apresenta fins simbólicos ou normativos, permanecendo enquanto as práticas e saberes
tradicionais veicularem valor e significado ao grupo que deles se apropriou.
É certo que a presença do elemento contemporâneo em Contos gauchescos, apesar de
portador da transformação cultural, não assegura que sua voz seja de fato expressa e ouvida,
isto é, não garante que esteja efetivamente representado o conflito entre as vozes de
continuidade e de subversão, já que predomina o ponto de vista do ancião sobre o passado e
sua mutação. Submetida ao olhar de Blau, a circunstância contemporânea é traduzida não em
termos de progresso desejável, mas de perdição humana e cultural.
Contudo, o confronto entre as vozes sociais aparece, por vezes, incorporado à fala do
tapejara, assinalando a construção polifônica
17
do discurso, em que o narrador é representado
como uma autoconsciência
18
. Nesse sentido, ao assimilar o olhar alheio e responder a ele,
Blau Nunes manifesta certa consciência de si mesmo e de seu grupo social, como se vê nas
seguintes passagens:
Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas etiquetas e
pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!... O tal rei nosso senhor,
não se enxergava, mesmo!...
E logo com quem!... Com a gauchada!... (LOPES NETO, 2000, p. 127).
Galego, naquele tempo, era gente, vancê creia! Estância, era dele; negócio, era dele;
oficial, era só ele; era arrematante das sisas, ele; surgião, ele; padre-vigário, ele; e pra
botar a milicada em cima dos continentistas... era ele!...
E cada presilha!...
Gente da terra não valia nada!...
Que é que vancê está dizendo?... O que nós somos hoje a eles devemos? Qual! É
verdade que uns inventaram plantação de trigo... – isso, enfim, era bom... sempre era
uma fartura; noutras casas plantavam e fiavam linho... – também não era mau, isso;
noutras cardavam lã... Algum mais vivaracho botava tenda e vendia mechiflarias ou
prendas de ouro... nalgum trocava-se uns quantos couros por um pão de açúcar, e
pipote de cana por qualquer meia dúzia de vacas. E sempre corria alguma dobla, de
salário, e algum cruzado pela peonada de ajuste.
Mas, como quera... eram mui entonados, os reinóis (LOPES NETO, 2000, p. 106).
17
Conforme a concepção de Bakhtin (1981), a polifonia é um dos efeitos da construção dialógica do discurso,
através do qual torna-se possível escutar as vozes sociais em embate no texto, ou ao menos algumas delas. A
monofonia, ao contrário, consiste no efeito de sentido em que o diálogo é mascarado e uma voz apenas se faz
ouvir.
18
Flávio Loureiro Chaves (2001) observa que o aparente conformismo de Blau Nunes, diante do paraíso da
estância democrática do passado, estrutura-se nos limites de sua “consciência possível”. Embora não possa
desmitificar com clareza esse mundo, o narrador desloca a visão dominante do passado a partir do seu ângulo de
dominado, ao transformar as personagens da história oficial em personagens secundárias das suas narrativas e ao
acusar a marca da propriedade mesmo naquele tempo.