se uma
projeção do homem. ( LINS, in RAMOS, 2004, p. 130).
É nesse sentido que se pode afirmar que, em Vidas Secas, o regional tem
caráter funcional: os acontecimentos exteriores decorrentes da posição geográfica,
das características climáticas e sócio-culturais são temas relevantes, porque afetam
diretamente a vida do sertanejo e servem de motivação para a personagem esboçar
sua percepção sobre a realidade circundantes.
O autor bem mais interessado em investigar a reação do meio na complexa
consciência existente debaixo da superficial aparência daquele ser "bronco", busca
o signo interior para compreender a atividade mental da personagem e exprimi-lo
aproximando-se ao máximo possível do estado de expressão exterior, para expor
como discurso e em discurso sua consciência:
O que me interessa é o homem, e o homem daquela região aspérrima.
Julgo que é a primeira vez que esse sertanejo aparece em literatura. Os
romancistas do Nordeste têm pintado geralmente o homem do brejo. É o
sertanejo que aparece na obra de José Américo e José Lins. Procurei
auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais
recuada do sertão, observar a reação desse espírito bronco ante o mundo
exterior, isto é, a hostilidade do meio físico e da injustiça humana. Por
pouco que o selvagem pense e os meus personagens são quase
selvagens o que ele pensa merece anotação. Foi essa pesquisa
psicológica que procurei fazer, pesquisa que os escritores regionalistas não
fazem mesmo porque comumente não conhecem o sertão, não o
familiares do ambiente que descrevem (RAMOS apud Clara Ramos, 1979,
p.125; grifos nossos).
Dessa forma, retomando a idéia do "livrinho" de negativas, Vidas Secas
quebra outra convenção, não só porque a obra não se sujeitou a reafirmar a imagem
estereotipada do sertanejo, a pregar a conservação da tradição nem a descrever
paisagens exóticas; mas, principalmente, porque sua literatura ultrapassou os limites
do regionalismo saudosista. Mesmo representando a relação homem-terra-
sociedade, que é uma adversidade secular, Graciliano empurrou suas personagens
para uma abertura ausente na maioria dos romances da época.
Ao cumprir sua
missão’ estritamente literária, executada alheia à política
mas solidária com o pensamento revolucionário de então, afastou-se
daqueles que através da literatura foram tragados [...] obrigados a dizer o
'possível', o
vantajoso’, o
necessário’, calando a linguagem inconviniente
de seus personagens. Graciliano, ao contrário, ao conferir dimensão
simbólica universal ao drama do homem nordestino, como em Vidas Secas
2
ou S. Bernardo, mostra que é possível pensar o país sem mutilá-lo.
(DÓRIA, 1993, p.34).
Graciliano Ramos recorre, portanto, às peculiaridades do regional sobretudo
como meio para atingir o universal, uma vez que "no ‘regional’, a Graciliano,
interessa apenas o que é comum a toda sociedade brasileira, o que é ‘universal’"
(COUTINHO, in BRAYNER, 1978, p. 73). Dessa maneira, Graciliano se alimenta dos
assuntos que sua região oferece, não para destacar especificidades do Nordeste,
mas porque o local fornece-lhe o material que revela o homem de seu tempo e do
seu país. E quanto mais o autor percebe a importância do local, mais universal se
sua obra:
Ser de sua região para ser de seu país, ser de seu povo para ser da
humanidade, ser ao mesmo tempo do seu povo, da humanidade, do seu
tempo, para ser de todos e de todas as épocas. (CASTELLO, 2004, p.106).
Para Caccese, Fabiano representa o drama do homem moderno: a
desumanização, a solidão, a incomunicabilidade com seu semelhante:
Não é o homem quem nos interessa nessa luta heróica contra o meio
avassalador? Fabiano não representará, além dos compromissos com o
Nordeste brasileiro, o homem de todos os tempos, espoliado por seus
semelhantes? (CACCESE, 1978, p. 163).
Segundo o crítico Adolfo Casais Monteiro, essa seria a divergência básica
entre Graciliano Ramos e o escritor regionalista, que faz da região o centro do
mundo, que de tanto querer dar relevo às particularidades locais descaracteriza o
romance, tornando-o tese sociológica, documentário e não uma representação
estética da realidade
9
:
Ora, em Graciliano o Nordeste não é o umbigo do mundo; o umbigo do
mundo é para ele a infinita miséria dos homens. E nós sentimos o Nordeste
através desta miséria, como através da particular miséria dos seus heróis
sentimos a dos homens de qualquer parte da Terra. (MONTEIRO, 1987, p.
272).
9
É esse traçado singular da obra de Graciliano Ramos que o afastou acentuadamente dos seus
amigos José Lins do Rego, Jorge Amado e Raquel de Queiroz. Conforme sintetizou Flora
Süssekind ao ler a Introdução de José Lins em Meus Verdes Anos e a nota de Jorge Amado em
Cacau: “José lins descreve a sua linguagem como dotada do mínimo possível de ‘palavras’,
‘disfarces retóricos’,‘imagens’. É próxima ao máximo possível de ‘uma realidade às vezes brutal’.
Elogia uma narração que não seja ‘disfarce’, que não ‘cubra’ a realidade. Jorge Amado, por sua
vez, propõe ‘um mínimo de literatura para o máximo de honestidade’. Em suma, uma literatura que
não seja literatura, mas ‘realidade’, ‘honestidade’, fotografia”. (SÜSSEKIND, 1984, p. 171)
2
Aliás, Monteiro (1987, p. 271) considerou Graciliano um “anti-regionalista por
excelência”, que para o crítico o regionalismo como tendência literária representa
saudosismo, manifestação de apego ao passado. Em outras palavras, conserva-se
costumes de outrora para criticar o presente e a vida no campo é idílica como
oposição à vida citadina que se afastou da tradição.
Enquanto que para Tristão de Ataíde, "o verdadeiro regionalismo não
precisa sacrificar o humano" (ATAÍDE apud, CASTELLO, 2004, p. 99), nem ter
como predominância a terra sobre o homem, a nação sobre o continente, a aldeia
sobre a nação.
Por outros motivos, os críticos inspirados no movimento regionalista do
Recife, liderados por Gilberto Freyre, também não consideram Graciliano Ramos um
romancista regionalista em virtude de submeterem o regionalismo a uma formulação
sociológica, ou por associarem-no à tradição, à lenda, aos mitos, às paisagens
brasileiras, à cor local, numa tentativa de reabilitar valores e tradições do Nordeste.
uma outra tendência da crítica que deixa de lado os aspectos
regionalistas para se ater aos elementos da narrativa, em especial, à personagem.
Neste caso, o protagonista Fabiano inicialmente é considerado cópia de Casimiro
Lopes, de São Bernardo, porque tanto um quanto outro, para alguns críticos, não
compreenderiam nada:
A visão do universo rural nordestino que se delineia em S. Bernardo
também conduziria Graciliano Ramos à concepção de Vidas Secas.
Lembremos, a propósito, a criação de Fabiano, sem dúvida projeção do
Casimiro Lopes de S. Bernardo: Boa alma Casimiro Lopes. Nunca vi
ninguém mais simples. [...] Não compreende nada, exprime-se mal e é
crédulo como um selvagem. (CASTELLO, 2003, p.311; grifos nossos).
outros críticos defendem a tese de que a rusticidade de Fabiano o
impediria de demonstrar qualquer consciência, reação ou transformação. É o caso
de Alfredo Bosi ao dizer que “Graciliano olha atentamente para o homem explorado,
simpatiza com ele, mas não parece entender na sua fala e nos seus devaneios algo
mais do que a voz da inconsciência” (BOSI, 2003, p. 24). Ou ainda de Rubem Braga
para quem: “Fabiano também não sabe pensar. É um primitivo. A façanha do livro
está nesse retrato interior de um primitivo. Como pensa esse homem que não sabe
pensar!” (BRAGA, 2001, p. 128).
2
Observa-se que essa crítica acredita na interioridade provinda de
"psicologias complexas". Para ela, o indivíduo de vida rudimentar não tem
capacidade de auto-análise ou nele essa capacidade não se coloca bem. Entretanto,
essas concepções começam a ruir, à medida que o próprio discurso crítico não
conta de abarcar a complexidade da obra e, como resultado, começa a se
contradizer.
Isso pode ser verificado, por exemplo, na fala do estudioso Rolando Morel
Pinto, ao declarar que as reações psicológicas de Fabiano estão acima do seu nível
mental: “às vezes o autor chega a esquecer as limitações psicológicas de Fabiano”
(PINTO, 1962, p. 159). Ou ainda, quando Álvaro Lins considerou um defeito “o
excesso de introspecção em personagens o primários e rústicos” (LINS, in
RAMOS, 2004, p. 152).
Para Candido, as personagens de São Bernardo e Angústia, Paulo
Honório e Luís da Silva, “pensam, logo existem”, enquanto que Fabiano “existe,
simplesmente. O seu mundo interior é amorfo e nebuloso, como o dos filhos e da
cachorra Baleia” (CANDIDO, 1992, p.45-46).
um erro grave quando alguns críticos defendem a idéia de que existe
ausência de interioridade e de consciência no homem rudimentar, afinal, “nenhum
ser humano, rigorosamente, é destituído de vida interior” (CÂMARAS, 1978, p. 286).
A vida subumana do sertanejo não o destitui de interioridade, nem o faz possuir uma
“psique vegetativa”
10
:
Eles só não falam muito [...] se entendem numa linguagem surda. Mas
interiormente a vida mental é profunda e dilatada, remoente. [...] a solidão
pode embrutecer o homem em face de outro homem, nunca esmagará as
cargas emocionais recalcadas no profundo interior. (CÂMARA, 1978, p.291-
292).
Para as leituras mais contemporâneas da obra, aquilo que os críticos vêem
como defeito ou inverossímilhança é o maior mérito do romance: “representar o
homem rústico como um ser pensante e ver seu pensamento não como falho de
sentido, mas, ao contrário, como bastante siginificativo - ainda que fragmentário e
contraditório” (MARINHO, 2000, p. 80).
10
psique vegetativa é a expressão usada por Leônidas Câmara para designar que os personagens
de Vidas Secas são “destituídos de qualquer espécie de interioridade anímica” (CÂMARA, 1978,
p. 287)
2
O autor conseguiu resolver o problema da representação por meio do
discurso indireto livre que permite à voz narrativa a distância para evitar a
identificação com a personagem. Em segundo lugar, essa tipologia discursiva dá voz
ao pensamento da personagem, o que lhe garante sua autonomia e cria a ilusão "de
que não narrador ali, apenas o pensamento quase em estado bruto da
personagem" (BUENO, 2006, p. 274).
Contudo, se para Bueno a opção pela narração em terceira pessoa foi "um
gesto de abandono de qualquer tentativa de falar de dentro. Enfatizando o que há de
cuidado em afastar a identificação fácil entre narrador e personagens prolétarios"
(BUENO, 2006, p. 274); para Miranda, esse narrador não está totalmente
impassível, pois Graciliano Ramos optou por uma situação narrativa que se
caracteriza "pelo movimento de aproximação e distanciamento da substância
sensível da realidade retratada, como forma de solidarizar-se [com as personagens]
e, ao mesmo tempo, sustentar uma posição crítica rigorosa" (MIRANDA, 2004, p.
41).
Essa linha de abordagem sobre o trabalho discursivo em Vidas Secas,
especialmente o ensaio de Marinho (2000), que aborda o uso do discurso indireto
livre como estratégia chave para a construção dialógica do livro, na esteira de
Bakhtin, serão pontos basilares para esta dissertação. Estabelecer como foco a
personagem Fabiano será, portanto, uma nova forma de explorar os níveis de
construção dialogal que o livro oferece. Assim, nos deteremos nas relações entre
Fabiano e as outras vozes socias do romance e, principalmente, entre Fabiano e o
narrador, refletindo sobre as consequências dessa arquitetura romanesca
plurilíngue, na concepção bakhtiniana.
2
Capítulo II. Fabiano: uma personagem em formação.
Graciliano Ramos, em Vidas Secas, não predetermina o indivíduo e isso se
deve ao seu estilo realista, pois, como bom observador do ser humano, sabe da
impossibilidade de descrevê-lo por completo, de caracterizá-lo ou sistematizá-lo,
devido à natureza contraditória da condição humana. Dessa maneira, é inviável
qualquer definição conclusiva a respeito do homem, que é essencialmente mutável:
Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
[...] Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse
percebido a frase imprudente. Corrigiu, murmurando:
Você é um bicho, Fabiano. (VS, p. 18).
Como se nota, mesmo Fabiano, que representa o “ser rude e quase
primitivo que mora na zona mais recuada do sertão” (Ramos, 1979, p. 125),
apresenta-se como um ser instável, que ora é homem e fala alto, ora é bicho e
murmura. Essa inconstância é positiva e justificada, já que o homem está em
contínuo processo de formação.
11
Por isso, é impossível Fabiano permanecer num estado inalterado, embora
a vida e as condições do meio sejam limitadas. A revolução ocorre no interior da
personagem, onde uma enxurrada de questionamentos que desmoronam
quaisquer certezas:
Afinal para que serviam os soldados amarelos? Deu um pontapé na parede,
gritou enfurecido. Para que serviam os soldados amarelos? Os outros
presos remexeram-se, o carcereiro chegou à grade, e Fabiano acalmou-se:
Bem, bem. Não há nada não. (VS, p. 34)
.
O fato de Fabiano compreender a sua condição e indignar-se contra ela,
mesmo que seja em silêncio, representa uma manifestação consciente e racional,
comprovando que para o autor ele é capaz “de colocar-se lado a lado com seu
criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele” (BAKHTIN, 1997b, p. 4).
11
Em virtude disso, é inconcebível afirmações como esta: “na fazenda de Fabiano o tempo parou.
Ele não sabe sequer a idade que tem. E ao longo do romance, contrariamente a Paulo Honório
ou Luís da Silva, não passa por nenhuma evolução com o suceder do tempo” (FELDMANN, 1968,
p. 188).
2
Dessa forma, Fabiano é representado como um sujeito-consciência, capaz de
participar juntamente com as outras consciências do grande diálogo do romance.
No diálogo consigo mesmo e com o outro o desvendamento do eu, a
revelação da verdade. Mas nem sempre essa descoberta ocorre de maneira
harmoniosa, principalmente para Fabiano, que não consegue verbalizar os
pensamentos. Descobrir a verdade sobre si mesmo e as razões dos
acontecimentos, é um processo doloroso, que requisita uma escolha entre a
mudança ou a fuga, justamente o primeiro e o último capítulo de Vidas Secas.
Dessa maneira, pode-se deduzir que o capítulo Mudança é o primeiro
passo na busca da verdade, da compreensão dos fatos e o capítulo Fuga
representaria a concretização da mudança, da transformação, que entre um e
outro capítulo existe reflexão, fissuras, quebra do invólucro, ruptura do ser.
É relevante ressaltar que o primeiro capítulo remete-nos à idéia de que a
“mudança” assemelha-se a marcha dos peregrinos: lenta, penosa, envolvida num
grande silêncio, que na concepção de Orlandi (1997), não significa falta, nem
ausência, mas ao contrário, é excesso de linguagem, pois há o pensamento, a
introspecção e a contemplação, que convergem para a busca de sentido, para a
compreensão dos acontecimentos.
De fato, o silêncio instala-se após Fabiano arrepender-se por desejar matar
o filho mais velho, em largá-lo aos urubus naquele descampado, ao perceber que
conseguia caminhar porque o menino estava “frio como um defunto” (VS, p.10).
No entanto, não temos acesso à revelação proporcionada pelo silêncio, não
sabemos qual foi a última palavra de Fabiano sobre si mesmo, possivelmente,
porque “aquilo que é o mais importante nunca se diz” (ORLANDI, 1997, p.14).
É dessa maneira que Fabiano constrói paulatinamente sua
autoconsciência
12
. Contemplando-se num espelho, que todos os traços típico-
sociais e caracterológico-individuais transferem-se para o seu campo de visão, junto
12
Zoppi- Fontana (1997), oferece um caminho para a compreensão do conceito de autoconsciência
formulado por Bakhtin. A princípio, a estudiosa esclarece que o tema da autoconsciência é a
maneira como se organiza a relação que o sujeito estabelece consigo mesmo, o "eu-para mim"
que é "a consciência que ele [o sujeito] pode ter de sua própria vivência e o juízo concreto sobre si
mesmo" (BAKHTIN, 2000, 105). Ela ainda observa que a autoconsciência é uma vivência interior,
é um eu debruçado sobre si mesmo pronto a dar a última palavra sobre si mesmo e sobre o
mundo.
2
com a realidade e o mundo exterior que o rodeia, a fim de que sirvam de objeto de
reflexão, incitando a personagem a mudar.
Tome-se como exemplo o fragmento: “Caminhando, movia-se como uma
coisa, para bem dizer não se diferenciava muito da bolandeira de seu Tomás. Agora,
deitado, apertava a barriga e batia os dentes. Que fim teria levado a bolandeira?”
(VS, p.14). Fabiano ao bater os dentes como se triturasse, recorda-se da função da
bolandeira. Seus pensamentos o levam de um lado para outro, até que recaem
novamente na imagem: “(...) com a seca, a bolandeira estava parada. E ele,
Fabiano, era como a bolandeira, Não sabia porquê, mas era. Uma, duas três, havia
mais de cinco estrelas no céu” (VS, p.15; grifos nossos).
No intervalo entre a recordação e a associação, Fabiano conseguiu
racionalizar, porque agora tinha um elemento para materializar essa comparação - a
bolandeira - que estava parada porque dependia das condições do meio. Mas,
ocorre que esse homem, diferentemente da bolandeira, não está parado, ao
contrário, está em contínuo movimento de ir e vir em seus pensamentos. está a
semelhança e a diferença entre Fabiano e a bolandeira: como ela, ele faz a moagem
e a trituração de suas idéias, mas, diferentemente, nunca pára, já que ele não
precisa da força alheia para mover-se, é independente.
A partir dessas considerações, portanto, devemos analisar também o
processo de formação da consciência de Fabiano, a partir da sua relação com o
outro.
2.1 Fabiano ao espelho: o reflexo das personagens em sua consciência.
Se Fabiano soubesse “quantos anos teria? Ignorava, mas certamente
envelhecia e fraquejava. Se possuíssem espelhos, veria rugas e cabelos brancos”
(VS, p. 106; grifo nosso). Como se indicia no fragmento, o espelho enquanto reflexo
da imagem é muito importante na concepção de prosa romanesca para Bakhtin,
porque nela o reflexo do nosso eu é o outro:
2
A atitude do herói face a si mesmo é inseparável da atitude do outro em
relação a ele. A consciência de si mesmo fá-lo sentir-se constantemente no
fundo da consciência que o outro tem dele, o eu para si” no fundo do “eu
para o outro”. Por isso o discurso do herói sobre si mesmo se constrói sob a
influência direta do discurso do outro sobre ele. (BAKTHIN, 1997b, 208).
É devido a isso que Marinho (2000 p. 98) aponta que a autoconsciência de
Fabiano é confundida pela consciência que o outro tem dele. Quem define o que ele
é ou pode, decididamente, são os outros que participam do seu campo de visão o
patrão, o soldado amarelo e até Sinhá Vitória a ele cabe incorporar essa idéia do
outro sobre ele: Fabiano fingira-se desentendido: o compreendia nada, era bruto.
(...) – Um bruto, está percebendo?(VS, p. 94-95).
Mas, será mesmo que lhe cabe aceitar passivamente essas definições?
Acreditamos que não se trata de uma aceitação passiva, pois Fabiano finge e isso
significa que sua compreensão está além do que supunham os críticos aqui
comentados. Fingir exige um movimento complexo que vai do perceber e interpretar
a situação, prever comportamentos e suas conseqüências até selecionar aquele que
trará menos perturbações. Afinal, como Fabiano saberia que não compreende e,
mais ainda, que algo a compreender? Ou ainda, com base em quais parâmetros
Fabiano considera-se bruto neste caso específico?
Para responder a essas questões, é necessário tomar por base novamente
a idéia de um espelho que reflete e refrata no seu discurso a imagem que o outro
tem dele, captando aspectos de si mesmo registrados em consciências alheias. São,
portanto, as palavras de outros que dizem quem somos nós, que se introduzem no
nosso interior e assimiladas edificam nossa personalidade. Ao reestruturarmos e/ou
modificarmos esses discursos, estamos construindo a nossa autoconsciência: “–
Fabiano, você é um homem” ou “ – Você é um bicho, Fabiano.” (VS, p. 18).
Por essa razão, a personagem define sua consciência no diálogo com
outras consciências: “somente na comunicação, na interação do homem com o
homem revela-se o 'homem no homem', para outros e para si mesmo” (BAKHTIN,
apud MARCHEZAN, 2006, p. 122). Nesse sentido, diálogo é entendido “como
reação do eu ao outro, reação da palavra a palavra de outrem, como ponto de
tensão entre eu e o outro, entre círculos de valores, entre forças sociais” (BAKHTIN,
apud MARCHEZAN, 2006, p.123).
3
É oportuno ressaltar que o diálogo entre consciências difere do diálogo no
sentido real, pois não se trata de conversa, de discussão, de interação face a face.
Por esse motivo, nem sempre o discurso direto garante o dialogismo, porque a
representação da fala da personagem não significa a representação da voz, definida
por Bakhtin como um centro de valor que “precisa conservar em algum grau a sua
força original e não apenas suas marcas formais [no romance]” (TEZZA, 2004, p.
263).
Dessa maneira, é no interior da personagem Fabiano que ocorrerá o
diálogo, porque “onde começa a consciência começa o diálogo” (BAKHTIN, 1997b,
p. 42). É no diálogo interior que Fabiano apropria-se do discurso de outrem
carregado de acento valorativo, marcando sua posição em relação a seu
interlocutor. É isso que ocorre nesta passagem, por exemplo:
Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor.
Aquilo [o soldado amarelo] ganhava dinheiro para maltratar as criaturas
inofensivas. Estava certo? O rosto de Fabiano contraía-se medonho, mais
feio que focinho. Hem? Estava certo? Bulir com as pessoas que não fazem
mal a ninguém. Por quê? (VS, p. 101).
Um discurso ressentido que acusa o patrão do soldado [o governo] de
cúmplice ou, no mínimo, de omisso, visto que paga um ordenado para o soldado
amarelo agredir pessoas inofensivas. Fabiano tem convicção de seus argumentos,
por isso suas perguntas são tão incisivas. “Estava certo? Hem? Estava Certo?”. São
perguntas que trazem em si o germe da resposta, seu discurso orienta-se para
antecipar possíveis réplicas. No entanto, a última pergunta “por quê?” é o
questionamento de quem busca, realmente, uma explicação, para compreender o
motivo pelo qual se torturam inocentes.
Embora o discurso de Fabiano ocorra apenas no nível da consciência, é
internamente dialogado, são perguntas que incitam a conscientização, haja vista as
várias entonações com que ele é proferido: ora irônico, ora desapontado, ora
interrogativo. De modo que “cada emoção, cada idéia da personagem [...] tem
coloração polêmica, é plena de combatividade e está aberta à inspiração de outras”
(BAKHTIN, 1997b, p. 32).
Em Vidas Secas, o diálogo se no interior do discurso citado, uma vez
que as palavras reproduzidas pela personagem fazem parte do discurso de
3
outrem
13
. Nesse caso, é possível perceber as relações dialógicas que se formam
entre Fabiano e as outras personagens do romance, pois Fabiano incorpora o
discurso do outro no seu monólogo interior.
Vejamos um exemplo: “Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto,
mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventam juro. Que juro! O
que havia era safadeza” (VS, p. 94; grifos nossos). A palavra “jurofora empregada
pelo patrão para explicar a diferença das contas que Sinha Vitória fizera. Mesmo
sem saber o significado convencional, Fabiano a reproduz, com revolta, atribuindo-
lhe um outro significado: o de “roubo”. E, diante dessa circunstância, conclui “sempre
que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado [...] serviam
para encobrir ladroeiras” (VS, p. 96). uma clara tensão dialógica entre classes: a
voz do empregado e a voz do patrão, um diálogo no qual a voz do camponês é
reprimida pela voz do poder do proprietário da terra, conforme se esclarece abaixo:
Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando
o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro
e nunca arranjar carta de alforria!
O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse
procurar serviço noutra fazenda.
Ai! Fabiano abaixou a pancada e amunhecou. Bem, Bem. (VS, p. 93).
O discurso de Fabiano revela a permanência da escravidão na estrutura
agrária nordestina. Todavia, o patrão não o manda dormir no tronco, para ser
açoitado por cipó de boi e puni-lo pela insolência, mas ainda exerce sua autoridade
mandando-o procurar emprego noutra fazenda. A diferença que marca a tomada de
consciência é que Fabiano sabe que não é escravo: “Trabalhar como negro e nunca
arranjar carta de alforria!” (VS, 93).
Também é conflitante a relação entre o vaqueiro e a sociedade. Por isso,
“vivia longe dos homens, se dava bem com os bichos” (VS, p. 19). Isola-se do
convívio social, pois para o retirante, o meio social é mais hostil que a natureza em
tempos de seca. Preferia os bichos aos homens, que eles lhe eram conhecidos e
familiares: “Para dos montes afastados havia outro mundo, um mundo temeroso;
13
“As relações dialógicas o possíveis não apenas entre enunciações integrais (relativamente),
mas o enfoque dialógico é possível a qualquer parte significante do enunciado, inclusive uma
palavra isolada, caso esta não esteja interpretada como palavra impessoal da língua, mas como
signo da posição semântica de um outro, como representante do enunciado do outro, ou seja
ouvimos nela a voz do outro. Por isso, as relações dialógicas podem penetrar no âmago do
enunciado, inclusive no íntimo de uma palavra isolada se nela se chocam dialogicamente duas
vozes” (BAKHTIN, 1997b, p. 184).
3
mas, para cá, na planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras” (VS, p.
123).
Desse modo, a cultura do sertanejo Fabiano e de sua família tem
significado diante do contexto em que vivem, logo é excluído do convívio social, pois
no contato com outra cultura não é bem sucedido, porque as relações sociais do
outro grupo são articuladas por outro sistema de comunicação simbólica e por outras
regras de operação: “Como andariam as contas com o patrão? Estava ali o que ele
não conseguiria decifrar nunca. Aquele negócio de juros engolia tudo, e afinal o
branco ainda achava que fazia favor” (VS, p. 110).
Pensando bem, é justamente o que o delimita e o encerra em sua condição
de nordestino ou de regional é também o que o universaliza, afinal todo homem
busca decifrar coisas que sabe que estão além de sua compreensão: desde a
matemática dos juros até a mais abstrata questão metafísica. Portanto, Fabiano faz
parte de uma tradição de homens destinados à busca do que está além e, por isso,
é uma personagem exemplar na literatura universal.
Fabiano trava constantemente um diálogo tenso entre o velho e o novo, pois a
tradição o impedia e o poupava do impacto da novidade: “Não se arriscaria a
prejudicar a tradição, embora sofresse com ela” (VS, p. 76).
No entanto, a tradição que Fabiano conserva o prejudica, pois reproduz o
discurso arcaico da estrutura agrária que assola os camponeses condenados a uma
vida nômade: “mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais
antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos.
E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário” (VS, p. 17).
O discurso do outro, já tão disseminado no meio social, representa uma
verdade absoluta: “cortar mandacaru, ensebar látegos aquilo estava no sangue”
(VS, p. 96). O fato desses comportamentos, representados no discurso da
personagem, estarem no sangue mostra que aquilo se tornou hereditário, o que nos
leva a pensar que a situação é vista como imutável.
Nesse sentido, estaríamos frente a uma personagem com acabamento
exterior, ou seja, sem qualquer possibilidade de superação ou mudança. Mas, a
personagem monológica difere completamente do ser dialógico que se inscreve em
Fabiano. Isso porque, ao repetir expressões cristalizadas pelo uso social: “Quem é
3
do chão não se trepa” (VS, 92), o sertanejo o revela submissão à determinação
sócio-cultural, mas o faz como um ato de enfrentamento, ou ainda, para justificar sua
força.
É o que ocorre, por exemplo, com a palavra “cabraque marca a ideologia
daquele que assim o chama (animal de carga que serve os donos). Entretanto, ao
ser retomada e repetida por ele, adquire novo sentido. Somada ao ser bicho/homem,
“cabra” é o animal forte que vence a seca. Assim, as palavras alheias não são
repetidas como eco, mas carregam novos acentos e se transformam em palavras
autônomas. Se Fabiano aceitasse a voz do outro que o conclui e o reduz a nada,
estaria caminhando no sentido oposto ao da consciência polifônica, conforme
observa Bakhtin, “o herói de Dostoiésvki sempre procura destruir as bases das
palavras do outro sobre si, que o torna acabado e aparentemente morto(BAKHTIN,
1997b, p. 59). Por isso, a tentativa de não aceitar passivamente a palavra alheia,
surge no interior de cada discurso de Fabiano:
Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. Sua sina era correr
mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um
vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede
(VS, p. 19; grifo nosso).
Tome-se o termo “vagabundo” como exemplo: nela não consta o sentido
pejorativo de vadio ou ordinário que lhe é atirado pelos outros e incorporado ao
discurso do sertanejo; aqui, a palavra recebe as entonações da personagem que
a ela o sentido de “livre” em oposição ao de “escravo”. Vagabundo, portanto, se
mescla aos demais sentidos que povoam o fragmento, imbuindo-se deles: sem
raízes + correr mundo + errante + passagem + hóspede = vagabundo. Até mesmo o
termo “judeu” colabora com a idéia de que ele não precisa de dinheiro, já que
popularmente esse termo está associado ao usurário.
Portanto, porque transformada, a palavra se torna dele e se prepara para a
ação, mesmo sendo uma ação de funcionalidade virtual, ou seja, sem inteireza. O
que não acontece com o ato de fingir, por exemplo, que se concretiza enquanto
ação nascida e finalizada no discurso.
14
Assim, ao se questionar, ele demonstra
inconformismo, mostrando que ainda lhe resta humanidade, dignidade, que há uma
lucidez manifestada no seu discurso interior :
14
Lembre-se a citação comentada: Fabiano fingira-se desentendido: não compreendia nada, era
bruto. (...) – Um bruto, está percebendo?(VS, p. 94-95).
3
Safados.Tomar as coisas de um infeliz que não tinha onde cair morto! Não
viam que isso não estava certo? Que iam ganhar com semelhante
procedimento? Hem? Que iam ganhar?
An! (VS, p. 97)
Mas, por vezes, sua revolta existe apenas no espaço interior do desejo, sem
a exteriorização pela ação: “desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia
fazer nada” (VS, p.98). Nesses momentos, o que se tem é uma autoconsciência em
ebulição, ainda em processo e, por isso, sem a força necessária para lançar-se para
fora. Esse é o caso, por exemplo, do reencontro entre Fabiano e o Soldado amarelo
na caatinga, um momento desejado por Fabiano para o acerto de contas. Afinal, a
lembrança da surra que levara na cadeia atormentou-o por um ano. O confronto
iminente ganhava proporções pela raiva que as reminiscências da humilhação
revigorara. No entanto, não se vingou do Soldado amarelo, não porque tivesse medo
da autoridade, mas sim, porque seu caráter ou sua crença não lhe permitira: “Tinha
vontade, mas os músculos afrouxavam. Realmente não quisera matar um cristão
(VS, p. 100).
Vê-se, com isso, a ebulição do conflito no qual o ato de não matar supera o
de matar, em termos de autoconsciência. A palavra interiorizada possibilita que ele
não aja como um animal, que seja capaz de domar seus instintos, de ponderar e agir
como homem.
Essas transformações ocorrem com a ajuda do reflexo da palavra da esposa
em sua consciência. Sinhá Vitória lhe abre os olhos e o faz avançar em caminho e
em discurso, despertando-lhe a consciência através da admiração que incute no
marido, seja pela inteligência superior, seja por seu pensamento propulsor de ações
futuras:
Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a esperteza de
sinha Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha idéias, sim senhor,
tinha muita coisa no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída. Então!
Descobrir que as arribações matavam o gado! E matavam. (VS, p. 109).
Por isso, Fabiano reproduz as palavras de Sinhá Vitória com confiança. E,
quando da retirada, realmente parte acreditando esperançoso em uma vida nova,
graças às palavras dela, que o ajudam a antever e solucionar os problemas:
Agora desejava saber [sinhá Vitória] o que iriam fazer os meninos quando
crescessem.
3
Vaquejar, opinou Fabiano.
Sinhá Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente,
arriscando-se derrubar o baú de folha. Nossa Senhora os livrasse de
semelhante desgraça. Vaquejar, que idéia! Chegariam a uma terra distante,
esqueceriam a catinga, onde havia montes baixos, cascalhos, rios secos,
espinho, urubus, bichos morrendo de fome, gente morrendo. o voltariam
nunca mais. [...]
Fabiano ouviu os sonhos da mulher deslumbrado, relaxou os músculos.
(VS, 122; grifos nossos).
É através das palavras da mulher que Fabiano começa a sonhar com uma
vida mais digna: “pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando”
(VS, 125) e estava feliz, principalmente porque rompe com o conhecido, que o
prende à tradição e à exploração, e se abre para o espaço novo e desconhecido,
que o empurra para frente:
As palavras de sinhá Vitória encantavam-no. [...]. Repetia docilmente as
palavras de sinha Vitória, as palavras que sinha Vitória murmurava porque
tinha confiança nele. [...] uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os
meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. (VS, p. 126).
A representação do discurso de Sinhá Vitória na consciência de Fabiano
marca o diálogo entre os sujeitos-consciências, um outro Fabiano se revela, ainda
temeroso talvez, mas determinado a romper com aquela vida de miséria e
humilhações. Sinhá Vitória, ao diminuir o peso da carga de Fabiano durante a
viagem, tirou-lhe também o peso da tradição, a marca da ancestralidade, o gesto
hereditário: “Sim senhor. Que mulher! Assim ele ficaria com a carga aliviada e o
pequeno teria um guarda-sol.”.(VS, p.125).
Ao sentir a carga aliviada sem o peso da imutabilidade e da mesmice
Fabiano tece planos, ou seja, se apresenta como um ser em devir. Os meninos indo
à escola romperiam com relações de exploração que se perpetuaram por várias
gerações, os meninos seriam diferentes do Fabiano bruto, seriam como seu Tomás
“Certamente aquela sabedoria inspirava respeito [...] Seu Tomás da bolandeira
falava bem” (VS, p.22).
Fabiano reconhece que a cultura letrada era necessária, pois somente
assim os filhos poderiam lutar contra a hostilidade social e essa arma, infelizmente,
Fabiano não detinha. Mesmo imitando as expressões vocabulares de seu Tomás da
bolandeira, saía tudo truncado, desconexo, pois o tinha nenhuma intimidade com
as palavras, como se verifica no excerto: “Ouviu o falatório desconexo do bêbado,
3
caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à
toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na parede” (VS, p. 35).
O discurso de Fabiano representa a palavra alheia na tentativa de superar a
sua dificuldade lingüística, pois “faltam-lhe os termos para expor e concluir seu
pensamento” (HOLANDA, 1992, p. 57). Fabiano percebe que a palavra confere
poder e respeito nas relações sociais, além disso, nota que o domínio da língua é
um divisor de águas, pois a cisão provocada pelo desempenho lingüístico entre os
grupos sociais destaca a posição social de cada um. Por isso, desejava que seus
filhos aprendessem “coisas difíceis e necessárias” (VS, p. 126), coisas que ele
desejou, mas “nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as
coisas nos seus lugares” (VS, p.36).
Se conseguisse manifestar seus pensamentos talvez não teria mais a
lembrança da tortura que sofrera, que reprimiu ainda mais sua voz. O contato com o
soldado amarelo incutiu o medo em sua consciência e é sobre essa relação de
submissão à autoridade que vamos refletir a seguir.
2.2 Fabiano e a voz da autoridade.
É extremamente importante analisar algumas passagens do capítulo Cadeia
e Festa para observar como a voz do Soldado amarelo reverbera na consciência de
Fabiano. Assim, vê-se a princípio que o diálogo do Soldado amarelo com Fabiano é
amigável, trata-o com igualdade: “— Como é, Camarada? Vamos jogar um trinta-e-
um lá dentro?” (VS, p.27).
Fabiano olha a farda com respeito e responde gaguejando: “— Isto é. Vamos
e não Vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme” (VS, p 27). Mesmo
hesitando, faz o que a autoridade deseja, pois, caso não aceitasse, o soldado
poderia entender como uma desfeita.
Então, “levantou-se e caminhou atrás
do amarelo” (VS, p. 27; grifo nosso).
Respeitando a hierarquia, já que o soldado era a autoridade, Fabiano era bruto “mas
3
sabia respeitar os homens” (VS, 93), “Deus o livrasse de história com o governo”
(VS, p. 95). Percebe-se assim que Fabiano reforça o estabelecimento da hierarquia,
projeta-se de acordo com a sua posição social, é uma atitude condicionada na sua
memória coletiva.
Quando entram na bodega de seu Inácio, onde há muitos jogadores, a
autoridade assim se manifesta: “— Desafasta, ordenou a polícia. Aqui tem gente. Os
jogadores apertaram-se e os dois homens sentaram” (VS, p. 27; grifo nosso). Nota-
se claramente os “lugares de discurso”: daquele que de onde fala se como
gente em oposição ao bicho/homem Fabiano e seus companheiros. Entretanto,
revela-se no duplo bicho/homem uma questão existencial muito mais profunda do
que em “gente”. Ser gente não leva a questionamento algum, estar em um entre-
lugar, ou seja, ficar na fronteira bicho/homem produz o conflito gerador da
mobilidade do ser em devir.
O policial recorre, então, à autoridade impondo-se, para obter assim
vantagens. Fabiano ao perder o dinheiro, assim como o policial, levanta-se e sai da
banca de jogo sem dar satisfação enquanto o amarelo grita furioso. Na praça, é
empurrado pelo “cisco de gente” com farda amarela que o insulta por sair sem
despedir-se. Fabiano interpela-o se a causa daquele destempero todo não era
devido à perda do dinheiro: “— Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de
vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo?” (VS, p. 29). O soldado engasga-
se de raiva ou de espanto, afinal, fora surpreendido pela indagação e competia
somente a ele fazer perguntas: a farda lhe dava esse poder.
Então, o soldado pisa com o salto da botina no de Fabiano uma, duas
vezes: o inimigo precisava saber seu lugar. Com a dor, Fabiano esquece-se da farda
e xinga a mãe do infeliz. “— Isso não se faz moço, protestou Fabiano. Estou quieto.
Veja que mole e quente é pé de gente” (VS, p. 29, grifos nossos).
O soldado satisfeito ao impor a dor apita e, num segundo, a tropa estava
na praça, comprovando que também ele não domina o código lingüístico: sua voz,
hierarquicamente superior, é investida de poder pelo som do apito, que é um
instrumento disciplinador. Assim, levaram-no, registrou-se a ocorrência e o Soldado
amarelo pronunciou a sentença: o discurso autoritário e de poder.
3
Essa irrupção violenta representa a prática do rito do “sabe com quem está
falando?” um ritual da separação que “implica sempre uma separação radical de
duas posições sociais” (DAMATTA, 2007, p. 181), para reafirmar a classe dominante
e restabelecer a estrutura hierárquica. A partir de Damatta, que interpreta
sociologicamente esse ritual, a reação do soldado amarelo indica que sentiu sua
autoridade diminuída. Mais ainda, sentiu-se ridicularizado perante o juiz de direito, o
cobrador da prefeitura e o seu vigário, porque Fabiano o questionara e ofendera sua
mãe na frente de todos na praça.
As palavras e ações do soldado amarelo abriram uma fenda e, ao
penetrarem na consciência de Fabiano como a voz da arbitrariedade, implantaram
ali o medo, que, como a lembrança
15
, vive em estado latente submerso no
inconsciente e ressurge quando é motivado pelo exterior. Tal ocorre no capítulo
Festa, quando, na saída tumultuada da igreja, os encontrões da multidão
provocaram a recordação da agressão, dos empurrões e dos machucados que
sofrera no dia da prisão:
Sem motivo nenhum, o desgraçado tinha ido provocá-lo [...] perdera a
paciência, tivera um rompante. Conseqüência: facão no lombo e noite na
cadeia.
Em seguida encaminhou-se às barracas de jogo. Coçou-se, puxou o lenço,
desatou-o, contou o dinheiro com a tentação de arriscá-lo no bozó. Se fosse
feliz, poderia comprar a cama de couro cru, o sonho de sinha Vitória. Foi
beber cachaça numa tolda[...] Sinha Vitória fez um gesto de desaprovação,
e Fabiano retirou-se lembrando-se do jogo que tivera em casa de seu
Inácio, com o soldado amarelo, fora roubado, com certeza fora roubado.
Avizinhou-se da tolda e bebeu mais cachaça.
[...] Estava resolvido a fazer uma asneira. Se topasse com o soldado
amarelo, esbodegava-se com ele. (VS, p 77)
Ao lembrar-se, reconstrói as experiências passadas, que vêm à tona
16
juntamente com o desejo de desforra, estimuladas pela embriaguez. Fabiano, ao
recorrer ao álcool, sente-se de repente cheio de coragem, de força, com vontade de
brigar, não escolhia o adversário, poderia ser tanto o soldado amarelo quanto
qualquer outro habitante da cidade, afinal todos eram seus inimigos: “— Cadê o
valente? Quem é que tem coragem de dizer que eu sou feio? Apareça um homem”
15
A lembrança é a sobrevivência do passado e este se conserva no espírito de cada ser humano, no
inconsciente, “é nesse reino de sombras que se deposita o tesouro da memória”, segundo Ecléa
Bosi (2007, p. 52). Ainda de acordo com a autora, “lembrar não é reviver, mas refazer, repensar,
com imagens de hoje as experiências do passado” (Idem, p.55)
16
A etimologia do verbo lembrar-se em francês é “souvenir [que] significaria vir’ ‘de baixo’: sous-
venir, vir à tona o que estava submerso” (BOSI, E., 2007, p.46)
3
(VS, p. 78). Contudo nada acontece, passado o arroubo, Fabiano adormeceu na rua
e sonhou com muitos soldados amarelos, que “tinham aparecido, pisavam-lhe os
pés com enormes reiúnas e ameaçavam com facões terríveis” (VS, p. 84).
Dessa forma, é na interação com outras consciências do romance que a
autoconsciência de Fabiano se constrói, gradativamente, como veremos adiante.
2.3 A autoconsciência da personagem Fabiano.
No romance polifônico, a personagem impõe-se como sujeito que se revela
por meio de suas palavras. Não é um objeto mudo do discurso do autor, mas é uma
consciência, pois:
o valor direto e pleno das palavras do herói desfaz o plano monológico. E
provoca resposta imediata. Como se o herói não fosse objeto da palavra do
autor mas veículo de sua própria palavra, dotado de valor e poder plenos.
(BAKHTIN, 1997b, p. 03).
É possível identificar essa independência das personagens em Vidas
Secas, neste fragmento da obra, por exemplo:
Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como
bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam
viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam.
O mundo é grande.
Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande e
marchavam, meio confiados, meio inquietos. (V S, p. 121).
Ainda que o narrador contraponha-se à opinião de Fabiano de que “o mundo
é grande”, as personagens têm liberdade para expor suas opiniões e para tomar
decisões. Esse conflito gerado pela autoconsciência da personagem decompõe
uma pretensa unidade monológica da obra, porque a ausência de dominação de um
ponto de vista dominante, seja do narrador, seja do autor criador, garante o
plurilingüismo dessa prosa romanesca. Dessa forma, Fabiano interessa ao autor
enquanto ponto de vista: faz-se necessário ouvi-lo, deixá-lo falar, provocá-lo, para
que exponha suas opiniões, tal qual ocorre neste trecho:
As contas do patrão eram diferentes, arranjadas a tinta e contra o vaqueiro,
4
mas Fabiano sabia que elas estavam erradas e o patrão queria enganá-lo.
Enganava. Que remédio? Fabiano, um desgraçado, um cabra, dormia na
cadeia e agüentava zinco no lombo. Podia reagir? Não podia. (VS, p. 113).
Como pudemos observar, ao longo dessa análise, em Vidas Secas é
raríssimo o diálogo direto enquanto fala entre interlocutores. No entanto, o monólogo
interior é uma forma de diálogo interiorizado, no qual o eu confronta-se com seu
duplo, com o seu avesso.
a descoberta do homem interior de si mesmo inacessível à auto-
observação passiva e acessível apenas ao ativo enfoque dialógico de si
mesmo que destrói a integridade ingênua dos conceitos sobre si mesmo,[...]
rasga as roupagens externas da imagem de si mesmo, que existem para as
outras pessoas, que determinam a avaliação externa do homem (aos olhos
dos outros) e turvam a nitidez da consciência de si. (BAKHTIN, 1997b, p.
120).
Neste diálogo entre o eu e o outro, interiorizados em sua consciência,
Fabiano revela-nos que sua passividade diante das trapaças praticadas pelo patrão
não é por covardia, nem por acomodação: é por impotência.
Olhou as cédulas, arrumadas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou,
mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista.
Se não baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos
pequenos e os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a
mulher e os filhos? Tinha nada! (VS, p. 95).
É, portanto, uma passividade aparente, pois está repleta de vontade de
ação, ou seja, Fabiano é aquele que se movimenta entre o querer fazer e o dever
fazer. Isso comprova que ele não está parado na posição social marginal que ocupa,
mas movimenta-se em seu universo de pensamentos. A linguagem gutural e
monossilábica pode impedir de avançar socialmente, mas o o priva de
interioridade e de reflexão.
Fabiano tem conhecimento dessa realidade que o assola, que o marginaliza
e da vida desumana que vive. Além disso, reflete sobre cada acontecimento: a
violência sofrida na prisão, as contas erradas do salário feitas pelo patrão; a
cobrança de impostos e as multas dadas pelo agente da prefeitura. Contudo,
Fabiano não esmorece, conforme observou Coutinho:
Apesar da passividade exterior (da não execução de seus planos) em
nenhum momento Fabiano desiste de lutar, de resistir ao mundo hostil, de
buscar uma realização humana que o arranque da condição animal e o
4
conduza a um mínimo de dignidade, que torne possível uma vida realmente
humana. (COUTINHO,1967, p. 175).
A cultura popular não incapacita Fabiano de refletir dentro dos seus
parâmetros sobre sua realidade, demonstrando consciência e, conseqüentemente,
competência de auto-análise. Além disso, é uma personagem independente que, por
meio de suas palavras interiores, manifesta seu ponto de vista sobre si e sobre o
mundo:
Por que motivo o governo aproveitava gente assim? se ele tinha receio
de empregar tipos direitos. Aquela cambada só servia para morder as
pessoas inofensivas. Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria
pisar os pés dos trabalhadores e dar pancadas neles? Não iria (VS, p. 105).
Dessa maneira, o valor artístico do romance não está em caracterizar a
personagem pelo que faz, nem pelo que é, mas em como ela toma consciência de si
mesma, porque para o autor “não importa o que a sua personagem é no mundo,
mas, acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e o que ela é para si
mesma” (BAKHTIN, 1997b, p. 46).
Sendo assim, para o autor não importa que Fabiano seja um homem da
terra, detendo a cultura popular e não a erudita. Nem a sua crença em superstições,
como a de dar nome de peixe à cachorra, por acreditar que suprirá “a ausência de
água e [estará] livrando os animais de hidrofobia” (VIANA, 1981, p, 99). Ou ainda,
amarrar no pescoço de Baleia um rosário de sabugo de milho queimado, para curá-
la de raiva.
Da mesma maneira que não é relevante para ele se Fabiano realiza rituais
para curar a bicheira da novilha pelo rastro, como na passagem em que o
protagonista não encontrando o animal “supôs distinguir as pisadas dele na areia,
baixou-se, cruzou dois gravetos no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto
voltaria para o curral, que a oração era forte” (VS, p.17).
No entanto, Fabiano “reconhecia-se inferior
17
. Por isso desconfiava que os
outros mangavam dele” (VS, p.76). Isso, sim, interessa ao autor, porque é a
autoconsciência de Fabiano elucidando a imagem que tem de si próprio.
17
Graciliano Ramos esclarece, em seu artigo A marcha para o campo, sobre essa inferioridade que
Fabiano sente em relação às pessoas da cidade: Parece que o homem da roça experimenta uma
certa vergonha de sua origem, vergonha provavelmente causada pela pobreza que ali reina. É
essa humilhante sensação de inferioridade que o faz despregar-se facilmente do seu torrão e
desejar esquecê-lo depressa” (RAMOS, 1962, p. 133).
4
Por outro lado, suas reflexões sobre a realidade circundante também são
fundamentais:
Ia jurar que a cachaça tinha água. Porque seria que seu Inácio botava água
em tudo? Perguntou mentalmente. Animou-se e interrogou o bodegueiro:
Porque
18
é que vossemecê bota água em tudo? Seu inácio fingiu não
ouvir. (VS,p. 26)
.
Assim, o que importa é ouvir o que sua autoconsciência revela sobre a
sociedade: “Preguiçosos, ladrões, faladores, mofinos.” (VS, p.76) “Todos lhe davam
prejuízo” (VS, p. 76). Fabiano percebe que desde o patrão até o comerciante, todos
lhe furtavam: um roubava-lhe nas contas do salário e o outro adulterava com água o
querosene e a aguardente. O que se sobrepõe, para a apreciação artistísta, é o seu
julgamento sobre a sociedade e sua revolta contra os habitantes da cidade: “–
Cambada de cachorros” (VS, p.81).
No discurso de Fabiano, colidem dois pontos de vista: um ser social ligado à
necessidade de enquadramento às normas para sobreviver e um ser interior
revoltado, inadaptável. Essa dissonância entre aceitação e protesto, resignação e
revolta gera uma consciência angustiada e, conseqüentemente, um discurso
ambivalente e fraturado:
Estava convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins.
Mordeu os beiços. Não podia dizer semelhante coisa. Por falta menor
agüentara facão e dormira na cadeira. Ora, o soldado amarelo... Sacudiu a
cabeça, livrou-se da recordação desagradável. (VS, p.76).
O diálogo travado por Fabiano consigo mesmo demonstra o conflito entre
um eu interior, homem, e um eu exterior, bicho. Graciliano Ramos enxerga a
grandeza da interioridade desse homem embrutecido, no qual uma erupção de
sentimentos recalcados devido à sua insignificância social, por isso toda vez que
tenta extravasar a emoção é repreendido pela voz da censura internalizada na
memória:
Fabiano foi esconder-se por detrás das barracas. [...] Ali podia irritar-se,
dirigir ameaças e desaforos a inimigos invisíveis. Impelido por forças
opostas, expunha-se e acautelava-se. Sabia que aquela explosão era
perigosa, temia que o soldado amarelo surgisse de repente, viesse plantar-
lhe no pé a reiúna. (VS, p. 78, grifos nossos)
18
Observe que, nesta passagem, usou-se a conjunção porque ao invés da expressão interrogativa
por que, esclarecemos que não é um erro gramatical, conforme esclarece Martins “é essa a forma
que aparece nas orações em que se pergunta algo propondo uma resposta” (MARTINS, 1997, p.
229).
4
No diálogo interiorizado, tal qual Bakhtin observou no monólogo interior de
Raskólnikov, personagem de Crime e Castigo de Dostoiévski, todas as palavras
são bivocais e em cada uma delas há vozes em discussão. É o que ocorre com o
microdiálogo de Fabiano, no qual ele se acusa, justifica-se, revolta-se, questiona-se.
E, nesta polêmica consigo mesmo, também reproduz a palavra de outrem com uma
entonação ora zombeteira, ora sarcástica.
Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da
bolandeira. Doidice. Não dizia nada para contrariá-la, mas sabia que era
doidice. Cambembes
19
podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. (VS,
p. 23; grifos nossos).
Percebe-se o tom de deboche na reprodução do discurso de outrem: afinal,
cambembes, povo sem terra, gente errante, cuja condição lhe obriga a peregrinar em
lugares alheios ou por lugares desertos podem ter ao menos uma cama de lastro de
couro? O sonho de sinha Vitória era algo anormal, era algo sem cabimento, por isso
era encarado como doidice. Desejar viver com um mínino de dignidade, no interior
de sertão brasileiro, parece delírio, fantasia.
O narrador, ao apresentar o discurso interior de Fabiano, representa toda a
expressividade de seu pensamento, deixando-se, assim, modular pela voz interior da
personagem de tal forma que fica ainda mais evidente o microdiálogo internalizado,
como ocorre em passagens nas quais se usa o sintagma “sim senhor” como índice
de fala interiorizada:
Hum! hum!
Por que tinha feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons
costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo.
Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-
lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um
homem não podia resistir (VS, p. 30; grifos nossos).
No trecho “isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz
de vencer dificuldades” (VS, p. 18), Freixeiro analisa o sintagma “sim senhor” como
um interlocutor invisível:
Tudo se passa no pensamento de Fabiano. Inicialmente, é um processo
vivo, quase dialogal: “sim senhor” é uma forma de tratamento, supondo uma
pessoa que fala e a outra a quem se fala. [...] um velado anseio, tímido e
19
Os primeiros habitantes de Viçosa, município de Alagoas, fundada em 1790, elevada à categoria
de vila em 1831 e de cidade em 1892, foram os Caambembes, uma subtribo dos índios Caetés,
que viviam em constantes conflitos com as tribos das caatingas do sertão, os Cariris.
4
cabisbaixo, de mostrar a outrem o quanto de, o quando vale, o quanto
lutou e como venceu. Fala o pensamento palavras que a boca não ousa
dizer a um meio hostil onde não encontraria o eco desejado. (FREIXEIRO,
(1971, p. 105).
Machado (1995, p.142-143), por sua vez, interpreta a presença desse
interlocutor invisível como algo que confere uma outra dimensão ao discurso, pois a
presença imaginária de um interlocutor obriga a personagem a pensar e repensar
suas afirmações, de modo que sua fala adquire várias tonalidades.
Esse diálogo interior é uma projeção dos conflitos verbais de Fabiano e de
seu duplo. A contrapalavra provoca Fabiano; o suposto dizer do outro é o que lhe
possibilita falar consigo mesmo e, dessa forma, a interlocução injeta no monólogo a
réplica, fonte do discurso polêmico:
Ele, Fabiano, tinha sido provocado. Tinha ou não tinha? Salto de reúna em
cima da alpercata. Impacientara-se e largara um palavrão. Natural, xingar a
mãe de uma pessoa não vale nada, porque todo mundo vê logo que a gente
não tem intenção de maltratar ninguém. Um ditério sem importância. O
amarelo devia saber disso. Não sabia. (VS, p. 102).
Nessa passagem, verifica-se que o discurso não pronunciado projeta-se para
um eu-ouviente, tanto que pergunta se tinha ou não sido provocado? E antes que
fosse refutado, antecipa-se a resposta argumentando que fora propositalmente
insultado, logo a sua reação foi natural.
Nesse sentido, o monólogo interior estrutura-se como um diálogo em
linguagem interior entre um eu locutor e um eu ouvinte, que intervém gerando algum
tipo de polêmica discursiva, ou seja, com uma objeção, um questionamento de
dúvida ou de desacordo.
20
Essa polemização dramaticidade ao diálogo interior de
Fabiano, que se desmembra em réplicas:
Cabra ordinário, mofino, encolhera-se e ensinara o caminho. Esfregou a
testa suada e enrugada. Para que recordar vergonha? Pobre dele. Estava
decidido que viveria sempre assim? Cabra safado, mole. Se o fosse tão
fraco, teria entrado no cangaço e feito misérias. Depois levaria um tiro de
emboscada ou envelheceria na cadeia, cumprindo sentença, mas isto era
melhor que acabar-se numa beira de caminho, assando a mulher, e os
filhos acabando-se também. (VS, p. 111; grifos nossos).
Como se vê, as réplicas dividem-se em acusação e defesa, revelando a
20
Benveniste aponta a diferença entre eu locutor aquele que fala e o eu ouvinte aquele que
ouve. (apud MARINHO, 2000, p. 97).
4
existência de uma luta interna entre um Fabiano sem medo, que amansa e doma
cavalos selvagens, e um outro que assumiu a voz da sociedade, temeroso em não
sobreviver neste meio hostil:
Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem, Não era preciso
barulho não. Se havia dito palavra à-toa, pedia desculpa. Era bruto não fora
ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia
puxar questão com gente rica? (VS, p.93; grifos nossos).
Essas reflexões nos levam a discordar de Candido (1992, p. 46) para quem
essa luta interna não gera conflito existencial e não revela confronto, pois “não corrói
o eu nem representa atividade excepcional”. Se o matutar de Fabiano não corrói o
“eu”, então o que representaria esse desejo de gritar, como nas passagens dos
capítulos Cadeia e Contas, senão a angústia de um homem dividido? Há um
Fabiano que deseja ser homem, falar alto, reagir, matar o soldado amarelo, entrar
para o cangaço; e um Fabiano de fala baixa, um cabra, um bicho, submisso e
que aceita a exploração: duas identidades que se confrontam na busca pela
impossível unidade:
Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estragos
nos homens que dirigiam o soldado amarelo. o ficaria um para semente.
Era a idéia que lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos,
havia a cachorrinha.
Fabiano gritou, assustando o bêbado, os tipos que abanavam o fogo, o
carcereiro e a mulher que se queixava das pulgas. (VS, p. 38; grifo nosso).
Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente
resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo
tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura.
Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca grossa,
mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa.
(VS, p. 95-96; grifo nosso).
O grito comprova que o homem que não está acabado, nem aniquilado: ele
ainda vive. Esse grito abafado e reprimido quer resgatar a humanidade perdida e o
romancista soube ouvi-lo no homem-bicho. Desse modo, temos configurada a
arquitetônica da personagem dialógica, que o discurso não-pronunciado de
Fabiano é marcado pelo confronto de duas vozes.
Talvez, Candido tenha acertado ao dizer que esse matutar não representa
atividade excepcional, que pensar não é exceção ou extraordinário no homem, ao
4
contrário, é comum a todos eles e isso foi representado com verossimilhança por
Graciliano Ramos. E é justamente por não se tratar de algo excepcional que Fabiano
se universalizou e pode representar todo homem, de qualquer lugar e de qualquer
tempo.
4
Capítulo III. Fabiano e o ponto de vista narrativo
Por se tratar de um estudo que privilegia o dialogismo é importante destacar
opiniões também contrárias àquelas que vimos apresentando, aporque isso torna
mais dinâmico nosso discurso.
Assim, interessa dizer que para Mourão (1969, p. 117) o discurso de Vidas
Secas é centralizador, pois considera o narrador um “monopolizador”: “Em momento
algum aquela voz central se interrompe para ceder lugar a qualquer outra”. Mas, se
isso fosse verdade, Vidas Secas seria um romance monológico, em razão da
harmonia discursiva, porque “tanto o discurso do autor como de seus personagens
se exprimem de acordo com os recursos da linguagem enobrecida escrita”
(MACHADO, 1995, p. 111).
Muito pelo contrário, Vidas Secas apresenta características do romance
polifônico: consciências autônomas, discursos não amarrados ou ponderados por
um discurso autoritário, embates, confronto de vozes, diversidade de linguagem e
vestígios de fala. Por tudo isso, enfim, o discurso é constantemente atravessado
pelo outro: o discurso do narrador não se isola do discurso citado, porque se
contaminou pela expressividade oral da fala e do pensamento da personagem.
Bakhtin esclarece: “O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na
enunciação, mas é ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma
enunciação sobre a enunciação” (BAKHTIN, 1997a, 145).
Dessa maneira, o discurso não pronunciado de Fabiano na escritura do
narrador gera um embate, porque é típica a tensão de um discurso dentro do
discurso, visto que as consciências não se misturam, mas ressoam lado a lado, com
duas entonações diferentes. São duas consciências lingüísticas: aquela que é
representada (no caso Fabiano) e aquela que representa (o narrador), pertencentes
a sistemas de linguagens diferentes.
Assim, tem-se o que Bakhtin chama de “híbrido intencional” no romance:
“duas consciências, duas vontades, duas vozes e, portanto, dois acentos que
participam do híbrido literário intencional e consciente” (BAKHTIN, 1998, p. 157).
4
Essa multiplicidade de pontos de vista e de consciências eqüipolentes é indicadora
da libertação do discurso autoritário e, por conseguinte, um traço característico da
polifonia de Vidas Secas.
Bateu na cabeça, apertou-a. Que faziam aqueles sujeitos acocorados em
torno do fogo? Que dizia aquele bedo que se esgoelava como um doido,
gastando fôlego à toa? Sentiu vontade de gritar, de anunciar muito alto que
eles não prestavam para nada. Ouviu uma voz fina. Alguém no xadrez das
mulheres chorava e arrenegava as pulgas. Rapariga da vida, certamente,
de porta aberta. Essa também não prestava para nada. Fabiano queria
berrar para a cidade inteira, afirmar ao doutor juiz de direito, ao delegado, a
seu vigário e aos cobradores da prefeitura que ali dentro ninguém prestava
para nada, Ele, os homens acocorados, o bêbado, a mulher das pulgas,
tudo era uma lástima, servia para agüentar facão. Era o que ele queria
dizer. (VS, p.37).
Nesse fragmento, nota-se a diversidade de vozes sociais: dentro da cadeia
estão os desafortunados: camponês, bêbado, prostituta, indigentes; na cidade, as
autoridades: juiz, delegado, vigário, cobradores da prefeitura. Vozes que se cruzam
e se repelem. Fabiano atordoado pela dor, pelo barulho, pelo fogo, pelos gemidos,
deseja gritar para todos que representam a voz do poder, que ele e os outros presos
eram uma corja realmente digna de ser açoitada. Desorientado, seu desejo é
pronunciar a voz da discriminação, do determinismo social, uma voz latente, que
repentinamente é detonada. Vê-se, por um lado, que Fabiano reitera o ponto de
vista das classes sociais dominantes, mas o narrador exime-se da responsabilidade
desse discurso ao emendar: “Era o que ele queria dizer”.
Por outro lado, nota-se que a atmosfera contextual da injustiça sofrida pela
personagem somada ao verbo preso na garganta de Fabiano impregnam a
construção de solidariedade por parte daquele que acompanha de muito perto o
sofrimento da personagem. Nesse sentido, o narrador se solidariza porque conhece
as condições exteriores que o levaram a isso. Sabe que foi a dor, o barulho, os
gemidos e a fumaça que provocaram essa reação inesperada de Fabiano. Sua visão
ampla possibilita-nos inferir que Fabiano foi estimulado, motivado por situações
externas a evocar pensamentos que confirmam sua posição marginal, mostrando
que quando o homem assume a voz do determinismo social, não é
espontaneamente que o faz, mas é conduzido a fazê-lo pela pressão exterior.
Por esse motivo, Almeida entende Vidas Secas “como uma 'arena', na qual
o embate de vozes é o grande espetáculo narrativo” (ALMEIDA, 2006, p. 79). É o
choque entre as vozes que intensificam o conflito com a polêmica gerada ao
4
assumirem posições sociais diferentes. Até porque o diálogo, no sentido bakhtiniano,
não tem nada de harmônico, é muito mais uma arena de discussões, discordâncias
registradas na própria interioridade do discurso.
O discurso indireto livre foi a estratégia utilizada para representar a polêmica
entre a voz de Fabiano e a voz do narrador. Graciliano Ramos, com extrema
habilidade estilística, mesclou o discurso não pronunciado do homem stico na
escritura do narrador numa única construção lingüística. Dessa maneira, na feição
do discurso do narrador palpitará a expressividade e as imagens do pensamento das
personagens, gerando a tensão entre escritura e fala.
Por essa razão, o discurso indireto livre não corresponde a uma forma
passiva de transmissão do discurso citado. Pelo contrário:
exprime uma orientação ativa, que não se limita meramente à passagem da
primeira à terceira pessoa, mas introduz na enunciação citada suas próprias
entoações, que entram então em contato com as entoações da palavra
citada, interferindo nela. (BAKHTIN, 1997a, p.190).
Assim, o discurso indireto livre é uma forma de transmissão, na qual o
narrador traz no seu interior o discurso de outrem, ora aderindo criticamente a ele,
ora confundido-se com ele, tornando difícil distinguir o discurso da personagem do
discurso do narrador. Por isso, é um discurso híbrido que introduz de forma discreta
e sutil o pensamento de Fabiano no discurso do narrador. É, por conseguinte,
bivocal não porque é formado por duas vozes, mas também, porque é
internamente dialogizado, pois as consciências lingüísticas interagem de forma viva
e tensa em um único enunciado.
Graciliano Ramos opta pela predominância do discurso indireto livre em
Vidas Secas não porque suas personagens não sabiam falar direito, mas para
representar o discurso não pronunciado de outrem, especialmente, o pensamento do
vaqueiro. através do discurso indireto livre “os seus pensamentos vêm a lume
(PINTO, 1969, p. 136) e seus processos psíquicos podem ser reproduzidos, não da
perspectiva do narrador, mas do ângulo da própria personagem.
No fragmento a seguir, percebe-se a gradativa passagem do exterior ao
interior da personagem, ou seja, o discurso indireto, cuja característica é a análise
21
,
21
Bakhtin (1997a) esclarece que a tendência analítica do discurso indireto manifesta-se
principalmente pelo fato de que os elementos emocionais e afetivos do discurso não são
literalmente transpostos ao discurso indireto, na medida em que não são expressos no conteúdo
5
apreende o estado de espírito da personagem e exprime a sua tonalidade
emocional, transformando-se em discurso indireto livre:
Estava tão cansado, tão machucado, que ia quase adormecendo no meio
daquela desgraça. Havia ali um homem bêbedo tresvariando em voz alta e
alguns homens agachados em redor de um fogo que enchia o cárcere de
fumaça. Discutiam e queixavam-se da lenha molhada.
Fabiano cochilava, a cabeça pesada inclinava-se para o peito e levantava-
se. Devia ter comprado o querosene de seu Inácio. A mulher e os meninos
agüentando fumaça nos olhos. (VS. p. 35; grifos nossos)
O primeiro parágrafo está em discurso indireto, no qual o narrador insere na
descrição seu juízo de valor: “tão cansado, tão machucado, que ia adormecendo
naquela desgraça”. Descreve também o ambiente: o bêbado alucinado, os homens
em volta do fogo, a fumaça, elementos que gradualmente interiorizam o discurso,
indicando a passagem do indireto para o indireto livre, que inicia na metade do
segundo parágrafo, pois até este momento o narrador não havia, ainda, se
misturado à atividade mental de Fabiano e conservava sua posição autônoma.
À medida que o narrador interioriza-se, o discurso citado ganha a coloração
da personagem, graças às entonações e acentuações próprias do sertanejo. Dessa
maneira, percebe-se o tom de cobrança (por que não comprou o querosene que a
mulher mandara) e o sentimento de culpa (porque fora jogar trinta-e-um e, agora, a
família agüentava fumaça nos olhos) que alimentam a atividade psíquica da
personagem.
O discurso indireto livre atua conservando a força original da voz de
Fabiano, como os tons mais expressivos, as interrogações, exclamações,
interjeições ou outras marcas da linguagem, como repetições, lacunas existentes na
fala do sertanejo. Além disso, permite que a narrativa se torne mais fluente devido à
ausência do acúmulo pesado do “que”
22
. A utilização repetitiva da partícula “que”
afastaria o narrador daquele que ele tão de perto acompanha.
mas nas formas de enunciação. Assim, as peculiaridades de construção e de entoação dos
enunciados interrogativos, exclamativos ou imperativos não se conservam no discurso indireto,
aparecendo apenas no conteúdo, como uma informação seca, puramente factual.
22
De acordo com Bakhtin, “a queda da conjunção ‘que’ não serve para aproximar duas formas
abstratas, mas para aproximar duas enunciações, em toda a plenitude de sua significação. Como
se uma comporta se abrisse para permitir às ‘entoações’ do autor que escoem livremente no
discurso citado” (BAKHTIN, 1997a, p. 179)
5
Desse modo, esclarece-se porque se conserva os questionamentos e outras
marcas da oralidade, próprias de Fabiano: além de manter a coloração afetiva da
personagem, recupera elementos emocionais da linguagem do seu discurso:
Quem não ficaria azuretado, com semelhante despropósito? Não queria
capacitar-se de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano,
provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão isso.
Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na
cadeia, dá-se pancada nele? (VS, p. 33; grifos nossos).
Nesse fragmento, a não aceitação dos fatos – a sua prisão despótica –
mantém a emotividade de Fabiano. O contexto de oralidade é realçado pelo
indicador verbal do presente
23
que restaura de modo mais direto a reação de
Fabiano, dando mais vivacidade e realismo à sua discussão interior, uma vez que
reconstrói uma vivência passada com toda a tensão emocional sentida. Desse
modo, é possível estabelecer as fronteiras entre essas duas vozes narrador e
Fabiano. A tonalidade neutra, percebida pelo distanciamento emocional do
narrador
24
e o tom irado de Fabiano.
Por isso, frases claramente do narrador, outras remetem-nos à oralidade
da personagem. O fragmento abaixo evidencia esse corte no discurso narrativo
devido à mudança de tonalidade: “Meteu os olhos pela janela da rua. Chi! Que
pretume! O lampião da esquina se apagara, provavelmente o homem da escada
botara nele meio quarteirão de querosene” (VS, p.35).
Ao mesmo tempo, é um exemplo da simultaneidade de ações, pois
enquanto o narrador comenta porque tudo escureceu, Fabiano, em conseqüência da
escuridão, imagina o que a família estaria fazendo para não ficar totalmente no
escuro: “Pobre de sinha Vitória, cheia de cuidados, na escuridão. Os meninos
sentados perto do lume, a panela chiando na trempe de pedras, Baleia atenta, o
candeeiro de folha pendurado na ponta de uma vara que saía da parede” (VS, p.35).
Destarte, mesmo havendo a mistura de duas vozes num enunciado, o
discurso indireto livre permite a permanência dos vestígios estilísticos da fala da
personagem na escritura, porque:
23
Para Cristóvão Fernando o emprego das formas verbais do presente indicam da parte do
narrador um outro modo de aderir à personagem, respeitando-lhe a liberdade de falar diretamente,
pelo uso da sua expressão lingüística própria” (1986, 119)
24
O distanciamento emocional é interpretado por Holanda como a luta do escritor, Graciliano
Ramos, pela desemocionalização da narrativa, “sem compartir, nem julgar. Comedimento de quem
sabe ser sóbrio ao descrever, implacável, a desgraça diária” (HOLANDA, 1992, p. 52).
5
O discurso de outrem constituem mais do que o tema do discurso, ele pode
entrar no discurso e na sua construção sintática, por assim dizer, “em
pessoa”, como uma unidade integral da construção. (BAKHTIN 1997a,
p.144) .
Tome-se, sob outro prisma, o exemplo da bolandeira: “Caminhando, movia-
se como uma coisa, para bem dizer o se diferenciava muito da bolandeira de seu
Tomás” (VS, p.14). É possível ver aqui a diferença entre os dois centros de fala:
aquele analisado, de Fabiano, que precisa do elemento concreto para entender
que estava parado como a bolandeira; e o ponto de vista do narrador que se
diferencia justamente pela capacidade reflexiva e conceitual que lhe permite ver na
máquina de moagem o ciclo ininterrupto da seca. O narrador não escolhe a imagem
da bolandeira em vão, pois, entre todas as que estão no campo de visão da
personagem, é sobre essa que ele o ajuda a se deter.
Assim, o discurso indireto livre, ao proporcionar uma confluência de vozes,
marca sempre, de forma mais ou menos difusa, a atitude do narrador em face das
personagens, atitude essa que pode ser de distanciamento crítico, devido à
diferença de posição social, à diferença intelectual, aos valores morais ou uma
aproximação devido à empatia, à simpatia, ao envolvimento. O narrador, em Vidas
Secas, movimenta-se como os juazeiros, que “aproximaram-se, recuaram-se,
sumiram-se” (VS, p. 09), pois ora está próximo, aprovando o pensamento de
Fabiano:
Sinha Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propósito, dissera
ao marido umas inconveniências a respeito da cama de varas. Fabiano, que
não esperava semelhante desatino, apenas grunhira: “Hum! hum” E
amunhecara, porque realmente mulher é um bicho difícil de entender,
deitara-se na rede e pegara no sono (VS, p. 40; grifos nossos).
Ora distancia-se respeitando o ponto de vista da personagem: “Mentalmente
jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo queria mostrar
autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida?” (VS p. 23).
Comprova-se, assim, que no discurso indireto livre não a diluição da
palavra citada no contexto narrativo: a substância do discurso de outrem permanece
palpável tanto quanto a daquele que a profere. Evidentemente, a palavra alheia
conserva-se no plano implícito, pois não marcas gramaticais que indiquem a
citação, de modo que é pelo sentido que se pode distinguir o discurso citado daquele
5
que o cita e, por essa razão, “seu valor estilístico é imenso, é a forma por excelência
do imaginário” (BAKHTIN, 1997a, p.182).
O fragmento abaixo é um dos exemplos de interação entre as vozes, que
ressoam num mesmo enunciado, mas com pontos de vistas diferentes. A voz do
narrador ao transmitir o discurso de outrem, recria-o com sua entonação indignada:
Enfim, contanto... Seu Tomás daria informações. Fossem perguntar a ele.
Homem bom, seu Tomás da bolandeira, homem aprendido. Cada qual
como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo um bruto (VS, p. 36; grifo
nosso).
A expressão “cada qual como Deus o fez” soa como um lugar comum, um
discurso de esfera religiosa, que Fabiano cita para fundamentar a sua conformidade
entre as diferenças sociais. Todavia, o último período não indica adesão, muito
menos conformidade: “ele, Fabiano, era aquilo mesmo um bruto”. É, sim, uma
justificativa para explicar sua ignorância, justamente porque ele reproduz as palavras
desconhecendo seu sentido, reproduz discursos disseminados pelas camadas
sociais, as quais usam a fé cristã para garantir seus privilégios.
Nesse período, além de termos a visão particular de Fabiano sobre o
mundo, temos o posicionamento crítico do narrador, percebido pela entonação e
pela sintaxe, devido ao uso enfático do aposto Fabiano, marcando sua distância
daquele que seu discurso deve representar. Assim, a expressão “cada qual como
Deus o fez” na esfera narrativa mostra que o narrador aceita Fabiano na sua
singularidade, naquilo que o diferencia dos demais e que, por isso, o torna único e
digno de observação.
Nesta outra passagem, o narrador também se posiciona criticamente frente
a Fabiano, reprovando sutilmente a imitação da palavra alheia sem questioná-la,
sem buscar seu significado: “mas [as palavras] eram bonitas. Às vezes decorava
algumas e empregava fora de propósito. Depois esquecia-as” (VS, p. 96-97).
Essa crítica dialoga internamente com o capítulo do menino mais velho,
servindo de entendimento para essa crítica velada do narrador, pois de acordo com
Alfredo Bosi, é nesse sentido que o filho mais velho supera o pai: “ele [o menino
mais velho] quer ir além dos signos opacos, vividos cegamente pelos pais [...] exige
da mãe a interpretação do símbolo (o que é inferno?)” (BOSI, 2003, p.27):
Agora tinha tido a idéia de aprender uma palavra, com certeza importante
porque figurava na conversa de sinhá Terta. Ia decorá-la e transmiti-la ao
5
irmão e à cachorra Baleia permaneceria indiferente, mas o irmão se
admiraria invejoso.
Inferno, inferno. (VS, p. 59-60, grifos nossos).
A criança necessitava saber a definição, mas ainda desejava uma descrição:
“Ele tinha querido que a palavra virasse coisa” (VS, p. 56), para melhor dizer, ele
precisava contextualizar a palavra inferno, que deixaria de ser sinal quando
houvesse “a compreensão, parte inseparável do signo” (TEZZA, 2003, p. 199):
Entristeceu. Talvez sinhá Vitória dissesse a verdade. O inferno devia estar
cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam recebiam
cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca. (VS, p. 61).
Dessa forma, a voz implícita do autor refratada no discurso narrativo, critica a
inutilidade da repetição da palavra, pronunciada apenas devido à procedência, cujo
significado seja desconhecido: “em horas de comunicabilidade enriquecia-se com
algumas expressões de seu Tomás da bolandeira” (VS, p.27). Isso ajuda-nos a
compreender porque sinhá Vitória decidiu de “supetão aproveitar o papagaio como
alimento” (VS, p.11), justificando “a si mesma que ele era mudo e inútil” (VS, p.11,
grifos nossos). Assim, a imitação da palavra carente de significação é a negação do
seu conteúdo, do seu juízo de valor. Além disso, é a desconexão da linguagem com
a vida concreta.
Mas quando Fabiano refere-se ao papagaio, não usa o mesmo tom de
praticidade de sinhá Vitória. Talvez porque haja a interferência do contexto, uma vez
que se recorda do papagaio na cadeia, justamente no momento que tenta
compreender por que fora preso:
Agora se recordava da viagem que tinha feito pelo sertão a cair de fome. As
pernas dos meninos eram finas, como bilros, sinhá Vitória tropicava debaixo
do baú de trens. Na beira do rio haviam comido o papagaio, que não sabia
falar. Necessidade. (VS, p. 36; grifos nossos).
A morte do animal símbolo de imitação, que serve de alimento à família, tem
diferentes versões. Tendo como referência sinhá Vitória, as suas palavras soam
como funcionais, indicando praticidade: morrera porque era “mudo e inútil”.
Fabiano, ao recordar-se de que comera o papagaio, tenta justificar-se
demonstrando arrependimento, pois o animal morrera porque não sabia falar, mas
foi necessário.
Fabiano ao justificar a morte do papagaio, procura redimir-se, mas em
benefício próprio. Afinal, “mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar
5
direito? (VS, p. 36), Mas ele não era um inútil, era vaqueiro, consertava cercas,
trabalhava como um escravo, não merecia ter o mesmo fim do papagaio. porque
ele “também não sabia falar. [E] às vezes largava nomes arrevesados, por
embromação” (VS, p.36).
Todavia, não é somente a repetição inútil das palavras destituídas de
significação que o narrador condena, mas também contesta o gesto hereditário de
pai para filho, pois o narrador repele o discurso do outro que preserva a tradição
enquanto repetição, que emperra a mudança:
A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e
para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pais
do vaqueiro, o avô do vaqueiro e outros antepassados mais antigos
haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as
mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário. (VS, p.17;
grifos nossos).
Sendo assim, a “polêmica velada” (BAKHTIN, 1997b, 204) instala-se em
Vidas Secas, visto que o narrador, ao representar o discurso de Fabiano, percebe a
voz do outro que está embutida de modo invisível no discurso não pronunciado da
personagem. Quanto mais se intensifica o acento do outro no discurso de Fabiano,
mais incisiva se a crítica do narrador frente a essa personagem, como ocorre
nesta passagem:
em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo [seu Tomás] dizia:
palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice.
Via-se perfeitamente que um sujeito como ele o tinha nascido para falar
certo (VS, p.22, grifos nossos).
Se a avaliação “tolice” for do narrador, indica que ele assumiu a voz do
outro que coisifica, determina e conclui o homem. Caso o discurso seja de Fabiano,
mostra o quanto ele absorveu do discurso de outrem, fazendo-o reflexo de sua
própria imagem.
Devido a isso, percebemos que a voz narrativa é uma voz autônoma que
transmite os pensamentos, percepções e sentimentos da personagem, dando-nos a
impressão de que ela está pensando em voz alta. Porém, ainda assim, é possível
notar as marcas da crítica sutil do narrador:
Então suando com medo de uma peste que se escondia tremendo? Não
era uma infelicidade grande, a maior das infelicidades? Provavelmente não
se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim mole e ronceiro.
Como a gente muda! Era estava mudado. Outro indivíduo, muito diferente
5
do Fabiano que levantava poeira nas salas de dança. Um Fabiano bom
para agüentar facão no lombo e dormir na cadeira! (VS, p.106, grifos
nossos).
Destaca-se a lentidão de Fabiano, tido como “duro, lerdo como tatu” (VS, p.
24), numa crítica incisiva contra uma situação social que perdura e a qual,
provavelmente, Fabiano dará continuidade. Entretanto, o verbo no futuro do pretérito
reforça uma atmosfera de incerteza, indicando a possibilidade de reviravolta, pois
“besteira pensar que ficaria murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava
[...] Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava
os pobres! [...] não valia a pena” (VS, p. 107).
O confronto dialógico entre o pensamento e a escritura é tão tenso quanto o
embate das vozes da personagem e do narrador que, ao narrar no futuro do pretérito
apontando a incerteza, indica também o inacabamento necessário à formação do
homem e, principalmente, ao devir: “Iriam para adiante, alcançariam uma terra
desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia
como ela era nem onde era” (VS, p. 126).
Mais uma vez, o tempo verbal no futuro do pretérito: “iriam, alcançariam”,
indica a possibilidade da concretização de um sonho, embora a base concreta desse
sonho possa ser uma ilusão: “porque não sabia como ela era nem onde era”. Dessa
maneira, insere-se mais uma divergência entre o narrador e a personagem, no
entanto, o poder das palavras de Sinhá Vitória fortificou Fabiano, que está decidido a
quebrar as forças determinantes por acreditar nesta terra.
Assim como o discurso do outro está subentendido no discurso não
pronunciado de Fabiano, como a voz do determinismo; o discurso crítico do autor
tende a ser refratado no discurso do narrador, que rebate essa perpetuação de
postura sócio-econômico-cultural que se arrasta pelo Nordeste: o cangaço como
forma de vida para se opor ao latifundiário, ao poder:
Virou a cara, enxergou o facão de rasto. Aquilo nem era facão, não servia
para nada.
Ora não servia!
— Quem disse que não servia?
Era uma facão verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio cortando
palmas de quipá. E estivera a pique de rachar o quengo de um sem-
vergonha. (VS, p. 106; grifos nossos).
5
O embate de vozes, que Bakhtin observou nos romances de Dostoiévski,
verificou-se em Vidas Secas: a alternância de pontos de vista, as vozes que
ressoam num mesmo discurso, que são os aspectos primordiais do discurso bivocal
internamente dialogizado, cuja enunciação é o encontro de duas vozes em
discussão. A bivocalidade do discurso de Vidas Secas introduz o plurilingüismo no
romance:
o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a
expressões das intenções do autor. A palavra desse discurso é uma palavra
bivocal especial. Ela serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao
mesmo tempo duas intenções diferentes: a intenção direta do personagem
que fala e a intenção refrangida do autor. Nesse discurso duas vozes,
dois sentidos, duas expressões (BAKHTIN , 1998, p.127).
Ao narrador cabe ver/tocar/ouvir/expressar o interior da personagem e o
exterior do contexto da seca, não como paisagem, mas como quadros vivos de
impressões visuais, olfativas, táteis e sonoras, atuando como uma testemunha dos
fatos vivenciados pela personagem, que ele materializa por meio de uma escritura
que responde ao menino mais velho: “Ele tinha querido que a palavra virasse coisa”
(VS, p. 56):
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas
brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em
redor de bichos moribundos (...) A areia fofa cansava-o, mas ali, na lama
seca, as alpercatas faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos que
pesavam no ombro, pendurados em correias batiam surdos. (VS, p. 9-10-17).
5
Capítulo IV. O princípio realista em Vidas Secas
A melhor escola é, em minha opinião, a que for
mais sincera, mais simples, mas verdadeira [...]
Prefiro a escola que rompendo a trama falsa do
idealismo, descreve a vida tal qual é, sem ilusões
nem mentiras. [...] Prefiro o realismo, repito, e
creio que o realismo será a escola do futuro.
(RAMOS, apud FACIOLI, 1993, p.44)
Neste capítulo, verificaremos que Graciliano destacou-se dentro do
movimento de 30, justamente porque conciliou literatura e verdade, como poucos,
refletindo seu projeto ideológico por meio do projeto estético
25
, tanto que para
Afrânio Coutinho, Graciliano Ramos, por misturar duas ou mais tendências,
enquadra-se em duas correntes:
a) Corrente social e territorial [...] adota, de modo geral, a técnica realista e
documental.
b) corrente psicológica, subjetivista, introspectiva e costumista [...] em que
a personalidade humana é colocada em face de si mesma ou analisada nas
suas reações aos outros homens. (COUTINHO, 1997, p. 276).
É muito importante saber que a corrente social e territorial divide-se em dois
grupos: o do documentário urbano-social realista e o do documentário regionalista,
no qual se insere Graciliano Ramos, e que se caracteriza pelos ciclos da seca, do
cangaço, do cacau, da cana-de-açúcar, do café, do sertão, do pampa.
Entretanto, Flora Süssekind afirma que Graciliano escolhe a série em lugar do
ciclo, porque contrapõe-se “à persistência de uma linguagem idêntica, de
personagens e modos narrativos que se repetem, de ciclos” (1984, p. 170). Talvez
isso explique
a posição original de Graciliano Ramos dentro do Romance de 30,
tanto no que se refere à diversidade temática quanto à forma de seus romances. Por
um lado, Carlos Alberto Dória entende que Graciliano Ramos:
garimpa no linguajar nordestino como um etnógrafo que trabalha com um
povo ágrafo mas que tem como missão integrar esta matéria prima, através
25
Colocamos-nos dessa maneira, em virtude da declaração de Jorge Amado (1993), Tentei contar
neste livro [o Cacau] , com o mínimo de literatura para uma máximo de honestidade, a vida dos
trabalhadores de cacau do sul da Bahia” (AMADO apud CANDIDO, 2006, p. 237) comentada
por Flora Süssekind, e depois retomada por Antonio Candido para esclarecer que “o leitor fica com
a impressão de que a ‘honestidade’ é pouco compátivel com ‘literatura’, e esta (aqui, sinônimo de
elaboração formal) tende a ser um embuste que atrapalha o enfoque certo da realidade”
(CANDIDO, 2006, p. 238).
5
de um trabalho paciente, imaginativo, a uma língua de cultura – o português;
por outro lado, a literatura que produz não encontra audiência e aceitação
nos círculos do poder pela simples razão de que é um contra-poder,
destruindo a comunicação que se através de formas e conteúdos
socialmente ultrapassados. ( 1993, p. 27; grifos nossos).
O que nos toca aqui é a relação inovadora entre o conteúdo e o modo de
expressão, a reciprocidade entre o que tem a dizer e o modo como o diz. Segundo
Brito, essa inter-relação provavelmente seu martírio porque é, sem dúvida, o seu
triunfo" (BRITO, 2001, p. 165): a Graciliano não importa o modelo nem o efeito, mas
unicamente aquilo que tem a transmitir-nos associado busca de uma expressão
que deixa intacta a extensão e a intensidade da coisa a exprimir" (BRITO, 2001,
p.165). Sendo assim, é na forma e no estilo usados no discurso que se materializará
o projeto do autor.
Isso justifica porque Vidas Secas é o único romance do autor narrado em
terceira pessoa, pois foi a forma que encontrou para refletir a problemática dos
trabalhadores do sertão Nordestino, visto que suas personagens "preocupadas com
o estômago, não [tem] tempo nem de abraçar-se" (RAMOS,C., 1979, p. 129) e nem
de se comunicarem, acrescentaríamos:
Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia. Fossem
perguntar a seu Tomás da bolandeira, que lia livros e sabia onde tinha as
ventas. Seu Tomás da bolandeira contaria aquela história. Ele, Fabiano, um
bruto não contava nada. queria voltar para junto de sinhá Vítória, deitar
na cama de vara. Porque vinha bulir com um homem que queria
descansar? Deviam bulir com os outros. (VS, p. 34; grifos nossos).
Além disso, revela em carta para sua esposa Heloísa a dificuldade de analisar
o interior de um animal: “Escrevi um conto sobre a morte de uma cachorra, um troço
difícil, como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra”
(RAMOS, 1994, p.201), Graciliano nos mostra o interesse em olhar para dentro de
suas personagens: “O mundo exterior revela-se à minha Baleia por intermédio do
olfato, e eu sou um bicho de péssimo faro” (1994, p.201).
Assim, o autor imprime suas impressões no romance, baseado na sensação
interna que o contato com a realidade lhe provocou, e a recria em possibilidades:
“utilizei no conto a lembrança de um cachorro sacrificado na Maniçoba, interior de
Pernambuco, há muitos anos” (RAMOS, 1979, p. 129).
De acordo com Cristóvão (1986, p.30), o espaço, o tempo e a vida
6
encontram-se nos romances de Graciliano circunscritos às dimensões de suas
experiências que se acumularam, conforme o transcorrer da idade. O escritor
tempera a imaginação com fatos da experiência: “transformei o velho Pedro Ferro,
meu avô [materno] no vaqueiro Fabiano; minha avó tomou a figura de sinhá Vitória,
meus tios, machos e meas, reduziram-se a dois meninos” (RAMOS apud
CASTRO, 2001, p.28). Graciliano Ramos acrescenta:
Meu amaterno [...] o desperdiçava tempo na caatinga, nem se fatigava
em miuçalhas [...] Homem de imenso vigor, resistente à seca, ora na
prosperidade, ora no desmantelo, reconstituindo corajoso a fortuna, em geral
não se expandia [...]. (RAMOS, apud FELINTO,1992, Caderno 6, p.4).
Através dessas informações, percebe-se que o grande arsenal do romancista
é a memória, de onde extrai os elementos da invenção. As personagens de Vidas
Secas o correspondem às pessoas vivas, mas nascem delas. Graciliano retira
dos acontecimentos material para seus romances e, por isso, Candido afirma que a
“experiência era para ele um atrativo irresistível” (CANDIDO, 1992, p. 58).
O romancista, que reconhece a verossimilhança como valor estético do
romance, observação a sua arma mais preciosa, embora acrescente o olhar
subjetivo ao escrever o que os outros estão sentido ou poderiam sentir, pois acredita
que a subjetividade não elimina o objetivo mas baseia-se nele. Por essa razão, não
pode faltar:
a observação cuidadosa dos fatos que devem contribuir para a formação da
obra de arte. Numa coisa complexa como o romance o desconhecimento
desses fatos acaba prejudicando os caracteres e tornando a narrativa
inverossímil”. (RAMOS, 1962, p. 256).
Em virtude disso, é possível compreender porque Graciliano contesta a falta
de realidade em determinados romances, em decorrência do abandono dos fatos
objetivos devido à investigação exclusivamente do interior das personagens:
Vemos aqui nos livros uma pequena humanidade incompleta, humanidade
que às vezes sente e pensa, mas é absolutamente desprovida das
necessidades especiais. Com certeza os nossos autores dirão que não
desejam ser fotógrafos, não têm o intuito de reproduzir com fidelidade o que
se passa na vida. Mas então por que põem nomes de gente nas suas idéias,
por que as vestem, fazem que elas andem e falem, tenham alegrias e
dores? (RAMOS, 1962, p. 259).
O escritor empenha-se para que os problemas humanos, como o sofrimento
do homem rural, não se reduzam a um elemento pitoresco ou aos limites estreitos
6
da ideologia, porque a literatura, para ele, associa-se ao momento histórico-
ideológico-social em que foi construída:
uma horrível maneira de contar certas histórias desagradáveis,
responsabilizando a gente miúda por falhas de que ela não pode ter culpa.
Se o sertanejo é pobre, é porque tem preguiça de plantar; se emigra, é
porque nasceu com vocação para vagabundo. Esse meio cômodo de
afastar dificuldades caluniando o matuto é uma brincadeira cruel, pelo
menos tão inútil e mentirosa como as loas [apologias] que outros lhe
cantam, celebrando-lhe imoderadamente a coragem, a inteligência, enfim
um razoável catálogo de virtudes que se estiram junto ao inventário de
numerosas vantagens da terra: cachoeiras, minas, o comprimento dos rios
e a extensão das matas. (RAMOS, 1962, p. 134).
A preocupação com a veracidade e a autenticidade da ficção levou
Graciliano a não escrever nada que não fosse filtrado pela experiência:
Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as
complicações interiores de uma menina habituada aos romances e ao
colégio. As caboclas da nossa terra são meio selvagens, quase
inteiramente selvagens. Como pode adivinhar o que se passa na alma
delas? Você não bate bilros nem lava roupa. conseguimos deitar no
papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além
disso, não nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos,
podemos expor o que somos. E você não é Mariana, o é da classe
dela. Fique na sua classe, apresente-se como é, nua, sem ocultar nada.
Arte é isso. A técnica é necessária, é claro. Mas se lhe faltar técnica, seja
ao menos sincera. Diga o que é, mostre o que é [...] A literatura é uma
horrível profissão, em que podemos principiar tarde; indispensável muito
observação. (Ramos, 1994, p. 212-213; grifos nossos).
Subentende-se que o escritor não deve aventurar-se a escrever sobre o que
não se conhece. E do que se conhece e se viveu não se deve ocultar nada. No
mais, é oportuno destacar a insistência com relação à classe social, divisão esta que
parece essencialmente importante para o autor, uma vez que ele diz ao leitor: “E
você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe, apresente-se como
é, nua, sem ocultar nada”.
Entretanto, ao dizer isso, não se pode deixar de reconhecer que Graciliano
sabia da sua qualidade como escritor, afinal a cnica aguçada e a capacidade de
observação lhe permitiram deslocar-se ao ponto mais distante o do iletrado e
fazer dele seu laboratório de construção. Isso tudo sem confundir-se com suas
criações: “Não sou Paulo Honório, não sou Luis da Silva, não sou Fabiano” (RAMOS
apud CANDIDO, 1992, p.41).
No entanto, uma dificuldade de tentar pensar a partir daquilo que nos
6
afigura ser o outro, como Fabiano por exemplo, tão distante da realidade do autor, já
que, para Graciliano, o caboclo era uma figura muito diferente daquelas com as
quais havia trabalhado. Segundo Reis, "sertanejos e camponeses não faltam em
São Bernardo ou em Angústia: Casimiro, Marciano, José Baía, entre outros,
figuram nesses livros, no entanto, isolados em posição lateral" (REIS, 1993, p. 70),
ou melhor, em posição social oposta, estranhos ao meio social de Paulo Honório e
Luís da Silva. como podemos observar isso neste fragmento de São Bernardo:
a molecoreba [molequada] de Mestre Caetano arrasta-se por aí,
lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir,
trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido
[Marciano] é cada vez mais molambo. E os moradores que se restam são
uns cambembes como ele.
Para ser Franco, esses infelizes não inspiram simpatia. Lastimo a situaçõ
em que se acham, reconheço ter constribúido para isso, mas não vou além.
Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta
desgraçada profissão nos distanciou. (RAMOS, 1981, p. 187).
Como, também é possivel verificar neste fragmento de Angústia:
Ele [José Baía] ficava sossegado na capueira, tirando um trago do cigarro
de palha, que apagava logo com saliva e guardava atrás da orelha, para a
fumaça não denunciar a emboscada. O ouvido atento a qualquer rumor que
viesse do caminho estreito, o joelho no chão, em cima do chapéu de couro,
o olho na mira, a arma escorada a uma forquilha, com certeza não
pensava, não sentia. Estava ali forçado pela necessidade. [...]
Nenhum remorso. Fora a necessidade. Nenhum pensamento. O patrão que
dera a ordem, devia ter lá suas razões. (RAMOS, 2004, p. 189).
Então, como falar do caboclo sem cair no estereótipo ao representar essa
figura tão estranha ao intelectual? Esse ser que fechado, se esquiva à
observação, se faz impermeável ao contato" (BUENO, 2006, p. 244). Talvez tenha
sido a prisão uma experiência decisiva para falar do pobre sertanejo, porque lá:
o tratamento que dispensam aos malandros e aos vabagundos foi
apresentado sem disfarce aos intelectuais, que durante um ano se
confundiram com os vagabundos e malandros, [...].
Foi excelente, e todos devem estar satisfeitos. Sem essa aproximação, não
conheceríamos nunca a verdadeira desgraça.
Andamos muito tempo fora da realidade [...] certos aspectos da vida ficariam
ignorados se a polícia não nos oferecesse inesperadamente o material mais
precioso que poderíamos ambicionar.
Seria ótimo que todos os romancistas do Brasil tivessem passado uns
meses na colônia correncial de Dois Rios. (RAMOS, 1962, p. 100).
6
Nesse sentido, crê-se que foi mesmo na prisão que sua concepção sobre as
diferenças sociais se materializou: "as pessoas não diferiam por se arrumarem
numa ou outra classe; a posição é que lhes dava aparência de inferioridade ou
superioridade" (RAMOS, apud REIS, 1993, p.74). Pela primeira vez, sua opinião
encontrava apoio na realidade palpável, audível, visível, ou seja, na realidade
prática:
Naquele instante a aspereza do estivador
26
[Desidério] me confirma o juízo.
fora sem dificuldade me reconheceria num degrau acima dele; sentado
na cama estreita, rabiscando a lápis num pedaço de papel, cochichando
normas, reduzia-me, despoja-me das vantagens acidentais e externas. De
nada me serviam molambos de conhecimentos apanhados nos livros, talvez
até isso me impossibilitasse reparar na coisa próxima, visível e palpável.
(RAMOS apud REIS, 1993, p. 74-75).
Essa confidência acrescenta muito à nossa tentativa de delinear o projeto
autoral de Vidas Secas, uma vez que assinala os limites que tal projeto prevê,
isto é, a consciência da relatividade da valoração interpretativa, tendo em vista a
determinação, inevitável, do lugar de onde se fala. O discurso do romance, por sua
vez, é o locus onde tais concepções se representam.
Essa experiência ofereceu ao romancista a oportunidade de notar o
trabalhador rural como homem, independentemente da classe social, como um outro
enigmático, um ser pensante. Tanto que, em Vidas Secas, o narrador não fala pelo
sertanejo, mas dá voz ao pensamento que não chega a ser verbalizado por Fabiano.
É mostrando a crise de identidade do homem "rústico" e "simples" e sua reação às
situações de injustiça que Graciliano Ramos valoriza o proletário sem ideáliza-lo ou
engrandecê-lo.
Isso se comprova na declaração de Graciliano Ramos a Antonio Candido, "o
que sou é uma espécie de Fabiano, e seria Fabiano completo se a seca houvesse
destruído a minha gente" (RAMOS, apud Candido, 1992, p. 8). O que indica uma
possível correlação do autor com o homem simples, talvez, porque Fabiano é o
único de seus heróis que "opõe-se e resiste agonicamente às pressões da natureza
e do meio social" (BOSI, 1994, p. 392).
26
Desidério, “mulato ríspido, estrábico, bilioso incomoda por seus modos sumários: “exibiu sem
disfarce ódio seguro aos burgueses, graúdos, miúdos. Todos nós que usávamos gravata,
Fôssemos embora uns pobres diabos, éramos para ele inimigos” (REIS, in IEB, 1993, p.74)
6
4.1 O dialogismo: um método de construção de Vidas Secas.
Graciliano Ramos, ao garimpar o linguajar nordestino, constrói uma relação
baseada no conhecimento da linguagem, indicando que a partir dela podemos
conhecer o outro e seu mundo: "Fabiano olhou os quipás, os mandacarus e os
xique-xiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas"
(VS, p. 19, grifos nossos).
Para pensar mais profundamente essa questão, recorre-se às imagens da
vegetação utilizadas para dar forma à personagem e ao mundo que a rodeia:
quipá mandacaru
xique-xique
6
caatinga baraúna
Ao olhar para o quipá, o mandacaru e o xique-xique nota-se que a sua
resistência, não se compara à grandeza e à superioridade da caatinga e da baraúna.
Sendo assim, a caatinga e a baraúna ampliam a figura de Fabiano, mostrando a
capacidade de superação e de resistência, que as fatalidades não alteram seu
caráter. Além disso, essas imagens nos lembram que se o ser em si está além do
símbolo, conseqüentemente, a palavra é a simbolização do que não pode ser
inteiramente verbalizado.
Então, "como falar sem mentir? Como pretender r nas palavras a verdade
individual toda, inteira? A linguagem sendo sempre re-criação, trans-figuração do
real, está ligada à sua mentira" (HOLANDA, 1992, p.77). Dessa maneira, a
linguagem sempre trai a realidade, porque a palavra "além da idéia que parece
trazer, carrega poderes de sugestões" (HOLANDA, 1992, p. 56).
Por esse motivo, é que não se tem exatidão na imagem de Fabiano no
fragmento de Vidas Secas citado acima. Além disso, nota-se a busca pela palavra
precisa e decisiva, que consiste em dizer o máximo com o mínimo, submetendo "a
linguagem a um regime de pão e água" (PAZ apud Holanda, 1992,p. 27). Contudo,
essa depuração da linguagem praticada por Graciliano Ramos envolve a figura de
Fabiano de mistério: "era como as catingueiras e as baraúnas" (VS, p. 19).
Desse modo, Graciliano Ramos estimula a imaginação do leitor a reconstruir
6
o dito por meio do que é ocultado. De acordo com Iser (1996, p.106), os lugares
vazios do diálogo incentivam o leitor a ocupar lacunas com suas projeções. Logo, o
discurso indireto livre é um vazio porque permite ao leitor imaginar o não-dito,
ouvindo a voz de Fabiano que está oculta no discurso:
Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito...
Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo?. Não sabia. Seu
Tomás da bolandeira é que devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os
meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham a
obrigação de comportar-se como gente da laia deles. (VS,p. 24-25).
De maneira semelhante, os deslocamentos do narrador resultam em um
espaço de indeterminação, devido à relação entre identidade e alteridade: um
discurso ambíguo que se distingue (separa) e ao mesmo tempo integra (liga), pois
ao preservar a linguagem do outro na sua escritura, aproxima-se do iletrado na
tentativa de dialogar com o seu oposto, de conhecer o outro. Isso pode provocar
uma mudança de perspectiva do leitor sobre Fabiano, que adentra o interior do
discurso narrativo e passa a ouvir a voz do trabalhador do campo, conseguindo
romper com a expectativa de que o retirante seja um ser brutalizado, ignorante e que
a seca seja a única responsável pelos seus problemas.
Vidas Secas constrói uma comunicação pautada na ruptura e esta modifica a
posição do leitor em relação ao que é familiar. Ao abdicar dos "tabaréus bem
falantes" (Ramos, 1979, p. 129) preferindo uma "gente muda" , Graciliano ambiciona
levar o leitor a reformular suas expectativas estereotipadas, pois "a comunicação de
êxito dependerá do texto forçar o leitor às mudanças de suas representações
projetivas habituais" (LIMA, 1979, p. 23). É, portanto, uma obra subversiva,
justamente por estar constituída quase toda de monólogos interiores, "técnica
estritamente literária de representação da voz, que não existe enquanto
comunicação oral" (MACHADO, 1995, p.120).
O autor escolheu representar o silêncio das personagens, ao invés da fala,
porque o silêncio do matuto não é vazio ou sem sentido, pelo contrário, é um
mutismo que significa, que está repleto de palavras interiores que passam a ser
expressas por meio de um discurso não pronunciado – o discurso indireto livre.
Então, silenciar Fabiano seria, ao mesmo tempo, decorrente de seu
vocabulário minguado e uma conseqüência do peso do fator econômico que cala o
6
homem, quando deixa de vê-lo como uma pessoa, mas apenas como uma fonte de
lucro, uma peça na engrenagem econômica.
Visto que o mutismo de Fabiano pode ser interpretado como sinal de uma
opressão que gera um respeito paralisador: "Fabiano sempre havia obedecido" (VS,
p.27). Para Holanda, o silêncio da vaqueiro tem o peso da História, que se relaciona
à longa dependência latina, em particular, nordestina, uma cultura nascida de uma
invasão, enraizada na submissão e acostumada à exploração do homem do campo.
No dizer do próprio autor, "a exploração do homem tem seu esteio no arrancar-lhe a
palavra; emudecê-lo é reduzi-lo a nada; é assim, facilitar o mando" (HOLANDA,
1992, p. 42).
Mas quietismo de Fabiano também "pode ser compreendido como
resistência [...] a toda tentativa de integração" (ORLANDI, 1997, p.59), que existe
desconfiança em relação aos outros:
foi até a porta de uma bodega com vontade de beber cachaça. Como havia
muitas pessoas encontradas ao balcão, recuou. Não gostava de se ver no
meio do povo. Falta de costume. Às vezes dizia uma coisa sem intenção de
ofender, entendiam outra, e lá vinham questões. Perigoso entrar na
bodega. (VS, p. 97).
Esse silêncio atua como um valor importante da realidade do sertanejo, como
algo que o caracteriza, por isso Fabiano permanece sem as palavras, sua linguagem
lacunar, concisa e reticente é percebida no discurso tautológico, que é "sinal dessa
depuração da linguagem enquanto signo ambíguo e polifônico" (HOLANDA, 1992, p.
79): " Governo é governo" (VS, p.107) ou " Festa é festa" (VS, p. 77). As
interjeições também indicam brevidade e lacuna: "Hum! hum!" (VS, p. 94) " An!"
(VS, p.34)
A narrativa aprofunda-se nos processos mentais da personagem e concentra-
se em captar sua vivência interior, em expressar a repercussão dos fatos externos e
as perturbações que suscitam em seu interior, visto que tem como alvo representar
o homem construindo sua autoconsciência por meio do pensamento.
Esses elementos, que se ligam à forma de Vidas Secas, provocam uma
rarefação do enredo: "não me parece que o enredo seja a coisa demasiado
importante. o me preocupo com o enredo: o que interessa é o jogo de fatos
interiores" (RAMOS, 1992, p.158). Sendo assim, o importante para Graciliano nunca
6
é o acontecimento em si, mas as reações das personagens diantes dos fatos e
situações.
Portanto, quer no aspecto da forma, que no aspecto do conteúdo o que se
percebe é a valorização do outro. Graciliano Ramos capta o que de pronfundo e
essencial no sertanejo: o silêncio, como expressão do pensamento.
4.2. Fabiano é o homem de seu tempo
Na concepção de Graciliano Ramos, o romance deve ter como princípio de
construção: a vivência, a experiência, a observação, o conhecimento e a
verossimilhança. Facioli comenta que esses valores o fundamentais no Realismo
do sec. XIX, por ser um "modo de representação e produção de sentido ‘amarrado’
às exigências da mímese da tradição realista" (FACIOLI,1993, p. 49).
Nesse sentido, Graciliano é um realista, entretanto, com uma nova tarefa de
penetrar nos subterrâneos da alma humana, de onde jorram, a cada instante, o
desconhecido, o mistério, o inesperado. Além disso, retrata-a a partir de "um
realismo pleno, isto é, as profundezas fora de si, nas almas dos outros"
(BAKHTIN, 1997b, p. 61). Esse enfoque especial do "homem no homem"
corresponde a "um realismo no mais alto sentido" (BAKHTIN, 1997b, p.61).
Esse é o realismo comprometido com a experiência cotidiana e com a
observação, os dois pilares da prosa romanesca, segundo Bakhtin, em que o
homem está vinculado ao tempo histórico real: "o homem forma-se ao mesmo
tempo que o mundo, reflete em si mesmo a formação histórica do mundo"
(BAKHTIN, 2000, p. 240). Essa simultaneidade é a responsável pelo homem em
devir: "O olho que procura e encontra em toda parte o tempo o
desenvolvimento, a formação, a história. Por detrás do acabado ele enxerga o que
está em formação e em preparo” (BAKHTIN, 2000, p.247).
A inconclusibilidade é característica não do objeto da escrita como
também de seu próprio processo, pois, segundo Gilles Deleuze, "a literatura está
6
antes do lado do informe, ou do inacabamento. [...] Escrever é um caso de devir
sempre inacabado, sempre em via de fazer-se" (DELEUZE, 1997, p. 11).
O romance realista surge para representar o tempo presente em toda sua
instabilidade e inacabamento. E, por essa razão, Graciliano Ramos representa a
natureza e os acontecimentos de forma dinâmica, apresentando os seus efeitos
sobre o homem e mostrando que essas experiências criam um novo tipo de vida.
Sendo assim, os retirantes de Vidas Secas “não poderiam voltar a ser o que já tinha
sido?” (VS, p. 119), esta é a pergunta que sinhá Vitória faz a Fabiano, que
matutou e andou bem meia légua sem sentir. A princípio quis responder
que evidentemente eles eram o que tinham sido; depois achou que
estavam mudados, mais velhos e mais fracos. Eram outros para bem dizer
(VS, p.119, grifos nossos).
Percebe-se que o tempo, no romance realista, deixa vestígios no homem
tanto no seu físico quanto no seu interior, uma vez que Fabiano e sinha Vitória eram
novas pessoas. O transcorrer do tempo indica abalos na vida e no caráter do
homem que evolui ou regride, à medida que caminha na estrada infinita do tempo.
Em virtude disso, os acontecimentos vividos por Fabiano levaram-no a modificar
seus valores sobre si mesmo e sobre o mundo.
Vidas Secas, ao representar o homem vivendo situações em um determinado
espaço (o sertão) e em uma determinada época
27
, assimila a dinâmica social do
contexto histórico, pois o fato de Fabiano estar vinculado ao mundo e de pertencer a
uma classe social possibilita retratar um tipo de sociedade e seus costumes. Através
da leitura do romance se conhece a decadência econômica da região e a
mentalidade política que imperava:
Conformava-se, não pretendia mais nada. Se lhe dessem o que era dele,
estava certo. Não davam. Era um desgraçado, era como um cachorro, só
recebia ossos. Porque seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma
parte dos ossos? Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com
semelhantes porcarias. (VS, 96, grifos nossos)
Percebe-se, então, que a seca não é a única fonte dos problemas do
sertanejo, quer na estiagem, quer na cheia, a situação dessas pessoas é de
limitação. A miséria constante em que vivem Fabiano, sinha Vitória e os meninos
27
De acordo com Alfredo Bosi, “Vidas Secas escrito por volta de 1937, quando a migração interna
começa a tomar vulto. Do Nordeste para São Paulo, principalmente” (BOSI, 2003, p.23).
7
não se liga apenas ao ciclo natural da seca e da chuva, e, sim, muito mais, ao fator
econômico que explora a mão de obra:
Um dia um homem faz besteira e se desgraça.
Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha a obrigação de
trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia o seu lugar. (VS, p.96)
Para Graciliano, “a obrigação do romancista não é condenar nem perdoar a
malvadez: é analisá-la, explicá-la. Sem ódios, sem idéias preconcebidas, que não
somos moralistas" (RAMOS, 1962, 262). Então, o que motivaria um homem honesto
como Fabiano a fazer uma besteira e se desgraçar? Graciliano entende que:
as violências praticadas pelas forças volantes contra matutos indefesos
levam ao cangaço muito deles [...] Contudo, injustiças e perseguições
em toda a parte, sem que os ofendidos se resolvam a organizar bandos
como os que infestam o Nordeste. Terão as pessoas dos outros lugares
menos vigor que os sertanejos? (RAMOS, 1961, p.145)
Em virtude disso, é possível entender a transgressão de Graciliano Ramos,
uma vez que sua literatura não se encaixa no regionalismo tradicionalista, no qual
"a tradição é convocada para fazer sua aparição como folclore" (DÓRIA, 1993, p.
32). É desse modo que a cultura nordestina é apresentada à nação, que reconhece
o Nordeste a partir do folclore, a partir "do cangaço que de fenômeno histórico, de
tipo específico de conflito social, foi reduzido a folk num processo ideológico de
imbricamento cultural da região na nação" (DÓRIA, 1992, p.31).
Dessa maneira Vidas Secas é um projeto realista que debruça-se sobre seu
tempo, não retomas questões ultrapassadas, como cangaço do fim do século XIX
que se estendeu até o início do sec. XX:
Em geral os malfeitores ocultavam as sua truculências ou apresentavam-
nas como fatos necessários e justos: enfeitados, romantizados pela
imaginação popular, dedicavam-se a obras de reinvidicações e de
vingança. Eram uns hérois, quase uns apóstolos, na opinião dos matutos.
Distribuíam punhados de moedas roubadas, queimavam regularmente as
cercas e assolavam fazendas dos amigos do governo, coisas agradáveis à
gente miúda, cobiçosa por necessidade e naturalmente oposicionista
(RAMOS, 1961, p.149).
Tudo isso mudou. O cangaceiro, uma espécie de Quixote que se rebelava
contra a ordem para corrigir injustiças, por questões de honra ou desavença política,
desapareceu. O que restou desse passado, são os cangaceiros tipo Lampião que:
7
Não se contenta com incêndios e matança de gado: invade a casa do
fazendeiro, rouba-lhe a mulher e as filhas, leva-as para capoiera e entrega-
as meses depois, estragadas, mediante resgaste.
[...] O cangaceiro tipo Lampião aniquila o inimigo: devasta-lhe os bens e, se
não o mata, faz coisa pior castra-o [...] e se lhe desonra as filhas, castra-o
de maneira pior (RAMOS, 1961, p.151).
Graciliano compreende que a injustiça gera a revolta; no entanto, um homem
pode "manifestar o seu de descontentamento de maneiras diversas e as
monstruosidades são desnecessárias" (RAMOS, 1961, p. 145).
Percebe-se como Graciliano Ramos é um homem de seu tempo e por meio
de Vidas Secas, obra "que não é espelho, mas lâmpada" (BOSI, 2004, p. 388),
aponta problemas locais e desemboca em um questão social, que entendemos ser
a fundadora da obra: "o sertão continuaria a mandar gente para [o Sul]" (VS, p.
126). Desse modo, para ele, o escritor deve investigar a origem dos fatos que
motivaram a escritura do romance:
Romanceando por exemplo o crime e a loucura está visto que ele [o
romancista] deve visitar seus heróis na cadeia e no hospício, mas, se quiser
realizar obra completa, precisa conhecê-los antes de chegar aí, acompanhá-
los na fábrica ou na loja, no escritório ou no campo de plantação.
Necessariamente o ofício dos seus homens deve ter contribuído para que as
coisas se passassem desta ou daquela forma" (Linhas Tortas, p. 261)
Vidas Secas revela o esforço em compreender a rede de relações que
propicia o exôdo. De acordo com o escritor em “A propósito da seca”, o sertanejo
realiza vários ofícios antes de decidir pela partida:
Essa gente prolífica e tenaz, amontoada numa terra pobre, de agricultura
rotineira e indústria atrasada, naturalmente vive mal. De ordinário, as
grandes fortunas não existem, e nos meios rurais é um eterno recomeçar.
Reduzida a produção, surgem dezenas de ofícios parasitários, e o
nordestino dedica-se a um deles antes de emigrar, torna-se negociante.
Ambulante, trocador de animais, atravessador, salteador, encarrega-se
enfim de fazes circular o pouco que existe. (RAMOS, 1962, p.137)
O capítulo Fuga mostra-nos Fabiano entre dois tempos: continuar integrado
“ao sistema latifundiário significa para o camponês brasileiro uma morte lenta e
inexorável” (COUTINHO, 1968, p.107) ou inserir-se no sistema capitalista, “como
uma possibilidade de renovação e de progresso” (COUTINHO, 1968, p. 76).
Fabiano decide romper com o passado amargo, finalizando, assim, um ciclo.
Escolhe o mundo em devir, a opção por um recomeço de quem não tem o que
7
perder: “andavam para o sul, metidos naqueles sonho [...] Chegariam a uma terra
desconhecida e civilizada” (VS, p. 126)
Fabiano está feliz: o sonho, a esperança devolvem-lhe o ânimo para
prosseguir a caminhada. Contudo, o narrador sabe que a integração no capitalismo
poderá ser a fonte de novos problemas. Diríamos, então, que o narrador tem o
conhecimento enquanto Fabiano tem o imprevisível, confirmando mais uma vez o
dialogismo existente Vidas Secas entre consciências que não se fundem, mas
ressoam lado a lado.
Entretanto, é lícito questionar se um projeto social transgressor como o de
Vidas Secas leva a cabo uma superação desses marginalizados. Ou se, de fato, a
autoconsciencia da personagem é suficiente para fazê-la mudar ou não de
condição.
Vidas secas abre-se para um futuro em devir; trata-se de uma construção
que celebra o inconcluso. Segundo Gilles Deleuze, “a escrita é inseparável do devir:
ao escrever, estamos num devir-mulher, num devir animal ou vegetal” (DELEUZE,
1997, p. 11).
Assim, a sapiência de sinha Vitória, a valorização da Baleia e a aproximação
de Fabiano à força e à resistência das catingueiras evidenciam a proposta de uma
escrita em que a força está nos fracos ou nos menores, que eles garantirão as
transformações: “É um povo menor, [...], tomado num devir-revolucionário”.
(DELEUZE, 1997, p. 14).
7
Conclusão
Nossa dissertação, cujo corpus é Vidas Secas, destaca que esse “livrinho [no
qual] aa cachorra é uma criatura decente” (RAMOS Apud RAMOS, p. 129) teve
uma decepcionante repercussão, pois a primeira edição de 1938, com uma tiragem
de mil exemplares, demorou sete meses para esgotar e a segunda ocorreu somente
em 1947. É o mesmo livro que se tornou um clássico da literatura brasileira,
traduzido e publicado em diversos países e, em 1963, adaptado para o cinema pelo
cineasta Nelson Pereira dos Santos.
Foi a consagração de uma obra e de um escritor que se dizia “Sou apenas um
romancista de quinta ordem” (RAMOS apud CRISTÓVÃO, p.75). Tal fato,
infelizmente, não foi presenciado por ele, que falecera em 20 de março de 1953.
Não viu essa tradução do livro para o cinema. Como também não acompanhou as
publicações de Vidas Secas na França, Alemanha, Itália, Romênia, Bulgária, na
antiga Tchecoslováquia, Rússia, Polônia, Holanda, Bélgica, Espanha, Argentina,
Uruguai, Cuba, China, Ucrânia e nos Estados Unidos.
Vidas Secas inovou, especialmente, no que se refere à estrutura de capítulos
independentes e à justaposição dos episódios, fazendo que Rubem Braga o
classificasse como “romance desmontável”. Isso conferiu modernidade à estrutura
narrativa, rompendo com a relação de causalidade entre os capítulos. Contudo,
conforme confissão de Graciliano Ramos ao amigo Rubem Braga, foi a necessidade
financeira que determinou essa autonomia entre os capítulos, pois “queria fazer um
romance, mas a conta da pensão não podia esperar um romance” (BRAGA, 2001, p.
131). Dessa forma, o que hoje são capítulos antes fora vendidos como contos a um
jornal do Rio de Janeiro e outro da Argentina.
Esse é um romance que, segundo a crítica mais tradicional, termina como
começou, fechando um ciclo que corresponde ao da seca. Tal interpretação
contraria a perspectiva desta dissertação, que demonstrou ser Fabiano uma
personagem dialógica e, conseqüentemente, inacabada, incorporando em sua
imagem o mesmo caráter transformador do tempo histórico. Desta forma, a
circularidade em Vidas Secas é apenas aparente, pois no capítulo final “Fuga” as
7
personagens não são mais as mesmas do capítulo inicial “Mudança”; afinal, há
uma contínua mutação.
Graciliano Ramos destaca-se do grupo regionalista, porque, ao vincular a
literatura ao homem de seu tempo, o se fixa no local apenas, mas busca, nas
camadas interiores desse homem, as marcas da formação da autoconsciência, que
é uma questão universal. Sendo assim, mesmo Fabiano tendo seus s fincados no
chão do sertão nordestino, ele é um homem que busca, que peregrina na
perseguição de um sonho e isso é comum a qualquer homem. Por isso, ao tratar do
local, Graciliano revelou o universal.
Por esse motivo, destacamos que a apreensão artística da realidade
empreendida por Graciliano Ramos revela um realismo que não pára na superfície,
nem se limita aos ritmos monótonos da vida campestre, mas tem por objetivo
representar a condição humana de Fabiano por meio do discurso indireto livre, que
foi a forma encontrada pelo autor para enriquecê-lo no sentido humano.
Tal construção romanesca, fundada sobre o princípio dialógico bakhtiniano,
volta-se para a revelação da palavra de Fabiano e, por isso, qualquer descrição e
qualquer acontecimento ocorrem para obter dele a palavra de sua autoconsciência
por meio do monólogo interior e do discurso indireto livre, recursos estilísticos que
permitem captar essa palavra interior. Por isso, a escritura concentra-se no discurso
interior de Fabiano, que nenhum acontecimento é neutro e tudo o atinge,
motivando as reflexões que o colocam em constante polêmica consigo próprio, com
as demais personagens e, inclusive, com o narrador.
Dessa forma, Graciliano Ramos insiste em mostrar o pensamento do mais
simples como um campo de busca e de batalha contra as relações culturais, sociais
entrelaçadas ao sistema econômico, responsáveis pela deterioração da identidade
do homem e de seus valores.
O conflito que irrompe em Fabiano por meio do seu confronto interior e
exterior com o patrão, o soldado amarelo, o fiscal da prefeitura, sinhá Vitória, os
filhos, encurralam Fabiano e levam-no a pensar sobre o seu presente, que se
encontra vinculado ao passado histórico, sustentado por formas convencionais de
pensar e agir a herança de ser vaqueiro, por exemplo - e ritualmente repetidas de
geração em geração.
No entanto, Fabiano compreende a sua situação de desgraçado e isto
significa dar respostas, mesmo que a palavra não se destine fisicamente a ninguém.
7
No mais secreto pensamento há um duplo, um interlocutor invisível, ao qual se
dirige. Em suma, já há aí uma forma de resistência, mesmo que seja em silêncio. .
Entretanto, ao apreender o discurso do exterior, a palavra do outro abre uma
fissura na consciência de Fabiano, penetra-lhe por dentro e incorpora-se às suas
palavras, fundindo-as num mesmo enunciado bifronte, porque ali convivem duas
tonalidades expressivas diferentes: a do discurso alheio e a daquele que o
representa. Foi, assim, por meio da análise dos níveis dialógicos do discurso interior
da personagem Fabiano que verificamos qual a sua projeção frente aos discursos de
outrem cravados em sua consciência.
Em Vidas Secas, devemos entender ainda o narrador como aquele que
mantém um posicionamento ora próximo, ora distanciado da personagem. Essa
postura ambivalente é a que fundamenta o modo peculiar de colher os movimentos
da consciência de Fabiano por meio do discurso indireto livre. Graças a essa
estratégia discursiva o narrador pode manter a sua alteridade em relação à
personagem e representá-la com maior autenticidade nos seus momentos de
autoconsciência. Em razão dessa proximidade entre o narrador, a personagem e o
leitor é que se fortalecem a empatia e o amor pelo objeto estético, no caso, a
personagem Fabiano.
Tal qual o narrador, o posicionamento autoral, também, renuncia à sua
autoridade de único detentor da linguagem romanesca, desde que faz do discurso
citado, peça chave do romance na concepção de Bakhtin, a sua arma de
multiplicação de pontos de visão sobre os acontecimentos. Os discursos
provenientes de vários segmentos sociais são estilizados como pontos de vista
autônomos com relação aos quais o discurso direto do autor mantém uma relação
viva, manifestando-se em tons e gradações que vão da empatia à antipatia. Afinal,
os discursos dos outros são os grandes atores que povoam a prosa romanesca e
estarão presentes mesmo que o narrador ou o autor os detestem.
7
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