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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Curso de Pós-Graduação em História
Exemplar, Pato Macho e Coojornal:
trajetórias alternativas
Porto Alegre, RS, Julho de 2002.
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Curso de Pós-Graduação em História
Exemplar, Pato Macho e Coojornal:
trajetórias alternativas
Susel Oliveira da Rosa
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial e final para a obtenção de
grau de Mestre em história na área de
concentração em História do Brasil.
Orientadora: Profa. Dra. Sandra Brancato
Porto Alegre, RS, Julho de 2002.
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AGRADECIMENTOS
À minha mãe,
Pela força que te move, e que em mim reflete...
Ao meu irmão,
Pelo amor silencioso, mas sempre presente e muito importante pra mim...
À minha cunhada,
Pela amizade e pela confiança.
A minha orientadora,
Pelo exemplo de integridade e coerência, pela orientação dedicada e
amiga.
As professoras Margaret Bakos e Ruth Gauer,
Pelas possibilidades de crescimento intelectual.
À Iara Ramos,
Professora e amiga, por ter me aproximado da história.
À Cristiane,
Pelo muito que me ensinaste...
As amigas Magda, Saionara, Tati e Silvia,
Pelo carinho e pela amizade...
À Carla Pereira,
Pela dedicação e competência...
Aos jornalistas e cartunistas que colaboraram com a pesquisa,
Sem essa contribuição muito do trabalho teria se perdido...
À Capes,
Pelo investimento na pesquisa...
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RESUMO
Esse trabalho tem por objetivo analisar a trajetória de três jornais da imprensa
alternativa, que foram editados em Porto Alegre, durante o regime militar brasileiro
(1964-1984). Considerando as especificidades de cada um desses periódicos -
Exemplar, Pato Macho e Coojornal procuro analisar as relações com o Estado
Autoritário e a censura do período.
A partir das estratégias discursivas utilizadas por cada um desses jornais,
procuro perceber as diversas facetas de resistência e contestação que apresentaram - em
maior ou menor intensidade -, tendo em vista o momento político e o tipo de pressões
diretas e indiretas que sofreram.
ABSTRACT
The aim of our paper is to analyse three of alternative newspaper press trajectory
that were published in Porto Alegre during the militar regiment (1964-1984).
Considering each of these periodics´specification - Exemplar, Pato Macho and
Coojornal - we tried to analyse the relation between the Authoritarian State and that
time´s censure.
From the discursive strategies used by each of those newspaper we tried to
realize the different kind of facets of resistance and contestation that was showed - in a
bigger or smaller intensity - taking into consideration the politic moment and the kind of
direct and indirect pressions that it suffered.
- 2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................
01
1. “ESTOU E NÃO RESISTO MUITO TENHO PRA FALAR”:
A IMPRENSA
ALTERNATIVA EM TEMPOS DE AUTORITARISMO E CENSURA.......................
14
1.1 O Autoritarismo..........................................................................................................
15
1.2 A Censura...................................................................................................................
35
1.3Imprensa Alternativa...................................................................................................
45
2. “...MAS AS PESSOAS NA SALA DE JANTAR, SÃO AS PESSOAS NA SALA DE
JANTAR, TÃO OCUPADAS EM NASCER E MORRER....: EXEMPLAR, O
DESAFIO DA CONTRACULTURA
?............................................................................
57
2.1 Os primórdios.............................................................................................................
59
2.2 Em cena: novos colaboradores...................................................................................
64
2.3 O Exemplar nas bancas...............................................................................................
65
2.4
Influências...................................................................................................................
67
2.5 Um jornal de denúncias..............................................................................................
71
2.6 O humor como crítica social.......................................................................................
86
2.7 A literatura e a crônica como armas...........................................................................
91
3. “...APESAR DE VOCÊ, AMANHÃ DE SER OUTRO DIA...: O PATO SOB
CENSURA........................................................................................................................
96
- 2
3.1 O lançamento do jornal...............................................................................................
99
3.2 A ironia.......................................................................................................................
101
3.3 A censura prévia.........................................................................................................
105
3.4 Os meios de comunicação e a propaganda do regime na mira do Pato Macho.........
108
3.5 As “dicas” da “patota”................................................................................................
114
3.6 Proximidades com o Pasquim....................................................................................
117
3.7 Desabafos....................................................................................................................
119
3.8 O fim do Pato.............................................................................................................
123
4. “...CHORAM MARIAS E CLARICES NO SOLO DO BRASIL...”: COOJORNAL, O
SONHO DE FAZER UM “JORNAL DE
JORNALISTAS”..............................................
125
4.1 A fundação da Coojornal............................................................................................
126
4.2 O Coojornal: consolidação e sucesso.........................................................................
130
4.3 O humor político do Coojornal..................................................................................
136
4.4 Censura e repressão....................................................................................................
142
4.5 Assunto: política e
eleições.........................................................................................
146
4.6 O primeiro embate com a censura econômica............................................................
151
4.7 Divergências internas: a crise da Coojornal...............................................................
157
4.8 Os relatórios da guerrilha: crise e prisões...................................................................
161
4.9 O Coojornal não resiste à crise...................................................................................
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................
167
- 2
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................
173
ANEXOS..........................................................................................................................
- 2
Introdução
Poucos são os momentos na história do Brasil em que as políticas autoritárias
não fizeram parte das práticas cotidianas de dominação, ainda que alguns governos
tenham sido caracterizados como “democráticos”. Em dois períodos o autoritarismo e a
violência do Estado marcaram a história do país mais nitidamente: durante a ditadura de
Vargas, o chamado “Estado Novo”, e após o golpe militar, em 1964, que instaurou um
regime autoritário de longa duração. Esses anos são caracterizados pelo cerceamento da
liberdade, pela censura, pela extinção dos tradicionais partidos políticos, pelos
desaparecimentos e assassinatos políticos. Mas também foram anos de resistência, anos
de luta armada, anos de arte e humor “armados”, anos de imprensa alternativa.
No período de autoritarismo explícito, que se refere ao regime militar, os
expurgos e as perseguições iniciaram logo após o golpe militar, deflagrado no dia
primeiro de abril – data alterada pelo comando militar para 31 de março, já que primeiro
de abril lembraria o risível “dia dos bobos”, para os brasileiros. Mas a repressão
aumentou ainda mais com a decretação do Ato-Institucional de número 5 (AI-5), em
resposta a uma crescente mobilização da sociedade contra o regime militar como os
protestos de 1968. Costa e Silva sancionou o Ato para logo após se afastar por
problemas de saúde. Coube ao general Médici, então, representar a “linha-dura” (1969-
1974), comandando a repressão em meio à euforia do “milagre econômico” e da
conquista da Copa do Mundo de futebol. Como complemento do AI-5, entre outros, foi
decretado o Ato Institucional de número 14 (AI-14), que instituía a pena de morte e a
prisão perpétua, principalmente em casos de “guerra revolucionária”. Extra-oficialmente
- 2
muitas pessoas morreram nas mãos da polícia política, seja nas dependências do
Departamento de Operações de Informações Centro de Operação de Defesa Interna
(DOI-CODI) ou do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), ou ainda
vitimadas pelas os de policiais que integravam o “Esquadrão da Morte”. As
justificativas para as mortes e “desaparecimentos” variavam muito, iam do “suicídio” ao
“atropelamento”, ou ainda à “troca de tiros com a polícia”. Os militares e policiais
simplesmente diziam “desconhecer” o paradeiro de pessoas que eles próprios haviam
prendido e das quais nunca mais se ouviria falar. Enquanto isso, os cemitérios e valas
clandestinas abrigavam um número cada vez maior de corpos sem identificação.
Para fomentar consenso e silenciar as oposições, o regime militar colocou em
funcionamento um amplo aparato repressivo: em nome da Segurança Nacional” foi
criado o Sistema Nacional de Informações, responsável por uma vigilância cerrada
sobre a vida das pessoas; a censura à imprensa e aos meios de comunicação em geral foi
“legalizada” e amplamente aplicada, muitos jornais passaram a conviver com os
censores dentro da própria redação. Digo censura legalizada” porque a tradição
censória do país remonta ao período colonial, quando, mesmo antes de se ter imprensa,
existia censura, uma censura que perdurou durante o período republicano (nas suas
mais diversas formas de manifestação - censura política, empresarial, econômica, social
etc). Acontece que em momentos de autoritarismo explícito, a censura também é
explícita, instrumentalizada pelo poder público.
Nesse contexto de cerceamento de liberdades pós-64 surgiram os primeiros
jornais da chamada “imprensa alternativa” ou “imprensa nanica”. Eram jornais de
pequeno porte que agrupavam jornalistas, intelectuais, estudantes universitários,
políticos afastados pelo regime, os quais buscavam espaço, que, na grande imprensa,
estes haviam sido fechados pela censura do Estado Autoritário e pela conivência da
- 2
autocensura a que se submeteram muitos dos grandes órgãos de comunicação. Muitos
desses pequenos grandes jornais já nasciam censurados, enquanto outros não chegavam
a sofrer censura direta, e isso devido ao caráter multifacetado da censura que,
dependendo do órgão de comunicação, seu público-leitor, seu alcance, sua forma de
divulgação, incidia ou não, atuava de forma mais ou menos rigorosa, não tendo,
portanto, uma atuação homogênea. Em alguns órgãos foi uma censura política, em
outros, econômica, e por vezes, até pessoal.
O jornalista e professor universitário Bernardo Kucinski, que participou
ativamente de muitos periódicos da imprensa alternativa
1
durante o Regime Militar,
responsável pelo mais completo levantamento sobre as publicações desse tipo no
período (1964-1984), publicou a principal obra de referencia sobre imprensa alternativa
no Brasil. Segundo Kucinski (1991: XIII), as publicações alternativas entre os anos de
1964-1980 ultrapassam o número de 150 periódicos, com as mais diversas temáticas
(políticos, de humor, feministas, homossexuais, culturais), tendo em comum uma
postura de oposição intransigente ao regime militar”. Esses jornais questionaram mais
diretamente o regime, denunciando a violência e as arbitrariedades, em um momento
onde os canais tradicionais de organização e manifestação política de oposição estavam
fechados, onde a prioridade era silenciar as críticas ao regime. Para este autor,
“o aparelho militar distinguia os jornais alternativos dos demais, perseguindo-os e
submetendo os que julgava mais importantes a um regime especial, draconiano, de
censura prévia. Editores do Pasquim permaneceram encarcerados por dois longos
meses após o AI-5. Editores do Resistência, do Coojornal, do Opinião, foram
presos em ocasiões diversas. Algumas edições eram apreendidas, mesmo depois de
filtradas pela censura prévia”. (Kucinski, 1991:XIV)
Mesmo trabalhando com jornais de imprensa alternativa, jornais de oposição, é
preciso considerar algumas questões importantes que se referem à utilização da
1
Amanhã, Opinião, Movimento e Em Tempo.
- 2
imprensa como fonte histórica. Partindo de uma visão menos ingênua, sabemos que o
fato jornalístico é construído, é filho de sua época e dos interesses que envolvem a sua
publicação. Sabemos que a imprensa tem uma forma de intervenção privilegiada no
contexto político, social, ideológico e cultural de uma época. Portanto, como toda fonte
histórica, não pode ser lida como um “espelho da realidade”, como um relato fiel dos
acontecimentos”, mas sim encarada como a construção subjetiva e intencional de um
jornalista, de um grupo de jornalistas que, na maioria das vezes, estão ligados a uma
empresa jornalística, a qual representa e defende seus próprios interesses e visões de
mundo.
Nesse sentido, para tornar a análise o mais verossímil possível, busco, além do
explícito no texto jornalístico, o implícito, fazendo uma “leitura intensiva” (Elmir,
1995) dos jornais, levando em consideração aspectos como aquilo que o texto impresso
“diz” e o que “quer dizer”, para “quem” (qual o público leitor alvo) foi produzido o
jornal, em que circunstâncias (“como e quando”). Em nossa análise, forma e conteúdo
são importantes, na medida em que pensamos a relação linguagem mundo, em que
acreditamos que a linguagem o é neutra, que assim como o mundo a constrói, ela
também constrói o mundo.
O lugar que determinada matéria ocupa no jornal, o estilo da linguagem utilizada
para comunicar (ironia, humor, denuncia, etc.), todos esses aspectos, juntamente com o
conteúdo, são levados em consideração na análise. É o que Capelato (1988) chama de
trabalhar “dentro e fora” do jornal. Assim como o historiador seleciona, a partir de seu
lugar social e de seus interesses, o seu objeto, suas fontes, suas prioridades, o jornalista
seleciona o que sedestacado, o fato que criará no jornal. E, para trabalhar dentro e
fora” do jornal, se faz imprescindível a utilização de outras fontes históricas, do
- 2
entrecruzamento da fonte jornalística com as demais fontes que tenham relevância para
o trabalho.
Dessa maneira, tornou-se essencial para o trabalho a utilização de fontes
bibliográficas e orais. No que diz respeito a utilização da história oral, para além da
técnica, reconhecemos sua importância enquanto metodologia. Muitas das informações
sobre os jornais que pesquisamos não ficaram registradas em nenhum documento ou
fonte escrita, e, sem as entrevistas com os jornalistas e editores, não teríamos acesso a
alguns dados a respeito, por exemplo, da censura prévia sofrida pelo Pato Macho.
Procurei, preferencialmente, entrevistar os editores dos jornais, pois foram eles que
tiveram maior contato com o que foi publicado e, no caso de censura, tinham contato
direto com o censor.
Realizei entrevistas que Alberti (1989) classifica como temáticas, onde, com um
roteiro previamente preparado, as questões propostas versam sobre o objeto da análise.
As entrevistas foram realizadas após todo o levantamento feito nos jornais, depois de
leituras específicas sobre o tema, de forma a aproveitar melhor a entrevista e enriquecer
o diálogo com os entrevistados. Na textualização ou transcrição, quando o documento
oral é transformado em documento escrito, procurei manter-me o mais fiel possível às
intervenções do entrevistado. Seguindo a idéia de Meihy (1998: 66), suprimi apenas
alguns excessos nos vícios de linguagem - palavras como “né” e sabe” - , próprios da
linguagem oral. É notório que a fidelidade em ternos de transcrição tem seus limites, na
medida em que a textualização já é, por si só, por mais que se tenha a preocupação com
a fidelidade, uma forma de interpretação da entrevista, onde o oralista também
intervém. Em suma, o percurso de trabalho com a história oral enriqueceu de forma
significativa a análise.
- 2
A imprensa alternativa é uma fonte histórica distinta da grande imprensa, na
medida em que não possuí a mesma periodicidade, tiragem, e público-leitor; tem um
tipo de matéria, apresentação e circulação, diferente daquele da grande imprensa. Como
não é uma imprensa diária, sua circulação é semanal, quinzenal, mensal ou mesmo bi e
trimestral, e não tem a mesma estruturação financeira da grande imprensa, por isso ela
acaba por trazer, mais nitidamente, “muito das idéias e da visão de mundo dos grupos
que representa” (Araújo, 1999). É nesse sentido de trazer mais nitidamente as visões de
mundo dos grupos que a produzem, e representar, no período que analiso, uma das
principais formas de resistência ao regime militar, que considero a imprensa alternativa
uma fonte privilegiada para entender parte do contexto político, social, ideológico e
cultural da época.
Meu interesse repousa na imprensa alternativa brasileira como um todo, contudo
as limitações impostas em um trabalho de mestrado, em função, também, da forma de
análise que utilizo - discursiva - não permitiu uma pesquisa tão ampla, de maneira que
me limito a trabalhar com três jornais publicados em Porto Alegre, escolhidos em
função de sua periodicidade, circulação, divulgação e importância no contexto regional
e nacional. Os jornais Exemplar, Pato Macho e Coojornal de maneiras próprias, fizeram
parte de um movimento de contestação não política, mas também social e cultural,
durante o regime militar vivido no país
2
. Uma contestação que não se insere na simples
dialética de autoritarismo/resistência. Essas duas palavras encerram práticas e idéias
cujos limites não são tão circunscritos, e não podem ser formatadas em um pensamento
do tipo: regime militar versus oposição. Utilizo o termo resistência não apenas para
significar oposição, embate contra o Estado Autoritário, mas também, e de acordo com
2
Outros jornais foram publicados em Porto Alegre e outras cidades do interior do estado nessa época,
entre eles: O Protesto (1967), Risco (1974), Semanário de Informação Política (1975), Comunicação
(1975), Informação (1976), Triz (1976), Peleia, Lampião e Paralelo (todos de 1976), Tição (1978), Lado a
Lado e Tchê (1979), Correio da Mulher (1980) e Denúncia (1982).
- 2
o contexto, como uma forma de pensar, de se opor a padrões sociais e morais
estabelecidos, como contestação libertária, ultrapassando as fronteiras do político.
Contestação que por vezes, não tinha o compromisso de indicar caminhos de melhora
do sistema vigente, mas que, ao puxar a máscara de um Estado militarizado que buscava
legitimar-se das mais variadas formas (eleições, bipartidarismo, entre outros),
desnudava o funcionamento desse Estado e suas práticas repressivas.
Quando realizaram o golpe, em 1964, os militares não estavam sozinhos, além
da influência externa
3
, tinham o apoio de amplas parcelas da sociedade, insatisfeitas
com os rumos do país e com o que chamavam de “esquerdização” de João Goulart,
então presidente. Esse apoio era muito tido, por exemplo, entre a maioria dos jornais
da chamada grande imprensa”, e no meio político, principalmente de partidos que
disputavam poder e eleições com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Jango a
União Democrática Ruralista (UDN) e o Partido Democrático Socialista. Os militares
contavam com o apoio também de empresários nacionais e de representantes de
empresas multinacionais que o viam com bons olhos a política econômica do
governo, que entre outras medidas limitou a remessa dos lucros ao exterior. Esse apoio
era demonstrado publicamente em marchas organizadas pela Igreja Católica, onde
desfilavam inúmeras pessoas defendendo a propriedade privada. Setores dios, além
das elites apoiaram os militares sentindo-se preteridos na política econômica do
governo, e temerosos do aumento dos protestos entre trabalhadores que pressionavam
por reformas (agrária, econômica, habitacional etc.). Muitos dos que apoiaram o golpe
esperavam que o poder retornasse aos civis em pouco tempo, afinal, os militares
deveriam “limpar a casa”, impor a “ordem”, “expulsar os comunistas”, e, feito isso
3
Vale lembrar a influência do governo norte-americano, que, no auge da “Guerra-Fria” temendo que a
“Revolução Cubana se espalhasse pelo continente, priorizou a instalação de governantes latinos
“colaboracionistas”, aliados a sua política favoreceu os inúmeros golpes e regimes militares na América
Latina.
- 2
entregar o poder para políticos conservadores. Como sabemos, isso não aconteceu, e os
“milicos” permaneceram duas décadas na condução do país.
Em 1967, os primeiros grandes protestos contra o regime tiveram início, a
resposta foi violenta, a repressão se mostrava publicamente, alguns jornais eram
invadidos e censurados, as manifestações contidas com violência. Essa atuação rompia
o apoio de muitos setores ao regime. À perda de apoio, os militares reagiam com mais
repressão em nome da “segurança nacional”. Com o AI-5 e a censura prévia à imprensa,
os meios de resistência e de protesto foram amordaçados. Muitos optaram pela luta
armada e foram para a clandestinidade. Artistas e sicos continuavam a trabalhar,
fazendo o possível para burlar a repressão e a censura. Jornalistas, estudantes,
humoristas, políticos cassados, que tiveram seus espaços de crítica fechados, uniam-se
em torno de um projeto alternativo, fundando pequenos jornais, que, por sua vez,
também foram alvo da repressão. Pessoas oriundas, em sua maioria, dos setores dios
da sociedade, com diferentes posturas e opiniões, aglutinaram-se em torno desses
jornais, minimizando suas divergências pessoais, valorizando as proximidades na hora
de fazer o jornal.
As questões que nortearam este trabalho estiveram intimamente ligadas com
essa diversidade de posturas desses periódicos, que cada um deles possui
peculiaridades que vão desde a fundação do jornal até as estratégias e as formas de
crítica ao regime militar. A partir da ação multifacetada da censura e das diferenças
entre os jornais (propostas, interesses, ideologia, público leitor, etc), é que procurei
construir a problematização, procurando perceber o tipo de resistência que esses jornais
alternativos apresentaram, e as estratégias que utilizaram para burlar a censura e as
pressões. E, em função disso, o tipo de pressões e coerções que sofreram. Para isso,
- 2
parti das estratégias discursivas
4
empregadas por esses jornais para se contraporem ao
regime militar. O interesse em analisar a construção discursiva de cada jornal advém da
idéia que classificar um jornal como cultural, político ou humorístico não diz muito
acerca da intensidade de crítica de cada um. A teoria de que jornais políticos praticaram
uma oposição mais intensa ao regime não balizou a análise, já que as formas de
oposição não são possíveis apenas dentro da política. É sabido que o humor pratica uma
crítica social destrutiva, além do humor procuro demonstrar o quanto um jornal
classificado como cultural também faz isso.
Tanto periódicos da grande imprensa quanto da imprensa alternativa sofreram
censura, embora os dessa última tenham sido alvos de uma forma mais intensa e
constante de vigilância. Isso significa que a maioria dos jornais da grande imprensa
aquiesceram diante da repressão, seja por conivência ou não. Mas, e os pequenos jornais
que não sofreram censura prévia, aquiesceram também? Concordar seria simplificar a
análise, seria o mesmo que defender uma atuação homogênea da censura, e uma única
forma de autocensura entender está última apenas como mecanismo de conivência
com o regime militar. Em muitos casos autocensura significou dizer “sim” à repressão e
encarregar editores e jornalistas dos cortes e da vigilância. Contudo, em outros casos,
também significou a sobrevivência, e nessas formas múltiplas de censura e de
autocensura muitos aperfeiçoaram maneiras mais sutis de crítica, criando um vínculo
maior com seus leitores. Portanto, o fato de terem sofrido censura não é motivo
suficiente para classificarmos os jornais como grandes mártires da repressão. Sabemos
das dificuldades, das arbitrariedades, prisões e torturas praticadas contra jornais e
jornalistas, mas um dos objetivos aqui é tentar entender em que contexto e que forma de
4
Entendemos que o discurso possui uma materialidade específica, e que sua produção é controlada,
selecionada, organizada e redistribuída através dos procedimentos de exclusão” (Foucault, 1996: 8-9).
- 2
pressões e censura sofreram os jornais, sem estabelecer a priori que se foram
censurados é porque foram mais combativos que outros não censurados.
Tendo por base essas questões procuro trabalhar com os jornais e com as
entrevistas buscando leituras possíveis, viáveis e verossímeis, de acordo com o contexto
em que foram produzidos.
Assim, no primeiro capítulo, busco familiarizar o leitor com o contexto em que
circularam os jornais, o autoritarismo do regime militar e seus antecedentes, a atuação
da censura com um pequeno histórico da censura no Brasil, e uma breve localização
das discussões sobre o surgimento e as definições sobre a imprensa alternativa. No
segundo capítulo
5
me debruço sobre o jornal Exemplar. A escolha de começar por esse
periódico deu-se apenas em função da cronologia em que circularam os periódicos. O
Exemplar foi o primeiro a circular na capital gaúcha, já em 1967. O Pato Macho foi
editado em 1971, tendo circulado na mesma época que o Exemplar. De forma que, no
terceiro capítulo, analiso a trajetória do Pato Macho. No quarto e último capítulo, me
atenho ao Coojornal, que surgiu em 1975, período em que já se falava em “abertura”.
No final do governo de Médici os sinais de falência da política econômica, do
“milagre brasileiro”, eram visíveis. A crise do petróleo acabou por demonstrar a
fragilidade da economia. O “bolo” de Delfim Neto não cresceu, apenas encolheu
aumentando a concentração de renda, diminuindo o poder de compra do salário mínimo,
contribuindo significativamente para a elevação dos índices de miséria do país. O
euforismo do consumismo tinha se esgotado. Paralelamente, os movimentos sociais
voltavam à cena política; formou-se um movimento pela anistia; as greves retornavam
ao cenário político (do ABC paulista); surgiram organizações como o Movimento pelo
custo de Vida e o Comitê Brasileiro pela Anistia. O general Ernesto Geisel tinha
5
No Anexo 01 o leitor encontrará uma foto de capa do jornal Exemplar, no anexo 04 do Pato Macho e no
anexo 05, do Coojornal.
- 2
assumido o comando do país prometendo uma “abertura lenta, gradual e segura” tão
lenta que durou dez anos. Representante da ala dos “castelistas” ou da “sorbonne”,
enfrentou internamente a oposição da “linha dura”, responsabilizada pelos atentados à
bancas de jornais alternativos, no início da década de oitenta, e por assassinatos nas
dependências dos órgãos de repressão. A atuação daqueles que defendiam o
endurecimento do regime acabou por possibilitar a Geisel afastá-los do poder.
A imprensa alternativa também teve um papel importante no período de
“abertura”, quando auxiliou ex-presos políticos e intelectuais afastados a voltarem para
suas ocupações sociais, servindo, também, como espaço de reorganização de tendências
políticas. Mas foi exatamente nesse período de transição, de “abertura”, no início da
década de oitenta que a maioria dos jornais alternativos deixaram de circular, por um
conjunto de fatores, entre eles: os atentados à bomba, a intimidação a jornaleiros que os
vendiam, o fato da grande imprensa ter incorporado muito dos temas e da linguagem
inovadora da imprensa alternativa, e também ter contratado profissionais que
trabalhavam nesses jornais. E, por fim, a reorganização dos partidos políticos que
transformou alguns desses jornais em vozes partidárias, afastando muitos colaboradores.
Todas as questões elencadas, em conjunto, acabaram por implodir a sobrevivência dos
alternativos, gerando um refluxo que ocorreu no mesmo período de transição para um
governo de cunho mais liberal. Nesse período, o Pato Macho e o Exemplar não
existiam, e o Coojornal deixou de circular exatamente nesse contexto.
- 2
1. “ESTOU SÓ E NÃO RESISTO MUITO TENHO PRA FALAR”
*
: A
IMPRENSA ALTERNATIVA EM TEMPOS DE AUTORITARISMO E
CENSURA
O regime militar no Brasil foi instaurado através do golpe militar de março de
1964. Esse Estado Autoritário
6
assumiu toda a sua face repressora com a decretação do
Ato Institucional de número 5. Foi o momento em que os militares chamados de linha-
dura assumiram o “comando” do país. Os movimentos sociais reorganizados a partir de
1967 pelos estudantes, trabalhadores, sindicatos e parte da igreja, eram alvo do
endurecimento do regime imposto pelos militares.
É com o intuito de mostrar as facetas dessa longa trajetória que este capítulo se
ocupa de três motes, fundamentais para compreendermos o contexto no qual se
desenrola a trajetória dos jornais alternativos analisados. Esses motes são: o
autoritarismo, a censura, a imprensa alternativa.
O autoritarismo pressupõe, de um lado, instrumentos de coerção e de ocultação
de visibilidade aos sujeitos do sistema vigente e mesmo de suas condições de vida.
Assim como pressupõe, por outro lado, uma propaganda que veicule o discurso oficial,
discurso de estabilidade, de sociedade sem conflitos, de bem-estar social. A censura
figura como um dos principais instrumentos de coerção em um Estado Autoritário.
Abordarei a censura política amplamente difundida pelo Estado Autoritário Brasileiro
*
Travessia, música de Milton Nascimento e Fernando Brant, de 1970.
6
Adotei a definição de Estado Autoritário burocrático-militar, uma tipologia utilizada por Linz (1980),
para dar conta, principalmente, dos regimes militares instituídos na América Latina a partir da década de
60. o regimes autoritários onde uma coalizão, na qual oficiais das Forças Armadas e burocratas
ocupam uma posição predominante, mas não detêm poder exclusivo, estabelece o controle do governo
excluindo ou incluindo outros grupos sem se comprometer com uma ideologia especifica, agindo
pragmaticamente dentro dos limites de sua mentalidade burocrática e sem criar ou permitir que um
partido único de massa desempenhasse um papel dominante”
(Linz, 1980:149). Considero, contudo, que
as tipologias, ao buscarem explicar regimes ou momentos históricos não conseguem abranger de forma
satisfatória o universo de características e formas próprias dos regimes analisados, na medida em que os
processos históricos não o uniformes. Dessa forma, devo reconhecer os limites das definições
tipológicas como esta que adoto.
- 2
(1964-1984), censura esta aliada a forte repressão e conseqüente silenciamento dos
movimentos sociais. O objetivo é o de contextualizar o período histórico, privilegiando
o momento de intensificação da censura à imprensa escrita, a partir de 1968, com a
decretação do AI-5, momento em que as publicações da imprensa alternativa se
proliferam, dentro da perspectiva de construção de um discurso de resistência ao
discurso autoritário vigente.
1.1 O Autoritarismo
“A ditadura consiste em imposição de uma idéia...”.
“Hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão, não”.
“A ditadura persegue os que ousam pensar diferentemente...”.
“A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão, viu...”.
7
As políticas autoritárias sempre estiveram presentes ao longo da história
brasileira, seja de forma ostensiva ou mascarada. E muitos momentos da nossa história
foram marcados pelo autoritarismo ostensivo. É lembrarmos, por exemplo, dos
primórdios da colonização do país, da imposição de valores culturais, econômicos,
religiosos, políticos e sociais dos portugueses aos nativos. Podemos nos remeter à
censura já nesse período, quando a metrópole portuguesa impediu a prática da tipografia
e do jornalismo até 1808, ano da vinda da família real para o Brasil, ou seja, mesmo
antes de nascer, a imprensa já estava proibida na colônia.
No período monárquico foi somente durante o reinado de D. Pedro II que a
imprensa brasileira gozou de certa liberdade.
7
As referências a ditadura pertencem a Margulei (1979), as outras o trechos da música “Apesar de
você”, de Chico Buarque.
- 2
A República foi instaurada por um golpe militar, após longos anos de governo
monárquico. O período republicano iniciou com uma “República de Espadas”, ou seja,
República de armas. O Exército fortalecido com a sangrenta participação e vitória na
Guerra do Paraguai, e contando com o respaldo da sociedade tomou a frente do
processo republicano para que tudo ocorresse dentro da ordem” e para o “progresso”.
Mais uma vez a censura fora instaurada, e entre os anos de 1889 a 1930 tratou de conter
as revoltas regionais, as pretensões de retorno à monarquia, etc. Os sucessivos “estados
de sítio” dos governos de Prudente de Morais, Hermes da Fonseca, Epitácio Pessoa,
Whashington Luís acabaram por comprometer a imprensa, sendo que muitos jornalistas
foram presos e exilados.
Contudo foi em 1937 na ditadura do “Estado Novo”, momento em que foi
elaborada a Lei de Imprensa, criando o primeiro órgão oficial encarregado de cuidar da
censura à imprensa e da propaganda governista, o Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP). Esse departamento foi instituído por decreto-lei em dezembro de
1939, em conformidade com as aspirações fascistas da Constituição de 1937.
As formas de autoritarismo ostensivo estão no rastro de muitos períodos
históricos, e perduram ainda de forma mascarada
8
, onde as práticas autoritárias se
apresentam recobertas pelo discurso democrático. Em 1945, quando Getúlio
anunciava eleições presidenciais para o próximo ano, as tropas do General Góes
Monteiro depõem Vargas, passando a presidência ao chefe do Supremo Tribunal
Federal, José Linhares, que teve a incumbência de realizar as eleições presidenciais. Em
meio a “Guerra Fria” o governo “democrático” do general Euríco Dutra cassa o registro
do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1947, que esteve clandestino durante a
ditadura do Estado Novo, e em 1948 aprova um Projeto de Lei, tendo como sustentação
8
Como políticas autoritárias mascaradas considero os momentos nos quais o autoritarismo não é
explícito, e sim mascarado, como no governo de Eurico Dutra, tido como um governo “democrático”.
- 2
a Lei de Segurança Nacional, cassando todos os políticos eleitos pelo partido. A Lei de
Segurança Nacional foi, então, acionada, pondo em prática, novamente, as perseguições
políticas e a repressão.
Getúlio retorna em 1951 através das urnas, porém, a partir de 1953, com o
crescimento das mobilizações populares, a política de conciliação do governo foi
cedendo lugar a uma política trabalhista, que se voltava para o apoio dos setores
populares. Isso resultou em perda de apoio dos setores mais conservadores e,
conseqüentemente, das Forças Armadas, onde aumentava o movimento anticomunista
disseminado pela doutrina da Escola Superior de Guerra. Em 1954, Getúlio recebe
comunicado do Exército para renunciar sob ameaça de uma intervenção militar.
Suicidando-se, Getúlio adia a “intervenção militar”.
A renúncia de Jânio Quadros em 1961 propicia outra tentativa militar,
dissuadida pela influência da campanha pela “Legalidade” e com a concordância de
João Goulart em assumir a Presidência da República sob a forma parlamentarista que
perdurou até 1963, quando por plebiscito retoma-se o regime presidencialista.
Porém, em março de 1964, o golpe militar, fracassado em tentativas anteriores,
concretizou-se. Para tanto, os militares contaram com o apoio de boa parte da sociedade,
dos empresários e da embaixada norte-americana. As tensões sociais chegaram ao ápice,
em meio à crise econômica do país, quando o presidente Goulart voltou-se para a
chamada “esquerda radical”, anunciando as famosas reformas de base” (agrária,
tributária, eleitoral e educacional). A conspiração civil-militar encontrou o momento
propício para a destituição do presidente. Neste período os setores da esquerda, bem
como o movimento sindical, participavam ativamente da vida do país, acirrando os
conflitos sociais. Paralelamente, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática e o Instituto
de Pesquisas e Estudos Sociais IBAD/IPES tramavam para combater a
- 2
“esquerdização” do governo e mobilizar os militares (Barros,1992). Baseados na
Doutrina de Segurança Nacional - teoria da “segurança e desenvolvimento”- , os
militares, principalmente aqueles doutrinados na Escola Superior de Guerra
9
, tinham o
apoio dos setores dominantes, dos empresários nacionais e dos representantes das
multinacionais, da Igreja Católica, dos setores médios e de políticos conservadores.
Contavam com o apoio de jornais como O Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de São
Paulo, Correio da Manhã, entre outros. A embaixada norte-americana também apoiava
os conspiradores, tendo acompanhado atentamente os acontecimentos e estando
preparados para uma interferência militar no país, conforme relata Parker (1977). A
posição favorável ao golpe do governo britânico, analisada por Cantarino
10
(1999),
também fortalecia a conspiração. Essa coalizão de forças tornou viável a ruptura da
frágil “democracia” brasileira, permitindo aos militares que se instalassem no poder,
com a promessa de controlar a situação, acalmar a população, recolocar” o país no
rumo da ordem e feito isto, realizar eleições retornando o poder aos civis.
Porém isto não aconteceu, muito pelo contrário, os militares permaneceram no
poder, perpetuando-se ao longo de vinte longos anos. Anos de repressão, de
silenciamento, de “otimismo”, de milagre econômico”; anos de censura, de
assassinatos; anos de prosperidade aparente para os setores médios
11
; anos de aumento
exorbitante da dívida externa, de achatamento do salário mínimo.
9
“A Escola Superior de Guerra foi fundada em 1949, com a assistência de consultores franceses e norte-
americanos, para treinar pessoal de alto nível no sentido de exercer funções de direção e planejamento de
segurança nacional, tendo seu papel ampliado passando a incluir a análise e interpretação de fatores
políticos, econômicos, diplomáticos e militares” Entre os civis que faziam parte da ESG antes do golpe
podemos citar: Delfim Netto, Mário Henrique Simonsen, Roberto Campos e Octávio Bulhões. (Alves,
1984:24-25).
10
Esse autor também analisa a posição de outros países como Franca e Cuba, entre outros, em relação ao
golpe militar no Brasil.
11
Quando falo em setores médios tenho em mente aqueles grupos sociais ou indivíduos definidos não
apenas em função de sua renda, mas também em função da ocupação que possuem (funcionalismo
público, profissionais liberais, etc), e em função de seu grau de instrução (ensino médio e universitário).
- 2
Com o golpe de 64 instituiu-se mais um período de autoritarismo explícito na
história brasileira, e, muito embora os militares tenham tentado se legitimar em todos os
períodos, seja através de eleições controladas, bipartidarismo, atos institucionais,
decretos-lei (além do projeto econômico), as características que aproximaram o governo
de uma ditadura foram visíveis. Assim, de 1964 a 1984 o país viveu sob a égide de um
regime militar extremamente repressivo.
O golpe militar encontrou sua justificativa ideológica na Doutrina de Segurança
Nacional e Desenvolvimento
12
, desenvolvida pela Escola Superior de Guerra (ESG)
conjuntamente com o IPES e IBAD. Em nome da Segurança Nacional foi criado um
enorme aparato repressivo, o que demonstrava a preocupação dos militares com o setor
de informações. Esse aparato repressivo era constituído pelos seguintes órgãos: o
Sistema Nacional de Informações (SNI), as Segundas Seções de Informação das Forças
Armadas, o Centro de Informações do Exército (CIE), o Centro de Informações da
Aeronáutica (CISA), o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), os
DOI/CODI(s) e os DOPS. Era um completo e constante exercício de vigilância sobre a
sociedade. Os governos militares criaram, também, uma “assessoria” de propaganda
política e divulgação do regime, a Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP).
Todo esse aparato demonstrava a importância dada pelos militares à informação
veiculada aos cidadãos, pelos meios de comunicação.
Seguido ao golpe, foi decretado o Ato Institucional 1. Este ato colocou o
Judiciário sob controle, suspendeu os direitos individuais, abriu caminho para a
repressão e os expurgos entre os dissidentes. Foram criados os Inquéritos Policiais-
Militares IPMs que cuidavam dos crimes contra o Estado, contra a ordem política e
social, e contra os “atos de guerra revolucionária”, ou seja, dotavam de aparência legal a
12
A Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento prevê sua legitimidade a partir do
desenvolvimento econômico e da “segurança interna”.
- 2
violência e as perseguições, que para serem aceitas as denúncias, dispensavam-se às
provas, numa verdadeira “caça as bruxas”.
Segundo o manual básico da ESG, a segurança interna dependia da Informação.
Com base nessa idéia foi criado o Sistema Nacional de Informações (SNI), que “tornou-
se um poder político de fato” (Alves, 1984:73). Criado três meses após o golpe militar,
em junho de 1964, “o SNI cresceu, inchou como a inflação brasileira, com poderes
ilimitados e, conseqüentemente, extravagantes e totalitários. Passou a meter o bedelho
em tudo. A ter olhos, grampos, garras e ouvidos em toda parte” (Baffa, 1989:15). As
verbas iniciais destinadas ao SNI ficaram em torno de Cr$ 200 milhões, e coube a esse
setor organizar os demais órgãos de informação. Sua influência foi tão vasta que dois
generais que foram chefes do SNI tornaram-se presidentes do país, o general Médici e o
general Figueiredo.
Dessa forma, calando as vozes dissonantes, amparados na Doutrina de
Segurança Nacional, através dos Decretos e Atos Institucionais, os militares buscavam
“legitimarem-se” no poder, uma preocupação permanente ao longo dos governos
militares.
Contudo as eleições para governador de alguns estados, em 1965, demonstraram
o descontentamento com a política do Estado Autoritário, sendo que nos maiores
estados
13
a oposição venceu. Isso demonstrou que os militares estavam perdendo o
apoio de alguns setores que os tinham apoiado quando do golpe e que esperavam dos
militares uma transição para um governo civil. Esse episódio fez com que fosse
decretado o Ato Institucional n º 2, quando Castelo Branco
14
cedeu à pressão dos
militares da chamada linha-dura. O AI-2, entre outras medidas, suspendeu as garantias
13
A oposição venceu nos estados mais importantes e industrializados, onde se realizaram eleições, o
eles: Guanabara, Minas Gerais, Santa Catarina e Mato Grosso (Alves, 1984:88).
14
Castelo Branco era vinculado a ESG, sendo que os militares à ele vinculados eram considerados da
“sorbonne” , da intelectualidade militar.
- 2
do Judiciário e extinguiu os partidos políticos, autorizando a existência de apenas dois
partidos – era o bipartidarismo – um de situação, a Aliança Renovadora Nacional
(ARENA), e outro de oposição consentida, o Movimento Democrático Brasileiro
(MDB). A existência de um partido de oposição visava a legitimação do Estado
Autoritário, que a função do Legislativo reduziu-se a apenas homologar as decisões
dos chefes militares. Em 1966 o governo aprovou mais um Ato Institucional, o AI-3.
Tendo em vista as próximas eleições estaduais, esse Ato decretou eleições indiretas para
governador, sendo que os prefeitos das capitais passaram a ser nomeados pelos
governadores. Em 1967, o Congresso foi reunido para aprovar uma nova Constituição,
da qual não teve participação na redação. Mais uma vez foi demonstrada a preocupação
dos militares com a legitimação do Estado Autoritário, segundo Alves (1984),
legitimação interna e externa. A Constituição homologada pelo Congresso mudou o
conceito de Segurança Nacional
15
:
“a defesa da segurança nacional seria de responsabilidade não das Forças
Armadas como de toda ‘pessoa natural ou jurídica’ da sociedade civil. Indivíduos
e organizações poderiam ser considerados criminalmente responsáveis por deixar
de fornecer informação sobre as atividades daqueles considerados pelo Estado
como parte do inimigo interno’. Como qualquer Estado Totalitário, os indivíduos
eram juridicamente transformados em informantes” (Alves, 1984:108).
No depoimento do Almirante Armando Amorim Ferreira Vidigal, diretor da
Escola Naval de Guerra no governo Geisel, o significado da concepção de inimigo
interno “além de antidemocrática, foi, também desagregadora, porque dividia o País
entre patriotas e antipatriotas, todos cidadãos nacionais (Contreiras, 1998:100). Com
isso o governo instituiu o medo e a desconfiança entre as pessoas, mas não o suficiente
para conter os movimentos sociais.
15
A Segurança Nacional que antes da Constituição de 1967 estava associada a agressão externa e a defesa
das fronteiras territoriais, passa a estar associada a guerra psicológica” contra o “inimigo interno”, ou
seja, as fronteiras passaram a ser “fronteiras ideológicas”.
- 2
Entre 1967 e 1968 os movimentos sociais de oposição se reorganizaram unindo-
se em manifestações e passeatas contrárias ao regime. Os setores médios da sociedade,
que apoiaram o golpe, solidarizaram-se com os movimentos de protesto
16
. A resposta
aos protestos foi a repressão, da qual o escaparam nem os padres da Igreja Católica.
Como os poderes extraordinários do AI–2 tinham expirado, o Executivo não podia mais
cassar mandatos parlamentares. Aproveitando-se desse fato e da imunidade parlamentar,
congressistas de oposição passaram a criticar duramente o regime na tribuna do
Congresso. Um desses discursos de crítica foi utilizado pelos militares como pretexto
17
para endurecer e decretar o AI–5. Foi a resposta do governo a crescente mobilização
popular contrária à política autoritária. Todas as garantias constitucionais e individuais
foram suspensas e o Congresso foi fechado por tempo indeterminado.
O período de vigência do AI-5 foi um dos períodos mais negros do regime
militar. Os sindicatos, estudantes, os congressistas, enfim, “os setores de oposição que
preconizavam a reforma mediante resistência não violenta foram grandemente
enfraquecidos, entrando num período de desorganização e falta de perspectivas”
(Alves, 1984:141).
Em outras palavras, a participação política e protestos ou quaisquer atitudes
contrárias ao Estado Autoritário significavam, mais do que nunca, repressão, prisão,
tortura. Dessa forma, os militares institucionalizavam o medo.
16
Os setores médios solidarizaram-se com os protestos principalmente após o assassinato do estudante
Edson Luís, de 16 anos. A morte do estudante secundarista, ocorrida em 28 de março de 1968, aconteceu
em meio a um protesto na frente de um Restaurante Universitário no Rio de Janeiro. Os estudantes que
protestavam contra o aumento do preço das refeições, foram reprimidos a tiros de metralhadoras pelos
Policiais Militares. A morte gerou comoção e protestos na cidade.
17
Em setembro o deputado federal Marcio Moreira Alves (do MDB da Guanabara), discursou na tribuna
do Congresso, denunciando a violência militar e a ditadura, motivado pela invasão da Universidade de
Brasília pelas tropas militares, quando um estudante foi ferido. A linha dura reagiu distribuindo cópias do
discurso e exigindo a punição do deputado acusado de ofender a honra e a dignidade das Forças Armadas.
O Congresso negou a licença para que o deputado fosse processado, o fato foi utilizado pelos militares
para endurecer. Para Couto (1999:94) “seria um fato isolado e desimportante, que teria passado isolado e
despercebido se a linha dura militar não o tivesse usado politicamente.
- 2
Congresso fechado por dez meses (dezembro de 1968
a outubro de 1969), logo
após a promulgação do AI-5, o habeas corpus o existia mais, muitos atos
institucionais, atos complementares e decretos-lei foram promulgados pelos militares,
entre esses Atos o de número 14, que instituiu a pena de morte
18
. Ou então o decreto de
novembro de 1971 que permitia ao presidente assinar decretos secretos, onde somente o
número era publicado no Diário Oficial. Além do mais nenhuma autoridade respondia
às denúncias de morte
19
, prisões e tortura a presos políticos. Paralelamente, ou talvez em
conjunto com as ações policiais, surgiram, na década de 70, os grupos parapoliciais,
conhecidos como Esquadrões da Morte. Esses grupos prendiam e executavam pessoas
suspeitas de crimes comuns sem que as autoridades tomassem providências, apesar das
denúncias sistemáticas dos crimes praticados pelos Esquadrões da Morte
20
. Em meio a
essa falta de perspectiva dentro do fechamento total do regime, alguns setores de
oposição deram início em 1969 a resistência armada, as chamadas ações de guerrilha
(urbana, rural ou a criação de “focos guerrilheiros”). Algumas ações da guerrilha urbana
ficaram bastante conhecidas, através dos seqüestros e assaltos a bancos e quartéis. Os
seqüestros de diplomatas estrangeiros tinham por finalidade a troca do seqüestrado por
presos políticos. Os assaltos (ou expropriações) angariavam fundos e armas para a
guerrilha. A resposta do governo foi uma repressão violenta, que resultou no assassinato
dos principais deres conhecidos (como o capitão Lamarca e Carlos Marighela, entre
muitos outros), sendo que em 1974 a guerrilha já estava dizimada.
18
“Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de Guerra
Externa, Psicológica Adversa, ou Revolucionária ou Subversiva nos termos que a lei determinar...”(Ato
Institucional 14, de 05 de setembro de 1969, artigo1°, inciso 11; in: Chagas:1979, p. 233-234) Este ato
também excluía de apreciação judicial “todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e
Atos Complementares dele decorrentes, bem como seus respectivos efeitos” (artigo 3º).
19
Ser preso pelo DOI-CODI ou pelo DOPS significava tortura que muitas vezes resultavam em morte.
Essas mortes eram encobertas com falsas versões de atropelamento, morte em perseguição ou
simplesmente a polícia negava descaradamente ter prendido a vítima.
20
O delegado de polícia, personagem importante na repressão política, Sérgio Paranhos Fleury ficou
conhecido nacionalmente como o principal chefe do Esquadrão da Morte paulista.
- 2
Mas os anos da década de 70 (início da década) também foram os anos do
“milagre econômico”, do otimismo ufanista do “ninguém segura esse país” (menção a
vitória na Copa do Mundo de 1970), do “Brasil ame-o ou deixe-o” (quem o estivesse
com o governo estava contra) ou “esse é um país que vai pra frente” (a expectativa do
“milagre econômico”, o “pra frente Brasil” da seleção de futebol). Anos de intensa
propaganda ufanista-otimista nos meios de comunicação (censura e propaganda como
complementos indispensáveis utilizados pelo Estado Autoritário para silenciar e
fomentar a idéia de paz e bem-estar social) baseadas no pido crescimento econômico
do país no início da década. Com isso, Delfim Neto, ministro da economia do governo
Médici, ganhava fama. O Produto Interno Bruto (PIB) crescia juntamente com a
produção industrial, principalmente a indústria de bens de consumo duráveis, sendo que
“uma febre consumista parecia ter tomado conta das classes médias: compravam
o carro do ano’ financiado em 36 meses; apartamentos ‘estilo mediterrâneo ou
barroco’ financiados pelo BNH (Banco Nacional de Habitação); o último aparelho
de som ‘três em um’; a recentíssima TV a cores e as ilusões da última novela das
oito’” (Habert, 1996:12).
O “milagre econômico” propiciou ao governo de Médici alardear as idéias de um
Brasil grande, de um país próspero e tranqüilo que a o final do culo seria
reconhecido como uma “grande potência”, estando essa política de acordo com os
princípios da política de Segurança Nacional e Desenvolvimento. Os resultados da
economia, amplamente difundidos pela ótica ufanista propiciaram ao governo de Médici
legitimidade entre a população.
Porém, o crescimento do PIB se fez às custas de uma enorme concentração de
renda. O ministro Delfim Neto comparava a economia brasileira à “um bolo que estava
crescendo”, era preciso deixá-lo crescer para depois dividi-lo entre a população. O
resultado foi que esse “bolo” cresceu, mas não foi dividido, foi degustado por poucos. O
- 2
outro lado do milagre demonstrava que mais da metade dos assalariados recebiam
menos de um salário mínimo, que as taxas de mortalidade e subnutrição eram altas, que
a dívida externa aumentava exorbitantemente:
“Entre 1969 e 1973, a dívida externa pulou de 4 a 12 bilhões de dólares e
continuou crescendo cada vez mais nos anos seguintes. No final da década estava
em torno de 60 bilhões de dólares, saltando para 100 bilhões em 1984, uma das
maiores dívidas externas do mundo” (Habert, 1996:17).
Esses dados demonstram a outra face do “milagre econômico”, uma face que
não foi divulgada, que os meios de comunicação, sob censura, não foram autorizados a
noticiar.
Esse crescimento econômico foi possível porque o Estado Autoritário sustentou-
se a partir de uma aliança de três grupos, o tripé econômico do qual fala Kucinski
(2001:09):
“os empresários nacionais, que conheciam os corredores do poder e se
encarregavam da negociação política dos grandes projetos de investimento; as
empresas estrangeiras, em geral multinacionais que dominavam as tecnologias de
produção; e o Estado, que fornecia a infra-estrutura, matérias-primas básicas,
como aço, a energia, além de garantir, é claro, a segurança para os
investimentos”.
Entretanto, a crise do Petróleo
21
, que ocorreu no final do ano de 1973,
desestabilizou esse “tripé econômico”. Os gastos com a elevação do preço do petróleo,
que o país importava, foi responsável pelo aumento considerável da dívida externa
(demonstrado anteriormente). A redução dos lucros aliada ao fato das empresas estatais
21
A crise do Petróleo aconteceu quando os países árabes membros da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP) suspenderam as exportações em represália ao apoio dado a Israel, por
países do Ocidente, na Guerra do Oriente. A conseqüência foi a elevação dos preços do produto, que até
então estava desvalorizado. O Brasil era extremamente dependente da importação de Petróleo, tendo a
crise mundial o afetado muito, levando-se em consideração, também, que o consumismo proporcionado
pelo “milagre econômico” tinha em uma de suas bases a industria automobilística, dependente do
petróleo.
- 2
serem responsáveis pelo monopólio do petróleo e da siderurgia, fez com que os
empresários rompessem a aliança com os militares. Isso significou a perda do apoio do
empresariado ao regime. À crise do petróleo juntou-se o resultado das eleições
parlamentares de 1974, nas quais o governo, ou melhor, o partido do governo – a Arena
perdeu em 16 estados
22
. O resultado das eleições foi interpretado como um plebiscito
contra o Estado Autoritário. Justamente no ano em que o general Geisel tinha assumido
prometendo uma “abertura lenta e gradual”, mas um lento e gradual que consolidasse e
perpetuasse a política autoritária. O governo de Geisel não conseguiu restabelecer a
economia neste período de crise, o “milagre econômico” ruiu, a inflação disparou,
cresceram as demissões, o arrocho salarial e o desemprego, e a dívida externa continuou
a aumentar. A “distensão” prometida por Geisel era “lenta” e “segura”, ou seja, os
militares o abriram o dos poderes do AI-5 e da repressão
23
. Geisel era
representante da ala militar dos “castelistas”
24
ou “sorbonne”, e não tinha o apoio dos
militares da “linha dura” que o queriam nenhuma alteração no regime, pelo contrário
defendiam um endurecimento. Nesse período travou-se uma disputa de bastidores entre
essas duas facções, sendo que a ação dos militares linha-dura foi flagrante nas mortes de
Vladimir Herzog e Manoel Filho, que acabaram permitindo que Geisel afastasse o
comandante do II Exército, e, em 1977, o ministro do Exército, dois dos principais
representantes da linha-dura.
Contudo, as arbitrariedades do Estado Autoritário não tinham terminado. O AI-5
continuava em vigor, as eleições parlamentares de 1978 ocorreriam, porém, sob o
controle do Executivo. A chamada Lei Falcão, promulgada em 1976, instituiu que a
propaganda política na televisão poderia exibir uma foto 3 x 4 do candidato e seu
22
O MDB ganhou principalmente nas regiões sul e sudeste e na maioria dos grandes centros urbanos.
23
Os assassinatos sob tortura em 1975 do jornalista Vladimir Herzog e em 1976 do operário Manoel Fiel
Filho nos porões do DOI-CODI, comprovam que a repressão continuava e fazia parte da disputa interna
entre os militares “linha dura” e os “castelistas”.
24
Referência ao general Castelo Branco e a ala da “sorbonne”, dos militares ligados a ESG.
- 2
currículo, que era lido por um locutor. Em 1977, Geisel fechou o Congresso, reabrindo-
o para receber o chamado “Pacote de Abril”, a partir do qual as mudanças na
Constituição passariam a ser aprovadas com apenas 50% mais um dos votos dos
congressistas, garantindo o poder da Arena, que vinha perdendo terreno para o MDB.
Instituiu os chamados “senadores biônicos”, que seriam eleitos indiretamente pelas
Assembléias Legislativas de cada estado, representando um terço do Senado. O Pacote
também alterou o quociente de representação eleitoral de cada estado, fazendo com que
o Nordeste elegesse um número maior de congressistas, já que o MDB vinha vencendo
nos centros maiores e mais desenvolvidos. As eleições diretas para governador foram
adiadas para o ano de 1982, anteriormente previstas para 1978. O mandato presidencial
passou para seis anos, vigorando a partir da eleição do próximo presidente, que
continuaria a ser realizada indiretamente.
Essas mudanças nos dão a dimensão do que era a chamada “abertura lenta e
gradual” que Geisel tinha em mente. Uma abertura que assegurou a permanência da
política autoritária e dos próprios militares, pelo menos, por mais um mandato. Para
Habert (1996:45), essa ‘abertura’ representou “uma transição do regime militar para
uma dominação mais aberta, de conteúdo conservador, na qual a classe dominante
manteve a sua hegemonia e cujo desdobramento viria a ser chamada Nova República’
em 1985”.
Para assegurar essa “dominação mais aberta”, Geisel decretou o fim do AI-5
em 1978, mas o sem antes se utilizar desse Ato para cassar muitos mandatos de
parlamentares do MDB. A Lei de Segurança Nacional continuou respaldando o Estado
Autoritário.
A conjuntura de crise tornou possível o ressurgimento dos movimentos
populares, como o movimento operário, que se reorganizou a partir de 1977, tendo
- 2
papel importante no final do regime militar. A crise econômica atingiu, também, o
padrão de vida dos setores médios que deixaram de apoiar o governo militar e
aprofundou a situação de miséria de muitos trabalhadores, através do arrocho salarial e
do desemprego. Nessa conjuntura, na segunda metade da década de 70 organizaram-se
movimentos pelos direitos humanos, pela anistia, pelas liberdades democráticas. Os
movimentos de protesto e reivindicações voltaram a tomar as ruas. Paralelamente
intensificaram-se os atentados
25
e ameaças a esses movimentos, bem como a repressão e
a tortura.
Alguns segmentos da Igreja Católica, instituição que em 1964 participou
ativamente do golpe mobilizando os setores médios da sociedade através da “Marcha da
Família com Deus pela Liberdadevoltam-se, a partir de 1965, para as lutas populares
através das Comunidades Eclesiais de Base surgidas em 1960, essas comunidades
expandiram-se significativamente após 1965 -, com o apoio majoritário na Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Esse apoio de alguns setores da Igreja aos
movimentos sociais afetou a base de sustentação ideológica do regime militar
26
. Das
comunidades eclesiais surgiu o Movimento pelo Custo de Vida” (MCV) organizado
em 1973, este movimento espalhou-se de forma ostensiva pelo país em 1978, devido a
um colapso no abastecimento do qual participavam predominantemente mulheres da
periferia, membros das Comunidades Eclesiais e alguns militantes do Partido
Comunista do Brasil (PC do B). Além do Movimento pelo Custo de Vida, surgiu, em
1978, o “Comitê Brasileiro pela Anistia” (CBA), sendo que desde 1975 existia o
“Movimento Feminino pela Anistia”, este último formado basicamente por mães,
25
Entre esses a tentados podemos citar as bombas lançadas sobre a sede da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), bombas em sindicatos, nas redações de
jornais alternativos, bem como em bancas que vendiam esses jornais. Esses atentados culminaram com o
famoso e fracassado atentado do “Riocentro”, no qual uma das bombas que seriam detonadas pelos
militares nas comemorações do primeiro de maio explodiu no colo de um deles.
26
Vários religiosos foram perseguidos, mortos, e submetidos a torturas.
- 2
mulheres e filhos dos presos e desaparecidos políticos. O CBA era um movimento
oriundo principalmente dos setores médios e altos da sociedade, formado por parentes
de professores universitários, militares, artistas, intelectuais, advogados presos ou
desaparecidos, que contou com o apoio da OAB, da ABI e de setores da Igreja Católica.
O Comitê defendia a anistia irrestrita bem como a investigação sobre os desaparecidos.
O movimento pela anistia ganhou o apoio de boa parte da imprensa. Paralelamente, os
nomes dos torturadores
27
passaram a ser denunciados, assim como as torturas praticadas
pelos órgãos de repressão. Dentre essas denúncias estava a da morte sob tortura do
jornalista e diretor da TV Cultura, Vladmir Herzog que gerou revolta e organização de
movimentos de protesto colocando em evidência nacional os abusos da repressão. A
versão do DOI-CODI foi a de que o jornalista teria se suicidado, o caixão foi lacrado e
os familiares impedidos de abri-lo. Porém, a viúva do jornalista recorreu à Justiça, que
responsabilizou a União pela morte sob tortura do jornalista Vladmir Herzog e pela
primeira vez a repressão foi responsabilizada. Para Kucinski (2001:87), “aos poucos os
militares vão sendo colocados no banco dos réus. Não política e moralmente
também na prática, por meio de alguns processos judiciais pioneiros como o caso
Herzog”. Isso significava que o Estado Autoritário estava perdendo o apoio e a
legitimação entre todos os setores da sociedade. Mas, os militares reagiram, o se
deixando julgar,
“trancando processos, intimidando ou removendo juizes, tudo é feito para estancar
as revelações, para impedir que o passado seja posto em julgamento. Mais uma
vez verifica-se que um pacto não escrito, especialmente entre os militares e a
imprensa convencional, pelo qual a abertura não levará o passado a julgamento”
(Kucinski, 2001:87).
27
O Semanário alternativo Em Tempo, edição de março de 1978 publicou uma lista com nomes dos
torturadores.
- 2
De fato a “abertura” o levou o passado, os torturados, os atos arbitrários e
violentos a julgamento. A anistia aconteceu, e com ela foram anistiados também os
torturadores.
Neste ínterim, a crise econômica chegou aos quartéis fazendo-se sentir
principalmente entre os oficiais, oriundos dos setores médios da sociedade. Para
Kucinski, as conspirações desses setores militares começaram em fins de 1976, a partir
dos casos de corrupção e privilégios de uns poucos ligados ao governo militar. Os
descontentes formaram um grupo conhecido como “Centelha”, ou Centelha
Nacionalista
28
, esse grupo uniu-se ao MDB participando da Frente Nacional pela
Redemocratização, onde defendiam entre outras coisas, a revogação de todos os atos de
exceção e eleições diretas em todos os níveis. A Frente chegou a lançar, através do
MDB, a candidatura do general Euler Bentes Monteiro
29
. Mas esse general não tinha o
apoio de boa parte do partido, sendo que o nome do general Figueiredo foi referendado
pelo colégio eleitoral.
Os pacotes de reformas de Geisel, que não agradaram, deixavam claro a tentativa
de permanência do autoritarismo, sem que o governo precisasse utilizar-se de poderes
excepcionais. As eleições de 1978 deram ampla vitória ao MDB demonstrando ao
governo autoritário que o voto popular não o legitimaria.
O ano de 1978 também foi o ano em que estouraram as greves dos operários nas
indústrias, principalmente as do ABC paulista, onde se concentrava a indústria
automobilística. As greves estouraram desvinculadas dos sindicatos, controlados pelo
governo. A liderança desses movimentos foi assumida pelo operário Luiz Inácio Lula da
28
Esse grupo conhecido como a “dissidência nacionalista” defendia: o retorno dos militares aos quartéis,
anistia ampla, inclusive aos torturadores, democracia com todos os partidos, inclusive o PCB e uma
política econômica nacionalista (Kucinski, 2001:58)
29
O general Euler foi um dos militares que assinaram o “Manifesto dos Coronéis”, forçando Getúlio
Vargas a demitir seu ministro do trabalho, João Goulart, em 1954. Além desse episódio, suas
aproximações com a linha-dura também deixavam suspeitas a seu respeito.
- 2
Silva. Foram essas greves que deram origem ao chamado “Novo Sindicalismo”, onde as
assembléias eram realizadas nos próprios refeitórios, todos com direito a voto, sem a
condução pelega” dos dirigentes sindicais vinculados ao governo. Lembramos que as
reformas de Geisel deixavam de fora o movimento sindical, sendo que as greves
continuavam proibidas. Com o governo e os empresários pegos de surpresa, os
operários conseguiram algumas vitórias. Lula, em seus discursos, lembrava que as
propostas da Frente Nacional pela Redemocratização deixavam de lado os trabalhadores
e a política sindical. Propunha, então, a formação de um partido dos trabalhadores. Em
1979, estouraram novas greves pelo país, greves de funcionários públicos, de médicos,
de motoristas de ônibus, etc. A crise econômica e a inflação atingiam a todos. As greves
contaram com o apoio de parte da igreja. A resposta do governo foi a repressão,
apelando como sempre, para a Lei de Segurança Nacional. Mas o assassinato de um
ativista sindical ligado a pastoral dos operários, Santo Dias da Silva, acabou atingindo o
governo, que introduziu uma nova lei salarial. Com isso, a lei que proibia greves ficou
desacreditada.
Enquanto isso, no campo, o processo de concentração de terras gerava conflitos
graves entre posseiros, fazendeiros e comunidades indígenas. Esses conflitos, segundo
os relatórios da Pastoral da terra da Igreja Católica, deixavam rastros de mortes.
Somando-se a isso, em agosto de 1978 também acontece uma greve dos trabalhadores
rurais – coletores de banana do sul de São Paulo, que estavam há 16 meses sem receber.
Com essa conjuntura de insatisfação e protestos generalizados contra o regime e
a política econômica e salarial, o ex-chefe do SNI, general Figueiredo, assumiu “o
comando do país” em março de 1979, prometendo redemocratizar o país, nem que fosse
à força. A sua “redemocratização” começou pela anistia de agosto de 1979, que
beneficiou aqueles que praticaram crimes políticos, mas o os condenados por
- 2
seqüestros, assaltos, e atentados pessoais com fins políticos. Beneficiou os servidores
federais e militares punidos com os atos institucionais, mas estes voltariam a ocupar
seus cargos com a aprovação de seus superiores. A lei de inelegibilidades não foi
revogada, impedindo que antigos políticos cassados se candidatassem. Dessa forma, a
anistia foi restrita, como era restrito o projeto de redemocratização do governo
Figueiredo. Para Marcelo Rubens Paiva “a anistia foi um ato de covardia, uma
manipulação, nós, estudantes, saímos as ruas e apanhamos muito pela anistia ampla,
geral e irrestrita, e ela foi uma anistia restrita” (Revista Caros Amigos, 26, p.25).
Anistia ampla e irrestrita, bandeira de luta dos movimentos populares, receberam os
torturadores, estes foram amplamente beneficiados, impedindo-se, assim, o julgamento
do regime. Mas o projeto de “redemocratização” previa, também, o enfraquecimento do
MDB. Segundo Kucinski, o governo pretendia implodir o MDB, dividindo os setores de
esquerda, já que lideres como Brizola, Miguel Arraes e Luiz Carlos Prestes voltariam ao
país e conseqüentemente formariam outros partidos políticos. Mesmo com o amplo
repúdio dos setores e movimentos sociais ao projeto, este foi aprovado.
O próximo ato do governo do general Figueiredo foi o de extinguir os antigos
partidos políticos (MDB e ARENA), dividindo a oposição. O partido comunista
continuou proibido, a lei facilitou
“a formação provisória de novos partidos que podem ser fundados imediatamente
com a mera assinatura de 101 pessoas e publicação de seu manifesto político. De
fato, os políticos quase instantaneamente reagruparam-se, pondo fim à frente
constituída pelo MDB” (Kucinski, 2001:110).
O caráter da divisão ficou explícito na proibição de coligações partidárias para as
eleições legislativas. Cada partido, por menor que fosse, tinha que buscar seus próprios
votos, configurando a velha teoria do dividir para governar. Com o pretexto da
necessidade de reorganização partidária, Figueiredo adiou as eleições municipais por
- 2
dois anos, estas viriam a ocorrer em 1980. Nesse período a inflação atingia a taxa
anual de 100%.
Novas greves estouraram no ABC paulista, em 1980, com um apoio maciço dos
familiares dos operários, com apoio da Igreja e de muitos políticos de esquerda. O
governo reagiu prendendo seus principais líderes. Porém, a greve continuou.
Endurecendo e recorrendo à repressão o governo proibiu a greve, decretando uma
ocupação militar da região do ABC. Contudo, os grevistas e familiares reagiram, o
apoio à greve aumentou e o governo saiu desmoralizado. Mas os agentes da repressão
continuavam a agir clandestinamente, através dos atentados a bomba às sedes dos
jornais alternativos, às bancas que os vendiam, a OAB, a AIB e o atentado que ficou
famoso por seu fracasso: o atentado do Riocentro, onde a idéia era atribuir o atentado
aos grupos de esquerda. Com o fracasso do atentado, que uma das bombas explodiu
no colo dos militares, o general Figueiredo resolveu acobertar o caso, protegendo os
agentes da repressão, como fizeram governos anteriores. Os protestos contra o
acobertamento do caso pelo governo surgiram dentro das próprias Forças Armadas.
Depois desse malfadado episódio a influência dos militares de linha-dura” e da
repressão praticamente deixou de existir.
Em 1982, o Brasil pediu moratória da dívida externa, apesar disso, em 1984, a
inflação chegava a 200% ao ano. Era o resultado da política econômica dos governos
militares que veio acompanhada do pedido de empréstimos ao FMI. A crise econômica
levou ao empobrecimento dos setores médios, que durante os anos do “milagre” tinham
exultado com a política econômica do governo militar. Essa crise decretava também o
isolamento dos militares, que se fazia sentir, entre outros fatores, através das eleições de
1982, primeiras eleições diretas para governadores, que deram vitória aos partidos de
oposição na maioria dos estados, e também na Câmara Federal. Mas isso não foi
- 2
suficiente para que a Campanha das Diretas Já, que culminou com uma marcha de cem
mil pessoas no Rio de Janeiro conseguisse a aprovação da emenda Dante de Oliveira,
que defendia eleições diretas para presidente em 1984. Tancredo Neves foi eleito
presidente pelo voto indireto em 1984, mas em função de sua doença que resultou em
morte, assumiu seu vice José Sarney. As primeiras eleições diretas para presidente
voltaram a se realizar em 1989. Para Kucinski,
“ao todo, a transição lenta, gradual e segura” levou 15 anos para ser
completada, desde sua primeira formulação em fins de 1973. Durou mais tempo
que a própria ditadura. Foi a mais lenta de todas as transições das ditaduras
latino-americanas dos anos de 1960. Foi também a mais gradual, a mais segura.
Apesar de alguns momentos de risco, como o das greves do ABC e da campanha
das Diretas Já, as elites dominantes e seus aliados militares nunca perderam o
controle do processo de abertura. A abertura reafirmou a tradição política
brasileira da conciliação entre as elites” (Kucinski, 2001:139).
A política de conciliação a qual Kucinski se refere ficou muito visível no
discurso de vitória de Tancredo Neves, analisado por Eni Orlandi (1987). Essa autora
demonstra o quanto a transição para a “democracia” seria realizada sob a égide da
conciliação. Tancredo manifestou-se contra o “revanchismo” e as “represálias”,
buscando garantir a impunidade para o regime militar. O próprio termo “Nova
República” sugere que o período anterior tenha sido também uma República, negando
assim o período autoritário e silenciando a crítica sobre o regime. A Nova República se
colocou, portanto, “como uma passagem e não uma ruptura” (Orlandi, 1987:271). A
idéia de uma passagem deixou de fora os conflitos, que segundo as palavras de
Tancredo deveriam existir dentro de “uma certa ordem” e de um certo controle”.
Controle e ordem, velhos chavões que acompanham as práticas políticas e
governamentais em nosso país.
1.2 A Censura
- 2
“Dama de honra da propaganda política em regimes autoritários, ela é o
corolário lógico da propaganda”.
“A censura brasileira experimentou e sobrexistiu a todas as formas de
governo. Temos, por isso, de convir se não é ela um bem, pelo menos é um
mal necessário”
30
.
As palavras do Técnico de censura da polícia federal, Coriolano de Loyola
Fagundes, talvez o primeiro censor a escrever sobre a censura no Brasil
31
, não deixam
muitas dúvidas quanto ao caráter da censura
32
. Ela não surge apenas em regimes
autoritários, a diferença é que nesses períodos ela torna-se ostensiva, é exercida sem
meias palavras, muito embora, na maioria das vezes, como foi durante o Estado
Autoritário militar, censurava-se a si própria. Ou seja, não permitia a divulgação nos
meios de comunicação de sua existência. Em seu exercício constante de ocultação,
ocultava-se a si mesma. A censura, utilizada historicamente pelos Estados como forma
de controle social, durante o regime militar no Brasil, tornou-se a espinha dorsal do
aparelho repressivo.
A censura, entendida como “o ato de rever e julgar qualquer escrito para fim de
autorizo” (Jobin, 1984:19) esteve durante muito tempo atrelada e legitimada pelo poder
público e a pela Igreja. Sendo que com a invenção da tipografia e o advento da imprensa
a discussão sobre a censura veio à tona, e os problemas passaram a existir. Para Katz
(1984:49) a censura existe com o próprio homem, já que o “homem pode existir
30
A primeira epígrafe é de Caparelli (1982:34), e a segunda epígrafe de Fagundes (1974:27).
31
Coriolano de Loyola Fagundes buscou as raízes da censura na Grécia antiga, observando as práticas
censórias de muitos outros países, como na Itália, no México, na Inglaterra, no Chile, Canadá, Argentina,
Inglaterra, França, etc. Tinha por objetivo compilar dados sobre a censura e tentar definir e organizar sua
prática, além de técnico da censura, Coriolano de Loyola ministrava cursos sobre a prática da censura.
32
A censura pode ser classificada como ideológica, política, econômica, social, moral, religiosa, técnica,
legal, empresarial, partidária, profissional, etc. Geralmente atua em mais de um campo, por exemplo, a
censura política do Estado Autoritário foi também uma censura ideológica, e utilizou-se da censura
econômica e da censura empresarial (jornais da grande imprensa que não sofreram a censura prévia pois
aceitaram a postura autocensória, os proprietários e redatores cuidavam do que deveria ser publicado,
acompanhada dos bilhetes e ordens telefônicas).
- 2
como homem desde o momento em que ele recusa alguma coisa”, ou seja, no momento
em que elegemos, escolhemos alguma coisa estamos prescrevendo outra, estando este
conceito de censura atrelado ao nível do indivíduo. Katz
33
acentua esta censura
individual para demonstrar que o problema da censura não é tão simples, que existe
intrinsecamente no homem e na sociedade, e portanto em todas as atividades. Ou seja, a
informação o é livre, censura e meios de comunicação são indissociáveis, na medida
em que selecionam a notícia, o destaque, a forma como será repassada ao público a
informação. Dessa forma os jornais são desfavoráveis a censura que vai contra os seus
interesses. Assim podemos entender as diversas posturas adotadas pelos diversos órgãos
da imprensa quanto à censura, de posturas mais combativas às posturas complacentes
com o regime militar, esta última, principalmente de jornais da chamada imprensa
convencional ou grande imprensa. Não pretendo discutir aqui a censura individual, ou
mesmo teorizar de forma mais ampla a questão da censura, mas é importante ter claro
que os problemas censórios não se resumem e não existem apenas em regimes
autoritários, como também não pertencem ao passado
34
.
Conforme afirmei anteriormente, as raízes da censura
35
no Brasil, reportam ao
período da colonização, durante o domínio português, que a metrópole portuguesa
impediu
36
a tipografia e o jornalismo na colônia até a transferência da família real para o
Brasil, no século XIX. Dentre as inovações resultantes da transferência da família real
33
Para este autor a normalidade social” estabelece o que deve ser dito e o que deve ser calado (p.58),
dessa forma, para quem desejar teorizar sobre a censura, é necessário entender primeiramente como a
sociedade elabora suas “normas”, sua “normalidade”.
34
Sobre as formas censórias “modernas” de censura, ver Nuevos Términos de Código de Censura.
Variedades modernas de limitaciones a la prensa, publicado pela Sociedade Interamericana de Prensa
(sua versão original partiu da Comissão Mundial para a liberdade de Imprensa) em 2001.
35
Me detenho aqui na história da censura exercida pelo Estado, pelo poder Executivo, a chamada censura
política, que é a que analiso constantemente ao longo do trabalho. Não abordarei, portanto, as origens da
censura de forma mais ampla e sua vinculação com a religião.
36
A Carta Régia, de 1747, que mandava fechar a tipografia, punia os infratores com penas de prisão e
exílio, e seqüestrava tipos, que eram remetidos para a metrópole” (Bahia, 1990:11). Enquanto que no
México, por exemplo, a tipografia já existia desde 1533 e no Peru desde 1584.
- 2
portuguesa está a instalação das oficinas de impressão Régia, de onde passaram a
circular o jornal Gazeta do Rio de Janeiro.
Porém, Hypólito José da Costa editava (desde junho de 1808), de seu exílio
em Londres, o jornal Correio Brasiliense
37
, também conhecido como Armazém
Literário, desafiando a proibição portuguesa que visava preservar a política colonialista
das aspirações liberais.
Fagundes (1975) afirma que em 27 de setembro de 1808 foi criada a censura
brasileira com a nomeação dos primeiros censores régios, que teriam a função de
examinar papéis e livros, cuidando para que nada pudesse ser impresso “contra a
religião, o governo e os bons costumes” (p.22). A censura a qual esse autor se refere foi
realizada, segundo Juarez Bahia, pela Junta Diretora da Impressão Régia, que era “de
fato, um conselho de censura prévia” (Bahia, 1990:14). Essa censura se aperfeiçoou
com o aviso 41 de outubro de 1811, que criou um tipo de serviço de censura, sob a
orientação do Maestro Antonio Portugal. Somente após o episódio da Revolução do
Porto, em 1820, é que a censura prévia à imprensa brasileira foi suspensa. Porém, isso
não significou a liberdade de imprensa, pois muitos jornais continuaram a ser editados
clandestinamente, e por defenderem idéias liberais e antimonarquistas, muitos
jornalistas foram assassinados, presos e mesmo exilados.
Com D.Pedro II a censura ficou a cargo do Conservatório Dramático Nacional
38
,
ao qual competia, entre outras atribuições, o exercício da censura de apresentações
teatrais.
Nos primeiros anos da República foi baixado o decreto-lei de 557, de julho de
1897, que subordinou o exercício da censura à polícia (Fagundes, 1974: 22). A censura
37
O jornal era considerado subversivo por pregar o abolicionismo e a independência, e teve edições
apreendidas, sendo seu proprietário processado. Porém, mesmo com as proibições portuguesas a partir de
1813 começaram a circular outros jornais pelo país, entre eles, Aurora Fluminense, O Patriota, Sentinela
da Liberdade.
38
O Conservatório Dramático Nacional foi criado por D.Pedro II através do Decreto nº 425.
- 2
estipulada abrangia os espetáculos, as apresentações teatrais, os livros, revistas e
também quando necessário a imprensa. Muitos jornais considerados monarquistas foram
perseguidos e fechados nos governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. A
censura prévia foi oficialmente estipulada logo nos primeiros anos da república, quando
a imprensa teve mais uma vez sua liberdade cerceada oficialmente, com a decretação do
Estado de sítio em 1914, que estabeleceu a censura prévia.
Em 1934, a Constituição assegurou a liberdade de manifestação de pensamento,
sendo que a publicação de livros e periódicos seria realizada independente de licença ou
autorização ou censura prévia do Estado, a mesma Constituição, em seu capítulo 13,
acrescenta que “não será, porém, tolerada propaganda de guerra ou de processos
violentos para subverter a ordem política e social” (Bahia, 1990:303). Propaganda de
guerra, subversão da ordem política e social, dão margem para muitas interpretações
que a lei não especifica os casos que podem ser classificados como tais. É a margem
legal de manipulação e coerção que o Estado necessitava para praticar a censura quando
houvesse interesse. Em 1937 com o golpe do Estado Novo, foi instaurada a ditadura de
Vargas com inspirações fascistas. A censura, então, tornou-se ostensiva, como acontece
nos regimes autoritários, ditatoriais e totalitários. O DIP ficou encarregado da censura
de jornais, publicações periódicas, cinema, espetáculos teatrais etc, bem como da
propaganda governista. Segundo Bahia (1990:304),
“A comunicação entre os censores do DIP e os veículos se fez pessoalmente (os
censores são civis, funcionários públicos ou militares recrutados aos serviços de
informação das Forças Armadas), por telefone ou por escrito”.
Este foi o momento em que a censura passou a agir amplamente, através da
figura dos censores dentro das redações dos jornais, ou das ordens escritas e
telefonemas. Com o DIP a censura voltou para o âmbito de controle federal, que, se
- 2
aprovado pela censura federal o espetáculo ou periódico estava livre para circular em
todo território nacional, não podendo incidir novamente sobre ele outra censura de nível
estadual, por exemplo.
Com o final da ditadura de Vargas, a Constituição de 1946 retomou a liberdade
de pensamento, desde que cada um respondesse “pelos abusos que cometer”
39
. E
retomando a constituição de 1934 continuaram o sendo toleradas “propaganda de
guerra, de processos violentos para subverter a ordem pública e social”,
acrescentando-se “ou de preconceitos de raça ou de classe”
40
. Em 1953 foi
regulamentada uma legislação específica para a imprensa, a Lei de Imprensa (lei 2083),
que posteriormente foi alterada pelos generais presidentes do regime militar, na
consolidação do Estado Autoritário.
Em 1961, eram nomeados os primeiros censores do Departamento de Polícia
Federal (Fagundes, 1975:24). Mas este departamento não estava estruturado, e a censura
não estava centralizada (a Constituição de 1946 não deixava claro se cabia a União ou
aos estados o exercício da censura), que outros departamentos, como polícias civis
estaduais, polícias municipais, e mesmo outros funcionários públicos e políticos
exerciam a função de censores. Este Departamento foi estruturado de fato, com um
quadro permanente de funcionários pela Lei 4483, regulamentada em 1965
(Fagundes, 1975:76-77). Entretanto, a confusão continuou e sabe-se que os censores
atuavam a partir de muitos órgãos, federais, estaduais ou municipais. No período áureo
da censura à imprensa brasileira tornaram-se muito comuns os telefonemas para as
redações dos jornais, esses telefonemas indicavam as matérias proibidas, ou ainda
apontavam qual notícia o Estado tinha interesse que fosse divulgada. Esses telefonemas
ou mesmo os bilhetinhos nem sempre tinham a identificação de seus autores, era muito
39
Constituição de 1946, capítulo II, artigo 141, inciso 5 º.
40
Constituição de 1946, capítulo II, artigo 141, inciso 5 º.
- 2
comum a expressão “de ordem superior fica proibida”, mas não especificavam de ordem
superior de quem. Dessa forma o exercício censório era exercido, inúmeras vezes, sem a
responsabilidade de autoria.
Uma lei promulgada em de 16 de novembro de 1964 instituiu a obrigatoriedade
de concurso público para censor, até então a única exigência para exercer o cargo era a
de ter o curso colegial completo. Outra lei, de novembro de 1968, chamada de nova lei
da censura, de nº 5536, acrescentou mais requisitos para o exercício da função de
censor, passando a obrigar o candidato a apresentar diploma de curso superior nas áreas
de: Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Jornalismo, Pedagogia ou Psicologia. Além da
formação superior, o candidato para ser nomeado teria, também, que ser aprovado em
um curso de “Formação de Técnico da Censura” (ministrado pela Academia Nacional
de Polícia), após aprovação em um exame psicotécnico para confirmação de
“temperamento adequado”. Essas qualificações, conforme a lei, seriam para o exercício
da censura aplicada às diversões públicas e não à imprensa, já que oficialmente a
censura à imprensa só foi restabelecida pelo decreto-lei 1077, em 26 de janeiro de
1970. Contudo, muitos órgãos da imprensa sofriam censura antes desse decreto
41
,
principalmente a partir da decretação do AI-5 em dezembro de 1968, passaram a sentir a
atuação censória muito presente,
“O AI-5 impõe total controle dos meios de comunicação de massa, sujeitando
jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão, livro, cinema, teatro, música,
disco e todas as formas de expressão do pensamento à censura prévia” (Bahia,
1990:313).
41
A censura prévia atingiu o jornal Tribuna da Imprensa em 22 de novembro de 1968, portanto, um mês
antes da decretação do Ato Institucional de número 5 e dois anos antes do Decreto Lei 1077, e
permaneceu até 1978. Em 1984 o jornal ganhou na Justiça a indenização, paga pela união, pelo tempo que
o jornal permaneceu sob censura prévia. Foi comprovado o caráter da censura que atingiu o jornal, uma
ação pré-concebida para estrangular o jornal.
- 2
Não quero dizer com isso que antes da decretação do AI-5 não havia censura.
Mas sim que a partir da decretação do AI-5 a atuação censória foi constante, sendo que
aqueles jornais que o se sujeitaram a receber ordens telefônicas e proibições através
dos bilhetinhos, tiveram de submeter-se a censura prévia, a conviver com um censor
dentro de suas redações, ou o que poderia ser pior, ter de enviar seu material para a
apreciação dos censores em Brasília. Isso dificultava e, por muitas vezes, inviabilizava a
publicação dos periódicos, até porque muitos deles não eram devolvidos em tempo hábil
para a substituição das matérias censuradas por outras. A censura prévia mutilava os
jornais a ela submetidos:
“Com a censura prévia, o Poder submete um jornal a lenta asfixia. Restringe-se a
matéria publicada, cai a qualidade da publicação, o público se desinteressa, a
venda avulsa diminui, a publicidade chega a zero. Por trás da represália política
há um engenhoso garrote econômico. Fora o prejuízo direto, da matéria não
publicada, as publicações censuradas sofrem o prejuízo maior que é o da sua
mutilação” (Machado, 1978:5).
No desabafo do jornalista Machado, que descreve a luta do jornal Opinião contra
a censura, podemos perceber o quanto a censura prévia desestruturou os jornais a ela
submetidos, fazendo-os passar por uma lenta agonia, que muitas vezes resultou em
morte, ou seja, fechamento dos jornais, como aconteceu com o jornal Correio da
Manhã, que acabou não resistindo a todas as mutilações sofridas. Além da censura
prévia, as mutilações aconteciam através das apreensões, quando os jornais já estavam
nas bancas, e das prisões dos jornalistas.
A censura prévia que atingiu a imprensa durante o Estado Autoritário o foi
uniforme, muitas vezes matérias que tinham sido proibidas em um jornal, eram
liberadas para publicação em outros jornais. Essa atuação causou danos em muitos
jornais, alguns foram claramente perseguidos pelo regime, como foi o caso do jornal
Tribuna de Imprensa, que se manteve censurado por dez anos. Ocorriam também os
- 2
cortes, as proibições de matérias, sem critérios e lógica nenhuma, um nome que poderia
referir a um militar, a um censor, por vezes tornava-se objeto de corte, de veto pelos
censores:
“Verifica-se que nem Sigmund Freud escapou da censura. A censura torna-se
inconseqüente, irregular, multiforme, por vezes grotesca. Em um estudo de Freud
o censor cortou a referência a Leonardo Da Vinci, porque o censor se chamava
Leonardo. Nem o criador da Psicanálise pode escrever generais, porque o censor
vê alusões às classes armadas” (Machado, 1978: 139).
No relatório da ABI sobre a censura, citado anteriormente, ficam claras as
arbitrariedades que foram cometidas pelos censores, os cortes mais absurdos eram muito
comuns, isso ocorria, na maioria das vezes, em função de não existirem regras claras
sobre o que censurar. Na dúvida, muitos censores cortavam tudo que poderia representar
uma afronta ao regime militar, os jornalistas costumavam afirmar que os critérios
variavam de censor para censor, de dia para dia, de jornal para jornal. Para os censores,
era melhor cortar o máximo possível do que correr o risco de cortar de menos e ser
demitido, ser substituído por outro na redação dos jornais. Isso acontecia porque a
censura não define claramente seus objetos de corte, de perigo, o que obriga os censores
a procurar em toda parte, a enxergar o perigo que não é claramente identificável. Nas
palavras do cantor e compositor Chico Buarque “a censura enxergava mensagens
subliminares onde não existia (Zappa, 2000:114).
Contudo, a maioria da imprensa, principalmente a grande imprensa se submeteu
a autocensura, ou seja, os próprios editores cuidavam do que os jornalistas podiam ou
não escrever, recebiam telefonemas e bilhetinhos dos censores com as proibições. Essa
prática de autocensura foi amplamente difundida e os jornalistas passaram a conviver
com ela quotidianamente. A prática da autocensura acontecia quando os proprietários de
- 2
grandes jornais fechavam acordos com os responsáveis pela censura, ou diretamente
com o governo,
“Esses acordos/ordens têm a finalidade de decidir sobre o que deve ou não ser
publicado, e sua aceitação implica na contrapartida da autocensura. De certo
modo, embora eventuais resistências possam ocorrer criando-se imagens
figuradas que forçam uma leitura nas entrelinhas, ou mesmo burlando-se ordens
expressas -, a autocensura representa uma capitulação, uma vez que o papel
censório é transferido do Estado para a direção do órgão de divulgação, que
assume a função de comunicar a seus repórteres o que podem ou não escrever”
(Aquino, 1999:222).
A postura de aceitar a censura, de colaborar com ela, mediante a justificativa de
que dessa forma impediam a presença dos censores e teriam uma liberdade maior para
publicarem, foi a postura adotada pela maioria dos jornais representantes da grande
imprensa, ou seja, os diretores desses órgãos aceitaram a autocensura, combinando a
atuação da censura política do Estado conjuntamente com a censura empresarial.
Certamente esses jornais também tiveram matérias censuradas e algumas vezes edições
apreendidas, porém, em um número significativamente menor do que os vetos e
apreensões que sofreram os jornais alternativos
42
, que eram considerados pelo governo
como perigosos. A postura independente da imprensa alternativa, contestatória, fazia
com que a vigilância se tornasse cerrada sobre esses jornais.
Mas o governo militar não se apoiou apenas na censura, além de silenciar era
preciso passar uma idéia de sociedade sem conflitos, de um país que ia pra frente. Nesse
caso, a AERP era responsável pela divulgação, nos meios de comunicação, da
propaganda ufanista do governo. Ou seja, não bastava impedir as pessoas de
sustentarem outro discurso, que não o oficial, era preciso passar uma visão de que tudo
ia bem, esconder a repressão e violência do regime. Nesse sentido, as imagens
42
Aquino (1999), demonstra em seu trabalho o quanto eram mais numerosos os cortes da censura aos
jornais alternativos.
- 2
difundidas pelo regime, através da propaganda, eram utilizadas para ofuscar áreas de
sombra, nódoas, defeitos que se quer esconder” (Fico, 1997:15). Ao lado da
propaganda a censura serviu mais para encobrir as mazelas do regime e garantir sua
sobrevivência do que para defender a segurança nacional” (Marconi, 1980:62), até
porque as proibições abrangiam fatos políticos estaduais e mesmo municipais,
epidemias ou assassinatos em série. O regime buscava acobertar acontecimentos
políticos e fatos que poderiam causar mal-estar e pânico entre a população, como por
exemplo, a divulgação de um surto de doença.
Para esconder as mazelas do regime foi preciso colocar em prática uma política
de silenciamento, impedir a circulação de outro discurso que não fosse o discurso
oficial, o discurso do Estado Autoritário. Porém, entendo que essa meta o foi
completamente atingida, principalmente em função da atuação da imprensa alternativa,
que sustentou sistematicamente um discurso de oposição ao regime militar, que
denunciou os abusos do governo.
1.3 Imprensa Alternativa
“Mesmo calada a boca, resta o peito (...). Mesmo calado o peito, resta a
cuca”.
“O autoritarismo na América Latina ainda está subdesenvolvido: ele pode
matar e torturar, mas não exerce um controle completo da vida do dia-a-
dia”
43
.
Podemos até concordar com Fernando Henrique Cardoso quanto ao
autoritarismo brasileiro não ter exercido um controle completo da vida do dia-a-dia.
Não conseguiu exercer um controle total, como aconteceu em regimes totalitários, mas
tentou de muitas formas censura, propaganda, tortura, repressão, etc. A própria
43
A primeira epígrafe é da música “Apesar de você”, de Chico Buarque, a segunda de Cardoso (1982).
- 2
circulação dos jornais alternativos demonstra que esse controle não foi total. Ao
permitir que estes jornais funcionassem, sob censura, o Estado submeteu-se às meias
palavras, aos duplos sentidos, ou ainda à desobediência as proibições censórias. Porém,
a circulação da imprensa alternativa está de acordo com a lógica do Estado Autoritário
brasileiro em suas constantes tentativas de legitimação, em sua insistência em manter as
aparências de democracia”, manteve, por exemplo, um Congresso com funções
meramente cerimoniais, avalizando as imposições do Executivo. Ou mesmo um
bipartidarismo “circense”, com um partido do governo, e outro de “oposição
consentida”, ou seja, os partidos do “sim”. Mas, outras características demonstram que o
regime militar atingiu, em alguns setores, contornos próprios de uma ditadura, e nesses
setores não foi apenas quase ditatorial” (Cardoso, 1982:49). Um governo que instituiu
a pena de morte (AI-14), que sancionou um decreto que deu poderes ao Executivo para
outorgar decretos secretos, dos quais o número constaria no Diário Oficial da União,
um Estado que impôs a Doutrina da Segurança Nacional, que perseguiu e reprimiu
opositores não apenas aproximou-se, no que se refere à repressão, a uma ditadura, nesse
sentido foi um Estado de prática repressora ditatorial. Mesmo concordando com as
demais características próprias de um Autoritarismo burocrático-militar, não posso
tratar a repressão desse período histórico brasileiro, através de números, como o fazem
alguns autores, que acabam por mascarar a violência do período, com justificativas
como a utilizada por Mathias (1995:37), onde esta autora, a partir da comparação com
outros regimes, diz que a repressão no Brasil nem de longe alcançou o grau
registrado em outros países, como a Argentina e o Chile”, procurando demonstrar a
baixa repressão da época. Ora, penso que a violência e a repressão do período militar
não podem ser analisadas apenas de forma quantitativa (onde predominariam apenas
números oficiais, que não dão conta da maioria dos assassinatos cometidos no período)
- 2
e muito menos em comparação com a de outros regimes, o que desconsidera as
características próprias e os diferentes processos e constituições históricas de cada
nação.
No mesmo ano de implantação desse Estado Autoritário, em 1964, circulou pela
primeira vez o jornal Pif Paf, lançado por Millôr Fernandes. Esse jornal marcou o início
da circulação da chamada imprensa alternativa. Para Chinem (1995), a inspiração para
a grande circulação dos alternativos, durante o período militar, surgiu com um pequeno
jornal publicado em Belo Horizonte a partir de 1952, chamado Binômio
44
. Esse pequeno
jornal fez muito sucesso em Minas Gerais, e deixou de ser editado quando ocorreu o
golpe militar e seu editor teve que fugir do país. Porém, a inspiração dos jornais
alternativos, remete, ainda, um período anterior à década de 50, o período de
circulação dos irreverentes pasquins, no período Regencial (1831-1840) e também dos
jornais anarquistas publicados pelos operários entre os anos de 1880 e 1920. A imprensa
alternativa do período militar pode ser vista, no seu conjunto, como sucessora da
imprensa panfletária dos pasquins e da imprensa anarquista, na função social de
criação de um espaço público reflexo, contra-hegemônico” (Kucinski, 1991:XXI). A
partir dessa herança, durante o regime militar, as publicações alternativas povoaram o
país num momento de silenciamento e de impedimento das liberdades individuais e
coletivas. Esses jornais alternativos, ou nanicos
45
, como foram chamados inicialmente,
fizeram circular o discurso de resistência ao regime. As armas que utilizaram foram as
palavras, muitas vezes veladas, carregadas de sentidos outros, de metáforas, de
44
O nome do jornal era uma crítica, com muito humor, ao slogan político de Juscelino Kubitschek,
“binômio energia-transporte”, amplamente divulgado pela imprensa da época.
45
Chinem (1995) diferencia alternativo de nanico, a partir de um estudo de definição de Leila Miccolis
sobre as publicações durante a ditadura militar. Os nanicos seriam jornais mimeografados, de tiragens
pequenas em papel oficio grampeado, enquanto que alternativos o considerados como tablóides ou
minitablóides de médio porte, com distribuição nacional. Os alternativos representariam a resistência
contracultural em sentido amplo. Para Kucinski (1991) o termo nanico sugere imaturidade e tratamento
paternal, enquanto que alternativo remete ao que não esligado as políticas dominantes, a uma opção
entre duas coisas reciprocamente excludentes, a uma única saída para uma situação difícil, remete, ainda,
ao desejo das gerações das décadas de 60 e 70 de protagonizarem transformações sociais.
- 2
significação nas entrelinhas, muitos fizeram do humor sua principal arma no embate
contra a censura, e se aperfeiçoaram na arte de driblá-la. Os editores, jornalistas e
diretores muitas vezes foram conduzidos aos porões da repressão, e alguns
permaneceram tempo considerável
46
, muitos tiveram suas edições impedidas de
circular, apreendidas pela polícia. Com certeza todos tiveram contato com a censura,
alguns de forma mais intensa, como foi o caso do jornal alternativo Movimento
47
, que já
nasceu censurado, tendo de enviar seu material a Brasília para ser submetido à tesoura
da censura, antes de sua venda nas bancas, outros sentiram a censura através dos cortes
econômicos e da pressão dos anunciantes.
As publicações dos jornais alternativos surgiam na medida em que o espaço para
a crítica se fechava cada vez mais na grande imprensa, fazendo com que intelectuais e
jornalistas se unissem em torno dos projetos alternativos. Projetos de jornais que muitas
vezes não ultrapassavam os primeiros números
48
duravam algum tempo, sofrendo com
as ações da censura, as sanções econômicas, os desentendimentos e saídas de
jornalistas, esses jornais conseguiam se manter basicamente contando com a vontade de
reagir, de escrever o que o se podia na grande imprensa, de ter liberdade de crítica,
sempre que fosse possível burlar a censura. Diferentemente da imprensa tradicional, os
alternativos adotavam uma estrutura de democracia interna, nos conselhos de redação,
na igualdade de peso dos votos, até porque representavam sociedades anônimas ou
companhias limitadas, ou mesmo no sistema de cooperativas. A organização financeira
desses jornais desprezava a perspectiva do lucro, que raramente ocorria, porque na
maioria das vezes eles davam prejuízo. Porém, em alguns casos, como aconteceu com o
46
Os editores e jornalistas do Pasquim permaneceram presos por dois meses, logo após a edição do AI-5.
A equipe do jornal Correio da Manhã, inclusive sua proprietária, também foram presos, após a
decretação do AI-5.
47
Semanário Alternativo que circulou entre 1975 e 1981, sendo publicado na cidade de São Paulo.
48
Kucinski (1991) fez um levantamento em 150 jornais alternativos, desses jornais, segundo o autor, um
em cada dois não chegava a completar um ano de existência. Muitos não passaram dos primeiros
números.
- 2
Pasquim, quando havia lucro, eles não o reaplicavam. Não concordavam com sistema
de acumulação capitalista, mas também não conseguiam “criar processos de
acumulação substitutivos e nem examinavam cuidadosamente os problemas financeiros
e administrativos” (Kucinski, 1999:187), essa postura, acabou por prejudicar ainda mais
a sobrevivência da imprensa alternativa.
Para Kucinski, existiram basicamente duas correntes de jornais alternativos,
aqueles que privilegiavam o político e aqueles desvinculados do discurso ideológico.
Quanto a primeira corrente,
“tinham raízes nos ideais de valorização do nacional e do popular dos anos 50, ou
no marxismo vulgarizado nos meios estudantis nos anos 60. Em geral pedagógicos
e dogmáticos, os jornais alternativos políticos foram, no entanto, os únicos em
toda a imprensa brasileira a perceber os perigos do crescente endividamento
externo do país, ainda em 1973, o agravamento das iniqüidades sociais.
Revelaram novos personagens do nosso cenário, como os bóias-frias, e em suas
páginas eram protagonistas os movimentos populares de reivindicação e protesto;
discutiam ainda, as táticas e estratégias de oposição durante o processo de
abertura”(Kucinski, 1999:180).
Dentre esses alternativos de corrente política estão os jornais Movimento,
Coojornal, Opinião, Em Tempo, entre outros. Claramente engajados na resistência e na
luta contra o Estado Autoritário, esses jornais discutiam a política nacional, as eleições,
as pretensões partidárias, geralmente não se utilizavam muito das entrelinhas, sempre
que conseguiam publicavam matérias diretas, denunciando os abusos do regime.
Quanto a segunda corrente citada por Kucinski, eram aqueles alternativos
desvinculados do discurso ideológico, cansados desse tipo de discurso. As formas de
ataque ao autoritarismo provinham de críticas que giravam em torno dos costumes e do
moralismo dos setores dios
49
, inspirados em movimentos de contracultura norte-
americanos e no existencialismo. O fato de não serem adeptos de um discurso mais
49
Em seu trabalho sobre o Pasquim, Rego (1996:37) afirma que os jornalistas “conheciam os grandes
defeitos da classe média brasileira porque a ela pertenciam.
- 2
marxista, de cunho político, o significou que estes alternativos fossem menos severos
com as críticas ao regime, mesmo esses jornais alternativos de raízes mais
existencialistas do que marxistas atuavam no plano da contingência política, opondo-se
até mais visceralmente ao regime” (Kucinski, 1999:181). O jornal Pasquim é citado
como exemplo dessa corrente alternativa, um jornal que transformou a linguagem do
jornalismo utilizava-se da linguagem coloquial e de palavrões, além de instituir os
neologismos como sifu e duca – fazendo muito sucesso entre os jovens.
Além dessas duas grandes correntes alternativas, surgiram, ainda, alternativas
identificadas com o novo jornalismo americano da década de 60, as narrativas desses
jornais aproximava-se dos aspectos literários e do jornalismo narrativo, entre esses
jornais estavam Bondinho, Ex e Versus. Havia ainda alternativos que procuravam
novas categorias explicativas da vida e dos conflitos humanos, que ousaram desafiar a
moral pudica dos marxistas ao abrir a discussão sobre o homossexualismo e o prazer”
(Kucinski, 1999:181), entre esses jornais estava Lampião da Esquina, dirigido por
Aguinaldo Silva, que discutia abertamente a homossexualidade
50
, Mulherio, Brasil
Mulher e s Mulheres, que surgiram inspirados nos textos de Simone de Beauvoir e
nos movimentos feministas franceses. Eles trouxeram a discussão da relação de
dominação masculina no seio do discurso marxista de luta política.
Os jornais alternativos surgiram da articulação de três setores sociais:
“as esquerdas, com seu desejo de protagonizar transformações; jornalistas
buscando alternativas ao fechamento de seus espaços na grande imprensa; e
intelectuais, encurralados pelo ambiente repressivo que se instalou nas
universidades. É na dupla oposição ao Estado militar e às limitações à produção
intelectual-jornalistíca sob o autoritarismo que se encontra o nexo dessa
articulação entre jornalistas, intelectuais e ativistas políticos” (Kucinski,
1999:183)
50
No documento do Exército sobre imprensa alternativa, mostra-se a preocupação com esses alternativos:
dentro da imprensa nanica vem crescendo, ultimamente, um... da chamada imprensa gay’, que se
dispõe a defender as atitudes homossexuais como atos normais da vida humana” (Caparelli, 1982: 115).
- 2
Essa articulação entre jornalistas, intelectuais e ativistas políticos, aconteceu,
após o golpe militar e aumentou consideravelmente, após a decretação do AI-5, ou seja,
após o fechamento quase que total do regime militar. Até então, embora com a censura
ativa, com a repressão, os intelectuais, jornalistas e ativistas políticos ainda tinham
algum espaço de atuação, tanto que na reorganização dos movimentos de protesto entre
1967-1968 chegaram a acreditar que poderiam derrubar o regime militar. Mas dezembro
de 1968 retira-lhes esta esperança. Nesse clima de desencanto, o MDB com suas
pretensões políticas enclausuradas, o movimento estudantil e sindical sendo esmagado
pela repressão, não restaram muitas alternativas de resistência. Muitos acreditavam que
a única resistência possível era a resistência armada. Esses criaram e participaram dos
movimentos de guerrilha, surgidos a partir de 1969. Para aqueles que defendiam a
resistência não-armada, a imprensa alternativa foi o meio de luta e de continuar
resistindo nesse período de sombras imposto pela repressão, pelos assassinatos e pelo
silenciamento a que estavam submetidos. Dessa forma os jornais alternativos
aglutinaram a diversidade de jornalistas, de intelectuais e ativistas políticos que
precisavam encontrar um lugar de protesto, de crítica. A necessidade de um lugar de
crítica tornou-se imprescindível, por exemplo, para os muitos humoristas que
compunham os quadros pessoais dos jornais alternativos. Esses humoristas, que não
encontravam na grande imprensa lugar para o humor crítico, o humor ferrenho,
contestador do Estado Autoritário, vieram a participar e fundar muitos dos jornais
alternativos.
Os alternativos que surgiram antes de 1968 contavam com uma disposição
revolucionária; até então acreditava-se ser possível derrubar o regime. Após 1968 a
característica prioritária desses jornais foi a resistência ao endurecimento do regime.
- 2
Com o período da “abertura” esses jornais passaram por um período de transição, de
reorganização política, de trânsito da política clandestina para a política de espaço
público” (Kucinski, 1999:184). Os alternativos tiveram um papel importante na
rearticulação política:
“por meio de jornais alternativos, ex-presos políticos reintegraram-se ao trabalho
e à vida política; intelectuais reencontraram-se com o público e com uma função
social. Por meio das assembléias de constituição, das reuniões de pauta e dos
editoriais pragmáticos, aproximaram-se e separaram-se tendências políticas”
(Kucinski, 1999:184)
A importância de imprensa alternativa no período de “abertura”, enquanto
espaço de rearticulação política não passou desapercebido dos militares, que visavam
assegurar as políticas autoritárias através de uma “abertura segura, lenta e gradual”.
Mais do que nunca esses jornais tornaram-se alvo das investidas dos aparelhos de
repressão.
A vigilância dedicada aos jornais alternativos pelo governo militar é
exemplificada através do documento do Centro de Informações do Exército
51
(CIEX)
sobre a imprensa alternativa. Esse documento, além de classificar os jornais
alternativos, indicar o seu surgimento (com o Pif Paf em 1964, e depois em 1969, com o
Pasquim), ocupa-se de indicar formas para acabar com os alternativos, visando “coibir a
nefasta atividade da imprensa nanica contestatória” (Caparelli, 1982:117). O
documento indica a curto prazo as sanções econômicas como forma de acabar com os
jornais alternativos. Essas sanções seriam realizadas a partir de algumas ações, como a
instituição da obrigatoriedade de publicação de balancetes periódicos que
especifiquem, com maiores minúcias, a origem das verbas de sustentação do órgão”
51
O documento do Centro de Informações do Exército sobre a Imprensa alternativa consta em sua íntegra
(anexo 1) no livro de Sérgio Caparelli,
Comunicação de Massa sem Massa
. Os trechos que cito do
documento foram retirados do livro de Caparelli.
- 2
(p.118), ou ainda a realização de uma auditoria contábil nos jornais existentes e em
todos aqueles que viessem a se registrar. Essa auditoria seria realizada em conjunto,
pelo Ministério da Fazenda e Departamento de Polícia Federal” (p.118), ficando a
cargo dos órgãos de informação a indicação dos jornais merecedores dessa atuação
fiscalizadora” (p.118). As sugestões de sanções vão além, propondo a proibição de
colaboração (econômica ou redatorial) com qualquer órgão, de elemento que esteja
respondendo à ação judicial referente a crime previsto na LSN” (p.118). Propõe,
também, que seja acrescentada uma emenda a um artigo de lei, para que fosse cancelada
a matrícula dos jornais que estivessem em dívida com a Fazenda Nacional: cancelada
a matrícula, o veículo passa à condição de clandestino, sujeito, portanto, à apreensão”
(p.118). Este documento que demonstra o quanto o regime militar considerava perigosa
a atuação da imprensa alternativa, também denota a preocupação em atingir esses
jornais por meio de sanções econômicas, para que, dessa forma, nas palavras de seus
elaboradores, as sanções econômicas atingissem os jornais sem configurar claramente
restrições à liberdade do pensamento pela imprensa” (p.118). Os militares sabiam o
quanto às sanções econômicas afetavam os jornais alternativos, que diferentemente da
grande imprensa, tinham poucas verbas para se manter. Assim,
“os prejuízos materiais causados pela censura eram maiores de que se imagina
porque nem sempre ela vinha diretamente do governo. Havia muita gente ligada
ao jornal que, ao perceber o quanto ele desagradava ao poder, rompia relações”
(Rego, 1996:49).
Ou seja, mesmo que não atingidos diretamente pelas sanções econômicas do
governo esses jornais sofriam os cortes econômicos dos anunciantes temerosos da
repressão e das ameaças
52
.
52
Muitas vezes os anunciantes eram pressionados diretamente, Opinião, por exemplo, perdeu de uma
hora para outra os anúncios da Fundação Getúlio Vargas, e a Polícia Federal, em Porto Alegre, visitou
- 2
Depois que a censura prévia à imprensa foi oficialmente retirada, já no final da
década de 70, no período de “abertura”, os jornais alternativos passaram a conviver com
os atentados, com as bombas que eram explodidas em suas redações ou nas bancas que
vendiam esses jornais. Os atentados que eram atribuídos pelo governo a “terroristas”,
eram cometidos pelos “terroristas” dos órgãos de segurança e repressão
53
, ou mesmo a
mando dos chefes militares e civis do governo,
“As bombas de forma muito eficaz, fizeram aquilo que a censura não conseguira:
impediram que esses jornais chegassem aos leitores. Começaram intimidando
jornaleiros, depois as redações e o próprio público; em cinco ou seis meses, havia
um abismo entre essa imprensa que florescia com dificuldades mas florescia e
um público que não conseguiu ter acesso a ela” (Chinem, 1995:24)
Os atentados desestruturaram esses pequenos grandes jornais, que mesmo depois
de cessados os atentados não conseguiram se reerguer. A atuação terrorista dos órgãos
de segurança acabou sendo realmente mais eficaz que a própria censura. Para Bahia
(1990), esses atentados, que atingiram ao todo treze
54
jornais de oposição ao governo,
representavam a resposta da extrema-direita, ou da linha-dura, à abertura política. Uma
atuação de extrema-direita, daqueles que não queriam abrir mão do autoritarismo
ostensivo, mas que contou com a complacência do regime e das autoridades que
convinha à política de abertura (que pretendia assegurar a continuidade da política
autoritária).
Contudo, os atentados criminosos contra os alternativos, além da censura prévia,
e das sanções econômicas, não foram os únicos responsáveis pelo desaparecimento
numerosos anunciantes do Coojornal, pressionando-os para que deixassem de inserir seus anúncios na
imprensa alternativa” (Caparelli, 1982:56).
53
Esses atentados foram posteriormente atribuídos aos militares e civis ligados aos órgãos de repressão,
que eram contra a abertura política, no período de embate interno entre os defensores da “abertura” e os
“linha-dura”.
54
Entre os jornais atingidos estão, Pasquim, Coojornal, Repórter, Hora do Povo, Voz da Unidade,
Movimento, O Companheiro, O Trabalho, Convergência Socialista, Correio Sindical, Tribuna da Luta
Operária, Em Tempo e Jornal do CBA (Comitê Brasileiro de Anistia).
- 2
dessa imprensa. Como exposto anteriormente, esses jornais que se opunham a
acumulação de capitais passaram a ter muitas dificuldades de circulação nacional,
acrescentando-se o fato de que a grande imprensa, com o enfraquecimento do regime,
apropriou-se dos temas da imprensa alternativa, contratando ou recontratando os
jornalistas que trabalhavam nos alternativos. Somando-se a isso o papel de relevância na
reestruturação política que os alternativos tiveram, deixou de ter razões de ser quando os
partidos se reorganizaram, e os próprios jornais passaram a ter vínculos partidários mais
estreitos. Esses vínculos com partidos e grupos políticos acabou por separar, dividir os
jornalistas e intelectuais, determinando a saída de muitos deles dos jornais. Quando os
jornais alternativos passaram a representar um partido ou sindicato, perderam o sentido
de alternativos como foram durante os governos militares, tornaram-se sectários, e o
encanto e a diversidade de que eram porta-voz ofuscou-se em nome de um discurso
partidário ou sindical.
Dessa forma a imprensa alternativa
55
, que “nos períodos de maior depressão das
esquerdas e intelectuais, funcionava como ponto de encontro espiritual, como pólo
virtual de agregação no ambiente hostil e desagregador da ditadura” (Kucinski,
1991:XXII), acabou desaparecendo, coincidindo esse desaparecimento com a
reorganização de um regime político menos autoritário.
55
Para Elizabeth Fox (1983) a imprensa alternativa pode ser entendida, também, como uma forma de
enfrentar a solidão, a atomização e o isolamento de uma situação autoritária.
- 2
2. “...MAS AS PESSOAS NA SALA DE JANTAR, SÃO AS PESSOAS NA SALA DE
JANTAR, TÃO OCUPADAS EM NASCER E MORRER....
: EXEMPLAR, O
DESAFIO DA CONTRACULTURA ?
Para Kucinski (1991) a maioria dos jornais alternativos surgiram ligados a
episódios de fechamento de espaços na grande imprensa. Demissões, autocensura
consentida pela grande imprensa sufocaram jornalistas, que acabaram por iniciar muitas
das publicações alternativas. Em outros casos alguns jornais surgiam ligados a vertentes
políticas, a um partido ou organização. Nenhum desses caminhos que originaram a
maioria das publicações alternativas, foi trilhado pelo Exemplar: uma publicação
alternativa que surgiu com o propósito de divulgar um empreendimento da construção
civil, e que contou primeiramente com estudantes do curso de jornalismo da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Nesse sentido, para contar a trajetória do jornal alternativo Exemplar, é
importante, numa primeira instância, fazer um percurso pelo que foi a Construção do
Clube do Professor Gaúcho. A construção dessa obra, iniciada em 1967, foi um
empreendimento da Incorporadora Raffo Ltda., que tinha como responsável o
proprietário da Incorporadora, Walter Raffo. Para divulgar a obra de construção do
Clube e angariar fundos e sócios, a empresa financiou a publicação de um pequeno
jornal, de um boletim.
Nessa época, Juarez Fonseca, o futuro editor do jornal Exemplar, cursava a
Faculdade de Jornalismo da UFRGS. Atuava no Centro Acadêmico, que era responsável
por um cursinho pré-vestibular, onde os alunos do terceiro e quarto ano da Faculdade
Trecho da música Panes et Circences, do grupo Os Mutantes, uma crítica anárquica aos solenes e vazios
rituais sociais e aos costumes.
- 2
ministravam as aulas. Em entrevista concedida Juarez Fonseca
56
relata que, sendo um
dos professores, foi abordado por uma aluna do cursinho, que trabalhava na
Incorporadora Raffo Ltda., a respeito de seu interesse em fazer um jornal que tivesse
como proposta divulgar o empreendimento Clube do Professor Gaúcho. O Clube estava
em um período de vendagem de títulos, portanto, a divulgação da construção do Clube
seria de fundamental importância. Juarez Fonseca convidou Ademar Vargas de Freitas,
seu colega na faculdade, e alguns jornalistas, e começaram, então, a fazer o jornal do
Cepegê. O jornal inicialmente tinha o objetivo de promover e ajudar a Incorporadora a
vender os títulos de sócio do Clube do Professor Gaúcho. A distribuição era feita a
todos os professores estaduais, através da lista da Secretária da Educação (SEC).
Naquele momento o Clube existia somente enquanto projeto, apenas o terreno tinha sido
comprado, e do prédio existiam as plantas arquitetônicas. O jornal foi acompanhando a
venda dos títulos e a construção do Clube, nas suas ginas figuravam as fotos do
terreno, do início da construção, do andamento da construção e finalmente da
inauguração do Clube do Professor Gaúcho.
Dessa forma, tiveram início as primeiras publicações do Boletim do Clube do
Professor Gaúcho, em agosto de 1967, chamado inicialmente de Boletim CPG, tendo
mudado de nome, antes de transformar-se em Exemplar, para Informativo Cepegê.
Somente em fevereiro de 1971 - a partir do número 41 - é que passou a chamar-se
Exemplar. Era, então, um jornal mensal, distribuído gratuitamente aos professores
gaúchos, às universidades, às redações dos demais jornais, e a alguns órgãos públicos
57
.
56
Entrevista concedida a autora em 28/09/2001. As citações que se referirem ao depoimento de Juarez
Fonseca, serão indicadas pela citação do nome do depoente. Juarez Fonseca é jornalista, além do
Exemplar, participou de várias outras publicações alternativas no período.
57
A própria equipe que fazia o jornal se encarregava da distribuição nos demais órgãos de imprensa em
que trabalhavam e nas universidades que estudavam, conforme Juarez Fonseca, cada um pegava o
número de jornais que queria e distribuía em seus locais de trabalho, estudo, entre os amigos, etc.
- 2
Nesse percurso o jornal passou por muitas mudanças. De 1967 a 1973, do ano de
suas primeiras publicações a seu último número, o jornal transformou-se
completamente. Aumentaram os colaboradores, aumentaram as ginas, diminuíram as
notícias sobre o Clube do Professor Gaúcho e as matérias diversificaram-se, dando o
tom alternativo ao jornal.
2.1 Os primórdios
As primeiras matérias publicadas no jornal não traziam nenhum debate mais
aprofundado sobre a educação, mas, conforme colocado anteriormente, giravam em
torno da divulgação da obra de construção do Clube do Professor. Eram matérias
voltadas para os professores, para os profissionais da educação, cujo conteúdo versava,
ora sobre a “missão do professor”, ora sobre o universo feminino, dicas de beleza, de
roupas, de saunas, na coluna En Canto Feminino; dividindo espaço com essa coluna
vinham as dicas do Horóscopo.
O jornal apresentava-se como um jornal “apartidário”
58
, preocupado com o
mundo do professor e “desejoso de paz”. O “apartidário”, no contexto em que foi
descrito pelo diretor do jornal, nos remete à questão da neutralidade e da objetividade
com que muitas vezes é encarado o texto impresso. Uma pretensa neutralidade e
objetividade
59
, das quais a imprensa é desprovida, que “a imprensa constitui um
instrumento de manipulação de interesses e intervenção na vida social” (Capelato,
58
No editorial de setembro de 1967, no primeiro número do jornal, Walter Raffo, diretor do jornal,
classifica o mesmo como um “órgão apartidário”, com a responsabilidade de “informar imparcialmente
o professor gaúcho” (Exemplar, número 01).
59
Detenho-me na crítica à neutralidade e objetividade no âmbito da imprensa, embora entenda que os
parâmetros do “neutro” e do “objetivo” possam ser questionados em todas as áreas do conhecimento e da
atividade humana. Filho (1983:130), ele próprio um jornalista reconhece que o jornalismo não é neutro
nem objetivo. Essas categorias fazem parte de uma mitologia que foi desenvolvida no Iluminismo, de
acreditar que os fatos pudessem ser apresentados de forma mais ou menos livre das intenções e dos
interesses humanos. Como qualquer outra atividade humana, a produção jornalística sofre o filtro e a
regulação dos agentes pelos quais passa”.
- 2
1988:21), onde o próprio fato jornalístico é construído
60
. Dessa forma, não podemos
negar que a imprensa tem um papel fundamental na formação de opinião. Mesmo não
sendo partidária como foi no inicio do século, a imprensa não perdeu o seu aspecto
político-ideológico (Rüdiger,1998), estando vinculada a interesses específicos, sejam
esses interesses dos proprietários de jornais ou dos grupos que representam, interesses
que estão ligados às variantes políticas, econômicas, ideológicas e sociais. Essas
variantes que marcam as publicações da imprensa estiveram presentes no Exemplar de
forma não homogênea, já que o que escrevia o diretor no editorial, na maioria das vezes,
destoava do que era publicado no jornal. Já nos primeiros números, nos quais, numa
leitura menos atenta, não seria possível identificar nenhuma posição de contrariedade ao
regime autoritário, o jornal publicava, na segunda página, uma coluna de notícias do
mundo. Essa coluna era composta de notícias pequenas, cujo tom de crítica transparecia
muito sutilmente. Ao longo do ano de 1968 foram aparecendo as primeiras matérias
que, mais tarde, caracterizaram o discurso do jornal. Essas matérias voltavam-se,
prioritariamente, para a crítica social, como por exemplo, as violências contra os índios,
os contos e denúncias de discriminação racial, a miséria e a fome da população
brasileira e do mundo. Também tratavam das organizações e dos movimentos
estudantis. Denunciando as mazelas do regime, as mazelas sociais, Exemplar foi
construindo um discurso alternativo que se contrapunha ao discurso do Estado
Autoritário. As principais denúncias eram veiculadas em pequenas colunas nas páginas
iniciais através da coluna O Mês passado foi assim
61
: noticias no mundo, no Brasil e no
60
Para Barbosa (1998), os meios de comunicação, e aqui sublinho a imprensa, ao selecionarem o que se
passa no mundo, filtrarem, decidirem o que será noticiado, o que terá destaque, acabam precedendo a
criação do próprio acontecimento”. No mesmo sentido, Filho (1983:133) afirma que o jornalismo não
veicula informações nem as mutila para seus próprios interesses: ele as cria de fato”. Assim como os
próprios historiadores farão, mais tarde, uma seletiva reconstrução do passado, no caso de historiadores
da imprensa, uma reconstrução seletiva de matérias já filtradas pelos próprios órgãos de imprensa.
61
Essa coluna transformou-se ao longo das edições do jornal, chamou-se de Síntese e de Foto-Síntese, e
constumava trazer o resumo dos fatos do mês anterior.
- 2
Rio Grande do Sul, como demonstra um pequeno resumo da coluna publicada em
novembro de 1968:
“O mês passado foi assim: XXX Congresso da UNE: 700 estudantes presos,
passeatas de protesto reprimidas pelo país/Discurso de Márcio Moreira Alves -
implantação do Estado de Sítio/Esquadrão da morte/ Música de Vandré proibida”
(Exemplar, número 16).
Essas matérias não representavam a totalidade de matérias publicadas no jornal.
Se, por um lado, tinham as denúncias, por outro lado, matérias respeitosas sobre os
presidentes militares, fotos de políticos e militares visitando as instalações do Clube do
Professor Gaúcho, também faziam parte do universo do jornal. O que pode parecer
contraditório, talvez não o seja em função da proposta do jornal, da sua dependência
financeira da Incorporadora Raffo e de uma proposta inicial de um jornal o político,
mas de um jornal existencial, de um jornal cultural. Mas mesmo para um jornal de
cunho existencial, de resistência cultural, algumas matérias destoavam, demonstrando a
diversidade de posicionamentos e visões dos jornalistas e colaboradores. As matérias da
coluna En Canto Feminino, que permaneceu a1969, servem de exemplo, além das
matérias sobre as professoras, com metáforas do tipo, “a professora é como uma vela,
consome-se iluminando...”
62
, ao lado dos protestos dos tropicalistas, ou então o humor
afiado de Jaguar ou Claudius
63
, ou mesmo uma outra visão da Educação, bem distinta
da metáfora da professora, questionando a alienação, o depósito do saber, como
62
A matéria referia-se a situação caótica de uma pequena cidade, apontando a importância do papel do
professor, sendo que a referida frase aparecia em destaque, o professor era visto como “gente que sabia
separar o bom do mau, o útil do inútil. Gente que lidere, que seja conseqüente. Que vive este mundo em
festa, trabalho e pão” (Exemplar, número 20).
63
Retirados de outras publicações, sejam elas jornais ou revistas da imprensa tradicional ou alternativa.
Esse tipo de procedimento, segundo Juarez Fonseca, era comum de acontecer, o que a equipe achava
interessante em outra publicação colocava no Exemplar.
- 2
podemos constatar na matéria “Educação, uma nova dimensão?”
64
. A diversidade de
posturas, muitas vezes tão distintas entre si, foram marcantes no jornal até 1969.
Mas as matérias foram mudando, o jornal foi conquistando o público, foi
aumentando o número de páginas
65
e as notícias do clube foram perdendo espaço. Para
Juarez Fonseca, isso aconteceu na medida em que os jornalistas traziam outros
materiais: a gente começou logo a contrabandear coisas... pouco a pouco o Clube foi
perdendo espaço dentro do jornal e nós fomos botando outro tipo de matéria, outro tipo
de coisa...”. Na medida que isso foi acontecendo o jornal do Clube do Professor Gaúcho
deixou de servir apenas ao propósito de divulgar a construção do Clube.
Com a chegada de novos colaboradores, o Exemplar adquiriu sua característica
definitiva de alternativo, no sentido de que passou a oferecer prioritariamente uma
resistência contracultural
66
em muitos aspectos. Miccolis (1986:04) aponta alguns
aspectos que utilizou para catalogar publicações alternativas, e a partir deles definiu
alternativo como publicações que ofereçam
“...algum tipo de resistência contracultural, no sentido amplo: publicações
universitárias, de teatro, de música, de vanguarda, de asa delta, de cinema,
místico-filosóficas, de fanzines, de grupos estigmatizados (negro, mulher,
homossexual, índio), de literatura, de alimentação natural, de quadrinhos, de
humor, de crítica aos costumes, de ecologia, de variedades...”
Partindo da definição de Miccolis, arrisco dizer que no Exemplar encontramos
essa resistência contracultural sob vários aspectos, como o debate sobre a questão
64
“...parece-nos que a educação e o professor se defrontam freqüentemente com um inimigo pernicioso e
sorrateiro: é o sentimentalismo e os conceitos de que a educação é idealismo e que o magistério é
vocação e algo assim como caridade pública” (Exemplar, número 16).
65
Posteriormente, das 24 páginas do jornal, apenas duas eram dedicadas ao Clube.
66
Movimento que se consolidou a partir dos anos 50 e acabou por influenciar os movimentos culturais,
musicais, a própria esquerda nas décadas posteriores, principalmente nos anos 60 quando “se voltou para
as experiências comunitárias, as drogas ditas psicodélicas, o misticismo oriental, a psicanálise profunda,
teorias sociais anarquistas, o movimento de liberação da mulher, o folclore ameríndio, entre outra
orientações, um amálgama que irrompeu à tona na contestação violenta de rua em maio de 68 (Coelho,
2000:100). Segundo Coelho (2000), os movimentos contraculturais não foram exclusividade do século
passado, pois remontam a segunda metade do século XVI. Analisaremos mais detidamente o movimento
contracultural e sua influência na publicação do Exemplar no decorrer deste capítulo.
- 2
indígena, o preconceito contra os negros, as matérias místicas e filosóficas, as notícias
sobre o panorama musical (popular e erudito), o humor, principalmente através das
Histórias em Quadrinhos, as matérias sobre ecologia, e muitas outras.
Apenas nos editoriais de Walter Raffo, que continuaram a trazer mensagens
comedidas de apoio ao governo a resistência contracultural não existia, como num
trecho
67
em que parabenizava o governador indicado pelos militares ao governo do Rio
Grande do Sul. Mas o editorial, aos poucos, foi destoando cada vez mais do conteúdo do
jornal. Nos demais conteúdos do jornal, a equipe de jovens estudantes, mesmo
heterogênea, foi imprimindo suas formas de pensar ao jornal, que adquiriu
características muito diversas das defendidas no editorial, não sendo o mesmo jornal dos
primeiros números, o Exemplar para Danilo Ucha
68
,
“...foi ficando tão interessante, tão de boa leitura, ganhando público e o jornal
extrapolou aquele circulo original dele, que era para os associados do
empreendimento Clube do Professor Gaúcho, então começou a ser disputado por
pessoas que queriam assinaturas do jornal, que queriam comprar o jornal, que
queriam receber o jornal..”.
Sendo assim, na medida em que os jornalistas, escritores, arquitetos, intelectuais,
que faziam o jornal, iam conquistando mais espaço no jornal, este ia crescendo,
conquistando o público e extrapolando o universo inicial de leitores.
2.2 Em cena: novos colaboradores
A partir de dezembro de 1970, o jornal passou a contar com novos
67
A mensagem de apoio ao governador gaúcho era clara: “...temos certeza que a equipe de jovens
colaboradores montada pelo governador Euclides Triches devemodificar a face do Estado, em quatro
anos: nós começamos a corrida para o futuro. Agora aceleramos nossa marcha. É a impressão geral
que atesta a receptividade que o novo governo está tendo” (Exemplar, número 42).
68
Danilo Ucha é jornalista, foi colaborador do Exemplar e diretor do Coojornal, concedeu-nos entrevista
em 26/09/2001. As referências ao depoimento de Danilo Ucha serão indicadas, ao longo do trabalho, pelo
nome do jornalista.
- 2
colaboradores, entre eles, Danilo Ucha, Rogério Vaz Mendelski, Cláudio Levitan,
Kenny Braga, Roberto Appel, Nelson Souza, Mário Marcos de Souza, Terezinha
Turcatto etc. Essa equipe, ao lado de Juarez Fonseca, Ademar Vargas de Freitas, rgio
Becker, Sonia Azambuja, Carlos Alberto Sampaio, entre outros, passou a escrever
matérias continuamente para o jornal. Porém, outras pessoas, entre intelectuais,
escritores e jornalistas, enviavam textos esporadicamente, como foi o caso de Caio
Fernando Abreu, que também colaborou com o Exemplar.
Com a contribuição dos novos colaboradores as matérias diversificam-se entre
críticas ao imperialismo norte-americano, à situação da América Latina, às prisões
efetuadas pelo DOPS, aos crimes do Esquadrão da Morte. Os contos e crônicas de
conteúdo libertário e o humor crítico de Levitan, questionavam os valores sociais,
políticos e a própria posição ou acomodação das pessoas. O jornal ainda divulgava as
prisões de jornalistas, publicava entrevistas, como a da feminista Betty Friedman.
Encontramos ainda em suas ginas matérias sobre antipsiquiatria, sobre meio-
ambiente, orientalismo, zen-budismo. Alguns elementos da contracultura tornaram-se
marcantes no jornal. O Exemplar tornou-se crítico a valores sociais, culturais,
educacionais, considerados ultrapassados pelos jovens questionadores da época:
“TALVEZ SEJAMOS UM JORNAL MUITO ATUAL
O Exemplar o é um jornal humorístico./O Exemplar não é um jornal
subterrâneo./O Exemplar não é um jornal imparcial./O Exemplar não é um jornal
parcial./O Exemplar não pertence à “grande imprensa”./O Exemplar não é um
jornal agressivo./O Exemplar não é um jornal pacato./O Exemplar não é um jornal
badalativo./O Exemplar não é um jornal comedido./O Exemplar não é um jornal
sofisticado./O Exemplar não é um jornal genial. O Exemplar não é um jornal sem
imaginação./O Exemplar não é um jornal político. O Exemplar não é um jornal
alegre. O Exemplar não é um jornal triste. O Exemplar não é um jornal exemplar.
Talvez seja um jornal muito atual. Perceberam? Muito contraditório. Por falar
nisso...”(Exemplar, número 53).
Nesse trecho, os elementos que compõem o jornal são explicitados pelos
- 2
próprios jornalistas, isto é, um jornal atual que não fazia parte da grande imprensa e não
se encaixava nos rótulos da época. Não posso dizer que o Exemplar foi um jornal
alternativo político ou então que foi um jornal apenas existencial. “Muito
contraditório”, considerando que a contradição não significa irreconciliação entre os
contrários, digo, sim, que foi um jornal muito rico, muito diversificado. Cláudio
Levitan
69
, concebe o Exemplar como “um jornal muito legal, porque ele era alternativo
em vários sentidos, inclusive nas questões de discussões sobre ecologia, de posturas
alternativas, a questão dos hippies, um jornal mais aberto”. As questões atuais que
afligiam os jovens e questionavam o status quo social estavam presentes nas páginas do
Exemplar.
2.3 O Exemplar nas bancas
Com o Clube do Professor concluído, a Incorporadora Raffo o tinha mais
porque financiar o Exemplar, a única saída para que continuasse a ser editado seria
tentar a venda nas bancas. Dessa forma, em dezembro de 1972, o jornal deixou de ter
circulação dirigida e passou a ser vendido por CR$ 1,50. Porém, o conseguiu
sobreviver por muito tempo, deixando de circular ainda em novembro de 1973. Para
Juarez Fonseca, o fato do jornal não ter sobrevivido nas bancas, explica-se na medida
em que o Exemplar não tinha apelo comercial, “nós não conseguimos anúncios das
agências e nem nada que pudesse divulgar o jornal... e aí como não tinha mais
dinheiro, ele foi morrendo”, depois que foi para as bancas o jornal só teve mais quatro
publicações, e sem o patrocínio da Incorporadora, deixou de circular.
69
Depoimento concedido a autora em 24/09/2001. Claudio Levitan é arquiteto, músico, cartunista,
teatrólogo, artista plástico, participou das publicações da imprensa alternativa, principalmente através dos
cartoons humorísticos, e foi colaborador dos três jornais que trabalhamos: Exemplar, Pato Macho e
Coojornal. Os trechos do depoimento serão indicados pela citação direta do nome do depoente.
- 2
Com isso, as dificuldades financeiras, que motivaram o término de inúmeras
experiências alternativas, também marcaram o rmino do alternativo Exemplar, que
sobreviveu por seis anos, como um jornal do Clube do Professor Gaúcho.
As dificuldades com a censura não marcaram a trajetória do jornal, embora as
denúncias nas entrelinhas tivessem sido constantes. Para o seu editor, não ter havido
problemas com a censura deve-se ao fato de que os jornalistas que colaboravam com o
jornal estavam acostumados ao trabalho na grande imprensa, e dela transportaram para
o Exemplar a prática de autocensura:
“...a gente tinha autocensura, porque nós todos trabalhávamos em jornal diário,
na Zero-Hora, que nunca foi censurada, nunca teve um censor na redação, vamos
dizer assim! Então a gente sabia, sabia que o jornal era do Walter, era de uma
Incorporadora, de uma empresa, não era nosso, e que nós não íamos fazer
nenhuma loucura, nenhuma maluquice que fechasse o jornal!”
A prática da autocensura a que Juarez Fonseca se refere foi constante em muitos
jornais da época, principalmente na grande imprensa. Infelizmente, muitas vezes o
preço da sobrevivência era o preço da limitação, da vigilância e do cerceamento
constante e pessoal da liberdade de expressão. Essa autovigilância marcou a imprensa
brasileira e seus jornalistas. Saber o que pode ou o ser dito, exercitar essa vigilância
diariamente, certamente deixou muitas marcas e condicionamentos nos protagonistas da
imprensa. As metáforas, as metalinguagens, os duplos-sentidos substituíam, mais do
que nunca, a linguagem direta.
2.4 Influências
O Exemplar o foi um jornal político, não esteve vinculado a nenhum partido,
muito antes, foi um jornal diversificado, cultural, de crítica aos preconceitos, às visões
- 2
de mundo partidárias da violência, foi um jornal feito por pessoas que queriam espaço
para expor suas idéias, sem direcionar sua crítica apenas para um ou outro segmento ou
setor. Criticava a falta de liberdade em geral, denunciava a miséria social, ao mesmo
tempo que tecia elogios à publicações da grande imprensa, e aproximava-se da Revista
Veja ou do Jornal da Tarde. Situava a primeira como a melhor revista brasileira do
momento
70
, ao lado disso considerava o Pasquim como um gênero de primeira
necessidade, “Quem subiu: Os gêneros de primeira necessidade: táxi, ‘O Pasquim’ e
cigarros...
71
. A mistura de influências era muito clara para a própria equipe do jornal:
“De qualquer forma, é bom que se diga algumas das influências: Jornal da Tarde,
Veja, Bondinho, Pasquim. O texto de uns, a parte gráfica de outros, e a coisa foi
indo, com calma. Então ninguém precisa dizer que o Exemplar se parece com isto
ou aquilo, porque nós nunca pretendemos ser absolutamente originais e pensamos
que uma coisa sempre nasce necessariamente de outra: é a chamada “dinâmica da
mutação”. O que o Exemplar tem sido é isso mesmo, um jornal mutante, que se
tornou diferente de si mesmo a cada edição, podendo, inclusive, e sem o menor
preconceito, contradizer-se às vezes...” (Exemplar, número 56).
Ao mesmo tempo em que vai deixando as pistas do que é o jornal, a equipe vai
dizendo também que tentar classificá-lo, rotulá-lo, seria uma difícil tarefa.
Não pretendo, então, rotular o Exemplar, mas sim, mostrar a diversidade de
experiências, de pensamentos e de matérias que povoavam o universo desse jornal. Em
suas páginas os movimentos culturais da época encontravam espaço, assim como as
aspirações musicais, educacionais, humorísticas, inspirações defensoras de liberdades.
Essas matérias conviviam sem pudores, caso fosse necessário, com um fato ou uma
notícia favorável ao Estado Autoritário, aos militares. Muito embora as críticas ao
regime, à repressão, metaforizadas nas entrelinhas, nos contos, nas notícias de outros
países, no humor, estivessem ferozmente presentes. A própria mistura de influências,
70
Exemplar, mero 47.
71
Exemplar, número 40.
- 2
confirmadas e explicitadas por Juarez Fonseca, uma idéia da liberdade e da
desvinculação com qualquer grupo político que o jornal pudesse ter:
“Assim começamos a ser bastante influenciados por pelo menos quatro da época,
o Jornal da Tarde, de São Paulo, pela revolução gráfica que ele representou;
Bondinho que era uma revista alternativa de São Paulo, que era mais ou menos
parecida com o nosso projeto, nossa história, porque Bondinho ela circulava
dentro de uma rede de Supermercados, Pão de Açúcar, e era feito por gente que
tinha trabalhado na Realidade, e era uma revista toda colorida com anúncios de
Supermercado... uma coisa completamente underground, completamente
contracultural... A linguagem do Jornal da Tarde, não só a revolução gráfica, mas
a linguagem também, o jeito de escrever, a maneira de fazer os títulos. O Pasquim
foi a questão do humor, das dicas, das notas curtas. O Bondinho, a questão da
contracultura... todo mundo era hippie, sem ser hippie, mas ideologicamente ou
filosoficamente, sei o que, era simpático a tudo isso, e isso tudo no jornal!
O jornal era a nossa cara”.
Mais do que dizer que o jornal era nitidamente de contracultura, o que, em parte,
concordo, dizer que o jornal era a nossa cara”, ou seja, a cara da equipe que o
produzia, parece definir o Exemplar, pois sua equipe reuniu estudantes e profissionais
de várias áreas, dos empresários proprietários aos estudantes de arquitetura, até os
jovens jornalistas que trabalhavam na grande imprensa. Essa era uma característica
comum na formação de diversos jornais alternativos, uma vez quealém do ativismo de
militantes políticos e da colaboração voluntária de intelectuais, os jornais eram
apoiados, com dinheiro e matérias, por jornalistas que continuavam trabalhando na
imprensa convencional, e por artistas que organizavam shows para angariar recursos”
(Kucinski, 1991:XX).
Para Juarez Fonseca, o Exemplar foi um jornal de contracultura, “...era um
jornal underground, de contracultura, nitidamente, obviamente de contracultura!”.
Para Cláudio Levitan e Danilo Ucha, era um jornal “cultural e libertário”, o que o se
afasta da concepção de Fonseca, já que o movimento de contracultura trazia em si uma
intenção libertária. Essa caracterização feita por membros da equipe de colaboradores
- 2
do Exemplar se aproxima dos jornais que Kucinski (1999) classificou como sendo de
cunho mais existencialista do que marxista, aqueles “cansados do discurso
ideológico”
72
.
Segundo Luís Carlos Maciel
73
(apud Pereira, 1983:13), o termo contracultura foi
inventado pela imprensa norte-americana, nos anos 60, para designar as novas
manifestações culturais que existiam não nos EUA, mas em vários outros países da
Europa e mesmo da América Latina. A contracultura tinha como características básicas
o fato de se opor, de diferentes maneiras a cultura vigente e oficializada pelas
principais instituições das sociedades do Ocidente”. Uma crítica anárquica, radical,
face à uma cultura tradicional. A esse movimento que Theodore Roszak (1972:15)
classificou como a “mais importante fonte contemporânea de inconformismo radical e
de inovação cultural”, nos anos 60 e 70.
Para Pereira (1983:20), o fenômeno da contracultura adquiriu dois significados,
um que foi o do momento histórico vivido nos anos 60 e 70, e outro de caráter mais
abrangente que pode ser encontrado, inclusive, posteriormente aos anos de 60 e 70. No
primeiro, o termo contracultura refere-se “ao conjunto de movimentos de rebelião da
juventude que marcaram os anos 60: o movimento hippie, a música rock, uma certa
movimentação nas universidades, viagens de mochila, drogas, orientalismo e assim por
diante”. Movimentos de contestação, de busca de uma outra forma de viver, de repúdio
à cultura tradicional, marcados por um forte sentimento de insatisfação. Esse
movimento manifestou-se primeiramente na imprensa. No segundo significado, o termo
contracultura aceita um outro sentido, mais abrangente e mais abstrato também, que
manifesta-se em um certo modo de contestação, de enfrentamento diante da ordem
72
A discussão mais pormenorizada se encontra no primeiro capítulo.
73
Em entrevista à Revista Careta,número 2736, de 20/07/1981.
- 2
vigente, de caráter profundamente radical e bastante estranho às formas mais
tradicionais de oposição a esta mesma ordem dominante” (Pereira, 1983:20). A ordem
dominante que contestavam era a ordem da qual faziam parte, uma vez que o
movimento de contracultura era oriundo da juventude
74
dos setores médios da
sociedade, geralmente universitários que rejeitavam os valores culturais, sociais e
econômicos dos quais faziam parte, inaugurando novas formas de luta política, avessas
inclusive às formas tradicionais da esquerda. Para Kucinski (1991:XV), os jornais que
manifestaram os valores da contracultura adotaram o existencialismo mais como fuga
instintiva do dogmatismo das esquerdas, e da própria realidade opressiva, do que como
adesão a uma nova acepção do ser. Não criticavam a cultura estabelecida das
esquerdas; apenas não mais a adotavam como filosofia de vida”. Como já referi
anteriormente, no caso do Exemplar, podemos observar muitas características da
contracultura nas matérias sobre orientalismo, zen-budismo, sobre o tropicalismo (que
no Brasil foi o maior representante da contracultura), matérias sobre o movimento
hippie, sobre a questão ambiental, entre outras. Porém, a necessidade de valorizar
alguns elementos institucionais, devido ao fato de representar uma empresa, de estar
vinculado e dependente da Incorporadora, sendo dirigido, pelo menos prioritariamente,
aos professores gaúchos, impediu o Exemplar de ser um jornal somente de
contracultura, mas não impediu ao jornal uma grande aproximação com esse
movimento.
2.5 Um jornal de denúncias
74
A intenção não é afirmar que a contracultura que teve em Marcuse e McLuhan seus principais
teóricos - era um fenômeno só de jovens, mas eram os jovens seus principais intérpretes.
- 2
O Exemplar não se omitiu em denunciar a miséria social, a miséria material e
mesmo cultural da sociedade brasileira. Não deixou de denunciar o abandono e a
exploração dos índios, bem como os flagrantes episódios de discriminação racial.
Pronunciou-se a favor da ecologia, muito em voga atualmente, e assumiu o discurso em
defesa das “minorias”
75
. Os abusos criminosos de policiais ou de grupos parapoliciais,
como o Esquadrão da Morte, também faziam parte dos textos do Exemplar.
Denunciaram inclusive a pena-de-morte instituída pelo governo ditatorial, através do
AI-14.
A miséria cultural que o jornal criticava atingia a televisão brasileira. Esta era
vista, juntamente com o futebol, como um instrumento de alienação da realidade social
e da condição de miséria do país. No número 33, por exemplo, a equipe utilizou-se do
humor de Henfil, através da História em Quadrinhos, para criticar duramente a
alienação representada pela televisão e pelo futebol. O título da estória era Henfil e a
seca no nordeste. Nela os flagelados nordestinos estando prontos para invadir um
armazém em busca de comida, subitamente param sua ação quando o proprietário do
armazém coloca uma televisão para que todos assistam, na tela, futebol ao som do lá
vai Pelé”. Era o ano de 1970, ano de Copa do Mundo de Futebol, de vitória brasileira,
sob a intensa propaganda ufanista do governo Médici. A equipe não destacava demais
essas críticas, que poderiam compor-se de poucas linhas e mesmo palavras, porém,
prevalecia o princípio da qualidade da crítica e não da quantidade, como podemos
verificar no trecho seguinte:
“Mistério é mistério enquanto não possibilidade de investigação(...) parece
que a maior parte do tempo disponível do homem atual é gasto na frente da TV. Aí
ele para. Não discute mais, não se comunica, não expõe idéias e portanto não
75
O termo minorias” é utilizado atualmente para designar os grupos excluídos, discriminados, minoria
racial, minoria sexual, entre outros. Dar voz ou representar esses grupos fazia parte das propostas dos
jornais alternativos.
- 2
desenvolve as suas nem as idéias dos outros...” (Exemplar, número 51).
As críticas, outras vezes, vinham duras, sem meias-palavras, como na matéria
em defesa da ecologia, que atacava duramente o futebol, classificando-o como “circo”:
“Sabemos tudo sobre futebol e muito pouco sobre nossa própria vida: (...) para
a
grande maioria dos órgãos de imprensa brasileiros, o futebol é um prato seríssimo
servido diariamente para o paladar alienado de milhões de pessoas. Resumindo: o
futebol é respeitável e respeitado, mas jamais foi colocado no seu devido lugar, o
de ser circo. No Brasil, o futebol é inclusive alimento (...)” (Exemplar, número 54).
O sentido da crítica ao futebol é o mesmo da estória de Henfil, ambos - televisão
e futebol - conseguiam acalmar, inclusive, o estômago vazio de milhares de brasileiros,
já que a miséria e a pauperização social eram esquecidos entre um programa televisivo e
outro, ou ainda durante os jogos e vitórias da seleção brasileira de futebol. A
pauperização e o empobrecimento que eram sentidos e calados pela população, que
ficava “feliz” quando conseguia comprar uma porção de carne, conforme o diálogo de
um casal gaúchos, na coluna “Rio Grande, Em Tempo”:
“A mulher abre a porta e entra em casa: -‘Consegui comprar um quilo de carne!’
O homem, surpreso, pergunta: -‘Deveras? Mas...o que fizeste do teu colar?’
A mulher responde: -‘Dei como entrada’” (Exemplar, número 59).
A crítica no recorte acima atingia em cheio a economia gaúcha e a miséria
econômica da maior parte da população. Depois do humor de Henfil, a coluna
continuava com exemplos da situação crítica do RS, como o abandono a que estavam
submetidos os pequenos agricultores. Era a situação dos trabalhadores rurais gaúchos
desnudada.
A questão racial e o descaso com os índios eram retratados com muita lucidez,
como demonstra a matéria que versa sobre a situação dos índios, a corrupção dos
- 2
funcionários, a ameaça dos colonos, e a subordinação aos brancos:
“Aos índios, civilização: (...) “enquanto isso a igreja católica (e não é ela) se
prepara para lançar uma nova cruzada para levar cultura e civilização’ aos ex-
donos da terra. Cultura, civilização e evangelho para quem tem cultura,
civilização e evangelho próprios é uma violência disfaada em benefícios. E isso
vai ser imposto aos índios da Amazônia mais uma vez. Vamos levar aos índios,
entre outros, conceitos errados, a idéia de um outro Deus, de uma bondade que
nós não temos, de uma justiça que as vezes não funciona (os índios do Nonoai
76
sabem disso). Sobretudo, vamos levar calças jeans para cobrir a vergonha deles. E
deixar a nossa a descoberto (Exemplar, número 51).
A idéia de “uma nova cruzada” aciona a memória sobre a colonização brasileira,
relembrando que os índios foram dizimados, tendo, os colonizadores passado por cima
de seus costumes e valores, o que continuaria a acontecer. Essa visão do passado
colonial brasileiro também fica evidente em outra matéria, sobre as comemorações dos
150 anos de independência:
“...embora as comemorações estejam unificadas pela Comissão central dos
festejos, em Salvador, as festas iniciaram em fevereiro, lembrando a morte da
soror Joaquina Angélica, assassinada pelas tropas portuguesas que invadiram o
convento da Lapa” (Exemplar, número 72).
Quanto aos índios, a visão é pessimista-realista, nada de sonhos, apenas Dois
caminhos para o fim: em contato com o branco o índio só tem dois caminhos: ou aceita
a “amizade” do branco, ou vai à guerra contra ele. Em qualquer dos casos, o resultado
vai ser o mesmo, que na segunda opção o fim chega mais depressa...
77
. Mais uma
vez a violência dos colonizadores foi acentuada, contrariando a visão de uma história
nacional sem conflitos. Contudo, a violência não foi só durante a conquista colonial, ela
continuava, ela era atual, seja através do regime militar, dos Esquadrões da Morte, da
discriminação racial, da desigualdade na distribuição de renda, entre outros. Com
76
Nonoaí se refere a uma reserva indígena gaúcha
77
Exemplar,mero 54.
- 2
relação a esta última, ela é demonstrada através do contraste, marcado de um lado, pelo
déficit habitacional: de um lado, milhares de pessoas sem moradia (hoje, os chamados
sem-teto), de outro lado, uma minoria com alto poder aquisitivo, capaz de comprar
apartamentos de valores altíssimos (dois milhões de cruzeiros em média) e com
metragem suficiente (640 metros quadrados) para abrigar muitas famílias:
“Gente Fina: O lançamento de um edifício com vinte apartamentos (um por andar)
de 640 metros quadrados na Praia do Pepino, no Rio, e
surpreendente. Inda
mais levando-se em conta que o déficit residencial no país anualmente é de 650 mil
unidades, conforme pesquisa do próprio BNH. Mas, o mais surpreendente do
empreendimento da Veplan Imobiliária é que os vinte apartamentos, a um preço
médio de dois milhões de cruzeiros cada um, foram vendidos em menos de 48
horas” (Exemplar, número 58).
No que se referia à luta das minorias, essa era vista como parte de um todo,
como demonstra a importância que o jornal dedicou a uma frase de Betty Friedam, uma
das principais líderes do movimento feminista na época, pronunciada em entrevista ao
Pasquim,a emancipação da mulher, entendam isso, é apenas parte de um todo que é a
libertação da humanidade...
78
. E para a libertação de todos era necessário acabar com
a violência e com a opressão. Acabar, por exemplo, com a violência do “Esquadrão da
Morte”.
Em fins de 1968 apareceram os primeiros casos do chamado “Esquadrão da
Morte”, um grupo parapolicial, originado nos quadros da polícia civil, cuja atuação
inicial foi nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, logo espalhando-se pelo resto do
Brasil. Intitulavam-se “justiceiros”, e não passavam de criminosos que não se
intimidavam, pois contavam com proteção e conivência governamental. Essa verdadeira
máfia policial” (Bicudo, 1976), que foi comparada a uma Gestapo brasileira”
(Bicudo, 1988), além dos crimes e assassinatos atuava no tráfico de drogas.
78
Exemplar,mero 43.
- 2
Curiosamente, alguns de seus integrantes, como o delegado Fleury, eram tidos como
“heróis nacionais”. A denúncia sistemática dos crimes do Esquadrão em alguns órgãos
da imprensa
79
serviram de pressão para que alguma atitude fosse tomada pela justiça.
O Exemplar não se furtou de denunciar sistematicamente os crimes do
Esquadrão da Morte, associando claramente os crimes do Esquadrão ao regime militar.
Para Juarez Fonseca, o Exemplar denunciou como o resto da imprensa: mas a gente
falava realmente como toda a imprensa falava, nós não falamos nada que a imprensa
não pudesse falar”. Levando-se em consideração que uma grande distância entre
“noticiar” os crimes do Esquadrão da Morte e denunciá-los pública e sistematicamente,
ligando-os ao regime e identificando-os com os abusos policiais, discordo um pouco de
Juarez Fonseca, pois as denúncias e matérias do jornal Exemplar sobre o Esquadrão da
Morte não tinham a mesma abordagem do resto da imprensa. Os crimes do Esquadrão
da Morte foram, de fato, noticiados pela imprensa no geral, mas no Exemplar eles
tinham caráter de denúncia. Selecionamos uma matéria que demonstra esse caráter de
denúncia, na medida em que alertava para o fato de que as autoridades não tomavam
nenhuma providência para punir os policiais envolvidos, mesmo sendo muito alto o
número de assassinatos cometidos pelo grupo:
“Esquadrão: tudo contadinho, o Esquadrão da Morte já matou mais de 800 no
Brasil, em quase ou mais de dez anos. Até o momento nenhum dos policiais que
fazem parte do tal esquadrão foi punido. Já recentemente é que se resolveu
combater essa ‘organização’ que recebeu poucos dias a condenação da CNBB
– Conferência Nacional dos Bispos do Brasil” (Exemplar, número 44).
Poucos policiais terminaram punidos, e nunca se chegou aos autores intelectuais
79
Bicudo (1976) refere-se às denúncias realizadas pelos jornais Folha da Tarde e O Estado de São Paulo,
que para o autor foram de muita valia, já que a justiça começou a agir devido as sucessivas denúncias e ao
apoio desses jornais ao trabalho de Hélio Bicudo, que enquanto promotor, denunciou e investigou os
crimes do “Esquadrão”. Anos mais tarde Bicudo (1988) reavaliou o papel desses jornais na luta contra a
violência policial, uma luta que durou apenas enquanto esses periódicos estavam em conflito com o
Estado Autoritário, devido a censura, visto que atualmente muitos órgãos da mídia, inclusive O Estado de
São Paulo, estimulam a violência policial, violência que hoje adquire outras formas.
- 2
dos crimes do Esquadrão da Morte, e isso em função de que esse grupo existiu na
medida em que contou com o apoio daqueles que, à época representavam o poder, quer
a nível federal, quer a nível estadual” (Bicudo, 1988). A proteção a esse grupo era
tamanha que aqueles que ousavam denunciar ou se pronunciar contra eram acusados de
subversão e declarados inimigos do regime.
A famosa chacina “Nego Sete”, ocorrida em dezembro de 1968, aconteceu em
plena luz do dia e com muitas testemunhas, entre elas um padre
80
que chegou a
fotografar os policiais envolvidos. Em uma coluna do jornal, o caso é alvo do
comentário dos jornalistas:
“Ainda em SP os elementos do ‘Esquadrão da Morte’ começam a ser descobertos.
Testemunhas de matanças reconheceram onze dos 46 policiais apresentados como
suspeitos...em uma foto, feita por um padre durante a chacina da marginal “Nego
Sete”, foi descoberta e mostra alguns policiais bastante conhecidos, como o
delegado Fleury que comandou a caçada e morte de Marighela” (Exemplar,
número 37).
O delegado Fleury, famoso integrante do Esquadrão, chegou a ser condecorado
como Amigo da Marinha”, provavelmente pelos “serviços prestados” para a
“revolução”, em nome, é claro, da “segurança nacional”.
Na mesma página em que foi publicada a matéria citada anteriormente, o jornal
denunciou as torturas e mortes praticadas pelo DOPS, vinculando as práticas do
Esquadrão da Morte à violência dos integrantes da polícia política, que a linha de
ação era muito semelhante:
“Cerca de 15 pessoas, entre familiares e policiais à paisana assistiram no dia 26
80
O padre Geraldo Monzerol que fotografou alguns policiais durante a chacina e testemunhou contra o
Esquadrão da Morte, posteriormente, foi empurrado de um andaime na sua paróquia. Um dos policiais
indiciado por ter participado da chacina, chamado de “Fininho”, que na época estava preso, vangloriou-se
de ter empurrado o padre. Esse episódio demonstrou que mesmo quando condenados e presos, os
integrantes do Esquadrão tinham total liberdade de ir e vir dentro das delegacias e presídios.
- 2
de outubro, no cemitério da Consolação, em SP, ao enterro do der terrorista
Joaquim Câmara Ferreira (Velho ou Toledo), que morreu pouco depois que o
DOPS o prendeu. Os policiais querem agora, pegar Lamarca, o último líder da
chamada ‘Trindade do Terror’” (Exemplar, número 38).
A ligação implícita entre o Esquadrão da Morte e o DOPS não era casual, já que
em São Paulo “os principais implicados na execução dos crimes do ‘Esquadrão’
passaram a atuar no campo da polícia política, integrando o sistema de segurança, ao
qual transmitiam suas técnicas de ação” (Bicudo, 1976:21).
No ano de 1971 as denúncias continuaram. Na matéria que segue, figura os
nomes de jornalistas assassinados, e, muito embora a matéria não deixe claro como os
jornalistas morreram, a expressão são forçados a deixar o campo de batalhainsinua
que foram assassinados porque de alguma maneira, lutavam contra alguma coisa
comum aos três, provavelmente se opunham ao regime e à censura à imprensa:
“Morte jovem: Depois de Dalmo, um garoto de 22 anos (trabalhava na Folha da
Tarde); de Marcelo Renato, um garoto de 26
(trabalhava no Jornal do Comércio)
morreu no início de junho outro garoto de pouco mais de 20, Carlos Paim Falsitta
(trabalhava na Folha da Manhã). Essas mortes não podem ser justificadas e nós
protestamos contra elas: mais três amigos são forçados a deixar o campo de
batalha” (Exemplar, número 44).
Em 1972 o jornal foi além, comentando, em uma matéria provavelmente retirada
de outro jornal, os nomes dos policiais envolvidos nesses abusos. Descrevendo um
episódio ocorrido no Rio, procurou demonstrar o quanto a sociedade estava exposta a
esses abusos e desprotegida, que os policiais eram os próprios algozes, e que ousar
denunciar esses algozes poderia tornar-se muito perigoso:
“Questão de Igualdade: Difícil encontrar situação mais deplorável do que o abuso
de autoridade. Na natureza parece não haver mais igualdade, mas desde que o
homem se organizou em sociedade, essa igualdade ideal ficou estabelecida. E
foram criados meios de repressão para evitar que o mais forte subjugue o mais
fraco. Uma questão de igualdade de direitos e deveres, tanto quanto se pode
acreditar que isso seja possível. A situação deplorável passa a existir no momento
- 2
em que o homem a quem a sociedade delegou poderes, autoridades e armas, usa
esses poderes, essa autoridade e essas armas contra aqueles a quem deveria
proteger. Exemplo: poucos dias, quase todo o efetivo policial de Nova Iguaçu
(Estado do Rio) cercou durante sete horas a casa do jornalista Wilson Ferreira,
que vem denunciando as atividades do Esquadrão da Morte na Baixada
Fluminense. Depois de cercada, a casa foi invadida e vasculhada, enquanto
Wilson, sua mulher e um filho de quatro anos permaneciam sob a mira de
metralhadoras. O jornalista foi levado para a delegacia onde ficou detido por mais
de seis horas. Explicação que recebeu ao ser liberado: não havia nada contra ele,
a polícia estava apenas buscando dois cabeludos suspeitos na casa dele. Entre os
invasores estava o sargento Gil, da PM, a quem Wilson havia denunciado como
responsável pela morte por espancamento de um preso. Durante o tempo em que a
polícia cercava a casa do jornalista, ocorreram oito assaltos em diversos pontos
da cidade”(Exemplar, número 54).
Mas as denúncias não se restringiam apenas à violência em outros estados, na
coluna Foto-Síntese, da edição de novembro de 1972, o jornal denunciou a ação da
polícia gaúcha, que havia limpado as ruas dos “menores”
81
, de acordo com a idéia de
que adolescente pobre que anda nas ruas está vadiando e pode causar problemas. Na
mesma coluna é demonstrado o quanto o governo de Médici estava “preocupado” com a
defesa da Amazônia, vindo inaugurar mais uma brica de fumo. A poluição causada
por uma brica de fumo, inaugurada pelo general-presidente, alerta para o tipo de
preocupação que o governo poderia ter com a maior floresta tropical do planeta.
Próximo ao nome do general-presidente o alerta para a situação econômica dos gaúchos
(“enquanto a carne desaparece da mesa dos gaúchos”), ironicamente vinculada ao
sumiço das testemunhas contra o Esquadrão da Morte. O assassinato de um jornalista
gaúcho, cometido por um adolescente, que posteriormente foi morto pela polícia
contrasta com o clima de festa da visita do general Médici:
“(...) Enquanto o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal diz que está
atento à preservação da Amazônia, o presidente, Médici veio ao RS para
inaugurar a Festa do Fumo e as novas obras viárias de Porto Alegre (...)
enquanto a carne desaparece da mesa dos gaúchos, as testemunhas contra o
Esquadrão da Morte também continuam sumindo (...) Edemar Ruwer, jornalista
81
“Operação Mirim: Limpa o centro de Porto Alegre, recolhendo 250 menores, que ficam no porão-
masmorra’ da 8ª Delegacia de Polícia”, a matéria veio acompanhada de foto. (Exemplar, número 55).
- 2
que colaborou no Exemplar e atualmente estava em Carazinho editando seu
próprio jornal, foi morto por um menor (que também foi morto depois pela polícia)
(Exemplar, número 55).
Dessa maneira o medo vai tomando conta de todos, sejam eles civis ou policiais,
identificados com o regime militar ou o. Ao falar de um jogador de futebol que bateu
no juiz, foi lembrado um exemplo contundente de um menino que tinha sido metralhado
por um guarda de banco, isto porque o menino carregava uma arma de brinquedo e ao
ser abordado pelo guarda do banco, que não identificou que a arma era falsa, correu
assustado. Os jornalistas vão jogando com os episódios para demonstrar o quanto o
medo foi sendo introjetado pelas pessoas, um medo que existia (“é milenar”), mas
que sob um regime ditatorial, autoritário encontrava (“as condições”) espaço maior de
explosão:
“Medo mais medo:...o móvel de ataque é o mesmo da defesa: o medo... (mais
perigoso que um grupo de seres humanos mesmo um grupo de seres humanos
armados). o garoto teve medo consciente, os outros dois (jogador e guarda)
agiram pressionados pelo medo milenar, que agora, mais do que nunca, encontra
condições de explodir (Exemplar, número 55).
O medo, juntamente com a censura e a propaganda, é um dos componentes
fundamentais utilizados pelos Estados autoritários, totalitários ou ditatoriais, para
promover o controle social, é a força que silencia, a força que restringe, que tolhe a
liberdade possível dentro de um Estado e de uma sociedade que impõe as normas do
que é normal e legítimo, é o medo que
“...faz calar; tem energia para isso. Instado pelo pânico (de propagação rápida) o
medo sufoca, gerando o silêncio. Daí a necessidade que as ditaduras têm de impor
medo medo à tortura, à polícia, da morte, da fome, da peste, do desemprego, da
difamação para através deste, sufocar as tradições de luta, as vozes de
contestação”
82
.
82
Ver www.justiça.sp.gov.br/vrev_8a.htm. Texto “Força, Medo, Liberdade: Algumas coisas não
combinam entre si...”, de Maria Luiza Tucci Carneiro.
- 2
O medo referido pela equipe do Exemplar e por Carneiro foi introjetado no
quotidiano das pessoas, no trabalho dos jornalistas, contudo não impediu a resistência,
não impediu a crítica, como demonstra a matéria que ataca diretamente a moral” dos
funcionários do regime:
“Escolha difícil: Apesar de o ingresso na função publica ser possível somente
através da demonstração de uma certa idoneidade, parece que a escolha dos
delegados para o Departamento de Ordem Política e Social não tem sido muito
feliz. O caso do menor Luiz Alberto Pinto Arebalo morto à 08 de fevereiro no
Sanatório Partenon, oito dias depois de permanecer irregularmente preso no
DOPS – valeu o afastamento de seu pai adotivo, delegado Pedro Seelig, que
mandara o menino ser detido “para levar um susto”. Atualmente esta afastado do
mesmo departamento o delegado Claudio Luiz dos Santos Roca, acusado de
mandar deter e torturar o empreiteiro Alamiro João Pacheco (28 anos), detido 04
dias no DOPS até assinar cheques e promissórias no valor de 7 mil cruzeiros...
(negócios com o delegado)... Se a escolha dos funcionários para servirem naquele
departamento policial não tem sido muito feliz, também tem parecido arriscado
tratar empreitadas de obras com eles a simplesmente tornar-se seus filhos
adotivos” (Exemplar, número 59).
O delegado Pedro Seelig citado na matéria citada acima atuou no DOPS/RS
chegando a ser taxado de ‘o Fleury dos Pampas’, foi acusado de inúmeros episódios de
tortura, e esteve envolvido em dois casos que ganharam manchetes de jornais: primeiro
a morte do jovem Arébalo, seu filho de criação, nas dependências do DOPS/RS e depois
no caso do ‘seqüestro dos uruguaios’ já em 1979, numa ação conjunta do DOPS/RS e
dos Exércitos brasileiro e uruguaio
83
.
Acredito que entre os jornais alternativos poucos tiveram a liberdade de crítica
sem sofrer retaliações, como aconteceu ao Exemplar. Muitas questões abordadas pelo
jornal constavam na lista de proibições da censura. O jornalista e editor do semanário
alternativo Opinião enumera algumas proibições repassadas ao semanário pela Polícia
Federal, dentre elas,
83
O Coojornal traz uma matéria completa sobre o delegado Seelig na edição de número 40, de abril de
1979, intitulada ‘Pedro Seelig: um delegado acima da lei’.
- 2
“...não era permitido fazer campanha sistemática contra o AI-5; podia-se fazer
críticas as governo, mas não ao regime’; proibidas críticas ao sistema
habitacional; proibidas críticas à Bolsa de Valores e ao Sistema Financeiro era
considerado ‘terror financeiro’; proibido ‘propaganda do homossexualismo e do
amor livre’; proibido incitar o movimento político entre estudantes; proibida
qualquer referência à existência de racismo e a problemas raciais; proibido falar
nas divergências da Igreja com o Governo, no Brasil ou no exterior” (Machado,
1979:24).
Muitas das proibições impostas ao semanário Opinião, como as referências ao
racismo, as críticas ao sistema habitacional, ao sistema financeiro, eram abordadas pelo
jornal Exemplar, sem que, no entanto, houvesse problemas com a censura
84
.
Outra constante de matérias que figuravam continuamente nas páginas do jornal
eram aquelas que desnudavam o imperialismo norte-americano, situado como principal
responsável pela situação de subdesenvolvimento da América Latina,
“E no Uruguai, onde os Tupamaros continuam fazendo coisas inacreditáveis
(assaltaram o Banco da República, levando um bilhão de pesos em jóias), o
presidente Pacheco Areco decretou no dia 19 de outubro a censura na imprensa e
no rádio para impedir que sejam divulgadas noticias sobre a crise econômica (a
maior de todas), que atravessa o país. Para os EUA tudo vai bem na América
Latina: durante o último exercício, obtiveram o lucro recorde de 552 milhões de
dólares (cerca de 2,6 bilhões de cruzeiros), em sua balança comercial com os
países da América Latina” (Exemplar, número 38).
O exemplo do Uruguai é utilizado para falar dos regimes autoritários que
espalharam-se pela América Latina (já que explicitamente do Brasil era proibido falar)
nas décadas de 60 e 70, e que trouxeram como complemento
as crises econômicas.
Regimes estes advindos da militarização da América Latina sob o patrocínio direto dos
EUA. A crise econômica dos países da América Latina aumentou o lucro dos Estados
84
É imprescindível relembrar aqui o caráter multifacetado da censura, que atuou de formas diferenciadas,
dependendo do período e do órgão de divulgação, o que era proibido ou vetado em um jornal, muitas
vezes era liberado em outro. Além da atuação o-homogênea da censura, dos censores, deve-se
considerar também, as diferenças entre os periódicos alternativos diferenças de propostas, interesses,
ideologia, público leitor, entre outras.
- 2
Unidos, provando que o subdesenvolvimento latino contribuiu com o desenvolvimento
e enriquecimento norte-americano. Com a América Latina às ordensdo imperialismo
norte-americano, o jornal continuou denunciando à espoliação latina:
“América Latina, às ordens: faz algum tempo, que os latino-americanos mais
lúcidos compreenderam que o subdesenvolvimento não é a ante-sala do
desenvolvimento, mas a contrapartida necessária e contemporânea do
desenvolvimento dos outros. Sabem que a condição essencial para o
desenvolvimento de uns, somente pode existir com o subdesenvolvimento de outros
(...) a pobreza de muitos é lucrativa para alguns...” (Exemplar, número 50).
E nem mesmo um dos mais representativos símbolos da influência norte-
americana, a Coca-Cola, escapou da crítica. Uma matéria publicada em uma revista de
Montevidéo foi traduzida, e a imagem de um soldado americano correndo com uma
‘metralhadora’ (com formato de uma garrafa de coca-cola e várias ‘garrafinhas’ – como
balas da metralhadora saindo) foi reproduzida. A matéria trazia em letras garrafais:
HAVE A COKE! HAVE A COKE!!
“COCA-COLA, UMA CAUSA NACIONAL
(...) Coca-Cola leva o ‘american way of drink a 138 países (...) Além do
refrigerante em si, Coca-Cola leva a estes 138 países todo um espírito, toda uma
mensagem, toda uma imagem. Recentemente disse um diretor de propaganda e
publicidade da companhia: ‘Coca-cola é um refrigerante para toda a família e
para todas as idades. Nós simbolizamos a mais alta qualidade e o gosto mais
refinado. Representamos a limpeza, a pureza, a família, o domingo, a linda moça
da casa ao lado, a saúde, o melhor dos Estados Unidos. Esta é a imagem que
tratamos de manter e pela qual trabalhamos dia e noite’. (...) /COCA-COLA NA
GUERRA : A imagem da coca-cola a recordação do melhor, dos valores mais
puros dos EE.UU. não faltou ao soldado americano na Segunda Guerra
Mundial. (...)/Afirma um executivo da empresa: ‘os norte-americanos associam a
coca-cola à bandeira e ao sentimento da mãe’. Essas associações tão nobres a
bandeira e a mãe – tampouco faltaram aos marines que desfrutaram de seu
refresco favorito no Haiti em 1915, no México em 1916, na Coréia em 1950, no
Líbano em 1958, em São Domingos em 1965 e no Vietnã ainda hoje. Isto foi dito
pelo vice-presidente da coca-cola: ‘quando um soldado norte-americano toma
uma coca-cola no Vietnã, ele satisfaz sua necessidade de identificar-se com a
tradição norte-americana e com seu modo de vida. Lembra-se por que está
combatendo’./E isto é certo. Quando um soldado dos EUA levanta a sua coca-cola
bem fria e deixa correr o refrescante borbulhante líquido pela garganta, ele
exclama com grande satisfação: - Ahaaahhh...a causa que refresca! (Exemplar,
- 2
número 40)
85
.
As críticas ao imperialismo norte-americano combinavam com as notícias sobre
a situação dos outros países da América Latina, nas quais o jornal denunciava a
violência dos demais regimes autoritários, chamando a atenção para a violência do
regime vivido no Brasil:
“(...)Com rádio e jornais sob censura, casas invadidas ou ameaçadas de invasão a
qualquer hora, revista nas ruas e uma debandada geral dos centros de maior
movimento de Montevidéu (boates fechadas, cinemas vazios, bares fechando mais
cedo, estrangeiros indo embora, aviões chegando quase vazios), o povo uruguaio
enfrenta no momento os seus dias mais tristes” (Exemplar, número 35).
Os dias de censura, de abusos ditatoriais, de medo enfrentados pelos uruguaios,
eram os mesmos dias enfrentados pelos brasileiros, dias que se transformaram em anos,
longos anos de repressão, de tortura, de assassinatos, de exílio, de silenciamento. Mas
foram também anos de resistência, armada ou não, anos de engajamento, de articulação,
anos em que valia a pena incentivar a organização, a resistência, como o Exemplar fez
através de matérias como
“Revolução Organizada:Declaração de Angela Davis, 28 anos, professora, negra,
americana, revolucionária. Foi absolvida porque o povo se organizou: ‘O
potencial para uma revolução organizada é agora maior que nunca... Se vocês
puderam fazer um movimento tão forte para me libertar, podem fazer um
movimento para proteger a comunidade das balas e dos cassetetes da polícia..’”
(Exemplar, número 54).
Essa pequena matéria, sem maior destaque no jornal, ganhava significado no
contexto brasileiro pela migração de sentidos, quando a equipe utilizava-se de um fato
ocorrido em outro país para denunciar o que acontecia no Brasil. o podendo dizer
85
Artigo publicado na revista Centro, de Montevidéu, e traduzido por Rogério Vaz Mendelski.
- 2
claramente que o povo tinha que se organizar para resistir aos abusos do regime militar,
o jornalista significava de outra forma o proibido. Nesse momento histórico específico a
censura não permitia que se divulgassem notícias de protestos, repressão interna. Então,
através da notícia de uma situação ocorrida nos Estados Unidos, o jornalista significa a
reação também possível no Brasil. Além de denunciar os abusos da polícia (“proteger a
comunidade das balas e dos cassetetes da polícia”), enfatizava o poder que uma
população organizada pode ter (“foi absolvida porque o povo se organizou”) para
resistir aos abusos de poder. A matéria também denunciava o forte preconceito racial -
se levarmos em conta que este jornal se colocava sempre em defesa dos negros e índios.
Os sentidos se movem, migram para significar nas situações conhecidas pelos leitores.
São sentidos que existem na chamada memória discursiva
86
das pessoas (por
exemplo, a palavra Revolução pode remeter ao Golpe de 1964, e também remete à
transformação, mudança da ordem).
Para denunciar a repressão do regime, a criatividade foi essencial, como no
trocadilho:
“Solfenitzim disse que o ia à Suécia receber o Prêmio Nobel de Literatura
porque tinha medo de não poder voltar a Rússia. Prefere ficar de bico calado, mas
na terra dele. Rússia, cale-se ou deixe-a” (Exemplar, número 39).
A exemplo da matéria “Revolução Organizada”, mais uma vez o jornal trazia, a
partir de uma notícia internacional, a censura política (“ficar de bico calado”) do Estado
brasileiro, indo além quando parodiava o enunciado veiculado nos meios de
comunicação pelo governo militar, “Brasil ame-o ou deixe-o” (“Rússia, cale-se ou
deixe-a”).
86
A memória discursiva é tudo que já foi dito ou escrito sobre alguma coisa, e que permanece na memória
das pessoas. É o efeito do que foi dito, a historicidade das palavras, dos discursos. Que é o
interdiscurso. Todos os sentidos ditos em algum lugar, em outro momento e que produzem efeitos
(Orlandi:1999).
- 2
2.6 O humor como crítica social
O humor
87
foi uma das principais armas utilizadas pela imprensa para driblar a
censura e criticar o regime militar. No caso do Exemplar, a crítica social através do
humor esteve representada significativamente através das Histórias em Quadrinhos
88
(HQ) criadas por Claudio Levitãn, as HQ de Astrogildo & Rulfo, ou Rulfo & Astrogildo.
Rulfo era um porquinho esperto, inquieto e questionador. Astrogildo um homem
“enrolado”, que preferia não pensar a respeito do que acontecia ao seu redor. Rulfo era
o amigo que a todo momento questionava a ordem da própria construção da história em
quadrinhos, que era o seu mundo. Enquanto Astrogildo se apegava a esta ordem e
ficava perdido cada vez que Rulfo rompia com ela. Esses quadrinhos, a partir de 1970,
passaram a ter publicações periódicas no jornal, conquistando inclusive mais espaço
89
.
Para Claudio Levitan, as HQ de Astrogildo & Rulfo eram um trabalho com
metalinguagem, que era uma forma de tentar explicar esse tipo de pressão da
sociedade”. Ainda segundo suas palavras, “era a maneira de falar sobre o que se
estava vivendo sem ser direto, a gente colocava essas preocupações”. Driblando a
censura, através da metalinguagem e do humor.
Nos textos e histórias humorísticas, isso é possível na medida em que um texto
humorístico, sendo desprovido das amarras sociais (embora signifique pela identificação
social), vai possibilitar uma maior liberdade de leitura e apropriação do discurso. O
87
Embora tenha sido estudado pela primeira vez na antigüidade, quando era considerado como disposição
mental ou comportamento, a concepção de humor, em seu significado moderno, foi abordada pela
primeira vez em meados do século dezenove, na Inglaterra (Bremmer & Roodenburg, 2000:13). Exploro
um pouco mais a questão do humor no terceiro e quarto capítulos
.
88
A HQ é classificada como “narrativa figurativa”, terminologia utilizada para diferenciar a HQ da
charge, da caricatura e do desenho humorístico em geral. A HQ une a linguagem icônica e a linguagem
verbal, onde essas linguagens ou recursos expressivos estão em diálogo constante. É uma narrativa
figurativa, unindo imagens e palavras, unindo o texto icônico e o texto verbal.
89
Começaram ocupando meia página no jornal, mas logo conquistaram o espaço de uma página inteira.
- 2
humor desperta a consciência crítica ao redimensionar o rigor social e a
transcendência” (Bakhtin,1993:32), ao mesmo tempo que é desprovido do rigor social,
ele, por romper as amarras do sério, permite uma liberdade maior de crítica. É nesse
despertar de uma consciência crítica” que situamos as histórias de Astrogildo &
Rulfo. Um exemplo que encontramos é (ver história anexo 02) quando Astrogildo tenta
enquadrar Rulfo de qualquer maneira: tenta prendê-lo, amarrá-lo, limitá-lo, mas o
porquinho não se enquadra, nem querendo! A metáfora é a própria limitação icônica do
quadrinho da HQ - aliás a linguagem icônica, ou visual, tem uma importância
fundamental ao conduzir o leitor à visualização do prender, amarrar, limitar; tanto que a
linguagem escrita é escassa, a narração se faz majoritariamente pela linguagem icônica.
No primeiro momento narrativo o personagem Astrogildo es circunscrito pelas
vinhetas, tentando prender Rulfo, mas visualmente está mais preso que o próprio
porquinho. Rulfo, embora tendo o desenho de grades a sua volta não está circunscrito
com o quadrado da vinheta, tanto que o porquinho logo se liberta, enquanto que
Astrogildo assiste a todas as ões de Rulfo dentro de sua vinheta-prisão. Temos a
linguagem visual utilizada na narração pelo autor, significando no contexto histórico da
época. Os repressores - que podemos considerar como o próprio Estado Ditatorial, ou só
a polícia, dependendo do gesto de apreensão do leitor
90
- estão mais circunscritos,
fechados, do que aqueles que eles próprios prendem, que eles próprios limitam.
No segundo e terceiro momento narrativo (ainda anexo 02), novamente
Astrogildo está limitado pela vinheta, enquanto que Rulfo, mesmo amarrado e limitado,
90
Para identificarmos essa construção de significação no discurso dos jornais, devemos reconhecer a
subjetividade e intencionalidade na construção de um texto (por parte do autor e do próprio veículo de
comunicação), como também reconhecer a subjetividade na interpretação desse texto. Ou seja, devemos
considerar também a subjetividade do leitor, a autonomia do gesto de ler (Chartier, 1992:213). O texto
neste sentido, não está sujeito, como muitas vezes pressupõe o autor, a um significado único de acordo
com a sua
intencionalidade. Chartier (1992) define essa apropriação pessoal do texto, o gesto de leitura,
como uma prática criativa que inventa significados e conteúdos singulares, o redutíveis às intenções
dos autores dos textos.Essa autonomia do gesto de leitura é definida pelo autor a partir da relação
triangular: o próprio texto, o objeto que o comunica, e o ato que o apreende.
- 2
está fora dela, e, por estar fora desses limites, consegue se libertar deles. E ainda mais,
enrola Astrogildo! É a linguagem visual demonstrando os próprios limites da repressão.
Na última seqüência, embora desprovido dos limites da vinheta, Astrogildo o
se liberta de sua forma de pensar. Rulfo está mais livre ainda, mesmo dentro de sua
vinheta ele a subverte Você não está vendo que seu quadrinho estava torto?”,
pergunta Astrogildo. Neste momento da narração o autor alia a linguagem verbal para
dar ênfase à linguagem visual. O narrador quase não interfere no desenrolar da narração.
Esse é um outro recurso utilizado, que faz crescer a importância do visual. A conclusão
do narrador
91
é a de que Rulfo não se enquadra mesmo. Como dissemos anteriormente,
o autor usa a própria limitação do quadrinho para significar sua crítica social.
Através dessa metáfora visualizo a intenção do autor de levar o leitor a despertar
essa consciência crítica na medida em que ele próprio pode reconhecer-se na estória. A
HQ também incita os leitores a se organizarem, reagirem a essa opressão, podemos
perceber esses sentidos nas imagens de Rulfo, que mesmo estando preso, consegue
libertar-se; mesmo amarrado, rompe com o quadrinho que o amarra; mesmo limitado,
ultrapassa esse limite; e por fim muda a própria forma do quadrinho (subverte a ordem
icônica do desenho da HQ), ou seja, Rulfo demonstra que é possível resistir às diversas
formas de opressão. Rulfo o resolve nossos problemas, como o herói da ficção que
realiza nossos sonhos, e isso porque o personagem das narrativas humorísticas vive dos
nossos desacertos
92
. E demonstrar os desacertos, sejam sociais, políticos, entre outros,
torna-se muito perigoso num governo autoritário. Nas HQ que selecionamos (anexo 02
e 03) o texto visual e o texto verbal se unem em uma forma narrativo-humorística para
91
O autor faz intervir o narrador, mas formalmente encontra-se ausente do texto (Almeida, 1999:51).
92
O humor se constrói a partir de uma falta a preencher ou uma situação a se restabelecer; ele apenas
revela a falha (Almeida, 1999:68-69), ou seja, não é função da narrativa humorística apontar soluções
para o problema ou para os desacertos sociais, econômicos, culturais etc. A função (se é que podemos
utilizar esse termo) é mostrar a contradição, o impasse. No caso das narrativas humorísticas que analiso
(as HQ), a função é denunciar o regime militar. É alertar o público-leitor, possibilitar a visualização do
que acontecia nesse momento histórico especifico.
- 2
criticar o regime ditatorial e as pessoas que fingiam não saber o que acontecia naquele
momento histórico. Outro exemplo dessa crítica é a HQ (anexo 03) em que Astrogildo
(sentado na privada) começa a pensar, e, conseqüentemente, surgem as dúvidas. A
solução encontrada por ele é a mais fácil: jogar seus pensamentos na privada e puxar a
descarga, solucionando por alguns momentos suas dúvidas, ou seja, é melhor não pensar
sobre. E Astrogildo sente-se bem melhor após fazer isso, como demonstra sua expressão
facial – através do desenho dos olhos – de tranqüilidade.
O autor da HQ, Claudio Levitan, através do personagem Astrogildo critica esse
posicionamento social comum no período histórico analisado. Nessa crítica utiliza-se
das duas formas de linguagem (visual e verbal) combinadas na narrativa para surtir o
efeito desejado. Levitan define suas HQ (s) como reflexões que não eram censuradas,
tudo era sutil assim, o Astrogildo era o tipo dum cara preocupado, com medo das
mudanças, dos pensamentos que o Rulfo poderia ter” (...). Essa preocupação de
Astrogildo é demonstrada na segunda HQ do anexo 03. O homenzinho começa a
história preocupado e enrola-se com a própria vinheta (enrola o na vinheta e acaba
totalmente envolto nela). Desastradamente vê-se enrolado em sua própria limitação a
vinheta, e tudo rui ao seu redor. A linguagem visual, através do desenho de seus olhos,
denota sua perplexidade ao perceber que tudo ruiu. Essa mesma linguagem visual,
através do desenho dos olhos, é utilizada para demonstrar os sentimentos dos
personagens, Astrogildo inicia a história com uma fisionomia carregada, ar de
descontentamento e preocupação, perceptível através da linguagem visual. Na segunda
seqüência horizontal (começando de novo), Astrogildo continua preocupado com Rulfo
(o amigo) e o procura. Ao procurá-lo acaba por ver-se fora dos limites de sua vinheta e,
assim, a vê desmoronar – novamente com o olhar perplexo e temeroso.
- 2
O mundo dos personagens, com as regras que eles conhecem, é o mundo
limitado pelas vinhetas. Astrogildo tenta sempre se apegar a esse mundo, não romper
com essa ordem, até porque essa ordem parece dar segurança ao personagem
(segurança, remete à Doutrina de Segurança Nacional), como demonstra seu ar de
perplexidade quando se fora dela. Além de segurança, representa comodidade, como
na história em que ele decide jogar seus questionamentos na privada e puxar a descarga.
É esse mundo que ele deseja para seu amigo Rulfo. Ele deseja que Rulfo se enquadre,
viva dentro da ordem que seu mundo impõe (da ordem do Estado ditatorial), não
transgrida as regras. Desejar liberdade é demais para Astrogildo, tanto que ele tenta
enquadrar Rulfo de todas as formas, prendendo, amarrando, limitando, e não consegue.
Rulfo é o porquinho que não se enquadra nesse mundo de regras preestabelecidas, é
aquele que as questiona, é aquele que rompe com elas. Seu mundo é o mesmo de
Astrogildo, mas ambos vivem de formas diferentes. Rulfo mostra que é possível viver
de outra forma, sem se “enquadrar”. E isto incomoda profundamente (Astrogildo).
2.7 A literatura e as crônicas como armas
Além do humor, os contos, as crônicas, as poesias e as fábulas procuravam
traduzir os efeitos da vivência de um período ditatorial sobre os jornalistas e
colaboradores do jornal. Podemos dizer que tratavam-se de escritos engajados, escritos
utilizados para significar os efeitos do regime e da censura na vida das pessoas, na visão
de quem os escrevia. Esses escritos engajados ocupavam uma página do Exemplar (em
alguns números mais de uma página), muitas vezes chamavam a atenção para a
necessidade de união para enfrentar a repressão do período, como no conto
- 2
“Autodeterminação:As pernas decidiram fazer uma passeata pela
autodeterminação dos membros. E pediram solidariedade dos pés: com eles as
pernas conseguiriam caminhar por toda a cidade. Os pés exigiram a participação
das mãos. Afinal, quem carregaria os cartazes? As mãos trouxeram os braços para
que os cartazes fossem erguidos mais alto. E para que o movimento não fosse
chamado de ‘pés sem cabeças’, elas também foram chamadas. Dentro das cabeças
vieram os cérebros, sugerindo a participação de elementos de ligação entre os
vários grupos assim o protesto seria perfeito. E vieram os troncos, e ligaram
pernas a braços, e todas as cabeças, e ficaram inteiros os homens. E os homens
percorreram a cidade em passeata contra a autodeterminação dos membros”
(Exemplar, número 53).
Aparentemente inocente a mensagem do conto é de que as mudanças (a
passeata”) não podem ser feitas sem comunicação e união entre as pessoas (entre os
membros”). Ou seja, para que qualquer movimento (“protesto”) seja organizado
(“perfeito”) e exista (não se torne “pés sem cabeças”) é necessário comunicação e
união (“e ficaram inteiros os homens). Podemos também entender que esse texto
estimula a organização e as manifestações sociais de protesto. É um período de
aquiescência das lutas sociais pela forte repressão exercida no governo do general
Médici. O sentido de manifestação, passeata, estava, então, mais do que nunca,
intimamente ligado ao medo da repressão e da violência policial. O autor do conto,
Vadeco Zwetsch, colaborador do jornal, no mesmo número “um toque” quanto a
necessidade do jornalista da época de saber usar as palavras, que as palavras são as
armas dos jornalistas:
“Toque: Economizar palavras não é mera questão de linguagem jornalística, mas
de sobrevivência. Os fatos o nossa matéria prima, as palavras nossa arma.
Gastá-las sem critérios e sem necessidade é como dar tiros para o ar no meio da
batalha: quando o inimigo estiver à nossa mercê, estaremos sem munição”
(Exemplar, número 53).
O pequeno “toque de Vadeco Zwetsch alertava não só os jornalistas, mas
principalmente os leitores, de que era preciso estar atento, as mensagens sutis poderiam
surgir inusitadamente. No mesmo sentido, abordando a cnica silenciosa de escrever
- 2
em jornalismo, que nessa época era uma tarefa arriscada, e por assim ser, era
necessário ao jornalista falar de outras coisas para dizer o que pretendia (“se desenhares
uma lua, terás feito um poema”), Terezinha Turcatto, da equipe do Exemplar,
poeticamente fala de como aprender a escrever e interpretar, em silêncio:
“Escrever em japonês: jornal em japonês é ‘shimbum’. Algo que soa assim como
um mergulho. É. Jornal é mergulho. A técnica desenvolvida no Asahi é a do
silêncio. Escrever silenciosamente. Escrever em paz, irmão. Sem ruídos de
máquina. Corre teu lápis pelo papel, suave, muito suavemente, descrevendo
carícias. Plásticas imagens. Ideogramas. Figurinhas delicadas que vão surgindo
desse perigoso jogo lápis-papel. Escreve. Em silêncio. Em pundonoroso silêncio.
(...)Os jornais do Japão estimulam a arte de escrever. Em silêncio, muito silêncio,
muito silênciosamente, as noticias correm sobre o papel./ - Vai minha filha, vai ser
jornalista no Japão! tu serás compreendida. Se desenhares uma lua, terás feito
um poema. Se desenhares um cogumelo, não estarás lembrando Hiroxima.
Hiroxima a gente não lembra. Faz tchibum! E mergulha. Se desenhares um
cogumelo estarás lembrando a tua conversa com o poeta” (Exemplar, número
40).
A contribuição externa sempre era bem vinda, muitas pessoas colaboravam com
o jornal escrevendo, comentando e, inclusive, enviando material para a redação, como,
por exemplo, as frases de humor negro enviadas pelo humorista Guaraci Fraga:
“A minha liberdade termina onde começa a autoridade do outro./A polícia está
procurando um jóquei assassino que está com três corpos de vantagem. Jorge
Guaraci Fraga” (Exemplar, número 55).
Publicadas sem destaque maior, na primeira frase fica claro que o problema da
falta de liberdade está no autoritarismo, ou seja, a minha liberdade” esbarra na
“autoridade do outro”, autoridade, autoritarismo, seja do Estado, da polícia etc. A
segunda frase, com um humor muito afiado, compara os policiais a assassinos. Quer
dizer, o jóquei (um assassino procurado) matou três pessoas a mais que a polícia (“está
com três corpos de vantagem”) - por enquanto, porque a frase deixa explícita a questão
- 2
da competição, ou seja, a polícia “chega lá”, pode alcançar o jóquei matando mais
pessoas.
As fábulas de La Fontaine, conhecidas pelo seu conteúdo de crítica a sociedade
francesa, também figuraram nas páginas do Exemplar. Foram publicadas A Galinha dos
Ovos de Ouro, O Velho e a Morte, A Raposa e as Uvas, O Lobo e o Cordeiro, A
Cigarra e a Formiga: além da publicação das fábulas os comentários enriqueciam ainda
mais o sentido, “O Lobo e o Cordeiro mostra muito bem a intolerância humana e a
tendência que em geral as pessoas têm, de usar a força, quando não conseguem mais
argumentar... e ainda sugeriam uma interpretação pessoal, “uma fábula brados
contra aqueles insolentes que, por delitos fingidos, oprimem os inocentes (...) Se você
estiver tempo pode, a partir daí fazer sua própria versão”
93
. O conselho de fazer sua
própria versão é muito sugestivo, o leitor pode aplicar a sua realidade o conteúdo da
bula. A violência, a opressão, o perigo, de uma forma ou de outra sempre apareciam
na página dos contos:
“Um conto, apenas: Estava em casa./Deitado./A olhar para nada. Para onde todos
olham./Da janela vinha uma brisa, marrom, pesada e fedorenta./Estava no
segundo cigarro e no segundo estagio do nervosismo./Eles poderiam chegar a
qualquer momento./Poderiam entrar pela porta. Estava trancada, e
bem./Poderiam entrar pela janela. Eu moro em gaiola. Seria difícil./Na mesa de
cabeceira estava a coisa. Era meio quilo./Eu a tinha ganho de alguém e guardava
como se fosse um tesouro./Era tudo que eu tinha. E eles queriam me tirar./Mas não
iam.... Ah não iam!/Eu iria com aquilo até o fim./De que me adiantaria meu corpo
sem aquela coisa./Ele estava ali, um pacote que eu iria abrir./O u agora
estava mais limpo, mais azul e menos marrom./Via-se ao longe gentes embaixo
que iam e vinham de nenhum lugar para lugar nenhum./Quem eram! Não importa.
Seriam!/Vou até a janela. embaixo um aglomerado de gentes./Que houve?
Serão eles?/Batem na porta, eram eles! Não abro! Arrombam-na./Pego o pacote e
vou até a janela./‘Dê-me isso, rapaz!’/‘Não dou!’/‘Então... pobre rapaz, morreu
por uma coisa tão idiota!’/E na viagem-queda o pacote separou-se do corpo e
abriu-se./Os folículos de amor espalharam-se pelo mundo e foram parar sobre o
cimento, de onde mais tarde seriam varridos”(Exemplar, número 59).
93
Exemplar, número 57.
- 2
A temática do amor também aparecia com freqüência nas páginas do jornal, amor
contra a violência, em meio ao caos, os desejos de paz. Paz e amor, as flores vencendo
canhão (da música de Vandré), enfim, todas as questões que estavam presentes nas
idéias de muitos jovens da época, que eram a bandeira de alguns movimentos de
contracultura. A crença de que existia uma saída, de que ainda podia-se transformar o
mundo, talvez a última grande utopia do século XX. Mesmo que a escuridão rondasse,
que fosse inverno, mesmo que o povo estivesse bombardeado, o sol retornaria, como o
povo que resistisse:
“Inverno, Pedro: Inverno, Pedro, de novo./Nas nuvens, no vento, na/agitação das
formigas/Vá mastigar a palha, Pedro/e escuridão/como povo bombardeado/nos
seus porões//Em novo tempo de sol/vão sair/como povo, Pedro,/que
resistiu”Domingos Pellegrini Junior – Londrina, Paraná (Exemplar, número 58).
Escritos engajados, que denunciavam a época de autoritarismo explícito, de
censura, de perseguições, mas que também traziam a semente da resistência, era preciso
resistir, quem sabe escrever em silêncio, não gastar palavras sem critério, que as
armas do jornalista são as palavras, era preciso saber usá-las, e procurei demonstrar o
quanto a equipe do Exemplar soube usar essa arma”, a palavra. Mesmo com cuidados,
como disse o editor do jornal, que cuidava para que nada que pudesse extrapolar e criar
problemas fosse publicado, o Exemplar utilizou brilhantemente o jogo de palavras, as
metáforas, as entrelinhas.
Penso que embora inicialmente comedido, com matérias pouco críticas e
algumas que chegaram a ser favoráveis ao regime militar, o Exemplar acabou por
tornar-se um jornal alternativo profundamente libertário e crítico. Essa mudança foi
possível porque os jornalistas foram ocupando mais espaço dentro do jornal, as matérias
sobre o clube do professor tornaram-se apenas um item e não mais prioridade, o número
- 2
de colaboradores aumentou e as matérias diversificaram-se. Infelizmente o jornal não
conseguiu sobreviver da venda nas bancas, quando ficou sem o patrocínio da
Incorporadora. Mas o fato de não ter sido vendido nas bancas, já que sua circulação
esteve vinculada ao Clube do Professor Gaúcho, sendo restrita, influenciou
favoravelmente no sentido do jornal não ter sofrido quaisquer tipo de pressões, dentro
da lógica multifacetada da censura.
- 2
3. “APESAR DE VOCÊ, AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA” : O PATO SOB
CENSURA
“...O Pato não venceu, foi subjugado, vocês foram os vencedores, só não
esqueçam QUE APESAR DE VOCÊS AMANHÃ VAI SER OUTRO DIA. A
gente – pelo menos eu e o Ferlauto – tentou, apanhou, mas admitimos o
fracasso” (Coi Lopes de Almeida, Pato Macho, número 04).
Irreverente, satírico e bem-humorado, surgiu na capital gaúcha, em abril de
1971, o semanário alternativo Pato Macho. Inspirado no Pasquim, o humor debochado
da equipe do Pato conquistou o público, e o jornal bateu recorde de vendas logo em
seus primeiros números. Reunindo intelectuais e jornalistas famosos em Porto Alegre,
tinha como editor-chefe Luis Fernando Veríssimo, e como editores Cói Lopes de
Almeida e Cláudio Ferlauto (mais tarde José Antonio Pinheiro Machado assumiu a
função de editor-chefe). Contava ainda com a redação de Carlos Nobre, Sérgio Arnoud
e Assis Hoffmann, tendo uma vasta equipe de jornalistas e colaboradores, entre eles,
Renato D’Arrigo, Sérgio Alves Rosa, Jefferson Barros, Roberto Pimentel. A idéia de
publicar um jornal alternativo na capital gaúcha, segundo Cláudio Ferlauto
94
, existia
desde 1966, contudo, foi somente em 1970, após conseguirem dinheiro para a
publicação, que a redação do jornal teve inicio.
A tônica do Pato Macho foi o humor irreverente que ousava brincar com nomes
importantes da sociedade porto-alegrense daquele momento. O lançamento do jornal foi
precedido por uma grande expectativa da sociedade, um dos motivos era a identificação
94
Entrevista concedida ao jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro (número 23.924, de 13/04/1971,
página 46). A matéria foi feita pela Sucursal de Porto Alegre, sendo que na capa saiu uma foto com a
equipe do Pato Macho.
- 2
com o Pasquim. Essa identificação entre o Pato Macho e o Pasquim atemorizava
aqueles que tinham conhecimento da censura sofrida por esse último. Mas o Pato
Macho foi lançado, nas palavras de seus editores, não como uma imitação barata do
Pasquim”, mas como uma “imitação cara”, que o preço da venda era o mesmo,
“Imitação, por certo. Mas cara!”
95
.
O humor da equipe do Pato Macho era feroz quando tratava do provincianismo.
O semanário trazia em suas páginas um jogo chamado Simandol”, definido por Cói
Lopes de Almeida como um “fogo que brinca com as pessoas”
96
, o objetivo do jogo era
mostrar o caminho para que as pessoas abandonassem a província. Os nomes de pessoas
da sociedade porto-alegrense, através de apelidos ou mesmo referências mais explícitas,
podiam ser facilmente identificados. Os provincianos, aos quais o jornal se dirigia,
que o semanário tinha circulação regional, eram definidos como aqueles que levam
tudo as últimas conseqüências, tentando derrubar as novidades em defesa de seus
mitos. Assim vamos vivendo na Província a sombra de organizações ‘tradicionais’. Um
apelido bonito para senis. Nomes e endereços a pedido”. Definidos e identificados os
provincianos, restou à equipe anunciar o final da decadência:
“(...) Agora Porto Alegre está assistindo ao que talvez seja a derradeira tentativa
de soltar as amarras. A Rádio Continental, o som do Liverpool, as garotinhas da
Independência e, modistica à parte, o Pato Macho. Os provincianos estão
grilados, como estariam os decadentes de outras épocas, assustados, agora
agarram-se ao que resta de cacaroquete. Embasbacados” (Pato Macho, número
01).
A Rádio Continental divulgou o lançamento e fez a publicidade do Pato, sendo,
também, uma de suas principais anunciantes. Nas páginas do jornal eram comuns as
95
Pato Macho, número 01. As semelhanças no humor do Pasquim e do Pato Macho são abordadas no
item 3.6.
96
Pato Macho, número 02.
- 2
referências ao “judeu” apelido de Fernando Westfalen, proprietário da rádio e amigo
dos jornalistas.
No entanto, não era o fim da “decadência”; a “Província”, que exultou com os
primeiros números do Pato Macho, perdeu o interesse rapidamente, e alguns
provincianos, aqueles que eram satirizados pela equipe, explícita ou implicitamente, se
inquietaram com o humor do jornal. Conforme relato de Luis Fernando Veríssimo
97
,
uma senhora da sociedade, inconformada por ser citada no Pato Macho, denunciou o
jornal, que por esse motivo passou a sofrer censura prévia a partir do terceiro ou quarto
número. A equipe do jornal também tratou de denunciar a censura, ou como a
chamaram, a “Caça ao Pato”:
“Minha gente, estamos completamente alucinados com o desenrolar dos
acontecimentos. Não é que dia primeiro de maio foi aberta à temporada de caça.
Isto é um absurdo. Tem gente confundindo marreca com Pato. Espera minha
gente. Quem quiser caçar marreca que o faça sem constrangimento. Agora pensar
que porque abriu a temporada podem caçar o Pato. Esta não. Atualmente
está meio difícil caçar um Pato, quanto mais um Pato Macho. Calma, eu disse
calma. P/S: Por via das dúvidas o Cói vai fazer uma temporada carioca.
Mudança de ares
.”
98
(Pato Macho, número 05).
Mas a censura que se abateu sobre o jornal foi uma censura que cuidava de
interesses pessoais de uma senhora da sociedade porto-alegrense.
Aqueles que receberam o Pato Macho com expectativa acabaram por se
desinteressar, o humor da equipe não frutificou, e logo o jornal ficou sem anunciantes.
Não conseguindo sobreviver das vendas, deixou de ser publicado depois do décimo
quinto número. Os gaúchos não conseguiram rir de si mesmos junto com o Pato, o
efêmero jornal alternativo que causou alvoroço em Porto Alegre. O apesar de vocês
97
Relato concedido através de correspondência eletrônica, em 15/10/2001. Indicarei o relato através do
nome do depoente.
98
Nessa matéria, intitulada Caça ao Pato”, a ultima frase grifada com negrito no próprio jornal, e
publicada em local de destaque, referia-se a um dos editores do jornal, Coi Lopes de Almeida,
considerado um dos mais ousados e críticos. A matéria foi publicada na coluna de Odete Galvão,
codinome utilizado pelo jornalista Roberto Pimentel no Pato Macho.
- 2
dirigia-se, desta vez, não ao regime militar propriamente dito, mas a algumas parcelas
da sociedade gaúcha que se incomodaram, e se sentiram ofendidos com o humor da
equipe do Pato
99
.
3.1 O lançamento do jornal
O nome do jornal, bastante inusitado e original, ao contrário do que os
jornalistas afirmaram no primeiro mero “...na verdade chama Pato Macho como
poderia se chamar Alfredo ou Ribamar ou qualquer coisa. Pato Macho soou bem. É
engraçado. Fácil de lembrar e dizer. Não outra explicação”
100
-, foi inspirado em
um jornal ou folhetim antigo, que teria circulado durante a Revolução Farroupilha
101
.
Cláudio Ferlauto acentua que a questão da sonoridade também teve influência na
decisão pelo nome do jornal, argumentando que as vogais abertas soavam bem.
A idéia de fazer o jornal surgiu do convívio entre jornalistas e arquitetos
(designer gráficos) que trabalhavam no jornal diário Zero-Hora. Inspirados pelo
Pasquim a idéia era fazer um jornal que tratasse de assuntos que a grande imprensa não
abordava. Para Cláudio Ferlauto, um jornal que tratasse de coisas que eram mais do
nosso interesse do que do interesse da grande imprensa”
102
. Para Luis Fernando
Veríssimo, a idéia era fazer uma espécie de ‘Pasquim’ gaúcho, um semanário
irreverente e crítico, na medida em que se podia ser crítico naquela chamada ‘época
brava’ da ditadura militar. Desse convívio e da vontade de publicar um jornal
alternativo, um “pasquim gaúcho” circulou pela primeira vez, na segunda semana de
99
Os nomes de pessoas conhecidas eram citados diretamente, como no seguinte trecho, do jogo
“Siamandol”: Você saiu na coluna social do Jornal do Comércio. Tá fú. Reconcilie-se com a sociedade
sendo igualzinho ao Urbano Garcia. Saia do jogo porque não estamos aqui pra agüentar muquiranas
(Pato Macho, número 01).
100
Pato Macho, número 01.
101
Informação obtida através dos depoimentos de Cláudio Ferlauto e Luis Fernando Veríssimo.
102
Entrevista com Cláudio Ferlauto, realizada em 20/03/2002. Os trechos do depoimento de Cláudio
Ferlauto, quando citados, serão indicados pelo nome do jornalista.
- 2
abril de 1971: o Pato Macho. A expectativa foi grande, afinal, o Pato Macho estava
reunindo uma equipe de profissionais conhecidos, e prometia uma publicação inspirada
no famoso Pasquim. Expectativa e
apreensão
103
,
já que o jornal surgia em um período de
grande repressão, eram os anos de governo de Médici, anos de vigência plena do AI-5,
anos que mais tarde ficaram conhecidos como os “anos de chumbo”, em que a repressão
era mascarada pelo sucesso da política econômica, os anos em que o consumismo se
expandiu muito pelo país (entre aqueles que tinham poder aquisitivo). A equipe do
jornal tratou de expor esses temores, com muita ironia, claro:
“...a coisa mais engraçada no primeiro número de Pato Macho não estava no
jornal. Foi a expectativa – melhor dizendo o pânico – que antecedeu o lançamento
do Pato, em nossa cidade. A mãe de um de nossos redatores chegou a preparar
uma lista aflita de pessoas que de maneira alguma poderiam ser gozadas no
jornal. Um dos nossos anunciantes em potencial sustou seu anúncio, à ultima hora,
depois que um passarinho mal intencionado cochichou no seu ouvido que a
tradicional família gaúcha nunca seria mesma depois do aparecimento do Pato
Macho. Por pouco não foi dobrada a guarda no Palácio do Governo no dia do
lançamento, pois a turba, moralmente desnorteada pela licenciosidade do novo
órgão, fatalmente marcharia sobre qualquer bastilha revolução francesa, disposta
a tudo...” (Pato Macho, número 02).
Debochados, irônicos, os jornalistas criticavam essa grande expectativa e
apreensão, que acabou por divulgar o lançamento do jornal na cidade. O medo do novo,
do desconhecido, identificado como algo que é potencialmente perigoso, que está
“fora da ordem” (vigente), foi habilmente demonstrado pelo humor afiado da equipe, no
recorte acima. Depois de demonstrarem o ridículo dessa apreensão, a equipe tratou de
acalmar um pouco os ânimos:
103
No primeiro número os jornalistas anunciavam a apreensão em torno do lançamento: “Aliás, o que
mais nos animou a seguir adiante com a idéia deste jornal foi a reação de todo o mundo quando ouvia
nossos planos. Um jornal? Em Porto Alegre? Agora?Que loucura!’Quer dizer: com tanto
encorajamento, como desistir?” (Pato Macho, número 01).
- 2
“Nada disso aconteceu, como se viu. O Pato Macho não quer abafar ninguém,
muito menos solapar a moral e o regime vigentes. quer mostrar que com um
pouco de imaginação e bom humor pode-se fazer ou tentar algo de novo e
diferente na imprensa da província. A tradicional família gaúcha continua como
antes, o que não é nenhum elogio...”
Dizer que o jornal não pretendia desestabilizar, solapar a moral vigente,
demonstra a ambigüidade irônica na construção do texto, já que ao longo das edições as
críticas à moral e aos costumes eram preponderantes no jornal.
O Pato Macho obteve recorde de vendas logo nos primeiros números
104
,
esgotando nas bancas. Até o terceiro número superou as vendas dos demais jornais
semanais de Porto Alegre.
3.2 A ironia
“Você deve aprender a baixar a cabeça e dizer sempre
muito obrigado, são palavras que ainda te deixam dizer por ser homem bem
disciplinado. Deve, pois, só fazer pelo bem da nação tudo aquilo que for
ordenado, pra ganhar um fuscão no juízo final e diploma de bem
comportado...”
105
O humor do Pato Macho foi fortemente marcado pela ambigüidade que
caracteriza a ironia, na medida em que os jornalistas usavam da estratégia de dizer o
contrário do que queriam dizer, de forma provocativa, estabelecendo um vínculo com os
seus leitores, uma cumplicidade. Cumplicidade necessária para que o implícito, aquilo
que sem ser explicitado pode ser partilhado com o interlocutor, graças a determinados
elementos que permitem sua percepção (Brait, 1996: 138), na construção irônica,
104
No primeiro número vendeu 5.500 exemplares, no segundo 10.000 e no terceiro 16.000. Um jornal
semanal vencia a média de 3.000 exemplares em Porto Alegre, nesse período (Fonte Pato Macho, número
04).
105
Trecho da música, extremamente irônica, Comportamento Geral de Gonzaguinha. A música foi
lançada no ano de 1972. Através da ironia o cantor incentivava a reação contra o regime militar.
- 2
pudesse ser captado pelos leitores. Através do humor e da ironia os jornalistas
criticavam os costumes e os padrões sociais da época, e também cutucavam aqueles
para quem o convinha a publicação do jornal, como na matéria em que divulgaram o
recorde de vendas dos três primeiros números: “o que fazer: tantas ameaças veladas,
tantos telefonemas anônimos. Os primeiros números esgotaram-se”
106
. Desdenhando
das pressões a equipe do jornal comemorava o sucesso de vendas dos primeiros
números: apesar dos descontentes, o jornal estava fazendo sucesso. Mas o humor e a
ironia do Pato não se dirigiam apenas a algumas pessoas da sociedade porto-alegrense;
a equipe não perdoava o moralismo, os padrões sociais, e mesmo o autoritarismo e a
ditadura. O humor, que tem como uma de suas características uma forma aparentemente
caótica, desnuda questões sérias, o aspecto caótico, que em um primeiro momento
confunde o leitor, acaba por instigar uma reflexão mais atenta. Esse aspecto caótico
pode ser encontrado, por exemplo, numa matéria em que Carlos Nobre enumera vinte
razões para amar o Pato Macho. Nesse apanhado de razões, o humorista aproveitou para
atacar desde a política internacional até a filantropia social. Além do humor, a ironia se
mistura ao texto mobilizando diferentes vozes e instaurando uma polifonia:
“20 Razões para você amar o Pato Macho – Charles, o Nobre
9. Disseram que nossas matérias às vezes são confusas. E a política internacional,
que é muita mais velha que nós?
11. Somos incultos, cultura muitas vezes dá a maior cana;
14. Estamos convencidos que os moralistas ditam suas regras de moral hoje em
dia com as secretárias em seus colos;
16. Nosso jornal é anti-subversivo. A prova é que estamos de olho em quem não
anuncia em nossas páginas, pois, quem não anuncia, se ‘esconde’. Isso é altamente
suspeito.
17. Jamais nos negamos a apoiar uma festa de caridade promovida pelas senhoras
do soçaite. Até mesmo quando esta festa de caridade tem finalidades filantrópicas.
20. Hay gobierno acá? Pois nós somos a favor” (Pato Macho, número 09).
106
Pato Macho, número 04.
- 2
Em algumas das vinte razões expostas pelo humorista, selecionamos, no recorte
acima, algumas que demonstram o quanto o humor afiado atacava desde a política, as
perseguições aos artistas e pessoas do meio cultural (“cultura dá a maior cana”), até os
padrões morais e aqueles que representam socialmente esses valores (“os moralistas
ditam suas regras de moral... com as secretárias em seus colos”). No jogo de sentidos,
o jornal se diz anti-subversivo porque não se esconde, os subversivos, portanto, se
invertermos o sentido, são aqueles que se escondem, que agem na calada. Dentro da
característica de ambigüidade irônica, podemos inferir que o jornal é subversivo, e que
aqueles que assim o tratam, são aqueles que exercem suas pressões na surdina. O dito
popular, “hay gobierno acá, somos contra”, remete, pela própria língua em que é
proferido (escrita), aos revolucionários latino-americanos (guevaristas principalmente)
de forma pejorativa, ironicamente, o humorista inverte o dito, dizendo que são
favoráveis a qualquer governo (bem, será que existia propriamente um “governo”? ou
um comando militar?).
Brait (1996:44), situa o autor do discurso irônico como aquele que diz o
contrário do quer sugerir... insere na mensagem um sinal que, de certa forma, previne o
interlocutor de suas intenções”. Nessa perspectiva, o leitor, conhecendo o semanário, a
equipe que o produzia e o contexto em que estava inserido, tem condições para ler o
contrário do que é dito, essa capacidade de leitura, que Freud denomina esforço de
contradição seria, para este autor, o que gera o prazer na leitura do texto irônico. De
modo que, para funcionar, a ironia precisa contar com a perspicácia do leitor, que a
argumentação é indireta.
Nessa estruturação, por vezes irônica e por vezes humorística dos textos no
jornal, insere-se o jogo Simandol
107
. Segundo Cláudio Ferlauto, muitas pessoas se
107
Como jogar o Simandol: INSTRUÇÕES: a.Tome um dado destes de seis lados, numerados de 1 a 6
(Não deve ser dos de pôquer)./b. Não esqueça isso não é jogo do osso./c. Capture sete amigos ou amigas,
- 2
ofendiam, e o jogo sempre deu muitos problemas. Para jogar era preciso passar por
oitenta casas, acertando as perguntas, que consistiam, na maioria das vezes, em
identificar pessoas da sociedade, pessoas conhecidas dos leitores. Para ajudar o leitor a
acertar, o jogo vinha acompanhado de fotos antigas ou recentes (da época) das pessoas,
o que facilitava a identificação. Porém, era preciso cuidado, não se enganar ao
identificá-las, já que “muitas não podem ser as que você pensa. Aliás, algumas, naquele
tempo, não eram o que você pensava, mas deixa pra lá. Identificadas as caras,
suspire uma vez, pelos velhos tempos, diga: ‘Quem diria...’. E comece a jogar...”
108
.
Com a ressalva ficava claro o caráter pouco confiável das pessoas que estavam no jogo,
de forma que o jornal agredia tudo que estava na jogada do Simandol
109
.
3.3 A censura prévia
“nunca foi um jornal diplomático, sempre disse o que queria e por isso
morreu rápido”
110
Dos três periódicos alternativos que analiso, o Pato Macho foi o único a sofrer
censura prévia. Apesar das críticas aos costumes, e mesmo ao regime político que se
visualiza nas páginas do jornal, esses não foram os motivos para a incidência da
censura, personificada por um funcionário da Polícia Federal. A censura que atingiu o
Pato foi acionada por Aline Faraco, que era esposa do então reitor da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, conhecido como “doutor Faraco”, que, por sua vez, era o
médico-cardiologista do general-presidente Emílio Garrastazu Médici. Sentido-se
de preferência desiludidos; todos com a idéia fixa de se fixar num centro mais avançado. Enfim, todos
doidos para deixar a província./d. Jogue um de cada vez em turno de seis horas intercaladas por
intervalos de 15 minutos. (o intervalo poderá ser aproveitado para ouvir a Continental ou ir beber uísque
nacional no ButiKin)./e. Avance ou volte, conforme estiver prescrito./d. Seja criativo. Jogue sem brigas,
estamos lançando um jogo sério” (Pato Macho, número 01).
108
Pato Macho, número 02.
109
Pato Macho, número 06.
110
Cláudio Ferlauto.
- 2
ofendida pelo jornal e, utilizando-se do prestígio que gozava junto ao regime militar,
não foi difícil conseguir colocar o jornal na mira da censura prévia.
O responsável pelas referências a Aline Faraco foi o jornalista Cói Lopes de
Almeida, que havia sido censurado internamente em outros jornais quando tentava
fazer alguma referência à dita senhora, conforme escreveu em sua coluna:
“ ‘A Senhora’: Decididamente não dou sorte com dona Aline Faraco. No tempo do
programinha da Zero Horao conseguia citá-la: Lauro Schirmer encarregava-se
de cortar qualquer referência à dita Senhora. Agora, no Pato, que é meio meu, o
Luis Fernando Veríssimo curtiu uma de censor. Foi eu botar Aline no meio do
Simandol (o fogo que brinca com as pessoas) pra que o risco viesse em forma de
‘pô! Ela é amiga da gente em casa, pode dar galho...’ Até nada de novo, o
pior é que em outra referência, o Izidoro, linotipista de Zero Hora, resolveu trocar
o n por c e Aline virou Alice. Agora quero ver se não sai: ALINE. Pronto! Estou
vingado” (Pato Macho, número 02
).
A pequena “vingança” de Cói acabou por movimentar a censura prévia, de
maneira que o jornal precisava da liberação de um censor da Polícia Federal antes de ser
impresso. Segundo Luis Fernando Veríssimo e Cláudio Ferlauto, a relação entre a
equipe do semanário e o censor foi “cordial”, sendo que os cortes se restringiam às
referências a “dona” Aline Faraco. Para Cláudio Ferlauto, ...o censor olhava tudo.
Olhava, se divertia, ria e dizia assim: ‘bom, vamos tirar a dona Aline Faraco...vamos
tirar essa menção a dona Aline Faraco...’”. Essa atuação censória foi mais uma faceta
dentre as muitas facetas que assumiu a censura política do regime militar. Essa foi uma
censura pessoal, através da qual, para “proteger” uma pessoa influente da sociedade, o
regime mobilizou a censura da Polícia Federal.
Como o jornal não tinha uma sede própria o censor ia atrás dos jornalistas para
poder “fazer seu trabalho”. Para Ferlauto, o jornal era uma “mala”, no sentido de que o
material era levado de um lado para outro, que os jornalistas pegavam o material e se
reuniam em um lugar que não era fixo. Muitas vezes essas reuniões aconteciam em um
- 2
bar muito badalado na cidade naquele momento, o Encouraçado Butikin
111
, no horário
da tarde. Assim, o censor, a cada semana, tinha que procurar a equipe, localizá-los e ir
atrás para “exercer sua função”, ou seja, cortar matérias, selecionar o que poderia ou
não ser publicado. Os jornalistas não deixaram de denunciar as pressões e a censura
prévia, à moda do Pasquim dialogavam entre si através das páginas do jornal, estratégia
utilizada, por exemplo, por Luís Fernando Veríssimo, para denunciar a censura:
“De: o editor Para: os editores Assunto: se manquem
‘Pessoal: Poa é muito mais Poa do que a gente pensava. Tem gente querendo
quebrar a nossa cara coletiva. De agora em diante, as únicas pessoas criticáveis
e/ou gozáveis neste jornal são Adolf Hitler, Stalin, Nero...Alcapone (com
moderação, pode ter algum parente dele por aí). Mais ninguém. Nem o Manuel
Pedro. Depois não digam que não foram avisados!’” (Pato Macho, número 05).
A pequena nota, em forma de diálogo entre os editores, demonstrava aos leitores
as pressões que os jornalistas vinham sofrendo por zombarem com pessoas conhecidas e
influentes. Também denunciava a ação castradora da censura prévia, que permitia
brincadeiras e zombarias apenas com pessoas fora do contexto político e social do país
(talvez não tão casualmente os citados tenham sido ditadores, totalitários como Stálin e
Hitler, ou déspotas loucos como Nero, e ainda criminosos famosos como Alcapone).
Pode-se ainda inferir que a citação desses personagens famosos na história configuram
elementos insólitos ao texto, elementos estranhos, que não são habituais e, portanto,
funcionam como “um convite à perspectiva crítica e como fator de desconfiança diante
dos simulacros referenciais das linguagens” (Brait, 1996: 72).
111
A propaganda do bar e boate era constante nas páginas do jornal, sendo que o proprietário do
Encouraçado Butikin, Rui Sommer, foi inclusive, um dos personagens principais da novela (o João
Bobagem) em quadrinhos “Irmãos Bobagem”, publicada no jornal. A referida novela, a exemplo do
Simandol, tinha como personagens pessoas conhecidas da sociedade, amigos e inimigos.
- 2
No recorte abaixo, a denúncia foi mais direta, explicando aos leitores por que o
jornal não estava mais “gozando” com determinadas pessoas embora direta, a matéria
foi publicada discretamente:
Paz: ‘O jornal deixou definitivamente de gozar com certas pessoas devido a
pressões econômicas, de parte dos anunciantes, e políticas, de um etc.
Sacrificamos tudo pelo nosso ideal que é sobreviver a qualquer custo. O caminho
para o inferno é pavimentado de chivas” (Pato Macho, número 06).
A essa altura a maioria dos anunciantes já tinha retirado seus anúncios do
semanário, o que propiciou o surgimento de dificuldades financeiras, somando-se a isso,
o jornal ainda sofria com os cortes da censura prévia. Contudo, essas pressões não
calaram o Pato e nem fizeram com que os jornalistas abrandassem o tom das
publicações. Como definiu Cláudio Ferlauto, o Pato Macho nunca foi um jornal
diplomático, mesmo convivendo com as pressões econômicas e políticas, afinal,
sobreviver a qualquer custo o era, de maneira alguma, o propósito da patota”. Os
protestos contra essa situação eram constantes, como em uma matéria sobre uma
suposta retratação oferecida aos que se sentissem ofendidos, mesmo que não tivessem
sido citados no jornal:
“Retratação: Num dos números do Pato Macho o senhor...., com CPF n....., foi
citado desairosamente. Reconhecemos, uma injustiça gritante. Por isso no
joguinho Simandol, mais exatamente no n.... onde se lê.....leia-se..... e mais........É a
retratação minha gente. Mil desculpas. Se mais alguma pessoa que não foi citada
no Pato Macho, mas ouviu dizer que foi e quiser uma retratação pública, é
escrever para a rua José Bonifácio, 595, que a retratação será feita! A direção”
(Pato Macho, número 05).
Retratações desse tipo nunca ocorreram. Aqueles que porventura se sentissem
ofendidos poderiam recorrer a censura, ou se tivessem influência econômica pressionar
- 2
para que os anunciantes deixassem o Pato Macho. Era o preço a pagar, e a equipe
sempre esteve disposta a pagar esse preço.
3.4 Os meios de comunicação e a propaganda do regime na mira do Pato Macho
“...Salve a maravilha eletrônica, que já resolveu a fome crônica.
Mares de antenas de TV pelo país, tornam nosso índio mais alegre, mais
feliz. E ninguém segura esse milagre, até Frank Sinatra veio à festa! Pois
este é um país que foi pra frente, meu bem...”
112
A equipe do jornal não criticava apenas figuras da sociedade, as críticas e o
humor dirigiam-se também aos colegas da imprensa e aos meios de comunicação. O
jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, chegou a classificar o Pato de “antijornal”,
entendendo que o semanário tinha surgido disposto a brigar com todos os outros jornais
gaúchos
113
. Mas essa não era a melhor definição para o Pato Macho, o semanário não
tinha a finalidade de brigar com todos os outros jornais gaúchos, até porque esses
jornais empregavam boa parte dos jornalistas da “patota” (principalmente o Zero-Hora).
Contudo, as críticas aos jornais tradicionais e a miséria cultural da televisão brasileira
eram comuns nas páginas do Pato. Em uma pequena matéria os jornalistas criticam as
novelas, a forma como o roteiro era alterado de acordo com as pesquisas do Ibope (que
mediam, e medem o que agrada e o que não agrada ao telespectador), ao mesmo tempo
alertavam para a velha fórmula do pão e circo (no caso do Brasil, o circo representado
pelo futebol e pela televisão), para a repressão (“boca fechada pra não entrar mosca”),
e para o engodo da propaganda e da política econômica (“país do futuro e terceira bolsa
do mundo”):
112
Música Bié Bié Brazil, de Gonzaguinha, gravada em 1979, período em que o “milagre” já havia ruído.
113
Correio da Manhã, 13/04/1971, número 23.924.
- 2
“(...) Agora falta saber se a censura federal vai liberar a nova produção de
Janet Clair. O Homem que devia morrer poderá acabar virando circo. Parece que
os censores não gostam desse negócio de santo defendendo oprimido por aí. Circo
sim. Circo sempre em países de pão, circo (ou futebol) e boca fechada para
não entrar mosca... o roteiro e o argumento mudam conforme o desejo do Ibope...
E assim a gente vai vivendo neste país do futuro onde todos se divertem jogando
na terceira bolsa do mundo(...)” (Pato Macho, número 06).
Para a “patota”, o país do futuro não era aqui, não podia haver milagre na
economia, esse aparente crescimento econômico o pão - servia para, juntamente com
o circo (televisão novelas, principalmente e futebol), dissimular a enorme repressão
do governo Médici. Os números referentes ao PIB elevaram-se no inicio da década de
70, atingindo 13% em 1971, e 14% em 1973. Porém, o crescimento do PIB se fazia às
custas de uma concentração cada vez maior da renda: 5% da população tornava-se cada
vez mais rica, enquanto mais de 50% tornava-se cada vez mais pobre. O número de
pessoas que recebiam menos de um salário mínimo também aumentou no início da
década de 70, subindo de 50% para 52% entre os anos de 1970 e 1972. O investimento,
principalmente de capital externo na indústria de bens de consumo duráveis, e as
facilidades de crédito, empolgavam os setores médios, de forma que o regime alardeava
os números de crescimento econômico, escondendo os números que demonstravam a
concentração de renda e o empobrecimento da maioria da população. Para Alves (1984:
156), o ‘milagre econômico’ brasileiro não só não aliviou os sérios problemas de
pobreza e sofrimentos extremos, de privação dos mais elementares recursos na maioria
da população, como, sob muitos aspectos, agravou-os”. Portanto, a “patota” tinha toda
razão ao dizer que o país do futuro continuava a jogar na terceira bolsa do mundo”,
contando com a repressão para silenciar as críticas.
Além da repressão, do controle sobre os meios de comunicação, sabe-se que o
regime militar investiu enormemente em propaganda, criando e investindo nas
- 2
campanhas da Agência Especial de Relações Públicas
114
(no período de Médici, era a
Aerp, no de Geisel ARP). No entanto, os militares diziam não fazer propaganda política,
e não o fizeram de forma tradicional, como a realizada pelo DIP no primeiro governo
de Vargas -, por exemplo, isso porque não desejavam vinculações com as tradicionais
propagandas de regimes totalitários. O conteúdo político era traduzido de forma
alegórica, mascarado por um discurso ético-moral, e enfatizando o otimismo quanto aos
rumos do país. Os aspectos enfatizados pela propaganda otimista eram as idéias de
exuberância natural do país, da harmoniosa integração entre as diferentes raças,
acentuava-se a idéia de alegria, cordialidade e festividade do povo brasileiro. Esses
aspectos de otimismo o eram novos, a fórmula utilizada, a técnica, é que foi
inovadora, que a prioridade foi dada às produções cinematográficas para televisão e
cinema. Pela ótica da propaganda, o Brasil era “o país do futuro”, “abençoado por Deus
e bonito por natureza”.
Em fevereiro de 1971, dois meses antes da circulação do Pato Macho, a Aerp
lançou um “Plano Global de Comunicação Social”, através dele os objetivos do regime
militar com a propaganda foram traçados, falava-se em ‘mobilizar a juventude’, em
‘fortalecer o caráter nacional’, em estimular o ‘amor a pátria’, a ‘coesão familiar’, a
‘dedicação ao trabalho’, a ‘confiança no governo’ e a ‘vontade de participação’”
(Fico, 1997:94). Os criadores da agência de propaganda, para Fico (1997), sabiam da
impossibilidade de fazer uma propaganda política mais direta, portanto, optaram por
temas decorosos’ sobre a família, o ‘caráter nacional’ etc. O número de campanhas
publicitárias e os filmes feitos pelo regime foi muito grande, sendo que alguns
personagens ficaram famosos, como o personagem Sujismundo, criado para uma
114
Para Fico (1997) o próprio nome “relações públicas” e o propaganda era um eufemismo típico dos
militares brasileiros, tentando disfarçar a propaganda política e a criação de uma agência específica para
isso, principalmente se levarmos em consideração que ambas Aerp e ARP foram criadas em vésperas
de período eleitorais.
- 2
campanha sobre limpeza. Mas essa propaganda “otimista” do regime foi alvo do humor
crítico de muitas pessoas e de muitos órgãos da imprensa, como fez o Pato:
“A propaganda em torno do civismo chega ao cúmulo de provocar a surpresa de
quem chega ao Brasil: ‘Pô, pra que tanta propaganda, estão querendo vender o
país?’ Mas como não existe ninguém que queira, ou possa segurá-lo,
permanecemos sem dono, mas a propaganda continua” (Pato Macho, número 08).
A ironia e o deboche, a partir de slogans que ficaram famosos na propaganda do
regime, se tornaram conhecidos como forma de crítica a esse investimento publicitário.
Nesse período, os jornais alternativos tornaram célebres os complementos aos slogans
das propagandas, como o ‘Brasil: ame-o ou deixe-o’, acrescentando: ‘o último a sair
apague a luz’ ou ‘feche a porta’.
Na estratégia de controle dos meios de comunicação, os militares foram
extremamente cuidadosos. O controle se deu, de um lado, através da censura. De outro
lado, o regime militar tratou de expandir a comunicação televisiva
115
, sob seu controle,
através da dependência direta da renovação e da concessão de canais. Nesse período, o
sistema de comunicação eletrônica se expandiu muito, sendo que o critério fundamental
para essa expansão foi o de privilegiar grupos nacionais e regionais alinhados com o
partido político que lhe dava sustentação - com a Arena, portanto, e no período da
chamada “Nova República”, com o PDS.
Essa vinculação do regime com os meios de comunicação foi alvo da crítica do
jornal, bem como o crescente poderio da Rede Globo, criada com o incentivo do regime
militar e do grupo norte-americano Time-Life:
115
A televisão começou a funcionar no Brasil em 1950, com a Tupi-Difusora, deo Paulo. Em 1951, já
existiam a TV Tupi, do Rio de Janeiro, a TV Record, de São Paulo, e a Rádio de Televisão Paulista. A
Rede Globo surgiu em 1965, tornando-se hegemônica rapidamente.
- 2
“Guerra a Globo:
O controle dos meios de comunicação do país é um assunto que tem preocupado
bastante os governantes brasileiros nos últimos tempos. Muita coisa mudou desde
que os militares se instalaram no poder em 1964(...) Uma corrente nacionalista
parece tomar conta de tudo e de todos(...) entre as medidas adotadas rumo a uma
política Ligações da Rede Globo com o grupo Time-Life. Os maninhos cederam o
nome em troca de alguns favorezinhos(...) aproximadamente 63 milhões de
telespectadores consomem a imagem(...) emissoras próprias e associadas(...)
praticamente não concorrência(...) Graças a gentileza do senhor Bob Field, a
imagem que os norte-americanos pagam entra tranqüilamente em nossas casas...”
(Pato Macho, número 08).
Vale lembrar que a Rede Globo cresceu conjuntamente com a propaganda do
regime, para Habert (1996:24), talvez não tenha sido mera coincidência o fato de a
primeira edição do Jornal Nacional, ter ido ao ar no dia da posse da Junta Militar (31
de agosto de 1969), a mesma que encaminhou a escolha do general Médici”.
Os meios de comunicação regionais também foram alvo das análises e críticas
da equipe do Pato (pelo menos aqueles em que a patota não estava ligada diretamente,
através de vínculos de emprego), como foi o caso da crítica à empresa de comunicação
Diários Associados
116
- proprietária da Rádio Farroupilha, da TV Piratini, e do jornal
Diário de Notícias -, no episódio de demissão de um radialista da Rádio Farroupilha.
José Antonio Pinheiro Machado, que assinou a matéria, criticava a hipocrisia desses
meios de comunicação, valorizando o posicionamento do radialista Lauro Hagemann:
“Lauro Hagemann voltou pouco para a Farroupilha com uma grande
badalação da TV Piratini e do Diário de Noticias que deram fotos dele na base da
‘voz inconfundível de Lauro Hagemann de volta a PRH-2’. Ora, irmãos, vamos
deixar de ser carinhas de pau. O Lauro foi expulso – é bem o termo – da
Farroupilha, uns dois ou três anos, deu uma prova de consciência profissional
rara nessas épocas. Seguinte: a Farroupilha para variar atrasara os pagamentos e
o Lauro parou de trabalhar, dizendo que só voltava para o microfone se pagassem
o salário dele. Os outros colegas de salários atrasados já estavam quase aderindo,
quando os Cartolas Associados se manifestaram com a grana. O Lauro, ‘mau
exemplo’, foi na horinha pra rua. que ele tinha 17 anos de casa e uma folha de
serviços muito boa. O caso foi para a Justiça que, apesar de todas as pressões
Associadas, decidiu pela sua reintegração com todos os salários do período em
que esteve fora. Quer dizer, a voz inconfundível de Lauro Hagemann está na PRH-
2 novamente, muito contra a vontade da PRH-2, que preferia ver o bicho bem
116
Que na época já amargava uma crise, perdendo espaço para a Rede Brasil Sul de Comunicações (RBS)
e para a Caldas Júnior.
- 2
longe: ele, além de grande sujeito, é um profissional consciente e os DA não
estimam muito tipos assim decentes” (Pato Macho, número 14).
Apesar das críticas aos meios de comunicação, aos jornais gaúchos, alguns
cuidados a equipe tomava. Conforme afirmei anteriormente, as críticas à Zero-Hora,
que na década de oitenta se tornou o grande jornal gaúcho, e à RBS, a mais poderosa
rede de comunicação do sul, eram limitadas. Mas esse posicionamento da patota”, de
limitar as críticas à ZH foi criticado pelos próprios jornalistas, numa espécie de
autocrítica bem humorada, utilizando-se da estratégia de dialogar entre si, mandar
recadinhos uns para os outros pelas páginas do jornal (semelhante ao que acontecia no
Pasquim). Jefferson Barros atacou os companheiros da “patota” que haviam criticado o
jornal Diário de Noticias, mas não criticavam a Caldas Junior nem a Zero-Hora:
Foi uma atitude fascista deste Jornal abrir suas poderosas baterias contra o
Diário de Notícias. Eu, que sempre estive ao lado dos oprimidos, protesto. O
Diário é o único jornal que vende menos do que o PATO em Porto Alegre. Por que
o repentino silêncio diante da CJCJ? E o silêncio eterno sobre a ZH? (Pato
Macho, número 15).
.
A autocrítica existia, como percebemos na matéria acima, contudo, a “patota”
sabia que brigar com toda a imprensa gaúcha significava ficar sem espaço de trabalho
no Rio Grande do Sul.
3.5 As “dicas” da “patota”
“Olhar em torno de si é viver livre. O cinema, que
reproduz a vida, deve, então, filmar as personagens que olham em torno de
si”
117
117
Citação de Godard, reproduzida no jornal (número 06).
- 2
As “dicas” de cinema, bares, lojas, restaurantes, entre outras, faziam parte das
páginas do Pato, em parte eram um roteiro da “província”, e em parte, nessas páginas, a
equipe aproveitava para tecer suas críticas à repressão e à falta de liberdade, tendo como
instrumento, principalmente, as dicas” de cinema. Nessas “dicas” de cinema,
geralmente escritas pelo crítico José Onofre, a migração de sentidos era constante, um
filme de outra época, de outro contexto, criava sentidos na situação de violência interna
do Brasil. Seleciono um recorte em que a dica” é de um filme italiano, no qual o
policial do DOPS é um assassino:
“Recomenda o filme: ‘Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita’
um policial italiano comete um crime (assassina uma mulher) exatamente no dia
em que é promovido para a delegacia de ordem política e social (DOPS)...” (Pato
Macho, número 13).
A pequena “dica” do filme, que questiona no próprio título quem é que pode
estar “acima de qualquer suspeita”, questiona também o caráter, a integridade e o
preparo dos policiais que compõem a polícia política. Demonstra também a violência do
DOPS, conhecida na época e que era tida como positiva para aqueles que faziam parte
desse órgão. Desde que o Departamento de Ordem Política e Social foi criado, em 1924,
encarregou-se de vigiar, controlar e reprimir as ações e até idéias contrárias à ordem,
contrárias à “segurança nacional”. Extremamente ativo durante o Estado Novo e o
Regime Militar, os integrantes do DOPS utilizaram amplamente a tortura, o
confinamento e, mesmo, a execução sumária, disfarçada como atropelamento, suicídio,
ou simplesmente desaparecimento. Para Araújo (2001:25), as práticas do DOPS
inseriram-se em uma tradição inquisitorial”, onde buscava-se o crime através do
(suposto) criminoso... construindo estereótipos... eram suspeitos de antemão, por
portarem certas características: tipo de fala, de idéias, de trajes, de trabalho, de
relações de amizade, de leituras”. Essas práticas caracterizavam os membros da polícia
- 2
política como criminosos e assassinos, à semelhança do policial italiano da dica de filme
do Pato Macho.
Em outra longa matéria sobre o cinema de Luis Buñuel, a equipe (matéria
assinada como “A gente) aproveita para criticar diretamente as perseguições, as
posturas fascistas e a censura que, a essa altura, já atingia o jornal diretamente:
“O pessoal de cinema do Pato Macho não ama o cinema de Luis Buñuel, e não o
considera o guru. Mas estima e respeita nele o artista, o intelectual, o homem
comum que sempre lutou contra o que de pior havia no mundo... o fascismo, as
perseguições e as censuras passarão. A luta dele fica” (Pato Macho, número 06).
Luis Buñuel foi um cineasta espanhol, nacionalizado mexicano, que abandonou
a Espanha perseguido pelo fascismo de Franco. Para o cineasta, a liberdade não passava
de um fantasma que vaga pelo mundo como um manto de neblina, e o máximo que se
poderia reter dessa neblina seria um rastro de umidade.
Na ironia da equipe, o jornal oferecia um “Serviço Geral da Província” onde, em
letras maiúsculas, em destaque, anunciava que todos deveriam saber de tudo. Mas que
tudo é esse, o que estaria acontecendo que as pessoas o sabiam? No jogo ambíguo da
linguagem, a patota diz que a partir de então, quem não soubesse das coisas seria “por
livre e espontânea...” e a frase termina com reticências. Reticências carregadas de
sentido (livre e espontânea... pressão):
“Serviço Geral da Província: O PATO MACHO QUER QUE TODOS SAIBAM DE
TUDO (comida, música, cinema, teatro...) queremos que vocês possam gritar aos
quatro ventos que estão por dentro, ou que, não sabem das coisas por livre e
espontânea...” (Pato Macho, número 06).
As “dicas” da “patota” vinham em forma de “Serviço Geral da Província” ou de
“Páginas de Serviço”, e nem sempre simplesmente como dicas”. A equipe ressaltava
que nas “dicas” de restaurante, comida, lojas, entre outras, não eram aceitas matérias
- 2
pagas, portanto, que o jornal não recebia esse tipo de anúncios. Aqui, percebemos uma
contradição, já que entre as “dicas”, estavam indicações de patrocinadores do jornal, de
anunciantes, como por exemplo, do bar Encouraçado Butikin e da Rádio Continental.
Portanto, a indicação de que não eram matérias pagas deixa dúvidas.
3.6 Proximidades com o Pasquim
A inspiração pasquiniana da equipe do Pato Macho foi bastante marcante, mas
não de forma a perder a originalidade do humor da “patota”, voltado para os
acontecimentos e pessoas da província. As “dicas”, por exemplo, de que tratamos
anteriormente, foram uma invenção do Pasquim, dicas que no jornal começaram como
dicas de restaurantes e shows, depois passaram a ser usadas como notinhas curtas de
qualquer fato de atualidade, como crítica ou informação” (Braga, 1991:31). Essas
“dicas”, no Pasquim, chegaram a ocupar o espaço de quatro páginas no jornal, e, além
de curtas, tornaram-se ágeis e diretas, tendo, juntamente com as entrevistas, uma
importância muito grande na totalidade das matérias. Inspiração pasquiniana nas “dicas”
do Pato, mas com conteúdo e forma diferente. Vejamos um exemplo de como as
“dicas” no Pasquim funcionavam como pequenas notas, comentários e notícias:
“Perigo: Para o Palácio do Planalto, Dom Evaristo Arns é o aiatolá brasileiro.
Um sujeito perigosíssimo, a ser constantemente vigiado. Não poderia haver melhor
elogio para esse bispo que tem a incomoda mania de ficar a favor dos oprimidos”
(Pasquim, número 571).
As dicas” no Pasquim não se referiam, propriamente, à culinária, restaurantes,
música ou arte. Eram “dicas” da situação política, social, econômica do Brasil, escritas
de forma direta. As “dicas” do Pato também, em alguns momentos, tratavam do
contexto político, econômico e social brasileiro, mas isto, de maneira indireta, como na
- 2
“dica” sobre cinema que analisamos anteriormente.
Uma outra semelhança, que pode ter advindo de uma inspiração pasquiniana, era
o personagem símbolo do Pato Macho. O Pasquim tinha como símbolo um rato, o
Sigmund (depois chamado apenas de Sig), o rato que rugia era criação de Jaguar. No
mesmo estilo o Pato Macho tinha como símbolo (logotipo) ou personagem, um pato,
desenhado por Luis Fernando Veríssimo, que, para brincar com a questão do gaúcho
macho”, desenhou um “pato macho”.
Como registramos anteriormente, o Pato não tinha uma sede, era feito no Bar
Encouraçado Butikin, durante as tardes, “o Butikin era a sede oficial... as principais
reuniões eram feitas no Butikin, a tarde... o lugar tinha a ver com o Pato Macho, tinha
a ver em vista de ocupação e de aproximação intelectual também... era o lugar mais
avançado de Porto Alegre”
118
. Essa característica de jornal feito na mesa de bar
também é conhecida no Pasquim, pelo menos com os primeiros números foi assim,
sendo que, inclusive a idéia do jornal surgiu em meio ao “charme” dos bares de
Ipanema, no Rio de Janeiro.
Poderia indicar ainda muitas outras proximidades entre os dois jornais como o
diálogo entre os jornalistas, a crítica aos costumes, a inspiração regional de ambos,
apesar da notoriedade nacional conquistada pelo Pasquim, entre outras porém, essas
proximidades demonstram somente, ao meu ver, a inspiração pasquiniana, muito
importante na fundação do Pato, uma inspiração que ajudou a criar um jornal original, e
não uma imitação do Pasquim.
3.7 Desabafos
118
Cláudio Ferlauto.
- 2
Nas páginas do Pato encontramos muitos desabafos dos jornalistas, desabafos
que vinham em forma de opinião, ou que surgiam na leitura do jornal sem aviso-prévio,
sem título que indicasse do que a matéria tratava. Nesses momentos podemos perceber o
jornalista escrevendo sobre as pressões enfrentadas e sobre a decepção com o tipo de
receptividade que estava tendo o jornal – que era atribuído, em parte, ao provincianismo
dos porto-alegrenses, à forma como as novidades incomodavam aqueles que se
apegavam ao passado e aos seus mitos. No primeiro recorte que selecionei, quem
escreve (Cláudio Ferlauto) se questiona se vale à pena continuar com um projeto que
estava bem a frente do que a “província” podia suportar:
“Valerá? A pena, da pena. A cidade é uma província, ampla e notória. E nisto ela
é dura (forte, falsa/gentil, misteriosa/mentirosa). O jornal é um parto a mais, um
resmungo de desaprovação, um dedo-duro que mexe nos anúncios e nos
luminosos. O que fazer se a cidade é isso que aparece de manhã entre có-có-có-có-
cós, gelatinas e despertadores mecânicos. Que culpa tenho eu: 1. Que a
organização urbana seja um troço obsoleto; 2. Que o viaduto novo não funciona;
3. Que o consumo em Porto Alegre seja mínimo, reacionário e retraído?(...) O
Pato Macho existe. E ninguém aqui está satisfeito com ele... Mas não estamos
mortos. O jornal é design. Vocês chegaram a perceber isto? Se dão conta de que
um jornal é feito para vender? Que vocês estão comprando isto que chamam de
‘porcaria’ com o maior prazer e dentro da dialética básica do consumo? E que
enquanto ele estiver desagradando é sinal que ele está lhes dando informação
nova? Vocês não sabem nada minha gente. Saco.(...) acordar, minha gente,
acordar... A elite pra-frente/pra-Europa/pró-Nepal não está entendendo nada, por
que nunca fizeram nada nesta cidade e o Pato agride esta paralisia... (...) Mas eu
acho mesmo é que tem muita gente morta nesta cidade. Saco. (Pato Macho,
número 06).
O exemplar de número seis do Pato, onde foi publicada a matéria acima,
estava sob censura prévia, as reclamações quanto ao humor da “patota”, quanto às
citações de pessoas conhecidas da sociedade, principalmente, no jogo do Simandol, já
faziam parte do cotidiano da equipe que publicava o semanário. A inquietação que o
jornal causava era sentida, o descontentamento existia porque o jornal criticava os
costumes, a moral, questionava os padrões sociais pré-estabelecidos. A maioria dos
- 2
jornalistas estava imbuída dos ideais libertários do movimento de contracultura do
período, que mais do que contestar a ordem vigente, representou um certo tipo de
mudança de sensibilidade
119
. Nesse sentido, o jornal era recebido com um resmungo de
desaprovação, como um dedo-duro que abalava a ordem estabelecida, um elemento
novo para uma sociedade adormecida, paralisada.
Outra forma de desabafo utilizada pelos jornalistas eram os comentários sobre a
situação de outro país. Comentários sobre países que se assemelhavam ao Brasil em
termos de autoritarismo, de violação de direitos e repressão, ou então, de países em que
existia a liberdade que faltava aqui. Chamo essa forma de desabafo, porque não eram
apenas notícias de outros países criando sentido na situação do Brasil, a forma, o tom da
construção narrativa das matérias eram de desabafo, de mágoa de quem estava cansado,
sofrendo com esta falta de liberdade, de opção, como na seguinte matéria sobre o
Uruguai:
“Uma mostra do liberalismo do governo uruguaio (não censura no país
vizinho)... Esse amadurecimento é que nos causa inveja. Esta liberdade total para
escolher filmes, livros, discos, peças de teatro e revistas. Algo que nos é negado,
como se fossemos eternos adolescentes imaturos, incapazes de um discernimento
político e sexual. Por estas e outras que o Uruguai, apesar de seus problemas
econômicos, continua sendo um paraíso para os liberais, uma ilha dentro de um
continente.Uma ilha onde se respira um ar livre da poluição das proibições”(Pato
Macho, número 07).
A matéria é um desabafo de quem estava vivendo os anos mais duros do regime
militar, de quem não agüentava mais o cerceamento da liberdade, os cortes da censura,
as proibições, de quem sonhava com o retorno das liberdades liberais, que, na matéria,
119
Cláudio Ferlauto, em seu depoimento, definiu o momento vivido pela equipe do Pato Macho e o
próprio jornal como um momento que representou um certo tipo de mudança de sensibilidade... os anos
sessenta e os anos setenta não são os anos da insensatez, os anos da radicalidade, só, os anos da
repressão, os anos da criatividade... os anos sessenta na realidade são uma mudança de sensibilidade,
uma revolução da sensibilidade eo uma revolução política, nenhum jovem, e nem o Pato Macho e nem
Paris em 68 e nem o capitalismo, e nem os hippies queriam tomar o poder, eles queriam apenas mudar o
mundo, mudar a sensibilidade”.
- 2
eram representadas através do Uruguai. Este país era visto pelo autor como “um paraíso
para os liberais...onde se respira um ar livre da poluição das proibições”. Nesse
período, o Uruguai não tinha sofrido o golpe militar que ocorreu dois anos depois, em
julho de 1973, portanto, o país vizinho era considerado como um exemplo, onde as
liberdades democráticas eram respeitadas, dentro de um regime constitucional.
Mas o desabafo dos jornalistas também vinha em forma de conselho, de
incentivo para que os leitores mudassem sua forma de pensar, de ver e de encarar o
mundo. Nesse sentido, o jornal tinha aspectos profundamente libertários: quando
afirmava que era preciso romper com o estabelecido, encarar novas formas de pensar,
romper com a mesmice, com o marasmo, com os valores sociais, revolucionar a forma
de olhar o mundo:
“E vocês tem mesmo que fugir do subterrâneo...sentirem a necessidade do que está
faltando pois só assim vocês vão ver como vocês nascem mortos.
Vocês nunca mudaram nada.
Precisam arejar, sintonizar, abrir algumas portinhas da cuca que devem estar
enferrujadas, pois senão vocês continuarão parados apesar do progresso,
continuarão mortos como estão a bastante tempo.
Vocês precisam saber de amor – limites- humanismo.
Esqueçam o estabelecido, dêem um pontapé nas raízes, partam para outra.
Putzgrila, vocês não irão me entender!”(Pato Macho, número 15).
As pessoas entenderam, mas não concordaram. Aqueles que aprovaram não
foram numericamente suficientes para o Pato sobreviver da venda nas bancas. A
sensibilidade, a mudança de olhar pregada pelos jornalistas não vingou naquele
momento entre os leitores do jornal. Uma mudança de olhar que era revolucionária
porque desejava mudar modos de pensar e de ver o mundo. Mudança sem violência
física, mudança que, como a mudança política deveria ocorrer primeiro internamente e
não vir de fora. Dissemos como a mudança política porque a transformação que o jornal
defendia, excluía a resistência armada, naquele momento representada pela guerrilha:
- 2
“(...) Toda a ação política pode acontecer dentro do sistema, mesmo que seja
contra o sistema, mas nunca fora dele. É por isso que a guerrilha morreu. Como
um personagem de Godard. Isto é, um marginal” (Pato Macho, número 04).
A crítica libertária da equipe era contra a luta armada, provavelmente, no ano de
1971 os jornalistas não imaginassem que os regimes autoritários e as ditaduras
continuariam a se expandir pelo sul da América. No ano de 1976, eram oito os
países
120
sul-americanos em que golpes militares tinham instalado governos autoritários
e ditatoriais, cada país com seu general na presidência. O caminho da mudança interna,
da transformação radical, através da mudança de conceitos e valores, que pregavam
muitos movimentos do período, e que pregava a equipe do Pato, infelizmente não
aconteceu. Os movimentos libertários da década de sessenta e setenta entraram para a
(H)história como uma utopia que empolgou, principalmente, os jovens da época.
3.8 O fim do Pato
...um jornal que sempre disse o que queria e por isso morreu
rápido...
121
Para Cláudio Ferlauto, o Pato Macho não foi um veículo de comunicação de
uma imprensa alternativa que buscava espaço fora da grande imprensa, voltando seu
olhar para o início da década de setenta, o editor vê no jornal
“um momento de reflexão, um momento que traduziu mudanças... outros
momentos, um momento mais ideológico, o Coojornal... um momento onde se
tenta isso dentro da grande imprensa, que é a Folha da Manhã... e o Pato Macho é
o momento mais free, mais anarquista, assim, mais desbundado, maluco, um monte
de maluco, um monte de cabeludo... era uma tomada de posição, uma reversão das
expectativas de linearidade que não existiam mais, passam a não existir a partir
120
São eles: Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia, Peru, Brasil, Paraguai e Equador.
121
Definição de Cláudio Ferlauto sobre o Pato Macho.
- 2
dos anos sessenta...”
Esse jornal “desbundado”, ousado e irônico, não conseguiu cativar muitos
leitores, conforme afirmo anteriormente, as pessoas que correram às bancas para
comprar os primeiros números, logo se desinteressaram. Mas, se os leitores se
desinteressaram, cada vez mais jornalistas e intelectuais procuravam a equipe para
participar, todos sem remuneração. Em determinado momento entraram novos
colaboradores, entre eles, Rogério Mendelski, Roberto Manera e José Antonio Pinheiro
Machado, que se tornou editor do jornal. Esses novos colaboradores trouxeram para o
Pato Macho uma forma de jornalismo investigativo, denunciando escândalos como, por
exemplo, o da Universidade de Caxias do Sul
122
(UCS) e, também, o envolvimento de
pessoas conhecidas na “venda” de uma coleção de armas
123
as duas grandes matérias
dessa nova fase, dando ânimo novo para a equipe.
Contudo, mesmo com mais profissionais aderindo ao projeto, faltavam anúncios,
faltava dinheiro, e o jornal não estava vendendo bem. Para Cláudio Ferlauto, esses
foram os motivos do fim do jornal, porque não vendia, não tinha publicidade... e a
gente foi cansando... e chega um momento que não tem como continuar”. Luis
Fernando Veríssimo tem a mesma opinião, para ele muita gente que sentia a
necessidade de haver uma imprensa alternativa na cidade, mesmo dentro de todas as
limitações, se empenhou para salvar a idéia. Mas, sem circulação e sem publicidade, o
Pato morreu jovem, depois de 15 números”. Apesar dos muitos e talentosos
colaboradores, e da vontade de continuar, a patota” não resistiu e o jornal alternativo
122
Essa matéria foi feita por Rogério Vaz Mendelski, denunciando publicamente um desvio de verbas
38 mil dólares - na UCS, destinadas pela Ford Foudation para a Faculdade de Educação da referida
universidade. A matéria teve chamada de capa: “A Grande Picaretagem Universitária, um Opala 0 km e
salários atrasados. As verbas da FORD, onde estão? 38 mil dólares evaporaram” (Pato Macho, número
13).
123
A matéria intitulada “As armas do Sr.Zatti”, publicada no número 13 com direito a resposta no
número 14 -, tratava de “negociações” sobre a venda de uma coleção de armas, pertencente a um militar
aposentado que negociava com a prefeitura a referida coleção.
- 2
de humor irônico e original deixou de circular após o décimo quinto número. Mesmo
tendo circulado por apenas quinze números, a forma debochada e libertária que teve o
jornal, a capacidade de rir e criticar uma sociedade da qual a “patota” também fazia
parte, fez do Pato Macho um jornal original, que inaugurou um novo estilo de
jornalismo alternativo na capital gaúcha, um estilo próprio, apesar da inspiração
pasquiniana.
- 2
4. “...CHORAM MARIAS E CLARICES NO SOLO DO BRASIL...”
: COOJORNAL,
O SONHO DE FAZER UM “JORNAL DE JORNALISTAS”
O sonho de fazer um “jornal de jornalistas”, que publicasse o que a grande
imprensa não publicava, que discutisse a situação política, e que valorizasse os
profissionais do meio jornalístico através de melhoria na remuneração e de maior
liberdade nas publicações, foram fatores que motivaram um grupo de jornalistas
gaúchos a fundar o Coojornal. Publicado na capital gaúcha, o Coojornal foi um
mensário alternativo que conquistou notoriedade nacional e atraiu para si a repressão do
regime militar, em pleno inicio da década de oitenta, os anos ditos de “abertura
democrática”, nos quais oficialmente não havia mais censura prévia à imprensa.
A circulação do Coojornal esteve vinculada à criação da Cooperativa dos
Jornalistas de Porto Alegre Ltda. (Coojornal), fundada em agosto de 1974. Foi a
primeira Cooperativa de jornalistas do país, e devido ao seu sucesso, posteriormente, a
idéia estendeu-se a outros estados. Experiência inovadora de uma cooperativa que tinha
a informação como produto primordial. Os trabalhos da Coojornal tiveram início com
pouco mais de sessenta jornalistas. Era uma cooperativa que prestava serviços a
terceiros, tais como a publicação de jornais, livros, oferecia serviços fotográficos, audio-
visuais, entre outros. O sucesso da Cooperativa gaúcha incentivou a publicação de um
boletim, o Coojornal, que começou a circular em 1975, e em 1976 transformou-se em
jornal. Um jornal publicado mensalmente, alternativo, ousado, político, com circulação
Trecho da música O bêbado e o equilibrista” de Aldir Blanc e João Bosco, que no ano da Lei da
Anistia tornou-se uma das canções mais escutadas nos protestos e manifestações. Metáfora do momento
político, no trecho que cito, Marias e Clarices representam a resistência ao regime. Maria mãe de Henfil
(que estava na lista negra do regime) e Herbert de Sousa (o Betinho, que estava exilado na China
comunista), e Clarisse, viúva de Vladimir Herzog, que na época lutava na justiça para responsabilizar a
União pela morte de seu marido.
- 2
nacional, que sobreviveu até 1983, quando, por um conjunto de razões, as quais serão
abordadas no decorrer deste capítulo, deixou de circular.
Nas páginas do Coojornal encontramos denúncias sistemáticas e abertas de
censura à imprensa, críticas aos equívocos da equipe econômica, aos efeitos
devastadores do “milagre econômico”, defesa da anistia, de eleições diretas, publicações
de documentos inéditos sobre a Guerrilha do Araguaia, e de listas de cassados durante
os anos de vigência do regime militar. Também encontramos um humor político,
implacável, feroz, e, muitas vezes, amargo. As críticas sistemáticas a alguns órgãos da
grande imprensa, tão coniventes com a situação política vivenciada no país naquele
momento, como o Sistema Globo de Telecomunicações e sua “afiliada”, a RBS,
também faziam parte dos assuntos mais veiculados no periódico.
4.1 A fundação da Coojornal
“(...) uma cooperativa para prestação de serviços...uma forma de aumentar
o mercado de trabalho, garantir mais emprego para os jornalistas (...)
124
Problemas como o restrito mercado de trabalho, as limitações das grandes
empresas jornalísticas e o desejo dos jornalistas de fazerem seu próprio jornal, levaram
os sessenta e seis jornalistas a se reunirem na Associação Riograndense de Imprensa, no
dia 23 de agosto de 1974
125
e fundarem a Coojornal. Esses jornalistas, bem como os que
continuaram a aderir à Cooperativa, adquiriram quotas-partes pagáveis mensalmente.
Ficou decidido que, em um primeiro momento a Coojornal iria formar uma equipe de
profissionais capacitados para atuar em todas as áreas do jornalismo desde trabalhos
124
Trecho da entrevista com Danilo Ucha, realizada em 26/09/2001.
125
A informação sobre a data de fundação e o número de jornalistas presentes que utilizo foi retirada de
uma matéria do Coojornal (número 01) sobre a fundação da Cooperativa. Na publicação de Danilo Ucha
(A História do Coojornal) a data citada de fundação corresponde ao dia 24 de agosto e o número de
jornalistas a sessenta e sete. Optei por manter as informações retiradas da matéria do jornal, pois o
acessei a ata de fundação da Cooperativa.
- 2
avulsos de texto, fotografia e planejamento gráfico e editorial até a execução de jornais
e revistas para empresas, entidades de classe, etc”
126
–, prestando serviços a terceiros.
Apenas com o êxito desses primeiros objetivos, os jornalistas realizariam seu sonho de
lançar o “jornal de jornalistas”.
Segundo Ucha (1985:51), um empréstimo junto ao Banco do Estado do Rio
Grande do Sul possibilitou a instalação da Coojornal
127
. A oportunidade de crescimento
da Cooperativa veio com a compra de uma empresa de prestação de serviços chamada
Verbo, que era responsável, entre outras publicações, pelo Jornal do Inter. A partir de
então a Coojornal cresceu significativamente, consolidando-se durante o ano de 1975.
Para Ucha (1985:51),
“Nesta época começam os melhores momentos da Coojornal. Se 1975 foi o ano da
consolidação, 1976, 1977 e 1978 serão os anos de crescimento e glória. A
Coojornal solidifica-se como empresa prestadora de serviços faz jornais para
terceiros, cartazes e livros, prepara audiovisuais, funciona como agência de
notícias e de fotografias para grandes jornais diários e revistas semanais do
centro do país...”
Com o êxito da Cooperativa, os jornalistas podiam pensar em publicar seu
próprio jornal. Dessa maneira, em novembro de 1975, foi publicado o primeiro número
do Boletim Coojornal. A Coojornal contava então, com aproximadamente duzentos
associados.
No ano de lançamento do Coojornal, o “general-presidente” do país era Ernesto
Geisel, que assumiu o “comando” prometendo uma abertura lenta, gradual e segura”,
controlada pelo regime. Porém, às promessas de abertura, somaram-se os assassinatos
de jornalistas, a permanência da censura prévia a alguns órgãos de comunicação, e, nos
126
Coojornal, número 01.
127
Esse empréstimo teria sido possível graças ao prestígio de alguns sócios junto a políticos da extinta
Arena, então no Governo do Estado, a quem pertence o Banco” (Ucha 1985:51).
- 2
anos que se seguiram, bombas e atentados aos jornais e às bancas que vendiam
periódicos da imprensa alternativa. Foi nesse período também que os sinais de falência
do modelo econômico do governo anterior se manifestaram, pondo fim à onda de
otimismo do governo de Médici. Nos bastidores do regime, os anos de governo de
Geisel foram marcados, também, pelo embate entre os militares da chamada “linha-
dura”, contrários à abertura, e aqueles favoráveis ao processo de liberalização.
O projeto de liberalização do regime militar, nesse período, não coincidia com a
democratização, almejada por alguns setores de oposição, que esta última implicava,
necessariamente, numa “transferência real de poder” (Soares et all, 1995). A política
de liberalização de Geisel o ia tão além de garantias típicas de um Estado liberal. A
transferência de poder não constava, portanto, no projeto de liberalização do grupo
militar. A intenção era garantir, a longo prazo e, em um nível individual, direitos
baseados em aspirações liberais como “o hábeas-corpus, a inviolabilidade residencial e
da correspondência (...) as liberdades de imprensa, de expressão, de petição, de
associação e assim por diante” (Soares et all, 1995:13). Direitos que garantiriam a
proteção de indivíduos e grupos contra o arbítrio do Estado ou de outros grupos”
(Soares et all, 1995: 13). Para um país que estava sob a égide da repressão, do AI-5, das
arbitrariedades, a proposta liberalizante poderia ser considerada como um aceno para
uma futura “democratização”, um aceno longo, diríamos, já que a “abertura” durou mais
de dez anos. Abertura esta que culminou com o retorno do poder aos civis através de
eleições indiretas, realizadas nos termos de uma transição não-traumática que garantiu a
impunidade ao regime. Impunidade amparada em um discurso que encobriu as mazelas
dos longos anos de governo militar, discurso que encobriu a repressão, a tortura e os
assassinatos cometidos em nome da “segurança nacional”.
- 2
Defendendo o retorno as “liberdades democráticas”, ao nosso ver, “liberdades
liberais”, começou a ser publicado na capital gaúcha o Coojornal. Para Kucinski (1991),
um marco importante no êxito do Coojornal foi o fracasso do jornal Folha da Manhã,
publicado na capital gaúcha e de propriedade da empresa Caldas Júnior
128
. O jornal
Folha da Manhã é tido como um marco no jornalismo gaúcho, sendo que entre os anos
de 1972 a 1975 inaugurou uma nova forma de fazer jornalismo, buscando inspiração em
revistas como Realidade, Veja, e jornais alternativos como Opinião e Pasquim.
Contudo, surgiram as pressões e o jornal começou a recuar, até que, com a demissão de
sete jornalistas, mais quatorze pediram demissão
129
. A maior parte desses jornalistas foi
para a Coojornal. Esse fato deu grande vigor ao projeto alternativo, não apenas pela
entrada de novos quadros, mas também porque o episódio confirmou as suspeitas de
que havia um limite preciso à prática de um jornalismo independente na grande
imprensa” (Kucinski, 1991:209). Kucinski defende a idéia de que houve relações
estreitas entre fechamentos de espaço na grande imprensa e a fundação de jornais
alternativos, tese que é aplicada ao surgimento do Coojornal. Embora considerando
importante o episódio das demissões na Folha da Manhã, não direi aqui que esse foi o
motivo da fundação do Coojornal. Ora, a Cooperativa tinha sido fundada um ano antes,
sendo que a criação de um “jornal de jornalistas” constava no plano de seus
fundadores, e um dos principais objetivos da Cooperativa era juntar capital para o
financiamento do jornal. O fechamento da Folha da Manhã contribuiu com ânimo novo
e mais colaboradores, mas não foi o fator responsável pela criação do Coojornal. O
projeto de criação de um jornal começou num momento em que o jornal Folha da
Manhã circulava sem problemas e com sucesso na capital gaúcha, como afirma Ucha
128
Nesse período a Caldas Júnior detinha hegemonia na área do jornalismo gaúcho.
129
Informação retirada do primeiro número do Coojornal, publicado em novembro de 1975. A matéria foi
assinada por Luis Fernando Veríssimo, que estava entre os quatorze que pediram demissão, todos os
nomes e funções dos que haviam saído da Folha da Manhã (começando pelo diretor responsável Ruy
Carlos Ostermann), até os que tinham entrado para substituí-los foram publicados na matéria.
- 2
(1985), analisando a situação da Folha da Manhã, quando da fundação da Coojornal,
em 1974,
“a experiência da FM vai muito bem, ainda com a participação dos principais
jornalistas que iniciaram o projeto e o fizeram destacar-se no cenário de Porto
Alegre. O mercado de trabalho estava em alta porque, para implantar o jornal, a
empresa havia contratado muita gente de fora de seus quadros, tendo que pagar
mais do que o normal do momento, e, conseqüentemente, elevado os salários, de
uma maneira geral, em todos os demais jornais da capital. A crise da Folha da
Manhã acontecerá um ano depois, em julho/agosto de 1975, e ai sim, os jornalistas
demitidos procurarão a Coojornal em busca de trabalho” (Ucha, 1985:50).
O sucesso do boletim publicado pela Cooperativa, transformado em jornal
mensal em outubro de 1976, alcançou distribuição nacional, sendo vendido em vários
estados do país, como o Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina,
entre outros
130
.
4.2 O Coojornal: consolidação e sucesso
“ (..) é aquela tentativa tradicional e antiga que os jornalistas
sempre tiveram, que eles sonham, de fazer o chamado jornal de jornalistas,
quer dizer, aonde o jornalista comanda todo o espetáculo”
131
.
A proposta do Boletim Coojornal era ser direcionado a um público
prioritariamente composto pelos profissionais da área da comunicação. Com o sucesso
do jornal e a venda nas bancas, o universo de leitores do jornal extrapolou a proposta
inicial, e o Coojornal acabou conquistando leitores das mais diversas áreas.
A linguagem era clara e sóbria, as críticas não eram mascaradas ou permeadas de
metáforas e duplos-sentidos. É claro que, optando por escrever de forma mais direta, em
130
Segundo Ucha (1985), a distribuição nacional do Coojornal começou a ser feita pelos próprios
jornalistas associados que moravam no Rio de Janeiro e em o Paulo. Como o interesse pelo jornal foi
grande, acabaram por contratar uma empresa distribuidora, que ficou responsável pela distribuição do
jornal a todo o país.
131
Danilo Ucha.
- 2
um momento de menos abertura” do que o proclamado pelo governo, as dificuldades
eram previstas. Os jornalistas sabiam que o seria fácil fazer um jornal crítico naquele
período. Já no primeiro número alertaram o público de que a empreitada seria árdua:
“Este primeiro número proporcionou algumas experiências que indicam
que não será fácil veicular informações e opiniões sobre jornais e
jornalistas. Por incrível que pareça os homens ligados à imprensa têm se
mostrado os mais inclinados a sonegar informações. De qualquer maneira
faremos o possível para que o boletim chegue quinzenalmente as mãos dos
jornalistas, publicitários, estudantes de comunicação e comunicadores em
geral com entrevistas, debates muitas informações sobre os profissionais,
sobre veículos e áreas afins” (Coojornal, número 01).
Defender o direito à liberdade de informação, como demonstra o recorte acima, e
criticar os órgãos de comunicação alinhados com o regime, adeptos da autocensura, era
difícil, mesmo na segunda metade da década de setenta. Praticar um jornalismo
engajado e político causou muitos problemas à equipe do Coojornal, incluindo a prisão
de alguns jornalistas. Mas a disposição inicial não esmoreceu, e, pode-se afirmar, que
do primeiro ao último número, o Coojornal teve uma atuação homogênea, não deixando
de praticar um jornalismo crítico e investigativo, nem quando muitos anunciantes
retiraram-se, coagidos pelo regime.
A morte do jornalista Vladimir Herzog abriu o primeiro precedente para que o
jornal atacasse a repressão e a censura. Manifestos de apoio ao Sindicato dos Jornalistas
de São Paulo, que buscavam esclarecer as circunstâncias do assassinato do jornalista,
foram publicados no primeiro número do (ainda) Boletim Coojornal. Além do apoio aos
colegas de São Paulo a equipe aproveitou para analisar a cobertura dada pelos órgãos de
comunicação sobre o caso Herzog:
“Há muitos anos, O Estado de São Paulo e seu vespertino Jornal da Tarde são os
únicos jornais brasileiros a dar boa cobertura a determinados assuntos. O fato se
- 2
repetiu no episódio da morte do Jornalista Vladimir Herzog, na última semana de
outubro. Em Porto Alegre, quem deu melhor o assunto foi o Correio do Povo, que
publicou todo o noticiário que recebeu da Agência Estado, seguido da Folha da
Manhã, que embora tenha evitado abrir página, deu espaço razoável a cobertura.
Na área de TV, surpreendentemente, o Jornal Nacional e o Jornal Amanhã
conseguiram dar boas coisas” (Coojornal, número 01).
A análise foi sóbria, a equipe não deixou de reconhecer que jornais e órgãos da
grande imprensa conseguiram fazer coberturas razoáveis do caso Herzog. Para Duarte
(1983), a boa cobertura de parte da grande imprensa à temáticas anteriormente
proibidas, servia de instrumento aos planos de Geisel e Golbery, como uma forma de
intimidar a linha-dura. Nessa política de aproximação e de vinculação de alguns jornais
da grande imprensa servindo aos propósitos da abertura, a morte do jornalista foi um
fato que teve cobertura nacional
132
, e, junto com o assassinato do operário Manoel
Filho, sacudiu o governo de Geisel, gerando uma cisão maior entre os militares da
“linha-dura” e aqueles que defendiam a abertura. Esses assassinatos demonstraram, a
nível nacional, que a repressão continuava a agir, e que ser jornalista naquele momento,
poderia significar arriscar a vida e perdê-la, como aconteceu com Herzog. Coube ao
espaço destinado ao humor representar essa situação concreta vivida pelos jornalistas,
através de um diálogo entre duas crianças que pensavam no que queriam ser quando
crescessem. A primeira delas dizia que quando crescesse queria ser jornalista, ao que a
segunda respondia: “- Eu não, quero ser livre”
133
. Impossível ser “livre” com a censura,
que cerceava os órgãos de comunicação. Quer dizer, não a todos os órgãos de
comunicação, como refere a seguinte matéria:
“Órgãos da RBS o conhecem a censura: ‘Ao longo de toda sua existência, a
Rede Brasil-Sul de Comunicações teve somente um problema com a Censura,
132
Perosa (2001) analisa a cobertura de jornais da grande imprensa no “caso Herzog”, procurando
demonstrar que enquanto alguns jornais da grande imprensa tornaram-se força auxiliar no processo de
abertura” outros “mantiveram-se declaradamente força auxiliar dos órgãos de repressão”.
133
Coojornal, número 01.
- 2
gerando mais por um problema de ordem emocional do que de censura
propriamente dita. Foi no lançamento da moda do monoquíni. O secretário de
Justiça do Estado na ocasião era o hoje senador Paulo Brossard. A RBS tem
provido debates políticos sem que se registre qualquer problema com a Censura’
(Palavras de Maurício Sirotski Sobrinho, diretor-presidente da RBS, ante a
Comissão de Comunicações da Câmara Federal, em Brasília, em 29-10-75)”
(Coojornal, número 01).
A RBS, bem como os seus padrinhos do Sistema Globo, foram alvos constantes
das críticas da equipe do Coojornal, em função da identificação desses veículos de
comunicação com o regime militar. Em junho de 1977, por exemplo, a equipe do
Coojornal noticiou com destaque as ligações “amigáveis” entre Roberto Marinho e o
ex-ditador chileno Augusto Pinochet. Isso porque Roberto Marinho tinha acabado de
receber uma condecoração do ditador chileno, a “Ordem Bernardo O’Higgins”, a título
de agradecimento pela “amizade” dedicada por Roberto Marinho ao Chile. Essa
aproximação permitia uma visualização mais clara do vínculo entre o Sistema Globo e
regime autoritário no Brasil, como demonstrava a matéria:
“Amizades Latinas: Denunciado em toda a imprensa mundial pelo seu desrespeito
aos direitos humanos, o governo chileno parece ter conseguido um aliado na
imprensa brasileira... o diretor de ‘O Globo’ e dono da toda poderosa Rede Globo
de Televisão, recebeu...a mais alta condecoração concedida pelo governo chileno
a um estrangeiro a Ordem Bernardo O’Higgins, grau de Grande Oficial. A
noticia foi dada pelo próprio jornal de Marinho em notícia de três colunas no alto
da página e com foto em sua edição de três de junho. O Embaixador chileno Bravo
Muños entregou a medalha esclarecendo que ‘Roberto Marinho tem se destacado
por sua amizade ao Chile’. a matéria de O Globo diz que ‘nosso companheiro
(Marinho)’ agradeceu penhorando a manifestação de apreço e ainda mandou uma
mensagem a seu amigo presidente: ‘Peço a gentileza de transmitir ao presidente
Augusto Pinochet o meu caloroso agradecimento e a certeza de que tudo farei em
minha missão jornalística, a serviço do Chile’. Sem vida o general Pinochet,
deve estar entre os que, como disse o embaixador chileno na mesma cerimônia,
dão ‘um voto de confiança, credibilidade na noticia propalada e na imagem
difundida’ pelo Sistema Globo...” (Coojornal, número 17).
A matéria demonstra o quanto que o Sistema Globo de Comunicações estava
ligado ao autoritarismo, e, portanto, conivente com a censura.
- 2
A defesa da “liberdade de expressão” e do fim da censura à imprensa que o
Coojornal proclamava, tinha seus limites claros: a defesa de uma democracia liberal, do
“Estado de Direito”, de forma que a liberdade de imprensa proclamada pelo periódico
era a chamada “liberdade com responsabilidade”. O jornal o criticava os valores
sociais e os padrões morais da sociedade. Padrões e valores, estes, de seus leitores, que
eram leitores cultos e com um razoável poder aquisitivo
134
. A equipe lutava por maior
liberdade, mas uma liberdade que não extrapolasse os limites de um Estado liberal e
constitucional. O jornal era político, mas não partidário. De maneira que a crítica
deveria ser feita com prudência e responsabilidade, conforme expressa a matéria (do
editorial) a seguir:
“Mesmo no país mais fraco e instável, os meios de comunicação de massa ainda
devem guardar, até certa medida, uma de suas funções mais sicas: a de servir
como o inspetor geral de todo o sistema político de modo a fornecer a necessária
crítica pública para assegurar certo grau de integridade política entre os
detentores do poder. Os problemas, contudo, são imensos e excessivamente
complexos, visto que também certa realidade no argumento de que a crítica
imprudente e irresponsável da autoridade pode destruir qualquer esperança de
formação de padrões construtivos de governo (...)” (Coojornal, número 03).
Os meios de comunicação eram concebidos como inspetores” do sistema
político, tarefa que deveria ser realizada com responsabilidade. A censura coibia, então,
essa função de imprensa fiscalizadora do poder público e político. Para assegurar a
função da imprensa, urgia o retorno às liberdades democráticas, conforme expressou o
134
Essa é uma característica geral do público-leitor dos jornais alternativos. Uma característica que era
conhecida e que foi admitida publicamente em uma análise de investimento em propaganda feita pela
empresa General Motors. Reconhecimento público que ganhou destaque nas páginas do Coojornal, que
também precisava de anunciantes para sobreviver. O comentário sobre a declaração de um representante
da empresa foi assim transcrito no jornal: O gerente de propaganda da General Motors no Brasil,
Gilberto Barros, durante o II Encontro de Mídia, recentemente encerrado em São Paulo, fez uma
surpreendente declaração. Ele disse que a GM está disposta a investir em anúncios na chamada
imprensa nânica e que está possibilidade será considerada porque seu público leitor é formado por
pessoas muito intelectualizadas e de alto poder aquisitivo” (Coojornal, número 09).
- 2
discurso do jornalista Alberto André, então diretor da Associação Rio-Grandense de
Imprensa (ARI), em matéria publicada no jornal:
“Sofremos, com as demais entidades, quando nossos regulamentos são
desrespeitados, quando um veículo de comunicação fecha as suas portas ou é
esvaziado”, reconheceu André ao COOJORNAL.. ‘E temos sido rigorosamente fiel
à liberdade de imprensa e de informação, reiterendo-a em variadas ocasiões e
dela fazendo bandeira para tomada de nossas posições. Proclamando a liberdade
de imprensa com responsabilidade, temos condições de exigi-la do governo,
pleiteando a eliminação da censura à imprensa e o respeito aos direitos humanos.
Alberto André lembrou: ‘ontem como hoje, temos levantado nossa voz contra
prisões de jornalistas e o agravo a jornais e emissoras de rádio e tv. Temos
dialogado com o poder público e a comunidade em torno de nossas prerrogativas
que são próprias da sociedade democrática que todos nós queremos’. Para o
presidente da ARI, historicamente, a censura e a autocensura...são os fatores que
mais prejudicam a qualidade do trabalho jornalístico em nosso país: ‘O Estado
Novo de 1937 e a Revolução de 1964, diz ele, marcam os dois períodos da História
brasileira que mais afetaram a imprensa, através das restrições que ela tem
sofrido naquilo que a sociedade e a democracia tem de mais fundamental: a
liberdade de expressão e informação’” (Coojornal, número 02).
Para que as “liberdades democráticas” fossem restabelecidas, os jornalistas
deveriam se comprometer em exercer a “liberdade com responsabilidade, conforme as
palavras do diretor da ARI. Isso em um momento de crescente monopolização dos
conglomerados de comunicação e de um mercado cada vez mais competitivo. Para
enfrentar essa conjuntura, a solução encontrada por boa parte dos jornalistas gaúchos,
conforme exposto anteriormente, uma solução original e rica, foi a criação da
Coojornal. A Cooperativa também foi uma forma de organização encontrada para suprir
uma demanda de emprego cada vez maior, que os formandos das faculdades de
jornalismo aumentavam a cada ano. Uma forma de garantir trabalho e dignidade aos
jornalistas. No espaço da cooperativa, os profissionais esperavam encontrar a liberdade
de criação que praticamente inexistia fora dela, nos órgãos de comunicações
tradicionais. A auto-gestão garantiria a participação de todos.
A Coojornal foi criada, entre outras razões, como uma forma de enfrentar um
mercado cada vez mais competitivo e monopolizado pelos grandes conglomerados de
- 2
comunicação, e o Coojornal, para expressar o que os jornalistas não podiam expressar
nos órgãos de comunicação da grande imprensa. Uma cooperativa que logo serviu de
modelo a outras que surgiram no país, e um jornal alternativo, que tratava, entre outras
coisas, de descortinar a história recente do país, um jornal “politizado e politizante” que
questionou o autoritarismo vigente no país, através da ironia, das grandes reportagens, e
mesmo do humor.
4.3 O humor político do Coojornal
“Eu devia ter desconfiado quando você disse que estava tudo sob
controle”
135
Rompendo as amarras do sério e sem compromisso com o rigor social, o humor
possibilita o despertar de uma consciência critica (Bakhtin:1993), ao criar uma
identificação social que, por sua vez, permite aos leitores o reconhecimento da situação
narrada. Através do humor, os leitores reconhecem a sociedade na qual estão inseridos,
reconhecem a si mesmos. Diferentemente do cômico, que parte de uma visão particular,
satírica, de uma desvalorização do outro, o humor transcende o particular, e cria seus
significados no social. Conforme Almeida (1999: 68-69), “o humor se constrói a partir
de uma falta a preencher ou uma situação a se restabelecer; ele apenas revela a falha”,
ou seja, a narrativa humorística não aponta soluções para os problemas ou para os
desacertos sociais, econômicos, culturais etc, mas se ocupa de desnudar a contradição, o
impasse. E, mais especificamente, no caso do humor político presente nas páginas do
Coojornal, o humor ocupava-se de denunciar a repressão, a situação econômica e
política do país. Revelava, por exemplo, as contradições da política de “abertura” de
Geisel, ao fazer uma retrospectiva do ano de 1977 através do “Jogo da Democracia”:
135
A frase acompanha a figura de dois homens amarrados em uma parede. Humor de Luís Fernando
Veríssimo, publicado no Coojornal, número 13.
- 2
“O Jogo da Democracia (Ou: meia democracia é melhor que nenhuma)
Objetivo do Jogo: chegar ao fim de 1977 sem perder a esperança. Esperança
relativa, claro.
Número de pessoas que podem jogar: 100 milhões, pelo último censo.
Como jogar
: cada jogador escolhe seu cavalinho, rola os dados (desde que não
sejam fornecidos pelo governo, pois estes às vezes enganam) e movimenta sua
peça de acordo com o número que sair, tendo o cuidado de corrigir o número pelo
índice inflacionário do mês. Se cair numa casa com número vermelho deve
consultar a lista abaixo para saber o que fazer. Se cair num Dia Negro deve tirar
seu cavalinho do jogo.
(...)
Maio
9 - Estudantes nas ruas. Passeatas e greves, principalmente em São Paulo e
Brasília. Ao contrário do que se pensava, esta geração não está anestesiada, só um
pouco dormente. Avance sete casas gritando, confiante, “Liberdades
Democráticas!” e mais três fugindo da Brigada.
Junho
13 Dia Negro. O programa de TV do MDB bom Ibope mas tem péssima
recepção da crítica que, inclusive, cassa Alencar Furtado. Saia do jogo. Ou, se
puder, do país.
14 Lançada a candidatura do general Figueiredo à presidência da República.
Grande regozijo popular mas, vão ver, é por outra coisa. O povo, consultado a
respeito, limita-se a sorrir enigmaticamente e coçar o peito. Recue uma casa, por
via das dúvidas.
(...)
Novembro
24 O presidente Geisel anuncia o próximo fim do AI-5. Avance oito casas,
dizendo “oba!”.
25 O AI-5 sesubstituído por salvaguardas institucionais. Recue sete casas,
murmurando “Ai ai ai...”.
26 Você conseguiu! Chegou ao fim do ano sem perder as esperanças. O futuro
lhe sorri e lhe dá tapinhas nas cosas. O ano novo não pode ser pior do que este. Se
bem que era isto que todos diziam em 76, lembra?” (Coojornal, número 23).
No “Jogo da Democracia”, os participantes, todos os brasileiros (“100 milhões,
pelo último censo”), para jogar, precisavam tomar cuidado para não se deixarem
conduzir pelo governo, não cair nas garras do Estado Autoritário (os dados não
deveriam ser fornecidos pelo governo, pois estes às vezes enganam”). Todos os
acontecimentos importantes do ano de 1977 faziam parte do jogo, de acordo com o s
e dia em que ocorreram. Em maio, apesar da repressão da polícia, as passeatas de
protesto e as greves marcaram o mês (“ao contrário do que se pensava, esta geração
não está anestesiada, um pouco dormente”), o que permitiu aos participantes
- 2
avançarem algumas casas no jogo. Contudo, em junho, ocorre um retrocesso, que
após um programa de TV, o candidato do MDB foi cassado (“Saia do jogo. Ou, se
puder, do país”) e a candidatura do general Figueiredo foi lançada oficialmente. Em
novembro, o anúncio do fim próximo do AI-5 divide espaço com as chamadas
“salvaguardas institucionais” (“recue sete casas, murmurando ‘ai, ai, ai’”), ou seja, a
“abertura” seria realizada sob o total controle do executivo, do regime militar. Nas
palavras de Couto (1999), abertura em uma das os e chicote em outra. No humor de
Luis Fernando Veríssimo, através do “Jogo da democracia”, ficou retratada a política
de abertura de Geisel, lenta e com poucos avanços. Aproveitando o mês de maio de
1977, em que se comemora o dia do trabalhador, a equipe do jornal publicou uma
edição especial de humor sobre o salário mínimo. Nessa edição o jornalista Tarso de
Castro foi às compras com o salário nimo, comprovando ser impossível sobreviver
com o minguado salário:
“Tarso vai as compras com o mínimo: Ora, que país é este...! Salário mínimo de
Cr$1.027,00. País do carnaval, futebol e povo de índole pacífica, é claro. Ah, é a
terra de Marlboro, Lutfalla, Grupo Lume, por aí.
Leio nos jornais de São Paulo, Rio, os do Brasil do norte do rio Pelotas, que a
família Lutfalla malhou o BNDE em 500 bi 20 lotecas! -, com o aval do ministro
Reis Velloso, que continua prestigiado. E nós, que não somos capazes de ter um
amigão desses!
Os Lutfalla estavam falidos e conseguiram que o Velloso lhes alcançasse 500 bi
para “sanear” os papagaios. Afinal, a tecelagem da família não podia fechar.
Sabe o que é largar no desemprego milhares de operários? Não, o “custo
social” seria muito grande e o patrício Arnaldo Pietro não concordaria. Ministro
que é gente como a gente sabe o que é ficar sem comida na despensa.
Pois isso me vem a propósito o novo salário mínimo. Como os dicionários da
língua portuguesa falada desse lado do atlântico, a Constituição e a CLT precisam
mesmo de uma revisão (opa, recesso não, recesso não!!).
Senão vejamos: diz o governo que o salário mínimo deve-se investir 44 por cento
em alimentação, 24 por cento em habitação, 22 por cento em vestuário, 7 por
cento em higiene e 3 por cento em transporte. Hospitalização, remédios, dentistas,
médicos, colégio, taxa-escolar, livros, uniforme, farinha, passeios, turismo, nada
consta. Mas vá lá, ficamos só com o preceituado na lei...” (Coojornal, número 16).
- 2
Após todos os cálculos do que é possível comprar e pagar com o salário mínimo,
o resultado, esperado, é o de que o salário não é suficiente nem para alimentar uma
pessoa apenas, quanto mais para alimentar e manter uma família. Contudo, se falta
dinheiro em caixa para o regime militar aumentar o salário mínimo, sobra para
emprestar para as grandes empresas, conforme conclui o humorista:
“Pst, seu Reis Velloso, o povo abriu falência. E são milhões! Não descola uma
graninha do BNDE? Olha que o “custo social” impressiona os técnicos lá...Não
dá? O Luftalae a turma raspou tudo? ...” (Coojornal, número 16).
No sarcasmo do humorista, percebemos rastros de um humor amargo, de uma
crítica de “mau-humor”, que atestava a falência econômica do governo, a miséria do
povo e o favorecimento às grandes empresas com o dinheiro público. Como manter o
bom-humor ao retratar tal quadro? Para a equipe do Coojornal, nos anos mais duros do
regime, “não houve jornal, da pequena ou grande imprensa, neste Brasil imenso, que
não tivesse o seu humorista. Foi uma época de muita participação e pouca graça.
Porque as piadas saíam iradas, cheias de raiva e ódio”
136
, uma época de “humor
armado”, humor combatente que muitas vezes saía esbanjando ironia. Ironia presente
na crítica de Luís Fernando Veríssimo a uma enquête feita pelo programa Fantástico, da
TV Globo, que atestava a pouca informação do povo brasileiro.
“O POVO NO FANTÁSTICO:
(...) O que não da pra entender é o barulho que estão fazendo com a constatação
de que o povo brasileiro é mal informado, culturalmente depravado e ainda
gagueja no microfone (..)
- Como é seu nome? / - Miguelina de Jesus.
136
Trecho da edição especial do Coojornal sobre humor (15 anos de mau humor”) publicada em janeiro
de 1980, que circulou juntamente com o número 49 do jornal. A edição especial trouxe entrevistas e
matérias especiais com os humoristas e cartunistas mais notórios do período, entre eles Millôr, Henfil,
Veríssimo, Vasques, Nássara, Alvarus, Ziraldo, Fortuna, Jaguar, Santiago, entre outros. A referência ao
“humor armado” retirei de um trecho da entrevista de Henfil, onde ele diz: “ fui para a oposição possível
e fiz o caminho possível, que no meu entender não era a luta armada, nem a clandestinidade, mas o
humor armado...” .
- 2
- Profissão? / - Profi o quê?
- Onde é que a senhora mora? / - Morá?
- O que a senhora acha dos moder... / - Tem uma esmolinha?
- Depois. O que a senhora acha dos modernistas? / - Sempre tive uma preferência
pelo Mário de Andrade. Sem desmerecer os outros, é claro.
- Obrigado. / - E a esmolinha? (...)”
Na versão da enquête criada pelo humorista, que supostamente estaria
entrevistando uma pessoa do povo, as conclusões, ou as respostas às questões propostas,
demonstram outros dados, não levantados pela enquête do Fantástico. Apontam para
questões básicas que envolvem a pauperização da população, como o desemprego
(“Profi o quê?”) e a falta de moradia (“Morá?”), além da miséria (“Tem uma
esmolinha”). Contudo, a entrevistada demonstra, ao contrário do que afirma a enquête
do Fantástico e o senso comum, conhecimentos culturais (o entrevistado sabe o que foi
o Modernismo e tem a sua preferência). Depois de hipoteticamente entrevistar uma
pessoa comum, “do povo”, o humorista parte para uma enquête com um político:
- O senhor acha que o povo não teria condições de escolher seus próprios
governantes conscientemente?
- É evidente que não. A não ser que os candidatos fossem artistas de novela.
- A que o senhor atribui a pouca informação do povo?
- O povo é burro, preguiçoso e não quer aprender. O povo é safado, sem-vergonha
e relapso. Mas no fundo o povo é bom. Só não pode votar.
- O senhor responderia a uma enquête como a que foi feita ao povo?
- É natural.
- Quanto está o quilo do feijão?
- O quê?
- Qual é o preço do feijão?
- Não tenho a menor idéia.
- E da carne de segunda?
- Não sei, nem me interessa.
- Quantas horas de trabalho são necessárias para...
- Espere aí. A enquête que fizeram ao povo foi de conhecimentos gerais. Me
pergunte, por exemplo, quem escreveu O Guarani?
- Iracema de Alencar
Na enquête com o político fica clara a concepção do entrevistado de uma
“menoridade” do povo, que não saberia distinguir entre políticos e artistas, o povo é
- 2
caracterizado pelo político como pessoas manipuláveis e, portanto, sem capacidade para
escolher seus governantes. Mistura de uma visão populista e autoritária, construída e
presente na memória nacional, como a concepção de que o povo brasileiro é
“preguiçoso”: preguiçoso e burro”, mas “bom”, é claro. Apenas incapaz como a
criança que precisa ser conduzida, e, se necessário, ser punida. A visão do político, que
desconhece a realidade da população, que não sabe o preço do feijão, da carne,
demonstra, enfim, que a realidade dura em que vive a população não o preocupa. Afinal,
ele entende mesmo é de literatura brasileira (já que “Iracema de Alencar” escreveu O
Guarani).
O humorista continua sua enquête, entrevistando um membro da “classe
dirigente”, um tecnocrata que só trabalha com a teoria, desconsiderando os fatos.
Indagado sobre o que fazer quando os fatos desmentem a teoria, a resposta é a de que os
fatos reais “devem ser exemplarmente reprimidos, para que o fato não se repita”,
afinal, “imagine se os fatos passassem a contrariar a teoria oficial, impunemente. Seria
o caos”. A oposição, as vozes distoantes, representadas aqui pelos fatos, devem ser
caladas, ou, nas palavras do entrevistado da hipotética enquête, “devem ser
exemplarmente enquadrados”. É preciso fomentar consenso, os fatos são “subversivos
e, portanto, da competência da segurança nacional”
137
. A realidade é subversiva
porque demonstra as arbitrariedades e as contradições, desnuda a face cruel do regime,
que deveria a todo custo ser escamoteada, aliando, principalmente, censura e
propaganda. Censura para esconder e propaganda para criar uma visão positiva do
regime.
4.4 Censura e repressão
137
Os trechos selecionados constam da matéria “O povo no fantástico”, publicada no número 20 do
Coojornal.
- 2
“Chove, grossas pancadas, altas enchentes: as pontes ruíram e as vias de
acesso estão interrompidas. Só o futuro dirá quando as comunicações se
reestabelecerão”
138
Conforme já afirmei anteriormente, na defesa do Estado de direito e das
“liberdades democráticas”, o Coojornal denunciou sistematicamente a censura à
imprensa: os jornais que eram fechados, apreendidos, censurados, os jornalistas que
sofriam perseguições, tudo sem meias palavras, numa linguagem clara e direta.
Linguagem que alguns periódicos contemporâneos do Coojornal não podiam utilizar.
Um caso flagrante da incoerência da censura, para citar um exemplo, foi o que impôs
censura prévia a Revista Paralelo - publicada na capital gaúcha, entre outubro de 1976 e
agosto de 1977 -, a qual teve de tratar veladamente assuntos como autoritarismo e
censura, enquanto que o Coojornal, publicado na mesma época e na mesma cidade,
pôde, inclusive denunciar a censura à Revista, como demonstra a seguinte matéria:
“(...) Um perigoso precedente foi aberto no Rio Grande do Sul, no dia dez de
dezembro: conforme comunicado do diretor-geral da Censura Federal, Rogério
Nunes, a Revista Paralelo, publicação mensal de “cultura e idéias”, terá seu
número três, que deverá estar nas bancas neste mês de janeiro, submetido a
censura prévia em Brasília. Com isto, a imprensa gaúcha passa a ter um
representante no cada vez mais fechado clube de publicações previamente
censuradas no Brasil e do qual fazem parte Movimento, Opinião, Tribuna da
Imprensa, o São Paulo, Status, Nova, Homem, Ele e Ela.(...)” (Coojornal, número
12).
Enquanto o Coojornal denunciou com todas as letras a censura à revista, a
equipe de Paralelo precisou recorrer a recursos estilísticos e a metáforas para alertar
seus leitores da repressão sobre a publicação. Para tanto, a equipe da revista passou a
138
Trecho do editorial da Revista Paralelo, número 04, publicada em agosto de 1977, o último número da
revista a circular. O trecho falando da chuva remete a repressão do regime, ao tempo feio que se abateu
sobre a revista, que passou a ser censurada desde o terceiro número. A chuva como metáfora utilizada
pela equipe lembra o filme “Chove sobre Santiago”, quando a rádio da cidade denúncia o golpe militar
dizendo que chovia torrencialmente sobre Santiago, referindo-se ao tempo político.
- 2
publicar o edital em fundo negro e com o desenho de um rinoceronte sobre o editorial,
representando, na minha leitura, a repressão a vigiar o que era veiculado pela revista.
No editorial do último número, a equipe procura demonstrar o quanto a publicação
estava comprometida:
“Paralelo não é apenas uma publicação que ainda não morreu. É uma revista
apunhalada que procura ressuscitar dos mortos e portanto este número é um
milagre...vai sair quando der, se der. Porque tudo é muito fantástico, embora
estejamos achando que a esta altura da festa, para bom entendedor meia palavra
já não basta...” (Revista Paralelo, número 04).
Esse editorial foi o último a circular, como previsto pela equipe, as dificuldades
foram maiores. Com pouco dinheiro, dependendo exclusivamente da venda nas bancas,
sendo que ninguém recebia para fazer a revista, Paralelo
139
acabou sucumbindo depois
de dois números submetidos à censura prévia.
Na maioria das vezes a denúncia à censura que atingia os profissionais e os
órgãos de comunicação vinha acompanhada de descrições do procedimento utilizado
pelos censores. Um exemplo desse procedimento foi a publicação de uma matéria sobre
a censura que atingiu o escritor Josué Guimarães, resultando em sua demissão da TV
Piratini, sob acusação de subversão. Na entrevista com o escritor foi salientada a forma
de atuação da censura:
“...É um hábito tão comum que em quase todas as rádios foi institucionalizado
um espaço nos quadros de avisos onde são afixados lembretes diários dos assuntos
proibidos. Repórteres, redatores e mesmo apresentadores antes de começarem a
trabalhar passam por ali para se informarem. Entre os assuntos vetados
predominam evidentemente os temas políticos, mas não nenhuma regra (o que
contribui para aumentar a insegurança)....Não se sabe detalhes de como é feito o
139
Revista cultural e libertária, Paralelo trouxe textos de Juarez Fonseca (um dos editores da revista),
Sérgio Caparelli, Caio Fernando Abreu, Josué Guimarães, Ademar Vargas de Freitas, Torquato Ssó,
Valdir Zwetsch, Luís Fernando Veríssimo, Cláudio Levitan, Edgar Vasques, Fraga, Juska, Santiago,
Schoreder, Wilmarx, entre muitos outros. Todos os colaboradores trabalhavam em outros órgãos de
comunicação e muitos participavam ou tinham participado de outras publicações alternativas (muitos
que fizeram O Exemplar participaram da Revista Paralelo).
- 2
controle das informações. Mas não há duvidas de que o esquema é eficiente ou, no
mínimo, ágil...”(Coojornal, número 18).
Esse “hábito” comum da censura nos anos do regime militar, que era parte do
cotidiano de radialistas e jornalistas, principalmente, de um lado, aguçava a criatividade
desses profissionais para burlarem a censura, e de outro lado, fez da autocensura uma
contingência diária para inúmeros profissionais. Mesmo aqueles que, heroicamente,
afirmam não ter aderido à prática autocensória, quantas vezes não se policiaram ao
escrever ou publicar uma matéria, para que essa matéria pudesse chegar aos leitores?
Até que ponto a autocensura foi introjetada apenas como fator de conivência com o
regime, como afirmam categoricamente alguns autores? Acredito que a autocensura,
assim como a própria censura, não foi uma prática homogênea. Se foi introjetada como
conivência em muitos casos, também representou sobrevivência em outros. Escrever
com meias-palavras, através de metáforas, mas continuar escrevendo, foi a postura de
muitos jornalistas.
Um dos efeitos nefastos da censura e autocensura é a herança que ela deixa nos
profissionais dos meios de comunicação, que (con)viveram com ambas por muitos anos,
além de uma herança autoritária aos órgãos de comunicação que conviveram
harmoniosamente com a censura. Este último foi o caso do Sistema Globo, por
exemplo, que em 1982, impedia que se discutisse política nos eventos que patrocinava.
Um exemplo dessa censura “global” foi citado no Coojornal, através do fato que
ocorreu durante um show com grandes nomes da MPB (Gilberto Gil, Chico Buarque,
João Bosco, Simone, Nara Leão, entre outros), em Porto Alegre, nas comemorações do
primeiro de maio.
“A proibição partida da Rede Globo que obteve exclusividade para gravar o
show em troca da produção, avaliada em Cr$ 15 milhões de que os artistas
falassem de política ou sequer lessem o manifesto de fundação da Associação dos
- 2
Músicos Arranjadores e Regentes (Amar), causou um profundo mal-estar. ‘A gente
foi a Porto Alegre pensando em fazer um tipo de show, mas houve uma série de
ingerências que impediram’, limitou-se a comentar João Bosco...” (Coojornal,
número 73).
Nesse período, aperfeiçoava-se a censura empresarial, a censura interna dos
meios de comunicação. No caso especifico descrito pelo jornal, o ano eleitoral
acentuava as preocupações daqueles que apoiavam a transição pretendida pelo regime
militar.
4.5 Assunto: política e eleições
As eleições indiretas e a expectativa de eleições diretas povoavam as páginas do
Coojornal, assim como as avaliações do momento político em que o país vivia. Na
medida em que a transição ia se delineando, as mudanças no discurso da cúpula que
comandava o país, que, de uma tradição autoritária, passava a falar em
“democratização”, assim como outrora falavam da necessidade do golpe em 1964, do
endurecimento do regime em 1968, e naquele momento específico da necessidade de
“redemocratizar o país”. Reduzindo, dessa forma, os rumos políticos do país, à vontade
da cúpula que o comandava. Sendo assim, adeptos do autoritarismo, membros do
sistema repressivo, defensores do endurecimento do regime em outras épocas, no final
da cada de setenta, passaram a falar em “democracia”. Essa “mudança” no discurso
de figuras chaves no Estado Autoritário brasileiro, não passou desapercebida pela
equipe do Coojornal.
Dessa forma, em janeiro de 1978, momento em que o nome do general
Figueiredo já havia sido indicado para a sucessão de Geisel, o jornal aproveitou para
publicar uma crítica feroz àquele que viria a ser novamente ministro da economia (no
governo de Figueiredo), Delfin Neto. Responsável pela política do “milagre econômico”
- 2
no governo de Médici, o economista voltava à cena política, desta vez falando em
“democracia”. Os resultados da política econômica colocada em prática pelo ex e futuro
ministro, estavam presentes na memória dos jornalistas, como demonstra a seguinte
matéria:
“É evidente que inclusive o embaixador Antônio Delfim Neto, inimigo da
democracia, que cresceu à custa do sacrifício da democracia tem o direito de falar
de liberdade...Nação democrática, para sê-lo realmente, não pode excluir
ninguém, nem mesmo o embaixador Antônio Delfim Neto, que no exercício do
poder usou toda a força do arbítrio a censura, por exemplo para esmagar a
liberdade e o estômago da multidão. Não foi por acaso que, naquela história da
inflação a 12%, o então Ministro sentou toda a obesidade de sua inteligência
gorda sobre os índices de preços e quando se levantou, quase no governo atual,
liberou uma carga inflacionária cujas responsabilidades e habilidades nem sempre
explicáveis repassaram aos árabes, que assumiram a culpa de tudo, inclusive do
mau estado do feijão preto produzido em Java”.(Coojornal, número 24).
Implacáveis, os jornalistas relembraram o resultado da política econômica do
ministro, da elevação da inflação, do achatamento dos salários, do fim do milagre, e da
crise do Petróleo (justificativa utilizada para o aumento da inflação “árabes, que
assumiram a culpa de tudo”), e da ligação de Delfin com o período mais negro do
regime militar. Esbanjando sarcasmo, a equipe não perdoou nem a “obesidade” do ex-
ministro.
Considerado como o “cérebro do regime”, o general Golbery do Couto foi
também merecedor de uma análise mais detalhada do Coojornal, afinal, desde o golpe
que Golbery circundava o poder. Tido como um dos autores intelectuais do golpe, o
general naquele momento (1978) figurava no cenário nacional, como um teórico da
“abertura”. A matéria sobre Golbery tratava de deixar claro a diferença entre ser um
“democrata” e ser defensor da abertura política. A diferenciação também servia de
referência a políticos e militares adeptos e atuantes no regime militar, que tinham
passado a falar em “democratizar” o país. Essa mudança de discurso no seio do
- 2
autoritarismo procurava apagar a imagem de repressão e censura ligada a certos
membros do regime militar, como Golbery, por exemplo, da memória das pessoas. No
caso de Golbery, um dos teóricos do golpe, deveria ser lembrado, a partir de então,
como um “mentor da abertura”, um “democrata”:
“Evidentemente, o ministro Golbery é contra a manutenção indefinida das leis de
exceção. Ele sabe que um regime duro, politicamente fechado, policialmente
repressivo, não tem estabilidade garantida a longo prazo. Mas daí a ser
democrata, vai uma distância. Ainda hoje, a melhor fonte para se ter uma idéia
mais clara das suas concepções políticas é o seu livro Geopolítica do Brasil,
escrito na década de 50, mas que, segundo o prefácio que ele fez para a segunda
edição, em 67, ainda se conserva no essencial. E o que se tem ali? Uma alentada
dose do mais puro pensamento autoritário” (Coojornal, número 32).
Com Figueiredo, o general que assumiu prometendo democratizar o país nem
que fosse a tapa”, e “prender e arrebentar” quem fosse contra a democratização, o
caminho para a abertura foi sendo delineado cada vez mais, não sem contradições, como
a manutenção de uma política repressiva, e os atentados da chamada linha-dura”.
Contudo, os avanços no sentido da liberalização do país foram acontecendo. O difícil de
engolir no ex-chefe do SNI era a sua mudança repentina, na qual assumia um discurso
liberalizante, episódio que a equipe do Coojornal fez questão de demonstrar:
“Aí estamos nós com um novo presidente, que promete nos democratizar nem que
seja à tapa. Felizmente ainda temos cinco meses para entrar nos eixos. É um prazo
razoável, não nos devemos queixar. Afinal, o governo, coitado, 14 anos sofre
nas mãos da gente. É justo que exija um pouco de compreensão e esteja disposto a
ir até no tabefe se a gente não deixar de ser arbitrário, intolerante, despótico. A
paciência tem limites, leitor. Ou você acha que é brincadeira agüentar 14
anos num regime como esse que nós temos imposto aos nossos governantes?
Agüentar 110 milhões de pessoas cheias de problemas? Não é mole, companheiro.
Manter esse pessoal nos eixos para que eles o façam greves, não se organizem,
não reclamem da censura, não fiquem exigindo coisa, querendo se meter onde não
devem, achando que sabem escolher presidente e que sabem o que é bom pra
eles... É dose para qualquer leão. Vo não acha? Claro que é...” (Coojornal,
número 33).
- 2
A ironia às declarações e intenções (grosseiras e ameaçadoras) do general
Figueiredo, em nada democráticas, que ele dizia que as mudanças viriam de qualquer
forma, mesmo que no tapa”, como se a sociedade fosse contrária à democratização,
marcou a matéria sobre o novo general-presidente do país. Mesmo falando em
democratização, Figueiredo o deixou de se mostrar autoritário e violento, motivo de
ironia na matéria do Coojornal (“afinal, o governo, coitado, 14 anos sofre na mão
da gente”). E, para lembrar que ninguém ali era pouco sagaz para acreditar nas boas
intenções do general-presidente (“a paciência tem limites, leitor”), que já estavam
fartos do regime militar (“ou você acha que é brincadeira agüentar 14 anos num
regime como esse que nós temos imposto aos nossos governantes?”), o recurso
narrativo que a equipe utilizou foi o trocadilho, invertendo as posições entre governo e
população. Nessa inversão de posições, o “recado” do editor dizia que para falar em
democracia era preciso falar em liberdade, e mais, demonstrar de fato, essas “intenções
democráticas”:
“...Dizem que o fundamental numa democracia é a liberdade. Então, parece
primário que devemos dar toda a liberdade ao governo. Garantir-lhe o direito de
se expressar livremente, direito de se reunir, de debater livremente os seus
problemas, direito de greve, etc. Tudo isso é instrumento indispensável para que
um governo se sinta numa democracia. Claro que nós não vamos abrir assim de
cara. Vamos aos poucos, lenta, gradual e seguramente..” (Coojornal, número 33).
Na medida em que as eleições marcadas para 1982 se aproximavam, o governo
de Figueiredo esforçava-se ao máximo para enfraquecer a oposição, visando garantir a
vitória de seu partido, o PDS (antiga Arena). A extinção do bipartidarismo e dos
partidos que participaram desse jogo (MDB e Arena) e a proibição de continuarem com
o mesmo nome, que obrigou todos os partidos a acrescentar a letra P (partido político)
em sua sigla, visava enfraquecer o MDB. A Lei Orgânica” de 1979, responsável por
essas mudanças, também procurou dificultar a obtenção de registro partidário. As
- 2
dificuldades seriam impostas pela obrigatoriedade aos partidos de realizarem
convenções estaduais, no mínimo em nove estados, e convenções municipais em, no
mínimo, um quinto de municípios dos estados, sendo que seria exigida uma
percentagem mínima de votos por município e estado, nas eleições. Porém, essas
medidas não eram suficientes para garantir que a oposição não saísse vitoriosa do
processo eleitoral de 1982. Os indicadores apontavam para uma ampla vitória da
oposição - representada pelos seguintes partidos: Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
Partido Democrático Nacional (PDT), e Partido dos Trabalhadores (PT) que
enfraqueceria o poder do Executivo. Assim, um novo “Pacote Eleitoral” foi elaborado
pelo regime, em novembro de 1981. Para a equipe do Coojornal, o “Pacote” marcou a
falência da “abertura”:
“Com o pacotão, finalmente, cai a máscara; e da maquiagem da abertura só ficam
alguns borrões na cara feia, que o regime sempre teve ... o governo confessa, por
fim, que não tem mais nenhum plano político, nenhuma idéia, qualquer projeto,
para convencer o povo a apoiar o inferno das calamidades que armou no país
nestes dezessete anos. A abertura fracassou, portanto. Ao contrário do que o
regime queria, e dos sonhos da oposição mais conciliadora, ela não levou o país a
um novo estágio de mais liberdade política, rumo à democratização plena. Como a
oposição democrática e popular mais conseqüente sempre disse, a abertura não
resolveu nenhum problema político, não criou qualquer condição para que os
gravíssimos problemas nacionais fossem superados...” (Coojornal, número 70).
No pacote, o governo proibia as coalizões eleitorais na disputa dos governos
estaduais, instituía o “voto vinculado”, sendo que os eleitores, para não terem seus votos
anulados, teriam de votar em um mesmo partido para os diversos cargos. Além dessas
medidas, o pacote proibia os candidatos de renunciarem às suas candidaturas, a menos
que o partido como um todo, se retirasse das eleições. Com essas medidas, novamente o
governo procurava enfraquecer e dividir os partidos de oposição e fortalecer o PDS. Na
avaliação dos jornalistas, o pacote do governo deixou, enfim, cair a “máscara da
abertura”, que o resultava em “maior liberdade política”, nem em “democratização
- 2
plena”. O debate político não foi, de fato, aberto nesse momento, ao contrário, o regime
tratou de enclausurar o debate. Um exemplo disso foi a manutenção da Lei Falcão, que
proibiu o debate político e as discussões de plataformas partidárias em rádio e televisão,
nos dois meses anteriores as eleições. Mesmo assim, o resultado das eleições de 1982
favoreceu a oposição, apesar das vitórias significativas do governo no Congresso e em
alguns estados.
4.6 O primeiro embate com a censura econômica
“...apesar dos perigos, da força mais bruta, da noite que assusta, estamos
na luta, pra sobreviver, pra sobreviver...
140
Os primeiros problemas do Coojornal com a repressão surgiram em 1977. A
publicação de uma matéria sobre o número total de parlamentares cassados pelo regime
militar 4.682 É O NÚMERO DE CASSADOS EM 13 ANOS DE REVOLUÇÃO” -,
ampla e com chamada de capa e foto do deputado do MDB, Alencar Furtado, na época
um recém cassado, provocou a ira do regime. Esse foi o primeiro levantamento sobre os
cassados nos anos de governos militares. Essa matéria foi encomendada a jornalistas de
São Paulo, pela equipe do Coojornal. O número de 4.682 cassados, contrastava com os
4.680 dias de regime militar, percentualmente, a média, até então, era de uma pessoa
cassada por dia. O levantamento minucioso dos pesquisadores apontava, pela primeira
vez, o número exato de cassados por governante militar no poder
141
. Mas a matéria não
apresentou somente números, os jornalistas aproveitaram para demonstrar o quanto as
140
Trecho da música “Novo Tempo”, de Ivan Lins e Vitor Martins.
141
Em um gráfico a matéria apresentou os números de cassados por governo militar, até aquele momento:
“Comando Supremo da Revolução: 280; Castelo Branco: 2.927; Costa e Silva: 631; Junta Militar: 205;
E.Médici: 603; E.Geisel: 36; Total: 4.682”.
- 2
pessoas estavam acostumadas às cassações, que não reagiam mais, como nos
primeiros dias do golpe:
“Choveu aquele dia, lembra? Choveu tanto que a terra tremeu em alguns bairros
do Rio, mas os geólogos consultados não ousaram proferir a palavra terremoto.
No Brasil não há dessas coisas vulcões, maremotos, tufões; foi simples
acomodação de camadas. Havia, entretanto, no ar, alguma coisa além dos aviões
de carreira. Uma notícia perdida na página policial não terá chamado a sua
atenção. Claro. Tratava-se apenas de um sargento reformado da Marinha que se
embriagou, discutiu com um desafeto, dirigiu-se ao seu barraco, armou-se, voltou
e liquidou o outro com cinco tiros. Friamente, diz a noticia. Motivo do bate-boca:
as cassações, na véspera de divulgação da primeira lista. Local: Vila Maria, São
Paulo. Data: 10 de abril de 1964. O sargento era contra ou a favor? Movidos pela
curiosidade nos debruçamos sobre o pedaço de jornal. Ah, era contra! o
suportara que o outro defendesse, de punhos cerrados, as cassações dos líderes
populares – 100 de uma só cacetada! O primeiro dia. E, até fim de agosto, mais de
600 pessoas caíram sob o facão revolucionário. O povo acabou por se acostumar e
já ninguém mais atirou em ninguém por causa disso...” (Coojornal, número 18).
Entre os cassados estavam pessoas das mais diferentes profissões e posições
sociais, de garçons, serventes e estivadores, a ex-presidentes da República, políticos,
médicos, advogados e militares. As mais diversas pessoas, algumas inimigas entre si,
mas que tinham em comum o fato de serem líderes populares, segundo os jornalistas.
Foi a gota d’água para a repressão agir. Imediatamente, agentes da Polícia
Federal gaúcha visitaram anunciantes do Coojornal, identificando o jornal com a
esquerda e com o comunismo, “solicitaram” aos anunciantes que retirassem seus
anúncios e rompessem seus contratos com a Cooperativa. A “solicitação” foi
acompanhada da ameaça de “dificuldades futuras”, caso esses não atendessem o
“pedido” dos agentes da Policia Federal. O resultado foi imediato, na edição seguinte, a
maioria dos anunciantes suspendeu seus anúncios, rompendo contratos de longo prazo
(entre os anunciantes que suspenderam seus contratos, empresas de grande porte como
Gerdau, Samrig, GBOEX e Olvebra, entre outras). Segundo Ucha (1985), alguns
anunciantes relataram as pressões ao Coojornal, sendo que o presidente da Sociedade
- 2
Cooperativa de Serviços Médicos e Hospitalares Ltda (Unimed), Arnaldo Mallmann,
solicitou aos agentes que o visitaram” uma declaração por escrito da Polícia Federal.
Obviamente, a versão escrita da pressão econômica não veio, o que veio foi uma
intimação a Arnaldo para prestar depoimento na Polícia Federal. Quem teve de explicar,
por escrito, as razões pelas quais apoiava o jornal, foi o presidente da Unimed. A equipe
da Cooperativa e do Coojornal reagiu entrando em contato com a Superintendência da
Polícia Federal do Rio Grande do Sul, que negou qualquer pressão exercida sobre
anunciantes, reconhecendo, entretanto, que havia um processo de investigação sobre o
jornal. A Assessoria da Presidência da República também foi acionada, posicionando-se
como desconhecedora de qualquer ação oficial contra o jornal, conforme a nota da
Cooperativa publicada em agosto de 1977:
“(...) a Superintendência da Policia Federal no Rio Grande do Sul admitiu ter
ordenado uma investigação sobre o jornal...Foi negado, no entanto, qualquer tipo
de coação exercido sobre os anunciantes, embora estes tenham levado a nosso
conhecimento as pressões sofridas...a Direção da Cooperativa dos Jornalistas
manteve contatos em Brasília com a Assessoria da Presidência da República no
Palácio do Planalto....a assessoria do Presidente da República informou ter
entrado em contato com a direção Geral do Departamento de Policia Federal, do
Ministério da Justiça, que garantiu não existir nenhuma ação oficial contra o
Coojornal, razão porque desconhecia qualquer pressão...Ass. A Diretoria”
(Coojornal, número 19).
A ação da Policia Federal, através da pressão econômica, que oficialmente “não
existiu”, teve repercussões duras no caixa do jornal, já que após o episódio apenas três
cooperativas gaúchas mantiveram seus anúncios. Contudo, esse era um período de êxito
da Cooperativa, e o Coojornal continuou com as suas grandes reportagens, com grande
receptividade entre os leitores. Em outubro de 1977, o jornal circulou, procurando
demonstrar que os problemas com a repressão não o tinham afetado significativamente
e, apesar dos perigos, estavam na luta:
- 2
“Caro leitor,
...ter sobrevivido a todas as dificuldades que normalmente afligem uma publicação
independente não vinculada a grande empresa e sem capital, já seria motivo para
otimismo.Nosso primeiro número, posto a venda em outubro do ano passado
(antes ele foi um boletim que circulava entre os associados da Cooperativa dos
Jornalistas e nas redações), vendeu pouco mais de 500 exemplares. Na edição de
setembro último tiramos 18 mil exemplares e nesta estamos chegando a 20 mil,
para circularem em 80 cidades gaúchas, do Rio, São Paulo, Minas e mais 10
estados.E, sem qualquer campanha, apenas na base do cuponzinho, estamos
chegando nas 1.500 assinaturas.
Essa edição tem outro motivo para otimismo: depois de ter sofrido pressões que
resultaram na perda de grande parte dos seus anunciantes, o jornal retorna a
normalidade nesta área. Estamos aí, com sete páginas de anúncios numa edição de
32...”(Coojornal, número 21).
O jornal continuou com grandes reportagens investigativas que desnudavam a
face autoritária do regime. Em março de 1978, publicou uma entrevista inédita com o
ex-tenente da Brigada Militar, Isko Germer, ex-guerrilheiro que havia sido chefe do
setor de sabotagens da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR comandada pelo ex-
capitão do exército Carlos Lamarca, morto pelo regime) e líder da VPR no Rio Grande
do Sul, tendo cumprido quatro anos de prisão. Na mesma edição, outra matéria
dedicava-se a desnudar o Caso Par-Sar, ocorrido em 1968, que resultou na reforma do
ex-capitão da Aeronáutica, Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho. O ex-capitão recusou-
se a liderar seus companheiros da Par Sar (unidade de elite da Aeronáutica especializada
em operações de resgate e salvamento) em operações de terrorismo e repressão política,
no momento em que os integrantes da equipe de elite receberam ordens para,
disfarçados, matarem integrantes dos protestos de 1968, que atacassem policiais. A
primeira atuação do esquadrão foi programada para acontecer durante os protestos pela
morte do estudante Edson Luís, em abril de 1968, mais especificamente, na missa de
sétimo dia de seu assassinato, cometido por policiais, enquanto o estudante participava
de uma manifestação em frente ao Restaurante Universitário Calabouço, no Rio de
- 2
Janeiro. Os homens da Par-Sar foram reunidos
142
, sob as ordens do Brigadeiro João
Paulo Moreira Burnier e do Major Gil Lessa de Carvalho, militares que defendiam a
eliminação de todos que causassem problemas ao regime. Com a recusa do capitão
Sérgio o caso Par-Sar chegou ao conhecimento de escalões mais altos da hierarquia
militar, e resultou na punição do capitão. A matéria publicada no jornal dava ênfase aos
planos sanguinários de facções militares, através das palavras do Brigadeiro Burnier, em
sua conversa com o capitão Sérgio, publicadas em negrito no jornal:
“....Para matar bem, é preciso saber matar, sentindo o gosto de sangue na boca.
Se estivéssemos treinando tropas como vocês, figuras políticas como o ex-
governador Carlos Lacerda, esse canalha que todos pensam ser meu amigo,
estariam mortas. Isto não aconteceu porque a mão dos pára-quedistas do Exército
tremeu. Eles se perderam em considerações sobre se a ordem era certa ou errada.
Ordens como essa não se discutem. Cumprem-se sem comentários posteriores.
Vocês precisam ter sangue-frio, para que pessoas inconvenientes possam sumir do
cenário político nacional, sendo lançadas em alto-mar, de navio ou avião”
(Coojornal, número 26).
As grandes reportagens, que versavam sobre a história recente do país, e
tornaram-se marcas registradas do Coojornal, continuaram a ser publicadas. Entrevistas
com políticos como Leonel Brizola, nos Estados Unidos, entrevista com Luís Carlos
Prestes, com Pedro Simom, matérias sobre militares conspiradores, como o general
Olimpyo Mourão Filho, entre outras, faziam parte do jornal. Matérias que provocavam
142
“...Na noite de 4 de abril, véspera da missa de sétimo dia do estudante Edson Luis, o major Gil Lessa
de Carvalho, que chefiava a Par-Sar na ocasião, ordena ao pessoal de prontidão que troque as fardas
por roupas civis e procure o capitão Cordovil na seção de material, para receber pistolas 45 (com o
número de registro raspado), falsos documentos de identidade e granadas. Ninguém sabe do que se trata.
(...) O grupo é dividido em quatro: Cinelândia, Largo de São Francisco, Candelária e Largo da
Carioca...Passa da meia-noite, na madrugada de 4 para 5 de abril, quando os homens do Par-Sar, em
locais pré-determinados...são exibidos de frente, costas e perfil ao pessoal da PM, Exército e DOPS
cautela para evitar que fossem confundidos com manifestantes.....As ordens de Lessa são claras: ‘Tomem
conta principalmente das janelas, para ver quem atira contra a policia. Caso descubram alguém,
invadam o local e liquidem com quem estiver lá. A fuga de vocês estará coberta’” (Coojornal, número
26).
- 2
o desagrado do regime, gerando a repressão ao jornal em plena abertura política,
quando, oficialmente, a censura já havia se retirado da imprensa brasileira.
Uma matéria sobre os Tupamaros, guerrilheiros uruguaios, causou novas
dificuldades em 1979, quando o jornal foi identificado como subversivo, ao ser acusado
pelo SNI de ter como um de seus financiadores os Tupamaros, que lutaram pelo fim do
regime autoritário naquele país. Novamente o Coojornal reage, publicando um
documento confidencial do SNI, onde pesava a acusação sobre o jornal na edição de
outubro de 1979. Também publicaram, na íntegra, a matéria que teria levantado as
suspeitas do regime. A equipe tratou de desmoralizar o SNI, através do editorial:
“Caro Sr. Agente do SNI,
O sr. Sabe, perfeitamente, que neste país as pessoas se acostumaram com a idéia
de ter os seus passos controlados, seus telefones granpeados, sua correspondência
vulnerada e todas essas aberrações com que fomos obrigados a conviver. É de
confessar que, no nosso caso, até confiávamos no senhor. Nossas reuniões o
abertas, nossas gavetas não tem chaves, não temos códigos telefônicos, todos os
nossos problemas são discutidos em assembléias gerais. Se o senhor fizesse um
vestibular para jornalismo poderia até tornar-se nosso sócio, sem usar nome falso,
pois não exigimos atestado ideológico de ninguém. Poderia vir sentar-se entre nós
nos fins de tarde quando nos reunimos, tomamos chimarrão e traçamos nossos
planos.
A essa altura do campeonato, sr. Agente, nós estamos com medo. Não da sua
eficiência e competência, mas ao contrário, da sua incompetência. Se é verdade
nós duvidamos muito que o senhor desempenha uma função muito importante
para a Segurança Nacional, a Segurança Nacional, decididamente, não está em
boas mãos. Desculpe, mas o sr. está pior do que os seus colegas que andavam pela
Europa a cata do Teodomiro Santos, quando o Teodomiro estava no interior de
São Paulo mandando fitas gravadas para os jornais. (...) está sua conclusão de
que – por termos publicado em primeira mão uma autocrítica de alguns ex-
militantes Tupamaros estamos sendo financiados por eles, ultrapassa de longe,
as barras do ridículo...”(Coojornal, número 46).
Uma declaração de avermelhar qualquer agente do SNI. Porém, nenhuma
resposta mais dura ocorreu, o SNI e a repressão silenciaram (não por muito tempo),
talvez em função do próprio absurdo da acusação.
- 2
4.7 Divergências internas: a crise da Coojornal
A fragilidade econômica da Cooperativa começou com as primeiras pressões e
perdas de anunciantes do Coojornal. Essa fragilidade aumentou com a publicação do
jornal semanal O Rio Grande, uma aspiração antiga dos jornalistas, porém, muito
onerosa e que não obteve o retorno esperado. O semanário começou a circular em maio
de 1979, e, não chegou ao final do ano, sendo fechado em outubro de 1979. Com a
falência da publicação os problemas financeiros da Cooperativa aumentaram. A fase de
grande êxito da Coojornal e do Coojornal, também foram os momentos que delinearam
uma crise que levou ao fim do jornal e da cooperativa.
Um aspecto muito importante na crise da Cooperativa foi a disputa interna,
advinda de formas diferentes de pensar o funcionamento do cooperativismo e da crítica
de uma corrente que se sentia preterida nas decisões da cooperativa e na participação no
Coojornal, face a uma corrente que estava na direção da Cooperativa e do jornal, e de
não pretendia sair. Disputas internas pelo poder, em uma cooperativa que reunia uma
diversidade de sócios, com diferentes interesses e propostas.
O ponto culminante dessa disputa entre concepções diferentes de funcionamento
da Cooperativa deu-se nas eleições de um novo grupo dirigente, em 1978. Uma disputa
entre aqueles que estavam na diretoria e pretendiam continuar e aqueles que,
discordando da prática do grupo diretor, almejava a direção. O grupo oposicionista
defendia uma participação maior dos cooperativados nas decisões. Criticavam uma
atuação centralizadora do grupo dirigente, tanto a nível da Coojornal quanto do
Coojornal. A propaganda do grupo oposicionista intitulava-se “Seja Dono de Sua
Cooperativa”, o texto da campanha
143
não deixava dúvidas de que parte do grupo estava
143
“...é hora de garantirmos a efetiva participação de todos no encaminhamento da Coojornal, e não de
sermos apenas convidados para opinar e ratificar....é hora de elegermos os editores das nossas
- 2
descontente. Ucha (1985), que compunha o grupo da situação, aponta algumas das
principais divergências entre oposição e situação, entre elas, a questão de fazer trabalhos
para grupos ou empresas que representassem interesses políticos, econômicos e sociais
que não estivessem de acordo com os princípios da Cooperativa, mesmo que a
perspectiva de lucro fosse grande. O grupo de oposição era contra esse tipo de trabalho.
Quanto ao Coojornal, a crítica dirigia-se ao centralismo editorial, personificado na
pessoa do editor Elmar Bones, responsável pela seleção das matérias e pela decisão do
que deveria ser publicado. Ucha (1985:63) defende que a fama do jornal propiciava aos
associados o desejo de
“...aparecer em suas páginas....e isso nem sempre era possível para todos, não
pelo espaço reduzido...diante da quantidade de colaboradores...mas, ainda, pelo
tipo do jornal que se tencionava fazer...o qual não comportava matérias escritas
apenas para atender a vaidade de quem a escrevia”.
Pode-se inferir, pelo que Ucha escreveu, que a linha editorial do Coojornal não
era aceita por todos os cooperativados, e que aqueles que não concordavam e queriam
publicar coisas diferentes não tinham espaço. Ora, o jornal foi então um jornal de alguns
jornalistas, e não dos (todos) jornalistas associados. Sabemos que o Coojornal, um
marco na imprensa alternativa nacional, pelas suas características, foi um jornal
conservador em termos de crítica aos padrões sociais e morais da sociedade, um jornal
que não abordava, por exemplo, temas culturais. Essas características fazem sentido
quando vemos na chapa de oposição nomes como Juarez Fonseca, Sérgio Becker e
Ademar Vargas de Freitas, que participaram do Exemplar, um jornal
predominantemente cultural.
O grupo da situação, que venceu as eleições em 1978, definia seus projetos
publicações em assembléia...ou se muda ou o compromisso de todos continuará sendo conduzido por
poucos...estamos propondo a inversão da pirâmide...com isso permitiremos a ascensão da base.”
- 2
como uma forma de dar continuidade aos interesses dos cooperativados, propunha a
publicação de um semanário, desejo antigo, que se concretizou, ainda que de forma
efêmera, com a publicação de O Rio Grande, além da “ampliação do número de
associados com trabalho permanente na cooperativa; criação de um fundo social que
garantias a esses associados; maior participação de todos...aquisição de sede
própria... (Ucha, 1985:60). Propostas de efeito, porém, algumas um tanto quanto
vagas, como a ampliação do número de associados que tivessem trabalho permanente na
cooperativa, uma proposta muito difícil de se colocar em prática em um mercado tão
competitivo, levando-se em consideração que o número de associados nessa época
passava de trezentos jornalistas. Sede própria e fundo social foram propostas de cunho
material, muito presente nas promessas políticas em todas as épocas. A maior
participação de todos, atendia a reivindicação da oposição, mas, a concepção de
participação parecia divergente entre as correntes que disputavam o controle da
cooperativa. Para Kucinski
144
(1991:218), a proposta do grupo hegemônico “consegue
derrotar a oposição, mas a custa de uma plataforma populista”.
Propostas e resultado a parte, a divisão dos jornalistas causou danos profundos
na estrutura da cooperativa, enfraquecendo a Coojornal. O grupo que perdeu tentou,
ainda, organizar um debate crítico sobre a Coojornal, mas foram advertidos por usar
indevidamente o nome da cooperativa. Nessa disputa, alguns clientes, identificados com
o grupo oposicionista, cancelaram seus contratos com a cooperativa. O desgaste foi
inevitável, alguns associados deixaram a cooperativa e as assembléias posteriores
acabaram se esvaziando. Nas eleições seguintes o havia mais oposição. O sonho do
“jornal de jornalistas” já não encantava mais boa parte dos associados.
144
A jornalista Rosvita Saueressig (fazia parte do grupo da situação), em entrevista a Kucinski (1991:217)
identifica o grupo de oposição a direção como integrantes dos que mais tarde formariam o Partido dos
Trabalhadores, enquanto que o grupo da situação eram quase todos peemedebistas.
- 2
4.8 Os relatórios da guerrilha: crise e prisões
Em fevereiro de 1980, o Coojornal publicou uma matéria longa e inédita sobre a
Guerrilha no Brasil, matéria que teve por base relatórios secretos (até então) do
Exército, sob o título de capa: “OS RELATÓRIOS DO EXÉRCITO SOBRE A
GUERRILHA”. A equipe fez questão de copiar trechos dos relatórios, dando
visibilidade suficiente para o leitor identificar o timbre do Exército, e a tarja de
“Confidencial”. Os jornalistas compraram os relatórios do cabo de Exército Carlos Mer
Echevarria, por Cr$ 15 mil, comprometendo-se a tirar os carimbos que identificavam os
relatórios. Para Kucinski (1991:220), havia cópias desse relatório que “circulavam entre
alguns oficiais da centelha nativista’ que conspiravam contra a candidatura do
general Figueiredo a presidência, estabelecendo contatos com a imprensa alternativa”.
O conteúdo dos relatórios descrevia a perseguição ao grupo de Carlos Lamarca, no Vale
do Ribeira, em 1970, operação denominada de Registro”, pelos militares. Nos
relatórios os militares faziam uma avaliação da operação frustrada. Também descreviam
a operação de 1971, chamada pelo exército de “Operação Pejussara”, que foi bem
sucedida na caça de Lamarca. Ao publicar esses relatórios o jornal trouxe também um
balanço dos anos mais duros do regime militar no país, os anos do governo de Médici.
Esse balanço demonstra as contradições desse período, que dici foi o general-
presidente do “milagre econômico”. Recortamos, a seguir, a chamada da matéria
publicada no jornal, que demonstra a relação com o governo de Médici:
“A perseguição aos guerrilheiros de Carlos Lamarca no vale do Ribeira, em 1970,
e a morte do capitão que liderava a luta armada no sertão baiano, em 1971,
contadas em relatórios reservados do Exército: Há alguns meses depondo na
Câmara dos Deputados, em Brasília, o ministro Walter Pires, do Exército, fez uma
surpreendente revelação, ao afirmar que as Forças Armadas tiveram 95 mortos e
- 2
235 feridos na luta contra grupos armados de esquerda entre o final da década de
60 e o inicio da década de 70. Foi a primeira vez que uma autoridade militar citou
publicamente as baixas da “guerra civil” que se desenrolou nos bastidores do
período de prosperidade econômica conhecido como “milagre brasileiro”, entre
1968 e 1974 Apesar de tudo, o assunto ainda permanece quase absolutamente
fechado para o governo, geralmente disposto a ocultar as reais dimensões desse
fenômeno político que teve seu auge no período de 1969/71, sob o governo do
general Emilio Garrastazu Médici”. (Coojornal, número 50).
A matéria levou a público dados que constavam em relatórios oficiais, dos quais
o Exército não tinha o menor interesse de tornar público. Além de admitir que a
guerrilha tinha existido organizadamente, que nesse confronto o Exército teve baixas
significativas, além das dificuldades e da vitória no Vale do Ribeira, do grupo de
Lamarca, o relatório falava em “guerra civil”. Todos esses dados maculavam o governo
de Médici, o mais repressor e ao mesmo tempo o mais popular comandante do país
durante o regime militar.
A resposta da repressão foi um golpe profundo no Coojornal e na Coojornal,
enfraquecida pelas disputas internas. Os jornalistas foram processados pela divulgação
dos documentos secretos e por prevaricação. Além do processo, que resultou em prisões
de jornalistas, a repressão novamente partiu para a pressão sobre os anunciantes, e, desta
vez, bombas foram jogadas em bancas que vendiam o jornal.
Segundo Elmar Bones
145
tudo o passou de uma farça do próprio regime, o
cabo que entregou os documentos foi incumbido pelos seus superiores desse ‘trabalho’.
A idéia era justamente poder cavar uma brecha para processar e fechar o jornal. Bones
diz que anos mais tarde encontrou o cabo que confirmou essa versão.
O Inquérito Policial-Militar contra os jornalistas arrastou-se por três anos. Foi
instaurado em fevereiro de 1980, no mesmo mês em que os relatórios foram publicados
pelo jornal. Em dezembro do mesmo ano, o jornal denuncia o processo que corria com
145
Depoimento gravado em VHS, disponível no ‘Acervo de Luta contra a Ditadura’ no Memorial
Histórico do Rio Grande do Sul.
- 2
“muito de intimidação”:
“Caro leitor,
(...)Aquela edição de fevereiro esgotou nas bancas (eram 35 mil exemplares) e a
reportagem trouxe contra si uma reação da área militar que nunca esperávamos.
Afinal, o trabalho apenas revelava relatórios do próprio exército sobre a atividade
contraguerrilheira no país, mostrando, entre outras coisas, o quanto nossas forças
militares aprenderam naqueles meses. Mas o Ministério do Exército não gostou,
fez nota oficial condenando a matéria e mais tarde os dois autores da reportagem,
mais os colegas Rafael Guimarães e Rosvita Saueressig, foram envolvidos num
sigiloso IPM realizado aqui pelo III Exército.O IPM originou um processo na
Justiça Militar, com nossos jornalistas enquadrados em artigos do Código Penal
Militar. O processo começou no distante município de Bagé e se arrasta hoje por
Porto Alegre. Esse processo teve muito de intimidação....”(Coojornal, número 48).
Talvez na época dessa publicação os jornalistas não imaginassem que meses
mais tarde o processo que “se arrastava”, em plena “abertura”, resultaria em prisões. Em
julho de 1981 veio a condenação dos jornalistas, após julgamento na Primeira Auditoria
da Justiça Militar. Condenados a cinco meses de prisão, dos quatro jornalistas
processados, dois são presos imediatamente Osmar Trindade e Rafael Guimarães -,
pois respondiam processos com base na “Lei de Imprensa”, enquanto que Rosvita
Saueressug e Elmar Bones aguardariam em liberdade. Osmar Trindade, presidente da
cooperativa, e Rafael Guimarães, secretário, permanecem presos por dezessete dias. Do
Presídio Madre Pelletier, o diretor do jornal, Osmar Trindade escreveu sobre a
condenação dos jornalistas, denunciando todas as pressões que o Coojornal vinha
enfrentando:
“....Anunciantes do jornal foram amedrontados por ameaças, veladas em alguns
casos e ostensivas em outros; clientes de serviços gráficos proporcionados pela
Cooperativa foram sugestionados a trocarem de oficina; o nome do jornal
freqüenta listas de organismos de segurança que o apontam como ‘publicação
perigosa’ ou algo do gênero; exemplares do jornal foram queimados em bancas
que sofreram atentados a bomba; e os negócios da Cooperativa numa dezena de
vezes foram prejudicados por anônimos e bem situados agentes que prestam
serviços a setores do governo...” (Coojornal, número 65).
- 2
Após dezessete dias os jornalistas foram liberados. Mas o processo não tinha se
encerrado ainda. Passado mais de um ano, em fevereiro de 1983, os quatro jornalistas
foram presos novamente, permanecendo por seis dias no presídio, esse tempo o foi
maior porque surgiram muitos protestos, de políticos a organizações de imprensa.
Afinal, não estava o país às vésperas de uma eleição, em que o poder seria transferido
aos civis!
4.9 O Coojornal não resiste à crise
Os primeiros anos da década de oitenta foram os anos de agonia financeira do
jornal. Muitas foram às tentativas para salvar o periódico, contudo, o Coojornal não se
reergueria mais. Em 1981, Elmar Bones já não era mais seu editor. A presidência
continuava com Osmar Trindade, porém, novos colaboradores ganharam espaço
146
,
contribuindo com matérias sobre cultura, música e idéias. Uma mudança sutil, que pode
ter passado despercebida em meio à crise e agonia do jornal, mudança sutil porque o
Coojornal nunca foi libertário no sentido de crítica aos costumes, a moral, a mudança
pela qual lutava era uma mudança a nível político, na medida em que defendia o retorno
ao estado de direito, constitucional.
Além das reuniões internas entre associados da Coojornal, cujo intuito era
levantar fundos para recuperar o periódico, os leitores também foram incitados a ajudar.
Foram feitas campanhas para recolher mais assinaturas
147
e camisetas do periódico para
146
O jornal passou a dedicar um espaço de uma ou duas ginas a matérias sobre música,
comportamento, cultura, chamada de “Idéias”, o responsável pelo espaço era Juarez Fonseca. Um espaço
maior também foi dedicado a indicações de livros e leituras.
147
Quem conseguisse assinaturas ganharia livros da editora LP&M de presente: “...Você, que é amigo e
leitor do Coojornal, está convidado a participar de nossa campanha de assinaturas e ganhar livros de
presente. É fácil: a cada três assinaturas do Coojornal que vender para seus amigos, parentes e colegas
você tedireito a escolher um destes livros: Se vender cinco assinaturas terá direito a escolher dois
livros...” (Coojornal, número 71).
- 2
vender
148
. No ano de 1981, o jornal chegou a deixar de ser editado por alguns meses,
circulou em edições bimestrais por duas vezes, mudou o papel de impressão. Muitas
foram às tentativas de evitar seu fechamento, entretanto, as disputas internas, as
pressões do regime, as crises financeiras, foram minando a resistência do Coojornal,
que deixou de circular em 1983.
Desde o início, quando era apenas um boletim, até o término do jornal, foram
oito anos de circulação. Oito anos que o Coojornal circulou mantendo uma linguagem
direta, clara, fazendo oposição sem meias palavras ao regime militar e ao cerceamento
de liberdade, principalmente no que se referia à imprensa. Anos em que o jornal inovou
o jornalismo brasileiro com suas grandes reportagens, que desnudavam aspectos ainda
nebulosos da vida do país durante os anos do regime autoritário, com matérias que não
eram bem vindas e que levaram a repressão ao periódico. O Coojornal teve o respaldo
da maioria dos jornalistas do Rio Grande do Sul, e, em função de ter circulado no
período da chamada “abertura”, conseguiu se manter por tanto tempo com o tipo de
linguagem que utilizava. Contudo, a divisão dos jornalistas na hora de reeleger a
diretoria da cooperativa, e a posterior falência da Coojornal foram o golpe definitivo ao
periódico.
Para Ucha (1985:68), apesar das tentativas, nem o jornal, nem a cooperativa
conseguiram se recuperar:
“...Osmar Trindade e sua diretoria ainda tentaram salvar o insalvável, fizeram
dezenas de reuniões com os mais diferentes tipos de associados, procuraram
agências de publicidade, empresários e partidos políticos de oposição, em busca
de trabalhos ou projetos que permitissem a sobrevivência e a continuidade da
cooperativa, mas nada conseguiram. A vitória do PDS na disputa do governo
gaúcho contribuiu para desanimar até os mais sonhadores...”
148
“Vista a camisa do Coojornal! O Coojornal fez uma bela camiseta para você e seus amigos usarem
neste verão. Custa apenas Cr$ 400 cruzeirinhos e tem tamanhos 42, 46 e 50. Venha buscar a sua aqui no
Coojornal ou peça pelo reembolso postal...” (Coojornal, número 70).
- 2
O fim da Coojornal e do Coojornal coincidiu com o período em que depois de
alguns anos sem votar para governador, os gaúchos elegeram, para surpresa, inclusive
dos militares, um político do PDS. Nesse cenário, o sonho do “jornal de jornalistas” ou
de alguns jornalistas, encerrou suas publicações.
A análise do Coojornal possibilitou-me perceber os meandros e os
procedimentos ambíguos da repressão no período da “abertura”. Procedimentos que se
modificavam de acordo com as características do periódico visado. Acredito que o
Coojornal, por ter sido um jornal alternativo de estrutura mais sólida, que representava
uma cooperativa de jornalistas, teve um respaldo maior para escrever contra o regime e
manter-se sem repressão direta por mais tempo. Revistas e jornais que escreveram de
forma mais contida, foram censuradas de maneira mais direta e incisiva, no mesmo
período (como a Revista Paralelo), mas eram órgãos que não tinham o mesmo respaldo
oferecido ao Coojornal, tampouco, um grande sistema de divulgação e circulação. A
prisão dos jornalistas, em 1983, ano véspera da eleição indireta de Tancredo Neves,
exemplifica, claramente, o caráter da “abertura” conduzida, bem menos “democrática”
do que se acredita, uma abertura autoritária, de cima para baixo, com a conivência e
participação do partido de “oposição”, o antigo MDB. Muitos jornalistas da diretoria do
Coojornal aderiram ao MDB na “Nova República”, fato que enfatiza ainda mais o tipo
de resistência e o tipo de democracia que o Coojornal defendia, e que procurei
demonstrar ao longo do capítulo: uma democracia” liberal, constitucional, um “Estado
de Direito”. O que quero dizer, sem menosprezar a importância do jornal, é que as
mudanças que defendia não iam além do que muitos que apoiaram o golpe também
defendiam.
- 2
Considerações Finais
Não acredito em neutralidade ou objetividade em história, tampouco em uma
verdade
149
única, pronta e acabada, esperando que o historiador, com seus métodos
eficazes, a desvende. As “verdades” são parciais, são instáveis, as teorias tem estatutos,
tem “prazos de validade”. É nesse sentido que, para Jenkins (2001:35), a história é um
discurso em constante transformação construído pelos historiadores... da existência do
passado não se deduz uma interpretação única: mude o olhar, desloque a perspectiva, e
surgirão novas interpretações”. Entendo, com isso, que o trabalho do historiador é um
trabalho de interpretação, pois é o historiador que “faz os documentos, os vestígios
falarem, e faz isso a partir de seu olhar, de seu lugar social (Certeau, 2002). Interpreta
vestígios, documentos interpretados antes, na medida em que “não nada
absolutamente primário a interpretar, porque no fundo tudo é interpretação...
interpretar o mundo e mudá-lo não são coisas distintas” (Foucault, 1997:22-31).
Conseqüentemente, acredito que nenhum tema possa ser esgotado, surgirão
sempre novos olhares, outras interpretações, de maneira que o foram esgotadas as
interpretações possíveis acerca dos jornais de imprensa alternativa analisados nessa
dissertação. Não estou dizendo, com isso, que a interpretação possa ser arbitrária
aceitar qualquer possibilidade, significar tudo -, mas sim polissêmica. A idéia é buscar
verossimilhanças procurando uma aproximação maior de um “real” que não pode ser
apreendido em sua totalidade, de forma que nenhuma teoria ou interpretação constitui
“a verdade”. Antigamente o historiador se cercava de uma teoria e de todos
rigorosos, que, acreditava, lhe assegurariam um trabalho cientifico, verificável, neutro e
objetivo. Atualmente, esses conceitos não balizam a historiografia, pois sabemos que
149
Isso porque “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua’ política geral’ de verdade: isto é, os
tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiro” (Foucault, 1996:12).
- 2
não é possível “resgatar” ou “reconstruir” o passado. O olhar que o historiador lança
sobre o passado está limitado pelos recortes, pela seleção pessoal da documentação, pela
maneira como ele constrói a sua história, enfatizando alguns aspectos em detrimento de
outros. Nas palavras de Hayden White (1994:59), precisamos reconhecer que não
essa coisa de visão única correta de algum objeto em exame, mas sim muitas visões
corretas, cada uma requerendo o seu próprio estilo de representação”
150
.
É a partir desse entendimento de história que encaminho as considerações finais
sobre os jornais alternativos pesquisados. Procurei, no decorrer dos capítulos,
demonstrar as estratégias discursivas desses periódicos, as formas de atuação, de
oposição e resistência ao Estado Autoritário e, conseqüentemente, à repressão e à
censura. Busquei analisar também a formação desses jornais, os vínculos dos jornalistas
e colaboradores, sua inserção social, os limites e alcances das práticas de resistência de
cada um deles. Com isso pode-se perceber, partindo desses jornais, a dinâmica, as
aproximações e distâncias dentro de uma variedade de publicações classificadas como
alternativas. E, também, entender que a atuação censória o se limitou à vigência da
uma lei oficial de censura, que não vigorou apenas durante os anos de exceção”, mas
estendeu seus tentáculos abertamente, até o final do regime militar, não terminando com
o fim da censura prévia e com o fim do AI-5. Digo abertamente porque a tradição
censória do país, analisada no primeiro capítulo, remonta aos primórdios da
colonização, existindo antes mesmo da própria imprensa, nas suas mais diversas
categorias.
Tendo em comum a oposição a uma ordem autoritária, as proximidades de
linguagem e, na grande maioria dos casos, um tempo curto de circulação, os jornais
150
Certamente acredito que a análise esteja “correta”, no sentido utilizado por White, contudo tenho em
mente que ao selecionar e analisar o material, priorizei alguns fatores em detrimento de outros, de
maneira que jamais poderei considerar por fim “fechada” a analise dos três jornais alternativos de que me
ocupei.
- 2
alternativos durante o regime militar enriqueceram as estratégias de resistência e a
própria linguagem jornalística, cada um a sua maneira e dentro de suas peculiaridades.
Heterogêneos, com diferentes propostas e objetivos, muito embora os colaboradores e
jornalistas fossem os mesmos em mais de um jornal alternativo, esses periódicos
aglutinaram jornalistas, intelectuais, políticos, artistas, estudantes que encontravam
neles uma forma de expressarem sua idéias, críticas e mesmo angústias. Apesar de
limitados pela repressão esses periódicos conseguiram sustentar um discurso de
oposição ao discurso oficial.
Exemplar, Pato Macho e Coojornal fizeram parte de um “surto” alternativo
nacional que iniciou com Pif-Paf, de Millôr Fernandes, e conquistou notoriedade com o
Pasquim. De maneira geral, a análise dos três jornais permitiu-me um contato com as
muitas facetas censorias. Considero que os três periódicos exerceram ativamente, para
além de suas peculiaridades, a crítica ao Estado Autoritário. Contudo, a repressão agiu
de maneira distinta: com o Exemplar inexistiu; no Pato Macho foi motivada por
interesses pessoais de uma pessoa influente na sociedade gaúcha; e no Coojornal num
primeiro momento, agiu sorrateiramente, atingindo o jornal no plano econômico,
através da intimidação a anunciantes. E, num segundo momento, em plena “abertura
política” moveu um processo penal que resultou na prisão de jornalistas, no ano de
1983.
Como afirmei anteriormente, apesar de multifacetada, a censura não era
aleatória, essa diferença de postura que variava de jornal para jornal tinha uma lógica de
funcionamento. Para compreender esse funcionamento, foi preciso considerar as
peculiaridades de cada jornal.
Porque o Exemplar não sofreu repressão alguma, principalmente tendo circulado
durante os anos tidos como de chumbo”? Primeiro porque teve circulação restrita, o
- 2
era vendido nas bancas (isso só aconteceu nos últimos números); Segundo, porque
esteve ligado a uma empresa particular, uma construtora que tinha por objetivo expandir
seus negócios com a publicação do jornal, ou seja, não foi pensado originalmente como
um jornal de contestação (pelo menos para o diretor do jornal, que era o dono da
empresa), tanto que, inicialmente, o editorial propunha um periódico “apartidário”.
Contudo, apesar de utilizar-se da migração de sentidos, do humor (principalmente
através das HQs), o jornal exerceu uma denúncia constante, uma crítica libertária ao
Estado Autoritário. Mesmo cuidando para não ultrapassar certos limites, a literatura,
poesia e as crônicas foram algumas das armas com as quais os jornalistas combateram o
regime, os costumes, a violência e a repressão. Mas, na lógica de funcionamento da
censura, muito provavelmente, essa crítica não tinha alcance suficiente para ameaçar o
Estado ou a sociedade - sabemos que todas as publicações eram listadas pelos órgãos de
informação e censura, e quando consideradas perigosas eram censuradas ou impedidas
de circular, por esse motivo descartei a hipótese de que os órgãos de segurança não
tenham tomado conhecimento do periódico.
O Pato Macho surgiu causando alvoroço na sociedade porto-alegrense: a equipe
era composta por pessoas reconhecidas, como Luis Fernando Veríssimo e Carlos
Nobre; o jornal prometia um humor debochado à moda do Pasquim, este último já era
notoriamente conhecido pelas críticas e pela censura que sofria; além do mais, o
periódico avisava no primeiro número combater os “provincianos”, aqueles apegados
a seus “mitos”, a uma velha e hipócrita moral; enfim, mais do que a crítica ao regime
militar, a “patota” esteve disposta a criticar, satirizar, debochar do conservadorismo dos
socialites gaúchos.
A promessa se cumpriu, o Pato, durante o seu curto período de circulação,
causou mal-estar a muitos de seus leitores. Mas esse humor crítico, em pleno ano de
- 2
1971, não teve problemas propriamente com uma crítica política, já que a censura que
atingiu o jornal foi inusitada. Provavelmente, naquele período, tenha sido a única com
tal característica. Não tenho conhecimento de outro periódico do qual a censura prévia
se ocupava apenas de cortar referências pessoais que houvessem no jornal a
determinado sujeito. Mais do que oposição política, o Pato Macho praticou uma crítica
aos costumes, e que seus leitores o público-leitor da imprensa alternativa é oriundo
dos setores que o jornal criticava - deixaram de comprá-lo, o semanário deixou de
circular sem condições financeiras para se manter. No caso do Pato, seus leitores
podiam aceitar e concordar com a ironia e o deboche ao regime militar, mas não
aceitaram serem alvos dessa crítica irônica, da contestação aos seus padrões sociais e
morais, aos seus costumes.
Original, o “jornal de jornalistas” Coojornal - começou a ser publicado em
1975, período em que se discutia a “abertura política”. Respaldado inicialmente por
mais de sessenta jornalistas, número que cresceu rapidamente para mais de trezentos
integrantes, o periódico o usou de meias palavras, metáforas ou entrelinhas, a crítica
ao regime militar e, principalmente, a defesa da liberdade de imprensa era aberta. Sabe-
se que embora se falasse em abertura, a censura ainda era atuante. Contudo, os
jornalistas praticaram uma oposição nada discreta, mas que tinha seus limites, os quais
esbarravam na defesa do “Estado de Direito”, constitucional, onde a liberdade deve ser
exercida “com responsabilidade”, respeitando-se a autonomia dos poderes Legislativo e
Judiciário, e onde a liberdade de imprensa é vista como complemento essencial da
“democracia”. Ou seja, o Coojornal não esteve imbuído como Exemplar e Pato Macho,
dos ideais do movimento de contracultura, que se opunham a todo um sistema político,
econômico, social, cultural e ideológico de forma libertária, criticando a essência de um
- 2
pensamento liberal. As liberdades “democráticas defendidas pelos jornalistas do
Coojornal, podem ser melhor definidas como liberdades liberais.
Esses aspectos que considero importantes não diminuem a importância do jornal,
mas demonstram a diferença de posturas e alcance das críticas à ordem vigente entre a
imprensa alternativa. A oposição praticada pelo Coojornal foi contundente e ativa; com
as chamadas grandes reportagens, por exemplo, a equipe desmascarou e tornou público
fatos que o Exército procurava esconder. Uma oposição que foi política, embasada nos
preceitos liberais.
Mesmo contribuindo efetivamente para desmascarar a violência do Estado
Autoritário, e suas contradições, temos de reconhecer que os jornalistas alternativos não
foram “mártires” na luta contra o regime militar. Digo isso porque se existiu uma
imprensa alternativa durante esse período, e se esses jornais puderam testar os limites e
desafiar os militares e os setores mais conservadores da sociedade, mesmo de forma
efêmera em sua duração, de certo modo, isso foi possível porque havia uma brecha,
tênue, na maioria das vezes, nas quais jornalistas e intelectuais podiam expressar seu
descontentamento, suas visões de mundo. É claro que eles testavam essa brecha do
regime, forçavam seus limites, jogavam com a censura e a repressão e, algumas vezes,
perdiam muito.
Para além do caráter de resistência, de crítica ao regime militar que uniu a
imprensa alternativa, cada jornal foi um núcleo próprio e diverso de denúncia, de ânsia
pela liberdade, seja de forma cultural, de forma política ou humorística, cada um, a sua
maneira, representou os anseios de uma sociedade em que pesava o cerceamento à
liberdade e as mais diversas formas de violência.
- 2
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