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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
EXISTENCIALISMO E MARXISMO:
A FILOSOFIA DE SARTRE ENTRE A LIBERDADE E A HISTÓRIA
LUCIANO DONIZETTI DA SILVA
SÃO CARLOS
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
EXISTENCIALISMO E MARXISMO:
A FILOSOFIA DE SARTRE ENTRE A LIBERDADE E A HISTÓRIA
LUCIANO DONIZETTI DA SILVA
Tese apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutor em
Filosofia, no programa de Pós-Graduação
em Filosofia e Metodologia da Ciência, na
Universidade Federal de São Carlos, sob
orientação do Prof. Dr. Bento Prado de
Almeida Ferraz Júnior.
SÃO CARLOS
2006
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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar
S586em
Silva, Luciano Donizetti da.
Existencialismo e marxismo – a filosofia de Sartre entre a
liberdade e a história / Luciano Donizetti da Silva. -- São
Carlos : UFSCar, 2006.
262 p.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos,
2006.
1. Existencialismo. 2. Filosofia. 3. Liberdade. 4. Marxismo.
5. História. I. Título.
CDD: 142.78 (20
a
)
À
Joana
Agradeço a todos os professores e funcionários da UFSCar,
especialmente ao Prof. Dr. Bento Prado Júnior
e à FAPESP que, em grupo, tornaram possível esse trabalho.
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
(Nosso Tempo, Carlos Drummond de Andrade)
SUMÁRIO
RESUMO.....................................................................................................................6
RÉSUMÉ.....................................................................................................................7
INTRODUÇÃO ............................................................................................................8
PARTE I A LIBERDADE E A FORÇA DAS COISAS...............................................37
A LIBERDADE NA HISTÓRIA...................................................................................38
1 Situação e história..................................................................................................44
2 Genet - eu é um outro ............................................................................................97
3 O indivíduo e a sociedade....................................................................................124
PARTE II CARIBDES OU CILA?............................................................................150
O NECESSÁRIO DESDOBRAMENTO DE EN NUMA CRD ...................................151
1 Uma questão de método ......................................................................................184
2 O método progressivo-regressivo ........................................................................205
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................229
REFERÊNCIAS.......................................................................................................255
RESUMO
A obra de Sartre, desde A transcendência do Ego (1934) até os incompletos
Cadernos para uma Moral (1983), apresenta um eixo temático comum: mostrar a
liberdade humana como fundamento do real. Mesmo diante de todas as dificuldades
teóricas que essa filosofia encontra ao longo de quase meio século, consolidar a
liberdade frente a todo determinismo ou casuísmo foi, sem dúvida alguma, o ideal da
produção teórica e da prática do filósofo. A filosofia alemã (Husserl e Heidegger)
permitiu o momento glorioso do pensamento sartriano, uma vez que tornou possível
suprimir as dificuldades que uma filosofia da subjetividade absoluta pode colocar;
mas a doutrina da liberdade, apresentada em O Ser e o Nada (1943), redunda numa
realidade humana absolutamente vazia. Certamente não é dessa noção de homem
que Sartre poderá falar dos fatos históricos que se sucedem a partir de 1943. No
âmbito teórico se torna urgente produzir uma síntese filosófica entre a filosofia
subjetiva da fase de O Ser e o Nada e o marxismo, filosofia insuperável de sua
época (Critica da Razão Dialética, 1960). É com esse objetivo que Sartre, na Crítica,
procura fundamentar ontologicamente o materialismo histórico a partir das condições
formais de possibilidade e inteligibilidade da dialética da história. Nesse panorama
se insere o problema da presente pesquisa: compreender como a história, que na
perspectiva do existencialismo é produto da liberdade humana, pode se voltar contra
o homem e torná-lo um objeto que simplesmente participa do processo histórico.
Esse problema se desmembra numa série de outros, e tem no horizonte as
possíveis interpretações que se pode fazer da obra de Sartre: sua aproximação do
marxismo exigiu que ele renegasse sua ontologia fenomenológica? Pode-se falar
que há um primeiro Sartre, partidário da liberdade, e um segundo, marxista? Ou sua
obra pode ser lida como um todo, sendo a Crítica um desdobramento de O Ser e o
Nada? Para responder essas questões desenvolvemos esse trabalho.
RÉSUMÉ
L’œuvre de Sartre, depuis La transcendance de l’Ego (1934) jusqu’aux incomplets
Cahiers pour une morale (1983), est traversée par un axe thématique commun :
montrer la liberté humaine comme fondement du réel. Malgré toutes les difficultés
théoriques que cette philosophie a dû affronter un demi-siècle durant, la
consolidation de la liberté face à tout déterminisme ou causalisme fut sans aucun
doute l’idéal de la production théorique et de la pratique du philosophe. C’est la
philosophie allemande (Husserl et Heidegger), au vu de la possibilité qu’elle offre de
surmonter les difficultés posées par une philosophie de la subjectivité absolue, qui a
permis le moment glorieux de la pensée sartrienne; toutefois, la doctrine de la liberté
présentée dans l’Être et le Néant (1943) résulte en une réalité humaine absolument
vide, et ce n’est certainement pas à partir de cette notion d’homme que Sartre pourra
interroger les faits historiques et la société. Il est urgent de produire, dans un cadre
théorique, une synthèse philosophique entre la philosophie subjective de la phase
l’Être et le Néant et le marxisme, philosophie indépassable de cette époque (Critique
de la raison dialectique, 1960). C’est dans ce but que Sartre, dans la Critique,
chercha à mettre en évidence le fondement ontologique du matérialisme historique à
partir des conditions formelles de possibilité et d’intelligibilité de la dialectique de
l’histoire. C’est dans ce contexte que se situe la problématique de cette recherche :
comprendre de quelle façon l’histoire, qui du point de vue existentialiste est un
produit de la liberté humaine, peut se retourner contre l’homme et faire de celui-ci un
objet qui ne fait que participer au processus historique. Ce problème n’est que le
point de départ de beaucoup d’autres et porte en lui les possibles interprétations que
l’on peut faire de l’oeuvre de Sartre : son rapprochement avec le marxisme exigea-t-il
qu’il reniât son ontologie phénoménologique ? Peut-on parler d’un premier Sartre,
partisan de la liberté, et d’un second, marxiste ? Ou bien son oeuvre peut-elle être
lue comme un tout où la Critique serait un développement de L’Être et le Néant ?
C’est pour répondre à ces questions que nous avons développé cette recherche.
8
INTRODUÇÃO
Quando considerada em sua completude, a obra de Sartre apresenta um eixo
temático comum: a liberdade do homem como fundamento do mundo. Pode-se
considerar esse seu projeto filosófico uma obsessão, afinal, mesmo frente a todas as
dificuldades teóricas que seu pensamento encontrou ao longo de quase meio
século, consolidar a liberdade frente a todo determinismo ou casuísmo foi, sem
dúvida alguma, o ideal de sua filosofia. Mais ainda, esse tema perpassa, direta ou
indiretamente, sua dramaturgia e literatura; está constantemente em voga nas
entrevistas concedidas e nos artigos publicados; norteia a atuação política do
filósofo como intelectual engajado e, até mesmo, como crítico do comunismo. Em
um dos vários momentos em que relata sua vida, Sartre, com respeito à morte de
seu pai, se pergunta se isso foi bom ou ruim; e responde: “Não sei; mas subscrevo
de bom grado o veredicto de um eminente psicanalista: não tenho superego”.
1
Longe de buscar razões psíquicas para justificar a opção teórica do filósofo (é
conveniente lembrar que isso causaria náuseas em nosso autor), essa lembrança
busca resgatar quão significativa e frutífera é, para a constituição de sua obra, a
questão da liberdade. Certamente, ela não está restrita ao âmbito psicológico nem
figura no universo de Sartre como algo unicamente prático; trata-se do fundamento
de sua vida e de seus questionamentos filosóficos. Se o interesse de toda filosofia é
o homem, ou, para o cunho fenomenológico, o homem-no-mundo, Sartre tem como
premissa que “não há diferença entre o ser do homem e seu ‘ser livre’”.
2
Para ele ser
livre está no princípio e, pode-se dizer, é a finalidade da existência humana; assim, a
despeito da aparente obviedade que esse tema pode sugerir quando se trata de
Sartre, nada melhor que assumir o risco e contrariar o modismo desinteressado que
entende a liberdade sartriana nela mesma, desconsiderando as exigências teóricas
de sua constituição.
Ao passar para o campo especificamente filosófico, nota-se que ter como
princípio a liberdade exige do filósofo muito mais do que uma premissa. A
estruturação teórica do conceito liberdade tem como ponto de partida a
fenomenologia husserliana. Porém, o pensamento do filósofo alemão se mostra,
muito cedo, insuficiente; será necessário, ainda em terras germânicas, buscar outros
1
SARTRE, 1964, p. 16.
2
SARTRE, 1943, p. 61.
9
caminhos. Com Heidegger (ou contra Heidegger) Sartre tem o que Marilena Chauí
denomina, com razão, de momento glorioso: “suprimiu todas as dificuldades que
uma filosofia, que pensa a subjetividade como plenitude, colocara. Há, porém, o
momento decepcionante”.
3
Figurativamente, do céu ao inferno é o caminho traçado
pelas críticas dirigidas a O Ser e o Nada; isso exige de Sartre uma alternativa que
contemple o ideal subjetivo e, ao mesmo tempo, dê conta da práxis existencialista.
Assim sendo, essa pesquisa tem como foco principal os anos 1950 ou,
especificamente, os dezessete anos que separam O Ser e o Nada (1943) da Crítica
da Razão Dialética (1960), limiar entre o projeto de um sujeito individual (absoluta
liberdade) e a necessidade de interação social (práxis). A doutrina da liberdade,
publicada em 1943, redundou numa realidade humana absolutamente vazia; ora,
certamente não é dessa noção de homem que Sartre poderá falar dos fatos
históricos importantes dos anos subseqüentes; por isso, no âmbito teórico, torna-se
urgente produzir uma síntese entre a filosofia subjetiva e, conforme atesta Questão
de Método, o marxismo.
Não se trata, apesar do que possa parecer, de simplesmente colocar num
plano idêntico teorias a princípio divergentes, como é o caso do marxismo e do
existencialismo sartriano; essa imagem cairia melhor ao Dr. Frankstein. Sartre busca
estabelecer a articulação entre o idealismo e o materialismo, entre o capitalismo e o
comunismo, entre o ser e o nada. É certo que, para fazê-lo, ele precisa se haver
com a noção de liberdade absoluta da fase da ontologia fenomenológica; porém, o
cogito purificado continuará sendo o ponto de partida dessa empreitada. A absoluta
liberdade, vitrine do momento glorioso do pensamento de Sartre, certamente sofrerá
certa lapidação; mas o projeto de fundar uma filosofia tendo por base a subjetividade
permanecerá o mesmo – a dialética materialista, por ser negativa, será tributária do
ser-para-si.
A ontologia fenomenológica de Sartre, ainda que seja a maior expressão de
seu projeto filosófico, mostrou-se por demais abstrata para dar conta de um mundo
marcado pela guerra e pelas modificações do pós-guerra; por essa razão a Crítica
vai retomar temas que foram apenas indicados (ou nem sequer tocados) em O Ser e
o Nada, como, por exemplo, a exploração. Está claro que para esse contexto torna-
se essencial explicar a práxis individual, o relacionamento social entre os homens e,
3
CHAUÍ, 1967, p. 185.
10
além, entre os grupos de homens: mais que um arrancamento de si, na Crítica o
homem será um “produto de seu produto”, ou, “o indivíduo orgânico enquanto ele
interiorizava a multiplicidade dos terceiros e a unificava por sua práxis”.
4
Sem
dúvida, é lícito perguntar se com isso Sartre está reformulando, complementando ou
reiniciando sua filosofia; mas também é verdade que apenas uma leitura cuidadosa
do conjunto de sua obra poderá indicar qual é a melhor interpretação.
É bom lembrar que Sartre, no que poderia ser considerada a primeira fase de
seu pensamento, rechaça o marxismo: em A Náusea, o socialismo se resume a uma
atitude de seriedade tomada pelos salauds como meio de escapar à liberdade
constitutiva de seu ser; para isso, eles se abrigam nesse macro valor pré-
estabelecido.
5
Essa atitude de fuga é comparável à má-fé e, dessa forma, o
marxismo figura entre os inúmeros parapeitos de proteção contra a angústia.
6
Na
passagem para o que seria o segundo período, Sartre reconhece que sua ontologia,
mesmo que fenomenológica, é incompatível com o marxismo, o que ainda assim
não permite simplesmente negá-lo: o marxismo, segundo ele, é a filosofia
insuperável de seu tempo.
7
Também reconhece que o existencialismo é uma
ideologia burguesa pela qual os dominadores tentam justificar seus privilégios
negando a objetividade do mundo com base numa subjetividade fantasiosa.
Ora, isso significaria uma contradição interna no pensamento de Sartre? Não,
afinal ele se adianta em lembrar que “existe um outro existencialismo que se
desenvolveu a margem do marxismo e não contra ele. É esse que reivindicamos e é
dele que vou falar agora”.
8
Mesmo após a publicação da ontologia e frente a todas
as dificuldades que ela pode gerar quando se trata de tematizar a práxis, Sartre não
está disposto a abrir mão de sua filosofia da subjetividade. Manter a subjetividade da
primeira fase de sua obra e, ao mesmo tempo, aproximar-se do marxismo – esse é o
objetivo do período de gestação da Crítica. Se para levar esse projeto a termo será
necessário fazer concessões e lapidações, que seja: a liberdade fará sua oferta no
altar da síntese filosófica. Mas também o marxismo terá que ofertar algo: Sartre
entende que essa doutrina distancia teoria e prática ao sujeitar o homem (indivíduo)
à Idéia; o existencialismo é o único que pode verdadeiramente unir infra e
4
SARTRE, 2002, p. 294 e p. 542.
5
SARTRE, 1996, pp. 172-175.
6
SARTRE, 2002, pp. 94 ss.
7
“Não rejeitar o marxismo em nome de uma terceira via ou de um humanismo idealista, mas
reconquistar o homem no âmago do marxismo”. SARTRE, 2002, p. 72.
8
SARTRE, 2002, p. 27.
11
superestruturas porque apenas ele pode encontrar o homem onde quer que ele
esteja.
9
Não importa, desse modo, decidir previamente sobre continuidade ou ruptura
entre os dois grandes períodos da obra de Sartre. Segundo nossa análise, será mais
profícuo entender, a partir do interior da obra do filósofo, como se dá a passagem da
consciência absolutamente purificada que tem no olhar do outro a superação
incontestável do solipsismo para o homem, sujeito histórico e em relação com seus
semelhantes. Dito de outra forma, como se dá a passagem da consciência,
liberdade absoluta, para o homem em sua práxis e, mesmo assim, práxis livre.
Parece que se encontra aí o maior conflito teórico (e prático) da obra de Sartre com
respeito à liberdade. Mas é justamente nesse conflito que pode ser encontrado o
sentido mais amplo e significativo da liberdade humana: num movimento
ascendente, o pensamento de Sartre parte da fenomenologia, vai à ontologia, flerta
com a metafísica; em seguida retorna ao cotidiano pela via da dialética marxista.
É preciso notar que, cronologicamente, a primeira fase do pensamento de
Sartre começa por volta de 1934 e vai até aproximadamente 1950. Isso porque a
produção do filósofo tem início efetivamente em 1933 quando ele vai a Berlim e
conhece um pensamento já estruturado que parecia ter a mesma preocupação que
a sua; e é a partir de 1949 que Sartre inicia conversações com Jean Genet,
discussões que se prolongam até 1951, e logo em seguida é publicado o ensaio
Saint Genet, ator e mártir (1952).
10
Esse ensaio será considerado o liame entre os
dois momentos do pensamento sartriano que serão analisados. Vale ressaltar que a
estruturação teórica nesses dois períodos não se caracteriza por uma cisão abrupta,
mas sim por uma mudança de foco. Sartre não vai abrir mão do cogito como ponto
de partida para a interrogação filosófica; ainda assim, vai estruturar uma práxis
existencialista, ou, o marxismo-existencialismo.
Poder-se-ia, conforme faz Gerhard Seel, retroceder um pouco mais e buscar
a gênese do pensamento sartriano a partir de suas convicções pré-teóricas;
também, seria possível voltar a 1925, quando Sartre concebe a consciência como
ausência de ser e, por isso, absolutamente livre.
11
Mas há de se notar que essas
9
SARTRE, 2002, p. 35.
10
BEAUVOIR, 1984, pp. 138, 184, 188; CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 55-57 e 243-245.
11
É sabido, embora inédito, que em correspondência com Simone Jolivet, Sartre detalha suas idéias
sobre contingência e consciência como vazio de ser, retomadas em O Ser e o Nada (CONTAT &
RYBALKA, 1970, p. 23). Gerhard Seel mostra que Sartre, em seu primeiro contato com a
12
idéias apenas são estruturadas a partir do contato com a fenomenologia husserliana
e, mesmo que ainda muito próximo aos temas desenvolvidos por Husserl, apenas aí
é possível encontrar uma filosofia da subjetividade pura que busca mostrar o homem
como ser absolutamente livre e ao qual o mundo se dá imediatamente. Dessa
maneira, parece mais proveitoso tomar como marco inicial o primeiro ensaio
filosófico de Sartre.
Em A transcendência do Ego (1934) Sartre mostra a importância da
intencionalidade da consciência para a filosofia: por ela a consciência pode ser
entendida como absolutamente livre.
12
É, portanto, a intencionalidade que permite
entrever uma primeira alternativa que mantém a autonomia da consciência e a
presença do mundo. A intuição, por si só, coloca a consciência na presença da
coisa, o que recupera a verdadeira natureza da relação entre consciência e mundo,
há muito obstruída pelas filosofias da representação.
13
O intento de purificar
absolutamente o campo transcendental é a idéia central do primeiro texto filosófico
de Sartre, afinal, se a consciência é intencional, o Eu como pólo unificador de
vivências se torna desnecessário; mais ainda, “todos os resultados da
fenomenologia ameaçam entrar em ruína se o Eu não é, do mesmo modo que o
mundo, um existente relativo, quer dizer, um objeto para a consciência”.
14
Nessa
perspectiva, pode-se entender quão problemático seria aceitar a consciência com a
presença de um Eu: retomar-se-ia a clássica dualidade entre sujeito e objeto que
Sartre, ao entrar em contato com a filosofia de Husserl, acreditou estar em
condições de superar.
Sartre concebe a consciência como vazia; para ele a presença de um Eu,
ainda que entendido como um pólo unificador de vivências, instalaria algo na
consciência, o que impediria descrevê-la na sua relação direta com o mundo (tratar-
se-ia de duas substâncias). O objetivo inicial é libertar a consciência de conteúdos e,
por isso, Sartre critica o Eu transcendental de Husserl: além do fato da consciência
fenomenologia, leva em conta suas convicções pré-teóricas: aspiração ao concreto, afirmação da
liberdade, impossibilidade de justificar a existência e preocupação com o social; essas convicções
continuariam, segundo Seel, norteando o desenvolvimento de sua obra. SEEL, 1995, pp. 25-27.
12
“Husserl vê na consciência um fato irredutível que nenhuma imagem psíquica pode dar conta”.
SARTRE, 1947c, p. 30.
13
“A intencionalidade, tal estrutura é essencial de toda consciência. Segue-se naturalmente uma
distinção radical entre a consciência e aquilo de que se tem consciência. O objeto da consciência,
qualquer que seja (salvo no caso da consciência reflexiva), está por princípio fora da consciência; é
transcendente”. SARTRE, 1978, p. 99.
14
SARTRE, 1994, p. 26.
13
ser destituída de qualquer positividade graças à intencionalidade e, por essa razão,
direcionar-se ao mundo, sem o Eu a consciência é livre perante todas as coisas. A
consciência purificada, entendida como livre direcionar-se ao mundo, suprime a
distância que poderia haver entre aquele que conhece e o conhecido. Além disso
não há porque colocar a questão em termos duais, já que a consciência não
apresenta o que poderia ser entendido como uma existência paralela ao mundo,
pois ela “permanece um ‘fenômeno’ no sentido muito particular em que ‘ser’ e
‘aparecer’ são apenas um”.
15
A renovação do solo filosófico em Sartre tem como princípio a purificação do
campo transcendental. Com isso, a consciência é levada à sua pureza primeira: ela
pode ser definida como nada, já que todas as coisas foram expulsas de seu interior,
sejam essas de natureza física ou psíquica; e é relação a tudo, uma vez que é
consciência de todas as coisas. Assim, a consciência está em relação direta com o
mundo, já que ser nada é livremente direcionar-se a todas as coisas; mais ainda,
essa noção traz para o meio do mundo o Eu e tudo o que era entendido como de
senso íntimo.
16
Torna-se urgente abandonar a nova orientação idealista do
pensamento husserliano e recuperar a espontaneidade e a translucidez da
consciência e, ao mesmo tempo, a realidade do mundo.
Na conclusão de A transcendência do Ego se encontra um resumo do que a
fenomenologia estaria apta a fazer pela filosofia: por ela o homem está mergulhado
no mundo e, por essa razão, o método husserliano possibilita falar das coisas
mesmas. Pela fenomenologia, o fenômeno se dá sem intermediários à consciência;
e sendo a consciência, no campo pré-reflexivo, consciência não tética de si, nessa
relação direta é possível superar a antinomia do idealismo e do realismo, refutar o
solipsismo e fundar as ciências positivas. Por ser essencialmente transcendente, o
mundo não faz parte da consciência; de outro lado, mesmo com o estatuto de nada,
a consciência é relação com o mundo.
Em A Imaginação, no entanto, Sartre se dá conta das dificuldades da redução
fenomenológica para falar das coisas mesmas, conforme era sua pretensão. Isso
porque, ao se acercar do problema da imagem, ele percebe que a noção de noema
15
SARTRE, 1994, p. 25.
16
Essa refutação do solipsismo não é suficiente e será ampliada. Isso se dará com a demonstração
de que a consciência não é relação apenas instantânea com o transcendente, mas que também é
ruptura com seu passado e com seu futuro e, assim, instaura a temporalidade. SARTRE, 1943, pp.
147 ss.
14
irreal não permite distinguir entre imaginar e perceber o mundo; isso se deve à hylé,
a matéria passiva que uma forma vem determinar, ou seja, a intencionalidade passa
a funcionar, enquanto determinante da hylé, como uma categoria. Com isso, a
relação da consciência deixa de ser com o mundo concreto: “no plano
fenomenológico, isto é, uma vez efetuada a redução, parece-nos muito difícil
distinguir imagem e percepção, se for a mesma sua matéria”.
17
Essa é a origem da
crítica a Husserl, pois se Sartre aceita a intencionalidade (consciência
absolutamente livre), exige com urgência a recuperação da concretude do mundo. A
questão é deslocada da consciência, que permanece pura, para o mundo, que,
segundo, Sartre, em Husserl carece de realidade.
O Imaginário distingue a matéria da percepção e da imaginação, passo
fundamental para distinguir real e irreal, primeira alternativa para superar o idealismo
ao qual a redução leva. Para isso Sartre recusa a primazia do conhecimento; o juízo
é posterior à existência. Assim, reintegra o homem ao mundo, já que ser é, e não é
pensado. O problema da relação com o mundo regride até o âmbito pré-reflexivo;
trata-se do homem-no-mundo anterior à cisão entre sujeito e objeto. Para Sartre, a
união sintética do homem com o mundo se torna o campo fenomenológico por
excelência; a relação da consciência com o transcendente é, portanto, o concreto.
18
Isso requer, por sua vez, explicar a relação ontológica entre consciência e
mundo, afinal, o problema do conhecimento, que parecia estar na origem da
antinomia do realismo e do idealismo, mostra-se apenas parte da questão: na
verdade se trata de uma relação de ser. No âmbito fenomênico não vai além de uma
obviedade mostrar que só existe mundo porque há consciência e que a consciência
existe em relação ao mundo; obviedade idealista se, conforme a compreensão
sartriana de Husserl, o noema for considerado irreal. É necessário levar esse
problema para seu terreno originário e, ali, apresentar a solução cabível.
É devido à influência de Heidegger que, além da necessidade de conciliar
liberdade e situação (ser-no-mundo), Sartre encaminha seu pensamento à ontologia.
17
SARTRE, 1978, p. 102.
18
Em O Ser e o Nada (Capítulo I) Sartre passa sem prévio aviso de temas ontológicos para a análise
de condutas humanas e vice-versa. Em alguns casos, a conduta é apenas a demonstração, no
mundo, de teses ontológicas; noutros, a conclusão ontológica é retirada da análise das condutas.
“Basta abrir os olhos e interrogar com toda ingenuidade essa totalidade que é o homem-no-mundo”;
“se meu carro sofre uma pane, interrogarei o carburador, as velas, etc;...”; “Sem dúvida, o bar, por si
mesmo, com seus clientes, suas mesas, bancos, copos, sua luz, a atmosfera esfumaçada e ruídos de
vozes, bandejas entrechocando-se e passos, constitui uma plenitude de ser”. SARTRE, 1943, pp. 38,
42 e 44.
15
O conceito de ser-no-mundo, alternativa encontrada para superar o idealismo
husserliano, traz um problema que, embora estivesse na origem de todas as
dificuldades até então enfrentadas, não tinha sido devidamente formulado. É o que
se percebe na introdução de O Ser e o Nada onde, a partir de uma análise da idéia
de fenômeno, Sartre repensa, de maneira ainda mais fundamental, a consciência e
qual sua possível relação com o transcendente; principalmente, como modo de
superar o idealismo husserliano, trata-se de afirmar o transcendente. É assim que se
dá o rompimento definitivo com Husserl, grande interlocutor e mentor dos primórdios
do pensamento de Sartre.
Husserl forneceu, com a intencionalidade da consciência, um meio para
superar a antinomia do realismo e do idealismo; no entanto, esse método
descambou, com sua matéria subjetiva, para o idealismo. Por isso Sartre busca,
para além de Husserl, a solução do impasse. A possibilidade de uma filosofia
realista que se contraponha ao idealismo husserliano é encontrada no conceito
heideggeriano de situação.
19
Mas como conciliar a noção de consciência, absoluta
liberdade, de A transcendência do Ego, com a necessidade que se impõe de
produzir uma filosofia realista que supere Husserl?
A solução apresentada em O Ser e o Nada é a análise objetiva de condutas
humanas, ou seja, partindo da relação direta da consciência com o mundo, entender
o que verdadeiramente é o mundo e a relação que o une à consciência (ou une a
consciência ao mundo). Porém, isso se mostra fenomenologicamente impossível
porque no exato momento em que se transcende o objeto à captura de seu ser não
se encontra o ser, mas um fenômeno de ser. Essa aporia mostra que “o ser dos
fenômenos não se soluciona em um fenômeno de ser”.
20
O problema fundamental
passa ao ser do aparecer, ou, se a consciência é absoluta liberdade que se
relaciona diretamente com o mundo fenomênico, a dificuldade está em determinar
qual é o ser do mundo, qual é o ser do fenômeno. Isso é feito a partir da
consciência: poderia ela, sendo nada, fundar o ser do fenômeno?
21
Após a limpeza do terreno Sartre, já na primeira parte de O Ser e o Nada,
empreende a análise objetiva de condutas humanas; essa, por sua vez, traz para
19
Tendo como base a estrutura formal da questão do ser e a análise da cotidianidade mediana do
Dasein, conforme os §§ 5 e 9. HEIDEGGER, 1993, pp. 42-46 e 77-81.
20
SARTRE, 1943, p. 15.
21
O objetivo é mostrar que o ser do fenômeno não se reduz a um fenômeno de ser, ou, que o ser não
se reduz ao conhecimento que dele se tem, sendo, portanto, transcendente. SARTRE, 1943, p. 16.
16
sua filosofia um complicador: o não-ser transcendente. Não basta mostrar o não-ser
apenas como um juízo ou uma negação imanente, afinal ele se encontra no mundo.
Noutros termos, o não-ser, tal qual a consciência e o fenômeno, é uma das
estruturas do concreto. Não há meio de intencionar nenhum objeto sem que o nada
seja dado de alguma forma. Ora, se o nada não é devido apenas a um ato judicativo
(ainda que apenas sob uma espera ele possa aparecer), é preciso dar conta desse
novo componente do real.
É pela interrogação, conduta humana privilegiada por colocar a consciência
em contato direto com o ser, que Sartre mostra que o mundo comporta ser e nada
(não-ser). Assim, é porque o mundo apresenta o nada e o ser que a história da
filosofia, ao explorar tal paralelismo entre as condutas do homem frente ao ser e ao
nada, entende o real como resultado de uma díade abstrata, ser puro e nada puro.
Nesse sentido, a filosofia descreve o mundo como simples passagem do ser ao
nada e do nada ao ser, negligenciando a absoluta positividade do ser; esse mesmo
paralelismo permite mostrar outro tipo de relação complementar entre ser e nada
que não exige a passagem de um a outro, mas que concebe o mundo como
resultado da tensão entre essas forças antagônicas e irredutíveis, estando o ser
suspenso no nada.
22
Segundo Sartre, há nas teorias ontológicas apenas alteração na maneira de
descrever a relação entre ser e nada, alteração essa que oscila entre identidade e
repulsão. O resultado não muda: é, inevitavelmente, o concreto que está entre o
nada e o ser. Mas para Sartre, “o ser não é ‘uma estrutura entre outras’, um
momento do objeto: é a própria condição de todas as estruturas e momentos, o
fundamento sobre o qual irão manifestar-se os caracteres do fenômeno”.
23
Considerar ser e nada idênticos é considerá-los abstratamente, já que o ser puro
(sem nenhuma determinação) é nada que, por seu turno, está em tudo, ou
simplesmente é. Sartre tem por objetivo descrever o mundo concreto com a
afirmação da absoluta positividade do ser (para superar o idealismo husserliano).
Por isso, contrariamente à pertença conceitual entre ser e nada, que resolve
22
A primeira posição é, segundo Sartre, a de Hegel: “O ser puro e o não-ser puro seriam abstrações
cuja reunião estaria na base de realidades concretas. Decerto, é o ponto de vista de Hegel”
(SARTRE, 1943, p. 47); a segunda de Heidegger: essa postura “irá colocar (...) acento sobre forças
recíprocas de expulsão que ser e não-ser exerceriam um sobre o outro, o real sendo, de certo modo,
a tensão resultante dessas forças antagônicas. É para essa nova orientação que se orienta
Heidegger”. SARTRE, 1943, p. 52.
23
SARTRE, 1943, p. 49.
17
ontologicamente a relação entre os dois pela passagem de um a outro, Sartre afirma
que “é preciso recordar aqui, contra Hegel, que o ser é e o nada não é”.
24
A posição defendida por Sartre até aqui é, no mínimo, contraditória, afinal a
interrogação indica que se há não, nada, nunca no mundo é porque o ser se
pronuncia negativamente; assim sendo, como manter essa posição e, ao mesmo
tempo, filiar-se à máxima de Parmênides, da absoluta positividade do ser? Se, pela
interrogação (que é interrogação do ser) há “para o investigador (...) a possibilidade
permanente e objetiva de uma resposta negativa”, e o ser é absolutamente positivo,
de onde poderia vir o nada?
25
Isso significa que o mundo fenomênico é apreensão
objetiva do ser; o não-ser, por sua vez, também faz parte do concreto. Como
entender essa tese, que une a absoluta positividade do ser e a presença do nada no
mundo?
Se o nada e o ser forem tematizados unicamente a partir da reflexão, chega-
se a dois absolutos que não se tocam, pois, ainda que se negue ao ser toda
determinação, nalguma medida ele é; o nada absoluto, por sua vez, não é. Pela
negação é possível retirar do ser toda e qualquer determinação, mas isso não
permite retirar-lhe seu ser; o nada não é e, por isso, não pode haver passagem do
ser ao nada e vice-versa, a menos que já se coloque na definição mesma de ser o
germe do nada.
26
O nada apenas pode vir ao ser pela negação; o nada requer um
ser-negado e, conseqüentemente, a anterioridade do ser, ou seja, “Aquilo que
negamos hoje, nós que estamos instalados no ser, é que houvesse ser antes desse
ser”.
27
A abstração é superada, segundo Sartre, quando se considera o nada como
uma ausência encontrada no mundo advinda da realidade humana.
28
Sem o ser, o
nada não pode nem mesmo ser concebido ou, se o é, não passa de uma simples
indeterminação, muito própria de cosmogonias ingênuas. O nada é sempre nada de
algo, nada disso em particular. Não há o nada que possa ser contraposto ao ser: “o
uso que fazemos da noção de nada em sua forma familiar pressupõe sempre uma
especificação prévia do ser”.
29
O nada tem uma existência emprestada, é do ser que
24
SARTRE, 1943, p. 51.
25
SARTRE, 1943, p. 39.
26
“Assim, é o próprio Hegel quem introduz no ser essa negação que logo reencontrará ao passá-lo
ao não-ser”. SARTRE, 1943, p. 50.
27
SARTRE, 1943, p. 51.
28
SARTRE, 1943, p. 57.
29
SARTRE, 1943, p. 51.
18
ele retira sua eficácia e apenas no mundo ele pode aparecer. O nada não é; não há
nada, exceto na superfície do ser, roçando o ser.
30
De um lado, tal qual o ser do fenômeno, o nada está presente no mundo e,
por isso, não pode ser desconsiderado; de outro, o ser é plena positividade e não
poderia produzir o nada. O nada, que não tem ser para nadificar, não pode ser
causa de si. Então, de onde vem o nada?
31
Há nada no mundo, pois, de outra forma,
nem mesmo haveria mundo, já que essa é uma de suas estruturas fundamentais;
mas não há como mostrar a relação do nada com o ser sem cair em aporia. Para
Sartre, entretanto, esses problemas emergem porque o nada é considerado um
absoluto de alguma forma dotado de ser. Coloca-se ser e nada em pé de igualdade
e, dialeticamente, chega-se ao devir; também por isso, pensa-se o nada como
abismo onde o ser está instalado. Mas nada não é ausência de ser: é não-ser
(negação do ser). O nada, enquanto nadificação, não remete a um nada absoluto
frente ao ser, mas é, antes, nada desse ser em particular, localizado. A raiz do
problema, segundo Sartre, está em conceder uma parcela, ainda que mínima, de
positividade ao nada. Há mundo porque o nada permeia o ser, mas esse nada não
é: é tendo sido. O nada é trazido para o seio do ser e é do âmago do ser que ele
nadifica; assim, é necessário que alguma região do ser tenha a capacidade de
nadificar o nada em seu ser, é preciso que haja um ser que seja, em seu ser
mesmo, nada.
A interrogação do ser é mais uma vez o ponto de partida para averiguar que
estranha região do ser pode nadificar o nada em seu ser. Pelo ato de interrogar, por
uma espécie de recuo nadificador, o interrogador se distancia do interrogado e se
desgarra do ser; isto “significa que, por um duplo movimento de nadificação, o
interrogador nadifica com relação a si o interrogado, colocando-o em estado neutro,
entre ser e não-ser – e ele próprio se nadifica em relação ao interrogado,
descolando-se do ser para poder extrair de si a possibilidade de um não-ser”.
32
Então, a interrogação introduz uma certa dose de negatividade no mundo na medida
30
A relação fenomenológica do nada no ser, descrita por Sartre, exige afirmar a presença do nada ao
mesmo tempo em que o nada não é nem pode modificar o ser; assim, o nada figura sobre o ser e
não há não-ser senão na superfície do ser” (SARTRE, 1943, p. 52). Para descrever esse caráter
contraditório do nada, que não é, mas está presente no mundo, Sartre se serve de chatoyer (irisar). O
objetivo é a reafirmação de que o nada não é, mas está presente no mundo, que “vemos o nada irisar
o mundo, cintilar sobre as coisas”. SARTRE, 1943, p. 60.
31
SARTRE, 1943, pp. 58 ss.
32
SARTRE, 1943, p. 59-60.
19
em que o homem (liberdade), ao desgarrar-se do ser (recuo), contamina-se de não-
ser.
As negatividades não são, nessa medida, nem produzidas pela consciência
nem interiores a ela, mas são transcendentes. Ainda assim, apenas podem aparecer
sob uma espera humana, já que de outro modo não apresentariam a carga de
negatividade que apenas poderia originar num ato humano. A negação, que
organiza e reparte grandes massas de ser em coisas, é pressuposto para que haja
mundo, e o conseqüente recuo nadificador permite que o mundo venha ao ser.
“Assim, a aparição do homem no meio do ser que ‘o investe’ faz com que descubra
um mundo. Mas o momento primordial dessa aparição é a negação”.
33
Diferentemente de Heidegger, para Sartre é pela negação que é possível entender
como o nada pode figurar no mundo sem ser devido exclusivamente ao homem (já
que o não-ser é transfenomenal) nem ao ser (que é absolutamente positivo).
O negativo está presente no desenrolar do pensamento de Sartre desde o
final de O Imaginário. Nesse período, sob influência da filosofia de Heidegger, Sartre
escreve pela primeira vez sobre o tema; obviamente a noção de negação é
preliminar, afinal trata-se de resolver um problema menor, qual seja, o estatuto do
imaginário. A consciência de um objeto em imagem sempre coloca seu objeto
nalgum nível negativo, mas essencialmente, coloca-o como nada (irreal). Para isso,
é preciso alargar o conceito de consciência, de vazio, nada (rien), para nadificante,
ou seja, para imaginar a consciência relega o objeto imaginado a nada (néant). Se
intencionar um objeto em imagem é negá-lo, essa negação não está restrita ao
âmbito do objeto, mas se refere à totalidade do mundo; vale lembrar que negar um
objeto é colocá-lo à margem do real. Isso requer, por sua vez, que também o mundo
seja negado, ou, colocado como fundo; é sobre um fundo de mundo que o objeto
pode ser imaginado.
34
Por isso, para que a consciência possa imaginar ela necessita
estar em situação no mundo e, assim, colocar o objeto imaginado com um
coeficiente de irrealidade.
Sartre, ao identificar negação (que é o ser da consciência) com a produção do
mundo (fenômenos), reafirma que é pela relação negativa da consciência ao ser que
o mundo acontece. Ora, a negação permite responder como o homem é absoluta
liberdade e, ao mesmo tempo, está arraigado no mundo sem que isso seja uma
33
SARTRE, 1943, p. 60.
34
Nota-se aqui, também, a influência da Gestalt-theorie no desenrolar do pensamento sartriano.
20
contradição. A liberdade, de A transcendência do Ego, funda-se na intencionalidade,
pela qual a consciência é, em seu ser, remissão ao transcendente; isso quer dizer
que, caso não se dirija àquilo que ela não é, a consciência não passa de nada
absoluto. “O que se mostra evidente desde o início é que a realidade humana não
pode se desgarrar do mundo”.
35
O enraizamento do homem no ser é condição para
que o mundo aconteça ao em-si e, uma vez que essa condição só é possível pelo
distanciamento, pela negação, não há contradição alguma em afirmar que a
condição humana é liberdade em situação.
A liberdade (negação), que fundamenta o ser, faz com que haja mundo; e
sendo nada, a consciência, por essa mesma negação, é livre direcionar-se ao ser
sem nenhuma possibilidade de coincidência: está aí o mundo, resultante não de
uma ruptura reflexiva, mas entendido como movimento negativo da consciência na
sua relação com o ser. Estar em situação no mundo, tal qual a solução do problema
da imagem do final de O Imaginário, é ser dupla negação: negação do mundo
enquanto totalidade e do objeto sobre o fundo de mundo, e negação dessa negação,
ou seja, negação de si. Importa frisar que, embora dupla, a negação se dá num
único e mesmo ato. Trata-se, portanto, de duas contingências que encerram uma
necessidade: a liberdade é afirmada porque é contingente que o homem seja;
também é contingente a posição que ele ocupa no mundo. Mas é necessário que o
homem, se é, que seja no mundo.
Por entender o homem como liberdade em situação, Sartre mantém a
liberdade da consciência: ela é relação negativa com o ser; o ser é aquilo que a
consciência não é. É pela negação do ser que o mundo é constituído: a negação
aparece aqui como produtora.
36
O homem é absolutamente livre, e essa liberdade se
efetiva na negação do ser; a contrapartida dessa negação é o mundo, ou a ordem
dos fenômenos. A unidade é o mundo, o concreto, do qual tanto fenômeno quanto
consciência não são mais que momentos; tomá-los em separado é partir
deliberadamente do abstrato, o que fatalmente levará ao idealismo ou ao realismo.
Assim sendo, é a negação que permite a experiência do objeto no mesmo ato
pelo qual o objeto é constituído. Trata-se de constituição do fenômeno e constituição
da consciência; não são duas operações ou duas negações. A consciência é
negação e o mundo vem ao ser por essa mesma negação. Nessa medida, o mundo
35
SARTRE, 1943, p. 60.
36
SARTRE, 1947, pp. 302 ss.
21
não pode ser entendido como resultado; a ruptura insuperável entre consciência e
mundo ocorre devido à reflexão sobre o mundo. O fenômeno é criado, e essa
criação se dá pela negação do ser como aquilo que a consciência não é; essa
negação, por sua vez, remonta ao ser da consciência, que é nadificação; a ruptura
no ser da consciência (e a conseqüente negação do ser) faz com que haja mundo. A
consciência é liberdade em situação, negação do ser e negação de si, constituindo
assim livremente o mundo.
Definir o homem como negação é garantir, ontologicamente, sua absoluta
liberdade: por ela o homem constitui livremente a ordem dos fenômenos.
37
Como
faces de uma mesma moeda, a consciência é negação do ser, e o objeto é
fenômeno resultante dessa negação. Pela negação o homem está no mundo e
constitui o fenômeno; por esse mesmo ato, a consciência permanece livre, já que
está impossibilitada de, em seu ser, prender-se a qualquer objeto que se lhe
apresente. Mas será apenas isso suficiente para dirimir todas as questões? Parece
que no âmbito fenomênico sim: o ser continua absolutamente positivo uma vez que
o nada encontrado no mundo é devido à consciência; o nada não é, apenas figura
sobre o ser como resultado da impossibilidade que a consciência apresenta, em seu
ser, de coincidir consigo.
Por isso a origem do nada exige, antes de tudo, a demonstração de seu
caráter pré-judicativo (não se deve a um juízo, mas está objetivamente no mundo).
Ao buscar fundamentar o nada puro, Sartre mostra que ele se encontra num campo
originário em relação à negação e à interrogação. Dessa feita, ele pode ser
encontrado na angústia e, fundamentalmente, na intra-estrutura da consciência
como ruptura em seu ser (náusea).
38
A consciência é negação e, por ser negação de
si, ela semeia o nada no mundo. E sua relação negativa com o ser é do tipo interna,
ou seja, não se coloca o para-si e depois o nega: a negação originária, por um
mesmo ato, faz surgir o para-si e qualifica o em-si; assim, tem-se como resultado os
correlatos consciência e mundo, ou, simplesmente, o concreto.
A consciência, por sua vez, determina-se a partir da negação que ela mesma
é, afinal, ela é negação do ser e negação de si. Ser para-si é ser negação e negação
37
Assim, o homem é tão livre quanto Deus: “Se ele (Descartes) concebeu a liberdade divina em tudo
comparável a sua própria liberdade, é então de sua própria liberdade, tal qual ele a tinha concebido
sem os entraves do catolicismo e do dogmatismo, que ele fala quando descreve a liberdade de Deus.
Há aí um fenômeno evidente de sublimação e transposição”. SARTRE, 1947, p. 305.
38
“Mas eu, ainda agora, tive a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo”. SARTRE, 1996a, p.
191.
22
da negação, o que acarreta a impossibilidade de que a consciência seja concebida
como uma substância; do outro lado está o fenômeno, que também se constitui pela
negação promovida pela consciência (negação do ser). Assim sendo, pode-se
admitir que a fenomenologia de Sartre, com suas peculiaridades, escapa aos
problemas que ele formulou no período de A transcendência do Ego; mais ainda,
pode-se concluir que, com base na negação, foi possível resolver as contradições
iniciais de seu pensamento.
Contudo, é importante ressaltar que a análise das estruturas imediatas do
para-si mostra que ser-para-si é, primeiramente, ser presença a si [consciência (de)
si]; essa presença, no entanto, exige remissão ao em-si, ou seja, a facticidade é uma
estrutura que também se apresenta imediatamente ao para-si (sendo nada de ser, o
para-si é direcionar-se ao em-si). Essa dupla negação que o para-si é, presença ao
ser e a si sem qualquer possibilidade de coincidência, produz como ser normativo o
projeto de ser-em-si-para-si; esse projeto, por sua vez, norteia o ser dos possíveis,
ou seja, um retorno do para-si, após negar o em-si, sobre si mesmo. Essas
estruturas imediatas do para-si compõem o circuito da ipseidade e, por esse circuito
o para-si, por ser dupla negação, faz com que o mundo aconteça ao em-si. A
ipseidade é, pois, um grau maior de nadificação do para-si que é presença a si
(reflexo-refletidor) como ausente; “o Para-si é si mesmo lá longe, fora de alcance,
nas lonjuras das suas possibilidades”.
39
Por isso, o mundo é a totalidade de ser na
medida em que essa é atravessada pelo circuito da ipseidade.
Partindo da noção de consciência como falta (nada), Sartre chega aos
possíveis do para-si, que podem ser concebidos porque o para-si é falta de si
mesmo como em-si; o para-si faltante é o possível. Além disso, o possível não é
uma simples realidade subjetiva, mas antes, propriedade de realidades já existentes
que de alguma forma deve nadificar o em-si em fenômeno. O possível é a presença
a si que não é, é falta levada pelo para-si à transcendência (relação existente,
faltante, faltado). A possibilidade é uma falta que não pode ser suprimida porque, no
horizonte, almeja coincidir consigo mesma; assim, as realizações cotidianas, que
aparentemente realizariam o possível, tornam-se fonte de outros possíveis, já que
essa necessidade está no âmago do para-si como falta de si.
40
39
SARTRE, 1943, p. 148.
40
SARTRE, 1943, pp. 147 ss.
23
A ipseidade designa a livre necessidade que tem o para-si de ser longe do
que é, de ser falta de seu ser. O primeiro movimento reflexivo é aquele pelo qual a
consciência existe como presença a si; o segundo nível dessa presença é uma
presença ausente, aquilo que falta ao para-si. Dessa forma se dá a superação da
imanência em que estava o para-si na medida em que, com a ipseidade, que é a
busca de coincidência consigo mesmo, o para-si se lança rumo a seus possíveis.
41
É
no circuito da ipseidade que se dá o mundo; mesmo assim, não é possível
considerar essa relação como idealista: por não coincidir com seu ser nem com o
em-si, o para-si é falta de ser; ao levar essa falta ao ser-no-mundo, o para-si faz com
que haja uma ordem de fenômenos e, com isso, o mundo ocorre também ao em-si.
É assim que, buscando superar o idealismo husserliano e, após formular um
novo meio de sair da instantaneidade na qual o para-si se encontrava, Sartre se
depara mais uma vez com o problema do solipsismo. Até agora o autor pretende ter
superado tanto o idealismo quanto o realismo, visto que se pode concluir, a partir da
estrutura de ser do para-si, que o mundo não se reduz à subjetividade; da mesma
forma, são mantidas a presença e absoluta positividade do em-si.
42
Sartre não
apenas mostra que ser-para-si é ser relação com o em-si como, também, que o
para-si, por sua estrutura de ser, só pode ter sua origem no em-si. O para-si, não
encontrando em seu ser seu próprio fundamento, busca fundamentar-se no em-si;
essa estrutura remete aos possíveis e, assim, explica-se a constituição do mundo
pela relação negativa do para-si ao em-si. O para-si é o ser que surge do em-si e
carrega, em seu ser, a contingência do em-si como facticidade.
Ao partir da crítica da idéia de nada Sartre insere sua filosofia no âmbito
humano, onde ser e nada estão presentes. Pensar a totalidade seria pensar um ser
total que está para além do mundo fenomênico, como simples hipótese. Nesse
sentido, não é possível produzir uma filosofia que almeje explicar a totalidade
enquanto se faz ontologia, afinal, uma filosofia que se pretenda capaz dar conta do
ser total deverá ser metafísica. Por isso, embora haja a indicação de dois seres
resultantes da cisão de um ser-em-geral, não é possível encontrar na ontologia de
41
É dessa forma que Sartre, a partir da consciência diaspórica, explica a temporalidade: pelo
movimento de sair de si, a consciência se encontra no tempo. SARTRE, 1943, pp. 150 ss.
42
Para Sartre, o círculo verdadeiramente ainda não está completo. As estruturas imediatas do para-si
partem da presença a si e ultrapassam a instantaneidade do cogito, ou seja, o transcender do homem
rumo a seus possíveis apenas é concebível se ocorrer no transcender temporal. “É ‘no tempo’ que o
Para-si é seus próprios possíveis no modo de ‘não ser’; é no tempo que meus possíveis aparecem
nos limites do mundo que o tornam meu”. SARTRE, 1943, p. 149.
24
Sartre uma resposta cabal para a questão. Ainda assim, esses dois seres (para-si e
em-si) em ininterrupta relação, se apresentam como condição de possibilidade para
que haja mundo. Também por isso o Ser se mostra cindido entre em-si e para-si.
43
Tais quais os fenômenos consciência e mundo se dão, e apenas se dão em relação,
o mesmo acontece com o ser: aparece remetendo do para-si ao em-si e do em-si ao
para-si.
Devido ao hiato no ser, a ontologia sartriana é do em-si e do para-si, sendo
ambos de mesma natureza e existentes em relação; o nada, por sua vez, permeia o
ser e permite que haja fenômeno e, ao mesmo tempo, impede que a consciência
coincida consigo. É por essa impossibilidade de coincidência que se pode falar em
mundo organizado, ou, o mundo só é possível porque, ontologicamente, há o nada
indeterminado no seio do ser. Mas, na mesma medida que esse nada é pressuposto
para que haja mundo, há de se ressaltar que a falta no mundo não pode ser
imputada ao ser, já que a ele não falta coisa alguma. A compreensão de falta se dá
para a realidade humana, é falta que o homem sente de si mesmo, que o para-si
tem de si e sua impossibilidade de produzir o ser em-si-para-si (circuito da
ipseidade). É apenas nesse sentido que Sartre pode afirmar que o nada é interior ao
ser, afinal, o nada aparece na indissolubilidade da relação entre realidade humana e
mundo.
Esse é o fundamento da ontologia fenomenológica de Sartre, pois, uma vez
que toma como ponto de partida a crítica do nada, mantém válida a subjetividade
sem partir da consciência, respeitando que a consciência surge da pré-reflexividade.
Sartre não isola a consciência de sua origem e, com isso, não resolve a relação ser
e nada à revelia do mundo, desconsiderando o dado. A proximidade com a filosofia
de Bergson é evidente, permitindo retomar aqui, sem nenhuma adaptação, a
conclusão de Bento Prado Júnior: “A experiência filosófica passa a ter seu domínio
próprio naquele ‘haver algo’ anterior à instauração da cisão entre sujeito e objeto”;
44
no caso sartriano, diríamos na pré-reflexividade do cogito. Que significa dizer que o
nada é interior ao ser? A crítica que Sartre faz ao nada é sem dúvida radical, pois
mostra que o nada não poderia ser nem anterior nem contemporâneo, mas deve
nascer do coração mesmo do ser.
45
Se as condutas humanas podem oferecer
43
SARTRE, 1943, p. 716.
44
PRADO JÚNIOR, 1989, p. 205.
45
SARTRE, 1943, p. 58-59.
25
respostas negativas, isso não se deve ao juízo, mas antes, ao nada (à negação). E
esse nada, não podendo tirar de si forças para vir ao ser, nasce da negação
primordial do ser. Assim, se a consciência encontra o negativo no mundo, é porque
nega a negação primeira do para-si ao em-si (nadifica o nada em seu ser). O para-si
é o ser responsável pelo nada, é o ser que, ao buscar fundamentação, nega-se
enquanto em-si, mudando-se em para-si; o homem, por sua vez, nega o nada em
seu ser e faz com que haja nada no mundo e, conseqüentemente, mundo. Por isso,
embora a falta seja encontrada no mundo (sendo o fenômeno sustentado pelo ser),
ela não pode ser imputada ao ser, ao qual nada falta. É o homem que, sendo falta
para-si, leva a falta ao mundo; em vista de seus possíveis, o homem leva ao mundo
o faltante que se realizaria num faltado que é sua possibilidade.
A crítica do nada tem como premissa que o ser é, o nada não é: assim, nega-
se radicalmente qualquer positividade ao nada e qualquer negatividade ao ser. Está
aqui um problema recorrente em O Ser e o Nada, afinal, afirmar a anterioridade e
positividade do ser não é ir além do concreto (metafísica)? Mais do que isso, Sartre
não nega simplesmente que o nada seja; indica que o ser comporta duas regiões
que se relacionam e que, se há o nada, originariamente esse precisa vir do ser.
Porém, é notável que a filosofia, ao menos enquanto fenomenológica, não pode
partir de modelos totalizantes. É essa a razão pela qual Sartre se nega a optar seja
pela unidade ou pela dualidade do ser; qualquer opção desse tipo se refere àquilo
que vem antes do que é, e isso ele define como metafísica.
46
O filósofo pensa o ser
como anterior ao nada ao mesmo tempo em que esse segundo é desprovido de ser,
não é, e vem ao mundo pela realidade humana; enfim, Sartre produz um livro de
filosofia fundamentado na absoluta negatividade do negativo.
47
Mesmo não sendo, o
nada é condição de individuação, tanto da consciência em relação ao ser, quanto do
mundo nos seus vários istos. Sem o nada não haveria mundo e, ainda que o ser
continuasse sendo, estaria fechado em si e, assim, estéril e opaco.
48
A tese da positividade absoluta do ser não suprime o nada, mas traz seu
efeito para o nível fenomênico, pois se para Bergson “ao ser expulso do Ser, o Nada
passava a ser a estrutura da práxis e o modo humano de existência”, Sartre segue o
46
SARTRE, 1943, p. 718.
47
BEAUVOIR, 1984, pp. 188 e 434/435.
48
“Assim o mundo, por natureza, é meu na medida em que é correlativo em-si do nada, isto é,
obstáculo necessário para além do qual eu me encontro com isso que sou sob a forma de ‘ter que
ser’”. SARTRE, 1943, p. 149.
26
mesmo caminho.
49
O mundo é individuação promovida pela ação do homem que, ao
nadificar o nada em seu ser, leva-o ao ser e promove uma ordem de fenômenos; a
ipseidade é expressão disso. Mas o homem existe no modo de ser o que não é e
não ser o que é, tendo seu ser definido com relação àquilo que ele nega ser, ou
seja, o em-si. Por tirar a negação do âmbito do ser, Sartre pode determinar a
estrutura da subjetividade humana e sua relação com o ser.
A relação entre para-si e em-si não é de simples conhecimento, mas um
vivido pelo qual o ser se mostra. Ela está na experiência, já que a consciência
mantém com o ser uma relação original (pré-reflexiva) e, ainda assim, sem o
modificar. Ao mesmo tempo em que a consciência é espontânea (promove a
revelação do ser), ontologicamente perdura a impossibilidade da negação total, da
contraposição do nada ao ser. Sartre afirma que para que o mundo exista é preciso
que haja determinação; mas “toda negação que não pertença ao ser que tem-de-ser
suas próprias determinações é negação ideal”.
50
Com isso, o ser está presente no
mundo e a negação do ser produz fenômenos sem que, para isso, o ser seja
modificado.
Nesse sentido, Sartre critica posturas que afirmam o nada como anterior ou
contemporâneo do ser; defende então sua posterioridade, desde que essa negação
não recaia sobre a totalidade do ser. A negação que permite que haja mundo tem
por fundamento um nada puro, é verdade, mas um nada que surge no e pelo ser
como sua tentativa de fundamentação, pois, por isso se pode falar em ser-para-si. E
se há negação, é uma negação localizada; o para-si nega em seu ser aquilo que
poderia fazê-lo coincidir consigo, e não a totalidade de um Ser que é plena
positividade. O para-si não pode coincidir consigo na mesma medida em que não
pode coincidir com o ser; assim, o homem existe em duplo ek-stase. Do mesmo
modo, não há negação do ser em geral, mas negação da negação primordial pela
qual o para-si se estabelece.
Trata-se de uma filosofia na qual a subjetividade, sendo pura negatividade,
garante ao ser plena positividade; uma filosofia que mantém o nada como horizonte
no qual o mundo aparece; uma filosofia da facticidade humana, pela qual o
fenômeno e a consciência não passam de secreção do nada que, sem tocar a
totalidade do ser, permite que haja mundo. Sartre, a exemplo de Bergson, não
49
PRADO JÚNIOR, 1989, p. 215.
50
SARTRE, 1943, p. 234.
27
produz uma filosofia que almeja a totalidade, mas organiza todas as experiências a
partir da condição humana. Segundo ele, a dicotomia entre sujeito e objeto (ou
consciência e mundo) não existe, mas aparece quando se parte apenas de um dos
termos da relação. É da relação que Sartre produz sua ontologia, ou seja, não
havendo possibilidade de partir do início, parte do dado e descreve por hipótese
aquilo que o antecede pela via negativa. Em linhas gerais, é assim que Sartre
formula sua ontologia fenomenológica, expressão máxima de seu ideal de
subjetividade.
A teoria ontológica da liberdade irrestrita calcada na autonomia da
consciência, formulada em O Ser e o Nada, parece não exigir justificativa; basta
lembrar que ela é fenomenológica e, como tal, se pauta pela análise objetiva de
condutas humanas e fenômenos. É verdade que, em muitos momentos, Sartre vai
além da simples descrição de fenômenos, mas seria forçoso concluir que a
hermenêutica promovida pelo autor em sua ontologia é uma metafísica no sentido
clássico. A primeira análise dos fenômenos mostra que o ser se apresenta
remetendo do para-si ao em-si (e vice-versa), e que a totalidade de fenômenos
denominada mundo pode ser deduzida dessas duas formas de ser. Pela análise das
estruturas do para-si Sartre postula um ser normativo, o em-si-para-si, razão do
movimento e objetivo existencial último de todo para-si. É essa estrutura ontológica
que explica todo o existente.
Felizmente, não se trata de dizer que Sartre resolve todos os problemas da
filosofia; mas é fato que Sartre constrói uma teoria sistêmica que, segundo Marilena
Chauí, “Altaneira como uma fortaleza medieval, as catapultas assestadas contra ela
disparariam flechas que se perderiam antes de poder penetrar em qualquer de suas
ameias. E porque invulnerável, é inatingível”.
51
Na verdade, mesmo não sendo
metafísica, essa fundamentação ontológica beira o terreno metafísico; mais ainda,
faz uma escolha: a absoluta negatividade do nada. E, por isso, é sim vulnerável e
atingível, como bem o mostra a própria Marilena. A manutenção da subjetividade
purificada exige que Sartre retome o problema milenar da relação entre ser e nada
e, uma vez nesse terreno, não há fortaleza que resista.
É nesse sentido que se encontra a crítica de Merleau-Ponty às filosofias do
negativo; O visível e o invisível, tal como uma trombeta divina, faz ruir todas as
51
CHAUÍ, 1967, p. 186.
28
muralhas da Jericó do período de O Ser e o Nada. Por pensar o negativo em sua
radicalidade, Sartre descobre “no centro das coisas que os opostos são a tal ponto
exclusivos que um sem o outro nada mais é que abstração, que a força do ser se
apóia na fraqueza do nada, cúmplice seu, que a obscuridade do Em-si está para a
clareza do Para-si em geral, se não mesmo para a da ‘minha consciência’”.
52
Por
radicalizar a negatividade, Sartre mostra que o nada não pode ser concebido nem
mesmo enquanto nada; é apenas uma forma bastarda incorporada ao ser. Assim, de
acordo com Merleau-Ponty, o que Sartre faz em O Ser e o Nada é apenas a
repetição do princípio de não contradição, a constante afirmação do ser e a negação
do nada. Sartre, ao partir do cogito absolutamente purificado, afirma o ser positivo.
Isso requer que ser e nada sejam absolutamente distintos; mas a origem do nada só
poderia estar no ser, o que permite a dependência do nada em relação ao ser.
Sendo assim, todas as dificuldades que se lhe pudessem opor são efêmeras; a
fortaleza tem, no princípio, a filosofia do negativo que identifica os opostos ser e
nada. Dessa feita, é a partir do si (ek-stase) que se produz o há, o que gera angústia
e a reafirmação da liberdade. O pensamento do negativo impede que haja
passagem do ser ao nada e do nada ao ser porque tem como axioma básico sua
distinção radical e absoluta; e, no entanto, Sartre mostra que ainda que
inconfundíveis, esses dois universos do ser são interdependentes. Ele não promove
a passagem porque está preso à sua escolha inicial segundo a qual o ser é e o nada
não é.
Merleau-Ponty mostra o engano de se acreditar num sistema insuperável ou
que, ao menos, não comporte brechas. Mas não vamos nos ater a esse problema
específico; passemos logo à segunda dificuldade apresentada pelo filósofo, afinal
parece ser mais interessante perguntar sobre a necessidade de uma práxis
existencial no interior do pensamento de Sartre. Isso porque é justamente aí que se
encontra um forte argumento contra as críticas a ele dirigidas por Merleau-Ponty. Na
primeira fase do pensamento sartriano o ser-em-si (ser dos fenômenos) está
fechado em si mesmo e, por isso, não comporta relações; a consciência (fenômeno
de ser), por sua vez, é o eterno movimento em direção a si e ao transcendente. É
por ela que, de forma absolutamente livre, o ser contingente é trazido ao mundo,
recebe seu caráter de realidade. Nesse ato, a consciência é consciência de si
52
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 70.
29
mesma e do transcendente; ser consciência é ser negação de si e do transcendente
sem que essa negação possa ser levada a termo. Mas, essa é a questão que
interessa, a consciência é também movimento em direção a outras consciências.
Ter consciência de um objeto é dirigir-se para ele e, no mesmo ato, negá-lo
(negar toda e qualquer possibilidade de coincidência). É esse ato negativo que faz
com que o objeto esteja aí e, ainda assim, seja em-si. Ocorre que a consciência do
fenômeno não é o fenômeno: a consciência é enquanto reflete (e constitui) o
fenômeno e não é enquanto, em seu ser, é negação de si mesma. Noutros termos, a
manutenção da liberdade em situação, projeto que norteia O Ser e o Nada, acaba
por constituir uma subjetividade não substancial, vazia, nada: “Esse duplo
relacionamento, que a filosofia do Ser e do Nada exprime tão bem, nela permanece
incompreensível porque ainda é uma consciência – um ser que é todo aparecer – a
encarregada de transmiti-lo”.
53
Sartre mostra que é pela realidade humana que o
nada é trazido ao ser e, por conseqüência da negação, há mundo organizado. E
porque, em se tratando do para-si, a identificação com qualquer coisa é impossível,
não há substancialização nem fixidez; ser homem (considerando que seu núcleo
ontológico da consciência é ser-para-si) é ser liberdade absoluta. A liberdade é a
textura mais íntima e fundamental do homem, revelada na angústia.
Existencialmente, é pela angústia que o homem se capta como absolutamente
responsável por todo o mundo e, ao mesmo tempo, como completamente
injustificável. Não há espaço para causalidade nem determinismo, afinal, o homem é
em seu ser liberdade; noutros termos, o homem contingente (assume a contingência
do ser) é o criador de todo o mundo e, assim, é por ele responsável.
Percebe-se que a decorrência imediata de tomar o cogito purificado como
ponto de partida para a pesquisa filosófica é a exigência de remissão ao nada;
melhor, ao fazê-lo, opta-se por uma essência humana niilista e, como não se trata
de saber do sexo dos anjos, é preciso a contrapartida: de alguma forma, o para-si
deve ser. Por isso, o homem é lançado num limbo, entre o ser e o nada; de alguma
forma é, embora não seja. É dessa compreensão contraditória de homem, desse
jogo de duas vias entre o ser e o nada, que Sartre explica a condição humana, as
estruturas do mundo e as relações interpessoais. Isso exige que o homem, sendo
liberdade, busque dela escapar; para superar o ser livre (e a conseqüente
53
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 100.
30
responsabilidade que isso exige) o homem se projeta como um objeto dentre os
demais (garçom, médico, alegre ou triste, etc.). Mas isso só é cabível por uma
atitude de má-fé, devido à impossibilidade de o homem efetivamente coincidir com
algum objeto: não é possível, para a condição humana, ser garçom, ainda que de
alguma forma tal pessoa exerça seu papel social como garçom.
54
Ontologicamente, o homem busca ser em-si-para-si, o que é de antemão
impossível e, como tal, irrealizável. É neste sentido que a ontologia de Sartre faz o
percurso do céu ao inferno: uma vez estabelecida a estrutura fundamental do
homem, pode-se afirmar que ela é cabível a todos os homens. Para chegar ao
inferno basta falar em outras consciências, ou outros homens: não é por acaso que
o inferno é o outro, mesmo frente aos protestos de incompreensão proferidos por
Sartre. Se a ontologia fenomenológica resolve todas as dificuldades que Sartre se
propôs, se por ela é possível explicar a estrutura de tudo que pode vir à existência, é
porque até esse momento a consciência foi vista como absoluta; é, também, porque
até agora foi tratada apenas a relação da consciência com o mundo. Não abrir mão
da absoluta autonomia da consciência nem da presença soberana do mundo vai
levar, sem sombra de dúvida, ao solipsismo.
55
Mostrar que o Eu é um habitante do mundo e, por isso, é acessível a todas as
consciências, é insatisfatório; Sartre mesmo o reconhece. Mostrar que a consciência
é diaspórica e, portanto, não está aprisionada no instante, resolve o problema em
parte; mas o resolve no que se refere a uma consciência que participa com outras
de uma temporalidade comum, ou, do tempo do mundo. Mas isso certamente não
responde à questão satisfatoriamente; a terceira parte de O Ser e o Nada é
dedicada a uma das estruturas do para-si até então não explorada, qual seja, o ser-
para-outro.
56
É ali que Sartre vai se deparar com a complicada questão da existência
de outros homens ou de outras consciências. E a prerrogativa da absoluta liberdade
da consciência vai ser um limite para constituir a dimensão social que, até o final de
O Ser e o Nada, não foi seriamente pensada.
Não seria exagero afirmar que toda a ontologia de Sartre tem por origem a
consciência purificada; se o mundo em sua complexidade é deduzido das estruturas
do para-si, nada mais natural que também o outro encontre aí sua evidência. É do
54
SARTRE, 1943, p. 85.
55
Além disso, é preciso destacar o evidente problema moral daí decorrente, suscitado por Beauvoir.
BEAUVOIR, 1984, pp. 544-545.
56
SARTRE, 1943, pp. 275 ss.
31
âmbito pré-reflexivo que Sartre vai mostrar a impossibilidade do solipsismo. O
acontecimento absoluto (ou surgimento da consciência) é, num mesmo ato, o
surgimento de uma estrutura do para-si: seu ser-para-outro.
57
A inquestionável
existência de outras consciências também é tirada da evidência do cogito que é,
imediatamente, presença a si, presença ao mundo e presença ao outro. Colocar em
questão ou duvidar que haja outras consciências (conforme seria o modelo
cartesiano) se mostra, pelas exigências da estrutura do ser-para-si, impossível.
No plano existencial, a presença do outro se dá pelo olhar: o outro é aquele
que me vê.
58
Esse olhar, contudo, faz com que eu me sinta prisioneiro, solidificado; o
olhar do outro traz para mim a certeza de que sou, a seus olhos, em-si. A liberdade,
antes infinita, se encontra ameaçada ante o olhar estrangeiro; minhas
possibilidades, antes ilimitadas, parecem congelar-se. E não adiantaria nada fechar
os olhos: eu sei que ele me vê. É pelo outro que o para-si descobre uma parcela até
então oculta de seu ser, que se reconhece como em-si, como natureza.
59
Existencialmente, ante o olhar do outro, o homem experimenta a vergonha e o
medo; sente-se ameaçado, coagido, restringido a não mais que um objeto. Essa
nefasta relação com o outro, advinda de uma consciência que até então estava
sozinha no mundo (ao menos no desenrolar de O Ser e o Nada) é, também, o
reconhecimento de outra liberdade; é esse o limite extremo ao qual pode levar a
teoria da liberdade absoluta fundada na filosofia da subjetividade purificada. Se o
homem não pode ser limitado pelo mundo, nem por sua situação, nem por sua
condição (ele é liberdade), e, nem mesmo por Deus, ele tem o outro como limite
insuperável. É pelo ser-para-outro que o para-si descobre uma parcela de seu ser
(liberdade) que está alienada, à mercê do outro. Ainda que isso não modifique a
essência da realidade humana, pois ser para-si é ser liberdade, o outro coloca essa
liberdade em risco; o outro coloca o que eu sou em perigo.
60
Por mais sério que pareça esse problema, até agora a descoberta do outro foi
vista apenas da perspectiva de uma consciência; é bom lembrar que ser para-si é
57
“Assim, a natureza de meu corpo me reenvia à existência do outro e a meu ser-para-outro”.
SARTRE, 1943, p. 271.
58
“É que, de fato, o outro não é somente aquele que eu vejo, mas aquele que me vê”. SARTRE,
1943, p. 283.
59
“Eu capto o olhar do outro no interior mesmo de meu ato, como solidificação e alienação de minhas
próprias possibilidades”. SARTRE, 1943, p. 321.
60
Aqui, a relação com a dialética do senhor e do escravo, de Hegel, é evidente: “Assim, ser visto me
constitui como um ser sem defesa por uma liberdade que não é minha liberdade. Nesse sentido
podemos nos considerar como ‘escravos’ enquanto aparecemos a outro”. SARTRE, 1943, p. 326.
32
ser negação. Ora, o reconhecimento da existência de outras consciências exige
também que elas me reconheçam. Se o ser liberdade do outro aparece como limite
de minha liberdade, a relação não se dá em uma via de mão única. Se ele me
aparece como aquele que pode acabar com meu ser livre, que pode tomar minha
liberdade, é também dessa maneira que eu apareço a ele. O mesmo risco que eu
sofro perante seu olhar ele sofre ante o meu; não há alternativa: “o conflito é o
sentido original do ser-para-outro”.
61
Trata-se de uma interação baseada na
possibilidade de transformar o outro em pedra; o problema é que todas as
consciências são Medusas. Essa mesma lógica vai determinar todas as relações
humanas (sadismo e masoquismo), inclusive o amor.
Numa palavra, a ontologia fenomenológica de Sartre parece tornar impossível
qualquer tipo de relação harmônica entre os homens. De fato, caso se entenda a
subjetividade de modo absolutamente puro cria-se um impasse: ou ela deverá
figurar sozinha (ser Deus), ou essa mesma liberdade deverá ser extensiva a todos
os homens e nenhuma relação humana poderá ser pensada fora do conflito.
62
Uma
vez que o para-si foi definido como absolutamente autônomo que, por ser negação,
constrói o real peça a peça, Sartre encerra todas as possibilidades humanas nessa
mesma negação. Ora, a relação entre os homens será, necessariamente, negativa.
Chega-se ao inferno da teoria da liberdade absoluta: aonde quer que se olhe,
apenas se vê almas penadas, e seu castigo é a presença do outro. É mais uma vez
Merleau-Ponty quem dá o golpe de misericórdia ao afirmar que Sartre formula uma
filosofia alheia ao social, coloca as consciências em absoluta oposição e
impossibilita qualquer mundo que possa ser considerado real.
63
Ontologicamente,
trata-se de uma filosofia da negatividade absoluta (daria o mesmo se fosse da
positividade) e, por isso, não há qualquer possibilidade de síntese; a obra de Sartre
vai ser, em seu conjunto, uma eterna relação lábil entre o ser e o nada. Não há
inferno que seja mais propriamente descrito; e é a isso que leva o ideal subjetivo de
Sartre. Porém, segundo nossa leitura, esse é apenas mais um impasse, certamente
muito sério, do final do que poderia ser chamado de primeiro período da obra de
Sartre; é esse impasse que vai levar Sartre a rever algumas posições e, assim, vai
marcar a passagem para a Crítica da Razão Dialética.
61
SARTRE, 1943, p. 431.
62
“A relação entre o ser e o nada reaparece integralmente na relação da consciência com o outro – o
nada permanece inalterado porque seu vazio é, por essência, inalterável”. CHAUÍ, 1967, p. 190.
63
MERLEAU-PONTY, 1955, p. 131 ss.
33
Não vem ao caso especular sobre os efeitos que tiveram as críticas de
Merleau-Ponty no que tange ao desenrolar da obra de Sartre;
64
o fato é que em
1952, com Saint Genet, percebe-se uma guinada em sua obra. Entra em cena o
poder das circunstâncias em que o homem se encontra (situação). Essa obra está
“no meio do caminho, entre O Ser e o Nada e Crítica da Razão Dialética e marca
uma etapa importante no pensamento de Sartre, na medida em que trabalha num
mesmo plano a psicanálise existencial e o método marxista”.
65
Pode-se supor que,
perante as dificuldades que Sartre encontra com respeito ao estabelecimento da
dimensão social na fase de O Ser e o Nada, ele se rende e abre mão de garantir a
liberdade; mas não é o que ocorre. É inegável que, para falar de história e de
política, foi necessário rever alguns aspectos da liberdade absoluta demonstrada
pela ontologia do negativo. Mas Sartre persegue seu objetivo do homem livre, e o
faz pela manutenção do ponto de partida: seu objetivo é, após admitir a primazia do
marxismo, buscar fundá-lo a partir do existencialismo, ou seja, da liberdade. A
passagem da liberdade absoluta para uma que seja histórica e passível de
comprometimento político não poderia se dar de forma tranqüila. Ela apenas faz
sentido se permitir a produção de uma teoria que reúna a filosofia já constituída da
subjetividade e o marxismo; e a ponte que permite superar esse abismo não é outra
que o homem livre em sociedade, ou melhor, a liberdade alienada. O problema,
segundo Sartre, se encontra na teoria marxista de seu tempo, afinal ela dissocia
teoria e prática; seu existencialismo, por não permitir que o homem seja dissolvido
na macroestrutura, segundo ele é o melhor caminho para recuperar a instância
pessoal negligenciada pelo materialismo dialético.
66
De outra parte, o método
marxista é apropriado quase em sua totalidade, visto que os fins individuais tomam
ares humanistas: é preciso superar as mazelas da sociedade burguesa; é preciso
enfrentar as condições injustas e opressoras do mundo.
67
64
Não foi possível encontrar informações sobre o efeito que O visível e o Invisível poderia ter
exercido no desenrolar da obra de Sartre; é de se supor que não houve nenhum, na medida em que
esse livro foi publicado em 1964, quando a Crítica da Razão Dialética já contava com quatro anos de
publicação.
65
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 243.
66
“O resultado é que ele [o marxismo contemporâneo] perdeu completamente o sentido do que é o
homem”. SARTRE, 2002, p. 71.
67
“A História, considerada nesse nível, oferece um sentido terrível e desesperador; com efeito,
parece que os homens estão unidos por essa negação inerte e demoníaca que lhes toma sua
substância (isto é, seu trabalho) para retorná-la contra todos sob a forma de inércia ativa e de
totalização por extermínio”. SARTRE, 2002, p. 235 ss.
34
Por essa época intensificam os artigos, conferências e entrevistas nos quais
Sartre fala sobre a opressão, a desigualdade e, como não poderia deixar de ser, a
liberdade. Ainda que não se encontre nenhuma obra exaustivamente estruturada,
como é o caso da Crítica, de 1943 até 1960 Sartre apresenta uma vasta bibliografia
na qual a idéia central é o socialismo livre como finalidade a ser alcançada pela
humanidade; também desse período são as críticas e as diferenças teóricas e
práticas com o socialismo real e seus intelectuais.
68
Essas discussões e o estudo da
obra de Marx vão culminar, em 1960, num denso volume que busca fundamentar a
objetividade do materialismo histórico na subjetividade de O Ser e o Nada.
Para constituir uma práxis existencialista Sartre, na Crítica, procura
fundamentar ontologicamente o materialismo histórico; sua ambição é “constituir os
fundamentos críticos do materialismo histórico marxista examinado as condições
formais de possibilidade e inteligibilidade da dialética da história e não o porvir
concreto da história real”.
69
Por isso, encontra-se aí o foco de interesse desse
trabalho, não só por seu cunho eminentemente filosófico, mas, e principalmente, por
Sartre levar até às últimas conseqüências o legado da subjetividade: é dela que
absolutamente tudo deve ser retirado. Compreender a contextura interna da dialética
marxista a partir da liberdade é o maior legado que o cogito absolutamente
purificado poderia deixar para a filosofia.
Por certo, a necessidade da práxis existencialista não será negligenciada;
nesse processo será de extrema importância compreender como a história, que na
perspectiva do existencialismo é produto da liberdade humana, pode se voltar contra
o homem e transformá-lo em um objeto que simplesmente participa do processo
histórico. Noutros termos, trata-se de mostrar como, histórica e socialmente, a
liberdade humana é alienada no processo social e cultural. Se ontologicamente o
homem é liberdade, o que pode ocorrer no processo de socialização e interação que
o faz determinado, que aliena sua liberdade e compromete sua existência autêntica?
Está claro que não se trata da postura da liberdade absoluta, do ser Deus do
período de O Ser e o Nada; entretanto, também não se trata de desistir da liberdade,
mas sim de entender o processo histórico no qual essa liberdade é alienada e o
homem se encontra restringido pela força das coisas.
68
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 243-337.
69
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 339.
35
Por isso não basta responder apenas se há ruptura ou continuidade no
conjunto da obra de Sartre, mas, a partir da noção de liberdade e da urgência de
uma práxis existencialista, mostrar de que maneira a filosofia sartriana da
subjetividade é afetada. E, ao que parece, a dificuldade maior não é a possível
ruptura entre as duas fases de pensamento, afinal, o marxismo será fundado
ontologicamente a partir do existencialismo; o nó górdio a ser desfeito está em
entender a possibilidade de um sujeito histórico ao mesmo tempo em que se
assegura a liberdade ontológica da consciência. Como é possível a interação social
se todas as possíveis relações humanas, por sua estrutura ontológica, devem levar
ao conflito? É de se supor que Sartre não ignore essas questões e buscar, no
conjunto de sua obra, respostas plausíveis.
Sartre certamente interioriza o valor marxista segundo o qual o maior objetivo
de um intelectual é transformar o mundo; como se despertasse, ele se dá conta que
o alto das torres da Notre Dame de O Ser e o Nada não é o melhor lugar para um
intelectual contestar, se opor, estar em conflito. A atuação como ativista de
esquerda; o fato de se sentir constrangido por ter nascido burguês e, por isso, não
ter meios de se aproximar o quanto gostaria dos operários; a inflamada defesa do
PC francês e a célebre afirmação de que um anticomunista é um cachorro e que seu
ódio pela burguesia apenas morreria consigo; a aceitação da luta de classes como
aquilo que move a história e a defesa de que tudo que vai contra os anseios
populares é mau; sua controversa afirmação de que é anarquista; os rompimentos
com Albert Camus e Merleau-ponty, dentre outros episódios, o mostram a contento.
Todas essas atitudes de intelectual engajado vão refletir em sua teoria;
melhor, é a partir da teoria que essas atitudes, às vezes cênicas, vão fazer sentido.
Vejamos: ser homem é ser negação do ser e de si; porque o homem é aquele que
atua no mundo mediante uma ação racional, ele constitui sua práxis. Ora, a
atividade humana passa a ter preponderância sobre a teoria e, sendo a razão
dialética constituída na e pela práxis humana, está desfeito o divórcio promovido
pelo marxismo entre teoria e prática.
70
Pode-se dizer que, assim, está desfeito o
divórcio no conjunto da obra de Sartre; mesmo que seja inegável a mudança de
70
O problema, principalmente no que tange à coesão entre os dois períodos, entre a liberdade e a
leitura que Sartre, livremente, faz do marxismo, não se resolve tão facilmente. Há uma série de
questões transversais que deverão ser levadas em conta; mas para a introdução é suficiente apontar
o deslocamento de foco que se dá entre a fase de O Ser e o Nada e a fase da Crítica da Razão
dialética.
36
enfoque, ela deve ser vista numa perspectiva de evolução e amadurecimento de
uma filosofia da liberdade e não como simples ruptura entre dois momentos de
pensamento, ou como retratação do existencialismo e simples conversão ao
marxismo.
Ao analisar a relação entre homem e história e sua contradição interna, Sartre
mantém um dos princípios básicos de sua ontologia fenomenológica: o conflito.
Embora ali o conflito se desse entre consciências que, por coexistirem, buscavam
eliminar a liberdade de sua oponente, na Crítica é também por ele que o movimento
histórico se realiza. Sartre não se mantém prisioneiro do impasse da fase de O Ser e
o Nada, e ao passar à Crítica, não abre mão do essencial que foi constituído
anteriormente.
71
A passagem de um período a outro se explica pela elaboração de
uma filosofia que mantém o ideal subjetivo e, ao mesmo tempo, estabelece nesse
panorama uma práxis existencialista compatível com o marxismo. Noutros termos,
Sartre não abre mão da liberdade humana e, na mesma medida, não está alheio à
necessidade de uma práxis, de interação social, de história, de sociologia e política,
enfim, do plano imediato. Mesmo com as imperfeições e dificuldades que sua obra
coleciona ao longo de meio século, o filósofo jamais abriu mão da liberdade humana.
Resgatar o essencial da obra de Sartre, qual seja, entender o homem livre e
completo sem jamais abandonar o plano estritamente filosófico, é o objetivo geral
desse trabalho.
71
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 339-340.
37
PARTE I
A LIBERDADE E A FORÇA DAS COISAS
38
A LIBERDADE NA HISTÓRIA
Se o senhor pensa (...) que há uma diferença entre O Ser e o
Nada e a Crítica da Razão Dialética é por causa da maneira
como os problemas são formulados mas não por causa da
própria direção; a direção continua a mesma. Com efeito, em O
Ser e o Nada eu quis, apreendendo-me no nível mesmo da
consciência, (...) fazer uma descrição do que é a realidade
humana como projeto, compreensão. (...) O que é necessário
para nós é reconstituir uma ontologia ou, pelo menos, uma
antropologia dialética na qual a compreensão seja exigida a
cada instante, a cada instante o projeto da pessoa sob forma
concreta e real apareça.
Sartre (Conferência de Araraquara)
Em O Ser e o Nada Sartre mostra o fundamento ontológico da absoluta
liberdade humana; contudo, essa liberdade carece da possibilidade de descrever
estruturas complexas, como por exemplo, os grupos, a sociedade e a história. O ser-
para-outro, ainda que seja a seus olhos a superação incontestável do solipsismo,
não lhe permite ir além da relação de reciprocidade objetivante entre os para-sis;
trata-se de uma relação em que minha liberdade pode ser objeto para o outro, e o
outro objeto para mim. Assim, já que a relação entre os para-sis não comporta
intermediário e desse modo, apenas perpassa o em-si, torna-se forçoso aceitar a
superação de tal quadro, o que bem o mostra as categorias de sadismo e
masoquismo utilizadas para descrever as relações nada harmoniosas entre os
homens.
72
É justamente esse panorama de relação objetivante que se encontra, de
forma admirável, no célebre texto Entre quatro paredes, escrito no ano seguinte à
ontologia. Trata-se da expressão teatral de As relações concretas com o outro,
terceiro capítulo da terceira parte de O ser e o Nada: “Assim sendo, o surgimento do
outro alcança o para-si em pleno âmago. Por e para outro, a fuga perseguidora é
coagulada em Em-si. (...) Sou experiência do outro, eis o fato originário. (...). Assim,
não há dialética de minhas relações com o outro, mas círculo vicioso – embora cada
tentativa se enriqueça com o fracasso da outra”. (...) E, por fim, “O conflito é o
sentido originário do ser-Para-outro”.
73
Em Entre quatro paredes encontramos Garcin num ambiente singular que,
muito rapidamente, deixa claro que o castigo após a morte é eternidade (não há
72
“(...) relação bilateral: Para-si-Para-outro, Em-si. (...) há relação do para-si com o em-si na presença
do outro”. SARTRE, 1943, p. 428.
73
SARTRE, 1943, pp. 428-431.
39
janelas, não há saída, não há interruptores para apagar a luz, não há espelhos: é
impossível interromper a existência); nem mesmo os instantes de escuridão são
permitidos, já que não há pálpebras e consequentemente é impossível piscar.
“Olhos abertos. Para sempre. Vai ser sempre diante de meus olhos. E na minha
cabeça”.
74
O fato da peça ser encenada em um único ato denota esse estranho
castigo pós mortem, qual seja, a continuidade da existência; não há fuga, não há
intervalos, não há fim. Trata-se da condenação a ser, no mais límpido da existência
(sem subterfúgios), si mesmo. E, pior, ser si mesmo ante o outro: não há espelhos, é
verdade, mas a chegada de mais uma condenada, Inês, faz o papel de revelar a
Garcin quem ele de fato é – ela será um espelho impiedoso.
Mas a relação infernal não fica restrita aos dois personagens, afinal, chega
mais uma hóspede e instaura de vez o conflito, sentido originário do ser-para-outro:
trata-se de Estella que, de imediato discorda da cor do canapé a ela destinado, uma
vez que esse é verde espinafre e, por isso, não combina com sua roupa. A
preocupação fútil da nova habitante da sala, que a faz preferir o canapé utilizado por
Garcin em detrimento daquele que lhe foi ofertado por Inês (lésbica e apaixonada
por Estella) acirra a animosidade entre Garcin e Inês; e em pouco tempo a situação
se torna insustentável. Não é preciso carrasco, na medida em que, conforme afirma
Inês, “cada um de nós é o carrasco dos outros dois”.
75
Mais ainda, não é preciso
violência, já que não se morre depois de morto ou, mesmo, não há dor física; o
castigo está no reconhecimento, lento e entrecortado, dos crimes de cada um. E a
dor pelos males cometidos e pela perda da auto-imagem nutrida ao longo da vida se
dá pelo outro, passa pelo olhar e pelo reconhecimento do próximo.
“Pra que polidez? Pra que cerimônia? ‘Entre nós’! Daqui a pouco vamos estar
nus feito minhocas”.
76
De fato é o que acontece: Garcin, à revelia da imagem que
nutre de si mesmo, se reconhece um covarde que maltratava a esposa; Estella se
vê, pelos olhos dos outros dois, como matricida, infiel e interesseira da fortuna de
seus amantes. Inês, por sua vez, apenas se reencontra consigo mesma, já que
desde o início se assume como assassina. Enfim, estão nus, transparentes como
minhocas, deixando até mesmo seus interiores à mostra; esse é o terrível castigo
reservado aos três assassinos. Se não há mais a esconder, se não há imagem a ser
74
SARTRE, 2005a, p. 37.
75
SARTRE, 2005a, p. 63.
76
SARTRE, 2005a, p. 76.
40
mantida, Garcin pode ficar em mangas de camisa. Agora...
77
A liberdade, aquela
mesma de fazer-se e dar sentido ao mundo se esvai ante o olhar impiedoso do
outro, e cada um dos personagens torna-se coisa para os demais na medida em que
seu passado se torna conhecido.
Pode haver remissão no inferno? Não aos olhos do mundo, no qual cada um
apenas existe como lembrança que se esvai. A redenção poderia ser um acordo
entre os condenados, no sentido de que eles se perdoassem: “Nenhum de nós pode
se salvar sozinho; ou nos perdemos de uma vez, juntos, ou nos salvamos juntos.
Decida. (pausa) O que foi?”
78
Trata-se de uma saída pelo acordo, ou, a remissão
estaria na colaboração entre os homens? Melhor, há possibilidade de agremiação
humana, mesmo em se tratando de uma situação limite? Não. Se Garcin estivesse
só resolveria sua situação consigo, o que nos leva de imediato ao primeiro
movimento de O Ser e o Nada (a consciência sozinha, na sua relação com o em-si);
mas ele está com outras duas pessoas. Assim, Garcin faz um acordo com Estella e,
para fazer valer o acordo, tentam eliminar Inês.
A salvação pelo amor, buscada por Estella e Garcin, fracassa; mesmo que
eles se perdoem por seus crimes e se assegurem o devido (ou quiçá indevido)
perdão, há o terceiro, há Inês que morta já não morre: “Façam o que quiserem,
vocês são mais fortes. Mas não esqueçam que eu estou aqui, de olho em vocês.
Não vou tirar meus olhos de você, Garcin; vão ter que se beijar comigo olhando.
Como eu odeio vocês dois!”
79
Há ainda a campainha que é tocada e a porta se abre;
alguém poderia sair, preferencialmente Inês, que é o pilar infernal que impede o
ensejo dos outros dois de se redimirem. Não. Não há mesmo saída do inferno e a
cena final remete à continuidade da bizarra situação vivida pelos personagens:
Estou vendo vocês, estou vendo; sozinha sou uma multidão, a multidão, que não
morre nem pode ser superada. E isso pra sempre! “Pois bem, continuemos”.
80
Temos assim a mais conhecida e emblemática fala de Sartre pela boca de Garcin: o
inferno é o outro.
77
SARTRE, 2005a, p. 89.
78
SARTRE, 2005a, p. 90.
79
SARTRE, 2005a, p. 104.
80
SARTRE, 2005a, p. 127.
41
A identificação entre as relações concretas com o outro e as relações
estabelecidas no palco entre Inês, Estella e Garcin são óbvias;
81
mas não há
nenhuma obviedade na recusa de Sartre da interpretação geral que seu texto surtiu:
o inferno é o outro. A esse respeito, Sartre afirma que “‘O inferno são os outros’
sempre foi mal compreendido. Acredita-se que eu queria dizer com isso que nossas
relações com os outros sempre eram envenenadas, que sempre eram interditas.
Ora, trata-se de outra coisa que eu quis dizer. Eu quis dizer que se as relações com
o outro são tortuosas, viciadas, então o outro só pode ser o inferno. (...) Os outros
são, no fundo, o que há de mais importante em nós mesmos, para nosso próprio
conhecimento”.
82
De fato, em O Ser e o Nada é justamente a relação com o outro
(ser-para-outro) que permite ao para-si, de um só golpe, sair da ontogênese privada
pela qual ele livremente criava e significava o mundo e, no mesmo ato, recuperar
uma dimensão de seu ser: o corpo, como facticidade. Mas também é verdade que a
relação entre os para-sis será de conflito, num cenário no qual cada um tem como
projeto petrificar o outro enquanto liberdade, apossando-se dela. A esse respeito,
com relação a Entre quatro paredes, Sartre insiste em dizer que se trata de
consciências mortas e que o termo morto simboliza qualquer coisa; “De sorte que,
na verdade, como nós estamos vivos, quis mostrar por absurdo a importância, em
nós, da liberdade, isto é, de mudar os atos por outros atos. Qualquer que seja o
círculo de inferno que nós vivamos, eu penso que nós somos livres para o quebrar.
E se as pessoas não o quebram, é ainda livremente que elas ficam nele. De sorte
que se metem, livremente, no inferno”.
83
Mas se essa é em 1965 a interpretação de Entre quatro paredes (o texto é de
1944), e se a identificação entre esse texto e o capítulo citado de O Ser e o Nada é
clara, pode-se aplicar a mesma resposta para a aporia da relação com o outro? Bem
entendido, com respeito ao teatro Sartre busca responder às críticas que o acusam
de pessimista e de desconsiderar a solidariedade entre os homens, criando assim o
inferno já no mundo, na relação cotidiana. Porém, sua declaração é uma espécie de
81
GARCIN: “A estátua de bronze... (ele a acaricia). Pois bem, este é o momento. A estátua de bronze
está aí, eu o contemplo e compreendo que eu estou no inferno. Eu garanto que tudo estava previsto.
Eles previram que eu ia ficar na frente desta lareira, passando a mão nesta estátua, com todos esses
olhares sobre mim. Todos esses olhares que me devoram... (ele se vira de repente). E vocês são
duas? Ah! Eu pensava que vocês seriam muito mais numerosas. (Ri). Então, é isso o inferno. Eu não
poderia acreditar... Vocês se lembram: o enxofre, fornalhas, grelhas... Ah! Que piada. Não precisa de
nada disso: o inferno são os Outros”. SARTRE, 2005a, p. 125.
82
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 101.
83
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 101.
42
retratação, haja vista que em 1965 a Crítica da Razão Dialética já tinha sido
publicada e, nela, Sartre mostra não só que é errada a noção de impossível
solidariedade entre os homens como, também, que a constituição do grupo tem
como origem justamente a liberdade absoluta e originária, embora alienada.
84
Assim,
pode-se dizer que as relações concretas com o outro, de O ser e o Nada,
descreviam consciências mortas e que, com a conversão de Sartre ao marxismo
houve a passagem ao mundo dos vivos? Pode-se dizer que existe para o homem,
levando em conta a maneira pela qual o para-si foi descrito em O ser e o Nada, a
mesma responsabilidade que teriam Inês, Estella e Garcin que por não mudarem a
situação infernal em que se encontram são responsabilizados por ali se meterem e,
por que não, se manterem? Ou ainda, pode-se dizer que a mudança apocalíptica
que ocorre na ontogênese privada do para-si com o surgimento do outro se deve,
como em Entre quatro paredes, à liberdade absoluta do para-si? Parece que não, a
menos que a ontologia seja, até o momento da aparição do outro, uma espécie de
hecatombe que encerra o homem, contra sua vontade, no abrigo de seu ser.
Para dar um passo tão grande (de 1943, EN, até essa interpretação de Entre
quatro paredes, em 1965) é preciso ir devagar. Sabe-se das mudanças históricas
pelas quais passou a Europa e, em especial a França, nesse período; e sabe-se que
em grande medida esses acontecimentos influenciaram o filósofo. Mas não se trata
aqui de fazer biografia e, muito menos, de analisar as razões pelas quais a obra de
Sartre sofre profundas mudanças, sejam nesses vinte e dois anos, seja
especificamente nos dezessete que decorrem de O Ser e o Nada à Crítica da Razão
Dialética. Ao contrário, interessa mostrar as mudanças interpretativas do mundo e,
no limite, da obra, feitos pelo próprio filósofo, e para tanto utilizar aquilo que ele
publicou; espera-se, desse modo, sustentar a tese de que sua obra não comporta
nenhuma ruptura, mas que se trata da aquisição de novas questões e, assim, da
busca de novas respostas; ou como já foi dito, simplesmente acompanhar o
desdobramento que ocorre entre o ensaio de ontologia fenomenológica e a Crítica.
Vale dizer que não será feita uma análise detida de toda a produção de Sartre nesse
período, haja vista sua vastidão e variedade temática; serão analisados textos chave
que mostram a lenta e gradual conversão (sem retratação) ao marxismo, ou, a
passagem de uma situação de inferno entre os para-sis para uma situação de
84
Conforme PARTE II – O NECESSÁRIO DESDOBRAMENTO DE EN NUMA CRD.
43
existência serial que se desdobra em grupos, grupos de grupos, sociedade e
história. Após a breve incursão pelos textos relevantes para mostrar o alargamento
da noção de situação e a preparação do terreno para uma Crítica da Razão, será
feita uma parada um pouco mais longa em Saint Genet – ator e mártir (1952) por
considerar que, embora o ponto de fusão entre os dois períodos da obra de Sartre
tenha sido indicado em vários momentos, em nenhum outro que não nessa obra se
encontra a excelência da maneira como a liberdade absoluta e a força das coisas se
enlaçam.
44
1 Situação e história
Que no fundo (...) eu achava que não havia nada
mais bonito nem melhor do que o ato de
escrever, que escrever significava criar obras
que ficariam para sempre e que a vida de um
escritor só podia ser compreendida através de
seu trabalho. A partir daí, de 1953, percebi que
isto é um ponto de vista completamente burguês,
que existem muitas coisas além da literatura (...).
E assim me curei da neurose...
Sartre (On a raison de se revolter)
Já em 1943 foram publicados textos de Sartre que parecem mudar o tom da
liberdade absoluta de O Ser e o Nada, publicado no mesmo ano. O exemplo mais
importante, sem sombra de dúvida, é a peça As Moscas, na qual Sartre traz à baila
os temas políticos vividos pela França no período da ocupação. É preciso notar que
a França assinou, em 1940, o armistício com a Alemanha e, para tal, escolheu o
herói de guerra Marechal Philippe Pétain para governar o país. Instalado em Vichy,
Petáin, apoiado pelos preceitos do catolicismo e em nome de reconstruir a França e
preparar seu futuro, cede ao totalitarismo e aos interesses nazistas. É nesse quadro
geral que Sartre escreve a obra que inaugura seu trabalho com teatro e, mais do
que isso, realça a noção de situação que, se em O Ser e o Nada figura como
contrapeso e condição da liberdade, em As Moscas nunca pareceu exercer tamanha
força;
85
na ontologia a noção de situação já estava presente, mas a historicidade do
para-si não deve ser confundida com história real.
86
Essa mudança também se
aplica à liberdade, que deixa de ser “não sei qual poder abstrato de sobrevoar a
condição humana”, mas “é o engajamento mais absurdo e mais inexorável. Orestes
perseguirá seu caminho, injustificável, sem desculpas, sem recursos, só. Como um
herói. Como não importa quem”.
87
Numa acepção notadamente existencial, Orestes escolhe seu destino,
engaja-se em seu ser; é assim que Filebo se torna Orestes, ou que um francês
85
Na verdade, As Moscas é a segunda peça de teatro escrita por Sartre. Em 1940, enquanto o
filósofo era prisioneiro de guerra em Trier, por ocasião das comemorações de Natal ele escreveu
Bariona, texto que versava sobre o nascimento de Cristo e a dominação do povo judeu pelos
romanos. COHEN-SOLAL, 1986, pp. 216-218.
86
A esse respeito, cabe lembrar que o para-si é “a título de acontecimento (...); é, enquanto aparece
em uma condição não escolhida por ele (...); é, enquanto é lançado em um mundo, abandonado em
uma ‘situação’; é, na medida em que é pura contingência (...). É, na medida em que existe nele algo
do qual não é fundamento: sua presença ao mundo”. SARTRE, 1943, p. 121 ss.
87
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 88.
45
ressentido e penalizado pela Ocupação se torna resistente: “Electra, eu sou
Orestes”.
88
Não basta saber-se filho do rei Agamenon, saber da traição de
Clitemnestra e Egisto, reconhecer a irmã Electra feita serva; é preciso tornar-se
Orestes, fazer-se filho do rei assassinado, sentir-se dono dos pesados portões do
palácio. Em O Visível e o Invisível Merleau-Ponty assevera que as filosofias da
negatividade, dentre as quais a ontologia de Sartre, são um pensamento de
sobrevôo que arranca sua aparência de engajamento da relação lábil entre o ser e o
nada.
89
Mas há de se notar que Sartre, no mesmo ano da publicação de sua
ontologia da negatividade, aponta para a necessidade de engajamento da liberdade,
ainda que esse seja absurdo e inexorável. Mais do que isso, é preciso notar que
Sartre, com respeito a As Moscas, afirma que se trata da tragédia da liberdade em
oposição à tragédia da fatalidade, ou seja, a liberdade ontológica nunca esteve de
tal modo em situação no mundo histórico.
O embate para fazer-se Orestes exige que Filebo se escolha, que ele se
engaje em seu ser ou, noutras palavras, que ele assuma sua liberdade. Mesmo ante
a titubeação de Electra, que nega reconhecer em alguém fisicamente fraco o
guerreiro que viria salvá-la da humilhante situação de princesa serva, Orestes
escolhe ser Orestes: “Pouco me importa a felicidade. Quero minhas lembranças,
meu solo, meu lugar entre os homens de Argos. (um silêncio) Electra, eu não vou
embora daqui”.
90
E ao assumir seu ser, Orestes encarna seu destino: matar o
usurpador do trono de seu pai, matar sua mãe colaboracionista e, ao mesmo tempo,
libertar sua irmã. Porém, assumir tal destino é ser responsável pelo assassinato, o
que remete ao castigo personalizado pelo tormento do remorso (Erínias, ou Moscas)
e, pior, remete à necessidade de enfrentar Júpiter, o deus dos deuses em pessoa.
Assim, Sartre, além de escrever um texto com forte apelo político, abre de vez
a guarda que defendia a liberdade absoluta em detrimento da situação; ora, a
situação estava presente em O Ser e o Nada, é verdade. Mas trata-se aqui de um
primeiro movimento de realce da facticidade ou, como foi dito acima, da fatalidade
mesma: “Como se comporta um homem em face de um ato que ele cometeu, do
qual ele assume todas as conseqüências e as responsabilidades, mesmo se, por
88
SARTRE, 2005, p. 56.
89
É certo que tudo não se passa tão simplesmente como a referência possa fazer parecer; ver
MERLEAU-PONTY, 1984, pp. 57-104.
90
SARTRE, 2005, p. 58.
46
outro, esse ato lhe cause horror”.
91
E, mais ainda, Sartre afirma que essa liberdade
não pode ser interior ou espiritual, mas se expressa por atos; liberdade situada,
portanto, exige um sujeito situado e jamais um herói mítico. Encravado no seu
tempo, é nele e a partir dele que se age livremente: trata-se de um homem, seja
Orestes ou qualquer outro. Se em O ser e o Nada Sartre fundamenta a liberdade na
distância insuperável e instransponível que separa o para-si de si mesmo, nota-se
que agora se trata da liberdade situada na França, com todo o peso que esse tempo
reserva para cada ato livre.
92
Orestes podia fugir e, inclusive, planeja ir embora de Argos; sua primeira
atitude após a tentativa fracassada de Electra para libertar o povo de seu sofrimento
foi justamente convencê-la a abandonar tudo. Mas Orestes volta atrás e decide ficar;
ela, ante sua decisão de ficar e cumprir seu destino lhe pede várias vezes que ele se
vá, o que mostra que a assunção do ser Orestes exige um sim. Para engajar-se em
seu ser o personagem precisa escolher-se livremente e, no mesmo ato, encarnar
sua liberdade. É o que ele faz, a despeito de Júpiter: “Que se desmanche! Que os
rochedos me condenem e que as plantas murchem quando eu passar; todo teu
universo não será o bastante para provar que eu estou errado. És o rei dos deuses,
Júpiter, o rei das pedras e das estrelas, o rei das ondas do mar. Mas não és o rei
dos homens”.
93
É assim que Filebo se faz Orestes: livremente comete os dois
assassinatos e, longe da culpa e do remorso apregoado por todos em Argos,
simplesmente assume seu ato.
Júpiter, que tinha em Egisto o propagador da culpa na cidade e, por isso o
preveniu da cilada armada por Orestes e Electra para matá-lo, tenta perdoar
Orestes; ao que ele afirma que não se desculpa de nada, afinal assim que foi criado
deixou de pertencer ao deus.
94
A culpa vivida em Argos pelo assassinato de
Agamenon é inútil porque é irreparável; chorar pela França ocupada é assumir como
própria a ocupação, é reconhecer que as gerações presentes pagam por crimes que
não cometeram. E mesmo a libertação exige, antes de tudo, a assunção da
liberdade e da conseqüente responsabilidade. Numa última tentativa Júpiter
pergunta se Orestes não se ressente ao menos por ter provocado ainda mais
91
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 90.
92
“Por que fazer declamar os Gregos se isso não é para disfarçar seu pensamento sob um regime
fascista? (...) O verdadeiro drama, o que quis escrever, é aquele do terrorista que, descendo os
Alemães pela rua, dá início à execução de cinqüenta reféns”. CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 90.
93
SARTRE, 2005, p. 102.
94
Apenas se pode ser livre contra Deus, conforme SARTRE, 1947, pp. 305-306.
47
sofrimento à sua irmã; mas não há meio de ressentir-se pela fraqueza alheia. A
liberdade é individual, e a libertação exige assumir-se: não há redentor e Orestes,
mesmo que confesse seu crime à luz do sol e ao deixar Argos leve consigo todas as
Moscas, apenas mostra ao povo que a libertação exige a assunção do ser livre e de
todo o peso daí decorrente.
Enfim, com As Moscas, Sartre mostra o erro de considerar a liberdade
descrita em O Ser e o Nada como apenas um sobrevôo. É um fato que na ontologia
fenomenológica a liberdade exige a situação como contraste; porém, As Moscas
mostra que não se trata de uma liberdade abstrata e, menos, de uma situação
fictícia. A liberdade se dá na história e nada melhor que o teatro de situações para
mostrá-lo; e para aqueles que vêem essa obra como fruto do Sartre
colaboracionista, baseando-se em aspectos externos (As Moscas foi aprovada pelos
sensores da Ocupação, no teatro Sarah Bernhardt que foi renomeado pelos alemães
de Teatro da Cidade), basta simplesmente repetir a fala de Orestes: “O mais covarde
dos assassinos é o que tem remorsos”.
95
Num país ocupado e submisso não seria
Clitemnestra que mataria seu marido e acabaria com a farsa do remorso, mostrando
ao povo de Argos que ser livre contra os deuses é uma possibilidade humana; isso
iria exigir dela levar consigo as Eríneas e, sem nenhuma culpa, assumir seu ato,
algo que não cabe àqueles que se submetem aos sacerdotes, a Egisto e às moscas
(leia-se, à Ocupação). Apenas um homem livre, que assume livremente sua situação
e sua liberdade, poderia fazê-lo.
Tem-se assim o primeiro momento de afirmação da situação que poderia ser
contraposta às leituras que encontram uma noção superficial e irresponsável da
liberdade na primeira grande obra técnica de Sartre. Mas é preciso dar a mão à
palmatória e avaliar se há, nalguma medida, retrocesso no que tange ao ser livre de
O Ser e o Nada. A seqüência da bibliografia proposta por Contat e Rybalka mostra
que Sartre, após As Moscas, escreve uma série de artigos que tratam de assuntos
diversos como crítica literária, teatral e de cinema, dentre outros; mas a tônica não
muda: os temas políticos e sociais são a ordem do dia.
96
Mesmo que Sartre fale
95
SARTRE, 2005, p. 101.
96
1943: L’Âge de Raison (frag.), Explication de L’Ètranger, Drieu la Rochelle ou la haine de soi,
Aminadab ou du fantastique consideré comme un langage, Les Chats (frag. de L’Âge de raison), Un
Nouveau mystique; 1944 : Hommage à Jean Girandoux, Aller et retour, La littérature, cette liberté, Un
film pour l’après-guerre, Huis Clos, L’Espoir fait homme, A propos du Parti pris des choses, Un
promeneur dans Paris insurgé (sete artigos sobre Paris insurreta), La République du silence, 23
48
sobre literatura como, por exemplo, em La littérature, cette liberté, ele, antecipando a
idéia de engajamento do escritor, afirma que “A literatura não é um canto inocente e
fácil que se acomodaria a todos os regimes; mas ela coloca, dela mesma, a questão
política; escrever é reclamar a liberdade para todos os homens; se a obra não deve
ser o ato de uma liberdade que quer se fazer reconhecer por outras liberdades, ela
não é mais que uma infame tagarelice”.
97
Outro tanto pode ser dito daquilo que o
filósofo escreve sobre o cinema, como é o caso de Un film pour l’après-guerre, no
qual critica duramente o trabalho de mistificação executado pelo cinema francês do
pós-guerra; conclui que “a libertação do cinema acompanhará a libertação do
território”.
98
Com relação ao teatro, Sartre escreve sobre Vogue la galère, de Marcel
Aymé, que se trata da “primeira peça de teatro diretamente inspirada pelos
princípios do nacional-socialismo”.
99
Numa palavra, a liberdade absoluta fincou de
vez suas raízes na história, nos fatos cotidianos.
Pode-se, conforme algumas biografias, ver nesse engajamento de Sartre
apenas o resultado das mudanças pelas quais passou a França no período da
ocupação, da resistência, do pós-guerra; ou pode-se ir mais a fundo e analisar os
efeitos que a força das coisas exerceu sobre o homem Sartre a partir da reviravolta
nos seus temas e convicções políticas.
100
Mas é bom lembrar que com isso comete-
se uma dupla falta: primeira, desconsidera-se que a colocação de questões atuais,
como é o caso da resistência, se dá a partir da ótica do homem livre; segunda,
comete-se a gafe de psicologisar a obra de Sartre. Mas sem dúvida algo diferente
aconteceu: “A guerra me ensinou que era preciso me engajar”;
101
não se trata de ser
influenciado à distância pelo marxismo, ou de ser livre entre as grades de uma
prisão. A facticidade do para-si não se resume mais a uma posição ocupada no
mundo que permite um ponto de vista significante: a liberdade absoluta foi datada,
lançada em uma situação fática e horrível (a guerra); o ser-no-mundo passa a ser-
no-mundo-aqui, França, 1943, 1944, etc.
Enfim, o que se pode dizer que ocorreu nesse período que comporta o ano de
publicação e o ano seguinte a O Ser e o Nada? Não é verdade que Sartre abandone
septembre 1938, Dullin et l’Espagne, Paris sous l’occupation, A propos de l’existentialisme : mise au
point. CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 85-111.
97
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 97.
98
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 98.
99
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 102.
100
Sartre é taxativo: “É no presente que nós queremos tratar os homens enquanto liberdades”.
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 210.
101
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 108.
49
sua ontologia, haja vista que em nenhum momento a liberdade é colocada em
questão; mas é verdade que a noção de situação sofreu uma mudança considerável.
O para-si continua fático, e sua facticidade é ainda sua presença ao mundo;
102
o
mundo mudou? A guerra, a ocupação e a resistência agiram diretamente sobre o
intelectual burguês que até o momento escrevia, de sua torre de marfim, sob a égide
do Espírito Hegeliano?
103
O existencialismo é uma máquina de guerra contra o
marxismo, e há que se reprovar Sartre por ter sido discípulo do nazista
Heidegger?
104
Ou serão essas críticas resultantes do dogmatismo marxista que, por
essa época, tomava corpo na França? Indagações inúteis, caso não encontremos
nas publicações de Sartre os efeitos da ação da força das coisas em sua filosofia.
O fato é que os princípios da ontologia fenomenológica não são substituídos,
e se ali Sartre falava da relação do homem absolutamente livre com seu passado,
com objetos e com outra liberdade que buscava congelar a sua própria, essa mesma
estrutura é ampliada: trata-se do mesmo homem absolutamente livre, frente a
objetos que podem não ser mais um cinzeiro ou uma folha branca, mas uma
metralhadora ou uma granada; a mesma liberdade que não está em situação no
mundo dos cafés ou quartos solitários, mas no mundo da ocupação, da resistência,
do pós-guerra. A situação se amplia, toma ares de história real; a liberdade continua
a mesma e será o objeto de troca na posterior relação com o marxismo. E é
justamente essa ampliação do conceito de situação que, preliminarmente, espera-se
mostrar com a análise comparativa de dois momentos da literatura de Sartre, quais
sejam, aquele que antecede e aquele sucede imediatamente O Ser e o Nada; não
se trata, é claro, de uma análise literária, mas serão apontados alguns elementos de
A Náusea e O Muro em contraposição a Os Caminhos da liberdade (A Idade da
Razão, Sursis e Com a morte na alma) que corroboram a tese de ampliação da
situação e engajamento da liberdade do para-si.
Para falar da ampliação do conceito de situação na literatura de Sartre é
preciso, antes de tudo, falar de liberdade. Não é novidade que as conseqüências da
ontologia fenomenológica podem ser resumidas em três grandes linhas: ser homem
é ser liberdade; sua existência se deve à livre escolha que ele faz de si mesmo, o
102
SARTRE, 1943, p. 122.
103
Segundo Lukács, em Existencialismo ou Marxismo, os intelectuais burgueses (Sartre) ao serem
obrigados a abandonar o idealismo tentaram, ao menos, salvaguardar seus resultados e fundamentos
produzindo uma terceira via entre o materialismo e o idealismo. LUKÁCS, 1979.
104
Afirmações de Henri Lefebvre, op. Cit. BURNIER, M-A. CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 109.
50
que exclui todo e qualquer tipo de determinismo; o homem é, desse modo,
inteiramente responsável por si mesmo e pelo mundo. E essas características gerais
da liberdade podem ser aplicáveis aos homens que figuram nos livros de Sartre:
Antoine Roquentin (A Náusea), Pablo Ibbieta (O Muro), Mathieu Delorme (Os
caminhos da liberdade); a mesma liberdade está presente no teatro, representada
pelo ser de Orestes (As Moscas), Hugo (As mãos sujas), Canoris (Mortos sem
sepultura) e Goetz (O Diabo e o bom Deus), além de ser extensiva a todos os
personagens secundários de cada obra. É certo que não é uma razão suficiente
estender a liberdade a todos os personagens de Sartre para daí deduzir que,
diferentemente de suas obras técnicas, em sua literatura a situação já havia sido
ampliada em 1943; é isso que será mostrado a seguir.
Partindo da idéia de que todos esses homens são livres e, segundo o
princípio exposto em O Ser e o Nada, estão lançados numa dada situação no mundo
e, desse modo, são responsáveis por seu ser, pode-se perguntar: qual é a situação
de cada um? Antoine Roquentin, o anti-herói de A Náusea, se pergunta: Por que
existo? Há uma justificativa para a existência, qualquer que seja, ou um meio de
superar a contingência de existir? São esses questionamentos que parecem estar
no cerne dessa obra, e são essas perguntas que norteiam o desenrolar da estranha
experiência vivida pelo personagem em Bouville, cidade para a qual se dirigiu para
produzir uma biografia do Marquês de Rollebon. Após ter viajado pela Europa, África
e Oriente onde, curiosamente, nada de estranho parece ter ocorrido, é numa
pequena cidade da França que começa a acontecer o desagradável estranhamento
com o mundo. E essa experiência acaba levando Roquentin a uma descoberta
nefasta.
A Náusea tem em seu horizonte o hiato entre existência e aventura, ou, a
impossibilidade da segunda, o que acaba colocando em planos distintos e
irremediavelmente separados, história e narrativa. Mas onde está a origem de tal
contradição? Como é possível que a existência seja contraposta à narrativa que se
pode fazer dessa mesma existência? Não há como fugir do questionamento uma
vez que ele se instale. Roquentin sente-se estranho, como se houvesse alguma
coisa errada; mas não há como saber do que se trata. O estranhamento parece
acirrar-se com respeito aos objetos: uma determinada maneira de segurar o
cachimbo ou o garfo. “Ainda a pouco, quando ia entrando em meu quarto, parei de
repente, porque sentia em minha mão um objeto frio que retinha minha intenção
51
através de uma espécie de personalidade. Abri a mão, olhei: estava segurando
apenas o trinco da porta”.
105
A sensação de estranheza começa também a se
apresentar no contato com outras pessoas, primeiramente com relação ao
autodidata, que parece diluir-se frente a seus olhos. Encontrar personalidade nos
objetos e um homem despersonalizado seria loucura?
Como não sentir medo se o algo ameaçador está sempre à espreita?
Roquentin não suporta sua existência, e tem em Rollebon a possibilidade de
preenchê-la, de torná-la menos dolorosa. Rollebon, por sua vez, não existe, apenas
podendo vir à existência graças a Roquentin. Eles são sócios, e essa sociedade
permite manter a ameaça distante. Entretanto, não há fuga perene: “A coisa, que
estava à espera, alertou-se, precipitou-se sobre mim, penetra em mim, estou pleno
dela. – Não é nada. A Coisa sou eu. A existência, liberada, desprendida, reflui sobre
mim. Existo”.
106
Roquentin descobre a existência em si mesmo, em torno de si e
dentro de si; ele é seu corpo, é cada uma das partes e responsável pelo conjunto.
Roquentin é.
107
Por ser razão de seu existir, o personagem é obrigado a escolher:
ficar em seu quarto ou sair, fumar ou não, etc. E mesmo que nada faça, ele sempre
estará presente a si.
108
Há algum meio de escapar do infortúnio de existir? Rollebon
morreu, Antoine Roquentin não morreu. A escolha continua em aberto: Roquentin,
apenas ele, pode fazer sua existência continuar; do mesmo modo, só ele pode
interrompê-la. Todas as coisas existem; o chão pisado, a casa vista, o lampião
aceso, e Roquentin está presente a si, ele existe.
“Será isso liberdade? (...) Sou livre: já não me resta nenhuma razão para
viver, todas as que tentei cederam e já não posso imaginar outras”.
109
Roquentin é
livre e sozinho; a liberdade, efeito imediato da experiência da náusea, não se difere
muito da morte. Ela mostra que a existência é presença ao mundo e presença a si.
Por isso, Roquentin está atrelado a esse átimo instável do tempo e é constituído por
ele; trata-se de uma espécie de sonho, no qual o passado, tal qual uma erosão,
tenta alcançar o presente e também torná-lo nada. Mas o presente está separado do
passado por um degrau insuperável e, na fuga, encaminha-se para o futuro.
105
SARTRE, 1996a, p. 17.
106
SARTRE, 1996a, p. 149.
107
“O corpo caminha e há consciência de tudo isso e consciência, Deus meu, da consciência”.
SARTRE, 1996a, p. 249.
108
A consciência pode encaminhar-se aos objetos do mundo, “mas nunca se esquece de si mesma; é
consciência de ser uma consciência que se esquece de si mesma. Seu destino é esse”. SARTRE,
1996a, p. 247.
109
SARTRE, 1996a, p. 228.
52
Roquentin apenas pode acompanhar esse movimento, ele está entre o que não é
mais e o que ainda não é.
110
É nesse panorama que Roquentin define a existência: um absurdo. “Havia
encontrado a chave da Existência, a chave de minhas Náuseas, de minha própria
vida. De fato, tudo o que pude captar a seguir liga-se a esse absurdo fundamental”;
a existência requer um sentido impossível que apenas poderia ser alcançado no
absoluto, mas o que existe não faz sentido, “o mundo das explicações e das razões
não é o da existência”.
111
Para existir é preciso abrir mão de explicar a existência;
assim, a verdade apenas poderia se dar no romance. Considerando a história o
campo existencial, não há solução, já que é preciso escolher entre existir ou narrar.
E, todavia, narrar o que?
A existência é justificável? A resposta mais acertada de Sartre, no que tange
à A Náusea, é que essa empreitada exigiria a remissão ao absoluto: “jamais um ente
pode justificar a existência de outro ente”, e o erro de Antoine Roquentin foi tentar,
com uma biografia, justificar a existência do Marquês de Rollebon. A causa do erro
não está no meio escolhido para retratar a existência, mas sim no teor: um livro de
história. Historicamente, apenas é possível tematizar a existência e, dessa feita,
retomar a contingência de existir. A justificação da existência exige “algo que não
existisse, que estaria acima da existência”.
112
Uma existência fundamentada é algo
como uma aventura; a aventura vivida, por sua vez, é uma miragem e, por isso, não
pode acontecer.
113
Ora, a situação e a experiência vividas por Roquentin na afirmação da
liberdade e do sem sentido do existir, além da negação abrupta de toda
possibilidade de totalização histórica, leva irremediavelmente à conclusão de que a
interpretação de O Ser e o Nada como uma filosofia desarraigada da realidade é
plausível.
114
Mas A Náusea é de 1938 e Sartre, mesmo mantendo em sua ontologia
fenomenológica muitas das teses aqui expostas, também publica um texto que exige
110
SARTRE, 1996a, p. 230.
111
SARTRE, 1996a, p. 191.
112
SARTRE, 1996a, p. 258, ambas.
113
SARTRE, 1996a, p. 236.
114
Gerd Bornheim, em seu livro Sartre – Metafísica e existencialismo, entende A Náusea numa
acepção cartesiana, no sentido de que Sartre, com essa obra, cumpre o percurso da dúvida metódica
tal qual Descartes. “Entre Descartes e Sartre há, porém, uma diferença nada pequena: aquele limita a
dúvida à esfera do conhecimento, ao passo que este lhe empresta uma dimensão muito mais larga. O
que Descartes realiza num ensaio como o Discurso do Método, Sartre o faz através de um romance,
A Náusea” (BORNHEIM, 1971, p. 16). Esse paralelo, sem dúvida interessante, é discutível e sua
contrapartida devidamente formulada Luiz D. S. Moutinho (MOUTINHO, 1995, p. 152).
53
o engajamento da liberdade: As Moscas (concomitantemente com a ontologia
fenomenológica). Desse modo, torna-se no mínimo precipitado aceder à tese de
idealismo burguês sartriano, propagada na década de 60. Sob esse aspecto
estamos de inteiro acordo com a tese da Dra. Cristina Diniz Mendonça que, a
despeito de várias críticas contrárias, mostra que em O Ser e o Nada Sartre não
está alheio à história.
115
Em A Náusea a história é vista como uma impossibilidade, como a maneira
segundo a qual os fatos são organizados. Ela apenas figura ao longe, não
determinando o presente de Roquentin, mostrando-se unicamente como uma
impossível necessidade. Entretanto, é preciso lembrar o que Sartre afirma a respeito
dessa obra: “O que me faltava era o sentido de realidade. Eu mudei desde então. Fiz
uma lenta aprendizagem do real. Eu vi crianças morrerem de fome. Frente a uma
criança que morre, A Náusea não pode fazer frente”.
116
A experiência do filósofo e
sua autocrítica dizem muito, mas bastaria contrapor A Náusea a As Moscas para
perceber uma profunda mudança na noção de situação. Mas será essa mudança
unicamente efeito da eclosão da Guerra? Não parece, ou melhor, essa tese não se
sustenta frente à análise de O muro, publicado em 1939.
Em linhas gerais os cinco contos versam sobre situações limite
desconcertantes pelo tom aterrador e dramático, servindo-se de situações
semelhantes àquelas vividas em A Náusea e na peça As Moscas. E mais uma vez
encontram-se personagens livres, ou seja, a tese da liberdade absoluta de O Ser e o
Nada está visivelmente presente na trajetória de cada um dos personagens. Trata-
se de analisar situações existenciais nas quais o indivíduo é colocado à prova e é
obrigado a ser livre, ou seja, mesmo em situações extremas é justamente a
liberdade que dá o sentido daquilo que é vivido. O Muro é composto por cinco
contos, O quarto, Erostrato, Intimidade, A infância de um chefe e O muro, conto que
dá nome à obra. Será analisado apenas esse último por remeter de modo imediato à
ação da história na vida particular.
115
Trata-se de um trabalho de fôlego e que apresenta uma bibliografia extensa e imprescindível para
sustentar a tese de que a história já está presente em O Ser e o Nada. Apenas para mostrar a
preocupação principal da autora, refiro-me à introdução, onde ela apresenta seu projeto de desatar o
entre a realidade do Diário de uma guerra estranha, calcado no dia-dia do filósofo e a pretensa
filosofia pura, ausente da história, de O Ser e o Nada (SARTRE, 1943, p. 16 ss.), ou melhor, entender
de que modo a descrição de estruturas ontológicas intemporais se une à vida do filósofo; esse
mesmo paralelo pode ser encontrado com respeito à literatura, à dramaturgia e mesmo com relação à
própria história do filósofo. Ver: MENDONÇA, 2001.
116
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 64.
54
Segundo Vergílio Ferreira os demais contos “(...) são bem do Sartre de La
Nausée. O domínio das coisas (...), revelado como em La Nausée, no seu absurdo
(o castanheiro reaparece aqui a pp. 161-2) revela-se sobretudo no primeiro anúncio
de uma náusea que não tem nome: logicamente essas novelas são contemporâneas
de La Nausée (na realidade, porém, elas são-lhe posteriores, ao que nos conta
Beauvoir). E é daí que Sartre arrancará para a humana situação do homem”.
117
O o
autor português tem razão, mas não há como concordar com a continuidade de sua
análise, que desmerece a historicidade do conto devido ao fato biográfico de Sartre
não ter conhecido a revolução espanhola: não conhecer (não entraremos nos
detalhes que exigiriam avaliar o sentido de conhecer) ou participar da guerra da
Espanha não diminui a dramaticidade do texto justamente naquilo que ele tem de
histórico; trata-se, a nosso ver, da inserção da liberdade de O Ser e o Nada numa
situação fática, a guerra.
A proximidade temática com Malraux é evidente: a experiência da Guerra era
ignorada por Sartre, mas não a obra de Malraux; é verdade que o filósofo esteve na
Alemanha em plena ascensão do Nazismo e não escreveu nada sobre isso. Mais
ainda, Beauvoir relata que Sartre jamais falou das agruras da Guerra (em 1940,
quando prisioneiro) e, numa análise bastante corriqueira, nem mesmo acreditava
que ela viesse acontecer;
118
mas veio a guerra e ela mostrou ao filósofo que era
preciso se engajar. Não nos prenderemos à biografia, mas é preciso ter em conta
que o fato de Sartre não ter lutado na Revolução Espanhola não reduz o peso
exercido pela história em O Muro. Pelo contrário, essa obra mostra que Sartre, antes
mesmo de escrever sua ontologia fenomenológica, está certo de que a liberdade só
pode ser compreendida em relação interna com a situação; e essa, como no caso de
Ibbieta, se confunde com a história. Ou melhor, a história determina a situação de
seus personagens e, no limite, de todos os homens.
Ibbieta, revolucionário na Espanha fascista, é feito prisioneiro: “Aquilo durou
quase três horas; sentia-me um tanto pateta e com a cabeça vazia; a sala, porém,
estava bem aquecida – há 24 horas que estávamos tremendo de frio”.
119
A
117
FERREIRA, 2004, p. 138.
118
Annie Cohen-Solal mostra as mudanças sofridas por Sartre no período em que ficou enclausurado
com quatorze mil outros soldados em Nancy; a esse respeito ver os capítulos Uma guerra digna de
Kafka e Um cativeiro digno (COHEN-SOLAL, 1986, pp. 145, 185-221). Ainda, ver as cartas enviadas
por Sartre a Simone de Beauvoir enquanto ele era prisioneiro em Trèves. SARTRE, 1983c, pp. 7-
304.
119
SARTRE, 2005b, p. 9.
55
preocupação com algo imediato (frio) acompanhada de uma quase indiferença ante
a sentença de fuzilamento contrasta com o desespero de Juan Mirbal. Ora, Ibbieta
não fora obrigado a se alistar ou lutar, mas o escolheu livremente; e é também por
sua própria conta que, diferentemente de Mirbal, significará, para si, a sua morte
como uma pergunta sobre o estranhamento que sentiria quando uma bala quente
lhe atravessasse o corpo. Assunção do que tinha feito? Ausência de medo ou
remorso? Mirbal entende sua morte como injustiça e, então, se desespera.
Steinbock parece se dar conta de seu fuzilamento apenas posteriormente.
120
Um breve paralelo entre Roquentin e Ibbieta pode ser esclarecedor: a
experiência da náusea, do absurdo de existir, não se dá àquele devido a algum
constrangimento externo. Roquentin poderia abandonar Bouville quando quisesse,
sabia da falta de sentido de escrever a história do Marquês e não via a história (de
sua vida, da cidade, etc.) senão como pano de fundo dos acontecimentos presentes.
Ibbieta, por sua vez, está na Espanha em guerra e sua história pessoal, seu drama
ante sua morte iminente e a escolha que deve fazer estão perpassados pela história
materializada na guerra e no seu aprisionamento. Mais do que isso, ao ser preso por
sua ação revolucionária ele se encontra frente a um dilema que, dessa feita, envolve
além de sua escolha individual, o conflito social pelo qual passa seu país e seus
correligionários; e ele é obrigado a ser livre, ele escolhe.
121
Ambos estão em
situação, mas ao invés de ser um simples ponto de vista sobre o mundo, já é
possível notar que se em A Náusea o pano de fundo é simplesmente ignorado por
Roquentin, em O Muro é justamente esse pano de fundo que coloca Ibbieta à prova
e o faz ser livre, ainda que sua escolha leve à morte seu companheiro, Ramón
Gris.
122
A escolha de Ibbieta, ainda que se opere no plano estritamente pessoal, já se
dá com base em acontecimentos que são históricos:
120
“Muito bem. Serão oito. Ouve-se um grito: ‘Apontar’, e eu verei oito fuzis apontados para mim.
Acho que desejarei penetrar no muro; empurrarei o muro com as costas e toda a minha força e o
muro resistirá, como nos pesadelos”. SARTRE, 2005b, p. 19.
121
Ibbieta tinha clareza de sua situação, mas: “Em vão. Todas essas fugas são barradas por um
Muro; fugir da Existência é ainda existir. A Existência é um pleno que o homem não pode abandonar”.
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 70.
122
“Sei onde ele está. Está escondido no cemitério, ou num túmulo ou na cabana dos coveiros.”
Ibbieta, com essa denúncia, tenta enganar os policiais; embora sendo um engodo, acaba sendo
verdade; segundo Garcia “Não faltaria quem se dispusesse a escondê-lo [Gris], mas ele não queria
dever nada a ninguém. ‘Ia me esconder na casa do Ibbieta’, disse ele, ‘mas como ele foi preso, vou
me esconder no cemitério”. SARTRE, 2005b, p. 32.
56
Levantei-me, andei de um lado para outro e, para afastar aquelas idéias,
comecei a pensar no passado. (...).Via rostos e histórias. Revi a fisionomia
de um novillero que levara uma chifrada em Valência durante a Feria, o
rosto de um de meus tios, e o de Ramón Gris. Lembrei-me de alguns
episódios: o desemprego durante três meses em 1926, como escapei de
morrer de fome. Recordei-me de uma noite passada em um banco em
Granada. (...). Com que ansiedade eu corria atrás da felicidade, atrás das
mulheres, atrás da liberdade... A troco de quê? Quisera libertar a Espanha,
admirava Pi y Margall, aderira ao movimento anarquista, discursava em
comícios: levava tudo a sério, como se fosse imortal.
123
A responsabilidade que o faz pensar em sua morte (dar a ela um sentido) é
justamente o fato histórico da Guerra Civil Espanhola, da luta contra a Falange
Espanhola Tradicionalista na pessoa do General Francisco Franco; assim, antes
mesmo da publicação de O Ser e o Nada, Sartre está ciente da difícil tarefa de
mostrar a liberdade em situação histórica.
Mas é na trilogia Os caminhos da liberdade que se dá de forma bastante clara
a passagem do que era até então simplesmente pano de fundo, em A Náusea, para
a história. Vale lembrar que tanto A Náusea quanto O Muro são obras que
antecedem O Ser e o Nada, o que explica a relutância de Sartre em identificar a
situação de seus personagens com a macroestrutura, ainda que em O Muro seja um
fato histórico que coloque Ibbieta à prova; entretanto, ainda em 1943, Sartre publica
um fragmento de A Idade da Razão que trata ainda do tema da liberdade a partir da
perspectiva individual, mas não deixa dúvidas de que urge ampliar a situação no
mesmo ano da publicação da ontologia. E é o que de fato se encontra nessa obra:
Mathieu busca a liberdade ideal; Daniel a entende como gratuidade; Brunet engaja
politicamente sua liberdade. Seriam Mathieu e Daniel reedições de Roquentin, e
Brunet uma expressão de Ibbieta? Isso não importa, mas importa perceber que em
1945 Sartre coloca frente a frente personagens que, a seu modo, buscam exercer
seu ser livre; mais do que isso, Sartre ainda mantém seus personagens presos a
situações particulares, mesmo que a história esteja ali e, no limite, seja ela, à
distância, o denominador de cada uma das situações dos indivíduos citados.
Mathieu está às voltas com o drama de sua amiga Marcelle, grávida, e
precisa decidir se faz ou não o aborto: “‘Ela vai ver a velha, vai para o açougue’.
Sentia-se venenoso. ‘Chega’. Sacudiu-se: eram pensamentos lívidos, pensamentos
da madrugada”.
124
A decisão com relação ao aborto é a única preocupação de
Mathieu, e malgrado os desentendimentos e pequenos infortúnios que dão a tônica
123
SARTRE, 2005b, p. 23.
124
SARTRE, 1996, p. 34.
57
da obra, essa será sua preocupação recorrente: onde conseguir dinheiro para
efetuá-lo? É justamente essa questão que o coloca diante de sua liberdade e o leva,
no decorrer da procura por alguém que lhe empreste tal quantia, à responder
algumas difíceis questões: por que não se casa e assume suas origens burguesas?
Por que não foi para a Espanha? Por que não entra no Partido Comunista? E a
resposta é sempre a mesma, qual seja, é preciso manter sua liberdade e qualquer
uma dessas escolhas a restringiria.
Nosso herói tem sua fama, ou melhor, seus amigos o conhecem como o
homem que quer ser livre e não faz política, posição assumida por ele, “que quer ser
livre, como outros desejam uma coleção de selos. A liberdade é seu jardim secreto.
Sua pequena convivência para consigo mesmo. (...) Não é isso que sou?”
125
Uma
liberdade reprovável aos olhos de seus amigos que, a seu modo, também são livres
para lhe ajudar ou não; é o caso de Daniel, prestes a desistir de matar seus gatos
afogados: “Sentia-se perdido numa nuvem vermelha, sob um céu de chumbo;
pensou com orgulho em Mathieu: ‘Eu sou livre’, disse. Mas era um orgulho
impessoal, pois Daniel não era mais ninguém”.
126
O encontro de ambos, um após
desistir de eliminar seus gatos e outro à busca de dinheiro para o aborto, coloca a
liberdade de Mathieu à prova.
O drama é pessoal, não há dúvida, mas Mathieu está separado de sua
decisão (pagar o aborto) por uma quantia de dinheiro; Daniel podia lhe emprestar, o
que faz com que seu amigo seja, nesse momento, o nada que o separa de sua
liberdade. “No fundo – disse [Daniel] sem olhar Mathieu –, estou contente de não ter
dinheiro. Você quer ser livre, eis uma oportunidade para um ato de liberdade”.
127
Daniel propõe a Mathieu que ele se case com Marcelle; Mathieu era sim livre para
se casar, para ter três ou quatro filhos, tornar-se um detestável burguês como seu
irmão, Jacques, o próximo da sua lista de possibilidades que lhe garantiria a
liberdade de livrar-se da responsabilidade do filho que crescia no ventre de Marcelle.
Porém, também é um ato livre a escolha do aborto e a negação de toda
possibilidade de se unir à namorada; é preciso encontrar alguém que lhe empreste
dinheiro. Ele vai à casa de seu irmão.
125
SARTRE, 1996, p. 67.
126
SARTRE, 1996, p. 114.
127
SARTRE, 1996, pp. 120-121.
58
“Mas parece-me que com as tuas idéias eu faria questão de não dever nada a
um horroroso burguês. Porque eu sou um horroroso burguês – acrescentou, rindo
alegremente”.
128
O drama pessoal se agrava, na medida em que o irmão lhe nega 4
mil francos para fazer o aborto, mas lhe oferece 10 mil para que ele se case; ser
livre, mesmo no plano individual, remete inelutavelmente ao outro: Marcelle, Daniel,
Jacques, e à situação de dificuldade financeira vivida por Mathieu. Não se trata
unicamente de escolher o que lhe aprouver, pois, se o pudesse, ele voltaria ao
momento da concepção e o desfaria (ele pensa nisso); ou mesmo, se pudesse teria
o dinheiro para o aborto. Sua liberdade é colocada à prova inicialmente pelo fato de
sua namorada estar grávida e, a seguir, pelo fato de não ter a quantia necessária
para o aborto e tentar, sem sucesso, que outro lhe empreste.
A Espanha está em guerra civil e uma notícia estampada em um jornal lido ao
acaso põe em relevo a força da situação: “Por que não tive vontade de lutar?
Poderia escolher outro mundo? Sou ainda livre? Posso ir aonde quero, não encontro
resistência, mas é pior, estou numa gaiola sem grades, separado da Espanha por...
por nada, e no entanto esse outro mundo é intransponível”.
129
Resta-lhe recorrer a
Brunet que, de chofre, ao invés de dinheiro lhe propõe o ingresso no Partido
Comunista, com a alegação que, se Mathieu “renunciou a tudo para ser livre. Dê
mais um passo e renuncie à própria liberdade.”
130
Porém, isso não resolve o
problema com Marcelle e, parece, há muito Mathieu é escravo da própria liberdade;
ele é, no primeiro volume dos Caminhos da Liberdade, prisioneiro de si mesmo. Ao
fim encontra-se só, sem conseguir o que buscava, mas ainda assim livre.
“Minha liberdade? Ela me pesa. Há anos que sou livre à toa. Morro de
vontade de trocá-la por uma convicção”
131
, é o que ele diz a Brunet. Mas na verdade
ele está convicto de que ser livre é jamais se engajar, é nunca se comprometer;
trata-se de uma liberdade vazia e sem sentido, ou, a liberdade por si mesma. Ao
cabo fica sozinho, “Só, porém não mais livre do que antes”; e não há a quem culpar,
afinal “Ninguém entravou a minha liberdade; foi minha vida que a bebeu”. O sem
128
SARTRE, 1996, p. 127. Ainda, Jacques afirma que: “Eu imaginava que a liberdade consistisse em
olhar de frente as situações em que a gente se meteu voluntariamente e aceitar as
responsabilidades. Não é por certo tua opinião: condenas a sociedade capitalista e, entretanto, és
funcionário nessa sociedade. Proclamas uma simpatia de princípio pelos comunistas, mas tem
cuidado em não te comprometeres. Nunca votaste. Desprezas a classe burguesa e, no entanto, és
um burguês, filho e irmão de burgueses, e vives como um burguês”. SARTRE, 1996, p. 133.
129
SARTRE, 1996, p. 139.
130
SARTRE, 1996, p. 145.
131
SARTRE, 1996, p. 149.
59
sentido da liberdade pela liberdade aparece de forma desdenhosa, na medida em
que “Essa vida era-lhe dada à toa, ele não era nada e, no entanto, não mudaria
mais”.
132
A ilusão de ser livre sozinho, conforme seria em O Ser e o Nada, acaba
esbarrando na existência do outro; e é justamente esse outro a medida utilizada por
Mathieu para entender sua liberdade.
A noção de liberdade vai aos poucos se desenhando para o nosso herói, na
medida em que um fato corriqueiro (dificuldade financeira) o leva a encarar sua
liberdade pelos olhos de seus amigos. E o que cada um deles pensa sobre a
liberdade não deve ser desconsiderado: a desastrada decisão de Daniel que, para
ajudar Marcelle a se casar forja um romance que enciumaria Mathieu, mostra que
para ele ser livre é estar desprendido e fazer qualquer coisa de modo gratuito;
Jacques, por sua vez, admite que já foi livre, mas entende a liberdade como
assunção da vida séria e de suas origens, no caso, a burguesia; ele inclusive
oferece a Mathieu mais dinheiro do que foi pedido, desde que o irmão se case e se
assuma burguês; por fim, Brunet lhe propõe a renúncia da liberdade em favor do
engajamento no Partido Comunista. Essas três escolhas do sentido muito particular
que cada um tem de liberdade contrasta enormemente com a fuga de todo e
qualquer tipo de compromisso, buscada por Mathieu.
133
A reviravolta não tarda e, logo no segundo volume de Os caminhos da
liberdade, Sartre mostra a ilusão de ser livre no plano individual: Sursis escancara
de que maneira acontecimentos políticos podem redirecionar ou, mesmo, determinar
a situação humana. É o que nos diz o filósofo, primeiro com respeito à Idade da
Razão: “Durante a bonança enganosa dos anos 37-38, havia pessoas que ainda
podiam conservar a ilusão, em certos meios, de ter uma história individual bem
separada, bem estanque. Por isso escolhi narrar A Idade da Razão como fato
ordinário, mostrando somente as relações de alguns indivíduos”. E conclui sobre a
mudança ocorrida em Sursis: “Mas com as jornadas de setembro de 1938, os diques
se quebram. O indivíduo, sem cessar de ser uma mônada, se sente engajado em
uma divisão que o ultrapassa. Ele estabelece um ponto de vista sobre o mundo, mas
se surpreende em vista da generalização e da dissolução. (...) Reencontram-se em
Sursis todos os personagens de A Idade da Razão, porém perdidos, circunscritos
132
SARTRE, 1996, p. 351.
133
“E subitamente pareceu-lhe ver sua liberdade. Estava fora de alcance, cruel, jovem e caprichosa
como a graça”. SARTRE, 1996, p. 256.
60
por uma multidão de outras pessoas”.
134
O pano de fundo, enfim, se confunde com a
história.
De fato, Sursis se inicia em meio a uma enorme tensão: a guerra é iminente,
e Mathieu descansa ao sol. “Estamos todos um tanto estressados com essas
ameaças de guerra”.
135
Todos, de fato! Daniel e Marcelle enquanto passeiam pelo
campo, Brunet em sua organização comunista, Jacques enquanto cuida de seus
negócios, e Mathieu, na villa de seu irmão: “‘Como vai ser chata essa guerra’,
pensou. E depois da guerra? Seria ainda um outro mar. Mar de vencidos? De
vencedores?”.
136
O herói, perdido na multidão de novos personagens que a seu
modo vivem a tensão da guerra, acorda; “Pôs as pernas para fora da cama, ergueu-
se, tirou o pijama. ‘para quê?’ E deixou-se cair novamente de costas, inteiramente
nu, as mãos sob a nuca; (...). Antes, eu carregava os dias às costas, fazia-os passar
de uma margem a outra; agora eles é que me carregam”.
137
Parece a mesma
situação canhestra de liberdade e de escolhas frívolas de A Idade da Razão, mas
apenas parece.
A história bate a porta de Mathieu, ou melhor, um cartaz começou a visá-lo;
“Mathieu leu: ‘Deverão dirigir-se ao local de convocação indicado’ e pensou: ‘Mas eu
tenho a ordem nº 2!’”.
138
A liberdade se esvai entre os dedos: era preciso rever sua
vida, transferir a namorada para seu apartamento, dar-lhe uma procuração para que
ela receba por ele o ordenado; “Se eu tivesse feito o que queria, se ao menos uma
vez, uma única vez, eu tivesse podido ser livre, nem por isso minha vida teria
deixado de ser uma trapaça, pois eu teria sido livre para a paz (...) e agora estaria do
mesmo jeito aqui...”
139
Essa postura determinista de Mathieu não combina com seu
discurso libertário de outrora. É verdade que ele ousou pensar-se livre e sua
liberdade era justamente a fuga de todo e qualquer comprometimento; porém, agora,
está comprometido com a guerra e sua resignação não passa despercebida para
seu irmão.
“A essa altura, estoura a guerra e mandam-no para as trincheiras, e o
revoltado, o subversivo, parte direitinho, sem discussão, dizendo: parto porque não
134
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 113.
135
SARTRE, 2005d, p. 27.
136
SARTRE, 2005d, p. 55.
137
SARTRE, 2005d, p. 74.
138
SARTRE, 2005d, p. 81.
139
SARTRE, 2005d, p. 84.
61
posso deixar de partir!”, lhe diz Jacques.
140
Mathieu não discute, nunca teve
oportunidade de formar uma opinião a respeito; sabia-se livre, queria-se livre, mas a
guerra roubara-lhe o futuro. Melhor, ela havia roubado o futuro de todos: “Gros-Louis
titubeava (...), Philippe chorava (...) exilado dentro da noite fria e miserável, a noite
cinzenta das encruzilhadas, Mathieu despertara, levantou-se, pôs-se à janela, ouvia
o murmúrio do mar, sorriu para a linda noite cor de leite”.
141
O personagem é apenas
mais um na história que se move, que traça seus próprios caminhos, caminhos feitos
pelas atitudes individuais da multidão de personagens, em suas fugas, na
apresentação dos soldados, na caça aos fascistas; a escolha que cada homem faz
de si faz a história, e as escolhas de cada um, por sua vez, estão intimamente
ligadas ao movimento histórico.
Pode-se evitar o curso dos acontecimentos? Pode-se fugir da força
implacável da guerra? “Ele desertara e o céu conservava seu arzinho camarada dos
domingos, as ruas cheiravam a comida fina, pastéis, galetos, família”.
142
Para quem
jamais assumiu uma posição, fugir não é nenhum sacrifício, afinal os desertores não
existem. A culpa por fugir enquanto milhões de compatriotas morrem é explicada
racionalmente, afinal eles já traziam a morte consigo desde o nascimento; além
disso, a humanidade continuará a não ir à parte alguma. Enfim, há sempre uma
razão plausível para não se comprometer. “Não tinha nada com isso. Recusar,
cruzar os braços, ou fugir para a Suíça. Por que? Não sinto isso. Não tenho nada
com isso. A guerra na Espanha, tampouco tinha nada com ela. Nem com o Partido
Comunista. Mas o que é da minha conta?”
143
Até mesmo a vergonha de aparecer
bronzeado a Gomez (amigo que lutava contra o fascismo na Espanha) por estar à
toa na praia passa rapidamente; a liberdade de Mathieu o torna impermeável a seu
tempo e, claro, isso exige uma boa dose de cinismo.
Gomez lembra a Mathieu que os franceses jamais compreendem nada, pois
eles têm medo; “Culpado, culpado e francês”.
144
Mas o que pode a culpa ante a
liberdade? E mesmo a coragem, o que pode? Gomez havia lutado, haviam atirado
nele; em Madrid se luta na cidade universitária e, mesmo com a guerra perdida, a
luta continua. Mathieu é livre, e embarca para sua casa. Nosso herói “jogara e
140
SARTRE, 2005d, p. 103.
141
Basta ver a situação apreensiva da multidão de personagens. SARTRE, 2005d, p. 188.
142
SARTRE, 2005d, p. 203.
143
SARTRE, 2005d, p. 252.
144
SARTRE, 2005d, p. 260.
62
perdera, sua vida ficara para trás, fracassada. (...) Restava o próprio
acontecimento”.
145
A guerra, essa coisa que não existe, ultrapassava-o, estava em
tudo e em nenhum lugar – o trem corria na noite da guerra: “A guerra: todos são
livres e no entanto a sorte está lançada. Ela está aqui, está por toda parte, é a
totalidade de todos meus pensamentos, de todas as palavras de Hitler, de todos os
atos de Gomez; mas não há ninguém para estabelecer o total. Só existe para Deus.
Mas Deus não existe. Contudo a guerra existe”.
146
Em sua casa Mathieu se reencontra consigo, com as coisas que deixou sem
terminar, com seus amigos, com quem ele era. Todos seus projetos estavam ali,
marcas indeléveis de si mesmo; no entanto algo havia mudado desde a iminência da
guerra. “Em julho o Dôme não tinha limites precisos, escorria dentro da noite pelas
vidraças e pela porta giratória, (...). Agora (...) o Dôme estava reduzido à expressão
mais simples: uma coleção de mesas, de bancos, de vidros, secos, encolhidos,
privados daquela luminosidade difusa que era sua sombra noturna”.
147
Também ali a
primeira noite da guerra havia chegado, também ali algo que não existe agia e
deformava o ambiente, também ali a história era feita; na verdade, mesmo que
apenas agora nosso herói tenha se dado conta, a deformação invisível da guerra já
havia transformado o país inteiro.
“Uma nuvem rasgou-se no céu e duas estrelas surgiram. Mathieu pensou: ‘é a
guerra’”.
148
Por mais que ele tente negar, fingir, fugir, a guerra cai sobre ele e o
esmaga; “‘Sou livre’, pensou subitamente. E sua alegria transformou-se de imediato
em esmagadora angústia”.
149
Mathieu descobre, enfim, que a liberdade que buscara
por tanto tempo, fazendo o que queria ou simplesmente não se comprometendo,
não era mais que uma trapaça. Não há liberdade naquilo que se faz, pois os atos
efetuados tornam-se passado; não há liberdade naquilo que se escolhe porque a
escolha é a exclusão de todas as demais possibilidades. Nosso herói se dá conta de
que “essa liberdade, procurei-a bem longe; estava tão próxima que não podia ver,
não podia tocá-la, era apenas eu. Eu sou minha liberdade”.
150
Na história, vivendo
uma situação histórica, Mathieu se descobre: independente da força inexistente que
tudo muda, ele é livre.
145
SARTRE, 2005d, p. 314.
146
SARTRE, 2005d, p. 318.
147
SARTRE, 2005d, p. 338.
148
SARTRE, 2005d, p. 341.
149
SARTRE, 2005d, p. 343.
150
SARTRE, 2005d, p. 353.
63
Chama a atenção o modo ordinário utilizado por Sartre para revelar a
liberdade a Mathieu: numa Paris vazia, desolada pelo primeiro dia de guerra. Não há
como desprezar as dezenas de outros personagens que, a seu modo, vivem a
mesma situação e livremente a significam para si mesmos; mas o caso de Mathieu é
paradigmático justamente porque ele se reconhece livre num estado de recessão,
num momento crucial para todo um povo e, ademais, para todos os povos. A
liberdade ontológica se apresenta em sua completude: “a liberdade é o exílio, e
estou condenado a ser livre”. Mesmo com seu futuro hipotecado, decidido por outras
pessoas (apresentar-se e lutar), cada homem é, assim como Mathieu, livre – “livre
para nada!”
151
Não há o que se faça, ou o que possa ser feito, para limitar a
liberdade; nenhum ato coloca a liberdade em risco.
Mathieu pensa em se matar, ou melhor, em se jogar no rio e devolver sua
liberdade, torná-la água; desse modo se livraria de si mesmo, da horrível liberdade.
Não o faz. Muito pelo contrário, toma uma atitude que contraria seu caráter: finge ser
policial, evita um linchamento e, de resto, paga o táxi para Irène e o rapaz que havia
sido espancado.
152
Reconhecer-se livre é o primeiro passo para a liberdade; não se
trata de casar ou não casar, de fazer ou não um aborto, de roubar, de submeter-se
ao Estado, de ser comunista, de ajudar... “É, sou um burguês. (...) Sou professor.
(...) gosto de você”.
153
Essas poucas palavras, ditas à Irène, definem aquilo que se
constrói, socialmente, como uma carapaça que esconde o fundamental, ou seja, que
ser homem é ser liberdade. Enfim, Mathieu sabe quem ele é após descobrir o que
ele é; assim vai dormir, vai acordar, vai para a guerra. “Acabou-se! Amanhã, Nancy,
a guerra, o medo, a morte talvez, a liberdade”.
154
Mathieu se apresenta, mas não há guerra. O acordo entre as potências muda
o rumo de tudo aquilo que havia sido pensado, planejado, odiado, vivido, projetado.
“Tantos trens rodando pela França, tanta dor, tanto dinheiro, tantas lágrimas, tantos
gritos em todas as estações de rádio do mundo, tantas ameaças e desafios em
todas as línguas, tantos conciliábulos para chegar a isso: rodar em volta de um pátio
ou jogar níqueis na poeira”.
155
A história havia pregado uma peça em Mathieu, na
Europa, no mundo; a história? Sartre mostra, com situações vividas pelos líderes
151
SARTRE, 2005d, p. 354.
152
SARTRE, 2005d, pp. 358-371.
153
SARTRE, 2005d, pp. 370-371.
154
SARTRE, 2005d, p. 392.
155
SARTRE, 2005d, p. 435.
64
mundiais, o acordo e os personagens acordantes. Mais uma vez a história, feita por
homens e na mesma medida fazendo homens; homens livres na história. “Mathieu
recomeçou a andar no pátio. ‘Permanecerei livre’, pensou”.
156
Assim, Sursis mostra de maneira clara que a liberdade fora da história não é
mais que uma falácia encenada pelos personagens de A Idade da Razão e, por que
não, por Roquentin. Pode-se ver aqui o abandono do projeto de liberdade absoluta
de O Ser e o Nada? Será que, já em 1945, Sartre havia abandonado as
consciências mortas de Entre quatro paredes e entrado no mundo dos vivos do
marxismo? De maneira alguma. Na mesma medida em que não se trata da
ontogênese privada pela qual cada para-si cria, significa e é responsável por seu
mundo, não se trata de simples determinação das atitudes dos personagens. A
indicação mais coerente é a de que, desdobrando-se da nefasta situação do ser-
para-outro, Sartre aponta, em sua literatura, para a próxima figura de seus trabalhos
técnicos: a alienação da liberdade e, desse modo, o grupo, a sociedade e a
história.
157
Mas é cedo para tais afirmações; o que se pode afirmar é que em Sursis
Sartre mostra como os acontecimentos políticos e sociais interferem naquilo que se
acredita ser a vida pessoal. Mostra ainda que, para além do homem só há a história
e essa, por sua vez, está em curso; ora, a situação se alarga: ser-para-si é ser livre e
em situação, sendo que essa situação extrapola os projetos de vida individuais e se
encaminha até a história da humanidade.
158
Outra indicação bastante forte de que todos os personagens, de Sursis ou de
A Idade da Razão, são livres, é o fato de Sartre ainda os considerar de má-fé: desde
O Ser e o Nada Sartre afirma que a condição primordial da ação é a liberdade. Ora,
todos seus personagens, nalguma medida, agem; Mathieu busca a liberdade na sua
pureza extrema; Brunet se engaja num partido.
159
Pode-se dizer que eles são, por
isso, livres? Fazem escolhas, é verdade. Mas Sartre parece ter uma noção mais rica
156
SARTRE, 2005d, p. 436.
157
É preciso notar que a idéia de alienação da liberdade está presente em O Ser e o Nada: é
justamente o aparecimento do outro que coloca a liberdade do para-si em risco, que aliena sua
liberdade. Mas também é preciso colocar em relevo a passagem da objetivação individual do para-si
(que se dá na ontologia) para sua objetivação social que, em razão da ampliação da situação
(historicidade do para-si) leva à alienação de fato da liberdade (alienação histórica, no sentido
marxista do termo).
158
Interessa notar que, a despeito da contradição que parece se instaurar, Sartre vai justamente
buscar, na Crítica da Razão Dialética, resposta para a seguinte questão: como pode o homem
livremente fazer a história e essa se voltar contra ele e determiná-lo? SARTRE, 2002, pp. 185-189.
159
Outro tanto poderia ser dito dos demais personagens e da significação muito particular que cada
um tem da morte.
65
da liberdade que não é a simples escolha que faz cada um de seus personagens e,
ainda menos, a possibilidade de mudar seus atos, saindo assim do inferno (como
seria em Entre quatro paredes); mesmo na história, a liberdade continua essencial e
fundamental no pensamento do filósofo.
160
Por enquanto é suficiente ver o que Sartre diz da liberdade de Mathieu e
Brunet no que se refere à Sursis: “Mathieu encarna essa disponibilidade total que
Hegel nomeia liberdade terrorista e que é verdadeiramente a contra-liberdade. (...)
Ele não é livre porque ele não soube se engajar. (...) Mathieu é a liberdade de
indiferença, liberdade abstrata, liberdade para nada. Mathieu não é livre, ele não é
nada, porque ele está sempre fora. (...) Brunet encarna o espírito de seriedade, que
crê nos valores transcendentes, escritos no céu, inteligíveis, independentes da
subjetividade humana, colocados como coisas. (...) Ele não é livre. O homem é livre
para se engajar, mas ele não é livre a menos que se engaje por ser livre. Há uma
outra vida militante que é aquela de Brunet. Mas Brunet é um militante ao qual falta
sua liberdade”.
161
Assim, a literatura de Sartre mostra que ele amplia a noção de
situação e mantém a mesma noção de liberdade. Trata-se, é verdade, da liberdade
ontológica, segundo a qual ser homem é ser liberdade arraigada numa situação e,
ainda que essa situação seja ampliada até os limites da determinação histórica,
nada pode mudar no que concerne ao indivíduo.
Na terceira parte dos caminhos da liberdade Mathieu está no front, com a
certeza de que a guerra estava perdida; “Tinham perdido a guerra como se perde o
tempo: sem o perceber”.
162
O sentimento de ser universal por ser francês mostra-se
um engodo; ainda assim, na opinião de Mathieu, é melhor ser um alemão vivo que
um francês morto, afirmação estranha, já que sai da boca de alguém que pensou em
se matar para se livrar da terrível liberdade. “Calou-se. Pensou subitamente: será
preciso viver. Viver, colher dia após dia os frutos embolorados da derrota, trocar em
miúdo essa escolha total a que se recusava agora”.
163
Noutras palavras, mesmo
perante a derrota era preciso continuar, era preciso ser livre. Verdade que não era
mais homem, que devia acatar ordens, que seria prisioneiro; entretanto, antes de
tudo isso Mathieu era livre, que seja para nada, mas o era.
160
Ao que parece, Sartre propõe uma utopia, ou, o reino da liberdade: “Logo que existir, para todos,
uma margem de liberdade real para além da produção da vida, o marxismo desaparecerá; seu lugar
será ocupado por uma filosofia da liberdade”. SARTRE, 2002, p. 39.
161
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 115.
162
SARTRE, 1983a, p. 42.
163
SARTRE, 1983a, p. 55.
66
Porém, sua liberdade é imediatamente condensada num bocejo: “Olham-nos.
Cada vez mais densa, a multidão via-os engolir essa pílula histórica; envelhecia e
afastava-se recuando e murmurando: ‘Os vencidos de 40, os soldados da derrota,
por causa deles é que estamos algemados’”.
164
A coisa invisível reaparece, não
mais no olhar de uma pessoa, mas pelo olhar de uma multidão; agora é a história,
esse olhar superior, que rouba a liberdade de Mathieu, fazendo-o sentir-se um
objeto, um soldado vencido, o culpado pela ocupação.
165
Estava ali, um inumano,
demasiado humano além do desespero, um homem simplesmente, que teria feito
tudo para que a guerra não estivesse perdida. Teria? “Se houvesse alguma coisa a
fazer...”
166
Mas o que pode um soldado quando seu exército assina o armistício? O
que pode um indivíduo em sociedade, ou melhor, o que pode um homem frente a
força irresistível da história?
O que Mathieu, apenas ele, pode fazer? Quebrar um vidro, ter filhos,
beber?
167
E se ele sozinho nada podia, o que poderia o exército? “O céu estava
vermelho, na terra era tudo fresco e azul. Embaixo das mãos, sob as nádegas,
Mathieu sentia a vida confusa da relva, dos insetos e da terra, era como uma grande
cabeleira áspera e molhada, cheia de piolhos; era uma angústia nua em suas mãos.
Milhões de homens acuados entre o Vosges e o Reno pela impossibilidade de
serem homens (...)”.
168
A contradição se acirra pois, se a história é feita por homens,
por que os milhões de homens nada podiam fazer? Naquele paraíso do desespero
só havia uma certeza: os alemães continuavam a caminho e, em pouco tempo
estariam ali; mas bastava matar um deles e eles queimam tudo, pensou Mathieu.
Mesmo assim Pinette, um amigo do front, decide se juntar aos soldados que ainda
resistiam – ‘vai morrer à toa’, pensa Mathieu.
“No fundo eu é que deveria ir para a guerra em seu lugar. Porque eu não
tenho muitos motivos pra viver”, disse Mathieu.
169
Deveria, mas ter fé é inútil, afinal
cometer um erro não é a liberdade; morrer e ser eterno numa França devastada, ou
ter as cinzas sob o Arco do Triunfo, ou mesmo uma estátua... Nenhuma dessas
opções vale a pena. Além disso, a aldeia certamente seria incendiada pelos alemães
164
SARTRE, 1983a, p. 76.
165
Trágicos: nem sequer, históricos: nem sequer, somos cabotinos, não valemos uma lágrima;
predestinados: nem mesmo isso; o mundo é uma loteria”. SARTRE, 1983a, p. 77.
166
SARTRE, 1983a, p. 86.
167
SARTRE, 1983a, pp. 122-123.
168
SARTRE, 1983a, p. 150.
169
SARTE, 1983a, p. 175.
67
como represália pela resistência; entretanto, como sempre há razões bastante
plausíveis para nada fazer (seria o mesmo para fazer), Mathieu acompanha seu
amigo até o campanário no qual uma cilada estava sendo armada para o momento
da chegada dos alemães.
“‘Meu lugar é lá embaixo, meu lugar é lá embaixo’, mas sentia no coração que
nunca mais poderia descer”.
170
Mathieu, depois de instalado no lugar para o
combate, ainda assim titubeia; ele sabe que poderia estar fugindo ou se rendendo,
como tantos outros fizeram ou farão. Mas não. A guerra estava perdida e ele ia
morrer, morrer para nada; já estava decidido, sem desculpas e sem remorso, que ele
lutaria livremente, para nada continuaria ali e, por certo, morreria.
171
Enfim, chegam
os alemães, chega a guerra, e nosso herói mata seu primeiro inimigo; “Durante anos
tentara agir em vão: roubavam-lhe seus atos; não lhe davam importância. Mas
dessa feita não lhe tinham roubado nada. Apoiara no gatilho e por uma vez alguma
coisa acontecera. Alguma coisa de definitivo, pensou rindo ainda mais”.
172
Uma
morte havia sido seu ato de engajamento gratuito, de entrada na história, de
aceitação daquilo que até então não existira para ele; a guerra era, agora, sua obra,
seu rastro, a prova de sua passagem por esse mundo.
Antes de aceitar a heróica resistência à investida alemã Mathieu sabia que ela
era inútil; não representava mais que um atraso na marcha dessas tropas. Mas o
fez, e isso não pode ser roubado dele: “Por Deus – disse em voz alta –, não hão de
dizer que não agüentamos quinze minutos”.
173
Ora, passaram 30 segundos,
precisamente o tempo que ele é livre:
Aproximou-se do parapeito e pôs-se a atirar de pé. Era um enorme revide:
cada tiro vingava-o de um antigo escrúpulo. Um tiro em Lola, que não ousei
roubar, um tiro em Marcelle, que deveria ter largado, um tiro em Odette,
que eu não quis comer. Este para os livros que não ousei escrever, este
para as viagens que recusei, esse para todos os sujeitos, em conjunto, que
tinha vontade de detestar e procurei compreender. Atirava e as leis voavam
170
SARTRE, 1983a, p. 192.
171
“‘Vou morrer por nada’, e tinha dó de si próprio. Durante um segundo suas recordações agitaram-
se como folhas ao vento. Todas as recordações: ‘Eu gostava da vida’. Uma interrogação inquieta
apertava-lhe a garganta: ‘Tinha o direito de abandonar os camaradas? Tenho o direito de morrer por
nada?’ Endireitou-se, apoiou a mão no parapeito, sacudiu a cabeça com raiva. ‘E basta! Tanto pior
para os que estão lá embaixo, tanto pior para todos. Chega de remorsos, de escrúpulos, de
restrições; ninguém é juiz de meus atos, ninguém pensa em mim, ninguém se lembrará de mim,
ninguém pode decidir por mim’. Decidiu sem remorso, com pleno conhecimento de causa. (...)
‘Decidido que a morte era o sentido secreto de minha vida, que vivi para morrer; morro para
testemunhar que era impossível viver; meus olhos apagarão o mundo e o fecharão para sempre’”.
SARTRE, 1983a, pp. 199-200.
172
SARTRE, 1983a, p. 214.
173
SARTE, 1983a, p. 221.
68
para o ar, amarás teu próximo como a ti mesmo, pam! nesse salafrário, não
matarás, pam! nesse hipócrita aí da frente. Atirava no homem, no Mundo: a
liberdade é o Terror; (...). Atirou: era puro, todo poderoso, livre.
174
O terceiro livro de Os caminhos da liberdade responde nossa pergunta: o que
é a liberdade? Em Com a morte na alma encontra-se a superação dos empecilhos
que não permitiram a Sartre aceitar que, em Sursis, Mathieu ou Brunet eram livres,
afinal um se engaja prisioneiro e o outro jamais se engaja; para ser realmente livre
Mathieu, na terceira parte da trilogia, engaja-se sem pretensão alguma, de modo
livre e gratuito.
175
É certo que tal engajamento envolve riscos, de vida inclusive
(como no episódio em que ele luta inutilmente, já que não impediria – e ele sabia
disso – o avanço das tropas alemãs), mas nem por isso o exercício autêntico da
liberdade pode estar apegado a causas transcendentes ou reduzir-se a atos
isolados. O verdadeiro ser livre não prescinde do curso da história e nem é por ele
determinado; a liberdade engajada, comprometida com a história humana em vista
de interesses comuns é, para Sartre, a autêntica liberdade.
Assim, com a análise direcionada dos textos mais relevantes de Sartre que
antecedem e sucedem imediatamente O Ser e o Nada, chega 1945; foi possível ver
que a conversão ao marxismo já estava em curso em 1943. Mas é verdade que
Sartre vacila com a noção de engajamento porque, se de um lado amplia a situação,
encaminhando-a à história, de outro quer manter a liberdade ontológica assegurada
em O Ser e o Nada. Qual a saída que se pode encontrar em seus textos? A
bibliografia de 1945 é decepcionante em relação a essa questão, ao menos até ler o
artigo A libertação de Paris: uma semana de apocalipse.
176
Para não ser injusto com
o autor é preciso lembrar que, enquanto correspondente jornalístico nos Estados
Unidos, ele não abandonou seus questionamentos políticos e sociais; por exemplo,
em Ce que j’ai appris du problème noir Sartre mantém sua afeição pelo marxismo:
“O problema do negro não é nem um problema político nem um problema cultural:
174
SARTRE, 1983a, p. 222. (grifo nosso)
175
“Mathieu encontrará seu amor e seu projeto. Ele se engajará num engajamento livre, que dará a
ele um sentido para o mundo. Esse será o assunto de A última chance” (esse seria o nome do
terceiro volume dos Caminhos da liberdade). CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 207.
176
1945: Participação na Discussion sur le péché, Un Collège spirituel, Une grande revue française à
Londres, série de Reportages aux États-Unis (temas variados), Retour des États-Unis ; Ce que j’ai
appris du problème noir, L’homme ligoté : Notes sur le Journal de Jules Renard, New writing in
France, Quand Hollywood veut faire penser... ; Citizen Kane d’Orson Welles, La libération de Paris :
Une semaine d’apocalypse, Qu’est-ce qu’un collaborateur ?, Présentation des Temps Modernes, La
fin de la guerre, A la Kafka, La Nationalisation de la littérature, La Liberté cartésienne, Qu’est-ce que
l’existentialisme ? Bilan d’une offensive, Portrait de l’antisémite, Entretiens. CONTAT & RYBALKA,
1970, pp. 111-130.
69
os negros pertencem ao proletariado americano, e sua causa é a mesma que a dos
trabalhadores brancos. (...). Todo o progresso, na América, depende, no fundo, da
evolução da classe trabalhadora”.
177
Também se pode ver a conversão em curso no crescente que toma a idéia de
engajamento do escritor, como por exemplo, em L’homme ligoté : Notes sur le
Journal de Jules Renard, no qual Sartre busca mostrar que a alienação do homem
se repete naquilo que é escrito por um romancista; e em New writing in france, no
qual Sartre distingue espécies de escritor: Bataille, Blanchot e Anouil, que ficaram
presos ao período anterior à guerra e desse modo não passarão para a posteridade;
Leiris, Cassou e Camus, que nasceram da Resistência e representam o futuro da
literatura. A esse respeito, basta dizer que, independentemente da precisão da
crítica literária de Sartre ou a despeito da confirmação ou não de sua previsão, fica
claro que a preocupação com a história de seu tempo e com a irrupção dela na vida
de cada homem se torna cada vez mais presente; são essas idéias que culminarão,
em 1947, em Que é a literatura?
178
Voltando à Libertação de Paris, pode-se ver o nascimento da idéia que
permite equacionar a manutenção da liberdade individual e a ampliação do conceito
de situação, idéia essa que também está presente no horizonte dos Caminhos da
liberdade, em especial em Com a morte na alma (é preciso lembrar que o terceiro
volume apenas foi publicado em 1949). Em linhas gerais, nesse artigo Sartre
aproxima a insurreição parisiense à revolução francesa, considerando que nos dois
momentos ocorreu uma organização espontânea de forças revolucionárias. Trata-se
do engajamento livre na causa da liberdade: “De resto – isto é, no que concerne à
sua segurança pessoal, às chances que eles tinham de sair vivos da aventura – eles
não queriam nem pensar”.
179
Alguma semelhança com a atitude final de Mathieu?
Todavia, o que pode ter esse fato de tão especial? É que no caso da
insurreição não houve uma organização prévia, mas uma junção aleatória de
indivíduos que, a seu modo e por livre decisão, escolheram lutar. Enquanto os
parisienses que não se mobilizaram para combater se perguntavam, angustiados, se
as tropas aliadas iriam conseguir salvá-los, os insurretos iam para as ruas em
mangas de camisa, armados com revólveres, fuzis, granadas ou mesmo
177
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 123.
178
SARTRE, 1969, pp. 21 ss.
179
SARTRE, 1970a, p. 660.
70
desarmados – eram, pois, livres. “Sua disciplina inventada a cada minuto triunfava
sobre a disciplina aprendida; (...) O Apocalipse: isto é, uma organização espontânea
de forças revolucionárias”.
180
Trata-se do engajamento livre do homem no seu ser,
trata-se da potência da liberdade – a força do homem contra as máquinas de guerra,
contra a organização militar, contra tudo aquilo que pode afastá-lo de seu ser
autêntico, ou, da liberdade mesma.
Enfim, é possível conciliar liberdade e situação histórica graças ao
engajamento; mas esse conceito merece cuidado no pensamento de Sartre. É
comum, em parte graças à interpretação corrente de Que é Literatura? e da
conferência A responsabilidade do escritor (1947), e em parte devido a um desejo
desnecessário de salvar Sartre da acusações de alienação, entender o engajamento
como a tomada de posição do intelectual frente aos fatos de seu tempo. Evidente
que essa idéia não é errada, na medida em que Sartre responsabiliza o escritor por
aquilo que ele escreve; mas, na ânsia de salvar o filósofo alguns comentadores
apresentam uma interpretação equivocada do engajamento. Com relação à
responsabilidade do intelectual haverá oportunidade de falar mais adiante. O que
importa agora é desfazer o equívoco comum de identificar o engajamento
unicamente com a assunção de uma posição, preferencialmente de esquerda.
No caso de Mathieu, como foi visto, não importa a posição que ele assuma,
seja na sua vida particular, seja na sua atuação política: ele jamais tomou partido
algum. E, no entanto, há um momento em que ele é efetivamente livre: quando, sem
qualquer chance de conseguir o que ele buscava (impedir o avanço das tropas
alemãs), ele se lança com todas suas forças em vista de um objetivo comum, ou
melhor, o objetivo daqueles que ao invés de fugir ou se render, decidiram, por sua
própria deliberação, lutar. É certo que nesse momento o herói dos Caminhos da
liberdade assume a posição de resistente; porém, ele teve chance de fazê-lo antes e
simplesmente não fez. E a recusa de aliar-se ao Partido comunista é bastante
esclarecedora: contrariamente ao que afirmam aqueles que, para salvar Sartre,
entendem o engajamento como a assunção de uma posição política (daí o clichê
intelectual engajado), na verdade o engajamento requer liberdade para engajar e, do
mesmo modo, que o objetivo a ser alcançado seja unicamente a liberdade.
180
SARTRE, 1970a, p. 661.
71
Apenas assim é possível entender por que Brunet não é livre: ele está
engajado no partido, e a ele falta liberdade; o mesmo vale para Mathieu nas duas
primeiras obras dos Caminhos da liberdade, uma vez que ele não aceita a coação
externa (ou, se a aceita, ela não passa de uma situação que não lhe toca), mas
também não se engaja; sua liberdade é liberdade para nada. Desse modo, o
engajamento é definido numa daquelas frases enigmáticas de Sartre: é a assunção
livre da liberdade em vista de algo comum. Não é justamente isso que se vê ocorrer
na insurreição parisiense? “Nesta batalha cerimoniosa e desproporcional, Paris,
contra os tanques alemães, afirmou a potência humana”.
181
Não se tem, no caso
analisado por Sartre, nem organização hierárquica ou estatal, nem a obrigação, seja
moral ou legal, de que as pessoas lutem; e, no entanto, a população, desarmada e
despreparada, sem nenhuma certeza de que alcançaria a vitória, sai às ruas,
sacrificando sua vida em nome de uma causa desmobilizada mas comum: a
libertação de Paris, a liberdade.
Ora, o que Sartre chama de organização espontânea é o prenúncio do grupo
em fusão, que será a peça chave para superar a dificuldade de solidariedade entre
os para-sis, na qual O Ser e o Nada, com as análises do ser-para-outro, redundou.
Nas palavras de Sartre: “Assim, isso que se vai, cada ano, comemorar oficialmente e
em ordem, é a explosão da liberdade, a ruptura da ordem estabelecida e a invenção
de uma ordem eficaz e espontânea”.
182
Sartre entrevê na queda da Bastilha um fato
histórico no qual há livre e gratuita organização de inúmeras liberdades individuais
em vista de um objetivo comum; e, note-se, a revolta não é feita a partir de
determinada verdade transcendente nem é feita simplesmente por fazer (Brunet e
Mathieu). Trata-se daquilo que Sartre entende por engajamento, ou seja, cada um
dos indivíduos que participou do assalto à Bastilha se engajou, livre e gratuitamente,
buscando um objetivo que era seu e que era de todos; e o fez a partir de sua total
liberdade.
Falta, porém, entender o móbil que faz com que as liberdades (os homens,
evidentemente) se unam em busca de uma causa única; mas um grande passo foi
dado em direção à superação da impossibilidade de associação entre os para-sis.
183
Se for levado em conta apenas o que Sartre escreveu em O Ser e o Nada é preciso
181
SARTRE, 1970a, p. 662.
182
SARTRE, 2002, pp. 450 ss; SARTRE, 1970a, pp. 125-126 e 661.
183
No devido momento veremos que o móbil é a necessidade, conforme SARTRE, 2002, pp. 447 ss.
72
admitir que ou ele deverá abandonar sua ontologia ou não poderá falar da
sociedade; todavia, e espera-se ter mostrado, é justamente da liberdade que o
filósofo parte para dar conta dos fatos sociais. Malgrado o determinismo que
encontra nos fatos históricos, o movimento de uma força inumana e avassaladora
que a todos coage, Sartre mostra que cada fato histórico tem sua origem na atitude
individual de homens, homens livres.
Com progressos e refluxos, chega 1946 e é preciso ao menos fazer referência
ao controvertido O Existencialismo é um humanismo.
184
É inegável que esse é um
dos mais lidos e comentados artigos de Sartre; mas também não se deve
desconsiderar a enormidade de mal entendidos e simplificações grosseiras que esse
texto gerou. Em parte, por culpa do texto mesmo, que trata de temas morais com
exemplos simples e cotidianos, e em parte pela má-fé dos leitores e críticos que, ao
invés de buscar em O Ser e o Nada razões sérias para criticar o filósofo, consideram
esse artigo suficiente para julgarem-se conhecedores de Sartre e, desse modo,
criticá-lo; então, esse é “um volume que Sartre em grande parte renegou”
185
.
Certamente o filósofo tem suas razões.
É bastante conhecida (e utilizada) a maneira simplória pela qual o filósofo
trata de questões éticas em O Existencialismo é um humanismo; mas apenas para
dar um exemplo do modo pelo qual esse texto simplifica e, até mesmo, trai a obra de
Sartre, note-se o caso da explicação dada sobre o que é o existencialismo.
“Consideremos um objeto fabricado, como por exemplo um livro ou um cortador de
papel: tal objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou de um conceito; ele
reportou-se ao conceito do corta-papel e igualmente a uma técnica prévia de
produção que faz parte do conceito, e que é no fundo uma receita”;
186
o conceito é
uma receita! Não há dúvida: qualquer pessoa que leia essa passagem terá claro
para si que Sartre, diferentemente de Heidegger, unicamente inverte os preceitos
básicos da metafísica clássica, enquanto, de fato, em O Ser e o Nada ele segue o
184
1946: Morts sans sépulture, La putain respectueuse (entrevistas sobre), Explication de L’Etranger,
Réflexions sur la question juive, Les mobiles de Calder, Baudelaire, Conversation avec Roger
Troisfontaines, sobre Miracle de la rose, entrevistas, Manhattan: the great American desert, Forgers of
myths: the young playwrights of France, Materialisme et révolution, American Novelists in French
Eyes, Présentation, Sartre dans Paris et dans le monde, La guerre et la peur, Écrire pour son époque.
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 131-153.
185
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 132; ver também LEFORT, 2005, p. 100.
186
SARTRE, 1978a, p. 5.
73
princípio heideggeriano da primazia ôntico-ontológica, não do Dasein, mas do
homem.
187
A continuidade da explicação é ainda mais alarmante: “O homem, tal como o
concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só
depois será alguma coisa, e tal como a si próprio se fizer. (...) Mas que queremos
dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma
pedra ou uma mesa?”
188
Ora, onde estão as difíceis questões referentes à filosofia e
aventadas na introdução de O Ser e o Nada? Onde está a referência à relação pré-
reflexiva do para-si com o em-si? Enfim, de onde Sartre retira essa definição de
existencialismo e de homem que, se não contraria, ao menos coloca sua filosofia
num nível insustentavelmente rasteiro? Não vale a pena continuar. Basta levar em
conta que o próprio filósofo renega essa obra para deixá-la apenas como uma
referência.
Assim como O Existencialismo é um humanismo, as outras publicações de
Sartre no início de 1946 também não ajudam muito quando se trata de mostrar o
alargamento da noção de situação e os efeitos exercidos sobre a noção de
liberdade. É certo que a conversão ao marxismo continua em curso, e é certo que
Sartre não abandonará os assuntos da ordem do dia; como exemplo, pode-se citar
duas peças, Mortos sem sepultura e A prostituta respeitosa, em especial essa
última, que rendeu a Sartre a acusação de anti-americanismo. Isso porque Sartre,
baseado numa história verídica, escreve uma peça de teatro que coloca em xeque a
justiça norte-americana; noutras palavras, o filósofo traz para o palco a maneira pela
qual o racismo está infiltrado em todas as instâncias estatais dos Estados Unidos.
Diante da acusação de anti-americanismo Sartre é taxativo; sua resposta
mostra que ele, além de estar disposto a se envolver com questões políticas, o faz a
partir de opiniões muito bem definidas: “Eu não sou de maneira alguma anti-
americano e eu nem entendo o que ‘anti-americano’ quer dizer. (...) O dever de um
escritor é o de denunciar qualquer injustiça onde quer que ela se encontre, e ainda
187
Basta comparar essa definição de existencialismo com A propos de l’existentialisme : Mise au
point (1944), para perceber que O existencialismo é um humanismo foge do rigor sartriano; a
seriedade e a diferença no tratamento da questão é clara: “Isso significa simplesmente que o homem
é antes e, somente depois, ele é isto ou aquilo; em uma palavra o homem cria para si sua própria
essência; é se lançando no mundo, sofrendo, lutando, que ele se define pouco a pouco; e a definição
está sempre aberta”. CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 655.
188
SARTRE, 1978a, p. 6.
74
mais quando se ama o país que deixa cometer essa injustiça”.
189
Como podemos
ver, seja no teatro, seja na literatura, a injustiça, que jamais figurou no calhamaço de
O Ser e o Nada, passa agora a aparecer com bastante facilidade no pensamento do
autor. Seja como for, se as idéias defendidas por Sartre apontam para a descrição
da sociedade, e para a defesa irrestrita da liberdade, é preciso admitir que no plano
teórico sua filosofia ainda não está completa.
O jogo e a indecisão com respeito à estruturação teórica de seu pensamento
continuam; é o que mostra, por exemplo, a flagrante contradição metodológica que
se encontra na maneira de abordar A questão judaica e a introdução à publicação
dos Escritos íntimos de Baudelaire. Ao falar sobre os judeus, Sartre utiliza elementos
que avançam rumo à Crítica, e que já tinham sido desenvolvidos em A libertação de
Paris: “O judeu está na situação de judeu porque vive numa coletividade que o
considera judeu”;
190
é o anti-semita que, em sociedade (o olhar), faz do judeu um
judeu. Ainda, “O judeu não escapa à regra: em seu caso a autenticidade está em
viver até o limite a condição de judeu, e a inautenticidade está em negar essa
condição ou tentar esquivar-se dela”.
191
A sociedade judia se faz pela assunção livre
do ser judeu na medida em que se pode, também, não sê-lo; mas o fato é que o
judeu aceita sua organização social a partir daquilo que os demais homens
(democratas, anti-semitas, comunistas, etc.) afirmam do judaísmo.
“O judeu autêntico abandona o mito do homem universal: conhece-se a si
mesmo e se reconhece na história como criatura histórica e maldita; deixou de fugir
de si próprio e de envergonhar-se dos seus”;
192
parece claro que Sartre mantém
aqui a noção de engajamento gratuito e entende que essa é a maneira de exercer
de modo autêntico a liberdade. Sartre fala de um grupo e, desse modo, o livre
engajamento faz o judeu autêntico ou não autêntico: os elementos para mostrar o
para-si compondo um grupo historicamente situado já estão preparados. E isso se
repete naquilo que Sartre afirma, em 1966, sobre esse texto: “E eu guardaria minha
distinção entre Judeu autêntico e Judeu inautêntico. A autenticidade não significa
necessariamente que se optou por Israel: um Judeu é autêntico quando ele toma
189
A peça La putain respectueuse, apesar do título chocante, foi baseada no relato de Vladmir Pozner
(Les États désunis) de um fato ocorrido em 1931, em Scottsboro, Alabama: nove homens negros
foram acusados de estuprar duas prostitutas, V. Price e R. Bates; e bastou o testemunho das duas
mulheres brancas para que os nove homens fossem condenados à morte na cadeira elétrica.
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 135-137.
190
SARTRE, 1995, p. 48.
191
SARTRE, 1995, p. 59.
192
SARTRE, 1995, p. 86.
75
consciência de sua condição de Judeu e se sente solidário a todos os outros
Judeus”.
193
Porém, ao redigir a introdução aos Escritos íntimos de Baudelaire, Sartre volta
à noção de escolha original desenvolvida em O Ser e o Nada: “A escolha livre que o
homem faz de si mesmo se identifica absolutamente com aquilo que se chama seu
destino. Para ele, Baudelaire, é o homem que escolheu se ver como se fosse outro;
sua vida não é mais que a história desse revés”.
194
Francamente, um retorno às
categorias de escolha absoluta da significação de sua vida, sem qualquer espaço
para a história; a força das coisas ficou em segundo plano. A ambigüidade
metodológica torna-se ainda mais flagrante quando Sartre, referindo-se ao texto A
questão judaica, afirma que “As insuficiências me saltam aos olhos. Eu devia tratar
do problema de um duplo ponto de vista, histórico e econômico”.
195
Efetivamente, a
história e a economia apenas são utilizadas em 1952, quando o filósofo analisa a
vida e a obra de Jean Genet; porém, enquanto para a questão judaica faltaram os
vieses histórico e econômico, Baudelaire é analisado a partir de sua escolha original.
A encruzilhada entre a liberdade e a força das coisas (história) está cada vez mais
próxima, e buscaremos mostrar que Sartre segue os dois caminhos.
A decisão de seguir os dois caminhos começa a se desenhar no final do ano
de 1946, primeiramente com uma entrevista a Jean Duché e, em seguida, com
Materialismo e revolução que, sem qualquer dúvida, inicia o desdobramento de O
Ser e o Nada em Crítica da Razão Dialética.
196
Na entrevista Sartre afirma que
uma contradição entre materialismo e dialética; essa idéia é desenvolvida em
Materialismo e Revolução, texto no qual Sartre enumera suas objeções
fundamentais ao materialismo dialético. Esse artigo, enquanto rascunho do que será
a Crítica, carece de um estudo mais detido do marxismo, haja vista que Sartre
realmente coloca em xeque a escolástica marxista de 1949.
197
É preciso lembrar, ainda, que se trata da primeira aproximação efetiva do
filósofo à teoria marxista; e se posteriormente Sartre considerará o marxismo a
insuperável filosofia de seu tempo (1960), suas diferenças com o marxismo ortodoxo
e com o materialismo dialético persistirão. “Eu compreendo agora que o
193
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 140.
194
SARTRE, 1975, conforme CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 143.
195
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 140. (grifo nosso)
196
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), pp. 135 ss.
197
A crítica de Sartre não é direcionada ao marxismo, mas à ortodoxia marxista, “Ou, caso se queira,
à Marx através do neo-marxismo stalinista”. CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 149.
76
materialismo é uma metafísica dissimulada sob um positivismo; mas é uma
metafísica que se destrói a si mesma”;
198
trata-se de substituir Deus para contemplar
o espetáculo do universo. Mas o que é feito do homem? Para afirmar a dialética da
natureza é necessário suprimir a subjetividade e, com ela, o próprio mundo humano;
porém, para Sartre a ciência nada mais é que um fato humano.
Nota-se que a primeira aproximação de Sartre ao marxismo não tem outro
objetivo senão garantir um espaço no qual a legitimidade do indivíduo esteja
assegurada; melhor, Sartre faz o primeiro movimento para colocar num único plano
o homem absolutamente livre e a história, ou, a liberdade e o marxismo. Neste
sentido é preciso recusar o materialismo ortodoxo, pois, “Assim, o materialista (...) se
lança num mundo de objetos habitado por homens objetos”.
199
Isso implica, de
antemão, assegurar um espaço para o homem no seio do marxismo e apenas
depois dessa garantia o diálogo poderá ser iniciado; noutras palavras, pressupõe
assegurar um espaço no qual a liberdade do homem atue, ou uma antiphysys: “quer-
se instaurar uma ordem humana na qual as leis sejam precisamente a negação das
leis naturais”.
200
O anteprojeto da Crítica da Razão Dialética tem no horizonte a junção da
liberdade ontológica de O Ser e o Nada com a teoria marxista; e uma filosofia
revolucionária precisa, antes de tudo, livrar-se do mito materialista e mostrar que: o
homem é injustificável e sua existência é contingente; toda ordem coletiva (leis)
pode ser substituída por outra ordem; o sistema de valores de uma sociedade é tão
somente expressão dessa sociedade (não é necessário, portanto); a história está em
curso, ou seja, qualquer que seja a estrutura ou o sistema organizativo, é preciso ter
claro que ele pode ser substituído a qualquer momento por outro, bastando para isso
a ação dos membros da sociedade.
201
A sociedade constituída oferece a imagem de
uma situação na qual as liberdades individuais estão alienadas; assim, o trabalho
revolucionário não é outro que lutar para que o homem seja verdadeiramente livre.
Como isso é possível se, até o momento, Sartre se esmerou por mostrar que
o homem é livre? Mais do que isso, foi visto que a liberdade humana não pode ser
de modo algum restringida, nem mesmo quando a situação se amplia até a história;
se o homem é livre como se pode falar em libertá-lo? “A isso eu respondo que se o
198
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), p. 140.
199
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), p. 141.
200
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), p. 192.
201
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), pp. 193-194.
77
homem não é originalmente livre, mas determinado, não seria possível nem mesmo
conceber o que poderia ser sua libertação”.
202
A liberdade ontológica é fundamental
para que se possa falar em liberdade social; de outro modo, se o homem não fosse
originariamente livre, sua libertação não passaria de uma outra situação que lhe
seria, de fora, imposta.
Porém, essa resposta de Sartre não comporta uma contradição, na medida
em que se torna necessária a ausência de liberdade (em sociedade) para que o
homem possa, graças à opressão, saber-se livre? “De fato, não há oposição entre
essas duas exigências da ação, a saber, que o agente seja livre e que o mundo no
qual ele age seja determinado. (...) A liberdade é uma estrutura do ato humano e
não aparece senão no engajamento; o determinismo é a lei do mundo”.
203
Ora,
desse modo parece menos enigmática a frase de que o engajamento é um ato livre
que busca a liberdade: o homem, originariamente livre, é lançado num mundo
determinado ao qual ele se engaja, no sentido de que sua situação é determinada.
Ainda assim a situação, se não lhe tira sua liberdade, faz com que o homem seja
livre para nada; mas ele pode, livremente, engajar-se em seu ser (na liberdade).
Sartre afirma: “Da mesma maneira não é verdade que um homem livre não
possa sonhar em ser libertado”;
204
não se trata de ser livre e, no mesmo ato, estar
encarcerado, mas a liberdade pode ser o esclarecimento da situação na qual o
homem está lançado. A situação, seja qual for, é resultante da ação de outras
liberdades, e esse é o fundamento da aparente contradição entre ser livre e buscar a
liberdade; a opressão não retira a liberdade ontológica dos homens, mas os coloca
ante o dilema da resignação ou da revolução; “Mas nos dois casos, eles manifestam
sua liberdade de escolher. (...) O socialismo não é senão o meio que permitirá
realizar o reino da liberdade; um socialismo materialista é, portanto, contraditório
porque o socialismo tem como objetivo um humanismo que o materialismo considera
inconcebível”.
205
É preciso, antes, que a liberdade esteja garantida para que ela
possa ser buscada.
Fica claro, enfim, porque nem Mathieu nem Brunet são livres: a noção de
liberdade sartriana vai além do engajamento revolucionário (razões transcendentes,
conforme pensava Brunet) e é muito mais encarnada do que a primeira leitura de O
202
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), p. 208.
203
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), p. 208.
204
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), p. 209.
205
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), pp. 209-210.
78
Ser e o Nada pode fazer parecer (recusar todo engajamento, conforme o fez
Mathieu). Apenas é livre o homem que entende sua liberdade “como um ato pelo
qual ele reivindica a libertação de toda sua classe e, mais geralmente, de todos os
homens. Ela [a liberdade] é, na sua origem, reconhecimento de outras liberdades e
ela exige ser reconhecida pelos demais”.
206
O livre engajamento em vista da
liberdade é um ato social que contraria as relações sociais do modo pelo qual elas
foram descritas nas relações concretas com o outro, em O Ser e o Nada e, ademais,
contraria o inferno descrito em Entre quatro paredes.
O que Sartre realmente faz é alargar a noção de situação a ponto dela não só
permitir a inserção do indivíduo no grupo e, desse modo, ele fazer a história ao
mesmo tempo em que é por ela determinado; além disso, a ampliação da noção de
situação permite a manutenção da liberdade como o fundamento da ação
revolucionária. Ainda que Simone de Beauvoir relate que o filósofo “estava ainda
longe de ter compreendido a fecundidade da idéia dialética e do materialismo
marxista”, declaração com a qual estamos de inteiro acordo com base naquilo que
nos relata Materialismo e Revolução, é preciso ter em conta que não é devido a uma
incompreensão da fecundidade do marxismo (ou falta de conhecimento de causa)
que Sartre inicia sua luta contra o materialismo dialético e contra a dialética da
natureza.
207
Trata-se da continuidade de um projeto que tem como fundamento a
liberdade humana; ora, claro está que novas questões surgiram desde O Ser e o
Nada (entre guerras, nova guerra, ocupação, resistência, pós-guerra, etc.) e novas
respostas se tornaram urgentes. Mas se o existencialismo propõe, já em 1946,
aproximar-se do marxismo, algumas arestas terão de ser aparadas; a troca de
alianças apenas ocorrerá quando Sartre estiver certo de que a liberdade, absoluta,
irrestrita, universal e ontológica, filha sua nascida em 1943, não será de modo algum
rejeitada. E para aproveitar a metáfora, pode-se dizer que a liberdade será, no
fundo, a razão de tal enlace.
208
Por isso, não é o caso de abandonar a ontologia fenomenológica e entrar no
mundo dos vivos do marxismo; a opressão não é outra coisa que a situação infernal
vivida por Inês, Estella e Garcin: na sociedade existe “um tipo de relação entre as
206
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), pp. 216-217.
207
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 149.
208
“Se a liberdade, como vimos, se confunde com o destino, se escolhemos a pessoa que somos, se
escolher e ser se confundem, o Valor realizar-se-á, responde-nos Sartre (adaptando uma imagem de
Bérgson) como se realiza uma obra de arte”. FERREIRA, 2004, p. 179.
79
liberdades tal que uma não reconhece a outra e a trata de fora, para transformá-la
em objeto. (...) Uma filosofia revolucionária deve dar conta da pluralidade das
liberdades e mostrar como cada uma, enquanto liberdade para si, pode ser objeto
para outra”.
209
A sociedade constituída, portanto, é comparável à relação entre os
personagens de Entre quatro paredes; na medida em que não há reconhecimento
de que o outro é livre, gera-se a opressão, a luta, o fracasso e a violência.
Em 1947 tem-se a publicação de Os dados estão lançados;
210
é o primeiro
roteiro escrito por Sartre, e também essa obra mostra um Sartre titubeante entre
manter o homem absolutamente livre e dar conta da determinação exercida sobre
ele pela história. Por isso, o roteiro retoma os mesmos problemas de Entre quatro
paredes, ainda que de forma mais poética e menos realista. Em suas palavras, “Os
dados estão lançados não será existencialista. (...) Meu roteiro se banha no
determinismo porque eu pensei que me era, também a mim, permitido jogar”.
211
E
mesmo que não esteja ainda formulada de modo definitivo, a pergunta principal de
Questões de Método – como pode o homem ser absolutamente livre e, desse modo,
fazer livremente a história, se essa se volta contra ele a fim de determiná-lo? –, ela
está presente neste roteiro. Note-se que a manutenção do ser-livre em O Ser e o
Nada exigiu de Sartre superar tanto o idealismo quanto o realismo em suas formas
tradicionais; mas o caráter eminentemente idealista da obra faz com que Sartre
amplie a noção de situação, a ponto de ter que se haver com a força determinista
que a história exerce sobre o homem. A questão supracitada mostra que Sartre não
está disposto a renegar sua filosofia da liberdade quando ocorre sua conversão ao
marxismo, mas quer entender o marxismo e suas mazelas a partir da ontologia de
1943.
Também em 1947 é publicado O que é literatura?, versão definitiva da idéia
de engajamento do escritor lançada em 1944 (La littérature, cette liberté), e
retomada em 1946, na conferência A responsabilidade do escritor (Les Conférences
209
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), pp. 217-218.
210
1947: Baudelaire, Théâtre, Situations I, Les jeux sont faits, L’Homme et les Choses, La
responsabilité de l’écrivain, Lettre-préface à Le Problème moral et la pensée de Sartre, Sculptures à n
dimensions, ‘Vous nous embêtez avec Faulkner le vieux’, disent les Américains, Qu’est-ce que la
littérature ?, Le processus historique, Les Faux Nez, Le cas Nizan, Déclaration, A propos de la
représentation des Mouches en Allemagne, Nick’s Bar, New York City, Interview sur la question juive,
Existentialism: a new philosophy – or is ist only a word ?, Émissions radiophoniques ‘la tribune des
Temps Modernes’ (várias), Gribouille, Pour un théatre de situations, Présence noire. CONTAT &
RYBALKA, 1970, pp. 154-175.
211
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 156-157.
80
de l’UNESCO). Em linhas gerais, esse texto trata da diferença entre as várias
manifestações artísticas e do privilégio da prosa em relação às outras artes no que
se refere a transmitir um pensamento; mas sua importância reside, principalmente,
na compreensão de Sartre do papel do escritor: segundo o filósofo, há
responsabilidade do escritor com relação àquilo que ele escreve em vista da
influência exercida sobre seus leitores.
212
Além disso, Sartre mostra que a literatura
é a afirmação inequívoca da liberdade humana expressa pelo engajamento do
escritor; e, ainda que em Flaubert Sartre mostre a distinção entre engajamento
político e engajamento literário, isso não muda em absoluto o sentido decididamente
libertário do engajamento (livre escolha, assunção).
213
Voltando a Que é a literatura, percebe-se que Sartre reafirma a
transcendência das coisas: “Quem poderia distinguir o verde-maçã de sua ácida
alegria? E já não será excessivo dizer ‘a alegria ácida do verde-maçã’. Há o verde,
há o vermelho, e basta; são coisas, existem por si mesmas”.
214
Mas o sentido dado
ao mundo continua sendo uma tarefa eminentemente humana, afinal, a concessão
do significado das coisas é um ato livre: o branco pode significar paz desde que ele
deixe de ser visto como branco, e seja ultrapassado (não se trata mais da cor) rumo
a uma convenção social; uma melodia, por sua vez, não é mais que a própria
melodia, e uma pintura se reduz à organização de suas cores. Entretanto, não é o
mesmo o que ocorre com as idéias, sendo que essas podem ser traduzidas de
maneiras variadas.
Desse modo, uma pintura não vai além dela mesma, enquanto o escritor pode
dirigir seu leitor, tal como no exemplo apresentado por Sartre: independente de
como um pintor possa representar a miséria (um casebre), ele não pode levar a
pessoa que a vê a pensar na miséria; o escritor, por sua vez, pode direcionar um
texto para o problema da injustiça social e, assim, provocar indignação. Portanto, a
pintura e a música são coisas e, como tal, não remetem a nada; para tanto, seria
necessário que elas fossem signos. “Não se pintam significados, não se
212
“Pois não se pode, hoje, fazer nada sem violência, porque tudo é violência. A questão não é de
condenar toda violência, mas somente a violência inútil”, ou leia-se: a mudança, que é revolucionária,
exige violência, ainda que isso não exima o escritor de condenar a violência inútil da guerra ou a
violência para a manutenção de uma determinada ordem estabelecida; a carta-prefácio escrita por
Sartre para Le problème moral et la pensée de Sartre, de Francis Jeanson, cumpre o mesmo papel.
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 157-158.
213
SARTRE, 1971, conforme CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 427-428.
214
SARTRE, 1969a, p. 10.
81
transformam significados em música”.
215
Se cabe ao escritor lidar com significados, o
mesmo vale para a poesia? Segundo Sartre não. A poesia está lado a lado com a
pintura, a escultura e a música, afinal, ainda que se sirva de palavras, o poeta não
busca com isso nem discernir o verdadeiro ou dá-lo a conhecer, nem nomear o
mundo; na mão do poeta a palavra é uma coisa, não um signo, ela representa,
contrariamente à prosa, que expressa o mundo.
216
O poeta aparentemente cria
frases, mas elas não passam de meros objetos; trata-se da linguagem às avessas,
da frase-coisa, do objeto-linguagem.
A prosa, por sua vez, carrega a significação em si mesma: as palavras não
são de modo algum objetos, mas designação de objetos; seu objetivo preciso é
designar as coisas do mundo ou noções determinadas. “Assim a linguagem: ela é
nossa carapaça e nossas antenas, protege-nos contra os outros e informa-nos a
respeito deles, é um prolongamento dos nossos sentidos”.
217
Todavia, qual é o ponto
de vista usado para avaliar a pertinência do que é escrito? Será preciso o recurso a
um sistema de valores transcendente?
Falar é agir; uma coisa nomeada não é mais inteiramente a mesma,
perdeu a sua inocência. Nomeando a conduta de um indivíduo, nós a
revelamos a ele; ele se vê. E como ao mesmo tempo a nomeamos para
todos os outros, no momento em que ele se , sabe que está sendo visto;
seu gesto furtivo, que dele passava despercebido, passa a existir
enormemente, a existir para todos, integra-se no espírito objetivo, assume
dimensões novas, é recuperado. Depois disso, como se pode querer que
ele continue agindo da mesma maneira? (...) Assim, ao falar, eu desvendo
a situação por meu próprio projeto de mudá-la.
218
O prosador é aquele que sabe que quando desvenda o mundo está, de
alguma forma, mudando-o e mudando a si mesmo; a prosa é, de antemão,
engajamento. Assim, a linguagem não trata de representar o mundo ou determinado
objeto, mas de nomeá-lo, de designá-lo. Uma vez purificada a consciência, a
confusão outrora bastante comum entre signo e imagem é superada; não há
representação. Todas as manifestações artísticas (pintura, música e poesia) são
objetos que se encerram em si mesmos; a prosa, por sua vez, designa objetos e
215
SARTRE, 1969a, p. 12.
216
É interessante notar que é justamente essa idéia que Sartre discute em L’homme et les choses:
Segundo ele, Ponge “desejaria ‘descrever (as coisas) de seu próprio ponto de vista. Mas isso é um
termo ou uma perfeição, impossível... existe sempre a relação ao homem... Não são as coisas que
falam entre elas, mas os homens entre eles que falam das coisas”. SARTRE, 1947-1976, (Sit. I), p.
236.
217
SARTRE, 1969a, p. 19.
218
SARTRE, 1969a, pp. 20-21
82
situações. Não é representação, ou uma relação indireta entre palavra e coisa
nomeada, na medida em que a palavra é uma maneira privilegiada de acesso e
emissão de juízo sobre o mundo. A prosa, por nomear, engaja o sujeito e o faz
partícipe atuante em sua situação.
Comprova-se, desse modo, que Sartre pensa a responsabilidade do
intelectual e identifica o ato de escrever ao engajamento; porém é preciso marcar a
diferença entre essa noção de engajamento do escritor e o engajamento entendido
como ato livre que visa a liberdade. Trata-se de duas instâncias distintas: do mesmo
modo que há a liberdade ontológica, cabível a todos os homens (ser livre), há a livre
práxis, relativa ao homem na sua relação com os demais homens e, no limite,
determinado historicamente (livre para fazer o que quiser com aquilo que foi feito
dele). Isso tanto é verdade que basta ser-para-si, ou, estar separado de si por nada
para que o homem seja livre; mas sua liberdade efetiva se conquista em sociedade,
no engajamento autêntico da liberdade. O intelectual realiza sua liberdade num ato
(escrever) que é, por si só, social; alguém há de ler o que foi escrito pois, de outro
modo, não há nenhum efeito prático em escrever.
Seja como for, no plano existencial a comunicação é sempre possível, ainda
que seja forçoso pensar que ela se deva a uma natureza humana; não há, de modo
algum, uma essência do homem, pois a realidade humana apenas é enquanto ela se
faz. “As determinações da pessoa só aparecem em uma sociedade que se constrói
incessantemente, atribuindo a cada um de seus membros um trabalho, uma relação
com o produto de seu trabalho e das relações de produção com os outros membros,
tudo isso em um incessante movimento de totalização”.
219
Desse modo, a
determinação não existe enquanto conceito, mas ela é sustentada, interiorizada e
vivida por e no projeto individual de cada homem; ora, já se sabe, o projeto não pode
de modo algum se definir por conceitos, ainda que, por ser projeto humano, ele seja
sempre compreensível. Assim, buscar compreender o homem não conduz, de modo
algum, a conceitos abstratos cuja combinação possa levar a uma essência ou Saber
do homem; a compreensão pode, no máximo, reproduzir o movimento dialético e,
dessa forma, elevar-se à atividade significante. O engajamento do escritor, longe da
assunção de uma vertente política, identifica-se ao ato livre de nomear e significar o
mundo.
219
SARTRE, 2002, p. 127.
83
Além da questão da literatura, nota-se que 1947 é um ano marcado pelo
acirramento da crítica ao existencialismo por parte dos marxistas ortodoxos. Sartre
havia mexido num vespeiro (especialmente, com O Existencialismo é um
Humanismo e Materialismo e Revolução) e, por isso, a polêmica com os partidários
da dialética da natureza e do materialismo dialético perdurará até 1970, se não mais.
Aqui, a crítica concentra-se em Les Smertchiakine en France (Temps Modernes,
número 20), que considera o existencialismo “elaboração nauseabunda e pútrida”,
que “ensina que todo processo histórico é absurdo e fortuito, e toda moral é
mentirosa. É a doutrina da vida espiritual. Por ela não há, nem pode haver, leis ou
normas. Não há história, mas ‘historificação’. Não há moral, mas um ‘estilo de vida’.
Não há nem povos, nem sociedade, mas o interesse e o proveito pessoal, em
virtude do princípio: Carpe diem”.
220
Enfim, de acordo com esse texto, o
Existencialismo ignora o processo histórico.
Não é de se espantar que Les Temps Modernes o tenha publicado por ironia,
conforme nos atestam Contat e Ribalka; mas seria ingenuidade acreditar que as
críticas não tenham agido positivamente no desdobramento da posterior teoria de
Sartre. E é o que se encontra em O Processo Histórico, artigo que responde a essa
violenta crítica, e que continua a marcha na direção intermediária entre o
existencialismo (liberdade) e a dialética marxista (história). Nesse artigo Sartre cita
nominalmente seus opositores: primeiro M. Ehrenbourg que, segundo o filósofo
criticou duramente seus livros sem ao menos tê-los lido, para o qual teria sido
suficiente as respostas apresentadas em Les Temps Modernes; a seguir, M.
Zaslavski, editor da Revista Pravda e autor das afirmações do parágrafo anterior. A
essas críticas Sartre responde em quatro momentos, levando em conta apenas as
questões filosóficas: as acusações de fatalismo, de total ausência de espiritualidade,
de ser contrário à revolução socialista e de defender a hegemonia norte-americana
e, por fim, de negar toda moralidade.
221
Com relação ao fatalismo existencialista, Sartre afirma que, em contrapartida,
os comunistas defendem a fatalidade da revolução comunista; quanto à afirmação
da ausência total de espiritualidade, é preciso ler a ontologia fenomenológica para
ver que a consciência de cada um de nós é irredutível à matéria; quanto à acusação
de que Sartre serve aos interesses da burguesia norte-americana, a resposta é que
220
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 162.
221
SARTRE, 1970b, pp. 677-679.
84
os norte-americanos nem ao menos conhecem o nome do filósofo, já que seu
público nos Estados Unidos é formado por alunos e professores; e, por último, se
moral for tudo aquilo que tenta impedir a revolução (no sentido leninista), Sartre
admite sê-lo. Mas conclui afirmando que “A condenação ex cathedra do Pravda vem
no mesmo momento no qual a Igreja colocou meus livros no index”; nada de
estranho, pois “quando se busca colocar o homem em face de sua liberdade, é
natural que se encontre ante si todas as potências que tem interesse em dissimulá-
la”.
222
De uma polêmica a outra, a posição política e teórica de Sartre como
partidário do indivíduo e da liberdade, vai se firmando. É possível citar, por exemplo,
as duras declarações sobre A questão judaica (Interview sur la question juive), nas
quais Sartre divide a culpa do anti-semitismo entre os judeus e os anti-semitas; a
defesa irrestrita de Paul Nizan (Déclaration) como expoente do teatro francês; a
ácida crítica ao governo De Gaulle, que lhe rendeu o fechamento da Tribuna de Os
Tempos Modernos (Émissions radiophoniques ‘la tribune des Temps Modernes’).
Mais uma vez, é preciso dizer, Sartre está entre sua ontologia fenomenológica e a
necessidade de dar conta da inserção do indivíduo na história e da influência que
este sofre por estar historicamente situado. A esse respeito se pode citar, como
exemplo, Les Faux Nez (1947) que retoma a noção de má-fé de O Ser e o Nada, em
contraposição à Materialismo e revolução (1946), que antecipa a existência serial da
Crítica.
Em 1948 Sartre publica As mãos sujas, texto já referido e que, por seu
conteúdo, merece um pouco mais de cuidado.
223
Para não simplificar essa obra ou
citar apenas um recorte, correndo o risco de traí-la, será utilizado um resumo feito
pelo próprio filósofo: “Meu herói é um jovem burguês que, por ideologia, engajou-se
num partido proletário, mas ante o realismo exigido pela ação, não pôde se desligar
das categorias idealistas que, precisamente, o impeliram a se desolidarizar com sua
222
SARTRE, 1970b, p. 679.
223
1948: Les Mains Sales, interview par Guy Dornand, par Claude Outié, par J. B. Jeener, par René
Guilly, par René Gordon, par Pierre-André Baude, par J. P. Vivet, par Roderick MacArthur, par Paolo
Caruso ; Situations II, L’Engrenage, Visages, Orphée Noir, préface à Portrait d’un inconnu, de N.
Sarraute, préface to The Respectful Prostitute, Discussion autour des Mouches, La recherche de
l’absolu, Conscience de soi et connaissance de soi, C’est pour nous tous que sonne le glas, carta Au
Président de la République, interview par Marcelo Saporta (espanhol), texto sobre La Rencontre ou
Edipe et le Sphinx, Textes en rapport vec le Rassemblement Démocratique Révolutionnaire (R. D. R.),
interview par Georges Altman, Le R. D. R et le problème de la liberté, interview par Mary Burnet,
textos publicados em La Gauche R. D. R (números 3, 4 e 10), Entretién sur la politique avec David
Rousset et Gérard Rosenthal. CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 176-205.
85
classe. [...] Eu penso, quanto a mim, que a política exige que se ‘suje as mãos’, e
que é necessário que assim seja”.
224
Com esse drama, que sem dúvida retoma o
problema do engajamento político, Sartre conseguiu seu maior sucesso de público;
há, todavia, a contrapartida, que inclusive levou à proibição, por Sartre, da
montagem da peça em vários países. Isso se deveu, em boa parte, à ambigüidade
que se pode encontrar nas atitudes dos personagens principais, Hoederer e Hugo,
que permite que As mãos sujas possa ser usada como propaganda ideológica tanto
pró quanto contra o comunismo.
É certo que esse não foi o objetivo de Sartre ao escrever tal peça; segundo
ele, “As Mãos sujas me foram inspiradas pelas dificuldades que alguns de meus
alunos, burgueses de boa vontade, tinham com o partido comunista. Eu pensei
também no assassinato de Trotsky”.
225
Trata-se de uma obra que não objetiva ser
política, mas não há como negar que ela é sobre política e, como tal, gera
controvérsias, principalmente porque: “Eu dou razão a todos: ao velho chefe do
partido proletário que, porque ele transige provisoriamente com a reação, se vê
qualificado de ‘social-traître’ por puro oportunismo. E também a seu jovem discípulo,
perdido de idealismo, que os ‘durs’ encarregaram de executar aquele que era seu
ídolo”, ou “Eu não tomo partido. Uma boa peça de teatro deve colocar os problemas
e não resolvê-los”.
226
Assim, não é estranho que a peça possa ser usada tanto para
defender a posição do partido proletário (comunismo) quanto a posição da
burguesia; noutras palavras, e é o que a repercussão da obra nos mostra, num
período de Guerra Fria, no qual a Europa estava dividida entre capitalistas e
comunistas, o uso político de As mãos sujas era previsível.
Por se tratar de uma obra sobre política, os problemas são notórios e já se
iniciam com o título: Sartre, para evitar mal entendidos, cogitou chamá-la de Crime
passional ou As luvas vermelhas; esperava com isso diminuir o caráter tendencioso
que uma peça sobre política pode causar ao referir-se às mãos sujas. Mas nada
causou tanta indignação quanto a adaptação feita por Daniel Taradash, em Nova
York, sob título Red Groves. A notícia dessa adaptação gerou a ira de Sartre;
pudera: nela Hugo não morre; Hoederer toma o papel principal e, pior, além de ser
um policial elegante (Sartre o descreve como vulgar), ainda discursa a Hugo
224
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 180.
225
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 177.
226
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 178-180.
86
exaltando Abrahan Lincoln. Sartre recusa terminantemente que a peça seja, dessa
maneira, encenada, haja vista seu caráter anti-soviético. Tudo bem que, por se tratar
de uma obra sobre política, seu objetivo seja levantar problemas e não resolvê-los.
Sartre mesmo pergunta: “Pode-se entrar em um partido qualquer sem sujar as
mãos?”
227
Porém, o problema que se instala é o uso político que, ao que parece, a
montagem norte-americana fez de seu trabalho, flagrantemente invertendo os
papéis para resguardar o capitalismo.
Com respeito à repercussão que As mãos sujas teve é preciso destacar dois
aspectos: o primeiro, de âmbito teórico, é a discussão sobre a relação entre os
meios e os fins de qualquer empreitada política. O segundo tem a ver com a noção
de engajamento e com o papel do escritor, ou seja, se Sartre defende a tese de
responsabilidade do escritor com respeito àquilo que ele escreve, é preciso notar
que essa peça é uma prova de que o escritor não somente gera uma onda de
influência no que se refere ao que foi escrito, mas que há também o uso feito, por
terceiros, daquilo que ele escreveu. É o que mostra a adaptação feita por Taradash
e é essa a razão para que Sartre tenha proibido sua montagem na Espanha, na
Grécia e na Indochina em 1952, e também em Viena, em 1954. Enfim, ainda que
não se trate exatamente de prosa (como Sartre o afirma em O que é literatura?),
está demonstrado que, de fato, um escritor engajado está sujeito a todas as mazelas
decorrentes daquilo que ele escreve e é por isso responsável.
Feito esse breve histórico e já tendo mostrado alguns aspectos relevantes no
que tange ao plano teórico, sem descartar as conseqüências práticas do que foi
escrito, pode-se perguntar: qual a importância desse texto para a chave de leitura
que vem sendo feita? Ou melhor, As mãos sujas mostra que Sartre tem razão no
que se refere à responsabilidade do escritor, e vai além ao mostrar que é possível
que outros façam uso, quiçá indevido, daquilo que foi escrito. Mas em que isso ajuda
quando se trata de mostrar o processo de conversão ao marxismo? A resposta se
encontra em uma entrevista concedida por Sartre a Paolo Caruso, em 1964, por
ocasião da tradução para o italiano de A Crítica da Razão Dialética e da montagem,
em Turim, de As mãos sujas. Pode-se argumentar que é de uma entrevista muito
posterior, afinal por essa época a Crítica já contava com quatro anos de publicação;
mas segundo o próprio Sartre (EN), o passado não determina o presente, mas é do
227
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 178.
87
presente que se pode doar sentido ao passado. Fiando nisso, vejamos de que
maneira o filósofo entende sua mais polêmica peça de teatro.
Sartre afirma, na entrevista, que quis, em As mãos sujas, discutir dois
aspectos, sendo o primeiro “examinar dialeticamente o problema das exigências da
práxis do tempo”, problema de grande envergadura que não será desenvolvido aqui.
O segundo aspecto é o que nos interessa diretamente: “Eis o que me interessa: a
necessidade dialética no interior de uma práxis”.
228
Ora, se o autor afirma em 1964
que, em 1948, buscava entender a necessidade dialética no interior de uma práxis, a
hipótese de alargamento do conceito de situação se mostra plausível. Não se trata
mais, conforme o seria em O Ser e o Nada (1943), de um indivíduo absolutamente
livre que necessita apenas de um ponto de vista sobre o mundo; trata-se agora do
mesmo indivíduo, absolutamente livre, que convive com a necessidade dialética em
sua práxis. A impressão que causa a ontologia é que o homem, por ser liberdade
absoluta, pode fazer o que quiser; porém, ainda em O Ser e o Nada Sartre desfaz
esse equívoco ao colocar a situação como necessária para o exercício da
liberdade.
229
Ainda assim, várias questões poderiam ser levantadas, a menos que a
situação fosse ampliada a ponto de ser idêntica à história, ou de estar intimamente
ligada a ela; nos termos que Sartre utiliza, torna-se urgente entender a necessidade
dialética no interior da livre práxis humana.
Diferentemente de A Náusea e de modo muito mais específico que em O
Muro, As Mãos sujas representa avanço rumo ao desdobramento do pensamento de
Sartre. Nada regride no que se refere ao ser livre, qualidade ontológica do homem,
mas a força das coisas está mais presente do que nunca. Para traçar um paralelo
com O ser e o Nada, pode-se afirmar que surge um terceiro termo na relação que
havia entre o para-si e o objeto que, de algum modo, era atravessado por outro
para-si. Esse outro cresceu sobremaneira: chega-se enfim ao campo das
macroestruturas, da cultura, da política, e Sartre mostra de que modo o engajamento
político, a solidarização com uma classe que não a sua ou, mesmo, a decisão de
outra liberdade, podem afetar e até mesmo determinar a liberdade. Trata-se da
necessidade dialética que condiciona o resultado de uma escolha, ainda que tal
escolha seja absolutamente incondicionada; a práxis permanece livre, mas não está
228
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 183.
229
SARTRE, 1943, pp. 561 ss.
88
alheia ao seu entorno, às demais liberdades e aos efeitos práticos resultantes da
escolha feita pelos outros homens.
O que se tem até aqui poderia ser considerado uma ruptura com O Ser e o
Nada? Não parece. Primeiro, há de se levar em conta que a filosofia de Sartre
buscou tematizar o ser na sua mais tenra pureza, tanto que o ponto de partida é o
ser, que é, é si mesmo e é o que é.
230
Após a regressão analítica empreendida na
primeira parte da obra, vê-se que Sartre tematiza um outro ser, que exige remissão
ao em-si;
231
por fim, um ser ainda menos essencial, pois o para-outro é, num mesmo
ato, relação com o em-si, sendo, em seu ser, para-si e atravessado pela presença
de um outro para-si.
232
Note-se que na mesma medida em que os seres analisados
por Sartre perdem em essencialidade, ganham em complexidade: o em-si é simples,
não comporta relação nenhuma, mas com o aparecimento do para-si ele é
determinado e vem ao mundo na forma de objetos (fenômeno); a relação de
negação e de negação da negação do para-si ao em-si é, por sua vez, objetivada
pelo aparecimento de outro para-si. Coloca-se a questão: como seria se isso
ocorresse em larga escala? Levando-se em conta que são inúmeros os para-sis e
se, a despeito da interpretação corrente da impossibilidade de associação entre eles
gerada por O Ser e o Nada, eles se associassem? Eis o ponto: é preciso entender a
necessidade no interior da práxis.
Os textos de 1948 não respondem todas as perguntas, mas desde já se pode
apontar para a crescente complexidade gerada, caso se imagine a relação entre o
para-si e o para-outro numa escala macro; isso permite entrever a que levará a
análise da necessidade dialética. É possível fazer uso de outros termos para dizer o
mesmo que nos diz Sartre, em 1964, já utilizando o vocabulário marxista: entender
de que modo a situação (ampliada, ou histórica) age sobre as decisões
absolutamente livres do indivíduo a ponto de uma decisão sua, tomada no absoluto
e irrestrito campo de sua liberdade, gerar resultados diferentes ou até mesmo
contrários ao que foi projetado. Claro está que deve haver aí uma outra força agindo,
e que essa não poderá ser transcendente ou ter sua origem na natureza;
233
se essa
força determinante que age sobre o indivíduo é a história, de onde vem tal força
230
SARTRE, 1943, pp. 30-34.
231
SARTRE, 1943, pp.115-149.
232
SARTRE, 1943, pp. 277-288.
233
Conforme as análises de: La littérature, cette liberté; A propos de l’existentialisme : mise au point;
La libération de Paris : Une semaine d’apocalypse; Materialisme et révolution; Le processus
historique.
89
senão do homem? Mas com isso já foi avançado além do desejável; melhor
acompanhar passo a passo como esse crescente se mostra nos textos publicados
por Sartre.
Em 1948 a discussão de temas atuais continua, dessa feita com o roteiro
L’Engrenage, que tem como alvo o imperialismo; o mesmo pode ser dito de Orphée
Noir, que além de exaltar a poesia produzida por negros de língua francesa,
considera-a revolucionária.
234
Mas o que mais chama a atenção é um extrato do
prefácio escrito por Sartre para a edição norte americana de A prostituta respeitosa.
Isso porque, até agora, foi mostrado que há um processo de ampliação da noção de
situação e, ao mesmo tempo, manutenção da liberdade e que, a despeito do caráter
idealista de O Ser e o Nada, Sartre encarna aquilo que ele mesmo definiu como um
escritor engajado; e o resultado de tal engajamento se mostra nas declarações do
filósofo: “Seria estranho que em Nova York me acusem de anti-americanismo ao
mesmo tempo em que o Pravda, em Moscou, me acusa energicamente de ser um
agente da propaganda americana”.
235
Entretanto, o que dizer da liberdade? Uma
discussão em Berlim a respeito de As Moscas dá uma boa pista:
Não se trata de saber o quanto nós somos livres, mas quais são os
caminhos da liberdade. E nós estamos de pleno acordo com Hegel que
afirma: “Ninguém, nenhum homem pode ser livre, se todos os homens não
são livres”. (...) Nosso objetivo concreto, um objetivo muito atual,
contemporâneo, é a libertação do homem em três aspectos. De início, a
libertação metafísica do homem. Dar-lhe consciência de sua liberdade
total, e que ele deve combater tudo aquilo que tende a limitar a liberdade.
Segunda, sua libertação artística: facilitar ao homem livre a comunicação
com os outros homens graças às obras de arte e, por esse meio,
mergulhá-los em uma atmosfera de liberdade. Terceira: libertação política
e social, libertação dos oprimidos e de outros homens.
236
A concordância com Hegel, apesar da tentação que se tem de identificá-la
imediatamente como processo de conversão ao marxismo, é anterior e já estava
presente em O Ser e o Nada: trata-se do primeiro aspecto de libertação do homem
no projeto de Sartre. O que se vê ali é o que Sartre denomina libertação metafísica
do homem, ou seja, ele precisa ter consciência de que é absolutamente livre e que
essa sua liberdade não é dom ou dádiva, mas é constitutiva de seu ser. E mesmo
que a ontologia fenomenológica tenha sido escrita em primeira pessoa, o que levou
muitos comentadores a entender que se tratava da liberdade do próprio Sartre (seja
234
SARTRE, 1947-1976, (Sit. III), p. 229.
235
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 189.
236
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 189-190.
90
por não ter superego, seja devido a um idealismo extremado advindo de sua
condição burguesa, seja por desejar ser Deus), ela trata do ser homem. Noutros
termos, o ser-para-si é o núcleo ontológico de todo e qualquer indivíduo, o que o faz
aplicável a todos os seres humanos independentemente de sua situação social ou
econômica. É verdade que estar em situação é um pressuposto para que o homem
possa ser livre, mas a situação, seja qual for, não pode limitar a liberdade, haja vista
que ela é constitutiva do ser homem.
A gama de exemplos cotidianos que poderiam ser enumerados em defesa da
tese da liberdade ontológica é por demais simplista e poderia gerar mal entendidos;
basta lembrar que, conforme mostra O Ser e o Nada, há uma distância ínfima e
insuperável entre o para-si e ele mesmo (nada), e que é essa distância que o faz
ser-para-si e jamais ser idêntico a si. Assim, se o para-si não pode jamais coincidir
consigo (ser o que é), independentemente da situação na qual ele se encontre
(encarcerado, acorrentado, incapacitado, etc) ele é livre. Para os mais apressados,
que imbuídos do instrumental marxista poderiam argumentar que essa liberdade
nada mais é que resultado de uma espécie de idealismo delirante, lembramos que
se trata apenas de seu primeiro aspecto: o metafísico. Essencialmente, o homem é
livre porque seu ser é liberdade, e a situação, antes de configurar-se como
empecilho para o ser livre, é, ao contrário, sua condição de possibilidade.
237
Por
isso, a concordância com a liberdade universal de Hegel é prévia à conversão ao
marxismo e advém da ontologia na qual a liberdade é constitutiva do ser-para-si;
isso explica porque Sartre, em 1948, afirma a urgência de conduzir o homem à
consciência de sua liberdade total e, assim, combater tudo aquilo que possa limitá-
la.
Nesse mesmo plano de emancipação humana, Sartre coloca como segundo
passo a libertação artística que teria como papel inserir o homem livre numa
atmosfera de liberdade, idéia controversa que parece contradizer a classificação dos
estilos artísticos de O que é a literatura?.
238
O que mais interessa, contudo, é o
237
SARTRE, 1943, pp. 561 ss.
238
A impressão deixada pelas declarações de Sartre é que o segundo momento do processo de
libertação tem mais a ver com a discussão do que com uma tese propriamente dita; essa idéia, por
fim, não pode ser sustentada com a análise geral do que o filósofo escreve. Ousamos dizer que ele
acaba por contradizer O que é a literatura?: “A poesia está lado a lado com a pintura, a escultura e a
música”, arte, portanto; e mais adiante, Sartre afirma que “Os poetas são homens que se recusam a
utilizar a linguagem. Ora, como é na linguagem e pela linguagem, concebida como uma espécie de
instrumento, que se opera a busca da verdade, não se deve imaginar que os poetas pretendam
discernir o verdadeiro, ou dá-lo a conhecer” [SARTRE, 1969a, p. 13]. Tal atmosfera de liberdade não
91
terceiro aspecto do projeto: a libertação política e social. Isso porque Sartre parece
que está, já em 1948, convicto dos dois caminhos supracitados e que, segundo essa
interpretação, ele pretende seguir. É fato que Sartre afirma categoricamente que
todo homem é livre e que essa liberdade é total, e é fato que algumas linhas depois
ele fala em libertar política e socialmente o homem. Contradição? Sim, pois se o
homem é livre ele não precisa ser liberto, ou, se é preciso libertá-lo social e
politicamente ele não é livre. Sartre se enganou e cometeu a gafe de dar
declarações que se contradizem uma frase depois? Não, afinal ele era muito
metódico e inteligente para tal engano. Portanto, Sartre segue os dois caminhos:
alarga a noção de situação e, paralelamente, mantém a noção de liberdade, também
ela ampliada.
239
Percebe-se que, cada vez mais, o texto de Sartre contradiz aqueles que
acreditam no arrefecimento da noção de liberdade absoluta para aproximar-se do
marxismo enquanto, ao contrário, o indivíduo que o filósofo quer recuperar no seio
do marxismo é justamente aquele de O Ser e o Nada, que tem a liberdade orinária
como seu ser, e tem como único limite de sua liberdade a impossibilidade de deixar
de ser livre. Parece apenas um trocadilho, mas se o projeto filosófico de Sartre for
levado a sério, percebe-se que ele toma como primeiro passo para a liberdade a
libertação metafísica do homem: libertá-lo das verdades transcendentes, do
psiquismo, da natureza e de toda sorte de determinação. Para Sartre é preciso,
primeiramente, que o homem tome consciência de sua liberdade total, é preciso,
antes da consciência de classe ou da consciência da situação de explorado, a
consciência de que é livre. Os limites sociais que o marxismo trás à luz são
posteriores e apenas fazem sentido se o homem tomar consciência, previamente, de
sua liberdade: está aí a liberdade, moeda de troca e razão da aproximação de Sartre
do marxismo.
pode, sequer, ser compartilhada. Entretanto, caso se substitua arte por cultura, não somente se
encontram ecos na obra do filósofo, como toca numa das bases de seu desdobramento: “existe
cultura e produção cultural [arte, portanto!] quando o conjunto dos indivíduos que contribuem para
essa cultura é livre e responsável pelos valores da sociedade em uma comunidade relativamente
autônoma”. CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 214.
239
“A questão não é de abandonar a liberdade, nem mesmo abandonar as liberdades abstratas da
burguesia, mas de lhes dar um conteúdo, de levá-las à sua origem, de vê-las surgir das exigências
mais elementares que são as exigências da vida cotidiana”, ou, “É lutando ao vosso lado [proletários]
contra a classe e as instituições que vos oprimem que nós chegaremos a libertar a nós mesmos”.
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 200 e 203.
92
Espera-se retomar essa tese o mais breve possível, mas para manter o
objetivo (mostrar o processo de passagem de O Ser e o Nada à Crítica a partir
daquilo que foi publicado por Sartre) é preciso reafirmar que o filósofo mantém os
acontecimentos da ordem do dia como tema (La recherche de l’absolu, C’est pour
nous tous que sonne le glas, carta Au Président de la Republique); e mais uma vez
nota-se que Sartre oscila entre os caminhos a seguir, pois, ao mesmo tempo em que
retoma as teses de O Ser e o Nada (por exemplo, em Conscience de soi et
connaissance de soi), afirma que “Nós acreditamos que é o homem que faz a
história” (nos textos En rapport vec le Rassemblement Démocratique
Révolutionnaire). Sobre este último importa dizer que Sartre se lança ao trabalho
direto de intervenção política e, ainda que o alvo almejado seja o público francês, o
apelo do R. D. R. tem como tema a política mundial; mesmo que no ano seguinte o
filósofo abandone a reunião e afirme que ela nunca foi mais que um pequeno grupo
de pessoas tentando escapar das grandes leis da história, isso não muda o fato de
que, tal qual a situação foi sendo ampliada, também os assuntos o foram, chegando
inclusive aos temas de política mundial.
A seqüência da bibliografia de Sartre mostra uma repetição das
características exploradas no decorrer desse texto: o engajamento do escritor, nos
vários comentários e defesas de posições políticas regionais ou mundiais, e a
oscilação teórica entre O Ser e o Nada e outras obras que encaminham seu
pensamento para a Crítica, ou seja, a defesa da liberdade irrestrita a inserção do
homem na história. Para evitar a reedição dos mesmos temas e desviar do foco
principal, a bibliografia de 1949 e 1950 não será comentada.
240
Apenas coloca-se
em relevo uma série de entrevistas nas quais Sartre discute duramente com Lukács,
em 1949, marcando o início da controvérsia em torno da relação entre o
existencialismo e o marxismo. Vale ainda dizer que, nesse episódio aparecem boas
indicações de que a evolução do pensamento de Sartre (ou seu desdobramento)
240
1949: La mort dans l’âme, Situations III, Nourritures, interview par François Erval (duas), Réponse
a François Mauriac, Naissance d’Israël, Défense de la culture française par la culture européenne, Le
Noir et le Blanc aux États-Unis, Jean-Paul Sartre ouvre un dialogue, Présentation du Journal du
voleur de Jean Genet, récit recueilli par Georges Altman (I, II, III), Drôle d’amitié, La dernière chance.
(Écrits, pp. 206-221). 1950: Faux savants ou faux lièvres, Préface à La fin de l’espoir, de Juan
Hermanos, Préface à L’Artiste et sa conscience, de René Leibowitz, introduction à Portrait de
l’aventurier, de Roger Stéphane, Lettre à Georges Courteline, article-interview d’Yves Salgues, Le
cinéma n’est pas une mauvaise école, Réponse à ‘La neutralité est-elle possible ?’, A propos du Mal,
Jean Genet, ou le Bal des Voleurs, De la vocation d’écrivain, Lettre-article ‘The chances of peace.
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 222-230.
93
não requer nenhuma retratação do que foi anteriormente desenvolvido, exatamente
o alvo dessa tese; seguindo o plano bibliográfico proposto por Contat e Rybalka,
será colocado em evidência alguns elementos de O Diabo e o bom Deus, obra que
abre o ano de 1951.
241
Essa peça teve como inspiração El Rufián dichoso, de Cervantes, e segundo
Simone de Beauvoir, “Sartre novamente opõe ao orgulho da moral a eficácia da
práxis. Essa confrontação vai ainda mais longe que em suas peças anteriores: em O
Diabo e o bom Deus se reflete toda sua evolução ideológica. O contraste entre o
ponto de partida de Orestes no fim de As Moscas e a conversão de Goetz ilustra o
caminho percorrido por Sartre da atitude anarquista ao engajamento”.
242
Noutros
termos, essa peça retoma aquilo que já foi mostrado, a saber, que os escritos de
Sartre se encaminham lentamente para o que será a Crítica;
243
essa evolução,
conforme atesta o filósofo, não significa a retratação de O Ser e o Nada e, muito
menos, a simples assunção do marxismo. Se em 1944 Sartre pensa que qualquer
situação pode ser transcendida por um ato subjetivo, e em 1951 acredita que as
circunstâncias podem roubar a transcendência, isso se deve, conforme assevera
Beauvoir, a uma encruzilhada que tem como fundamento último a impossibilidade de
associação entre os homens (conforme foi visto a respeito de O Ser e o Nada e
Entre quatro paredes). Para Sartre, trata-se de dar conta da sociedade sem que,
para isso, seja preciso abrir mão da liberdade do para-si ou, numa palavra, seguir ao
mesmo tempo o caminho da liberdade e o caminho da história.
A força das coisas, enquanto circunstância que pode limitar e até roubar a
transcendência do homem (corroendo sua liberdade, portanto), aparece a Sartre no
período da ocupação da França; ficou claro que não haveria saída individual
possível para superar a situação histórica que se reflete em cada ato do indivíduo,
sendo urgente que a luta fosse coletiva. Ora, uma vez que Sartre percebe isso é
preciso evoluir: é preciso rever a relação objetivante entre os para-sis de O Ser e o
Nada e conceder ao homem a possibilidade de se agremiar. É justamente isso que
241
1951: Le Diable et le bon Dieu, interviews sur Le Diable et le bon Dieu, L’Affaire Thorez, interview
par Gabriel d’Aubarède, Gide vivant. CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 231-242.
242
JEANSON, 1965, p. 134.
243
Essa peça retrata a Alemanha anterior à unificação e pouco antes da Reforma; já no primeiro
quadro do primeiro ato o autor apresenta um dilema: uma criança que morre – por que? Deus quis ou
há má divisão da renda (SARTRE, 1964a, pp. 20 e 22, respectivamente)? Outro dilema é
apresentado no segundo ato: optar por 200 padres ou por 20 mil pobres (SARTRE, 1964a, pp. 29-
31)? A justiça é apenas resultado de uma escolha; “faze o mal, traia, e verás como te sentirás leve!”,
diz Goetz. SARTRE, 1964a, p. 52.
94
se passa com Goetz que, inicialmente, acredita em suas atitudes individuais; porém,
“ele não destrói nada quando acredita destruir muito. Ele destrói vidas humanas,
mas não a sociedade, nem as cortes sociais”.
244
A superestrutura se apresenta de modo irresistível e, por sua vez,
intransponível e inacessível ao indivíduo, por mais que ele esteja de posse de sua
inteira liberdade para agir. Mais do que isso, essas estruturas não podem ser
superadas pela eliminação do indivíduo que as representa, pois eliminar um
implicará sua substituição, permanecendo a mesma situação.
245
Faz-se necessária
uma ação coletiva para superar os problemas sociais; o conceito de instituição,
desenvolvido na Crítica, está muito próximo. O instrumental teórico que permitirá a
Sartre dar o terceiro passo de libertação humana (política e social) já está sendo
constituído. Se a ação de Mathieu foi ineficaz, de qualquer forma ele engajou sua
liberdade; no caso de A Libertação de Paris ocorre o mesmo, na medida em que a
vitória não está de modo algum garantida, e assim, apenas o homem livre pode
fazer algo, apenas ele pode se engajar e apenas ele pode provocar a revolução.
Ainda que O Diabo e o bom Deus pareça, à primeira vista, tratar do tema
metafísico da existência ou não de Deus, optando em sua conclusão pela segunda
assertiva, é justamente ali que se encontra a retomada do engajamento da liberdade
como meio do homem provocar alguma mudança.
246
O tema principal da obra,
conforme mostrado por Francis Jeanson, não é a existência ou inexistência de Deus,
mas o problema da existência ou não do Bem ou do Mal em suas acepções
absolutas.
247
Conforme afirma Sartre, se não há Deus, Bem e Mal se identificam: “A
moral sustentada em Deus não pode levar senão ao anti-humanismo”, o que
evidencia a recusa de verdades transcendentes e a opção pela relatividade da
moral.
248
Também sobre esse aspecto, Sartre é coerente com seu projeto de
fundamentar todas as estruturas sociais na liberdade individual, o que bem o mostra
a atuação de Goetz que, uma vez tendo superado sua crença em Deus, converte-se
ao homem (humanismo). Mas deixemos o problema moral e exploremos um pouco
mais as importantes mudanças no aparato teórico que se pode encontrar nessa
244
De fato: o mal de alguns, no caso os padres, é o bem dos 20 mil pobres, e vice-versa. Não há mal
absoluto, na medida em que o mal pode se tornar bem, e o bem se tornar mal, conforme SARTRE,
1964a, pp. 100-103. Ainda, ver CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 236.
245
SARTRE, 1964a, p. 172.
246
SARTRE, 1964a, pp. 103, 160, 185.
247
JEANSON, 1967, pp. 52-54.
248
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 237.
95
peça; em especial, note-se duas: a necessidade de associação humana e a história
como substituta das noções transcendentais.
No início da narrativa Goetz acredita que a moral tem fundamentos
transcendentes e que, desse modo, há Bem e Mal em sua pureza;
249
entretanto, sua
trajetória lhe mostra de modo incontestável que ele pode fazer qualquer coisa e não
há nenhum tipo de punição.
250
Isso faz com que ele admita a relatividade da moral e,
como conseqüência, ele substitui a fundamentação da moral no absoluto por sua
fundamentação na história. Noutras palavras, a história passa a exercer o papel de
absoluto: é da e na história que cada situação pode ser avaliada, e é na história que
coisas boas ou más são feitas, sem qualquer remissão à transcendência. Em suma,
a situação, que em O Ser e o Nada era um ponto de vista sobre o mundo, foi
ampliada a ponto de coincidir com a história da humanidade e esta, por sua vez,
passa a ser identificada com o absoluto; a situação, na qual o para-si se insere é,
desse modo, o próprio absoluto. Mas de que modo isso é possível, se cada para-si
está restrito a seu mundo, apenas tendo no outro um olhar que almeja petrificar sua
liberdade, ao mesmo tempo em que ele busca fazer o mesmo com os outros?
O amor foi uma das maneiras encontradas por Sartre para explicar, em O Ser
e o Nada, as possíveis relações entre os para-sis.
251
Mas ele afirma numa conversa
com Louis-Martin Chauffier, Marcel Haedrich, Georges Sinclair, Roger Grenier e
Pierre Berger que: “A partir do momento em que duas pessoas se amam, elas se
amam contra Deus. Todo amor é contra o absoluto porque ele mesmo é o
absoluto”.
252
A identificação entre a maneira própria de agregação humana (por
certo Sartre não se refere aqui apenas ao amor conjugal) e o absoluto, e a
afirmação, em O Diabo e o bom Deus, de que o absoluto resulta do ajuntamento de
homens parece ser uma fórmula desconexa. Será assim? Trata-se apenas de
literatura, ou devemos levar a sério a noção de engajamento proposta e encarnada
por Sartre? Ainda não se pode ir tão longe e concluir que a origem da instituição é o
ajuntamento de liberdades que, livremente, se agregam, porque Sartre, mantendo a
postura de oscilar entre a Crítica e O Ser e o Nada, volta atrás:
249
SARTRE, 1964a, p. 52.
250
SARTRE, 1964a, p. 55.
251
SARTRE, 1943, p. 433.
252
“Mas Jouhandeau disse muito bem que ele não poderia amar os homens se ele não os amassse
contra Deus”. CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 238 e 240.
96
Diz-se que eu quis fazer a demonstração de que Deus não existe, (...). Eu
não quis provar nada. (...) Eu quis tratar o problema do homem sem Deus,
que é importante não devido a qualquer nostalgia de Deus, mas porque é
difícil conceber o homem de nosso tempo, entre a URSS e os Estados
Unidos, e nisso que deveria ser um socialismo. É o problema atual, mas os
homens do século XX se inquietam surdamente, sem pensá-lo. No século
XVI encontram-se problemas análogos, encarnados nos homens que
pensaram Deus. Eu quis transpor esse problema numa aventura pessoal.
O Diabo e o Bom Deus é a história de um indivíduo.
253
Ainda assim não há como negar que, de maneira tateante, as teses
desenvolvidas na Crítica vão aos poucos se desvelando: não há verdade
transcendente, mas a agregação humana se identifica com o absoluto; tal agregação
é histórica e é por ela que há história; a situação do para-si foi, paulatinamente,
ampliada, e pode ser identificada com a história; o homem mantém sua liberdade
original ilimitada e é preciso primeiro conscientizar-se dessa liberdade para, em
terceiro lugar, promover sua libertação política e social. Aonde isso pode levar?
Saint Genet, ator e mátir é, por certo, a resposta, não apenas porque segue a
seqüência proposta por Contat e Rybalka, mas por se tratar do lugar onde as
características do pensamento de Sartre que enumeramos ao longo desse texto
parecem se imbricar. Trata-se de uma crítica literária que engloba elementos de uma
possível moral, e que pode ser lida como uma biografia psicológica de Genet; não
há dúvida, esse livro é também um livro de filosofia, no qual é apresentada a
correlação direta e necessária entre a força das coisas e a liberdade.
253
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 239.
97
2 Genet – eu é um outro
Assim, Genet muda de testemunha. É uma nova inversão.
Até aqui, procurou ver-se pelo olhar dos Outros, sua
consciência era um olho que perscrutava a penumbra para
surpreender Genet como objeto. Agora, resigna-se a nunca
ser um objeto para si mesmo, desde que o seja aos olhos
de uma testemunha benevolente. (...) Num grupo
fortemente estruturado, Deus, para cada membro, é o
Outro.
Sartre (Saint Genet – ator e mártir)
O objetivo principal desse trabalho é mostrar que a obra de Sartre não
comporta nenhuma ruptura brusca que permita lê-la como dois momentos díspares
e autorize falar, por exemplo, de um primeiro e de um segundo Sartres.
Primeiramente, essa tese se fundamenta na ampliação do conceito de situação e na
noção de engajamento da liberdade; pela análise de perspectivas exemplares do
processo de evolução do pensamento de Sartre foi visto que, entre progressos e
refluxos, sua filosofia avança sem revolução de O Ser e o Nada à Critica da Razão
Dialética. Não se trata, portanto, de uma análise bibliográfica, haja vista que os
textos políticos, literários e a dramaturgia, além das inúmeras entrevistas e prefácios
referidos, são mais ricos do que essa chave de leitura possa fazer parecer. Por isso
foi tomado o cuidado de reproduzir a bibliografia exaustiva, formulada por Contat e
Rybalka, a fim de que o leitor possa cotejar e decidir por si mesmo as possíveis
falhas ou qualquer desvio interpretativo. Seja como for, a produção do filósofo de
1943 até 1951 já foi explorada; em 1952 tem-se uma obra que merece um capítulo à
parte.
É difícil enquadrar Saint Genet, ator e mártir em apenas um estilo literário.
Trata-se de uma obra de filosofia, o que justifica nosso interesse; mas ela é também
um estudo de crítica literária, um tratado de moral, uma biografia psicanalítica, etc.
Um livro muito amplo que, dentre outras coisas, mostra que Sartre põe fim à
oscilação teórica e se decide por manter a liberdade e, ainda assim, aproximar-se do
marxismo. Alguns instrumentais importantes da Crítica, que já foram apresentados
circunstancialmente, estão presentes em Saint Genet; e também as teses essenciais
de O Ser e o Nada foram nele mantidas. Em nenhuma outra obra desse período, e
de modo algum com tamanho fôlego, Sartre uniu de maneira tão admirável sua
psicanálise existencial e o método marxista; mais do que isso, a ponte que permite
unir indivíduo e história e, assim, compreender o homem livre e a situação que limita
98
essa liberdade, não é outra que a liberdade. Apesar do recorte que será preciso
fazer, visto ser uma obra monumental (serão analisados apenas os livros I e II),
espera-se ao menos mostrar que por meio da análise psicanalítica-existencial
marxista de Genet, Sartre traz à baila todos os temas desconexos que foram
relacionados ao acompanhar sua bibliografia nos nove anos decorridos desde O Ser
e o Nada.
Brevemente, a filosofia de Sartre tem como tese fundamental a liberdade, e é
justamente ela que encerra a primeira grande obra do filósofo num dilema: é-se livre
sozinho, num mundo particular invadido por outras liberdades. Como resolvê-lo?
Primeiramente, é preciso ampliar a noção de situação, a ponto de fazê-la confundir
com a história. Isso, porém, gera a dificuldade para explicar de que modo o homem
pode ser livre se ele é, ao mesmo tempo, coagido e determinado historicamente;
resolveria abrir mão da liberdade? Não para Sartre, que defende a liberdade como
constitutiva do ser homem. Mas a realidade é implacável, a ocupação, a guerra, a
resistência o mostram bastante; até mesmo a inserção do filósofo nas questões
políticas de seu tempo já é suficiente para mostrar que algo precisava ser feito. E
Sartre o faz: após nove anos de titubeação entre a liberdade e a força das coisas ele
mostra, de modo espetacular, a correlação necessária e real entre o homem livre e
sua história que, no limite, é a história da humanidade. A vida de Genet, do ladrão,
do homossexual, do escritor, do poeta, do prisioneiro, do gênio com sérios
problemas psíquicos, cumpre esse papel. Mesmo sendo paradigmática, essa história
de um homem real poderia ser a de qualquer outro: se levado às últimas
conseqüências todo homem é livre na sua história pessoal e na história da
humanidade.
Saint Genet, logo em sua primeira página, já mostra a que veio: encontra-se
ali a junção da psicanálise existencial e do método marxista, que será a tônica de
todo o livro. Na mesma página em que Sartre afirma que expulsaram Genet de sua
infância, o que sugere que há determinação e ação de outrem na vida particular do
indivíduo, ele utiliza a mesma noção temporal de O Ser e o Nada: “O momento é o
envolvimento recíproco e contraditório do antes pelo depois; somos ainda o que
vamos deixar de ser e já somos o que seremos”.
254
Essa expansão do momento é o
modo de existir em ek-stase, próprio do para-si; se em sua ontologia Sartre utiliza
254
SARTRE, 2002a, p. 17.
99
uma fórmula um pouco mais complicada, dizendo que o para-si é o que não é e não
é o que é, percebe-se aqui a terminologia marxista facilitando muito o trabalho de
descrever a contradição inerente ao ser humano. Porém, um elemento novo, a ação
do outro na vida do menino Genet, é inserido, ação essa que não se reduz à simples
objetivação que poderia fazer de Genet um chacal, uma raposa ou uma ave, mas
que decide seu destino em um lance de dados: “Ao invés de agir e saber que
agimos, sabemos que somos agidos.”
255
Esse saber que se é agido, no entanto, não traz para Genet a consciência
histórica de sua condição; para Sartre, ele vive fora da história, entre parênteses,
não vendo senão sua aventura individual. Genet é livre, vive sua vida particular e,
mesmo assim, é agido. A ontogênese privada de O Ser e o Nada em muito se
assemelha à condição de Genet, porém, com uma maior ênfase no papel exercido
pelo outro: Genet “é inocente. Essa inocência lhe vem de outrem: tudo nos vem de
outrem, até a inocência. Os adultos não se cansam de contabilizar seus bens: isso
se chama olhar. O menino é uma dessas posses, entre dois banquinhos ou sobre a
mesa; ele se percebe pelo olhar deles, e sua felicidade é fazer parte do inventário.
Ser é pertencer a alguém”.
256
A objetivação propalada pelo outro, que faz com que o
indivíduo se perceba primeiramente como coisa, se dá geralmente na infância; trata-
se da ação do adulto, que leva a criança a acreditar na superioridade do objeto
sobre o sujeito, ou, na superioridade daquilo que se é para os outros sobre aquilo
que se é para si. Muito cedo a consciência de ser liberdade é substituída pela
prioridade do objeto e pela objetivação do sujeito.
Em sua ontologia, Sartre fala idealmente de um acontecimento absoluto que,
nalgum momento, chega ao para-si; trata-se da irrupção da consciência e, como
decorrência, do nascimento de um mundo para mim.
257
Esse acontecimento é
bastante explorado em Saint Genet, embora dessa feita Sartre o preencha com
acontecimentos reais vividos pelo poeta. Trata-se de sua experiência, obviamente
herdada dos adultos, de colocar em primeiro plano o ter em detrimento do ser. Por
essa razão, Genet, que não tem nada, rouba; os mesmos adultos que lhe doavam
sua inocência, vão lhe doar o ser ladrão. Para Genet, o acontecimento absoluto tem
uma particularidade que o faz ser só seu: “Expulsaram-no no mesmo momento em
255
SARTRE, 2002a, p. 17.
256
SARTRE, 2002a, p. 19.
257
SARTRE, 1943, p. 714.
100
que o punham no mundo. (...) Haveria condenação mais essencial que o abandono
do filho? (...) Filho de ninguém ele não é nada; por sua culpa, uma desordem se
introduziu na bela ordem do mundo, uma fissura na plenitude do ser”.
258
Tal qual em
O Ser e o Nada, é a negatividade do homem que leva o nada ao coração do ser,
corroendo-o e fazendo com que haja mundo; mas se ali o homem o fazia
obedecendo seu ser, ou seja, se ali era a estrutura ontológica do homem que fazia
com que ele buscasse sua impossível fundamentação e, desse modo, levasse o
nada ao ser, agora tal ação é devida à relação objetivante dos adultos em relação a
Genet. A relação, antes individual, é agora permeada pelo outro: Sartre explora o
terceiro termo na relação, antes dual, do homem com o mundo. Ainda assim, melhor
não precipitar e entender esse terceiro termo como algo que seja alheio ao homem;
conforme será visto, trata-se efetivamente do olhar do outro, estrutura que já estava
presente em O Ser e o Nada.
Não há dúvida, Genet é livre; caso não o fosse, seria de fato ladrão ou santo.
O jogo da impossibilidade de coincidir com seu ser é mantido por Sartre nas análises
que faz do acontecimento particular da vida de Genet (roubo). Convém notar que a
expansão do conceito de situação é aplicada, em sua íntegra, ao poeta: “Resíduo de
uma sociedade que define o ser pelo ter, o menino Genet quer ter para ser. Ora, as
maneiras normais de apropriação lhe são recusadas: não obterá nada por compra,
nada por herança; o dom lhe concede um ser relativo e provisório, mas o sujeita
para sempre aos seus benfeitores. (...) O acaso poderia romper o círculo, dissociar o
ser do ter;”
259
a situação de Genet é datada, é circunscrita a uma realidade dada: ele
é órfão numa sociedade que define o ser pelo ter. Sartre ainda abre uma
possibilidade, o acaso, que permitiria que a situação de Genet fosse outra: ele
poderia ter sido adotado por uma família de operários que, em geral, não
associavam o ser ao ter. Mas o fato é que ele foi levado para uma família de
camponeses e, por nada ter, também nada podia ser.
A mudança referente ao conceito de situação salta aos olhos: Genet está em
situação, e essa é um ponto de vista necessário para que ele possa ver e se
relacionar com os objetos e consigo mesmo; mas a situação é também sua situação
social, os valores das pessoas com as quais convive e o papel que lhe é doado por
essas pessoas e que ele, querendo ou não, deverá aceitar. Mais ainda, a situação
258
SARTRE, 2002a, p. 21.
259
SARTRE, 2002a, pp. 22-23.
101
envolve conceitos mais amplos, desenvolvidos pela sociedade ao longo do tempo, e
é por estar em situação numa sociedade que nutre esses valores que o problema da
relação entre ser e ter nasce juntamente com o menino Genet. Entretanto, como
entender que o acaso pudesse mudar sua história? É preciso ter em conta que em O
Ser e o Nada o para-si é definido como duas contingências que encerram uma
necessidade. É contingente que o homem seja, assim como é contingente a posição
que ele ocupa no mundo; contudo, a única necessidade é que, se o homem é, que
seja no mundo. Desse modo, Sartre apenas aventa a possibilidade de que Genet
fosse adotado por uma família de operários, o que daria no mesmo se ele não fosse
órfão, e assim por diante. Noutras palavras, Sartre apenas reafirma que, à exceção
da necessidade de ser no mundo, a situação de Genet (ser órfão, adotado por uma
família camponesa, na França, no início do séc. XX, etc.) é contingente, ou, se deve
exclusivamente ao acaso.
Mas se a situação real é contingente, não o é de nenhuma maneira a escolha
que Genet fez daquilo que fizeram dele. Sem propriedade numa sociedade que
define o ser pelo ter, Genet vai executar dois jogos: brincar de santo e de ladrão.
“Genet passa com a mesma fatalidade da brincadeira para o roubo; é de grande
importância que a fome e a cobiça não tenham sido a origem de seus primeiros
furtos: são necessidades que não se importam com o teu e o meu, que
simplesmente exigem ser satisfeitas. (...) Assim nasce essa natureza tão particular:
uma operação real, cujo objetivo e cuja significação permanecem na irrealidade”.
260
Genet fora lançado em uma situação real que, a seu modo, lhe impunha limites e
sofrimento (órfão, sem posses, ladrão); o que ele faz com o que fizeram dele é de
sua inteira responsabilidade, afinal é sua imaginação que corrói o mundo, numa
operação destrutiva que ele mesmo exerce sobre o real. No outro lado da balança
está a destruição de si mesmo: “Essa é a chave de sua conduta e das suas
desordens: à luz do dia ele é claro, honesto, feliz; entretanto, quanto mais afirma a
sua felicidade na luz, mais se arruína e se tortura na sombra”.
261
Mas se essa é sua
realidade, e se ela foi livremente projetada pelo menino Genet, há de se levar em
conta que era preciso escapar aos olhos dos adultos, e ele o faz tornando-se dois, o
santo que é visto e o ladrão onanista que, por não ser visto, nem mesmo existe.
260
SARTRE, 2002a, p. 25.
261
SARTRE, 2002a, p. 28.
102
Sartre não precisa o momento do acontecimento absoluto na vida de Genet,
ao menos se o entendermos como o surgimento de Genet para ele mesmo; não
haveria meios de explicar a passagem da não consciência à consciência de si. Mas
Sartre determina com precisão o momento em que Genet se torna Jean Genet:
“Uma voz declara publicamente: ‘você é ladrão’. Ele está com dez anos”.
262
Mais
uma vez Sartre mantém a estrutura desenvolvida em O Ser e o Nada, qual seja, o
olhar do outro torna pública e objetiva uma conduta de Genet. Até então ele era, aos
olhos dos outros, o santo, e o ladrão que ele era para si mesmo (em sua vida
privada) não existia por jamais ter sido visto; mas ele é descoberto e sua conduta é
objetivada, doando-lhe ser. É preciso dizer, Genet é ladrão porque quis ser ladrão:
ele queria roubar, o que ele fazia era um roubo. Ele é ladrão. É do presente que o
passado arranca seu sentido e esse presente de acusação – você é ladrão! – doa
sentido ao passado e a tudo aquilo que até então o menino havia feito. Suas
condutas que o identificariam a um ladrão não tinham, até então, surtido efeito,
porque eram ocultadas aos olhos do outro. O olhar do outro objetiva essa conduta e
traz para Genet um ser que ele já era no silêncio de sua subjetividade; a descoberta
de um de seus furtos trouxe o ladrão para a luz, trouxe ao mundo o que Genet
verdadeiramente era.
Assim como os adultos anteriormente doaram a Genet o ser inocente, agora
lhe doam o ser ladrão, ser esse que ele livremente escolheu. “Finalmente tudo se
encaixa, tudo se esclarece: vindo do nada, esse menino não tem nada, não é nada,
seu ser tem a substancialidade do não-ser; se existe, é como um ácido corrosivo”.
263
Ora, deve-se lembrar que Genet queria roubar e roubou, e quem rouba é ladrão;
liberdade e natureza, em Genet, se fundem, de modo aberrante. É sua liberdade que
se coagula aos olhos dos outros, doando-lhe um caráter, objetivando-o e tornando-o
coisa. Nesse vai e vem, a liberdade é responsável pelo ser e o ser petrifica a
liberdade; com a objetivação de sua conduta, Genet recebeu ao mesmo tempo uma
natureza e um destino que o leva, na infância, a encontrar seu inimigo em si mesmo.
É verdade que sua natureza teve origem num olhar que o objetivou como ladrão,
mas a moral que o condena também passou a ser a dele, e ele se sente a ela
vinculado. Sua participação no mundo dos adultos fez com que a moral vivida por
262
SARTRE, 2002a, p. 29.
263
SARTRE, 2002a, p. 31.
103
aqueles se lhe adentrasse a ponto de entranhar-se nele; não é mais preciso que o
olhem e afirmem ladrão porque, ora em diante, ele mesmo fará esse papel.
Percebe-se que, apesar da manutenção das teses de O Ser e o Nada no que
concerne à apropriação da liberdade de um indivíduo por outras liberdades (é o que
se passou com Genet, que se tornou ladrão), Sartre leva essa situação para a
sociedade (isso se dá com Genet devido à situação histórica em que ele vem ao
mundo) e faz com que os valores sociais venham ao indivíduo (Genet internalizou a
moral vigente, pela qual ele é ladrão). A estrutura do ser-para-outro, que tem por
objetivo tomar a liberdade dos demais e objetivá-la, se mantém; e quando ela é
tematizada a partir de um indivíduo real, pode-se ver todo seu alcance e sua
riqueza. Mas nem tudo se mantém igual, e nem mesmo poderia: se Sartre
continuasse preso à impossibilidade de associação entre os homens, mostrada a
partir da leitura de Entre quatro paredes, não importa qual indivíduo ele escolhesse
para analisar, o resultado seria o exílio (ou o solipsismo). Porém, Genet faz parte de
uma sociedade e, inclusive, se solidariza com ela ao internalizar sua moral. Assim
sendo, duas perguntas devem ser formuladas: de que modo há sociedade, se a
relação é de objetivação? Por que justamente Genet é uma vítima exemplar da
objetivação que lhe marcará toda a existência?
Entra em cena um conceito que Sartre já havia apontado em O Ser e o Nada,
ainda que lá ele tenha permanecido no plano subjetivo: a reciprocidade. Há
sociedade porque, nalguma medida, os atores sociais mantêm entre si uma relação
de reconhecimento recíproco, pelo qual o juiz reconhece e é reconhecido pelo
meirinho (ou por tantos outros) que ele é juiz. Em sua ontologia Sartre apontou para
a possibilidade de os indivíduos se reconhecerem como liberdades (utopia, ou, reino
da liberdade); na sociedade estabelecida de Saint Genet todos, reciprocamente, se
reconhecem enquanto exercem os papéis sociais relegados a cada um. E isso leva
diretamente à segunda pergunta:
Não ser como os outros é ser como todos e idêntico a si. Se a operação
reflexiva se efetua normalmente, longe de impedir as relações de
reciprocidade, ela as produz. Sinto que sou diferente de Pedro e sei que
Pedro se parece comigo porque se sente diferente de mim. Ao contrário, a
alteridade que Genet descobre em si exclui toda reciprocidade. (...); todos
os outros, quaisquer que sejam as diferenças que os separam, se
reconhecem como semelhantes no fato de que não são – graças a Deus –
ladrões. Todos os outros, quaisquer que sejam os interesses que os
opõem, se reconhecem como próximos, porque cada um lê nos olhos do
104
vizinho o horror que Genet lhes inspira; todos eles formam uma única e
monstruosa consciência, que julga e que maldiz.
264
O poeta é execrado da sociedade porque o papel relegado a ele e por ele escolhido
é o de ladrão.
Genet representa o Mal: ele é ladrão, e por essa razão sua presença, ainda
que necessária para a manutenção dos justos (sem o mau, como saber quem é
bom?), deve ser condenada. A sociedade, em vista de sua manutenção, elimina a
negatividade de seu seio, esconde-a por debaixo do tapete, e Genet, ao encarnar
seu papel, encarna esse Mal; conforme as palavras de Sartre:
A ação, seja ela qual for, modifica aquilo que é em nome daquilo que ainda
não é. Já que ela não pode realizar-se sem quebrar a ordem antiga, é uma
revolução permanente. Demole para edificar e, para reunir, separa; da
manhã à noite, acumulamos a serragem, as cinzas, as aparas: toda
construção comporta uma parte, pelo menos igual, de destruição. Ora,
nossas sociedades instáveis temem que um movimento em falso as
desequilibre. Assim, nada dizem sobre o momento negativo da nossa
atividade. Seria necessário amar sem odiar os inimigos daquilo que se ama,
afirmar sem negar o contrário daquilo que se afirma, eleger sem rejeitar
aqueles que não se elegeram, produzir sem consumir. Retiram-se os mortos
a toda pressa, recolhem-se discretamente os detritos, recomeça-se a cada
dia, sob o nome de limpeza, a mascarar as destruições da véspera,
dissimula-se a pilhagem do planeta. Tão grande é o medo de pôr abaixo o
edifício, que se nega até o poder de criar: o homem, dizem, não inventa;
descobre. Reduz-se o novo ao antigo. Conservar, manter, restaurar,
reformar, preservar – essas são as ações permitidas; todas pertencem à
categoria da repetição. Tudo está pleno, tudo está em seu lugar, tudo está
em ordem, tudo sempre existiu, o mundo é um museu e nós somos os
conservadores. Entretanto, o espírito, como disse Hegel, é inquietação. Mas
essa inquietação nos dá horror: devemos suprimi-la e deter o espírito,
expulsando a mola de sua negatividade. Por não poder sufocar inteiramente
essa postulação maligna, o homem de bem se castra: arranca da sua
liberdade o momento negativo e projeta para fora de si essa víscera
sangrenta. Eis a liberdade cortada ao meio. Cada uma das suas metades se
estiola do seu lado.
265
Essa é, em suma, a sociedade que não pode comportar Genet senão como
um ladrão que deve ser expurgado. Há reciprocidade entre os homens em
sociedade, mas longe de se reconhecerem como liberdades, eles se reconhecem
como atores que encenam papéis que compõem em sua totalidade o Ser, o Bem.
Não há espaço para o Mal, e ainda que algum membro respeitável dessa sociedade
roube é perdoável; o problema é se esse membro é ladrão, afinal desse modo ele
encarna o Mal que, a todo custo, buscou-se evitar. As conseqüências morais dessa
opção prévia pelo Bem são inúmeras; mas a reciprocidade enviesada que a
264
SARTRE, 2002a, p. 34.
265
SARTRE, 2002a, pp. 35-36. (grifo nosso)
105
sociedade constituída apresenta é, sem dúvida alguma, o encaminhamento da
filosofia de Sartre rumo à Crítica. Se seus opositores podem falar que sua filosofia
redunda numa relação lábil entre o ser e o nada, tornando impossível qualquer
descrição social ou histórica, a reciprocidade é a primeira prova do equívoco dessa
interpretação. Mas voltemos a Genet.
Vítima de uma reciprocidade enviesada, que não o reconhece como uma
liberdade que se apropria de bens indevidos, o poeta é estigmatizado ladrão. Trata-
se de uma maldição ontológica que flui diretamente de sua essência, de seu
coração. Em Genet liberdade e natureza se fundem, na medida em que ser ladrão e
ser livre são sinônimos: “ele foi provido de uma natureza, de uma liberdade culpada
e de um destino”.
266
Note-se que ele foi provido de uma natureza, ele é ladrão
porque alguém na sociedade assim declarou e a essa declaração não coube
recurso; é certo que também Genet encarna essa natureza, pois, de sua liberdade
ele se vê ladrão, e assim como o ser criança inocente e despossada, esse ser lhe
vem de fora, lhe é doado pelos adultos. Seja como for, o poeta não faz mais parte do
Bem; por ser ladrão, ele encarna o Mal, passa a fazer parte do Outro do Ser.
Segundo Sartre, é justamente isso que ocorre na sociedade constituída: o homem
honesto vive sob a égide do Bem e empurra para o Mal (nada) tudo aquilo que é
resultante de sua liberdade e que pode, a seu ver, negar o Bem. O homem honesto
usufrui de uma liberdade cortada, apenas daquela parte que existe para servir o Ser;
a outra metade dessa liberdade, aquela que semeia o nada no ser, é relegada ao
não-ser, assim como aqueles que segundo seu julgamento são dela servidores.
267
É desse modo que Genet, com sua liberdade, serve o Mal, identifica-se com
ele e é, por isso, a ele relegado. Mas se o Mal representa uma meia parte da
liberdade, de onde ele vem? Mais ainda, ao afirmar que o Mal é o resultado da
liberdade que se contrapõe ao Ser, Sartre não estaria afirmando que, na verdade, o
Mal não existe? Ou melhor, que não existem homens maus? Não é assim. De fato
“O mal existe, nós o encontramos em todos os lugares, a qualquer hora; ele existe
porque o homem de bem o inventou”.
268
Se o homem é liberdade, seria forçoso
afirmar que exista previamente uma força, o Mal, que o compeliria a agir
contrariamente ao Bem; mas fica fácil aceitar que o homem, negando em si mesmo
266
SARTRE, 2002a, p. 31.
267
SARTRE, 1947, pp. 229 ss.
268
SARTRE, 2002a, p. 39.
106
uma parte de sua liberdade, a projete no mundo como não-ser e, desse modo,
encontre em outros homens reflexos dessa negação do ser e declare que isso é o
Mal. Trata-se, portanto, de uma projeção: o Mal é resultado de uma atividade
projetiva. E por ser resultado de uma invenção humana, o não-ser é uma das mais
importantes estruturas para a manutenção da sociedade: “Para os tempos de paz a
sociedade criou, em sua sabedoria – ouso dizer – os maus por profissão. Esses
‘homens de mal’ são tão necessários aos homens de bem quanto as moças de
bordel às mulheres honestas: são abscessos de fixação; para um único sádico,
quantas consciências apaziguadas, clarificadas, tranqüilizadas”.
269
O que mais chama a atenção é que Sartre, contrariando as expectativas de
muitos comentadores, fala da sociedade e de sua estruturação a partir da teoria
exposta em O Ser e o Nada. Parecia muito natural afirmar que, por pensar
ontologicamente o mundo em termos de ser e nada, Sartre jamais passaria de uma
relação superficial entre essas essencialidades; parecia ainda que, ao afirmar a
estrutura de negação do outro da qual cada para-si estava imbuído, não haveria
meios de dar conta de nenhuma sociedade. Entretanto, contrariando esses
prognósticos, ao analisar a trajetória de Genet Sartre deixa claro que por ser
liberdade o homem tem a mesma possibilidade de adesão seja ao Ser, seja ao
Nada. Uma vez que a sociedade escolheu o Bem como seu eleito, o homem
honesto busca acercar-se do Ser, e justamente por isso nega uma fatia de sua
liberdade, projetando-a nalguns indivíduos selecionados por suas condutas. Mais do
que isso, graças ao olhar objetivante do qual cada para-si é dotado, esses indivíduos
são considerados representantes do Mal. Melhor, eles são o Mal: para expulsar o
não-ser do seio da sociedade (Bem), essa negação é projetada no transcendente;
assim, a reciprocidade é negada a indivíduos previamente escolhidos e eles deixam
de encenar os papéis que a maioria exerce. Os desafortunados escolhidos são
objetos, são o Mal, são nada.
Genet se aliena, então, ao objeto que ele é para os demais. Porque o
consideram Mal, ele é o Mal. “Esse é o caso do pequeno Genet. A sociedade o
encarregou de encarnar o Mal, isto é, o Outro”.
270
Genet suplanta o que ele é para si
por aquilo que ele é para os outros, tornando-se o diferente do Ser, diferente do Bem
e diferente de si; Genet é para-si objeto e, pior, objeto Outro-do-Ser. Trata-se da
269
SARTRE, 2002a, p. 41.
270
SARTRE, 2002a, p. 45.
107
personificação do nada, do negativo, afinal, Genet roubou e rouba: o roubo o
encobre com uma presença perpétua, independente do tempo decorrido entre um
furto e outro ou, o que é indiferente, se ele não roubasse nunca mais. Os outros
declaram que Genet é ladrão, determinando sua trajetória e seu destino. Por isso, a
reciprocidade vigente entre os para-sis não é aplicável a ele; todos os homens são
objetos uns para os outros, mas, por serem honestos, eles se dão nomes no mesmo
ato em que são nomeados. É recíproca a objetivação que um homem de bem
recebe em virtude do papel que ele encena em sociedade (professor, garçom, etc.),
pois, cada um exerce um papel que participa daquilo que a coletividade definiu como
Bem. Não há, porém, reciprocidade com aqueles indivíduos cujo papel pertence ao
Mal. Genet é ladrão, objeto ladrão ao qual não cabe reciprocidade, mesmo aquela
objetivante que há entre os homens de Bem, já que ele não participa do Ser.
Genet torna-se um ser humano mistificado: por encarnar o Mal inicialmente
aos olhos da sociedade e, a seguir, para si, ele se identifica com o nada. “Objeto,
primordialmente – e objeto para os outros –, eis o que é Genet, no mais profundo de
si mesmo”.
271
É graças ao outro e ao olhar dele que Genet, mesmo tendo feito o
juramento de não mais roubar e de tê-lo cumprido por quatro anos, não deixa de ser
ladrão. Esse ser o impregnou até à medula e o fato de não mais roubar não muda
em nada seu destino; num dado momento de sua vida os outros o nomearam ladrão,
e daí em diante seu futuro foi hipotecado. Mesmo que tenha ficado um bom tempo
sem roubar, ele roubou, e os proprietários se cercam de todos os lados para não
serem vítimas de Genet. Para eles a criança flagrada roubando é o prenúncio do
fugitivo, do encarcerado; essa objetivação está no olhar dos adultos que o cercam e
não lhe permitirá escapar de seu ser. Genet, diante disso, buscará tomar cuidados
para que o ladrão em si próprio não roube outra vez: Genet é um outro que tenta
escapar de seu destino, da fatalidade de um ato que definiu seu futuro.
O menino passa a figurar entre os objetos nomeados; ele é o Mal acessível,
visível, ele é ladrão. A reciprocidade lhe é negada; nem mesmo entre os ladrões ele
recuperará sua possibilidade de nomear, haja vista que a reciprocidade é reservada
aos homens de Bem. A palavra, pela qual Genet em vão tenta ser outra coisa que
não ladrão, muito rapidamente se dissipa, enquanto o olhar objetivante de todos o
petrifica em seu ser, não lhe deixando nenhuma brecha para escapar. Seu ser, para
271
SARTRE, 2002a, p. 46.
108
os demais, foi cristalizado. Para si mesmo, por não poder se reconhecer como
ladrão senão como um outro, “ele é outro absolutamente, todas as palavras
designam aquilo que, para os outros, é manifesto e, para ele, oculto a priori”.
272
A
sociedade constituída fez de Genet um outro, diferente de todos os demais e
incapaz de se reconhecer em si mesmo. O que fazer? Negar a moral de seu tempo
não é possível porque ela faz parte dele. Submeter-se? Não seria possível
submeter-se a si mesmo. Uma vez que foi pego roubando, a roupagem de inocente
não será jamais aplicável a Genet; resta-lhe ser ladrão, sendo nada, ou sendo um
outro em si mesmo.
Em resumo, pode-se ver que Sartre, a partir das estruturas de O Ser e o
Nada, analisa uma história real, a vida de Jean Genet, e longe de criar os problemas
insolúveis que se supunham inerentes ao ser-para-outro (impossibilidade de
agremiação ou de reconhecimento entre os homens), permite entender de que modo
a sociedade se estrutura. Antes de ser pego roubando Genet gozava do
reconhecimento dos adultos e, nessa reciprocidade, ele nomeava seus pais adotivos
enquanto esses, por sua vez, o nomeavam órfão inocente. O roubo mudou a
perspectiva de reciprocidade e Genet se tornou, aos olhos dos adultos, ladrão. Por
ter cometido um ato que a sociedade condena, Genet passou a encarnar o Mal; ele
deixou de representar papéis, como fazem todos os homens, e se tornou ladrão,
palavra que encerra o peso de um objeto que é nomeado e não nomeia. É verdade
que Genet roubou porque, numa sociedade que define o ser pelo ter, ele não tinha;
mas também é verdade que, com isso, o menino tornou-se um agente do Mal. A
sociedade, que projeta a parte negativa de sua liberdade de modo transcendente,
considerando-a o não-ser, determinou que Genet fazia parte da parcela que exclui o
Ser e, por isso, não seria mais digno de reconhecimento, senão como um objeto.
Completa-se, assim, o primeiro estágio da malfadada história do menino.
O primeiro livro de Saint Genet mostra o processo pelo qual o poeta passa da
criança inocente ao objeto ladrão. E Sartre o conclui com perguntas que bem
poderiam ser formuladas por qualquer determinista: uma vez aclarado o processo de
objetivação humana, do qual Genet é apenas um caso exemplar, o que resta fazer?
Estando fora de questão negar a moral estabelecida e não havendo meios de
escapar do julgamento social, restaria somente aceitar que as coisas são assim
272
SARTRE, 2002a, p. 52.
109
mesmo? Não. Para Sartre, o homem é liberdade e isso constitui seu ser. Não é de
modo algum possível deixar de ser livre, ainda que, conforme é o caso explícito de
Genet, a liberdade utilizada seja condenável pela sociedade; mesmo que os homens
de Bem lhe neguem sua reciprocidade e o considerem ladrão (um objeto), nem por
isso Genet deixa de ser livre. “O olhar dos adultos é um poder constituinte que o
transformou em natureza constituída. (...) o importante não é o que fazem de nós,
mas o que nós mesmos fazemos com o que fizeram de nós”.
273
O destino de Genet
já estava traçado, seu futuro já havia sido hipotecado em vista do roubo que ele
havia cometido; porém, cabe ainda decidir o que fazer com aquilo que os adultos
fizeram.
Nota-se que por mais sombria ou implacável que seja a situação na qual o
homem é lançado no mundo, essa é tributária dos macro-valores que Sartre, numa
acepção moral, vai nomear de Bem ou Mal, estando esses intimamente ligados à
sociedade e aos valores que ela desenvolve em vista de sua manutenção. Prova
disso é que o fato de Genet buscar ter para ser é resultado dos valores dos
agricultores de sua época; poderia ser diferente se o menino fosse adotado por uma
família de operários. Entretanto, Sartre não hesita em identificar o Bem ao Ser e o
Mal ao Outro-do-Ser, ou ao Não-Ser. Alguma semelhança com a estrutura de O Ser
e o Nada? Toda. A diferença é que aqui Sartre afirma de modo explícito que o
homem de Bem mascara a porção negativa de sua liberdade, relegando-a ao Mal e
encarnando-a, num processo de projeção, em alguns exemplares paradigmáticos da
sociedade.
274
Genet é uma dessas vítimas e nem por isso deixa de ser livre, seja
para se matar, seja para decidir o que fazer com aquilo que fizeram dele: “Ele
escolheu viver, disse contra todos: serei o Ladrão”.
275
A escolha do poeta de assumir seu ser, tornando-se de fato aquilo que a
sociedade afirma em coro que ele é, apenas poderia resultar de sua liberdade.
Sartre nomeia essa atitude de Genet de conversão ao Mal, afinal, para que Genet
encarne de fato seu ser ladrão é preciso que sua liberdade se engaje
completamente nesse projeto. Sobre isso o determinista poderia argumentar: como
isso é possível se o menino não teve nenhuma escolha? Sartre não está alheio à
força exercida pela macroestrutura na vida do poeta; a sociedade cria sua moral e,
273
SARTRE, 2002a, p. 61.
274
SARTRE, 1947, p. 305.
275
SARTRE, 2002a, p. 61.
110
dela, estabelece os parâmetros segundo os quais alguns membros, em vista da
manutenção social, serão excluídos. Além disso, “é na história que a sua conversão
o introduz, pois ela manifesta indissoluvelmente a sua singularidade e a da nossa
época”.
276
Genet, tal qual os demais homens, goza de características singulares que
o fazem ser quem ele é; por sua vez, a época em que o menino vive sua experiência
de roubar conserva suas características morais. Trata-se, pois da tensão gerada
pela singularidade de Genet em relação à seu tempo e ao sistema de interdição que
o grupo estabeleceu.
A análise de Sartre sobre o itinerário de Genet mantém as estruturas de O
Ser e o Nada. Porém, Sartre não se mantém prisioneiro de uma descrição universal
do que seria a estrutura ontológica do homem: ele fala de Genet, um indivíduo
datado e localizado – real, portanto. Assim, por não se tratar do humano em geral,
mas da contingência de uma existência, pode-se ver que mesmo sendo, em seu ser,
absolutamente livre, Genet sofre os efeitos da sociedade em que vive; por estar
impregnado da máxima de ter para ser ele rouba; por roubar num meio em que a
propriedade é sagrada, todos o consideram ladrão. Percebe-se que, desse modo,
Sartre mantém a estrutura de sua ontologia fenomenológica (ser em-si e para-si) e,
no mesmo movimento, amplia a noção de situação, a ponto de levar a história
individual de Genet até a história de seu tempo, até a história da humanidade. Mais
ainda, Genet, ante a condenação geral de seus contemporâneos, mantém sua
liberdade (ele é livre) e, livremente, se engaja em seu ser. Para Sartre, a conversão
de Genet é livre decisão sua de se tornar aquilo que todos dizem que ele é, de
engajar completamente sua liberdade no ser ladrão; numa palavra, encarnar o Mal,
assim como era dele esperado por aqueles que o definiram e objetivaram como tal.
O engajamento de Genet e sua escolha de ser ladrão, da maneira pela qual
são apresentados por Sartre, não deixam dúvida sobre a evolução pela qual passa
seu pensamento. As dificuldades geradas pela descrição do ser-para-outro, do final
de O Ser e o Nada, se mostram equívocas e não resistem à análise de um caso real.
“A criança abandonada, em Genet, se torna sujeito universal. (...) Assim, ele
reproduz em si mesmo o conflito secular entre a cidade e o campo franceses, (...). É
por isso que ele é um dos nossos, é por isso que ele tem ‘algo a nos dizer’: na
verdade, estamos todos divididos, como ele, entre as exigências de uma moral
276
SARTRE, 2002a, p. 63.
111
herdada da propriedade individual e uma moral coletivista em formação”.
277
A
situação, que em O Ser e o Nada era um ponto de vista a partir do qual era possível
negar o mundo, não está de modo algum em contradição com a situação ampliada
vivida por Genet: lá se tratava de esclarecer as estruturas mais fundamentais do
Ser, que se desdobrou em para-si, em-si e para-outro. Agora se trata dos grupos e
da história a partir de um caso concreto, o que explica o aumento da complexidade.
Embora historicamente engajado, Genet é um indivíduo livre e responsável
por seus atos. É verdade que O Ser e o Nada, por partir de uma descrição
ontológica do homem, sugere a conclusão mais fácil de que por ser absolutamente
livre o para-si pode fazer o que quiser; e isso não é correto. O problema é que essa
obra tematizou apenas o fundamental da existência e por não inserir a liberdade no
conceito expandido de situação (história), redundou num impasse. Mas como seria
se ao invés de partir do início, do Ser, Sartre tivesse partido do final, da história? Se
ele não aclarasse, previamente, a estrutura mais essencial do homem (a liberdade)
e partisse imediatamente da determinação histórica e social, como explicar de onde
viria a determinação? De que modo seria possível a mudança, tão cara aos
marxistas com o conceito de revolução, se o homem fosse apenas um produto de
seu produto sem ser, antes e de modo originário, livre?
É preciso ver com mais cuidado essa importante passagem da teoria de
Sartre que, a nosso ver, é o mote para sua futura pretensão de contribuir com o
marxismo e, no mesmo sentido, é a parte mais contundente de sua teoria.
278
De
fato, seria absurdo afirmar que o homem é livre mesmo que acorrentado ou
explorado; seria uma falácia pensar que há liberdade numa sociedade capitalista, na
qual a apropriação da mais-valia e a alienação do trabalho, gerando exploração e
miséria, decidem. Mas, para Sartre, isso é visível porque, antes, ele mostrou que ser
homem é ser livre; a liberdade, bem entendido, não é tão rasteira que se confunda,
nesse nível, com a possibilidade de fazer o que se quer. O ser é em-si, ele é idêntico
a si mesmo; o homem é para-si e não pode, jamais, ser idêntico a si. Assim, a
relação dialética que se estabelece entre o homem e a história, seja ela individual ou
universal, comporta estruturas complexas e, nem por isso, ininteligíveis: o homem é
essencialmente livre, mas vem ao mundo numa situação dada. A situação pode
277
SARTRE, 2002a, pp. 64-65.
278
Tema desenvolvido na Parte II, 1, Uma questão de método.
112
constrangê-lo, explorá-lo, manipulá-lo; no entanto, ele tem sempre em seu poder a
última decisão, afinal ele se projeta.
O poeta rouba e é por isso excluído da reciprocidade: torna-se objeto ladrão.
Mas ele não é tal objeto e nem poderia sê-lo, do mesmo modo em que uma parede
é branca; resultado: Genet decide ser o que o crime fez dele. Sartre faz notar que
esta proposição encerra uma contradição, afinal ele decide ser. Ora, essa decisão
supõe, em primeiro lugar, que ele não seja ladrão para que possa decidir sê-lo; mas
exige também que Genet não possa identificar-se ao ser ladrão, afinal ele decide.
Embora pareça apenas um jogo de palavras, caso se leve em conta a teoria
sartriana como um todo, tal impressão desaparece. Trata-se da contradição acima
anunciada, de que o homem é livre porque não coincide com seu ser, embora, e
esse é o caso de Genet, a sociedade lhe atribua um ser definido. A diferença
evidente é que apesar do juiz que condena Genet à prisão exercer um papel social
que lhe é doado pela sociedade (a rigor, ele não é juiz porque é incapaz de coincidir
consigo), há reciprocidade entre ele e os demais homens de bem. Essa
reciprocidade é negada a Genet e, desse modo, aos olhos do juiz e de todos os
demais homens, ele é mesmo, de verdade e por dentro ladrão. O juiz, por ser
considerado um homem de Bem, pode ser ex-garçom, ou ex-lavrador, ou mesmo
juiz aposentado; Genet, por exercer a porção negativa de sua liberdade, coincide
com seu ser aos olhos de todos e será perpetuamente ladrão. É assim que ele
decide ser o que o crime fez dele. Noutros termos, “Se Genet é uma ‘natureza’, tudo
está inscrito nessa natureza, até o movimento que ele faz para voltar-se para ela e
reivindicá-la; se Genet tem o poder de reivindicar a sua essência, então ele tem o de
recusá-la, de mudá-la; ele é livre e sua natureza é uma ilusão”.
279
De modo muito similar daquele que seria em O Ser e o Nada, pode-se
concluir que Genet é ladrão não o sendo, e não é ladrão sendo-o. Esta fórmula, um
tanto enigmática pela qual Sartre define o ser-para-si, tem como origem o nada, algo
insuperável que não permite que o homem coincida consigo; ora, se no plano
ontológico o projeto do para-si, de ser si mesmo e, concomitantemente, manter-se à
distância de si, não pode ser satisfeito, é certo que essa estrutura se aplica, de
algum modo, ao homem em sua vida cotidiana. Segundo Sartre, é o que se passa
com Genet: “Ele quer ter a intuição de si; esse sujeito quer se fazer para si mesmo
279
SARTRE, 2002a, p. 71.
113
objeto absoluto, essa consciência quer tornar-se ser e consciência de ser ao mesmo
tempo; o ser é o seu desejo, a sua aspiração, principalmente o seu possível
fundamental”.
280
A contradição entre o ser e o fazer, que em Genet é explícita, visto
que ele decide não mais roubar e afirma que é ladrão, mostra que mesmo objetivado
pela sociedade e considerado um pária, Genet continua livre. Livre inclusive para,
algumas vezes, afirmar que não é livre, vendo-se como um outro; o fato de que ele
mesmo possa se considerar um objeto exige a reflexão, exige que ele esteja distante
de si para tomar-se como objeto e reconhecer que tal objeto não é livre.
É insuficiente continuar afirmando que Genet é livre sem lembrar que o que
ele faz é decidir livremente o que fazer com aquilo que os adultos, quando ele foi
pego roubando, fizeram dele. E mais do que isso, é preciso notar que há uma íntima
relação entre a estrutura ontológica descrita por Sartre em O Ser e o Nada e a
maneira pela qual essa estrutura se realiza de modo prático na vida do poeta:
“Genet realiza na revolta, no orgulho, na infelicidade, o soberbo projeto de sua causa
de si. (...) Roubava porque ‘era’ ladrão; agora, é para ser ladrão que ele rouba.
Roubar, agora, para ele, é consagrar a sua natureza de ladrão pela aprovação
soberana da sua liberdade”.
281
A expansão do conceito de situação, resultado final
decorrente das análises mais simples e mais abstratas empreendidas em O Ser e o
Nada, mostra o primeiro movimento dialético na trajetória de Genet: fazer-se a partir
daquilo que já foi feito, afinal, “Essas atitudes vão viver e transformar-se; cada uma
terá a sua dialética, o seu desenvolvimento histórico, os seus símbolos”.
282
A partir
da decisão de Genet de ser ladrão, abrem-se duas progressões dialéticas, cada uma
delas resultante de uma das decisões (que são, no limite, a mesma): a dialética do
ser, de base ontológica, e a dialética do fazer, de cunho existencial.
Trata-se de um mesmo movimento e não poderia ser diferente; Sartre sabe
disso, na medida em que indica ao leitor a possibilidade de analisar a totalidade ser-
fazer a partir de seu conjunto sintético. Mas, ainda segundo o filósofo, isso tornaria a
exposição ininteligível e, desse modo, é preciso separá-las. Note-se que, com isso, o
filósofo almeja manter a dialética tendo por base a ontologia e mostrar, na mesma
medida, o resultado prático desse movimento. Por ser livre, Genet mantém no
mesmo plano sua decisão de ser (ladrão) não o sendo (ele não rouba); ao mesmo
280
SARTRE, 2002a, p. 73.
281
SARTRE, 2002a, p. 79.
282
SARTRE, 2002a, p. 81.
114
tempo Genet decide (é livre) que é ladrão (é um objeto). Em ambos os casos, ser e
fazer, o poeta segue a contradição supracitada e, mais importante, isso mostra que
Sartre mantém a estrutura da ontologia ao mesmo tempo em que analisa um caso
concreto que exige remissão à determinação histórica. Apenas assim é possível
entender de que modo Genet é livre, sendo que, por ter nascido numa sociedade
que define o ser pelo ter, ele é ladrão. O mais simples seria aceitar que Genet é
resultado de seu meio (determinismo) ou buscar razões psicológicas que justifiquem
suas atitudes; mas todas essas possibilidades contrariam o princípio fundamental da
filosofia de Sartre, qual seja, que ser homem é ser liberdade.
Possivelmente, essa é uma das razões pelas quais alguns comentadores de
Sartre tenham encontrado na inserção de temas como exploração e necessidade
(Crítica), uma negação de seu trabalho anterior e a cega conversão à filosofia
marxista. De fato, à primeira vista, uma teoria que defenda a liberdade humana
absoluta apenas pode se realizar no plano ideal. Mais ainda, seria forçoso aceitar
que é livre um menino que nasce na orfandade, que é adotado por uma família de
camponeses e que, por nada ter numa sociedade que identifica ser a ter, rouba.
283
Porém, é exatamente isso que Sartre mostra com a análise que faz da trajetória de
Genet. Seria diferente se o menino roubasse para matar sua fome, mas não é o
caso: ele rouba porque está imbuído de valores contraditórios, uma vez que ele foi
lançado sem posses num mundo de proprietários. Rouba escondido para ser e é,
aos olhos dos adultos, uma criança inocente; mas um dia ele é pego roubando.
Genet é um outro porque assim fizeram dele, mas também é um outro para si.
Nele, a dicotomia entre ser e fazer, aplicável a todos os homens, é elevada ao
máximo, a ponto de dilacerar seu ser; ou, conforme diz Sartre, Genet viverá o eterno
jogo entre o criminoso e o santo. Os detalhes da conversão de Genet ao Mal,
primeiro passo dele rumo à sua libertação, não será explorado nos detalhes, mas o
objetivo principal (mostrar de que modo a teoria filosófica de Sartre se comporta
quando a estrutura de sua ontologia fenomenológica é trazida para a análise de um
caso real) será mantido. É preciso, ainda, ter em vista que o caso de Genet é
paradigmático: ele faz parte de uma parcela excluída da sociedade; ao ser nomeado
ladrão, ele passa a ser considerado pelos homens de Bem um objeto e, como tal,
indigno de reciprocidade. Entre os homens de Bem, note-se, há objetivação, mas
283
“Ninguém nasce homossexual ou normal: cada um se torna um ou outro, segundo os acidentes de
sua história e a sua própria reação a esses acidentes”. SARTRE, 2002a, p. 87.
115
essa tem duas vias; o juiz ou o garçom, enquanto exercem seus papéis na
sociedade, são objetivados por outros homens e também os objetivam. Genet, por
encarnar o Mal aos olhos da maioria, não participa da reciprocidade objetivante, pois
ele é objeto.
Por essa razão, a liberdade do poeta é, para ele mesmo, destino, haja vista
que ela está dilacerada. Isso não significa que o homem de Bem esteja de posse de
sua liberdade total, afinal, também ele faz uso apenas da metade dela, aquela que é
voltada para o Bem, para o Belo e para o Ser. O homem de Bem adere sua
liberdade ao Ser e esconde toda possibilidade negativa.
284
Genet, ao ser excluído,
passa para o lado negativo da liberdade, não apenas aquela de, no máximo, dizer
não ao ser, mas aquela de negar o ser e afirmar o nada. É verdade que, sem
sucesso, ele buscará acercar-se do ser; como o que encontra (e poderia encontrar)
é nada, sua história será marcada pelas inúmeras tentativas de dar ao nada a feição
de ser. Segundo Sartre, é o que o poeta faz ao afirmar-se ladrão, ao escolher-se
homossexual, ao amar o crime (e o criminoso), etc. Essas seriam as tentativas de
um homem que, lançado ao nada, buscou fundamentá-lo no ser, empreitada fadada
ao fracasso. É assim que Genet se torna outro para si mesmo, “Um outro
perseguindo apenas o próprio prazer, realiza para Genet a identificação de Genet
consigo mesmo; esmagada, comprimida, perfurada, a consciência morre para que o
Em-si nasça”.
285
Sartre tem por objetivo entender de que maneira o órfão se tornou ladrão,
homossexual e, por fim, encontrou sua salvação tornando-se um poeta genial. Mas
pode-se, a contrapelo, encontrar elementos de extrema importância para entender o
crescente de seu pensamento, de O Ser e o Nada à Crítica. Alguns desses
elementos já foram explorados, como a expansão do conceito de situação e o
engajamento da liberdade ontológica que, por sua vez, requer a assunção da
história. Agora é momento para aprofundar a noção de reciprocidade, passo
importante para entender a passagem do para-outro objetivante de O Ser e o Nada
para a sociedade constituída da Crítica. Sabe-se que a reciprocidade já estava
presente em O Ser e o Nada, mas ali tratava de buscar se apoderar da liberdade
alheia, tornando o outro coisa, um objeto dentre os demais; essa é, em suma, a
origem das críticas mais sérias à filosofia de Sartre, afinal, um mundo pautado por
284
SARTRE, 1947, p. 307.
285
SARTRE, 2002a, p. 116.
116
relações de conflito, tendo por base o objetivo ontológico de tornar o outro objeto,
passaria longe das relações sociais reais. Essa é, por sua vez, a principal razão para
que se fale em ruptura no conjunto da obra de Sartre, e para que seus opositores o
acusem de idealista delirante. Mas o que Saint Genet mostra? Descontinuidade na
obra de Sartre? Não.
Do mesmo modo que em O Ser e o Nada Sartre funda as relações entre os
homens na reciprocidade objetivante, em Saint Genet é justamente a objetivação,
que fez dele objeto ladrão, a responsável por fundar as relações sociais entre os
homens de bem. E mesmo que Sartre não trate dessa questão de modo explícito,
qual é o tipo de relação que os homens de Bem estabelecem entre si? Não é
justamente aquele da ontologia, pela qual a reciprocidade busca objetivar e apossar-
se da liberdade alheia? O caso de Genet é especial, por ser um excluído da
comunidade dos homens de Bem e, por essa razão, não participar da reciprocidade.
Mas é preciso ter em conta que Genet certamente não é o único, afinal, há os
demais ladrões, os demais homossexuais, os criminosos e assim por diante. Esses
não participam da sociedade senão como aqueles que encarnam o Mal e servem de
objeto para catarse. Porém, de que modo se dá a relação entre os demais homens
da sociedade (aqueles de Bem)? Eles se reconhecem como liberdades de fato
(conforme seria num reino da liberdade), ou é o fato de sua liberdade buscar se
apoderar das demais que faz com que eles se reconheçam entre si? Segundo
Sartre, eles exercem papéis e fazem uso tão somente da porção de sua liberdade
que concorda com o Ser, estabelecendo entre si a reciprocidade que é negada
àqueles que se servem da porção negativa da liberdade, o que já responde a
pergunta.
Genet é ladrão do mesmo modo em que o juiz é juiz, e ambos não o são da
maneira em que um cinzeiro é cinzeiro. A diferença é que a reciprocidade foi negada
a Genet e, na mesma ocasião, “Genet recusou, primeiro, a única chance de
salvação pelo amor: a reciprocidade”.
286
Estranha afirmação, que leva a indagar:
como poderia o poeta recusar algo que lhe foi negado? Mais uma vez, o caso de
Genet é exemplar. A reciprocidade vigente entre os homens de Bem lhe foi negada,
é verdade, mas por um processo de aceitação passiva (livre) Genet recusou
externar a objetivação e a voltou contra si mesmo. Para Genet, ele é um outro e,
286
SARTRE, 2002a, p. 120.
117
assim, é outro que age nele, seja esse outro denominado Mal ou Demônio, seja
esse o criminoso ou o ladrão. Sem reciprocidade, Genet não pode (conforme o
fazem os homens de Bem) escapar ao paradoxo: “não se pode distinguir o que ele
sente daquilo que ele ‘encena’ sentir”.
287
A distância, muito tênue entre ser e
encenar, entre viver e imaginar, que em O ser e o Nada tem na facticidade
(opacidade e resistência dos objetos) e no olhar do outro (para-outro) seu
diferencial, é mantida na sociedade excludente e impiedosa – real, portanto –, na
qual Genet foi lançado. O problema é que, muito cedo, Genet foi excluído da
reciprocidade e, para ele, ser e fazer, imaginar e viver ou qualquer outra dicotomia
da condição humana tornam-se idênticas.
Assim, voltando à sociedade dos homens de Bem, encontra-se a peça que
faltou, em O Ser e o Nada, para entender de que modo inúmeros para-sis
degladiando entre si poderiam coexistir num mesmo mundo. “Num grupo fortemente
estruturado, Deus, para cada membro, é o Outro. O Outro absoluto e infinito, que
legitima a tradição, os costumes e a lei; é o fundamento e a garantia da ordem e dos
imperativos sociais; perfaz a integração do indivíduo à comunidade; atua como um
fator de normalização”.
288
Como é de se supor, longe de qualquer tentação
teológica, Sartre está antecipando o terceiro termo, já referido, que será mais bem
desenvolvido na Crítica, como mediador na relação de reciprocidade (existência
serial). A reciprocidade negativa (negação recíproca) não é novidade, pois está
presente em O Ser e o Nada; a exclusão de alguns membros da relação de
reciprocidade é explorada com Genet. Mas, se ele é excluído, o que faz com que
aqueles que restam mantenham algum tipo de sociedade? O Outro. Mais uma vez o
outro, o olhar do outro e sua vigilância serão o ponto de união humana. Porém, e
não seria ingenuidade perguntar, quem é esse outro?
Sartre responde com uma espécie de trocadilho: o Outro é todos e é ninguém.
Um pouco de atenção permite entender que essa resposta é plausível, na medida
em que cada um representa, ao mesmo tempo, o papel de carrasco e de vítima em
uma dada sociedade. O juiz aplica a lei, mas pode ser condenado por outros
homens; o soldado prende, mas está à mercê de ser preso; todos os homens podem
denunciar, e serem denunciados. Na solidão de sua vida privada, todas as pessoas,
invariavelmente, cometem transgressões e, até crimes. Os homens de Bem
287
SARTRE, 2002a, p. 139.
288
SARTRE, 2002a, p. 142.
118
cometem delitos; a diferença entre eles e Genet é que não foram vistos, não foram
acusados, não foram excluídos da reciprocidade. Gozam do reconhecimento dos
outros homens, do Outro que cada um desses olhares compõem; mas assim como a
espada de Dâmocles, o Outro lhes espreita, podendo surpreendê-los, a qualquer
momento, no exercício pleno de sua liberdade. Na contrapartida, o mesmo homem
que pode ser denunciado, nomeado, objetivado, denuncia, nomeia e objetiva. O
Outro, ao qual cada um está sujeito, é todos os outros homens e não é nenhum
deles em especial.
Genet, em seu processo de conversão ao Mal, não deixa de crer em Deus. E
nem mesmo poderia, afinal, essa foi a explicação dada por ele à sua eleição para
sofrer o maior dos tormentos. Contudo, ele “É eleito para sofrer, para odiar-se e para
fazer o mal, o que, em certo sentido, não deixa de ser verdade. Mas a sua eleição
vem da sociedade das pessoas honestas; o erro é atribuí-la a um ser metafísico”.
289
Já colecionamos alguns nomes (Moral, Lei, Cultura, Outro, Deus) para essa força
que age de modo irresistível e arrasta todos os homens num mesmo sentido,
permitindo a manutenção da sociedade. Nem é preciso responder de onde vem essa
força, pois sua origem apenas pode ser o homem, uma vez que ele é o
representante imediato desse Outro para cada um dos demais, enquanto cada um
deles é representante Daquele para ele. O que se tem é o aumento da
complexidade da estrutura de reciprocidade do ser-para-outro: não há nada que
escape à relação dual e recíproca entre os para-sis, exceto a força exercida por
esse grande Outro que, pela vigilância do outro próximo, exerce influência sobre
todos. Esse Outro está fora do para-si e, ainda assim, faz parte dele (ou a fórmula
contrária, que daria no mesmo), Ele engloba todos e cada um dos homens.
“Em suma, o mecanismo é simples: Genet foi educado religiosamente, a
Sociedade o marcou com seu sinete, isto é, imprimiu nele como um selo, a idéia de
Deus, fundamento mítico dos imperativos coletivos”.
290
Assim, Genet, ao ser exilado,
pode tanto tributar o exílio aos homens que o condenam quanto a Deus, que
condena o roubo; de modo simples, efetivamente não é Deus que o manda para a
prisão, mas o juiz, sendo que esse juiz exerceu o papel do grupo, da sociedade e de
Deus. Ser negação do ser, postura assumida por Genet, nada mais é que uma
sentença decretada pela sociedade, fruto de uma representação coletiva dos
289
SARTRE, 2002a, p. 145.
290
SARTRE, 2002a, p. 146.
119
homens honestos. O termo para nomeá-la pouco importa: “são ainda os olhares de
todos que convergem para Genet através dessa Potência Obscura que ele
reverencia. Mas esses milhares de olhos são interiorizados”.
291
Assim, a progressão
ocorrida em relação a O Ser e o Nada não necessitou, em momento algum, de
renegar qualquer uma de suas estruturas: a noção de homem livre é a mesma, o
limite no olhar do outro idêntico. A noção de situação foi ampliada; pudera, já que
agora se trata de um homem real e não do núcleo instantâneo desse ser. O Outro
tomou ares metafísicos, pois a história, a moral e Deus vão além do indivíduo, é
verdade, mas estão calcados no ser-para-outro, no ser-para-si e no ser; o círculo se
fecha.
A equação que encaminha do mais simples ao mais complexo (do abstrato ao
concreto) chega à sua aplicação mais avançada: a sociedade. Genet, um homem
concreto, numa sociedade estabelecida, e com seus valores e suas mazelas,
inaugura novos problemas. Sem abandonar a filosofia desenvolvida até então,
Sartre apresenta novas respostas para as novas questões que surgem: leva, enfim e
sem rodeios, ao instrumental que marcará a filosofia de Sartre deste ponto em
diante. Se em O Ser e o Nada Sartre pode ser acusado de apresentar uma dialética
do ser e do nada, sem terceiro termo e por isso, sem progressão, reencontramos a
dialética na história de libertação de Genet. Dessa feita, porém, será a dialética o
instrumento que permitirá a Sartre dar conta do processo evolutivo de Genet, desde
sua conversão ao Mal, passando por sucessivas libertações, até a última, a
libertação definitiva pela poesia. Não nos ocuparemos dos dois outros processos de
libertação de Genet (livros III e IV de Saint Genet) porque, apesar de ali estarem
presentes elementos que corroborem nossa tese, sua importância não justificaria tal
empreitada. Antes de abandonar essa obra, permanece uma pergunta a ser
respondida: de que modo Genet, homem livre, entende o que ele fez com o que fora
feito dele?
A estrutura de O Ser e o Nada, pela análise do fenômeno de ser, descobre o
Ser absolutamente positivo e sem fundamentação; o para-si é o Ser que, em vista
291
“É o que chamo de tentação solipsista de Genet, pois uma consciência que se contentasse em ser
consciência de si e do mundo não poderia cair no solipsismo, já que, justamente, o mundo se
imediatamente como o que não é feito para nós. Para que a consciência adote essa atitude, é preciso
que ela já esteja possuída pelo Outro e tenha conferido a esse Outro a substancialidade, em
detrimento do mundo e de si mesma. O solipsista é um homem que nega a sua existência empírica
em proveito da sua existência numenal e sagrada; para o solipsista e para Genet, Eu é um Outro, e
esse outro é Deus”. SARTRE, 2002a, pp. 148-149.
120
de se fundamentar, rompe-se, produzindo uma distância mínima (nada) e
instransponível de si a si mesmo. O objetivo declarado do para-si é ser em-si-para-
si, ou seja, o Ser, absolutamente idêntico a si e consciente de si, projeto de início
fadado ao fracasso. Genet cumpre à risca esse processo: por ser livre (estar distante
de si) busca exercer o papel que lhe foi destinado aos olhos dos demais (criança
inocente) e, em segredo, rouba. Quando é descoberto roubando, o poeta tem uma
nova realidade, qual seja, a objetivação de sua conduta de ladrão e a exclusão da
reciprocidade da qual ele usufruía até então. Isso faz com que Genet proceda a
primeira inversão: que ele assuma roubar porque é ladrão, enquanto na verdade ele
é considerado ladrão porque rouba. “Essa ‘essência’, ou ‘natureza’ constituída se
torna sujeito constituinte; ele lhe faz dom da sua própria liberdade, da sua lucidez,
ela se torna o Demônio atrás da sua cabeça, ela o vê, e esse olhar onipotente
sobrecarrega a sua consciência com uma objetividade secreta. Essa consciência
paralisada por um olhar estranho perde a sua liberdade, a sua autonomia”.
292
Alienado de seu ser pelo decreto ladrão, Genet se aliena voluntariamente de sua
liberdade, reificando-a no Demônio que comanda suas atitudes.
Mas essa libertação, que objetiva redimi-lo ante seus olhos, acaba sendo a
passagem de uma alienação (de seu ser liberdade) à outra, ou como diz Sartre,
apenas o primeiro processo dialético de sua libertação. “Assim, a progressão
dialética que acabo de indicar se inflete em movimento circular: sujeição ao Outro,
retorno a si, sujeição a si como outro, retorno à sujeição amorosa, etc. (...) Está
fugindo de sua maldição original ou perseguindo seu ser? Ambos, ao mesmo
tempo”.
293
Com sua conversão ao Mal, Genet passa do existir ao ser: ele é mau, é o
outro do ser. O segundo momento dialético de sua conversão se dá com sua
decisão de agir maleficamente, de fazer o mal. Assim, o primeiro momento dessa
nova dialética é a liberdade, condição primordial da ação. O primeiro processo
dialético fez Genet passar de sua existência ao ser; o segundo parte do ser e se
encaminha à existência. Sendo livre, Genet pode querer o mal e agir maldosamente,
trair; entretanto, o mal é o outro do Ser, é nada, e só existe porque Genet o faz
existir.
A sociedade dos homens de Bem sabe se defender daqueles que escolhem
usar sua liberdade contrariamente ao Ser: ela os exclui. Genet roubou e foi excluído.
292
SARTRE, 2002a, p. 151.
293
SARTRE, 2002a, p. 152.
121
Mas a sociedade não está preparada para lidar com a traição, afinal o criminoso se
acerca do Mal e pode, no máximo, causar danos externos ao grupo social. O traidor,
por sua vez, rouba o pensamento do homem de Bem e faz com que os laços que os
unem sejam afrouxados. O roubo se dá contra um indivíduo, a traição se dá contra a
reciprocidade coletiva e pode até mesmo levar à dissolução do grupo constituído,
fato que faz com que Genet encontre na traição seu modo de negar a sociedade que
o negou. Genet “É traidor porque é um Outro para si mesmo e trai a si mesmo, não
importa o que faça; porque se refugiou no plano da consciência reflexiva e nunca
está completamente empenhado com seus companheiros, nunca está
completamente empenhado em suas paixões e seus empreendimentos. (...)
Excluído rigorosamente da sociedade dos bons, é tolerado de má vontade no último
lugar da sociedade dos maus”.
294
A poesia de Genet será, por fim, o canal pelo qual
a traição será infiltrada nos meios sociais, levando o poder corrosivo do Mal à
sociedade do Bem.
O Mal não existe, todavia, senão enquanto uma aparência; ao buscá-lo, o que
Genet encontra é sua liberdade. Existir é estar além do Bem e do Mal, e ao buscar o
Mal em sua plenitude, o poeta não encontra nada, e é reenviado ao Ser.
295
O mal se
mostra uma abstração, um reflexo opaco e fugidio do Bem, que apenas vem ao
mundo por oposição a ele. O Mal, ao qual Genet se devotou, apenas existe porque o
homem de Bem cortou sua liberdade em duas: “O Ser, o Não-Ser, o Não-Ser do Ser
e o Ser do Não-Ser, o Soberano Bem, o Mal: em tudo isso só verá reflexos que os
dois pedaços [da liberdade] enviam um ao outro. Se soldar novamente essas partes,
a liberdade se restabelecerá na sua dignidade primeira”.
296
A sociedade dos homens
de Bem tem uma moral porque ela faz a escolha prévia pelo Ser e, desse modo,
exclui a porção negativa da liberdade; Genet, ao devotar-se ao Mal, acaba por
encontrar o Ser, haja vista que seu projeto está fadado ao fracasso, e o triunfo do
Mal é justamente sua impossibilidade de Ser. O Mal quer o Mal, quer o nada, e a
traição é o nada que se volta contra o Ser instituído da sociedade. Genet tem, enfim,
sua vingança.
O Mal, almejado e reverenciado por Genet, não pode ser vencido: sua derrota
é sua vitória. A traição de Genet é vontade de fracasso e, quando malogra, nem por
294
SARTRE, 2002a, p. 179.
295
Conforme a jornada de Goetz, em O Diabo e o Bom Deus. SARTRE, 1964a.
296
SARTRE, 2002a, p. 185.
122
isso foi derrotada. Mais uma vez, no segundo movimento dialético do processo de
sua conversão, Genet livremente escolhe fazer o Mal para ser santo. É preciso
lembrar que ele inicialmente foi banido do seio da sociedade dos homens de Bem e
considerado objeto ladrão; por isso ele decidiu ser tal objeto. Mas, longe de encarnar
o Mal, o que Genet faz é buscar o Mal para ser santo. Esse paradoxo, amplamente
discutido por Sartre em Para vires a ser tudo, queiras não ser nada, mostra que a
religiosidade arcaica preza, acima de tudo, a má-fé; sob a intenção de humildade
está a soberba, e a pobreza extremada almeja ter tudo.
297
Genet, mesmo imbuído
dessa moral, é excluído da sociedade laica; resta-lhe trair o Mal, ao qual acredita
servir.
Seguindo a estrutura de O Ser e o Nada, vê-se que Genet sofre porque sua
verdade (ser ladrão) está exposta: os outros a vêem. O poeta tentou, assumindo seu
ser ladrão escapar do julgamento e dos olhares; no entanto, “o olhar de Outrem não
desapareceu, com isso; saltou, também ele, para o andar superior e foi a
consciência reflexiva que se tornou seu objeto. (...) Mas essa testemunha invisível
mudou de natureza e não é mais o coro estúpido das pessoas honestas. É o próprio
Genet, mas Genet como Outro”;
298
é ele mesmo quem o condena, e quem busca na
santidade a solução da antinomia. Porém, o processo não se passa segundo a
dialética hegeliana: não há síntese dos contrários, mas permanência da negação
numa espécie de absoluta positividade. Os contrários são, para Genet, idênticos, ou
seja, ser Mal com o mal é ser Santo, e isso não se dá no pensamento, mas na vida
do poeta. É certo que essa inversão lógica carrega consigo, de modo dissimulado, o
desejo de manter o Bem e de restabelecer a ordem no mundo. É notório que as
dialéticas do ser e do fazer explicam, sobretudo, as contradições do poeta; e, com
maior cuidado, podem também explicar a antinomia vivida pela sociedade, afinal, a
salvação apenas se dá quando tudo o mais (os bens, o prazer, a vida) foi perdido; a
cerimônia termina nessa noite luminosa em que o Ser e o Nada coincidem.
Assim sendo, mesmo que o objetivo de Sartre em Saint Genet seja explicar o
processo que fez de Genet (ou que fez Genet) passar de criança inocente a ladrão e
homossexual, e desse ao poeta, pode-se ver que há aqui a junção da ontologia e da
297
“(...) incitando os companheiros a roubar e depois denunciando-os à polícia, que os surpreende e
os põe em fuga, ele impede o roubo de produzir-se, o resultado final é zero; mas dentro de si mesmo,
esse zero corresponde ao infinito do Mal; eis que ele se torna louco. Entretanto essa loucura é razão,
pois é o resultado lógico da procura lúcida, rigorosa, estrita, austera do maior Mal”. SARTRE, 2002a,
pp. 192 ss (especialmente p. 228).
298
SARTRE, 2002a, p. 234.
123
análise marxista, e isso a partir de um caso real. Ou seja, um forte argumento para
defender a tese de desdobramento entre as duas grandes obras de Sartre; porém, e
é preciso admitir que, ainda que Sartre trate de um caso concreto, oriundo da
sociedade constituída, ele ainda incorre no problema de abordar o caso de Genet a
partir de uma escolha fundamental e livre. Essa foi uma das razões apresentadas de
retrocesso quando, por exemplo, o filósofo escreveu o prefácio para a obra de
Baudelaire, e é o que se encontra em todo o livro I de Saint Genet; a mesma leitura,
que se funda na decisão primordial de Genet e, por extensão, à sua história,
continua no livro II. Ainda que seja possível encontrar a estruturação dialética para
as decisões de Genet, e de Sartre mostrar a maneira pela qual o poeta inverte a
compreensão de sua realidade com objetivo de salvaguardar-se do olhar do outro,
todas essas reviravoltas têm uma única fonte: a interiorização do decreto ladrão.
Malgrado esse revés, Sartre mostra em Saint Genet que é um erro afirmar a
impossibilidade de constituir a sociedade a partir do ser-para-outro; a sociedade tem
como fundamento a reciprocidade negativa, ou seja, é porque o homem livremente
busca objetivar seus semelhantes que os papéis exercidos em sociedade fazem
sentido. E é por meio dessa relação que é criada a idéia do Outro, que não se reduz
a um indivíduo, mas está presente em todos os homens e em nenhum em especial.
A passagem da objetivação singular, comum entre os para-sis, para esse grande
Outro é, sem dúvida, o prenúncio da sociedade constituída. Se até Saint Genet
Sartre chama esse Outro de Deus, de Moral, de Bem ou de Cultura, não importa; o
fato é que o filósofo mostra, partindo das estruturas de sua ontologia, que é possível
explicar a sociedade, a maneira pela qual ela se constitui, e o que a faz perdurar.
Enfim, é o indivíduo (livre) que gera esse Outro; a Crítica está cada vez mais
próxima.
124
3 O indivíduo e a sociedade
Não somos homens completos. Somos seres que
nos debatemos para chegar a relações humanas e
a uma definição de homem. (...) procuramos viver
juntos, como homens, e procuramos ser homens.
(...) Em outras palavras, nosso fim é chegar a um
verdadeiro corpo constituído, em que cada pessoa
seria um homem e em que as coletividades seriam
igualmente humanas.
Sartre (O Testamento de Sartre)
Após Saint Genet, que mostra o fim da oscilação teórica de Sartre e a escolha
por manter a liberdade ao mesmo tempo em que se encaminha rumo ao marxismo,
que culminará na Crítica, será retomado o transcurso normal das publicações do
filósofo.
299
Assim como antes, serão tematizados (ou indicados) apenas os
momentos de maior relevância para sustentar nossa tese; da mesma forma, a
bibliografia exaustiva apresentada por Contat e Rybalka continuará sendo transcrita
em nota. É preciso lembrar que, para evitar repetição, os conceitos já explorados
como a ampliação da noção de situação, o engajamento e a reciprocidade, não
serão comentados quando reaparecerem. Isso porque, faltando oito anos para que
Sartre torne pública sua Crítica, boa parte das prerrogativas que sustentarão tal
estudo está pronta. Falta ainda um elemento fundamental que apenas será
desenvolvido completamente às vésperas de 1960, mais precisamente em 1957,
com a publicação de O Fantasma de Stalin, ainda que Sartre já o tenha indicado em
As Mãos sujas e, mesmo, o desenvolvido de modo rudimentar em Saint Genet.
As primeiras publicações de Sartre em 1952, posteriores a Saint Genet,
seguem a ordem do dia: ele mantém suas intervenções políticas, como nas
entrevistas em que nega haver anti-semitismo na França, levanta sua voz em defesa
de Henri Martin e pede uma avaliação para saber se, de fato, a França é uma
democracia. Por essa razão, desse período será dada maior atenção a Os
Comunistas e a Paz, artigo produzido em três partes, sendo as duas primeiras
publicadas na segunda metade de 1952; nesse artigo se encontra um forte
argumento a favor da tese de que Sartre tem por objetivo alargar sua filosofia,
299
1952: Saint Genet, comédian et martyr, Préface aux Guides Nagel, entrevista Il n’y a plus de
doctrine antisémite, entrevista a G.-A Astre, a respeito de H. Martin : Il faut rétablir la justice, Sommes-
nous en démocratie?, Les comunistes et la Paix (I e II), Besuch bei Jean-Paul Sartre, Un parterre de
capucines, Réponse à Albert Camus, M. Pinay prépare le chemin d’une dictature, Textes se
rapportant au Congrès de Vienne, entrevista a Paule Boussinot fense de la Paix, declarações.
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 243-254 .
125
aproximando-a do marxismo, sem que para isso seja preciso abrir mão daquilo que
ele havia desenvolvido em O Ser e o Nada.
300
Ora, é justamente isso que se
encontra na segunda parte do artigo, onde Sartre apresenta sua distinção entre
massa, definida por ele como um aglomerado de indivíduos isolados, e classe
trabalhadora, unida por sua práxis revolucionária. Nesse artigo Sartre explora a
necessidade de mediação do Partido Comunista na ação revolucionária da classe
trabalhadora, como agente de agregação e direcionamento.
Os Comunistas e a Paz é um texto intermediário e expressa o movimento que
leva Sartre à sua segunda grande obra técnica sem, para isto, ser obrigado a
retratar-se pela anterior; melhor, um texto que, sem sombra de dúvida, se
encaminha ao marxismo, mas de modo algum pela via da conversão: antes disso,
do ponto de vista da filosofia de Sartre, trata-se de um desdobrameno da ontologia
fenomenológica. Isso, porém, vale para a obra de Sartre; num contexto mais amplo
o ensaio em questão significou uma enorme polêmica com anticomunistas e com
intelectuais de esquerda. Por exemplo, ele marcará a ruptura definitiva entre Sartre e
Merleau-Ponty; é verdade que politicamente os dois estavam distantes desde 1950,
mas a publicação da III parte desse ensaio em fevereiro de 1954 gerou a
contrapartida merleaupontyana, em 1955: Sartre e o ultra-bolchevismo.
301
Em linhas
gerais, Merleau-Ponty retoma o que considera o vício fundamental da filosofia de
Sartre: o dualismo entre sujeito e objeto, profundamente anti-dialético por não
permitir síntese, além de confusões de toda ordem, resumidas sob o título de ‘folia
do cogito’; daí a acusação de filosofia voluntarista.
Os comunistas e a paz comporta elementos que o tornam um texto polêmico
que, embora de circunstância, trabalha conceitos fundamentais para a formulação
da Crítica. O ano era 1952 e Sartre, desde 1949, estava certo da necessidade de
aproximar sua filosofia do marxismo; politicamente ele já havia promovido essa
aproximação ao concordar com o Partido Comunista Francês com respeito à
urgência de uma mobilização a favor de Henry Martin, mas era também urgente que
a aproximação fosse teórica. E é o que ocorre em 52: da Itália Sartre fica sabendo
que Jacques Duclos havia sido preso por causa da manifestação de 28 de maio,
contrária à visita do general Ridgway a Paris. E, ao voltar imediatamente à França,
ele toma conhecimento da expressão vitoriosa tanto da direita (anticomunistas)
300
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), pp. 80-384.
301
MERLEAU-PONTY, 1955.
126
quanto da esquerda não comunista. Ambas as correntes colocam em xeque a
posição do PC enquanto agente de mobilização dos operários, haja vista o duplo
fracasso de 28 de maio e de 4 de junho. Esses fatos asseguraram aos oponentes do
PC a certeza de que o partido não seria o legítimo representante do proletariado,
afinal, esse não respondia à sua convocação.
Sartre, afeito a polêmicas, escreve um primeiro artigo com objetivo de
defender o PC dessas acusações; e, vale dizer, não se trata apenas de enfrentar a
direita francesa, mas, principalmente, a esquerda não comunista. Como era de se
esperar, Sartre não só procura saber em que medida o PC é a expressão necessária
do proletariado, como, também, se ele não seria sua exata expressão: “em que
medida o PC é a expressão necessária da classe trabalhadora e em que medida ele
é sua expressão exata”.
302
Está, assim, esboçado o primeiro momento desse artigo
e muito clara a razão da acusação de ultra-bolchevismo feita por Merleau-Ponty;
mas há de se ressaltar que a proximidade com o PC durará apenas quatro anos (até
1956, ano da intervenção soviética na Hungria), o que deixa claro, mais uma vez, o
caráter ocasional desse texto e a provisoriedade de suas conclusões. Devido à
posição datada deste ensaio, será dada maior relevância ao germe de conceitos que
serão reaproveitados na Crítica, em especial as noções de prático-inerte e de
serialidade como solução da contradição entre o patronato malthusiano e a ausência
de resposta do proletariado ao PC.
O objetivo principal de Sartre é defender o PC; a primeira parte de Os
comunistas e a paz cumpre esse papel ao defendê-lo da acusação de que, se os
trabalhadores não atendem a seu chamado, é porque o partido não é o canal de
expressão do proletariado. Sartre é diametralmente oposto a essa idéia, e a própria
formulação da questão a ser respondida por seu ensaio o mostra suficientemente;
mas quais seriam então as razões para o silêncio dos trabalhadores ao apelo do
PC?
303
Trata-se de quatro linhas de argumentação, exploradas por anticomunistas e
não comunistas, que são discutidas por Sartre: a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas é imprescindível para a revolução nos demais países, inclusive na
França? Moscou quer a guerra? As manifestações políticas dos trabalhadores são
impostas pelo PC? É o PC o promotor da ilegalidade e da violência por parte dos
trabalhadores? Em resumo, as respostas tendem a indicar para a vontade de paz do
302
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), p. 88.
303
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), pp. 94 ss.
127
comunismo, e sustentam a resposta geral de que o PC é, de fato, expressão do
proletariado.
Seja como for, não interessa a discussão sobre se os comunistas, no caso a
URSS, querem a paz e, se a resposta for positiva, que paz seria essa, já que muito
em breve a história (1956), aquela mesma na qual Sartre apóia sua argumentação,
lhe contrariará. E mesmo a defesa sartriana do PC precisaria ser revista, pois alguns
de seus teóricos, por convicção ou por medo, concordarão publicamente com a
intervenção soviética na Hungria. Esse caráter circunstancial, único possível se
levarmos em conta a noção sartriana da história como totalização em curso, se não
desqualifica no todo a primeira parte de seu ensaio, ao menos a torna muito pouco
interessante para nosso objetivo. Por essa razão, passaremos imediatamente à
segunda parte, de maior interesse por apresentar o germe da distinção entre classe
e massa, passo importante para sustentar a tese de que Sartre está, já nos anos 50,
produzindo elementos que lhe permitirão a síntese não traumática entre sua
ontologia e o marxismo.
Ora, é justamente isso que se encontra em La greve du 4 juin, onde Sartre
afirma: “Como toda relação real, a ligação do partido às massas é ambígua: de um
lado ele reina sobre elas, de outro ele as ‘organiza’ e tenta ‘educá-las’; e como não
se trata de mudá-las, mas de ajudá-las a se tornar o que elas são, o partido é ao
mesmo tempo sua simples expressão e seu exemplo”, ou seja, “A classe, unidade
real de multidões e massas históricas, se manifesta por uma operação datada e que
reenvia a uma intenção; ela não é jamais separável da vontade concreta que a
anima nem dos fins que ela persegue”.
304
Segundo o filósofo, a massa precisa de ajuda para tornar-se o que ela é; mais
um trocadilho? Não. A massa é composta por indivíduos isolados e, por isso,
impotentes; mas impotência não é de modo algum limite para a liberdade. “Então,
quem recusou fazer a greve? – Bem, os indivíduos, em número muito grande”.
305
O
que há na teoria sartriana que mais se aproxima da liberdade absoluta e da
impotência prática? O ser-para-si, que é livre, mas, sozinho; e, mesmo em
sociedade, não pode dispor de sua liberdade para provocar nenhuma mudança
macroestrutural. Se em O Ser e o Nada os homens estão isolados, cada um
cuidando de seu mundo particular sem, contudo, escapar à pressão social exercida
304
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), pp. 155 e 207, respectivamente.
305
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), p. 180.
128
sobre eles, “As massas são ao mesmo tempo ação e paixão: elas acabarão por
mudar o mundo, mas no momento, o mundo as oprime; sua potência pode talvez ser
irresistível, mas o frio, a fome, a repressão policial podem ter momentaneamente
razão: o partido, ele mesmo, é ação pura; ele deve avançar ou desaparecer (...)”.
306
Percebe-se claramente que a situação é a história, e que nessa situação o homem é
livre, embora impotente.
Seriam essas afirmações suficientes para acusar Sartre de partidário do
autoritarismo, porque, segundo ele é o partido o direcionador das ações
reivindicativas das massas? Não é o que parece, afinal, “O PC goza de uma
autoridade parecida com aquela de um governo; mas como ele não tem instituições,
sua soberania lhe vem das massas mesmo”.
307
A tese de que a sociedade
constituída é fator de alienação de todos os homens não é novidade para o filósofo:
ela pode, por exemplo, ser encontrada em Saint Genet.
308
Nesse livro Sartre mostra
com detalhes que há uma determinada mediação que mantém agregada a
sociedade, mediação essa que promana do indivíduo e, por sua vez, vai além dele.
Trata-se da reciprocidade (já presente em O Ser e o Nada) que acaba gerando a
figura do grande Outro.
309
Em Saint Genet Sartre mostra que a estrutura social,
embora irresistível e insuperável no plano unicamente individual, não tem outra
origem que o homem mesmo.
Qual o ganho de distinguir, então, entre a enorme gama de trabalhadores,
massa e classe? A novidade está em Sartre refinar esse Outro, gerado pela relação
de reciprocidade negativa (antes era genérico, tal como Deus, a Moral ou a
Sociedade), e afirmar que a ação revolucionária teria como origem a mesma
reciprocidade que cria os aparelhos de dominação e exclusão. Noutras palavras, é a
práxis revolucionária que cria e legitima o Partido Comunista. Mas tudo não se
passa de modo tão simples. Em meio à análise empreendida por Sartre para mostrar
as razões do atraso francês em relação aos demais países europeus que, em parte
se explicam pela aplicação do malthusianismo à economia e à política, pode-se
306
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), p. 156.
307
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), p. 164.
308
Parte I, 2 Genet – eu é um outro.
309
Similar ao outro de O Ser e o Nada, porém, não mais oriundo do olhar de um indivíduo, mas no
sentido de que cada olhar representa uma multidão. SARTRE, 1943, pp. 431 ss.
129
entrever outros elementos que explicariam as dificuldades do PC, tais como a
sobredeterminação histórica e as exigências práticas da existência.
310
Assim, não seria suficiente apenas o trabalho de agregação do partido, mas é
fundamental a ação de dois outros elementos: a história (situação expandida) e o
engajamento da liberdade. O fracasso das mobilizações não advém de uma perda
de importância do PC, conforme pensam seus opositores, mas de um conjunto de
elementos que envolvem, no limite mais amplo, a condição histórica e, no limite
menos amplo, o livre engajamento do indivíduo. É preciso destacar, prorrogando
essa anotação para a Crítica, uma aparente contradição, na medida em que o
indivíduo espera a condição histórica sendo que ela é feita por ele. Para o momento,
basta atenuar a acusação de autoritarismo sartriano, graças à noção de
engajamento que legitimaria o PC e à defesa irrestrita de que tal engajamento se dá
de modo livre, ainda que seu refluxo se deva às condições históricas, o que remete
à contradição supracitada.
O que se tem em Os Comunistas e a Paz é a demonstração de que os
trabalhadores franceses foram desencorajados devido a fatos ocorridos no séc. XIX,
tais como os massacres de 1848 e 1871; seguindo o estilo marxista de análise da
história, Sartre mostra que a burguesia francesa, ante a ameaça permanente de
uma revolução operária, recorreu ao malthusianismo econômico para assegurar seu
status quo. O resultado é que o operário “é condicionado em sua luta pelo mal
contra o qual ele deve lutar”.
311
Noutros termos, a economia industrial francesa
estabelece normas objetivas que formam barreiras subjetivas, ou seja, a economia
condiciona a práxis, impedindo que a revolução aconteça na França. Assim sendo,
seria forçoso acreditar na possibilidade de uma revolução espontânea, haja vista
que os trabalhadores franceses estão previamente condicionados à produção.
Segundo o filósofo o operariado francês se divide em dois grupos distintos, os
qualificados e os especializados, sendo os segundos aqueles que não possuem
nenhuma qualificação profissional. Desse modo, os operários qualificados são
aqueles que expressam seus interesses pelo sindicalismo revolucionário; os
310
“O conjunto histórico decide a cada momento nosso poder, ele prescreve seus limites em nosso
campo de ação e nosso porvir real; ele condiciona nossa atitude ante o possível e o impossível, o real
e o imaginário, o ser e o dever ser do tempo e do espaço”, e, ainda, “Passar da massa à classe
trabalhadora muda pouco: se a pressão das circunstâncias, a derrota ou a impotência o reenviam à
consideração de seus interesses, ele cai fora da classe (...)”. SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), pp. 184 e
210, respectivamente.
311
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 274.
130
operários especializados estão de tal maneira oprimidos pela burguesia que nem
mesmo têm condições de se organizar para a luta, devendo, por isso, ser
representados pelo PC. Mais especificamente, esses últimos compõem o que Sartre
chama de massa (e não classe operária), ou seja, indivíduos livres em sua
constituição (ontológica) e oprimidos pela situação contra a qual, por estarem
isolados uns dos outros e separados de sua liberdade, são impotentes. Está assim
explicada a necessidade, aventada por Sartre, da intermediação e representação do
PC. Mas qual o resultado dessa interpretação do fracasso do PC para a
continuidade de sua obra? Ainda que tenha sido possível indicar a proximidade entre
o indivíduo livre e, no mesmo ato, esmagado por sua situação histórica com a
situação do para-si, qual a vantagem de tal identificação?
É o momento de ser preciso. E a resposta será dada em três níveis: primeiro
Sartre mantém a noção de liberdade de O Ser e o Nada mesmo na situação mais
difícil pela qual o homem possa estar passando (exploração); segundo, embora de
modo não declarado, essa liberdade é vivida na forma da existência serial e, por
essa razão, a liberdade tem raros momentos para sua efetivação; terceiro, as
poucas possibilidades de efetivação da liberdade em vista de um projeto comum é o
germe do grupo em fusão, que será desenvolvido na Crítica. Ainda, perpassando a
manutenção da liberdade da ontologia fenomenológica e a utilização de noções
rudimentares dos conceitos de existência serial e de grupo em fusão, é preciso
chamar a atenção para ao menos um conceito de extrema importância que Sartre
também faz uso: o engajamento enquanto fator de legitimidade. Isso mostra a lenta,
gradual e nada traumática passagem de O Ser e o Nada à Crítica da Razão
Dialética; trata-se, pois, da primeira tentativa de entender a necessidade a partir da
práxis existencial e, de modo algum, de conversão cega ao marxismo.
O trabalhador, independentemente de sua situação de exploração ou das
condições de vida é, antes de tudo, livre. É sua liberdade que o impulsiona a
promover projetos de melhoria e, no limite, é também ela a possibilidade para a
ação. Vale lembrar o argumento mais conhecido do existencialismo utilizado contra
alguns setores do marxismo: como se pode falar em libertar o indivíduo da
exploração (e da alienação) sem admitir que ele seja, originariamente, livre? “O
trabalhador (...) se encontra já engajado em uma sociedade que tem seu código e
131
sua jurisprudência, seu governo, sua noção do justo e do injusto”;
312
o trabalhador é
livre em situação. Desse modo, seria o trabalhador apenas resultado de sua
situação, o que levaria fatalmente ao determinismo e à negação da ontologia? Não.
“É preciso compreender que o trabalhador é passivo? Muito pelo contrário. Ele se
transforma em ação quando ele entra na classe e não pode afirmar sua liberdade
senão na ação. Mas essa liberdade é um poder concreto e positivo: o poder de
inventar, de ir mais longe, de tomar iniciativas e de propor soluções”.
313
Diante disso,
Sartre mantém sua teoria da liberdade ontológica, e ela será mantida ao longo de
toda sua obra, incluindo aquela parte que alguns comentadores tendem a entender
como o segundo Sartre, ou o Sartre marxista; um dos mais fortes laços que ligam
sua ontologia e sua Crítica é, sem dúvida, a liberdade.
O homem é livre, e essa definição é mantida na fase de maior proximidade de
Sartre com o marxismo. Mas de que modo entender que Sartre distinga duas
facções de trabalhadores e afirme que a classe é composta por indivíduos que se
engajam em vista de um projeto comum, enquanto as massas, também livres, não
se engajam e precisam de um representante, no caso o PC? De que modo se pode
ser livre e, além de coagido pela situação, estar alienado de seu ser (pertença à
classe), necessitando de um partido representativo e educador, que faça a massa se
tornar o que ela é (uma classe)? Para entender essa contradição é preciso ver, em
Os comunistas e a paz, o germe da existência serial, que terá seu desdobramento
na Crítica:
Reduzido a seu corpo usado, à consciência morna cotidiana de sua
impotência, a morte lhe parece ainda mais absurda que sua vida sem
sentido. (...) Se quer sair de si mesmo e olhar fora, (...), tudo está
preparado para lhe refletir sua impotência.
314
Na Crítica tem-se a serialidade que faz do homem, livre, um número que pode ser
substituído. Ele é reduzido a uma peça do sistema e, em prejuízo de sua liberdade,
lhe parece que nada pode ser feito; claro está que se trata de um trabalho
ideológico, afinal, numa sociedade complexa é ainda maior a contradição entre
liberdade e situação. Esse conceito explica de que modo o homem pode ser
absolutamente livre e impotente ante as mazelas de sua situação. Sendo assim,
312
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), p. 146.
313
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), p. 250.
314
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), p. 187.
132
como superar essa dicotomia? Como fazer para que o homem recupere a potência
de sua liberdade?
O engajamento livre em vista da liberdade parece ser a resposta. Ainda que
nesse texto, por razões já exploradas, Sartre insista que o engajamento se dá pela
via partidária (PC), ou seja, que o partido faz a intermediação entre os
trabalhadores, numa retomada clara da figura do Outro aglutinador, percebe-se que
falta muito pouco para chegar à noção final de engajamento, como livre adesão na
causa da liberdade (sem coação externa para aderir e sem valores transcendentes a
serem observados). Por hora, note-se o engajamento via partido e seu resultado:
“Treinado, formado, elevado além de si mesmo pelo Partido, sua liberdade é o poder
de ultrapassar os atos, ao interior mesmo da organização em vista de um alvo
comum”. Assim, o PC aparece como a instituição que tem por objetivo promover a
revolução a partir da liberdade individual: “Nos grandes momentos da história do
trabalhador, a Revolução não é nem um evento futuro nem um objeto de fé, mas é o
movimento do proletariado, a prática quotidiana de todos e de cada um”.
315
Trata-se
de superar a existência serial (situação de impotência) e engajar a liberdade (não
num partido, mas num possível objetivado por um grupo, que é liberdade) em vista
de um projeto que é de todos e de cada um. Chega-se ao cerne da possibilidade de
superação da existência serial e, assim, ao grupo em fusão, que é a práxis
existencial por excelência.
Em resumo, e levando-se em conta os limites impostos em Os comunistas e a
paz pela intenção declarada de defender o PC, note-se a possibilidade do grupo em
fusão como superação da impotência: o homem é livre, mas em sociedade nada
pode; sua impotência, no entanto, não tolhe seus possíveis pessoais nem os
possíveis de sua classe, embora esses sejam determinados pela condição histórica
(macroestrutura); mas além dos possíveis pessoais e de classe, o homem é também
livre para se engajar; ora, o livre engajamento da liberdade de cada um permite, com
o engajamento de muitos, a formação de um grupo:
Entretanto, que pode ele [o proletário]? Nada: nem mesmo conceber essa
comunidade combatente na qual ele tomaria seu lugar. (...) Não se trata
para ele de passar do menos ao mais, isto é, por uma revolução interna
que se tornasse revolucionária; ele não se tornará um outro homem senão
por uma (...) conversão. E é essa brusca aparição de um outro universo e
de um outro Eu, sujeito da história.
316
315
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), pp. 251 e 192-193, respectivamente.
316
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), pp. 246-247.
133
De fato, Sartre ainda fala desse outro Eu entendendo-o como o engajamento
no partido; mas, conforme já foi sugerido, caso se retire a idéia do PC o que sobra?
O grupo em fusão, a possibilidade constante da revolução, a liberdade permanente
de ação do operário e do operariado. E isso é tão mais verdade quando se leva em
conta que “a história não está acabada”, ou melhor, que a história não acaba senão
com o fim do próprio homem.
317
Independentemente da disputa que se possa
instaurar entre o marxismo e o anarquismo, Sartre apresenta uma idéia segundo a
qual a prática revolucionária é práxis existencial que nasce da liberdade que é o
homem; a partir dessa liberdade, da constante possibilidade de engajamento, o
caminho está sempre aberto para a revolução.
Pode-se ver que a obra de Sartre é um contínuo, e que todos os percalços
são compreensíveis devido às encruzilhadas encontradas em seu caminho. Mais do
que isso, na terceira parte de Os comunistas e a paz, publicada em 1954 (apenas
dois anos antes do distanciamento de entre Sartre e o Partido Comunista Francês),
a idéia de mediação necessária do PC na práxis revolucionária é abandonada; e
mesmo que em O Reformismo e os fetiches, Sartre ainda defenda vivamente o
partido, já que “O PC manifesta uma extraordinária inteligência objetiva: é raro que
ele se engane”
318
, é preciso mediar essa afirmação. O alvo desse texto é um artigo
de Pierre Hervé, La Révolution et les fetiches. Sartre, em tom brando, critica o
intelectual comunista por não entender que o PC se confunda com a práxis
revolucionária. O filósofo afirma que o desenvolvimento da análise social e histórica
na França não advém dos trabalhos de teóricos comunistas, mas sim de outras
áreas (por exemplo, Lévi-Strauss) que têm o marxismo exclusivamente como
instrumento, ou seja, o marxismo continua insuperável, o que mostra a fecundidade
de seu método; porém, no PC, o marxismo não produz mais frutos. Conclusão: o
marxismo na França está parado.
Essa reaproximação com o PC, além da desastrada defesa de que o partido é
a expressão da classe trabalhadora, gerou muito desconforto no meio intelectual
contemporâneo a Sartre, sejam esses intelectuais marxistas ou mesmo não
marxistas de esquerda. Ao propor que o partido é a expressão exata dos anseios da
classe trabalhadora Sartre complicou ainda mais as relações com Merleau-Ponty,
conforme foi visto; mas seja por não ter uma resposta, seja por, conforme Aron, não
317
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), p. 223.
318
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 296.
134
suportar um confronto, Sartre não responde às acusações (esse trabalho coube à
Simone de Beauvoir, em Merleau-Ponty e o pseudo-sartrismo) de que ele é um
defensor da ditadura.
319
Para Sartre o PC é um fator de expressão do proletariado
apenas na medida em que cada uma das liberdades, individualmente, a ele se
engaja e formam, desse modo, o partido proletário. Não se trata de afirmar que os
teóricos comunistas tomarão decisões pelos trabalhadores, pois essa postura, em
termos sartrianos, caberia a um partido de massas.
Por essa razão, fica difícil entender o inédito ultra-bolchevismo sartriano como
uma idéia que caiba no desenrolar de sua teoria. O filósofo mesmo deixa isso claro
ao reafirmar o teor ocasional de sua defesa do Partido Comunista; também, na
homenagem a Merleau-Ponty, ele reafirma que não se trata de uma ditadura do
Partido, mas do engajamento dos trabalhadores em uma causa que seria de todos e
teria no PC sua expressão. O fato é que, embora as afirmações de Sartre em Os
Comunistas e a paz levem à uma postura autoritária no que tange à organização da
luta por emancipação do trabalhador, seus demais escritos contradizem essa tese.
O autor explorará a questão da legitimidade do partido a partir do engajamento das
liberdades individuais; e se outrora foi dito que O Existencialismo é um humanismo é
um texto que a continuidade da obra de Sartre renega, é preciso também dizer que a
idéia de direção centralizadora por parte do partido não apenas é renegada, mas
contraria aquilo que a antecede e aquilo que a sucede. É certo que na segunda e
terceira partes de Os Comunistas se encontra o nascimento de conceitos
importantes para a Crítica, mas sua primeira parte não é mais que um desastrado
texto de ocasião.
Voltando à seqüência bibliográfica, tem-se como mais importante, em 1952, a
Resposta a Albert Camus e as declarações de Sartre no Congresso de Viena;
320
o
primeiro texto não tem interesse imediato para nossa tese, a menos que sejam
garimpadas frases de Sartre que reafirmem a necessidade de engajamento e a
insuperável importância do marxismo. Ainda assim, trata-se de divergências políticas
entre dois grandes intelectuais que expressa, na opinião sincera de cada um, a
319
Não há nenhum texto de Sartre que responda à acusação que lhe foi feita pelo até então amigo
Merleau-Ponty. A afirmação de Raymond Aron é fornecida em Sartre, 1905-1980 (COHEN-SOLAL,
1986, p. 572). O que se tem efetivamente de Sartre é o texto Merleau-Ponty [SARTRE, 1947-1976
(Sit. IV), pp. 189 ss], publicado primeiramente na Revista Les Temps Modernes em 1961, uma
homenagem emocionada por ocasião da morte prematura do amigo. Nesse texto, Sartre apresenta
sua versão da ruptura entre ambos e, de certo modo, se explica pelo fato [SARTRE, 1947-1976 (Sit.
IV), p. 249].
320
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), pp. 90 ss.
135
origem de suas diferenças; conforme Contat e Rybalka, seria “uma controvérsia que,
sem dúvida, constitui um dos grandes momentos da vida intelectual francesa do pós-
guerra”.
321
Mais do que isso, a resposta a Camus comporta elementos para
compreender a evolução da concepção moral de Sartre nos anos cinqüenta,
problema que também escapa de nosso objetivo atual. As declarações em Viena,
por sua vez, mostram que Sartre continua engajado politicamente (o mesmo pode
ser dito de M. Pinay prepare le chemin d’une dictature); mostram também que Sartre
está convencido de que a sociedade instituída separa o homem de seu ser: “É raro
na França, meu país, de se encontrar homens: encontram-se, sobretudo, etiquetas e
nomes”.
322
Para Sartre, o poder ideológico que, no pós-guerra, dividiu o globo entre
capitalistas e comunistas, tornou-se o maior agente de alienação entre os homens. É
certo que cada sociedade manteve sua estrutura (Estado, Religião, etc.), mas a
Guerra Fria criou um novo rótulo de exclusão humana, fazendo com que cada bloco
considerasse previamente os indivíduos do bloco opositor seu inimigo. Estaria aí a
maior virtude de Viena, afinal, se a soberania vem do povo, o congresso tinha
homens como seus componentes, escapando assim da intervenção (e manipulação)
tanto dos governantes quanto da ideologia da Guerra Fria. Essa idéia, além de
reafirmar a liberdade individual, tão cara a Sartre, indica que é possível haver um
Estado constituído (ou qualquer outra macroestrutura) sem que, necessariamente,
seus componentes concordem com ele. Assim como Genet foi lançado num mundo
que acredita no ter para ser, cada homem pode estar em uma dada situação sem
necessariamente concordar com aquilo que ela apregoa: a dicotomia entre o
indivíduo e o grupo social (Saint Genet) volta à cena.
O início de 1953 é marcado pela publicação, na íntegra, da opinião de Sartre
sobre o Congresso de Viena sob título O que eu vi em Viena, a Paz, além de
entrevistas concedidas sobre esse tema.
323
Nesses escritos Sartre coloca em
evidência as relações, nada pacíficas, entre o indivíduo e a sociedade; tal como
fizera detalhadamente em Saint Genet (as relações do poeta com a moral
321
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 251.
322
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 253.
323
1953: Ce que j’ai vu à Vienne, c’est la Paix, Le Congrès de Vienne, entrevista para R. Bergeron,
L’Affaire Henri Martin, Mallarmé 1842-1898, Venise, de ma fenêtre, Message (a favor de André
Kedros), Réponse à M. Mauriac, Réponse à Claude Lefort, La machine infernale, Les Animaux
malades de la rage, entrevista a Serge Montigny: Le devoir d’un intellectuel est de dénoncer l’injustice
partout. CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 255-266.
136
maniqueísta da burguesia), Sartre mostra que a vontade de guerra não é um
consenso, e que homens, sejam do leste ou do oeste, buscam a paz. Um elemento
novo trabalhado nesse texto é o poder da ideologia, nesse caso, daquela exercida
pelos meios de comunicação. Eles podem manipular e alterar o desejo individual de
paz, ou seja, mais uma vez, o indivíduo, mesmo formando um grupo coeso
(Congresso), sente-se impotente frente ao poder das instituições. Derrotismo? De
modo algum. Essa é a estrutura fundamental da alienação social da liberdade; mas
é justamente ela que se rompe quando o homem se engaja, livremente, na causa da
liberdade. Vale lembrar que Sartre, em momento algum, abriu mão da liberdade
humana e, por isso, revolução é sempre uma possibilidade.
Ainda nesse ano tem-se a publicação de um comentário, L’affaire Henri
Martin, e de um artigo sobre Mallarmé, ambos sem interesse para nossa tese, uma
vez que as idéias de engajamento do escritor já foram suficientemente exploradas.
O mesmo pode ser dito da mensagem em favor de André Kedros e das respostas a
Mauriac e Lefort: Sartre discute temas atuais e, ao mesmo tempo, não se desfaz de
suas posições teóricas, afirmação que se aplica às demais publicações desse ano.
O único ponto que merece atenção é a polêmica com Lefort, na qual Sartre mantém
sua posição de que o PC deve ser o fator de intermediação da luta proletária, idéia
lançada em Os Comunistas e a Paz. A discussão entre Sartre e Lefort reedita o
problema comum entre os marxistas e os anarquistas de saber se a revolução deve
surgir da espontaneidade dos trabalhadores ou se ela deve ser organizada por um
partido centralizador; nesse texto, Sartre, mantendo seu acesso bolchevique,
defende a segunda, idéia discutível e que não será mantida na Crítica da Razão
Dialética. Para explorar um pouco mais esse assunto e suas conseqüências para a
filosofia de Sartre, passemos ao ano seguinte no qual o filósofo publicará a terceira
parte do polêmico texto Os Comunistas e a Paz.
Antes, ainda, é preciso lembrar que o ano de 1954 é marcado pela volta de
Sartre ao teatro e em grande estilo: basta ver o sucesso de público e crítica que
surtiu sua adaptação de Kean ou Désordre et génie, de Alexandre Dumas.
324
Além
324
1954: adaptação de Kean, A propos de Kean, Interviews sur Kean, Préface à D’une Chine à
l’autre, entrevista para M. Saporta, Les enfants Rosenberg, Opération Kanapa, Les Communistes et
la Paix (III), A nos lecteurs, Les boucs émissaires, Les peintures de Giacometti, Julius Fucik, La
bombe H, une arme contre l’Histoire, Les impressions de Jean-Paul Sartre sur son voyage en
U.R.S.S., Réponse de Sartre à une lettre de Hélène et Pierre Lazareff, entrevista La coscienza dei
francesi, Une interview de Jean-Paul Sartre (A. P. Lentin), L’amitié, seule politique possible. CONTAT
& RYBALKA, 1970, pp. 267-281.
137
desta, o filósofo escreveu sobre as pinturas de Giacometti e sobre o livro de Julius
Fucik, e relatou suas impressões sobre a China e sobre sua viagem à URSS;
publicou outros textos menores e concedeu algumas entrevistas, sempre visando
discutir temas polêmicos. Mas o mais importante e de maior repercussão foi, sem
dúvida, a publicação da III parte de Os Comunistas e a Paz; como já foi visto, esse
texto havia causado forte discussão, principalmente por afirmar categoricamente o
PC como expressão da classe trabalhadora e mediador de sua práxis revolucionária.
Isso significa que Sartre defende a centralização da autoridade do partido, não
aceitando que a revolução possa advir da espontaneidade da classe operária; e é
nesse texto que Sartre busca esclarecer as razões para essa opinião.
325
Nas duas primeiras metades de Os Comunistas e a Paz Sartre afirma que os
trabalhadores franceses foram desencorajados devido à violência; diante desse fato
pergunta-se: de que modo o malthusianismo burguês passou a ser uma práxis, se
não há na história um acordo de todos os burgueses para fazer uso desse
mecanismo, ou, se a burguesia não compõe (nem teve seu momento de) um grupo
em ato, como ela pôde utilizar em comum acordo o malthusianismo? Não há como
responder, ao menos não agora. Essa questão carece de um conceito que Sartre
apenas desenvolverá efetivamente em 1960, na Crítica (prático-inerte), pelo qual
será possível dar conta da contradição entre a prática retrógrada burguesa e o
desenvolvimento do capitalismo.
326
Entretanto, pode-se responder sobre o mal-estar
causado por Sartre com a defesa incondicional do PC, no que se refere à
representação do operariado. Trata-se de um comentário posterior, feito em 1965,
por Sartre a Burnier, quando o filósofo afirma que Os comunistas e a Paz careceu de
instrumentos para dar conta do papel do Partido, em especial faltou o conceito de
legitimidade. Enquanto a sociedade está em seu estágio serial, o Partido representa
apenas a si mesmo; é preciso que venha o momento revolucionário para que haja a
fusão entre a intermediação do partido e a práxis operária. O partido apenas se
legitima quando o homem, livremente, engaja nele sua liberdade, ou seja, no caso
do grupo em fusão; nos demais casos, o Partido nada mais é que uma serialidade
(assim como a religião ou a Moral vigente).
325
SARTRE, 1947-1976, (Sit. IV), pp. 80 ss.
326
“(...) trata-se somente de transformar em prática uma determinação já inscrita no prático-inerte.
Nenhuma conspiração, nenhuma deliberação, nenhuma comunicação, nenhum agrupamento comum,
salvo nos grupos potentes que inventaram e inauguraram a prática. Tudo se operou serialmente e o
malthusianismo como processo econômico é serialidade”. CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 275.
138
A idéia de estagnação do marxismo francês será desenvolvida em Questões
de Método, mas antes disso foi preciso Sartre se explicar sobre sua afirmação de
que o PC raramente se engana. Trata-se da resposta à Les mésaventures de
Nekrassov, um artigo no qual Pierre Naville aponta o erro de Sartre identificar o
marasmo do PC com o marxismo, ou seja, não é porque o Partido Comunista
Francês estava parado que também o estava o marxismo. Sartre explica melhor a
idéia de estagnação do PC em sua Resposta a Pierre Naville, minimizando a
identificação entre o partido e o marxismo;
327
num tom amistoso, o filósofo reclama a
necessidade de discussão cortês e camarada entre os teóricos de esquerda. Nem
por isso abre mão de sua posição, ainda que ela seja abrandada: “estou longe de
pretender que o Partido não esteja jamais errado. Eu disse que suas posições, no
conjunto, foram justas”.
328
Mas essa será a derradeira vez que Sartre defende o
Partido publicamente, até o rompimento definitivo no final do mesmo ano.
Havia quatro anos que Sartre trabalhava para se reaproximar do PC e, como
foi visto, não foram raras as vezes em que o defendeu do movimento anticomunista.
Mas isso não perdurará após o final de 1956, quando ele toma conhecimento da
insurreição na Hungria e da repressão extremamente violenta de Moscou. Em uma
entrevista à L’Express Sartre afirma categoricamente: “Eu condeno inteiramente e
sem reserva a agressão soviética. Sem transferir a responsabilidade ao povo russo,
eu repito que seu governo atual cometeu um crime, e que uma luta entre facções
dos meios dirigentes deu o poder a um grupo (...) que hoje vão além do stalinismo
após havê-lo denunciado”.
329
É certo que Sartre não se esquece de dividir a
responsabilidade por aquilo que ele considerou um massacre entre a URSS e os
interesses da política internacional norte-americana; mas a fatia maior cabe, não há
dúvida, ao socialismo de estado e aos seus doze anos de terror e imbecilidade. A
ruptura com o PC francês, devida à sua estrutura centralizadora e fisiológica, está
decretada.
O PC francês, seguindo a boa conduta partidária, apoiou a intervenção
soviética, razão pela qual Sartre diferencia os intelectuais que de fato concordaram
com tal atrocidade e aqueles que não puderam discordar; o mesmo vale para seus
amigos do leste que, por certo, não sobreviveriam à discordância, cabendo-lhes,
327
SARTRE, 2002, p. 71.
328
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 297.
329
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 305.
139
inclusive, uma carta de solidariedade. Finda a possibilidade de uma ampla
plataforma de esquerda, resta promover uma reaproximação com as classes
trabalhadoras e, mais importante ainda, trabalhar para desestalinizar o PC
francês.
330
Vale ressaltar que as diferenças de Sartre com o socialismo real não vão,
em nada, abalar sua adesão ao marxismo enquanto método; basta lembrar da
Crítica, que será publicada em poucos anos.
O ano de 1955 não apresenta nenhum texto que tenha importância direta
para nossa tese.
331
A peça Nekrassov, assim como a repercussão que ela gerou,
não contribui com nosso objetivo; o discurso proferido em Helsinki retoma o
problema da bomba atômica e de seu significado para a história da humanidade,
mas, com exceção da explicitação das relações condicionantes entre o homem e os
objetos que ele cria, não há nada de novo; a exaltação sartriana da URSS e suas
opiniões sobre a China serão muito brevemente ultrapassadas, minimizando seu
interesse. O que poderia interessar, como o engajamento de Sartre nas questões de
seu tempo, já está por demais explorado e, por se tratar de temas datados e nos
quais não há nenhuma novidade teórica, não serão comentados. Também seria
repetitivo discutir as posturas favoráveis ao PC, haja vista que são resultantes da
posição política adotada por Sartre nesse momento e que, não tardará, serão
superadas. Enfim, não há nada nesse ano que chame atenção ou que justifique uma
discussão pormenorizada, fato que leva diretamente a 1956.
332
Há muito foi anunciado que a teoria sartriana, que lhe permitirá manter a
estrutura de O Ser e o Nada ao mesmo tempo em que se encaminha ao marxismo,
desenvolveu-se aos poucos. Não seria diferente numa leitura dialética: entre
avanços e retrocessos Sartre dedica dezessete anos à busca de resposta para as
novas questões que se lhe apresentam: a ampliação do conceito de situação e, a
seguir, o engajamento livre e consciente do indivíduo em sua situação. Mas a teoria
330
SARTRE, 1967.
331
1955: Nekrassov, entrevistas sobre Nekrassov a H. Magnan, R. Valensi, S. Montigny, P. Morelle,
G. Leclerc, C. Chonez, J.-F. Rolland, Discurso pronunciado em Helsinki (26/06/55), La leçon de
Stalingrad, entrevista a Bernard Dort: Jean-Paul nous parle de théatre, Ce gens-lá nous aiment...,
artigo-entrevista por Paul Tillard: Une soirée à Pékin avec Jean-Paul Sartre et Simone de Beauvoir,
entrevista a Pierre Heutges: Tout dans ce pays est émouvant, Mes impessions sur la Chine nouvelle
(publicação em chinês), La Chine que j’ai vue, entrevista a K. S. Karol: Sartre Views to New China.
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 282-294.
332
1956: Le reformisme et les fétiches, Réponse à Pierre Naville, Le colonialisme est un système,
Politika (interview par M. N.), Les Sorcières de Salem (scénario), Interventions à un colloque à la
Société européenne de Culture, interview ‘Aprés Budapeste, Sartre parle’, lettre-préface à ‘La
Tragédie hogroise ou Une Révolution socialiste antisoviétique. CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 295-
307.
140
de Sartre sempre esbarrou num dilema, qual seja, de que modo o homem pode ser
livre e ainda assim ser coagido e determinado por sua situação? Uma parte da
resposta está na explicitação das relações nada pacíficas entre o indivíduo e o grupo
social: a reciprocidade cria no olhar do outro a vigilância do Outro que se exerce
sobre cada um.
O poder ideológico que se institui com a presença em cada um desse grande
Outro não dá conta de explicar todos os casos; nem mesmo a exclusão da
reciprocidade, reservada a alguns membros non gratos da sociedade pode dar conta
do modo pelo qual um indivíduo qualquer, que goza da reciprocidade, viva num
eterno conflito entre sua liberdade e a estrutura vigente. A mediação, explorada em
Saint Genet, existe e exerce sobre todos os indivíduos uma forte atração que faz
com que a sociedade perdure; mas tal atração não é irresistível e cada um, a
qualquer momento, poderia romper com a reciprocidade e, desse modo,
desestabilizar o estado de coisas. Apenas poderia, afinal, nesse pormenor, a teoria
jamais concordou com a prática. Qualquer membro que rompa a barreira do
socialmente aceitável é imediatamente banido, preso ou eliminado. E se a rebelião
se desse pelo acordo de um grupo? Sartre já havia percebido que mesmo assim
nada muda, haja vista a pouca importância que surtiram as conversações sobre a
paz em Viena. No entanto, o que ocorreria se o acordo entre as liberdades
envolvesse a maioria de um grupo, como no caso da insurreição na Hungria?
Na entrevista Após Budapeste, Sartre fala, tem-se o esboço da resposta: o
terror. “Não pode mais haver amizade com a facção dirigente da burocracia
soviética: é o horror que domina”.
333
Se a fraternidade terror, desenvolvida na
Crítica, explica de que modo os indivíduos são mantidos presos ao estamento social
por mais que esse seja injusto ou opressivo, essa idéia surge do horror exercido por
Moscou contra a Hungria. E o conceito de terror nada mais faz do que equacionar a
contradição entre a liberdade de ação e a ineficácia da liberdade; ora, o homem,
individualmente é livre, mas não consegue provocar sozinho nenhuma mudança. No
caso das conversações em Viena havia um grupo de liberdades que, ainda assim,
se mostrou impotente. E mais uma vez, a união das liberdades de um país inteiro se
dobra ante a força – é o terror que domina.
333
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 305.
141
No decorrer da condenação sumária da violência soviética encontra-se numa
frase a resposta para essa pergunta. Essa é, também, uma importante questão
teórica para a constituição do pensamento de Sartre na Crítica, pois, o instrumento
utilizado pela sociedade para se proteger da dissolução nos momentos em que não
há grave crise (guerra ou carestia), é justamente a fraternidade terror. Os momentos
limítrofes, nos quais os homens estão em risco de perder sua existência, são
marcados pela retomada de sua liberdade inteira e, livres daquilo que os faziam
respeitar determinados limites (sejam razões ideológicas, psicológicas, morais ou
sociais), eles se lançam em busca de seu objetivo, eles se engajam livremente.
334
Caso se leve em conta apenas o que Sartre desenvolveu sobre a liberdade
originária de todo homem e a possibilidade, a qualquer momento, de ele retomar sua
liberdade, restariam somente duas alternativas: ou a sociedade seria impossível (o
que não é verdade), ou algo desconhecido a faria se manter coesa. Ora, apenas a
reciprocidade é pouco para justificar a manutenção de um determinado estado de
coisas; do mesmo modo, Sartre não encontra na história da humanidade tantas
revoluções que justifiquem sua tese de possibilidade sempre iminente de mudança.
Por essa razão, é de fundamental importância que Sartre, com o episódio da
insurreição húngara, desenvolva o conceito de Terror. E O fantasma de Stálin, artigo
que inaugura o ano de 1957, reforça ainda mais essa idéia.
335
Nele Sartre se propõe
responder a duas perguntas: com que direito? e era o momento oportuno? O que de
fato importa nesse texto é entender o modo pelo qual as instituições exercem seu
poder sobre o indivíduo e, por fim, as ações do indivíduo podem se voltar contra ele.
É assim que “a política é necessária e ninguém pode dela participar – mesmo o
simples cidadão que vota em um partido – se não aceita, em princípio, que a
violência, em certos casos, seja o menor mal”.
336
Mas a aceitação da violência
334
Para chegar a tais conclusões é preciso lembrar que em A liberação de Paris: uma semana de
apocalipse, texto de 1945, Sartre mostrou que em situações limite o homem retoma sua liberdade
originária; porém, em Saint Genet (1952) percebe-se que em sociedade o homem faz uso apenas da
metade de sua liberdade que está de acordo com o Bem e com o Ser. No primeiro caso, trata-se do
grupo em fusão, que pode ser reeditado a qualquer momento. Mas, se é assim, por que as
revoluções são tão raras? Exatamente porque há uma outra força atuando: o terror.
335
1957: Le Fantôme de Staline, Brecht et les classiques, Vous êtes formidables, entrevista a Olivier
Todd: Jean-Paul Sartre on his autobiography, Marksizm i Egzystencjalizm, Questions de Méthode,
Réponse à Daniel Guérin, Portrait du colonisé, entrevista a Ingeborg Brandt: Gespräch mit Jean-paul
Sartre, Le Sequestré de Venisé, Quand la police frappe les trois coups. CONTAT & RYBALKA, 1970,
pp. 308-315.
336
SARTRE, 1967, p. 3.
142
política também significa uma ação comum executada por certos homens contra
outros homens no intuito de controlar a práxis através de juízos de valor.
Nesse panorama, a violência figura como parte integrante da sociedade
estabelecida; trata-se de conflitos naturais pelos quais determinados grupos se
opõem a outros grupos e, politicamente, é possível que uma ação militar possa
significar um mal menor. Mas esse não é o caso da intervenção na Hungria: “Com o
‘golpe de Budapeste’, a coisa é inteiramente diferente (...)”.
337
Sob o argumento de
salvar o socialismo do perigo facista e do perigo capitalista, o que se viu foi um
massacre; e tudo isso foi feito em vista de uma totalização histórica que tem como
fundamento nada mais que uma idéia totalizante. “Em política nenhuma ação é
incondicionalmente necessária. Mesmo depois do ‘desvio para a direita’ da
revolução húngara, ninguém pode considerar necessária a repressão armada a não
ser em certa perspectiva que supõe certos objetivos imediatos e outros mais
longínquos, certa relação técnica com esses fins, valores, uma concepção de
homem.”
338
Nota-se, claramente, a precoce discordância de Sartre com as leis
dialéticas da história e, no limite, com a concepção totalitária da história.
A continuidade do texto é uma interpretação marxista de um fato no qual,
segundo Sartre, a história real da Hungria é desviada de seu curso por um ato
intervencionista que teve como fundamento uma concepção autoritária e totalizadora
da história. A análise dos diversos pormenores, da guinada à direita provocada pela
violência e da reação nacionalista, tem como pano de fundo essa imposição de uma
história totalizadora à história fática vivida pela revolução húngara. “Vê-se a
contradição: era preciso um governo comunista para empreender a democratização
com o consentimento dos russos e levá-la até o fim sem abandonar os princípios do
marxismo”.
339
Com a análise de um fato datado, tal qual fizera Marx em O Dezoito
Brumário, Sartre desenvolve o conceito que lhe permite entender a contradição que
o incomoda: a liberdade individual em sociedade.
340
Em O fantasma de Stálin, pela primeira vez e a partir de um fato, Sartre
analisa as várias forças que compõem um estado constituído e determina o lugar do
terror para manter a coesão social; da necessidade de coesão nasce a fraternidade-
terror: “Subordinando sua personalidade ao grupo, o soviético evita os vícios
337
SARTRE, 1967, p. 8.
338
SARTRE, 1967, p. 17.
339
SARTRE, 1967, p. 37.
340
MARX, 1974.
143
absurdos do personalismo burguês. Mas por isso mesmo, a necessidade cada vez
mais imperiosa de manter e reforçar a unidade faz cair sua realidade individual na
clandestinidade”.
341
Uma vez estabelecida a burocracia estatal, o indivíduo, ante ela,
nada pode; em vista da unidade, a individualidade é negada pelo socialismo (o
mesmo vale para o capitalismo) e o homem, antes livre para decidir seu destino, se
percebe ainda livre, mas completamente impotente. Na verdade, ele pode se
rebelar, mas a porção terror da fraternidade irá, sempre, agir contra sua liberdade,
seja apreendendo-o, calando-o ou, mesmo, exterminando-o; a contradição, desse
modo, não se dá entre a liberdade e o determinismo, mas entre o homem livre e a
necessidade de manutenção da sociedade.
“Todavia, no ápice, a ditadura se exasperava; o terror ensandecia, se
acelerava cada vez mais, massacrando tudo”.
342
Não se trata unicamente de manter
a sociedade coesa ou de afastar o perigo de sua dissolução; e se a visão
equivocada de uma totalidade histórica explica a violência, não justifica a barbárie. A
partir de uma concepção determinista da história, a intervenção se encaixa como
uma peça no grande quebra-cabeça que tem o comunismo como objetivo último; na
prática, entretanto, a pertença de cada indivíduo que trabalha à classe trabalhadora,
pertença que não é imposta de fora (como a manutenção do socialismo imposta por
Moscou à Hungria) e sim pela situação existencial, condena o massacre. “Os
operários de todos os países têm frequentemente servido de alvo aos soldados para
aceitar, onde quer que seja e seja qual for a razão invocada, que tropas regulares
massacrem o povo: os carros blindados, em Budapeste, atiraram em nome do
socialismo em todos os proletários do mundo”, e não apenas naqueles que
morreram.
343
A origem do massacre vai além da necessidade de manutenção, seja da
sociedade constituída, seja do socialismo, ou do comunismo como fim; não que
numa estrutura capitalista fosse diferente, afinal, também ela busca prevalecer sobre
o indivíduo, mas a questão é que, em nome de uma idéia, os anseios individuais e,
inclusive, a individualidade mesma, se tornam obstáculos. E como essa reviravolta
pode ser entendida se não em função do terror exercido pelo estado? Ora, qual é a
origem do estado se não os indivíduos? E a liberdade do indivíduo foi levada em
341
SARTRE, 1967, p. 62.
342
SARTRE, 1967, p. 78. (grifo nosso)
343
SARTRE, 1967, p. 95.
144
conta diante da idéia a ser defendida militarmente? Questões que remetem à uma
crítica dos limites da Razão Dialética, questões que nortearão o desenvolvimento do
pensamento de Sartre. Ao contrário de Merleau-Ponty, que considera o socialismo
russo tão imperialista quanto o capitalismo inglês, Sartre prefere manter a
esperança: “Para conservar a esperança é preciso fazer exatamente o contrário:
reconhecer, através dos erros, das monstruosidades, dos crimes, os evidentes
privilégios do campo socialista e condenar com redobrada energia a política que põe
em perigo esse privilégio”.
344
As razões para que Sartre afirme, no início da Crítica, que o existencialismo
poderá contribuir para tirar o marxismo do lamentável estado em que ele se encontra
começam a fazer sentido. Em O Fantasma de Stálin o filósofo reafirma sua decisão
de afastar-se do PC, além de lutar para que o fantasma de Stálin seja dele
expurgado. Mas o que mais importa é a análise das contradições geradas pela
repressão à insurreição húngara, afinal, trata-se da decisão de uma pequena parcela
stalinista descontente com as decisões dos húngaros; pode-se aqui retomar o
conceito de legitimidade, desenvolvido por Sartre, e ver que ela não está de modo
algum presente nos fatos ocorridos naquele país. Definitivamente, uma nova força
agiu; melhor, não se trata de uma novidade, mas da descoberta de uma estrutura, o
terror, que se mantinha presente e inominada, malgrado seus efeitos práticos.
Assim, findo 1957, Sartre já conta com todos os instrumentos teóricos
necessários para redigir sua Crítica.
345
Talvez por isso o ano de 1958 não apresente
nenhum elemento novo; as polêmicas continuam, assim como a defesa apaixonada
e contundente de cada postura política do filósofo. Digna de nota é a crítica de
Sartre à guerra empreendida pela França contra a independência da Algéria, a
denúncia da tortura e execuções feitas pelo governo francês e, enfim, suas críticas a
De Gaulle; fatos apenas a serem mencionados, visto que o que interessa (o conceito
de engajamento) já foi bastante explorado. Assim, chega-se a 1959, ano que tem
como principal publicação a peça O seqüestrados de Altona, sem dúvida o mais
sombrio e pessimista dos trabalhos de Sartre, mas que juntamente com Entre quatro
paredes e com O Diabo e o Bom Deus, figura dentre suas melhores peças de teatro.
344
SARTRE, 1967, p. 99.
345
1958: Une victoire, Des rats et des hommes, avant-propos au Traître d’André Gorz, mesa-redonda
sobre a questão se Le théâtre peut-il aborder l’actualité politique ?, Nous sommes tous des assassins,
Le Prétendant, Conferência sobre a violação dos direitos do homem na Algéria, Introduction à une
critique de la raison dialectique, La constituition du mépris, Les Grenouilles qui demandent un roi.
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 316-322.
145
Sua encenação foi sucesso de público e de crítica e sua repercussão pode muito
bem ser medida pelo número de entrevistas concedidas.
346
A importância dessa peça no contexto geral da obra de Sartre advém de sua
relação imediata com a Critica da Razão Dialética, ou seja, nela Sartre tematiza
problemas que serão discutidos por sua filosofia. Esse tipo de remissão entre teatro
e filosofia (ou mesmo literatura) não é novidade na trajetória de Sartre: no início
desse texto foi tecido um comentário à Entre quatro paredes, que expressa a aporia
da relação com o outro de O Ser e o Nada. A relação entre Inês, Estella e Garcin
remete imediatamente à má-fé e à impossibilidade de acordo numa situação em que
o olhar do outro busca apossar-se da liberdade do primeiro, aprisionando-o.
Também é possível aproximar Saint Genet e O Diabo e o Bom Deus, pois essa
última gira exatamente em torno do maniqueísmo burguês, do qual Genet foi vítima.
Do mesmo modo, o ambiente em que se passa Os seqüestrados de Altona é o da
alteridade serial, desenvolvido por Sartre no primeiro livro da Crítica.
347
Enfim, pode-se passar definitivamente à Crítica da Razão Dialética mantendo
a tese de desdobramento na filosofia de Sartre. Percebe-se que do mesmo modo
pelo qual sua filosofia nasce do contato com a fenomenologia husserliana e dela se
separa quando o pensamento do filósofo alemão deixou de ser suficiente para
resolver novos problemas, também a aproximação com Heidegger é desfeita quando
Sartre se dá conta das dificuldades dessa filosofia quando contrastada com a
história. O que se tem são dois momentos de evolução no conjunto do pensamento
de Sartre, um primeiro da fenomenologia à ontologia fenomenológica, e um segundo
do existencialismo ao marxismo. Contudo, de modo algum essas evoluções
significaram uma simples ruptura com o pensamento anterior e a aceitação, em sua
totalidade, da nova vertente escolhida. É o que mostra a passagem de Sartre da
fenomenologia à ontologia: o filósofo se aproxima do pensamento de Heidegger,
mas traz para esse horizonte a intencionalidade da consciência (liberdade); ele
aproveita a noção de Dasein (para-si) e o autoquestionamento que lhe permite
perguntar sobre seu ser e sobre o ser em geral, mas não faz uso da circularidade
346
1959: Les Séquestrés d’Altona, entrevistas sobre Os seqüestrados de Altona (Madeleine Chapsal,
Maria Craiopeau, Le Figaro, Pierre Berger, Jacqueline Fabre, Georges Leon, Robert Kanters, Charles
Haroche, Claude Sarraute, Jacqueline Autrusseau, Claudine Chonez, Bernard Dort, Alain Koehler,
Walter Busse e Günter Steffen), La question, Lettre au directeur du K. N. S. Nederlands Toneel,
Marxisme et philosophie de l’existence, entrevista a F. Jeanson e a Constanzo Constantini,
apresentação da exposição de Francine Galliard-risler. CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 323-236.
347
SARTRE, 2002, pp. 359-374.
146
hermenêutica; serve-se muito bem da noção de situação (e das estruturas temporais
daí decorrentes), sem esquecer da necessidade de fundamentação do ser homem.
O mesmo se passa no que tange à conversão, sem retratação, ao marxismo.
Caso se confronte unicamente O Ser e o Nada com a Crítica da Razão Dialética é
possível concluir que cada uma dessas obras expressa um momento distinto e
independente do pensamento do filósofo. Outro tanto poderia ser dito caso se coteje,
por exemplo, A transcendência do Ego e O Ser e o Nada; acontece que existe uma
gama de textos intermediários entre um período e outro que mostram a ligação
interna da filosofia sartriana e há, além disso, elementos na obra precedente que
são retomados posteriormente. Uma leitura que desconsidere as publicações de
Sartre no período entre 1934 e 1943 concluiria que também ali houve uma ruptura
no desenrolar do pensamento do filósofo e, dessa feita, tratar-se-ia de um Sartre
jovem, um primeiro e um segundo Sartres. Mas não é disso que se trata, ao menos
segundo a tese aqui defendida: o filósofo, ante os problemas que a fenomenologia
husserliana lhe apresenta, aproxima-se de Heidegger. E nem por isso torna-se
heideggeriano, embora faça uso de conceitos dessa filosofia para resolver as
dificuldades que sua filosofia traz à tona. Noutros termos, O Ser e o Nada apenas
pode ser compreendido à luz daquilo que Sartre desenvolveu sob influência de
Husserl e daquilo que ele se apropria do pensamento heideggeriano.
Assim, em vista da mudança terminológica e temática ocorrida quando se
compara especificamente O Ser e o Nada e a Crítica da Razão Dialética, pode-se
afirmar, erroneamente, que haveria dois momentos distintos na filosofia de Sartre.
Porém, uma análise mais detida da produção do filósofo nos dezessete anos que
separam essas duas obras mostra que surgem novos problemas que não se
resolveriam no âmbito da ontologia. A Crítica é, nesse sentido, resultado de O Ser e
o Nada; já em 1943 Sartre encontra problemas mais amplos do que a resposta que
havia acabado de publicar. É isso que se pode ver, por exemplo, na interpretação
que ele faz de Entre quatro paredes em 1965; também na ressalva do filósofo ao
afirmar que A Náusea nada vale ante uma criança que morre de fome. Ainda assim,
ele não abre mão da liberdade ontológica e, ao contrário de simplesmente converter-
se ao marxismo, ele se apropria dessa teoria, com intuito de complementá-la. Esse
termo é o mais adequado, na medida em que se refere simplesmente a uma
mudança de direção e ampliação do horizonte; não há, de modo algum, retratação.
147
O primeiro elemento que corrobora nossa tese de que os conceitos que
estruturam a Crítica foram desenvolvidos aos poucos é o alargamento do conceito
de situação, encontrado nos anos seguintes a O Ser e o Nada; e é importante notar
que se essa expansão é expressa na literatura de Sartre, ela não está restrita a isso,
mas também está presente em seus textos técnicos. A passagem de um ponto de
vista necessário para negar o objeto à situação expandida (ou da historicidade à
história) não requer negar ou restringir a liberdade; nem por isso Sartre se mantém
prisioneiro da ontogênese privada anterior. Porém, com essa expansão, surgiu um
problema sério: de que modo o homem livre pode ser determinado pela situação,
que é sua história? Sartre desenvolve a noção de engajamento, pela qual é preciso
que o indivíduo esteja engajado livremente na causa da liberdade. De outra maneira
ele estaria alienado de seu ser, ou, de sua liberdade; a expressão literária dessas
estruturas é encontrada, de forma crescente, na trilogia Os caminhos da liberdade.
Enfim, trata-se ainda do homem livre, em situação (sociedade e história), que pode
livremente se engajar ou continuar alienado de seu ser.
Porém, como entender que o homem possa ser livre e estar arraigado numa
situação ampliada que, ao que parece, restringe sua liberdade? Sem negar sua obra
anterior, Sartre mostra que a sociedade constituída tem por base a reciprocidade
objetivante, aquela mesma que se encontra em O Ser e o Nada. Ao menos é o que
está presente, a contrapelo, em Saint Genet, na medida em que a sociedade que
exclui o poeta está estruturada na reciprocidade que é negada àqueles que servem
o Mal. Trata-se, não há dúvida, de papéis que são exercidos pelos homens de bem
(eles são liberdade, e não coincidiriam jamais com seu ser), mas tais papéis são
reconhecidos reciprocamente; o juiz reconhece o meirinho, e vice-versa. Se a
reciprocidade aventada na ontologia não pode ser encontrada na sociedade (os
homens não se reconhecerem enquanto liberdades que são), ao menos a
reciprocidade dos papéis exercidos pelos homens de bem, fundamento da
sociedade constituída, existe.
Por fim, em 1957 desenvolve-se o último instrumental que permite a Sartre
passar à Crítica: se o filósofo mantém a liberdade individual na situação ampliada,
tal formulação carece de um elemento que explique o porquê da manutenção social.
As noções de engajamento e reciprocidade (ou legitimidade), mesmo num esquema
de relações objetivantes, ajudam a equacionar o problema; mas não podem de
modo algum responder por que o indivíduo, mesmo livre, não consegue desligar-se
148
da sociedade constituída. Noutras palavras, mesmo que o homem não se engaje no
Nazismo, por exemplo, não pode simplesmente dele se desligar uma vez que ele
seja instituído. O mesmo vale para o Socialismo, ou para qualquer outro evento
social, amplo ou restrito; faltava algo para dar conta desse problema, faltava a noção
de Terror, estruturada definitivamente em O fantasma de Stalin. Feito isso, Sartre
pode redigir sua Crítica; de fato, ele leva para o método marxista o inventário de
terras inexploradas pela filosofia vigente (leia-se, leva seu existencialismo para o
seio do marxismo), como nos diz o filósofo em Questão de Método.
Não há ruptura brusca na obra de Sartre que permita falar em dois momentos
distintos; não há abandono de teses fundamentais em favor de outra filosofia; não
há, sejam três, sejam dois Sartres. Há sim um pensamento original que, segundo
suas necessidades, desdobra-se para dar conta de problemas que surgem: nada
mais apropriado para uma filosofia que tem como cerne a liberdade humana
absoluta e irrestrita. A ocorrência de novidade na obra de Sartre reflete a condição
da história humana que jamais está acabada, o que é natural, afinal, a origem da
história é a liberdade de cada homem que a constitui, e de todos os homens que a
fazem e no mesmo ato a são. Entretanto, se acompanhar o desenrolar das
publicações de Sartre, mostrando o lento e gradual processo evolutivo que leva de O
Ser e o Nada à Crítica da Razão Dialética pode, aos olhos da filosofia, ser pouco
para demonstrar que não há ruptura e que a obra de Sartre pode ser lida como um
contínuo, há duas outras maneiras de demonstrar essa tese: primeiramente,
mostrar, de modo específico, que a existência serial é a reedição do ser-para-outro,
além da retomada na Crítica de outros conceitos presentes em O Ser e o Nada; em
seguida, avaliar as exigências metodológicas, que mostram a passagem do ser ao
para-si, deste ao para-outro e, conseqüentemente, à sociedade e à história.
Essas análises servem para mostrar sistematicamente que é um erro falar de
dois Sartres; e há mais a ser dito, na medida em que o sustentáculo de sua obra
como um todo poderia se resumir à análise de um único conceito, presente desde o
primeiro até o último texto filosófico: a liberdade. Bastaria mostrar que o homem é
livre, desde Uma idéia fundamental da Fenomenologia de Husserl até os Cadernos
para uma Moral, e que todas as construções sociais têm aí sua origem, para
encontrar o ponto e união que mostra a indiscutível unidade de sua indagação
filosófica. O mesmo se encontra nas obras literárias, no teatro e, principalmente, nas
opiniões e atuação política de Sartre. O homem livre é o fundamento de seu próprio
149
ser, como se encontra na ontologia; essa liberdade é o fundamento do mundo, da
sociedade e da história. Considerando tal liberdade negativa (ao mesmo tempo em
que essa negação produz toda a estrutura na qual o homem se insere), ela é
também o fundamento último da dialética e, conseqüentemente, do marxismo. Essa
é, a nosso ver, a melhor maneira de entender a obra de Sartre.
150
PARTE II
CARIBDES OU CILA?
151
O NECESSÁRIO DESDOBRAMENTO DE EN NUMA CRD
Logo que existir para, para todos, uma margem de
liberdade real para além da produção da vida, o marxismo
desaparecerá; seu lugar será ocupado por uma filosofia da
liberdade. Mas estamos desprovidos de qualquer meio, de
qualquer instrumento intelectual ou de qualquer
experiência concreta que nos permita conceber essa
liberdade ou essa filosofia.
Sartre (CRD)
O objetivo mais amplo dessa pesquisa é mostrar que não há ruptura no
conjunto da obra de Sartre, em especial quando da passagem de O Ser e o Nada à
Crítica da Razão Dialética; melhor, mostrar a íntima relação que une essas duas
obras e, consequentemente, os dois períodos, sendo o segundo a devida resposta
aos problemas que ficaram pendentes no primeiro. Para isso, a primeira parte dessa
tese explorou o nascimento de conceitos (ampliação da situação, engajamento,
legitimidade, reciprocidade e terror) presentes nos demais textos publicados nos
dezessete anos que separam a ontologia da Crítica. Foi possível mostrar que essa
passagem é, na verdade, um crescente que comporta muitos pontos intermediários,
entre os quais o mais importante é Saint Genet. Para defender essa tese,
fundamentando-a, é preciso ainda mostrar que o desdobramento encontrado como
respeito à literatura, à dramaturgia e aos textos menores também está presente nas
obras técnicas; de outro modo, seria preciso admitir a ambivalência entre as
posturas de continuidade e de ruptura no conjunto dos escritos de Sartre.
348
Seria
ingenuidade afirmar que nada muda; mas é também inegável que o ser-para-outro,
da maneira pela qual ele é abandonado em O Ser e o Nada, e a situação na qual os
coletivos são retomados (início da CRD), guardam, no mínimo, uma forte suspeita: o
que muda entre o ser-para-outro e a estrutura serial?
Ao buscar resolver um problema filosófico que o preocupa Sartre parte
sempre de uma análise crítica e, depois, promove uma teoria propositiva; é assim
348
É preciso dizer que, além de não haver consenso entre os comentadores de Sartre sobre essa
questão, o filósofo mesmo a contradiz em alguns momentos. Por exemplo, em As Palavras (SARTRE,
1964, pp 182-183) Sartre reconhece a impotência do edifício que construiu; e em Sartre – 1905-1980,
Cohen-Solal cita o depoimento de Menahen Brinker que, dentre outras coisas, afirma que Sartre lhe
disse que “a Crítica é um ponto de partida completamente novo” (COHEN-SOLAL, 1986, p. 528);
porém, Sartre mesmo, em A Conferência de Araraquara, contraria seu depoimento ao afirmar que “Se
o senhor pensa (...) que há uma diferença entre O Ser e o Nada e a Crítica da Razão Dialética é por
causa da maneira como os problemas são formulados mas não por causa da própria direção; a
direção continua a mesma” (SARTRE, 1987, pp. 91-92). Essa questão, devido à sua importância,
será retomada na conclusão desse trabalho.
152
que é possível entender a passagem de Husserl a Heidegger, ou, da psicologia
fenomenológica à ontologia. Por isso o filósofo será acompanhado nos dois
momentos, tanto com relação à terceira parte de O Ser e o Nada (ser-para-outro)
quanto ao Livro I de A Crítica da Razão Dialética (em especial, Os coletivos). Se a
interpretação dos demais textos de Sartre estiver correta, a descrição da sociedade
presente na Crítica se mostrará o corolário da descrição feita do ser-para-outro, em
O Ser e o Nada; desse modo, ainda que sejam necessárias mudanças de uma parte
à outra, principalmente com respeito à função reservada à liberdade, será possível
mostrar que há mais pontos de confluência do que de divergência entre o para-si e
os coletivos.
Com esse objetivo foram feitas as anotações que se seguem, compostas de
duas partes: a primeira apresenta a maneira pela qual Sartre pretende superar o
solipsismo em sua ontologia (o ser-para-outro); a segunda se inicia com a descrição
da serialidade e vai até o grupo constituído (a gênese do grupo). Estabelecido esse
esquema, será possível promover a aproximação entre essas partes, ou seja,
responder à pergunta sobre o que muda na situação efetiva do homem, tanto na
descrição de sua constituição ontológica quanto na descrição de sua existência
social. Os resultados preliminares permitem antecipar que os problemas referentes à
relação com o outro são resolvidos pela teoria dos grupos; além disso, indicam que
a Crítica nada mais é que o desdobramento, evidentemente sobre outro solo
(marxismo), de O Ser e o Nada, ou, o lugar onde Sartre retoma os problemas de sua
obra anterior e apresenta a solução cabível.
Assim, Sartre, após mostrar em O Ser e o Nada que o ser é em-si e para-si
(descrição reflexiva), sendo esse segundo o modo de ser do homem, afirma que ser-
para-si não é tudo: “podemos encontrar modos de consciência que parecem indicar,
mesmo conservando-se estritamente para-si, um tipo de estrutura ontológica
radicalmente diverso”.
349
O filósofo analisou todas as Erlebnisses possíveis e,
invariavelmente, todas mostraram sua origem e seu fim na relação entre o para-si e
o ser (consciência do objeto, de sede, de ódio, de amor, etc.); e essa relação é
imediata. Toda consciência é para-si, é consciência de seu ser em relação direta
com o transcendente; porém, a ontogênese privada se mantém, precisamente, até a
análise do ser-para-outro.
349
SARTRE, 1943, p. 275.
153
Mas o que é essa estrutura ontológica diversa que se apresenta, também
imediatamente, à consciência? Trata-se, sem dúvida, de uma estrutura reflexiva que,
dessa feita, adquire um grau maior de complexidade: uma reflexão que passa pelo
outro, e esse faz com que o para-si apareça a si mesmo como objeto;
“pela aparição
mesma do outro, estou em condições de formular sobre mim um juízo igual ao juízo
sobre um objeto, pois é como objeto que apareço ao outro”.
350
Note-se que a relação
objetivante, característica da postura do para-si ante o em-si, é agora tomada por ele
na sua relação consigo mesmo; a mediação do outro permite o para-si objetivar-se
e, desse modo, produzir um juízo pelo qual ele, objetivado pela mediação do outro, é
causa de vergonha para si mesmo, ou, nessa condição, o para-si identifica-se com
seu ato.
Tem-se, assim, a descoberta do outro, e essa descoberta insere a mediação
na relação outrora imediata do para-si consigo mesmo e com o transcendente; é
pelo outro que o para-si pode se envergonhar, e a vergonha não é dirigida para a
imagem que o outro, porventura, faz; ao contrário, a vergonha é vergonha de si, ou
seja, o olhar do outro revela uma porção de ser do para-si (ser causa de vergonha)
que num panorama de ontogênese privada seria impossível. A vergonha é vergonha
de si diante do outro, é um tipo de relação que passa pelo outro como mediador
indispensável na relação do para-si consigo; mais ainda, tal mediação faz com que o
para-si adquira um novo tipo de ser que, em seu ser, ele deverá manter e será por
ele absolutamente responsável. Numa palavra, a única maneira de conhecer-se
plenamente é passando pelo outro, ou, o ser-para-si remete ao ser-para-outro.
A existência do outro promove uma reviravolta no sistema dual da ontologia
de Sartre. Nem por isso tal relação superará o caráter dualista (para-si e em-si) da
descrição do fenômeno de ser, mas, devido a isso, ela se dará passando por um
terceiro. Sartre recusa que o outro seja considerado um conceito regulador, postura,
segundo ele, adotada pelo realismo; o conceito de outro não é simplesmente
instrumental, mas “este outro, cuja relação comigo não podemos captar e que jamais
é dado, nós o constituímos aos poucos como objeto concreto”.
351
Invertendo a
relação, não é porque há o outro que a experiência individual adquire um sentido
350
Sartre, na porção analítica de seu método, avalia a vergonha, uma estrutura intencional acessível
à reflexão que nada mais é que uma relação íntima de mim comigo mesmo; porém, a vergonha não é
uma vivência que pode estar circunscrita unicamente à reflexão, haja vista que a estrutura da
vergonha é ser vergonha diante de alguém. Assim, a vergonha exige um mediador entre o para-si e
ele mesmo, ou seja, a vergonha remete imediatamente ao outro. SARTRE, 1943, pp. 275-276.
351
SARTRE, 1943, p. 283.
154
específico (vergonha, por exemplo), mas é a partir da experiência individual
(vergonha) que o outro se constitui como outro. Embora seja inegável a diferença
que a existência do outro promove na experiência individual, é justamente nessa
experiência que sua interferência faz sentido.
Há, pois, uma evidente mudança qualitativa entre a relação que Sartre
mostrou ser interna entre o para-si e o em-si, e a relação que envolve o outro; em
suas palavras: “É porque, com efeito, o outro não é somente aquele que vejo, mas
aquele que me vê”.
352
Antes do ser-para-outro, a relação descrita em O Ser e o
Nada partia sempre do para-si que, pela intencionalidade, envolvia o em-si e fazia
com que esse, ainda que fechado e completamente idêntico a si, viesse ao mundo
(fenômeno); a segunda relação, porém, envolve dois círculos de significação, e em
cada um deles o outro aparece como um limite e, ao mesmo tempo, como
constituído. Há, definitivamente, a passagem ao campo da contradição, no qual ser
para-si é negar (ou objetivar) o outro ao mesmo tempo em que é por ele negado; a
via relacional passa a ser de mão dupla, pois se o para-si olha o outro, é também
por ele olhado.
Existem ao menos duas soluções para o problema: declarar a solidão
ontológica e assumir que, para além da verdade imediata do cogito, nada pode ser
afirmado (o que seria circunscrever o para-si na sua esfera de existência individual),
ou aceitar que o outro existe a priori, independente do para-si que eu sou; para
Sartre, no entanto, ambas as soluções, tanto a realista quanto a idealista, são
insuficientes. Isso porque o realismo ontológico (há o outro) exige uma espécie de
idealismo prático, na medida em que esse outro arrancaria sua existência do
reconhecimento recebido; o idealismo, por sua vez, encerraria cada para-si em si
mesmo, e não haveria nenhuma maneira de sair de si e mostrar a verdade da
existência do outro. Haveria ainda, conforme defendem algumas interpretações da
obra de Sartre, a possibilidade de admitir que sua ontologia é incapaz de dar conta
dos grupos e, desse modo, não é possível falar sobre sociedade ou história; mas,
uma vez que há a Crítica, e nossa tese é justamente mostrar que ela não significa
um reinício, é preciso dar conta do modo pelo qual o filósofo, a partir do ser-para-
outro, pode falar em sociedade constituída.
352
SARTRE, 1943, p. 283.
155
Segundo Sartre, o problema da relação com o outro se coloca porque o
idealismo e o realismo partem de uma mesma pressuposição: o outro é o que não
sou eu. Ora, a estrutura constituinte do ser-outro é negativa, e tanto o idealismo
quanto o realismo entendem essa negação como negação constituinte e, portanto,
negação de exterioridade; mais ainda, “o sujeito cognoscente não pode limitar outro
sujeito nem se fazer limitar por ele. Está isolado por sua plenitude positiva e, por
conseguinte, entre si mesmo e o outro sistema igualmente isolado mantém-se uma
separação espacial como tipo mesmo de exterioridade”.
353
Assim sendo, o idealista
e o realista partem do pressuposto de que o si e o outro estão separados por uma
porção de espaço, ideal ou real; desse modo, está estabelecida a relação de
exterioridade, uma relação análoga àquela entre os objetos: um para-si está para
outro assim como a mesa está para o tinteiro.
Decorre, então, que essa relação apenas poderá ser intermediada por um
terceiro que, concomitantemente, participe internamente dos dois termos (nesse
caso, de ambos os para-sis) da equação; mais ainda, o ser intermediário deve ser
cada um dos termos e não os ser, para que possa guardar a imparcialidade de
testemunha. “Assim, a pressuposição espacializadora não nos deixa qualquer
escolha: é preciso recorrer a Deus ou cair em um probabilismo que deixa a porta
aberta ao solipsismo”.
354
Mas nem mesmo a noção de Deus pode dar cabo do
problema; A Liberdade Cartesiana mostra que a fusão com o ser divino faz com que
a criação seja continuada, tirando qualquer garantia de individualidade; noutras
palavras, se Deus cria a cada instante, o instantaneísmo não permitiria que o
indivíduo continuasse a ser quem ele é, porque no instante seguinte ele poderia
passar a ser outro sem se dar conta disso. Se, de outra feita, a criação for
considerada apenas um ato, volta-se ao início do problema, uma vez que desse
modo Deus não participaria internamente do para-si, alcançando, no máximo, uma
relação de exterioridade e sendo, desse modo, incapaz de promover a relação.
355
Segundo Sartre, excetuando-se Deus, sobrou à filosofia dos séculos XIX e XX
superar a noção de substância, afinal, se cada indivíduo for considerado uma
substância separada, está declarada a impossibilidade absoluta de sua união.
Assim, chega-se à idéia husserliana de um sujeito transcendental que, mesmo
353
SARTRE, 1943, p. 286.
354
SARTRE, 1943, p. 287.
355
SARTRE, 1947, p. 307.
156
contornando a dificuldade substancial para referir-se a sujeitos distintos, não avança
nada na demonstração da existência do outro. Brevemente, Sartre entende que
afirmar a existência de um campo transcendental requer que o outro seja, também,
um campo transcendental similar ao primeiro campo:
Por conseguinte, a única maneira de escapar ao solipsismo seria, ainda
aqui, provar que minha consciência transcendental, em seu próprio ser, é
afetada pela existência extramundana de outras consciências do mesmo
tipo. Assim, por ter reduzido o ser a uma série de significações, o único
nexo que Husserl pode estabelecer entre meu ser e o ser do outro é o do
conhecimento; portanto, não escapou, mais do que Kant, do solipsismo.
356
Hegel, ainda sob a ótica de Sartre, dá um passo importante para solucionar o
problema: a dialética do senhor e do escravo permite encontrar um vínculo de
negatividade interior entre os para-sis;
357
“a intuição genial de Hegel é a de fazer-me
dependente do outro em meu ser. Eu sou – diz ele – um ser para-si que só é para-si
por meio do outro. Portanto, o outro me penetra em meu âmago. Não poderia
colocá-lo em dúvida sem duvidar de mim mesmo (...)”.
358
A passagem de Husserl a
Hegel permite, além de encarnar de fato a contradição que a relação com o outro
exige, mostrar que a negação que constitui o outro é interna, recíproca e direta.
Assim, o ser-para-outro, ao invés de uma barreira que limitaria o para-si, passa a ser
sua condição de existência.
Malgrado as vantagens do sistema hegeliano, Sartre encontra aí uma falha
fundamental: também para Hegel o problema do outro é formulado em termos de
conhecimento. Vejamos: à questão – como o outro pode ser objeto para mim? – o
idealismo responde que – se há em verdade um Eu para o qual o outro é objeto, é
porque há um outro para quem o Eu é objeto. Assim, o para-si acaba por ser
assimilado em seu ser, e sua existência medida pelo reconhecimento objetivante do
outro; Sartre sabe que isso é perfeitamente aceitável no campo do idealismo
absoluto, para o qual ser e conhecimento são idênticos; mas para onde tal verdade
encaminha o problema?
Certamente, a assimilação do ser pelo conhecimento faz com que o particular
seja dissipado no universal, e o indivíduo, tão caro a Sartre, não poderá ser mantido.
Primeiramente, nosso filósofo se esforçou por mostrar que a relação do para-si
356
SARTRE, 1943, p. 291.
357
HEGEL, 2005, Independência e dependência da consciência-de-si: dominação e escravidão, 178-
196, pp. 142-151.
358
SARTRE, 1943, p. 293.
157
consigo não era uma relação de conhecimento; em seguida, ele procurou mostrar
que não há nenhuma identidade na relação reflexo-refletidor; por fim, Sartre mostra
que a ipseidade é fundamentalmente diferente do Ego. Nesse panorama, a
consciência é “um ser concreto e sui generis, não uma relação abstrata e
injustificável de identidade; é ipseidade e não sede de um Ego opaco e inútil; seu ser
é suscetível de ser alcançado por uma reflexão transcendental, e há uma verdade
da consciência que não depende do outro, pois o próprio ser da consciência, sendo
independente do conhecimento, preexiste à sua verdade”.
359
Contra Hegel permanece válida a crítica de Kierkegaard, qual seja, a
necessidade de que o indivíduo sobressaia e resista à universalização;
especificamente, isto significa que o indivíduo tenha salvaguardado seu ser
concreto, ou, que o indivíduo seja razão da estrutura universal e não o contrário.
Nesse sentido, Sartre formula duas ressalvas a Hegel, chamadas de dupla acusação
de otimismo: primeira, otimismo epistemológico, ou seja, aparentemente a verdade
de si (e, na contrapartida, do outro) pode ser assimilável; “Assim, o otimismo de
Hegel termina em fracasso: entre o objeto-outro e o eu-sujeito não há qualquer
medida comum, tanto quanto não o há entre a consciência (de) si e a consciência do
outro”.
360
A pertença entre as consciências, que poderiam se reconhecer no ser
outro objetivado, promove uma separação ontológica entre elas e impede qualquer
conhecimento universal do ser consciência.
A segunda acusação é a de otimismo ontológico: colocar-se do ponto de vista
do Todo e, desse, julgar a relação entre as consciências. Assim, ao considerar o
problema, Hegel não se circunscreve a nenhuma consciência individual, mas, uma
vez que a verdade de tudo o que é verdadeiro já está aí disponível, ele pode, fora
das consciências, considerá-las de um ponto de vista absoluto. Dessa maneira, “a
pluralidade pode e deve ser transcendida rumo à totalidade. Mas se Hegel pode
afirmar a realidade desse transcender, é porque já o havia colocado desde o
começo”;
361
Sartre radicaliza a questão, e conclui que Hegel é o todo e, por essa
razão, resolve tão facilmente o problema da existência do outro.
A saída encontrada em Hegel não pode, portanto, ser sustentada devido a
dois problemas; primeiro, a consciência não se reduz ao conhecimento, e, segundo,
359
SARTRE, 1943, p. 295.
360
SARTRE, 1943, p. 299.
361
SARTRE, 1943, p. 299.
158
não é possível transcendê-la e, de um ponto de vista absoluto, explicar a relação
que há entre todas as consciências. A questão reenvia, imediatamente, ao cogito:
“devo estabelecer-me em meu ser e colocar o problema do outro a partir de meu
ser”.
362
Assim como antes, o único ponto de partida seguro para Sartre é a reflexão,
e é dela que a pergunta pelo outro deve ser colocada; a pretensão de romper a
circunscrição da consciência (de) si, e se estabelecer na posição do absoluto para,
daí, dar conta do problema, aparece a ele como uma completa ignorância sobre a
dimensão particular que é a consciência (de) si.
Neste ponto ocorre a seguinte pergunta: a que vem o progresso hegeliano, se
o que Sartre faz é justamente mostrar que Hegel impede, a priori, conhecer a
consciência ou comprovar a existência de outras consciências, a não ser que seja
tomado o ponto de vista do todo? Se nenhum otimismo, lógico ou epistemológico,
pode fazer cessar o escândalo da pluralidade de consciências, e se o máximo que a
ontologia pode fazer é descrever esse escândalo, sendo impotente para superá-lo?
Parece que a resposta é que a descrição do suposto escândalo pode, ao menos,
superar o solipsismo no qual a consciência, uma vez que se parta do cogito, está
encerrada. Sartre, a partir do ser-consciência, pôde extrair tudo: dois tipos de ser,
sua relação, o mundo privado, os objetos, etc. Ora, a existência do outro deve
também ser, para-si, evidente; senão, seria forçoso afirmar que a ontologia
fenomenológica descreveu o mundo, a menos que assumisse a crítica de que
descreveu apenas um mundo particular.
Curiosamente, Sartre retira das duas alternativas analisadas o horizonte em
que uma descrição (ou solução) do problema do outro seria aceitável; é verdade que
o faz pela via negativa: não é uma boa opção nem medir o ser pelo conhecimento
(Kant/Husserl), nem identificá-los (Hegel), mas “se for possível refutar o solipsismo,
minha relação com o outro é, antes de tudo e fundamentalmente, uma relação de
ser a ser, e não de conhecimento a conhecimento”.
363
Noutras palavras, o caminho
percorrido por Kant e Husserl, de um lado, e Hegel de outro, ensina que a existência
do outro apenas é plausível se considerada numa relação de ser, e que para
demonstrar tal tese o único ponto de partida é a realidade humana individual; e é o
que, segundo Sartre, faz Heidegger.
362
SARTRE, 1943, p. 300.
363
SARTRE, 1943, p. 300.
159
Heidegger compreendeu seus antecessores, e sua obra revela que a relação
entre as realidades humanas é uma relação de ser, sendo que tal relação faz com
que uma realidade dependa das outras em seu ser; desse modo, “a realidade
humana é ser o seu ser com os outros”.
364
Assim, não há primeiro uma consciência
e, depois, o encontro com o outro, mas a estrutura de relação com o outro se
encontra justamente na essência de ser-para-si; isso supera o ponto de vista
totalizante de Hegel, haja vista que, para Sartre, Heidegger parte de seu ser e
encontra, nele, uma estrutura relativa ao outro. É certo que isso apenas é possível
porque o filósofo não tem como ponto de partida o cogito, mas mostra, na estrutura
ontológica do Dasein, essa coexistência.
Para Sartre, nas filosofias de Hegel e de Husserl a relação com o outro se
embasa no ser-para, ou seja, o outro é para mim assim como eu sou para ele; trata-
se de uma relação de conhecimento, portanto. Heidegger subverte essa dicotomia
com a noção de ser-com, pela qual o outro tem sua existência conjunta ao eu;
365
a
aparição de outra realidade humana não gera qualquer dificuldade, afinal ela se dá
no mesmo momento da aparição do eu. Sartre utiliza uma imagem para explicar
essa diferença: ao invés do conflito, trata-se de uma equipe de remo, ou, a surda
existência em comum de um integrante da equipe e seus companheiros.
366
Metáforas à parte, a solução de Heidegger é satisfatória?
“Dessa vez obtivemos o que queríamos: um ser que encerra em seu ser o ser
do outro. E, todavia, não podemos nos considerar satisfeitos”.
367
Sartre enumera
uma série de questões que são pertinentes, se avaliadas do ponto de vista de uma
filosofia que pretenda partir de um lugar certo (cogito), tal como é a sua; ainda que
seja discutível a apreciação dessas questões no universo específico da filosofia de
Heidegger, com elas Sartre dá boas indicações de seu objetivo no que tange à
superação do solipsismo e, também, dos limites insuperáveis que há para a
364
Heidegger “Descobriu diversos momentos – inseparáveis, por outro lado, salvo por abstração – no
‘ser no mundo’ que caracteriza a realidade humana. Esses momentos são ‘mundo’, ‘ser-em’ e ‘ser’.
Descreveu o mundo como ‘aquilo pelo qual a realidade humana faz-se anunciar aquilo que é’; definiu
o ‘ser-em’ como ‘Befindlichkeit’ e ‘Verstand’; falta falar do ser, ou seja, o modo como a realidade
humana é seu ser-no-mundo. É o ‘Mit-Sein’, diz Heidegger; ou seja, o ‘ser-com’. Assim, a
característica de ser da realidade humana é ser o seu ser com os outros.” SARTRE, 1943, p. 301.
365
“Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, ninguém se diferencia
propriamente, entre os quais também se está. (...) Na base desse ser-no-mundo determinado pelo
com, o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo do Dasein é mundo
compartilhado”. HEIDEGGER, 1993, § 26, pp. 169-170.
366
O mesmo pode ser dito do exemplo de uma equipe de futebol. SARTRE, 2002, pp. 548 ss.
367
SARTRE, 1943, p. 303.
160
descrição de outras consciências e da relação que essas podem ter entre si. Assim,
cabe a demonstração, a partir do ser que se é, de que o outro existe; não basta,
conforme o faz Heidegger, coincidir o ponto de vista ontológico com o ponto de vista
abstrato do sujeito kantiano.
Afirmar que a realidade do Dasein é-com, e que essa é uma estrutura
ontológica, não é mais que dizer que o homem é em relação com outros homens por
natureza. Ora, ainda que isso possa ser comprovado pela experiência do mundo
(fenomenologicamente, portanto), não há meio de, partindo daí, explicar o homem
concreto: “O que precisa ser demonstrado, com efeito, é que o ‘ser-com-Pedro’ ou o
‘ser-com-Ana’ é uma estrutura constitutiva de meu ser concreto. Mas isso é
impossível do ponto de vista em que Heidegger se situou”.
368
Sartre aceita que esse
problema se resolve, ontologicamente, com a estrutura do ser-com, explicitada por
Heidegger; mas questiona a passagem desse plano para o plano psicológico e
concreto da relação com o outro.
Em resumo, Sartre mostrou que é pelo para-si que o ser vem ao mundo, ou
seja, é porque há o para-si que o ser; mas o mesmo não pode ser aplicado no
que concerne à relação com o outro. Se, por um lado, afirmar que o para-si é o ser
para o qual há uma outra realidade humana nada mais é que afirmar o óbvio, por
outro lado admitir que o para-si é o ser pelo qual há uma outra realidade humana é
tornar o problema ainda mais complexo. A terceira opção, a heideggeriana,
estabelece uma lei ontológica a priori que resolve o problema no que concerne à
ontologia, mas que também torna impossível a passagem ao plano ôntico: “Assim, a
existência de um ‘ser-com’ ontológico e, por conseguinte, a priori, torna impossível
toda conexão ôntica com uma realidade humana concreta que surgisse para-si como
um transcendente absoluto”.
369
A análise da solução formulada por Heidegger para o problema da existência
do outro, mesmo apresentando a enorme vantagem de não incorrer nos erros de
Hegel, Husserl e Kant, redunda, segundo Sartre, numa operação de má-fé. O
objetivo claro de Heidegger, qual seja, superar o idealismo, é alcançado porque o
filósofo se embasa numa subjetividade que repousa em si mesma e contempla suas
próprias imagens; ora, para Sartre a identificação do para-si consigo mesmo nada
368
SARTRE, 1943, p. 304.
369
SARTRE, 1943, p. 306.
161
mais é que um ato de má-fé.
370
A superação heideggeriana do idealismo, por não
permitir passar para a descrição concreta das relações humanas leva, segundo
Sartre, à uma espécie de idealismo bastardo, ou, de psicologismo empiriocriticista.
Em suma, o ek-stase de Heidegger não avança nada rumo à solução do problema
da existência do outro; na verdade, se reveste de idealismo. O Dasein existe fora de
si, e essa existência é uma estrutura a priori de seu ser.
Encerra-se, desse modo, a parte crítica e Sartre, a contrapelo, apresenta o
que seria sua teoria propositiva da existência do outro. Inicialmente, o outro aparece
de forma objetiva: o corpo, a voz, etc., são suas modalidades de aparição e, sendo
assim, tal existência não vai além de uma conjectura. Da mesma maneira que seria
para Descartes, Sartre afirma que é provável que a pessoa que vejo caminhar não
seja um robô extremamente moderno, é provável que a voz que ouço cantar seja
mesmo do mendigo à minha frente e não de um gramofone, e assim por diante.
371
Mas a certeza de que há o outro nasce porque “sua essência deve ser referência a
uma relação primeira de minha consciência com a do outro, na qual esse deve me
aparecer diretamente como sujeito, ainda que em conexão comigo – relação essa
que é a relação fundamental, do mesmo tipo de meu ser-Para-outro”.
372
A existência do outro está enraizada no sujeito da mesma maneira que a
alienação de sua liberdade tem como destino o olhar do outro, ou, trata-se de uma
relação concreta e cotidiana na qual o outro me olha a cada instante. Ora, nesse
panorama, o que é o homem? “Assim, a aparição, entre os objetos de meu universo,
de um elemento de desintegração desse universo, é o que denomino de um homem
no meu universo”.
373
Cada para-si está restrito a seu mundo particular e o outro é
algo que vem desagregar esse universo com a afirmação de que também ele tem
seu mundo; o incômodo que o outro causa é exatamente sua impertinência em não
ser um objeto dentre os demais, mas um para-si similar (ao menos, é o que tudo
leva a crer) a mim; o outro é, em suma, fator de desagregação de meu mundo.
Não é necessário ir além desse ponto para passar à análise da serialidade,
pois Sartre já apresentou elementos suficientes para tal: o outro tem sua existência
370
“Por certo, para quem pratica a má-fé, trata-se de mascarar uma verdade desagradável ou
apresentar como verdade um erro agradável. (...), na má-fé eu mesmo escondo a verdade de mim
mesmo. Assim, não existe nesse caso a dualidade do enganador e do enganado. A má-fé implica por
essência, ao contrário, a unidade de uma consciência”. SARTRE, 1943, p. 87.
371
DESCARTRES, 1973a, p. 94.
372
SARTRE, 1943, p. 311.
373
SARTRE, 1943, p. 312.
162
em conexão original comigo, o outro se apresenta como desagregador de meu
mundo com seu olhar, o outro existe numa relação de objetivação comigo, na
medida em que eu posso considerá-lo um objeto e ser, em contrapartida, objetivado
por ele. Cabe retomar a pergunta inicial e procurar saber: nesse tipo de relação não
há nenhuma possibilidade de agregação social, uma vez que seu fundamento é o
conflito? Ao que parece, cada para-si busca manter sua liberdade e, ao mesmo
tempo, apossar-se da liberdade alheia na medida em que seu olhar objetiva o
próximo; desse modo Sartre encerra o homem no universo de Entre quatro paredes,
num mundo de almas penadas? Será mesmo essa a realidade que Sartre descreve
quando se trata da relação cotidiana e concreta dentre os homens?
Responder essas questões a partir da análise da aproximação possível entre
a dificuldade da relação como o outro, de O Ser e o Nada, e a existência serial, que
inaugura a Crítica, torna-se ainda mais importante porque essa é, sem dúvida, a
razão mais séria para que alguns leitores de Sartre afirmem que há dois períodos
distintos, separando um Sartre partidário da liberdade e outro marxista. Porém, se o
filósofo em sua ontologia entende outro homem como o agente desagregador da
ontogênese particular, como será, por sua vez, a relação serial entre os homens?
Ou melhor, se a Crítica tem um ponto de partida completamente novo, e isso quer
dizer que há um reinício da filosofia de Sartre, é preciso verificar o que efetivamente
muda. É preciso saber em que a noção de homem desenvolvida na Crítica supera o
homem de O Ser e o Nada.
Inicialmente, convém dizer que a teoria sartriana da gênese dos grupos está
inserida historicamente, mas ela não se pretende uma análise de cunho histórico
(história real). Longe disso, consiste em buscar a inteligibilidade dos grupos a partir
de sua gênese ideal: partindo de uma situação fática, na qual se encontram os
grupos nas suas variadas modalidades, Sartre pretende explicar como e por que
essa situação se constituiu dessa maneira e de nenhuma outra possível (método
regressivo).
374
Assim, pode-se encontrar resposta para uma importante indagação
da filosofia de Sartre: como pode o homem agir livremente e sua liberdade voltar-se
contra ele de maneira a determinar seu ser, ou, especificamente, por que a história é
feita por homens e, não raro, os homens sintam-se coagidos por sua história?
374
Trata-se da parte regressiva do método sartriano, desenvolvida nesta Parte II, capítulo 1, Uma
questão de método.
163
Embora o método utilizado seja regressivo, Sartre também pretende mostrar
os diferentes momentos do processo da gênese do grupo. Para tanto, é preciso que
sua pesquisa seja dialética, compondo um crescente: coletividade, serialidade,
grupo em fusão e grupo, esse último entendido como organizado e instituído pelo
juramento e pela fraternidade-terror (método progressivo). Mas o ponto de partida é
(e apenas poderia ser) a análise da relação cotidiana e concreta entre os homens.
Sob esse aspecto, o grupo não se torna jamais um bloco, mas trata-se de um objeto
dinâmico, que supõe troca e reciprocidade dentre suas várias instâncias
constitutivas; assim, a teoria do grupo apenas poderia ser dialética, haja vista que
ela exige comportar contradições, além de toda negação interna ao grupo ser
parcial, e sua estrutura comportar dados inacabados e questionáveis.
Porém, o fato de Sartre propor uma teoria ideal do grupo não significa de
nenhum modo afastamento da realidade; não se trata de uma lógica ideal (abstrata),
mas, ao contrário, o aporte regressivo (experiência) exige um homem concreto, ou
que o indivíduo – interrogador e interrogado – seja eu e ninguém. Corresponde,
assim, a um indivíduo situado, não há dúvida, mas a interrogação não está
circunscrita ao eu porque ele desaparece; quando não se trata mais desse eu,
chega-se às estruturas mais complexas que permitirão passar do indivíduo ao grupo
e, desse, à história. O elemento primordial dessa pesquisa é o indivíduo
historicamente situado, conforme ocorre em Saint Genet, e não uma razão
contemplativa; mas “apreenderemos – a partir desse eu que desaparece – as
relações dinâmicas das diferentes estruturas sociais na medida em que elas se
transformam através da História”.
375
O eu a partir do qual Sartre pretende iniciar sua análise está em situação;
essa situação se apresenta de maneira circular, ou seja, o homem é mediado pelas
coisas e as coisas são mediadas pelo homem; outra maneira de dizer que o para-si
existe em relação com o em-si. Esse princípio, que rompe definitivamente com a
dicotomia do sujeito e do objeto permite, “em nossa experiência regressiva, utilizar
todo o saber atual (...) para iluminar esta ou aquela empresa, tal conjunto social, tal
avatar da práxis”.
376
Fica explícito que o homem é o baluarte dessa empreitada, e
também fica claro que não se trata de um sujeito absoluto ou de um sujeito
transcendental, mas do próprio indivíduo na sua lida cotidiana, ou seja, a pesquisa
375
SARTRE, 2002, p. 170.
376
SARTRE, 2002, p. 172.
164
não almeja continuar no nível individual, mas sim eliminar o eu e produzir um
discurso universal. Como isso será possível?
Sartre não está alheio à multiplicidade que compõe o objeto de sua análise;
no entanto, compreende que o múltiplo apenas pode fazer sentido caso se constitua
como um todo; essas exigências se explicam devido ao método progressivo-
regressivo, afinal, o sentido da análise se encontra justamente na síntese, isto é,
partir do existente apenas se justifica graças à totalização dialética. Ora, a
totalização é responsável pela organização e unificação da pluralidade, e ela apenas
se possibiliza num cenário humano: “(...) existe um setor ontológico de totalização e
(...) estamos situados no interior desse campo”.
377
O cenário humano é o campo
específico que totaliza a pluralidade, mas a totalização está sempre em curso; ainda
que o objetivo almejado seja a totalidade, apenas são alcançadas totalizações
parciais e deficitárias, porque a totalidade se define ontologicamente por um ser que
não é a simples soma de suas partes. Por exigir reconhecer-se inteira em cada uma
de suas partes e necessitar de contato consigo mesma na relação entre suas partes
e na relação dessas partes consigo, a totalidade apenas existe no âmbito do
imaginário. A totalidade é correlata de um ato de imaginação e é, ao mesmo tempo,
o objetivo almejado das totalizações presentes.
Assim, é utilizando um método composto por dois movimentos (progressivo-
regressivo) e partindo da análise daquilo que lhe é mais próximo (situação), que
Sartre pretende dar conta da constituição dos grupos.
378
De antemão, é possível
enumerar algumas peculiaridades do grupo: se não há totalidade prévia, o grupo
jamais alcançará o status de total, mas é entendido como uma totalização em
processo; outro tanto pode ser dito da dialética dos grupos, que não poderá ir além
de um movimento inacabado, haja vista que os grupos apenas nascem (e podem se
manter) graças à práxis. “Um campo social, seja ele qual for, é constituído, em
grande parte, por conjuntos estruturados de agrupamentos que são sempre, ao
mesmo tempo, práxis e prático-inerte, embora essas duas características possam
tender constantemente a anular-se; somente a experiência permite determinar a
relação interna das estruturas no interior de um grupo preciso e como um movimento
preciso de sua dialética interior”.
379
377
SARTRE, 2002, p. 174.
378
Parte II, 2, O método progressivo-regressivo.
379
SARTRE, 2002, p. 360.
165
Tal empreitada mostra que o elemento mais evidente de análise social é a
existência serial, ou melhor, a principal relação que se encontra entre os indivíduos é
a série; esta representa o tipo de agregação humana cujo elemento de unidade
provém do exterior. Esse tipo de relação permite que Sartre constitua o conceito de
serialidade, que nada mais é que um conjunto humano (coletivo) que tem sua
unidade baseada em algo externo. É o que mostra o exemplo a seguir: numa grande
cidade é comum o ajuntamento de pessoas em pontos de ônibus, mas cada uma
delas está só em meio ao amontoado que se aperta, por exemplo, para se proteger
da chuva. Embora pareçam unidas, na verdade não há nada interior que as
identifique; cada uma tem sua idade, opção sexual, raça, religião, classe social, etc.,
e todas essas características são por demais diferentes para que algo, exceto o
ônibus que esperam, as una. Há sem dúvida uma unidade, mas essa unidade, assim
como a reciprocidade, vem do exterior; trata-se do cotidiano, da relação mais comum
entre os homens em sociedade.
380
A serialidade é um tipo de relação que nega a reciprocidade; nesse tipo de
relação, o outro é coisificado e, na mesma medida, aquele que objetiva o outro é
também objetivado pelo outro; ora, não é justamente essa a estrutura relacional
entre os para-sis? Trata-se da alienação da liberdade à qual o homem em sociedade
está sujeito: ser objetivado e tomar a posição de um número que pode ser
simplesmente substituído sem que haja qualquer mudança. Embora pareça se tratar
de um grupo, essas pessoas “realizam na banalidade cotidiana a relação de solidão,
de reciprocidade e de unificação pelo exterior (e de massificação pelo exterior) que
caracteriza, por exemplo, os citadinos de uma grande cidade na medida em que se
encontram reunidos, sem serem integrados pelo trabalho, pela luta ou por qualquer
outra atividade, em um grupo organizado que lhes seja comum”.
381
Por isso, a
relação serial tem como referência o conceito de quantidade e não de qualidade.
Todos estão sós, e a solidão individual é vivida como negação da reciprocidade,
como objetivação e massificação sociais; ora, é justamente essa negação da
reciprocidade com o outro que faz com que haja a unidade, ainda que ela se dê pelo
exterior.
380
“Eis um agrupamento na Praça Saint-Germain; estão esperando o ônibus, no ponto, diante da
igreja. Aqui, considero a palavra agrupamento no sentido neutro: trata-se de um ajuntamento a
respeito do qual ainda não sei se é, como tal, o resultado inerte de atividades separadas, ou uma
realidade comum que dirige como tal os atos de cada um, ou uma organização convencional ou
contratual”. SARTRE, 2002, p. 361.
381
SARTRE, 2002, p. 362.
166
Nesse tipo de relação é o olhar do outro que faz sua presença, enquanto
outro para-si, ser notada: “isso significa que a solidão não arranca o indivíduo do
campo visual e prático do Outro, e se realiza objetivamente nesse campo”; eles
“formam um grupamento no sentido que têm um interesse comum, ou seja, na
medida em que, separados como indivíduos orgânicos, uma estrutura de seu ser
prático-inerte lhes é comum e os une do exterior”.
382
Assim, os indivíduos, cada qual
na sua solidão, fazem com que a negação da reciprocidade pela solidão seja
exatamente a causa de sua integração numa dada sociedade. Explicando melhor, é
exatamente isso que ocorre no exemplo do ponto de ônibus: entre aqueles que
esperam há negação recíproca de qualquer elo entre seus mundos particulares
(ontogênese privada, tal qual na ontologia), mas há um objeto exterior (ônibus) que
determina a ordem serial em que eles se encontram. É o ônibus, ser comum a todos
que o esperam, que produz uma série à qual cada um dos indivíduos está vinculado;
àquele que chegou primeiro e espera há mais tempo é concedido o número um da
série, assim como a todos os outros é atribuído um número; trata-se, pois, da
interpermutabilidade à qual está exposto o indivíduo na relação serial.
Cada homem, desse modo, existe em identidade com os outros, e em
unidade com o ser-outro; cada um é o mesmo que os outros na medida em que ele
é Outro e não si próprio. “Isso quer dizer que eles procuram diferenciar cada Outro
dos Outros sem nada acrescentar a seu caráter de Outro como única determinação
social de existência: portanto, a unidade serial como interesse comum impõe-se
como exigência e destrói toda oposição”.
383
Para chegar ao grupo seria preciso
superar a serialidade, ou seja, o grupo pode ser definido como uma luta constante
com a situação serial; Sartre não concebe o grupo como uma totalidade acabada,
mas sempre em construção, e a luta contra a serialidade (ou o perigo de retornar à
existência em série) é justamente o que impossibilita que o grupo se torne uma
totalidade.
384
A serialidade é uma relação na qual a reciprocidade existe, mas é uma
reciprocidade objetivante: a relação serial é justamente aquela pela qual todos
consideram o outro um objeto.
A serialidade é uma forma de impotência, e o grupo é resultante da negação
dessa impotência serial; até agora Sartre não descreveu, portanto, nenhum grupo,
382
SARTRE, 2002, p. 364.
383
SARTRE, 2002, p. 366.
384
SARTRE, 2002, pp. 380 ss.
167
mas apenas coletivos. “Um coletivo é, em si mesmo, uma espécie de modelo
reduzido do campo prático social e de todas as atividades passivas que aí se
exercem. Com efeito, ele constrói-se a partir da falsa reciprocidade do agente prático
e da matéria trabalhada (...)”.
385
Por isso, a reciprocidade que se consegue com a
superação da serialidade é superior, visto que ela exige que o outro seja
considerado tal como cada um considera a si mesmo; isso permite a unificação das
liberdades. Trata-se da reciprocidade positiva, isto é, cada um considera a todos os
demais, e é considerado por eles como liberdade.
386
O grupo se constitui pela superação da série, ele nasce justamente da fusão
da serialidade, o que equivale dizer, pela superação da alienação social da
liberdade. A série, por embasar-se na negação recíproca da liberdade, estabelece-
se como reciprocidade exterior; assim sendo, não pode ser considerada mais que
uma dispersão. O grupo, por basear-se numa relação de reciprocidade (liberdade
que eu sou), permite a fusão dessas liberdades e a dispersão se torna totalização.
“Na medida em que o grupo, pela unidade de sua práxis, os determina em sua
inércia, eles apreendem as finalidades e a unidade do grupo através da livre unidade
unificante da práxis individual deles (...)”.
387
A práxis do grupo é justamente a luta
contra a condição serial e a alienação, na medida em que o grupo apenas existe em
contraposição ao estado anterior de alienação serial; a práxis livre é justamente a
luta para não retornar ao estágio serial.
O diferencial que marca a passagem da serialidade ao grupo é a totalização,
mas essa jamais se efetiva; não há para Sartre algo que transcenda os indivíduos e
se constitua como o ser do grupo. Isso tanto mais é verdadeiro quanto esse Outro
está presente em cada um e em ninguém. O grupo não vai além de um
desenvolvimento constante que nunca alcança sua totalidade, ou seja, ele está
sempre em movimento, é uma práxis comum pela qual seus componentes, nas suas
relações com os demais, agem sobre o grupo e sobre cada um. Numa palavra, o
grupo é práxis, existe como ato e não como ser.
388
385
SARTRE, 2002, p. 408.
386
O tipo de existência serial reedita a execução de papéis presente em Saint Genet; a superação da
serialidade, por sua vez, exige o engajamento livre e autônomo, conforme em A libertação de Paris,
analisada na Parte I, A LIBERDADE NA HISTÓRIA. Mas é preciso deixar claro que o reconhecimento
do outro enquanto liberdade, que se dá no grupo em fusão, está londe daquilo que Sartre sugere
como sendo o Reino da liberdade.
387
SARTRE, 2002, p. 449.
388
Conforme o exemplo da Insurreição de Paris, desenvolvido em seus detalhes. SARTRE, 2002, pp.
353-462.
168
A gênese do grupo é, pois, a negação da serialidade, o que estabelece um
vínculo de reciprocidade interna que supera a alienação do estágio serial. A
passagem da serialidade ao grupo se dá por um processo dialético que, segundo
Sartre por questões didáticas, será apresentado em cinco momentos: fusão,
juramento, organização, fraternidade terror e instituição. Embora essa delimitação
possa criar certa perspectiva estrutural e linear, vale lembrar que se trata de um
recurso didático e que a relação é circular e comporta contradições; ainda que seja
aplicável ao modelo histórico real, o objetivo principal não é apresentar esse modelo,
mas antes, a gênese ideal do grupo. E ainda, o perigo da dissolução do grupo numa
nova série está sempre à espreita, amenizando o caráter de totalidade, e
reafirmando a tese de que o grupo não é mais que totalização em ato.
Inicialmente, o grupo nasce contra a serialidade, pois para que haja grupo é
preciso que as várias existências seriais se unam em vista de algo comum; assim, “a
unidade só poderá aparecer como realidade onipresente de uma serialidade em via
de liquidação total se ela afetar cada um nas relações de terceiro que ele mantém
com os Outros; aliás, tais relações constituem uma das estruturas de sua existência
em liberdade”.
389
Isso pode ocorrer devido a um fator externo (o perigo ou a
escassez, por exemplo), embora o vínculo que se crie seja interno. A práxis livre
surge como uma resposta comum a um perigo imediato, mas ela exige que seja
criada uma relação de interioridade entre os vários indivíduos e, para tal, o modelo
serial (o outro é um objeto) deve ser superado. Nesse sentido, o momento de fusão
é também um momento de tomada de consciência não só do objeto comum a ser
superado, mas também e principalmente, da interdependência existente entre os
indivíduos. Cada homem se percebe como liberdade e percebe, na contrapartida, a
liberdade do outro.
A situação serial pode ser definida como inerte, pois cada indivíduo está só
com suas ocupações; no máximo, está unido aos outros por um objeto externo.
Nesse panorama não há mais que uma relação quantitativa, na qual cada homem
ocupa um número e pode ser substituído. A fusão, que faz nascer o grupo, cria uma
relação qualitativa na medida em que cada um se torna, para os demais, alguém
com o qual é necessário contar. É fato que o primeiro movimento (escassez, ponto
de aproximação com o marxismo) é devido a uma causa externa e o segundo é
389
SARTRE, 2002, p. 467.
169
individual (tomada de consciência); mas a partir daí gera-se o grupo em fusão
porque há um objetivo a ser alcançado (mudar a situação de perigo) e, para isso,
será preciso uma ação comum. “Fica bem claro que, aqui, não se trata de
cooperação, solidariedade ou de alguma das formas de organização racional que
estariam baseadas nessa primeira comunidade. A estrutura original do grupo vem do
fato que a livre práxis individual pode objetivar-se por cada um, através da
circunstância totalizante e no objeto totalizado, como livre práxis comum”.
390
O
objetivo de todos, que é almejado (práxis grupal) promove a fusão das
individualidade e, assim, tem-se o grupo.
Além da passagem da relação quantitativa para a qualitativa, há uma outra
mudança fundamental na passagem da serialidade ao grupo em fusão: a relação
deixa de ser binária (eu/tu) e passa a ser ternária. No estágio serial, as relações se
pautam pela duplicidade, ou seja, por ser considerado um objeto, a relação com o
outro será sempre individual e sem mediação. Melhor, há mediação, mas essa é
externa, conforme o exemplo do ônibus. A superação da serialidade e a fusão das
individualidades em vista de um objetivo comum fazem com que o indivíduo seja o
grupo sendo si mesmo. “Tal integração é real (e tornar-se-á tanto mais real, como
veremos, quanto mais diferenciado se tornar o grupo). E é realmente o todo
constituinte que realiza a unificação prática pela palavra de ordem. No limite, o
terceiro regulador nem chega a aparecer: são as palavras de ordem que
circulam”.
391
Cada componente do grupo é o grupo, assim como o grupo também
está presente em cada indivíduo; o partícipe de um grupo em fusão é mediador e
mediado.
Essa situação nova, pela qual surge um novo termo na antiga relação eu/tu
da serialidade, faz com que a relação entre os indivíduos, antes gerida pela relação
de exterioridade, seja agora mediada e interior. A mediação, bem entendido, passa
de um objeto externo para a mediação que é o próprio grupo; isso possibilita que a
reciprocidade negativa (outro como um objeto) seja transmutada em reciprocidade
positiva (outro como eu mesmo). Mais ainda, a relação como o outro deixa de ser
objetivante e passa a ser de reconhecimento: cada um se reconhece no outro como
um ser livre. A unificação das liberdades produz o reconhecimento do outro não
390
SARTRE, 2002, p. 493.
391
Paralelo ao Outro que se institui com a reciprocidade negativa, de Saint Genet. (Parte I, 2 Genet –
eu é um outro). SARTRE, 2002, p. 479.
170
mais como um objeto ou um ser idêntico a todos os outros, e sim como uma
liberdade: “Mas, contra o perigo comum, a liberdade escapa da alienação e afirma-
se como eficácia comum. Ora, é precisamente essa característica da liberdade que
faz surgir em cada terceiro a apreensão do Outro (do antigo Outro) como o mesmo:
a liberdade é, ao mesmo tempo, minha singularidade e minha ubiqüidade. No outro,
que age comigo, minha liberdade não pode ser reconhecida a não ser como a
mesma (...)”.
392
Sartre considera que todas as relações humanas são, essencialmente,
recíprocas. A reciprocidade, no entanto, permite que um homem reconheça os
demais como objetos (reciprocidade negativa); a relação ternária, por sua vez, não
exclui a reciprocidade, mas permite que a relação com o outro seja sempre pautada
por um mediador. Uma vez constituído o grupo, as relações serão sempre ternárias,
pois entre o indivíduo e o grupo haverá sempre um terceiro; outro tanto pode ser dito
das relações entre os indivíduos, pois, haverá sempre um mediador, e qualquer um
dos indivíduos pode mediar.
393
Noutros termos, a relação de cada indivíduo no grupo
sempre passa por um terceiro, seja ele um componente individual do grupo, seja ele
o próprio grupo (os papéis se confundem, na medida em que o outro é o grupo, e o
grupo apenas aparece pelo outro). E porque cada indivíduo é uma terceira pessoa
(também media a relação do grupo consigo e com outros), a revelação do grupo
deverá sempre passar pela mediação desse terceiro. É essa característica do grupo
que faz com que ele esteja em toda parte, em cada um de seus componentes e, ao
mesmo tempo, acima deles individualmente; a isso Sartre chama a ubiqüidade do
grupo. E porque está em toda parte, o grupo dilui a distância que possa haver entre
seus componentes, fazendo desaparecer a figura do outro objetivado. Na práxis do
grupo em fusão cada um realiza tudo, individualmente, por todos; isso quer dizer que
cada ato, ainda que realizado por um indivíduo, vale para todos do grupo.
Cada síntese que qualquer indivíduo realize é uma síntese do grupo, uma vez
que está unida a todas as demais sínteses do grupo; cada síntese é interior a cada
um dos componentes porque é uma síntese de todos. Esse é o diferencial que faz
com que se trate de um grupo (e não de um ajuntamento, como a serialidade), pois
a unidade vem de dentro, vem da práxis comum. “A práxis comum é dialética desde
392
SARTRE, 2002, p. 499.
393
“A inteligibilidade do grupo em fusão repousa, portanto, no conjunto complexo de uma designação
negativa de sua comunidade reatualizada na negação dessa negação, ou seja, na livre constituição
da práxis individual em práxis comum”. SARTRE, 2002, p. 501.
171
o plano mais elementar (o do grupo em fusão): ela totaliza o objeto, persegue um
objetivo total, unifica o campo prático-inerte e dissolve-o na síntese do campo prático
comum”.
394
E essa descrição não se pretende mistificadora, mas, pelo contrário,
mostra que a circularidade no grupo em fusão é uma ação livre e real de seus
componentes; por isso ela se encontra em toda parte, embora resulte de uma
atividade individual. Ainda, é por isso que as sínteses individuais compõem uma
totalização em andamento que, se é incapaz de compor uma totalidade, tem a
imensa vantagem de jamais se estagnar.
Nesse sentido, é possível entender o porquê de Sartre insistir que o grupo
não é um ser: por se tratar de um ato, a unidade do grupo não tem bases
ontológicas. A unidade de um grupo apenas pode se efetivar numa prática grupal,
sendo o grupo exatamente a unidade das ações que, individuais, são assumidas
imediata e diretamente pelo grupo. Trata-se de uma relação sintética que une os
homens, seja num ato, seja para um ato; a decisão de cada um é a decisão de
todos, e isso não significa uma união substancial, pois ela se deve a um ato, a uma
prática; consiste na união das liberdades individuais que compõem uma liberdade
única que reage a uma ameaça, ou, nos termos utilizados por Sartre, uma liberdade
comum que se opõe à necessidade; note-se, é a cessão da liberdade individual (no
mesmo ato de apropriação de todas as liberdades) que permite ao grupo se
estruturar e se manter.
Voltando ao exemplo dos indivíduos na fila do ônibus, não há nada que os
una do interior, mas sim um objeto que cada um espera; o projeto individual pode
ser o mais variado possível, e a estada no ponto apenas se justifica em função
desse projeto. A mesma situação, numa relação de grupo em fusão, subverte
completamente o quadro: no exemplo de vinte pessoas que esperam o ônibus, elas
não ocupam mais apenas uma posição numérica. No grupo em fusão a relação
quantitativa transmuta-se em qualitativa, e o vigésimo, por exemplo, ocupa também
o primeiro lugar e todos os outros dezoito; desse modo, é lícito dizer também que o
vigésimo não ocupa lugar nenhum na fila, mas ele é a fila enquanto grupo. “Pela
imanência do grupo, ele [outro] não é o Outro nem o Idêntico (meu idêntico): mas
vem ao grupo como eu venho; ele é o mesmo que eu”.
395
Na situação serial ele
394
SARTRE, 2002, p. 505.
395
Note-se mais uma vez a diferença entre o grupo em fusão e a utopia da liberdade. SARTRE, 2002,
p. 476.
172
poderia ser retirado ou substituído, e ainda assim tratar-se-ia de uma fila com vinte
ou dezenove pessoas; em se tratando de um grupo, a retirada do vigésimo faria com
que o grupo ruísse: ele, por sua posição ocupada no grupo, faz individualmente a
síntese de todos e, por isso, o grupo é uma totalização.
Enfim, pode-se resumir as características do grupo em fusão: trata-se de
negação do ajuntamento que o precede (serialidade), embora a serialidade seja
sempre um risco; encontra-se na passagem da quantidade para a qualidade, ou
seja, o indivíduo não é mais unicamente um número que compõe uma série, mas um
partícipe atuante que promove a síntese e permite a totalização que é o grupo; cada
ação individual não pode mais ser isolada do grupo, uma vez que é uma ação do
grupo e, por isso, é da responsabilidade de todos; representa um tipo de relação
ternária, que supera a binariedade da série; trata-se, por fim, de uma totalização em
ato e não de um ser. Desse modo, a possibilidade de retorno ao estágio anterior é
uma ameaça constante.
396
Ainda que o grupo em fusão apresente certa homogeneidade, principalmente
expressa pela solidariedade de todos por qualquer atitude individual, há o risco de
que ele se desfaça; isso seria um retorno ao estágio anterior, à série. Frente ao risco
iminente desse refluxo é necessário ao grupo fazer um juramento; tal juramento se
caracteriza pelo comprometimento de cada liberdade individual de permanecer no
grupo. Trata-se, pois, de um ato individual e livre que, contrariamente, visa reprimir a
liberdade individual; o juramento age contra a liberdade, ou melhor, contra o risco da
liberdade. “Quando a liberdade faz-se práxis comum para servir de fundamento à
permanência do grupo, produzindo por si mesma e na reciprocidade mediada sua
própria inércia, esse novo estatuto chama-se juramento.”
397
Uma vez constituído o grupo, estabelece-se uma práxis comum, e para
manter essa práxis torna-se necessário um instrumento que iniba sua dissolução;
assim, o juramento funciona como um compromisso individual com a manutenção do
grupo e, na mesma medida, um compromisso do grupo por sua manutenção. “O
juramento não é uma determinação subjetiva, nem uma simples determinação do
discurso, mas uma modificação real do grupo por minha ação reguladora”; assim “a
396
“Com efeito, mostramos que a unidade do grupo é imanente à multiplicidade das sínteses, das
quais cada uma é práxis individual, e insistimos sobre o fato de que tal unidade nunca é a de uma
totalidade feita, mas a de uma totalização que se faz por todos e por toda parte”. SARTRE, 2002, p.
506. (Conforme o exemplo da tomada da Bastilha, desenvolvido na Crítica, pp. 495 ss).
397
SARTRE, 2002, p. 514.
173
garantia de permanência fornecida pelo juramento dos Outros produz-se em mim
como impossibilidade objetiva (na interioridade) de que a alteridade me venha de
fora; mas, ao mesmo tempo, é minha própria possibilidade de transformar-me em
Outro (de trair, fugir, etc.) que é colocada em evidência como futuro possível vindo
de mim para os Outros”.
398
Sartre se refere a essa situação como uma ditadura do
mesmo em cada um, ou uma resistência do grupo à ação isolada ou organizada de
ruptura e separação. É desse modo que o grupo busca uma garantia de futuro, a fim
de perpetuar-se ante a serialidade que constantemente o ameaça; o grupo se
estrutura na fraternidade de seus componentes.
É justamente a liberdade que promove a falta de mudança no seio do grupo,
ou seja, a liberdade se institui como permanência, como um instrumento que age
contra a serialidade. Não há nada material que mantenha a união dos partícipes de
um grupo, e mesmo a ameaça de recuo à serialidade não pode ser considerada um
perigo real que justifique a permanência; ainda assim, jura-se contra o risco de
liberdade individual, jura-se contra a autonomia de cada um em vista da força que a
união das liberdades exerce. Daí que no grupo em fusão “o terceiro nunca é Outro:
ele produz sua ação no objeto como condição objetiva de minha própria ação ou,
pela mediação do grupo, sua livre práxis em seu desenvolvimento real e vivo
condiciona a minha enquanto é a mesma (ou seja, livre desenvolvimento dialético) e
enquanto é condicionada por ela”.
399
Por ser contraditória, essa estrutura explica
porque é possível a ação comum do grupo sobre o indivíduo: nalguma medida, uma
vez que ele participa do grupo, é sua própria liberdade que age contra ele ou, o que
seria o mesmo, a favor dele e contra os demais.
O juramento estabelece um poder que não pode jamais se estagnar, haja
vista que ele é exercido por cada um dos componentes do grupo sobre todos e, do
mesmo modo, de todos sobre cada um. Simetricamente, assim como o indivíduo tem
poder sobre a liberdade dos demais, eles têm poder sobre sua liberdade; essa
interdependência permite que o grupo se perpetue. É assim que se dá a passagem
do primeiro para o terceiro estágio de constituição do grupo: do grupo em fusão,
passando pelo grupo de sobrevivência, até o grupo juramentado. Por isso, convém
definir juramento como “a liberdade de cada um que garante a segurança de todos
398
SARTRE, 2002, p. 517.
399
SARTRE, 2002, p. 519.
174
para que, como sua liberdade outra, essa segurança volte a fundamentar em cada
um, na qualidade de insuperável exigência, sua livre pertinência prática ao grupo”.
400
Em resumo, o grupo em fusão, tal qual a serialidade, surge graças a um
objeto externo, com a diferença que, no caso do grupo, o objeto faz com que haja
um tipo de relação interna entre as liberdades; essa relação, produzida por uma
ameaça externa, no entanto, pode ser desfeita a qualquer momento, bastando, que
ela se dissipe; esse é o grupo de sobrevivência. O grupo juramentado, por sua vez,
não está sujeito a sucumbir pelo fim da ameaça porque o que garante sua coesão
não é mais um objeto externo nem alguma ameaça real, mas o juramento. O
juramento significa a passagem do grupo de sobrevivência, que tem seu aporte
numa ameaça externa e real, para o grupo juramentado, que não carece mais de
uma ameaça ou de um objeto, mas se sustenta frente ao risco de dissolução de
forma reflexiva: o juramento garante a permanência do grupo pelo reconhecimento
de que é mais seguro existir em grupo, doando sua liberdade e tendo, em
contrapartida, um determinado grau de domínio sobre a liberdade dos demais.
Porém, se é fácil supor uma razão para que a serialidade seja superada e, no
lugar dela seja estruturado o grupo em fusão, o mesmo não se dá com o grupo
juramentado. A origem do juramento é o medo (do terceiro e de mim próprio), mas
na ausência de um perigo iminente, que justifique ceder a liberdade individual em
vista de um maior poder organizativo, a única alternativa que resta ao grupo é
objetivar a si mesmo enquanto grupo organizado. Não há uma ameaça real ou um
perigo iminente que justifique a permanência no grupo, mas esse perigo pode ser
futuro ou, simplesmente, um risco. A possibilidade de risco faz com que certa
ansiedade tome conta dos indivíduos e esses, ante a possibilidade de ameaça à sua
existência, jurem permanecer no grupo. Assim, “esse medo, como livre produto do
grupo e como ação coercitiva da liberdade contra a dissolução serial, já é nosso
conhecido, já o vimos aparecer durante um instante no decorrer da ação: é o Terror.
(...) O fim continua sendo o mesmo: salvar o interesse comum. Mas na ausência de
qualquer pressão material, o grupo deve reproduzir-se a si mesmo como pressão
sobre seus membros”.
401
Mais uma vez, Sartre mostra a interiorização da estrutura do grupo, ou seja,
assim como antes se tratava de uma ameaça exterior e real que provocou a
400
SARTRE, 2002, p. 523.
401
SARTRE, 2002, p. 525.
175
superação da serialidade em vista do grupo em fusão (o que exige que cada um
reconheça e seja reconhecido como liberdade), agora a ameaça passa a ser interna;
o temor não provém do exterior, mas do interior do grupo juramentado, ou seja,
trata-se de um temor reflexivo. Enfim, uma vez desfeito o perigo real que ameaça a
permanência do indivíduo no estado serial e faz com que o indivíduo abra mão de
sua liberdade em favor do grupo, surge um novo perigo, agora interno, fazendo-o
permanecer no grupo e permitindo que o grupo perpetue; “Assim, a inteligibilidade
do juramento vem do fato de ter sido redescoberta e da afirmação da violência como
estrutura difusa do grupo em fusão e do fato de tê-la transformado reflexivamente
em estrutura estatutária das relações comuns”.
402
A condição necessária para a permanência do grupo é justamente o temor; a
possibilidade de um perigo externo não é suficiente para que o grupo não se desfaça
em serialidade. A substituição de um perigo real por um perigo reflexivo produz outro
tipo de medo: trata-se agora do medo que é livremente produzido pela liberdade, do
medo que é produzido pelo grupo contra sua dissolução numa nova serialidade. E
se Sartre chamou de fraternidade a cessão comum da liberdade em vista da
manutenção individual frente a um perigo real, ele nomeará o perigo que é instituído
pela liberdade como meio de manutenção do grupo de Terror.
403
O juramento é feito
como uma imposição do grupo a si mesmo em vista de sua manutenção frente à
constante ameaça de diluir-se, de voltar à serialidade; a transcendência está
presente no grupo juramentado como o direito de todos sobre cada um, e feito o
juramento, o grupo passa ter a si mesmo como meta. “As estruturas de liberdade e
reciprocidade que já tínhamos descoberto, longe de desaparecerem, adquirem todo
seu sentido quando se manifestam no movimento prático e material do Terror. (...)
Se a pressão aumentar, a mesma relação revelar-se-á em sua estrutura
fundamental: consenti livremente na liquidação de minha pessoa como livre práxis
constituinte e esse livre consentimento volta para mim como livre primazia da
liberdade do outro sobre minha liberdade”.
404
Assim, se inicialmente o homem buscava sua própria manutenção, uma vez
no grupo juramentado, o grupo passa a ter como objetivo imediato sua organização.
Ora, o grupo apenas pode se manter fazendo-se continuamente; trata-se de auto-
402
SARTRE, 2002, p. 526.
403
Conforme a análise de O Fantasma de Stálin, Parte I, 3 O indivíduo e a sociedade.
404
SARTRE, 2002, pp. 527-528.
176
criação permanente que busca a organização do grupo tendo como fim último sua
cristalização (totalidade). “A palavra ‘organização’ designa a ação interna pela qual
um grupo define suas estruturas e, ao mesmo tempo, o próprio grupo como
atividade estruturada que se exercita no campo prático sobre a matéria trabalhada
ou sobre outros grupos”.
405
Nesse estágio não há mais o indivíduo orgânico que,
antes, vivia solitário na serialidade; não é mais possível perpetuar a reciprocidade
objetivante devido à cessão que o indivíduo (da mesma forma que todos os demais)
fez de sua liberdade em favor do indivíduo comum (Outro).
Quando ainda estava no grupo em fusão, cada indivíduo, por intermédio de
uma terceira pessoa ou do grupo, interiorizava a multiplicidade sendo, ele próprio,
uma terceira pessoa na relação com os demais; uma vez feito o juramento, o grupo
busca sua organização, e o indivíduo se perde para que o grupo subsista. A
organização é a atribuição de funções, “a função é uma definição positiva do
indivíduo comum: foi-lhe atribuída pelo grupo reunido, ou por algum ‘órgão’ já
diferenciado”.
406
Frente à organização, que divide as tarefas e estabelece um
quadro de funções atribuíveis a todos seus componentes, o indivíduo cede lugar à
tarefa que lhe foi confiada: sua função (e não mais sua organicidade) é sua
determinação positiva no grupo. É porque executa determinada tarefa, e apenas por
isso, que o indivíduo pertence ao grupo, e a tarefa que lhe é confiada determina sua
práxis individual.
407
Isso estabelece uma situação interessante, na medida em que
cada indivíduo, livre, não é mais significado por sua liberdade, mas, longe disso, se
resume a uma tarefa a cumprir. Cada indivíduo está imbuído de uma função, e
aquilo que faz apenas tem sentido em vista da tarefa que ele exerce no conjunto;
esse é o resultado da cessão da liberdade individual em função do grupo, que se dá
pelo juramento. A organização, em vista de um objetivo comum, faz com que os atos
individuais apenas tenham sentido num plano maior, aquele que foi projetado pela
organização do grupo (conforme o exemplo de uma equipe de futebol).
408
405
SARTRE, 2002, p. 539.
406
SARTRE, 2002, p. 542.
407
Conforme Parte I, 2 Genet – eu é um outro.
408
“Nesse time de futebol em formação, a função do goleiro ou de dianteiro, etc., apresenta-se como
predeterminação para esse jovem jogador que está iniciando sua carreira. É uma dessas funções que
há de recrutá-lo: ela há de selecioná-lo levando em consideração suas qualidades físicas (...): mas na
medida em que ela o designa em sua livre práxis, ou seja, em que ela cria uma determinação de
inércia no fundo de sua liberdade, ela já é poder; ele a vive como exigência: por exemplo, exigênica
de treinamento”. SARTRE, 2002, pp. 543 ss.
177
Há uma interdependência interna entre as funções estabelecidas, pois uma
delas pressupõe a organização das demais; seria, então, a completa determinação e
subsunção da liberdade? Não. A função e a determinação de papéis no interior do
grupo em vista de um objetivo comum não eliminam a criatividade ou a práxis
individual. Sartre afirma que a função não é uma simples determinação, que exonera
o sujeito de toda responsabilidade; a função é uma determinação indeterminada, ou
seja, ela apenas se determina quando o indivíduo livremente age em função do
objetivo comum, isto é, em função do grupo. Trata-se de um movimento dialético: na
medida em que o indivíduo age, o grupo se estrutura e, por sua vez, essa
estruturação age sobre o indivíduo. A práxis do grupo é, não há dúvida, uma ação
organizada, mas também a organização se dá pela práxis individual; desse modo, o
indivíduo age sobre a organização do grupo na mesma medida em que ele é
determinado pela organização.
A ação do grupo sobre seu objeto se efetiva na ação que ele exerce sobre si
mesmo, ou seja, sobre os indivíduos que o compõe. “A ação é um irredutível: não
será possível compreendê-la se não forem conhecidas as regras do jogo (...), mas
não será possível, de modo algum, reduzi-la a tais regras”.
409
Por exemplo, ao agir
sobre si, o grupo busca se organizar, e a maneira encontrada para isso é justamente
o estabelecimento de funções para seus componentes; isso significa que o grupo
apenas pode agir sobre si e que tal ação implica dirigir, definir, controlar e corrigir a
práxis comum. O grupo apenas age na medida em que ele se organiza e reorganiza
constantemente, e a maneira de sua organização requer o estabelecimento de
funções diferenciadas. Noutras palavras, a ação do grupo sobre si mesmo gera a
divisão de tarefas e, para tanto, são necessários órgãos específicos para exercer
essa função (diretores, coordenadores, administradores, etc.); está criado o
problema da divisão interna no grupo.
410
Ainda que essa descrição ideal da gênese do grupo seja dialética, há uma
estrutura que falta explicar: o motor que faz o grupo se mover e se trabalhar, tendo a
si mesmo como objetivo final. A origem do grupo se explica pela ameaça externa
409
SARTRE, 2002, p. 549.
410
“Ora, essa relação já não é a simples relação indeterminada de cada um com cada um, com todos
e por todos: mas, antes de tudo, uma certa reciprocidade que une um X a um Y (ou vários Y); a
mediação é operada pelo grupo inteiro como totalização em andamento (e não como conjunto de
unidades), ou seja, como práxis comum que estabelece as próprias leis; e é por intermédio de novas
reciprocidades – que, dessa vez, unem os Y a vários M e, por esses M, a vários N, etc". SARTRE,
2002, p. 559.
178
(escassez), e a diferença com a serialiade fica clara com a descrição do tipo de
reciprocidade interna que se estabelece. A passagem ao grupo organizado, pensada
a partir do juramento e do estabelecimento de funções que são obedecidas por
medo, está clara; mas o que faz com que o grupo se trabalhe continuamente? Foi
dito que a unidade do grupo é fática e, jamais, ontológica. O sentido profundo do
trabalho do grupo sobre si mesmo é a busca incessante (e impossível de ser
satisfeita) de produzir sua unidade ontológica.
Dito dessa maneira parece que Sartre não consegue ultrapassar o plano
ideal; mas há uma outra razão para que o grupo se trabalhe: a busca pela unidade
prática de seus componentes em vista de um fim determinado. São dois os aspectos
que fazem com que o grupo sempre se mova e se trabalhe, um de origem ontológica
(a busca pela unidade total) e outro de origem prática (um fim determinado). Esse
duplo aspecto do grupo é justamente a razão para que a ação organizada sempre se
apresente sob duas espécies, sendo a primeira a atividade dialética como
imanência, e a segunda, a atividade dialética como ultrapassagem prática do grupo.
Os dois planos de ação e organização do grupo são, portanto, o interno
(organização, reorganização, autodiferenciação, etc.) e o externo (produção, lutas,
conquistas, revoluções, etc.).
O objetivo prático do grupo pode ser o mais variado, dependendo da
circunstância ou da situação; porém, sua raiz ontológica é única, e seu objetivo
maior (alcançar sua unidade definitiva) exige que o grupo estabeleça mecanismos
que não permitam sua dissolução. O fato do grupo se organizar, que seria um passo
dado rumo à sua unidade definitiva, ameniza o Terror exercido sobre o indivíduo,
mas de maneira alguma o elimina, afinal, o grupo jamais atinge sua unidade
ontológica. A passagem do grupo em fusão para o estado de grupo juramentado
apenas confere a prerrogativa de permanência de todos os indivíduos no grupo sem,
com isso, dar um passo rumo à sua unificação ontológica; o trabalho do grupo sobre
si mesmo, engendrando mecanismos que estabeleçam funções determinadas acaba
por gerar mais divisões internas, e não leva o grupo rumo à unidade almejada.
O grupo se organiza, primeiramente, pela fraternidade, ou seja, no período de
grupo em fusão há necessidade de permanência e esta se efetiva fraternalmente.
Até esse ponto, as obrigações são recíprocas e definidas para cada um dos
componentes do grupo em vista de um objetivo comum; trata-se de um laço real que
une os indivíduos na medida em que cada um deles vive o ser liberdade do outro, o
179
que estabelece o direito de cada um sobre todos e vice-versa. Entretanto, uma vez
cumprido o objetivo inicial do grupo (rechaçar uma ameaça externa e real, a
escassez, por exemplo), não haveria mais razão para sua continuidade. O temor de
uma nova ameaça (irreal) faz com que o grupo, agora por medo de um perigo
possível, jure manter seus laços de unidade a despeito do indivíduo; trata-se do
Terror, ameaça interna e reflexiva, medo de ser exterminado pelo próprio grupo do
qual se participa.
411
É assim que o grupo pode agir sobre o indivíduo, uma vez que pela
fraternidade-terror ele controla as alternativas de fuga e qualquer tentativa de não
participação. Nesse panorama surgem as figuras dos traidores, sendo sua traição o
desejo de ausentar-se do grupo; no mesmo sentido são determinados os opositores,
uma vez que esses obliteram o objetivo principal do grupo de se manter. Assim, não
se trata de uma minoria que toma o poder e age negativamente com relação a um
indivíduo ou a uma parcela do grupo, mas do grupo agindo contra si mesmo; tanto a
solidariedade quanto a violência são comuns, vividas solidariamente por cada
componente do grupo, inclusive por aquele que a sofre.
412
A fraternidade-terror é assim denominada porque ao mesmo tempo em que o
terror é exercido, por exemplo, contra um traidor, ele é também laço de fraternidade
entre os linchadores; devido à ausência (ou arrefecimento) de um perigo real,
constitui-se um perigo possível no interior do grupo, seja na ação contra o indivíduo
(o linchamento pode ocorrer contra qualquer um), seja no perigo para a coletividade
de dissolução do grupo. Na díade fraternidade-terror, o terror exerce justamente o
papel da ameaça externa, primeiro estímulo responsável pelo nascimento do grupo;
e a violência, antes dirigida para o exterior, para a ameaça externa que colocava o
indivíduo em perigo, é agora dirigida para o interior, para o indivíduo que coloca o
grupo em risco; a violência é uma maneira do grupo se trabalhar.
411
“A partir daí, a operação já não pertence ao terceiro regulador, do mesmo modo que a tomada da
bastilha não é obra do primeiro que gritou: ‘Corramos para a Bastilha!’ Ela faz-se para cada um sob
um triplo aspecto: encadeamento prático de evidências abstratas (...); liquidação, pelo
remanejamento totalizador, de seu separatismo ideológico; realização do campo prático comum por
ele, em torno dele e por todos em uma operação nova e rigorosa. Essa liquidação construtiva faz-se
através das três Ek-stases temporais: passado e futuro determinam-se reciprocamente, e o presente
prático, já iluminado por uma compreensão global (...), produz-se como determinação regressiva das
mediações que unem esse futuro ao passado. A partir daí, pode-se dizer que a operação efetuou-se
por toda parte. SARTRE, 2002, pp. 620 ss.
412
Projeto da traição almejada por Genet. SARTRE, 2002a, p. 191.
180
Percebe-se assim que, uma vez instituído o grupo, sua palavra de ordem
será sempre a manutenção de sua unidade parcial em vista da impossível unidade
ontológica; seu trabalho sobre si mesmo jamais acaba, e sempre serão constituídos
novos mecanismos e novas práticas visando sua unidade. É assim que a função de
cada indivíduo se transmuta num mecanismo coercitivo que visa manter a unidade,
tornando os mecanismos cada vez mais complexos, levando à institucionalização
tanto da função quanto da organização do poder. Essa passagem para o último
estágio do grupo cria a instituição como substituta do indivíduo comum, e
institucionaliza-se, assim, a fraternidade-terror e a soberania, permitindo que as
funções e esquemas organizacionais se cristalizem. Essa é a primeira forma de
sociedade, superando de vez qualquer possibilidade de retorno à serialidade anterior
ao grupo.
O processo de transformação do grupo chega, enfim, ao seu mais alto grau
com a institucionalização; é verdade que não se trata de um salto, ou de um
processo particular, mas a instituição resulta da práxis do grupo que, a essa altura,
não se confunde mais com a práxis individual. Porém, o mais alto estágio de
desenvolvimento do grupo, que tem por objetivo banir o risco da serialidade, cria
uma nova serialidade: ela surge no âmago da unidade porque a organização se
torna uma instituição e adquire um caráter ontológico que, longe de alcançar o
objetivo proposto (unidade ontológica do grupo), institucionaliza o indivíduo. A
reciprocidade, antes mediada por qualquer terceiro sendo cada indivíduo um
terceiro, é agora mediada por órgãos institucionalizados, o que coíbe a
espontaneidade da organização.
Desse modo, com a passagem dialética da organização à instituição, aparece
um novo tipo de inércia no seio do grupo. O resultado é que o inorgânico intensifica
sua luta, dentro do grupo, contra a dissolução e a dispersão, contra a serialidade; a
disputa entre seres inorgânicos instaura um novo cenário, inteiramente distinto do
inicial. Se a instituição não teria condições de se petrificar pela práxis comum, ela o
faz pelo desejo do grupo de se manter unido, pelo desejo de afastar de vez o perigo
reflexivo (Terror). Entretanto, a manutenção do grupo não permitiria, de qualquer
modo, que ele se tornasse uma instituição, o que faz Sartre buscar noutro lugar sua
origem: no renascimento da serialidade.
A passagem da serialidade ao grupo em fusão exige uma mudança qualitativa
no tipo de relação entre os indivíduos; a passagem dialética da organização à
181
instituição, por sua vez, cria um novo estatuto ontológico para o grupo, que não pode
mais ser considerado uma práxis, haja vista que se petrificou, e também não pode
ser considerado simplesmente coisa, afinal, a unidade ontológica total é inatingível.
O que se tem com a institucionalização é uma serialidade mediada pela instituição.
Os indivíduos estão, novamente, sós, mas suas relações não são mais como antes
da institucionalização do grupo, pois, nesse estágio suas relações serão todo o
tempo mediadas pela organização e pela estrutura instituídas. “O grupo como objeto
e como sujeito da dialética constituída produz-se em uma inteligibilidade plenária,
uma vez que é possível apreender como cada determinação em inércia se
transforma, nele e por ele, em contrafinalidade ou em contra-estrutura”.
413
Em resumo, a instituição vem suplantar a organização do grupo, e sua
maneira de resguardar-se da serialidade nascente é o estabelecimento de leis; pela
lei a instituição concede poderes e, graças ao poder, garante sua manutenção. Feito
isso, a práxis individual torna-se impotente ante a práxis petrificada que é o grupo
instituído; do mesmo modo, todas as relações humanas passam a ser
regulamentadas pela prática isolada da instituição. Uma vez que todos estão na
mesma condição de impotência serial, cria-se a figura do soberano, ou seja, daquele
que será o organismo incumbido de gerir o poder e mediar, em última instância, as
relações entre os indivíduos; o poder vai, desse modo, repousar na inércia da
instituição e produz a impotência individual.
A mudança fundamental que ocorre entre o grupo em fusão e o grupo
instituído é, pois, mais uma vez qualitativa. Na passagem do grupo de sobrevivência
ao grupo juramentado, Sartre mostra que em vista da organização comum do grupo
são criadas as funções; essas funções, no entanto, tornam-se, pela ação da
instituição, obrigações. Na mesma medida em que as relações individuais se tornam
mais complexas, mais complexas são as respostas estruturais do poder instituído.
Surgem assim os vários postos de comando, as diversas obrigações e um sem
número de conflitos. Ao invés da vida e espontaneidade do grupo em fusão, reina a
tirania das regras e da burocracia.
Por fim, essa mesma estrutura se instaura nas relações humanas: também
estas se petrificam. O grupo institucionalizado se cristaliza e seus partícipes ficam,
tal qual na serialidade, isolados; uma vez que eles cederam sua liberdade para
413
SARTRE, 2002, p. 643.
182
controlar a dos demais e, com a junção dessas liberdades, houve a
institucionalização do grupo, não há outra saída senão obedecer às regras ditadas
pela instituição. Na ausência da liberdade, as pessoas coexistem isoladas e
incapazes de se comunicar ou de formar novos grupos; pior ainda, elas nem mesmo
conhecem as regras que as regem, o que significa um retorno ainda mais pobre ao
estado de alienação da serialidade. É isso que nos mostra a análise cotidiana e
concreta da sociedade constituída a partir de um eu já situado. Mas onde estão as
razões desse aparente malogro?
414
Sartre mostra que, partindo de sua ontologia, é sim possível chegar à
sociedade constituída; contraria, portanto, aqueles que entendem o ser-para-outro
como a total e inapelável solidão ontológica. Porém, a descrição da gênese do grupo
acaba levando, de modo circular, novamente à serialidade e à conseqüente
impotência do para-si; mas não faz mais sentido colocar a questão do solipsismo,
pois se cada homem continua vivendo em seu mundo particular e continua tendo, no
olhar objetivante do outro, a presença restritiva da instituição, há de se admitir que
ao menos as dificuldades de agremiação humana de O Ser e o Nada foram
superadas. É importante notar que esse percurso mostra que a sociedade tem como
origem última a liberdade individual e, mais, que é justamente a liberdade ontológica
a origem e o sustentáculo das limitações práticas dessa mesma liberdade.
Sem dúvida, da maneira pela qual Sartre descreve a gênese da sociedade, é
possível entender por que o homem é absolutamente livre e, ainda assim, coagido
pela história, afinal, sua liberdade, no ato de constituição da fraternidade
juramentada, foi cedida e permanece alienada; mais ainda, torna-se claro que O Ser
e o Nada não restringiu o indivíduo a seu mundo particular, como algumas
interpretações querem fazer crer; na verdade, a análise fenomenológica esbarrou na
serialidade já constituída, justificando que na Crítica se encontre explicações da
aparente impossibilidade de agremiação humana da ontologia fenomenológica.
414
Afinal, o percurso é circular: a partir da análise da sociedade constituída Sartre, mesmo tendo
explicado como se produz a existência serial, retornou ao momento inicial; é preciso lembrar que o
exemplo do qual o filósofo parte para efetuar essa trajetória é um grupo de pessoas num ponto de
ônibus. Mas, para aqueles que viam em O Ser e o Nada a descrição do homem livre em sociedade,
esse percurso descreve um tipo de serialidade ainda pior, na medida em que, agora, a liberdade está
alienada e o Terror impede recuperá-la. Ante essa dificuldade, Collete Audry propõe que a descrição
ideal deve ser lida antes da ontologia fenomenológica (AUDRY, 1966). Essa interpretação é
discutível, na medida em que propõe uma leitura retrospectiva que extrapola a história mesma; além
disso, a Crítica apresenta a solução dos problemas de O Ser e o Nada, bastando para isso ler as
duas obras concomitantemente. É possível que, seguindo esse caminho, boa parte das indagações
relativas à história e à sociedade e às relações concretas com o outro sejam dissipadas.
183
Todavia, é preciso perguntar: por que a filosofia de Sartre gera tal quadro? A
resposta, ao que parece, está justamente nos limites da razão dialética. É isso que
será mostrado com a análise do método na filosofia de Sartre.
184
1 Uma questão de método
Seria escapar de Caribdes e cair em Cila...
Sartre (EN)
Antecipando a Crítica da Razão Dialética, Sartre escreve um ensaio que,
numa acepção notadamente cartesiana, tematiza o próprio método.
415
Melhor
dizendo, não se trata exclusivamente de apresentar um método diretor de sua
empreitada seguinte, mas de colocar questões com respeito a toda metodologia
para a pesquisa sobre o homem e a sociedade. E, se a filosofia não tem a
prerrogativa de arrogar-se um método único e universal, que seja válido para todos
os tempos e quaisquer situações, resta negar a filosofia.
416
São várias as filosofias e
variadas as maneiras pelas quais essas expressam o mundo. Ao filósofo cabe,
tendo como critério o pensamento de sua época, unificar o conhecimento.
Entretanto, uma vez que todo conhecimento é impiedosamente corroído pela
história, não há uma filosofia; as filosofias tornam-se inertes e incapazes de dar
conta da totalidade social.
Percebe-se, então, um descompasso entre a Filosofia e as filosofias, afinal,
para falar de uma filosofia é preciso que essa esteja superada; é preciso que o
pensamento apresente sua mais simples expressão para que seja filosófico. Sendo
assim, está decretado o fim da Filosofia enquanto pensamento hegemônico? Não é
disso que se trata, ao menos, não do ponto de vista de Sartre. O descompasso é
devido ao próprio movimento interno da filosofia que, enquanto práxis, é aberta e
jamais se reduz a um complexo unitário de pensamento. Por isso mesmo, continua
atuante e viva: “nascida do movimento social, ela própria é movimento e age sobre o
futuro”.
417
Por isso, ainda que seja possível conhecer a origem de uma filosofia, não
tarda perceber que ela faz parte da totalidade social. O pensamento muito
rapidamente esquece sua origem e, dessa forma, pode direcionar uma ação
exatamente contrária àquela que o engendrou.
415
O ensaio Questões de Método foi originalmente elaborado em 1957 por sugestão de uma revista
polonesa [TWÓRCZO´SC (Cracóvia), vol. XIII, nº 4, Kwiecien (abril), 1957, pp. 33-79], e teria como
título “Situação do existencialismo em 1957”; esse mesmo artigo, modificado para atender as
exigências do público francês, foi reproduzido na revista Temps Modernes (LES TEMPS
MODERNES, nº 139, set. 1957, e nº 140, out. 1957, pp. 658 e 698) e, depois, retomado na Crítica.
SARTRE, 2002, pp. 13 ss.
416
SARTRE, 2002, p. 19.
417
SARTRE, 2002, p. 20.
185
É assim que, segundo Sartre, no séc. XVIII, o cartesianismo reaparece sob
duas vertentes distintas: como Idéia da Razão, por Holbach, Helvétius, Diderot e
Rousseau, e como modulador das atitudes do Terceiro Estado. “As coisas vão tão
longe que o espírito filosófico transpõe as barreiras da classe burguesa e se infiltra
nos meios populares”.
418
É dessa forma que se institui uma classe universal, pois,
após estabelecer-se como pensamento dominante, tal conjunto de idéias é levado a
todas as camadas da sociedade (além daquela que a engendrou) e passa a ser um
modo de pensar comum, com meios de expressão similares. Eis o ponto: a Filosofia
não existe porque, para tanto, ela precisaria estagnar-se e, uma vez estagnada,
tratar-se-ia de uma filosofia e não da Filosofia.
Para expressar seu tempo, a Filosofia deve ser idéia reguladora, método,
totalização do saber, arma ofensiva e comunidade de linguagem. Tanta exigência
justifica que Sartre aponte, em quatro séculos (do séc. XVII ao séc. XX), apenas três
filosofias: o momento de Descartes e de Locke, o momento de Kant e Hegel, e o
momento de Marx. Certamente Sartre está a par dos pensamentos parciais desse
período; mas “Essas três filosofias tornam-se, cada uma por sua vez, o húmus de
todo o pensamento particular e o horizonte de toda cultura, elas são insuperáveis
enquanto o momento histórico de que são a expressão não tiver sido superado”.
419
Nesse contexto, o marxismo representa o papel mais importante no séc. XX;
sua pretensa superação vai significar um retorno ao pré-marxismo ou a redescoberta
de uma de suas facetas que se acreditou superada. A Filosofia mesma, a partir de
seu interior, gera filosofias particulares que a transformam e a adaptam ao
movimento da sociedade ao criar novos métodos para novas situações. Nada de
verdadeiramente novo pode ocorrer quando se está sob o signo de uma Filosofia
dominante; se isso ocorrer significa que essa filosofia morreu ou está em crise. A
morte da filosofia se dá quando seu sistema não é mais suficiente para expressar a
totalidade social; a crise, por sua vez, é resultante de uma crise interna do sistema
filosófico dominante. Nesse caso, é a luta dos homens e a própria história que
produzirão elementos para superar tal crise e alçar a Filosofia a um novo estágio.
Assim, se o marxismo é a Filosofia que impera no séc. XX, o que pode ser
dito do existencialismo? Caberia a ele o papel de retorno a teorias pré-marxistas? É
certo que não. Em resposta, Sartre utiliza uma metáfora: de dentro do pensamento
418
SARTRE, 2002, p. 21.
419
SARTRE, 2002, p. 21.
186
dominante há homens que, com novos métodos, buscam inventariar terras
inexploradas e chegam, até mesmo, a erigir ali edifícios; mas nem por isso podem
ser considerados filósofos, já que eles se alimentam do pensamento vivo de mortos
importantes; trata-se de homens relativos e, como tais, deverão ser nomeados
ideólogos. O existencialismo é uma ideologia, “um sistema parasitário que vive à
margem do Saber ao qual, de início se opôs e ao qual, hoje, tenta integrar-se”.
420
Para mostrar a diferença entre a vã tentativa de superar a Filosofia dominante
munido com elementos engendrados por ela, e o nascimento de um pensamento
parcial que é exigido por essa Filosofia, Sartre lembra a relação entre os
pensamentos de Kierkegaard e de Hegel. Sem dúvida, o hegelianismo foi a maior
expressão de sua época, uma filosofia pela qual “o Saber é elevado à sua dignidade
mais eminente: ele não se limita a visar o Ser de fora, mas o incorpora a si e o
dissolve em si mesmo”.
421
Frente a Hegel, Kierkegaard não passa de um ideólogo.
Entretanto, é justamente ele quem coloca em questão a possibilidade do homem,
existente, ser assimilado por um sistema de idéias. “Assim, ele [Kierkegaard] é
levado a reivindicar a pura subjetividade singular contra a universalidade objetiva da
essência”.
422
A vida, enquanto vivida, não se resume ao saber que dela se tem; nem
mesmo pode ser acoplada a um sistema porque é aventura pessoal.
Os pressupostos para que Kierkegaard pudesse exigir a subjetividade estão
contidos no hegelianismo, na forma de afirmação da objetividade. Não se trata de
buscar elementos superados por Hegel, mas, de dentro desse pensamento,
questioná-lo como filosofia dominante. “Kierkegaard foi, talvez, o primeiro a
assinalar, contra Hegel e graças a ele, a incomensurabilidade entre o real e o
Saber”.
423
A partir do pensamento dominante, e por ele compreendido, Kierkegaard
é responsável pela morte do idealismo absoluto ao exigir a afirmação da paixão
vivida. A mesma crítica (de um ponto de vista diferente) é feita ao hegelianismo por
Marx: “para ele [Marx], Hegel confundiu a objetivação, simples exteriorização do
homem no Universo, com a alienação que volta contra o homem sua
exteriorização”.
424
O fato humano deve ser vivido e produzido, sem que isso
signifique uma subjetividade vazia, mas, antes, o homem concreto. Contra a
420
SARTRE, 2002, p. 22.
421
SARTRE, 2002, p. 22.
422
SARTRE, 2002, p. 23.
423
SARTRE, 2002, p. 25.
424
SARTRE, 2002, p. 25.
187
objetivação hegeliana e contra a subjetividade kierkegaardiana, Marx recupera o
homem que se faz por suas necessidades e pelas condições materiais. É por isso
que o marxismo torna-se a filosofia dominante e insuperável do século XX.
Para fazer um contraponto, Sartre lembra o existencialismo que renasce com
Jaspers. Porém, diferentemente de Kierkegaard, que se insere na Filosofia
hegeliana e dela profere suas críticas (há progressão histórica), ao recusar-se a
cooperar como indivíduo, Jaspers regride em relação a seu tempo; ele “foge do
movimento real da práxis em direção a uma subjetividade abstrata, cujo único
objetivo é alcançar uma certa qualidade íntima”.
425
Assim, diferentemente de
Kierkegaard, o pensamento de Jaspers não pode figurar como uma ideologia
engendrada pela filosofia dominante; na verdade, mostra o retraimento alemão ante
duas guerras e a tentativa, incapaz de ser satisfeita, de fugir da história escondendo-
se em uma subjetividade fantasiosa. Daí o caráter vago desse existencialismo e seu
desinteresse filosófico.
Uma relação similar entre as filosofias de Hegel e Kierkegaard pode ser
encontrada no século XX: “Existe um outro existencialismo que se desenvolveu à
margem do marxismo e não contra ele”.
426
Não é difícil perceber que se trata do
existencialismo do próprio Sartre; para ele, a teoria expressa em O Ser e o Nada foi
engendrada pelo marxismo e daí provém sua legitimidade. É nesse contexto que se
insere o relato sobre a experiência pessoal vivida por nosso autor a partir de 1925:
embora jamais tivesse estudado o marxismo, Sartre afirma que era afetado por sua
presença imponente (um pensamento dominante ultrapassa a classe que o
engendrou e, muito rapidamente, torna-se universal). O marxismo aparecia a Sartre
em concepções distintas: “enquanto esse pensamento nos aparecia através das
palavras escritas, permanecíamos ‘objetivos’; (...). Mas quando ele se apresentava
como uma determinação real do proletariado, como o sentido profundo (...) de seus
atos, tal pensamento nos atraía de forma irresistível sem que o soubéssemos e
deformava toda nossa cultura adquirida”.
427
A formação de Sartre, ainda segundo ele, teve por norte o humanismo
burguês e idealista que era aos poucos corroído à distância pelo marxismo. Essa
exigência, no entanto, se dava de forma indireta; não havia o conhecimento da teoria
425
SARTRE, 2002, p. 27.
426
SARTRE, 2002, p. 27.
427
SARTRE, 2002, p. 28.
188
marxista e, ainda menos, experiência de ser proletário. Mesmo assim, frente ao
idealismo academicista de sua formação, Sartre sentia necessidade de uma filosofia
que levasse em consideração tudo, sem saber que era justamente essa filosofia que
já existia e que lhe causava tal necessidade. “Assim, o marxismo como ‘filosofia
tornada mundo’ arrancava-nos à cultura defunta de uma burguesia que vegetava a
partir de seu passado”.
428
Contra a filosofia da representação, que diluía o mundo,
era necessário voltar-se para o realismo; era preciso restituir à filosofia sua
concretude.
Nesse ínterim, ainda para justificar que o seu existencialismo foi engendrado
pelo marxismo, Sartre se questiona sobre o porquê dessa filosofia não se dissolver
na filosofia dominante (conforme seria o normal quando se trata de uma ideologia).
Contrapondo-se à interpretação de Lukács, segundo a qual os intelectuais
burgueses ao serem obrigados a abandonar o idealismo tentaram, ao menos,
salvaguardar seus resultados e fundamentos produzindo uma terceira via entre o
materialismo e o idealismo, Sartre lembra que a necessidade de uma terceira via é
imposta pelo pensamento dominante: o marxismo é, sem dúvida, a única
interpretação válida da história;
429
porém, não é suficiente no que se refere ao meio
de abordagem concreta dessa mesma história. O marxismo, após arrancar Sartre de
sua cultura e fundamentação burguesas, não podia satisfazer a necessidade
individual de compreender a realidade. Foi essa exigência gerada pelo marxismo
que o fez trilhar o caminho do existencialismo.
“O marxismo tinha ficado parado”.
430
Segundo Sartre, por pretender modificar
o mundo e levar até às últimas conseqüências essa meta, o marxismo operou uma
cisão irreparável entre teoria e prática. Foi tal ruptura no seio da filosofia dominante
que, ao mesmo tempo em que o arrancou de suas posições burguesas em direção
ao realismo, fez com que ele sentisse a necessidade de recuperar a subjetividade. O
marasmo do marxismo pode ser exemplificado pelo refluxo da então União das
428
SARTRE, 2002, p. 29.
429
Um exemplo da análise feita por Lukács: “A fenomenologia e a ontologia que dela deriva
ultrapassam apenas em aparência o solipsismo epistemológico do idealismo subjetivo. (...) O exame
da filosofia de Sartre mostrará que esta se expõe ao ataque das mesmas acusações por ele dirigidas
contra Husserl e contra Heidegger. (...) Essa tendência perfeitamente idealista é ainda sublinhada
pela natureza das considerações de Sartre que afetam bem mais frequentemente que as de
Heidegger as questões precisas do ‘ser-com-outro’. (...) Tudo isso, traduzido numa linguagem clara
[referência a O Existencialismo é um humanismo, de Sartre], leva a lugares comuns de uma
banalidade perfeitamente pequeno-burguesa”. LUKÁCS, 1979, pp. 74-76.
430
SARTRE, 2002, p. 31.
189
Repúblicas Socialistas Soviéticas, onde “o resultado da separação estabelecida
entre a teoria e a prática foi o seguinte: transformar essa em um empirismo sem
princípios, e aquela em um Saber puro e cristalizado”.
431
A crise do marxismo não
permitia que o pensamento, livremente, nascesse da práxis e a ela retornasse como
meio de iluminá-la; os homens e as coisas eram, a priori, submetidos à idéia: se as
previsões não se confirmavam, era a experiência que estava equivocada.
É nesse contexto que se insere a crítica de Sartre ao marxismo e, por
extensão, aos marxistas.
432
A experiência é esvaziada de sua riqueza e, em
contrapartida, ela deverá adequar-se à teoria prévia, ainda que para isso seja
necessário simplificar grosseiramente os dados.
433
É em proveito de singularizações
forjadas que os grupos perdem sua vida e espontaneidade; há muita pressa em
totalizar e, para tanto, o saber anterior é utilizado como meio regulador,
estrangulando a riqueza da experiência. “Em Marx, nunca encontramos entidades:
as totalizações (...) são vivas; definem-se por si mesmas no contexto da
pesquisa”.
434
A postura desses marxistas ortodoxos fez com que as relações
sintéticas, apreensíveis nos acontecimentos, fossem fetichizadas, e, assim, os
esquemas interpretativos se tornaram simplesmente saber já totalizado; a pesquisa
totalizadora, que tem como método o movimento da prática à teoria e vice-versa,
tornou-se, nas mãos dos marxistas, uma escolástica da totalidade.
435
É por isso que o marxismo tem, na análise de Sartre, os fundamentos teóricos
e abarca a totalidade das atividades humanas sem, contudo, saber nada; seu
método incorre no grave erro de constituir a priori um saber absoluto sem dar vazão
aos acontecimentos históricos e aprender com eles. Ao lado do marxismo, nessa
nefasta situação, Sartre coloca também a sociologia e a psicanálise que,
431
SARTRE, 2002, p. 31.
432
A polêmica com respeito à relação entre marxismo e existencialismo não se dá em uma via de
mão única. Além das críticas ferrenhas de Lukács e das réplicas não menos ferrenhas de Sartre,
encontram-se, ainda do lado dos comunistas, Henry Lefebvre (Existencialismo e Marxismo, 1945),
Pierre Naville (Existencialismo é um humanismo, 1963) e H. Mougin (A sagrada família do
existencialismo, 1971), todas, de um modo geral, acusando o existencialismo de idealista e moralista.
Do lado cristão, Gabriel Marcel (Homo Viator, 1944) e J. Mercier (Le Ver dans le Fruit, 1945) acusam
o existencialismo de ateu e materialista.
433
Conforme a interpretação feita pelos marxistas da intervenção soviética na Hungria quando
contraposta à riqueza da análise feita por Marx da revolução francesa, em O dezoito Brumário
(MARX, 1974).
434
SARTRE, 2002, p. 33.
435
“Não é por acaso que Lukács – que violou com tanta freqüência a História – encontrou, em 1956, a
melhor definição desse marxismo cristalizado. Vinte anos de prática dão-lhe toda a autoridade
necessária para chamar essa pseudofilosofia de um idealismo voluntarista”; note-se que, em 1960,
Sartre se refere aos vinte anos de prática totalitária da parte de Lukács, o que não inclui a produção
dos anos 1920. SARTRE, 2002, p. 34.
190
contrariamente, possuem um enorme conhecimento dos detalhes, mas estão
impossibilitadas de se fundamentar ou de buscar a totalização. Resultado: “a
experiência social e histórica escapa do Saber”.
436
Enraizado no marxismo está o
existencialismo que, tal qual as disciplinas auxiliares (sociologia e psicanálise),
afirma a realidade do homem; porém, com a imensa vantagem de buscar o homem
em sua completude.
Embora seja o mesmo homem concreto, “o segundo [marxismo] reabsorveu o
homem na idéia, enquanto o primeiro [existencialismo] o procura por toda parte,
onde ele está, em seu trabalho, em sua casa, na rua”.
437
O resultado é o
distanciamento entre a teoria e a prática marxistas, o que impede ao homem
comunista tomar consciência de sua classe e, desse modo, a história se faz sem ser
conhecida. A maior contribuição de Marx foi justamente a possibilidade de iluminar o
processo histórico em sua totalidade; a estagnação do marxismo do final dos anos
quarenta se deve ao abandono, por parte dos marxistas, da subjetividade, do
homem na produção de si e da história. É nessa lacuna que o existencialismo deve
se encaixar.
438
436
SARTRE, 2002, p. 34.
437
SARTRE, 2002, p. 35.
438
O foco dessa pesquisa não é discutir a relação, nada pacífica, de Sartre com outros intelectuais de
sua época, mas tão somente apresentar uma interpretação de sua filosofia que encontre, na Crítica
da Razão Dialética, respostas para os problemas de O Ser e o Nada; por essa razão as polêmicas
ocorridas nos dezessete anos comentados são apresentadas apenas do ponto de vista de Sartre,
mesmo assumindo o prejuízo de não analisar a aproximação ou o distanciamento com autores
importantes como, por exemplo, Althusser, Aron, Camus, Lévi-Strauss, Lukács e Merleau-Ponty,
dentre outros. Porém, a respeito de Lukács, uma nota se faz necessária: Martin Jay, num artigo
intitulado Da Totalidade à Totalização, discute o que poderia ser considerada uma injustiça em
relação a Lukács. Segundo ele as críticas de Sartre a Lukács são referentes aos trabalhos do Lukács
estalinista, de 1930 e 1940; desse modo, Sartre teria ignorado que em As Aventuras da Dialética,
“Merleau-Ponty especificamente argumentou que o Lukács de 1920 tinha proposto um Marxismo não
dogmático, no qual as totalizações em curso predominavam sobre as totalidades fechadas” (JAY,
1984, p. 349). Mais do que isso, Jay insiste em mostrar que Sartre, quiçá intencionalmente, ignora a
profundidade da discussão desse tema, seja por Lukács, seja via Merleau-Ponty, seja em Korsch,
Gramsci, Bloch ou pela Escola de Frankfurt, reduzindo o problema àquilo que simplesmente
considera uma escolástica marxista; mas “Totalização, para ser correto, não é invenção de Sartre”,
tendo sua origem mais remota em Proudhon (JAY, 1984, p. 351). Além disso, Nicolas Tertulian, em
Da Inteligibilidade da História, chama a atenção para o fato de que “Uma comparação com A
ontologia do ser social de Lukács pode contribuir para esclarecer o projeto da Crítica da Razão
Dialética, pois não se pode esquecer que ambas as obras nutrem a ambição comum de refundar
filosoficamente o pensamento de Marx, um utilizando as categorias da ontologia (teleologia-
causalidade, essência-fenômeno, substância-acidente, etc.), o outro aquelas da razão dialética (em
particular aquela de totalização ou totalidade-destotalizada, que exerce um papel central no
pensamento de Sartre). As duas obras propõem uma ontologia da subjetividade, pois os dois
pensadores estabelecem como principium movens, como ‘fenômeno originário’ da vida social o
trabalho (segundo a definição de Lukács) ou a práxis individual (segundo a fórmula de Sartre)”,
[KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 74]. Desse modo, parece que as reais razões da
controvérsia com Lukács vão além do plano teórico, o que escapa ao interesse dessa tese; basta
191
Não há dúvida: para Sartre o marxismo está em crise; mas, de modo algum,
morto. Toda teoria ou análise é produzida sob o signo dessa filosofia insuperável,
inclusive o existencialismo. “Nossos pensamentos, sejam eles quais forem, não
podem formar-se a não ser sobre esse húmus”.
439
Também o existencialismo busca
na experiência sínteses que se enquadram na totalização em movimento (história);
nesse sentido, o existencialismo é uma ideologia gerada e mantida pelo marxismo,
embora guarde limites precisos com a filosofia hegemônica. Para o existencialismo,
o que faz a história são as contradições sociais, a partir de homens concretos em
dadas situações e de grupos de homens em dada instituição.
440
Assim, trata-se de
criticar o marxismo; mas essa crítica deve ser direcionada a Engels e aos marxistas
ortodoxos das décadas de 50 e 60.
Esse breve panorama da relação entre o existencialismo e o marxismo,
apresentado por Sartre no início de sua Crítica da Razão Dialética, mostra a diretriz
geral da análise aqui proposta. E isso se confirma, sobretudo, pelo fato da Crítica vir
precedida por uma análise do método, tema nada pacífico na filosofia de Sartre.
Está claro que nosso autor faz concessões à dialética da história; melhor, afirma que
essa é a filosofia insuperável de nosso tempo. Porém, e Sartre bem o mostra nas
passagens anteriormente citadas, isso não significa abrir mão da filosofia existencial.
Sartre considera o marxismo a filosofia hegemônica; mas também declara que essa
filosofia está em crise, o que se constata na ruptura, comumente efetuada pelos
ideólogos do partido, entre teoria e prática. É nesse sentido que o existencialismo,
uma ideologia gerada e mantida pelo marxismo, se reabilita e se propõe a ajudar o
marxismo na superação da crise em que ele, segundo Sartre, está atolado no final
da década de 1950.
Quando se refere à hegemonia do marxismo e, devido a uma crise interna
nesse sistema, à necessidade do existencialismo, Sartre apresenta uma boa
indicação das razões para isso: há homens que, com novos métodos, visitam terras
inexploradas. Foi isso que ocorreu entre Kierkegaard e Hegel e, também, entre o
existencialismo sartriano (outro existencialismo, diferente dos demais) e o marxismo;
colocar em relevo que nem tudo se passa como afirma nosso filósofo, ou do modo como essa tese
possa fazer parecer, por tratar da questão apenas do ponto de vista de Sartre.
439
SARTRE, 2002, p. 36.
440
“É cômico que, na obra já citada [Existentialisme et Marxisme], Lukács tenha julgado distinguir-se
de nós lembrando esta definição marxista do materialismo: ‘a primazia da existência sobre a
consciência’, enquanto o existencialismo – seu nome o indica suficientemente – faz dessa primazia o
objeto de uma afirmação de princípio”. SARTRE, 2002, p. 37.
192
O Ser e o Nada é um edifício erguido em uma terra inexplorada pelo marxismo. E
isso foi possível porque Sartre utilizou novos métodos; assim, a questão de método
vem a calhar, pois é preciso compreender, para além do edifício que o
existencialismo ergueu dentro do marxismo, em que o método constituído por essa
ideologia pode ajudar a filosofia que o motivou.
Ainda, é necessário ter em mente os problemas para os quais o
existencialismo deve, com sua inovação metodológica, apresentar uma alternativa:
em sua ânsia de mudar o mundo, o marxismo provocou a cisão entre teoria e
prática; a teoria tornou-se um saber puro e cristalizado, enquanto a práxis passou a
ser um empirismo sem princípio; há muita pressa em totalizar um acontecimento
histórico e, por isso, as coisas e os homens são submetidos à idéia. Numa palavra, o
maior erro metodológico do marxismo está em constituir a teoria a priori. Ao propor a
recuperação da subjetividade do homem em sua práxis, o existencialismo cumpre o
trabalho de restituir a concretude do ponto de partida filosófico. Isso requer que a
filosofia hegemônica volte a ser viva e atuante; para isso, é necessário que o homem
não seja unicamente objetivo, mas que na sua lida recupere sua subjetividade.
Enfim, o pensamento deve, novamente, nascer da práxis e a ela retornar para
iluminá-la. Apenas desse modo o marxismo superará a crise e recuperará sua maior
virtude: a possibilidade de abordar concretamente a história.
A apresentação dos problemas metodológicos enfrentados pelo marxismo e a
indicação do importante papel que teria o existencialismo para resolver essa crise
não significam, de modo algum, uma proposta de substituição da dialética da
história. Também, não se trata de considerar o existencialismo um caso de
falseamento do marxismo, o que se resolveria com o retorno aos princípios
metodológicos marxistas. Trata-se de uma crise que se arrasta desde 1940 e, desse
modo (é o que afirma Sartre), o próprio marxismo se encarregou de engendrar
novos métodos que solveriam suas dificuldades; não é preciso dizer que esse
método (ou o complemento metodológico) não é outro que aquele desenvolvido por
Sartre nesse período. Assim sendo, o primeiro passo será, ainda que de modo
esquemático, verificar como Sartre, de 1933 a 1960, desenvolve um método. É
importante notar que esse método foi engendrado pelo próprio marxismo que,
mesmo sendo a única possibilidade de compreensão da história, não satisfaz no que
se refere à necessidade de abordagem individual.
193
Não há uma maneira segura de tematizar o método de Sartre. Isso porque,
com exceção de Questões de Método, não há nenhum outro texto que trate
exclusivamente do problema metodológico; e mesmo o texto especificamente sobre
o método se limita a uma carta de intenções e não apresenta o método, conforme
possa parecer. Mais do que isso, a filosofia de Sartre, quando considerada em
conjunto, apresenta diversos aportes metodológicos, impossibilitando uma
seqüência simples e direta do tema. Para dar conta desse mosaico será necessário
promover um movimento que vai do detalhe ao todo, e vice-versa, ou seja, será
dada ênfase à constituição de partes do método e, quando possível, será feita uma
análise mais ampla. É importante lembrar que não será feita uma análise linear,
embora se trate de um trabalho genético porque há inúmeras quebras e, mesmo,
contradições; ao que parece, isso não é de modo algum um problema, mas, antes, a
maior virtude (ou inovação, conforme diz Sartre) dessa proposta de trabalho.
Para cumprir esse objetivo, o método filosófico de Sartre será avaliado
inicialmente no detalhe: serão buscadas indicações metodológicas nos textos que
antecedem a Crítica. Isso será feito em duas etapas, uma que abordará os textos
produzidos até o final de O Imaginário, e outra que irá até O ser e o Nada. Só então
o método será avaliado como um todo. A razão para essa delimitação advém da
virada que ocorre quando da ruptura de Sartre com Husserl e sua aproximação a
Heidegger; embora essa tese pretenda mostrar que se trata de um crescente, isto é,
que novas metodologias foram apropriadas para solucionar novos problemas, há de
se admitir que o interlocutor de cada um desses períodos influencia bastante a
constituição da filosofia sartriana. O marxismo, como já foi dito, será justamente o
método que unifica todos esses momentos.
Será feito como Sartre faz: se para problemas novos ele utiliza métodos
novos, para cada novo aporte metodológico será buscado o problema imediato que
motivou sua utilização; por fim será feita uma avaliação global do resultado da
metodologia. Espera-se que desse modo seja possível cumprir o objetivo desse
capítulo, qual seja, identificar os novos métodos engendrados pelo marxismo e
utilizados por Sartre; entender, em conjunto, os problemas de cada momento da
estruturação metodológica e a pertinência do método. Isso fornecerá elementos para
verificar, posteriormente, se os novos métodos de Sartre são aptos para resolver a
crise identificada por ele na filosofia hegemônica. Por hora, será satisfatório compor
o mosaico metodológico de Sartre e entender, o mais claramente possível, a
194
pertinência e as justificativas para que o resultado seja um método progressivo-
regressivo.
Husserl foi o mentor, com a intencionalidade da consciência, do início da
filosofia de Sartre: essa idéia fundamental da fenomenologia oferece um meio de
superar a filosofia da representação e, assim, combater o idealismo. Mesmo que
nosso autor estivesse equivocado quanto ao real alcance da intencionalidade, se
encontra aí o direcionamento que a filosofia, por suas mãos, deveria tomar: “tudo
está fora, tudo, até nós mesmos: fora, no mundo, entre os outros (...) é no caminho,
na cidade, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens”.
441
Apesar de até 1940 (O Imaginário) Sartre denominar-se discípulo de Husserl, a
inclinação pelo realismo vem de muito antes; melhor, num movimento de repulsa da
filosofia acadêmica (neokantismo e empiriocriticismo), Sartre busca outros caminhos,
o que dá boas pistas para explicar o combate que trava contra o idealismo. E é
justamente essa necessidade de tematizar o concreto, o real, que pode explicar seu
distanciamento de Husserl e sua aproximação da filosofia de Heidegger; sob esse
ângulo pode ser também explicada sua aceitação incondicional do marxismo.
A enumeração das influências no desenrolar do pensamento de Sartre não é
a preocupação imediata. Sem dúvida, ela figura como pano de fundo quando se
trata de falar do método adotado em sua filosofia; mais ainda, todas as mudanças e
contradições metodológicas identificadas nas obras de Sartre têm imbricação com
os autores com os quais ele discutiu. Mas, para o objetivo desse texto, é mais
proveitoso tomar como pedra angular o que o próprio autor afirma sobre o período
da gestação de seu pensamento: “Entre nós, nessa época, o livro de Jean Wahl,
Vers le concret, obteve muito sucesso. Ainda assim, ficamos decepcionados com
esse ‘vers’: queríamos partir do concreto total e chegar ao concreto absoluto”.
442
O instrumental do início da filosofia de Sartre é a intencionalidade da
consciência; a partir do axioma de que toda consciência é consciência de alguma
coisa (a consciência não é um objeto e, dessa forma, a consciência da consciência é
um tipo de intencionalidade especial), Sartre escreve A transcendência do Ego
(1934), e mostra que, contrariamente ao objeto da psicologia, o Ego não é um
constituinte opaco da consciência, mas, ao contrário, é transcendente e constituído
pelo movimento que é a consciência. Por ser um fluxo ininterrupto em direção a algo
441
SARTRE, 1947c, pp. 34-35.
442
SARTRE, 2002, p. 29.
195
que ela não é, seria forçoso encontrar na consciência qualquer positividade, ainda
que seja a de um Eu transcendental (segundo Sartre, esse seria o erro de Husserl).
Em A transcendência do Ego a consciência intencional é purificada de toda
positividade e, por isso, torna-se puro ato, exclusiva e completamente acessível a si
mesma. Vale chamar atenção para o fato de que a purificação do campo
transcendental tem, para Sartre, um caráter realista, afinal, se a consciência não é
um espaço, algo físico que conteria impressões subjetivas do mundo, na outra face
da moeda está a afirmação da realidade do mundo. Independente da justeza da
compreensão de Sartre, essa é a melhor maneira de entender porque ele considera,
inicialmente, Husserl como o expoente de uma filosofia realista para, logo a seguir,
abandonar o pensamento do autor e aproximar-se de Heidegger, tendo como
justificativa justamente o idealismo husserliano.
Com respeito ao método, A transcendência do Ego afirma a intencionalidade
da consciência e, a partir da consciência intencional, mostra que os resultados da
reflexão são verdadeiros.
443
O cogito (sem Eu) é tomado como baluarte da verdade:
não se trata do eu penso, mas do pensamento que se pensa a si mesmo (e ao
mundo) sem que isso signifique uma relação do tipo sujeito-objeto; trata-se da
consciência não tética de si. Ela é translúcida para si, e não há qualquer força
estranha que possa determiná-la, seja essa força psíquica ou física. Instaura-se
desse modo a liberdade como princípio do mundo, tema que acompanhará a
filosofia de Sartre em toda sua extensão. Ao libertar a consciência de qualquer
estrutura egológica e, inclusive, do Eu transcendental, Sartre desenha a absoluta
autonomia da consciência em relação ao mundo; afirma, por conseguinte, sua total
transparência para si mesma, instaurando a possibilidade de uma reflexão
purificada.
Em A Imaginação, texto escrito a partir de 1934, Sartre fornece indicações
metodológicas que, segundo ele, não só deveriam revolucionar a psicologia, mas
todo o conhecimento. Esse livro é, na verdade, uma interpretação do Esboço de
uma Fenomenologia Pura e de uma Filosofia Fenomenológica, de Husserl. Grosso
modo, na compreensão de Sartre, a fenomenologia exige “colocar fora de jogo a
posição geral de existência que pertence à essência da atitude natural”.
444
Adiante,
Sartre afirma que “a fenomenologia é uma descrição das estruturas da consciência
443
SARTRE, 1994, pp. 32 ss.
444
SARTRE, 1978, p. 97.
196
transcendental fundada sobre a intuição das essências dessas estruturas”; ora, isso
apenas é possível com base na reflexão que, segundo a fenomenologia, “procura
apreender as essências. Isto é, ela começa por se colocar, logo no início, no terreno
do universal”;
445
dessa feita, pouco importa para a fenomenologia o objeto
considerado. Reitera ainda que esse método não tem nada de empírico, mas, antes
de qualquer experiência, trata-se de levar o mais longe possível a pesquisa eidética
sobre o objeto, ou seja, busca descrever sua essência.
A incursão por esse ensaio não parece, à primeira vista, ajudar muito quando
se procura entender qual metodologia Sartre utiliza. Na verdade, parece tornar sem
efeito nossa chave de leitura, que busca mostrar o combate ao idealismo como seu
ponto de partida. Se a fenomenologia descreve as estruturas da consciência
transcendental, até mesmo a recusa do Eu (A transcendência do Ego) torna-se inútil.
Desse modo, onde estaria o concreto, ferramenta para combater o idealismo? É
preciso analisar o que é o concreto para Sartre. O que está em jogo é a
possibilidade de uma psicologia fenomenológica e, para tanto, Sartre se propõe
analisar a eidética da imagem. Isso porque, segundo o filósofo, mesmo tendo
lançado as bases para essa empreitada, Husserl permite que em sua filosofia sejam
confundidos objetos reais e objetos imaginados, ou seja, uma vez que a posição
geral da existência é tirada de jogo, pode-se confundir a árvore percebida e a árvore
imaginada, por exemplo.
Para preencher as lacunas encontradas no pensamento de Husserl, em 1940
Sartre produz uma pesquisa que analisa justamente a eidética da imagem (O
Imaginário).
446
Em linhas gerais, trata-se de levar a reflexão sobre o objeto até aos
limites permitidos pela fenomenologia: antes de qualquer experiência, buscar
apreender a essência da imagem; assim, o resultado obtido é certo.
447
Entretanto,
em A Imaginação, Sartre já apontava para a possibilidade desse método ser
insuficiente: “É possível que, no meio do caminho, sejamos obrigados a deixar o
domínio da psicologia eidética e recorrer à experiência e aos procedimentos
445
SARTRE, 1978, p. 97.
446
Conforme o leitor poderá perceber adiante, as lacunas são muito mais devidas à compreensão
inicial que Sartre tem de fenomenologia do que a Husserl propriamente dito. Esse problema de ponto
de vista metodológico será, ulteriormente, a causa do afastamento de Sartre de seu mentor; inclusive,
a justificativa para essa ruptura não é outra que o idealismo husserliano.
447
A primeira parte de O Imaginário tem como título ‘O Certo’, numa referência clara à certeza que o
método de apreensão de essências permite. SARTRE, 1996b, p. 11.
197
indutivos”.
448
Inicia-se aí a mescla metodológica: primeiro, o método fenomenológico
reflexivo (O Certo); depois, nas segunda e terceira partes de O Imaginário (O
provável – Natureza do analogon na imagem mental e O papel da imagem na vida
psíquica) a descrição da eidética da imagem dá lugar à indução, pela qual é
analisada a natureza do analogon.
Entretanto, a multiplicidade metodológica não para por aí: na quarta parte (A
vida imaginária) e na conclusão de O Imaginário encontram-se elementos que
indicam que essas reflexões não foram escritas no mesmo contexto do restante da
obra.
449
Após ter utilizado a pesquisa eidética, a indução e a experiência para
demonstrar que a tese segundo a qual a imagem é um conteúdo da consciência se
deve a preconceitos metafísicos, Sartre parece enveredar para o campo da analítica
existencial.
450
Assim, a intencionalidade da consciência é o primeiro aspecto a ser
considerado. Por ela, Sartre se livra dos conteúdos de consciência, sejam eles
psíquicos (A transcendência do Ego) ou físicos (Uma idéia fundamental da
fenomenologia de Husserl e A Imaginação). A consciência é um livre movimento em
direção a todos os objetos, que são necessariamente transcendentes; a consciência
é, também, retorno a si (reflexão) sem que isso implique uma dualidade.
A intencionalidade permite resolver o problema da relação com objetos físicos
(árvore, cinzeiro, etc.); porém, restam elementos híbridos que, aparentemente,
fazem parte da consciência. Esses podem ser, em linhas gerais, de duas ordens:
sensação e imagem. No que tange à sensação tudo se resolve com a
intencionalidade, afinal, toda sensação é intencional e não há como, com exceção
dos casos de má-fé, haver confusão entre elas (consciência de sede, de frio, de
sono); o mesmo não vale para a imagem (a consciência pode confundir-se com a
imagem), o que justifica que esse tema ocupe dois trabalhos de Sartre: A
Imaginação, onde o problema é apresentado criticamente, e O Imaginário, onde
Sartre busca produzir uma resposta para a questão. Nessa empreitada, que se dá
reflexivamente, são utilizados os preceitos da fenomenologia de Husserl acrescidos,
em seus momentos críticos, da indução e da experiência.
448
SARTRE, 1978, p. 105.
449
MOUTINHO, 1995, pp. 46-47.
450
A quarta parte e a conclusão dessa obra foram escritas no intervalo de 1936 a 1940, ano da
publicação. Nesse período Sartre travou contato com a obra de Heidegger; esse contato não se deve
apenas à referência ao nome do filósofo alemão, mas, principalmente porque, segundo Bento Prado
Júnior, se trata de um “primeiro esforço de pensar o in-der-Welt-sein sem abandonar a consciência,
utilizando os resultados obtidos pela pesquisa sobre o imaginário” (SARTRE, 1996 b, p. 7). Ver ainda
CONTAT & RYBALKA, 1970, pp. 77-79.
198
Mas, como entender que o final de O Imaginário apresente uma guinada rumo
à analítica existencial? Está claro que aí se encontra a influência que Sartre sofreu
das leituras que fez de Heidegger; mas seria isso suficiente para, no contexto de sua
produção filosófica, justificar a mudança do panorama e do problema, tomando a
existência como norte? Parece que não. Assim, é preciso voltar a um tema de
alguns parágrafos acima: quando Sartre afirma que era do concreto total que
queríamos partir, o que exatamente ele entende por concreto total? Inicialmente, o
concreto parece contrapor-se ao ideal e, dessa feita, pode ser sinônimo de real.
451
Em Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl Sartre deixa isso bastante
claro ao afirmar que a intencionalidade devolve aos objetos seu caráter de realidade,
ou seja, trata-se da árvore em pessoa, com seu tronco rugoso, sua aparência de
velha, a beira da estrada, sob a poeira. Trata-se do objeto real.
452
Esse realismo extremado, no entanto, encontra obstáculos ainda no período
que Sartre estava sob influência de Husserl, e é para corrigir o erro de seu mestre
(que não se dá conta da possibilidade de confusão entre mundo imaginado e mundo
real) que Sartre escreve A Imaginação e os dois primeiros terços de O Imaginário. É
flagrante que em nenhum desses momentos Sartre tenha, de fato, empreendido a
redução fenomenológica; valendo-se da ignorância dos franceses no que se refere à
fenomenologia, utiliza um método parecido: a reflexão.
453
Se a pesquisa eidética não
é, em alguns momentos, suficiente para dar conta de todos os problemas que
surgem, Sartre lança mão da análise (indução e experiência). Aparentemente, esses
movimentos de sua filosofia revelam que para ele almejar a realidade exige não
promover a epoché; ainda que seja devido a uma incompreensão da proposta
husserliana – afinal, é preciso que haja uma camada constituinte ou, de outro modo,
o mundo não seria humano e a determinação precisaria ter chegado às coisas por
uma ação divina –, Sartre não abre mão da realidade do mundo e nem de sua
presença imediata para a consciência e, muito menos, da autonomia que a
intencionalidade proporcionou ao homem (liberdade).
Assim, o solo inicial da filosofia de Sartre (concreto total) é, até agora, uma
contradição: o homem livre (a consciência soberana) em presença de um mundo
real. E o modo encontrado na análise da existência que poderia dissolver essa
451
“Evidentemente, Sartre é vítima aqui da tradicional confusão entre irreal no sentido natural e irreal
no sentido fenomenológico”. MOUTINHO, 1995, p. 119.
452
SARTRE, 1947c, p. 32.
453
SARTRE, 1996b, p. 234.
199
contradição é justamente a presença do homem no mundo, no meio das coisas, dos
outros homens; a existência é a chave mestra desse período. Porém, nem tudo se
resolve tão facilmente: essa presença não pode ser a do Dasein, pois, se ele está
despido do que Heidegger nomeou preconceitos metafísicos, a ele falta uma
estrutura fundamental para nosso filósofo: um ponto de partida reflexivo que garanta
a verdade daquilo a ser analisado. Sartre pretende promover a analítica existencial a
partir da consciência, tendo ela como um ponto de partida certo. Como efetuar a
analítica existencial sem abrir mão do cogito? A resposta a essa pergunta parece
levar, imediatamente, àquilo que Sartre entende por concreto total: a união
específica, indissolúvel e imprescindível do homem com o mundo. Melhor, não se
trata de dois termos, pois, dessa feita, a ruptura estaria demarcada já no início: o
concreto total é o homem (consciência absolutamente livre) no mundo (real e
autônomo).
Na conclusão de O Imaginário, referindo-se à seqüência de seu trabalho,
Sartre afirma que o procedimento metodológico será aquele comum às análises
críticas, ou seja, um método regressivo (Sartre mantém ainda o estilo da filosofia
crítica). Isso diz muito quando se trata de unificar sob uma mesma rubrica o homem
livre e o mundo autônomo: a analítica segue um caminho que parte do dado (aquilo
que é mais próximo) rumo aos princípios; o homem no mundo se apresenta de
forma imediata à consciência. Além disso, reflexivamente, essa união específica
pode, sem qualquer problema, ser objeto de análise. É isso que, em O Ser e o Nada,
aparece da seguinte maneira: “Basta abrir os olhos e interrogar com toda
ingenuidade a totalidade homem-no-mundo. Descrevendo-a podemos responder a
essas duas perguntas: 1ª) qual é a relação sintética que chamamos ser-no-mundo?
2ª) que devem ser o homem e o mundo para que seja possível a relação entre
eles?”
454
A totalidade homem-no-mundo, expressão notadamente heideggeriana,
supera o impasse metodológico anterior. Devido à decisão realista de Sartre
(segundo ele exigida à distância pelo marxismo), não é possível efetuar a redução
fenomenológica. Ainda que Sartre utilize tanto a intencionalidade quanto a pesquisa
eidética, apropriadas de Husserl, sua fenomenologia sempre mancou de uma perna:
a epoché. Desde O Imaginário Sartre buscou manter a liberdade da consciência e,
454
SARTRE, 2002, p. 38.
200
ao mesmo tempo, falar do mundo real; é nesse panorama que o in-der-Welt-sein se
insere. Partir, regressiva e analiticamente, do homem no mundo, significa partir do
concreto total.
A consciência intencional foi, desde o primeiro ensaio filosófico de nosso
autor, fundamental para a constituição de sua filosofia. Mas ela nunca foi tudo,
afinal, seria impossível apenas com esse instrumental não esbarrar no idealismo
(que Sartre acusará em Husserl). A análise da existência, do homem-no-mundo, é o
que mais se aproxima daquilo que Sartre entende como concreto total: isolada, a
consciência é abstrata; sem aparecer para uma consciência, também o fenômeno é
abstrato. “O concreto só pode ser a totalidade sintética da qual tanto a consciência
quanto o fenômeno são apenas momentos”.
455
Além disso, ter como momento inicial
o concreto (homem-no-mundo) evita o problema de, posteriormente, explicar a
relação entre fenômeno e consciência sem cair nas dificuldades das filosofias
precedentes, quais sejam, o realismo e o idealismo; a porção regressiva do método
começa a se desenhar.
A união específica do homem com o mundo é, sem dúvida, mais complexa do
que a consciência ou o fenômeno quando separados; no entanto, tem a imensa
vantagem metodológica de não operar a cisão inicial, pois, uma vez feito isso, não
haveria como reunir essas partes; desse modo, a ruptura inicial é superada. Pode-
se, preliminarmente, admitir que o problema da relação do todo com as partes não
se coloca, afinal, a pesquisa de Sartre já parte do todo. A continuidade da ontologia
apresentará os dados concretos e, da análise desses dados, determinará quais são
seus princípios, ou seja, o que se busca numa análise são justamente os princípios
fundamentais. Por isso se trata de um método regressivo: regride do dado ao
princípio, vai do complexo ao simples, do composto ao unitário. É justamente esse
método que Sartre denomina, já no final de O Imaginário, de método regressivo.
456
Esquematicamente, é possível dar conta dos procedimentos de Sartre na
primeira parte de O ser e o Nada: antes da reflexão, de maneira unicamente
objetiva, ele propõe a análise de condutas humanas, sejam essas quais forem,
porque todas, sendo condutas do homem no mundo, podem responder tanto sobre o
455
Atenção para as duas concepções de concreto: total, como ponto de partida, e absoluto como
lugar de chegada. Essa demarcação é de extrema importância para compreender a continuidade de
nossa interpretação. Conforme SARTRE, 2002, p. 38.
456
“Tentaremos desenvolvê-la [questão da possibilidade de imaginar] pelos procedimentos comuns
de análise crítica, quer dizer, por um método regressivo”. SARTRE, 1996b, p. 234.
201
mundo quanto sobre o homem e, mais importante, sobre sua união. A primeira
conduta analisada é a mesma que permitiu colocar a questão: a interrogação (que
envolve quem interroga e o interrogado, ou seja, o homem e o mundo, numa
acepção notadamente heideggeriana). A interrogação, por sua vez, leva
invariavelmente à possibilidade de uma resposta negativa; trata-se, então, de saber
se o não, o nada e o nunca são resultantes da espera humana ou de uma ausência
efetiva de algo no mundo. Explicado, investiga-se se a negação é devida a um juízo
negativo ou se é uma ausência objetiva no ser; do mesmo modo, outras condutas
passam a ser analisadas, e a primeira dela é a destruição.
457
Também essa conduta mostra que, além da negatividade que o homem
semeia no mundo, há, em contrapartida, mudança objetiva nas coisas. Isso significa
que a negação é devida ao homem, afinal, sem ele não seria possível que um
edifício desmoronasse, por exemplo, afinal sem o reconhecimento da consciência,
não pode haver qualquer mudança no ser: é porque o homem instaura a
temporalidade que um edifício pode deixar de ser um edifício e passar a ser
escombros; porém, não basta que o desmoronamento seja pensado para que ele
ocorra no mundo, visto que acontece, também, uma modificação transcendente real.
Ora, se é assim, deve haver um princípio simples que permita, no caminho inverso, a
ocorrência da destruição, a negação e, no início da série, a interrogação. O princípio
de todas essas condutas deve ser o nada, e, se é desse modo, qual a origem do
nada?
458
Percebe-se que o método regressivo tem, nessa medida, o concreto total
(homem-no-mundo) como seu ponto de partida e, desse, busca os princípios últimos
que regem essa relação.
A utilização do método regressivo, mostrado aqui de maneira esquemática, se
aplica facilmente na primeira e na quarta parte de O ser e o Nada. Em O problema
do nada (primeira parte) parte-se do complexo e chega-se ao simples: a análise da
conduta humana que interroga sobre o ser leva ao nada intramundano (cap. 1), e a
457
Conforme a noção de auto-compreensão ontológica (HEIDEGGER, 1993, §7c) quando comparada
à Primeira Parte de O Ser e o Nada (SARTRE, 1943, pp. 37-46); o mesmo vale para a contraposição
dos §§32 a 42 de Ser e Tempo, nos quais Heidegger entende a compreensão pré-ontológica do ser
como algo existencial, enquanto Sartre, por sua vez, não abandona a dimensão da consciência,
embora adote a auto compreensão do existente (SARTRE, 1943, pp. 47 ss).
458
“Colocamos primeiramente a questão do ser. Depois, voltando a esta questão, concebida como
tipo de conduta humana, passamos a interrogá-la. Concluímos então que, se a negação não
existisse, nenhuma pergunta poderia ser formulada, sequer, em particular, a do ser. Mas essa
negação, vista mais de perto, remeteu-nos ao Nada como sua origem e fundamento: para que haja
negação no mundo e, por conseguinte, possamos interrogar sobre o Ser, é necessário que o Nada se
dê de alguma maneira. (...) de onde vem o nada?” SARTRE, 1943, p. 58.
202
análise das condutas da má-fé levam ao nada na intra-estrutura da consciência (cap.
2). Algo muito parecido ocorre em Ter, fazer e ser (quarta parte), e a regressão mais
uma vez permite mostrar tanto a imanência quanto a transcendência da
responsabilidade. Mas o que dizer do restante da obra se, logo na segunda parte,
são tematizadas unicamente As estruturas imediatas do para-si? Na mesma medida,
como entender que a terceira parte tematize unicamente o para-outro? E, nesse
mosaico metodológico, como enquadrar a introdução, que se encerra na opacidade
do em-si?
Os elementos metodológicos verificados até esse momento não permitem
responder a essas questões. Mesmo que as demais partes de O Ser e o Nada se
estruturem analiticamente, ao menos uma conquista do método regressivo se perde:
ao tematizar um princípio em separado, seja ele qual for, não se trata mais do
concreto. Problema ainda maior se verifica quando, na conclusão de O Ser e o
Nada, Sartre, numa tentativa fracassada de promover a totalização dos princípios
descobertos (em-si, para-si e para-outro), empurra o problema para a metafísica.
Segundo ele, o papel descritivo da fenomenologia já foi feito; “Compete à metafísica
formar as hipóteses que irão permitir conceber esse processo como o acontecimento
absoluto que vem coroar a aventura individual que é a existência do ser”.
459
Enfim, a
relação que Sartre propõe entre ontologia fenomenológica e metafísica, tema do
primeiro tópico da conclusão de O Ser e o Nada, é mais que suficiente para mostrar
as dificuldades que a regressão suscita.
Ao mesmo tempo em que fundamenta sua ontologia numa crítica da
metafísica, Sartre não determina a ruptura definitiva desses dois âmbitos do
conhecimento.
460
Ao contrário, resguarda a importância da metafísica, uma vez que
“O ser pelo qual o porquê chega ao ser tem o direito de colocar seu próprio porque,
posto que é ele mesmo uma interrogação, um porquê.”
461
Apenas o ser que é, em
seu ser, interrogação, pode questionar sobre sua origem; as questões da metafísica
tradicional, tais como por que há o ser ou por que o ser é outro não são cabíveis
porque esses questionamentos apenas podem ser formulados do seio mesmo do
459
SARTRE, 1943, p. 713.
460
A proximidade com Heidegger é evidente, afinal, nos §§41 e 42 de Ser e Tempo (HEIDEGGER,
1993) ele afirma que o homem é “estrutura da totalidade”; Sartre, porém, com a doutrina do valor,
apresenta apenas um esboço de resposta, na medida em que o ser necessário apenas é a título de
ser normativo, que participa do concreto somente enquanto ser que o para-si almeja, ser esse
impossível, o Deus faltado: uma espécie de totalização, absoluto ou fim da história. SARTRE, 1943,
pp. 127-132.
461
SARTRE, 1943, p. 714.
203
ser e, mais, do ser outro (para-si). A questão de por que há o ser apenas é possível
porque o para-si, graças a seu modo de ser, faz com que haja ser. O caráter de
fenômeno vem ao ser pelo para-si. Perguntar por que o ser é outro exige a
anterioridade do nada ao ser, e as análises empreendidas em O problema do Nada,
mostram que isso é impossível devido à contingência do ser.
462
A restrição da
pesquisa de Sartre tem por fundamento a contingência do ser; todas as questões
sobre o ser além da origem do para-si carecem de sentido, na medida em que, para
serem colocadas, pressupõem o ser.
463
Mas o que dizer da relação entre em-si e para-si? Ainda que ao descrever a
estrutura do para-si Sartre tenha mostrado a indissolubilidade das regiões do ser, ele
não pode dar conta do ser total (totalidade). Fica a cargo da metafísica, além de
responder “Por que o para-si surge a partir do ser?”, determinar “que definição dar a
um existente que enquanto em-si seria o que é, e, enquanto para-si, seria o que não
é.”
464
Isso porque, para que um ser possa ser considerado uma totalidade, é preciso
que suas partes estejam de tal modo unidas que qualquer uma, se considerada em
separado, não passe de abstração. De fato, é isso que ocorre com o para-si que,
sem dirigir-se ao em-si, é nada absoluto (abstrato). O em-si, por sua vez, não
necessita do para-si para ser. A ontologia, mesmo mostrando a união sintética entre
esses dois reinos do ser, não pode, por seus meios, chegar à totalização. Nesse
sentido, o trabalho da metafísica parece ser a complementação da ontologia de
Sartre, o terreno onde a descrição das estruturas do ser termina e inicia a descrição
de acontecimentos.
O ser total deve comportar o em-si e o para-si; deve ser para-si fundamentado
no em-si ao mesmo tempo em que é consciente de si, ou seja, o ser-em-si-para-si. E
mais uma vez essa pretensão fracassa, já que o ens causa sui nada mais é que
projeto do para-si, a sua forma de realização que por ele vem ao ser. Fica ainda
mais complicado quando se percebe que o em-si, para buscar fundamentação,
precisa estar longe de si, o que o torna consciência; o para-si, por sua vez, se for
idêntico a si, nada mais é que em-si. Assim, em O Ser e o Nada não se pode decidir
462
SARTRE, 1943, p. 35.
463
Sartre afirma que o ser simplesmente é, sem razão nem necessidade; a facticidade, por sua vez,
pode ser considerada a porção de em-si que adentra o para-si e torna-o, também, contingente. Por
isso, é cabível encontrar a contingência não apenas no para-si, que se constata como injustificável e
impossibilitado de se fundamentar (já que fundamenta o nada em seu ser, mas não pode
fundamentar seu ser), mas também no em-si que, ao que parece, distancia-se de si em busca de
fundamentação, tornando-se para-si. SARTRE, 1943, pp. 711 ss.
464
SARTRE, 1943, p. 713.
204
se há apenas um ser (totalidade) em constante desintegração ou dois seres que se
relacionam. O ser se mostra ambíguo; disso decorre que “podemos insistir ad libitum
sobre a dependência dos seres considerados ou sobre sua independência”;
465
na
mesma medida, o para-si de alguma forma é, o que torna secundário determinar sua
origem. A ontologia e suas conquistas continuam as mesmas, porém, sem uma
conclusão sobre se o para-si é em-si que se nega em busca de fundamentação;
indiferente também à resposta se o para-si está articulado com o em-si numa
dualidade seccionada ou compondo um ser desintegrado.
Graças ao método regressivo, Sartre mostra os dois fundamentos do
concreto: o em-si e o para-si;
466
mas, ainda que fundamentais, eles estão
permeados pela contingência. O ser necessário está para além do concreto e não
em sua fundação. “O fundamento da legitimação não pode ser senão um valor
absoluto, um ser normativo” e, dessa forma, estar no horizonte, como algo a ser
alcançado;
467
a conseqüência imediata é que a totalidade é impossível. E isso ainda
não é tudo, considerando que, para Merleau-Ponty, a filosofia de Sartre ainda carece
de encarnar-se no mundo; segundo ele, O Ser e o Nada se reduz a uma repetição
ininterrupta e sem superação dos fundamentos da introdução da obra: o ser e o
nada. Será que essa opção metodológica gerou uma quimera de mais de setecentas
páginas?
Já não se trata de analisar o método sartriano no seu detalhe; é preciso uma
perspectiva mais ampla. Está suficientemente claro que mesmo com vários aportes
metodológicos, ao menos uma linha mestra pôde ser aclarada: o método analítico-
regressivo, método esse que gerou todas as dificuldades para compreender a
estruturação da obra de Sartre e que produziu, por fim, a impossibilidade de
totalização. Esses problemas serão tematizados a seguir, não mais unicamente a
partir da obra de Sartre, mas aproveitando a crítica de Merleau-Ponty às filosofias do
negativo. Espera-se que, do mesmo modo que a Fênix renasce das cinzas, a
pretensão de Sartre, a respeito do existencialismo, engendrado pelo marxismo,
contribuir para que o marxismo supere sua crise, renasça. E deveras se espera que
a metáfora seja plausível porque, após essa crítica, pode não ter sobrado nada de O
Ser e o Nada além de cinzas.
465
SARTRE, 1943, p. 717.
466
Conforme o mostra La Dialectique de Sartre. SEEL, 1995, pp. 262 ss.
467
SARTRE, 1943, p. 136.
205
2 O método progressivo-regressivo
Mostrar os limites da interpretação psicanalítica e da
explicação marxista, e que apenas a liberdade pode
dar conta de uma pessoa em sua totalidade, fazer
ver essa liberdade enlaçada com o destino, (...),
retratar, em detalhes, a história de uma libertação:
eis o que eu quis.
Sartre (Écrits)
Sartre pretendeu, partindo do concreto total, superar a oposição do idealismo
e do realismo, afirmar a soberania da consciência e a presença do mundo. Mas,
será que a dissolução da dualidade entre consciência e objeto num mundo, mesmo
que resolva o problema da dicotomia entre realismo e idealismo, não fez com que
sua filosofia se tornasse um pensamento de sobrevôo que não chega a tocar a
realidade efetiva do mundo?
468
De fato, desaparece a antinomia do realismo e do
idealismo, afinal, se o conhecimento foi reduzido à nadificação do para-si a si
mesmo enquanto negação do ser, nada é acrescentado ou retirado do ser; por outro
lado, a consciência permanece, em si mesma, inalterada e incapaz de se deixar
moldar pelo em-si. O projeto de uma ontologia fenomenológica, da produção de uma
filosofia que em pleno século XX dê conta de tudo, não passaria impune.
Sartre concebe o ser como plenitude e positividade absolutas, e isso é
possível graças à purificação da consciência de toda substancialidade; desse modo,
há uma escolha prévia da filosofia da negatividade absoluta. Por isso, é justo inserir
a filosofia de Sartre, em especial O Ser e o Nada, num conjunto de filosofias que tem
como ponto de partida a fé perceptiva, entendida como o método que busca no
mundo as razões da verdade que descreve. Em sua ontologia, Sartre afirma que “O
que o fenômeno é, é absolutamente, pois se desvela como é”, e conclui que “há um
ser da coisa percebida enquanto percebida.”
469
É no mundo que a ontologia de
Sartre tem sua origem; o si, ou consciência, a que se chega está previamente
alienado no ser (em ek-stase) porque não pode, por si mesmo, existir; em
contrapartida, a coisa que aparece “é o que repousa sobre si mesmo, (...) ela é
exatamente o que é, inteiramente em ato, sem qualquer virtualidade, nem potência,
que é por definição ‘transcendente’, colocando-se por fora de toda interioridade, à
468
MERLEAU-PONTY, 1984, pp. 57-104.
469
SARTRE, 1943, pp. 12-24.
206
qual é absolutamente estranha.”
470
Uma vez que a consciência é esvaziada de todo
ser, aparece um duplo: de um lado o ser, absoluto positivo; de outro a consciência,
absoluta negatividade.
Para Merleau-Ponty é a partir desse duplo, ser e nada, que as filosofias da
negatividade tentam explicar o acesso primordial ao mundo. Entretanto, ao conceber
o homem como absoluta negatividade e o mundo como positividade, está rompida a
interação; o homem está só frente a um mundo maciço com o qual não há contato,
já que ele é o ser, e o homem nada. Por outro lado, é exatamente por isso que o
homem está destinado ao mundo e o mundo a si. A radicalidade de Sartre consiste
em elevar ao máximo o não-ser da consciência e a absoluta positividade do ser,
dissolvendo assim o problema da relação entre consciência e objeto. O ser, pleno de
si, não apresenta falta alguma, cabendo ao homem o papel de postular o nada (que
é seu ser) no meio do ser. Pensar o negativo é pensar o que não é, dado que
oferece a Sartre a imensa vantagem de superar a dualidade, já que o homem é um
buraco que se cava na exata medida em que se enche.
O ser, na sua positividade absoluta, é o reverso do nada que, nada sendo,
não necessita reunir-se ao ser, pois nada lhe acrescenta; o ser continua tal qual era
antes da adição. Marilena Chauí, tendo por base a crítica feita por Merleau-Ponty às
filosofias da negatividade absoluta (seria o mesmo que dizer positividade absoluta),
descreve essa etapa como o momento glorioso de Sartre: não sobra nenhum dos
problemas clássicos da filosofia, uma vez que foram dissolvidos em sua base, pois,
se eram problemas de mistura e união, uma filosofia que leve a negatividade (ou a
positividade) ao extremo exclui do cenário qualquer dualidade e, com essa, os
problemas decorrentes. Mas as dificuldades são superadas porque a relação não
existe: a negação do para-si é afirmação do em-si. Resolvem-se os problemas de
conhecimento, mas isso é feito com base numa descrição de ser que, por sua
radicalidade, engloba o nada.
Assim, a crítica de Sartre a Hegel é aplicável a ele mesmo, pois tanto esse
como aquele, coloca previamente na definição de ser (plena positividade) a
negatividade que quer encontrar. Dizer que a consciência não é absolutamente é o
mesmo que dizer que o ser é de modo absoluto: o ser exige o nada; o nada
enquanto negatividade absoluta exige ser. Tudo não passa de um jogo de palavras
470
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 59.
207
superficial, que é incapaz de superar o círculo vicioso que se instaura. Chega-se,
então, ao inferno da filosofia de Sartre: essa mesma relação lábil entre o ser e o
nada se repete na relação entre os homens, e partindo de O Ser e o Nada, não
haveria como superar essa dificuldade. Porém, já foi mostrado que a Crítica é em
todos os aspectos um desdobramento necessário da ontologia fenomenológica, o
que deixa claro que Sartre supera sim a dualidade e, mais do que isso, descreve a
gênese ideal da sociedade partindo do ser-para-si e do ser-para-outro.
471
De que
modo isso foi possível?
Levando-se em conta a cronologia das obras, é bem provável que Merleau-
Ponty não tenha conhecido a Crítica de Sartre; decorre daí que, segundo sua
interpretação da filosofia do negativo de Sartre, a superação da dualidade não é
mais que aparente. Para Merleau-Ponty a radicalização da negatividade suprime os
problemas clássicos de mistura e união, e o faz por considerar superficialmente o
ser e o nada. “É só na aparência que reconciliamos a consciência imanente e a
transcendência do ser por meio de uma analítica do Ser e do Nada: (...). O nada e o
ser são sempre absolutamente outros, é precisamente seu isolamento que os une;
não estão verdadeiramente unidos, mas apenas se sucedem mais depressa diante
do pensamento”.
472
É assim que no decorrer de toda sua obra Sartre recorre ao mesmo ser e ao
mesmo nada; não há passagem de um a outro, não há progresso, nem síntese, não
há transformação da antítese inicial. O nada encontrado no mundo é apenas o ser
(ausência de ser, mais propriamente) da consciência; o ser, ainda que negado,
continua o mesmo, já que a negação promovida pelo para-si é incapaz de modificá-
lo. Por isso, são sinônimos não ser nada e habitar o mundo; com a abolição da
primazia do conhecimento, o mundo não está verdadeiramente fundado no cogito,
retirando do plano teórico a escolha entre irrefletido e reflexão, entre fé perceptiva e
imanência; esta seria a solução de Sartre para a dicotomia entre realismo e
idealismo.
Ironicamente, Merleau-Ponty chega à conclusão de que o pensamento do
negativo finaliza a pesquisa, deixando a filosofia pronta e acabada. E o faz pela
dissolução, afinal, pensar ser e nada como absolutamente opostos é pensá-los
idênticos e, ao mesmo tempo, irredutíveis um ao outro. Sartre, ao colocar o nada
471
Parte II, O NECESSÁRIO DESDOBRAMENTO DE EN NUMA CRD.
472
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 75.
208
como absolutamente contrário do ser, pode, pela absolutização do ser, mostrar que
o nada lhe é, de alguma forma, interior e assim descrever o mundo. O movimento da
filosofia de Sartre, por uma escolha prévia do negativo, leva-o ao ser absoluto e
plenamente positivo; mas não é possível ali permanecer e há um retorno ao nada.
Então, quando devemos acreditar em Sartre? No início ou no fim?
Primeiramente, o ser é definido em sentido restrito e em toda sua extensão
exclui o nada, não precisando desse nem mesmo para ser nomeado. A seguir, o ser
é entendido em sentido amplo e, de alguma forma, contém o nada. Noutras
palavras, na primeira concepção o nada chama o ser (o ser é considerado do ponto
de vista do nada) e na segunda o ser chama o nada (o nada do ponto de vista do
ser). Essas duas noções se cruzam, sendo que na primeira o ser é negação da
negação, possuindo a infra-estrutura do nada; na segunda o nada é posição
reiterada, possui a infra-estrutura do ser. Pensar o negativo puro é afirmar que ser
homem é ser nada; fora isso há o ser. “O poder reconhecido ao filósofo de nomear
este nada que ele é, de coincidir com essa fissura no ser já é uma variante do
princípio de identidade que define o ser”.
473
A concepção prévia de uma filosofia do
negativo absoluto escolhe pensar a identidade e coloca para a filosofia uma
armadilha: na medida em que o ser é o absolutamente positivo, há de se admitir que
a consciência se reveste de uma aparência de ser, porque ela é seu oposto, é nada.
Portanto, a consciência imanente e a transcendência do ser são
aparentemente reunidas graças a uma analítica do ser e do nada. Porém, isso
requer uma noção ambivalente do cogito pré-reflexivo que, em dado momento,
permanece ele mesmo idêntico a si para, quando lhe aprouver, tocar a noite do em-
si. Na verdade, o em-si, positividade absoluta, desde o início está destinado a ser
conhecido, uma vez que foi descrito como auto negação do negativo (absolutamente
positivo). O progresso da investigação não modifica a idéia do nada, pois é ao
mesmo nada que sempre se referiu. Há apenas um espectador (Sartre) que assiste
ao progresso sem ser arrastado por ele; isto significa que o movimento é ilusório,
pois o negativo puro continua inacessível, tendo o ser apenas como vizinho
inalterado e que não o altera.
Um pensamento que radicalize o negativo permite que ser e nada troquem de
papel, visto que se evidencia apenas o corte entre eles; “O pensamento do negativo
473
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 72.
209
puro ou positivo puro é, pois, um pensamento de sobrevôo, que opera sobre a
essência ou a pura negação da essência, sobre termos cuja significação já foi fixada
e que mantém em sua posse.”
474
É esse artifício que produz uma filosofia forte pois,
sendo um simples jogo desencarnado, não é passível de refutação; entretanto,
também fraca, por não ser encarnada e, assim, não resistir à experiência.
Sartre, ao partir do cogito (nada absoluto) afirma o ser absoluto. Isso requer
que ser e nada sejam absolutamente distintos; mas a origem do nada só poderia
estar no ser, permitindo que a aproximação, seja ao nada ou ao ser, remeta à
dependência do nada ao ser. Está claro que, embora o ser subsista sem o nada,
necessita dele para ser dessa ou daquela forma, ou para existir como fenômeno.
Essa interdependência permite pressionar a experiência confusa e nela encontrar a
negatividade e o ser absoluto negado: “confiamos inteiramente além do visível
naquilo que pensamos sob os termos de ser e de nada, praticamos um pensamento
‘essencialista’ que se refere às significações além da experiência, e assim
construímos nossas relações com o mundo”.
475
O resultado é que a filosofia do
negativo, ao estabelecer-se do ponto de vista do olhar, identifica o pensamento à
vida. Por isso Sartre define o para-si como sendo o que não é e não sendo à
maneira do ser: a espontaneidade é ser no modo de não ser; a crítica reflexiva é o
não ser no modo de ser.
A descrição da experiência como mistura do ser e do nada confirma sua
distinção absoluta; o resultado é que não há casamento possível entre esse
pensamento (negativo) e a experiência, cabendo ao filósofo buscar atrás da visão a
carne que compõe o mundo, o ponto intermediário entre o ser e o nada. Ao tomar
uma decisão ontológica prévia (o ser é, o nada não é), o resultado será sempre o
mesmo. Mas resta uma saída: levar a sério a proposta do pensamento do nada
oriundo do ser; nesse ponto, Merleau-Ponty, referindo-se especificamente a O Ser e
o Nada, propõe uma alternativa para superar a pura abstração sartriana: passar da
simples intuição do ser para a dialética.
Dialeticamente seria possível superar o caráter simplesmente teórico de O
Ser e o Nada: o pensamento não acompanharia um trajeto estabelecido de
antemão, mas, por si mesmo, ao percorrer o caminho, mostraria sua verdade. As
relações com o ser seriam engendradas de maneira que o filósofo não fosse uma
474
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 74.
475
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 88.
210
testemunha estranha, mas implicada no movimento: o filósofo sempre está implicado
nos problemas que levanta e não existe verdade se não se considera a presença do
filósofo que enuncia. O pensamento dialético tem condições de encarnar a descrição
do mundo porque ele reúne contradições; além disso, para a dialética, a verdade do
em-si e do para-si vai além deles mesmos, o que não admite uma verdade prévia
que norteie o desenvolvimento do pensamento, ou seja, “o pensamento dialético é o
que, seja em suas relações interiores ao ser, seja nas relações do ser comigo,
admite que cada termo só é ele mesmo voltando-se para o termo oposto, torna-se o
que é pelo movimento”, movimento esse que o filósofo, do interior, acompanha.
476
Ainda segundo Merleau-Ponty, a dialética é o pensamento capaz de superar a
simples antinomia do ser e do nada que Sartre mantém em sua filosofia, haja vista
que esse é o único pensamento capaz de acompanhar o movimento real do ser ao
nada (e vice-versa) e, desse, descrever o mundo. Mas, para tanto, é necessário que
o mundo exista em profundidade antes da negação promovida pelo para-si. Torna-
se imprescindível que a dialética não se cristalize em nenhuma de suas etapas; seu
objeto, o mundo, está sempre presente na contradição entre ser e nada, no
movimento centrípeto e centrífugo que é a própria dialética. A dialética, por ser
expressão do mundo, é contato direto com o ser, está em situação e pode sacudir as
falsas evidências, denunciar as significações cortadas da experiência do ser,
esvaziadas por uma opção ontológica prévia. A filosofia da negatividade radical
permanece sempre idêntica a si, como eterno recuo à positividade. Se Sartre está
correto em negar que a mediação provenha do ser (absoluta positividade), engana-
se ao relegá-la a um abismo exterior ao ser (o para-si), pois dessa feita não há mais
possibilidade de relação com o ser.
Ao elevar a negação ao absoluto, Sartre mostra que a negação é também
negação de si mesma; isso reafirma que o ser é o absoluto positivo. São descritos
dois absolutos que têm, em sua definição, a identidade. O movimento, do ser ao
nada e do nada ao ser, se cristaliza nessa identidade forjada: “em Sartre, a oposição
absoluta entre o ser e o nada dá lugar ao retorno ao positivo, a um sacrifício do
para-si – com a diferença [em relação a Hegel] que Sartre mantém em seu rigor a
consciência do negativo como margem do ser, e que a negação da negação não é
476
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 92.
211
para ele operação especulativa, desdobramento de Deus, e que o em-si-para-si, por
conseguinte, permanece para ele ilusão natural do para-si”.
477
A razão das dificuldades da ontologia de Sartre é a mesma de Hegel: tanto
num quanto noutro o pensamento deixa de acompanhar ou de ser o movimento
dialético, converte-o em significação e recai na imagem ambivalente do nada que se
sacrifica em favor do ser e do ser que, de sua absoluta positividade, tolera ser
reconhecido pelo nada. Sartre, a exemplo de Hegel, cai na armadilha do
pensamento dialético, que o leva a incorrer na ambivalência. Isso porque, sendo a
dialética o movimento mesmo, caso não se lhe adentre e simplesmente o
acompanhe, corre-se o risco de tornar esse movimento uma potência de ser, um
princípio explicativo. Uma vez que o movimento esteja cristalizado, a ambivalência é
o destino certo e, como tal, não passa despercebida: expressa a dicotomia e a
sensação de sobrevôo. Escapa à realidade do ser, cria um estereótipo no qual o
mundo é enquadrado à força em princípios prévios. Enfim, descreve um mundo
falseado.
A decorrência desse erro essencial é o solipsismo que, para Merleau-Ponty,
Sartre não supera;
478
a partir desse erro fundamental, na filosofia de Sartre a relação
entre os homens está barrada em seu início, o que bem o mostra as relações
concretas com o outro. A decorrência é nefasta: não há como passar da ontologia de
Sartre ao plano concreto. Porém, já foi visto que Sartre, sem abrir mão da ontologia,
passa à sociedade e à história; e, também, foi indicado que Merleau-Ponty pode não
ter conhecido a Crítica. Contudo, uma vez que a pretensa impossibilidade de
superar a dicotomia do ser e do nada é a razão para que não haja relação social
concreta entre os homens, o que serve de argumento para que a Crítica seja
considerada um reinício da filosofia de Sartre, é preciso aprofundar essa questão.
477
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 94.
478
Para Marcuse, porém, é o modo de superação do solipsismo de Sartre que gera as dificuldades
para se falar em sociedade: “A análise ontológica do Ser-para-si configura um quadro para a
interpretação da existência do outro (...). Essa transição coloca um problema decisivo. Sartre segue
tão de perto a concepção idealista da auto-consciência (Ego cogito) como origem transcendental e
‘criadora’ de todo Ser que constantemente corre o perigo do solipsismo transcendental. Ele o aceita e
mostra numa excelente crítica a Husserl e Heidegger (e Hegel) que suas tentativas de apresentar o
Ser do Outro como um fato ontológico independente fracassaram, que neles todos, a existência do
Outro foi mais ou menos absorvida pela existência do Ego. O próprio Sartre renuncia a todos os
esforços para derivar ontolgicamente a existência do Outro (...)”, mas “A experiência do Cogito,
constitutiva da existência do Outro, consiste em ser-visto-por-outro (homem)”; assim, “O olhar do
outro me transforma numa coisa entre coisas, minha existência em ‘natureza’, aliena minhas
possibilidades, ‘rouba’ meu mundo”. MARCUSE, 1998, pp. 59-60.
212
Já foram apresentadas muitas dificuldades que têm no método analítico sua
origem; a crítica à filosofia da negatividade, apanhada do texto de Merleau-Ponty,
mostra dois problemas fundamentais: superficialidade no tratamento da realidade e
constituição prévia de um modelo que gerencia as relações entre ser e nada. Note-
se que a crítica que Sartre fez inicialmente aos marxistas é, no mínimo, muito
parecida com a crítica que lhe seria dirigida pelo texto de Merleau-Ponty: ter um
pensamento de sobrevôo (desconsiderar a práxis); partir de uma noção prévia de
ser e nada (submeter o homem e as coisas à idéia a priori). O objetivo dessa tese
não é decidir sobre a justeza dessa crítica, mas, antes, procurar entender sua
decorrência para a interpretação da obra de Sartre. E Merleau-Ponty adianta
bastante o trabalho ao afirmar que Sartre desconsidera que o mundo existe em
profundidade antes da negação do para-si; indica, inclusive, o caminho a seguir: a
dialética.
Em vista da difícil situação da filosofia de Sartre frente essa crítica temporã,
afinal, trata-se de uma pergunta que se apresenta depois da resposta, nada mais
apropriado que retornar às questões de método e avaliar as razões do aparente
monte de cinzas que produz a regressão analítica ou, como diria Merleau-Ponty, a
analítica do ser e do nada.
479
Aparente porque, mesmo ante a ácida crítica cabível a
O Ser e o Nada, Sartre não se dá por vencido e, dezessete anos depois, publica a
Crítica da Razão Dialética. Nesta, Sartre afirma que seu existencialismo foi gerado à
distância pelo marxismo; e os novos métodos existencialistas, se acrescidos à
filosofia dominante, poderiam ajudá-la a superar sua crise. Deve haver, no aporte
metodológico, algum aspecto não levado em conta que, de uma só vez, explique a
estruturação de O Ser e o Nada e dê conta das razões da impossibilidade de
totalização (conclusão da obra). Mais ainda, que explique de que modo a filosofia de
Sartre supera a dicotomia da relação com o outro e, portanto, permite falar em
história sem que, para isso, seja preciso renegar a obra anterior.
Os objetivos iniciais de Sartre já estão determinados: 1º) manter a autonomia
da consciência (liberdade) e, nesse sentido, o cogito é entendido por ele como
reflexão purificada, como garantia de que a pesquisa é verdadeira; 2º) manter a
presença do mundo real e superar o idealismo, o que impede qualquer tipo de
479
Note-se que a Crítica, obra declaradamente dialética e que responde à maioria das indagações
presentes em O Visível e o invisível, foi publicada em 1960; o texto de Merleau-Ponty foi publicado
apenas em 1964, e, segundo Claude Lefort, escrito entre 1959 e 1960.
213
representação ou redução, e, além disso, exige descrever a sociedade constituída;
3º) partir do concreto total, o que explica a guinada existencial e, desse modo, que a
análise tenha como gênese o ser-no-mundo (ou, o homem no mundo, o que reúne
num mesmo patamar liberdade e facticidade), e chegar ao concreto absoluto,
reafirmando a necessidade de também dar conta da história; 4º) fazer uso de um
método regressivo, que parte do dado e busca, respeitando a série que se
apresenta, os princípios fundamentais daquilo que se mostra imediatamente. Mas,
por que a segunda parte de O Ser e o Nada tematiza exclusivamente o ser-para-si
(abstrato), se o ponto de partida deveria ser o homem-no-mundo (concreto)? E como
explicar a passagem de ser-para-outro à sociedade e à história, ou melhor, como
superar o quadro de objetivação entre os para-sis?
Questões de método tem um subtítulo que sugere a saída para essa
encruzilhada: o método progressivo-regressivo. A analítica, estrutura metodológica
utilizada na introdução de O Ser e o Nada, é a porção regressiva dessa díade; é a
partir da análise do ser do fenômeno que Sartre chega ao em-si e ao para-si,
modalidades do Ser. Deve-se perceber, todavia, que o ponto de partida
metodológico tem duas características diferentes, a saber, o aspecto analítico e o
aspecto regressivo. “Do ponto de vista da regressão, o ponto de partida é isso que é
imediatamente dado, (...) o primeiro para nós. Esse ponto de partida é compreendido
como isso que é condicionado, isso a partir do qual se interroga sobre as condições
subjacentes, a saber, sobre os princípios que formam isso que é primeiro em si”.
480
Desse modo se explica por que Sartre afirma que basta abrir os olhos e interrogar a
totalidade homem no mundo, pois o condicionado permite perscrutar a condição, a
totalidade sintética (mundo) permite entender o fundamento de todas as coisas que
são.
Nesse sentido, uma vez que a porção regressiva é também analítica, na
perspectiva da análise, o ponto de partida aparece como o concreto total, um
composto que contém como seus momentos os princípios abstratos. É desse modo
que Sartre, partindo da análise do ser do fenômeno chega a dois tipos de ser, o em-
si e o para-si; é também isso que explica a passagem da introdução à primeira parte
da obra, na qual se percebe claramente a passagem do abstrato (em-si e para-si)
para o concreto (homem no mundo). São várias as etapas que conduzem do dado
480
SEEL, 1995, p. 76.
214
ao princípio, ou do mundo a seu fundamento último. Porém, falta saber o que vem a
ser a progressão e de que maneira ela se articula com a regressão.
Não há nada explícito em O Ser e o Nada que dê conta desse segundo
aspecto do método; a indicação nevrálgica desse estudo indica (e indica fortemente)
que a peça fundamental desse problema ainda não foi sequer tocada. Tem-se já
uma idéia bastante clara do que vem a ser o concreto total, ponto de partida da
filosofia de Sartre; mas o que é o concreto absoluto, objetivo final de sua
empreitada? O comentário de Sartre, partir do concreto total e chegar ao concreto
absoluto, indica a amplitude dos problemas que o filósofo tentou resolver. E pode ser
esta pretensão uma alternativa para entender as dificuldades metodológicas que a
obra de Sartre suscita. Antes, porém, é preciso verificar de que maneira o filósofo
reúne análise e síntese, ou progressão e regressão.
Segundo Seel, a dialética de Sartre é, em todos seus aspectos, a inversão
exata do caminho analítico-regressivo. “A dialética parte do princípio, e ela quer
conduzir ao principiado (a isso que o princípio condiciona). (...) O caminho dialético
é, então, ‘progressivo’. O ponto de partida da dialética é ‘o imediato’, no sentido de
absolutamente simples. Seu objetivo, ao contrário, é o concreto, o composto ou o
‘mediatizado’”.
481
Assim, sendo o percurso regido pela mediação, essa porção do
método é sintética; de um lado trata-se da regressão analítica e de outro da
progressão sintética, ou dialética. E, uma vez que, metodologicamente, a dialética
tem como ideal um termo último (acabado), seu objetivo é o absoluto concreto;
sendo assim, parece compreensível a pretensão sartriana de partir do concreto total,
via regressão, e chegar ao concreto absoluto, dialeticamente.
A regressão analítica, definida em O Imaginário como uma análise crítica do
dado, é a razão das cinzas que restaram; ora, o método analítico regressivo parte
daquilo que é imediatamente acessível, daquilo que é mais próximo; da análise dos
fenômenos, busca-se chegar aos princípios que regem sua aparição. O exame
preliminar do fenômeno de ser, empreendido na introdução de O Ser e o Nada,
mostra que ele apresenta uma raiz dupla, ou melhor, são dois os princípios: ser-
para-si e ser-em-si. Quando compreendido regressivamente, a análise mostra que o
concreto é justamente o mundo, a união específica da consciência com o objeto, isto
481
SEEL, 1995, p. 77.
215
é, “não convém separar no início dois termos de uma relação para tentar reuni-los
em seguida: a relação é síntese”.
482
O concreto, por sua vez, é formado por princípios abstratos. Esses princípios
são fundamentos de todas as coisas, o fundamento último de todo fenômeno. Assim
sendo, aquilo que a análise regressiva traz à luz é o princípio absolutamente simples
e, como tal, não pode ser analisado. Tem-se, desse modo, aclarado o percurso
regressivo-analítico: parte do concreto (dado) rumo ao abstrato (ser); parte do
complexo (mundo) em direção ao simples (princípios). O condicionado apenas pode
se dar na experiência (parte-se sempre da experiência, ou, a descreve); há
subordinação, portanto, das condições umas às outras, há uma série e, desse modo,
regressão. Por fim, se as condições de ser são coordenadas, elas podem também
ser analisadas.
Contudo, uma pergunta continua sem resposta: a introdução de O Ser e Nada
mostra que são duas regiões do ser, o para-si (percipiens) e o em-si (percipi) sem
apresentar qualquer possibilidade de relação entre elas. Como pode haver um
mundo se o em-si é absolutamente fechado em si mesmo, ou simplesmente é? A
introdução de O Ser e o Nada mostra que Sartre não está simplesmente tratando de
uma questão isolada da teoria do conhecimento, mas que, de fato, anseia por uma
filosofia que dê conta de tudo. É preciso discursar sobre o ser, sobre o
conhecimento e, sobretudo, a respeito da articulação entre o conhecimento do
mundo e o mundo. Mas como superar tanto o idealismo quanto o realismo se, no
início, a análise do fenômeno redunda numa aporia?
483
A resposta parece estar na relação entre a progressão e a regressão. Da
maneira como Gerhard Seel entende essas duas porções do método, sendo uma
exatamente o contrário da outra, poder-se-ia concluir por sua equivalência; não
haveria dependência entre elas e, desse modo, apenas mudaria o ponto de partida.
Mas não é bem assim, na medida em que a análise depende da dialética para
encontrar seu acabamento; “Nós constatamos na conclusão que a analítica, em vista
482
SARTRE, 1943, p. 37.
483
Na mesma medida em que a superação do solipsismo, proposta por Sartre, é notadamente
resultante da dialética do senhor e do escravo, a parte progressiva do método tem também em Hegel
sua inspiração: “Em primeiro lugar, esta progressão naquilo que ela começa, à partir de
determinações simples, e que as seguintes se tornam sempre mais ricas e mais completas” (HEGEL,
1968, tomo II, 388, citado por SEEL, 1995, p. 77). Assim, uma vez que Hegel, antes de escrever sua
Lógica, desenvolveu uma Fenomenologia, Sartre, evidentemente por outro caminho, repete Hegel.
216
do problema de seu acabamento, se transforma necessariamente em dialética”.
484
A
dialética, por sua vez, não necessita de apoio analítico (ou da experiência), já que
segue as regras de sua necessidade interna. Porém, no caso da filosofia de Sartre,
a dialética depende da analítica. Que razões teria o filósofo para isso?
Para mostrar essa concepção revolucionária da dialética de Sartre, Seel
reconstrói a analítica e a dialética a partir de suas condições de possibilidade; a
condição de possibilidade da porção analítico-regressiva é uma lei geral de ser
segundo a qual o condicionado não pode ser sem a soma de suas condições. Isso
remete a Kant: “Para poder enumerar estas idéias, segundo um princípio e com
precisão sistemática, temos de observar primeiramente que os conceitos puros e
transcendentais só podem ser provenientes do entendimento; que a razão não
produz, propriamente, conceito algum, apenas liberta o conceito do entendimento
das limitações inevitáveis da experiência possível, e tenta alargá-lo para além dos
limites do empírico, embora em relação com este”.
485
Sendo assim, o método
analítico-regressivo tem necessariamente que partir da experiência, afinal apenas aí
o condicionado pode se dar.
O princípio kantiano afirma, ainda, que “Isto acontece porque a razão, para
um condicionado dado, exige absoluta totalidade da parte das condições, (...): se é
dado o condicionado, é igualmente dada toda a soma das condições e, por
conseguinte, também o absolutamente incondicionado”.
486
Por isso, ao partir da
experiência (do dado), Sartre pode fazer uma regressão porque todas as condições
estão subordinadas umas às outras numa série, e pode analisá-las, pois essas
condições estão subordinadas entre si. Como passar, então, da análise à dialética?
“A possibilidade do método progressivo e dialético repousa, além da lei ontológica
indicada, sob uma condição suplementar. Se é exigida a progressão, que vai do
simples ao concreto, do princípio àquilo que é condicionado por esse princípio, do
momento à totalidade, (...) a totalidade deve, por sua vez, formar a condicio sine qua
non do simples, do princípio, do momento”.
487
A inter-relação entre a regressão e a progressão se dá, portanto,
necessariamente, na medida em que a parte é condição do todo de maneira
dependente e o todo, por sua vez, é condição da parte de maneira necessária. A
484
SEEL, 1995, p. 79.
485
KANT, 1994, p. 381.
486
KANT, 1994, p. 381
487
SEEL, 1995, pp. 80-81.
217
relação do homem com qualquer objeto pode ser analisada desde que se leve em
conta que ela invariavelmente se dá na intuição pura; a seguir, há uma síntese
operada pela imaginação. É o entendimento que promove uma síntese dos dados da
intuição pura, ou seja, é ele que fornece a unidade que a princípio parecia ser uma
necessidade sintética; “por esse motivo se dá a essas representações o nome de
conceitos puros do entendimento, que se aplicam a priori aos objetos, o que não é
do alcance da lógica geral”.
488
A exigência regressiva do método sartriano começa a
ser explicada.
Em O Ser e o Nada, para explicar o indivíduo (psicanálise existencial) Sartre
toma como fundamento a escolha que o homem faz de si mesmo;
489
mas também ali
o passado atua de forma irresistível. De fato, é a partir do sujeito e da interpretação
que ele pode fazer de seu passado que seu presente faz sentido. Assim, a
passagem à sociedade constituída exige que o homem continue a se escolher;
porém, se sua situação não foi escolhida, a liberdade permanece na medida em que
é livre a relação que será estabelecida com essa situação. É assim que Genet
decide livremente fazer o que quiser com aquilo que fizeram dele;
490
mas o poeta é
um homem de fato numa situação datada e real. A regressão permite produzir um
saber que explica sua situação; progressivamente, essa situação é recomposta em
toda sua complexidade a partir dos princípios analíticos.
É por isso que Seel chama a atenção, relativo à díade regressão e
progressão, para a superioridade da dialética em relação à análise: “para a analítica
apenas os princípios são entidades necessárias uma vez que o concreto do qual ela
parte comporta a contingência de um objeto da experiência”.
491
A dialética, por sua
vez, é superior porque faz o caminho inverso, de modo que o concreto seja o
resultado necessário e sintético do movimento. Disso decorre que a necessidade
dos princípios da análise não é mais do que uma necessidade analítica enquanto a
necessidade dialética é incondicional; sendo assim, por que Sartre insiste na porção
488
KANT, 1994, p. 110.
489
A noção de escolha fundamental não pode ser aplicada adequadamente, por exemplo, a Genet e
Flaubert, haja vista que a partir de 1950 Sartre já tinha ampliado a noção de situação, fazendo-a
confundir com a história; isso não significa o abandono da liberdade, mas ela sofre uma mudança
considerável, uma vez que está determinada historicamente. A contradição entre ser livre e, ao
mesmo tempo, determinado historicamente se resolve com a descrição ideal da gênese da
sociedade, empreendida na Crítica.
490
“O escravo é literal e efetivamente livre para romper seus grilhões, pois o próprio sentido (‘sens’)
de seus grilhões revela-se somente à luz do objetivo (Ziel) que escolhe: permanecer um escravo ou
arriscar o pior para se libertar da escravidão”. MARCUSE, 1998, p. 65.
491
SEEL, 1995, p. 81.
218
analítica do método? Por que há tanta preocupação em manter a porção regressiva,
se, como afirma Merleau-Ponty, apenas acompanhar o movimento do ser seria
suficiente?
Para responder é preciso recorrer a uma observação feita por Kant com
respeito a tábua dos juízos: “Assim, a totalidade (Allheit) não é outra coisa que a
pluralidade (Vielheit) considerada como unidade, a limitação é apenas a realidade
ligada à negação, a comunidade é a causalidade de uma substância em
determinação recíproca com outra substância e, por fim, a necessidade não é mais
que a existência dada pela própria possibilidade”.
492
Se a totalidade não é mais que
pluralidade e o condicionado remete necessariamente ao incondicionado, nada mais
justo que o ponto de partida da pesquisa filosófica seja o condicionado, o homem no
mundo, a analítica existencial. O ponto de partida analítico de Sartre não se deve a
uma escolha prévia pela absoluta positividade do ser, conforme quer Merleau-Ponty,
mas, ao contrário, para Sartre trata-se de discursar sobre o ser sem assumir uma
postura dogmática.
Não é justamente esse o argumento de Heidegger que, partindo da intuição
categorial, de Husserl, escreve sua ontologia? Mas, no caso de Sartre, a questão é
ainda mais complexa porque ele utiliza elementos heterogêneos: “Sua teoria se
apresenta, ao mesmo tempo, como ciência descritiva de essências, no sentido de
Husserl, como metafísica do conhecimento, no sentido de Nicolai Hartmann, como
ontologia do sujeito, sob os traços da análise heideggeriana da realidade humana, e
como teoria dedutiva”, conforme seria para Hegel.
493
É justamente essa mescla
metodológica que o filósofo coloca sob a rubrica de método progressivo-regressivo.
E, para marcar a diferença em relação a Heidegger, é preciso lembrar que a filosofia
de Sartre não se destitui da consciência: o cogito pré-reflexivo é o ponto a partir do
qual a filosofia deve ser iniciada.
Porém, parte-se da consciência absolutamente purificada e, ao mesmo
tempo, em relação originária e interna com o ser. Não se trata, ou melhor, não se
coloca a dicotomia do sujeito e do objeto. O método utilizado jamais pode ser
simplesmente confundido com aquele da razão analítica, na medida em que esse
apenas se aplica à matéria inerte; levando-se em conta que o homem é um ser que
se define por seus fins, absolutamente livre e se projeta rumo a seus possíveis, a
492
KANT, 1994, p. 114.
493
SEEL, 1995, p. 73.
219
análise não seria aplicável a ele. De fato, já foi visto que Sartre analisa ou regride do
concreto ao abstrato, mas isso em O Ser e o Nada é usado para explicar os
fundamentos do homem, não o homem ele mesmo, ou o homem na sua relação com
o mundo ou com outros homens. Uma vez que o indivíduo não é determinado por
causas (ele é contingente) nem por aquilo que o antecede (ele é livre), ele é
irredutível à sua situação. Se essa é a maneira de entender o homem na ontologia, o
mesmo vale para a sociedade de homens: “A partir daí, impõe-se-nos uma tarefa: a
de reconhecer a originalidade irredutível dos grupos sociopolíticos assim formados,
e defini-los em sua própria complexidade, através de seu incompleto
desenvolvimento e de sua objetivação desviada”.
494
Se o homem, individualmente, é irredutível à situação, também o é o homem
em sociedade; é evidente que a sociedade, composta por homens, não será outra
coisa que arrancamento e ultrapassamento em vista de algo; trata-se, não há
dúvida, de dialética. Em O Ser e o Nada Sartre, para entender o indivíduo, utiliza os
dois momentos do método: a análise permite construir um saber sobre as estruturas
fundamentais do homem e do mundo; a dialética permite recompor esses elementos
em sua complexidade. O mesmo modelo é utilizado pelo filósofo para escrever sua
Crítica, visto que é preciso, analiticamente, dar conta do fundamento da sociedade
constituída; e é isso o que se passa no primeiro tomo da Crítica da Razão dialética.
Porém, é preciso admitir que a parte da Crítica explorada nessa tese contempla
claramente o momento regressivo: foi visto que Sartre, a partir de um fato concreto
(uma fila de ônibus) descreve os fundamentos da sociedade organizada;
495
mas ele
também recompõe esses princípios, mostrando de que modo a sociedade teria se
estruturado, o que remete à porção progressiva. Por que a Crítica mesma não pode
ser considerada resultado da progressão de O Ser e o Nada, ou seja, resultado
dialético da análise do ser-para-outro?
Para deixar claro o objetivo de Sartre é preciso lembrar que o tomo II da
Crítica “será aquele do fundamento do saber histórico e da recomposição na
temporalidade. Enfim, quer se trate de indivíduos ou de conjuntos sociais, o percurso
de ‘vai-e-vem’ deve se multiplicar em todos os escalões”.
496
E se o Tomo I trata da
constituição ideal do grupo, isso se deve justamente ao fato de, a partir da ontologia,
494
SARTRE, 2002, p. 97.
495
Parte II, O NECESSÁRIO DESDOBRAMENTO DE EN NUMA CRD.
496
AUDRY, 1966, p. 82.
220
mostrar de que modo os indivíduos, absolutamente livres, se organizam em grupos,
em grupos de grupos e compõem, assim, a sociedade; e, por fim, mostrar que a
história, por ser dialética, é inteligível. Esta inteligibilidade não advém da natureza,
mas, ao contrário, da história humana (malgrado a redundância); é o homem, ser
negativo e dialético por excelência, que na sua livre práxis faz e compreende sua
história.
Após essa incursão sobre o método de Sartre é possível fazer um balanço e
retomar duas questões que ficaram pendentes no início desse texto. Parece que a
razão mais forte para Sartre propor um método que mantém tanto a análise quanto a
síntese se deve às dificuldades do ponto de partida: o horizonte de sua filosofia, não
se pode esquecer, é a fenomenologia. Nesse sentido, desde O Ser e o Nada, o
filósofo utiliza como aporte de sua pesquisa aquilo que lhe é mais próximo, o
concreto absoluto, o homem no mundo. Ora, não há meios de partir do princípio, do
ser indeterminado; toda pesquisa, e isso parece valer como um princípio para a
filosofia como um todo, está situada. Por se tratar de uma filosofia que quer dar
conta de tudo, para Sartre é preciso entender a situação a partir daquilo que a
fundamenta e o único meio, sem propor uma metafísica dogmática, é retroceder – é
perscrutar os princípios daquilo que é. Assim, a regressão se justifica.
Entender a situação presente, entender que o mundo é relação entre para-si e
em si, no entanto, não é suficiente; é preciso ir além e explicar a relação entre os
homens e, por mais que O Ser e o Nada não deixe isso explícito, subtende-se que
quando se fala em outro, fala-se em sociedade e em história. De outro modo, como
entender que as críticas a Sartre façam justamente essa exigência?
497
Assim, a
Crítica decorre naturalmente da ontologia, e uma obra apenas é compreensível em
razão da outra. Do mesmo modo que em O Ser e o nada Sartre, para entender o
indivíduo, parte da análise de condutas, descobre o fundamento ontológico do
homem e depois busca explicar a relação entre os homens, na Crítica o movimento
é o mesmo: parte de uma situação social fática, descobre os fundamentos que
possibilizam essa situação e retorna à sociedade para entendê-la. Trata-se do
método progressivo-regressivo que, no limite, é também a razão que justifica a
elaboração da Crítica.
497
A crítica mais comum à ontologia de Sartre é justamente a impossibilidade de, a partir da relação
objetivante com o outro, falar em sociedade; essa é a conclusão, por exemplo, de Merleau-Ponty, de
Marilena Chauí e de Gerd Bornheim.
221
A dialética tem como característica principal partir de princípios necessários e
absolutos. O problema aventado por Sartre é como dar conta de todas as facetas do
existente lançando mão de uma estrutura metodológica una. Nem o método dialético
(progressivo) nem o método analítico (regressivo) podem, sozinhos, dar conta da
complexidade da história, a menos que se trate de totalizações prévias como,
segundo Sartre, fazem alguns marxistas. A progressão dialética parte do momento
mais simples de um dado objeto e progride até sua realidade complexa, almejando o
todo; porém, no âmbito dialético, é uma arbitrariedade passar, sem justificativa, de
um plano a outro. Nesses momentos se encaixa o método regressivo que,
analiticamente (servindo-se de um fio condutor), permite a passagem e, desse
modo, possibilita a retomada da progressão.
498
Feito isso, pode-se retomar a obra de Sartre da perspectiva do todo e
responder por que a segunda parte de O Ser e o Nada tematiza exclusivamente o
ser-para-si (abstrato), se o ponto de partida deveria ser o homem-no-mundo
(concreto). Para isso é preciso reavaliar a estrutura de O Ser e o Nada; melhor,
agora, munidos de ambas as partes do método e tendo entendido sua pertinência e
imbricação, é o momento de também enquadrar a Crítica da Razão dialética no
intuito de responder outra questão pendente, a saber, como explicar a passagem de
ser-para-outro à sociedade e à história? Desse modo, espera-se que a afirmação de
um início inteiramente novo para a Crítica (que justificaria falar em dois Sartres) seja
superada e, além disso, que a insistência de ver em O Ser e o Nada a
impossibilidade de agremiação humana seja dissipada. A primeira parte desse
trabalho teve por objetivo mostrar essa ligação interna a partir de outros textos; mas
ela também precisa ficar evidente na passagem de uma obra técnica a outra.
É possível notar que a introdução da ontologia, ao tomar como ponto de
partida a idéia de fenômeno, chega ao ser mais fundamental, o em-si; a segunda
parte, por sua vez, analisa um tipo de ser bem mais complexo, o para-si. A terceira
parte analisa um ser ainda mais complexo, o para-outro. Poder-se-ia ver aí, graças
ao crescente de complexidade que tomam os objetos analisados, apenas o
progresso de uma pesquisa de cunho dialético, não fossem a primeira parte, que
trata do problema do nada, e a quarta parte, que trata do ter, fazer e ser. A
progressão do mais simples, em-si, passando pelo para-si e chegando ao para-
498
SEEL, 1995, pp. 65 a 144.
222
outro, o mais complexo, apenas se justifica se for levada em conta a parada analítica
que é feita já no primeiro capítulo da obra; na verdade, é essa análise que justifica
os fundamentos descritos na introdução (em-si e para-si). É justamente a análise do
problema do nada que permite a ligação não arbitrária entre o princípio fundamental
da introdução, o em-si, e a passagem desse para outro princípio mais complexo, o
para-si.
Os recuos analítico-regressivos de O Ser e o Nada preparam a subida ao
nível seguinte; é assim que ocorre quando da passagem da introdução para a
segunda parte. Pode-se argumentar que não há uma parte específica que trate da
passagem do nível do para-si ao para-outro; entretanto, com um pouco mais de
cuidado, pode-se notar que o primeiro capítulo da terceira parte, A existência do
outro, faz justamente esse papel. É daí que Sartre arranca a passagem para o nível
seguinte, calcado na análise que faz do para-si, que tem inscrito em seu ser a
existência indubitável do outro; o olhar dele sobre mim e minha contrapartida a esse
olhar torna inquestionável a saída do solipsismo em que o para-si, até esse
momento, se encontrava. E, uma vez superado o solipsismo, Sartre analisa
condutas pelas quais o para-si, na sua lida entre outros para-sis (o para-outro),
realiza seu ser. O próximo passo será a ampliação dessa relação entre os para-sis
que culmina na Crítica da razão Dialética.
Onde estaria a análise que explica a passagem do para-outro à história? A
quarta parte da ontologia fenomenológica cumpre esse papel. Em Ter, Fazer e Ser
Sartre inicia a descrição da estrutura mais complexa: a história. Não se trata de
substituir a relação objetivante anterior, mas sim de mostrar como ela se expande e
faz com que, a partir da relação originária entre os homens, de O Ser e o Nada, a
sociedade se estabeleça. “Esse conceito do Outro, como antagonista irredutível do
Ego, serve agora como base para a interpretação de Sartre das relações inter-
humanas”.
499
A parada analítica que permite a elaboração da Crítica está presente
na ontologia mesma; ora, se é assim, por que o filósofo não a complementou?
Porque após escrever uma obra de filosofia sente-se um vazio e não dá para
escrever outra em seguida. Também faltava conhecer a fundo o marxismo, responde
Sartre.
500
Ainda, segundo o filósofo, foram necessários vinte anos para que a
499
MARCUSE, 1998, pp. 61-62.
500
Filme Sartre par lui-même, em resposta à pergunta de Andre Gorz (SARTRE, 1970c).
223
segunda parte pudesse ser escrita e, depois de Flaubert, seria o momento de
escrever uma moral.
Assim, mesmo que apenas na Crítica Sartre coloque às claras o problema do
método, é preciso admitir que ele está presente desde o início de seus escritos.
Nossa tese é mostrar que a fase da Crítica não resulta de uma ruptura no conjunto
de sua obra; além da gênese de conceitos, outro liame no qual essa tese busca
sustentar-se é a questão metodológica: O Ser e o Nada parte da entidade mais
simples, o em-si; após uma regressão analítica, passa a uma entidade mais
complexa, o para-si, e desta, para uma ainda mais complexa, o para-outro.
Seguindo esse raciocínio, ou melhor, essa progressão, qual seria a próxima
entidade a ser analisada? Certamente a mais complexa de todas, a estrutura social
e, dessa, a história (uma vez constituído o grupo), justamente os temas que Sartre
traz a baila em sua Crítica. Porém, essa obra inicia-se colocando o método em
questão; a razão desse início cartesiano parece ser uma prestação de contas da
ideologia desenvolvida sob a égide do marxismo.
A dialética de Sartre, mesmo não tendo como ponto de partida o puro ser,
mas a situação, apresenta uma exigência imprescindível: que seus princípios sejam
verdadeiros. E, para Sartre, o meio encontrado por Hegel para garantir essa
veracidade a priori foi identificar ser e idéia. É certo que Sartre não está alheio à
guinada que Marx efetuou, em relação ao pensamento hegeliano, ao mostrar que o
ser não se reduz ao saber; desse modo, o idealismo absoluto é descartado e temos
a dialética da história. Sartre concorda com Marx, se não inteiramente, ao menos no
que se refere à incomensurabilidade da distância entre o ser e o pensamento.
Afirma, inclusive, que “em Hegel a dialética se faz sem provas”.
501
O que está em
questão é justamente a possibilidade de uma dialética da história na qual o indivíduo
não desapareça. Sendo assim, o que é dialética para Sartre?
Duas respostas seriam plausíveis para essa questão: ou bem a dialética é
apenas um simples método de pensamento ou bem é uma estrutura constatável nas
coisas. No primeiro caso seria arbitrário entender o mundo e as relações entre os
entes, afinal, a dialética não passaria de uma projeção transcendente de algo
imanente; no segundo caso, se a dialética pode ser constatável nas coisas, tratar-
se-ia de hiperempirismo, haja vista que isso exigiria a perfeita adequação entre a
501
SARTRE, 2002, p. 120.
224
imanência e a transcendência.
502
Além disso, considerar a dialética uma estrutura de
pensamento é render-se ao idealismo; considerar a dialética uma estrutura das
coisas, por sua vez, é elevar ao máximo o realismo em detrimento da liberdade.
Qual seria a melhor opção?
É nesse sentido que se coloca a questão metodológica para a filosofia de
Sartre. Para o filósofo a dialética deve se colocar entre o idealismo hegeliano e o
dogmatismo (hiperempirismo dialético) dos marxistas ortodoxos. Não há alternativas
além de “reivindicar a identidade do pensamento e do ser, do sujeito e do objeto,
com base na imanência do pensamento no ser”.
503
A dialética deve ser o caminho
pelo qual é possível descobrir a ligação objetiva dos fatos; mas a dialética não é, de
modo algum, uma metodologia única, sendo-lhe necessário um auxílio analítico.
Este seria o meio mais adequado para evitar as totalizações a priori e subverter a
desconsideração do indivíduo no que tange à constituição da história, justamente o
complemento metodológico que, segundo Sartre, falta aos marxistas.
Pode-se acreditar que Sartre não acrescenta nada ao método dialético que
este, de antemão, já não estivesse munido, e que, assim, a analítica do nada acaba
repetindo o neokantismo.
504
Porém, essa postura advém de uma compreensão
parcial da porção regressiva do método, como simplesmente o oposto do método
progressivo: se a dialética progride do simples ao concreto, do princípio até aquilo
que é condicionado por esse princípio, a regressão simplesmente faria o caminho
inverso. A complementação (passagem do simples ao complexo) se daria
necessariamente, e seria a condição para o simples, o princípio ou o momento.
Entretanto, o método progressivo-regressivo permite um duplo condicionamento
entre as partes: a condição interpenetra o condicionado e o princípio está presente
no momento.
505
A relação entre a parte e o todo passa a ser uma via de mão dupla,
e isso requer um ponto de partida específico: a análise do dado. Cada uma das
partes condiciona o todo na medida em que, por serem dependentes, precisam ser
502
SARTRE, 2002, p. 130.
503
SARTRE, 2002, p. 137. (grifo nosso).
504
“Portanto não é necessário aprofundar muito a crítica especulativa do método fenomenológico
para constatar que, mesmo entre os partidários mais sérios e mais objetivos, esse método chega a
opor a consciência do indivíduo isolado ao pretenso caos das coisas e dos homens, porque, sem
confessá-lo faz abstração de todo elemento social. Portanto, somente o sujeito pensante é suscetível
de criar uma ordem objetiva nesse caos. Em definitivo, o famoso ‘terceiro caminho’ que julgou
ultrapassar o materialismo e o idealismo, assim como a não menos famosa objetividade da
fenomenologia, levam-nos exatamente ao neokantismo”. LUKÁCS, 1979, p. 74.
505
SEEL, 1995, p. 66.
225
completadas com outras partes; quando concebidas dialeticamente elas, enquanto
momentos independentes, desaparecem, dando lugar a seus contrários. O todo, por
sua vez, é condição das partes na medida em que estas, quando são suprimidas, se
conservam nele. A parte é condição do todo porque é dele dependente, e o todo é
condição da parte porque é o absoluto que as conserva em seu ser.
Mas qual o ganho dessa proposta metodológica? Primeiramente, não é
possível pensar o método progressivo como o oposto do regressivo. Isso mostra que
a progressão é superior à análise, o que dá preponderância à dialética em
detrimento da regressão; mesmo assim, a analítica se torna imprescindível para uma
dialética não idealista. Noutros termos, numa pesquisa regressiva, apenas os
princípios são necessários, e o concreto comporta a contingência dos objetos;
progressivamente, o concreto é necessário, pois ele é resultante de um movimento
sintético. Metodologicamente, a progressão não está no mesmo nível que a
regressão, uma vez que a dialética leva ao concreto absoluto; a regressão, por sua
vez, permite iniciar a pesquisa partindo do concreto total.
Pode-se, em contrapartida, recorrer à necessidade dos princípios descobertos
na análise. De fato, os princípios são necessários, mas foi visto que sua
necessidade é simplesmente analítica. O concreto é o dado, aquilo que é
simplesmente. Dialeticamente, parte-se do absoluto, do incondicionado e chega-se
ao necessário. Mas o que faz com que se considere o método dialético superior à
análise e, por isso, ele seja utilizado sozinho? Certamente isso advém da aceitação
dogmática da verdade de seus princípios, isto é, da crença de que o todo predomina
sobre as partes em separado. Para evitar, seja o dogmatismo, seja a teologia da
matéria, Sartre propõe a junção da progressão e da regressão.
Desse modo, Sartre, no período de O Ser e o Nada, enfrenta uma série de
problemas ao mesmo tempo. E é por isso que ele sugere um novo método que deve
contribuir com marxismo, qual seja, a regressão acrescida à dialética. É verdade que
não há possibilidade de uma totalidade definitiva do para-si e do em-si, mas isso se
deve ao objeto da pesquisa: partir do concreto total e chegar ao concreto absoluto. A
dialética, nas mãos de Sartre, tem como ponto de partida a analítica existencial.
Assim, contrariamente ao que poderia pensar Merleau-Ponty, não é por causa de
uma dialética que a filosofia de Sartre oscila entre o ser e o nada; a totalização é
sempre parcial, trata-se do homem em sua práxis, e Sartre é o primeiro a reconhecer
que a história só é história se estiver aberta.
226
No caso de uma pesquisa unicamente dialética, além da na verdade de
seus princípios, é preciso também acreditar na síntese final e absoluta; nesse
sentido, trata-se de duas compreensões de história, seja como totalidade ou como
totalização em curso. De fato, não foi Sartre quem criou o conceito de totalização;
mas é ele quem, no âmbito marxista, faz uso dessa noção para se contrapor à
totalidade prévia na qual a história deve se enquadrar.
506
A razão para isso é manter
as conquistas de O Ser e o Nada, ou, o que quer dizer a mesma coisa, recuperar o
indivíduo no seio do marxismo. Assim, o objetivo de Sartre não é outro que entender
a determinação histórica a partir da liberdade, sem recorrer à verdade dos
fundamentos dialéticos nem estar preso à totalidade final e necessária da história; e
se o conceito de totalização foi utilizado por Lukács na década de 20, nada mais
justo que exigir da ortodoxia marxista o respeito às individualidades e, por isso, à
contingência da história, mesmo que seja a partir de elementos desenvolvidos (e
abandonados) por esses mesmos marxistas.
Ante a impossível totalidade, a filosofia trata da totalização em andamento,
que é a história. E o faz tendo como fio condutor o homem, não o ser humano
genérico, mas o homem que eu sou. O concreto absoluto exigiria, para ser
alcançado, que a história chegasse ao fim e, por isso, permanece como algo
inacessível do qual a história presente pode retirar seu sentido; mas isso não exime
a filosofia de ter um início realista, de partir do concreto total. O homem-no-mundo,
em sua união específica, é sem sombra de dúvida a opção mais plausível para
encarnar a descrição do homem, do mundo e da relação que os une. Esse aspecto
metodológico também é levado ao materialismo histórico que, se pelas mãos de
Marx sempre levou o indivíduo em consideração, nas mãos dos marxistas tornou-se
uma escolástica. É isso que Sartre entende quando fala em recuperar o homem no
seio da filosofia dominante ou em contribuir para que o marxismo, que está parado,
supere a crise em que se encontra.
506
Já foi visto que essa idéia é defendida por Martin Jay que encontra a origem mais remota dessa
noção em Proudhon, além de acusar a injustiça Sartre no trato dessa questão com Lukács. Essa
relação também é desenvolvida por Mészáros: “Em História e consciência de classe (1923), Lukács
analisa a ‘consciência possível’ como a consciência de uma classe historicamente progressista que
tem um futuro diante de si e, por isso, a possibilidade de totalização objetiva. Em nossa época,
segundo Lukács, apenas o proletariado possui a temporalidade apropriada, inseparável da
possibilidade de totalização sócio-histórica, pois a burguesia perdeu seu futuro – sua temporalidade,
como disse Sartre a respeito de Proust e Falkner, foi ‘decapitada’ – já que seus objetivos
fundamentais como classe são radicalmente incompatíveis com as tendências objetivas do
desenvolvimento histórico”. MÉSZÁROS, 1991, pp. 68-67.
227
Por fim, é preciso colocar em relevo algumas indicações metodológicas que,
ao contrário de corroborar a tese de ruptura entre as duas grandes obras do filósofo,
na verdade, mostram a profunda imbricação entre elas. Por certo, se Merleau-Ponty
tivesse tomado conhecimento da Crítica, e do modo como essa explica O Ser e o
Nada (e é por ele explicada), ele não teria afirmado que a razão da aparência de
sobrevôo sartriano se deve a uma dialética. É claro que ele teria muitas críticas à
obra de Sartre, dado as diferenças antigas entre os filósofos, mas não é um delírio
de Sartre pensar que o existencialismo possa contribuir metodologicamente com o
marxismo. Primeiro, poderá contribuir porque propõe dois aportes, o progressivo e o
regressivo, sendo ambos complementares; enquanto a analítica permite a passagem
de objetos complexos e concretos para objetos simples e abstratos, é a dialética que
permite a passagem de da abstração ao concreto, ou melhor, recompor os
elementos abstratos em toda sua complexidade concreta; é ela que permite
descrever a sociedade constituída e, desse modo, entender a história. Mas isso a
partir do homem, conforme seria para Marx, e não a partir de totalizações prontas,
como o fizeram os marxistas ideólogos do partido comunista.
E mesmo que a dialética, por si mesma, almeje o concreto absoluto, Sartre
exige que ela tenha um ponto de partida real (concreto total). Se a impossibilidade
de totalização permanece, ela se deve exclusivamente à uma impossibilidade de
fato, na medida em que a totalização seria uma barreira para a filosofia, que ficaria
parada, congelada e incapaz de descrever o objeto mais complexo: a história.
Assim, a impressão que se tem é que, na Crítica, Sartre segue justamente as
indicações de Merleau-Ponty; melhor, desde a ontologia Sartre desenvolve seu
pensamento dialeticamente, apesar de apenas o recurso analítico ter ficado em
evidência e gerado interpretações equivocadas. A diferença é que Sartre, ao
contrário do que propõe Merleau-Ponty, jamais abre mão das entidades ontológicas
mais fundamentais, afinal, elas foram desveladas a partir de uma metodologia
analítico-sintética.
É a porção regressiva do método que permite ao nosso filósofo acompanhar o
movimento natural das coisas e, dialeticamente, em seu movimento puro, encontrar
o ser em sua determinação de verdade; Sartre, entretanto, tem a imensa vantagem
de fazê-lo sem se submeter à exigência merleaupontyana: a necessidade de
determinação antes da determinação (que haja mundo antes do mundo). Ao menos,
é isso que Merleau-Ponty parece sugerir ao afirmar que “há mundo, (...) há alguma
228
coisa, que, para ser, não precisa, antes, anular o nada”.
507
Da ótica sartriana, o que
pode haver antes do homem, ou da negação da negação que semeia o nada no seio
do ser e faz com que haja um mundo? Para Sartre tratar-se-ia do ser bruto
indiferenciado. Sem as duas faces do método, da maneira que Sartre o entende (e
utiliza), a dialética, mesmo sendo o movimento do ser em estado puro (sem
determinação alguma), ao ser acompanhada, ainda que de dentro, cristalizaria a
relação com o mundo em síntese (ou nova tese); sem a parada analítica, o
movimento deixa de ser o livre desabrochar do ser, e a progressão dialética seria
arbitrária.
Merleau-Ponty insiste na necessidade de uma crítica constante (ou revolução
permanente do pensamento) e, a partir dessa, a dialética em estado puro, longe das
mazelas da ontologia e da fenomenologia, poderia descrever o ser em todas suas
contradições, em seu único movimento (que é centrífugo e centrípeto) que traz a
verdade, ainda que incompleta, do ser. No acompanhamento do movimento (que é a
própria dialética) estaria a resposta para o enigma do mundo; Sartre, porém, busca
no enigma do mundo a resposta para o movimento. É assim que, em meio à
confusão de cores, movimentos, etc., a porção regressiva se faz necessária. Do
ponto de vista da filosofia de Sartre, a primazia da percepção equivale a restituir ao
filósofo os sentidos e a situação ao mesmo tempo em que lhe subtrai a consciência.
Recusa similar deve ser reservada aos marxistas que se apegam à dialética
da natureza. O homem é o ser negativo por excelência, e é a partir dele que há
negação e o nada vem ao mundo e faz, enfim, com que o mundo aconteça ao ser.
Desse modo, se a dialética é negativa ela só pode ter uma origem: o próprio homem.
A inteligibilidade dialética da história apenas é possível porque o homem é
essencialmente dialético, e é essa idéia que Sartre desenvolve em sua Crítica.
Relegar a responsabilidade pela determinação histórica às leis externas ao homem é
considerar a natureza uma espécie de deus, ou conforme diz Sartre, se deve a uma
ontologia da matéria; resta apenas incorporar ao ser, absolutamente positivo, a
possibilidade de conhecer-se. Isso seria realizar o fim da história, a totalidade mítica
que Sartre denuncia na Crítica da Razão Dialética, com a ressalva que se trataria de
um mundo de deuses ou de um formigueiro, o que daria no mesmo.
507
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 90.
229
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A filosofia representa o esforço do homem totalizado para
retomar o sentido da totalização. Nenhuma ciência é capaz
de substituí-la, pois toda ciência se aplica a uma parte
humana já definida... Enquanto interrogação sobre a práxis
a filosofia é ao mesmo tempo uma interrogação sobre o
homem... O essencial não é o que se fez com o homem,
mas o que ele faz do que se fez com ele. O que se fez com
o homem são as estruturas, os conjuntos significativos que
estudam as ciências humanas. O que ele faz é a própria
História... A filosofia se situa na dobradiça.
Sartre (l’Arc)
Falar em filosofia de Sartre é falar de liberdade, idéia que mesmo aqueles
pouco afeitos à filosofia conhecem muito bem; e até outros que a conhecem
unicamente a partir de O Existencialismo é um humanismo têm uma crítica bem
definida à O Ser e o Nada: por partir da absoluta liberdade, Sartre não pode dar
conta das relações sociais. De fato, “O Ser e o Nada é uma obra profundamente
cartesiana. Aliás, até 1943, a obra de Sartre não foi nitidamente a odisséia de uma
consciência solitária?”
508
Essa mesma dificuldade é formulada por Merleau-Ponty e,
como foi visto, retomada por Gerd Bornheim e Marilena Chauí, e ainda ecoa nos
meios acadêmicos, mesmo tendo passado 25 anos da morte do filósofo e tendo
havido tempo suficiente para que essa idéia fosse superada. É preciso dizer que as
dificuldades formuladas com relação à ontologia de Sartre são dos mais variados
níveis e, mesmo, feitas a partir de diversos aportes (metodológico, político e moral,
por exemplo). Mas ao menos num particular todas essas críticas à obra do filósofo
concordam: a partir das estruturas de O Ser e o Nada não há sociedade possível.
O Ser e o Nada é, sem sombra de dúvidas, a obra mestra de Sartre. É a partir
dessa obra que sua filosofia e sua biografia fazem sentido, ainda que Paulhan
ironize dizendo que se trata exatamente de um quilo de papel, o que seria muito útil
para pesar alimentos no período da guerra. Anedotas à parte, essa obra vai
“retomar, explicar e alimentar esta idéia-chave: orgulho da consciência diante do
mundo, por conseguinte, da liberdade absoluta do indivíduo”.
509
Liberdade absoluta,
princípio fundamental de cinqüenta anos de intensa produção intelectual que tem, de
508
COHEN-SOLAL, 1986, p. 253.
509
Ainda, “A consciência, ao mesmo tempo orgulho e emersão; a liberdade, ao mesmo tempo paixão
e disciplina; a crítica permanente; a desconfiança dos papéis sociais cristalizados e fixos: assim se
chega, por etapas, aos motivos que alicerçam o relacionamento de Sartre com a política, a estética, o
social e a moral. Assim se compreenderá facilmente, mais tarde, os vínculos muito especiais que a
reflexão sartreana mantém com o marxismo, numa familiaridade e estranheza radicais”. COHEN-
SOLAL, 1986, pp. 253-254.
230
início, um enorme problema a ser resolvido: como é possível que o homem seja
absolutamente livre em sociedade? Como falar em liberdade absoluta se a
determinação histórica e social é um fato insuperável? É preciso admitir que no
horizonte da ontologia fenomenológica essa questão carece de resposta.
Todavia, a filosofia de Sartre não acaba em 1943. Na verdade, essa obra
marca o início da filosofia efetivamente sartriana, afinal, trata-se de superar o
idealismo husserliano e promover uma ontologia fundamentada na absoluta
translucidez da consciência. E mesmo que o método utilizado seja a análise de
condutas, numa clara referência à filosofia de Heidegger, trata-se de fazê-lo a partir
de uma instância segura: o campo transcendental absolutamente purificado. Assim,
seria justo entender O Ser e o Nada como “uma ontologia concebida do ponto de
vista dessa subjetividade, e a ‘experiência da sociedade’ é posta em jogo apenas até
o ponto em que pode oferecer ilustrações – muitas vezes brilhantes e coloridas – do
‘mundo’ extremamente abstrato (não mundo empírico, mas um construto ontológico)
no qual a ‘realidade humana’ (subjetividade ou individualidade) se situa”.
510
Sartre, a partir da subjetividade, alcança o auge de sua filosofia com a
ontologia fenomenológica; mas como o mostram Chauí e Bornheim e, antes deles,
Merleau-Ponty, trata-se apenas de um sistema teórico, incapaz de promover a
síntese entre o para-si e o em-si, sem falar na relação dualista e conflituosa com o
outro, o que torna tal filosofia alheia ao social. É assim que “ou a ontologia sartriana
é um idealismo que sua fenomenologia nega, ou ela se ultrapassa e transforma por
si mesma as definições do ser e do nada”
511
; ou que “o desespero de Sartre diante
do Em-si mostra-se integralmente metafísico, como desespero da impossibilidade de
alcançar uma dicção absoluta”
512
. “No final das contas, portanto, a relação
permanece entre eu como nada e entre eu como homem, não trato com outros, trato
no máximo com um não-eu neutro, negação difusa do meu nada. Sou extraído de
mim mesmo pelo olhar do outro (...)”.
513
Porém, o que pode ser dito de O Ser e o Nada no período de sua publicação?
“Quem foi que a leu na época? Pelo visto, apenas o artigo de René-Marill Albérès
em Études et Essais Universitaires (...) toma conhecimento da novidade. (...). Por
enquanto o livro passa, pois, quase em brancas nuvens”. O fundamento de toda
510
MÉSZÁROS, 1991, p. 170.
511
CHAUÍ, 1967, p. 195.
512
BORNHEIM, 1971, p. 156.
513
MERLEAU-PONTY, 1984, p. 75.
231
uma produção filosófica e literária, em especial daquilo que é produzido
posteriormente, acaba ignorado; “só depois surgirão os adeptos, os entusiastas, os
verdadeiros leitores”.
514
Não que seja necessário reclamar discípulos para a filosofia
de Sartre, mas tão somente leitores; Cohen-Solal apresenta boas pistas desse
desinteresse generalizado: linguagem filosófica, densidade de idéias e data da
publicação. Faltou apontar uma razão ainda mais importante: trata-se de uma obra
apócrifa, no sentido de que ela não é gestada nem produzida na Academia e, além
disso, tem como princípio mostrar que a filosofia acadêmica francesa era, em todas
as acepções, substancialista.
Os trabalhos citados, que analisam O Ser e o Nada, são muito posteriores à
sua publicação: O Visível e o Invisível foi escrito entre 1959 e 1960, e tem razão de
acusar a filosofia de Sartre de reduzir-se a um pensamento de sobrevôo, por ser um
texto dirigido à ontologia de Sartre; e o problema principal, qual seja, a
impossibilidade de que essa filosofia esteja comprometida com o social, advém
justamente das dificuldades nas quais O Ser e o nada está encerrado. A tese de
Marilena Chauí é de 1967 e, nesta, é possível perceber a referência à Crítica,
mesmo que não seja nem um pouco amistosa: partindo da crítica de Lévi-Strauss,
ela afirma que “o tom da experiência do mundo é dado pelo Para-Si. Ao pensar as
sociedades, a etnologia, diz Lévi-Strauss, aparece para Sartre não como um
princípio de explicação, mas como um estorvo ou resistência”.
515
Longe de ver na Crítica uma resposta para as dificuldades suscitadas em O
Ser e o Nada, encontra-se um Sartre visto pela lente já destorcida do estruturalismo:
“O cogito é uma prisão – isso tanto em Descartes quanto em Sartre. Lévi-Strauss
aponta que a insistência sartriana em separar o civilizado e o primitivo é um matiz da
oposição entre o eu e o outro. Radicalizando sua crítica, o antropólogo vê uma
cegueira em Sartre – a preocupação do filósofo em manter a separação entre o eu e
o outro é tão ferrenha que não percebe que a análise do prático-inerte não está
muito distante do que se consideraria animismo no selvagem melanésio”.
516
Enfim,
514
COHEN-SOLAL, 1986, p. 255.
515
CHAUÍ, 1967, p. 192.
516
Lévi-Strauss formula uma questão metodológica interessante, que vai de encontro ao método
progressivo-regressivo, desenvolvido por Sartre: “Como a razão analítica poderia ser aplicada à razão
dialética e pretender fundá-la se elas se definem por caracteres mutuamente exclusivos? (...). Num
caso, o empreendimento de Sartre parece contraditório; no outro parece supérfluo” (LÉVI-STRAUSS,
1989, p. 274). Essa crítica em seus pormenores é desenvolvida por Lévi-Strauss no capítulo intitulado
História e Dialética, em O Pensamento Selvagem, escrito em 1961 (LÉVI-STRAUSS, 1989, pp. 273-
232
um Sartre criticado por Merleau-Ponty, naquilo que se refere a O Ser e o Nada e o
mesmo Sartre, criticado por Lévi-Strauss, com relação à Crítica. Mas como manter
levantada a guarda de que a Crítica apresenta a solução das dificuldades da
ontologia fenomenológica se o próprio Sartre não concorda com isso? Ou melhor, se
o filósofo tem afirmações contrárias a essa idéia?
Vejamos: segundo o depoimento de Menahem Brinker, concedido a Cohen-
Solal em 1982, Sartre teria afirmado que “talvez eu tenha exagerado ao dizer que o
existencialismo já morreu. Mas a Crítica é um ponto de partida absolutamente novo.
O Ser e o Nada se preocupava com a questão do indivíduo; a Crítica trata da
questão da liberdade. E agora está claro para mim que só uma abordagem histórica
é capaz de explicar o homem”.
517
Essa fala de Sartre teria ocorrido em 1967, apenas
sete anos após ele, na Conferência de Araraquara ter afirmado que se “há uma
diferença entre O Ser e o Nada e a Crítica da Razão dialética é por causa da
maneira como os problemas são formulados, mas não por causa da própria direção;
a direção continua a mesma”.
518
Se em 1960 o necessário é reconstituir uma
ontologia ou, pelo menos uma antropologia dialética na qual a compreensão seja
exigida a cada instante, por que em 1967 Sartre afirma que o ponto de partida é
absolutamente novo?
Mais ainda, no filme Sartre par lui-même, de 1970, Sartre, interrogado sobre a
possibilidade de uma ética, afirma categoricamente que a Crítica da Razão Dialética
é uma continuação de O ser e o Nada. Apenas após Flaubert será possível...; nesse
instante é interpelado por Andre Gortz: há um corte bem nítido entre as duas obras,
e...; Sartre o interrompe, dizendo que: Sim, há um corte de vinte anos! Após
escrever um livro de filosofia sente-se um vazio... não dá para escrever outro em
seguida. Além disso me faltava aprofundar o conhecimento do marxismo.
519
Esses
são apenas alguns exemplos de momentos em que Sartre se contradiz a respeito
dessa questão; a continuidade da conversa encaminha para a razão de Sartre,
sabendo da continuidade entre as obras, não havê-la mostrado. Essa tarefa,
segundo ele, compete a outros.
298). Mas, para nosso objetivo, é suficiente citá-lo a partir da análise feita por Marilena Chauí.
CHAUÍ, 1967, p. 192.
517
COHEN-SOLAL, 1986, p. 528.
518
SARTRE, 1987, pp. 91-93.
519
Filme Sartre par lui-même (SARTRE, 1970c).
233
A questão mais importante não é duvidar do depoimento de Brinker ou acusar
algum tipo de esclerose por parte de Sartre; na realidade, estamos de inteiro acordo
com o que o então estudante de filosofia pergunta a Sartre: “O senhor apresenta a
Crítica como uma refutação total de sua filosofia anterior (...). A meu ver, a Crítica
tem muito mais a ver com O Ser e o Nada do que o senhor quer admitir. Pois bem,
por mais que a apresente como forma aperfeiçoada do marxismo, me parece que
seja mais uma alternativa para ele”.
520
Do mesmo modo, podemos concordar com o
não veemente por parte de Sartre: a questão não coloca apenas em jogo a relação
entre a Crítica e a ontologia, mas sim o marxismo, ou melhor, no fundo, o que
Brinker questiona é se o marxismo-existencialismo, ao invés de buscar aperfeiçoar o
marxismo, não teria como objetivo substituí-lo. Esta segunda possibilidade se
apresenta a Sartre como absurda; o mesmo não vale para a questão formulada em
1960 por Fausto Castilho, que pergunta ao filósofo sobre os fundamentos do esforço
de aproximação entre o existencialismo e o marxismo.
Assim, a levar pelo que Sartre afirma em 1970, essa é a melhor maneira de
entender o depoimento que, segundo Brinker, Sartre lhe concedeu. Mas se os sete
anos decorridos entre uma declaração e outra, além do tom da questão, podem
explicar (ou pelo menos amenizar) a contradição dos depoimentos do filósofo, isso
não impede retomar a questão formulada acima sobre O Ser e o Nada, dessa feita
com relação à Crítica: quem a leu? Por certo que, em sua totalidade ninguém, afinal
ela jamais foi concluída. Mas qual foi sua repercussão? “De maneira geral, é preciso
constatar que a obra maior do ‘segundo Sartre’ continua, particularmente na França,
muito insuficientemente estudada e, o que é mais triste ainda, apenas inspirou até
agora muito poucos trabalhos originais”.
521
Diante dessa afirmação de Contat e
Rybalka, relativa a 1970, o que poderia ser dito atualmente? É verdade que em
2005, por ocasião do centenário de nascimento do filósofo, houve uma eclosão de
publicações e conferências sobre Sartre. Não é possível, contudo, precisar até que
ponto se trata de real preocupação com seu pensamento e até que ponto se trata de
textos de ocasião.
Nesse sentido, torna-se interessante verificar o que foi escrito sobre a Crítica
logo a seguir de sua publicação, pois, se O Ser e o Nada passou despercebido e
520
COHEN-SOLAL, 1986, p. 528.
521
Dentre os trabalhos interessantes, os autores citam André Gorz, Nicos Poulantzas, R. D. Laing, D.
G Cooper e Wilfrid Desan. CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 339.
234
apenas foi efetivamente colocado em xeque em 1964 (com a publicação de O
Visível e o Invisível, escrito cinco anos antes), a Crítica teve seu primeiro comentário
no mesmo ano de sua publicação. E, era de se esperar, não se trata de elogio –
esses ficaram guardados para os romances e peças de teatro que, como vimos,
estão em perfeita harmonia com a filosofia de Sartre. Melhor, os elogios sempre
estiveram voltados para a produção não técnica de Sartre; mas “A solução da vida
pela Arte (...) é equívoca para Roquentin, como o é decerto para o próprio Sartre.
(...) para Sartre a arte é ‘irrealidade’, gera-se uma intencionalidade do ‘imaginário’,
desprende-se, pois, da vida real e imediata”.
522
Assim, os elogios serão deixados de
lado, e será levado em conta o que foi escrito sobre a segunda grande obra técnica.
Para falar sobre a repercussão da Crítica é preciso, antes, falar da questão da
relação entre essa obra e O Ser e o Nada. O objetivo da Crítica, declarado por
Sartre, transcrito por Beauvoir e repetido por quase todos os comentadores e
biógrafos não é outro que promover uma síntese filosófica do existencialismo e do
marxismo, ou seja, unir o ponto de partida subjetivo com o método objetivo marxista.
E o que há de mais atual e interessante neste projeto é justamente a ambição de
entender a sociedade constituída a partir da liberdade humana absoluta. A questão
que importa não é se o filósofo obtém êxito nessa empreitada, mas antes, entender
de que modo esse percurso é gerido e desenvolvido. Feito isso nos dois aportes
possíveis, quais sejam, a gênese dos conceitos e o método (partes I e II), pode-se ir
adiante. Assim, a despeito da afirmação de Sartre de que a Crítica é um ponto de
partida totalmente novo, mesmo tendo afirmado que não houve mudança na direção
da pesquisa, será colocada uma única questão: há continuidade ou ruptura entre os
dois grandes períodos da filosofia de Sartre?
Foi dito na introdução que não vale a pena decidir previamente sobre ruptura
ou continuidade na obra de Sartre. E é justamente os comentários sobre sua filosofia
a razão para essa opção metodológica: Contat e Rybalka afirmam que Sartre, a
partir de 1956, passa a “interrogar sobre as relações do existencialismo e do
marxismo”, ou, “buscar uma síntese filosófica entre seu próprio percurso, que tem
como ponto de partida a subjetividade, e o método objetivo do materialismo
dialético”;
523
porém, duas páginas adiante se referem à um ‘segundo Sartre’,
deixando margem tanto para a defesa da tese de ruptura quanto a de continuidade
522
FERREIRA, 2004, p. 141.
523
CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 337.
235
entre os dois períodos. Gerd Bornheim, por sua vez, afirma que “o pensamento de
Sartre evolui, e o lugar de sua evolução encontra-se precisamente na História”;
afirma ainda que “tudo indica que seu itinerário [de Sartre] busca conquistar teses
totalmente outras que não as de seu ponto de partida, totalmente outras que não
aquelas implicadas no absurdo radical”.
524
Para Bornheim, portanto, trata-se de fazer
o caminho inverso, qual seja, da história à metafísica de O Ser e o Nada.
O fato é que as declarações de Sartre dão margem tanto para uma quanto
para outra leitura; o mesmo pode ser dito da maioria dos comentários que tratam
dessa mudança. Se previamente é melhor não tomar partido, o que se pode dizer
após acompanhar o que se passa nos dezessete anos que separam a Crítica de O
Ser e o Nada, além de discutir o método progressivo-regressivo? Não há como se
esquivar. Para entender a filosofia de Sartre é preciso responder essa questão, ou
melhor, é preciso ao menos colocá-la. É verdade que Sartre, quando perguntado
sobre se a Crítica representava a solução do problema das relações concretas com
o outro, de O Ser e o Nada, respondeu a Brinker que “Essa busca já terminou e não
me interessa mais”
525
; pode ser que não interessasse ao filósofo em 1967. Mas,
atualmente, responder essa questão parece ser a única maneira de entender a
porção publicada da Crítica da Razão Dialética, de entender o interminável trabalho
sobre Flaubert, de entender as anotações sobre uma possível moral (Cadernos) e,
sobretudo, mostrar que O Ser e o Nada não permanece prisioneiro da aporia da
relação unicamente objetivante entre os para-sis.
Antes de tudo, é preciso dizer que a possível relação entre as duas grandes
obras é justamente a questão presente nos primeiros textos sobre a Crítica referidos
por Contat e Rybalka. Nesse sentido, tem-se o primeiro que mostra a perfeita
compatibilidade entre os dois períodos, mesmo que os vícios de fundo sejam
mantidos, por Roger Garaudy (1960);
526
o segundo que mostra a impossibilidade do
projeto sartriano de unir seu existencialismo ao marxismo, por Serge Doubrovsky
(1961); e o terceiro, que mostra a perfeita compatibilidade entre as duas obras, por
524
BORNHEIM, 1971, pp. 227-228.
525
COHEN-SOLAL, 1986, p. 528.
526
A edição utilizada para produzir essa tese é a segunda, de 1960 (a primeira é de 1959). Contat e
Rybalka fazem referência a uma edição de 1969, nouvelle edition augmentée, na qual Garaudy
mostraria os vícios de fundo de O Ser e o Nada que são mantidos na Crítica. Não são novidades as
complicações ocorridas na relação entre Sartre e Garaudy, o que justificaria o possível acirramento
da crítica a Sartre em 1969, se comparada com a edição de 1960; infelizmente não foi possível
encontrar a edição citada nos Écrits (CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 339), mas de todo modo a
crítica de Garaudy já é, no período de amizade com Sartre, bastante contundente.
236
Colette Audry (1966).
527
Por certo, esses não são os únicos, mas a partir da leitura
apresentada na primeira e na segunda partes dessa tese, a posição desses autores
será discutida, afinal, elas compreendem todas as possibilidades: ou há
compatibilidade, ou a compatibilidade é relativa ou não há compatibilidade nenhuma.
Desse modo, todas as possibilidades serão contempladas e será possível, ao final,
produzir uma conclusão plausível.
Não é novidade que a tese aqui defendida é a de que a Crítica é um
desdobramento natural e necessário de O Ser e o Nada. A posição de Roger
Garaudy com relação a Sartre não fica restrita ao livro Perspectivas do homem,
publicado em 1960, mas, no que concerne a essa obra, é preciso admitir que ela
converge com a tese aqui exposta; mais especificamente, concorda porque ali se
encontra a afirmação da compatibilidade entre os dois períodos. Porém, se Garaudy
vê nessa compatibilidade a manutenção dos problemas de O Ser e o Nada, nossa
tese, ao contrário, busca na Crítica justamente sua solução. Seja como for, para
Garaudy, Sartre, a partir da tensão fundamental vivida, “dá à sua obra um caminho
intenso” pelo qual o concreto patético da existência torna-se “realidade social.
Ecletismo, contradições internas, (...) não são mais que aspectos exteriores de um
encaminhamento mais profundo, de um movimento que conduz seu existencialismo
a se ultrapassar, seja no sentido de uma ‘participação’ religiosa, seja no sentido de
uma ‘participação’ marxista”.
528
De saída, é preciso dizer que Sartre jamais admitiria que a participação que
deve superar a dificuldade de relação com o outro fosse religiosa; também, é preciso
dizer que a afirmação de Garaudy de que o objetivo principal de Sartre é reconciliar
Marx e Kierkegaard é um absurdo. Há sim o projeto de reconciliar o existencialismo
com o marxismo, mas daquele existencialismo diferente (do próprio Sartre),
conforme pode ser lido em Questão de Método;
529
ora, a obra referida de Mounier,
da qual Garaudy tira essa informação, é de 1946 e, assim, destoa completamente do
assunto discutido. E a continuidade da referência a Sartre mostra justamente a
confusão entre os planos ontológico e prático; é verdade que a afirmação da
527
Há ainda O pensamento selvagem, de Lévi-Strauss, que critica o método sartriano utilizado na
Crítica por confundir razão analítica e razão dialética, e inaugura um nicho de discussões entre
existencialismo e estruturalismo que escapa aos objetivos desse trabalho; além disso, o antropólogo
não toma partido no que se refere à relação entre a Crítica e O Ser e o Nada. Assim, apesar da
importância de Lévi-Strauss para as ciências humanas e apesar da proximidade da publicação de O
pensamento Selvagem com a publicação da Crítica, esse texto não será discutido.
528
GARAUDY, 1960, p. 59.
529
SARTRE, 2002, pp. 27-28.
237
compatibilidade entre as obras requer que a sociedade seja entendida a partir da
ontologia, mas, do modo feito por Garaudy, parece mais um anacronismo:
Sartre tem razão em sublinhar que uma decisão jamais nasce unicamente
das condições de vida de um homem ou de um grupo de homens. (...)
Sartre analisa isso quando exalta o trabalho do ‘projeto’ que comanda a
negação e a escolha. A dificuldade começa quando se trata de determinar
a origem desse projeto. Trata-se de um projeto ‘que tem a liberdade por
fundamento e por objetivo?’ Então a escolha seria vazia de todo
conteúdo.
530
Percebe-se que a interpretação de Garaudy advém de uma passagem por
demais brusca da ontologia ao plano social e, no mais, trata-se de interpretar como
decisivas obras nas quais Sartre está desenvolvendo o aparato que lhe permitirá
aproximar o existencialismo do marxismo.
531
Caso se desconsidere os dezessete
anos decorridos da ontologia, nos quais surgem a ampliação da noção de situação,
o desenvolvimento dos conceitos de Outro social, de reciprocidade, de legitimidade
e de Terror, que permitem a Sartre, em 1960, propor essa aproximação, Garaudy
tem razão: é preciso um retoque profundo na ontologia para que ela possa dar conta
das leis da história. A conclusão, decorrente dessa confusão, é que “De fato, esta
concepção de liberdade é metafísica, no sentido pleno da palavra: exterior à
história”;
532
o único problema é que essa concepção metafísica da liberdade não é a
concepção de Sartre ou, ao menos, não do Sartre da Crítica.
Para reafirmar as dificuldades interpretativas advindas da exigência realista
de Garaudy, deve-se atentar para a seguinte afirmação sobre o pensamento
sartriano:
Sartre aceita que ‘a filosofia’ se separe do ‘senso comum’, e isso impede
que ela se engrene na história real dos homens. A ‘filosofia’, assim
entendida, é a filosofia especulativa, e reivindica o apadrinhamento dos
estóicos para proclamar que o cativo, se ele não é livre para sair da prisão,
ele é livre de todo modo (...). A ligação entre o ato individual e suas
condições está rompida, assim como entre o ato e suas conseqüências.
533
Ora, não seria exatamente o argumento contrário, no sentido de que o homem
precisa ser ontologicamente livre para, apenas a partir daí, falar em libertação social
e política? Não são três os passos para a afirmação da liberdade, primeiro
530
GARAUDY, 1960, p. 89.
531
Nota-se a constante remissão a O Existencialismo é um humanismo, conferência vulgarização da
filosofia de Sartre, e A idade da Razão que, conforme já foi visto, Sartre define como descrição dos
anos 37-38, quando ainda era possível a ilusão de uma vida estanque, separada das demais
existências.
532
GARAUDY, 1960, p. 91.
533
GARAUDY, 1960, p. 92.
238
metafísico, depois artístico e, só então, social? Não há outra justificativa senão a
incompreensão para explicar a interpretação de Garaudy: o conceito popular de
liberdade para, daí, arrancar a possibilidade da revolução.
Assim, Garaudy afirma não haver junção possível entre existencialismo e
marxismo; e nem ao menos aproximação, a não ser que a peça fundamental da
ontologia, a liberdade, seja abandonada. Porém, abandonar a liberdade ontológica
ainda não seria a solução definitiva, afinal, mesmo discorrendo sobre a história, para
Garaudy Sartre continuaria preso à sua concepção superficial de projeto e,
conseqüentemente, de revolução, que, para a fenomenologia, não passa de um
evento metafísico, ou, mais exatamente, místico. Mas nem tudo está perdido: há ao
menos uma saída para o que o existencialismo supere seu misticismo, qual seja,
que ele “rompa sua solidão e reencontre ‘os outros’: então ele descobriria uma forma
de transcendência que não seja mistificada e uma concepção de história que não
mutile o homem de alguma de suas dimensões”.
534
Pelo visto, esse é o objetivo de
Sartre desde O Ser e o Nada e é a exigência que a filosofia acadêmica clama em
coro por mais de meio século; a pergunta de Garaudy torna-se conveniente: Sartre
consegue superar o solipsismo?
A resposta é que, a julgar por O Existencialismo é um humanismo, sim;
porém, já não se trata da liberdade de O Ser e o Nada. Nesta obra “O conjunto de
relações vivas (...), Sartre substitui por uma só forma de relação: o olhar”;
535
Garaudy tem razão, pois na Crítica Sartre reafirma esse tipo de relação. Não se
pode esquecer, no entanto, que desde A Insurreição de Paris, passando por Genet e
por A questão judaica, Sartre busca mostrar que esse outro que olha não se resume
a um indivíduo, como quer Garaudy, mas o indivíduo que olha é ao mesmo tempo a
multidão e, no limite, a sociedade como um todo. É por isso que, aparentemente, o
“estudo do ‘nós’ tende a reduzir (...) as realidades coletivas à (...) relações de
solidões”;
536
mas apenas aparentemente, afinal essa presença sentida por cada
homem do olhar de um indivíduo sobre ele é, por esse mesmo ato, o olhar de todos,
a expressão maciça do controle da sociedade, do grande Outro, conforme foi visto.
534
GARAUDY, 1960, p. 94.
535
GARAUDY, 1960, p. 96.
536
GARAUDY, 1960, p. 98.
239
Para Garaudy, porém, “Numa tal concepção, a especificidade do social e da
história é inconcebível”.
537
Novamente, não há relações sociais, mas uma variedade
de relacionamentos pessoais, ou seja, não há história mas metafísica; e todo o
trabalho de Sartre no sentido de explicar de que modo a história, feita livremente por
homens, pode se voltar contra eles e os determinar, cai por terra. Precisava ser
assim, pois, naquilo que nossa tese se fundamentou para mostrar a ampliação do
conceito de situação, Garaudy nada mais vê que fantasia encenada numa esfera
metafísica; o mesmo vale para “Os caminhos da liberdade, O Diabo e o Bom Deus
ou As mãos sujas. Esta dificuldade Sartre a reencontrará num outro nível, o nível da
ontologia: a dificuldade de articular O Ser e o Nada”.
538
Dito desse modo, não se
trata de entender a literatura e a dramaturgia de Sartre a partir de seus textos
técnicos, mas, para Garaudy, parece que a ontologia fenomenológica resulta da
arte.
Por isso, Garaudy pode afirmar que Sartre polemiza com um marxismo que
não existe senão em tratados de filosofia idealista; e se ele evolui sua concepção de
marxismo, isso não se deve a outra coisa que a determinação histórica.
539
Desse
modo a Crítica é resultado da história e, se essa não tivesse tomado o rumo que
tomou, aquela nem mesmo teria sido escrita; não vale a pena perguntar, então,
quem faz a história?, afinal, esse limite do diálogo entre Sartre e Garaudy não pode
ser ultrapassado. Foi visto que Sartre não está alheio ao poder determinante da
macroestrutura sobre a liberdade; é nesse sentido que se pode entender a
deformação objetiva provocada à distância pelo marxismo. Sartre mesmo admite
que a guerra o modificou, e que ante uma criança que morre de fome A Náusea não
pode fazer frente – enfim, Sartre seria o primeiro a reconhecer a ação da força das
coisas na evolução de seu pensamento.
Porém, e isso Garaudy não leva em conta, Genet permaneceu livre para
mudar aquilo que a sociedade havia feito dele. O mesmo vale para Sartre, que como
tantos outros intelectuais, poderia simplesmente ter se rendido à força das coisas e
aberto mão da liberdade; ou ter acatado a dialética como uma força intransponível e
incompreensível que, como uma espécie de Deus, a todos e a tudo governa com
537
GARAUDY, 1960, p. 98.
538
GARAUDY, 1960, p. 99.
539
“Sob a influência das experiências vividas da Ocupação e da Resistência, da Libertação, depois da
guerra fria, dos movimentos da classe trabalhadora e da luta dos povos colonizados por sua
independência, o existencialismo de Sartre é, de todo modo, historizado”. GARAUDY, 1960, p. 107.
240
suas leis. Sartre, porém, afirma que a origem de toda dialética é “a prática dos
homens governados por sua materialidade – é ao mesmo tempo a experiência que
cada um pode fazer (e faz realmente) de sua práxis e de sua alienação e, ao mesmo
tempo, o método reconstrutivo e construtivo que permite captar a história humana
como totalização em curso”.
540
Enquanto Garaudy pensa a história como totalidade,
Sartre a entende como totalização e, portanto, para esse há liberdade na história
sendo esta resultante da liberdade, enquanto para aquele a liberdade deve se
submeter às leis da história.
Desse ponto de vista, é com razão que Sartre afirma, em resposta a Garaudy,
que “A verdade é que o senhor escolheu um setor de pesquisa, nós outro, que
nosso acordo formal é completo (....) e que nós, uns como os outros, não temos
senão que decifrar essa terra árida. Estou convencido, de meu lado, que apenas
pesquisas concretas permitirão à filosofia que produz todos nossos pensamentos
[marxismo] se enriquecer e manifestar seus reais problemas”.
541
Sartre admite que o
existencialismo é uma ideologia gerada e mantida pelo marxismo, que a ele tenta se
reintegrar; mas não desiste de fazê-lo a partir da liberdade, do homem livre em
situação, mesmo que essa situação seja a história determinista das leis dialéticas,
conforme o entende Garaudy; e a conclusão de Sartre é que neste domínio ambos
deveriam se ocupar de homens, lamentando que Garaudy os tenha esquecido.
O segundo comentário publicado logo a seguir da Crítica é O mito da Razão
Dialética, por Serge Doubrovisky. Diferentemente de Garaudy, que afirma a
compatibilidade entre os dois períodos e apresenta os problemas dessa tentativa
sartriana de aproximar o existencialismo do marxismo, Doubrovisky é categórico:
“Não há síntese possível do marxismo, enquanto ele pretenda ser uma ciência, e do
existencialismo, enquanto ele busque manter-se fiel à existência” e, desse modo
Sartre, na Crítica, “não faz mais que existencializar o marxismo e marxizar o
existencialismo”, mantendo um movimento contraditório que não pode jamais
alcançar sua síntese, fazendo dessa obra um calhamaço vazio.
542
Ora, Sartre tem
por objetivo contribuir, com seu existencialismo, para que o marxismo supere sua
estagnação; porém, pergunta Doubrovsky, “qual pode ser, nessas condições, o
540
Extrato de uma carta de Sartre a Garaudy, em GARAUDY, 1960, p. 112.
541
Extrato de uma carta de Sartre a Garaudy, em GARAUDY, 1960, p. 113.
542
DOUBROVSKY, 1960, p. 493.
241
trabalho do existencialismo?”
543
Sartre responde que o existencialismo tem como
tarefa fundamentar o marxismo a priori na existência, ou seja, fundar a dialética
como método universal e como lei universal da antropologia; uma vez que as noções
utilizadas pelo marxismo para descrever nossa sociedade são existenciais
(exploração, alienação, reificação, etc.), Sartre se propõe a estudá-las a partir da
análise da existência.
Doubrovsky refere-se à evidente inspiração do projeto de Sartre na Crítica da
Razão Pura, de Kant; mas, segundo ele, a proximidade para por aí, porque, “Exigir
do marxismo, à maneira de Sartre, fundar seu método a priori é, do ponto de vista
marxista, impossível e absurdo (...)”.
544
Para o autor, o projeto filosófico de Sartre
carece, de início, de um solo a partir do qual a contribuição ao marxismo faça
sentido. Inicialmente, alega que Sartre planeja fundar a dialética marxista a partir da
existência sendo que a existência não tem fundamento; em O Ser e o Nada o
surgimento da consciência para si mesma é um acontecimento absoluto, que nem
mesmo pode ser descrito. Encontrar um fundamento racional para a experiência
dialética é impossível no âmbito do existencialismo, assim como é absurdo para o
marxismo questionar a inteligibilidade da existência; fica explícito, “neste texto, a
confusão filosófica que (...) vicia o projeto sartriano. A compreensão da existência
por ela mesma (...) não pode jamais ser um saber, nem o movimento da existência
um ‘processo racional’”.
545
Assim, o projeto de Sartre na Crítica acaba se tornando uma absurdidade
filosófica. A confusão criada entre saber e compreensão, ou entre racional e
existencial, gera um quadro que Doubrovsky considera não apenas ambíguo, mas
equivocado. “A inconstância do fundamento teórico se denuncia, de início, quando
se empreende a análise prática e, notadamente, a peça mestra de toda filosofia
dialética: o problema da necessidade”.
546
Se em Hegel esse problema é devido ao
movimento interno do Conceito e em Marx do movimento interno do Ser, para Sartre
trata-se da simples situação exterior de uma livre existência; desse modo o filósofo
francês remete novamente à mesma estrutura objetivante do ser-para-outro, tal qual
em O Ser e o Nada. Sartre anunciaria um desafio, a exemplo de Arquimedes: dêem-
me a existência e lhes darei Razão e História. Porém seu desafio, assim como o foi
543
DOUBROVSKY, 1960, p. 494.
544
DOUBROVSKY, 1960, p. 498.
545
DOUBROVSKY, 1960, p. 691.
546
DOUBROVSKY, 1960, p. 692.
242
para Arquimedes, cai no vazio, pois, se para esse falta o ponto de apoio a partir do
qual ele moveria a Terra, para Sartre falta a existência fundamentada que seria seu
ponto de partida para dar conta da Razão e da História.
O existencialismo, então, “é incapaz de fundar o marxismo a priori. Com
efeito, para isso seria necessária uma verdadeira Razão dialética. Mas a Razão
dialética é um mito, morto desde Hegel; e na medida em que Sartre entende
ressuscitá-lo aqui sem ter realmente os meios, isso é uma mistificação”.
547
Não seria
por demais absurdo existencializar o marxismo; mas marxizar o existencialismo é
uma tarefa fadada ao fracasso. No primeiro caso, pode-se examinar os conceitos de
exploração e alienação, por exemplo, a partir de uma perspectiva existencial; mas,
no segundo caso, tratar-se-ia de abrir mão da espontaneidade da consciência, ponto
que para Sartre não pode ser colocado em questão. Por isso, ele simplesmente
retoma conceitos da ontologia fenomenológica numa outra roupagem;
548
“O
resultado é que essas categorias, que se compreendem como diferentes faces de
um mesmo modo de ser e que estão ligadas dialeticamente por uma filosofia da
existência, são justapostas didaticamente por um pseudo-racionalismo”.
549
Doubrovsky não para por aí; segundo ele, a mudança que ocorre de uma obra
de Sartre a outra é apenas de vocabulário. É assim que o projeto se torna práxis,
que a livre escolha se torna ideologia: as categorias ontológicas são reeditadas na
Crítica com termos marxistas, mas, de modo algum, perdem o caráter idealista e,
ademais, trazem para o seio da dialética os problemas insolúveis da ontologia. O
mesmo projeto de ser-em-si-para-si reaparece, na Crítica, em escala macro: trata-se
da totalização em curso, da impossibilidade de uma história acabada, do reino da
liberdade do qual, por dificuldades teóricas imediatas, não pode nem ao menos ser
pensado. O projeto redunda, enfim, na tentativa de superar o prático-inerte em vista
da ditadura da liberdade: “o existencialismo, após ter denunciado o mito, nos dá
precisamente os meios de compreendê-lo e de o desmistificar”.
550
Numa palavra, a
incompatibilidade tem como fundamento a impossibilidade de compreender a
547
DOUBROVSKY, 1960, p. 693.
548
A essência da relação entre as consciências se torna um simples antagonismo ou escassez
interiorizada; o conflito, sentido originário da relação entre os para-sis, torna-se violência possível; a
reificação, que para Marx é a transformação do homem em coisas devido às relações de produção
torna-se apenas uma relação objetivante entre as consciências, o mesmo valendo para a alienação; a
alteridade nada mais é que um estado de dispersão do Eu, conforme DOUBROVSKY, 1960, p. 697.
549
DOUBROVSKY, 1960, p. 697.
550
DOUBROVSKY, 1960, p. 888.
243
dialética a partir da existência, mesmo que a existência possa lançar luzes sobre
conceitos dialéticos.
Na Conferência de Araraquara Sartre afirma que “nosso trabalho não consiste
em insistir indefinidamente sobre o projeto, sobre a natureza da liberdade, sobre a
necessidade (...), sobre o conjunto das coisas que fazem a realidade humana. O que
é necessário para nós é reconstituir uma ontologia ou, pelo menos, uma
antropologia dialética na qual a compreensão seja exigida a cada instante, a cada
instante o projeto da pessoa sob forma concreta e real apareça”.
551
Ora,
simplesmente afirmar que a Razão Absoluta é um mito seria suficiente para
desqualificar o projeto sartriano de buscar entender a dialética da história a partir do
indivíduo? Pode-se perguntar: as tão aclamadas leis da história tiveram maior
sucesso do que a liberdade nesta empreitada? O exemplo a seguir é banal, mas
pode servir para apresentar ao menos um indício do projeto de Sartre que, ao que
parece, Doubrovsky desconsidera.
No salão de conferências, em Araraquara, Sartre interrompe sua fala por
alguns segundos e acende um cigarro; com este ato reduz o público por um instante
a um setor prático, e cria uma tensão. Acendido o cigarro, a tensão se dissipa, na
medida em que ele reencontra uma nova totalidade e tem entre seus dedos o cigarro
aceso; mas, afirma ele, “passei de um estado a outro através de um sistema de
crise, de oposição e de síntese e a operação se fez e é a mais simples do mundo”.
Ora, a dialética é tão facilmente compreensível porque ela é prática – “A origem da
dialética é a práxis. Não é outra coisa. É a origem viva da dialética. Não há lei caída
do céu dizendo que haverá uma tese, uma antítese e uma síntese. O que há é que
nós estamos perpetuamente em relação (...) e que precisamente o conjunto dessas
relações, sendo sempre sob a forma de contradição, de lutas e de soluções,
conduzem finalmente à história”.
552
Seria essa uma boa resposta à mistificação
promovida por Sartre, que retoma o mito da Razão?
É interessante notar que esse exemplo vale tanto para as dificuldades
apresentadas por Doubrovski quanto para aquelas formuladas por Garaudy, pois se
um questiona a tentativa de Sartre de entender a história a partir do homem, o outro,
no caminho inverso, nega que o homem possa, de sua liberdade, entender a
determinação. Não se trata, porém, de uma razão divina, assim como não se trata
551
SARTRE, 1987, p. 93.
552
SARTRE, 1987, p. 97.
244
de uma dialética que tenha sua origem noutro lugar que não no homem; trata-se de
“descrições concretas da história e da sociologia que é preciso que façamos e
refaçamos em conjunto para justamente ver, para rever, para reencontrar o sentido
humano em todas as descrições que damos de estruturas ou de história”.
553
É por
isso que nenhuma das estruturas marxistas é desconsiderada e, nem mesmo, os
condicionamentos são negados; não há nenhuma dialética possível que não tenha
como origem a liberdade fundamental e imediata que é o projeto.
Desse modo, percebe-se que a maior contradição a ser enfrentada para
sustentar a tese de que a Crítica é um desdobramento de O Ser e o Nada advém da
declaração de Sartre de que o ponto de partida é totalmente novo. Garaudy afirma a
compatibilidade entre os dois períodos, e as dificuldades apontadas por ele no
empreendimento sartriano são decorrentes do ponto de partida (homem);
Doubrovsky nega a compatibilidade entre os dois períodos, mas a diferença
marcante que, segundo ele impede o desdobramento entre essas obras, não é outra
que o ponto de chegada (Razão). Sartre insiste que a filosofia está no meio do
caminho, que o marxismo tem um enorme conhecimento da estrutura, mas despreza
o homem, e que o existencialismo encontra o homem onde ele está, mas carece da
estrutura; ora, Sartre quer recuperar o indivíduo em meio à determinação social
marxista; o homem está no meio, e nada mais adequado que o critiquem tanto por
seu ponto de partida quanto pelo objetivo a ser alcançado. Ainda não é o momento
para concluir definitivamente; passemos a um comentário da filosofia de Sartre
publicado em 1966 e que concorda com nossa tese de compatibilidade absoluta
entre os dois períodos.
Sartre e a realidade humana, de Colette Audry, se pretende uma introdução
ao pensamento de Sartre; na verdade, trata-se de uma argumentação que destoa
das críticas localizadas, como é o caso de Garaudy e Doubrovsky (além do já
referido trabalho de Lévi-Strauss). Ainda assim, é um livro publicado pouco tempo
após a Crítica, no qual transparece a tese da absoluta compatibilidade entre esta e
O Ser e o Nada. Uma vez que já foi explorada a posição que defende a
compatibilidade, desde que, devido à liberdade, seja admitida a impossibilidade de
dar conta da história e, também, a tese de que não há compatibilidade alguma
porque se trata de propor um mito (a Razão), e como tal o projeto se mostra
553
SARTRE, 1987, p. 95.
245
irrealizável, nada mais justo que dar voz também a um comentário que admite a
compatibilidade sem apresentar nenhuma dificuldade para que esse projeto se
concretize.
Sartre tem por objetivo fundamentar ontologicamente o marxismo e é essa a
razão mais forte para entender essa obra como um desdobramento necessário de O
Ser e o Nada; Audry é ainda mais complacente com o projeto do filósofo:
“Logicamente, uma obra como a Crítica da Razão Dialética deveria preceder no
tempo a doutrina de Marx porque a fundamenta e lhe confere sua inteligibilidade”.
554
Numa só frase, Audry aceita como válida justamente a pretensão do filósofo que lhe
rendeu dezenas de críticas; e, naquilo que Lévi-Strauss discorda de Sartre, o
método, Audry afirma não apenas sua validade como antecipa o trabalho de mostrar
a correlação metodológica entre a Crítica e O Ser e o Nada: “É aplicado ao conjunto
o método já definido em O Ser e o Nada para a compreensão do indivíduo:
regressivo e progressivo. O momento da regressão terá por objeto fundar o saber
sociológico remontando, das sociedades tal como elas aparecem atualmente, a seus
elementos mais abstratos (...) e em seguida recompondo esses elementos na sua
complexidade”.
555
Desse modo, a Crítica segue os dois momentos do método progressivo-
regressivo, sendo a parte I (analisada nesta tese) o momento regressivo: a partir da
sociedade constituída, Sartre procura entender sua constituição abstrata. É da
existência fática (serial) que se pode falar em liberdade (grupo em fusão); é do
juramento que se pode falar em sociedade e é do Terror que se pode falar em
manutenção das estruturas sociais. Ou seja, não se trata de descrever unicamente a
história ideal, mas, a partir da sociedade presente, buscar seus fundamentos
abstratos; fica a cargo do segundo tomo a porção progressiva do método, ou seja,
apresentar “o fundamento do saber histórico e sua recomposição na
temporalidade”.
556
Tem-se, assim, a apresentação do projeto e da metodologia, além da
aceitação da compatibilidade entre os dois períodos da obra de Sartre; para Audry
Sartre “não visa nada menos que religar o pensamento marxista e o movimento da
história à filosofia pura, de um lado, e às ciências humanas de outro, a nada deixar
554
AUDRY, 1966, p. 81.
555
AUDRY, 1966, pp. 81-82.
556
AUDRY, 1966, p. 82.
246
fora de suas pesquisas; breve, a fazer a soma da Realidade Humana de nosso
tempo para dar a ela um meio de retomar sua marcha e de penetrar em uma nova
época da história”.
557
E se Audry não formula nenhuma dificuldade relativa aos
objetivos da Crítica e, mais do que isso, afirma a compatibilidade entre os dois
períodos, o que dizer do problema da relação entre os para-sis, ou melhor, qual a
resposta de Audry para a dificuldade que Sartre teria para dar conta da sociedade,
uma vez que a relação entre os homens apenas poderia ser de conflito?
Segundo o comentário, há dois planos distintos que separam O Ser e o Nada
e a Crítica; mesmo assim, esses planos se complementam. É assim que na
ontologia, Sartre “descreve o momento abstrato da relação com o Outro: a aparição,
no campo de minha consciência, de um não-eu-não-objeto, de outro sujeito livre
como eu, que rouba o mundo sobre o qual eu reinava e me condena à
objetividade”.
558
Audry não se furta ao problema tão disseminado do solipsismo de O
Ser e o Nada, para o qual já colecionamos alguns adjetivos: situação infernal,
mundo de almas penadas, a-historicidade, metafísica, mundo de medusas dentre
outros. Mas interpreta esse problema à luz daquilo que Sartre escreve na Crítica: se
na ontologia a relação original com o outro é o conflito, “Na realidade as relações
jamais se estabelecem nesse nível. Pois o mundo onde se produz o encontro não é
um campo virgem dominado por minha contemplação e minha atividade, em
presença do qual eu descobriria o Outro”.
559
Esse mundo ideal pode ser identificado
ao mundo de O Ser e o Nada, mas não é de modo algum o mundo da Crítica da
Razão Dialética.
A relação efetiva com o outro se dá num ambiente que está longe da
ontogênese privada da ontologia fenomenológica; trata-se de um mundo no qual
meu projeto está sendo executado sobre as coisas que eu transformo, um universo
de matéria inerte em sua maioria já trabalhado pelo homem, trabalho em razão do
qual as relações já estão constituídas e nas quais eu já me encontro engajado, ou
seja, o mundo da Crítica, da situação ampliada, da sociedade constituída e da
história. A descrição da relação com o outro em O Ser e o Nada é abstrata e, por
isso, o aparecimento do outro gera dificuldades para se falar em sociedade; no
entanto, uma vez que o mundo seja mediação, ou aquilo que se passa na relação
557
AUDRY, 1966, p. 82.
558
AUDRY, 1966, p. 83.
559
AUDRY, 1966, p. 83.
247
com o outro, a dificuldade para passar do ser-para-outro à sociedade não é mais
que aparente. “Ora, esse mundo, ao mesmo tempo matéria inorgânica e obra da
práxis humana, esse mundo do ‘prático-inerte’, é constituído de tal maneira que a
liberdade do Para-si descrita em O Ser e o Nada (...) se encontra afetada de
alienação”.
560
Para Audry, em concordância com nossa tese, a Crítica é justamente a
solução do problema muito sério da relação com o outro. Apenas a passagem do
plano abstrato ao plano concreto permite responder as acusações de que as
relações descritas em O Ser e o Nada são desencarnadas e idealizadas; ou mesmo,
que a partir dessa obra não há nenhum meio de descrever a sociedade, e o
pensamento sartriano seria resultado de uma ideologia burguesa totalmente alheia
às mazelas sociais. Não é por acaso que o início desse trabalho teve como ponto de
partida as relações entre Inês, Estella e Garcin, ou o inferno; e também não foi por
acaso que houve a insistência na identificação entre essa peça e As relações
concretas com o outro, de O Ser e o Nada, mesmo ante o protesto explícito de
Sartre de que a peça retratava consciências mortas. Ao levar a sério o pensamento
de Sartre no seu conjunto, Audry tem na Crítica a resposta para as dificuldades
apresentadas por Merleau-Ponty (que por certo não teve acesso a esse trabalho de
Sartre) e retomadas por Marilena Chauí e por Gerd Bornheim.
E o que dizer da questão que Sartre mesmo se coloca, sobre como o homem
pode livremente fazer a história se essa se volta contra ele e o determina? A
resposta está justamente na contradição entre a liberdade e a situação na Crítica.
Por certo, na Crítica a situação não é de modo algum um ponto a partir do qual o
para-si nega o em-si e estabelece uma ordem de fenômenos; a situação ampliada é
aquela na qual o homem está lançado e que envolve o prático-inerte, ou seja, a
matéria inorgânica e a práxis humana. Mesmo nesse mundo, engana-se aquele que
pensa que a liberdade foi suprimida; “é sempre da plenitude de sua liberdade que o
Para-si escolhe seus fins, (...) é livremente que ele se objetiva no mundo. Mas a
situação na qual ele se escolhe é feita de tal modo que lhe será impossível
reconhecer seu projeto no resultado de seu ato”.
561
Não foi justamente isso que
ocorreu com Pablo Ibbieta, que na tentativa de salvar Gris da morte acaba
denunciando-o (O Muro)?
560
AUDRY, 1966, p. 84.
561
AUDRY, 1966, p. 84.
248
Por isso é interessante, à revelia daquilo que afirma Garaudy, ver na literatura
de Sartre muito mais do que simples fantasia. A liberdade do para-si é real e não é
de modo algum necessário renegá-la para entrar no mundo dos vivos do marxismo;
ontologicamente, há o nada que separa o homem de si mesmo e impede que ele
coincida consigo, donde advém a liberdade constitutiva de seu ser e a necessidade
de que ele se projete. Porém, a despeito de uma interpretação muito comum de
Sartre, segundo a qual o mundo é individual, é preciso dizer que o mundo no qual o
para-si está lançado não é decorrência de uma livre escolha que ele faz – isso seria
mais apropriado para definir esquizofrenia. Porque o homem é no mundo, mundo
real (bem o mostra a porção regressiva do método e a análise de condutas de O Ser
e o Nada), “Sua liberdade é real, mas sempre se descobre impotente”.
562
Numa
palavra, a confusão se instaura porque comumente se identifica ser livre com fazer
qualquer coisa que se queira.
Dessa distinção entre a descrição abstrata da relação com o outro, em O Ser
e o nada, e o encontro real com o outro na Crítica, Audry tira sua primeira
constatação: “o encontro do homem com o homem se produz num campo de
escassez, escassez que não é nem mais nem menos que a insuficiência na
quantidade dos elementos necessários para a produção da vida”.
563
Interessa notar
que isso é um dado, uma necessidade de fato; e mesmo que a escassez seja uma
ocorrência contingente, ela é e daquilo que é (situação histórica) não há como
escapar. Afirmar que a relação com o outro se dá num campo de escassez é, ao
mesmo tempo, afirmar que há concorrência entre os homens que, longe de serem
almas penadas, são organismos e como tal precisam se manter, ou agir sobre a
matéria inerte de seus corpos e sobre a matéria inorgânica. “Reencontramos nesse
projeto totalizador a estrutura do Para-si no nível da consciência irrefletida: ele capta
seu projeto sobre a matéria descobrindo-a como matéria a transformar, falta a
preencher (...)”.
564
No campo da escassez, as relações com o outro nascem, tal qual a estrutura
de O Ser e o Nada, de uma reciprocidade negativa: “uma reciprocidade alienada
pela escassez. Tal é o sentido da ferocidade primeira do homem contra o
562
AUDRY, 1966, p. 84.
563
AUDRY, 1966, p. 85.
564
AUDRY, 1966, p. 85.
249
homem”.
565
A partir dessa identificação originária entre as estruturas de O Ser e o
Nada e a porção regressiva da Crítica, Audry continua a descrição das estruturas
que, segundo Sartre, são a origem da sociedade. Assim, fica patente que o dado
primeiro (escassez) é o liame da ideologia existencialista com a filosofia insuperável
que é o marxismo. E “É sob o fundo da escassez que é necessário entender as
relações humanas das sociedades pré-industriais (...) e, mesmo, a divisão do
trabalho nas sociedades industriais”.
566
Está claro, portanto, que Sartre promove
efetivamente a aproximação de sua filosofia e do marxismo, mas da maneira pela
qual ele o faz, também fica patente que a negatividade é o motor implícito da
dialética da história.
Negatividade que é, na sua origem ontológica, a distância do para-si de si
mesmo, ou, leia-se, liberdade. A liberdade é o motor implícito da dialética da história.
As análises que Sartre faz das guerras de extermínio, do escravismo, das
sociedades primitivas e, até mesmo, das relações de parentesco, não são o alvo da
questão; deixemos essas questões para a antropologia. Mas importa, sim, ressaltar
que o filósofo retira da negação tudo, inclusive a possibilidade de inteligibilidade da
história. E, complementa Audry, ao longo dessas descrições, Sartre conserva o
caráter materialista da práxis, ao mesmo tempo em que mantém a especificidade da
intenção humana; é assim que em sociedade o homem faz a história e é por ela
determinado. A análise do desenvolvimento dialético desses conceitos já foi feita e é
desnecessário retomá-la aqui; importa, porém, insistir no caráter de análise histórica
que Sartre aplica à sua filosofia.
A acusação de esclerose sartriana (afinal, ele afirma que há continuidade
entre as obras, depois que se trata de um novo início e, mais uma vez volta atrás e
afirma a continuidade) perde sua força ante a leitura da Crítica; o filósofo reafirma na
Crítica que o homem é livre, e a partir de conceitos desenvolvidos por Marx, mostra
que em função da necessidade o homem é livre em sociedade, e, por isso, sua
liberdade é impotente. “Uma liberdade impotente, uma liberdade alienada, não é
ausência de liberdade, mas liberdade roubada, aprisionada no instante em que ela
surge. De fato, sem liberdade até a noção de alienação desaparece”.
567
Tratar-se ia
de um mundo no qual um jogo de forças natural, tal qual ocorre na natureza,
565
AUDRY, 1966, p. 86.
566
AUDRY, 1966, p. 90.
567
AUDRY, 1966, p. 94.
250
decidiria todas as coisas e faria a história; esse parece ser o sonho dos partidários
da dialética da natureza. A liberdade, porém, é a origem da luta de forças que se dá
entre os homens e a origem primeira da dialética; o jogo desenvolvido entre os
conceitos de liberdade e necessidade o mostram a contento.
568
A sociedade é entendida por Sartre como “o reino da necessidade no qual
cada um se determina na impotência. E parece a todos que é impossível fazer de
outro modo. O círculo vicioso não é rompido senão a partir do momento que a
impossibilidade de fazer de outro modo é captada pelo explorado como
impossibilidade de continuar assim, como impossibilidade de viver”.
569
Esse é o
momento do grupo em fusão, da união das liberdades, seja para uma greve, seja
para a revolução; na descrição dos fundamentos inteligíveis da sociedade, conforme
é a proposta do percurso regressivo da Crítica, esse é o momento do nascimento da
sociedade constituída. Por considerar a sociedade o ponto de partida Sartre,
regressivamente, explica seus fundamentos; e esses fundamentos, por sua vez,
explicam a sociedade atual; trata-se do método progressivo-regressivo em sua
completude. O objetivo do primeiro livro da Crítica não é dar conta da história real,
mas, regressivamente, explicar os fundamentos sobre os quais a dialética da história
pode ser inteligível.
Após esse percurso, que mostra a passagem natural (e necessária) de O Ser
e o Nada à Crítica, inclusive discutindo algumas passagens importantes para
reafirmar que Sartre supera a dificuldade de relação com o outro, Colette Audry
acompanha os vários momentos descritos por Sartre que levam da primeira união
das liberdades, passando pelo grupo de sobrevivência, pela fraternidade terror e
chegando ao grupo institucionalizado. Essa progressão já foi devidamente
explorada, razão pela qual será transcrita a conclusão dessa introdução ao
pensamento de Sartre:
De um lado a outro de sua obra o pensamento de Sartre conserva uma
unidade e uma permanência considerável. Essa permanência se revela na
afirmação indefinidamente repetida de que a consciência não é uma coisa,
que a própria realidade humana é se ultrapassar sempre em vista de seus
fins, que ela é, então, irredutível ao determinismo. Sob esse aspecto, A
568
SARTRE, 2002, pp. 447 ss.
569
Já não se trata de retomar a questão se Sartre pode, a partir de O Ser e o Nada e, mantendo sua
estrutura, dar conta da relação entre os homens, do grupo, dos grupos de grupos ou da sociedade;
ele fala de exploração, de submissão do empregado ao empregador, de condições de trabalho, de
greve, de revolução e de liberdade impotente – aquela mesma da ontologia, porém, circunscrita à
impotência pela necessidade. AUDRY, 1966, p. 96.
251
Crítica da Razão Dialética não contradiz em nenhum ponto O Ser e o
Nada; nela, a liberdade é integrada em todos os escalões, porque a
dialética social não difere por natureza da dialética do indivíduo e, se de um
lado não existe indivíduo isolado, de outro a questão da unidade sintética
das consciências não faz sentido.
570
Segundo Audry, a liberdade de O Ser e o Nada, quando de sua passagem à Crítica,
não é negada nem suprimida, mas recuperada, na medida em que O Ser e o Nada
se encontra, cronologica (é de 1943) e logicamente (é abstrato) antes da Crítica; a
seguir Audry lança uma tese controversa: histórica e dialeticamente O Ser e o Nada
deveria se situar depois da Crítica da Razão Dialética, pois “O Ser e o Nada é válido
para uma sociedade desalienada” e nossa sociedade, bem o sabemos, aliena a
liberdade.
571
A interpretação de Audry converge, então, com nossa tese.
572
Por certo, não
se trata de desconsiderar as críticas feitas a Sartre, sejam essas de primeira ou de
segunda mão; mas é preciso ao menos recuperar o sentido de sua obra a partir de
seu interior. É provável que o filósofo se enganou, sob muitos aspectos e em várias
medidas; e nesse sentido são justas as críticas localizadas ou, mesmo, amplas,
desde que haja benevolência em entender a filosofia de Sartre e não se prender a
alguma dificuldade do percurso. Ao contrário, são justamente essas dificuldades que
geram a produção de outro caminho: assim foi a passagem da psicologia
fenomenológica à ontologia e assim é a passagem da ontologia ao marxismo. Um
homem é sua obra, diria Sartre; mas a obra do filósofo não ficou restrita ao enorme
problema das relações concretas com o outro, de O Ser e o Nada.
Feita essa incursão pelos comentários mais relevantes publicados nos anos
sessenta, é preciso, mesmo que de modo rápido, voltar o olhar para a atualidade.
Passado um quarto de século da morte de Sartre, nota-se um interesse renovado na
sua obra. Gerd Bornheim, na apresentação da tradução brasileira da Crítica da
Razão Dialética (2002) chama a atenção para as injustiças cometidas: “É que dentro
do restrito contexto de grandes pensadores de nosso tempo, Sartre foi sem dúvida o
570
AUDRY, 1966, p. 110.
571
AUDRY, 1966, p. 111.
572
A tese aqui defendida concorda com a interpretação de Audry; porém, é preciso salientar que,
para nós, a Crítica é uma resposta às questões formuladas (e não respondidas) em O Ser e o Nada.
A idéia da autora de inversão cronológica parece exagerada na medida em que, para tal, seria
preciso considerar que a relação entre as liberdades na ontologia de Sartre seria idêntica à sua utopia
do Reino da Liberdade. Mas Sartre afirma que essa utopia não pode sequer ser pensada, o que
contraria a tese da autora. Desse modo, não é possível dar esse passo com Audry; ficaremos
restritos à Crítica apenas como solução dos problemas da ontologia, mantendo desse modo a ordem
de aparição das duas principais obras de Sartre.
252
mais injustiçado”. Não se trata, todavia, de falar em injustiça, mas de insistir na
necessidade de que a obra do filósofo seja levada a sério; Bornheim mesmo chama
a atenção para isso, afinal, segundo ele o pensamento de Sartre permanece quase
em sombras totais – sobretudo as implicações de sua obra. Seja como for, Bornheim
afirma ainda que “O Ser e o Nada encontra a sua complementação necessária,
ainda que na medida dos contrapesos, nessa Crítica da Razão Dialética”; a questão
pertinente relativa a Sartre passa, então, à investigação desses contrapesos.
573
Fredric Jamenson, em seu artigo Entre estrutura e evento: o grupo, publicado
em 2005, afirma que “a Crítica torna possível uma verdadeira solução filosófica do
dilema que ficou aberto em O Ser e o Nada, a saber, aquele das ‘relações concretas
com o outro’”.
574
De fato, já foi dito que num primeiro contato com a Crítica tem-se a
nítida impressão de que não há nada que una as duas obras; mas se houver o
devido cuidado interpretativo, como também o faz Perry Anderson (citado por
Jamenson), nota-se que há uma passarela que religa conceitos importantes.
Segundo ele, a facticidade torna-se escassez, a inautenticidade gera a serialidade e
a instabilidade do ser-para-si permite entender o grupo em fusão. Além desses
pontos de confluência, apontados pelo autor, é preciso reafirmar que a serialidade
não é unicamente a retomada da existência inautêntica do para-si, e sim a
ampliação dessa situação até que ela se confunda com a história; ou seja, a
existência serial é o modo de ser do para-si na história.
O mesmo vale para a proximidade apontada por Anderson no que se refere à
passagem da facticidade à escassez, afinal, apenas levando-se em conta a
ampliação da noção de situação essa aproximação faz sentido. Ainda, a retomada
do nada que separa o para-si de si mesmo como a possibilidade do surgimento do
grupo em fusão incorre no mesmo princípio: apenas em sociedade pode haver grupo
que, por sua vez, é a possibilidade de superação da serialidade. Mas do que se trata
essa instabilidade do para-si se não de liberdade? O homem não é essencialmente
livre porque, apesar de buscar coincidir consigo, é incapaz de fazê-lo? Assim, é a
liberdade a razão fundamental e originária do grupo em fusão. Nada mais adequado
que Sartre proponha, antes de tudo, a libertação metafísica do homem para, então,
falar em libertá-lo socialmente.
573
SARTRE, 2002, pp. 7-10.
574
KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 14.
253
Essa mesma idéia foi explorada por Colette Audry: o mundo real, que é
matéria inorgânica e obra da práxis humana, é constituído justamente pela liberdade
tal qual ela se encontra descrita em O Ser e o Nada: é da plenitude de sua liberdade
que o homem escolhe seus fins, independentemente da situação; o fato daquilo que
é almejado não coincidir com o objetivo proposto se deve à rede de relações sociais
que se estabelece com os demais homens.
575
A situação ampliada, ou a história, é
justamente a responsável pela deformação do projeto; e o que é a existência serial
senão a vida em sociedade? Caberia, pois, perguntar a Doubrovsky se o mito não
estaria justamente numa razão dialética que prescinda do ato de compreensão que
é o homem na sua práxis. A dialética é negativa e, mesmo sendo movimento do ser,
só vem ao mundo em virtude da negação humana.
Enfim, se na introdução dessa tese foi dito que não era aconselhável decidir
previamente sobre a continuidade ou ruptura na obra de Sartre, agora parece ser
desnecessário tomar esse cuidado. Na primeira parte desse trabalho, a análise das
obras relevantes que separam O Ser e o Nada da Crítica da Razão Dialética não fez
outra coisa que mostrar a gênese dos conceitos que permitiram a passagem não
traumática de uma obra à outra; é certo que houve refluxos, que houve indecisão –
mas, como afirma Doubrovsky, não é justamente essa a determinação histórica à
qual, também o intelectual (para a escolástica marxista parece que as leis da história
são mais adequadas para o operário), está sujeito? E se não se trata de adequar o
homem a estruturas prévias, tanto melhor que tenham sido necessários dezessete
anos para que a Crítica fosse publicada. Mesmo em sociedade e determinado pela
história, o homem é livre para fazer o que quiser com aquilo que fizeram dele, e
Sartre o faz.
A segunda parte da tese buscou explorar o aporte metodológico e, mais uma
vez, a Crítica casa perfeitamente com O Ser e o Nada; mais do que um simples
desdobramento – o que poderia gerar para os versados em dialética a desconfiança
de que a unidade entre obras é uma ligação externa –, metodologicamente, a Crítica
é o desdobramento necessário da ontologia. Caso essas razões não sejam
suficientes, ainda seria possível citar dezenas de fatos (ou de situações) nos quais a
vida de Sartre confirmaria sua evolução do homem abstrato de A Náusea e O Ser e
o Nada para a práxis dos Caminhos da Liberdade, de Mortos sem sepultura e da
575
AUDRY, 1966, p. 84.
254
Crítica. O livre engajamento do filósofo, não num partido ou num grupo de
resistência, mas na defesa da liberdade já mostra suficientemente que, em 1960,
não se trata de Roquentin e do absurdo do existir, mas do absurdo das guerras e do
pós-guerra. Nessa tese foi feita uma opção por não entender a obra de Sartre a
partir do homem Sartre, mas sim a obra pela obra; mas em função do primeiro
centenário de nascimento do filósofo há uma enormidade de biografias que, mesmo
se preocupando mais com a vida pessoal de Sartre (histórias picantes vendem mais
que História), não omitem o fato de que ele viveu sua teoria da liberdade.
No início desse trabalho pode-se ler que bastaria mostrar a liberdade como
tema recorrente, de Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl aos
Cadernos para uma Moral, para ver que a obra de Sartre pode ser lida como um
todo, com evoluções, sim, mas sem rupturas. Está claro que apenas isso não basta;
a liberdade não é apenas um tema recorrente, mas sim o fundamento da literatura,
da dramaturgia, das entrevistas, dos filmes, das intervenções políticas, da vida e da
filosofia de Sartre. Se ele pode ser considerado um dos maiores (alguns o
considerariam o maior) nomes da intelectualidade francesa do século XX, isso se
deve à sua produção como um todo; o que interessa aqui, entretanto, é a filosofia. E
mesmo tendo mostrado o limite tênue que há em sua produção, no sentido da
dificuldade de saber o que não é filosofia, é justamente falando dela que esse
trabalho será concluído.
Sartre, após ter escrito As mãos sujas, foi acusado de, com essa peça, fazer
apologia do capitalismo e, também, de ter produzido uma obra de propaganda
comunista; com respeito à sua atuação política e em função da crítica às torturas
cometidas na guerra contra a Argélia alguns pediram seu enforcamento, e a
resposta foi que não se prende Voltaire; na ocasião de suas viagens aos EUA não
faltou quem o acusasse de espião (além da alcunha de bom jornalista) e o mesmo
vale para suas viagens à Rússia; especificamente, Garaudy critica a filosofia de
Sartre tendo por base o ponto de partida, e Doubrovski a chegada almejada; e nem
é preciso retomar outros problemas apontados em sua filosofia, como dualidade
intransponível de O Ser e o Nada, a filosofia que sobrevoa os fatos, a tentativa de
produzir um terceiro termo. A essas acusações, impõe-se uma pergunta: afinal, qual
é o lugar da filosofia de Sartre? Se ser homem é ser liberdade, e é o homem quem
faz a história, a filosofia está entre o existencialismo e o marxismo, entre a liberdade
e a história. A filosofia se situa na dobradiça.
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