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Rosiane dos Santos Ferreira
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Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2008
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Rosiane dos Santos Ferreira
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Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos
da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre
em Lingüística.
Área de concentração: Lingüística
Linha de Pesquisa: A Lingüística dos
Gêneros e Tipos Textuais
Orientador: Prof. Dr. Luiz Francisco Dias
Apoio financeiro: CNPq
BELO HORIZONTE
Faculdade de Letras da UFMG
2008
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3
Dissertação intitulada “Estudo histórico-enunciativo dos pronomes ‘eu’ e ‘você’
em charges”, defendida por Rosiane dos Santos Ferreira, em 26 de junho de
2008, e aprovada pela banca examinadora composta pelos seguintes
professores:
_______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Francisco Dias (UFMG)
(Orientador)
_______________________________________________
Profª. Drª. Maralice de Souza Neves (UFMG)
_______________________________________________
Profª. Drª. Tattiana Gonçalves Teixeira (UFSC)
_______________________________________________
Profª. Drª.Júnia Diniz Focas (UFMG)
(Suplente)
Belo Horizonte, 26 de junho de 2008
4
DEDICATÓRIAS
Mais um “divisor de águas” acontece em minha vida.
Por isso, tenho motivos suficientes para glorificar ao
Senhor Jesus, cujo Poder não conseguimos mensurar,
mas perceber através de momentos alegres e tristes da vida.
Sou testemunha desse Poder,
que sustentou todo o meu percurso de mestranda.
Ao Professor Luiz Francisco, valioso orientador de meu mestrado,
muito obrigada e, verdadeiramente, parabéns por me ensinar (quase sem
palavras) que só aprendemos a fazer um trabalho, fazendo.
Hoje eu entendo, com clareza, que o ofício de pesquisador só se constitui
no dia-a-dia da investigação.
É baseado na postura e exemplo desse estimado orientador,
que este trabalho resulta em um legítimo recorte de estudos,
“encerrado” com nossas palavras,
porém aberto a outras possíveis reformulações e desdobramentos.
A minha família que, cada um a sua maneira, contribuiu para a concretização
do trabalho: minha mãe com seu zelo, carinho e dedicação;
meu pai - ferrenho defensor do exercício da leitura – e honrado pai de família;
meu querido irmão Bubu, com quem posso brincar e descontrair sempre...
Dedico esse trabalho, também, aos familiares mais próximos:
vovó Josefina, tia Ângela, Vilmar e o sempre bebê Iasmim, cujo crescimento
teve que dividir espaço com oito anos de UFMG.
5
AGRADECIMENTOS
Dois valiosos grupos de pesquisa da FALE / UFMG merecem seu devido
reconhecimento:
o Grupo de Estudos da Enunciação, ao qual se filia diretamente o meu
trabalho e que nos leva à contínua (re)construção dos saberes.
o Redigir, que muito antes de eu me tornar mestranda, mostrou-me a graça
do exercício de ler e produzir textos, sobretudo quando esse exercício é
praticado na web.
E por falar em Redigir, é difícil não registrar o nome da querida e competente
Professora Carla Viana Coscarelli (UFMG), que sabe lidar graciosamente com as
palavras. Também agradeço aos colegas da equipe Redigir 2003 / 2004, com quem
muito aprendi.
outros Professores da FALE / UFMG presentes no meu percurso de mestranda,
aos quais devo o meu profundo agradecimento, devido aos profissionais e seres
humanos valiosos que são: Professora Beatriz Decat; Professora Regina Perét;
Professor Edson Campos Nascimento. Obrigada, também, ao Professor Rachid
Mohalem da Física UFMG, pelos incentivos.
Devo meus agradecimentos também aos professores da banca examinadora, que
contribuíram com as minhas reflexões.
Um lugar diferenciado, merecem os incondicionais amigos Fernanda Peçanha e Luiz
Henrique da Silva. Brilhantemente, vocês fazem parte da minha vida pessoal e
acadêmica há oito anos.
Aos queridos amigos Aciomar Fernandes, Ana Virgínia, Clemerson Campos, Clóvis
Rodrigues, Cristiane Rocha, Edson Wander (Física UFMG), Emiliana Ladeira, Elizete
Souza, Fernanda Moreira, Pedro Peixoto (EBA UFMG), Priscila Brasil, Priscila Viana,
Saulo Sales, Thatiane Ribas e todos os especiais que eu não tenha mencionado aqui.
Obrigada a você, Cláudia Lemos, que tanto questionou meus escritos no primeiro ano
de mestrado, desafiando-me a avançar nas reflexões.
Obrigada a Biblioteca da Faculdade de Letras da UFMG, que me concedeu
exemplares antigos de jornais, para a constituição do material de análise.
Ofereço semelhante agradecimento ao Olavo, hoje, ex-funcionário do D.A. Letras, que
me concedeu versões digitais de jornais; agradeço também ao Roberto e a Diná,
funcionários da informática FALE / UFMG.
Ao CNPq pelo integral apoio financeiro.
6
RESUMO
Esta pesquisa analisa a especificidade que os usos dos pronomes “eu” e “você”
adquirem na textualidade de diferentes charges jornalísticas, tendo em vista o
conceito intermediário de modos de enunciação. A partir da análise de nove
charges publicadas na revista Istoé e nos jornais Estado de Minas e Folha de
São Paulo, desenvolvemos a hipótese de que o modo de enunciar
multireferencial peculiariza, de maneira regular e predominante, o uso daqueles
pronomes na textualidade de exemplares do referido gênero. No decorrer
dessas análises, também apontamos os modos de enunciar genérico e
específico como responsáveis, em menor medida, por orientar a relação entre
“eu”, “você” e a textualidade de charges jornalísticas. Fundamentamos essas
análises em duas principais perspectivas teóricas. Através da primeira, a
Semântica Histórica da Enunciação, procuramos mostrar que os múltiplos
escopos de referência estabelecidos com o uso dos pronomes não mantêm
relação com a identificação de aspectos diferentes de um objeto no mundo,
mas com o que a linguagem houvera simbolizado sobre esses objetos e
historicizado em um confronto de dizeres e sentidos diversos, arregimentados
na interdiscursividade, e simbolizado, ainda, nas atualidades de cada charge.
Através da segunda, a Semântica de Normas, procuramos mostrar que cada
uso dos referidos pronomes, observados em cada ocorrência chargística,
ganha pertinência na medida em que é pensado na relação de uma charge
com tantas outras charges que formam o que Rastier (1998, 2000) e Rastier;
Pincemin (1999) chamam de corpus (gênero de texto). Em nossas análises,
destacamos seis aspectos: a questão da temática, a do gesto de autoria, a
questão da co-ocorrência da multireferencialidade enunciativa com outros
modos de enunciar, a questão das esferas sociais e a questão dos papéis
enunciativos que cada sujeito-chargista costuma teatralizar para tornar aquilo
que diz um texto efetivo na prática do Jornalismo de Opinião.
Palavras-chave: acontecimento enunciativo, cena enunciativa, interdiscurso,
referência, charge jornalística.
7
ABSTRACT
This study analyzes how the personal pronouns “I” and “you” are specifically
employed in newspaper cartoon textuality, considering the intermediate concept
of enunciation modes. Upon the analysis of nine cartoons published in Istoé
magazine and the Estado de Minas and Folha de S. Paulo newspapers, it was
concluded that the multi-referential enunciation mode attributes the peculiar use
of these pronouns in a regular and predominant manner. Additionally,
throughout the analysis, the specific and generic enunciation modes were noted
as responsible, on a lesser scale, for orientating the relation between “I” and
“you” and journalistic textuality. These analyses were based on two theoretical
perspectives. First, an attempt was made to show through Enunciation Historic
Semantics that established multiple scopes of references in the use of pronouns
are not related to identified different aspects of an object in the world, excluding
what was symbolized by the language concerning those historicized subjects in
conflict to a diversity of sayings and meanings, regimented into inter-discourse,
and also symbolized in the cartoon’s present time. Through the second
theoretical perspective, the Semantic of Norms, an attempt was made to
demonstrate that each employment of the referred pronouns, observed in each
cartoon’s context, only gains pertinence when they were considered in their
relation to other cartoons which is what Rastier (1998, 2000) and Rastier;
Pincemin (1999) call corpus (text genre). In this present study, six aspects are
highlighted: theme, authorship, co-occurrence of multi-referentiality and other
enunciation modes, social spheres, and the enunciative role that each
cartoonist-subject customarily portrays in order to turn the cartoon into an
effective text in the realm of Opinion Journalism.
Key words: enunciative event, enunciative scene, interdiscourse, reference,
newspaper cartoons.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 12
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ....................................................... 22
CAPÍTULO 1
Acontecimento lingüístico e cena enunciativa: para um estudo sobre
modo de enunciação em gêneros de texto ................................................... 28
1.0 Primeiras palavras sobre a noção de acontecimento ............................... 29
1.1 Por uma abordagem mais ampla da noção de acontecimento
.......................................................................................................................... 30
1.2 Entendendo um pouco mais a hermenêutica de um acontecimento,
segundo Quéré (2005). .................................................................................... 33
1.3 A hermenêutica de um acontecimento segundo uma Semântica de caráter
histórico-social ................................................................................................. 35
1.4 Primeiros pilares do conceito de cena enunciativa .................................... 37
1.4.1 Cena enunciativa ......................................................................... 44
1.4.2 “Cena enunciativa” e “texto”: por uma proposta de uma
compatibilização .................................................................................... 50
1.4.3 Da unidade de cena enunciativa ao corpus de cenas ................. 52
1.5 A Semântica de corpus .............................................................................52
1.5.1 Enfim, corpus de cenas chargísticas
............................................................................................................... 60
1.6 Modo de enunciação e gênero textual ....................................................... 60
1.7 A referência ................................................................................................ 61
1.8. Por um esboço da relação modo de enunciação X gênero textual .......... 68
1.9 _ Perspectivas para o andamento da pesquisa ........................................ 73
9
CAPÍTULO 2
Modo de enunciação e charge jornalística ................................................. 74
2.0 Pontos de partida ..................................................................................... 75
2.1. A Atualidade e a caricatura das charges jornalísticas em pauta
...........................................................................................................................75
2.2. O acontecimento jornalístico para além dos limites de uma circunstância
atual ..................................................................................................................83
2.2.1. O papel da Atualidade nas práticas jornalísticas ............................84
2.2.2. A Atualidade das charges em confronto com o interdiscurso .........87
2.2.3. Multireferencialidade enunciativa e outros modos de enunciação na
charge .......................................................................................................91
2.4. Outros aspectos relevantes da Multireferencialidade enunciativa .............96
2.5. Multireferencialidade enunciativa X Ambigüidade, Homonímia, Polissemia
.........................................................................................................................100
CAPÍTULO 3
Diferenças e semelhanças na referência pronominal em nove charges
jornalísticas
.......................................................................................................................105
3.0 Diretrizes para as análises .......................................................................106
3.1 Para além da morfossintaxe pronominal no estudo das charges .....106
3.2 A manifestação ou as manifestações de Multireferencialidade
enunciativa na constituição de textualidades com pronomes? ...............109
3.3 As análises ........................................................................................110
3.3.1 O papel da autoria na Multireferencialidade manifestada em
cenas “de”uma mesma esfera social. .............................................110
3.3.2 Os direcionamentos em cenas chargísticas “de” uma mesma
esfera social ....................................................................................115
10
3.3.3 O papel da autoria na Multireferencialidade manifestada em
cenas “de”diferentes esferas sociais. .............................................117
3.3.4 O papel do chargista na representação de enunciador individual
e coletivo por meio da Multireferencialidade ..................................125
3.3.5 Multireferencialidade enunciativa de caráter genérico ..........126
3.3.6 Multireferencialidade enunciativa de caráter especificador ...139
3.4 A predominância da Multireferencialidade enunciativa na constituição da
normatividade de cenas chargísticas ..............................................................142
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................148
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................151
11
“(...) por mais que se diga
o que se vê,
o que se vê não se aloja jamais
no que se diz,
e por mais que se faça ver
o que se está dizendo
por imagens, metáforas, comparações,
o lugar onde estas resplandecem
não é aquele que os olhos descortinam (...)”
FOUCAULT (2002, p.12)
12
INTRODUÇÃO
“Enquanto unidade mínima de análise,
o texto age como instância global
em relação aos seus elementos,
mas também como instância local
em relação ao seu corpus.
Pelo viés especialmente do seu gênero,
o texto aponta [para] seu corpus e seleciona,
por assim dizer, os outros textos
que permitem interpretá-lo”.
(RASTIER, 2005, p.5)
“O texto atesta o modo pelo qual,
pela sua função de autor,
o sujeito administra a dispersão
e a pressão da multiplicidade
das possíveis formulações (outras)
no mesmo sítio de significação.
Jogo intricado de diferentes
formações discursivas”.
(ORLANDI, 2005b, p.97)
Estudar a constituição de referência na língua sempre me despertou
particular fascínio durante meus estudos de graduação, por dois principais
motivos.
Em primeiro lugar, somos tomados pela impressão de que a língua é
transparente o suficiente para referir às coisas em sua suposta essência
1
. Com
efeito, essa impressão incide em uma das funções básicas que o Jornalismo de
Opinião delegou às charges, qual seja, a função de formar a opinião pública.
Nessa função, inclui-se a tentativa de induzir o leitor a considerar aquilo que se
nas caricaturas e aquilo que se nas falas “procedentes” das caricaturas,
como se isso fosse a mais pura verdade sobre os acontecimentos cotidianos,
ou ainda, como se isso fosse a expressão de um legítimo ponto de vista que
1
Segundo Foucault (2002, p.428), essa é a impressão que nos acompanha desde a idade
clássica, quando se considerava que a linguagem tinha a capacidade de fazer as coisas serem
“visíveis na transparência das palavras”. Nessa época, entendia-se que as palavras eram
soberanas o bastante para oferecer ao homem um suposto valor universal e inquestionável
sobre a identidade das coisas. Sobre isso, discutiremos no primeiro capítulo da dissertação,
quando a questão da referência for contemplada com mais demora.
13
não deva ser desconsiderado por parte dos leitores. Em outros termos, a
referida impressão confere um poder significativo às mídias jornalísticas e
fôlego ao Jornalismo de Opinião, para que essa prática consiga, muitas das
vezes, influenciar grupos e comunidades de leitores a apostar numa “verdade”
ou numa hipótese bastante plausível sobre o aspecto das coisas, sugerida
pelos dizeres de uma charge.
Em segundo lugar, estudar referência fascina-me pela simples
observação de que um objeto, situação ou pessoa, aos quais tentamos nos
referir, dificilmente (para não dizer nunca) serão entendidos de modo unânime
por outras pessoas com quem convivemos. Essa observação se assenta no
fato de que o dissenso marca, necessariamente, as relações sociais, seja no
âmbito familiar, seja, no âmbito das práticas religiosas, profissionais,
acadêmicas, e assim por diante.
Sendo a referência uma questão que passa necessariamente pelo
dizer, os dois motivos mencionados levaram-nos a formular um trabalho filiado
a um recorte de estudos que se ocupa da relação entre a gramática e a
textualidade, particularmente no que diz respeito à constituição de referência.
Entender relações desse tipo tem sido uma das preocupações relevantes no
campo da Lingüística contemporânea, principalmente no domínio da semântica
e o que pretendemos é contribuir de alguma forma com tais preocupações.
Estando a nossa curiosidade inicial em consonância com o referido
recorte de estudos do campo da Lingüística, partimos para a delimitação do
objetivo principal desta dissertação, qual seja, o de refletir sobre o papel
histórico-social que os pronomes “eu” e “você” adquirem na textualidade de
diferentes charges jornalísticas, ao constituírem referência neste e por este
gênero textual.
Vale salientar que, em nosso trabalho, o objetivo citado inclui,
decisivamente, a noção de modo de enunciação, vista, aqui, como
intermediária para se pensar a relação entre gramática e textualidade, (DIAS,
2005, p.30).
Por essa noção de modo de enunciação, podemos caracterizar a(s)
maneira(s) como se estabelecem as possibilidades histórico-enunciativas de
constituição de referência e de sentidos, propiciadas pela materialidade dos
14
pronomes, particularmente uma materialidade considerada na textualidade do
gênero escolhido.
No desenvolvimento do trabalho, veremos que falar de modo de
enunciação envolve, decisivamente, algumas questões importantes sobre a
perspectiva de enunciação com a qual trabalharemos. Dentre essas questões,
temos, por exemplo, a rede histórico-social de dizeres que envolvem a
referência estabelecida pelo uso dos pronomes nas charges; os recortes
históricos de referentes e de sentido que se estabelecem nessa rede; o lugar
social do qual atua o sujeito requerido nessa dinâmica de recortes; a questão
da temporalidade do dizer, que passa pela relação entre as atualidades
relativas aos textos chargísticos e um conjunto de enunciações passadas e
futuras que lhes são subjacentes, dentre outras questões. Dito de outra forma,
é a noção de modo de enunciação que nos possibilita refletir sobre as
injunções histórico-sociais que determinam a abrangência dos escopos de
referência recortados na materialidade dos pronomes “eu” e “você” em
textualidades chargísticas.
No que diz respeito ao gênero escolhido as charges jornalísticas
preocupar-nos-emos em caracterizar o modo de enunciação multireferencial
que, em linhas gerais, nos servirá de base para entendermos a multiplicidade
(para não falar duplicidade) de referentes e de sentidos que os pronomes
podem recortar em textualidades chargísticas.
Em outros termos, é a noção de modo de enunciação multireferencial
que protagoniza a discussão sobre o objetivo central delineado mais acima, o
que leva em conta o âmbito da interdiscursividade e, ainda, o âmbito da
atualidade relativa a cada charge. Esse parece ser o caso do texto (12), por
exemplo (seção 3.4; p. 142) em que o pronome “você” refere, ao mesmo
tempo, tanto o “objeto carteira” quanto o “objeto aluno”, sendo que a
significação de cada um desses objetos torna-se múltipla na medida em que
envolve outros dizeres nos quais esses mesmos objetos haviam adquirido
significado. Entendemos que tudo isso se estabelece no âmbito da Atualidade
15
de cada charge e, também, no âmbito dos domínios da rede histórica de
discursos que aí intervêm constitutivamente
2
.
Outros objetivos secundários também foram surgindo à medida que a
multireferencialidade enunciativa em charges se tornava foco principal de
nossas discussões. Considerando-se que mais recentemente a Lingüística
reconhece e dá lugar aos estudos sobre a gama de gêneros textuais
existentes, cada um com suas finalidades sociais e características lingüísticas,
foi natural que nos perguntássemos se a multireferencialidade enunciativa era
o único modo de enunciar a ser considerado no presente estudo para
entendermos a multiplicidade de escopos referenciais dos pronomes “eu” e
“você” em relação às caricaturas, às falas, aos textos de jornais e revistas, com
os quais os pronomes contraem relação temática e, por fim, em relação a
filiações de sentidos oriundos da interdiscursividade.
Essa pergunta ganhou maior pertinência quando nos pautamos na
idéia de que a textualidade das charges costuma congregar fotos, caricaturas,
animais personificados, ditados populares e outros elementos oriundos de
outros gêneros textuais das mais diversas áreas do conhecimento.
Sentimos, com isso, um incômodo pela extrema pontualidade do
primeiro objetivo traçado; assim julgamos pertinente se pensar, além do modo
de enunciar multirreferencial, a incidência dos modos de enunciar específico e
genérico, que parecem orientar, juntamente com a multireferencialidade
enunciativa, o uso dos pronomes nos textos chargísticos.
Foi em função desse incômodo que nos propusemos a dedicar o
trabalho a um segundo objetivo, ainda que de forma tangencial e periférica: o
estudo sobre outros modos de enunciar que parecem co-orientar, juntamente
com a multireferencialidade enunciativa, o uso de pronomes em charges. Isso é
o que parece ocorrer na charge na charge (2) seção (2.2.3, p.91), em que
temos o enunciado de caráter proverbial “Quem quiser me cassar que atire
(...)”, que, como outros provérbios, constituem-se de palavras afetadas com
regularidade e predominância pela genericidade enunciativa, conforme aponta
Dias (2005, p.40).
2
Sem dúvida, a noção de multireferencialidade enunciativa será melhor desenvolvida em
momentos oportunos do trabalho, como é o caso de algumas seções que elaboramos no
capítulo 2 da dissertação.
16
Relativamente à escolha dos pronomes para desenvolvermos um
trabalho que refletisse sobre a relação entre gramática e as textualidades
chargísticas, costumamos ter, na condição de leitores, a impressão de que
essa classe gramatical mobiliza, para o interior de um texto, as pessoas
propriamente ditas, conforme aponta a tradição gramatical.
Para os gramáticos Cunha; Cintra (2001, p.276), por exemplo, os
pronomes são categorias empregadas na língua,
(...) por terem a capacidade de indicar no colóquio: a) quem fala =
pessoa – eu (singular), nós (plural); b) com quem se fala = 2ª pessoa
tu (singular), vós (plural); c) de quem se fala = pessoa ele, ela
(singular), eles, elas (plural).
A questão que muito nos interessa abordar na dissertação é que uma
análise puramente gramatical, que discutisse apenas a morfossintaxe
pronominal em uma textualidade, seria uma análise pouco proveitosa em
termos enunciativos-discursivos. Dito de outra maneira, se os estudos
lingüísticos mantiverem abordagens sobre a relação entre gramática e
textualidades sob perspectivas tradicionalistas como a de Cunha; Cintra,
limitar-nos-emos a dizer que o “eu” e o “você”, empregados em diferentes
textos chargísticos, cumprem funções morfossintáticas semelhantes, como a
de substituir os “objetos” das falas organicamente associadas às caricaturas.
Tal perspectiva tradicionalista não é satisfatória para uma concepção de
linguagem em uso, exposta à ideologia, exposta às filiações de sentidos
constituídos em outros dizeres, em muitas outras vozes que, juntamente,
dividem o direito de dizer e a autorização para dizer, caracterizando, dessa
maneira, as diferenças que marcam a nossa sociedade. É, pois, em função da
necessidade de se elaborar uma reflexão histórico-enunciativa do uso de
pronomes em textos que a escolha dessa categoria gramatical se tornou
plausível em nosso estudo.
A primeira base teórica em que nos ancoramos para sustentar essa
afirmação é a Semântica Histórica da Enunciação, considerada prioritariamente
a partir dos trabalhos de Guimarães (1996; 2005 a;b), centro teórico que nos
permitirá defender a idéia de que a ilusão provocada quando do uso de
17
pronomes na língua é uma mera ilusão viabilizada pelo poder simbólico da
linguagem.
Em linhas gerais, este aparato teórico considera que a língua funciona
em prol de atribuir significado a “objetos” definidos em um exterior
ideologicamente conflitante. Essa exterioridade da linguagem é conflitante,
para a Semântica da Enunciação, porque se constitui através de outros dizeres
e em outros dizeres oriundos de posições sociais diversas, em confronto no
interdiscurso. Essa noção é mobilizada dos trabalhos de Orlandi (1984; 2005
a;b), aliada à análise do discurso de filiação pechetiana. Nesse sentido, a
linguagem fala sempre de “objetos” que adquiriram sentidos em falas
passadas e que ressoam a cada “novo” gesto de referência, estabelecido ou a
estabelecer em falas inscritas nas mais variadas práticas sociais.
Portanto, a Semântica da Enunciação lida com uma exterioridade
simbólica, o que nos permite sustentar a idéia de que os pronomes referem-se
não a seres considerados enquanto tal, mas ao que a linguagem houvera
produzido de simbólico sobre esses “seres”, em discursividades anteriores. Se,
por exemplo, nos referimos a uma coisa pela palavra “colher” e não pela
palavra “comedor”, é porque essa referência parte das recorrências e da
pertinência da palavra colher em discursos de várias esferas sociais. Assim,
nos referimos pelas discursividades históricas, arregimentadas na
interdiscursividade e recortadas em um acontecimento enunciativo: “(...) o que
se diz é incontornavelmente construído na linguagem (...). Ou seja, a questão
não é ontológica mas simbólica”, (GUIMARÃES, 2005a, p. 7 e 9).
Em outras palavras, não faria sentido a Semântica da Enunciação
conceber que os pronomes, situados na tessitura de um texto ‘x’, referenciam
seres de uma exterioridade física, considerada como uma situação que apenas
reveste o texto e que lhe seja anterior e independente.
O referido objetivo pode parecer uma proposta simples para os
estudos lingüísticos, sobretudo porque, abordar a linguagem em uso
considerando-se um gênero de texto e considerando-se a ideologia, não é
mais novidade nesse campo do saber. Todavia, valemo-nos daquilo que
Orlandi (1996, p.27) havia afirmado, em reflexão sobre o vínculo entre língua e
exterioridade: “Se esta é uma questão comum, é também nos meios teóricos e
metodológicos de respondê-la que está a franca diferença entre elas”.
18
Uma vez abordada a relação entre os pronomes e a textualidade das
charges jornalísticas a partir da Semântica Histórica da Enunciação, também
nos valemos da Semântica do Texto (RASTIER, 1998, 2000, 2005) e
(RASTIER; PINCEMIN, 1999), que nos oferece a valiosa noção de corpus.
Em linhas gerais, esses trabalhos sustentam que um texto é
caracterizado com propriedade se considerado segundo o gênero de texto com
o qual contrai relação. Esses autores acreditam que um gênero de texto, por
sua vez, se estabelece a partir de um corpus conjunto de textos reunidos de
acordo com as práticas sociais em que os mesmos se efetivam e, ainda, de
acordo com características lingüísticas relativamente regulares, que neles se
presentificam: “Chaque genre a son vocabulaire de construction, s formes
d’organisation, sés contenus attendus, ses modes rédactionnels. La portée
sémantique d’un mot (...) varient selon le genre”, (RASTIER; PINCEMIN 1999,
p.87)
3
.
Nesse sentido, refletir sobre o papel dos pronomes na constituição de
referência, “demarcada” na textualidade de charges jornalísticas, é um objetivo
que envolve um corpus, mas esse corpus é, a nosso ver, um conjunto de textos
marcados não apenas por regularidades, mas também, e sobretudo, pela
heterogeneidade. A heterogeneidade tem a ver com os domínios de
interdiscursividade que ocorrem na forma de recortes em um uso da ngua. É,
pois, a heterogeneidade que faz com que uma ocorrência chargística seja
densamente povoada por outros discursos. A heterogeneidade tem a ver,
ainda, com o modo de enunciação multireferencial que se manifesta em cada
charge analisada e que peculiariza essa relação da alteridade discursiva com
cada ocorrência chargística, mais particularmente, com cada uso dos
pronomes. As regularidades, por sua vez, dizem respeito à homogeneidade
que podemos encontrar quanto à morfossintaxe
4
dos pronomes
recorrentemente encontrados nas textualidades de charges jornalísticas
estudadas segundo a noção de corpus.
3
Cada gênero tem seu vocabulário de construção, suas formas de organização, seus
conteúdos esperados, seus modos redacionais. O conteúdo semântico que uma palavra
carrega varia segundo o gênero”. (Tradução nossa).
4
Nessa passagem, utilizamos esse termo do ponto de vista das gramáticas tradicionais para
trazer a idéia de classe morfológica e a idéia de posição dos pronomes em uma sentença.
19
Em resumo, tudo isso que levantamos encontra justificativa em cinco
principais razões.
Em primeiro lugar, acreditamos ser relevante o nosso intuito de
contribuir com os estudos pautados na Semântica dos Textos, pois, conforme
aponta Rastier (2005, p.17), essa Semântica ainda tem muito a compreender
sobre as relações entre o global e o local, isto é sobre o entendimento das
relações entre um exemplar textual isolado e o agrupamento de textos que
formam o gênero de texto no qual aquele exemplar ganha pertinência. Em
nosso caso, teremos, pois, a possibilidade de, no capítulo, sobretudo, refletir
sobre a homogeneidade e sobre a heterogeneidade que constituem,
igualmente, as charges, consideradas nessa globalidade e localidade que
Rastier aponta.
Em segundo lugar, teremos a possibilidade de refletir sobre a
predominância da multireferencialidade enunciativa na constituição de uma
normatividade, ou seja, de parâmetros históricos relativos à escrita de cenas
chargísticas na prática do Jornalismo de Opinião.
Em terceiro lugar, refletir sobre relações entre gramática e textualidade
é, como havíamos apontado, uma das propostas na Lingüística
contemporânea. Desenvolver essa proposta com base na Semântica Histórica
da Enunciação seria uma forma de avançar em reflexões próximas à de Costa
Val (2002, p.127-130), para quem é preciso olhar “(...) a gramática do texto, a
gramática que ‘acontece’ no texto”, com a preocupação de se entender os
elementos lingüísticos interligados entre si e remetidos a um contexto”. A
proposta de Costa Val (2002, p.127) é, de fato, uma tentativa de viabilizar “(...)
a reflexão gramatical a serviço do uso textual e discursivo da língua”, o que
descarta, nas palavras da autora, a possibilidade de se “(...) ficar à mercê das
eventuais características lingüísticas dos textos com que se trabalha”. Embora
interessante, a proposta da autora prevê uma exterioridade física e não
histórica, diferentemente do que propõe a Semântica da Enunciação, que leva
em conta uma exterioridade histórica “traduzida” no conceito de interdiscurso.
Daí a pertinência do nosso trabalho.
Em quarto lugar, a escolha das charges para o desenvolvimento dos
objetivos propostos possibilita-nos oferecer duas contribuições para os estudos
lingüísticos sobre gêneros e tipos de texto. Uma dessas contribuições reside na
20
pertinência de um estudo que não aborda apenas o gênero em si, mas as
especificidades histórico-enunciativas com que a categoria pronominal é usada
nas charges. A outra contribuição reside na possibilidade de contemplarmos
algo da gramática de um gênero tão envolvente, uma vez que as charges estão
inscritas na prática de opinar, prática que, segundo Da Silva (2003, p.101), usa
de argumentos que vão “(...) ao encontro da lógica de raciocínio comum dos
leitores”. Nesse sentido, o título da dissertação tenta sintetizar o estudo sobre o
uso de pronomes num gênero em que a constituição de referência leva em
conta algo dessa dinâmica apontada por Da Silva, estabelecida entre o locutor
e aqueles para os quais fala e, ainda, entre o locutor e os elementos textuais.
Em quinto e último lugar, gostaríamos de salientar a importância de um
estudo como esse, que propõe uma reflexão sobre a referência, questão que,
muito, tem sido objeto da lógica, da lingüística e da filosofia, cada uma com
suas especificidades e propósitos. Ocupar-se da questão da referência
relativamente aos gêneros de texto, outro objeto dos estudos lingüísticos
recentes, é, então, uma proposta de estudo pertinente, ainda mais se levando
em conta a noção de modos de enunciação.
Nosso trabalho se apresenta dividido em três partes. Na primeira
delas, intitulada “Acontecimento lingüístico e cena enunciativa: para um estudo
sobre modo de enunciação em gêneros de texto”, procuramos explorar as
noções-chave que sustentam a elaboração de nosso trabalho. Em um primeiro
momento, tratamos da noção de acontecimento enunciativo, que é essa a
noção-base para discutirmos outras noções como a de enunciação, cena
enunciativa, interdiscurso, referência, locutor, lugar social, espaço da
enunciação, temporalidade, gênero de texto, modo de enunciação e efeitos de
sentido. que são muitas as noções, procuramos entrelaçá-las
minuciosamente, para delinearmos, então, o quadro teórico deste estudo,
disponível no primeiro capítulo.
No segundo capítulo, “Modo de enunciação e charge jornalística”,
tivemos o cuidado de mesclar elementos de teoria, desenvolvidos no primeiro
capítulo, com elementos de análise, desenvolvidos, posteriormente, no terceiro
capítulo. Relativamente aos elementos de ordem teórica, retomamos as noções
abordadas, desta vez, porém, com um direcionamento das mesmas para uma
caracterização da multireferencialidade enunciativa em charges. Visando
21
amenizar possíveis vidas do leitor quanto ao foco do segundo capítulo,
iniciamos essa parte com a análise de uma cena chargística. Essa análise
nos apontou a necessidade de incluir, no trabalho, a abordagem de questões
relativas à gênese da charge, quais sejam, a noção de acontecimento
jornalístico, concebida segundo Mouillaud (2002), a noção de atualidade,
concebida principalmente com base nesse teórico e, por fim, a noção de
caricatura, segundo as reflexões de Lima (1963) e as de Melo (2003). Antes de
finalizarmos o segundo capítulo, procuramos entender um pouco da(s)
diferença(s) entre multireferencialidade enunciativa e as noções de polissemia,
ambigüidade e homonímia, que estas também costumam ser tomadas em
estudos sobre múltiplas direções de sentido para as palavras.
É no terceiro capítulo, “Diferenças e semelhanças na referência
pronominal em nove charges jornalísticas”, que procuramos analisar como as
duas principais bases teóricas a Semântica da Enunciação e a Semântica de
Textos embasam uma reflexão como a nossa, que se preocupa com a
homogeneidade e com a heterogeneidade que marcam a presença dos
pronomes “eu” e “você” na textualidade de cada um dos exemplares
chargísticos escolhidos. Em outras palavras, demonstrar a recorrência e a
predominância do modo de enunciar multireferencial na presença de pronomes
em charges é uma possibilidade que ganha profundidade nesse terceiro e
último capítulo da dissertação.
Por fim, partimos para as considerações finais do nosso trabalho,
reiterando as principais questões sustentadas e apontando outras de igual
relevância, que possam vir a aprofundar nossa pesquisa futuramente.
22
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Os procedimentos de pesquisa que orientaram o desenvolvimento de
nosso trabalho consistiram, em linhas gerais, no levantamento de referências
bibliográficas e, na seqüência, em uma seleção e organização de 12 textos
chargísticos (3 no capítulo; 9 no capítulo), bem como na descrição e
análise dos mesmos.
O levantamento de referências bibliográficas consistiu, primeiramente,
na resenha de vários estudos que nos auxiliassem a refletir, em alguma
medida, sobre o objetivo central e o objetivo secundário assinalados na
introdução. Dentre esses estudos, contrapomos, principalmente, as reflexões
oriundas de três perspectivas decisivas para a execução do estudo, a saber: a)
perspectiva da Semântica Histórica da Enunciação, (GUIMARÃES, 2005, a;b);
a perspectiva da Análise do Discurso de base pechetiana, (ORLANDI, 2005
a,b; PÊCHEUX, 1975), com a qual dialogam os trabalhos pautados na
Semântica da Enunciação; por fim, a perspectiva da Semântica do Texto,
abordada segundo Rastier (1998, 2000, 2005) e Rastier; Pincemin (1999).
Isso resultou na elaboração do quadro teórico oferecido como primeiro
capítulo e como base para a elaboração de outras discussões teóricas mais
específicas no segundo capítulo.
Além do levantamento de estudos das referidas perspectivas, também
procedemos à leitura de referências de caráter mais “periférico”, ou seja,
recorremos a noções de dicionários e a algumas reflexões comuns no campo
do Jornalismo. Assim procedendo, contribuiríamos para o aprofundamento das
noções-chave, emolduradas a partir daquelas três bases teóricas.
Relativamente à análise de textos, não os tratamos como dados
empiricamente observáveis, tendo em vista que o nosso trabalho compatibiliza
a noção de texto com a noção de cena enunciativa (seção 1.4.2, p.50), e esta
noção, por sua vez, havia sido entendida (seção 1.4.1, p.44) como um
ambiente simbólico e não empírico. Além disso, os textos, concebidos no
trabalho como cenas enunciativas, envolvem a relação de um locutor com
domínios de memória da interdiscursividade, o que significa que “(...) não
existem dados enquanto tal, uma vez que eles resultam de uma construção,
23
de um gesto teórico”, conforme defende Orlandi (1996a, p.38). Nesse sentido,
tratar os textos chargísticos como cenas enunciativas é um gesto teórico-
metodológico que elimina qualquer possibilidade de se entender os textos
como dados empíricos, pelos quais se pudesse recuperar toda a dinâmica que
lhe constituiu. Elimina, ainda, qualquer possibilidade de se entender que as
charges são textos do Jornalismo Opinativo, com o propósito de enfatizar
supostas evidências que tenham sido colocadas com mais sutileza em notícias,
reportagens e/ou editoriais.
Essa última idéia ganha sustentáculo na afirmação de Orlandi (1996a,
p.44), segundo a qual “(...) em análise do discurso não se trabalha com as
evidências, mas com o processo de produção das evidências”. Em suma, os
exemplares de charges não são considerados dados, porque tudo o que diz
respeito ao dizer permite ao pesquisador inferir indícios e não provas concretas
de que um texto ‘x’ diz “isso” e não “aquilo”.
Ainda com relação à análise de textos, escolhemos trabalhar com um
corpus de 12 charges publicadas em duas categorias de mídia jornalística
impressa, a saber, a revista Istoé, de circulação semanal e de alcance
nacional; os jornais Estado de Minas e a Folha de S. Paulo, ambos de
publicação diária e, também, de alcance nacional. A escolha desses veículos
jornalísticos tentam, de um lado, satisfazer a diversidade de textos do gênero
charge, diversidade esta condizente com o conceito de corpus mobilizado dos
trabalhos de Rastier (1998, 2000) e Rastier; Pincemin (1999) (seção 1.5,
p.52) para a elaboração da presente pesquisa. De outro lado, a escolha dos
jornais e da revista mencionados ocorreu, sem vida, em função da
amplitude, vale dizer, da aceitabilidade social que esses veículos têm adquirido
ao longo de sua circulação entre os leitores brasileiros.
As charges escolhidas compreendem um peodo de tempo que vai de
setembro de 2005 (cena 2) até maio de 2008 (cena 11), organizadas não
necessariamente na cronologia do tempo em que foram publicadas. Essa
organização não-linear não é desproposital haja visto que a própria categoria
de tempo, em nosso trabalho, assume um caráter de mescla entre passado,
presente e futuro que não são separados um do outro, mas intersectados. A
organização das cenas, tanto no capítulo 2, como, sobretudo, no capítulo 3, se
deu também em função das possibilidades que tínhamos de relacionar as
24
subpartes da análise, que compõem o todo do capítulo. Também
observamos o componente temático para se proceder ao estudo sobre os
objetivos central e secundário, mencionados na introdução.
A especificidade da escolha de charges tornou-se maior ainda quando
selecionamos aquelas charges cuja textualidade apresentasse pronomes “eu”
e/ou “você”, em enunciados que lhe são constitutivos, como os exemplificados
abaixo:
(Cena 4) AQUECIMENTO GLOBAL _ - Eu não estou nem aí! Até essa coisa chegar na
gente, vai levar uns 50 anos!” (grifo nosso).
(Cena 5) “SORRIA: Você está sendo enquadrado.” (grifo nosso).
Escolhas como essas nos permitiriam apontar e caracterizar a
multireferencialidade enunciativa como o modo de enunciação recorrente e
predominante no uso desses pronomes, na textualidade das respectivas cenas
chargísticas. Essa multireferencialidade pôde ser percebida com certo
proveito na seção 2.2.2 do segundo capítulo, quando tentamos mostrar que o
uso do substantivo “Alckmin”, na primeira cena analisada, apontava para
múltiplas direções de sentidos disponíveis para esse “ser”, sendo esses
sentidos concernentes à atualidade da cena e, ao mesmo tempo, disponíveis
no interdiscurso. Estamos falando de um Alckmin jogador da Seleção Brasileira
de Futebol masculino, caricaturado na textualidade desta cena, com a função
de ilustrar um jogador reserva do time; estamos falando, ainda, dos sentidos
históricos sobre um Alckmin governante que, na ocasião das vésperas das
eleições 2006, cumpria a função de principal oponente político de Lula-
presidente. Como veremos, essa multiplicidade se justifica porque essas duas
direções mencionadas abrangem outros escopos de referência recortados
na/pela materialidade da caricatura de Alckmin, das falas atribuídas a essa
caricatura, na materialidade dos textos de jornal e revista com os quais a cena
chargística (1) assume relação temática e, por fim, dos domínios do
interdiscurso que intervêm constitutivamente, sob a forma de recortes de
memória. Na seqüência do trabalho, no terceiro capítulo, a caracterização
da multireferencialidade ganhou mais profundidade, principalmente, a partir da
seção 3.3 em que iniciamos as análises propriamente ditas.
25
Vale salientar que tal caracterização começou a ganhar mais
profundidade no segundo capítulo (seção 2.2.3, p.91), quando observamos que
a multireferencialidade determinante do uso do pronome “Quem” em (2) e do
uso de “Vossa Excelência” em (3) era afetada, também, pelo modo de enunciar
genérico e específico, respectivamente.
Foi no decorrer das análises oferecidas no capítulo 3 que procuramos
apontar, com mais demora, indícios dos modos de enunciação genérico e
específico como algo concomitante, porém, secundário em relação àquele
modo multireferencial que consideramos predominante.
Voltando a falar sobre a escolha dos exemplares, reconhecemos que
ela não nos permite produzir conhecimento totalizante sobre o gênero charge
jornalística, haja visto que os procedimentos eleitos para a escolha de um
grupo de charges aquelas com pronomes “eu” e “você” é, no entender de
Rastier (2000, p.11), um esforço sempre parcial, que focaliza um determinado
aspecto no gênero, em detrimento de outros aspectos igualmente interessantes
e pertinentes para uma pesquisa. Rastier (2000, p.11) explica-nos que uma
escolha nos leva, portanto, à constituição de um subcorpus. É o que sugere a
passagem a seguir:
Dans un corpus homogène, on peut poser la question de la structure
du genre. En premier lieu, on peut étudier la structure syntagmatique.
Certaines parties des textes peuvent en effet être systématiquement
éliminées, pour constituer des sous-corpus pertinents
5
.
Entretanto, diferentemente do que acredita esse autor, trabalhamos
com a hipótese de que a constituição de um corpus e, por conseguinte, de um
subcorpus o das charges jornalísticas, especificamente aquelas com os
pronomes mencionados não é uma constituição absolutamente homogênea,
mas incontornavelmente marcada pelo heterogêneo, tendo em vista cinco
principais razões.
Uma das razões que sustenta essa tese são as injunções sócio-
históricas que, a nosso ver, determinam significativamente a produção de um
texto. Desse modo, os pronomes, na necessária condição de formas da língua,
5
Num corpus homogêneo, pode-se levantar a questão da estrutura do gênero. Em primeiro
lugar, pode-se estudar a estrutura sintagmática. Algumas partes dos textos podem, de fato, ser
sistematicamente eliminadas, para constituir subcorpus pertinentes. (Tradução nossa).
26
têm sua identidade definida por sua morfossintaxe, mas essa morfossintaxe
é o que é, porque (...) carrega em si as marcas de seu passado (...),
(GUIMARÃES, 1996, p.27)”. Nesse caso, trata-se de um passado de
enunciações produzidas a partir de posições sociais diversas, sempre sujeitas
a heterogeneidade de filiações sociais de sentidos, confrontadas no
interdiscurso.
Uma outra razão que sustenta a tese de que o heterogêneo habita a
suposta homogeneidade de um corpus é a ocorrência de uma
multireferencialidade mesclada com a especificidade referencial nos pronomes
de uma charge, ao passo que em outras charges, a multireferencialidade vem
acompanhada de uma genericidade referencial.
Uma terceira, quarta e quinta razões plausíveis para acreditarmos na
heterogeneidade que afeta a materialidade dos pronomes são,
respectivamente, o enfoque temático de cada cena analisada, a atualidade de
cada uma das cenas e a filiação de cada locutor-chargista com determinados
domínios da interdiscursividade.
É em função dessas razões que, mesmo diante de um grupo de
charges reunidas sob a regularidade morfossintática dos pronomes,
caminhamos na direção de analisar as sensíveis variações com que os
pronomes participam da textualização de cada charge, o que faz com que “(...)
um mesmo sítio de significação (...)”, nos termos de Orlandi (2005b, p.96),
possa estar aberto a “(...) inúmeras textualizações possíveis (...)”, (idem).
Foi por causa dessa hipótese de heterogeneidade e homogeneidade
na constituição de um corpus, que tivemos o cuidado de selecionar charges de
temáticas variadas, como são os exemplos das cenas (2) corrupção na
política em relação à cena (6) aquecimento global que, por sua vez, se
difere tematicamente da cena (7) – violência urbana; atentados de um grupo de
crime organizado contra entidades jurídicas, policiais e civis.
Como dissemos, a organização das cenas no capítulo de análise não
obedeceu a uma ordem rigorosa, quanto à temática das mesmas, porque
acreditávamos também, além do exposto mais acima, na necessidade de
transitar entre diferentes textualizações, diferentes gestos de autoria, como
uma estratégia para se entender como a diferença habita o
morfossintaticamente semelhante.
27
Esses são, portanto, os principais passos metodológicos que
seguimos para elaborar o presente trabalho. Estabelecemos esses passos a
fim de sugerir, posteriormente ao desenvolvimento de todo o trabalho, que as
charges analisadas servem de exemplos para a produção de outras cenas
chargísticas.
Nessa direção, tomamos as charges analisadas como exemplos de
textualidades produtivas da língua na prática do Jornalismo de Opinião
contemporâneo. De um lado, essa produtividade diz respeito à idéia de que os
textos chargísticos são sempre sujeitos à retomada e à reformulação em outros
textos. De outro lado, essa produtividade diz respeito à idéia de que os textos
são afetados pela tentativa de individualização daquele que escreve, ainda que
este responda, em boa medida, pela normatividade histórica do gênero que
mobiliza.
28
C
C
A
A
P
P
Í
Í
T
T
U
U
L
L
O
O
1
1
Acontecimento lingüístico e cena enunciativa:
para um estudo sobre
modo de enunciação em gêneros de texto
“O acontecimento da enunciação
não é só um fato vivido, é um fato simbólico.
Este acontecimento faz sentido
porque expõe a língua em funcionamento
à sua exterioridade enquanto exterioridade
significante, histórica, e não física”
(GUIMARÃES, 2006, p.126)
29
1.0 Primeiras palavras sobre a noção de acontecimento
Em uma abordagem como a nossa, que se dedica a entender como se
a constituição de referência no uso de pronomes pessoais em charges
jornalísticas, a noção de acontecimento acaba assumindo estreita relação com
a língua em uso, mais especificamente os usos de pronomes, observados no
gênero de texto citado.
Ao ser considerada em relação à língua em uso, a noção de
acontecimento adquire duplo envolvimento nessa proposta. Em primeiro lugar,
esse duplo envolvimento se explica porque a charge jornalística é um gênero
de texto cuja conceituação passa pela noção de acontecimento de linguagem.
Em segundo lugar, porque as charges costumam ser praticadas nas mídias
jornalísticas para, principalmente, fazer referência crítica a acontecimentos do
mundo em que vivemos. Daí a necessidade de se abordar a noção de
acontecimento também no âmbito das práticas jornalísticas, o que faremos no
segundo capítulo da dissertação.
Por agora, deter-nos-emos na caracterização de acontecimento de
linguagem, o que nos possibilita elaborar as bases para se compreender as
noções de cena enunciativa, seus elementos constitutivos (seção 1.4, p.37), e,
depois, passar para as discussões sobre gênero de texto e modos de
enunciação (seção 1.6, p.60).
A noção de acontecimento lingüístico será abordada a partir de
estudos desenvolvidos com base na Semântica Histórica da Enunciação,
(GUIMARÃES, 2005 a,b)
6
, para a qual o acontecimento é um uso de linguagem
que, ao se constituir e se difundir na sociedade, apresenta uma relativa
diferença em relação a outros acontecimentos que lhe precedem, ou ainda, a
outros acontecimentos futuros, que sequer tenham sido efetivados
7
.
Antes de avançarmos nessa abordagem, temos de refletir sobre um
importante detalhe: trata-se de verificar qual(is) seria(m) a(s) familiaridade(s) da
6
Também chamada pelo teórico de “Semântica do Acontecimento”.
7
Ainda nesse capítulo, exploraremos, com mais demora, a abordagem que Guimarães (2005
a,b) dispensa à noção de acontecimento enunciativo, bem como à noção de temporalidade que
a caracteriza.
30
noção de acontecimento lingüístico, segundo Guimarães (2005 a,b), com
outras noções, emolduradas por teóricos inscritos nas ciências humanas.
1.1 Por uma abordagem mais ampla da noção de acontecimento
No campo de estudos da Lingüística, podemos observar que a noção
de acontecimento tem adquirido abordagens variadas. Acrescente-se a isso
que, além de ser definida com certo dissenso na Lingüística, a noção torna-se,
ainda, multidisciplinar, haja vista a epistème moderna (FOUCAULT, 2002),
segundo a qual os conhecimentos tendem a ser analisados não mais
separadamente, mas como que entrecruzados, resultando em uma rede de
concepções para as quais não podemos determinar uma verdade, nem uma
origem absoluta.
É com base nessa consideração que, assinalamos, no tópico anterior,
a necessidade de se pensar um pouco sobre a relação entre acontecimento,
definido no âmbito da Lingüística, e outras abordagens sobre essa noção.
Valemo-nos, para isso, da contribuição de Qué (2005), que tenta
vincular a noção à hermenêutica, entendida esta como uma dinâmica de
sentidos, vale dizer, uma dinâmica de interpretações sociais que conferem uma
identidade ao que o teórico chama de acontecimento. Como veremos, essa
proposta de Quéré (2005) muito tem a questionar aquelas perspectivas teóricas
que tratam o acontecimento numa lógica de causa e conseqüência.
Quéré (2005, p.1) inicia seu artigo fazendo menção às diferenciações
que a noção de acontecimento costuma adquirir quando tomadas no percurso
das experiências individuais e coletivas dos sujeitos que vivem em sociedade.
Como exemplificação disso, o autor cita:
31
a) aqueles acontecimentos que ocorrem independentemente do nosso desejo
individual ou coletivo, bem como de nossas expectativas. Nesse caso, Quéré
(2005) refere-se àqueles acontecimentos de caráter inesperado, cuja ocorrência
foge ao nosso controle e que, por essa e outras razões, tendem a repercutir
amplamente na sociedade;
b) aqueles acontecimentos cuja ocorrência tem a ver com alguma ação de nossa
parte, ou seja, acontecimentos cuja ocorrência está fortemente ligada a nossas
atitudes, pelas quais podemos direcionar a ocorrência em maior ou menor grau;
c) aqueles acontecimentos aos quais podemos ou não “(...) atribuir um valor
particular e [também] aqueles que se revestem de especial importância”, podendo
se tornar “(...) referências numa trajetória de vida, individual ou coletiva, na medida
em que correspondam a experiências memoráveis e, até mesmo, a rupturas ou a
inícios de uma nova etapa na vida social”, (QUÉRÉ, 2005, p.1).
Quadro 1: exemplos de categorias de acontecimento, segundo Quéré (2005, p.1)
Em todas essas formulações sobre a noção de acontecimento, Quéré
(2005, p.1) se interessa, sobretudo, pela importância que um indivíduo
tomado isolada ou coletivamente atribui a determinados acontecimentos
como o de 11 de setembro de 2001. Apesar da ocorrência anterior de ataques
terroristas em várias partes do mundo, o “11 de setembro” parece ter marcado
a vida de cidadãos de todo mundo, sobretudo a de norte-americanos, que
esse ato configurou, pela primeira vez na História, um ataque contra os
Estados Unidos no próprio território norte-americano, vitimando numerosos
cidadãos, e destruindo bruscamente um dos principais símbolos do capitalismo,
as torres gêmeas, situadas em Nova Yorque.
O “11 de setembro” é, pois, um exemplo que ilustra como a noção de
acontecimento é inseparável da amplitude social que a noção adquire ao longo
de sua constituição social. Algo repercute na sociedade, de forma ampla e/ou
restritamente, brusca e/ou amenizadamente, lenta e/ou rapidamente, séria e/ou
humoristicamente, o que torna a noção um objeto de estudos desenvolvidos
em diversas áreas do saber.
Quéré (2005) salienta que, para as Ciências Sociais, ao ganhar
visibilidade, ou seja, ao repercutir socialmente, o acontecimento é
imediatamente pensado em relação às suas causas, vale dizer, às motivações
e interesses de indivíduos. Em outras palavras, lembra-nos Quéré (2005, p.1)
de que as Ciências Sociais, via de regra, costumam centrar suas análises
32
numa suposta causa que preceda o acontecimento. Resultado disso é que o
presente de um acontecimento e suas conseqüências presentes e futuras,
laboradas na experiência social ou coletiva de um indivíduo, deixam de ser
objeto de reflexão das Ciências Sociais, visto que o fator causal é, para esse
campo, componente majoritário.
Voltando ao “11 de setembro”, as ciências sociais procurariam saber
das razões que teriam levado os terroristas a atacar o Word Trade Center.
Ficariam em segundo plano as conseqüências que esse ataque provocou na
vivência dos cidadãos, bem como nas repercussões futuras do ocorrido nos
Estados Unidos e no mundo.
Com isso, Quéré (2005, p.2) conclui que pensar a noção de
acontecimento para as Ciências Sociais é relacioná-lo “(...) ao esquema da
causalidade, hesitando em tratá-lo com um fenômeno de ordem hermenêutica”.
Essa afirmação de Quéré demonstra sua insatisfação com a proposta de olhar
para o passado primeiramente, ou seja, para um exterior do acontecimento, ao
invés de se considerar o acontecimento como ponto de partida para uma
reflexão sobre um passado e sobre um futuro que lhe sejam relativos.
Esse presente do acontecimento, fulcro de outros acontecimentos que
lhe precedem e que lhe sucederão, pode ser pensado, afirma Quéré (2005,
p.2), através de uma “(...) dinâmica em que a possibilidade do acontecimento e
seu poder hermenêutico desempenhem um papel mais importante que a
motivação dos sujeitos”.
Diante do exposto, consideramos oportuno o momento para tecer um
adendo, a fim de sublinharmos que a Semântica Histórica da Enunciação,
(GUIMARÃES, 2005 a,b) perspectiva teórica que norteia o presente trabalho,
a qual apresentaremos logo em breve também não tem a pretensão de
apontar a causa de um acontecimento, daí a razão de recorrermos a Quéré
(2005), que, por sua vez, também não acredita ser possível pontuar a(s)
causa(s) de um determinado acontecimento ou definir o que motivou um
indivíduo ‘x’ a praticá-lo.
33
1.2 Entendendo um pouco mais a hermenêutica de um
acontecimento, segundo Quéré (2005).
Conforme vínhamos sinalizando, interessa para Quéré (2005)
entender o poder hermenêutico que um acontecimento adquire ao longo de sua
repercussão no mundo.
Amparado em Arendt, Quéré (2005, p.3) entende que o acontecimento
adquire um “poder de abertura e de fecho”, o que significa que, em nossa
sociedade, o acontecimento soergue-se dentre outros, vale dizer é percebido
por alguma diferença que nele se instala ou melhor, que a ele se atribui,
quando pensado em relação a outros acontecimentos, o que o chama a uma
freqüente interpretação na sociedade que o suporta, que o vivencia e que o
significa, pois. Vale destacar daí o caráter dual que o autor sublinha ao
acontecimento: a) de um lado, peça de interpretação, devido à repercussão
social multifacetada que ele pode adquirir dentre aqueles indivíduos que pelo
acontecimento se encontram atingidos; b) de outro lado, por apresentar
destaque / diferença em relação a peças evenemenciais repercutidas
socialmente. Ou seja, o acontecimento, para Quéré, é uma via de mão-dupla.
Nas palavras do autor:
(...) o verdadeiro acontecimento não é unicamente da ordem do que
ocorre, do que se passa ou se produz, mas também do que acontece
a alguém. Se ele acontece a alguém, isso quer dizer que ele é
suportado por alguém. Feliz ou infelizmente. Quer dizer que ele afeta
alguém, de uma maneira ou de outra, e que suscita reacções e
respostas mais ou menos apropriadas. (QUÉRÉ, 2005, p.3).
Do empreendimento de Quéré, que procura vincular acontecimento
aos valores e significações que os sujeitos lhe atribuem, isolada ou
coletivamente, em um presente, o que fica marcado para nossa reflexão é o
propósito do autor, de caracterizar o acontecimento pela sua diferença; uma
diferença que lhe é atribuída em relação ao “antes” que lhe subjaz ou, ainda,
em relação às interpretações que ele adquire ao longo de seu percurso
constitutivo na sociedade, sejam essas interpretações adquiridas num presente
ou ainda por se instalarem (futuro).
(...) Ele [o acontecimento] introduz, necessariamente, alguma coisa
de novo ou de inédito. Quando um acontecimento se produziu,
34
qualquer que tenha sido a sua importância, o mundo não é mais o
mesmo, as coisas mudaram. O acontecimento introduz uma
descontinuidade, perceptível num fundo de continuidade. No
entanto, apesar [da sua ocorrência] mudar qualquer coisa ao estado
anterior do mundo, nem tudo o que acontece é descontínuo. Certos
acontecimentos o esperados, ou previstos, e quando se produzem
são o resultado daquilo que os precedeu. A sua ocorrência faz,
apesar disso, emergir algo de novo (QUÉRÉ, 2005, p.4).
Interessa-nos ressaltar que a asserção “(...) uma descontinuidade,
perceptível no fundo de uma continuidade”, reforça aquilo que havíamos
apontado sobre a reflexão do autor: não é pertinente inserir a noção de
acontecimento em uma linearidade o antes, absolutamente separado do
atual, absolutamente separado de um futuro mas como um elemento que
ganha perceptibilidade social “(...) de acordo com certa descrição e em função
de um contexto de sentido (...)”, (QUÉRÉ, 2005, p.5)
8
. Em outros termos, para
Quéré, é só se falando em um contexto de sentido que se torna justificável falar
em um antes: “(...) antes de ele [o acontecimento] se verificar não passado.
É preciso que se produza o acontecimento para que haja um passado do
acontecimento”. O autor salienta, inclusive, que o “delineamento” do passado
de um acontecimento vai depender da maneira pela qual o acontecimento “(...)
é percebido, identificado e descrito”, (QUÉRÉ, 2005, p.5). O mesmo raciocínio
é dispensado ao futuro relativo ao acontecimento: “(...) o acontecimento
esclarece o seu futuro (...)”, (QUÉRÉ, 2005, p.5).
É com toda essa reflexão que Quéré supõe a tríade acontecimento /
sujeitos em suas experiências individuais e coletivas / interpretações atribuídas
ao acontecimento (poder hermenêutico). Essa tríade é pertinente para o autor
destacar as “diferentes potencialidades”, (QUÉRÉ, 2005, p.5) que um
acontecimento pode assumir quando impacta as experiências individuais e
coletivas de um sujeito.
Chegamos aqui ao ponto que interessa para associar a noção de
acontecimento, desenvolvida por Quéré (2005) à de Guimarães (2005 a,b), que
teoriza no âmago da Semântica do Acontecimento.
8
Na medida em que o acontecimento ganha condições de perceptibilidade, “de acordo com
uma certa descrição”, ele está assentado naquilo que Quéré (2005, p.5) denomina “contexto de
sentido”. Dessa maneira, constitui-se a base para a associação de um passado e de um futuro
que lhe tornam subjacentes.
35
1.3 A hermenêutica de um acontecimento segundo uma
Semântica de caráter histórico-social.
Quéré (2005) oferece uma valiosa contribuição à noção de
acontecimento, tal como tratada por Guimarães (2005 a,b), porque esta
perspectiva teórica também concebe a noção de acontecimento para além de
um presente. Caminharemos, pois, do poder hermenêutico de um
acontecimento, pensado de acordo com um filósofo, às redes sócio-históricas
de interpretações que, no entender de Guimarães , o constituem.
Aquilo que Quéré considera “descontinuidade perceptível no fundo
de uma continuidade”, ou seja, aquilo que esse autor trata por diferença de um
acontecimento perceptível na sua dinâmica hermenêutica, Guimarães (op.
cit.) considera como a diferença de acontecimento dentre tantos outros
acontecimentos passados ou futuros, aos quais não temos acesso na íntegra.
Essa diferença poderá, daqui em diante, será melhor entendida se
pensarmos na singularidade com que o acontecimento produz recortes na
grande rede cio-histórica dos acontecimentos que vão se legitimando, se
historicizando e, ao mesmo tempo, se constituindo enquanto índices de
agitação dos sentidos históricos, dispersos nessa mesma rede. Essa rede
histórica de acontecimentos simboliza um múltiplo entrecruzar de saberes, o
que recebe a denominação de interdiscurso, segundo a óptica da Análise do
Discurso pechetiana, praticada no Brasil, principalmente, pelos trabalhos de
Orlandi (1984, 2005a).
O interdiscurso, nas palavras de Orlandi (2005a, p.31) “(...) é definido
como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente”, ou seja, pode
ser entendido como um cruzamento de dizeres, de falas investidas de valores,
isto é de ideologias diversas que, como diz Orlandi (idem), “(...) está na base
do dizível, sustentando cada tomada da palavra”.
No próximo tópico, dedicar-nos-emos um pouco mais à noção de
interdiscurso, que, nesse momento, temos em vista a finalidade de vincular
as contribuições de Quéré (2005) à noção de acontecimento, tal como
elaborada por Guimarães (2005 a,b).
Baseados neste autor, entendemos que um acontecimento de
linguagem é todo e qualquer uso da língua, e por dizer respeito a um uso da
36
língua, o acontecimento recebe a adjetivação de acontecimento enunciativo,
acontecimento do dizer, isto é, enunciação.
Um acontecimento enunciativo segue, irremediavelmente, direções
ideologicamente
9
afins e/ou contrárias às enunciações arregimentadas no
interdiscurso. Ou seja, uma enunciação traz circunscritos em si, alguns
vestígios de tantos outros acontecimentos enunciativos, arregimentados na
dimensão do interdiscurso. Este, nas palavras de Guimarães (2005b, p.70),
“(...) se como espaço de memória no acontecimento”, ou seja, manifesta-se
como recortes: vestígios, vale dizer, espaços de interdiscurso, deslocados,
logicamente, pelas circunstâncias do presente de um acontecimento.
Nesse sentido, o acontecimento enunciativo para Guimarães (2005
a,b), tal como para Quéré (2005), se faz de uma intersecção entre presente,
passado e o que está por ser acontecimento (futuro). O passado do
acontecimento tem a ver com o que o interdiscurso lhe dispõe de
acontecimentos efetivados em nossa sociedade. O presente do
acontecimento é a congregação desse passado de ditos com o porvir, vale
dizer, com os acontecimentos de linguagem que ainda estão por se efetivar. O
futuro do acontecimento far-se-á nessa mesma dinâmica
10
. É como dizia o
teórico Guimarães na ocasião de um simpósio das Ciências Lingüísticas
11
: “O
acontecimento mobiliza o interdiscurso, mantém algo do que estava
efetivado, ao mesmo tempo em que marca diferença com relação a ele. Em
seguida lhe devolve a(s) diferença(s) produzida(s)”.
Toda essa constitutibilidade de um acontecimento enunciativo será
melhor entendida em nosso trabalho a partir da noção de cena enunciativa, que
nos permite tratar a noção de acontecimento enunciativo a partir de elementos
que são essenciais para sua especificação: a língua, a história (entendida mais
adiante como passado de enunciações que se presentificam no uso da língua),
9
A ideologia é tomada aqui nas palavras de Orlandi (1996b, p.28), para quem o termo “(...)
aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história, para que
signifique”. Sem vida, poderíamos, aqui, tecer muitos aprofundamentos sobre ideologia, mas
não o faremos, visto que, mais adiante, nas análises, trataremos da noção de direção
enunciativa, similar à de ideologia.
10
A relação entre passado, presente e futuro, constitutiva de um acontecimento, diz respeito à
noção de temporalidade, abordada na seção 1.4.1, quando refletimos sobre cena enunciativa.
11
Palavras do Professor Eduardo Guimarães, quando de uma palestra proferida no GEL 2007
_ Grupo de Estudos Lingüísticos, realizado em Franca São Paulo, na UNIFRAN,
Universidade de Franca, julho de 2007.
37
o sujeito, a temporalidade, o espaço da enunciação e a disputa pela tomada da
palavra. É a partir da noção de cena, ainda, que o gênero charge poderá ser
entendido como um corpus
12
que reúne cenas enunciativas.
1.4 Primeiros pilares do conceito de cena enunciativa
O conceito de cena enunciativa, segundo Guimarães (2005a, p.23)
“(...) aparece pela primeira vez em Texto e Argumentação (Guimarães, 1987)”
e, certamente, tende a sofrer desdobramentos no campo de estudos da
lingüística, haja visto o fato de que o conceito pode ser associado a estudos
voltados tanto para a sintaxe quanto para os voltados para a textualidade.
Neste estudo, propusemo-nos a tal desdobramento articulando o
conceito de cena enunciativa aos estudos voltados para a referenciação na
textualidade de um gênero em especial, as charges jornalísticas.
Para falar, pois, de cena enunciativa, primeiro é necessário buscar os
fundamentos da Semântica Histórica da Enunciação, cuja instituição se dá,
primordialmente, pelo diálogo com conceitos emoldurados na Análise do
Discurso de vertente francesa e, também, por diálogos com os estudos
enunciativos abordados, principalmente, segundo Guimarães (2005 a,b),
segundo Ducrot (1984) e segundo Benveniste (1989).
A enunciação, para Guimarães (2005 a,b), é todo e qualquer uso da
língua envolvido, irremediavelmente, pelo interdiscurso, tendo em vista a
constituição de um acontecimento de linguagem.
A noção de interdiscurso, mobilizada em primeira mão, dos trabalhos
de Orlandi, contempla uma rede de domínios de memória, que oferecem
conhecimentos, saberes, imaginários, “traduzidos” em palavras e sentidos que
subsistem tempos. Há, pois, um passado de enunciações que se
presentifica nos diversos usos da língua. Orlandi (2005a, p.32), pautada em
Pêcheux (1975), considera que a elaboração de um dizer envolve recortes de
outros dizeres, ou seja, envolve
12
Nos termos de Rastier (1998, 2000, 2005) e Rastier; Pincemin (1999).
38
(...) alguma coisa mais forte - que vem pela história, que não pede
licença, que vem pela memória, pelas filiações de sentidos
constituídos em outros dizeres, em muitas outras vozes, no jogo da
língua que vai-se historicizando aqui e ali. (...) O que é dito em outro
lugar também significa nas “nossas” palavras (...) um dito que
sustenta a possibilidade mesma de todo dizer.
Concebido como exterioridade de um texto
13
, o interdiscurso difere-se
da exterioridade imediata (contexto situacional). Vejamos o porquê: a
exterioridade imediata tem sido contemplada em muitos estudos de cunho
pragmático, como contexto, cujo papel máximo seria o contorno (revestimento
externo) da elaboração e da recepção de um texto. O interdiscurso, entretanto,
se coloca como uma exterioridade imersa no texto; não há, nesse sentido,
intervalo que se coloque entre texto e interdiscurso. Este se coloca imbricado
na genética de um texto, sendo-lhe, pois, constitutivo. É como afirma Orlandi
(2005b, p.87):
O texto não pode assim ser visto como uma unidade fechada pois
ele tem relação com outros textos (existentes, possíveis ou
imaginados), com suas condições de produção (os sujeitos e a
situação) e com o que chamamos exterioridade constitutiva, ou seja,
o interdiscurso.
É essa a linha de raciocínio em que nos basearemos para entender
que a constituição de referência pronominal na textualidade das charges
jornalísticas ganha ancoradouro na atualidade do gênero, mas, sobretudo, no
interdiscurso.
Nesse sentido, o que, classicamente, é designado de contexto
situacional e que nós entendemos como atualidade de um texto não pode ser
considerado a base majoritária de uma produção textual
14
. O presente de um
texto passa a conviver e se confrontar com o passado interdiscursivo, imerso
13
A perspectiva da qual consideramos “texto” será apontada ainda nesse capítulo.
14
Segundo Guimarães (2006, p.126), “A situação é o conjunto dos indivíduos e das coisas
relacionadas com o dizer: a pessoa, enquanto indivíduo, que fala; a pessoa, enquanto
indivíduo, a quem se fala; o ambiente físico específico no qual se está quando se fala; os
objetos deste ambiente referidos pelas palavras, etc. Uma posição pragmática lida com a
relação da língua com a situação assim considerada”, o que o autor refuta em suas reflexões.
39
nas malhas daquele texto
15
. Daí Guimarães afirmar que “(...) não presente
sem memória. A memória é o ancoradouro do presente”.
Ainda com relação a esse embate do presente com o passado,
subjacentes à configuração de um texto, esse mesmo autor, em um outro
trabalho intitulado “Textualidade e enunciação”, havia pontuado que
Analisar um texto enunciativamente não é considerá-lo no momento
e lugar em que se deu, mas é analisar como a memória do discurso,
o interdiscurso, faz funcionar a língua em um presente. Em outras
palavras, a análise da enunciação envolve um fora da situação (...).
Deste modo a análise da enunciação não é ver como uma situação
modifica sentidos na língua, mas como o exterior da enunciação
constitui sentidos no [presente do] acontecimento (...),
(GUIMARÃES, 1999, p.144).
Conforme essa ótica, o que eu digo é, em boa medida, relacionado ao
que o outro diz antes, de outra forma e em outra situação. Vale salientar que
essa relação entre o “meu” dizer e o dizer “do outro” não significa igualdade ou
compatibilidade absoluta. Muito pelo contrário, trata-se de pensar que o fato de
um enunciado ser relacional instaura, por si, a diferenciação e essa
diferenciação se porque um enunciado se relaciona com os outros
“alterando-os, repetindo-os, omitindo-os, interpretando-os”, (GUIMARÃES,
2005b, p.65).
No entender de Orlandi (2005b, p.95), com quem Guimarães (idem)
dialoga, “Ao longo de toda uma vida não é talvez senão o mesmo texto que
trabalhamos incessantemente, acrescentando, transformando, repetindo, à
busca de sua forma mais acabada”. Ou seja, é essa dinâmica que faz um texto
se diferenciar em relação a outros textos.
Com efeito, tal diferenciação deve incluir um outro elemento decisivo
do conceito de enunciação. Trata-se do sujeito que enuncia e da perspectiva
social que lhe subjaz de maneira mais efetiva (mais direta) nas relações
sociais.
Do ponto de vista da Análise do Discurso praticada por Orlandi, a
perspectiva da qual enuncia o sujeito circunscreve-se em domínios do
15
Assim será considerada a atualidade relativa a uma charge jornalística, inclusive se essa
atualidade for tomada como que representada em gêneros da esfera jornalística (notícias,
editoriais e reportagens, sobretudo), bases às quais se procura fazer remissão pelos dizeres
situados na charge.
40
interdiscurso, o que pode ser vislumbrado em Pêcheux (1975, p.160), um
dos proponentes da noção de interdiscurso com a qual estamos operando:
(...) o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma
proposição, etc., não existe em ‘si mesmo’, mas, ao contrário, é
determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no
processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e
proposições são produzidas. (...) as palavras, expressões,
proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições
sustentadas por aqueles que a empregam, o que quer dizer que elas
adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em
referência às formações ideológicas nas quais essas posições se
inscrevem.
Isso nos servirá para defender a idéia de que aquele que enuncia por
meio do gênero charge, na prática do jornalismo de opinião, o faz de modo
relativamente diferente daquele que enuncia por meio do gênero propaganda,
ou bula de remédio e assim por diante. Estudar a constituição de referência na
charge, em que está envolvido o sujeito chargista, inclui a observância desses
apontamentos de Pêcheux (1975).
Enunciar, pois, segundo esses apontamentos, não é um gesto
individual, muito menos solitário. É um gesto de se colocar perante o
(diferenciar do) outro, conforme “as posições ideológicas”, congregadas e
confrontadas no âmago do interdiscurso. Relativamente ao conceito de
enunciação que abarcamos neste trabalho, enunciar é estar na memória
(interdiscurso) e é este o primeiro requisito
16
para se constituir sujeito da
enunciação; “(...) o sujeito que enuncia é sujeito porque fala de uma região do
interdiscurso (...)”, (GUIMARÃES, 2005b, p.14).
Ao falar do interior do interdiscurso, o sujeito é levado a marcar “seu”
ponto de vista na enunciação, ou seja, no uso da língua, o que lhe rende a
possibilidade de exercer seu gesto de autoria no acontecimento enunciativo; o
ser individual perante o outro. Esvai-se, com isso, a vontade soberana do
sujeito, bem com a responsabilidade absoluta que ele teria pelo funcionamento
da língua:
Não é o locutor que coloca a língua em funcionamento. A língua
funciona na medida em que um indivíduo ocupa uma posição de
sujeito no acontecimento, e isto, por si só, põe a língua em
funcionamento por afetá-la pelo interdiscurso, produzindo sentidos.
(GUIMARÃES, 2005b, p.69).
16
O segundo requisito será colocado em breve: ocupar um lugar social .
41
Temos, com isso, um locutor que se aproxima e, ao mesmo tempo, se
destoa daquele definido segundo a percepção benvenistiana.
A proximidade diz respeito ao fato de que, tanto para Guimarães (2005
a,b), quanto para Benveniste (1989), a subjetividade é elemento integrante da
noção de enunciação. Dito em outras palavras, falar de subjetividade é falar da
interdependência do sujeito que diz com a língua. Para ambos, a constituição
do sujeito é marcada na enunciação e propiciada pelo funcionamento da
língua; o sujeito se constitui no e pelo uso da língua, enunciação. Com isso,
Guimarães traz a contribuição de Benveniste, segundo o qual o locutor o é
uma pessoa fisicamente pensada.
A discrepância, entretanto, se coloca entre esses dois teóricos na
medida em que para Benveniste, enunciar é colocar a língua em
funcionamento por um ato individual de apropriação do aparelho formal da
enunciação. Em contraponto a Benveniste, Guimarães procura retirar a
participação do sujeito de um plano individualista. Ao fazer isso, Guimarães
propõe que a subjetividade não é particular, única e centrada no “eu”. Antes, se
o sujeito se relaciona com o uso da ngua (enunciação), o faz por
possibilidades historicamente estabelecidas de se posicionar no acontecimento
enunciativo, quando fala de uma região do interdiscurso. Dito de outra maneira,
se a enunciação é atrelada à memória, os posicionamentos do sujeito no dizer
também o serão; a subjetividade será, de alguma forma, norteada pelas
subjetividades constituídas historicamente, na memória interdiscursiva.
Retirada a qualidade de centramento do sujeito da enunciação, e
atribuída a sua caracterização à posição que ocupa no interdiscurso, podemos
perceber como Guimarães opera, de forma proveitosa, com o conceito de
sujeito, construído no seio da análise do discurso pecheutiana, praticada por
Orlandi, atualmente, no Brasil. Conforme atesta essa autora, o sujeito que diz
jamais se encontra, efetivamente, na origem do que diz; ele não consegue
cumprir o “(...) sonho adâmico: o de estar na inicial absoluta da linguagem, ser
o primeiro homem, dizendo as primeiras palavras, que significariam apenas e
exatamente o que queremos”.
42
Se ele não inaugura um dizer e se ele não enuncia ao seu bel prazer,
presume-se, com isso, que o sujeito da enunciação não tem o controle absoluto
de tudo o que diz. Antes, ele é tomado pelo “já-dito” e levado a interpretar esse
‘já-dito”. Para isso, aquele que diz assume, inapelavelmente, um lugar de
enunciação, que atende a demandas históricas que estipulam, até certa
medida, o quê, como, quando e para quem algo será dito.
O conceito de lugar de enunciação que, por hora, convocamos é,
principalmente, aquele definido nas palavras de Guimarães (2005a, p.24).
Segundo o autor nos descreve, o lugar de enunciação é um papel simbólico
que o Locutor assume e que lhe delineia como fonte do “seu” dizer, o que,
consequentemente, lhe confere direitos e autorização socialmente
reconhecidos para enunciar
17
. Para que isso aconteça, é indispensável que o
Locutor esteja afetado por um lugar social:
(...) o Locutor pode falar enquanto predicado por um lugar social.
A este lugar social do locutor chamaremos de locutor-x, onde o
locutor sempre vem predicado por um lugar social que a variável x
representa (presidente, governador, professor, vendedor, etc.).
No entender de Guimarães, “aquele que fala” se constitui como
fonte do “seu” dizer quando ocupa um lugar social: “(...) e é só enquanto ele se
dá como lugar social (locutor-x) que ele se dá como Locutor”, (idem).
O Locutor se filia a uma posição para falar, daí ele se vê como fonte de
“seu” dizer e acaba por se eximir do lugar social que o predica. No quadro a
seguir, listamos as quatro categorias que Guimarães (2005a, p.25) propõe para
tratar dessa teatralização.
1ª) Enunciador individual: aquele que simula uma voz acima de todos e, desse modo,
parece retirar o seu” dizer de qualquer circunstância comunicativa. Explicando de outra
maneira, o ser indivíduo e o falar enquanto indivíduo seguem essa orientação, o que tem a ver
com a ilusão de que o indivíduo é indivíduo desde sempre, sem ter ainda passado por um
dizer.
2ª) Enunciador genérico: aquele que simula estar difuso num todos, isto é falando para
17
Conforme veremos adiante, isso se constitui um fator para que o sujeito da enunciação faça
o papel de sujeito de direito, (HARROCHE, 1992). O próprio Guimarães tece alguma
consideração a respeito da relação de propriedade individual que o sujeito mantém,
imaginariamente, como o dizer, na medida em que simula serem suas “as palavras que de
direito são do interdiscurso”, GUIMARÃES, (2005b, p.65).
43
uma maioria e falando como a maioria fala: “O que se diz é dito como aquilo que todos dizem”,
(idem), sem relativizações, daí o próprio Guimarães sugerir que esse enunciador representa a
voz do senso-comum. Exemplo: “O brasileiro gosta de samba, futebol e mulher”.
3ª) Enunciador universal: aquele que simula dizer uma “verdade”. Santos (2007), baseada
em Guimarães, entende que o enunciador universal “(...) é a voz que se apresenta como se
os fatos falassem por si e que, portanto, podem ser enunciados por todos e por cada um”. Dito
em outros termos, é a voz que institui verdades” que deverão ser endossadas por todos.
Exemplo disso seria pensar nos discursos científico e filosófico.
4ª) Enunciador coletivo: aquele que parece mesclar os rumores (boatos) em seu próprio
dizer: “(...) se caracteriza por ser a voz de todos como uma única voz”, (GUIMARÃES)
.
Santos (op. cit) propõe que esse enunciador é um dos que caracterizam a enunciação
proverbial, pelo fato de se remeter a coletividades distintas, não podendo, portanto, atender a
um uso totalmente genérico, embora, muitas vezes, se preste a simular isto em função do
efeito de autoridade e universalidade que pretende (...)”.
Quadro 2: categorias de enunciadores, propostas em (GUIMARÃES, 2005a, p.25).
Para conceber esses quatro tipos de representação / teatralização de
um Locutor em relação ao “seu dizer, Guimarães dialoga com a Teoria
Polifônica da Enunciação, (DUCROT, 1984). De uma forma resumida,
apresentaremos os principais pontos desse diálogo.
Ducrot (idem) propõe que um enunciado pode abrigar uma
superposição de vozes. Essa superposição de vozes comporta, de um lado, a
idéia de que vários sujeitos são responsáveis pela emergência de um
enunciado. De outro lado, a superposição de vozes serve para Ducrot propor
uma distinção entre locutor e enunciador: o primeiro (o locutor) é aquele que se
coloca como um dos sujeitos responsáveis pelo proferimento de um enunciado.
É a ele, portanto, que o eu de “Eu sou brasileiro” se refere. O segundo
(enunciador) seria um dos personagens (uma encenação teatral) que esse eu
possibilita. Por exemplo, um locutor fazendo o papel de anfitrião do único país
que tem uma seleção de futebol pentacampeã, ou ainda, um locutor fazendo o
papel de admirador do samba e das mulheres bonitas.
Guimarães (2005 a,b) retoma essas categorias de locutor e enunciador
emolduradas no quadro da Teoria polifônica ducrotiana, entretanto atribui um
caráter histórico às mesmas, tendo em vista o diálogo que ele estabelece com
o conceito de sujeito da enunciação da Análise do discurso. Trata-se de
verificar que, para Ducrot, o envolvimento de um locutor e de suas
representações com a enunciação é um envolvimento que fica restrito a um
momento (agora), a um espaço (aqui) e, além disso, é um envolvimento que
44
não se repete, o que se explica pelo fato de que a enunciação, para Ducrot, é
um acontecimento de linguagem relativo a um uso momentâneo da língua,
portanto, um uso que não vai além de si mesmo; um uso que não abrange o
interdiscurso e que não projeta outros usos.
Para contornar essa relação locutor/uso momentâneo e irrepetível da
língua, Guimarães (idem) prevê que um locutor fala de um certo interior do -
dito interdiscursivo. Portanto, um locutor que é tomado por enunciações que
vão além de um momento, além de um espaço. Um locutor que é envolvido
pela rede de enunciações que está e que, portanto, se perpetua como
história. Temos, assim, um locutor envolvido na história, mas que, conforme
bem lembra Guimarães, teatraliza um “estar fora da história”, independente de
qualquer circunstância histórica (enunciador individual), acima de todos
(enunciador universal), ou ainda, um locutor que se apresenta como se
estivesse fora da história e que falasse como todos falam e para todos
(enunciador coletivo).
Em resumo, semelhantemente a Ducrot, Guimarães (2005 a,b) prevê
uma divisão daquele que diz em Locutor e enunciador(es), entretanto, para
Guimarães, essa divisão acontece porque Locutor e enunciador estão
superpostos em uma enunciação, cuja procedência não é momentânea e
pontual num tempo, mas difusa em domínios da rede histórica que nela se
presentificam.
1.4.1 Cena enunciativa
Neste estudo, a noção de cena enunciativa engloba todos os
elementos relativos à enunciação que abordamos até o momento, mas engloba
também os que ainda serão contemplados: temporalidade, espaço da
enunciação e as disputas pela assunção da palavra.
Como dissemos, cena enunciativa é uma noção que começa a ganhar
contornos mais precisos na Semântica da Enunciação, quando Guimarães
(2005a, p.23) a apresentou como um espaço simbólico onde se daria o jogo/a
conjugação dos lugares sociais assumidos pelo Locutor (p.ex. locutor-
chargista, locutor-jornalista, etc.) com as representações que um lugar social
45
implica. Segundo o autor, “Uma cena enunciativa se caracteriza por constituir
modos específicos de acesso à palavra dadas as relações entre as figuras da
enunciação e as formas lingüísticas”. Ainda segundo o autor, “A cena
enunciativa é um espaço particularizado por uma deontologia (Ducrot, 1972)
específica de agenciamento e de distribuição dos lugares de enunciação” em
um dizer.
Ao falar em deontologia, Guimarães sugere que a cena enunciativa é
um lugar simbólico implicado por obrigações e regulamentações. Um lugar
simbólico por meio do qual passam a valer direitos e deveres que, em boa
medida, visam a orientar a relação daquele que fala com aqueles para quem se
fala, relação que implica teatralizações do locutor e repercussão de efeitos de
sentido. Daí é possível dizer que a cena enunciativa agencia locutores e
enunciadores. A deontologia diz respeito, ainda, aos princípios histórico-sociais
que orientam o(s) investimento(s) de um Locutor com a construção de um
arranjo de palavras, expressões, sentenças constitutivas de uma cena.
Entendemos que a deontologia não é um princípio único, universalizante, mas
peculiar a certos grupos de cenas, oriundas de certas esferas sociais.
Essa questão dos locutores e de seus investimentos com o arranjo
lingüístico torna a cena enunciativa, uma noção estreita e reconhecidamente
oriunda do conceito de enunciação, daí a determinação “enunciativa”, vinculada
ao termo “cena”. Esse estreitamento se acentua mais ainda, quando buscamos
dois outros elementos integrantes do conceito, quais sejam, a noção de
temporalidade e a noção de espaço da enunciação.
Detenhamo-nos, em um primeiro momento, nesse segundo fator. Para
Guimarães, vivemos em um espaço político, marcado pelo embate de uma
diversidade de campos do saber (jurídico, político, educacional, desportivo,
trabalhista, doméstico, etc.), cada qual apresentando finalidades,
necessidades, normas que ora são comuns às de um outro campo, ora são
singulares. Nesse sentido, entendemos que o espaço da enunciação o é um
espaço homogêneo, mas heterogêneo, porque dividido em “especificações
locais” que podemos chamar de cenas enunciativas.
Tais especificações do espaço enunciativo encontram explicação nas
dissensões (conflitos) que se colocam entre uma e outra cena enunciativa do
espaço do dizer, pois, para Guimarães, a assunção da palavra é algo
46
marcadamente conflituoso. O dissenso é o que ele chama de político, ao seu
ver, fundamento das relações sociais:
(...) o político não é o que se fala sobre a igualdade, sobre direitos,
etc. (...) o político, ou a política, é para mim caracterizado pela
contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente)
uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que não
estão incluídos. Deste modo o político é um conflito entre uma
divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os
desiguais afirmam seu pertencimento. Mais importante ainda para
mim é que deste ponto de vista o político é incontornável porque o
homem fala. O homem está sempre a assumir a palavra, por mais
que esta lhe seja negada. (GUIMARÃES, 2005a, p.16).
Assim, Guimarães entende que o espaço da enunciação é um espaço
em que se a tomada conflituosa da palavra. “São espaços ‘habitados’ por
falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos
de dizer”, (ibidem). São espaços em que, ao se integrar em uma cena, o sujeito
é tomado pelo que distingue essa cena de outras às quais ele não se vincula.
Uma vez existindo essa divisão no espaço da enunciação, dividem-se,
naturalmente, o ‘poder dizer’ e o ‘dever dizer’:
E estar identificado pela divisão da língua é estar destinado, por uma
deontologia global [do espaço da enunciação], a poder dizer certas
coisas e não outras, a poder falar de certos lugares de locutor e não
de outros, a ter certos interlocutores e não outros, (GUIMARÃES,
2005a, p.21).
Em resumo, a cena enunciativa é um campo simbólico que torna
visível, para fins de análise, os Locutores sendo tomados por incessantes
disputas pela tomada da palavra. Falar é ser tomado por esse espaço político
de disputa, portanto falar não é um gesto individual, que escapa do embate
com o outro. Muitas são as especificações locais do espaço de enunciação em
Língua Portuguesa no Brasil, assim torna-se possível muitas pesquisas que,
pela via da Semântica da Enunciação, tentem “hachurar” determinados
gêneros de cenas
18
, a fim de se caracterizá-los. O espaço da enunciação é,
18
Adiante, na seção 1.4.3., propusemos a idéia de corpus de cenas enunciativas, a partir dos
trabalhos de Rastier (1998, 2000) e Rastier; Pincemin (1999).
47
pois, o terceiro elemento integrante do conceito de enunciação, a partir do qual
se faz pertinente tal entendimento de cena enunciativa.
O quarto elemento a partir do qual desdobraremos a noção de cena é
o fator tempo; temporalidade, nos termos de Guimarães, dado o cunho
lingüístico de seus estudos. Para Guimarães, o tempo não é o cronos, tempo
objetivamente mensurável em ano, mês, dia, hora, minutos, segundos, etc.
Pensado assim, o tempo o se constitui escopo específico dos
estudos da linguagem. Para contornar isso, Guimarães concebe que cada
enunciação configura/instala o seu próprio tempo, na medida em que cada
enunciação se faz de um presente que é, por sua vez, intersectado, de um
lado, por um passado de enunciações diversas e, por outro lado, estabelece
deixas para a emergência de futuras enunciações: “Todo acontecimento de
linguagem significa porque projeta em si mesmo um futuro”; “Por outro lado
este presente e futuro próprios do acontecimento funcionam por um passado
que os faz significar”, (p.12). Daí Guimarães dizer que “o acontecimento
[enunciação] é diferença na sua própria ordem”, porque cada acontecimento
enunciativo é um “novo espaço de conviviabilidade de tempos”, configurados
e/ou a serem configurados em outras enunciações que, em sua totalidade,
sequer tivemos ou teremos acesso. Coloca-se-nos, então, a pergunta: o que a
temporalidade tem a ver com a noção de cena enunciativa?
Quem responde é o próprio Guimarães. Para ele, “a temporalidade
específica do acontecimento é fundamento da cena enunciativa”, (idem). Ou
seja, retomando a idéia de que temos em nossa sociedade uma variedade de
cenas enunciativas, torna-se admissível pensar que uma profusão de
temporalidades. Nesse quadro, uma cena enunciativa é o espaço simbólico
onde vislumbramos o encontro de uma temporalidade com diversas outras
temporalidades. Noutras palavras, uma cena enunciativa se forma, justamente,
dos nós ou dos encontros de enunciações diversas, cada qual sendo formada
por uma gama de outras enunciações: rede de enunciações não linear, mas
potencialmente ramificada e entrecruzada.
Antes de encerrar a questão da temporalidade, uma das
características fundadoras da noção de cena enunciativa, é pertinente
assinalarmos, aqui, que, ao falar de temporalidade, Guimarães firmou mais
48
uma distinção com os estudos enunciativos de Ducrot e, também, com os de
Benveniste.
Para Ducrot, a enunciação é “o acontecimento histórico do
aparecimento do enunciado”, (DUCROT, 1989, p.13), sugerindo, com isso, que
cada enunciação é única, irrepetível, dado que a combinação de tempo e lugar
em que cada uma se efetiva é, a seu ver, jamais a mesma. “Se digo duas
vezes seguidas uma coisa (...), produzo dois enunciados diferentes, e isto
somente porque o momento de sua enunciação é diferente”. Podemos inferir,
com isso, que Ducrot faz menção ao tempo pragmaticamente objetivado (o
aqui e agora), estabelecido à parte de outros tempos, constitutivos de outras
enunciações. Com isso, marcamos, aqui, que Guimarães herda de Ducrot a
idéia de enunciação enquanto “acontecimento histórico do aparecimento do
enunciado”, mas, ao mesmo tempo, avança com relação a Ducrot, explicando
que o histórico vai além de um marco local, porque abrange tempos
discursivamente fundados, nos dizeres que se congregam na memória
discursiva.
Benveniste, por sua vez, concebe um tempo presente que é
organicamente ligado ao exercício da fala:
Este tempo tem seu centro um centro ao mesmo tempo gerador e
axial no presente da instância da fala. Cada vez que um locutor
emprega a forma gramatical do ‘presente’, ele situa o acontecimento
como contemporâneo da instância do discurso que o menciona,
(BENVENISTE, 1989, p.74).
Esse presente é axial na medida em que é pensado por Benveniste
como eixo central no qual se origina o tempo de uma enunciação; é gerador,
porque seqüência a um tempo passado, que se coloca, separadamente,
como um antes, e precede um futuro, que se coloca, separadamente, como um
depois.
O presente lingüístico é o fundamento das oposições temporais da
língua. Este presente que se desloca com a progressão do discurso,
permanecendo presente, constitui a linha de separação entre dois
outros momentos engendrados por ele e que são igualmente
inerentes ao exercício da fala: o momento em que o acontecimento
não é mais contemporâneo do discurso, deixa de ser presente e
deve ser evocado pela memória, e o momento em que o
acontecimento não é ainda presente, virá a sê-lo e se manifesta em
prospecção, (ibidem).
49
Para a teoria enunciativa de bases históricas, tais considerações de
Benveniste contribuíram, de um lado, para a conceituação do tempo da
enunciação, na medida em que o teórico previu o encontro de tempos. De outro
lado, esse encontro é problematizado por Guimarães, na medida em que não
pode ser pensado como seqüencial, linear. Invés de uma escala temporal
passado, antes do presente, antes do futuro Guimarães propõe a
concomitância de tempos em uma enunciação, ou seja, a “conviviabilidade
de tempos”.
Em síntese, Guimarães tenta ir na contra-mão de Benveniste: para
este, o presente é “uma linha de separação entre o que não é mais presente e
o que vai sê-lo”, (BENVENISTE, 1989, p.76), ao passo que, para Guimarães, o
presente é configurado de um passado, que o se coloca, separadamente,
como um antes, e, também, de um futuro, que não se coloca, separadamente,
como um depois. Passamos, assim, da linearidade temporal para a
concomitância temporal.
Quanto à relação do tempo com o sujeito que enuncia, Guimarães
explica que tal relação vai ser marcada por um desencontro:
(...) a temporalidade do acontecimento não coincide, portanto, com o
tempo do ego que diz eu, que chamo aqui Locutor. A configuração
do Locutor no acontecimento é a de que ele é a origem do dizer e
assim da temporalidade. Diria que Benveniste limitou-se a tratar
desta representação. Deste modo a temporalidade do acontecimento
da enunciação traz sempre esta disparidade temporal entre o tempo
do acontecimento e a representação da temporalidade pelo Locutor.
Esta disparidade significa diretamente a inacessibilidade do Locutor
àquilo que enuncia. O Locutor não está onde a enunciação significa
sua unidade (tempo do Locutor), (GUIMARÃES, 2005a, p.14).
O sujeito o fala no presente, no tempo, embora o locutor o
represente assim, pois só é sujeito enquanto afetado pelo
interdiscurso, memória de sentidos. (...) Falar é estar nesta memória,
portanto não é estar no tempo (dimensão empírica), (idem).
Diante do exposto, esperamos ter recuperado e desdobrado a noção
de cena enunciativa, como um espaço simbolicamente constituído. Simbólico,
porque aquele que diz se simboliza, pela(s) figura(s) do(s) enunciador(es)
que ele representa, o tempo e o espaço se simbolizam, isto é passam,
50
respectivamente, de cronos e de lugar in situ à condição de temporalidade e de
espaço enunciativo. Adiante, tentaremos verificar como a noção de cena pode
ser proveitosa para a noção de ‘texto’, objeto primário de nosso estudo.
1.4.2_ “Cena enunciativa” e “texto”: por uma proposta de uma
compatibilização
Tomadas no seio da Semântica Histórica da Enunciação, as noções de
“cena enunciativa” e de “texto”
19
parecem guardar estreita relação, no que diz
respeito a alguns de seus constituintes básicos
20
. Com o intuito de verificar
essa “intimidade”, façamos uma breve retomada de cada noção, de acordo
com perspectiva histórica de enunciação.
Para Guimarães (2006, p.142), “texto” é uma “unidade de sentido
constituída por seqüências lingüísticas remetidas a um lugar de sujeito no
acontecimento enunciativo (podemos chamar este lugar de locutor-autor)”.
Esse nculo das seqüências lingüísticas com um lugar de sujeito
também pode ser percebido na conceituação de cena enunciativa, pois,
conforme Guimarães afirmara, uma cena enunciativa também se caracteriza
por “(...) relações entre as figuras da enunciação aquele(s) que fala(m) e
aquele(s) para quem se fala “e as formas lingüísticas”, (GUIMARÃES, 2005a,
p.23), tal como a apresentamos na seção anterior. Além disso, vimos que a
cena enunciativa tem, como alicerce básico, uma temporalidade. Sua
efetivação requer um espaço da enunciação, em que se a disputa pela
palavra, o que, de alguma forma, subjaz a configuração de um texto que, ao
nosso ver, se no uso efetivo da língua na enunciação, o que implica o
19
‘Texto’ é uma noção reconhecidamente vaga e/ou dissensual para se definir, seja em nossas
rotinas, seja no âmbito dos estudos da linguagem. Especificamente no que tange ao nosso dia-
a-dia, nem sempre temos a certeza de estar lidando com uma peça do dizer que,
funcionalmente, valha como texto, seja por falta de conhecimento da área do saber em que
esse texto se configura, seja pelo imaginário simplista de que um texto só é texto se apresenta
uma extensão relativamente grande, com princípio, meio e fim bem demarcados entre si. No
âmbito dos estudos da linguagem, por sua vez, a falta de consenso a respeito do objeto ‘texto’
deve-se, sobretudo, à existência de muitas perspectivas teóricas que se propõem a conceituá-
lo. Neste trabalho, o tomamos a partir da perspectiva enunciativa.
20
No interior da Semântica Histórica da Enunciação, existe também a possibilidade de se
realizar um estudo aproximativo entre a noção de cena enunciativa e as sentenças da língua
nesse caso, os estudos voltados para as reflexões sobre a sintaxe. A proposta de
compatibilizar ‘texto’ e ‘cena’ não é, portanto, possibilidade única.
51
envolvimento de um sujeito da enunciação orientado por uma deontologia
específica.
Ainda com relação a uma cena enunciativa, parece-nos certo dizer
que, quando a tomamos como objeto de análise, a cena apresenta-se-nos
como uma textualidade que parece nascer e findar em si mesma. Nesse
sentido, uma cena enunciativa adquire, ao longo de sua receptibilidade social,
uma aparência de quadro empírico, isto é unidade fisicamente delimitada
(começo, meio, progressão, não-contradição e fim). Parece que os sentidos
que nela se repercutem são imanentes à sua materialidade, ou seja, temos a
impressão de que os sentidos estão sempre lá, sem terem sido mobilizados
por um trabalho de recorte do interdiscurso e confrontados com a atualidade da
cena. Entretanto, trata-se de uma mera ilusão que a acompanha, pois
entendemos que cena enunciativa é um quadro simbólico, não estático, não
pronto, mas constituído e ainda por se constituir, que sua formação passa
pelo dizer, pela dinâmica da enunciação.
A ilusão de evidência também acompanha a categoria ‘texto’, o que se
explica, no entender de Guimarães (1996, p.64), pelo “(...) fato de que em
dadas circunstâncias, começa-se a falar e termina-se, começa-se a escrever e
termina-se. Mais que isso, o que se escreve [pode receber] uma encadernação
chamada livro (...) que hoje tem um valor comercial”.
Diante do exposto, trabalharemos com a proposta de considerar que
um texto é uma cena enunciativa. Essa proposta insere-se nos vários esforços
teóricos de não tomar o objeto ‘texto’ como algo evidente por si (algo
empiricamente pensado). Antes, ‘texto’ pensado enquanto cena amalgama
os mesmos elementos da enunciação: Locutor, lugar social, suas relações com
o arranjo lingüístico, temporalidade, espaço da enunciação.
Com isso, ‘texto’ não é uma categoria precedente a uma perspectiva
teórica de reflexão sobre a linguagem. É no interior de uma perspectiva
teórica que essa categoria ganha definição. Fora disso, o texto seria uma
ficção.
Em suma, dado que o nosso estudo filia-se em uma lingüística focada
em questões relativas aos Gêneros e Tipos textuais que, por sua vez, são
vistos em relação à categoria representativa de ‘texto’ e, ainda, dado que nos
guiamos pelos preceitos da teoria enunciativa de bases históricas, não
52
razões para desvencilharmos a noção de texto da noção de cena enunciativa.
Numa relação sinonímica, o texto é, a nosso ver, cena enunciativa, pelo menos
para fins teórico-metodológicos de nossa pesquisa.
1.4.3 Da unidade de cena enunciativa ao corpus de cenas
Retomando a noção de espaço de enunciação enquanto um espaço
marcadamente dividido por uma variedade de “especificações locais”, que são
as variadas cenas enunciativas, parece-nos pertinente dizer que, nesse
espaço, grupos de cenas enunciativas, pois mesmo sendo várias, as cenas
apresentam traços em comum, que vão desde as práticas sociais em que uma
e outra se vincula, até certos traços lingüísticos relativamente regulares entre
uma e outra cena.
Essa possibilidade de se agrupar as cenas enunciativas aponta para
um conceito de gênero textual proposto de acordo com a Semântica de normas
textuais, também denominada Semântica de corpus, (RASTIER, 1998; 2000) e
(RASTIER, PINCEMIN 1999).
1.5 A Semântica de corpus
Se a categoria ‘texto’ é, em nosso estudo, compatível com a noção de
cena enunciativa, e se o presente capítulo abordou, até aqui, a noção de cena
para aproveitá-la em uma discussão sobre gênero de texto, temos, adiante, de
determinar e especificar qual é a noção de gênero textual que endossamos em
nosso trabalho.
Trabalharemos com a noção de gênero textual enquanto corpus um
complexo de textos que se configuram sob características lingüísticas
significativamente regulares e, além disso, sob uma determinada prática social.
Noutros termos, falar de gênero textual para Rastier é falar de corpus, cuja
identidade se constitui, em primeira instância, de textos que são congregados,
tendo em vista certos traços lingüísticos consideravelmente regulares e,
também, certas práticas sociais.
53
Nesses moldes, a categoria de texto deixa de ser considerada unidade
máxima para se proceder à análise de unidades lexicais, sentenciais, icônicas
e assim por diante. Para Rastier, estudar um texto isoladamente é se restringir
a uma “globalidade transitória”; é estudá-lo como se este fosse constituído em
si mesmo, ou seja é considerar um texto como unidade sem memória,
gerenciada unicamente por uma prática social pontual, por um contexto
situacional, bem como pela materialidade lingüística e/ou icônica que o integra.
Assim procedendo, ficaria em segundo plano o complexo de textos, isto é o
corpus que abriga, normatiza e orienta a elaboração de um dado texto
21
. É em
torno disso que Rastier (1998, p.107) tece suas considerações sobre a
categoria ‘texto’ e sua relação com um corpus:
Tout texte est en effect interprété au sein d’un corpus, et ce corpus
est formé en premier lieu des textes qui relèvent du même genre (et,
au-delà, de la même pratique): une conversation se comprend au
sein d’une histoire conversationnelle, un roman parmi les autres déjà
lus, etc
22
.
Ainda com relação à noção de corpus, Rastier acrescenta:
(...) Le texte semble certes en linguistique une unité maximale. Mais
un point de vue plus philologique engage à considérer que
l’ensemble des textes relevant d’un même genre (et d’une même
langue) constitue un ‘bon’ corpus au sein duquel il est possible de
caractériser et d’analyser un texte.
En somme, l’unité linguistique fondamentale (tant empirique que
théorique) n’est pás signe, ni même la phrase, mais texte (oral
fixé ou écrit), dont l’analyse commande l’accès aux unités de rang
inférieur. Cependant, l’unité supérieure est le corpus
23
.
Evidentemente, tomar um corpus como objeto de análise não significa
abarcar a totalidade de textos (o intertexto) disponíveis em nossa sociedade.
21
Discorreremos em breve sobre a normatividade específica de certos gêneros textuais.
22
Todo texto é, com efeito, interpretado no âmago de um corpus, e esse corpus é formado
antes de tudo pelos textos que se situam no mesmo gênero [e, além disso, na mesma prática]:
uma conversação é compreendida no âmbito de uma história conversacional, um romance é
compreendido dentre os outros já lidos, etc. (Tradução nossa).
23
O texto, nos estudos lingüísticos, tem sido considerado uma unidade terminal. Mas, no
interior de uma perspectiva mais filológica, pode-se considerar que o conjunto dos textos
constituídos sob um mesmo gênero (e de uma mesma língua) constitui um legítimo corpus, no
interior do qual é possível caracterizar e analisar um texto. Em suma, a unidade lingüística
fundamental (tanto empírica quanto teórica) não é o signo, nem mesmo a frase, mas o texto
(oral estável ou escrito), a partir do qual a análise determina o acesso às unidades de nível
inferior. No entanto, a unidade superior é o corpus. (Tradução nossa).
54
Considerar um corpus será sempre um recorte do intertexto, que é efetivado
com base em certos objetivos de ordem teórica e prática. Daí Rastier (1998)
dizer que “Le corpus est la seule objectivation possible (philologique) de
l’intertexte, qui sinon demeure une notion des plus vagues”
24
.
Ao mobilizarmos a noção de gênero textual pensada como corpus,
precisamos, ainda, recuperar o tratamento que Rastier dispensa à noção de
‘contexto’, notoriamente presente e multifacetada em reflexões sobre gênero
textual vigentes no campo da Lingüística contemporânea.
Segundo Rastier (1998), um texto se define na interface entre o
‘contexto’ e o corpus. Como se pode perceber, ‘contexto’, para o teórico, não
remete unicamente a uma situação comunicativa em que um texto efetiva-se.
Ou seja, ‘contexto’ não remete unicamente aos condicionantes extralingüísticos
locais, temporais, autorais, da produção e da recepção de um texto. Antes,
falar nas determinações de um texto, como a charge jornalística, por exemplo,
significa, sobretudo, lançar mão do intertexto. Mais especificamente, de um
corpus de numerosas charges ao qual aquela se filia. Nesse sentido, qualquer
que seja o texto que observamos e, por conseguinte, o gênero ao qual se
vincula estaremos lidando com uma entidade do dizer, cuja natureza
procede, na ótica de Rastier, de dois âmbitos: carrega traços característicos do
corpus ao qual se filia e, ao mesmo tempo, expõe-se a um contexto situacional,
isto é, à atualidade que o circunda. É na atualidade que um texto tem a
possibilidade de resistir ao corpus em que deverá se vincular.
É nesses moldes que Rastier (1998, p.107) aprimora a noção de
gênero textual, afirmando ser este é um artefato lingüístico que nos “permite
ligar o contexto [corpus] à situação”. Em outras palavras, o gênero é o
mediador entre situação e uma gama de textos com afinidades relativas tanto à
língua quanto à prática social em que se inscreve. É devido à mediação dessa
natureza, que o gênero textual é designado como “princípio organizador” de
textos, arremata Rastier.
24
Não obstante a parcialidade do corpus em relação ao intertexto, , de acordo com Rastier
(2000), alguns subcorpus situados dentro de um corpus, ou seja, subgrupos integrantes de
um corpus, o que torna mais complexo o acesso à totalidade de características de um gênero,
bem como dificulta a definição totalizante da identidade do mesmo. Isso é o que havíamos
apontado, de início, nos procedimentos metodológicos da presente pesquisa, em que
descrevemos o subcorpus de charges com o qual trabalhamos.
55
No raciocínio desse teórico, tal “organização” de textos vindo a
constituir um gênero, vale dizer, um mesmo corpus, tem como fundamento as
características comuns aos textos que o integram. Se as características são
comuns, significa dizer que as mesmas são significativamente estáveis, ou
seja, se repetem, razoavelmente, entre um e outro texto que integra um dado
corpus.
Para sistematizar isso, Rastier elege a noção de normas
(normatividade). Na visão de Rastier, a normatividade funciona como ssola,
pela qual nos orientamos quando da produção de um texto ‘x’. Explicando de
outra maneira, a noção de normatividade permite-nos tratar dos traços
lingüísticos recorrentes em um conjunto de textos, os quais evocamos quando
da produção de um “novo” texto ‘x’, para que o mesmo funcione como o gênero
carta, ou como o gênero bilhete, ou como o gênero notícia jornalística, e assim
por diante. Nesse sentido, se necessitamos que um texto ‘x’, um texto ‘y’ e um
texto ‘z’ funcionem, juntamente, como carta, por exemplo, temos de ser
condizentes, em boa medida, com a normatividade do corpus deste gênero.
Por conseqüência, contribuímos para que este gênero se consolide, se firme,
não apenas no que diz respeito aos seus aspectos composicionais / formais e
temáticos, mas também enunciativos. Daí procede o nome ‘Semântica de
normas’: normas cujos fundamentos são os elementos lingüísticos que,
razoavelmente, se repetem. Ou seja, normas diz respeito à estabilidade dos
elementos léxicos, morfossintáticos e semânticos de determinado gênero e,
ainda, normas pelas quais diferenciamos um e outro gênero textual:
Les variations morphosyntaxiques selon les genres sont notables.
Par exemple, les textes littéraires contiennent trois fois moins de
passifs que les autres; la position de l’adjectif, la nature des
déterminants, des pronoms et des temps, l’usage du nombre varient
aussi notablement. Ou encore, dans le domaine technique même, les
variations sont importantes entre un manuel et une brochure
commerciale : au premier les acronymes, les impératifs, les ellipses
de déterminants ; au second les phrases longues, les pronoms
nombreux, etc
25
. (cf. Slocum, 1986), (RASTIER, 2000, p.4)
26
.
25
As variações morfossintáticas em relação aos gêneros são notáveis. Por exemplo, os textos
literários contêm três vezes menos passivas que os outros textos; a posição do adjetivo, a
natureza de determinantes, pronomes e tempos, o uso do número variam também
notavelmente. Ou ainda, no domínio técnico, as variações são importantes entre um manual e
uma brochura comercial: no primeiro, predominam os acrônimos, os imperativos, as elipses de
determinantes, no segundo, predominam as frases longas, os numerosos pronomes, etc.
(Tradução nossa).
56
Além de se pensar em normas (normatividade) como algo da ordem
das regularidades e especificidades lingüísticas de um e de outro gênero
textual, falta, ainda, uma explicação que Rastier (1998, 2000) e Rastier;
Pincemin (1999) não ofereceram em suas reflexões, no que diz respeito aos
condicionantes sociais que fundamentam o estabelecimento de uma
normatividade, que o lingüístico, a nosso ver, não se agrupa e não é
recorrente por inércia própria.
Acreditamos que, quando “enquadramos” nossos textos em determinado
gênero de texto, não somos guiados unicamente por elementos lingüísticos.
Além disso, não configuramos a organização lingüística de um texto apenas
tendo por base uma prática social pontual, conforme propusera Rastier. Muito
menos, o fazemos com base em intenções particulares a cada indivíduo.
Antes de tudo, somos tomados por uma ordem que funciona
tempos, vale dizer, guiamo-nos por aquilo que traduzimos como um conjunto
de requisitos historicamente fundados, que se fazem essenciais para o
reconhecimento e para a projeção social dos “nossos” textos que formulamos
dia após dia. Se os “nossos” textos não condizem com a ordem relativa ao
gênero textual evocado, corremos o risco de que tais textos não tenham
credibilidade social.
É, portanto, pela entrada no que Foucault (1996) entende por “ordem
do discurso” que nos fazemos indivíduos em relação a textos que produzimos.
Em decorrência disso, não inauguramos, efetivamente, um dizer, embora
tenhamos a ilusão de fazê-lo ou o receio em fazê-lo, como bem aponta
Foucault (1996, p.7):
Existe em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de não ter
de começar, um desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro
lado do discurso (...). A essa aspiração tão comum, a instituição
responde de modo irônico (...) ‘Você não tem por que temer
começar; estamos todos para lhe mostrar que o discurso está na
ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição;
26
É por esta possibilidade de se mapear as especificidades lingüísticas de certos neros
textuais que a Semântica de normas tem sido, cada vez mais, requisitada para proceder a
categorizações do amplo repertório de textos e de gêneros textuais, sobretudo aqueles que,
para fins de pesquisa – por exemplo – são disponibilizados em bancos de dados da Web.
57
Quando começamos a palestrar e/ou a redigir um texto, qualquer que
seja o gênero ao qual nos recorremos, somos instados a condizer com “leis do
dizer” desse gênero, instituídas tempos. Ou seja, uma ordem de
dimensão anterior e maior, que interfere na configuração formal dos textos
orais e escritos que elaboramos, bem como na inscrição de tais textos em uma
prática social ‘x’ ou em uma prática ‘y’. Foucault (1996) sugere que a ‘ordem do
discurso’ consiste numa série de procedimentos institucionais que orientam a
produção dos discursos nas sociedades, tendo em vista fins de controle, fins de
seleção/exclusão, fins de organização e, também, de veiculação dos mesmos.
Todos esses procedimentos, segundo Foucault (1996), têm por função eliminar
toda e qualquer ameaça à aceitabilidade social dos “nossos” textos. Um dos
procedimentos que Foucault especifica, bastante pertinente ao presente
estudo
27
, é o procedimento da exclusão
28
, que abrange, basicamente, três
questões. A primeira questão diz respeito ao fato de que há, nas rotinas
sociais, censuras e interdições quanto a certos tipos de assuntos. Além disso,
temas que são apropriados para se tratar em determinadas circunstâncias e
em certas práticas sociais, ao passo que em outras práticas, não. Além dessas
duas questões, o poder (direito de) proferir algo não é conferido a qualquer
indivíduo: “Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou
exclusivo do sujeito que fala”, (FOUCAULT, 1996, p.8).
Para exemplificar isso, pensemos que, pela ordem do discurso relativa
ao gênero ‘bula de remédio’, não é comum encontrarmos emoticons, ícones e
outros recursos apropriados às felicitações de aniversário que dispensamos,
por exemplo, a um amigo. Antes, esperamos encontrar, em uma bula,
notificações que orientem a manipulação de um medicamento, sejam essas
notificações marcadas pelo predomínio da tipologia descritiva, sejam elas
marcadas pela co-existência de descrição e explicação ou, ainda,
topicalização. Sem esses elementos, uma bula dificilmente teria repercussão e
credibilidade entre médicos e pacientes. Tampouco as notificações sobre
medicamentos, sem esses últimos elementos, se fariam efetivas na prática de
27
Acreditamos que a charge jornalística é um gênero que oferece direções enunciativas a
certos domínios de sentidos censurados pelas leis do dizer de outros gêneros sociais como o
inquérito policial, certas reportagens de cunho mais tradicional, dentre outros.
28
Foucault (1996, p.10) em diante menciona os princípios da separação, da rejeição e da
disciplina os quais não contemplaremos.
58
aviar / comprar / manipular medicamentos. Um outro exemplo seria uma
reportagem de cunho predominantemente informativo-descritivo, em que o
repórter costuma não proceder à abordagem humorística e interventiva do
político ao qual se reporta; gêneros textuais cuja ordem do discurso permite
essa última forma de abordagem, como parece ser o caso das piadas, das tiras
de humor e, inclusive, de muitas charges jornalísticas, objeto de nossa
presente pesquisa.
Em síntese, falar da normatividade específica de determinado gênero
textual é o que viabiliza, de um lado, o trato das convenções lingüísticas
relativas a um gênero textual. É, ainda, o que diz respeito à inserção de um
gênero em uma prática social. De outro lado, pela via de Foucault, pensar em
normatividade enquanto ‘ordem do discurso’ é o que viabiliza uma discussão
sobre as razões sociais que estão por detrás da instituição das normas
(normatividade) tais como concebidas por Rastier. Ainda com base em
Foucault, falar de normatividade como ordem do discurso é o que faz, também,
com que os textos adquiram alcance social, tão caro a sua permanência e à
inserção em práticas sociais.
Naturalmente, temos de considerar, também, que a normatividade de
um gênero pensada de acordo com os dois autores é uma normatividade
sujeita ao desvio. Isso sugere que o vínculo entre uma peça textual e um
gênero de texto não se de maneira pacífica: acreditamos que falhas são
constitutivas nesse vínculo, de modo que a relação texto/corpus será sempre
uma relação marcada pelo reforço, mas também, e inclusive, pela resistência,
entendido este último como deslocamento, variação. “Isso explica porque os
gêneros se modificam e se renovam com o tempo”, (DIAS, 2007, p.322),
podendo, inclusive, vir cada um a se tornar outro, ou mesmo sofrerem
hibridização, transgressão, fenômenos estes que Marcuschi (2005, p.22; p.25)
já havia apontado
Em geral, os gêneros desenvolvem-se de maneira dinâmica e novos
gêneros surgem como desmembramento de outros, de acordo com
as necessidades ou as novas tecnologias como o telefone, o rádio, a
televisão e a internet. Um gênero origem a outro e assim se
consolidam novas formas com novas funções de acordo com as
atividades que vão surgindo.
59
(...) a hibridização é a confluência de dois gêneros e este é o fato
mais corriqueiro no dia-a-dia em que passamos de um gênero a
outro ou até mesmo inserimos um no outro (...).
Considerando-se essa dupla dinâmica de correspondência/resistência
que um texto pode apresentar em relação a um corpus e considerando-se,
ainda, os trajetos de renovação / hibridização pelos quais um gênero de texto
pode passar, acreditamos na necessidade de se desenvolver o presente
estudo focando nossa atenção nos aspectos da charge jornalística que tendem
a ser mais regulares e nos aspectos que tendem mais à variação.
Para isso, ancoramo-nos tanto na Semântica de normas como também
na Semântica da enunciação, que nos oferecem, respectivamente, a noção de
corpus e a noção de cena enunciativa.
A Semântica de Normas, como vimos, prima pela normatividade de um
determinado corpus. É pela normatividade que vislumbramos a estabilidade de
caracteres lingüísticos de um gênero. É, ainda, por essa Semântica que
partimos da unidade de ‘cena enunciativa’ (neste trabalho equivalente a noção
de ‘texto’) à noção de corpus (agrupamento de cenas enunciativas reunidas
com base em traços lingüísticos familiares e, ainda, com base na prática social
a que tais cenas se vinculam). Noutros termos, mobilizamos a Semântica de
Corpus para se definir, justamente, que a análise das regularidades e, por
conseqüência, da normatividade de uma charge procede, com mais
propriedade, se se pensar em um corpus de cenas chargísticas.
A Semântica da Enunciação, por sua vez, prima tanto pela
homogeneidade quanto pela heterogeneidade de uma cena enunciativa.
Especificamente no que diz respeito à homogeneidade, todas elas emergem de
uma base comum, que consiste de características como temporalidade,
subjetividade pela presença de Locutores, remetidos a um agenciamento
específico (lugares sociais e suas representações), a exterioridade
interdiscursiva, uma relação dos Locutores com o entrelace das formas
lingüísticas na constituição de referência e, enfim, a repercussão de certos
efeitos de sentido. Quanto à heterogeneidade, acreditamos que, enquanto
indivíduos integrantes de um determinado campo do saber (o jornalismo de
opinião, p.ex. no qual as charges se vinculam em primeira instância), não
somos unânimes quando falamos e, logicamente, quando nos posicionamos
60
diante do que se nos apresenta enquanto “fatos”. determinadas formas
históricas de se posicionar em um dizer e estas formas históricas implicam a
“(...) maneira como nos inscrevemos na língua e na história”, (ORLANDI,
2005a, p.35), ou seja, implicam a maneira como corroboramos, discordamos,
deslocamos, acrescentamos “nosso” parecer diante dos dizeres e dos sentidos
que já ressoam há tempos e que afetam as nossas práticas e nossos dizeres.
1.5.1_ Enfim, corpus de cenas chargísticas
Conforme colocamos, a homogeneidade e a heterogeneidade
constituem todo e qualquer texto, assim consideramos que um determinado
grupo (corpus) de charges jornalísticas deve ser estudado a partir desses
apontamentos.
A nossa proposta é entender como a constituição de referência através
dos pronomes ‘eu’, ‘você’ passa pelos apontamentos feitos no tópico anterior,
tendo em vista a noção de modo de enunciação. Trata-se de pensar que o ‘eu’
presente em três charges, embora seja três manifestações de uma mesma
categoria gramatical, não aciona memórias discursivas idênticas, além de que
a memória que intervém no ‘eu’ de cada uma das charges, contrasta-se com
atualidades distintas de cada uma das charges.
Isso requer a definição e a caracterização da noção de modo de
enunciar e, na seqüência, a definição e caracterização do modo de enunciação
que acreditamos ser predominante nas charges jornalísticas.
1.6_ Modo de enunciação e gênero textual
Tendo em vista as colocações feitas, trabalhamos com a hipótese de
que um gênero de texto ‘x’ e, por conseguinte, os textos (cenas) que o
representam, tem sua identidade emoldurada, de um lado, por regularidades de
ordem lingüística e, por outro lado, por regularidades com que uma prática
social o abriga, instituindo-o como formulação textual reconhecidamente válida.
Especificamente no que diz respeito à dimensão lingüística subjacente
às cenas que integram um gênero textual, consideraremos que entre elas,
uma importante regularidade a ser discutida no que diz respeito ao modo de se
61
falar sobre, isto é ao modo de se constituir referência nos/através dos
elementos lingüísticos que se assentam na textualidade de um gênero.
É inegável que na e através da língua, falamos sobre algo, conforme
aponta Guimarães (2005a, p.7), em introdução de sua obra intitulada
“Semântica do Acontecimento”, constatação que muito foi levantada e vem
sendo reiterada em estudos variados nos campos da semântica, da
pragmática, da filosofia da linguagem e da análise do discurso, cada qual com
suas especificidades, evidentemente.
Entendemos ser necessária a abordagem de algumas noções de
referência mais recorrentes nos estudos relacionados à linguagem, pois a
noção de referência é, em nossa pesquisa, pilar central para se esboçar uma
definição de modo de enunciação em relação à noção de gênero textual.
Assim, por dizer respeito à noção de referência, algo que requer a linguagem,
modo de enunciação envolve, antes de tudo, a linguagem e suas
regularidades. Envolve, também, as práticas sociais relativas a um gênero, mas
esse aspecto não se constitui assunto inicial para o esboço da definição de
modo de enunciação e sim, um assunto que virá com o decorrer da discussão
(grifo nosso).
que a noção de referência é, destacadamente, constitutiva da
questão, teremos de revisar o que se tem entendido por referência, com base
em reflexões mais visadas nos estudos sobre a linguagem até os dias de hoje.
Primeiramente, recuperaremos, de forma breve, a filosofia que
configurou a constituição do saber antes do século XIX e que parece afetar a
época moderna. Depois dessa breve retomada, passaremos pela perspectiva
de Frege (1892), posteriormente entenderemos um pouco da abordagem de
Ducrot (1984). Finalmente, veremos como a noção de referência é tratada no
escopo da Semântica Histórica da Enunciação, perspectiva teórica central na
fundamentação teórica de nossa pesquisa.
1.7 A referência
A epistème clássica, assim chamada por Foucault (2002, p.428),
entendia a linguagem como um poderoso instrumento para se “quadricular
62
espontaneamente o conhecimento das coisas”; a linguagem era considerada
transparente o suficiente para representar, com fidedignidade, o objeto de
referência. Supunha-se que as entidades da realidade “existiam por si
mesmas” e estavam à espera de uma linguagem que as captasse, as
combinasse, as articulasse e desarticulasse, tornando-as “visíveis nas
transparências das palavras”, Foucault (2002, p.428):
A vocação profunda da linguagem clássica foi sempre a de constituir
‘quadro’: quer fosse como discurso natural, recolhimento da verdade,
descrição das coisas, corpus e conhecimentos exatos, ou dicionário
enciclopédico. Ela só existe, portanto, para ser transparente [...] na
idade clássica, o discurso [materializado por linguagem] é essa
necessidade translúcida através da qual passam a representação e
os seres [...] a possibilidade de conhecer as coisas e sua ordem
passa, na experiência clássica, pela soberania das palavras [...].
(idem).
Paulatinamente, a perspectiva clássica de representação entra em
crise quando se passa a reconhecer que a linguagem padece das
“imperfeições” próprias do humano. Através dos séculos XIX e XX, aos poucos,
foram-se emoldurando perspectivas de linguagem e de referência que se
afastam da idéia de transparência, principalmente através do reconhecimento
de que a linguagem é afetada pelas dissensões sociais.
No final do século XIX, filósofos adeptos do logicismo Russel e
Frege, principalmente trabalhando em prol do progresso nas ciências
matemáticas, propunham uma relação efetiva entre lógica e linguagem, com
repercussões na relação entre a linguagem e a referência. A proposta básica
estava na crença de que um objeto do mundo poderia ser alcançado caso se
dispusesse de uma linguagem não exatamente transparente, mas
estruturalmente lógica, exata, capaz de captar o mundo nessa suposta lógica
do dizer.
Frege (1978) conceitua referência como um objeto que pode ser
delimitável e que se localize em um mundo cuja existência anteceda a
linguagem e seja independente dela. Tal delimitação se dá, na ótica do gico,
por possibilidades de sentido que viabilizem a apreensão de um objeto no
mundo. Essas possibilidades de sentido são os “modos de apresentação do
objeto”, modos estes que, voltados a uma referência, fundam um nome próprio.
Assim, para Frege, cada nome próprio poderia disponibilizar de um ou mais
63
modos de ser apresentado, mas sob a exigência de que esse modo contivesse
uma estrutura gramatical logicamente depreensível e passível de ser estudada,
(FREGE, 1978, p.76).
Como exemplo, consideremos a cidade de Belo Horizonte (BH).
Agregados, os sentidos de “capital dos mineiros’, “capital dos botecos” e
“terceira maior cidade do Brasil”, promovem a intermediação entre o nome
‘Belo Horizonte’ e o lugar físico que se candidata a estar vinculado a este nome
(lugar, cuja significação, de acordo com Frege, seria autônoma em relação a
esses sentidos). Na perspectiva de Frege, quanto mais sentidos, mais
caminhos teríamos para se falar de BH. Entretanto, o lugar estaria longe de ser
abarcado em sua completude: o “sentido de um nome próprio [...] elucida a
referência [...] mas de maneira sempre parcial”, (FREGE, 1978, p.63). Assim,
“capital dos botecos” é apenas um dos aspectos de uma referência pontual,
“discretizável” em um mundo concreto, apesar dessa parcialidade.
Contemporaneamente, na Semântica Formal, Oliveira (2001a, p.100)
explica que o sentido de um nome próprio só é válido, e consegue garantir a
delimitação de uma referência concreta, se, p.ex., “capital dos botecos” contiver
um valor de verdade (referir-se ao verdadeiro e ao falso). Um valor de verdade,
explica Oliveira (idem), “depende das circunstâncias e do mundo em que [uma
expressão] é proferida”. Portanto, se em um mundo “real” for possível a
constatação de que BH é uma capital e de que existem de fato muitos
botecos, “capital dos botecos” é um modo legítimo, viável e, portanto, contém
um valor de verdade sobre a cidade. Falar em valor de verdade para Frege
implica também o contrário, isto é o desvio, a ilogicidade, o que, para ele,
impediria a delimitação de uma referência. Em outras palavras, para Frege, é
provável que uma expressão tenha sentido sem, contudo, delimitar
necessariamente uma referência. Para contornar esse problema, as reflexões
fregeanas focalizavam nomes próprios em expressões cuja estrutura lingüística
fosse “logicamente perfeita”, (FREGE, 1978, p.76), que implica um valor de
verdade e, de fato, pontue efetivamente uma referência em um mundo
concreto:
É, pois, a busca da verdade, onde quer que seja, o que nos dirige do
sentido para a referência. (...) Vimos que a referência de uma
sentença pode sempre ser procurada onde a referência de seus
componentes esteja envolvida, e isto é sempre o caso quando, e
somente quando, estamos investigando seu valor de verdade.
64
Somos assim levados a reconhecer o valor de verdade de uma
sentença como sendo sua referência. (FREGE, 1978, p.69).
Tentando problematizar a questão da ilogicidade, ou seja, do que
representava erro de linguagem, para Frege, Oliveira (2001b, p.152) chama-
nos atenção para o fato de que “nem sempre falamos sobre indivíduos [ou
objetos que realmente] existem no mundo” que entendemos por concreto. Em
relação a Frege, Oliveira (idem) admite a constituição de uma referência em
um mundo “irreal”, que escape à delimitação. Isso se pela pressuposição de
mundos de caráter onírico, lendário; mas, como Frege determinara, um mundo
sempre prévia e independentemente fundado em relação a uma linguagem
(sentidos) que venha significá-lo.
Em seqüência, veremos que essa diferenciação absoluta entre mundo
e linguagem foi progressivamente suprida por perspectivas teóricas que, cada
uma ao seu modo, propuseram que o mundo é aquilo que os discursos validam
enquanto realidade. O mundo enquanto dimensão física e real cede lugar para
a noção de exterioridade constitutiva da enunciação, passível de sofrer recortes
variáveis entre uma e outra perspectiva do dizer.
É com base em Ducrot, Foucault e Guimarães que veremos como a
exterioridade lingüística vai deixando de ser entendida, ao longo do século XX,
como uma dimensão mensurável, de propriedades ajustáveis umas às outras.
Além disso, é com base nesses teóricos que veremos como a
subjetividade, a disputa pela palavra, o acontecimento do dizer, enfim, fazem
parte da constituição de sentidos e da referência. Contemplaremos, com isso,
os elementos necessários para o esboço da noção de modo de enunciação e
sua relação com gênero charge – objetivo central do nosso trabalho.
Ducrot (1984) conceitua a referência como um objeto que é instituído
por um dizer. Diferentemente do que Frege havia postulado, uma referência
não existe de maneira prévia e autônoma em relação a um dizer, defende
Ducrot. Além disso, Ducrot participou de um momento teórico em que
começavam a se solidificar os estudos da enunciação. Pela perspectiva
colocada em debate, apontar para um referente não é apontar para um objeto
da “realidade”, tal qual esta se propõe a ser evidente aos nossos olhos: “O
referente de um discurso não é (...) como por vezes se diz, a realidade mas sim
65
a sua realidade, isto é, o que o discurso escolhe ou institui como realidade”,
(DUCROT, 1984, p.419).
Mesmo não sendo uma realidade in situ mas aquilo que um dizer
delineia enquanto realidade, Ducrot sugere que, na configuração de um
referente, “Não escapamos (...) a exigência, segundo a qual a palavra tem de
conter, como seu elemento constitutivo, uma alusão a uma exterioridade”,
(idem). Dessa maneira, prossegue afirmando que “desde que haja (...) um
dizer, uma orientação necessária para aquilo que não é dizer”, (idem). Isso
resulta em um “estatuto ambíguo do referente”, conforme formulação de
Ducrot: de um lado, o referente se coloca como alvo externo de um dizer e,
portanto, “deve ser exterior ao discurso”. De outro lado, o apontamento de um
referente passa, necessariamente, por um dizer, “e portanto fica inscrito nele”.
Instala-se o dilema: por que externalizar o referente em relação a um dizer
se este o institui? Como conhecer um referente senão através de um discurso
que o configura?
De acordo com o que o próprio Ducrot (1984, p.420) sugere, resolver o
dilema da dupla face do referente requer o reconhecimento de que, mesmo
oriundo de um discurso X, um referente é externo a esse discurso, porque não
lhe é propriedade exclusiva, estando, pois, sujeito a outros dizeres: “A
exterioridade do referente é garantida pela possibilidade de existência de
grande número de outros discursos que, também, o visam”, (idem).
Nessa perspectiva, não cabe sustentar o raciocínio de que um
referente é algo simples de se entender, ou mesmo, de se delinear. Assim,
retomamos o exemplo mencionado na seção anterior: O que é “Belo Horizonte”
se, para conhecer este objeto, não basta mensurá-lo por dimensão, tamanho,
localidade etc? Pela perspectiva ducrotiana, Belo Horizonte é o que as falas
existentes sobre Belo Horizonte propõem que ela seja. Noutras palavras, Belo
Horizonte, na óptica ducrotiana, “tem sua objetividade constituída pelo fato de
várias falas falarem deste objeto”, (Guimarães 2005b, p.73, em revisão a
Ducrot, 1984). Esquematizando, perceberíamos uma seqüência de dizeres que
se convergem:
66
Figura 1: A constituição da referência de Belo Horizonte,
de acordo com a perspectiva de Ducrot.
Em suma, por sua teoria enunciativa, Ducrot (1984) contribuiu com a
tese de que o mundo não se resolve antes e independentemente das nossas
descrições e das nossas narrativas, tese que tem servido de base para
desdobramentos atuais sobre referência no campo de estudos da enunciação,
notadamente, na perspectiva de Guimarães (2005 a,b).
Na perspectiva de Guimarães, a referência é uma entidade de
natureza necessariamente simbólica, porque sua configuração se no interior
de um acontecimento lingüístico. Essa natureza simbólica da referência
ultrapassa os limites materiais do acontecimento em que se instala, na medida
em que a língua, na óptica de Guimarães, não funciona autonomamente, mas
afetada por domínios históricos de enunciação, recortados em um
acontecimento do dizer. Nessa perspectiva, palavras, sintagmas, sentenças,
reportam a objetos que o são conhecidos meramente pela observação das
estruturas da língua, tampouco delimitáveis em um mundo. Antes, é na
intersecção dessas estruturas com um confronto de enunciações históricas
portanto, de saberes e de imaginários que ressoam socialmente que um
referente se define.
Nessa perspectiva de referência, os domínios históricos de enunciação
remetem a domínios de memória, e às discursividades que sustentam as
instituições sociais. Os lugares sociais de enunciação são sustentados pelas
instituições. Depreende-se daí que os referentes o entidades de natureza
histórica, devido ao fato de procederem de enunciações históricas, que formam
a base de cada acontecimento enunciativo.
67
Nesse viés, trabalhamos com a tese segundo a qual os domínios
históricos de referência são evocados no acontecimento enunciativo em
diferentes graus, sob diferentes circunstâncias linguageiras, a partir de
diferentes lugares sociais ocupados pelos Locutores.
Diria que o objeto é uma exterioridade produzida pela linguagem,
mas não se reduz ao que se fala dela, pois é objetivada pelo
confronto de discursos. Em que sentido isto se dá? No sentido em
que o objeto é constituído por uma relação de discursos. A
materialidade é este confronto. (GUIMARÃES, 2005b, p.74).
Logo, pensar na constituição de uma referência como uma entidade
que é recortada do confronto de discursos (o interdiscurso), e que vem a figurar
na materialidade de um acontecimento, leva-nos a supor que a referência
adquire, no percurso das enunciações em que figurou, um caráter
marcadamente dissensual, conflituoso, movediço e instável. O que fundamenta
essa afirmação é a colocação de Pêcheux (1988) para quem a memória não é
“uma esfera plana (...) de conteúdo homogêneo”, mas “um espaço móvel de
divisões, de disjunções, de deslocamentos (...) um espaço de réplicas,
polêmicas (...)”. Entretanto, esse confronto requer, da parte daquele que “o diz”,
um “jogo de esquecimento”, que implica, basicamente, no que Orlandi (2005a,
p.34-5), em revisão a Pêcheux (1975), entende por esquecimento
29
. Na
atualidade do acontecimento enunciativo, por sua vez, o campo de referência
agrega novas especificidades de significação, provocando deslocamento no
percurso desse campo nas enunciações passadas.
Um breve balanço sobre a noção de referência nos indica que, quando
enunciamos, reporta-mo-nos a objetos que parecem estar situados em um
mundo semanticamente neutro. Essa concepção guiou o modo de se conceber
a relação entre as palavras e as coisas no decorrer da idade clássica, conforme
29
Duas são as concepções de “esquecimento” estabelecidas por Orlandi (2005, p.35). Uma
delas diz respeito à ilusão de que “o que dizemos pode ser dito com aquelas palavras e não
outras, que só pode ser assim”, ou seja, muitas vezes somos conduzidos pela ilusória
impressão de que a relação entre uma palavra e uma coisa é natural. Esquecemo-nos, nesse
caso, de que os nomes são atribuídos às coisas por percursos históricos de enunciações, e é a
esse esquecimento que fizemos menção quando tratamos do caráter dissensual, movediço e
heterogêneo da referência. A outra concepção de esquecimento”, também pertinente para tal
abordagem de referência, diz respeito à ilusão que afeta a assunção de toda palavra. Quando
dizemos, esquecemo-nos de que as palavras não são originalmente nossas. Retomamos,
desdobramos, aprimoramos, contradizemos o que já ressoa em nossa sociedade e esse
esquecimento, sem dúvida, tem a ver com a questão da referência que levantamos nesse
ponto do trabalho.
68
salientamos acima. Foucault (2002, p.456) leva-nos a entender que o
“pensamento moderno” produziu significativos avanços no modo de se
entender a relação entre a linguagem e as coisas após o período clássico. A
“verdade” ou a “origem” das coisas passou a ser questionada, quando passou
a vigorar, com predominância, uma concepção de “linguagem desdobrada”,
ou seja, uma linguagem que não é neutra, mas afetada”, “marcada
ideologicamente” por uma pluralidade de esferas sociais. Dessa maneira,
dispomos de uma linguagem que referencia um objeto socialmente
multifacetado, porque disponível em uma “rede entabulada da compreensão”
(ibidem), ou seja, uma rede de saberes, de conhecimentos e/ou de referentes
que não figuram em um único dessa rede e que, podemos assim dizer, não
têm começo, tampouco fim. Uma rede que disponibiliza ao homem “conteúdos
e formas mais antigas do que ele e que ele não domina” (FOUCAULT, 2002,
p.455). Na seqüência, Foucault postula que, quando o homem “tenta definir-se
como ser vivo, só descobre seu próprio começo sobre o fundo de uma vida que
por sua vez começara bem antes dele”. Nesses moldes, temos um sujeito que
está inserido em uma “rede de poder” (Foucault, 2002, p.456), constituída em
um “tempo e [em] um espaço humano já institucionalizados, dominados pela
sociedade”. Trata-se de uma rede de saberes que nos permite falar sobre um
objeto a partir das possibilidades históricas de constituição de referência.
1.8. Por um esboço da relação modo de enunciação X gênero
textual
Tendo-se em conta as diretrizes conceituais traçadas, principalmente,
nos trabalhos de Guimarães e nos de Foucault, tangenciamos os elementos
necessários para o esboço da noção de modo de enunciação, tão cara à
discussão que nos propusemos a empreender ao introduzirmos a seção 1.6.
Além das diretrizes mencionadas, incluiremos no esboço da noção, alguns
pontos conceituais sinalizados nos trabalhos de Orlandi.
De início, arriscamo-nos a dizer que modo de enunciar diz respeito a
um mecanismo de linguagem particularmente pensado como um modo de
constituição de referência, que acreditamos ser peculiar em uma e em outra
69
cena enunciativa, o que vale inclusive para um gênero de texto em relação a
outro gênero de texto.
Ao propor isso, corroboramos a tese de Dias (2005, 2007), para quem
certos gêneros textuais determinam modos de enunciar específicos. Essa
especificidade diz respeito, justamente, ao fato de que certos gêneros textuais
dadas as condições, as práticas em que emergem, os propósitos com que
são mobilizados, os locutores que mobilizam, os efeitos de sentido que se
pretende repercutir favorecem diferentes modos de constituição de referência
que se mostram relativamente regulares.
A seguir, procederemos à abordagem de (3) três modos de enunciar
que Dias (2005, 2007) tem sustentado nessas e em outras reflexões voltadas
para o estudo de alguns gêneros textuais.
Para isso, tomemos os exemplos a seguir, que trazem enunciados
constitutivos de duas cenas publicitárias e de duas cenas de conversa
espontânea.
(exemplo 1) O tempo passa. A essência fica.
(exemplo 2) A essência do perfume Euphoric fez a blusa de Joana exalar
cheiro durante muito tempo.
70
(exemplo 3) Quem ama cuida.
(exemplo 4) Pedro ama a praia que freqüenta. Por isso, nunca leva seu
cachorro para a areia.
Observando os exemplos de (1) a (4), percebemos que todos eles
apresentam articulações gramaticais previstas pelas regras-padrão de uso da
língua portuguesa. Ao nosso ver, essas articulações não ocorrem por si
mesmas. Antes, os elementos gramaticais passam por um modo de enunciar,
constituem-se como portadores de referência a objetos do interdiscurso e,
então, articulam-se no interior da cadeia lingüística em que ocorrem. Tudo isso
se reporta a um Locutor que fala de um lugar social, conforme discutimos na
explanação sobre a noção de cena.
Especificamente no exemplo (1) relativa ao site da perfumaria Água
de Cheiro um locutor-anunciante que emprega o termo ‘essência’
explorando a sua múltipla possibilidade de referência. ‘Essência referencia
elementos comerciais, representados iconicamente na materialidade textual do
site, a saber a logomarca da perfumaria e o frasco do perfume Euphoric,
ilustrado mais abaixo. Ao mesmo tempo em que se efetiva essa referência, o
termo ‘Essência’ evoca objetos que não estão explicitamente visualizados no
site, mas que estão disponíveis em domínios do interdiscurso, particularmente
Fonte
: Fotografia de uma propaganda educativa
disponível no calçadão da Praia de Ipanema, Rio de
Janeiro. Foto produzida em 10 de outubro de 2007.
71
domínios sustentadores de dizeres que circulam entre os comerciantes de
perfumes que, durante o ato da venda, sustentam a idéia de que um perfume
de boa qualidade pode despertar boas e profundas lembranças em seu
consumidor, mesmo que esse perfume seja antigo no mercado ou no armário
do consumidor, nem por isso um perfume antiquado ou que venha a perder a
sua essência. Nesses moldes, fica difícil não reconhecer que o marketeiro filia-
se a uma memória de dizeres recorrente entre os consumidores, para os quais
os perfumes geralmente perdem a sua essência/aroma com o passar dos
meses ou dos anos que foram comprados. Contra esse argumento, o locutor-
marketeiro é tomado pelo clássico jogo de persuasão que caracteriza as cenas
publicitárias, levando o consumidor a acreditar que os perfumes Água de
Cheiro têm boa qualidade e por isso sua essência/aroma permanece ao longo
dos anos de seu uso. Simultaneamente a isso, o marketeiro é tomado, ainda,
pelo jogo que o fazer publicitário tradicionalmente mobiliza, de tentar atingir as
emoções do consumidor, isto é fazendo-lhe acreditar que a
essência/profundidade das suas experiências pessoais está, estreitamente,
associada a um perfume de boa qualidade. Tudo isso se constitui como o
fundamento enunciativo da articulação gramatical entre a sentença “O tempo
passa” e a sentença “A essência fica”. Naturalmente, há uma predominância de
ícones do site como referências a serem apontadas pelo termo ‘essência’,
justamente por estarmos diante de uma propaganda, que geralmente aposta na
conquista de consumidores pelos objetos que “saltam aos seus olhos”.
Entretanto, os elementos de ordem abstrata lembrança, prazer, bons
momentos o, indispensavelmente, candidatos a serem apontados como
focos de referência do termo ‘essência’. Em resumo, há, portanto, uma
concomitância, uma simultaneidade referencial em (1).
Em contrapartida, ‘essência’, no exemplo (2), apresenta-se como um
termo de significativa precisão referencial em relação a sua ocorrência em (1).
Tanto no âmbito da sentença em que aparece, quanto no âmbito do
interdiscurso, ‘essência’ alude basicamente a fragrância do perfume que
provocou cheiro na blusa de Joana durante algum tempo. Nesse caso, quem
enuncia tal sentença é tomado por uma necessidade de “hachurar” um
referência pontual, provocando, assim, um efeito de precisão em “sua” fala.
72
Invés de simultaneidade referencial, temos em (2) um caso de especificidade
referencial.
em (3), dispomos de um enunciado constitutivo de uma campanha
publicitária preventiva sobre o meio ambiente que, ao contrário de (2), mobiliza
um marketeiro que fala de uma região do interdiscurso segundo a qual é
preciso conscientizar um grande número da população a respeito da
necessidade de se preservar o meio ambiente de Ipanema antes que a
poluição se torne um problema irremediável. Para isso, o pronome 'Quem' é
empregado com vistas a referenciar um amplo conjunto de banhistas que se
vejam sensibilizados com a necessidade de se prezar pela higiene da arena de
Ipanema, que pode ser infectada pelas fezes e pelas urinas dos cães que,
porventura, venham a passear com os seus respectivos donos nessa
localidade. Invés de simultaneidade referencial e invés de especificidade
referencial, o 'Quem' é empregado para fazer remissão a um conjunto
significativamente amplo de banhistas que se agrupam sob a incubência de
preservar a arena de Ipanema, não levando os seus cães para o local.
Em contrapartida a (3), a constituição do exemplo (4) mobiliza um
locutor tomado pela necessidade de apontar um banhista específico - Pedro -
que, seduzido pela campanha de preservação, nunca leva o seu cão para a
arena de Ipanema.
Sem muito alongar no entendimento desse último exemplo, (4) adquire
uma afinidade com (2): ambas as cenas são configuradas sob um modo de
enunciação especificador, afinidade que não ocorre entre (1) e (3). A primeira
sentença configura-se por um modo de enunciação multireferencial, ao passo
que (3) configura-se por um modo de enunciação genérico.
Diante dos exemplos, podemos dizer que modo de enunciar é um
mecanismo enunciativo incontornavelmente agregado à articulação material
das palavras, ícones e sentenças constitutivas de uma cena enunciativa.
Melhor dizendo, é um mecanismo intermediário entre a articulação gramatical
de palavras, expressões, ícones e um nero textual. Teríamos, portanto,
muitos prejuízos teóricos se estudássemos a relação entre gramática e gênero
de texto sem se preocupar com o conceito intermediário de modo de
enunciação.
73
Ainda com relação à noção de modo de enunciar, acreditamos, por
fim, ser este um mecanismo de caráter processual: algo que vem de antes, que
teve eficácia na configuração de cenas anteriores e que, ainda, tende a
peculiarizar a articulação gramatical de cenas enunciativas futuras. Mais
especificamente, atentando-nos a uma determinada família de cenas
enunciativas passadas cenas descritivas comportadas dentro de um guia
turístico, por exemplo inferimos que a construção de tais cenas pressupõe
um modo de enunciar que não é novo, mas que vem fazendo parte da
publicação de guias turísticos há algum tempo considerável. Significa dizer que
tais cenas referenciam uma cidade e seus pontos turísticos de uma maneira
relativamente regular, que funcionou, funciona e tende a funcionar em futuros
guias turísticos, que sequer foram publicados ainda.
1.9 _ Perspectivas para o andamento da pesquisa
O presente esboço da noção de modo de enunciação deverá, ainda,
ser potencialmente expandido, sobretudo se esta noção for pensada em
relação aos diversos gêneros textuais.
A nossa contribuição quanto a isso dar-se-á pelo estudo da
enunciabilidade que entendemos ser predominante no gênero charge
jornalística. No capítulo a seguir, pretendemos tomar modo de enunciação
como um mecanismo que peculiariza a constituição de referência em charges
jornalísticas, quando do uso de pronomes pessoais na textualidade do gênero
escolhido. Tendo sido peculiarizado por um modo de enunciar, entendemos
que assim é que os pronomes articulam-se com outras palavras do
enunciado em que aparecem e, também, remetem-se às caricaturas figurantes
na textualidade das charges.
Para viabilizar essa pretensão, teremos, adiante, de determinar e
caracterizar o modo de enunciar que acreditamos ser peculiar e predominante
em charges jornalísticas.
74
C
C
a
a
p
p
í
í
t
t
u
u
l
l
o
o
2
2
Modo de enunciação e charge jornalística
Os jornalistas que
dão opinião “cumprem uma dupla função:
a de traduzir (...) conhecimento
para um grande público e
[a de] contribuir na elevação do debate
sobre as grandes questões nacionais”
(DA SILVA, 2003, p.98)
“Colocar-se na posição do semanticista
é inscrever-se num domínio de saber
que inclui no seu objeto a consideração
de que a linguagem fala de algo.
Por outro lado, não há como pensar
numa semântica lingüística sem levar
em conta que o que se diz é
incontornavelmente construído
na linguagem”.
(GUIMARÃES, 2002, p.7)
75
2.0 Pontos de partida
O objetivo principal do presente capítulo é apontar e caracterizar o
modo de enunciação multireferencial que parece orientar, predominante e
recorrentemente, a relação que os pronomes “eu” e “você” adquirem com a
textualidade de charges jornalísticas. A caracterização desse modo de enunciar
incluirá a sua concomitância com a genericidade e a especificidade
enunciativas, também relacionadas ao uso dos pronomes nas cenas
chargísticas, o que nos parece ser uma abordagem que enriquecerá o estudo
da multireferencialidade.
De acordo com o que formulamos nas partes finais do capítulo
anterior, refletir sobre a noção de modo de enunciação requer, como primeiro
ponto de partida, uma reflexão que leve em conta as injunções histórico-
enunciativas constitutivas do funcionamento da materialidade lingüística de um
gênero, especificamente no que diz respeito à circunscrição textual de
referência.
Um segundo ponto de partida para procedermos à referida reflexão
consiste na abordagem de quatro principais elementos que são
tradicionalmente associados à gênese desse gênero textual, a saber: a noção
de atualidade e a de acontecimento jornalístico, concebidas segundo os
estudos de Mouillaud (2002), a noção de caricatura, concebida de acordo com
Lima (1963) e de acordo com Melo (2003) e, por fim, a noção de locutor-
chargista, concebida com base nos estudos enunciativos representados por
Guimarães (2005 a,b), para entendermos a prática do jornalismo de opinião.
Um último ponto de partida para desenvolver uma reflexão como a
proposta é a aproximação teórica entre a noção de cena enunciativa e a
concepção enunciativa de texto, ambas mencionadas na seção 1.4.2 do
capítulo anterior.
2.1. A atualidade e a caricatura das charges jornalísticas em pauta
Inegavelmente, a questão da atualidade vem sendo constantemente
contemplada nas mais recentes conceituações de charge jornalística, por isso
76
iniciaremos nossa discussão com uma abordagem enunciativa sobre a noção
de atualidade, tomando-se a cena chargística a seguir:
Cena (1)
Fonte: Revista Ist, n. 1916, 12/07/2006.
De um lado, essa cena temporaliza acontecimentos de linguagem
relativos a uma fase pré-eleitoral da política brasileira, quando assistíamos à
disputa acirrada entre o presidente-candidato Luiz Inácio Lula da Silva e o
peessedebista Geraldo Alckmin, ambos pleiteando o mandato presidencial, a
vigorar entre os anos de 2007 e 2011. Concomitantemente a esses
acontecimentos, eclodia na imprensa jornalística um outro grupo de
acontecimentos de linguagem, desta vez relativos à estréia da Seleção
Brasileira de Futebol na Copa Mundial. Nessa conjuntura, o presidente
sugerira, em teleconferência com a delegação brasileira, que Ronaldo estava
acima do peso ideal, vale dizer, aquém das condições físicas desejáveis para
competir pelos jogos da Seleção, na condição de titular.
Acontecimentos enunciativos assim resumidos sejam aqueles
publicados em jornais e revistas, sejam aqueles não publicados não
raramente costumam ser tomados como a atualidade de uma charge
jornalística. Em relação a essa atualidade, o chargista é aquele que assume o
77
esforço de controlar e direcionar a opinião pública, vale dizer, assume um
esforço de formar a opinião pública, por meio de uma avaliação crítica e/ou
humorística, que segue acompanhada de assinatura, lugar de marcação da
autoria. Especificamente nesse caso, podemos dizer que Fernandes Brum,
valendo-se da posição social de chargista que lhe confere uma maior liberdade
de crítica, quis orientar a opinião pública a favor das críticas que a esquerda
dispensava ao mandato de Lula. Noutras palavras, isso demonstra um certo
inconformismo quanto à postura política de Lula durante seu primeiro governo,
o que era, naquele momento, bastante evidenciado pela oposição. Vale dizer
que esse inconformismo é, por sua vez, comicamente relacionado, nessa
charge, à crítica indevida feita pelo presidente ao jogador Ronaldo da Seleção
Brasileira.
Em virtude desse raciocínio, duas conseqüências têm tido repercussão
em grande parte das conceituações vigentes sobre o gênero charge
jornalística. A primeira conseqüência é a de que, sendo a charge jornalística
um gênero dedicado à formação da opinião coletiva, somos, muitas vezes,
tomados pela impressão de que a opinião pública constitui-se apenas a partir
de acontecimentos enunciativos restritos a um aqui-agora, isto é a um presente
circunstancial. A segunda conseqüência é a de que acontecimento e atualidade
costumam ser tomados como dois elementos indistintos; é como se o primeiro
não tivesse memória; como se um acontecimento, ao qual a charge se
direciona, fosse um dizer que se origina apenas de um presente imediato e de
um espaço físico, daí a superposição acontecimento-atualidade.
Uma rápida busca nos principais dicionários demonstra esse
tratamento indistinto entre atualidade e acontecimento. Houaiss (2001), por
exemplo, considera que charges envolvem
desenho humorístico, com ou sem legenda ou balão, geralmente
veiculado pela imprensa e tendo por tema algum acontecimento
atual, que comporta crítica e focaliza, por meio de caricatura, uma ou
mais de uma personagem envolvida.
Fica difícil não reconhecer, nessa acepção, a adjetivação
acontecimento atual, ou seja, fica difícil não se reconhecer a idéia de que
uma charge mantém relação temática com um acontecimento que tenha
78
pertinência em uma atualidade. Ou seja, na definição de muitos dicionaristas
30
,
os acontecimentos noticiados pela mídia jornalística são, de fato,
indistintamente associados a um “aqui-agora”. Assim, define Houaiss, tais
acontecimentos tornam-se tema das charges e, no ensejo, recebem uma
abordagem crítica e/ou humorística.
Essa linha de raciocínio acaba por repercutir, de alguma forma, em
outras concepções de charge, emolduradas entre especialistas de outras áreas
do saber, talvez pela tradição e importância que os dicionários assumem como
livro de consulta em vários setores da nossa sociedade.
Em uma abordagem inscrita no campo de estudos da Comunicação
Contemporânea, Teixeira (1998) parece corroborar parte do raciocínio que
orienta a definição de charge apresentada no dicionário Houaiss (2001).
Segundo a autora,
(...) a atualidade é a matéria-prima das charges. (...) É a partir
daquilo que sai no jornal que uma charge começa a existir. (...) Sua
condição de existência é a recorrência a temas que sejam
conhecidos pelos seus leitores, pois, caso contrário, perde o seu
sentido e razão de ser. Sua abordagem é sempre atual, cotidiana,
seguindo critérios de notabilidade calcados tanto na visibilidade de
quem se fala quanto na importância e pertinência dos temas para a
sociedade na qual ela está inserida. (...) Sua ligação com a realidade
circundante se resume aos personagens e temáticas abordadas.
Novamente, temos mais uma conceituação segundo a qual a(s)
atualidade(s) reportada(s) nos periódicos jornalísticos fomenta(m) a
constituição temática das charges, vindo, com isso, a adquirir uma leitura crítica
nesse gênero: “(...) consideramos as charges como fruto da interpretação
proposta por seu autor de acontecimentos verificados na esfera política (...)”,
(TEIXEIRA, 1998).
Ao considerar isso, Teixeira (1998) acrescenta que “a charge, sem
dúvida, ganha muito mais força quando publicada em veículos jornalísticos”,
talvez, supõe a autora, pela sua intrínseca relação com acontecimentos que lhe
30
Semelhante definição de “charge” também pode ser encontrada em outros dicionários. Em
Holanda (1986), por exemplo, salienta-se que a charge está direcionada a fatos específicos,
que valem como a atualidade que é de “conhecimento público”.
79
sirvam de atualidade, ou nos termos de Teixeira, que lhe sirvam de “matéria-
prima”.
Sem dúvida, as contribuições dessa autora muito significam para
nosso estudo, pois também acreditamos que as publicações chargísticas
envolvem gestos de referência a acontecimentos que ganham pertinência em
uma atualidade temporal e local. Nesse sentido, acreditamos, em partes, que é
em função de uma atualidade que o campo referencial das charges
jornalísticas se organiza: uma congregação de palavras e ícones de modo a
funcionar como índices de referência a “objetos” pertinentes a uma atualidade.
Na textualidade da cena (1), temos, por exemplo, o substantivo
‘Alckmin’ funcionando como índice referencial a Geraldo Alckmin, na condição
de representante de partido opositor que deseja recuperar a cadeira
presidencial, quando das disputas eleitorais, no decorrer do segundo semestre
do ano de 2006.
Com efeito, essa direção referencial propiciada pelo substantivo
Alckmin, a pessoa e as atitudes de Alckmin em uma dada atualidade, é um
funcionamento estreitamente vinculado à imagem caricatural, outro elemento
com grande destaque nas conceituações sobre charge jornalística.
Levando-se em consideração que a caricatura de Geraldo Alckmin
traja um uniforme da Seleção Brasileira de Futebol, reconhecemos, ainda, uma
outra possibilidade de referência do substantivo Alckmin a acontecimentos de
uma atualidade. Desta vez trata-se de acontecimentos concernentes a um
grupo de desportistas que apostavam na saída de Ronaldo da condição de
atacante titular da Seleção Brasileira, o que tem a ver, em boa medida, com os
anseios da esquerda em relação ao presidente Lula, naquele momento do ano
de 2006.
Em resumo, necessariamente a presença da caricatura tem de ser
associada às palavras, tanto em nível de léxico quanto em nível de enunciado,
uma vez que a charge jornalística é um gênero que lança mão de figuras
caricaturadas para encenar, vale dizer, para reportar elementos relacionados a
uma dada atualidade entidades políticas, institucionais e públicas, suas
atitudes, bem como a situações cotidianas de um modo geral. Em outros
termos, trabalhamos com a idéia de que a mescla de palavras com caricaturas
estabelece, na textualidade da cena (1), as condições materiais para que
80
funcione a multiplicidade de direções referenciais oferecida nessa cena,
direções que apontam para significações relativas ao esporte e significações
relativas à política. Entretanto, acreditamos que essas direções se viabilizam
tanto no âmbito da textualidade e atualidade da cena, como, também, nos
domínios de memória do interdiscurso, recortados na cena enunciativa em
análise.
Antes de nos determos na questão da interdiscursividade, temos de
verificar um pouco do histórico da caricatura na imprensa, segundo a ótica de
especialistas do campo.
Para Melo (2003, p.164), a caricatura é um elemento potencialmente
admitido na imprensa jornalística, seja na imprensa eletrônica, seja nos
impressos. De acordo com o autor, “A introdução da caricatura à imprensa
explica-se pela conjugação de dois fatores sócio-culturais: o avanço
tecnológico dos processos de reprodução gráfica e a popularização do jornal
como veículo de comunicação coletiva”.
A propósito do primeiro fator o desenvolvimento das condições
tecnológicas de reprodução massificada da caricatura este recurso imagético
deve grande parte de sua existência à litografia que, segundo Melo, foi uma
técnica sine qua non para que houvesse a reprodução seriada de imagens, em
um nível de qualidade muito mais satisfatório que a técnica de reproduzir
imagens na madeira. Prosperada a litografia, criaram-se as bases mínimas
para a contínua utilização das muitas imagens com que hoje nos deparamos na
imprensa jornalística. Pelo menos é o que nos explica Benjamin (1975, p.12), o
qual tece um estudo sobre a fundição, sobre a cunhagem e sobre a litografia,
técnicas que propiciaram a reprodução de obras de arte ao longo de muitos
anos:
(...) com a litografia, as técnicas de reprodução marcaram um
progresso decisivo. Esse processo, muito mais fiel, que submete o
desenho à pedra calcária, em vez de entalhá-lo na madeira ou de
gravá-lo no metal, permite pela primeira vez às artes gráficas não
apenas entregar-se ao comércio das reproduções em série, mas
produzir, diariamente, obras novas. Assim, doravante, pôde o
desenho ilustrar a atualidade cotidiana. E nisso ele tornou-se íntimo
colaborador da imprensa.
81
Naturalmente, essa técnica de reprodução de imagens foi
paulatinamente suplantada pela fotografia impressa e, mais recentemente, pela
fotografia digitalizada, de modo que hoje a imagem está facilmente suscetível à
cópia, sobretudo nos microcomputadores, e é dessa facilidade que a imprensa
jornalística irá se beneficiar, por exemplo, com a publicação diária de
fotografias, de gráficos, infográficos, cartoons e, inclusive, charges, em que a
imagem caricatural se faz elemento indispensável.
Quanto ao segundo fator o uso do jornal como veículo de
comunicação coletiva Melo (2003, p.165) informa que “a imprensa a absorve
com sentido nitidamente opinativo”, ou seja, formar a opinião a partir da
imagem parece ser uma aposta das empresas jornalísticas naquele conhecido
ditado “uma imagem vale mais que mil palavras”.
Podemos afirmar, inclusive, que a caricatura é um recurso eficaz no
que tange ao exagero ou à deformação de elementos caricaturados de uma
atualidade. A imagem caricatural pode induzir o leitor a acreditar que o
exagero ou a deformação ali imprimidos corrobora as suspeitas repercutidas a
respeito do ser caricaturado. Invés da aparente normalidade das coisas, a
caricatura serve ao propósito de instigar o leitor, fazer-lhe pensar na
anormalidade ou na periculosidade das coisas. Nesse sentido, a caricatura
funciona como uma expressão visual vingativa; nos termos de Lima (1963, p.5),
a caricatura é empregada com vistas a “vingar a virtude e a dignidade
ultrajadas”, ou seja, suscitar no leitor a indignação quanto à ética esperada,
mas não cumprida, levá-lo a questionar a ação (principalmente dos
governantes e órgãos públicos) prometida, esperada, mas não executada. É
através do elemento caricatural, acrescenta Lima (idem), que se apontam os
“culpados ao público, único tribunal a que eles [as entidades caricaturadas] não
podem fugir; e fazendo tremer à simples idéia de ver suas loucuras, seus
vícios, expostos à ponta acelerada do ridículo (...)”.
Esse parece ser o caso das ilustrações na cena (1), em que o
presidente Lula é caricaturado em virtude dos acontecimentos lingüísticos que
registram os deslizes do presidente Lula, tanto aqueles cometidos em seu
mandato, que têm a ver em grande parte com as acusações da oposição
política, como também aquela crítica indevida que Lula fizera ao atacante
Ronaldo da Seleção Brasileira.
82
Através da sua caricatura, Lula se vê, duplamente, vítima das suas
próprias atitudes, isto é, no âmbito do seu mandato presidencial, Lula se
vítima de uma crítica semelhante à que o atacante Ronaldo sofrera. Ao passo
que Lula é induzido pela caricatura de Alckmin, a desocupar a função titular do
clássico jogo/disputa política entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o
Partido Social da Democracia Brasileira (PSDB) pela presidência da república
no Brasil, Ronaldo era acusado de inapto para continuar atuando como titular
da Seleção. Temos, nesse sentido, um esforço do chargista em direcionar a
opinião pública, a respeito do que uma maioria pensa sobre os dois principais
candidatos à presidente da república naquele momento de 2006.
Em suma, temos, nessas caricaturas da cena, uma certa distorção ou,
podemos assim dizer, mescla dos trajes e dos papéis das entidades políticas
de Lula e de Alckmin: ao invés de ternos, uniformes da Seleção; ao invés de
jogos de política, apenas, jogos de política e jogos desportivos, ao mesmo
tempo.
Considerando-se o exposto, entendemos que essa relação charge /
caricatura / acontecimentos atuais parece ser indiscutível no que toca a uma
das funções primordiais da charge jornalística: o “colocar-se frente aos
problemas que afetam a sociedade (...)”, (TEIXEIRA, 1998), função esta que
pode ser traduzida como a função de opinar.
Isso satisfaz, de alguma forma, os apontamentos de Da Silva (2003,
p.99-100), segundo o qual “(...) o exercício da opinião no jornalismo é algo
necessário não para os próprios jornalistas, mas fundamentalmente para o
leitor cidadão e para a sociedade”. Tal necessidade, segundo o autor, apóia-se
em duas premissas: “A primeira envolve uma postura ética e democrática; a
segunda, a escolha de uma base argumentativa ampla e adequada à
abordagem dos temas em pauta”, (DA SILVA, 2003, p.100).
Essas duas premissas, no entender do autor, são indissociáveis, uma
vez que o opinador é aquele que dispõe de muitas possibilidades de formular o
seu texto para convencer o blico. Se o opinador quiser que seu trabalho se
“erga”, ou seja, se ele quiser que seu trabalho adquira ampla repercussão, os
argumentos de que dispõem têm de estar, em alguma medida, ancorados
numa base de apoio: “(...) a lógica de raciocínio comum dos leitores”, (DA
SILVA, 2003, p.101).
83
Dito isso, a nossa questão, a partir de agora, é a seguinte: na ótica da
enunciação em que se alicerça nosso trabalho, quais seriam as bases
fundantes dessa “lógica de raciocínio” de que fala Da Silva (2003), da qual se
vale grande parte dos jornalistas de opinião, sobretudo o chargista, figura da
enunciação que muito nos interessa (re)caracterizar no presente trabalho?
Acreditamos que a lógica do raciocínio dos leitores e internautas para
compactuar ou discordar da opinião pretendida pelo chargista é uma lógica
ancorada no presente em que vivemos. Entretanto, esse presente (atualidade
“representada” no espaço do jornal) não pode ser visto como que um tempo
restrito em si, com pena de se invalidar aquilo que Quéré (2005) apontara em
seu trabalho e, inclusive, com pena de se invalidar a noção de temporalidade,
proposta por Guimarães (2005a), conforme explicitamos no primeiro capítulo
da presente dissertação. Acreditamos, em outras palavras, que, ao remeter a
acontecimentos inscritos em uma atualidade, nem a charge, nem qualquer
outra cena enunciativa/texto faria remissão a acontecimentos cujo percurso de
existência não se restrinja unicamente a um aqui-agora. Ou seja,
acontecimento e atualidade parecem simétricos, no que diz respeito à
existência de cada um.
Entendemos, contudo, que uma assimetria constitutiva entre o
percurso que corpo (existência) aos acontecimentos, referenciados pelas
charges, e a atualidade, entendida, no senso comum, como um tempo presente
e momentâneo, uma vez que a noção de temporalidade, assumida no primeiro
capítulo, adquire um peso considerável para (re)conceituarmos atualidade em
nosso trabalho.
2.2. O acontecimento jornalístico para além dos limites de uma
circunstância atual
A consideração acima pode ser, em partes, justificada pelas reflexões
de Mouillaud (2002), que se dedica à noção de acontecimento pensada no
âmbito das práticas jornalísticas, de um lado, e de outro, a consideração citada
deve ser justificada pela indistinção entre os limites que constituem o presente
do acontecimento, e os outros tempos passado e futuro que nele se
intersectam.
84
Detenhamo-nos, primeiramente, nas reflexões de Mouillaud (2002).
2.2.1. O papel da Atualidade nas práticas jornalísticas
No entender de Mouillaud (2002), os acontecimentos produzidos no
seio das práticas jornalísticas são acontecimentos cuja visibilidade dependem,
necessariamente, de uma Atualidade. Significa dizer que, na condição de
leitores de jornal, os acontecimentos revelam-se para s quando
considerados imersos num conjunto de circunstâncias “mapeadas” num todo
significativo. Esse conjunto é a Atualidade, que se “traduz” através de uma
periodicidade, em várias páginas de jornal, de forma a envolver a atenção de
um determinado grupo de leitores. É por isso que Mouillaud (2002, p.73)
afirmara que “A Atualidade é feita dos acontecimentos que são
contemporâneos do jornalista que os enuncia, do jornal que os publica e do
leitor que os lê”, (MOUILLAUD, 2002, p.72). Esse é, pois, o papel da
Atualidade, segundo Mouillaud (idem): vincular leitor e jornal.
Considerar essa tríade – acontecimento, jornal e leitor – possibilita-nos
inferir duas implicações básicas para o estudo de gêneros jornalísticos.
A primeira, de que é o jornal um dos elementos que confere
legitimidade e suporte estrutural às enunciações (gêneros textuais jornalísticos,
nesse caso, especificamente, as notícias e reportagens) que o locutor-jornalista
emoldura em virtude de atender uma demanda social a necessidade de
saber
31
, característica sica do que chamamos jornalismo. Essa necessidade
de conhecer “o que acontece” tem a ver com a questão da informação
enquanto valor de troca. É este valor, segundo Francisco (2002, p.1), que
preside a produção, circulação e consumo da informação jornalística nas
sociedades capitalistas contemporâneas.
A segunda implicação, indissociável da primeira, reside no fato de que
o jornal é um dos elementos que confere credibilidade, uma necessidade das
mídias jornalísticas para apreender a atenção do maior número de pessoas.
Daí o locutor-jornalista é aquele que tem de operar com o efeito objetividade,
31
Pena (2006, p.23) afirma que “(...) a natureza do Jornalismo está no medo. O medo do
desconhecido, que leva o homem a querer exatamente o contrário, ou seja, conhecer. E assim,
ele acredita que pode administrar a vida de forma mais estável e coerente, sentindo-se um
pouco mais seguro para enfrentar o cotidiano aterrorizante do meio ambiente”.
85
ou seja, há um esforço da redação em operar com uma linguagem que parece
viabilizar o “fato verdadeiro”, tal como se imagina poder alcançá-lo em sua
pseudo-origem. Uma vez que esse esforço, ocorre aquilo que, segundo
Francisco (2002, p.1), a tradição de estudos sobre Jornalismo costuma chamar
de “(...) tecnificação da linguagem e da comunicação”: um modo de
organização da linguagem com o objetivo geral de “(...) controlar, anular ou
eliminar a heterogeneidade, a pluralidade efetiva, a polissemia e a
interdiscursividade próprias da linguagem”.
Esse esforço de objetivar os fatos, ou seja, de distingui-los de
comentários, de opiniões configura o que os estudos sobre Jornalismo
conhecem por Teoria do Espelho. Difundida no século XIX, “sua base é [a]
idéia de que o jornalismo reflete a realidade” e consegue “(...) buscar a verdade
acima de qualquer outra coisa”, (PENA, 2006, p.125)
32
.
Hoje, ainda, esse ideal do jornal como um espelho parece guiar a
relação entre leitores e jornal, de modo que a redação trabalha em prol de
passar ao leitor a impressão de que estar atualizado é ter acesso direto e
completo aos acontecimentos, tidos como fatos, isto é, tidos como se
fossem concebidos de modo prévio e independentemente da percepção de
quem os edita e da percepção daqueles que lhes dão as primeiras abordagens
narrativo-descritivas. Noutras palavras, inegavelmente, o jornal trabalha em
função de fazer valer a idéia de que entrar na Atualidade é ter acesso aos
acontecimentos, tidos como o sinônimo de “fatos”: “A hipótese que
sustentamos é a de que o acontecimento é a sombra projetada de um conceito
construído pelo sistema da informação, o conceito de ‘fato’” (MOUILLAUD,
2002, p.51). Nesse sentido, a mídia se coloca como senhora absoluta do direito
e do poder de informar. O leitor é interpelado a corroborar boa parte das
colocações impressas.
Entretanto, Mouillaud oferece um avanço em relação a essa idéia de
que conseguimos ter acesso completo e direto aos acontecimentos. Para esse
teórico, um acontecimento não se resume ao aqui-agora dos interlocutores
envolvidos no processo de produção e recepção dos enunciados inscritos nas
32
Segundo Pena (2006, p.126), “O aparecimento da teoria do espelho está atrelado às
mudanças na imprensa americana na segunda metade do século XIX, conforme mencionei
no item sobre a objetividade. Os fatos subsistem os comentários e assim acredita-se que a
palavra pode refletir a realidade”.
86
folhas de um jornal: “O acontecimento vem de alhures (no espaço e no tempo)”
(idem). Mouillaud deixa entrever, diante de tal afirmação, que boa parte da
gênese de um acontecimento contemplado pelos aparatos e entidades
jornalísticas está antecipada, trabalhada, vale dizer, significada no âmago de
outras esferas institucionais ou ainda, interpretada previamente por jornalistas
mediadores que filtram o que será publicado e o que não o será. Isso é o que
inferimos da passagem a seguir:
O jornal e a mídia em seu conjunto o está [...] face a face ao
caos do mundo. Es situado no fim de uma longa cadeia de
transformações que lhe entregam (não apenas por intermédio das
agências internacionais, mas de uma multiplicidade de agências,
descritas por Mark Fishmann, de instituições públicas e privadas),
um real já domesticado. (MOUILLAUD, 2002, p.51).
Na seqüência, Mouillaud prossegue salientando que “Se, na origem, o
acontecimento não existe como um dado de ‘fato’, também não tem solução
final”. A propósito da procedência do acontecimento, temos, diante dessas
passagens, as condições para afirmar que o jornal não lida com
acontecimentos em matéria-prima. O jornal não dispõe de um contato direto
com o mundo in situ. Antes, os acontecimentos reportados em jornais provêm
de uma rede de interpretações cruzadas, vale dizer, uma rede de
informantes, o que significa que um texto, editado hoje, contrai necessária
relação com aqueles que foram editados antes, em outro lugar, de outro modo
e com outros temas e propósitos. Contrai, ainda, relação textos futuros, que
ainda não tenham sido editados.
Fica difícil, nesse sentido, determinar um ponto de origem para um
acontecimento jornalístico. Fica difícil identificar quem o abordou e interpretou
primeiramente, haja vista a grande rede de agências sucursais, de fontes, de
especialistas, de testemunhas, de fotógrafos, enfim, de interpretadores que se
propõem a salientar algum aspecto de caráter inusitado do acontecimento. A
origem do acontecimento jornalístico é, em suma, um ponto impossível de se
captar. Da mesma forma, o fim de um acontecimento não termina com a sua
publicação. Em outras palavras, a sua origem o reside em um contexto
situacional específico; o seu fim não se dá por uma publicação.
87
Esse modo de se conceber o acontecimento jornalístico recai, em certa
medida, nas premissas da Semântica Histórica da Enunciação, para a qual a
noção de acontecimento do dizer é, de um lado, aquilo que provém de um já-
dito, de uma memória de ordem histórico-social, que reúne enunciações
efetivadas e heterogêneas entre si, dadas as diferenças ideológicas,
institucionais, que conferem diferentes credibilidades sociais à gama de
acontecimentos sociais que estão disseminados em nossa sociedade.
Diante do exposto, entendemos que a charge jornalística, mesmo
tendo sua constituição necessariamente vinculada a uma Atualidade, é um
gênero que transcende os limites de um conjunto de circunstâncias locais e
temporais.
Concluímos, com isso, que a “lógica de raciocínio” em que aposta o
chargista também não se restringe ao âmbito de um presente. Esse
entendimento ganha força quando trabalhado segundo os preceitos da
Semântica Histórica da Enunciação.
2.2.2. A Atualidade das charges em confronto com o interdiscurso
Pautados pela teoria enunciativa de bases históricas, consideramos as
charges jornalísticas como cenas enunciativas que agenciam a voz de um
locutor predicado pelo lugar social de chargista. Entendemos que, a partir
desse lugar social de enunciação, o locutor-chargista é aquele que enuncia de
uma filiação ideológica peculiar da memória interdiscursiva a qual lhe permite
colocar-se como observador crítico de acontecimentos jornalísticos, sejam
aqueles noticiados em impressos sejam, ainda, os não noticiados pelos jornais.
Na construção de “sua” crítica, o locutor-chargista é aquele que procura ir além
das circunstâncias imediatas, vale dizer, além da Atualidade que concerne a
um acontecimento. Enquanto Locutor que fala de um lugar social
arregimentado na prática do jornalismo de opinião, o chargista é, no entender
de Da Silva (2003, p.101), aquele que procura “ampliar [a] base de
compreensão dos fenômenos em seu interlocutor e ao mesmo tempo
apresentar-lhe razões lógicas para compreendê-lo”:
88
(...) o profissional que dá opinião deve ter consciência de que precisa
estar preparado para aliar conhecimento de áreas diversas história
regional, brasileira e universal; geografia, antropologia, sociologia,
para citar algumas à sua condição de observador privilegiado do
campo noticioso. (idem).
No âmbito dos estudos enunciativos em que nos ancoramos, falar em
um profissional que precisa “aliar conhecimento de áreas diversas” é
reconhecer um locutor, cujas enunciações recortam sentidos produzidos em
falas procedentes de diferentes esferas sociais, o que, sem dúvida, se aplica
ao dia-a-dia de outros profissionais editor, repórter âncora, etc. que
trabalham no fazer jornalístico. É com esse “deslizar” nas diversas áreas do
conhecimento que esses profissionais tentam oferecer uma abordagem
polêmica e, muitas das vezes, abrangente sobre determinado acontecimento.
No caso das charges, todavia, essa praxe de se deslizar entre
conhecimentos diversos agencia um locutor envolvido em recortes simultâneos
de domínios interdiscursivos de referência (e de saberes, portanto) erigidos em
diferentes campos do saber, de modo a obter uma mescla de sentidos a incidir
sobre um mesmo “objeto” referente. No caso da cena (1), por exemplo, o
Locutor mobiliza referentes e sentidos consolidados em enunciações que
circularam em, no mínimo, dois campos: o da política e o dos esportes.
Mais particularmente, a expressão “É hora de ir para (...)” adquire, na
circulação da charge em que figura, sentidos de cunho tanto político, como
também atlético. Ou seja, a expressão tenta sugerir o despreparo atlético da
caricatura e, também, o despreparo político do representante que essa mesma
caricatura sugere.
O despreparo atlético diz respeito a enunciações, dispersas no
interdiscurso, recortadas pela expressão na charge. Em termos de atualidade,
o despreparo atlético diz respeito a uma crítica advinda de autoridades de alto
escalão como é o Presidente da República, em direção a Ronaldo, importante
jogador da Seleção Brasileira naquela ocasião. Em termos interdiscursivos, o
despreparo atlético tem a ver com uma memória socialmente constituída, que
sugere um estigma; o estigma segundo o qual ser chamado de gordo por uma
autoridade executiva como o Presidente da República é ver-se inapelavelmente
estigmatizado, afetado por uma crítica que é difícil de ser apagada ou
retificada, tendo em vista o lugar de enunciação do qual ela é formulada e
89
tendo em vista também que, em nossa cultura, é comum que uma pessoa seja
valorada pelo que os outros dizem que ela é. Culturalmente, a opinião do outro
parece ser decisiva na significação de uma pessoa ou objeto.
O despreparo político, por sua vez, tem a ver com a relação entre a
expressão “É hora de ir para o banco...” e a caricatura do governante Alckmin.
Esse referente recorta variados domínios de sentido no interdiscurso e,
também, na atualidade de (1). No que diz respeito ao interdiscurso, podemos
citar aqueles sentidos favoráveis ao PSDB, sedimentados em um (por um)
continuum de dizeres formulados desde a época em que se instaurou o
Movimento de redemocratização da política brasileira (grifo nosso).
Formularam-se, por exemplo, sentidos que projetavam o PSDB como um
partido de singular importância na política do país, por fazer frente de oposição
ao regime ditatorial que até então esteve em vigência durante 20 anos no país.
No Manifesto do partido, percebemos um discurso que não quer se colocar
como demagogo, proclamando a defesa da "(...) democracia contra qualquer
tentativa de retrocesso a situações autoritárias"
i
. Os ideais de democracia
moderna e estável, com a adoção do regime parlamentarista e o mandato de
quatro anos para o Presidente da República, promoviam a consolidação do
partido que veio a ocorrer efetivamente em 1988. Ainda neste ano, o partido
conseguira eleger 18 prefeitos em todo o Brasil. Foi nesse ínterim que se
solidificou uma rede de memória sobre o partido, sustentadora da idéia de que
"O resultado das eleições de 1988 mostrou que o PSDB estava na política
brasileira para valer... e para vencer"
33
. Podemos, inclusive, dizer que essa
dominante de sentidos avolumou-se com a candidatura de Mário Covas ao
pleito presidencial em 1989, primeiras eleições diretas desde a sucessão de
Juscelino Kubitschek, sem se esquecer do peessedebista Fernando Henrique
Cardoso que ocupou a presidência durante oito anos. A atualidade que diz
sobre o despreparo político tem, naturalmente, a ver com a luta eleitoral
estabelecida entre Alckmin e Lula, durante as prévias das eleições
presidenciais durante o segundo semestre de 2006.
Em suma, podemos dizer que o locutor da cena (1), assim como outros
locutores do campo jornalístico, joga com domínios de sentido procedentes de
33
Fonte: http://www.psdb.org.br/psdb_antigo/opartido/historia/ahistoria.asp#
90
campos diversos do conhecimento. A questão é que para um locutor-chargista,
esse jogo precisa, necessariamente, da múltipla, para não dizer dupla,
significação para os elementos que constituem a trama textual do gênero
charge jornalística.
Ou seja, conforme defendemos no início do presente capítulo, além do
gesto de referência do locutor-chargista a “objetos” circunscritos em domínios
de memória interdiscursivos, esse gesto inclui, ao mesmo tempo, a referência a
“objetos” circunscritos em dimensões textuais, seja na atualidade de cada cena
chargística, seja na própria textualidade da cena, conforme tentamos
demonstrar no esquema a seguir:
Figura 2: esquema da incidência simultânea de referência no corpo do enunciado em
destaque na charge publicada na revista Istoé, n. 1916, em 12/07/2006.
Noutras palavras, via de regra, entendemos que os enunciados e
ícones presentes nas charges jornalísticas organizam-se em prol de constituir
referência simultânea a diferentes valores, vale dizer, a diferentes percepções
sobre um “objeto”. Justifica-se o que Da Silva (2003) houvera dito sobre a
necessidade de o jornalista de opinião como é o caso do chargista “aliar
conhecimento de diversas áreas”, o que, na perspectiva da Semântica da
Enunciação, se em todo e qualquer dizer, tendo em vista a exterioridade
constitutiva, a memória interdiscursiva, que arregimenta saberes, discursos,
91
vozes diferenciadas, ideologicamente discrepantes, às vezes, ideologicamente
compatíveis.
Acreditamos que tudo isso se faz necessário, tendo em vista um dos
intuitos principais da charge jornalística: indicar as contradições que tangem o
cotidiano econômico, político do país.
No caso da cena em análise, a expressão “É hora de Lula ir para o
banco, diz Alckmin”, destacada em fundo azul, parece ser empregada, além do
que apontamos mais acima, para se fazer remissão a um “Lula presidenciável”,
que se afirma enquanto jogador/presidente titular e, ao mesmo tempo, a um
“Lula não-presidenciável”, que, na charge em questão, referencia uma gama de
discursos sobre as atitudes políticas do presidente Lula, durante o seu primeiro
mandato, o que lhe desabonava como candidato a um segundo mandato.
Essa simultaneidade de discursos e de sentidos acerca do presidente
Lula pode ser verificada em nível textual e, ao mesmo tempo, em nível
interdiscursivo, como tenta demonstrar a figura 2, o que caracteriza o modo de
enunciação multireferencial, (DIAS, 2005, 2007) ou, em outros termos,
multireferencialidade enunciativa, noção teórica que contempla injunções sócio-
históricas o locutor que fala de uma região da memória interdiscursiva; os
domínios referenciais que perpassam a materialidade lingüística; a
temporalidade da cena chargística enfim, as injunções determinantes da
constituição de referência pelos termos gramaticais que compõem a
textualidade das charges jornalísticas.
Entendemos que a multireferencialidade enunciativa não é um modo
de enunciar exclusivo das charges jornalísticas, visto que a duplicidade
referencial parece ser um modo de enunciar determinante também das
propagandas
34
, o que não seria diferente com boa parte das tiras de humor,
com as piadas e com gêneros textuais, cuja constituição de sentidos se dê,
propositalmente, de modo simultâneo.
2.2.3. Multireferencialidade enunciativa e outros modos de
enunciação na charge
34
Cf. Dias (2005, 2007).
92
Além de a multireferencialidade poder se manifestar em outros
gêneros de texto, conforme acabamos de apontar, entendemos, ainda, que a
multireferencialidade enunciativa é um modo de enunciar predominante nas
charges jornalísticas, o que significa que a genericidade e a especificidade
enunciativa podem, naturalmente, peculiarizar a constituição de referência dos
termos gramaticais de enunciados constitutivos do gênero charge jornalística.
Exemplo disso pode ser pensado a partir da genericidade dominante
do uso de “Quem” no enunciado “Quem quiser me cassar que atire a primeira
pedra”, situado no canto superior direito da cena (2)
Cena (2)
Estado de Minas, Caderno Opinião, Belo Hte., 01 de set. de 2005.
Podemos assim dizer que, ao proporcionar referência aos acusadores
do deputado Roberto Jefferson quando sofria ameaça de cassação de seu
mandato ao longo do segundo semestre de 2005, o uso do pronome “Quem”
nesse enunciado é, a exemplo do substantivo “Alckmin”, feito em prol de
recortar no mínimo dois escopos de referência.
Um dos escopos seria o “Aquele que”, empregado no verso bíblico
Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”
(João, Evangelho segundo, Cap.8:7). Especificamente com relação a esse uso,
o locutor-chargista mobiliza uma memória de sentidos engendrados no
discurso bíblico, sobre o costume que o ser humano tem de acusar o outro ao
93
invés de refletir sobre os próprios defeitos e pecados. Em uma memória de
sentidos como essa, encontramos enunciados do discurso bíblico como o
mencionado, em que acusadores de uma prostituta, pega em “flagrante
adultério”, (João, Evangelho segundo, Cap.8, verso 4), condenavam a mulher,
apedrejando-lhe.
Um outro escopo de referência do “Aquele que” estaria disponível em
enunciados do âmbito da Atualidade da cena (2), como o que segue, por
exemplo:
“BRASÍLIA O deputado Roberto Jefferson inicia hoje a fase mais
crítica da luta para preservar o mandato. O Conselho de Ética da
Câmara deve aprovar [...] o relatório do dep. Jairo Carneiro que pede
a casacão do mandato de Jefferson por quebra de decoro
parlamentar”como evoca também os acusadores participantes ou
não da CPI que investiga as denúncias feitas por Roberto
Jefferson”
35
.
Mesmo ocorrendo essa dupla possibilidade de referência do “Aquele
que” situado em (2), entendemos que essa multiplicidade é, com efeito,
superposta por um modo de enunciação genérico, vale dizer, por uma
amplitude referencial como a mencionada no exemplo 3 citado na seção 1.8 do
capítulo 1. Essa amplitude referencial pode ser melhor entendida em virtude de
“Aquele que quiser me cassar atire a primeira pedra” ser uma versão oriunda
do verso bíblico citado, de caráter proverbial. A respeito das enunciações
proverbiais, Dias (2007, p.323) aponta que
Não é fácil formular uma conceituação precisa para o provérbio.
Dentre as várias formulações direcionadas para definir esse gênero,
alguns traços se sobressaem. Um deles é o caráter conclusivo do
provérbio: mediante uma locução breve, de fácil memorização, o
provérbio adquire um tom de verdade, ou de elevação.
No caso em análise, a verdade proposta pelo discurso bíblico é a de
que todos temos pecado, independentemente das ações que praticamos,
portanto é um equívoco de nossa parte ultrajar o indivíduo que é pego em
flagrante, como foi o caso da prostituta e dos seus acusadores, citados na
Bíblia. Portanto, a multiplicidade percebida para o “Aquele que” de (2) é
perpassada pela genericidade: tanto os acusadores mencionados na Bíblia,
35
Estado de Minas, 1º setembro, 2005. página 5
94
como os acusadores do deputado Roberto Jefferson enquadrar-se-iam no perfil
genérico de pessoas que difamam o outro sem se auto-criticarem.
Percepção semelhante temos a respeito da pontualidade, isto é da
especificidade referencial de certos nomes e pronomes situados no corpo de
enunciados de charges, como a cena (3):
Cena (3)
Estado de Minas, Caderno Opinião, Belo Hte., 13 de julho de 2007.
Tomando-se o “Vossa excelência” de “Vossa excelência pode não
acreditar (...)” na cena (3), entendemos que uma direção clara do objeto de
referência a que se remete o pronome de tratamento em análise, que uso
da caricatura de um deputado na textualidade da cena.
Entretanto, o uso de “Vossa excelência”, peculiarizado pelo modo de
enunciação específico na cena em análise, é um uso que, decisivamente,
alcança outros escopos de referência que o o citado. De um lado, esse
alcance, possibilitado pelo uso do pronome em questão, é efetivado no
confronto da Atualidade de cena (3) com domínios do interdiscurso que
intervêm constitutivamente. Exemplo disso seria pensar na memória
sustentada socialmente de que certa parcela de deputados corrupta, que
participa de atos ilícitos como o desvio de verbas públicas. De outro lado, esse
alcance de outros escopos de referência através de um pronome como “Vossa
Excelência” ocorre simultaneamente à multiplicidade referencial do “isso”, haja
95
visto que esse pronome aponta simultaneamente para o saco de dinheiro
ilustrado na cena (3), como também para o termo “vaca”, disponível na fala
encenada pela caricatura da esquerda.
Isso significa que apontar a multireferencialidade enunciativa como
modo de enunciação determinante para a caracterização de charges
jornalísticas não é um gesto metodológico suficiente para dizer que um texto
seja pertence ao gênero em pauta. O mesmo podemos dizer sobre a
multiferencialidade enunciativa no enquadramento de um texto a um gênero x
ou y.
Assim sendo, trabalhamos com a proposta de que a
multireferencialidade enunciativa convive necessariamente com os modos de
enunciação genérico e específico, também determinantes do uso de palavras
na textualidade de charges jornalísticas.
Isso reforça, em boa medida, o que Dias (2005, p.30) considerou, a
respeito da importância da noção de modo de enunciar em estudos sobre
gênero de texto: “trabalhamos com a tese segundo a qual a relação entre as
categorias gramaticais e a textualidade deve passar pelo conceito intermediário
de modo de enunciação”. O que faltou nesse apontamento de Dias (2005) foi
justamente apontar a concomitância de modos de enunciação na relação entre
categorias gramaticais e a textualidade dos gêneros.
Um estudo como o nosso poderia abordar essa concomitância de
modos de enunciação para se pensar na relação entre pronomes e a
textualidade das charges. Entretanto, apontar os efeitos de sentido pretendidos
quando considerados todos esses três modos de enunciação seria um recorte
de estudo mais amplo que aquele escolhido para o nosso trabalho. Assim
sendo, o deixamos para uma outra oportunidade e delineamos nossa proposta
em torno da dominância do modo de enunciação multireferencial na
constituição pronominal de referência na textualidade do gênero escolhido,
tendo como foco de observação os pronomes pessoais “eu” e “você”.
Corroborando o exposto, nossas análises poderão contribuir com a
Semântica do Texto, abordada segundo Rastier (1998, 2000) e Rastier;
Pincemin (1999), no sentido de propor que o funcionamento desses pronomes
pessoais na língua portuguesa não é um funcionamento homogêneo,
tampouco, sendo os pronomes inseridos em um gênero ‘x’ (a charge, por
96
exemplo), seu funcionamento ganha variantes significativas, tendo em vista
que cada locutor chargista exerce seu gesto de autoria e marca diferença em
relação aos demais chargistas, porque os recortes do interdiscurso no
acontecimento do dizer não são idênticos.
2.4. Outros aspectos relevantes da multireferencialidade
enunciativa
Recuperando o exposto a aqui, o que temos nas cenas enunciativas
chargísticas são elementos gramaticais que funcionam em prol de múltiplos e
simultâneos gestos de referência a “entidades” simbolizadas em dimensões
textuais e interdiscursivas, o que envolve, indispensavelmente, a caricatura,
elemento que, segundo Melo (2003, p.165), é utilizado na charge com sentido
nitidamente opinativo”.
Noutros termos, o Locutor-chargista é aquele que precisa deslizar
entre duas significações para uma mesma questão, como nas cenas
analisadas. É com essa oscilação que o Locutor-chargista participa
efetivamente da formação da opinião blica, a fim de sugerir o caráter dual,
contraditório das questões de interesse coletivo que são noticiadas
diariamente.
É, pois, em virtude disso que o modo de constituição de referência nas
cenas analisadas envolve uma “dupla possibilidade de ancoragem” (DIAS,
2005, 2007) dos elementos textuais a escopos de referência situados em
acontecimentos jornalísticos representativos da atualidade da cena chargística
bem como nos domínios interdiscursivos que as sustentam.
Dando seqüência ao trabalho, acreditamos ser necessário explicitar
outros aspectos da multireferencialidade enunciativa em charges jornalísticas.
Um desses aspectos é o efeito de causa e conseqüência que o modo
multiferencial viabiliza no gênero. Esse efeito se explica pelo fato de que,
através do uso da imagem e de outros referentes verbais, o Locutor-chargista é
aquele que pode enunciar em virtude de um “façamos de conta que assim
aconteceu” ou que “exatamente isso foi dito”. Isso contribui para que o leitor
pense que aquilo que ele e nas charges configura parte das causas dos
problemas sociais, até mesmo porque a imagem, como havíamos apontado, é
97
recurso eficaz quando se pretende atestar “fatos” nas diversas práticas sociais,
como as periciais, por exemplo, as jornalísticas, o que no jornalismo de opinião
não seria tão diferente.
Um outro aspecto da multireferencialidade enunciativa que nos
interessa ressaltar é a sua familiaridade com um mecanismo lingüístico,
conceituado nas primeiras fases de uma outra concepção teórica, a lingüística
textual. Harweg (1968), citado em Bentes (2001, p. 247), havia apontado a
existência do múltiplo referenciamento. Em passagens do tipo “Pedro foi ao
cinema. Ele não gostou do filme”, a observação do pronome ‘ele’ tinha como
um de seus horizontes máximos a sua própria predicação “não gostou do
filme”. Também estavam em pauta, nessa observação, as partes anteriores em
que o ‘ele’ aparece, a saber, o nome ‘Pedro’ e a predicação “foi ao cinema” que
este apresenta. Tudo isso acusava, na ótica de Harweg (idem), a relação de
co-referência que o pronome ‘ele’ mantém com ‘Pedro’:
Esse movimento contribui para a construção da imagem do referente
‘Pedro’ por parte do ouvinte. Será a congruência entre as
predicações feitas sobre o pronome e o próprio SN (‘Pedro’), e não
a concordância de gênero e número, que permite afirmar que o
pronome ele é co-referente de Pedro. (BENTES, 2001, p.248).
Para a época, pareceria muito pertinente e abrangente o registro de
um fenômeno transfrástico como esse, visto que o múltiplo referenciamento
era, nesse viés, um mecanismo para descrever as diferentes formas de um
referente textual ser retomado ao longo de um texto. Contudo, o conceito de
múltiplo referenciamento hoje deixaria a desejar, tendo em vista que o
horizonte máximo em que é concebido é a malha textual.
Contrapondo-nos a essa limitação, a noção de multireferencialidade
enunciativa com a qual lidamos parte do princípio de que a organicidade da
língua opera numa relação de dependência com o interdiscurso. Por isso,
nunca é demais reiterar que a multireferencialidade tem como característica
básica, a duplicidade/simultaneidade de domínios referenciais que intersectam
um termo pontuado na horizontalidade de um arranjo sintático. A
simultaneidade caracteriza, para nós, uma amplitude dos domínios de
referência que coexistem e se interagem, de forma contrastiva, na
materialidade lingüística de uma cena chargística, propiciando, com isso, o
98
deslizamento do Locutor entre um e outro sentido para uma “entidade” ou
“objeto” referenciado através de um termo gramatical.
Um funcionamento desta natureza se justifica pelo fato de que, via de
regra, toda cena chárgica sugere, em sua materialidade, o lícito e o ilícito, o
sério e o risível, o esperado e o inesperado, ou seja, elementos que, embora
destoantes (a princípio), desempenham semelhante peso na configuração e
significação da expressão e de toda a cena. Disso resulta o efeito de ironia
envolvido na enunciabilidade multireferencial de muitas cenas chárgicas. Não
que esse efeito seja imanente à materialidade lingüística. Pelo contrário,
entendemos que os efeitos de sentido envolvidos em uma cena são efeitos
constituídos entre a sua atualidade e os domínios da memória interdiscursiva,
(GUIMARÃES, 1995, p.70). O efeito de ironia constituído, assim, na e por uma
charge serve ao propósito de se sugerir, por exemplo, o abismo que parece
haver entre as propostas de boa governabilidade dos políticos, em épocas pré-
eleitorais, e o seu descumprimento, durante a execução do mandato.
Tudo isso visa a ser oferecido a uma ou mais de uma comunidade
específica de leitores. Nesse sentido, temos o chargista enquanto a
representação de um enunciador individual, mesmo que predicado por um
lugar social, representação que lhe permite, inclusive, “assinar embaixo”
daquilo que diz. Sendo assim, o chargista instala o seu gesto de autoria.
Contudo, mesmo se representando dessa maneira, o chargista é o
Locutor que diz em nome de/para certa(s) coletividade(s). Sua voz, nesse
sentido, apresenta dupla face, porque passa a representar, também, um
“enunciador-coletivo (...) que se caracteriza por ser a voz de todos como uma
única voz” (GUIMARÃES, 2002, p.38). Isso se explica pelo eco das dúvidas,
inquietações e críticas que muitos gostariam de debater publicamente em
veículos de amplo alcance coletivo, como é o caso de revistas semanais e
jornais diários. E ao fazer isso, o chargista se representa como o autor cujos
dizeres candidatam-se para ser corroborados por todos quantos se vejam
persuadidos ou, no mínimo, incomodados com o que se diz numa charge, o
que torna a charge jornalística um gênero de singular importância na formação
da opinião em massa. O chargista Aroeira, citado em (AZEREDO, 2001,
p.154), corrobora essa idéia:
99
A charge tem um papel de catarse. Eu não acho que muda o mundo,
não derruba ninguém, mas ajuda o leitor a ter, às vezes, uma vingança
pessoal! ‘Era isso que queria dizer!’. Esse papel catártico da charge
incomoda até mesmo o próprio jornal.
A respeito da declaração do chargista Aroeira, sabemos que as seções
de opinião dos mais conhecidos jornais brasileiros costumam notificar os
leitores de que a empresa jornalística Folha de S. Paulo, O Globo, Estado de
Minas não se responsabiliza pelas opiniões repercutidas naquelas páginas
destinadas aos gêneros de opinião.
Com efeito, as charges parecem dispor de uma liberdade na formação
da opinião pública, haja visto o fato de que aquilo que repercutem pode
impactar negativamente uma maioria de leitores e agradar a uma coletividade
menor. Quando versa sobre assuntos relacionados à política brasileira, os
dizeres de uma charge jornalística podem, ainda, contrariar a opinião de grupos
de grande representatividade, ainda que estes detenham o poder nas mãos,
como é o caso do Partido dos Trabalhadores (PT), base partidária de Lula, e
favorecer a opinião de grupos também de grande representatividade, mas
hierarquicamente inferiores na política brasileira, como é o caso do Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB). Esse parece ser o caso da cena (1),
ilustrada mais acima, quando lemos o enunciado “É hora de ir para o banco, diz
Alckmin”, sugerindo-se com isso que está mais que na hora de o PT desocupar
a presidência da república e ceder lugar ao partido de maior tradição eleitoral –
PSDB; esse parece, ainda, ser o caso da mesma cena (1), quando observamos
a caricatura de Alckmin representante do PSDB induzindo a caricatura de
Lula presidente representante do PT a ir para o banco, ou seja, ir para a
condição de partido periférico, que não conduz a liderança da política no Brasil.
Em certa medida, parece-nos que o fato de a charge contrariar uns e
agradar a outros deve-se ao fato de que, se observarmos os constituintes
lingüísticos da tessitura textual de uma cena chárgica, veremos que estarão
congregadas palavras, expressões, fotos, desenhos caricaturados, animais
personalizados que mantêm alguma familiaridade com dizeres oriundos de
diversos e diferenciados grupos populares, setores marginalizados, minorias
injustiçadas, de um lado, e de outro, com dizeres marcados por algum tipo de
interdição ou censura, como parece ser o caso, por exemplo, daqueles
100
proferidos nos âmbitos políticos e econômicos. Nesse sentido, haveria aqueles
que diriam: “É isso que eu não queria que os chargistas dissessem ou que não
poderia ganhar projeção na comunidade”, o que, entretanto, acaba por se
colocar como alvo dos chargistas.
2.5. Multireferencialidade enunciativa X Ambigüidade, Homonímia,
Polissemia
Em virtude da simultaneidade de sentidos viabilizada pela
multireferencialidade enunciativa, acreditamos que esse modo de enunciação
guarda significativa familiaridade com algumas noções procedentes de estudos
inscritos no domínio da semântica contemporânea, quais sejam, a noção de
ambigüidade, a de homonímia e a de polissemia.
Essas três noções, à semelhança da multireferencialidade enunciativa,
levam em conta o desdobramento semântico de uma palavra ou de um
conjunto de palavras inseridas em um enunciado. Parece-nos pertinente,
então, tratar um pouco de cada um desses fenômenos, tendo em vista que o
desdobramento de significado das palavras é algo intimamente relacionado à
malha lingüística das charges jornalísticas, a exemplo da palavra “banco” que,
na cena chargística (1), parece ser empregada para sugerir, simultaneamente,
a idéia de banco de jogadores reserva e banco enquanto legenda política de
esquerda, que não está na liderança do governo presidencial.
Teorizando sobre a homonímia e sobre a ambigüidade a partir da
semântica de bases históricas que alicerça nosso trabalho, Guimarães (2006,
p.118) explica que para “O livro de João é bom”, temos, basicamente, dois
significados diferentes _ João como autor do livro; João como um mero
possuidor do livro _ portanto, conclui o autor, “(...) o que há são duas frases (...)
homônimas, ou seja, que têm o mesmo significante, mas têm dois significados
(...)” (GUIMARÃES, 2006). Essa noção implica uma estrutura lingüística que,
na verdade, adquire o valor de duas estruturas diferentes. Nesse caso é
colocada a atenção “(...) na identidade dos significantes”, conclui Guimarães.
Por outro lado, acrescenta o autor (idem), “Se a atenção se põe sobre o
fato de que uma mesma seqüência pode ter significados diferentes, então se
101
considera que ela é ambígua”, ou seja, temos o fenômeno da ambigüidade.
Dessa forma, o que o diferencia em relação à homonímia, no entender de
Guimarães, é o foco que se dá na abordagem de cada um desses fenômenos.
em uma outra Semântica, desta vez de caráter formal, Cançado (2005)
não reconhece tal distinção entre homonímia e ambigüidade, haja vista o fato
de que ambos os fenômenos, na sua visão, servem ao propósito de apontar
(sem a pretensão de resolver) os diferentes significados que uma mesma
palavra pode repercutir. Mesmo não diferenciando um fenômeno do outro,
Cançado (idem) propõe quatro espécies de ambigüidade, que iremos resumir
logo abaixo. Teoriza ainda sobre a homonímia e sobre a polissemia. Vejamos,
primeiramente, o que a autora tem a nos dizer sobre a ambigüidade.
Para Cançado (2005, p.64), a ambigüidade lexical diz respeito à “(...)
dupla interpretação que incide sobre o item lexical”, como seria, se analisado
sob essa ótica, o item “banco” na cena (1).
A ambigüidade sintática, por sua vez, diz respeito às “distintas estruturas
sintáticas que originam as distintas interpretações: uma seqüência de palavras
pode ser analisada (subdividida) em um grupo de palavras (chamado de
sintagma) de modos variados. Tome-se, como exemplo, a sentença “Homens e
mulheres competentes têm os melhores empregos”, da qual podemos
depreender, no mínimo, dois significados: o de que tanto os homens quanto as
mulheres são competentes; o de que apenas as mulheres são competentes.
Ou seja, o adjetivo “competentes” pode, nesse caso, ser associado apenas ao
substantivo mulheres ou, ainda, a mulheres e homens ao mesmo tempo: “(...) o
que gera a ambigüidade são as diferentes possibilidades de reorganizar as
sentenças, ou seja, a possibilidade de ocorrência de diferentes estruturas
sintáticas na mesma sentença”.
Uma terceira categorização de ambigüidade é a ambigüidade de escopo,
que nos leva a pensar a relação entre as palavras, de modo que essas sugiram
a idéia de individualidade ou de coletividade. Em “Os alunos comeram seis
sanduíches”, por exemplo, temos a possibilidade de dizer que cada aluno
comeu seis sanduíches ou que todos, juntos, comeram um total de seis
sanduíches.
Uma última proposta de ambigüidade proposta por Cançado (2005) é a
ambigüidade semântica, pela qual não observamos os itens lexicais, nem a
102
estrutura sintática, tampouco o escopo sentencial. Desta vez, “A ambigüidade é
gerada pelo fato de os pronomes poderem ter diversos antecedentes”, o que
diz respeito à correferencialidade do pronome possessivo “sua” na frase “O
ladrão roubou a casa de José com sua própria arma”: ou entendemos que o
ladrão usou a arma dele mesmo para praticar o roubo, ou entendemos que o
ladrão usou a arma da vítima José para roubar.
Quanto à homonímia, Cançado (2005, p.65) postula ser este um tipo
de ambigüidade lexical que agrega sentidos oriundos de temas ou de esferas
sociais diferentes. “Manga”, por exemplo, designa fruta, termo bastante
recorrente no campo de discursos sobre alimentação, assim como designa,
também, parte de uma peça de vestuário, termo muito presente nos discursos
sobre alfaiataria, moda, dentre outros.
À semelhança da homonímia, a polissemia, no entender de Cançado
(2005, p.67), é um tipo de ambigüidade lexical, desta vez, porém, servindo para
interligar “possíveis sentidos da palavra ambígua [que] têm alguma relação
entre si”. “Rede”, por exemplo, pode ser pensada como rede de deitar, rede
elétrica, rede de computadores, rede de amigos internautas, rede de pescaria,
dentre outras.
Guimarães (2006, p.120) dispensa uma abordagem de caráter mais
enunciativo à polissemia, que, no seu entender, diz respeito à “multiplicidade
de sentidos de uma mesma frase”, o que perpassa, de alguma forma, a noção
de multireferencialidade enunciativa, objeto de definição do presente capítulo.
Para enunciados do tipo
(exemplo 5) “Você poderia me abrir uma porta?”
Guimarães supõe que, considerando-se uma conversa cotidiana dentro de
uma empresa, “esta seqüência significa, ou pode significar, ao mesmo tempo
(exemplo 6) ‘Você poderia me dar uma oportunidade’;
ou
(exemplo 7) ‘Você poderia me apresentar para alguém;’
ou ainda,
(exemplo 8) ‘Você poderia me indicar um caminho.
103
Essa multiplicidade de sentidos do enunciado deve-se, segundo
Guimarães (idem), ao funcionamento de (5) que se orienta pela história de
usos desse enunciado, ou seja, (6), (7) e (8) ancoram-se no passado de
dizeres e, ao mesmo tempo, atualizam os funcionamentos passados de (5),
efetivados em outras circunstâncias, em outras enunciações passadas.
Levando-se em conta o exposto, a questão que nos instiga é a
seguinte:
1) relação entre ambigüidade, homonímia, polissemia e
multireferencialidade enunciativa? Noutras palavras, ambigüidade,
homonímia e polissemia versus multireferencialidade enunciativa são
teoricamente equivalentes?
2) Considerados juntamente, os fenômenos denominados
ambigüidade, homonímia e polissemia poderiam ser entendidos como
diferentes manifestações da multiferencialidade enunciativa?
3) Uma última questão: não seria a multireferencialidade enunciativa
algo mais abrangente que os três outros fenômenos, dadas as
injunções sócio-históricas levadas em conta na conceituação desse
modo de enunciar, em contraposição às conceituações da homonímia,
ambigüidade e polissemia, que parecem reservar as injunções
histórico-sociais a um papel secundário ou, podemos dizer, até
ausente, como é o caso da Semântica Formal praticada por Cançado
(2005)?
Mediante essas questões, temos de reconhecer que precisaríamos de
um amplo corpus de ocorrências lingüísticas, sejam sentenças, sejam textos,
para responder, com propriedade, a cada uma dessas perguntas levantadas.
Consequentemente, produziríamos um outro estudo, ampliando mais ainda a
noção de modo de enunciação multireferencial.
Embora produtivo, nosso objetivo não é este, mas o de apontar e
caracterizar, em um nível satisfatório, o modo de enunciação peculiar e
predominante nas charges jornalísticas, modo este que, como dissemos,
acreditamos ser a multireferencialidade enunciativa.
Apenas nos arriscamos a observar que os fenômenos ambigüidade,
homonímia e polissemia, sejam estes considerados pela perspectiva da
Semântica Formal, representada por Cançado (2005), sejam pela Semântica
da Enunciação, representada pelos estudos de Guimarães (2006), apresentam
104
uma importante característica em comum. Todos se ocupam, de alguma forma,
da variedade de sentidos que pode repercutir uma mesma palavra, o que, em
boa medida, caracteriza o modo de enunciar multireferencial. Talvez, por isso,
poderíamos afirmar que a homonímia, a ambigüidade e a polissemia, possíveis
de ocorrer em enunciados diversos da língua, sobretudo aqueles constitutivos
de charges, estabelecem as condições para a dominância da
multireferencialidade enunciativa nesse gênero de texto. Além disso,
poderíamos afirmar, talvez, que a multireferencialidade manifesta-se sob
diferentes formas: multireferencialidade homonímica, multireferencialidade
polissêmica e, por último, multireferencialidade, cuja base se assenta na
ambigüidade.
É certo que, em nenhuma das conceituações trazidas sobre ambigüidade,
homonímia e polissemia, uma preocupação do Guimarães com a dinâmica
de recortes do interdiscurso que trás uma frase, um enunciado. Significa,
também, dizer que, não havendo tal preocupação explícita, parece não haver,
na homonímia, ambigüidade e polissemia, um olhar que reflita sobre a
amplitude do escopo de referência no âmbito do interdiscurso (amplitude
específica, genérica ou múltipla), como tentamos mostrar que é o caso da
noção de modo de enunciar.
Estaria a oportunidade de ampliarmos o presente capítulo para
averiguar se e, como seria, uma multireferencialidade polissêmica, uma
multireferencialidade homonímica, uma multireferencialidade de ordem da
ambigüidade ou, ainda, uma multireferencialidade mesclada, que envolveria
essas supostas três subcategorias.
Deixamos essas três categorias para uma outra oportunidade, que nos
basta apontar e caracterizar a multireferencialidade enunciativa como um modo
de enunciar recorrente e predominante na constituição pronominal de
referência em enunciados de charges jornalísticas.
105
C
C
a
a
p
p
í
í
t
t
u
u
l
l
o
o
3
3
Diferenças e semelhanças
na referência pronominal
em nove charges jornalísticas
“A argumentação está para
o jornalismo opinativo _
composto de gêneros
(artigo, editorial, comentário,
crônica, crítica, charge)
que variam sobretudo na forma
de abordar um determinado conteúdo _
como os tijolos e o cimento
para um construtor”.
(DA SILVA, 2003, p.100)
106
3.0 Diretrizes para as análises
3.1 Para além da morfossintaxe pronominal no estudo das
charges
Conforme havíamos apontado na orientação metodológica deste
trabalho, uma análise puramente gramatical, que discutisse a relação entre os
pronomes e a textualidade das charges, seria uma análise pouco proveitosa
em termos enunciativo-discursivos. Isso se explica pela tese de que a
morfossintaxe dos pronomes, embora possa constituir a identidade desse
gênero, é insuficiente para se pensar as injunções histórico-sociais que os
envolvem na constituição de referência na textualidade de charges.
Em primeiro lugar, essas injunções histórico-sociais dizem respeito ao
percurso histórico das formas pronominais em enunciações passadas, que
intervêm a cada “novo” uso que se faz dos pronomes: “Uma forma é na língua
o que ela se tornou pela história de seus funcionamentos na enunciação”,
(GUIMARÃES, 1996, p.27).
que se pensar, em segundo lugar, que os pronomes não são usados
na textualidade de charges com o intuito de substituir as figuras caricaturadas
que encenam um diálogo em cada texto chargístico. Apesar de raciocínios
como esse terem configurado parte dos estudos voltados para a relação entre
gramática e textualidade no Brasil
36
, entendemos que os pronomes são usados
como índices de referência a “objetos” situados na textualidade e na atualidade
de cada cena chargística, sendo que esse gesto de referência envolve,
incontornavelmente, o recorte de enunciações disponíveis em confronto na
interdiscursividade, que dão suporte a cada nova publicação chargística.
Assim, a atualidade e o locutor devem ser entendidos aqui,
respectivamente, como uma segunda e terceira razões para refutarmos a
possibilidade de estudar o uso de pronomes nas cenas textuais, apenas com
36
Segundo Costa Val (2002, p.115), “Uma pesquisa realizada no CEALE no decorrer do ano
2000 revelou a presença [de] dois eixos paralelos’ de que fala [um] professor suíço na
organização de livros didáticos brasileiros inscritos no PNLD/2002. A maioria das coleções
examinadas (...) não escapa à polarização entre o estudo do texto e o estudo da frase e das
palavras. O que se observa, em geral, é análise morfológica e sintática de palavras,
expressões e frases retiradas de um texto e focalizadas enquanto formas lingüísticas isoladas”.
107
base na materialidade lingüística ou apenas com base em uma situação física,
comumente denominada pela pragmática de contexto
37
.
O enfoque temático de cada cena analisada se constitui quarto fator
importante para um estudo que além dos limites da organicidade da língua.
Se cada cena adquire mais relação temática com acontecimentos de uma
esfera social, supomos que os recortes de sentidos, efetivados na
interdiscursividade, mudam sensivelmente, como tentaremos demonstrar
através da análise comparada de cenas como a de número 4, por exemplo, se
comparada a 5 que, por sua vez, pode ser comparada a cena 9, e assim por
diante.
Por último, gostaríamos de reafirmar que a multireferencialidade
enunciativa parece ser um modo de enunciação predominante e recorrente na
constituição de referência pronominal nas textualidades chargísticas, logo a
morfossintaxe dos pronomes nesse gênero sofre orientação desse modo de
enunciar.
Essas são as principais razões que, certamente, tentaremos usar como
argumento-chave para se propor que o papel dos pronomes “eu e “você” na
textualidade deva ser pensado para além da morfossintaxe pronominal.
Naturalmente, destacar o pronome “eu” ou o “você” em nossas observações
não exclui de nosso escopo de discussão o restante das relações sintáticas em
que eles se incluem; tampouco as caricaturas, com os quais os pronomes
mantêm relação estrutural, podem ser desconsideradas em uma análise como
a que estamos propondo.
Especificamente quanto à multireferencialidade enunciativa, entender que
esse é um modo de enunciação predominante das charges não exclui de nosso
escopo de análise, os modos de enunciar genérico e específico, que também
orientam, de forma periférica, o uso de pronomes em charges. Acreditamos
que esses dois modos ocorrem de forma concomitante à multireferencialidade
enunciativa, de maneira que nos parece possível falar de uma multiplicidade
referencial de caráter mais específico ou de caráter mais genérico.
37
Nesse ponto, não trabalhamos em concordância com a proposta de Costa Val (2002, p.115),
que é a de entender as palavras e frases dentro do texto e de um contexto que tenha motivado
o seu uso.
108
Isso é o que tentaremos demonstrar com a análise dos enunciados
abaixo, retirados todos eles das respectivas cenas chargísticas:
(Cena 4): “INDIGNAÇÃO NO CONGRESSO
‘É um absurdo! Se não posso superfaturar obras, vender meu voto, desviar verbas
públicas e nem legislar em causa própria, me digam então: pra que raios eu fui
eleito?’”
(Cena 5): “AUMENTO
– ‘Não quero nem ver a repercussão lá fora’.
– ‘Nem eu’.”.
(Cena 6): “AQUECIMENTO GLOBAL
– ‘Eu não estou nem aí!.
– Até essa coisa chegar na gente, vai levar uns 50 anos.”.
(Cena 7): “SORRIA: VOCÊ ESTÁ SENDO ENQUADRADO
– ‘Mãos ao alto! Você está preso!.
– ‘Por quê?
– ‘Temos transcrições de todas as suas ligações telefônicas!
– ‘Mas ... eu não tenho telefone!
‘Espionamos seu computador, temos a relação dos planos bandidos que você
colhe pela internet!
– ‘Rastreamos seus cartões e quebramos o sigilo de suas contas bancárias!.
– ‘Nunca tive cartão nem conta em banco!’.
– ‘Eu sou pobre!.
– ‘E você sabe quantos anos de cadeia isso irá lhe custar?”.
(Cena 8): “OLHA O RATO! OLHA O RATO!
– ‘Você conhece o Renan?.
– ‘Não conheço, não quero conhecer e tenho raiva de quem conhece!”.
(Cena 9): “ESCORREGANDO -
– ‘Issaí: eu sou candidato!
– ‘Boca fechada? Qual boca? A minha?!
– ‘Foi mal! E pensar que eu já tive a língua presa!’”!
(Cena 10): “CORP CARD OURO – O cartão corporativo do governo.”
Você ainda irá pagar a fatura de um.
(Cena 11) – “É você, Dilma?
(Cena 12): “EDUCAÇÃO PÚBLICA-
– ‘Parabéns, votirou ‘A’!!
– ‘E você tirou “E”.”
109
Entretanto, temos consciência de que não conseguiremos entender a
fundo a concomitância de modos de enunciação no uso de pronomes em
charges, haja visto que nosso propósito principal é caracterizar a
multireferencialidade enunciativa. Um aprofundamento sobre isso merece
espaço em outro trabalho, uma vez que a concomitância nos parece algo mais
complexo e digno de um corpus mais amplo e diferenciado que o escolhido
para a presente pesquisa.
Mesmo reconhecendo essa complexidade, arriscamo-nos a esboçar
como a concomitância de enunciabilidades se dá, ainda que de um modo
superficial. Assim, traçamos um objetivo de ordem secundária em nosso
trabalho e abrimos caminho para outros estudos.
3.2 A manifestação ou as manifestações de multireferencialidade
enunciativa na constituição de textualidades com pronomes?
Especificamente no que toca nosso propósito central (um estudo
dedicado à caracterização da multireferencialidade enunciativa na constituição
de textualidades chargísticas com os dois pronomes indicados), temos de
ressaltar que a caracterização da multireferencialidade envolve as mesmas
razões que elencamos para justificar a necessidade de se ir além da
morfossintaxe dos pronomes quando se quer pensar o seu papel em um texto.
Apenas a título de esclarecimento, relembramos que essas razões
consistem: a) nas filiações do locutor no interdiscurso; b) na relação entre uma
cena e a atualidade que lhe subjaz; c) no enfoque temático de cada cena, d) na
historicidade da categoria pronominal; por último, e) na simultaneidade de
modos de enunciar (multireferencialidade enunciativa e especificidade
enunciativa) ou (multireferencialidade enunciativa e genericidade enunciativa).
Daí é possível supormos que o se trata de uma, mas de várias
manifestações da multireferencialidade enunciativa orientando o uso do “eu” e
do “você” em cenas chargísticas.
Considerado tudo isso, as nossas análises também caminham, em
último momento, para uma reflexão sobre o papel da regularidade e da
predominância da multireferencialidade enunciativa na constituição de uma
110
normatividade (RASTIER, 1998) e, portanto, de uma identidade relativa ao
gênero em pauta.
3.3 As análises
3.3.1 O papel da autoria na Multireferencialidade manifestada em
cenas “de”uma mesma esfera social.
Para iniciar as análises que ilustrem todas as diretrizes traçadas
acima, tomemos as duas cenas chargísticas, cujas respectivas atualidades
dizem respeito a acontecimentos enunciativos inscritos em uma mesma esfera
social:
Cena (4)
Fonte: Folha de São Paulo, 17 de dezembro de
2006; Caderno Opinião.
111
Cena (5)
Fonte: Folha de São Paulo, 24 de março de
2007; Caderno Opinião.
Tanto a cena (4), como também a cena (5) apresentam-nos uma
tessitura verbal e icônica das quais colocamos em relevo o pronome “eu”, como
elemento lingüístico em torno do qual incidem as nossas observações
analíticas.
A propósito da atualidade tanto da cena (4) como também da cena (5),
o presente dessas duas ocorrências chargísticas congrega um conjunto de
enunciações relativas ao exercício da Política e à rotina de alguns governantes
brasileiros. Sem pretendermos fazer das análises de cada uma dessas cenas,
interpretações redutivistas e tendenciosas, podemos dizer que o referido
conjunto de enunciações, recortado em (4) e em (5), diz respeito às manobras
políticas que favorecem a legislatura em favor próprio ao invés da atenção aos
anseios populares. Constantemente, esses acontecimentos são aqueles que as
mídias nos colocam todo o tempo, enfatizando a prática da corrupção
38
através
38
Uma boa compreensão do termo corrupção encontra-se disponível na enciclopédia digital
Wikipédia:,”uso ilegal - por parte de governantes, funcionários públicos e agentes privados - do
poder político e financeiro de organismos ou agências governamentais com o objetivo de
transferir renda pública ou privada de maneira criminosa para determinados indivíduos ou
grupos de indivíduos ligados por quaisquer laços de interesse comum como, por exemplo,
112
do superfaturamento de obras públicas, desvio de verbas destinadas a causas
sociais urgentes, venda de votos, dentre outros.
Particularmente no caso de (4), a sua atualidade diz respeito aos
noticiários sobre uma fase de tensão no Congresso Nacional: o segundo
semestre de 2006 e o primeiro de 2007, quando senadores e deputados
propuseram o aumento da própria remuneração, que passaria de R$ 12.700
(doze mil e setecentos reais) para R$ 24.500 (vinte quatro mil e quinhentos
reais) por mês, reajuste salarial em torno de 91% (noventa e um por cento) de
aumento
39
.
no caso de (5), temos uma atualidade difundida em noticiários que
versaram sobre uma proposta do deputado Virgílio Guimarães, do PT de Minas
Gerais: o requerimento de R$ 5.000 (cinco mil reais) mensais para gastos, sem
apresentação de recibos a setores de fiscalização do Governo.
Evidentemente, a atualidade de cada uma dessas cenas não se
resume a um conjunto restrito de noticiários, mas temporaliza, vale dizer,
congrega enunciações passadas, anteriores à data em que os noticiários
haviam sido publicados, bem como projetam uma futurilidade de enunciações,
que ainda estava por ser produzida acerca das propostas tematizadas.
Associando tudo isso à questão da constituição pronominal de
referência, temos, em resumo, dois casos de enunciações chargísticas em que
o pronome “eu” delimita “objetos” de referência ideologicamente conflitantes,
presentes no entorno de publicação (atualidade), que trazem enunciações
concernentes a cada cena chargística.
De um lado, tanto o “eu” de (4) quanto o “eu” de (5) referenciam aquela
parcela de governantes, corrupta e ambiciosa, a exemplo de Givaldo Carimbão
(PSB AL), que, a qualquer custo, defendia publicamente o aumento salarial,
conforme sugere a passagem a seguir: "Muita gente hoje não tem coragem
nem de atender ao telefone. Mas eu tenho -e até dou entrevista, porque acho
que ganhar bem não faz mal a ninguém(...)”
40
. De outro lado, o “eu” de cada
uma das charges referencia aqueles senadores que, a exemplo de Suplicy,
negócios, localidade de moradia, etnia ou de fé religiosa”, http://pt.wikipedia.org/wiki/Corrup,
consultado em dezembro de 2007.
39
Folha de S. Paulo, 17 de dezembro de 2006; caderno Opinião.
40
Folha de S. Paulo, 16 de dezembro de 2006; caderno Opinião.
113
haviam manifestado posição contrária ao imediato aumento salarial, conforme
exemplifica o trecho abaixo:
Avalio que os presidentes do Senado e da Câmara, diante do
clamor popular, podem perfeitamente tomar a iniciativa de rever a
decisão anunciada. É importante que a população e todos os
senadores e deputados sejam ouvidos, e não apenas as
lideranças
41
.
Assim, o pronome “eu” funciona em prol de constituir referência
simultânea ao lícito e ao ilícito, ao ético e ao anti-ético, o que permite o locutor-
chargista transitar entre, no mínimo, duas significações, vale dizer, dois
escopos de referência conflitantes, disponíveis no âmbito da atualidade. A
delimitação do “eu” a “objetos” de referência ideologicamente conflitantes,
disponíveis na atualidade de cada cena, configura um primeiro aspecto do
modo de enunciar multireferencial, nas cenas em análise.
Ainda com relação a esse primeiro aspecto, entendemos que a
multireferencialidade envolve, ainda, a delimitação de escopos de referência
ideologicamente conflitantes, no âmbito da memória interdiscursiva. Significa
dizer que tanto o “eu de “(...) pra que raios eu fui eleito”, presente na cena
chargística (4), como o “eu de “(...) nem eu”, disponível na cena chargística
(4), são amparados, cada qual, por domínios conflituosos da memória
interdiscursiva.
Significa dizer, de um lado, que tanto o “eu” presente em (4) quanto o
“eu” presente em (5) mobilizam sentidos historicamente legitimados em
enunciações diversas, de que os governantes são eleitos com o ideal de
legislar em causa pública, agindo sob o princípio da transparência, quando da
tomada de decisões de grande abrangência social. Mais especificamente,
queremos dizer que, tanto o pronome de (4) quanto o pronome de (5) são
empregados nas respectivas charges para produzir recortes de memória com
enunciações que versaram sobre o princípio da ética a respeito dos critérios
utilizados para o aumento salarial dos parlamentares. Socialmente, espera-se
que esses critérios satisfaçam as expectativas daqueles que confiam seus
votos a governantes que, via de regra, estejam interessados em amenizar a
desigualdade na concentração de renda no Brasil.
41
Folha de São Paulo, 17 de dezembro de 2006; caderno Opinião.
114
Por outro lado, o pronome em (4) e (5) recorta, cada qual, regiões da
memória sustentadoras de sentido que não aqueles relativos às atualidades
mencionadas. São sentidos que funcionam muito, em nossa sociedade.
Por que não dizer, até aqueles silenciamentos sustentados desde a época
colonial, e que ressoam hoje nas enunciações mais contemporâneas sobre as
relações ilícitas que alguns parlamentares estabelecem dentro e fora do
Congresso, destacadamente em períodos pré-eleitorais.
Em síntese, as duas cenas que iniciam nossa reflexão analítica
apresentam uma relativa regularidade no que diz respeito ao pronome eu” que
cumpre funções morfossintáticas semelhantes em (4) e em (5). Tais cenas
comportam uma regularidade ainda no que diz respeito ao pronome “eu” como
elemento constituidor de referência. Tanto em (4) como em (5), o “eu” delimita
domínios conflitantes da memória e, ao mesmo tempo, recorta “referentes” que
procedem de um conflito de idéias, interpretadas através da leitura de
fragmentos de uma atualidade “reportada” em textos de jornais e revistas. Até
aqui, concluímos que, se estudada em charges cuja temática proceda de uma
mesma esfera social, a multireferencialidade apresenta diferenças sutis, que
podem ser percebidas mais pelos direcionamentos a escopos de referência
ideologicamente próximos entre si.
Esses direcionamentos sutilmente diferentes têm a ver com a
constituição da individualidade / subjetividade / autoria propiciada pelos
agenciamentos dos chargistas em cada cena analisada. Ou seja, manifesta-se
a autoria que, nos termos de Orlandi (2005b, p.100), se dá pela irremediável
subjetividade. Segundo a autora, (...) a subjetivação é uma questão de
qualidade (...)”, mas percebido por indícios inferidos na “(...) qualificação do
sujeito pela sua relação constitutiva com o simbólico”, (idem). Ao mesmo tempo
em que o sujeito depende do simbólico para dizer, ele é livre para significar o
simbólico e esta é pois a característica do
sujeito moderno-capitalista (...) ao mesmo tempo livre e submisso,
determinado (pela exterioridade) e determinador (do que diz): essa é
a condição de sua responsabilidade (sujeito jurídico, sujeito a direitos
e deveres, (ORLANDI, 2005b, p. 104)
42
.
42
Podemos encontrar uma reflexão crítica sobre os fundamentos do sujeito de direitos e de
deveres em (HARROCHE, 1992, p.155-211).
115
Em suma, concluímos, nesse primeiro momento da análise, que a
multireferencialidade, se estudada em cenas chargísticas que temporalizam
acontecimentos de uma mesma esfera, manifestar-se-á com uma regularidade
preponderante e com sutis diferenças, no que tange aos recortes que
viabilizam a autoria de cada um dos chargistas, recortes estes que podem ser
percebidos pelos direcionamentos enunciativos.
3.3.2 Os direcionamentos em cenas chargísticas “de” uma mesma
esfera social
Entendemos que essas variações passam pela noção de direção
enunciativa, (DIAS, 2005, p.38), que a textualidade de cada uma das charges
viabiliza através de outras palavras, expressões e caricaturas, que não o
pronome “eu”. Em um trabalho como o nosso, que se dedica a vislumbrar
alguns direcionamentos estabelecidos quando do uso de pronomes em
charges, corremos o risco de oferecer uma análise reducionista e tendenciosa
sobre esses direcionamentos. Mesmo assim, é necessário que os apontemos,
partindo, por exemplo, de elementos da textualidade concernente a cada
charge, a saber as estruturas sintáticas e, ainda, os ícones aos quais o
pronome “eu” de cada cena está associado.
A cena (4), assim como a (5), tematiza o aumento salarial abusivo,
porém, diferentemente um pouco de (5), (4) trás impressa em sua textualidade,
um direcionamento para um domínio de enunciações sobre a aparente
normalidade com que alguns deputados lidam frente a atos corruptos diversos:
desvios de verbas, consolidação de lobbies entre parlamentares e, também,
entre outros setores da sociedade. A cena (4) direciona, ainda, para
enunciações enfatizadas principalmente pelas mídias jornalísticas, que tentam
“vender” ao público, uma imagem desmoralizada dos políticos. O alvo do
referido direcionamento consiste nas desculpas com que alguns congressistas
justificam seus atos corruptos. Consiste, também, nas tentativas que um certo
grupo de políticos adotam para burlar o sistema de fiscalização, gerando a
impunidade e a quebra de ideais e de confiabilidade por parte dos eleitores em
relação aos seus representantes do congresso.
116
Toda essa direção enunciativa de que estamos falando pode ser
textualmente justificada, por exemplo, pela expressão “É um absurdo”,
presente logo na parte superior da cena em pauta, cuja pronúncia caberia
muito mais aos locutores que falam da posição enunciativa de eleitores
indignados com a corrupção, que aos locutores-congressistas.
É por recuperarmos expressões de manifestação como essa que fica
caracterizada na cena (4) a multireferencialidade enunciativa, apontando, ao
mesmo tempo, para enunciações pertinentes às mídias, aos congressistas e
aos cidadãos brasileiros.
a cena (5), assim como a (4), tematiza a corrupção, porém trás em
sua textualidade, recortes que direcionam para regiões de memória
sustentadoras de enunciações sobre o abismo salarial que, via de regra,
separa os congressistas do eleitorado brasileiro. Trata-se de enunciações que
funcionam muito e que, logicamente, vão além da atualidade da cena (5).
Enunciações que emolduram uma memória sustentadora de sentidos de que o
trabalhador brasileiro é mal remunerado. Considerando-se as caricaturas com
olhos tamponados por verba pública, as falas procedentes dessas caricaturas e
a expressão-título “aumento”, entendemos que todos esses elementos
reforçam o direcionamento do pronome “eu” para a memória sobre a alta
concentração de renda por uma parcela tão pequena dos cidadãos, qual seja,
os representantes políticos, questão antiga e retratada nos discursos
arregimentados no saber interdiscursivo. É, pois, em função da relação
orgânica do “eu de (5) com o termo “Aumento” que o “eu” de (5) marca
variação quanto ao “eu” de (4). Vale salientar, inclusive, que o termo “Aumento”
ganha, no mínimo, duas direções de sentido: aumento significativo do salário
mínimo, que costuma inexistir na economia do país e aumento radical do
salário dos representantes do Legislativo e do Judiciário.
A textualidade de cada cena enunciativa assume, nesse sentido, uma
importância singular na análise que estamos desenvolvendo, na medida em
que passa a ser “ponto de partida” para se analisar como uma sutil diferença
dada pelas direções enunciativas de cada cena atravessa a
multireferencialidade enunciativa, processo reincidente entre (4) e (5).
Noutras palavras, isso significa que o acontecimento enunciativo é,
assim, o ponto de partida para a análise da constituição pronominal de
117
referência; é no acontecimento e não fora dele que se torna pertinente estudar
a referência. Em outras palavras, não é o contexto, como defendem algumas
posições pragmáticas, o fator primordial de estudo da língua; a referência não
está em uma situação. Nas palavras de Guimarães (2005a, p.9), “A referência
será vista como a particularização de algo na e pela enunciação”.
Em síntese, estudar a direção enunciativa para se observar as
variações na constituição de referência entre uma e outra cena chargística, é
estudar o funcionamento da língua na própria dimensão textual de cada cena,
funcionamento que se dá em co-relação com o interdiscurso.
3.3.3 O papel da autoria na Multireferencialidade manifestada em
cenas “de”diferentes esferas sociais.
A seguir, no desenrolar da análise de outras charges, veremos que as
semelhanças e variações com que o pronome “eu” de diferentes charges
delimita regiões da memória discursiva são semelhanças e diferenças que ora
tendem a se reduzir, ora tendem a ser acentuadas, o que, acreditamos,
depender, também, dos campos de conhecimento dos quais procedem a
temática central de cada charge analisada.
A fim de ilustrarmos isso, analisemos, de agora em diante, alguns
domínios do interdiscurso e algumas enunciações do âmbito da atualidade, que
intervêm no funcionamento do “eu” na cena (6). Posteriormente,
estabeleceremos comparação desse funcionamento, com o uso do “eu” nas
cenas já analisadas:
118
Cena (6)
Fonte: Folha de S. Paulo, 11 de abril de 2007,
Caderno Opinião
Basicamente, a atualidade dessa cena constitui-se de acontecimentos
de linguagem concernentes aos discursos sobre o aquecimento global. Sem a
intenção de fechar as possibilidades de análise para essa cena, podemos dizer
que (6) comporta, como atualidade, um complexo de noticiários sobre as
previsões das condições climáticas do planeta Terra, divulgadas em noticiários
diversos das mídias jornalísticas, das conversas espontâneas que caracterizam
os nossos momentos de lazer e, em caráter institucional, nas enunciações
produzidas em prol da divulgação do “Quarto Relatório de Avaliação do Painel
Intergovernamental sobre Mudança Climática”
43
.
43
Trecho retirado do relatório do IPCC-ONU, publicado em Paris em 02/02/2007.
119
À semelhança das análises dispensadas às cenas (4) e (5), interessa-
nos assinalar que em “Eu não estou nem aí!”, a relação do pronome “eu” com o
restante do enunciado em que este pronome figura não é constituída apenas
no nível das relações estritamente lingüísticas, ou seja, o “eu do enunciado
chargístico não tem como base única as suas propriedades morfossintáticas.
Tampouco, essa relação é, a nosso ver, uma mera correspondência do
pronome pelas figuras caricaturadas que encenam um diálogo na charge em
questão. Isso implica apontar os domínios interdiscursivos que intervêm
constitutivamente em (6).
Um desses domínios, por exemplo, reúne enunciações sobre o hábito
que não os brasileiros, mas o ser humano em geral tem de se eximir da
participação na resolução de problemas relativos a uma determinada
coletividade. Ao se ler “Eu o estou nem aí”, acreditamos que esse “eu é
aquele que encapsula dizeres de uma memória interdiscursiva como essa que
mencionamos.
Nesse sentido, podemos inferir que o funcionamento do “eu” na cena
em questão é um funcionamento marcado pela tensão entre uma memória que
arregimenta sentidos como “eu não estou nem porque eu não fiz nada para
que esse problema fosse agigantado” e uma atualidade “reportada”,
principalmente, em trechos de noticiários que dão destaque à manipulação de
pareceres que muitas entidades institucionais adotam frente ao problema do
aquecimento global, conforme sugere o trecho logo abaixo:
“Pressão de políticos “suaviza” relatório”.
A transformação do calhamaço de evidências científicas que é o
sumário técnico em um resumo de poucas páginas voltado aos
formuladores de políticas públicas nunca é um processo rápido e
tranqüilo, que cada governo tenta incluir ou retirar dados e
declarações de acordo com seus interesses”. (Folha de S. Paulo, 07
de abril de 2007).
120
Ainda no tocante ao “eu” presente na cena (6), entendemos que há um
outro embate de memória e atualidade constituindo o funcionamento de tal
pronome nessa cena. Desta vez, podemos pensar em uma memória
interdiscursiva que dispõe de referentes cujos sentidos trazem à tona uma
“não-imediaticidade” que parte das autoridades competentes costuma
dispensar à resolução de problemas graves de interesse público, como é o
caso do problema do aquecimento global. Culturalmente, parece que há
sempre um hábito de se “deixar para depois” o que se poderia resolver mais
imediatamente. Em boa medida, esse domínio de interdiscursividade parece se
confrontar com certa falta de preocupação por parte do Governo e de outras
autoridades no trato do aquecimento global, tendo em vista que, na óptica de
muitos especialistas, é a Europa e alguns países africanos que sofreriam as
maiores conseqüências do aquecimento global: “De implicação para o Brasil,
na parte de saúde, não tem nada. A Europa parece estar mais vulnerável", diz
Confalonieri”. (Folha de S. Paulo, 07 de abril de 2007).
Por último, não poderíamos deixar de tecer considerações sobre o
importante papel das caricaturas na constituição de referência através do
pronome eu” na cena chargística (6). Em uma charge jornalística,
necessariamente a presença da caricatura tem de ser associada aos
enunciados, uma vez que esse é um gênero notadamente constituído de
figuras caricaturadas para encenar, vale dizer, para representar entidades
políticas, institucionais e públicas, de um modo geral.
No caso da cena (6), as caricaturas ilustram a figura de duas cidadãs
que parecem pouco conscientes ou nada comprometidas com posturas
preventivas contra o agravamento do aquecimento global no planeta.
Certamente, tal ilustração não é utilizada sem propósito; tem a ver, por
exemplo, com a necessidade que o chargista tem de deslizar entre diferentes
domínios de memória, para mobilizar referentes ideologicamente destoantes
para uma mesma pessoa ou objeto.
Vimos, por exemplo, que o “eu” da cena (6) aponta para cidadãos civis
descomprometidos com o aquecimento do planeta; aponta, também, para uma
certa falta de empenho das autoridades competentes para o trato da questão
ambiental. Essa concomitância caracteriza mais um caso de constituição
121
pronominal de referência que, a exemplo de (4) e de (5), recortam múltiplos
domínios de memória dispersos na interdiscursividade.
Conduzimos nossas análises para o ponto que desejávamos. Em
resposta à pauta de análise da seção 3.2.2, parece-nos pertinente o momento
para propor que os recortes, estabelecidos a partir da textualidade de (6), são
recortes que guardam direcionamentos de sentidos mais significativos em
relação àqueles viabilizados em (5) e (6).
Essas diferenças de recorte têm relação com as esferas sociais das
quais procedem a temática focalizada em cada charge acima. O “eu” de (6),
especificamente, recorta domínios de memória que trazem à baila os
interesses individuais que, algumas vezes, envolvem a gestão política de
problemas ambientais, como o aquecimento global. Em (4) e (5), por sua vez, o
“eu” de cada uma dessas cenas recorta domínios de memória que também
põem em evidência alguns interesses individuais, desta vez, porém, aqueles
interesses relativos mais diretamente dispensados à gestão de verbas públicas.
Para compreendermos essas justificativas com um pouco mais de
profundidade, propomos uma comparação das cenas anteriores com a cena a
seguir, cuja constituição de múltipla referência se dá pelos pronomes “você” e
“eu”.
122
Cena (7)
Fonte: Folha de São Paulo, terça-feira, 26 de maio de
2006.
Caderno Opinião
Como atualidade, essa cena reúne um conjunto de enunciações
relacionadas a maio de 2006, quando houve uma rie de atentados em São
Paulo, contra órgãos civis e estatais. Esses ataques foram, de imediato,
atribuídos ao PCC _ Primeiro Comando da Capital _ uma facção de crime
organizado fundada no ano de 1990, em Tauba _ São Paulo _ por um grupo
de detentos considerados de alta periculosidade. Nessa ocasião, alguns
agentes policiais abordavam quaisquer suspeitos que encontrassem pelas
ruas, na tentativa de apaziguar ou banir de vez os supostos responsáveis pelos
ataques.
A exemplo das demais cenas chargísticas até aqui analisadas, a
atualidade da cena (7) constitui-se em um primeiro campo de “referentes” no
qual o “eu” da cena em questão se ancora. Regra geral, podemos dizer que a
atualidade de (7) tematizava vários aspectos relativos aos ataques. Dentre
esses aspectos, os envolvidos nos atentados, o que, sem dúvida, abrangia
desde os suspeitos (referentes) mais indicados pela Polícia _ como o líder
123
Marcos W.H. Camacho, o Marcola _ até alguns cidadãos civis (também
referentes) que, sem ter qualquer envolvimento com o crime organizado, eram
equivocadamente abordados pela polícia, conforme sugere o trecho abaixo:
Segundo grande parte da mídia, deu a louca na polícia _ que é
louca por definição. Saiu pela cidade a esmo, matando suspeitos
para se distrair (...). Como se permite que agentes da lei, pagos pelo
Estado, com armas do Estado, assassinem barbaramente cidadãos
que deveriam contar com a proteção do mesmíssimo Estado? (Folha
de S. Paulo, 23 de mai. de 2006; caderno Cotidiano).
A tematização de (7), assim como o tema central das cenas anteriores,
parece ser fator determinante da diferença de recorte que o “eu” de cada
charge estabelece para si, no âmbito da atualidade.
Na cena em questão, a análise pode contar também com os recortes
de referência produzidos pelo pronome “você”, disponível no início e no final da
cena (7), uma vez que esta é constituída de um diálogo de caricaturas, dentre
as quais uma, a do agente policial, se dirige a um sujeito através do “você” e,
este mesmo sujeito lhe responde através do “eu”. Assim, o “eu” e o “você”
mantêm relações no nível da textualidade, sejam estas relações entre os
enunciados em que tais pronomes figuram, sejam estas relações entre os
enunciados e as caricaturas distribuídas no espaço textual da cena. Podemos,
nesse sentido, pensar nos “referentes” que o “você” de “Sorria: você está
sendo enquadrado” recorta no âmbito da interdiscursividade.
Para começar, interessa-nos caracterizar um pouco do percurso de
enunciações em que costuma figurar uma expressão semelhante àquela
destacada em fundo vermelho, que inicia a cena (7). Trata-se da expressão
“Sorria: você está sendo filmado”, que apresenta um percurso de enunciações
cujo tema envolve a segurança pública dos moradores de grandes centros
urbanos.
Estruturalmente semelhante à expressão que inicia a cena (7), a
expressão “você está sendo filmado” costuma ser empregada na entrada de
bancos, recepções de prédios, transportes coletivos e outros ambientes
públicos para inibir a tentativa de ação de criminosos.
124
Nesse sentido, o “você” que inicia a cena (7) é um pronome que
recorta domínios diversos e ideologicamente conflitantes da memória
interdiscursiva. Um desses domínios reúne sentidos sobre suspeitos inocentes
(referentes) que, pelas vestimentas, pela aparência física ou ainda pelos
objetos que portam são indivíduos comumente incriminados e aprisionados por
agentes de segurança pública. Nesse caso, fica difícil não se pensar em uma
memória sustentadora de sentidos sobre o amplo direito de defesa de que
qualquer cidadão pode desfrutar, quando acusado. Na prática, muitos cidadãos
civis acabam não usufruindo dos direitos que tem, seja por causa do baixo
poder aquisitivo que lhes impede de contratar bons advogados, seja pelo abuso
de poder que caracteriza a relação entre alguns cidadãos civis e algumas
autoridades de segurança. Em síntese, o “você” recorta sentidos sustentados
muito na sociedade brasileira; sentidos que ganham mais destaque aqui na
voz do chargista, que convoca o leitor a refletir sobre o direito de defesa muitas
das vezes não efetivado ou pouco acessível para aqueles que dispõem de
pouca representatividade social ou de poucas condições financeiras.
Ao mesmo tempo em que o “você” em análise recorta domínios de
memória como esse que mencionamos, o “você” delimita um outro domínio de
memória sobre os “reais” adeptos do terrorismo urbano que, dada a
periculosidade que lhes é atribuída pelo Estado e pela sociedade civil,
precisam, de fato, ser prontamente detidos. Ainda com relação ao “você” que
integra o cabeçalho de (7), poderíamos, sem dúvida, apontar outros recortes de
memória constitutivos da referência através desse pronome. Todavia, o nosso
intuito não é dar conta da completude de dizeres que intervêm, em alguma
medida, na constituição de cada cena. Certamente lidar com a memória
interdiscursiva é lidar com uma rede em que os sentidos estão dispersos e,
ainda, parcialmente interpretáveis a partir de um acontecimento específico.
Em suma, o “eu” e o “você” de (6) e de (7) permitem-nos vislumbrar
variações maiores da ocorrência da multireferencialidade enunciativa no uso de
pronomes na textualidade de cada cena, variações essas que são
determinadas, nesses casos, pelas diferentes esferas sociais em que se
inscreve cada texto.
125
3.3.4 O papel do chargista na representação de enunciador
individual e coletivo por meio da multireferencialidade
Considerando-se que o “você” e o “eu”, presentes na textualidade da
cena (7), direcionam para regiões da memória sustentadoras de sentidos
amplamente reiterados em escala popular, entendemos que o locutor-chargista
consegue instituir, de um lado, o seu papel de enunciador-coletivo que
repercute os clamores de boa parte da população brasileira injustiçada
mediante as entidades públicas. Esse parece ser o caso das cenas (4), (5) e
(6) analisadas anteriormente. De outro lado, o direcionamento estabelecido
pelo “você” de (7) permite ao chargista teatralizar o papel de enunciador-
individual, por meio do qual esse locutor promove o seu gesto de autoria que
tenta incitar no público leitor, uma “nova” reflexão, diferenciada das demais
reflexões publicadas quanto ao abuso de poder que algumas autoridades de
segurança dispensam injustamente a cidadãos civis sem qualquer
envolvimento com o crime urbano.
Mais claramente, os posicionamentos dos chargistas Angeli e Clean
em relação a problemas de ordem pública, passam pela necessária
teatralização de cada um desses locutores chargistas, ao cumprirem, cada um,
o papel de enunciador-coletivo e, ainda, o de enunciador-individual.
O primeiro papel enunciador coletivo serve a um resgate das
avaliações proferidas em domínio popular, ou seja, é por meio de um
enunciador-coletivo que o locutor-chargista (re)produz uma fala semelhante à
do povo, indignado com a corrupção e, também, devolve-lhe um parecer sobre
esse problema. É isso que firma ainda mais uma importante função social do
gênero charge: problematizar questões de interesse coletivo e guiar a opinião
pública sobre as mesmas. É esse primeiro papel que faz valer um aspecto da
deontologia de uma cena chargística: fazer valer o direito de um chargista,
orientando-lhe a estabelecer uma relação de avaliador crítico e/ou humorístico
com aqueles para os quais fala, a saber os leitores de jornais e revistas. Nisso
consiste uma importância central do papel de enunciador-coletivo.
O segundo papel, o de enunciador-individual, serve ao intuito de Angeli
focalizar, a partir do “eu”, regiões da memória interdiscursiva diferentes
126
daquelas focalizadas por Clean. Em outras palavras, ao teatralizar o papel de
enunciador-individual, Angeli focaliza domínios de memória sobre aquele grupo
de deputados e senadores que, além de indignados, manifestam publicamente
sua indignação por terem suas ações ilegais amplamente questionadas, ao
passo que Clean estabelece filiação direta com outras regiões de memória:
aquelas sobre o grupo de deputados e senadores que, ao ter vetada a proposta
de aumento salarial, tentam evitar a aparição pública, não ousando, assim,
manifestar indignação pública como a encenada pelas caricaturas em 4.
Embora tenhamos criado seções nesta análise, os fatores da autoria e
de suas representações na “pele” de enunciadores devem ser entendidos
juntamente com a questão da tematização e das esferas sociais se
comparadas as cenas (4), (5) e (6), tal como havíamos proposto
anteriormente.
Tal variação, conforme mencionamos na fundamentação
metodológica, acontece mesmo que, morfossintaticamente, os pronomes
cumprem função idêntica nos exemplares de charge mencionados. Tal
variação acontece, ainda, mesmo que, enunciativamente falando, os pronomes
têm a referência peculiarizada por um mesmo modo de enunciar, a saber a
multireferencialidade enunciativa.
3.3.5 Multireferencialidade enunciativa de caráter genérico
Dando seqüência ao que havíamos apontado nas diretrizes de análise,
(seção 3.0), temos agora de refletir um pouco, ainda que sem muita
profundidade, sobre a concomitância da multireferencialidade enunciativa com
a genericidade enunciativas. Que efeito uma reflexão como essa surtiria em
nossas análises?
Pois bem. Tentaremos abordar a questão a partir das cenas
chargísticas (8), (9) e (10). Iniciemos a tarefa com a análise da cena (8):
127
Cena (8)
Fonte: Estado de Minas, Junho de 2007, Caderno Opinião
A atualidade dessa cena temporaliza acontecimentos enunciativos
divulgados, principalmente, no segundo semestre de 2007, quando o então
presidente do Senado, Renan Calheiros, fora acusado de receber propinas
para custeio de despesas pessoais. Nessa ocasião, o Senador tivera um tempo
para articular sua defesa e, esgotado esse período, ele fora submetido a uma
sessão de cassação de seu mandato, sessão esta que deveria ser secreta,
sem a participação de outros deputados e sem o acesso de cidadãos civis
brasileiros.
Segundo Cristóvam Buarque, um então Senador do PDT, uma sessão
secreta feriria o direito do “povo brasileiro, de tomar conhecimento das
decisões de interesse coletivo”
44
. Para Mello, ministro do STF, a sessão
também deveria ser de conhecimento de todos que desejassem assisti-la
45
.
Nessa audiência, Calheiros fora absolvido pelo Conselho de Ética,
mesmo o conseguindo provar que o dinheiro empregado para resolução de
problemas pessoais provinha de negócios agropecuários gerenciados por ele
44
Cf. vídeo de reportagem, gravada pelo Jornal Nacional no dia 12 set. 2007. Disponível em
http://g1.globo.com/Notícias/Política/.
45
Idem.
128
próprio, e não por um terceiro _ o lobista Gontijo, integrante da empreiteira
Mendes Júnior.
Tal caso repercutiu amplamente entre muitos parlamentares, segundo
os quais o Senado Federal teria sua imagem prejudicada pela absolvição de
Calheiros, que a primeira postura que se espera de um representante da
Casa é, sem dúvida, uma postura de ética e compromisso. Como era de se
esperar, o caso Renan Calheiros tornara-se amplamente conhecido pelo
público, através dos órgãos de imprensa, mesmo antes de o Presidente do
Senado vir à sessão de cassação.
Na ampla divulgação do caso Renan, podemos levar em conta uma
memória de sentidos sobre o desinteresse ou a pouca indignação de muitos
cidadãos em questões coletivas, sobretudo as questões que envolvem figuras
políticas sublimes no Senado Brasileiro, como é o caso de Calheiros, dada a
sua importância no Senado Federal, e o que ele fez de grave a ponto de ferir
os interesses da Democracia Brasileira.
Tomar o “você”, articulado na textualidade da cena (8), é considerar
que esse pronome referencia vários domínios de memória, dentre eles, esse
que acabamos de indicar. Sem dúvida, esse domínio de memória possibilita
recortes de sentido que muito são requeridos em textos de cunho
marcadamente opinativo, como parece ser o caso de artigos de opinião, por
exemplo.
Esses sentidos apontam para uma significativa parcela dos cidadãos
brasileiros, que é alheia ou desinteressada sobre as atitudes, sobre a
procedência e sobre os reais propósitos de nossos representantes na política
brasileira, o que se comprova pelo emprego da expressão “Não conheço, não
quero conhecer e tenho raiva de quem conhece”, popularmente utilizada para
se expressar desinteresse ou raiva por alguma pessoa ou objeto.
Outro domínio de sentido, referenciado pelo “você”, pode ser levantado
a partir da relação orgânica que esse pronome assume com as caricaturas de
vacas, empregadas na textualidade da cena (8). Podemos entender que esse
domínio traz à baila a memória de usos da expressão popular “A vaca vai para
o brejo”, que diz respeito aos problemas de alcance coletivo não solucionados
ou não esclarecidos, o que leva muitos ao “brejo”, vale dizer, ao prejuízo de
várias ordens, sobretudo a econômica. Isso justifica a ilustração de vacas na
129
charge que, personificadas, fazem o papel de cidadãos que, a exemplo das
socialites ilustradas na cena (6), “não estão nem aí” ou pouco inteirados sobre
problemas de interesse coletivo. Nesse aspecto se aproxima a constituição de
referência do “você” de (8) com a constituição de referência do “eu”,
empregado na cena (6).
Ainda com relação ao “você” de (8), entendemos que essa ocorrência
pronominal aponta sentidos, histórica, judicial e popularmente sustentados, de
que o presidente do Senado Federal deveria ser o primeiro a cumprir, durante o
seu mandato, as normas determinadas em enunciações sustentadas pelo
Conselho de Ética Pública, como exemplifica o trecho a seguir: “É proibida a
aceitação de presente dado por pessoa, empresa ou entidade que tenha
interesse em decisão da autoridade ou do órgão a que esta pertença.
46
Domínios de sentido como esse que acabamos de apontar
contrastam-se com a atualidade da cena (8), a partir da qual temos uma
referência do “você” a um Calheiros (referente) que, segundo acusações, era o
primeiro a descumprir o Código de condutas sobre presentes, e que, inclusive,
tentava se eximir do flagrante assim como ratos tentam fugir, o que é
interpretável pela relação do “você” com o grito “Olha o rato! Olha o rato!”.
Passemos, agora, à reflexão sobre a genericidade referencial que o “você”
adquire na textualidade de (8), ainda que reconheçamos a predominância da
multireferencialidade enunciativa no uso desse pronome na textualidade da
cena.
A genericidade do “você” de “Você conhece o Renan?” decorre, em
primeira instância, do fato de que o pronome é organicamente ligado à
expressão “Não conheço, não quero conhecer e tenho raiva de quem
conhece!”.
Dito isso, temos de salientar que os locutores que pronunciam essa
expressão atualizam um dizer, cuja história de usos remete-se a um amplo
perfil de pessoas que são desinteressadas, ou alheias à resolução de
problemas de ordem coletiva. Em outras palavras, a vaca referenciada” pelo
“você” em análise, tem sua significação determinada pela relação orgânica
dessa caricatura com o “você” da sentença, mas também, e inclusive, tem sua
46
Norma número 1 estipulada pelo Conselho de ética pública, disponível em
http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/cepub, consultado em janeiro de 2008.
130
significação afetada por uma rede de pessoas que manifestaram descaso ou
desinteresse com a falta de postura de Renan Calheiros, como foi sugerido por
aquelas enunciações que concernem à atualidade da cena (8).
Esse é um dos motivos que nos levam a acreditar que o “você” de (8) tem
seu uso na cena orientado por uma genericidade mais “fechada”, isto é, mais
delimitada que a genericidade do “Quem” de expressões como a de número
(3), exemplificadas na cena propagandística disponível na seção 1.8 do
primeiro capítulo da dissertação.
Tampouco a relativa genericidade da cena (8) tem uma amplitude
referencial tão aberta quanto a do “Quem” de enunciações proverbiais como
(exemplo 9) Quem planta, colhe;
(exemplo 10) Quem espera sempre alcança.
Isso se explica pelo fato de que os provérbios são enunciações que
adquirem um “(...) tom de verdade, ou de elevação”, conforme aponta Dias
(2007, p.323) e por isso o “Quem / Aquele que” que constitui sua materialidade
Fonte: Fotografia de uma propaganda educativa
disponível no calçadão da Praia de Ipanema, Rio
de Janeiro. Foto produzida em outubro de 2007.
131
lingüística encapsulam
47
um amplo perfil de pessoas que se identificam com a
predicação lá proposta
48
.
Também atribuímos o “fechamento” do “você” de (8) à relação que
esse pronome contrai com o gênero chargístico. Nesse caso, a amplitude do
“você” é, de fato, mais específica que a amplitude dos exemplos recentemente
arrolados, haja visto que o chargista fala de uma região do interdiscurso que o
autoriza a promover uma espécie de fórum público. O que queremos dizer é
que o “você” de (8) se coloca na textualidade dessa cena, como a entrada na
enunciação para aqueles leitores, e somente aqueles leitores que se vejam
afetados, incomodados com a pouca mobilização social contra atitudes anti-
éticas, como foi a do então Presidente do Senado Renan Calheiros, em
meados de junho de 2007. Em síntese, esse é um segundo motivo que nos
leva a acreditar que o “você” de (8) tem seu uso na cena orientado por uma
genericidade mais “fechada”.
Uma terceira consideração se faz pertinente e indispensável aqui para
diferenciarmos a amplitude do “você” de (8) com a amplitude do “Quem /
Aquele que” proverbiais.
Trata-se da concomitância de modos de enunciação que havíamos
apontado na fundamentação metodológica do presente trabalho. Sem o
compromisso de desenvolver uma análise aprofundada sobre isso,
assinalamos aqui que o “você” funciona orientado pela genericidade referencial
apontada – alcançar um amplo perfil de cidadãos alheios ao caso Renan – mas
funciona, também, orientado por uma multiplicidade referencial. Inclusive, não é
demais reiterar que a multiplicidade é o modo de enunciação preponderante
nesse caso; orienta com predominância a relação do pronome com a
textualidade de (8). É, pois, em função da mescla de multiplicidade com
genericidade que a amplitude do “você” em análise se diferencia da amplitude
dos “Quem / Aquele que” mencionados.
A interseção dos modos de enunciar multireferencial e genérico parece
ser o caso de tantas outras cenas chargísticas por meio das quais se pretende
47
O termo “Encapsular”, nesse sentido, é usado como sinônimo de uma forma que guarda uma rede
de significados, embora não consideremos essa forma enrijecida o bastante para fechar novas
possibilidades de integração de significados.
48
O Grupo de Estudos da Enunciação da FALE / UFMG tem desenvolvido reflexões que procuram
abordar a amplitude referencial do “Quem / Aquele que” no corpo de enunciados, sendo que esses
termos são estudados na condição de ocupadores do lugar de sujeito gramatical.
132
oferecer humor crítico a um amplo perfil de leitores, ainda mais quando nas
cenas analisadas houver o uso de pronomes como é o caso do “eu” de “(...) e
pensar que eu já tive a língua presa”, presente na cena (9):
Cena (9)
Observemos que o segundo uso do “eu” nessa cena é orientado
primeiramente por uma multiplicidade e por uma genericidade, em nível
secundário, talvez.
A multiplicidade se explica pelo fato de que o “eu” mantém relação
orgânica com a caricatura do presidente Lula, cuja fala apresenta
características fonológicas de alguém que, de fato, tem a língua presa.
Ao mesmo tempo em que o “eu” aponta para o “objeto” Lula, o
pronome recorta uma memória de sentidos que sustentam um perfil de
pessoas, relativamente amplo, que se vêem, de alguma forma, envolvidas com
expressões como “Cala a boca”; “boca fechada”, “Quem fala muito bom dia
a cavalo” e assim por diante, expressões essas utilizadas para debochar ou
humorizar o pronunciamento inoportuno de pessoas. Ou seja, um domínio
de memória como esse que acabamos de mencionar constituindo
Fonte: Isto é, n.1885, 30 nov. 2005,
p. 30.
133
decisivamente o uso do “eu” de (9), ainda mais porque a atualidade da cena
nos conta sobre um momento delicado do mandato de Lula, quando ele teria
pronunciado indevidamente algo que afetasse sua imagem enquanto
presidente e enquanto suposto candidato à reeleição.
Para entendermos melhor isso, vejamos o que a atualidade da cena
temporaliza. O presente dessa cena enunciativa congrega enunciações
relativas ao terceiro ano do primeiro mandato de Lula, quando, segundo
informações não oficiais, ele pleiteava a conquista de um segundo mandato, a
vigorar entre os anos de 2007 e 2011. Nesse sentido, consideramos que a
atualidade compreende, ou melhor, está reportada em noticiários que a
imprensa jornalística divulgara a respeito da transição presidencial e, mais
especificamente, a uma reportagem sobre uma crise na economia brasileira,
publicada na mesma edição em que a charge acima fora divulgada. Nessa
reportagem, o editor reportava-se, de um lado, a um episódio que comprometia
a permanência do então ministro da fazenda Antônio Palocci no Governo Lula.
De outro lado, o editor fazia menção à postura do presidente diante de tal
episódio, o que comprometeria, também, a sua permanência no cargo.
Esse episódio pode ser compreendido, em boa medida, pela
declaração da então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, que
desclassificava ferrenhamente a política de Palocci, por considerá-la pouco
flexível. Uma das justificativas dessa crítica era o baixo crescimento do PIB
Produto Interno Bruto –mensurado em 3%, índice muito baixo naquele
momento do ano, se comparado aos de outros países emergentes, como
China, Rússia, Indonésia, Argentina, dentre outros. Além disso, a taxa de
desemprego em outubro daquele ano também comprometia a longevidade de
Palocci no Governo: segundo pesquisas do IBGE, quase não houvera abertura
de vagas (9,6%) em novembro, s próximo do Natal, período em que a oferta
de empregos normalmente costuma aumentar, principalmente no comércio. Na
ocasião, Lula teceu um elogio a Palocci, considerado por Rousseff como
ridículo e incoerente: “Mexer no Palocci seria o mesmo que tirar o Ronaldinho
do Barcelona. Ele é de uma competência acima da média das pessoas que
passaram pela Fazenda no Brasil” (ARRUDA; CUNHA, 2005, p.26-9). Caso
não retificasse em público o que declarou, o presidente poderia ver sua
reeleição comprometida, que o acontecido precedia o primeiro semestre de
134
2006, quando ele deveria buscar, junto ao eleitorado brasileiro, um favoritismo
e uma credibilidade para lograr um segundo mandato.
Talvez se pudesse dizer, principalmente com a citação acima, da fala
de Lula, e com o lide da reportagem “Índices sobre desemprego e renda dão
sinais de que a política econômica perde lego e o ministro da Fazenda
afrouxa a corda para não perder a majestade” que a revista Isto é pretendia
colocar mais ainda em relevo as críticas à declaração descuidada do
presidente. A publicação da cena (9) é um dos indícios que temos para
corroborar essa pretensão da revista, no sentido de que as charges
jornalísticas normalmente servem à pretensão de crítica que alcance um amplo
grupo de leitores interessados no problema tematizado.
Temos, aí, os primeiros elementos para se pensar no funcionamento
do pronome “eu” na cena em análise. De acordo com a perspectiva teórica da
enunciação que norteia a nossa discussão, a funcionalidade do pronome “eu”
na charge não se estabelece unicamente em virtude da articulação do pronome
com outros termos da superfície textual da cena. Além disso, na perspectiva
teórica da enunciação, fazer análise do funcionamento do pronome “eu” na
cena enunciativa (9) não é analisar como a circunstância política relatada
orienta o uso do pronome na interlocução: “Analisar enunciativamente um texto
não é considerá-lo no momento e lugar em que se deu, mas é analisar como a
memória do discurso, o interdiscurso, faz funcionar a língua em um presente”,
(GUIMARÃES, 1999, p.114).
No caso da cena, o Locutor mobiliza referentes e sentidos
consolidados em uma memória de enunciações que circularam em, no mínimo,
dois campos: o da política e o da sabedoria popular. Noutros termos, o Locutor-
chargista mobiliza da memória histórico social, diferentes percepções sobre um
“objeto”, sobre uma “entidade governamental”, de modo que estes assumam
uma múltipla significação, ancorada na rede de enunciações históricas.
No caso da cena em análise, o pronome “eu” é usado, basicamente,
para fazer remissão a um “Lula presidenciável” e, ao mesmo tempo, a um “Lula
não-presidenciável”, o que se por uma simultaneidade verificada em nível
textual e, ao mesmo tempo, em nível interdiscursivo.
Quanto à interdiscursividade, o “eu”-Lula é amparado por domínios de
memória sustentadores de enunciações que enalteceram a trajetória de Luiz
135
Inácio Lula da Silva, de cidadão comum a homem público, às quais
provavelmente ele recorreria quando se aproximassem as eleições
presidenciais de 2007.
Um desses domínios constituiu-se, por exemplo, de enunciações como
o discurso de posse proferido em de janeiro de 2003, pelo qual o locutor-
presidente lança o Programa Fome Zero, um dos pontos de apoio do locutor
para se fazer passar como a esperança e a solução para problemas crônicos
brasileiros, como a fome.
Essa é uma história antiga. O Brasil conheceu a riqueza dos
engenhos e das plantações de cana-de-açúcar nos primeiros tempos
coloniais, mas não venceu a fome; proclamou a independência
nacional e aboliu a escravidão, mas não venceu a fome; conheceu a
riqueza das jazidas de ouro, em Minas Gerais, e da produção de
café, no Vale do Paraíba, mas não venceu a fome; industrializou-se
e forjou um notável e diversificado parque produtivo, mas não
venceu a fome. Isso não pode continuar assim
49
.
Interessa, para o Locutor-chargista, mobilizar sentidos como esse – de
pretensão de resolução dos antigos problemas brasileiros e aproximá-los
com a atualidade da charge, noticiada pela imprensa jornalística, tendo em
vista a necessidade de se conscientizar a opinião pública a respeito das
discrepâncias que é possível averiguar em problemas brasileiros de ordem
política bem como de ordem econômica, cultural, cotidiana, ecológica.
É a partir desse embate, isto é, a partir do confronto da memória com a
atualidade que a articulação entre “eu” e “sou candidato” ganha pertinência na
materialidade textual da cena, para se sugerir aos leitores que, o “eu” de “eu
sou candidato” referencia, simultaneamente, “um Lula presidenciável” e “um
Lula não-presidenciável”.
Além disso, é a partir do embate entre memória/atualidade que uma
análise de ordem puramente gramatical encontra os seus limites. Com efeito, o
emprego do “eu” na cena em pauta não é uma mera atualização da cadeia de
pronomes pessoais de que a língua dispõe. Além disso, não é um uso
meramente com a função de substituir estruturalmente o referente-substantivo
“Lula”, o que tem validade para as outras cenas chargísticas que iremos
49
Trecho do discurso de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em de janeiro de
2003, disponível em www.info.planalto.gov.br/exec/inf_discursosdata1.cfm. Acesso em
outubro de 2007.
136
analisar no presente capítulo. O eu” articula-se com outros elementos da
tessitura textual da cena (9), a saber, a expressão “Boca Fechada”, que por
sua vez, pode ser considerada um recorte de enunciações circunscritas em
domínios da memória interdiscursiva.
Como exemplo, cabe-nos lembrar das enunciações emolduradas em
épocas de consolidação da Bíblia Sagrada, a qual reúne versos escritos por
Salomão, a propósito da sabedoria humana. Como exemplo, vale ressaltar,
aqui, o verso “Até o insensato passará por sábio, se ficar quieto (Provérbios
17, v.28a)
50
. para tornar corrente um conselho acerca do momento de um
dever falar, suas conveniências e suas inconveniências, quando desrespeitado
por alguém que não tenha comedimento ao se pronunciar.
Expressão ressonante disso foi e é continuamente produzida, no âmbito
da sabedoria popular. A título de ilustração, o domínio popular brasileiro, em
suas mais variadas nuances locais, abriga as seguintes expressões: “Boca
fechada não entra mosquito” (MG), “Cala-te boca (MG), “Abafa o caso” (MG),
“Boca que fala, não mastiga” (MS), “Boca calada é remédio” (BA); no domínio
popular castelhano, inclusive, dizia-se “No tener pepitas en la lengua”, para
fazer menção a partículas presas na língua das galinhas, obstruindo-lhes o
cacarejo. Quando não existissem, o cacarejo ficar-lhes-ia livre, solto e,
provavelmente, descontrolado, incômodo, talvez pela desafinação dos sons
produzidos.
Em resumo, temos um caso de funcionamento pronominal na charge que
implica um Locutor-chargista preocupado em sugerir uma “dupla possibilidade
de ancoragem” (DIAS, 2005) dos pronomes pessoais, a “objetos” demarcados
nas textualidades da charge e dos noticiários e, ainda, a “objetos” cuja natureza
está dispersa no interdiscurso.
Mesmo quando não houver o uso de ditados populares, a concomitância
da multiplicidade e da genericidade enunciativa parece ser o caso de cenas
como a que segue, analisada, desta vez, de forma breve, em virtude do espaço
destinado ao desenvolvimento do segundo capítulo.
50
A BÍBLIA SAGRADA. Ver Referências Bibliográficas.
137
Cena (10)
O “você” do enunciado destacado na parte inferior de (10), de acordo
com as análises que viemos desenvolvendo até aqui, aponta para a atualidade
dessa cena, para as caricaturas empregadas e, também, para os domínios
de interdiscursividade que intervêm constitutivamente. E é no confronto de
“objetos referentes” situados em uma atualidade com aqueles arregimentados
em regiões do interdiscurso que o funcionamento do “você” de (10) pode
começar a ser entendido.
Em linhas gerais, a atualidade dessa cena define-se por um
aglomerado de enunciações sobre o uso indevido de cartões corporativos
concedidos a funcionários públicos, pelo então presidente da República
Fernando Henrique Cardoso, em 2001. A concessão estava condicionada à
prestação de contas dos gastos de funcionários em problemas emergenciais. O
agravante foi que o uso do cartão passou a ser cada vez mais indevido no
decorrer dos anos de 2001 até o momento atual (1º semestre de 2008), o que
ganhou cada vez mais visibilidade na imprensa jornalística, a eclodir
bombasticamente no governo Lula.
Fonte
: Folha de São Paulo, terça-feira, 05 de fev. de
2008, Caderno Opinião
138
Nesse sentido, podemos dizer que a multireferencialidade do “você” se
estabelece nas múltiplas direções enunciativas que esse pronome adquire na
cena: o “você” de (10) aponta para as enunciações que formam a atualidade da
cena; apontam para as caricaturas ilustradas, que encenam momentos de
lazer dos quais nem todos os cidadãos brasileiros podem desfrutar, sobretudo
aqueles de baixo poder aquisitivo; o “você” recorta, também, domínios do
interdiscurso, que se presentificam na cena sob a forma de espaços de
memória. Uma dessas memórias diz respeito àqueles sentidos como os
evocados pelo “você” da cena (7); sentidos sustentados numa rede de
acontecimentos enunciativos passados, que foram e continuam sendo a base
para a produção de dizeres; trata-se de dizeres sobre a posição subalterna,
economicamente falando, em que se encontra boa parte da população
brasileira em relação à elite econômica do Brasil, sobretudo a parte dessa elite
representada por alguns integrantes do Legislativo, do Executivo e do
Judiciário, aos quais é delegado o Cartão Corporativo, como sugere a
caricatura de um político em (10).
Ainda com relação à multiplicidade referencial do “você” de (10), um
dos aspectos mais importantes que queremos mostrar é que o pronome aponta
para, no mínimo, dois perfis de pagantes da fatura dos Cartões Corporativos:
os pagantes que são titulares dos respectivos Cartões Corporativos; os
pagantes indiretos, que acabam assistindo ao desvio de verbas públicas, em
prol de falcatruas políticas praticadas por alguns representantes da política.
Visto que quase todos os cidadãos civis, independentemente do poder
aquisitivo, são obrigatoriamente contribuintes do Governo, por via dos impostos
pagos, a cena chargística tenta envolver esse “quase todos” no tema em pauta.
Para isso, o “você”, ainda que orientado pela multireferencialidade que
acabamos de analisar, sofre, também, a orientação da genericidade referencial,
uma vez que somos muitos os contribuintes que, involuntariamente, nos
encontramos na condição de pagantes das mordomias vividas por alguns
governantes, sobretudo por aqueles a quem as mídias jornalísticas dispensam
maior enfoque:
“Matilde Ribeiro A ex-ministra da Igualdade Racial, campeã nos
gastos com cartão corporativo em 2007, acumulou 171 500 reais em
despesas, incluindo uma compra num free shop e pagamentos em
139
bares e restaurantes no período em que estava de férias. Caiu no
último dia 1º [de fevereiro]”, Veja, 13 de fevereiro de 2008, p.55.
Mesmo tendo o seu uso afetado também pela genericidade
enunciativa, além é claro da predominância da multiplicidade enunciativa,
acreditamos essa genericidade é mais pontual que a genericidade que orienta
a relação dos pronomes “Quem/ Aquele que” na textualidade dos provérbios. O
motivo disso consiste, principalmente, no fato de que são apenas aqueles
grupos de reivindicações (enunciações) de pessoas mais incomodados com o
referido problema, que servirão de escopo referencial para o “você” de (10).
O efeito de uma análise como a que acabamos de desenvolver para o
nosso trabalho consiste em um maior conhecimento, ou seja, consiste em uma
caracterização relativamente avançada da multireferencialidade enunciativa.
Assim como a relação que traçamos entre essa noção e as noções de
polissemia, homonímia e ambigüidade, (seção 2.5, capítulo 2), a relação dos
referidos modos de enunciação se constituem em pontos de partida para
futuros trabalhos.
3.3.6 Multireferencialidade enunciativa de caráter especificador
Refletiremos sobre a relação entre especificidade e multiplicidade
enunciativa a partir da cena (11), em comparação com as cenas (8), (9) e (10).
Em seguida, apontaremos o efeito que uma reflexão como essa pode surtir em
nossas análises.
140
Cena 11
Fonte: Estado de Minas, quinta-feira, 08 de maio de 2008, Caderno Opinião
Sem dúvida, o “você” de (11) contrai relação com a textualidade dessa
cena quando pensado em relação à atualidade que lhe confere uma
temporalidade e, também, aos domínios do interdiscurso que intervêm
decisivamente sob a forma recortes de memória.
Esse “você” delimita escopos de referência nos acontecimentos
constituídos, principalmente, no âmbito das mídias jornalísticas e, por essa
razão, podemos dizer que o pronome se ancora em “referentes”
sustentados, sobre um suposto dossiê contendo gastos de despesas relativas
ao governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Nesse caso, o
“você” ganha ancoragem em trechos de enunciações como aqueles
destacados na passagem a seguir:
Ou mentiram sobre o "banco de dados", que, na verdade, é dossiê
(aliás, era arquievidente), ou não têm, nem um nem a outra, a menor
idéia do que se passa nas salas ao lado das suas (ou acima ou
abaixo, sabe-se lá). Caem no ridículo também outros membros do
governo que cobraram a revelação das fontes. Fingem ignorar que
preservar a fonte é um direito dos jornalistas, como todo mundo
sabe. E é também má-fé, porque trata de pôr no mesmo quem
preparou a mensagem (um "crime", no dizer de nota oficial da
própria Casa Civil) e o mensageiro (quem a divulgou). (Folha de São
Paulo, 05 de abril de 2008, seção Editoriais). (destaques nossos).
141
Esse é um exemplo de resposta polêmica que a imprensa devolveu à
indignação do presidente e da ministra Dilma Roussef, o que foi encenado na
cena (11), principalmente, por meio da figura de um abacaxi. Fica difícil não
reconhecer que o “você”, nesse caso, contrai uma relação orgânica com a
figura do abacaxi, que, por sua vez, recorta uma memória sustentadora de
sentidos de que toda vez que nós, brasileiros, temos uma polêmica a resolver,
temos um abacaxi para descascar”. No cruzamento dessa memória com a
atualidade de (11), concluímos que o “você” constitui referência a uma “Dilma-
problema” ou “Dilma-polêmica”, ou seja, na ótica da mídia, de um modo geral,
Dilma, responsabilizada por muitos pelo vazamento das informações, é
assemelhada a um “problema-abacaxi” a ser descascado, ou melhor, entendido
por Lula, que, por sua vez, já enfrentava outras “dores de cabeça” durante seus
dois mandatos presidenciais.
Sem mais demora na análise da cena (11), entendemos que a
multireferencialidade orienta o “você”, de modo que este aponte para a idéia de
alguém que pudesse oferecer solução e controle de informações sigilosas do
governo federal e, ao mesmo tempo, para a idéia de uma pessoa envolvida em
complicações e vazamento dessas informações, vazamento que, na ótica de
grande parte da imprensa, é atribuído à ministra Dilma Roussef. Daí a relação
do “você” com a figura do abacaxi.
Especificamente à amplitude referencial que esse “você” alcança na
textualidade de (11), entendemos que uma maior delimitação do escopo
referencial do pronome, contrariamente ao pronome “você” usado na cena (8) e
ao “você” presente em (10), cujas respectivas orientações, dadas
principalmente pelo modo de enunciar multireferencial, adquirem o caráter de
uma multireferencialidade mais ampla, isto é mais genérica.
Com a relativa especificidade do pronome “você” em (11), o chargista
Son Salvador deixa de ser visto na condição de sujeito de intenções próprias e
passa a ser visto como aquele que é tomado pelo funcionamento enunciativo
do gênero charge, historicamente voltado para o envolvimento e para a
formação da a opinião pública. Relativamente à cena (11), esse envolvimento
se em prol de simbolizar a ministra como aquela que representa uma
ameaça à ética do governo Lula, ou a uma suposta tentativa de Dilma em
142
“descortinar” falcatruas de governos passados para conseguir se eleger nas
próximas eleições presidenciais.
Para exemplificar um pouco mais a concomitância dos modos
multireferencial e especificador em uma cena, tratemos da ocorrência do
pronome “eu” de “Issaí! Eu sou candidato”, presente na cena (9).
Embora tenhamos reconhecido que a 2ª ocorrência de “eu” em (9) é
peculiarizada pela multireferencialidade e pela genericidade enunciativas,
acreditamos que a ocorrência do “eu” da cena é afetada pelo modo
especificador, haja visto que a imprensa, na ocasião da atualidade daquela
cena, queria dar ênfase aos rumores (não-oficiais), de que Lula concorreria de
fato a um mandato como presidente. Ou seja, o uso do “eu” possibilita
referência a um Lula de um primeiro mandato e, também, a um Lula de um
segundo possível mandato, o que se explica pelos recortes de memória que
intervêm, pela atualidade e pela textualidade da cena.
Assim sendo, estamos diante do uso do “eu” que é regulado por
uma multireferencialidade decisivamente mesclada ao modo especificador. Ou
seja, a duplicidade de escopos referenciais do eu ocorrem em função de
apontar para uma faceta “realista” e uma faceta “ficcional” do presidente. O que
importa, pois, é que o “eu delimita um campo de referência cujos sentidos o
relativos ao presidente da República e não a um amplo grupo de pessoas que
se encaixem na enunciação desse “eu”.
3.4 A predominância da multireferencialidade enunciativa na
constituição da normatividade de cenas chargísticas
Conforme tentamos ilustrar, parece ser comum o uso de pronomes
“eu” e “você” na textualidade de cenas chargísticas, orientado pelo que
caracterizamos como multiplicidade referencial, ou multireferencialidade
enunciativa.
Consideremos a cena a seguir:
143
Cena 12
Fonte
: Folha de São Paulo, sábado, 05 abril de 2008,
Caderno Opinião
Esse procedimento enunciativo, via de regra, costuma orientar a
relação dos pronomes com a textualidade de cenas chargísticas de modo que
o leitor se veja envolvido pela trama textual e incomodado pelo jogo de
linguagem que se estabelece em cenas enunciativas como essa.
Ao ocorrer isso, o leitor acaba tendo seu olhar direcionado para um
“objeto-referente”, como é o caso do aluno assentado na carteira de sala de
aula, e depois, é convidado a refazer o direcionamento referencial que o “você”
sugere, desta vez, à carteira da sala de aula.
Entretanto, ao ser convidado a participar dessa duplicidade de
“referentes”, não queremos dizer que tal duplicidade seja proposta na cena (12)
para ser resolvida. Pelo contrário, a multiplicidade necessita da simultaneidade
de sentidos, sendo que esses sentidos são sustentados no presente da cena
em análise, como também, em uma memória sustentadora de sentidos
efetivados em outras instâncias e momentos enunciativos. Estamos tratando
daqueles sentidos segundo os quais a gestão da educação pública no Brasil
prioriza mais os recursos materiais que o elemento humano, o que pode ser
144
interpretado pela relação orgânica que o “você” contrai com a caricatura do
aluno e, ao mesmo tempo, com a figura da carteira de aula personificada, que
ganha, na cena, o atributo de alguém que recebe atenção, vale dizer,
investimento “nota 10”, por parte dos gestores da educação pública, em
detrimento do componente humano professores e alunado que, em termos
salariais, costumam receber baixo investimento, isto é, investimento “nota E”.
Análises como as que desenvolvemos reiteram a tese de Guimarães,
segundo o qual a questão da referência deve ser estudada como “a
particularização de algo na e pela enunciação”, (GUIMARÃES, 2005a, p.9). Ou
seja, o acontecimento é ponto de partida para se estudar a língua em uso, um
uso atrelado à atualidade e à rede histórica de enunciações.
É com base em Rastier (1998, 2000), Rastier; Pincemin (1999) e com
base em Foucault (1996), ambos mencionados na seção 1.5 do capítulo 1, que
desenvolveremos, de agora em diante, uma breve reflexão sobre a relação
entre a multireferencialidade e uma normatividade que subjaz o gênero charge
jornalística. Caminharemos, assim, no sentido de um encerramento para o
presente capítulo.
Acreditamos que a normatividade do gênero charge jornalística está
longe de ser integralmente alcançada. O que aqui oferecemos é uma
contribuição para tal propósito. Uma contribuição fundamentada nas análises
desenvolvidas, as quais nos permitem afirmar que as “leis do dizer” que
viabilizam a publicação diária de cenas chargísticas eficazes no que diz
respeito à captação de um público envolvido pelo humor e pela crítica, são “leis
do dizer” consolidadas pelos seguintes fatores: a) o agenciamento que uma
cena chargística oferece àquele que diz, para que este estabeleça filiação a
regiões do interdiscurso e se veja envolvido em recortes dessa dimensão que
intervêm em uma cena sob a forma de espaços de memória; b) o modo de
enunciação multireferencial, que orienta, predominante e recorrentemente, a
relação do “eu” e do “você” nas textualidades chargísticas, modo este que
sistematiza os recortes efetivados no âmbito da interdiscursividade; c) o
compromisso temático de uma cena com enunciações situadas no âmbito de
uma atualidade que lhe é relativa; d) a necessária relação orgânica que os
pronomes contraem com as caricaturas e com outras estruturas lingüísticas
disponíveis na textualidade das cenas.
145
Falar de normatividade do gênero em pauta contribui, ainda, para o
desenvolvimento da Semântica de normas, também denominada Semântica de
Textos, representadas aqui pelos trabalhos de Rastier (1998, 2000) e Rastier;
Pincemin (1999). Relativamente a essa questão, trazemos o que Rastier;
Pincemin (1999, p.87.) visam a respeito da noção de gênero enquanto princípio
organizador de textos que, reunidos de acordo com uma prática social e de
acordo, também, com traços lingüísticos comuns, formam um corpus ou
subcorpus válido, como o que apresentamos na fundamentação metodológica
e que foi submetido a análises no terceiro capítulo. Em nosso caso, o
subcorpus analisado bem funcionou como árbitro das regularidades e das
variações da multireferencialidade enunciativa que as diferentes formulações
chargísticas apresentaram. É o que sugere Rastier na passagem a seguir:
Les genres textuels sont un paramètre importante la construction
d’un corpus. (...) Les genres sont déterminés par les pratiques
sociales. Ils sont reconnus et décrits par la linguistique, car c’est une
réalité intertextuelle, par laquelle peuvent s’expliquer certaines
affinités et certaines régularités entre des textes.
Isso corrobora em boa medida o que Bakhtin (1992, p.282) havia nos
apontado acerca dos gêneros discursivos:
Se os gêneros do discurso
51
não existissem e nós não os
dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no
processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez
cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível.
De fato, é como Bakhtin nos havia sinalizado: se tivéssemos de
inventar sempre um gênero de texto para mobilizar a atenção de um público
para finalidades como as apontadas para a charge jornalística, ser-nos-ia
impossível uma relação entre aquele que fala e aqueles para quem se fala. É
graças às regularidades que vislumbramos, que o chargista tem um parâmetro
a seguir e, ao mesmo tempo, regras a deslocar, isto é a variar, o que lhe
confere a possibilidade de individualização com relação a outros chargistas.
51
A gêneros do discurso, Bakhtin (1992, 262) denomina os “tipos relativamente estáveis de
enunciados” que cada esfera social (campo de atividades) elege como formas para uma efetiva
comunicação.
146
Graças às regularidades apontadas, o presente trabalho pôde
contribuir com a semântica de normas, que se ocupa em traçar uma
estereotipia e uma doxa para o léxico relativo a um gênero. A propósito disso,
Rastier (2000, p.7) aponta : “(...) l’étude de la stéréotypie permet de lier lês
occurrences de lexies à des formes textuelles”
52
. Como exemplo disso, o autor
cita (...) le corpus roman 1830-1970 de la banque Frantext através do qual o
autor procede a uma breve reflexão sobre a relação que as expressões “ao
de” e “aos pés de” adquirem no referido corpus. Composto de mais de 350
ocorrências, Rastier observou que “(...) dans le même corpus, au pied de
(singulier) est toujours un localisant dans une description, aux pieds de (pluriel)
appartient toujours à un récit d’imploration ou de vénération (...)”
53
.
As palavras de tais expressões no corpus mencionado têm seu uso
presidido pela doxa que, segundo Rastier (2000, p.8), tem sua concretização
mais simples em um léxico: “la doxa commande en effect la constitution des
classes lexicales minimales (taxèmes), et par la définition différentielle des
sémèmes et des sèmes em leur sein”
54
.
Na seqüência, Rastier reconhece que o estudo da doxa é solucionador
das reflexões que se ocupam da relação entre léxico e texto, uma vez que
sempre a questão da ideologia a se pensar:
l’étude des normes sémantiques, en tant que’elles manifestent ou
instituent des doxa, peut permettre de revenir par um voie nouvelle
au problème du rapport entre idéologies et formations discursives,
posé non plus au sein d’une philosophie politique, mais des sciencies
du langage
55
.
Rastier apenas coloca a questão da ideologia como direção de
pesquisa em seu trabalho, o que não é o nosso caso, pois tentamos ilustrar
com as nossas análises, as regularidades morfossintáticas comuns aos
pronomes “eu” e “você” como regularidades apenas, e não regras, além do fato
52
Os estudos da estereotipia permitem ligar as ocorrências de lexias às formas textuais.
(Tradução nossa).
53
(...) o mesmo corpus, ao de (singular) é sempre um localizante em uma descrição, ao pés
de (plural) pertence sempre a um ato de imploração ou de veneração (...).(Tradução nossa).
54
A doxa comanda de fato a constituição de classes lexicais mínimas (taxemas) e por a
definição diferencial de sememas e de semas em seu interior. (Tradução nossa).
55
O estudo de normas semânticas, na medida em que elas manifestam ou instituem doxa,
pode permitir o retorno, por uma nova via, do problema da relação entre ideologia e formações
discursivas, colocadas não mais no âmago de uma filosofia política, mas de ciências da
linguagem. (Tradução nossa).
147
de que a morfossintaxe de um pronome, qualquer que seja a cena onde ele for
usado, é uma morfossintaxe, incontornavelmente, afetada pela
interdiscursividade e, além disso, pelo presente do acontecimento. Pelo menos
é o que tentamos ilustrar com a caracterização da multireferencialidade
enunciativa que orienta, predominantemente, o uso do “eu” e do “você” nas
cenas chargísticas analisadas.
148
Considerações finais
Retomaremos, de agora em diante, os principais resultados que
obtivemos quanto à reflexão sobre a multireferencialidade enunciativa na
orientação dos pronomes “eu” e “você”, em textualidades chargísticas.
Sinalizaremos, ainda, os possíveis aprofundamentos que as nossas análises
podem adquirir no desenvolvimento de futuros estudos no campo da
Lingüística, sobretudo aqueles voltados para os estudos sobre gêneros de
texto.
Relativamente aos resultados obtidos nas reflexões empreendidas,
esperamos ter mostrado, com o presente estudo, que a gramática e
textualidade não se inter-relacionam de forma aleatória em um gênero textual.
É pelas peculiaridades de um ou mais de um modo de enunciação
(multireferencialidade e/ou especificidade e/ou genericidade enunciativas) que
as categorias gramaticais assumem uma orientação peculiar na textualidade de
um gênero.
Vimos que, com efeito, a multiplicidade enunciativa é um modo de
enunciar predominante e recorrente na relação entre “eu”, “você”, as
caricaturas, as falas, a atualidade das charges, bem como a relação de todos
esses elementos com os recortes efetivados no âmbito da interdiscursividade.
Vimos, ainda, que a multireferencialidade enunciativa não detém exclusividade
nos apontamentos levantados, haja visto que a charge é um gênero de texto
que pode congregar, em sua materialidade, uma gama de figuras
caricaturadas, fotografias, ditados procedentes de outros gêneros de texto.
Assim, concluímos na análise de cenas como as de número (8), que o modo de
enunciação genérico, característico do gênero proverbial, também pode co-
orientar, juntamente com a multireferencialidade enunciativa, a relação entre os
pronomes e a textualidade das charges. Concluímos, também, que a
especificidade enunciativa pode, juntamente com a multireferencialidade,
peculiarizar o uso de pronomes em charges, conforme tentamos ilustrar com a
análise da cena (11).
E foi a partir da noção de modo de enunciar que passamos a entender
como a charge, de fato, faz referência a objetos, porém, objetos que são
definidos, vale dizer, particularizados no acontecimento do dizer, por múltiplas
149
direções de sentidos que a linguagem chargística simboliza sobre os mesmos,
seja através da relação das charges com textos de jornal, seja através da
relação das charges com enunciações passadas, às quais sequer temos
acesso em sua totalidade. Em outras palavras, uma dinâmica como essa que
acabamos de apontar, leva em consideração a atualidade e a textualidade de
cada texto chargístico observado, bem como os recortes do interdiscurso que
aí intervêm sob a condição de espaços de memória.
Nesse sentido, vimos que o chargista não dispõe de uma absoluta
autonomia para publicar uma charge. um modo histórico, socialmente
legitimado de se publicar uma charge, modo do qual o chargista consegue
participar quando passa da condição de indivíduo para a condição de sujeito
predicado pelo lugar social de locutor-chargista. Esperamos ter mostrado que é
esse lugar que lhe confere as possibilidades de teatralizar o papel de “autor
das coletividades” e indivíduo que tenta se diferenciar na imprensa opinativa ao
abordar aspectos inesperados, e de modos inesperados. Esses papéis lhe
possibilitam transitar entre o sério e o rizível, o que acaba por ser uma forma
histórica de apreender a atenção do leitor e levá-lo a endossar, refutar, refletir,
enfim, sobre a problemática que ali é colocada em pauta.
Efetivamente, isso contribui para a diferença que vai se instalando
entre um e outro gênero de texto, bem como para o uso peculiar das categorias
gramaticais da língua portuguesa, tendo em vista as especificidades histórico-
enunciativas de cada gênero.
Ao falarmos de especificidades histórico-enunciativas da charge, na
seção 3.4, esperamos ter contribuído, ainda, com a semântica de normas
relativas aos textos, propostas pelos trabalhos de Rastier (1998, 2000, 2005) e
Rastier; Pincemin (1999). Ancorados na semântica de normas, esperamos que
as nossas análises apontem para a necessidade de se pensar a normatividade
de um gênero, tanto do ponto de vista de sua homogeneidade, quanto de sua
heterogeneidade, o que se tornou possível pelas premissas da Semântica
Histórica da Enunciação, cuja tese principal é a de que a materialidade da
língua é interdependente da rede histórica de discursos, que retornam, de
alguma forma, a cada novo acontecimento de linguagem. Ainda com relação à
proposta de Rastier, esperamos ter contribuído para o desenvolvimento de uma
nova perspectiva de análise de gêneros textuais.
150
Dentre todas essas questões refletidas, a mais intrigante, ao nosso
ver, é a questão da referência através dos pronomes que são usados nos
textos. Uma constituição da referência que se na relação entre a ngua e a
dispersão de referentes simbolizados num complexo de falas passadas,
presentes e, também, falas que ainda estão por se efetivar.
Mesmo sendo envolvente, essa perspectiva histórico-enunciativa de se
estudar uma questão tão antiga como a referência, e mesmo sendo pertinente
vinculá-la ao estudo de um gênero de texto, ainda não nos damos por
satisfeitos e acomodados com a presente dissertação de mestrado.
Se por um lado, a presente dissertação se concentra em uma
Lingüística teórico-descritiva, por outro lado, o trabalho pode suscitar
discussões no campo da Lingüística aplicada. Embora não tenhamos tido o
objetivo de traçar uma relação entre as nossas análises e o cotidiano da leitura
e da produção de textos em sala de aula no ensino de língua materna,
acreditamos que uma pesquisa como essa que desenvolvemos possa ser uma
base legítima para se desenvolver aquilo que Dias (2001, p.78) havia
sinalizado:
Procuramos, ao levantar a questão da perspectiva enunciativa, tendo
como foco as três classes de palavras [substantivo, adjetivo e
pronome], apontar para uma possibilidade de trabalho com
categorias gramaticais além do eixo de pensamento platoniano
(linguagem como representação do mundo), que fundamenta o
ensino de gramática nas nossas escolas. O desafio está em criar
novas atitudes no ensino da língua. (...) É preciso que as palavras
sejam apresentadas aos alunos como entidades diferentes da
realidade que elas possam eventualmente representar. É possível
formular um conhecimento sobre substantivo, adjetivo ou pronome
apontando para alguns aspectos da enunciação, especificamente,
procurando mostrar que essas palavras adquirem um papel
importante na construção do sentido do texto.
A nossa contribuição quanto a isso certamente não levou em conta a
questão do cotidiano escolar, ou seja, não objetivamos oferecer uma
transposição didática para a sala de aula, do que aqui refletimos. Mesmo
assim, o trabalho se encerra como uma contribuição que tentou formular
conhecimento sobre a relação entre os pronomes e o gênero chargístico,
relação esta que considera a tensão entre a materialidade da língua, de um
lado, e as condições histórico-enunciativas de todos os elementos constitutivos
das charges.
151
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEREDO, J.C. (org.) Letras & Comunicação. Uma parceria no ensino de
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p. 138-150.
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