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CARMEM LÚCIA GOMES DE SALIS
ESTATUTO DA TERRA: ORIGEM E (DES) CAMINHOS DA PROPOSTA
DE REFORMA AGRÁRIA NOS GOVERNOS MILITARES
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – UNESP – Universidade Estadual
Paulista para obtenção do título de Doutor em
História (Área de Conhecimento: História e
Sociedade)
Orientador: Prof.º Dr. Claudinei Magno Magre
Mendes
ASSIS
2008
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
De Salis, Carmem Lúcia Gomes
D441e Estatuto da terra: origem e (des) caminhos da proposta de
reforma agrária nos governos militares / Carmem Lúcia De
Salis. Assis, 2008
230 f.
Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de
Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Reforma agrária. 2. Colonização 3. Governo militar. 4.
Castello Branco, Humberto de Alencar, 1900 – 1967. I. Título.
CDD 333.1
981.06
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CARMEM LÚCIA GOMES DE SALIS
ESTATUTO DA TERRA: ORIGEM E (DES) CAMINHOS DA PROPOSTA
DE REFORMA AGRÁRIA NOS GOVERNOS MILITARES
Banca Julgadora:
Prof.º Dr. Claudinei Magno Magre Mendes – Orientador
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – Câmpus de Assis
Prof.º Dr. Francisco Graziano Neto
Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo
Prof.º Dr. José Geraldo Alberto Bertoncini Poker
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – Câmpus de Marília
Prof.º Dr. Áureo Busetto
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – Câmpus de Assis
Prof.º Dr. Milton Carlos Costa
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – Câmpus de Assis
Assis, 27 de agosto de 2008.
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Aos meus pais, Jandira e Manoel Gomes, por me
ensinarem que nada é impossível, mesmo que as
contingências da vida tentem provar o contrário.
Amo vocês infinitamente!
Ao André, pelo seu amor, compreensão, apoio,
incentivo e companheirismo irrestrito. Obrigado
por ter sido o porto seguro em meio ao caos.
À Ana Catarina De Salis (in memoriam), que nos
deixou cedo demais. Mas sei que de onde estiver,
estará olhando por nós. Sua luta foi uma luta de
todos nós.
Aos meus sogros, D. Maria e Sr. Andreas De Salis,
pelo incentivo e carinho.
À D. Izaura Ordunha Domingues (in memoriam),
por ter me despertado o gosto pela leitura.
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AGRADECIMENTOS
-Em primeiro lugar e de forma muito especial gostaria de agradecer ao meu orientador,
professor Claudinei Magno Magre Mendes, por acompanhar-me nessa segunda empreitada.
Por sua orientação competente, compreensão, disponibilidade irrestrita, confiança e
respeito.
-Aos meus pais, Manoel e Jandira, que me incentivaram desde a primeira série até agora no
Doutorado. Uma vida de apoio à minha formação.
professora Regina Bruno que, gentilmente, disponibilizou as entrevistas com os
integrantes do GRET.
-À professora Terezinha Oliveira, por suas palavras de apoio e incentivo.
-À professora Célia Penço, pelo apoio desde o início da graduação.
-Ao meu irmão Fábio Gomes e minha cunhada Érica Gomes, sempre presentes em minha
vida. Obrigado pelo carinho e pela dedicação.
-À minha avó pelas orações e meu tio pelo estímulo.
família do meu esposo André. Especialmente D. Maria, que separou de seu arquivo
pessoal notícias de jornais dos idos anos 60 e o Sr. Andreas que me enviava pelo correio
todas as notícias sobre terra que saíam nos jornais.
-Ao querido Guilherme Garcia Velasquez a quem devo agradecimentos não somente pela
parte técnica (abstract), mas, sobretudo pela sua incondicional amizade.
-Aos amigos Gisele Silva Santos e Márcio Grama Hoeppner, pelas longas conversas e
experiências trocadas.
Fernanda Garcia Velasquez Matumoto pela sua amizade e pelos esclarecimentos
prestados sobre a difícil área do Direito.
-Aos amigos Janderrir, Paulinho, Amanda, Rodrigo, Cassiana, Geni e mais uma vez,
Márcio, Gisele e Guilherme que acompanharam o início deste trabalho, dividiram comigo as
angústias e me proporcionaram momentos de descontração.
-Aos meus ex-alunos do Curso de História da UNIPAR pelas mensagens de carinho.
-Às funcionárias da biblioteca da UNIPAR/Umuarama que gentilmente me atenderam,
mesmo não fazendo mais parte do corpo docente da Universidade.
-Às funcionárias da biblioteca da UNESP/Assis, Lucielena e Vânia, pelos esclarecimentos e
paciência na renovação dos livros.
-Aos professores Geraldo Poker e Clodoaldo Bueno pela leitura atenta do texto de
qualificação.
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-À Alexandra Bonifácio que gentilmente aceitou o desafio de revisar o texto.
Origem e (Des) Caminhos da Proposta de Reforma
Agrária nos Governos Militares
RESUMO: A partir da década de 50 intensificam-se os debates em torno da efetivação de
medidas legais que pudessem viabilizar a execução da reforma agrária no país. Com
objetivos ideológicos diversos, direita e esquerda proclamavam a execução da reforma
agrária. Paralelamente a esse debate e como conseqüência deste, seguiu-se um período
marcado por impasses políticos que obstruíram qualquer tentativa de aprovação de uma
legislação agrária para o país. As discussões invariavelmente recaíam sobre os instrumentos,
o alcance e a natureza que a reforma agrária deveria assumir. Após o golpe militar, na
vigência do governo do Marechal Humberto de Alencar Castello Branco ocorreu, para a
surpresa de alguns e inconformismo de outros, a promulgação da Lei n.º 4.504. Sob a
denominação Estatuto da Terra a lei englobava vários instrumentos anteriormente
reivindicados para a execução da reforma agrária. A presente pesquisa objetivou analisar a
origem do Estatuto da Terra no governo Castello e sua trajetória, nos governos militares
posteriores à Castello Branco. Constatou-se que motivação para a organização do Estatuto
da Terra no governo Castello inseria-se numa concepção econômica para o
desenvolvimento nacional, neste sentido o posterior esvaziamento, ou ainda a execução
parcial da Lei, não resultariam do fato dela ter sido elaborada apenas com fins políticos, mas
sim das incompatibilidades dentro do próprio meio militar e das interpretações dos demais
agentes envolvidos na questão agrária.
Palavras-chave: Estatuto da Terra, Reforma Agrária, Governo Castello Branco, Governos
Militares, Colonização.
6
6
Earth Statute: Origin and (un) Ways of Agrarian Reform
proposals on Military governments.
ABSTRACT: Right from the 50’s there was an intensification of debates around the legal
ways that could allow the execution of an Agrarian Reform in the country. With a range of
various ideologies, the right and the left politicians proclaimed the execution of the Agrarian
Reform. At the same time of this debate and as its own consequence, there was began a
period characterized by political obstacles able to obstruct any try of approval of an
Agrarian law to the country. Invariably, all these discussions lead to the instruments, the
magnitude and nature the Agrarian Reform should assume. After the Military Stroke, under
the Marechal Humberto de Alencar Castello Branco Govern, there was a visible surprise of
some and indignation of others as results of the promulgation of the Law n.º 4.504.
Denominated Earth Statute Law, it included many instruments before claimed to the
Agrarian Reform execution. This present research had as its main purpose the analysis of
the Earth Statute origin on Castello’s Govern and also its trajectory on subsequent
governments. It was realized that the motivation for the organization of Earth Statute on
Castello’s Govern was insert into an economic conception to the national development, in
this way an subsequent emptying, or even a partial law execution, would not result in the
fact that it was elaborated only with politics goals, but of incompatibilities inside the
military environment and also inside the interpretation of the other agents evolved to the
agrarian issues.
KEY WORDS: Earth Statue, Agrarian Reform, Catello Branco Govern, Militar Governs,
Colonization.
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SIGLAS E ABREVIATURAS
ACR - Ação Católica Rural
BASA - Banco da Amazônia S.A.
BNDE - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina
CGT - Comando Geral dos Trabalhadores
CIRA - Cooperativas Integrais de Reforma Agrária
CNA - Confederação Nacional da Agricultura
CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CRB - Confederação Rural Brasileira
EME - Estado Maior do Exército
FPN - Frente Parlamentar Nacionalista
GERA- Grupo Executivo da Reforma Agrária
GRET- Grupo de Regulamentação do Estatuto da Terra
IBOPE - Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística
IBRA - Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INDA Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrícola
IPES - Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
JAC - Juventude Agrária Católica
JEC - Juventude Estudantil Católica
JIC - Juventude Independente Católica
JOC - Juventude Operária Católica
JUC - Juventude Universitária Católica
MST - Movimento dos Trabalhadore Rurais Sem Terra
PAEG – Programa de Ação economica do Governo
PCB - Partido Comunista Brasileiro
PCdoB - Partido Comunista do Brasil
PDC - Partido Democrático-Cristão
PIN - Plano de Integração Nacional
PTB - Partido Trabalhista Brasileiro
PNRA - Plano Nacional de Reforma Agrária
PROTERRA - Programa de Redistribuição de Terra e Estímulo à Agroindústria do Norte e
Nordeste
PSD - Partido Social Democrático
PSP - Partido Social Progressista
SPVEA - Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia
SRB - Sociedade Rural Brasileira
STF - Supremo Tribunal Federal
SUDAM - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
SUDECO - Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste
SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
SUNAB - Superintendência Nacional do Abastecimento
SUPRA - Superintendência da Reforma Agrária
SUPRAN - Superintendência Nacional de Reforma Agrária
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SUPRAR Superintendências Regionais da Reforma Agrária
TFP - Tradição, Família e Propriedade
UDN - União Democrática Nacional
UDR - União Democrática Ruralista
ULTAB - União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil
UNE - União Nacional dos Estudantes
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SUMÁRIO
SIGLAS E ABREVIATURAS_____________________________________________________07
INTRODUÇÃO________________________________________________________________10
CAPÍTULO I - AS PROPOSTAS DE REFORMA AGRÁRIA NA CONJUNTURA PRÉ 64:
RUPTURAS E PERMANÊNCIAS ________________________________________________23
1.1 - OLHARES SOBRE AS PROPOSTAS DE REFORMA AGRÁRIA NAS DÉCADAS DE
50/60: CAMPO DE FORÇAS E AS DISPUTAS POLÍTICAS PELA REFORMA AGRÁRIA
NA CONJUNTURA PRÉ 64______________________________________________________23
1.2 - AS REFORMAS DE BASE DO GOVERNO JOÃO GOULART: A PROPOSTA NÃO
APROVADA DE REFORMA AGRÁRIA QUE ANTECEDEU O ESTATUTO DA TERRA
DO GOVERNO MILITAR_______________________________________________________57
CAPÍTULO II - O ESTATUTO DA TERRA: A PROPOSTA DE REFORMA AGRÁRIA DO
GOVERNO CASTELLO ________________________________________________________81
2.1 - O GOVERNO CASTELLO BRANCO E OS FUNDAMENTOS QUE JUSTIFICARAM
FORMULAÇÃO DO ESTATUTO DA TERRA______________________________________81
2.2– GOVERNO REFORMISTA__________________________________________________85
2.3 - A PROPOSTA CAPITALISTA DO GOVERNO – UM LIBERALISMO SOB EXCEÇÃO
______________________________________________________________________________99
2.4 - A FORMAÇÃO DO GRET E O ESTATUTO DA TERRA_______________________112
2.5 - O ESTATUTO DA TERRA E O PROCESSO DE DEFINIÇÃO DOS SEUS
CONCEITOS ESSENCIAIS NO ÂMBITO DO GRET_______________________________138
CAPÍTULO III - OS (DES) CAMINHOS DO ESTATUTO DA TERRA________________161
3.1 - A OPOSIÇÃO E O ESTATUTO DA TERRA__________________________________161
3.2 - (DES) CAMINHOS: A COLONIZAÇÃO DIRIGIDA E A APROPRIAÇÃO À
ESQUERDA DO ESTATUTO___________________________________________________181
CONCLUSÃO________________________________________________________________ 220
FONTES_____________________________________________________________________ 224
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS____________________________________________ 226
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INTRODUÇÃO
Foi então, pela primeira vez, promulgada a
lei agrária que, desde aquela época até hoje,
nunca mais foi discutida sem provocar as mais
violentas comoções. (Tito Lívio, sobre a
primeira lei agrária de Cássio, 486 a.C.)
A reforma agrária tornou-se um dos temas mais debatidos e controversos da
história recente do país, permanecendo no cerne das discussões e inquietações de
pesquisadores, tanto das ciências humanas quanto das ciências agrárias. O montante de
estudos dedicados a esta temática evidencia a permanente inquietação com as problemáticas
advindas da análise da questão agrária. A própria denominação questão agrária foi sendo
gestada ao longo da história brasileira, sendo a reforma agrária a solução “passível e
possível” mais usualmente apresentada.
Ao romper mais de meio século de debates
1
e com a temática sendo
constantemente revigorada, especialmente por agregar elementos novos às velhas”
contradições, o tema da reforma agrária termina por adquirir uma aura de permanência e
circularidade combinando, de acordo com as conjunturas, avanços e recuos na sua
execução.
A partir da década de 50, os debates em torno da concretização de medidas
legais para a efetivação da reforma agrária disseminaram-se pelo país. Tal expansão, sem
dúvida, pode ser entendida como um reflexo do reordenamento político, econômico e social
imposto pelo período pós-guerra e, principalmente, pela Guerra Fria. Direita e esquerda
assimilaram o discurso sobre a reforma como um dos instrumentos principais para que o
país atingisse o “status” de “nação moderna”. Obviamente, a definição de “nação moderna”
não tinha o mesmo significado para ambos os lados, tampouco coincidiam quanto à
natureza da reforma agrária a ser implementada. No entanto, dessa polarização resultou a
emergência da reforma agrária enquanto uma questão essencialmente política que encobria
interesses de classe e grupos bem distintos. Daí os decorrentes impasses que
impossibilitaram qualquer medida mais efetiva no período que antecedeu o golpe de 1964.
1
O período anterior de debates, em torno da Reforma Agrária, remonta ao Brasil Império, mas as propostas
condizentes com a primeira Lei de reforma agrária, representada pelo Estatuto da Terra, somente ganham
corpo na década de 50.
11
11
Para a esquerda de um modo geral, mas, sobretudo para o PCB, o pleno
desenvolvimento do país somente seria alcançado com a concretização de seu projeto de
revolução democrático-burguesa. Para consolidar a etapa prévia à revolução socialista, o
PCB empenhava-se em campanhas no campo e na cidade, em favor de reformas amplas e
que terminariam por conduzir a sociedade ao socialismo. A reforma agrária e a
sindicalização do proletariado constituíam-se nas duas principais bandeiras do partido,
sendo a primeira apresentada como forma de libertar o campo dos resquícios feudais que
impediam o pleno florescimento da revolução burguesa. Para a direita, a expressão “nação
moderna” tinha o mesmo significado de um capitalismo plenamente desenvolvido. Nação
moderna era sinônimo de capitalismo e, neste sentido, promover a reforma agrária
significava, antes de tudo, potencializar e racionalizar a produção agrícola e, ao mesmo
tempo, utilizá-la enquanto medida preventiva contra o avanço das idéias comunistas.
Embora em determinados momentos alguns partidos, associações de classe e a Igreja
Católica conservadora aceitassem a distribuição de terras como uma medida necessária à
otimização da economia nacional, esta deveria respeitar os limites colocados pelo direito de
propriedade.
Motivados por interesses diversos que perpassavam desde a alegada motivação
social unida às condições de vida dos trabalhadores rurais, passando pela questão do
desenvolvimento econômico do país e culminando na tentativa de barrar o avanço de um
ideário comunista entre os trabalhadores, representantes tanto da direita quanto da
esquerda, ou seja, a sociedade civil, os partidos políticos, intelectuais, movimentos sociais,
a Igreja Católica e o Estado lançaram-se em um intrincado jogo de forças em torno da
questão da terra, cujo resultado pode ser apreendido por meio dos inúmeros projetos de
Reforma Agrária. Segundo Martins,
(...) sob o mesmo rótulo de Reforma Agrária havia desencontrados
projetos de intervenção no direito de propriedade, sempre em nome de
terceiros, os trabalhadores rurais. Grupos mais que antagônicos, inimigos,
preconizavam a Reforma Agrária. Uns em nome do conservadorismo.
Outros em nome da revolução (...).
2
Portanto, desde a década de 50 com o acirramento dos problemas advindos da
questão agrária, percebe-se o desenvolvimento de uma predisposição à mistificação em
torno do significado da reforma agrária e de sua suposta capacidade, uma vez implantada,
de promover mudanças estruturais na sociedade, ou seja, a reforma tornou-se, guardando as
2
MARTINS, J. S. Reforma Agrária: O Impossível Diálogo. São Paulo: Edusp, 2004. p.95.
12
12
devidas diferenças ideológicas, a única solução vista como viável para o problema da
questão agrária brasileira. Essa aura mística que perpassava tanto as propostas de cunho
revolucionário quanto os projetos de reforma marcadamente capitalistas, segundo Bruno,
derivariam, sobretudo,
Da percepção de que uma reforma agrária, mesmo realizada nos marcos
do sistema capitalista, pode, em determinadas situações, por em
movimento forças políticas e sociais capazes de modificar profundamente
o sistema econômico vigente. Resultou daí a tendência à superestimação
e ao redimensionamento das possibilidades de modificações oriundas da
reforma, bem como a reificação do potencial de mobilização de
transformação presente na luta pela reforma agrária. Isso é reforçado, no
campo da teoria, pela presença de duas posições diferenciadas: uma que
considera a reforma agrária como técnica de socialização do processo
produtivo, como instrumento de transição ao socialismo, e outra que
consiste em considerar a reforma agrária como instrumento de
consolidação do capitalismo, como adaptação das relações sociais no
campo ao nível do desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas,
quando surge e se desenvolve o modelo de produção capitalista.
3
Se havia, no âmbito do discurso, certo “consenso” quanto a necessidade de
efetivação da reforma agrária, este se esvaziava no âmbito da prática. No campo político,
onde se desenvolviam as negociações rumo a concretização dos dispositivos legais que
viabilizariam medidas efetivas para a sua execução, o mito da reforma agrária una
justamente por escamotear interesses e concepções totalmente distintas deixa de existir.
Dessa forma, pode-se observar que ocorreu no período pré-64, “(...) uma luta pelo controle
político da reforma agrária (...), pelo controle dos procedimentos relativos a ela, por seu
resultado e por seu formato final (...).
4
Controlar o alcance, o formato e, principalmente, os procedimentos necessários
à sua realização tornou-se a palavra de ordem por parte dos vários agentes envolvidos com
a temática. Isso pode ser exemplificado pelos impasses e reações às propostas de Emenda
Constitucional que alterariam o Parágrafo 16, do Artigo 141, da Constituição de 1946. As
propostas buscavam viabilizar o pagamento das desapropriações em títulos da dívida
pública. Para os defensores de uma reforma agrária mais ampla e distributivista, a alteração
do princípio constitucional era imprescindível, pois os cofres públicos não teriam condições
de arcar com o ônus de pagamentos realizados em dinheiro. Para os defensores do texto
3
BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra: A Nova Face Política das Elites Agroindustriais
no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária/UFRRJ, 1997.
4
MARTINS, J. S. Reforma Agrária: O Impossível Diálogo, op. cit. p.40.
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constitucional, a emenda representava a brecha pela qual infiltrariam-se as idéias “espúrias”
da revolução socialista e da coletivização da terra.
Tal embate de posicionamentos permeou toda a década de 50, obstruindo
qualquer iniciativa reformista. No início dos anos 60, na vigência do governo de João
Goulart, as contendas referentes à reforma agrária exacerbaram-se. As causas para a
crescente radicalização no período foram impulsionadas: por sua política de defesa das
reformas de base, principalmente a agrária; pela ampliação dos conflitos fundiários; pela
proliferação dos movimentos de luta pela terra; e pelo agravamento da crise econômica que
acompanhou todo o seu governo.
A questão da reforma agrária tornou-se a “pedra de toque” de seu programa
reformista. Mas como levar adiante um programa de mudanças profundas, assentado, como
estava, sob uma frágil base governista e com interesses tão díspares? Logo nos primeiros
meses de seu mandato, ainda sobre o regime parlamentarista, Goulart recomendou a
organização de grupos de trabalho para a confecção de um projeto oficial de reforma a ser
apreciado pelo Congresso, acenando, desde o início, para prováveis alterações no texto
constitucional. Sua iniciativa, a princípio bem recebida pela esquerda, causou reações
negativas junto às associações patronais e aos partidos de direita, inclusive em suas alas
moderadas que, mesmo compondo a base governista, defendiam, diferentemente de
Goulart, medidas de reforma agrária graduais, ou seja, sem a emenda constitucional.
Os descompassos políticos de seu governo e a radicalização das posições
assumidas induziram-no a paralisar o encaminhamento de medidas em favor da reforma
agrária, consideradas, nessas circunstâncias, como politicamente inviáveis. A vitória do
presidencialismo, no plebiscito de janeiro de 63, marcou a retomada da ofensiva em direção
às reformas de base, especialmente a agrária. Mas, à medida que Goulart acelerava o
processo de encaminhamento de propostas de reformas, inclusive constitucionais,
verificava-se, com igual velocidade, a organização de uma forte oposição articulada por um
discurso que aludia o caminhar para o socialismo como sendo as suas reais pretensões
políticas, alimentando, dessa forma, um clima de permanente instabilidade e indefinição.
A desconfiança quanto as reais intenções do governo, somada ao temor pelo
alcance de suas ações, provocou o reordenamento político de sua base aliada,
impossibilitando, com isso, a aprovação da proposta de reforma agrária enviada para
apreciação no Congresso, numa clara tentativa de “controlar” o ímpeto reformista do
presidente.
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14
Dentro dessa sistemática e pressionado pela esquerda, que exigia ações mais
contundentes em favor das reformas de base, Goulart aceita participar do Comício da
Central do Brasil, o primeiro de uma série organizada pela CGT e cujo objetivo consistia
em mobilizar a população para a causa reformista. No entanto, como bem destaca Boris
Fausto
5
, o Comício e os decretos de nacionalização das refinarias particulares de petróleo e
de desapropriação de terras decretaram, também, o “início do fim de seu governo”. Apesar
do alcance limitado dos decretos, simbolicamente representavam muito, tanto para os
opositores quanto para os defensores das reformas. Para setores da esquerda
comprometidos com as reformas, o gesto que, segundo Goulart, era somente um passo
inicial rumo à reforma agrária, representava o fim da política de conciliação, apesar dela
nunca ter sido efetivamente concluída. Para a direita, tais decretos demonstravam a
concretização do perigo de “comunização” do país, tantas vezes anunciado desde a sua
posse. Temendo a guinada e o golpe de esquerda, a direita passou a organizar seu próprio
golpe.
6
A radicalização dos posicionamentos, observada após o Comício da Central do
Brasil, pode ser entendida como a ponta emergente de uma crise muito mais profunda. Ela
era reflexo da aguda crise institucional e de poder que permeou o núcleo da luta política no
Governo Goulart, obstruindo a possibilidade de qualquer reforma, mas que terminou por
viabilizar a intervenção militar de 1964.
Portanto, dentro deste contexto, a “revolução de abril” apresentou-se para a
população como uma contra revolução preventiva ao governo sindical-populista de João
Goulart, haja vista a sua guinada à esquerda nos meses que antecederam o golpe. De acordo
com Bruno, as causas mais imediatas foram, sobretudo, políticas, pois
Elas refletiram o medo da força potencial do movimento popular pelas
reformas de base; o medo de que o questionamento da propriedade da
terra conduzisse ao questionamento da propriedade em geral; o medo da
implantação de uma “república sindicalista” e do “comunismo”.(...) Na
realidade, a reação foi, sobretudo, às possíveis alternativas contidas no
movimento camponês e no conjunto do movimento social pelas reformas
de base, à possibilidade de uma reforma agrária “na marra”, ao medo da
força potencial do movimento popular que havia ultrapassado, na
prática, os limites do projeto nacional-populista.(...) Em certo sentido, a
luta pela reforma agrária, enquanto luta democrática, era uma luta
assimilável do capitalismo, pois assegurava o direito de propriedade,
mais assimilável ainda pela existência de meios ociosos, isso num
período em que era reconhecida a necessidade de modernização no
5
FAUSTO, B. História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial do Estado, 2002.
6
DIAS , R. B. Sob o Signo da Revolução Brasileira: A Experiência da Ação Popular no Paraná 1962/
1973. Assis: Dissertação de Mestrado, 1997.
15
15
campo. Mas, naquela conjuntura de crise, de disputa de hegemonia, de
contradição entre as exigências do poder econômico e as tendências do
poder político de base populista e de mobilização, era uma luta que
subvertia.
7
Subestimado pelo Governo, o golpe de 31 de março de 64 contou com um
grande respaldo dos meios de comunicação e, no seio da sociedade civil, o apoio também
não foi nada desprezível. Embora algumas tentativas de resistência ao golpe tenham sido
rascunhadas por Leonel Brizola e pelo CGT, estas alcançaram um efeito bastante limitado.
O fato é que, rapidamente, mas não sem disputas e precoces divisões no interior do
movimento, Humberto de Alencar Castello Branco seria eleito de forma indireta pelo
Congresso Nacional, tomando posse no dia 15 de abril, após as intervenções institucionais
proporcionadas pelo Ato Institucional n.º 01.
Castello Branco era reconhecido como um dos principais representantes do
chamado grupo da “Sorbonne”, composto por oficiais ligados à Escola Superior de Guerra.
Este grupo, mais moderado se comparado a outros militares que possuíam uma posição
mais conservadora, defendia uma política interna e externa anticomunista, a livre iniciativa,
a economia de mercado, mas, a princípio, somente sob os auspícios de um governo forte.
8
Neste sentido, o primeiro governo militar tinha claro que a superação da crise
econômica em que o país encontrava-se mergulhado, passava pela resolução de três
questões fundamentais: o combate à inflação desenfreada; a modernização da agricultura; e
a mudança da política externa. Tendo em vista tais referenciais, e objetivando o
desenvolvimento do capitalismo brasileiro, Castello, em seu discurso de posse, acenou para
a necessidade de reformas estruturais. Segundo Castello,
A arrancada para o desenvolvimento econômico, pela elevação moral,
educacional, material e política, de ser o centro das preocupações do
Governo. Com esse objetivo, o Estado não será estorvo à iniciativa
privada, sem prejuízo, porém, do imperativo da justiça social devida ao
trabalhador, fator indispensável a nossa prosperidade. Até porque estou
entre os que acreditam em uma constante evolução capaz de integrar, em
melhores condições de vida, o número, cada vez maior, de brasileiros,
muitos deles infelizmente ainda afastados das conquistas da civilização.
Caminharemos para a frente com a segurança de que o remédio para os
malefícios da extrema-esquerda não será o nascimento de uma direita
reacionária, mas o das reformas que se fizerem necessárias. Creio
firmemente, na compatibilidade do desenvolvimento com os processos
democráticos, mas não creio em desenvolvimento à sombra da orgia
inflacionária, ilusão e flagelo dos menos favorecidos pela fortuna. E
7
BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra: A Nova Face Política das Elites Agroindustriais
no Brasil, op. cit. p.p.96/97.
8
SKIDMORE, T. Brasil: de Castello a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
16
16
ninguém pode esperar destruí-los sem dar a sua parte de contribuição e
sacrifício, fonte única donde poderá fluir o bem estar e a prosperidade de
todos.
9
Castello, ciente dos obstáculos políticos que enfrentaria para levar adiante as
reformas pretendidas, empenhou-se na formação de seus ministérios mesclando civis e
militares que convergiam com seus ideais reformistas, e também alocou estrategicamente
membros da chamada linha dura, buscando, com isso, contemplar os dois lados envolvidos
no processo revolucionário. Por meio dessa costura política, visava obter margem
satisfatória de governabilidade, num período onde os posicionamentos políticos se dividiam
e se exacerbavam em torno da reivindicação por ações intervencionistas mais duras ou mais
moderadas.
Roberto Campos e Octávio de Gouveia Bulhões foram selecionados para
compor, respectivamente, a pasta do recém criado Ministério do Planejamento e do
Ministério da Fazenda. A missão conferida aos dois ministros versava sobre a
responsabilidade de em poucos meses - já que Castello Branco, a princípio, permaneceria no
cargo apenas pelo tempo restante do mandato de João Goulart - reorganizar o país em suas
principais bases, alcançando, dessa forma, a estabilidade econômica tão imperiosa para o
desenvolvimento econômico.
Tendo em vista as metas a serem atingidas e o curto período de governo,
Castello Branco, em reunião com seu ministério, traçou as principais diretrizes e as
condensou no PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo) cujo objetivo principal
era promover a estabilização do país. As reformas suscitadas no Plano de Estabilização
foram consideradas ortodoxas e extremamente impopulares, pois atingiam interesses de
várias classes, inclusive de setores da sociedade que apoiaram o Golpe Militar de 64. No
entanto, para Castello Branco, a impopularidade “era uma pílula amarga” a ser digerida a
longo prazo, uma vez que, obviamente, não alimentava pretensões eleitorais. Além disso,
fundamentava-se na idéia de que somente um Estado forte seria capaz de contornar e
controlar a crise econômica, política e social deixada pelo seu antecessor, oferecendo,
assim, o respaldo político necessário para encaminhar as profundas reformas contidas no
PAEG.
Entre as medidas caracterizadas como emergenciais, figurava a questão da
Reforma Agrária. Para Castello, o tema, embora polêmico, deveria ser trabalhado em caráter
de urgência em virtude das graves distorções da estrutura fundiária brasileira.
9
CASTELLO BRANCO, H. Discursos. Rio de Janeiro: Secretaria de Imprensa, 1964, p.14.
17
17
E, na primeira reunião do Ministério do novo Governo, Castello,
contrariando conservadores que o haviam apoiado, anunciou a reforma
agrária que seria preconizada pelo ministro Roberto Campos. Ela seria um
dos fulcros da política econômica do Governo (...) As linhas gerais da
reforma foram dadas pelo Presidente. Devia ser democrática, gradual,
flexível, aproveitar as terras devolutas e as particularidades de cada
região, respeitar a propriedade, e evitar o minifúndio do mesmo modo que
combateria o latifúndio improdutivo. Em resumo, a reforma deveria
fomentar a criação de uma classe média rural estável e próspera, mediante
acesso a terra própria, e aumento da produtividade.
10
Em seguida determinou ao ministro Roberto Campos a organização de um grupo
de trabalho cuja função era sistematizar os fundamentos e os princípios gerais da lei de
reforma agrária, além de elaborar o esboço da Emenda Constitucional que viabilizaria a
execução da mesma. Tendo em vista tais iniciativas, aparentemente contraditórias dada a
conjuntura em que estavam sendo formuladas, faz-se necessário a formulação de alguns
questionamentos: Por que o governo Castello Branco encampou a bandeira da reforma
agrária, posteriormente institucionalizada e instrumentalizada no Estatuto da Terra, cuja
reivindicação tantas reações havia causado no período pré-64? E por que o Estatuto da
Terra sofreu, principalmente a partir de 1969, um progressivo processo de esvaziamento de
sua proposta?
Os estudos
11
que procuram entender as razões pelas quais o governo militar
empenhou-se em sistematizar e aprovar a primeira lei de reforma agrária do Brasil, partem
do pressuposto de que a elaboração da lei teria sido utilizada como um subterfúgio político
com o intuito de desmobilizar os movimentos sociais pró-reforma agrária, ou seja, a
proposta do Estatuto da Terra teria nascido para não ser efetivamente aplicada,
compreende-se a partir disso, segundo esses autores, a razão por seu esvaziamento,
principalmente nos governos militares subseqüentes.
Além do enfoque político sobre a origem do Estatuto, outra característica que
dificulta, sobremaneira, o estudo das razões do empenho do governo em aprovar a lei,
encontra-se no fato de que a bibliografia que trabalha o período traz poucas referências
quanto ao posicionamento liberal e reformista de Castello e sua equipe.
Neste processo, a bibliografia deixa de enfocar certos elementos conjunturais
que poderiam adensar as discussões sobre a origem da lei e sobre as reais intenções
10
VIANA FILHO, L. O Governo Castello Branco. Rio de Janeiro: Livraria José Olimpio, 1975. p.274.
11
As obras de José de Souza Martins, Leonilde Servolo Medeiros, Carlos Minc, Maria Conceição D’Incao,
Maria Yedda Linhares dentre outros autores, analisam a elaboração do Estatuto, somente como uma medida de
contenção e desmobilização dos movimentos sociais.
18
18
reformistas do governo. Neste sentido, podemos destacar: a ferrenha reação interna e
externa contra o governo, desencadeada pelo anúncio da proposta do Estatuto da Terra e da
Emenda Constitucional; o acompanhamento pessoal do presidente nos debates; a criação
dos grupos de trabalho encarregados de elaborar as propostas; e, ainda, o empenho político
do presidente na tentativa de demover a forte oposição no Congresso por parte dos partidos
políticos mais conservadores representados pela UDN e PSD. A movimentação de Castello
Branco em prol da aprovação do Estatuto, chegou a indispô-lo politicamente com figuras
proeminentes, como: Carlos Lacerda, do Rio de Janeiro, Adhemar de Barros de São Paulo e
Magalhães Pinto de Minas Gerais.
A oposição frente à efetivação da lei de reforma agrária, em especial por parte
da chamada linha dura do governo, pode indicar ainda as causas do esvaziamento do
Estatuto da Terra.
Considerando o Estatuto da Terra como o eixo central da pesquisa, propomos
compreender a sua elaboração, bem como as motivações para tal intento. As análises sobre
a sua efetivação, seus re-direcionamentos e a defesa da aplicação da lei, ao longo da década
de 70 e início dos anos 80, constitue o objetivos do capítulo. O recorte cronológico
central delimita-se entre 1964 e 1985 – período correspondente à formulação do anteprojeto
do Estatuto da Terra e da promulgação do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA).
Cabe destacar que essa periodização não é estanque, pois para a compreensão das questões
que gravitam em torno do Estatuto da Terra, faz-se necessário realizar recuos e avanços
temporais mais abrangentes. A análise das discussões da década de 50, anteriores à
promulgação do Estatuto, apresenta-se como um ponto essencial para compreendermos seu
surgimento, da mesma forma que a aprovação do PNRA serviu para demarcar o término da
exclusividade do Estatuto, sem, contudo, substituí-lo integralmente, pois, do ponto de vista
jurídico, ambos continuam em plena vigência.
O desenvolvimento da pesquisa pauta-se em diversas modalidades de fontes: os
jornais de circulação nacional; as mensagens anuais enviadas ao Congresso pelos
Presidentes da República; os documentos do acervo Paulo de Assis Ribeiro, localizado no
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e as entrevistas concedidas por membros do Grupo de
Regulamentação do Estatuto da Terra.
Dentre os jornais de circulação nacional, elegemos, em especial, o jornal O
Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo, em função da ampla cobertura que esses
jornais proporcionaram ao tema da reforma agrária desde a década de 50. Evidentemente há
19
19
que se considerar as implicações ideológicas dos fatos relatados e a opinião do jornal, pois
por traz do fato produzido subjaz uma visão de mundo dos jornalistas e do proprietário
do jornal que interfere fortemente na construção da notícia”.
12
No entanto, a pesquisa com
jornais, quando realizada com as devidas “filtragens”, fornece um material de suma
importância para que o historiador possa balizar o impacto de determinados acontecimentos
e seus desdobramentos na sociedade. Neste sentido, as matérias selecionadas dos jornais
contribuem para que acompanharmos o ferrenho debate promovido pelos opositores e
defensores do projeto de reforma agrária do governo Castello, bem como, dos argumentos
empregados na defesa de suas posições. Além disso, os jornais viabilizam a análise da
propaganda dos governos posteriores, realizadas em favor dos projetos de colonização.
As mensagens presidenciais anuais, enviadas ao Congresso, constituem-se em
verdadeiros relatórios sobre as diretrizes de governo. Este arquivo está disponibilizado na
internet, sendo parte do acervo do Latin American Microform Project (LAMP) do Center
for Research Libraries (CRL). Os documentos estão no formato de imagens digitais e
correspondem a publicações emitidas pelo Poder Executivo do Brasil entre os anos de 1821
a 1993.
O estudo das mensagens presidenciais; dos discursos; decretos e documentos
administrativos possibilitarão não somente a compreensão das ações reformistas do
governo Castello denominadas, por este, como Reformas Básicas, mas também as
justificativas que foram alicerçadas para a sua implementação. Ainda por meio deste
material, analisar-se-á o redirecionamento político dos sucessores de Castello frente ao
Estatuto da Terra.
13
No período que correspondente ao final da década de 60 indo até o final
do período militar, tanto a expressão “reforma agrária”, quanto o termo Estatuto da Terra,
foram abolidos das mensagens presidenciais.
12
ALVES, P. Experiência de Investigação: Pressupostos e Estratégias do Historiador no Trabalho com
as Fontes. In: Fontes Históricas Abordagens e Métodos. Assis: UNESP, 1996.
13
O Estatuto da Terra, segundo Roberto Campos, era um conjunto de leis concebidas para serem aplicadas em
conjunto, ou seja, o resultado da aplicação de um dispositivo seria o ponto de partida para outro. Em seu
artigo: Agricultura, Reforma Agrária e Ideologia (Folha de São Paulo 12/11/95) Campos define a lógica e o
encadeamento dos dispositivos: Cadastramento das propriedades, zoneamento e saneamento do registro da
propriedade rural. A aplicação do imposto territorial geraria os recursos necessários para assentar os
agricultores e, também, para por em prática uma política agrícola mais eficiente. A partir do governo Costa e
Silva, segundo o autor, o Estatuto da Terra teria sido praticamente abandonado. Sua afirmativa refere-se ao
fato de que a lei teria sido formulada para ser o ponto de partida e não o ponto de chegada.
20
20
O arquivo de Paulo de Assis Ribeiro
14
contempla documentos de natureza
diversa, acumulados ao longo de sua atuação no poder público. Dentre os documentos
selecionados para a pesquisa, figuram as emendas sugeridas ao anteprojeto do Estatuto da
Terra e os pareceres e justificativas sobre os anteprojetos de reforma agrária de João
Goulart e Castello.
Com o acirramento dos conflitos no campo, as reivindicações em torno da
execução do Estatuto da Terra ganharam corpo, impulsionadas, principalmente, por parte
dos agentes mediadores dos trabalhadores rurais. Neste sentido, a pesquisa fundamenta-se
na análise dos movimentos e das reivindicações em torno da execução da reforma agrária.
***
A pesquisa foi estruturada em três capítulos:
O primeiro capítulo da tese tem por objetivo realizar um histórico objetivando
evidenciar as principais discussões em torno da reforma agrária na década de 50 e no início
da década de 60, buscando, assim, enfocar quais eram as propostas dos principais agentes
políticos do período, pois foi a partir desses projetos que o Estatuto estruturou-se enquanto
lei.
Compreender as motivações do governo Castello Branco que justificariam a
elaboração do Estatuto está no cerne dos propósitos do segundo capítulo. Cabe enfatizar
que a lei promulgada pelo regime militar decorria das discussões anteriores, tanto no que
tange às continuidades quanto às rupturas, afinal, o relativamente breve intervalo entre a
posse e a aprovação do projeto serviu como uma “decantação” dos projetos anteriores,
adequando-os a uma nova realidade política caracterizada, no governo Castello, não
somente pelo regime de exceção, mas, também, pelas políticas econômicas e sociais de
cunho liberal.
No terceiro capítulo pretende-se discorrer a respeito de como se deu o processo
de esvaziamento e “arquivamento” do Estatuto da Terra nos governos que sucederam
Castello Branco. A aplicação extremamente pontual de um único dispositivo da Lei atada à
política de colonização estava inserida em um contexto mais amplo que marcava,
14
Paulo de Assis Ribeiro foi um dos membros do Grupo de Trabalho que formalizou a proposta do Estatuto da
Terra e o primeiro presidente do IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária) no governo Castello. Este
Instituto vigorou até 1970, quando o presidente Médici fundiu o IBRA e o INDA (Instituto Nacional de
Desenvolvimento Agrário) em um único órgão, INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária). De acordo com Roberto Campos, a criação dos dois órgãos objetivava sinalizar que: “(...) a política
agrária e a reforma agrária teriam igual importância. Criaram-se duas instituições complementares, porém
distintas: o IBRA, que cuidaria da reforma agrária, e o INDA, que teria a seu cargo a política agrária”.
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa: Memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p.693.
21
21
primeiramente, a cisão que existia no interior das forças armadas, no que tange às disputas
de poder e às divergências ideológicas. Assim buscaremos elucidar os principais
“descaminhos”- expressão que utilizamos aqui no sentido de direções antagônicas e
contraditórias associados à institucionalização da questão agrária por meio do Estatuto da
Terra. Nessa fase de encerramento da tese, acreditamos ser de suma importância analisar
como grupos tão distintos - castellistas, linha dura, Igreja, CPT, MST apossaram-se do
Estatuto. O Estatuto, enquanto Lei, não sofreu profundas alterações, mas sua interpretação,
contraditoriamente, apresentou grandes variáveis conforme o período, a conjuntura, os
projetos políticos e os agentes envolvidos.
22
22
CAPÍTULO I
AS PROPOSTAS DE REFORMA AGRÁRIA NA
CONJUNTURA PRÉ 64: RUPTURAS E PERMANÊNCIAS
23
23
CAPÍTULO I
AS PROPOSTAS DE REFORMA AGRÁRIA NA CONJUNTURA PRÉ
64: RUPTURAS E PERMANÊNCIAS
1.1 - OLHARES SOBRE AS PROPOSTAS DE REFORMA AGRÁRIA NAS
DÉCADAS DE 50/60: CAMPO DE FORÇAS E AS DISPUTAS POLÍTICAS
PELA REFORMA AGRÁRIA NA CONJUNTURA PRÉ 64
Os fundamentos e conceitos nos quais se assentavam as reivindicações em torno
da reforma agrária no período pré 64 são essenciais para a análise da origem do Estatuto da
Terra. Isso porque, embora o golpe militar de 1964 tenha representado, em diversos
aspectos, uma ruptura com relação à conjuntura anterior, a discussão em torno da execução
da reforma agrária permaneceu latente no decorrer do governo do Castello Branco. A
formulação do Estatuto da Terra, seus fundamentos e objetivos não significaram uma cisão
abrupta. Antes, pelo contrário, a nova Lei apresentava importantes elementos de
continuidade com o período pré 64.
A essência dos debates e das reivindicações sobre a questão agrária nos anos 50
pautava-se nas conseqüências sociais, políticas e econômicas advindas da estrutura
fundiária brasileira. Essas discussões visavam a criação de medidas ou propostas que
viessem a modificar uma estrutura considerada por muitos autores, elaboradores e
partícipes, como ineficiente, perversa, excludente e/ou concentracionista. Neste sentido, a
conjuntura pré-64 tornou-se o “berço” das principais reivindicações em torno de uma
efetiva aplicação de um plano nacional de reforma agrária.
O contexto da década de 50 foi marcado por uma incessante luta pelo controle
da “forma da reforma agrária”. Tratava-se, portanto, de um jogo de forças políticas onde o
termo “reforma agrária” passava a ser inserido no interior de projetos políticos maiores. No
caso da esquerda, o norte almejado era a transformação da sociedade brasileira, e um dos
instrumentos para se atingir tal objetivo era a reforma agrária, ou seja, a reforma agrária era
um “degrau” a ser galgado para atingir a revolução e não um fim em si. O papel
desempenhado pela direita era justamente tentar bloquear tal processo, buscando, com isso,
a manutenção do status quo da propriedade privada e dos instrumentos econômicos de
mercado, tipificando a manutenção das relações capitalistas.
Os conflitos agrários no meio rural brasileiro não foram uma característica
exclusiva da década de 50, mas foi nessa década, inquestionavelmente, que ocorreu um
agravamento substancial de tal processo. Dentre os fatores que podem nortear e contribuir
24
24
na elucidação dessa conjuntura, cabe ressaltar: as transformações ocorridas no campo
associadas ao emprego de novas tecnologias; a inserção de novos cultivos (visando a
otimização da agricultura); a expansão da fronteira agrícola e a substituição da agricultura
pela pecuária em determinadas regiões.
15
Conjuntamente a esses fatores somavam-se a
permanente instabilidade e insatisfação dos foreiros, arrendatários e meeiros com relação
aos seus contratos e, ainda, as investidas, não incomuns, dos chamados grileiros.
Esses elementos conjugados ou considerados separadamente, ocasionavam, na
maior parte dos casos, a liberação de mão de obra e, principalmente no caso das grilagens
de terra, a expulsão dos posseiros ou dos pequenos proprietários que tiveram suas terras
invadidas.
Se os fatores desencadeadores dos descontentamentos e das revoltas
apresentavam uma pluralidade de causas, o mesmo pode ser afirmado com relação às
reivindicações dos trabalhadores inseridos nesta sistemática. Segundo Martins, os
movimentos que emergiam neste período (...) eram absolutamente distintos entre si. Em
cada região, dependendo de características locais, o movimento assumiu determinadas
peculiaridades.
16
Não havia uma linguagem, uma “reivindicação una”, a inexistência da
unificação de metas justifica-se pela pluralidade de anseios, pois essas revoltas estavam
arraigadamente associadas a uma tentativa de solução das necessidades imediatas desses
trabalhadores.
É neste terreno heterogêneo mas fértil sob o ponto de vista da acumulação de
forças, que vários agentes, especialmente do PCB, lançaram-se em um debate estratégico e
ideológico, objetivando mediar e orientar politicamente as ações dos trabalhadores,
consideradas, justamente pela pluralidade, como desordenadas. Segundo Medeiros, com o
auxílio mediador desses agentes, as diferentes manifestações, ainda regionalizadas, aos
poucos passaram a se unificar em torno, ao menos, de uma proposição, a da necessidade de
um plano de reforma agrária. Para a autora,
Esse processo, que teve por efeito constituir a reforma agrária na
principal demanda dos trabalhadores do campo, deve ser entendido a
partir da disseminação, nas áreas rurais, das concepções do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) principal mediador das lutas que então se
desenrolavam.
17
15
MEDEIROS, L. S. Reforma Agrária no Brasil: História e Atualidade da Luta pela Terra no Brasil.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.
16
MARTINS, J. S. Os Camponeses e a Política no Brasil: As Lutas Sociais no Campo e seu lugar no
Processo Político. Petrópolis: Vozes, 1986. p.79.
17
MEDEIROS, L. S. Reforma Agrária no Brasil: História e Atualidade da Luta pela Terra no Brasil, op.
cit. p.15. Deve-se ressaltar que embora o PCB tivesse sido o agente mediador com maior
25
25
No entanto, o esforço em aglutinar os trabalhadores em torno de uma causa,
como no caso da execução de uma reforma agrária imediata e ampla no Brasil, não se
originou tendo como ponto de partida as lutas dos trabalhadores rurais, mas sim a partir das
concepções da Internacional Comunista, em especial, no que concerne ao significado do
termo latifúndio e dos obstáculos que este representava para o desenvolvimento econômico
e, conseqüentemente, para a revolução democrática burguesa.
18
Para Alberto Passos Guimarães
19
, um dos principais teóricos do PCB, a
estrutura fundiária nacional configurava-se em um entrave para o desenvolvimento
econômico do país em virtude da permanência de restos feudais. Essas características,
segundo o autor, eram facilmente identificáveis, principalmente em função do forte
predomínio da concentração das terras e das grandes propriedades designadas como
latifúndio. Passos salienta ainda que existiriam resíduos das relações feudais de trabalho,
leia-se, formas de dominação pessoal, conseqüência direta do poder que seria legitimado
pelo monopólio feudal da terra.
20
Portanto, sob o ponto de vista do partido, o pleno desenvolvimento da revolução
de caráter burguês dependia da eliminação dos entraves que inibiam a acumulação de
forças.
A revolução democrática burguesa, pré-condição para a revolução socialista,
como ortodoxamente defendia o PCB, baseava-se na concepção etapista da história
defendida no VI Congresso da Internacional Comunista, de 1928. Neste Congresso ficou
estabelecido que países coloniais, semicoloniais ou dependentes encontravam–se numa fase
transitória entre o feudalismo e o capitalismo.
21
A transposição “mecânica” desses preceitos
para a realidade brasileira induzia a necessidade de se superar os restos feudais presentes,
não somente na estrutura agrária como, também, nas relações de trabalho. Isso seria
possível por meio de uma reforma agrária que libertasse os camponeses de sua condição
servil, criando uma legião de pequenos proprietários.
22
visibilidade e influência no período, as Ligas Camponesas e a Igreja Católica, também
desempenharam um papel fundamental.
18
Idem p.15.
19
GUIMARÃES, A P. Quatro Séculos de Latifúndio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
20
Trata-se de uma análise recorrente dentro do PCB, porém não unânime, como será explicitado
mais adiante, conforme a análise de Caio Prado Jr, que desconsiderava a questão da predominância
de restos feudais na estrutura agrária brasileira.
21
Sobre essa questão, consultar: TOPALOV, C. Estruturas Agrárias Brasileiras. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1978.
22
GOMES, C. L. A Reforma Agrária no Olho do Furacão: Debates, Confrontos e Propostas sobre a
Reforma Agrária da Nova República. Dissertação de Mestrado. Assis, 1999.
26
26
Se os preceitos teóricos da Internacional Comunista grassavam nas formulações
políticas do PCB no que concerne à primeira etapa rumo ao socialismo cujo caráter deveria
ser antifeudal, antilatifundiário e antiimperialista, a partir de 1948 fatores internos
relacionados à sobrevivência legal do partido - colocado na ilegalidade - e fatores externos
como o recrudescimento da guerra fria, terminaram por conduzir o PCB a uma orientação
revolucionária mais agressiva, defendendo o enfrentamento direto contra o regime político
estabelecido. Segundo Martins, “o caminho da luta e da ação seria, pois, o da revolução:
substituição da ditadura feudal burguesa serviçal do imperialismo por um governo
democrático e popular.”
23
Com relação à questão agrária, o manifesto de agosto de 1950, sob essa nova
linha de atuação, “(...) estipulava a confiscação das grandes propriedades latifundiárias,
sem indenização e a entrega das terras aos camponeses. Propunha ainda, a abolição de
todas as formas semifeudais de exploração da terra.”
24
Paralelamente à radicalização no
âmbito da ação política do partido, observa-se que a proposta de reforma agrária, entendida
como elemento catalisador das várias revoltas agrárias e instrumento chave para o pleno
desenvolvimento das forças produtivas no campo, passa a ser considerada um processo
imediato, massivo e distributivista.
A partir da segunda metade da década de 50, procurando novamente adequar-se
às transformações internas pelas quais o país estava passando,
25
principalmente no âmbito
econômico e político, e sem perder de vista as mudanças conjunturais externas,
26
o PCB, em
março de 1958, aprovou a Declaração sobre a Política do Partido Comunista do Brasil cujo
resultado não somente indicava uma profunda mudança em sua orientação partidária, como
explicitava uma releitura da situação política e econômica nacional. De acordo com
Rodrigues, “(...) a Declaração acentuava, entre outros pontos, o surgimento de um
capitalismo de Estado de caráter nacional, como um elemento progressista e
23
MARTINS, J. S. Os Camponeses e a Política no Brasil, op. cit. p.82.
24
RODRIGUES, L. M. O PCB: Os Dirigentes e a Organização. In: FAUSTO, B. O Brasil Republicano:
Sociedade e Política (1930-1964). São Paulo: Difel, 1983. p.414.
25
Segundo Reginaldo Dias, “(...) novas temáticas se colocaram aos comunistas no final da década de 50,
quando, face ao crescimento econômico dos anos JK, enxergavam amplas possibilidades de desenvolvimento
econômico (...) a relativa estabilidade da democracia liberal, somada ao crescente papel dos movimentos
populares, fornecia elementos para o desenvolvimento das teses sobre a viabilidade de um caminho pacífico
para as transformações da sociedade brasileira”. In: DIAS , R. B. Sob o Signo da Revolução Brasileira: A
Experiência da Ação Popular no Paraná – 1962/ 1973. Assis: Dissertação de Mestrado, 1997. p.32.
26
Para Reginaldo Dias, as denúncias de Kruchov, no decorrer do XX Congresso dos PCUs sobre os crimes
cometidos por Stalin, causaram impacto no âmbito dos partidos comunistas, dando início a algumas
reavaliações. Para o autor, a liderança de Kruchov frente aos PCUs, inaugurou a tese da coexistência pacífica
entre comunistas e capitalistas.
27
27
antiimperialista da política econômica do governo.
27
Apesar de considerar este traço
positivo, a declaração alertava para a permanência dos obstáculos estruturais que impediam
o pleno desenvolvimento do capitalismo, quais sejam: os resquícios feudais e o
imperialismo. A superação desses entraves não deveria ser levada adiante por nenhuma
força social isoladamente, disso decorria, então, a proposta da formação da Frente Única
Nacional e Democrática.
A revisão das diretrizes do partido revela, portanto, que a revolução poderia
atingir seus objetivos trilhando um caminho pacífico, dentro dos padrões político-
governamentais vigentes. Embora o meio não pacífico não tivesse sido plenamente
descartado, para Dias, o PCB
(...) consagrava uma concepção evolucionista sobre a transformação da
sociedade. Reforma e revolução não eram considerados termos
antagônicos. Nesta perspectiva, lutar por reformas de base era
principalmente acumular forças para desencadear, num futuro não muito
longínquo, a revolução socialista, cuja ante-sala era a revolução nacional
e democrática.
28
Desvelava-se, assim, no interior do PCB, a influência do pensamento
gramsciano, fazendo com que uma parcela significativa do partido adotasse, por décadas, o
processo de ganhar espaço na estrutura estatal para, somente a posteriori, fomentar a
revolução. Mas a divergência interna, com disputas bastante acirradas entre a linha
“reformadora” e a revolucionária, conjuntamente com a revisão do estatuto partidário,
causou conflitos irreconciliáveis e a definitiva cisão. O resultado foi a criação de outros
partidos e organizações que, via de regra, buscavam formular meios alternativos ao PCB
para atingir o socialismo. No caso do PCdoB, isso se dava na manutenção do marxismo
leninista, posição que outrora tinha prevalecido no PCB.
A política de congregação de forças, cuja aliança envolvia a classe operária,
camponeses, assalariados e semi-assalariados, a pequena burguesia e a burguesia ligada aos
interesses nacionais, imprimiu, uma discussão interna acerca da aliança operário-
camponesa e sua importância como mola propulsora da revolução rumo ao socialismo, pois
“(...) esta ainda constituía uma memória de apelo em algumas áreas daquele partido”.
29
Ao adotar a estratégia da via pacífica dentro do terreno da democracia política, o
PCB estabelece novas condições para a realização da reforma agrária. A nova prática
27
RODRIGUES, L. M, op. cit. p.415.
28
DIAS, R. B. Sob o Signo da Revolução Brasileira: A Experiência da Ação Popular no Paraná 1962/
1973, op. cit. p.34.
29
SANTOS, R. e COSTA, L. F. C. Camponeses e Política no pré 64. In: Política e Reforma Agrária. Rio de
Janeiro: Mauad, 1998. p.33.
28
28
agrária basear-se-ia em canalizar a mobilização dos trabalhadores rurais em torno do acesso
a ganhos reais, entendendo essa nova conjuntura como o advento de benefícios. Dentre as
várias propostas defendidas, cabe destacar a regulamentação do arrendamento, do regime
de parceria e a extensão da legislação social e trabalhista aos trabalhadores da agricultura.
Na definição do PCB esse conjunto de medidas caracterizava uma reforma agrária parcial.
A idéia de reforma agrária radical e imediata seria substituída por medidas graduais,
alinhadas com os pressupostos políticos da Declaração de março de 58. O processo de
reestruturação fundiária se desenrolaria no plano da política, “(...) com muitas mediações,
descontinuidades e gradualismo, sem a subversão da ordem.”
30
No entanto, embora se desenhassem novos contornos no caminho a ser
percorrido para se chegar à reforma agrária, o objetivo almejado com sua execução
permanecia imutável, ou seja, mantinha-se a meta, a pré-condição essencial que consistia
em livrar o campo da presença do latifúndio, que simbolizava para o PCB a plena
permanência dos traços feudais que atravancavam o desenvolvimento das forças produtivas.
Com uma atuação efetiva no campo, o partido ajudou a estruturar algumas
organizações e vários sindicatos. A ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores
Agrícolas do Brasil), fundada em 1954, sob a influência das novas orientações,
preconizava a realização de uma reforma agrária gradual, privilegiando a organização dos
assalariados rurais. Em um trecho da resolução do V Congresso, a questão da organização
do assalariado foi destacada, pois na compreensão do PCB para: (...) impulsionar a
organização das massas do campo é necessário dar atenção principal aos assalariados e
semi-assalariados agrícolas. Sua organização em sindicatos deve constituir a base para a
mobilização das massas camponesas.” Logo em seguida, a mesma resolução ressalta que a
organização dos camponeses deveria partir de premissas mais imediatas e viáveis em curto
prazo, como: a queda das taxas de arrendamento; a prorrogação dos contratos; a garantia
contra despejos; a permanência dos posseiros na terra; e a legitimação das posses. Essas
medidas estariam preparando o alicerce para a execução de uma reforma agrária mais
ampla, visto que, embora o país estivesse em franco processo de industrialização e
modernização, havia a contradição imposta pelo atraso das relações produtivas do meio
rural.
30
SANTOS, R. O Agrarismo Brasileiro na Interpretação de Caio Prado Júnior. In: Política e Reforma
Agrária. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p.58.
29
29
Os sindicatos teriam, assim, um papel duplamente importante na ótica pecebista,
porque além de organizar o “proletariado rural” estariam, por conseguinte, promovendo a
conscientização dos camponeses” sobre a importância da luta pela terra, primeiramente em
favor de uma reforma agrária gradual, mas que em um futuro breve objetivaria a
desagregação definitiva do latifúndio improdutivo e da grande propriedade, permitindo,
com isso, o surgimento de uma economia camponesa e socialista.
A tese da permanência de restos feudais e a necessidade de uma reforma agrária
tida como elemento desagregador da estrutura fundiária vigente, se consubstanciou em
ponto de discordância entre o partido e um dos seus principais intelectuais, a saber: Caio
Prado Júnior. A exposição de seus pressupostos teóricos revela uma amostragem das
discordâncias e tensões no interior do partido com relação às diferentes abordagens
impostas e quanto ao papel a ser desempenhado pela execução da reforma agrária.
Em uma série de textos publicados originalmente na Revista Brasiliense, nos
anos de 1960, 1962 e 1964, o autor construiu uma análise da estrutura agrária brasileira
alicerçada em bases mercantis e refutou, completamente, a tese da permanência de restos
feudais. Segundo o autor, a imprecisão analítica para com a questão agrária brasileira, se
tornou a viseira” de seu partido. Ao considerar as relações produtivas centradas em bases
feudais, o partido teria optado por superestimar a questão da luta pela terra, quando, na
visão de Caio Prado, o nicho revolucionário encontrava-se em outra esfera, em especial, nas
reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de emprego e salário.
Sendo assim, essa desorientação teórica conduziria a uma desorientação na
prática política da revolução preconizada pelo PCB e pela esquerda de uma forma mais
ampla.
A transposição mecânica do modelo, baseado na superação de etapas, foi
prontamente refutada pelo autor. Segundo ele:
(...) o erro dessa teoria provém em última análise do sistema e do quadro
geral em que se acha colocada, a saber, na suposição de que a conjuntura
atual do processo histórico social brasileiro reflete a transição de uma
fase feudal ou semifeudal para a democracia burguesa e o capitalismo,
consistindo, pois as transformações pendentes e que se trata de promover
e realizar revolucionariamente, na superação de restos feudais que ainda
se incluem, como remanescentes do passado, na situação e conjuntura
urgentes. Daí a idéia de revolução democrática burguesa agrária e
antifeudal.
31
31
PRADO JR, C. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966. p.64.
30
30
Do mesmo modo que o PCB, Caio Prado percebe na estrutura sócio-econômica
do campo contradições e potencialidades revolucionárias. Contudo, ele evidencia que não
se tratava da superação do monopólio feudal da terra, ou de relações de exploração fincadas
na sujeição pessoal, o teor revolucionário estaria em outro plano, mais precisamente nas
relações de emprego e nos conflitos delas resultantes, principalmente em função das
reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e salário.
Pensando sob essa perspectiva o autor no artigo Contribuição para a Análise da
Questão Agrária no Brasil, estabelece que o ponto central, gerador dessas circunstâncias,
seria a acentuada concentração fundiária da terra, entendendo esta característica, quase que
generalizada no meio rural brasileiro, enquanto uma herança e reflexo da economia
colonial, essencialmente mercantil e extensiva. Esta configuração consistiria tanto na causa
quanto no efeito explicativo das condições de trabalho e salário dos trabalhadores, na
medida em que geraria uma,
(...) abundante disponibilidade de mão de obra. Trata-se da considerável
parcela da população rural que, devido à concentração da propriedade,
não encontra alternativa para prover à sua sobrevivência que alhear a sua
força de trabalho e se por a serviço dos grandes proprietários e
fazendeiros. Circunstância essa aliás que torna possível o grande
estabelecimento agromercantil. Sem mão de obra disponível, a fazenda
de tipo comercial de que se estrutura a economia agrária do Nordeste -
como a do Brasil em geral não poderia existir. A concentração da
propriedade fundiária tem assim o duplo efeito: primeiro o de conceder
ao empreendimento agromercantil uma base territorial conveniente para a
realização de seus objetivos; em seguida, de assegurar ao mesmo
empreendimento a mão de obra indispensável de que necessita.
32
Como solução para tais distorções, o autor defendia a implantação de medidas
legais, visando fomentar e favorecer o acesso à terra da população rural. A reforma agrária
desenvolver-se-ia por meio de dois caminhos convergentes, porém distintos entre si. De
um lado previa-se a modificação da estrutura fundiária, no sentido de corrigir a
concentração de terras, com a criação de uma legislação que versaria sobre o uso da mesma,
e de outro lado, buscaria se estender ao máximo os benefícios da legislação trabalhista para
o campo.
No caso de uma legislação norteadora do uso da terra, um dos principais pontos
da estrutura agrária a ser combatido, versaria sobre sua sub-utilização, característica essa,
aliás, empregada tanto para o latifúndio improdutivo, resguardado como reserva de valor,
quanto para as grandes propriedades precariamente exploradas. Assim, o combate à sub-
32
PRADO, JR. Contribuição para a Análise da Questão Agrária no Brasil. In: PRADO JR. A
Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979. p.p.42/43.
31
31
utilização da terra, vincular-se-ia ao estabelecimento de normas de utilização adequada
através da fixação de níveis mínimos de aproveitamento e produtividade para as diferentes
produções e regiões do país”.
33
Além da definição dos parâmetros de produtividade, a
tributação territorial complementaria este quadro, uma vez que, devidamente aplicada,
necessariamente forçaria para baixo o preço das terras que, segundo Caio Prado, se
mantinham valorizadas por meio da especulação fundiária.
A tributação desestimularia a compra das terras e incentivaria sua venda
causando a desvalorização da mesma, o que neste caso prepararia o terreno para as
desapropriações.
34
Não obstante, mesmo com as terras desvalorizadas, a utilização de tal
instrumento iria requerer a modificação do dispositivo constitucional que o regulamentava,
uma vez que a Constituição de 1946 previa a desapropriação para fins de reforma agrária,
mas a indenização resultante de tal processo teria que ser prévia e em dinheiro. A defesa da
generalização das desapropriações como um dos instrumentos da reforma agrária brasileira,
pleiteava a alteração do dispositivo constitucional que, por ser extremamente oneroso aos
cofres públicos, inviabilizava a desapropriação. A supressão deste dispositivo por meio de
emenda constitucional se transformou em uma reivindicação constante por parte de vários
agentes, partidos e entidades no decorrer das décadas de 50 e 60. A despeito dos diversos
projetos que solicitavam a mudança do artigo “prévio e em dinheiro”, por pagamentos da
dívida pública reajustáveis, esta somente foi aprovada no governo do Marechal Humberto
Castello Branco, após intensos debates e discussões.
Aplicada de forma paralela e ao mesmo tempo pertencente ao conjunto de ações
planejadas para a liberação de terras, figurava “a ocupação dos espaços vazios” do território
brasileiro. Mas para que não houvesse um escamoteamento das propriedades, utilizando-as
para fins especulativos, o autor sugere que: “(...) o domínio privado sobre elas somente
deve ser reconhecido quando há posse efetiva, isto é, ocupação real com lavouras, gado ou
outro indício material de exploração econômica e utilização lícita e segue advertindo
quanto a necessidade de uma política geral de ocupação de novas terras, política essa
orientada por novos rumos que assegurem a utilização do que sobre de inexplorado no
imenso patrimônio fundiário brasileiro.”
35
33
PRADO, JR. Nova Contribuição para a Análise da Questão Agrária no Brasil. In: PRADO JR. A
Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979. p.112.
34
Idem, p.114.
35
PRADO, JR. Nova Contribuição para a Análise da Questão Agrária no Brasil, op. cit. p.p.123/124.
32
32
A extensão da legislação social–trabalhista no campo completaria o rol de
medidas destinadas a corrigir a concentração de terras da estrutura fundiária brasileira. Caio
Prado tornou-se um dos maiores defensores da aplicação de leis que regulamentassem as
relações de trabalho no campo, isso porque a concentração de terras determinaria as
condições sócio-econômicas dos trabalhadores rurais, limitando suas expectativas dentro da
lei de oferta e procura, fazendo com que a balança ficasse favorável ao empregador. Aos
trabalhadores restaria a submissão às condições impostas pelos grandes proprietários. O
monopólio da terra, nas mãos de uma minoria seria o responsável pela compressão dos
salários e pela miséria da população rural.
Em 1963, o presidente João Goulart promulgou o Estatuto do Trabalhador
Rural, com o propósito de regular as relações trabalhistas no campo. Apesar do avanço
representado, no que concerne à proteção ao trabalhador, suas bases foram alicerçadas em
uma análise precipitada da realidade agrária, tendo em vista a rapidez com que foi
elaborada e aprovada. Segundo o autor, o legislador (...) se limitou em regra, e com
poucas exceções, a transpor para o trabalhador rural as disposições legais que fazem
parte de nossa legislação trabalhista e foram traçadas para o trabalhador urbano”.
36
E
neste sentido, tal crítica relacionava-se ao negligenciamento do heterogêneo quadro
referente à remuneração do trabalhador rural, que em determinadas regiões assumia formas
diversas que não somente o “assalariamento puro” dos centros urbanos, ou seja, Caio Prado
enfatizava que:
(...) a remuneração do trabalhador se faz por diferentes formas, como
sejam com uma parte do produto, com o direito de ocupar com atividades
próprias certas áreas da propriedade etc. Acresce a isso a diferença das
situações respectivas de uma para outra atividade rural, de uma para outra
região.
37
Ao não atentar para a grande diversidade das relações de trabalho no campo
brasileiro, o Estatuto do Trabalhador Rural ameaçava relegar à margem da proteção legal
uma significativa parcela dos trabalhadores. O risco de ficar contra os abusos dos grandes
proprietários ameaçava a eficácia da lei. Apesar das ressalvas, Caio Prado destacava que a
luta dos trabalhadores pela efetiva correção e aplicação dessa legislação, seria o motor
propulsor desencadeador de amplas mudanças sociais e econômicas no campo.
36
PRADO JR, C. O Estatuto do Trabalhador Rural. In: PRADO JR. A Questão Agrária no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1979. p.144. Texto publicado originalmente na Revista Brasiliense, 47, maio-junho
de 1963.
37
Idem, p.144.
33
33
O objetivo central a ser atingido pela implantação da reforma agrária visava a
elevação do nível de vida da população rural, diminuindo as condições de pobreza e
exploração decorrentes do monopólio da terra. Mas, este processo, na visão de Caio Prado,
não traria em seu bojo os possíveis germes de uma revolução camponesa, antifeudal e
antilatifundiária. Pelo contrário, o autor propunha uma reforma agrária mista,
compreendendo a liberação de terras para os trabalhadores e, por meio do emprego das
medidas acima citadas, uma revitalização da grande propriedade, que seria induzida a se
organizar sobre outras bases socioeconômicas, abandonando o apoio exclusivo na extensão
da propriedade e na exploração da mão-de-obra, forçosamente, de baixo custo.
38
O desmembramento indiscriminado das grandes unidades produtoras traria
como resultado apenas a constituição de pequenas propriedades que, no seu entender, não
conseguiriam substituir a grande propriedade no que se refere à produtividade e
abastecimento. Além disso, mesmo que houvesse um grande número de pequenos
proprietários com alguma potencialidade de desenvolvimento, estes não teriam condições
de concorrer com as grandes propriedades. Dessa forma, a reforma agrária, nos termos
puramente expropriatórios, representaria um retrocesso da economia rural.
Por isso, em sua interpretação, a dinamização da economia rural não estava
condicionada à total destruição da grande unidade produtora como almejava a esquerda de
uma forma geral, mas sim,
(...) na transformação da grande exploração com a eliminação de seus
aspectos negativos que consistem essencialmente nos baixos padrões
tecnológicos, que são a regra, bem como do tipo de relações de trabalho
predominantes e que reduzem o trabalhador às miseráveis condições
materiais, culturais e sociais que são as suas.
39
A baixa produtividade seria compensada pelo baixo custo da mão de obra,
resultado do excesso de oferta da mesma. A luta dos trabalhadores por melhores condições
de vida, a aplicação da lei trabalhista, as leis de tributação, a fixação de padrões mínimos de
produtividade e a colonização dos espaços vazios promoveriam um processo de “auto
ajuste”. Todas essas medidas conduzidas em conjunto e de forma a se
autocomplementarem, conseguiriam, segundo o autor, suplantar os aspectos negativos da
estrutura fundiária.
Somente as unidades que se adequassem à nova realidade sobreviveriam, pois o
encarecimento da mão de obra, resultante da aplicação da lei trabalhista, somada à liberação
38
SANTOS, R. O Agrarismo Brasileiro na Interpretação de Caio Prado Júnior, op. cit. p.64.
39
PRADO JR. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966. p.143.
34
34
de terras (incentivada por medidas fiscais que penalizassem as propriedades parcialmente
produtivas ou improdutivas) promoveriam um equilíbrio na oferta de mão-de-obra.
Conseqüentemente, a manutenção da propriedade condicionar-se-ia a padrões de
rentabilidade baseados na exploração intensiva da terra e com investimentos tecnológicos
necessários para compensar o aumento do custo de produção.
Para o autor, a intensificação da produção naturalmente constituiria,
(...) um fator de liberação de terras tornadas inúteis e onerosas para a
grande exploração realizada intensivamente e pois de maneira mais
concentrada e eficiente. Verifica-se, portanto, que a subdivisão da
propriedade fundiária encontra no processo que acabamos de analisar um
poderoso incentivo que operará com tanto mais rapidez e intensidade se
acompanhado de outras medidas, como a forte tributação territorial
combinada com a fixação de níveis mínimos de produtividade por área.
40
Partindo do que foi analisado, compreende-se que os pontos essenciais a que se
destina a reforma agrária, defendida por Caio Prado, consistiam-se, a saber, na elevação dos
padrões materiais e sociais dos trabalhadores rurais e, a reboque, na reestruturação da
economia agrária brasileira que dar-se-ia, consideradas as reivindicações desse grupo
social, a partir de uma campanha sistemática por melhores salários e condições de trabalho.
Por fim, a reforma agrária atingiria sua meta porque a possibilidade e facilidade
do acesso à terra representaria para o trabalhador uma alternativa, uma opção entre
trabalhar por conta própria, em vez de necessariamente ter que se engajar em serviço
alheio.
41
Em outro extremo, a implantação de uma legislação trabalhista consciente da
pluralidade das relações produtivas apresentadas no campo inibiria a exploração extensiva
impetrada pelos grandes proprietários e fundamentada no baixo custo da mão de obra.
No decorrer das décadas de 50 e 60, as divergências e as críticas de Caio Prado
Jr. ao seu partido e à esquerda nacional de uma forma geral, tornam-se cada vez mais
contundentes, por creditar a esses segmentos certo desinteresse com relação à legislação
trabalhista e às lutas dos trabalhadores por melhores condições de vida, sendo essas
soluções possíveis rumo a reforma da economia agrária. Para o autor, o grande problema a
ser colocado situava-se nas correntes que enfocavam quase que unicamente um outro
aspecto da reforma agrária, baseado no parcelamento da propriedade rural e na eliminação
do latifúndio, uma vez que,
Os seus defensores vêm contribuindo, embora inconscientemente no mais
das vezes, para fazer da palavra de ordem da reforma cada vez mais um
simples pretexto de agitação política de cúpula, traduzida em slogans que
40
PRADO JR. C. O Estatuto do Trabalhador Rural. op. cit. p.156.
41
Ver: PRADO JR. C. O Estatuto do Trabalhador Rural.
35
35
não atingem a massa trabalhadora rural (como sejam “reforma agrária
radical, “eliminação do latifúndio”, “terra para quem a trabalha”). Para
comprová-lo é bastante observar a diminuta audiência e receptividade
que tais slogans têm na massa dos trabalhadores que deveriam ser os
primeiros a ouvi-los e os entender.
42
O depoimento do ativista Nazareno Ciavatta é sintomático dessa afirmação,
pois revela as dificuldades do PCB em organizar os trabalhadores em torno dos sindicatos,
dada a divergência de interesses entre o partido e seu público alvo. Segundo Ciavatta,
(...) nossa posição sectária e esquerdista contribuía para os ataques da
reação. A nossa linha política naquele período nos levava a ver os
sindicatos rurais mais como um instrumento de agitação para a luta
armada, dentro da errônea revolução a curto prazo (...) Eu procurava
seguir a orientação e dizia aos camponeses que os fazendeiros não
pagavam, abusava, a polícia prendia, e que só mesmo uma revolução
podia resolver aquele estado de coisas. Um camponês disse para mim: ‘se
nós não temos força para obrigar os fazendeiros a pagar os salários e
cumprir as leis trabalhistas, que dirá tomar a fazenda dele!’ daí eu percebi
que o partido estava errado.
43
Isso porque, para Caio Prado, a reivindicação pela terra não se expressava de
forma revolucionária, como pensavam seus colegas de partido, afinal, para este autor, a
parcela esmagadora da população rural relacionava-se com o setor produtivo enquanto
vendedores de sua força de trabalho, como assalariados ou semiassalariados, e neste caso,
Não é suficiente o simples fato do elevado índice de concentração da
propriedade fundiária rural, (...) e de a grande maioria não disporem
dessa propriedade, para daí se concluir, sem mais que a questão da terra
se propõe de forma generalizada, e muito menos ainda que se propõe em
termos revolucionários.
44
Assim, a força motriz para desenvolver mudanças no campo e, em longo prazo,
atingir o socialismo, advinha do fornecimento de uma atenção especial às necessidades
deste grupo social.
As concepções de Caio Prado Jr, sofreram duras críticas internas e externas ao
PCB. Um dos opositores de sua análise sobre a questão agrária e, conseqüentemente, sobre
a reforma agrária era Alberto Passos Guimarães. Este autor analisou a estrutura agrária
mergulhada dentro de restos feudais, herança do passado colonial, dando uma conotação
pré-capitalista para a economia agrária. O resultado dessa análise atribuía à reforma agrária
42
PRADO JR. A Questão Agrária no Brasil, op. cit. p.167.
43
CIAVATTA, N. (Ribeirão Preto, 1990) Entrevista: Prática Política no Campo: Uma Experiência da
Militância Comunista. Concedida a Luiz Flávio de Carvalho Costa. In: Estudos Sociedade e Agricultura, 5,
nov. 1995.
44
PRADO JR. A Revolução Brasileira, op. cit. p.139.
36
36
um papel expropriatório, massivo e distributivista, que substituiria a grande propriedade
feudal voltada para o mercado externo, bem como as relações de trabalho marcadas pela
sujeição pessoal. Para Guimarães, a pequena propriedade camponesa seria responsável pelo
aquecimento e expansão do mercado interno e pela expansão do capitalismo.
Ao adotar tal avaliação, o autor tecia críticas aos que reconheciam o sistema
econômico baseado na grande propriedade como sendo de natureza capitalista, numa clara
negação aos pressupostos de Caio Prado Jr. Segundo ele:
Supondo-se inicialmente capitalista o regime econômico implantado no
Brasil-Colônia, estaria implícita uma solução diversa daquela
preconizada pelos partidários da reforma agrária. Se a estrutura brasileira
sempre teve uma configuração capitalista, por que revolucioná-la? Por
que reformá-la? (…) a negação ou mesmo subestimação da substância
feudal do latifundismo brasileiro retira da reforma agrária sua vinculação
histórica, seu conteúdo dinâmico e revolucionário.
45
Caio Prado parte de uma ótica diversa. Diferentemente de Alberto Passos ele
acreditava que a colonização brasileira se fez sobre bases mercantilistas, o que não impediu
o desenvolvimento capitalista. No entanto, era possível observar os vestígios desse passado
colonial, principalmente no que concerne às relações de trabalho. Por isso, enfatizava que o
objetivo central era melhoria das condições de vida do trabalhador, por meio de
reivindicações e de leis que pudessem regulamentar essas relações e o uso da terra. A
distribuição de terras e o desenvolvimento econômico, com a criação de um mercado
interno forte, viriam no rastro dessas melhorias.
Se no plano teórico havia discordâncias quanto aos objetivos da reforma
agrária, no plano prático, ou seja, naquele terreno referente à mobilização dos
trabalhadores, as divergências acentuavam-se. Um exemplo concreto do acirramento de
propostas encontra-se na formação das Ligas Camponesas no nordeste brasileiro que,
organizadas com a ajuda do PCB, logo adotaram uma postura mais radical, contrapondo-se
ao gradualismo assumido oficialmente pelo partido após o V Congresso.
As Ligas Camponesas tornaram–se a expressão política dos conflitos que se
expandiram na Zona da Mata nordestina, na medida em que as relações tradicionais de
produção começaram a sofrer consideráveis transformações, impulsionadas pelos aumentos
das taxas cobradas pelos proprietários de terras, o chamado foro e pela extinção do “sítio”.
46
45
GUIMARÃES, A. P. Quatro Séculos de Latifúndio, op. cit. p.p.33/34.
46
MEDEIROS, L. S. Reforma Agrária no Brasil: História e Atualidade da Luta pela Terra no Brasil.
Op. cit. Segundo a autora, o foro, correspondia ao aluguel pago pelos trabalhadores pelo uso da terra. Já o
termo “sítio” fazia referência à porção de terra cedida pelos usineiros aos trabalhadores para produção de
alimentos.
37
37
Os confrontos verificados no Engenho da Galiléia, em Pernambuco, foram considerados os
precursores da organização dos trabalhadores em torno das Ligas. Em 1959, com o auxílio
jurídico de Francisco Julião, o Engenho foi desapropriado o que representou um grande
impulso para a expansão das idéias defendidas pelo movimento em outros estados
nordestinos.
Em 1955, os foreiros da região, sob a orientação de Julião, criaram a Sociedade
Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco. Esta sociedade foi registrada em
cartório, o que lhe proporcionou um caráter legal frente ao governo, legitimando e
amparando, legalmente, as ações dos trabalhadores. No início, a sociedade teve um caráter
assistencial e de resistência, combatendo os despejos dos engenhos em virtude da expansão
da lavoura canavieira.
47
Com Francisco Julião na liderança, as Ligas Camponesas, segundo Dias,
Canalizaram a luta e reivindicação pelos direitos dos trabalhadores do
campo, a reforma agrária e extensão dos direitos trabalhistas. A trajetória
das Ligas caracterizou-se pela crescente radicalização de suas posições,
evidenciada na defesa da reforma agrária radical e na adesão ao ideário
da revolução camponesa, através da estratégia da guerra de guerrilha,
influência evidente da recente revolução Cubana.
48
A defesa do discurso da revolução camponesa, por meio de uma reforma agrária
radical e não conciliatória com outros setores da sociedade, colocava em xeque a proposta
de frente única defendida pelo PCB e, ainda, elevava os camponeses à condição de
principais atores da revolução socialista que se desencadearia, em meio a um processo
político, “do campo para a cidade”.
Em 1961, no Congresso de Belo Horizonte, organizado pelos comunistas por
meio da ULTAB, as controvérsias entre o líder das Ligas e o PCB, mostraram-se
irreconciliáveis. Neste Congresso formou-se uma Comissão deliberativa sobre a questão da
reforma agrária. Das discussões originou-se a Declaração do I Congresso Nacional dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o caráter da Reforma Agrária. Neste
documento, o grande impasse concentrava-se na questão da regulamentação da lei dos
arrendamentos e parcerias. Para o PCB não havia contradição em atender as reivindicações
imediatas dos trabalhadores, enquanto não se alcançavam as transformações almejadas para
o campo brasileiro. os representantes das Ligas defendiam medidas mais incisivas.
Segundo Guedes o PCB, salientava que,
47
RICCI, R. Terra de Ninguém: Representação Sindical Rural no Brasil. Campinas: UNICAMP, 1999.
48
DIAS, R. B. Sob o Signo da Revolução Brasileira: A Experiência da Ação Popular no Paraná 1962/
1973, op. cit. p.40.
38
38
(...) tais medidas (parciais de reforma agrária) aumentavam a área de
atrito entre as forças camponesas democráticas e o latifúndio,
dinamizavam a luta de classe no campo, ajudavam, enfim, a elevar a
consciência e o nível de combatividade das massas trabalhadoras rurais
pela reforma agrária radical.
49
Apesar dos argumentos apontados, os posicionamentos do líder das Ligas
prevaleceram. Para Julião, qualquer proposta de regulamentação, tanto dos arrendamentos
quanto do sistema de parceria, não passava de medidas paliativas e imorais, dada a
configuração da estrutura fundiária, caracterizada, segundo ele, pelo monopólio da terra.
Sendo assim, propõe a reforma agrária radical e imediata, com a constituição de métodos
coletivos de trabalho e propriedade.
50
Francisco Julião, ao propor a reforma agrária e a revolução socialista tendo os
assim chamados camponeses como seus principais protagonistas, iria distanciar-se, cada
vez mais, dos propósitos do PCB e de Caio Prado, porque esse posicionamento
49
GUEDES, A. O repórter do JB não pode compreender o Congresso dos Lavradores. Novos Rumos,
24-30/11/1961. Apud. COSTA, L. F. e SANTOS, R. Política e Reforma Agrária. Rio de Janeiro: Mauad,
1998. p.23.
50
Segundo a Primeira Proposta de Reforma Agrária Unitária dos Movimentos Camponeses do Brasil era: “o
monopólio da terra, vinculado ao capital colonizador estrangeiro, notadamente o estadunidense, que nele se
apóia, para dominar a vida política brasileira e melhor explorar a riqueza do Brasil. É ainda o monopólio da
terra o responsável pela baixa produtividade de nossa agricultura, pelo alto custo de vida e por todas as formas
atrasadas, retrógradas e extremamente penosas de exploração semifeudal, que escravizam e brutalizam
milhões de camponeses sem terra. Essa estrutura agrária caduca, atrasada, bárbara e desumana constitui um
entrave decisivo para o desenvolvimento nacional e é das formas mais evidentes do processo espoliativo
interno”. Para superar tal situação, a proposta previa “a radical transformação da atual estrutura agrária do país
com a liquidação do monopólio da terra exercido pelos latifundiários, principalmente com a desapropriação,
pelo governo federal, dos latifúndios, substituindo-se a propriedade monopolista da terra pela propriedade
camponesa, em forma individual ou associada e a propriedade estatal”. Para atingir tais objetivos previam a
“aplicação da legislação trabalhista; a desapropriação das terras não aproveitadas das propriedades acima de
500 hectares a partir de regiões mais populosas, das proximidades dos centros urbanos, das principais vias de
comunicação e reservas de água; adoção de um plano para regulamentar a indenização em títulos federais da
dívida pública, em longo prazo e a juros baixos, das terras desapropriadas, avaliadas à base do preço da terra
registrado para fins fiscais; Levantamento cadastral completo, pelo governo federal, estaduais e municipais, de
todas as terras devolutas; retombamento e atualização de todos os títulos de posse da terra. Anulação dos
títulos ilegais o precários de posse, cujas terras devem reverter à propriedade pública; imposto territorial rural
deverá ser progressiva, através de uma legislação tributária que estabeleça: 1) forte aumento de sua incidência
sobre a grande propriedade agrícola, 2) isenção fiscal para a pequena propriedade agrícola; regularização da
venda, concessão em usufruto ou arrendamento das terras desapropriadas aos latifundiários, levando em conta
que nenhum caso poderão ser feitas concessões cuja área seja superior a 500 hectares, nem inferior ao mínimo
vital às necessidades da pequena economia camponesa.” Torna-se importante ressaltar, que as propostas
apresentadas na conjuntura pré-64, independente da legenda partidária ou da ideologia em jogo, apresentavam
vários pontos em comum, tais como: a importância de sua execução como instrumento de desenvolvimento
nacional; a questão da tributação progressiva; a mudança do dispositivo constitucional que previa o pagamento
das indenizações em dinheiro; o cadastramento das propriedades para avaliar a real situação da estrutura
agrária brasileira; o latifúndio como mbolo do atraso e o uso das terras devolutas. Além disso, estas
reivindicações foram encampadas pelo Estatuto da Terra de 1964, sob o governo de Castello Branco. In:
STÉDILE, J.P. A Questão Agrária no Brasil: Programas de Reforma Agrária (1946/2003). São Paulo:
Expressão Popular, 2005. p.73.
39
39
desqualificava totalmente a força mobilizatória da classe assalariada. De acordo com o
líder,
(...) quando a luta se inicia no campo ela toma, imediatamente, caráter
político, o que não ocorre com a classe operária, cuja dinâmica é o
aumento de salário. O campesinato desatará o processo revolucionário
brasileiro e conseguirá influir para que a classe operária se associe à
luta.
51
Partindo da análise realizada, verifica-se que a defesa da reforma agrária, tanto
por parte das Ligas quanto do PCB, não se consubstanciava em um fim em si mesma. Esta
era entendida, por esses agentes como uma etapa para atingirem o objetivo almejado, a
saber: o socialismo. As diferenças residiam nas ações, nas estratégias e na forma que a
reforma assumiria no decorrer do “processo revolucionário”. O PCB percorreu um terreno
sinuoso tentando adequar-se às mudanças políticas e econômicas do país na medida em que
suas estratégias de ação se transformavam, imprimiam novas configurações para a
implantação da reforma agrária. Passando de uma reforma radical e expropriatória,
expressada no seu manifesto de 1950, o PCB passou para a defesa de uma reforma agrária
parcial e gradual, seguindo o gradualismo adotado no campo político no final da década de
50. Mas deve-se ressaltar que, apesar das mudanças de postura do partido frente à
transformação da sociedade, que dependendo do contexto seria atingida a curto, médio, ou
longo prazo, a reforma agrária ainda era vista como um processo necessário para dissolver
os resquícios feudais presentes na estrutura agrária brasileira e, assim, promover o
desenvolvimento nacional. Para as Ligas, a reforma seria o trampolim essencial e direto
rumo ao socialismo e, por isso mesmo, sua execução deveria ser imediata e massiva.
Conjuntamente com o PCB e as Ligas Camponesas, a Igreja Católica, a partir da
década de 50, passou a disputar direta e abertamente, com os demais agentes, a organização
dos trabalhadores rurais, inclusive formando sindicatos rurais sob sua influência.
Sua inserção da Igreja no debate sobre a reforma agrária nos anos 50,
caracterizava-se pela franca oposição às idéias revolucionárias que se espalhavam pelo
campo induzidas pelas ações do PCB e das Ligas. A aplicação de medidas sociais e de
conscientização foi realizada especialmente pela Ação Católica Rural (ACR).
52
A postura
51
JULIÃO, F. Julião (apóstolo da revolução brasileira) diz: revolução socialista e pelo campo. O Semanário
de 31/05/1962. Apud COSTA, L. F. e SANTOS, R. Política e Reforma Agrária. Rio de Janeiro: Mauad,
1998. p.26.
52
A Ação Católica Rural era uma extensão da Ação Católica Brasileira. Esta entidade foi criada para
leigos, em 1935, por D.Sebastião Leme, com o propósito de desenvolver o trabalho de
evangelização, no entanto, era uma entidade diretamente ligada à hierarquia católica.
40
40
de defesa da reforma agrária era considerada, neste contexto, como uma ação preventiva e
de contenção. De acordo com Martins,
A reforma agrária, ainda sem qualquer definição, passava a ser um
objetivo para ela, porém contido e limitado pelo temor de questionar o
direito de propriedade e os direitos da classe de proprietários de terra. Era
uma motivação conservadora e de direita, menos construída em cima de
uma práxis social, que ainda não tinha lugar, uma espécie de antecipação
preventiva, e muito mais derivada de um claro antagonismo ideológico
em relação às esquerdas.
53
Tal preocupação pode ser apreendida por intermédio da carta pastoral de D.
Inocêncio Engelke, Bispo de Campanha, publicada em Minas Gerais, em 10 de setembro de
1950. O documento era o resultado das discussões da Primeira Semana Ruralista
organizada pelo bispo e pela Ação Católica Brasileira, cuja finalidade consistia em debater
não somente os problemas da questão agrária brasileira, como, advertir seus participantes,
fazendeiros, religiosos e professores, sobre o avanço das idéias comunistas no campo.
Sintomaticamente, esta carta foi divulgada logo após o Manifesto do PCB de 1950, que
pregava a reforma agrária radical.
54
O documento episcopal, intitulado: Conosco, sem nós ou contra nós se fará a
Reforma Agrária, chamava a atenção para as precárias condições de vida dos trabalhadores
rurais, esclarecendo que esse ambiente era propício para a difusão das idéias “espúrias”, por
isso, conclamava a sociedade a se antecipar à revolução, antes que grupos indesejáveis a
fizessem. E, em um tom alarmista, o documento justificava a necessidade de medidas
emergenciais, pois,
Os agitadores estão chegando ao campo. Se agirem com inteligência,
nem o ter a necessidade de inverter coisa alguma. Bastará que
comentem a realidade, que ponham a nu a situação em que vivem e
vegetam os trabalhadores rurais.(...) Longe de nós, patrões cristãos, fazer
justiça movidos pelo medo. Antecipai-vos à revolução. Fazei por espírito
cristão o que vos indicam as diretrizes da Igreja.
55
Segundo o documento, a Igreja deveria se guiar pelas palavras de Pio XI,
quando este admite que O maior escândalo da Igreja no século XIX foi ter perdido a
53
MARTINS, J. S. Reforma Agrária: O Impossível Diálogo. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2004. p.95.
54
MARTINS, J. S. O Poder do Atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta. São Paulo: Hucitec, 1999.
55
Primeira Proposta de Reforma Agrária da Igreja Católica do Brasil 1950. In: STÉDILE, J.P. A Questão
Agrária no Brasil. Programas de Reforma Agrária (1946/2003). São Paulo: Expressão Popular, 2005. p.32.
41
41
classe operária, não cometamos a loucura de perder, também, o operariado rural.
56
Neste
sentido, destaca que,
(...) a situação do trabalhador é, em regra, infra-humano entre nós.
Merecem o nome de casa os casebres onde moram? É alimento a comida
de que dispõem? Podem-se chamar de roupas os trapos com que vestem?
Pode-se chamar de vida a situação em que vegetam, sem saúde, sem
anseios, sem visão, sem ideais?(...).
57
A situação precária do trabalhador rural alimentava, segundo o documento, a
intensificação do êxodo rural para os centros urbanos, já que estes exerciam forte poder de
atração sobre a população rural que se deslocava à procura de melhores condições de vida e
salários. No entender da Igreja este processo era pernicioso para os trabalhadores, uma vez
que a indústria, em processo de desenvolvimento, não teria condições de absorver tamanho
contingente populacional e, tal como no campo, se transformariam em um contingente
marginal ao processo de desenvolvimento. Para os proprietários rurais, o reflexo do êxodo
se faria abater sobre a produção, pois diminuiria substancialmente o número de mão-de-
obra disponível para as grandes lavouras. Especificamente para a Igreja, o temor pairava
sobre a perda de seu rebanho para os comunistas, em conseqüência dos efeitos
socialmente desagregadores da vida urbana sobre os migrantes.
58
A fim de reverter essa situação que ameaçava o status quo vigente, a Igreja
propõe uma Reforma Social Agrária a ser desenvolvida por etapas. Em um primeiro
momento os esforços voltar-se-iam para a seleção e formação de líderes, cuja tarefa
centralizar-se-ia na recuperação do operariado do campo. Neste momento, o termo
“recuperar o operariado do campo” significava, antes de tudo, distanciá-los dos ideais
radicais e revolucionários. A influência da esquerda seria combatida por meio do
fortalecimento da evangelização e dos ideais cristãos, objetivando, também, conscientizá-
los de que a mudança da sua condição de vida poderia e deveria ser realizada dentro do
sistema vigente. Por isso, a importância atribuída aos líderes comunitários, visto que,
Vendo sair de seus próprios meios os apóstolos de uma redenção social e
cristã, o mundo agrícola tomará consciência do importante papel que
exerce no seio da comunidade nacional e se encontrará apto ao exercício
de seus sagrados direitos e de suas não menos sagradas obrigações (...)
Só, assim, apoiado na ação e na palavra de elementos tirados de seu
meio, nos quais deposita toda a sua confiança, o homem do campo
poderá defender-se contra as perigosas seduções daqueles que enxergam
nele um caldo de cultura fecundo para o bacilo das agitações e das
56
Idem, p. 31.
57
Idem, p. 31.
58
MARTINS, J. S. O Poder do Atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta, op. cit. p.101.
42
42
revoluções violentas, poderá contribuir para que sua numerosa classe
venha a coloca-se em igualdade de condições com as demais classes dos
setores urbanos.
59
Além de conscientizar, os líderes comunitários exerceriam o papel de
condutores das reivindicações dos trabalhadores. Sua meta, neste caso, seria defender a
implantação da humanização do trabalho” por meio de leis que regulamentassem as
relações de trabalho no campo, assim como já acontecia nos centros urbanos.
Com relação à segunda etapa da reforma agrária, o documento não apresenta
uma proposta precisa quanto ao método da reforma. Nota-se, ainda, a ausência de uma
definição quanto ao aparato legal necessário para sua execução. A defesa da reforma
agrária, sem muitas definições e incipiente, era considerada o antídoto para que a situação
no campo não fugisse ao controle da ordem estabelecida. Nos dizeres de Martins, a origem
política do comprometimento da Igreja com a questão da reforma agrária representava a
opção preferencial pela ordem.”
60
Sendo assim, o documento chamava a atenção dos
proprietários de terras para que tomassem as rédeas das transformações sociais e passassem
a defender a reforma dentro dos preceitos cristãos
61
que preservavam a propriedade privada,
antes que a esquerda a fizesse nos moldes revolucionários.
Se por um lado o documento de 1950 apresentava uma raiz nitidamente
conservadora, por outro marca o início da trajetória da Igreja com relação aos problemas
do campo e sua efetiva atuação por meio da ação pastoral. Portanto, a inserção da Igreja
perante a questão agrária desenvolveu-se, inicialmente, de forma contraditória visto que
impunha o imperativo das transformações no campo, mas como elemento necessário para a
conservação da propriedade.
No entanto, os preceitos defendidos no documento de 1950, não devem ser
considerados enquanto uma visão hegemônica no interior da Igreja. Havia uma crescente
59
Primeira Proposta de Reforma Agrária da Igreja Católica do Brasil – 1950, op. cit. p.p.36/37.
60
MARTINS, J. S. Caminhada no Chão da Noite: Emancipação Política e Libertação nos Movimentos
Sociais do Campo. São Paulo: Hucitec, 1989. p.31.
61
O documento nos oferece indícios do que seria uma reforma agrária dentro dos padrões cristãos, ao indicar
que haveria “uma enorme massa de trabalhadores sem terras e enormes áreas de terras sem trabalhadores...”.
Ao salientar a existência que grandes extensões de terras incultas, aponta, com clareza, para uma reforma
agrária, em terras desocupadas, o que não ameaçaria diretamente os proprietários rurais. E segue apelando para
a fé, tentando convencer os proprietários rurais a defender a causa da reforma agrária, como uma das soluções
para os problemas do campo, ao relatar que: “o Cristianismo não se contenta com vossas esmolas exige de
vós justiça para vossos trabalhadores. Dai-lhes uma condição humana e cristã. (...) E isso não com o pavor da
derrota, mas por uma questão de fé, pois a nos ensina que, sendo todos filhos do mesmo Pai que está nos
céus, somos todos irmãos. Há de haver na terra lugar para todos nós. Deus não errou a conta, e o mundo há de
abranger-nos, sem a necessidade de mutuamente nos devorarmos”.
43
43
onda de divergências internas, em especial aquelas ligadas à análise e às causas dos
problemas nacionais, especificamente os relacionados ao meio rural.
62
O documento “Declaração dos Bispos do Nordeste” em suas duas versões, de
1956 e de 1959, exemplifica a concretização desses intensos debates. Ao apontar para
mudanças significativas com relação à interpretação que uma parcela da Igreja,
63
começava a promover quanto às causas dos problemas sociais e econômicos do meio rural
brasileiro. Segundo Martins,
(...) o novo conceito que centraliza o pensamento episcopal é o do
desenvolvimento. (...) A primeira decorrência da adoção do conceito de
desenvolvimento como idéia mestre da interpretação da realidade social
por parte da Igreja foi uma ampla reavaliação crítica da situação e das
relações sociais e, mais especificamente, das relações de trabalho.
64
De acordo com essa interpretação, as péssimas condições de vida dos
trabalhadores rurais provinham da ausência de desenvolvimento econômico e, por
conseguinte, da incapacidade das economias atrasadas de gerar possibilidades reais para
romper com o círculo vicioso da pobreza do campo. Desta feita, o desenvolvimento
capitalista, com vistas a uma plena e justa distribuição da riqueza, resultaria na
minimização dos aspectos negativos das relações produtivas no campo.
65
Martins salienta
que,
A declaração é quase um documento técnico, com indicação de
diagnósticos econômicos e soluções. É verdade que foi produto de uma
reunião mista, envolvendo bispos, técnicos do governo e militares. Se a
carta do bispo de Campanha foi um documento centrado na noção de
ordem, a Declaração dos Bispos do Nordeste foi um documento centrado
62
Segundo o autor, vários documentos episcopais foram produzidos buscando não somente chamar a atenção
para os problemas regionais e do campo, como também formulavam explicações para as causas da situação
explosiva do meio rural: "A Igreja e a Amazônia” de julho de 52; “A Igreja e o Vale do São Francisco” de
agosto de 52; assembléia geral da CNBB de setembro de 54 e o documento mais crítico elaborado a partir
das análises socioeconômicas realizado pela Conferência dos Bispos do Nordeste em 1956, em Campina
Grande/ PB.
63
A inserção da Igreja no debate político em torno da questão agrária acontece de forma complexa por
congregar em seu interior o surgimento e desenvolvimento de vários posicionamentos que buscavam encontrar
explicações e soluções para os problemas políticos e sociais do campo brasileiro. A convivência de
concepções tão distintas no interior da Igreja é possível porque, segundo Geraldo Poker: (...) apesar de
pretender-se única e homogênea, não trata e nem fala a seus fiéis todos da mesma maneira (...) Os diferentes
modelos de religiosidade parecem endereçar-se a atender os interesses e necessidades de classes sociais
determinadas. Usando a metáfora do corpo, a Igreja consegue universalizar-se ao mesmo tempo em que se
particulariza (...) por mais contraditório que seja o catolicismo muito vem servindo como religião que
fornece a legitimidade teológica para a dominação e conservação e simultaneamente, também, sendo
depositário ideológico do qual se pode retirar os princípios das lutas de resistência e transformação.” POKER,
J. G. A. B. A Prática da Vida e os Desencontros da Libertação. São Paulo: Dissertação de Mestrado. USP,
1994. p.p. 120/121.
64
MARTINS, J. S. Caminhada no Chão da Noite: Emancipação Política e Libertação nos Movimentos
Sociais do Campo, op. cit. p.42.
65
MARTINS, J. S. O Poder do Atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta, op. cit. p.110.
44
44
na noção de progresso. É fundamentalmente uma declaração
desenvolvimentista, com amplas recomendações favoráveis à
modernização técnica, aos investimentos de capital, à modificação das
estruturas econômicas. É, de modo claro, uma opção pelo
desenvolvimento econômico como saída para o atraso, a pobreza e a
economia agrária tradicional e latifundista.
66
que se ressaltar a presença do presidente Juscelino Kubitschek no
encerramento do conclave, onde se pronuncia favorável aos posicionamentos defendidos na
Declaração. Posteriormente, a criação da Operação Nordeste, embrião da SUDENE
(Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), cujo objetivo era arquitetar projetos
de integração regional e de desenvolvimento econômico para a região. Essas iniciativas
eram um reflexo das discussões em torno da miséria e do atraso econômico de algumas
localidades, no caso da SUDENE, principalmente do Nordeste brasileiro. Os bolsões de
pobreza alimentavam os bolsões de instabilidade política, estimulando a proliferação das
Ligas Camponesas e de outros movimentos de trabalhadores no interior do Brasil. Esse fato
era analisado enquanto um elemento comprobatório de tal tese, justificando a ação estatal
como um instrumento para conter o avanço desses grupos.
A reforma agrária, nos documentos episcopais deste período, era considerada,
conjuntamente com a adoção de leis que assegurassem a igualdade jurídica e os diretos
civis aos trabalhadores, um dos preceitos relevantes para sanear os problemas de ordem
política e social. No entanto, a Igreja se debatia entre duas considerações aparentemente
antagônicas: de um lado defendia a execução de uma reforma agrária, fincada nos preceitos
cristãos de que todo homem, na verdade, tem o direito a aspirar à propriedade, para si e
sua família, de um pedaço de terra, sobre o qual estabeleça permanentemente o seu lar e
de cuja entranha retire, pelo trabalho, o próprio sustento e dos seus”. Por outro,
considerava dever do Estado a defesa do direito de propriedade, já que possuir
singularmente bens como seus é direito dado ao homem pela natureza”.
O documento - Reforma Agrária: Uma Questão de Consciência fornece os
princípios que norteariam a execução de uma reforma agrária definida como justa por parte
da ala considerada conservadora da Igreja. E pelo trecho abaixo, pode-se apreender os
descompassos dos diversos posicionamentos com relação aos problemas relacionados ao
campo. Segundo o documento,
66
MARTINS, J. S. Caminhada no Chão da Noite: Emancipação Política e Libertação nos Movimentos
Sociais do Campo, op. cit. p.37.
45
45
(...) não negamos que em alguns aspectos esse regime pode e deve ser
urgentemente melhorado, para obedecer aos ditames da justiça e
satisfazer às exigências do bem comum. Assim, por exemplo, lugares
em que as condições de vida do homem do campo estão a clamar por
uma grande melhoria. Em várias zonas, é conveniente substituir
propriedades grandes por outras médias, ou até pequenas, facilitando-se
desse modo o acesso do trabalhador à condição de proprietário.(...)
Sobretudo, cumpre que a lei não viole direitos adquiridos, cujo respeito é
uma das bases de toda a ordem legal nos países civilizados. Por exemplo,
pode e deve o Estado conceder terras devolutas, das quais é proprietário,
a trabalhadores rurais. Mas não pode decretar a transferência de
propriedades particulares para as mãos de terceiros, a não ser que se
demonstre haver para isto, em uma ou outra zona, justa e grave causa,
fundada no bem comum. Ainda assim, é mister que cada proprietário
possa fazer valer os seus direitos. E a desapropriação será justa se for
feita mediante indenização exatamente igual ao valor da propriedade.
67
Nestes termos, considerava-se apropriada uma reforma agrária circunscrita às
terras devolutas, ou em regiões onde houvesse graves conflitos de terras. Ainda assim, a
desapropriação deveria ser realizada obedecendo aos princípios constitucionais da
indenização em dinheiro. Portanto, os limites da reforma agrária eram estabelecidos pelo
direito de propriedade, por isso a defesa de que a reforma a ser executada deveria ser,
primordialmente, em terras do Estado. Mais do que isso, o documento procura dissecar as
diferenças existentes entre a reforma agrária de cunho “comunista” e a reforma agrária tida
como justa, que obedecia aos desígnios cristãos.
No início do documento, um aviso preliminar que tenta esclarecer ao leitor
que na conjuntura pré 64 havia duas formas de conceber a reforma da estrutura fundiária.
Neste sentido, afirma o documento que,
Pode-se falar de uma reforma agrária sadia, que constitua autêntico
progresso, em harmonia com nossa tradição cristã. Mas também se pode
falar de uma reforma agrária revolucionária, esquerdista e malsã, posta
em desacordo com essa tradição. Este último tipo de reforma agrária
importa em golpear a fundo até em eliminar a propriedade privada. Por
isso mesmo ele deve ser tido como hostil também à família.
68
A partir de 1963, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil),
assumiria uma defesa mais efetiva da reforma agrária, concebendo-a como solução
inadiável, conjuntamente com outras medidas de ordem educacional, técnica, assistencial e
creditícia. Além disso, admitia-se que a desapropriação por interesse social não não
contraria em nada a Doutrina Social da Igreja, mas é uma das formas viáveis de realizar,
67
SIGAUD, G. P. (org) Reforma Agrária: Uma Questão de Consciência. São Paulo: Vera Cruz, 1962. p.p.
182-184.
68
Idem, p.01.
46
46
(...) a função social da propriedade rural.
69
Tendo em vista tal perspectiva, a indenização
poderia ser efetivada em dinheiro ou em títulos da dívida pública, de acordo com as
possibilidades do país e atendendo as prerrogativas do bem comum.
Para Moreira, esta tomada de decisão marca o início da superação, por uma
parte da Igreja, do chamadodogma da propriedade privada, pela noção de função social
da propriedade e, sobretudo, o principal entrave para a realização da reforma agrária, a
necessidade de indenização prévia, justa e em dinheiro.”
70
Outro ponto que pode-se
apreender desse redirecionamento de uma parcela da Igreja, no que tange à reforma agrária,
refere-se à crescente inserção dos ideais socialistas no interior dos quadros da Igreja,
influência que será mais claramente percebida após a década de 70.
O ponto de partida que sustentou a adoção de outras formas de interpretar os
instrumentos viabilizadores de uma efetiva reforma agrária no país, bem como os princípios
que deveriam nortear a organização dos trabalhadores rurais em sindicatos e organizações,
foi, sem dúvida, a noção moral de progresso e desenvolvimento, defendida na Declaração
dos Bispos do Nordeste. Para Martins,
Essa concepção moral de desenvolvimento servirá, nos anos seguintes,
como parâmetro crítico para a avaliação pastoral e política das condições
de vida do povo brasileiro por parte da Igreja. Será a idéia elemento que
permitirá o avanço da consciência e da postura crítica de religiosas,
sacerdotes, e bispos no confronto de uma realidade social de conflitos,
violência e expropriação. (...) Mas, se antes a motivação tinha uma raiz
conservadora, em defesa da ordem, agora a raiz era outra: tratava-se de
promover uma entrada maciça dos trabalhadores rurais no moderno
mundo capitalista, basicamente no mundo da igualdade jurídica e dos
direitos civis.
71
Vale ressaltar que esta idéia moral de progresso não significou o abandono das
premissas anticomunistas no interior da Igreja. Tanto que, no governo Goulart, quando este
assume a defesa das Reformas de Base, dentre elas a reforma agrária como plataforma
principal de seu turbulento mandato, setores da Igreja e da sociedade civil se organizam em
torno da TFP (Tradição, Família e Propriedade), com um discurso fincado na defesa da
propriedade e contrário a qualquer alteração da estrutura fundiária. De acordo com Martins,
a Igreja somente irá firmar uma posição doutrinária a favor da reforma agrária a partir da
69
MOREIRA, A. O Papel da Igreja na Questão Agrária. Bragança Paulista: EDUSF, 1994. p.11.
70
Idem, p.11.
71
MARTINS, J. S. Caminhada no Chão da Noite: Emancipação Política e Libertação nos Movimentos
Sociais do Campo, op. cit. p.p.44/45.
47
47
década de 80, após um longo processo de amadurecimento de sua experiência com o
trabalho pastoral.
72
Paralelamente às disputas políticas dos agentes que tentavam direcionar os
movimentos dos trabalhadores rurais em prol da execução de uma reforma agrária
instrumentalizadora de seus projetos políticos, havia, também, um emaranhado de propostas
de reformulação da estrutura fundiária e, conseqüentemente, da economia rural nos mais
diversos meios da sociedade, sejam eles institucionais ou não. Segundo Aspásia Camargo,
Nunca tantas forças se manifestaram convencidas da necessidade e da
urgência de uma reforma agrária. O governo, a classe política, a sociedade
civil, as associações camponesas e mesmo as classes produtoras, que, em
posição defensiva, aceitam medidas de transformação social no campo.
No entanto, a multiplicidade de propostas encobre interesses e
compromissos de natureza diversa. (...) transformando o surto reformista
em um penoso e difícil impasse.
73
Não por acaso, se multiplicavam os projetos de reforma agrária no Congresso
Nacional que terminavam por perder-se em meio às discussões políticas e ideológicas
incapazes de se traduzir em resultados efetivos. De acordo com Mary del Priore, entre 1947
e 1962, nada menos que 45 projetos de lei relacionados à temática tramitaram no
Congresso.
74
72
Segundo o autor o documento que marca claramente uma posição oficial da Igreja com relação a reforma
agrária é a Igreja e os problemas da Terra. CNBB, 1980. Vários fatores contribuíram para o crescimento da
pastoral de conscientização da Igreja, possibilitando, inclusive, o surgimento de uma “ala” denominada
progressista dentro da Instituição, cuja base teórica era alicerçada na associação do socialismo com o
cristianismo. Posteriormente, essa nova “doutrina” ganhou representação na chamada Teologia da Libertação
que, nas décadas posteriores, exerceu uma grande influência com relação a reivindicação da reforma agrária e
na organização dos trabalhadores rurais. Dentre as transformações internas pode-se, ainda, ressaltar o trabalho
pastoral, mais combativo e de cunho intervencionista frente aos problemas sociais, principalmente aos
relacionados ao meio rural. Organizações como, a citada, Ação Católica Brasileira, que a partir de 1948,
passou por um processo de reestruturação e renovação pastoral e o surgimento da JOC (Juventude Operária
Católica), JAC (Juventude Agrária), JEC (Estudantes Secundaristas), JUC (Juventude Católica Universitária) e
JIC (Juventude Independente). A essas organizações, formadas por religiosos e civis, somava-se as
Comunidades Eclesiais de Base, formalmente oficializadas na II Assembléia Geral da Conferência Episcopal
Latina Americana, realizada em Medelin, na Colômbia, que tinha como objetivo criar espaços de
sociabilidade, onde os fiéis pudessem refletir sobre sua realidade e ao mesmo tempo transformarem-se em
sujeitos de práticas que viessem a modificá-la. A partir da década de 70, surge a Comissão Pastoral da Terra,
que em nome da opção pelos pobres, irá intervir nos conflitos agrários e mediar diretamente a organização dos
trabalhadores rurais em movimentos sociais, com o propósito de reivindicar uma ampla reforma da estrutura
agrária no país. Além do trabalho desenvolvido por essas organizações, que fortaleceu uma visão mais
“progressista” dentro da Igreja, que se ressaltar que, em especial, na década de 60 e 70, ocorreu uma
repressão aos religiosos, principalmente os que estavam envolvidos com os trabalhos pastorais de educação e
conscientização, considerados núcleos de desenvolvimento de idéias subversivas. Ver SALEM, (org) Dos
Palácios à miséria da Periferia. In: Igreja dos oprimidos. São Paulo: Brasil Debates, 1981 e MARTINS, J. S.
Caminhada no Chão da Noite: Emancipação Política e Libertação nos Movimentos Sociais do Campo,
op. cit.
73
CAMARGO, A. A. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964). In: FAUSTO, B. O
Brasil Republicano: Sociedade e Política (1930-1964). São Paulo: Difel, 1983. p.201.
74
PRIORE, M. e VANÂNCIO, R. Uma História da Vida Rural no Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p.
199.
48
48
Parte considerável dessas propostas foi estimulada pelo fortalecimento do
movimento nacionalista
75
na sociedade civil e nas fileiras congressistas. A Frente
Parlamentar Nacionalista, que surge como reflexo da importância adquirida pelo
movimento, reunia no Congresso Nacional, políticos progressistas de várias agremiações,
visando acumular apoio para reivindicar e aprovar reformas estruturais, que muitas vezes,
não encontravam eco em suas legendas de origem. Apesar das diferenças de programas
partidários havia, tanto entre os participantes da FPN quanto em relação aos simpatizantes
do movimento, uma convergência de idéias centrada na necessidade de promover um
desenvolvimento econômico autônomo para o país. Neste sentido, Rogério Proença Leite,
salienta que,
O principal aspecto econômico que se encontra inserido neste
nacionalismo político é a tentativa de expansão do mercado capitalista
tendo em vista um “desenvolvimento autônomo”. A principal orientação
que guiava os países latinos americanos no pós-guerra residia no esforço
de completar o chamado ciclo de substituição das importações e iniciar
uma nova fase de produção de bens de capital. Essa passagem implicava
na dinamização do mercado interno e no fortalecimento da produção
nacional, objetivando senão inverter pelo menos minimizar o fluxo de
investimentos externos para o real desenvolvimento de uma economia
independente.
76
Na prática, independentemente das diferenças ideológicas no interior do
movimento, a reforma agrária era considerada um dos instrumentos primordiais para
alavancar o desenvolvimento nacional. Em primeiro lugar, porque contribuiria para o
fortalecimento do mercado interno, suporte necessário para a otimização da indústria, e, em
segundo lugar, porque possibilitaria a modernização da agricultura, tornando-a
racionalmente produtiva e capaz de atender à crescente demanda interna por produtos e
matéria-prima para a indústria. Para Vânia Moreira, desde a era Vargas a colonização e a
75
Embora não seja o foco da pesquisa, torna-se importante indicar os pressupostos sobre reforma agrária do
movimento nacionalista em virtude da forte influência deste movimento na sociedade e no cenário político
brasileiro. De acordo com Vânia Moreira, “Esse movimento, dos anos 50 e 60, marcou profundamente o
pensamento e a ação de políticos, intelectuais, sindicalistas, trabalhadores, padres e estudantes (...) A luta
política e ideológica dentro dos partidos, sindicatos e associações de intelectuais, estudantes e militares foi
matizada pelo vocabulário nacionalista e entre as inúmeras tendências nacionalistas então existentes duas
destacaram-se pela amplitude obtida no cenário da época: o nacional-desenvolvimentismo e o nacionalismo
econômico”. Não obstante a multiplicidade de tendências, comungava da idéia do desenvolvimento econômico
autônomo para o país. MOREIRA, V. L. Nacionalismos e Reforma Agrária nos Anos 50. In: Revista
Brasileira de História, vol.18, nº 35. São Paulo, 1998.
76
LEITE, R. P. A Dupla Face do Nacionalismo: Ideologia, Discurso e Dominação em Kubitschek e
Médici. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1995. p.104.
49
49
reforma agrária eram interpretados como fatores indispensáveis à modernização da
agricultura, à formação de um mercado interno consumidor e à efetiva industrialização”
77
Se por um lado a reforma agrária era interpretada pelos governos pós 54 como
uma das medidas necessárias para que o Brasil alcançasse o “status” de nação moderna, por
outro, o jogo de forças políticas condenava-os a uma posição vulnerável de quase
estagnação frente à temática. Neste sentido, contando que havia certo consenso com relação
à necessidade da reforma agrária, esta se esvaziava no preâmbulo das definições. De acordo
com Aspásia Camargo,
Existiam dois problemas básicos e correlatos, que constituíam o cerne
das discussões sobre a política agrária: o primeiro, relacionado com a
questão fundamental de saber que tipo de reforma agrária implementar
(tendo em vista a multiplicidade de projetos que iam desde da reforma
expropriatória distributivista até a capitalista, proposta pelos grupos mais
conservadores) isto é, quem beneficiar, e a que nível, em detrimento de
que forças sociais e políticas; o segundo, refere-se as fórmulas
institucionais para executá-la através de alianças que tornem seus custos
sociais politicamente viáveis.
78
Assim, o poder executivo na conjuntura pós 54, seguia equilibrando-se sobre o
fio da navalha. Sujeito às pressões das massas e a necessidade de realizar alianças visando
ampliar sua base governista, projetava em seus planos de ação medidas que buscavam criar
anteprojetos oficiais sobre a reforma agrária. Não raro observar nas mensagens de governo,
ou em pronunciamentos oficiais, o combate ao latifúndio e a defesa de reformas na
estrutura agrária. No entanto, o ímpeto” reformista esbarrava em sólidas resistências,
tanto da sociedade civil, quanto do Congresso, que impuseram limites políticos aos planos
de governo, obrigando seus mandatários a avaliar os riscos e redefinir prioridades sob
pena de desestabilizar o poder.”
79
Vargas, em seu segundo mandato, retomou as discussões em torno da
reestruturação fundiária. Em sua campanha presidencial, em 10 de agosto de 1950, ele
acenava para a formulação de uma Lei Agrária que condicionasse o uso da propriedade
rural a uma finalidade social. Segundo Vargas em seu discurso,
O latifúndio, que é a terra improdutiva, não aproveitada, à espera de
valorização, deve ser desapropriado pelo Estado para fins de utilização
econômica. Mas quem for proprietário de terras e não puder aproveitá-las
77
MOREIRA, V. L. Nacionalismos e Reforma Agrária nos Anos 50, op. cit. p.15.
78
CAMARGO, A. A. A Questão Agrária: Crise de Poder e Reformas de Base (1930-1964), op. cit. p.193.
79
Idem, p.127.
50
50
por falta de recursos, precisa receber financiamento, para poder produzir.
A própria terra é a mais sólida das garantias.
80
A fim de dar encaminhamento às intenções de campanha, Vargas criou a
Comissão Nacional de Política Agrária,
81
em 1951, por meio do Decreto n.º 29803, cujo
objetivo era propor diretrizes para a organização e o desenvolvimento da economia
agrícola.
A evidente habilidade política em seu discurso de campanha, no sentido de
tentar congregar forças políticas antagônicas, não foi suficiente para neutralizar as
discussões em torno da mudança do dispositivo constitucional que regulamentava o
pagamento das indenizações em dinheiro.
A estratégia traçada pela Comissão de Política Agrária para contornar limites
impostos pela Constituição de 1946, consistia em criar uma emenda constitucional que
submetesse à desapropriação dos latifúndios improdutivos ao artigo 147, da Constituição
Federal, que recomendava a desapropriação por interesse social, e não mais ao artigo 141,
parágrafo 16, que estabelecia a desapropriação com pagamentos indenizatórios prévios e
em dinheiro.
A Comissão julgava que, se as propriedades fossem desapropriadas por não
cumprirem sua função social, não seria prudente efetuar o pagamento com base no valor de
mercado já que, na maior parte dos casos, esse valor era mantido “artificialmente” por meio
de especulação.
Assim, a proposta de pagamentos indenizatórios realizar-se-ia tendo por base o
“valor histórico” da propriedade, ou seja, o montante pago pelo desapropriado no ato da
compra do imóvel, acrescido do pagamento das benfeitorias e dos juros bancários.
82
80
Discurso em São Paulo, 10 de Agosto de 1950. In: Getúlio Vargas. A Campanha Presidencial. Rio de
Janeiro: José Olimpio, 1951. p.53.
81
Dentre as metas a serem alcançadas pela Comissão, por meio de seus estudos exploratórios sobre a realidade
do campo brasileiro, figuravam: “maior desenvolvimento, produtividade e estabilidade da produção, mercado,
preços dos produtos do campo e dos rendimentos dos produtores, ao mesmo passo que preços mais baixos para
os consumidores; amparo ao trabalhador rural, ampliação de suas possibilidades de emprego e melhoria dos
seus salários e condições de vida; extensão progressiva aos meios rurais do regime de previdência e
assistência; revisão das regras do direito positivo que regulam as relações entre proprietário, e parceiros e
foreiros, com o objetivo de dar eficácia às garantias e assegurar aos lavradores o fruto de seu trabalho;
barateamento da terra, através do desencorajamento de sua posse improdutiva ou especulativa, como a revisão
das normas legais sobre desapropriação para fins de colonização, melhor utilização das terras do domínio
público da União, do Estado e dos Municípios, bem como ampliação substancial dos recursos e dos órgãos
públicos no sentido de tornar acessível a propriedade da terra ao maior número, através de um plano nacional
de colonização”. In: DE CARLI, G. História da Reforma Agrária. Brasília: Gráfica Brasiliana, 1985. p.163.
82
GUIMARÃES, A. P. Reforma Agrária. In: BELOCH, I. e ABREU, A. A. (org) Dicionário Histórico-
Biográfico Brasileiro (1930-1983). v. 04. Forense Universitária.
51
51
O item baseado no valor histórico era extremamente polêmico e considerado
totalmente inaceitável para diversos setores. As Diretrizes para a Reforma Agrária no
Brasil, contava com mais cinco itens, dentre eles destacavam-se: a colonização a ser
realizada em áreas de terras férteis e próximas a mercados de consumo; a disponibilização
de crédito, preferencialmente para o pequeno produtor, com diminuição dos entraves
burocráticos e diminuição das garantias reais exigidas e a aplicação de impostos territoriais.
Em consonância com seu discurso de campanha, Vargas esperava promover o
desencorajamento da posse improdutiva da terra e, ao mesmo tempo, estimular os
proprietários a investir uma parte maior da sua renda em benefício da racionalização da
produção.
83
A tramitação das diretrizes, embora contasse com a aprovação e recomendação
de Vargas, se arrastou pelo Congresso em virtude dos impasses causados pelas discussões
entre membros da oposição e situação. Com isso, a Comissão de Justiça do Senado mandou
arquivar a proposta de desapropriação por interesse social, esvaziando-se, portanto, as
diretrizes da Comissão Nacional de Política Agrária. A alegação para o arquivamento
fundamentava-se no julgamento de que a reforma agrária não poderia vincular-se somente a
distribuição de terras, mas também a projetos que contemplassem a assistência técnica,
financeira, o transporte e o escoamento da produção.
Este, aliás, seria o argumento comumente utilizado pela oposição para dificultar
a tramitação das propostas de reforma enviadas ao congresso até 1964, quando esta sofre
um duro golpe com a promulgação do Estatuto da Terra, Lei n.º 4504, especialmente por
dois motivos: o primeiro referia-se à aprovação da desapropriação por interesse social
conjugada à emenda constitucional que previa pagamentos das indenizações em títulos da
dívida pública; e o segundo, pela oficialização de uma política agrícola, inclusa na mesma
lei.
Ainda no governo Vargas, o projeto de reforma agrária
84
apresentado pelo
deputado Coutinho Cavalcanti do PTB/SP, mesmo ajustado às diretrizes da Comissão e
apesar de ser (...) considerado como o modelo de proposta identificada com os
83
DE CARLI, G. História da Reforma Agrária, op. cit. p.p.166/167.
84
O plano geral de reforma agrária do deputado apresentava objetivos comumente defendidos por várias
forças sociais e políticas, tais como: combater o latifúndio e o minifúndio; melhorar a organização e extensão
do crédito agrícola; estimular as diversas formas de associação; eliminar progressivamente, substituindo por
formas racionais, o sistema feudal de exploração e ocupação da terra, elevar os índices de produtividade da
terra e aumentar o volume geral da produção, quantitativamente e qualitativamente; condicionar o direito a
propriedade à produtividade econômica do imóvel, de acordo com sua capacidade e destino. Projeto de
reforma agrária apresentado pelo deputado Coutinho Cavalcanti PTB/SP. In: STÉDILE, J.P. A Questão
Agrária no Brasil: Programas de Reforma Agrária (1946/2003). São Paulo: Expressão Popular, 2005. p.41.
52
52
trabalhistas e com os reformistas de uma forma geral
85
, se dissolve, assim como as demais
propostas, em meio aos impasses políticos e às discordâncias quanto ao formato que a
reforma deveria assumir. Dentre as diretrizes inovadoras figurava a importância que os
municípios teriam como executores da lei por meio das Comissões Agrárias Municipais.
Essas Comissões seriam encarregadas de promover o levantamento das terras suscetíveis de
desapropriação, bem como os planos de desapropriação.
86
No capítulo II, artigo 70, do projeto de Cavalcanti, a avaliação das propriedades
seguiria a seguinte ordem,
As terras incultas, susceptíveis de um cultivo permanente em extensão
superior a 30% de sua área total; as manifestadamente mal cultivadas; as
beneficiadas por obras públicas ou sociais; exploradas sistematicamente
em regime de arrendamento ou renda fixa, em dinheiro ou em espécie,
durante um período mínimo de 5 anos; as situadas nas proximidades dos
centros populosos e que não estejam sendo intensiva e racionalmente
exploradas, de acordo com o abastecimento local.
87
Neste processo de liberação de terras, incluíam-se, ainda, as terras devolutas,
que, como as demais, passariam pelo cadastramento e, em seguida, seriam liberadas para
desapropriação pelas Comissões Municipais.
A proposta ressaltava a regulamentação dos contratos trienais de arrendamento
com a taxa de pagamento máxima fixada em 15% do valor do imóvel e 20% para os
contratos de parceria.
Quanto à indenização, esta se basearia no valor declarado pelo proprietário da
terra para fins de tributação no ato do cadastramento, acrescido de juros. Apesar de
detalhado, o projeto de reforma agrária de Cavalcanti não mencionava o procedimento pelo
qual se efetuaria o pagamento dos imóveis, ou seja, se haveria a necessidade de alteração da
Constituição de 1946, em seu artigo 141, parágrafo 16. Assim, ao mesmo tempo em que se
esquivava do tema polêmico, lançava a sua proposta no “buraco negro” das interpretações,
onde o parâmetro utilizado gravitava em torno do direito de propriedade e da
constitucionalidade da proposta.
De todas as iniciativas governamentais que visavam uma reformulação agrária,
sejam as relacionadas com mudanças nas relações de trabalho ou, ainda, da estrutura
fundiária, poucas sobreviveram à pressão exercida pela oposição. De acordo com Aspásia
Camargo,
85
CAMARGO, A. A. A Questão Agrária: Crise de Poder e Reformas de Base (1930-1964), op. cit. p.151.
86
Projeto de reforma agrária, apresentado pelo deputado Coutinho Cavalcanti PTB/SP. op. cit. p.41.
87
Idem, p.42.
53
53
Restaram o Serviço Social Rural, absorvido pela inércia burocrática (...);
a Comissão de Política Agrária, que conseguiu durante vários anos
prestar informações e serviços que abasteciam comissões de estudos e
mantinham viva a idéia de um necessário reajuste da estrutura agrária às
novas exigências do desenvolvimento.
88
As intenções do governo Vargas, relacionadas à política agrária foram
duramente criticadas pela oposição. O jornalista Carlos Lacerda, insistente crítico das
diretrizes formuladas pela Comissão, chamava a atenção para o fenômeno do êxodo rural e
de como este processo estava transferindo para as cidades as graves distorções do campo.
Considerava que, tendo em vista, a gravidade dos problemas, fazia-se urgente criar medidas
contundentes de reforma agrária e não paliativas como a criação do Serviço Social
Rural,
89
prevista nos objetivos a serem alcançados pela Comissão.
Em entrevista ao jornal Tribuna da Imprensa, em 4 de fevereiro de 1951,
argumenta que,
Nenhuma política de industrialização podia ter sentido se não se
assentasse num trabalho agrícola verdadeiramente livre e no
desenvolvimento da pequena propriedade e dos métodos modernos de
produção agrícola.
Além disso, salientava que o Serviço Social Rural, não passava de um substituto
para a reforma, uma forma de desviar a atenção para o problema da pauperização do campo.
Cabe ressaltar que, discursivamente, vários opositores do governo defendiam a aplicação de
leis reestruturadoras do campo, mas no âmbito da prática, os discursos se alteravam.
Lacerda é um exemplo válido, se neste momento defendia a execução da reforma agrária
enquanto instrumento auxiliar à industrialização, em 1964, por ocasião das discussões em
torno da elaboração do Estatuto da Terra, tornou-se ferrenho opositor a sua formulação e
aprovação.
Apesar dos projetos da Comissão Nacional de Política Agrária e do Serviço
Social Rural, se consubstanciar em tentativas de intervenção estatal no meio rural, nenhum
desses organismos conseguiu gerar e aprovar políticas consistentes de alteração da estrutura
fundiária ou implantar leis de proteção ao trabalhador rural.
Neste clima de reivindicações e indefinições rumo a uma propalada reforma
agrária, nas eleições de 1955, o pessedista Juscelino Kubitschek incluiu em sua plataforma
de governo medidas intervencionistas no campo. Cabe destacar a forte pressão exercida
88
CAMARGO, A. A. A Questão Agrária: Crise de Poder e Reformas de Base (1930-1964), op. cit. p.152.
89
Subordinado ao Ministério da Agricultura, tinha como meta prestar serviços sociais aos trabalhadores, bem
como assistência técnica e auxílio para a organização de cooperativas.
54
54
pelo PTB em prol da inclusão da temática nos planos de governo de Juscelino, em troca do
apoio político deste partido.
Em sua mensagem presidencial, Juscelino declarava que,
(...) a inferioridade econômica da população camponesa é resultante,
antes de tudo, da inadequada estrutura agrária, no que respeita ao regime
de propriedade da terra: um desequilíbrio entre o número reduzido dos
proprietários rurais e o mero elevado dos que trabalham em gleba
alheia.
90
Não obstante, ao indicar a necessidade da adoção de medidas que facilitassem o
acesso à terra por parte da população rural com o intuito de ampliar o mercado interno, seu
discurso no dia de maio assinalava os contornos que a política governamental iria
assumir para o campo nos anos seguintes de seu mandato. Neste discurso revelava a
intenção (...) de fazer uma revolução agroindustrial em profundidade, uma revolução no
sentido de produzir mais, em melhores condições de preço e custo.
91
A alteração do tom do discurso denotava uma oposição política aos propósitos
reformistas dentro do PSD. O respaldo da “ala moça” do partido, não foi suficiente para
ultrapassar os obstáculos impostos pela ala ruralista. Como exemplo desse impasse no
interior do partido governista ocasionado pelos pronunciamentos de Juscelino em favor da
reforma, vale destacar o pronunciamento do deputado Daniel Faraco (PSD/RS), presidente
da Comissão de Economia da Câmara, onde este afirmava que: (...) enquanto eu for
presidente desta Comissão nenhum projeto de reforma agrária passará por aqui.
92
Temendo provocar uma cisão dentro de seu partido e perder sua base de apoio,
Kubitschek passa a adotar um discurso em prol de medidas reformistas, politicamente mais
conciliadoras. A reforma agrária deixa de ser entendida enquanto medida de intervenção na
estrutura fundiária, abrindo caminho para a racionalização da produção por meio da adoção
de medidas que viabilizassem a modernização da produção, eliminando, com isso, o atraso
tecnológico existente no campo.
Dentro desta perspectiva, é criada a Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE). As concepções que nortearam a origem deste órgão não implicavam
em uma reestruturação fundiária no nordeste, mas sim, numa forma de contornar os
problemas econômicos e políticos naquela região, em função dos constantes conflitos entre
90
Mensagem do presidente Juscelino Kubitschek ao Congresso Nacional, 15 de março de 1956.
91
CAMARGO, A. A. A Questão Agrária: Crise de Poder e Reformas de Base (1930-1964), op. cit. p.155.
92
Idem, p.155.
55
55
proprietários e trabalhadores rurais. Conforme, a avaliação realizada pelos técnicos da
SUDENE,
A crescente pressão demográfica que se constata no Nordeste e a
deficiência estrutural de sua economia - que se baseia substancialmente
em agricultura de subsistência praticada em maior parte em zonas de
solos pobres e sujeitos a secas periódicas - para absorver os novos
contingentes demográficos tem suscitado problemas sociais e políticos de
suma gravidade, que podem ser sintetizados nos seguintes fatos: a) clima
geral de insatisfação; b) criação de ressentimentos em relação às áreas
mais desenvolvidas do País; c) aparecimento de associações camponesas
com vistas a resolver o problema imediato de acesso a terra; expansão do
contingente de desempregados. Todos esses fatos, decorrem em grande
parte da inexistência de uma política global de desenvolvimento
econômico para o Nordeste e da ineficiência das soluções parciais que
têm sido tentadas.
93
As tentativas mais insistentes relacionadas à problemática do campo iriam partir
do PTB no Congresso, por intermédio do deputado petebista Fernando Ferrari, com a
criação do Código do Trabalhador Rural. Mas as sucessivas investidas de Ferrari
esbarraram na oposição dos partidos da situação. O projeto “Ferrari” seria definitivamente
votado e aprovado em março de 1963, na vigência do governo João Goulart.
Igualmente aos seus antecessores, Jânio Quadros, em sua campanha eleitoral e,
posteriormente, em sua meteórica passagem pela Presidência da República, acena para a
aprovação e implantação não somente das leis trabalhistas no campo, como, também, da
formulação de uma Lei de reforma agrária.
Em 18 de abril de 1961, Jânio Quadros constitui um grupo informal de trabalho
com o objetivo de definir as diretrizes para a implantação da reforma agrária no país, por
meio da constituição do Estatuto da Terra
94
. Como presidente do grupo foi designado o
senador Milton Campos. Dentre os demais integrantes, figuravam: Edgar Teixeira Leite,
vice-presidente da Confederação Rural Brasileira; D. Helder Câmara, secretário geral da
CNBB; Ângelo de Souza, Ministro da Agricultura; Jader Andrade, da SUDENE. Como se
pode perceber a composição do grupo de trabalho congregou elementos que representavam
interesses diferenciados.
93
IANNI, O. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1977. p.153.
94
Portanto, como se pode perceber a origem da expressão - Estatuto da Terra - não se originou no período
militar, bem como a idéia de condensar neste documento os princípios norteadores da execução da reforma
agrária no Brasil, o que reforça a idéia de que este documento, promulgado em 30 de novembro de 1964, foi
um reflexo das discussões sobre a reforma agrária do período pré 64 e o reconhecimento, por parte do primeiro
governo militar, de uma questão agrária a ser resolvida.
56
56
Decorre daí a lentidão para a conclusão dos trabalhos, fato que se efetivou em
janeiro de 1962, muito tempo após a renúncia de Jânio e no período parlamentar de João
Goulart. De acordo com Milton Campos,
(...) não foi fácil encontrar a desejada convergência de opiniões. Os
estudos são numerosos. As tendências as mais variadas. No próprio
Congresso Nacional, são muitos os projetos em tramitação. O anteprojeto
encaminhado representa o pensamento da maioria, pois houve posições
intransigentes.
95
Em ofício enviado a Tancredo Neves, Presidente do Conselho de Ministros,
Milton Campos, apresenta as diretrizes gerais da reforma agrária
96
. Segundo a nota
explicativa, a reforma não assumiria características nem paliativas nem espoliativas. De
pronto, o objetivo do projeto seria dotar o poder Executivo dos meios legais para executar
uma política agrária eficiente e com isso atingir as seguintes metas:
Dar nova estrutura agrária ao País, consagrando-se ao lado do direito
individual da propriedade, o condicionamento do seu uso ao bem estar
social. São esses os termos em que a Constituição Federal claramente
coloca o problema e outro não é o sentido reclamado pelas inquietações
da hora presente. De um lado, o interesse nacional, pela produtividade da
terra, que precisa ser explorada de maneira mais racional e econômica.
De outro lado, o imperativo democrático da acessibilidade da terra ao
maior número, para que esse bem comum em sua natureza não seja um
privilégio de poucos e antes se distribua racionalmente, sob as
inspirações da justiça, como elemento de trabalho e de benefício coletivo.
Essa dupla finalidade faz da reforma agrária condição essencial ao
desenvolvimento e autoriza a expectativa de que se inicie com ela um
período de intenso progresso de nossa agricultura, quer no que se refere à
produtividade da terra, quer ao que respeita às melhores condições de
vida dos trabalhadores rurais.
97
De acordo com a proposta, os princípios condicionantes para a aplicação da
reforma recaíam sobre a desapropriação por interesse social, por meio do artigo 147, da
Constituição de 1946, aliás, esse era o ponto mais delicado da temática e suscitava muita
controvérsia. Para contornar o impasse, mais uma vez se propôs a indenização dos imóveis
(...) baseada na média entre o valor médio unitário das avaliações do poder público e os
95
DE CARLI, G. História da reforma agrária, op. cit. p.171.
96
No que se refere à proposta final apresentada a Tancredo Neves, deve-se ressaltar a contribuição do
deputado José Joffili do PSD e membro da Frente Parlamentar Nacionalista, que foi nomeado relator de uma
Comissão Especial, cujo objetivo era condensar, em substitutivo, os vários projetos sobre reforma agrária. A
idéia consistia em tentar agrupar as contribuições do Congresso, com a do grupo de estudos para formular um
projeto suficientemente embasado, para que Jânio Quadros pudesse apoiá-lo e submete-lo à apreciação do
Congresso. Uma das medidas defendidas por Joffili, centrava-se na questão da indenização por meio do valor
declarado para fins de pagamento do imposto territorial rural. Além da criação de um órgão que determinaria
as áreas a serem desapropriadas, sob forte tensão social. CAMARGO, A. A. A Questão Agrária: Crise de
Poder e Reformas de Base (1930-1964), op. cit e DE CARLI, G. História da reforma agrária. op. cit.
97
DE CARLI, G. História da Reforma Agrária, op. cit. p.172.
57
57
dos atos relativos a terras de localização e características comparáveis, constantes dos
registros públicos, na mesma zona, no penúltimo ano anterior ao decreto de
desapropriação.
98
O projeto previa a criação do órgão SUPRA (Superintendência da Reforma
Agrária), cujo objetivo versava sobre o cumprimento das medidas legislativas sobre a
matéria.
Em 25 de agosto, Jânio Quadros renunciou, deixando o país mergulhado em
uma grave crise política, econômica e social. No que se refere à reforma agrária, mais uma
vez, nenhuma medida proposta, mesmo com o apoio do Executivo, foi efetivada.
Ao assumir o governo, João Goulart início a uma ampla campanha pelas
chamadas Reformas de Base, dentre elas a reforma agrária. No que se refere à tentativa de
aprovação desta última, irá encontrar como barreira uma oposição fortemente articulada e
alimentada pelas experiências anteriores ao seu governo.
1.2 - AS REFORMAS DE BASE DO GOVERNO JOÃO GOULART: A PROPOSTA
NÃO APROVADA DE REFORMA AGRÁRIA QUE ANTECEDEU O ESTATUTO
DA TERRA DO GOVERNO MILITAR
A intempestiva renúncia de Jânio Quadros da Presidência da República,
originou uma profunda crise política entre os opositores e defensores do vice-presidente
João Goulart. A Constituição de 1946 não deixava dúvidas quanto às definições da linha
sucessória a serem seguidas: o vice-presidente deveria ser investido no cargo e na ausência
ou impossibilidade deste assumir, a primeira alternativa legal recairia sobre presidente da
Câmara dos Deputados. Como Goulart estava em visita oficial à China, Ranieri Mazzilli, no
dia 25 de agosto, tomou posse provisoriamente.
Apesar do amparo constitucional, a transmissão do cargo a Goulart somente
efetivar-se-ia treze dias após a renúncia de seu antecessor. Ministros militares, tais como: o
Maj.-Brig. Gabriel Grun Moss da Aeronáutica, Mal.
Odílio Denys da Guerra e Alm. Sílvio
Heck da Marinha, formaram uma junta de oposição, organizada com apoio da ala
conservadora das forças armadas e de setores civis. O principal elo de ligação desse grupo,
que se caracterizava por ser acentuadamente heterogêneo, fundamentava-se no visceral anti-
getulismo de seus participantes e, obviamente, na meta de conseguir vetar a posse de
Goulart. A alegação da junta, bem como de seus partidários, baseava-se na premissa de que
98
Anteprojeto de lei de Reforma Agrária. Revista do Conselho Nacional de Economia. Janeiro/fevereiro de
1962.
58
58
o vice-presidente representava a (...) encarnação da república sindicalista e a brecha por
onde os comunistas chegariam ao poder.”
99
A percepção de Jango como um representante
do sindicalismo-populista na presidência da república, iria acompanhar o presidente até o
último dia de seu governo e resultou na desconfiança crescente de uma possível guinada à
esquerda. Desconfiança que cercaria a maior parte de suas iniciativas governamentais,
especialmente das Reformas de Base. O receio permanente de diversos setores com relação
ao seu governo, agravava-se com a inépcia governamental na confecção de acordos e
consensos políticos, contribuindo, sem dúvida, para a grave crise de governabilidade que
marcou seu mandato.
Acordos e concessões políticas eram vitais para o governo Jango, haja vista que
era fator limitante para suas ações a composição das bancadas partidárias da Câmara
Federal, cujo peso majoritário pendia para o setor conservador. Segundo José Ênio
Casalecchi, em 1962, a UDN possuía 23,4% das cadeiras e o PSD 30,3%, somados
representavam 53,7% dos deputados.
100
Isso não significava uma oposição em termos
absolutos. Afinal, a oposição não era constituída por um grupo homogêneo. A própria
carência de um consenso ideológico no interior dos partidos, chegou a beneficiar e
proporcionar ao governo Goulart a possibilidade de, inicialmente, realizar uma política de
conciliação que objetivava ampliar sua base governista. O diálogo político para as votações
abrangia os “moderados” ou “Ala Moça” do PSD, a “Bossa Nova” da UDN e, também, a
suprapartidária Frente Parlamentar Nacionalista, que prestaram apoio a projetos polêmicos
como da reforma agrária no interior de seus partidos, confrontando a ala conservadora e
ruralista no Congresso. Em um segundo momento, quando o acirramento político se tornou
eminente, novos reagrupamentos políticos emergiram, fato que foi impulsionado tanto pela
insistência do governo em promover as reformas estruturais, quanto pela radicalização
política das propostas, devido ao crescimento da influência do grupo político liderado por
Leonel Brizola. A nova conjuntura política deu origem à frente conservadora Ação
Democrática Parlamentar, constituída por uma maioria udenista e que desde o início buscou
se aproximar de setores militares contrários a Jango, engrossando, em meados de 64, o
movimento pela derrocada do governo.
101
Cabe ressaltar que os posicionamentos de setores moderados dos partidos de
oposição não se configuravam em um apoio incondicional, muito pelo contrário, a base de
99
FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo. EDUSP/Imprensa Oficial do Estado, 2002. p.243.
100
CASALECCHI, J. E. O Brasil de 1945 ao Golpe Militar. São Paulo. Contexto, 2002.
101
FAUSTO, B. História Concisa do Brasil, op.cit.
59
59
governo e as alianças efetivadas apresentavam um elo bastante tênue e freqüentemente
oscilavam entre situação e oposição dependendo dos interesses políticos em jogo. A
radicalização fez pender, definitivamente, a frágil balança política para o lado dos
opositores do governo.
A crise, no contexto político que envolvia a posse de João Goulart, tornou-se
cada vez mais polarizada, de um lado os ministros militares e os antivarguistas que
defendiam o veto ao futuro presidente, de outro os setores organizados da sociedade como
os sindicatos de trabalhadores, estudantes e intelectuais, que pressionavam para o
cumprimento do dispositivo constitucional. A situação de instabilidade acirrou-se quando,
no Rio Grande do Sul, o comandante do III Exército declarou apoio à posse de Goulart,
evidenciando posicionamentos antagônicos no interior do Exército. Segundo Boris Fausto,
a figura principal do movimento de legalidade foi o governador do Rio Grande do Sul,
Leonel Brizola, cunhado de Jango. Brizola contribuiu para a organização do esquema
militar de resistência e promoveu grandes manifestações populares em Porto Alegre.
102
Com o sensível recrudescimento da disputa política, o Congresso apressou-se em
votar o impedimento apresentado pelas forças oposicionistas. Com 229 votos contra 14, o
Congresso recusou o pedido e iniciou os trabalhos rumo a uma solução “conciliatória” que
favorecesse a manutenção da legalidade.
103
Conciliar significava, neste contexto de crise, adotar medidas que convertessem
posições antagônicas a um mínimo de convergência de idéias. Significava tentar alinhar,
politicamente, os anseios e receios dos representantes da direita, esquerda e dos moderados
com relação ao papel a ser desempenhado pelo governo.
A dimensão da crise obrigava o Congresso a buscar uma saída, literalmente pela
tangente, não ferindo a legalidade, repassando o cargo constitucionalmente a quem era de
direito e, ao mesmo tempo, conseguir restringir seus poderes, colocando-o sob a tutela de
um Congresso fortalecido pelo sistema Parlamentar.
Dentro desta perspectiva, a solução imediatista, e porque não dizer precária,
versava sobre a proposta de mudança de regime político de forma abrupta, sem consulta
popular o que, mais uma vez, desagradou a base aliada de João Goulart. A despeito das
críticas, e com um Congresso formado em sua maioria de partidos conservadores, foi
promulgado, segundo Villa,
102
Idem, p.243.
103
VILLA, M. A. Jango: Um Perfil (1945-1964). São Paulo: Globo, 2004.
60
60
A Emenda Constitucional n.º4, que acabou com a eleição direta para
Presidente da República - que passaria a ser eleito pelo Congresso
Nacional por maioria absoluta, com mandato de cinco anos, conforme
artigo da emenda retirava do presidente o comando das Forças
Armadas, segundo artigo 3º, item x (“exercer, através do Presidente do
Conselho de Ministros, o comando das Forças Armadas”). Estipula-se um
plebiscito para abril de 1965 para que o povo, sim, diretamente,
pudesse escolher o regime de sua preferência. Dessa forma, por um golpe
parlamentar, foi restabelecido o parlamentarismo 72 anos depois da sua
abolição por outro golpe, o republicano em 1889.
104
Ao assumir a Presidência no dia 7 de setembro de 1961, João Goulart, consciente
dos impasses políticos nos quais estaria assentado seu futuro governo, tentou projetar um
equilíbrio de forças, adotando, pelo menos em um primeiro momento, políticas
conciliatórias.
Coerente com essa orientação foi nomeado para o cargo de primeiro ministro
Tancredo Neves, membro do PSD. O gabinete parlamentarista, denominado “união
nacional”, foi composto por representantes das principais agremiações do Congresso, como:
a UDN, o PSD, o PDC, o PTB e o PSP.
105
Momentaneamente, o parlamentarismo e a evidente restrição de poder
concedida a Goulart, associado à divisão de cargos entre os partidos, proporcionaram uma
trégua na crise política no início de seu governo. O consenso que se destinava a manter a
legalidade era extremamente frágil, haja vista a composição heterogênea e que, em sua base,
abarcava partidos políticos e projetos de poder bastante distintos.
A fragilidade dessa sustentação começou a ficar evidente logo nos primeiros
discursos e propostas encaminhadas ao Congresso pelo governo Jango. As fissuras políticas
não se restringiam ao Congresso, mas também, se estendiam à sua base governista.
Enquanto o presidente, pressionado pelas reivindicações de seus aliados, pleiteava a
implantação de reformas mais contundentes e de impacto,
106
o primeiro ministro Tancredo
Neves, representante do Congresso, adotava uma postura moderada. O descompasso entre
as duas esferas de poder incentivou e acelerou a defesa do presidencialismo por parte dos
104
Idem, p.57.
105
FERREIRA, M. M. João Goulart. In: Dicionário histórico biográfico brasileiro. Disponível em:
http://www.cpdoc.fgv.br/verbetes _htm/2412_5.asp Acesso em 10/02/2007. e CARONE, E. A República
Liberal: II Evolução Política (1945-1964). São Paulo: Difel, 1985.
106
Segundo Aspásia Camargo “Com Jango, o compromisso com as reformas constitui, desde os primeiros
dias, a pedra angular da gestão que se inicia, aquela que aglutina as lideranças e os partidos de esquerda, e que
pretende atrair a classe política e as forças de centro a fim de tornar viável a consecução de um programa que
promova a autonomia externa, consolide o apoio sindical (e popular urbano) e estenda o controle do Estado
sobre as clientelas rurais, através de medidas de transformação social no campo.” CAMARGO, A. A. A
Questão Agrária: Crise de Poder e Reformas de Base (1930-1964). In: FAUSTO, B. O Brasil Republicano:
Sociedade e Política (1930-1964), op. cit. p.189.
61
61
partidários de Jango. Apesar disso, ressalta-se que não havia divergências quanto à
necessidade de medidas que solucionassem os graves problemas econômicos e sociais pelos
quais o país atravessava. O que obstaculizava e tornava o processo de negociação lento
referia-se a questões como a natureza da solução a ser adotada, o alcance que ela teria e
quais seriam os interesses envolvidos na solução pretendida.
No pronunciamento presidencial do mês de setembro em decorrência das
comemorações do 15º aniversário da Constituição de 1946, Jango reforçou o juramento à
Constituição e aos princípios democráticos, apelando ao Congresso a colaboração da casa
para promover as reformas pretendidas. Em seu discurso declara que,
Quero proclamar a minha confiança nas instituições democráticas e
reafirmar o juramento que fiz, perante o povo, de guardar a Constituição
em toda a sua plenitude e na sua dimensão mais ampla das conquistas
sociais que ela encera, observando e fazendo observar os novos
postulados constitucionais que implantaram no país o regime parlamentar
(...) estou certo de que o Congresso, refletindo as aspirações do povo,
de oferecer à Nação os estatutos legais inadiáveis, equacionando, de
maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o
dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas
diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro,
distinguindo e apoiando o que representa estímulo ao nosso
desenvolvimento e combatendo o que espolia nossas riquezas.
107
Dentro desta mesma linha conciliatória junto ao Congresso, buscando rumar em
direção ao entendimento, Tancredo Neves discursava na Câmara dos Deputados ressaltando
a importância do Congresso no regime parlamentarista como um instrumento primordial
para a efetivação das reformas de que o país necessitava. Cônscio dos obstáculos que
enfrentaria para aprovação das mesmas em função da composição da casa, alertava que a
ausência de colaboração faria abrir: (...) as comportas de vácuo para a sucção de todas as
aventuras e subversões contra as tradições e as esperanças brasileiras.
108
Nas entrelinhas,
o primeiro ministro alertava seus pares para a conjuntura política, interna e externa, onde
grupos e movimentos proclamavam reformas, incentivados por interesses políticos e
econômicos diversos. Tancredo afirmava ainda que as dificuldades pelas quais o país
atravessava consubstanciavam-se em um perigoso laboratório para a ampliação das idéias
“subversivas”. Era como se quisesse dizer “vamos fazer as reformas, antes que grupos
indesejáveis a façam.” No entanto, o que o primeiro ministro talvez não esperasse é que o
próprio presidente seria acusado de ser conivente com esses mesmos ideais.
107
Discurso proferido por João Goulart por ocasião do 15º aniversário da Constituição de 1946. Jornal do
Brasil, 19/9/61.
108
Discurso do Primeiro Ministro Tancredo Neves na Câmara dos Deputados para apresentar o Plano de
Governo. Jornal do Brasil, 29/09/1961.
62
62
Dentre as mudanças estruturais exigidas, figurava com especial destaque a
reforma agrária, isso porque, desde a década de 50, as reivindicações por uma efetiva
intervenção na estrutura agrária brasileira avolumavam-se, partindo de amplos setores da
sociedade e com as mais diversas abordagens. Por essa razão, o tema mereceu destaque no
discurso de Tancredo Neves,
A reforma agrária permitirá a integração do homem do campo à nossa
vida econômica, com reflexos ponderáveis sobre os demais setores da
economia nacional, como um dos fatores de equilíbrio de nossa
estabilidade social, como um ato de justiça social. Todas as vozes se
unem neste proclamo, fora e dentro deste Parlamento. Eis, pois, um dos
itens de prioridade absoluta na agenda do Governo que acaba de assumir a
direção do país.
109
Ciente dos limites de suas ações em um terreno político movediço e adverso
como aquele que permeava o discurso de defesa da reforma agrária e da definição dos
instrumentos legais para sua execução, Tancredo Neves apenas assinalava a retomada das
discussões em torno do tema, sem mencionar a possibilidade de alteração dos dispositivos
constitucionais, que até aquele contexto, inviabilizava qualquer consenso sobre a temática.
Nas discussões gravitavam interesses políticos dispares, mas apesar de haver
discordâncias sobre a natureza da reforma agrária, contraditoriamente, tanto os partidos de
direita quanto os de esquerda, bem como, os movimentos e governo, mantinham certo
paralelismo quanto a sua realização. De acordo com Moacir Palmeira, (...) a reforma
agrária tinha assumido tal força como questão política que, tal como ocorre hoje, ninguém
mais ousava se declarar contra sua realização, embora o significado da expressão fosse, é
claro, antagônica em proclamações da Confederação Rural Brasileira e em manifestações
de entidades de trabalhadores.”
110
Para ilustrar tal afirmação vale destacar alguns pronunciamentos e ações de
governadores e partidos, que embora representassem a ala oposicionista, passavam a acenar
em favor de mudanças. É o caso, por exemplo, de Magalhães Pinto, governador de Minas
Gerais filiado a UDN e, posteriormente, um dos desencadeadores do Golpe de 64.
Magalhães Pinto anunciava, em 1961, a intenção de realizar em Minas Gerais a reforma
agrária em terras públicas, ato que beneficiaria diretamente 3.000 famílias. Neste mesmo
caminho, os governadores de Goiás, São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, que
representavam diferentes partidos, se pronunciaram a favor da distribuição de terras. No
109
Idem.
110
PALMEIRA, M. Reforma Agrária e Constituição. Ciência Hoje, 6 (35), nov. 1987. p.p.68/69.
63
63
caso do governador de Pernambuco, este declarava que iria contemplar cada família do
Engenho da Galiléia, núcleo originário das Ligas Camponesas, com 10 hectares de terras. A
UDN, em nota, afirmava que sua atuação parlamentar estaria voltada para a análise do
programa do governo e no desenvolvimento de uma política legislativa que contemplasse a
reforma agrária. O PSD também defendia a reforma e admitia, pelo menos até 1963, a
alteração dos dispositivos constitucionais para viabilizá-la.
111
Esse clima de aparente concórdia, por parte da direita e dos chamados
moderados, fundamentava-se na análise de algumas conjecturas. Definitivamente,
reconhecer a necessidade da reforma agrária
112
significava posicionar-se defensivamente,
antecipando-se a uma eminente mas crescente idéia de reforma agrária expropriatória e de
esquerda. Significava, também, o reconhecimento de que o acirramento dos conflitos sociais
no campo, mediados diretamente pelo PCB e outras agremiações de esquerda, ou
indiretamente por sindicatos e organismos sob sua influência, traduziam-se em perigosos
focos de infiltração e ampliação dos ideais revolucionários.
Ademais, a reforma agrária era considerada, por muitos, como uma das etapas do
processo de desencadeamento do desenvolvimento nacional, mas, para que o campo
oferecesse sua parcela de contribuição para atingir tal objetivo, eram imprescindíveis: o
apaziguamento dos ânimos, a contenção do êxodo rural e o aumento da produtividade no
campo.
Além desses fatores, que se considerar a pressão do governo norte americano,
que no mandato do presidente John F. Kennedy, em pleno contexto da Guerra Fria, elaborou
a Aliança para o Progresso. Os amplos objetivos dessa aliança incluíam, também, a
liberalização de verbas para a realização de programas de reforma agrária na América
Latina.
113
Condicionava-se a liberação de verbas a um efetivo programa de reforma agrária
que levasse o desenvolvimento ao campo, nos moldes do modelo agroindustrial e
capitalista.
Com as crises de abastecimento, com a situação explosiva no campo e a pressão
externa, a questão era: como se posicionar contra a reforma agrária? Politicamente, tornava-
111
ALCANTARA, A. C. Autoritarismo e Populismo: Bipolaridade no Sistema Político Brasileiro. Revista
Dados. Rio de Janeiro, 2, 1976. YAMAUTI, N. N. A Questão da Reforma Agrária no Governo Goulart.
Acta Sci. Human Soc. Sci. Maringá, v. 27, nº 1, 2005.
112
Na reforma agrária defendida pela direita e pelos moderados, a questão da distribuição de terras tinha um
peso quase inexistente. O ponto central da reforma pretendida assentava-se em uma política de incentivo a
produtividade, como o acesso a financiamentos para compra de implementos agrícolas e subsídios. Este
argumento passou a ser mais amplamente defendido a partir de 63, com o endurecimento do discurso de
Goulart em torno de uma reforma agrária mais ampla.
113
As propostas do governo americano foram formalizadas na Carta de Punta del Este.
64
64
se inviável, pois seria quase um suicídio eleitoral. Partidos como UDN e PSD, que possuíam
forte base ruralista, mantinham-se discursivamente favoráveis, mas também temerosos pelos
desdobramentos das discussões. Se não era prudente posicionar-se contra, então o lema
continuou a ser “controlar” o alcance das medidas.
114
No âmbito da prática, o discurso em
favor da reforma agrária possuía, como zona limítrofe, a manutenção do direito de
propriedade, ou seja, qualquer medida que, supostamente, desencadeasse o rechaçamento de
tal postulado deveria ser combatida.
Neste sentido vale, mais uma vez, destacar que:
O grande entrave legal a uma solução reformista naquela época era a
Constituição Federal. É verdade que a Carta de 1946 avançara
formalmente com referência às constituições anteriores a o postular, em
seu artigo 147, que "o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar
social" e ao prever que "a lei poderá (...) promover a justa distribuição da
propriedade, com igual oportunidade para todos". Introduzira também
uma novidade: a desapropriação por interesse social, ao lado daquelas por
utilidade ou necessidade públicas. Mas o seu artigo 141, de fato,
inviabilizava qualquer programa de reforma agrária, por menos ambicioso
que fosse, ao estabelecer que qualquer tipo de desapropriação deveria ser
paga "mediante prévia e justa indenização em dinheiro". A reforma da
Constituição, com a substituição do artigo 141, tornou-se a grande
reivindicação das forças pró-reforma agrária, e a defesa do texto
constitucional., o grande argumento usado pela direita para congregar as
forças que, em abril de 1964, iriam jogar fora não o artigo, mas toda a
Constituição de 1946 e inaugurar o regime ditatorial.
115
O frágil equilíbrio de forças que envolvia a tentativa de formar um governo de
coalizão, começou a sofrer um desgaste quando Goulart, em novembro de 1961, em Belo
Horizonte, participou do encerramento do I Congresso de Lavradores e Trabalhadores
Agrícolas, onde foi aprovada uma proposta de reforma agrária que deveria ser realizada “na
lei ou na marra”. Em seu discurso, Goulart proclamava a impossibilidade de realização de
114
Essa tática política não se restringiu aos partidos políticos que possuíam uma forte base ruralista, não
podemos esquecer o papel desempenhado pela Igreja que defendia a reforma agrária, nos anos 50 e início dos
60, com esse mesmo pressuposto. Defender a reforma significava manter a ordem estabelecida, contra os
perigos do comunismo, com medidas que não representassem “perigos” para a manutenção do direito de
propriedade. Por isso, a reforma agrária deveria ser executada, preferencialmente, em terras do Estado. Em
verdade, a tática de obstrução, praticada por meio de manifestos públicos (por parte dos que achavam as
medidas insuficientes ou excessivamente “progressistas”) ou nos meandros do poder, se tornou comum desde
a década de 50.
115
PALMEIRA, M. Reforma Agrária e Constituição, op. cit. p.p.68/69. Realmente este argumento foi
comumente utilizado para congregar forças para o Golpe, sob a acusação de que a modificação destes
princípios seria um dos passos para a implantação de uma reforma agrária de esquerda e a suplantação do
direito de propriedade. Para surpresa geral, após do Golpe, Castello anunciou a necessidade promover a
reforma da constituição, por meio de emendas, como pré-requisito para dar início ao processo de reformas
estruturais, dentre elas a reforma agrária. Tal iniciativa causou espanto e forte oposição, mas dado às
circunstâncias, o argumento de que a reforma agrária seria o trampolim para uma revolução de esquerda perdia
seu poder de convencimento.
65
65
uma efetiva reforma agrária, sem antes ocorrer uma mudança dos dispositivos
constitucionais que estabeleciam o pagamento das indenizações em dinheiro. Com esta
atitude, o presidente buscava fortalecer suas bases com os setores da esquerda, os sindicatos
e os movimentos, que reivindicavam tal premissa. Entretanto, como bem destaca Ferreira,
A defesa deste ponto de vista não era partilhada pelos nomes mais
significativos que compunham o seu ministério, o que demonstrava não
as contingências da política de alianças sobre a qual se baseava seu
governo, como também as dificuldades para chegar a um consenso sobre
o tema em questão.
116
Tal descompasso tornou-se evidente por ocasião das discussões em torno da
elaboração do anteprojeto de reforma agrária solicitado por Goulart. Jango, conjuntamente
com o ministro da agricultura e o senador Milton Campos, solicitou a criação de um grupo
de trabalho, que paralelamente ao grupo que havia sido convocado, por iniciativa de Jânio
Quadros, foi encarregado de elaborar uma proposta de reforma agrária. O que poderia ser
considerada a junção de ambos trabalhos,
117
no que se refere à condensação das propostas
foi, posteriormente, entregue a Tancredo Neves, em janeiro de 1962. Mas enquanto o
presidente, por conta própria, defendia a emenda constitucional que mudaria o sistema de
pagamento das desapropriações, seu ministério buscava soluções alternativas à emenda
constitucional.
Dentre essas, figurava a proposta da arrecadação dosbens vagos”, que consistia
em repassar para a esfera do domínio público as propriedades inexploradas e que não
possuíam benfeitorias, por um período de dez anos. Apesar da oposição, principalmente, por
parte da CRB
118
e da ala conservadora da Igreja Católica, o texto foi incluso no anteprojeto.
O projeto previa a criação do órgão SUPRA (Superintendência da Reforma Agrária), cujo
objetivo versava sobre o cumprimento das medidas legislativas sobre a matéria e, ainda,
objetivava realizar o cadastro das propriedades rurais, item considerado extremamente
importante, pois proporcionaria a visualização, com exatidão, da estrutura fundiária
116
FERREIRA, M. M. João Goulart. In: Dicionário histórico biográfico brasileiro, op. cit. p.02.
117
O Grupo de trabalho convocado pelo presidente Jânio Quadros deu continuidade às análises e formulações
em torno da questão agrária, mesmo após a renúncia do presidente, fato que resultou em dois grupos de
trabalho, sobre a mesma temática e no mesmo período, mas cada qual solicitado por um presidente.
118
A Confederação Rural Brasileira foi criada em 1951, possuía característica associativa e estava subordinada
ao Ministério da Agricultura. Esta entidade foi substituída em 1964 pela CNA (Confederação Nacional da
Agricultura), que passou a representar o sindicato oficial da classe proprietária rural. ESTEVES, B. M.
Confederação Rural Brasileira: Origens e Propostas. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRRJ,
1991.
66
66
brasileira. Nestes termos, esperava-se que, após o término dos trabalhos, o processo de
reforma agrária pudesse desenrolar-se sobre bases mais sólidas.
119
O ministro da Agricultura, Armando Monteiro, endossou a criação da SUPRA,
mas descartou a alteração do parágrafo 16 do artigo 141. Em seu lugar propôs uma outra
emenda, menos conflituosa, que transferiria o imposto territorial dos municípios para a
esfera da União. Com esta ferramenta, Armando Monteiro esperava resolver o grande
impasse relacionado às vultosas despesas aos cofres públicos, provenientes das
desapropriações pagas em dinheiro. Segundo Camargo,
O imposto territorial seria um importante instrumento de barateamento da
terra desapropriada, uma vez que a SUPRA poderia imitir-se de imediato
na posse do bem desapropriado mediante depósito de quantia equivalente
ao valor atribuído ao imóvel para efeito de pagamento de imposto
territorial. Em outras palavras, ou o proprietário pagaria efetivamente o
imposto com a severidade correspondente ao tamanho, à improdutividade
da terra, ou se arriscaria a vê-lo desapropriado pelo preço declarado, em
geral muito abaixo do valor venal da propriedade.
120
Paralelamente aos trabalhos das Comissões, a crise econômica ampliava-se a
níveis preocupantes, agravada pelo aumento da taxa de inflação, o que obviamente trazia
insatisfações sociais. Além dos problemas de ordem econômica, havia a configuração de um
claro acirramento dos conflitos entre os proprietários rurais e os trabalhadores, o que vinha
desagradando a base ruralista pelo permanente estado de tensão que a situação gerava. Em
outro extremo, os grupos de esquerda, liderados por Leonel Brizola, pressionavam o
governo para adotar uma política mais dura com relação aos proprietários rurais e na
política externa com os Estados Unidos,
121
e pela alteração do dispositivo constitucional,
119
Ressalta-se que no período Castello, o preceito da arrecadação dos bens vagos foi incluído no Estatuto da
Terra de novembro de 1964, bem como o processo de cadastramento dos imóveis rurais, o imposto territorial
rural e a criação dos órgãos IBRA e INDA, que tinham, assim como a SUPRA, status de ministério e
objetivavam administrar e aplicar os dispositivos legais para a realização da reforma agrária.
120
CAMARGO, A. A. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964), op. cit. p.197.
121
A Aliança para o Progresso, anunciada em março de 1961, e formalizada em agosto, por meio da Carta de
Punta del Leste, estabelecia um programa de ajuda financeira aos países da América Latina na ordem de 10
bilhões de dólares a serem distribuídos no período de 10 anos. Em contrapartida, a liberação dos recursos
condicionar-se-ia à adoção de reformas estruturais que promovessem “a modificação das estruturas dos
injustos sistemas de posse e uso da terra, a fim de substituir o regime de latifúndios e minifúndios por um
sistema justo de propriedade, de maneira que, complementado por crédito oportuno e adequado, assistência
técnica, comercialização e distribuição de seus produtos, a terra se constitua para o homem que a trabalha, em
base da sua estabilidade econômica, fundamento do seu crescente bem-estar e garantia de sua liberdade e
dignidade” Título I, Artigo da Carta de Punta del Leste.In: Questões Agrárias: Estatuto da Terra e
decretos regulamentadores. Brasília: CONTAG, 1973. p.05. Goulart politicamente vivia um grave impasse.
Aprofundar a campanha de política externa independente, restabelecendo relações diplomáticas com a União
Soviética e não seguindo as recomendações de sanções contra Cuba. Se tais medidas satisfaziam parte dos
setores nacionalistas, também criavam sérios empecilhos às negociações para conseguir os fundos destinados
pela Carta de Punta Del Leste para aliviar a crise econômica e promover as reformas pretendidas. Outro
67
67
parágrafo 16, artigo 141, defendendo uma reforma agrária mais ampla, com características
expropriatórias e distributivistas.
Tendo em vista a conjuntura marcada pela insatisfação política, segundo
Camargo,
Verificou-se uma natural polarização das posições assumidas, que
obrigou o presidente da República a oscilar entre a esquerda e o centro.
Quanto à reforma agrária, a conjuntura o induz a paralisar o
encaminhamento de medidas consideradas naquelas circunstancias, como
inócuas, ou politicamente inviáveis. De fato, o governo não envia ao
Congresso, no gabinete Tancredo Neves, nenhum projeto de reforma
agrária e Goulart em diversas ocasiões, tem a oportunidade de revelar que
pretende aprofundar o impacto social das intervenções reformistas,
deixando claro que deverá aguardar as eleições de outubro que se
aproximam e as predisposições do novo Congresso.
122
É dentro desta perspectiva que João Goulart, em discurso por ocasião das
comemorações do dia 1º de maio de 1962 em Volta Redonda, no Rio de Janeiro, oficializou,
segundo Ferreira, posições mais radicais,
Encerrando o compasso de espera existente desde o início de seu governo
e anunciando a ofensiva política que redundaria em mudança de
ministério, solicitação de poderes especiais ao Congresso e oficialização
da campanha pela antecipação do plebiscito que decidiria sobre a
continuação ou não do parlamentarismo.
123
No mesmo discurso insiste que as reformas de base deveriam ser analisadas pelo
Congresso em caráter de urgência, dada a fase de instabilidade política, econômica e social
pela qual o país atravessava. Mas para que estas alcançassem o efeito esperado deveriam ser
acompanhadas de uma reforma constitucional. Ao tratar especificamente da reforma agrária,
afirmava que sua implantação era fator indispensável, não somente para aliviar as péssimas
condições de vida dos trabalhadores rurais e minimizar os conflitos no campo, mas também
seria uma das bases de sustentação para o desenvolvimento nacional.
124
obstáculo advinha dos setores mais radicais da esquerda que criticavam as iniciativas de formulação de uma
proposta de reforma agrária, por considerá-la a concretização do comprometimento do governo com o
“imperialismo ianque”. Neste sentido, o governo, para manter um mínimo de governabilidade, tenta convencer
os americanos a efetuar os empréstimos a fim de ajustar a economia interna, precisa convencer a esquerda de
que não estava cedendo às pressões “imperialistas”, pois necessitava do seu apoio político para aprovar as
reformas no Congresso e por fim, convencer os proprietários rurais e sua base ruralista de que sua intenção
reformista respeitaria o direito de propriedade. Ademais, a política nacionalista de Leonel Brizola por meio da
campanha de nacionalização de empresas americanas, como a ITT e a Light e Power, agravou o impasse nas
relações entre Brasil e EUA. Segundo Edgar Carone, a nacionalização causou vários protestos nos Estados
Unidos. No Congresso, havia o pedido de suspensão das negociações de liberação de recursos financeiros,
mesmo os provenientes da Aliança para o Progresso. CARONE, E. A república liberal: II evolução política
(1945-1964), op. cit.
122
CAMARGO, A. A. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964), op. cit. p.199.
123
FERREIRA, M. M. João Goulart. In: Dicionário histórico biográfico brasileiro, op. cit. p. 04.
124
Jornal O Estado de São Paulo, 02/05/62.
68
68
A tomada de posição mais incisiva em seu discurso, para Ferreira representava,
O primeiro esforço concentrado do governo em torno da realização das
reformas de base, em especial a agrária, atendendo aos apelos dos setores
nacionalistas e de esquerda, e provocaram um aumento das desconfianças
dos grupos conservadores do país quanto as reais intenções do governo na
reformulação da estrutura agrária. (...) Neste contexto de agravamento de
contradições, o gabinete Tancredo que se caracterizava por uma prática
política de compromisso e de tentativa de união nacional, perdia a razão
de ser. Por outro lado, com o aprofundamento da crise, Goulart, começou
uma campanha para o retorno do presidencialismo, alegando a
necessidade de constituir um Executivo forte e demonstrando a
inviabilidade do Parlamentarismo.
125
Os temores da classe patronal, representados pela CRB, pelas bancadas ruralistas
e pelos partidos conservadores, como UDN e PSD, emergiram devido a intenção do
governo de realizar uma reforma constitucional, pois isso representava para esses grupos um
prenúncio de uma reforma agrária radical, dada a guinada à esquerda das ações e
movimentações do presidente. Por isso, a partir dos preparativos para as eleições de 62,
conclamavam seus associados, em todo o país, para que não votassem em candidatos que
comungassem com as idéias políticas esquerdistas de Goulart.
126
A rápida mobilização da
classe patronal tinha uma razão de ser: desconfiava que se o presidente conseguisse, por
meio do plebiscito, chegar ao presidencialismo, automaticamente o mesmo amealharia mais
poderes e, isso associado a um futuro Congresso constituído por uma maioria de base aliada,
resultaria na aprovação de uma reforma agrária onde a alteração constitucional seria
praticamente inquestionável.
Percebe-se, portanto, que o temor da classe ruralista resultava da
incompatibilidade de concepções em torno da natureza da reforma agrária e dos
instrumentos legais que a fomentariam. A incompatibilidade de propostas tornava-se mais
evidente na medida em que passava a organizar congressos e encontros, cuja finalidade era
congregar esforços em favor de uma campanha de franca oposição à proposta do governo
por meio de uma linguagem homogênea, ou seja, a tentativa era encontrar um denominador
comum que resultasse em uma proposta de reforma agrária que partisse dos produtores
rurais. Foi com esta expectativa, aliás, que ruralistas de vários estados se reuniram em
Uberaba, Minas Gerais, para lançarem um manifesto contendo cinco pontos básicos que
consideravam imprescindíveis para a formulação de uma reforma agrária justa.
127
O documento revelava que,
125
FERREIRA, M. M. João Goulart. In: Dicionário histórico biográfico brasileiro, op. cit. p.05.
126
Jornal O Estado de São Paulo, 01/ 06/1962.
127
Jornal O Estado de São Paulo, 10/05/63.
69
69
Uma futura lei de reforma agrária que não tenha caráter confiscatório,
socialista e que não vise eliminar os grandes e médios proprietários; que
os poderes públicos concedam terras devolutas aos pequenos agricultores
desejosos de se tornarem proprietários, de forma a não perturbar a vida no
campo através de expropriações injustificáveis, que qualquer lei agrária
estadual e federal se faça de acordo com os princípios anunciados no livro
“Reforma Agrária: Questão de Consciência” de autoria de D. Geraldo
Proença Sigaud, Arcebispo de Diamantina; que desde logo, seja adotada
no país uma corajosa política rural que realmente solucione aos problemas
do campo, através de crédito fácil e barato, de assistência técnica,
sanitária e educacional, de facilidades para a aquisição do maquinário,
sementes e fertilizantes e da proteção dos preços e que, numa palavra, em
nada se atente contra o direito de propriedade e contra nossas tradições
cristãs.
128
Os princípios norteadores contidos no documento traziam à tona uma proposta
praticamente oposta às pretensões de Goulart, evidenciando, portanto, que a possibilidade
de se alcançar um consenso sobre o tema tornava-se cada vez mais remota.
Apesar dos reveses políticos que acarretaram trocas sucessivas de ministério
após a saída de Tancredo Neves para concorrer às eleições de 62, Goulart conseguiu efetivar
a criação da SUPRA em 11 de outubro de 1962.
129
A criação deste órgão, cujo objetivo era
ativar medidas de reforma agrária, ampliava a pressão sobre o Executivo e Legislativo, pois
requereria, o quanto antes, uma definição dos princípios norteadores para a implantação da
reforma agrária. Outro avanço importante de seu governo deveu-se a antecipação do
plebiscito para janeiro de 1963, para tal feito, contou com um forte apoio do CGT
(Comando Geral dos Trabalhadores).
As eleições de 62, embora fossem aguardadas com certa ansiedade pela
possibilidade de se formar uma base mais conveniente aos propósitos de seu governo, não
trouxeram novidades, pelo contrário,
Mostraram que as forças do centro e da direita tinham bastante peso no
país. É certo que elas se beneficiaram dos recursos fornecidos pelo IBAD
e órgãos semelhantes, mas o governo utilizou também sua máquina. Em
São Paulo, Ademar derrotou Jânio por uma estreita margem. No Rio de
Grande do Sul, Ildo Meneguetti, apoiado pela UDN e pelo PSD, bateu o
candidato de Brizola. Os nacionalistas e a esquerda puderam festejar a
vitória de Miguel Arraes em Pernambuco e o extraordinário êxito de
Brizola no Rio de Janeiro.
130
128
Manifesto dos ruralistas, Congresso de Uberaba. In: Jornal O Estado de São Paulo, 10/05/63.
129
A superintendência do desenvolvimento Agrário (SUPRA) foi criada pela Lei Delegada 11 de outubro
de 1962. Mensagem ao Congresso Nacional remetida pelo Presidente da República na abertura da sessão
legislativa de 1963. Arquivo digitalizado do Center for Research Libraries. Brazilian Presidential Messages,
1890 – 1993. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/prestoc.htm Acesso em: 10/12/2006.
130
FAUSTO, B. História concisa do Brasil, op. cit. p.251.
70
70
Ao iniciar seu governo com um Congresso renovado, mas politicamente
desfavorável, Goulart apostava em sua popularidade, endossada pelo amplo resultado em
favor do presidencialismo, para levar a diante as reformas pretendidas que haviam se
tornado inviáveis, no seu entender, devido às restrições do sistema parlamentarista.
Em busca de bases mais sólidas de poder, Jango tentava aproximar-se de uma
política de centro-esquerda, cujo objetivo era isolar o impacto oposicionista dos partidos
conservadores, ou melhor dizendo, dos componentes mais conservadores dos partidos de
oposição. A formação de seu novo ministério, seguiu, portanto, coerente com sua estratégia
política. Para o Ministério do Planejamento, foi escolhido San Tiago Dantas, que era
membro do PTB e para o Ministério da Fazenda, Celso Furtado. Ambos eram componentes
da denominada “esquerda positiva” e tinham a incumbência de levar a diante uma política
de austeridade para sanear as finanças, criar as condições para concretizar as reformas e
restabelecer com os Estados Unidos as negociações referentes a empréstimos e à dívida
externa.
131
Goulart, com o propósito de solucionar a grave crise econômico-financeira,
caracterizada pelo baixo índice de crescimento econômico e pela inflação desenfreada,
começou a colocar em prática metas e diretrizes que, a posteriori, foram incorporadas ao
Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico. O Plano Trienal que deveria ser executado
sob a supervisão de Celso Furtado e San Tiago Dantas, previa ainda a implementação das
reformas de base, tidas, então, como indispensáveis para o desenvolvimento nacional. De
acordo com Ferreira, as reformas sugeridas poderiam ser definidas em dois blocos. A
primeira voltava-se para(...) racionalizar a ação do governo (administrativa e bancária) e
aquelas que visavam eliminar os entraves institucionais à utilização dos fatores de
produção (especialmente as reformas fiscal e agrária).”
132
Em mensagem enviada ao Congresso na abertura da sessão Legislativa de 1963,
ao realizar a apresentação do Plano Trienal, o presidente, consciente dos descompassos
políticos entre o Executivo e o Legislativo, pediu a colaboração do Congresso para
aprovação das reformas de base. Dessa forma, afirmava ele que,
Neste primeiro ano de uma política global planejada, teremos alcançado
plenamente nossos objetivos planejados se conseguirmos controlar o
processo inflacionário e se obtivermos uma ação conjunta do poder
131
Mensagem ao Congresso Nacional remetida pelo Presidente da República na abertura da sessão legislativa
de 1963, em 15 de março de 1963. Arquivo digitalizado do Center for Research Libraries. Brazilian
Presidential Messages, 1890 1993. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/prestoc.htm Acesso
em: 15/12/2006.
132
FERREIRA, M. M. João Goulart. In: Dicionário histórico biográfico brasileiro, op. cit. p.13.
71
71
legislativo e executivo para consagrar as emendas constitucionais e leis
ordinárias porque anseia a nação como exigência de nosso
desenvolvimento. Os poderes da república precisam atuar numa constante
comunhão de vistas a fim de que elas se realizem sem abalos ou rupturas
do processo democrático.
133
Ainda referindo-se ao Plano Trienal, Jango destacava o importante papel da
agricultura para o processo de desenvolvimento e atribuía seu atraso, caracterizado pela
baixa produtividade e pobreza do homem do campo, às desigualdades da estrutura agrária.
Em sua apresentação, declarava:
Permitam-me mais uma dar ênfase especial ao problema agrário. Em
mensagem anterior, afirmei que a reforma agrária é uma idéia de força
irresistível, que não pode ser protelada, pois sua urgência e necessidade
estão na consciência de todas as camadas da população. A estrutura
agrária predominante no país constitui enorme entrave ao nosso progresso
econômico e social. Em um país de terra tão abundante e grande
excedente de mão de obra, não se compreende que continuemos a viver
em permanente escassez de ofertas de produtos agrícolas. Subutilizamos
terra, a mão-de-obra e às vezes também o capital, pela irracionalidade das
formas de organização da produção. Grande parte da população do campo
está submetida às péssimas condições sem que se lhe a oportunidade
de usar a sua capacidade de trabalho em benefício próprio.
134
Condizente com a sua mensagem e com vistas a atenuar as críticas da esquerda,
o governo enviou ao Congresso, em março de 63, sua proposta oficial de reforma agrária.
Mas o anteprojeto possuía uma grave imprecisão: previa as indenizações em títulos da
dívida pública, o que pressupunha emendas à Constituição. Contudo, a proposta de
emenda
135
constitucional somente seria enviada ao Congresso um mês depois do anteprojeto,
desagradando a esquerda que alertava para a falta de cumprimento das promessas pré-
plebiscito e a direita que acusava-o de desrespeitar o Legislativo. Além disso, a Emenda
Constitucional foi recebida (...) como o ‘Cavalo de Tróia’, através do qual pretendia o
Governo introduzir mudanças conflituosas, de maior gravidade política e social.”
136
133
Mensagem ao Congresso Nacional remetida pelo Presidente da República na abertura da sessão legislativa
de 1963, em 15 de março de 1963. Arquivo digitalizado do Center for Research Libraries, op.cit. p.03.
Brazilian Presidential Messages, 1890 1993. Disponível em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/prestoc.htm Acesso em: 02/01/2007.
134
Idem, p.10.
135
A emenda constitucional que substituiria o Parágrafo 16 do Artigo-141, pelo pagamento das
desapropriações em títulos da dívida pública, foi enviada à Câmara dos Deputados, a pedido de Goulart, por
Luis Fernando Bocaiúva Cunha, líder do PTB na Câmara.
136
CAMARGO, A. A. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964), op. cit. p.211.
72
72
O anteprojeto enviado ao Congresso estabelecia a desapropriação de terras como
um dos principais instrumentos da reforma agrária. Sendo assim, as terras poderiam ser
desapropriadas, por interesse social, obedecendo a nove itens, quais sejam:
1) As necessárias à produção de alimentos que não estejam sendo
utilizadas ou que estejam inadequadamente ou para outros fins; 2) as
beneficiadas, recuperadas, ou conquistadas com investimentos públicos;
3) as ocupadas por estabelecimentos agrícolas, pecuários, agropecuários e
agroindustriais, administrados por seus proprietários quando não
produzem rendimentos que lhes permitam pagamentos a todos os
empregados de remuneração igual ao salário mínimo regional; 4) as que
por sua reduzida extensão não permitam sua exploração em veis
racionais e produtividade compatíveis com as técnicas acessíveis à
região; 5) as necessárias à fixação de posseiros que as trabalhem mais
de três anos consecutivos; 6) as exploradas sobre as modalidades de
arrendamento, parceria ou outra forma indireta somente na parte assim
aproveitada; 7) as que embora utilizadas, sejam indispensáveis ao
abastecimento de centros de consumo; 8) as necessárias à proteção do
solo, da fauna, dos mananciais, cursos d´água, para florestamento e
reflorestamento; 9) as necessárias ao estabelecimento de núcleos de
colonização e povoamento, de armazéns, silos, instalações industriais de
conservação e beneficiamento da produção e outras obras de interesse
para a economia rural.
137
Diante da proposta considerada imprecisa em muitos aspectos, os proprietários
rurais e a bancada mais conservadora do Congresso passaram a organizar um forte esquema
de rejeição, não somente ao anteprojeto, mas, também, à emenda constitucional. Esta, aliás,
foi estigmatizada como um perigo eminente para a manutenção das instituições
democráticas. De acordo com nota oficial, a CRB, se posicionava, frontalmente, contra a
natureza distributivista do anteprojeto, alegando que seu teor generalista fatalmente
ocasionaria desapropriações injustas, como era o caso das terras ocupadas por arrendatários
e parceiros. Na mesma nota, salienta que não negavam a necessidade de uma reforma, mas
que o acesso a terra, para os trabalhadores rurais, deveria circunscrever-se a terras
pertencentes à União. Em sua proposta, destacavam que o ponto fundamental não era a
distribuição indiscriminada de terras, mas a necessidade de se racionalizar a produção.
138
Em clara sintonia com os preceitos defendidos pela CRB, o arcebispo de Recife
e Olinda, em entrevista coletiva, tentava esclarecer que os pronunciamentos em favor das
Reformas de Base, especialmente a agrária, não deveriam ser interpretados enquanto uma
guinada à esquerda, por parte da cúpula do Episcopado brasileiro, mas que, segundo o
arcebispo,
137
Integra do projeto que fixa normas para a reforma agrária. In: jornal O Estado de São Paulo, 14/03/63.
138
Jornal O Estado de São Paulo, 27/03/63.
73
73
Com reforma agrária ou sem a reforma da Constituição, que é matéria de
debates entre os partidos políticos, foi encarada pela mensagem dos
bispos como necessária, porém não observada dentro do prisma
demagógico que a situaria apenas como mera distribuição de terras. A
reforma terá realmente solução com o acesso à terra que deve ser
realizado globalmente com todo processo de assistência educacional,
técnica e creditícia. Cabe aos governos Federal, Estadual e Municipal
empenhar-se vivamente na solução do problema agrário brasileiro dando
exemplo com a distribuição das próprias terras, que não são poucas, em
todo o território nacional, levando a cada gleba a presença técnica, do
crédito e da escola.
139
Além das declarações públicas e de impacto junto à sociedade, tanto da CRB,
quanto de uma parcela da Igreja condenando o projeto do Executivo, houve ainda, no campo
das correlações de forças políticas, uma perda significativa para o governo. No final de
abril, em Curitiba, a UDN em sua Convenção Nacional decidiu, de forma categórica, que a
Constituição era intocável. Para Camargo,
Os resultados da Convenção de Curitiba são bastante significativos e
contribuem para alterar de maneira radical a correlação de forças
partidária e política. Ao nível interno, desloca o alinhamento dos
centristas para a direita. É de notar que a cúpula da UDN, composta de
Adauto Lúcio Cardoso, Pedro Aleixo, João Agripino e Daniel Krieger,
embora receba manifestação de confiança do bloco reformista no plenário
da Convenção, é obrigada redefinir as posições assumidas; além do temor
natural ao governo, tantas vezes anunciado, acrescenta-se, nas
circunstâncias, a necessidade de garantir a coesão partidária mais do
nunca indispensável. Ficam, portanto, arquivados o reformismo moderado
de Pedro Aleixo, e as declarações de Herbert Levy, que dias antes da
convenção de Curitiba manifesta-se favorável à desapropriação com
pagamentos em títulos, desde de que com o aval do Banco do Brasil
(...).
140
Apesar das crescentes críticas no cenário nacional à emenda constitucional de
Bocaiúva Cunha, houve, nos dias imediatamente posteriores ao lançamento da proposta, a
possibilidade de apoio de alguns partidos. O PSD, por exemplo, representava uma peça
importante, em virtude do expressivo número de congressistas. O partido, embora se
mantivesse contrário à emenda constitucional de Bocaiúva Cunha, por considerá-la
imprecisa e omissa no que se refere à correção dos juros das desapropriações em títulos da
dívida pública, entendia que o pagamento das desapropriações deveria ser efetuado em
títulos reajustáveis para que não houvesse prejuízos aos proprietários.
141
139
Jornal O Estado de São Paulo, 10/05/63.
140
CAMARGO, A. A. A Questão Agrária: Crise de Poder e Reformas de Base (1930-1964), op. cit. p.211.
141
De acordo com a emenda proposta pelo PSD, “(...) propõe-se alterar o Artigo 147 da Constituição no que
diz respeito à desapropriação da propriedade territorial rural. Essa desapropriação poderá ser feita mediante
prévia e justa indenização em títulos da dívida pública, resgatáveis em prestações. Os títulos vencerão juros e
74
74
Segundo os pessedistas moderados, para resolver o impasse sobre o projeto do
governo, era necessário restringir a área de abrangência das desapropriações, ou seja, o
dispositivo seria aplicado exclusivamente em áreas improdutivas. Outra meta apresentada
discorria sobre as desapropriações que executar-se-iam somente mediante um prévio plano
de colonização. Em virtude do gradualismo assumido pela ala moderada do partido, a
possibilidade de se implementar o arrendamento compulsório tornou-se irrisória, pois o
mesmo não teria votos suficientes para a aprovação. A proposta que havia sido defendida
pelo PTB, foi uma das mais polêmicas até então apresentadas e suscitou fortes reações
contrárias, especialmente da UDN, dos ruralistas e da ala conservadora da Igreja Católica,
que consideraram a iniciativa uma afronta de caráter meramente confiscatório.
142
De acordo com Afrânio de Carvalho,
143
o arrendamento compulsório era um
ataque à iniciativa privada e ao direito de propriedade. Segundo suas considerações,
Sem exagero pode-se afirmar que doravante não mais existirá o direito de
propriedade particular, mas apenas o processo de sua progressiva
erradicação, a pretexto da formação de unidades familiares, que, na
Alemanha Oriental, como em outros países, foi a fase predatória da
coletivização. (...) com o arrendamento compulsório o proprietário não
tem voz sequer para assegurar a conservação de um imóvel (...)
144
No entanto, o apoio parcial do PSD passou por um revés político com a
Convenção da UDN em Curitiba, e com a forte pressão de sua bancada ruralista. Assim,
como os centristas da UDN, os moderados do PSD migraram para a direita e passaram a
condenar a aprovação, não somente do projeto do governo, mas, também, da sua proposta
de emenda constitucional.
A concretização dessa perspectiva extremamente desfavorável aos propósitos do
governo efetivou-se com a rejeição da Emenda Bocaiúva, por parte da Comissão Especial,
em 13 de maio de 1963.
A Comissão, formada por uma maioria udenista e pessedista, acatava o parecer
do relator Aliomar Baleeiro, da UDN. Segundo seu argumento,
terão seu valor corrigido de 30 a 50% sobre a desvalorização da moeda, fixando-se em cada exercício
financeiro o recurso necessário ao pagamento de resgate dos títulos e juros devidos.” Parecer sobre a emenda à
Constituição para fins de reforma agrária apresentada pelo PSD ao Congresso In: Arquivo Paulo de Assis
Ribeiro. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.Caixa 51/53.
142
Jornal O Estado de São Paulo, 10/05/63.
143
Afrânio de Carvalho foi autor do ante-projeto de Lei Agrária apresentado em nome do presidente Dutra, ao
Congresso Nacional, em 30/06/1947.
144
CARVALHO, A. Considerações Gerais ao Projeto Oficial de Reforma Agrária do Governo Goulart.
Acervo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional, RJ.
75
75
O latifúndio era e ainda é um imperativo econômico de nosso tempo e que
o Brasil é quase um gigante que não pode ser vestido de reformas agrárias
talhadas para anões insulares como Japão ou Cuba. Insiste na
possibilidade de aproveitamento das terras públicas e na necessidade de
um cadastro rural que tornasse possível a tributação progressiva.
Condenando a lavoura de subsistência como inviável, e como obstáculo
ao desenvolvimento, argumenta que a elevação do vel de vida das
populações rurais depende do aumento geral da produtividade, e não de
medidas demagógicas, economicamente inviáveis. (...) e acrescenta que a
Emenda Constitucional daria ao Presidente da República arma política e
poderosa, e o arbítrio de escolher o que desapropriar(...)
A rejeição na Comissão Especial representava o acalorado termômetro político
que as propostas enfrentariam em sua votação em plenário, que necessitavam da
aprovação de dois terços dos deputados. No dia 7 de outubro de 1963 a emenda foi
reprovada em plenário, colocando em xeque o projeto de reformismo constitucional. Além
do desgaste político provocado pela queda de braço em favor da reforma agrária, o governo
enfrentava outras crises políticas que alimentavam as suspeitas quanto às suas reais
intenções políticas. Em setembro de 1963, a insatisfação dos sargentos deflagrou uma grave
crise militar. Reivindicavam melhores salários e o direito à elegibilidade, o que foi
prontamente recusado pelo STF (Superior Tribunal Federal), que tomou essa medida,
baseado nos princípios constitucionais. O motim facilmente contornado evidenciava as
distensões políticas no interior das forças armadas, bem como a quebra do princípio da
hierarquia militar e ampliava as desconfianças da oficialidade com relação ao governo, pela
sua suposta omissão frente o levante. Tanto que, no dia seguinte ao conflito, Humberto
Castello Branco, recém empossado no Estado Maior do Exército (EME), em
pronunciamento oficial assinalava a insatisfação da oficialidade com relação ao governo e
aos grupos de esquerda que gravitavam ao seu entorno. Em seu discurso Castello alegava
que,
reformadores oportunistas que querem substituir as Forças Armadas
por um solapamento progressivo e antinacional que institui o exército
popular, um arremedo de milícia, com uma ideologia ambígua destinada a
agitar o país com exauridos pronunciamentos verbais e a perturbar com
subversões brancas e com motins a vida do povo.
145
Além dos respingos provocados pela revolta dos sargentos, João Goulart,
visando tentar conter as agitações no campo e na cidade, por ocasião das greves
comandadas pelo CGT, anunciou o pedido do estado de sítio junto ao Congresso por um
período de trinta dias. Tal medida suscitou a insatisfação da direita, o que o fez revogar o
145
Jornal O Estado de São Paulo, 14/09/63.
76
76
pedido alguns dias depois. Mas o recuo estratégico, longe de acalmar os ânimos, somente
fez reafirmar as acusações de perda de controle político e militar por parte do governo,
abrindo, com isso, um perigoso vácuo por onde as forças políticas contrárias a Goulart
começaram a se articular para a derrubada do governo.
A intensificação das invasões de terras e dos conflitos entre fazendeiros e
lavradores, em vários estados, cidades e regiões do país, como em: Goiás, Governador
Valadares, Bahia e no oeste do Paraná, passaram a ser noticiadas na grande imprensa. A
grande repercussão nos jornais corroborava para as afirmações da perda de controle político.
Os fazendeiros das regiões afetadas e suas organizações de classe, passaram, por meio de
declarações oficiais veiculadas na imprensa, a acusar as autoridades públicas de omissão por
estarem comprometidas com o projeto “revolucionário do governo.”
146
Sendo assim, não
restaria aos proprietários, alternativa a não ser responder à violência, com violência.
147
Para exemplificar a elevação de tom assumida pelos proprietários dessas regiões, o jornal O
Estado de São Paulo publicou uma série de reportagens com as declarações dos
proprietários da região de Trindade, em Goiás e Uberaba, em Minas Gerais, cujo conteúdo
coincidia quanto a disponibilidade de defender, até mesmo pelas armas, a propriedade
privada contra as pretensas desapropriações do governo, por intermédio da SUPRA.
Segundo o Jornal,
Membros categorizados na associação rural de Trindade, fizeram uma
declaração conjunta, à imprensa, reafirmando que se defenderão armados
dos que ultrapassarem as linhas divisórias de suas propriedades com a
finalidade de invadi-las. Explicaram que dispõem de armamentos e têm
facilidade de reunir todo o pessoal para qualquer emergência.
148
Procurando reverter o processo de corrosão de suas bases de apoio à esquerda,
principalmente da ala liderada por Leonel Brizola, Goulart intensificou as investidas em
torno da defesa da reforma agrária.
Com a rejeição de sua proposta pelo Congresso, determinou a SUPRA a criação
de uma minuta de decreto que tornava desapropriável, por interesse social, as propriedades
com mais de 500 alqueires, que estivessem em um raio de 10 km de rodovias, ferrovias e
açudes. Embora esta proposta tenha sido rascunhada no início de 1963, somente foi
146
Jornal O Estado de São Paulo, 16/02/63.
147
Idem.
148
Jornal O Estado de São Paulo, 16/02/64; 18/02/63; 20/02/63 e 26/02/63. A reportagem, “Direito de defesa
dos proprietários ante as invasões” no dia 26 de fevereiro traz o parecer do jurista Manoel Linhares de
Lacerda, antigo procurador do estado do Paraná sobre as invasões de terras. A conclusão do jurista acena “pelo
direito que assiste aos proprietários rurais de reprimirem as invasões de suas terras, utilizando, mesmo, a força
para impedi-la, assim como, processar criminalmente o presidente da Supra.”
77
77
concretizada por meio de um decreto de 13 de março de 1964, decreto este, que foi assinado
em pleno comício organizado pelos sindicatos na Central do Brasil. O hiato existente entre o
rascunho da proposta e sua efetivação, deveu-se à forte oposição da UDN, do PSD e dos
ruralistas. De acordo com Villa,
O decreto da SUPRA tinha mais a função de criar um fato político após a
rejeição, em 1963, do projeto de reforma agrária pela Câmara dos
Deputados do que enfrentar a questão agrária. De um lado, não havia
meios econômicos e, principalmente jurídicos de colocá-lo em vigor, pois
necessitava da alteração do Artigo 141 da Constituição Federal; de outro,
abria um sem-número de possibilidades para que os latifundiários
pudessem impedir na Justiça a desapropriação de suas terras. Portanto,
somente o clima de radicalização existente no país naquele momento
explica a reação furiosa da direita contra o decreto, atitude determinada
também pela necessidade de marcar posição e impedir novas e ousadas
medidas governamentais.
149
Se o Congresso não apoiava as iniciativas reformistas, Goulart, por meio de uma
consulta popular encomendada ao IBOPE, buscava a legitimação para a reforma agrária
respaldado na vontade popular. Com essa consulta, Goulart procurava evidenciar que a
dificuldade em aprovar a reforma agrária não passava pelo Executivo, mas sim pelo
Congresso, pois esse estaria comprometido com os setores conservadores. Jango esperava,
dessa forma, pressionar o Legislativo evidenciando que a insistência na temática partia de
seu comprometimento com a vontade da sociedade. Conforme Yamauti, (...) pesquisas
realizadas pelo IBOPE em dez capitais do país revelavam que 62% das pessoas
consultadas se manifestavam favoráveis à reforma agrária, enquanto apenas 11,5% se
posicionavam contrárias.”
150
Seguindo a mesma estratégia de mobilização popular para pressionar o
Congresso a aprovar as reformas de base, Goulart começou a organizar uma série de
grandes comícios. Se o Congresso permanecesse irredutível em seu posicionamento, o
presidente efetivaria as reformas, utilizando-se, para tanto, dos decretos presidenciais. No
primeiro comício, realizado na Central do Brasil no Rio de Janeiro, apoiado pelos setores
sindicais, pela esquerda e por uma parcela do exército, proferiu um discurso onde
reafirmava as pretensões em executar a reforma agrária, a urbana e a concessão do voto aos
analfabetos. Nesta ocasião, assinou o decreto da SUPRA, que “(...) declara de interesse
social para fins de desapropriação as áreas rurais que ladeiam os eixos rodoviários
federais, os leitos das ferrovias nacionais e as terras beneficiadas ou recuperadas por
149
VILLA, M. A. Jango: um perfil (1945-1964), op. cit p.170.
150
YAMAUTI, N. N. A Questão da Reforma Agrária no Governo Goulart. Acta Sci. Human Soc. Sci, op.
cit. p.72.
78
78
investimentos da União”. Goulart justificava a necessidade do decreto pela imperiosidade e
urgência de leis que possibilitassem o acesso a terra aos trabalhadores. De acordo com sua
fala,
Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da SUPRA. Assinei-o, meus
patrícios, voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior
da nossa pátria. Ainda o é a reforma pela qual lutamos. Ainda não é a
reformulação do nosso panorama rural empobrecido.(...) Reforma agrária,
com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e em dinheiro,
não é reforma agrária (...) Reforma agrária como consagrado na
Constituição, com pagamento prévio e em dinheiro, é negócio, que
interessa apenas ao latifundiário. Por isso o decreto do Supra não é
reforma agrária. Sem a reforma constitucional, trabalhadores, não
reforma agrária autêntica. Sem emendar a Constituição, que tem acima
dela o povo, poderemos ter leis agrárias honestas e bem intencionadas,
mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais profundas.
151
O comício da Central do Brasil trouxe desdobramentos desastrosos para a
continuidade de seu governo. A reforma urbana assustava a classe média, pois, temerosa,
aventava a perda de seus imóveis para os inquilinos. Os proprietários de terras repudiaram a
assinatura do decreto da SUPRA, haja vista que previam o crescimento das medidas
distributivistas, além de perceberem que, apesar do governo não ter capital para levar
adiante a reforma sem emenda constitucional, esta prejudicaria sobremaneira os
proprietários afetados com a medida, pela impossibilidade de venda de tais imóveis. os
militares, entendiam o discurso como o derradeiro prenúncio da revolução socialista.
Enquanto a UDN e parte do PSD, pediam a cassação do mandato do presidente,
várias entidades organizaram a chamada, Marcha da Família com Deus pela Liberdade, com
o objetivo de sensibilizar a opinião pública contra as medidas tidas como arbitrárias e
esquerdistas de Goulart. Os intentos da marcha superaram até mesmo a previsão dos seus
organizadores, pois chegaram a mobilizar em grandes manifestações mais de 500 mil
pessoas.
A crescente radicalização somou-se ao episódio da rebelião dos marinheiros, no
dia 25 de março um grupo de marinheiros e fuzileiros navais, contrariando a proibição do
Ministério da Marinha, compareceu a uma reunião comemorativa da associação dos
marinheiros e fuzileiros navais, no Sindicato dos Metalúrgicos. Tal atitude, vista como
quebra da hierarquia militar, levou o ministro da Marinha, Almirante Silvio Frota, a emitir
uma ordem de prisão contra os organizadores do evento. Mais uma vez o princípio da
hierarquia militar havia sido colocado à prova. A atitude de Goulart, ao anistiar os
151
O jornal O Estado de São Paulo, 14/03/64.
79
79
participantes do motim, oficializaria a quebra de hierarquia, fato que terminou por estimular
os oficiais moderados a apoiar o golpe que vinha sendo arquitetado por Castello Branco.
A atitude de Goulart em participar da reunião dos Sargentos no Automóvel
Clube do Brasil, no dia 30 de março, seria sua última aparição pública. No dia 31 de março,
as tropas comandadas por Olímpio Mourão Filho começaram a movimentação em direção
ao Rio de Janeiro. Deflagrado o golpe, com um dia de antecedência, os principais comandos
militares se unificaram para dar apoio à ofensiva de Minas.
Ao tomar conhecimento do Golpe, Goulart não tentou articular resistência. No
dia de abril viajou para o Rio Grande do Sul. Na mesma noite, o Congresso se reuniu e
declarou vaga a Presidência da República. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara,
novamente assumiria, interinamente, o cargo de chefe do Governo.
A reforma agrária tida como um dos pilares centrais das Reformas de Base,
parecia ter sido, definitivamente, colocada de lado, assim como ocorreu com o seu principal
articulador. Essa era, ao menos, a pretensão dos principais setores políticos, militares e da
sociedade civil que apoiaram o golpe. O primeiro presidente militar frustrou essas
expectativas.
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CAPÍTULO II
O ESTATUTO DA TERRA: A PROPOSTA DE REFORMA
AGRÁRIA DO GOVERNO CASTELLO
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CAPÍTULO II
O ESTATUTO DA TERRA: A PROPOSTA DE REFORMA AGRÁRIA
DO GOVERNO CASTELLO
Quatro coisas não retornam: a seta
desfechada, a palavra proferida, a
água que passou no moinho e a
oportunidade perdida”.
Omar Khayam
2.1 - O GOVERNO CASTELLO BRANCO E OS FUNDAMENTOS QUE
JUSTIFICARAM A FORMULAÇÃO DO ESTATUTO DA TERRA
O golpe de 1964 assemelha-se a qualquer outra revolução no que concerne à
principal característica revolucionária, a ruptura abrupta do exercício do poder. O século
XX foi pródigo no fomento de revoluções e contra-revoluções, tanto à direita quanto à
esquerda. As conjunturas e movimentos que precipitaram essas transformações súbitas e,
em geral, radicais, estavam presentes no Brasil na década de 60. A tomada de poder
impetrada pelos militares representou um rompimento com relação ao período Goulart.
Afinal, no plano econômico, social e político, os militares adotaram medidas
fundamentalmente antagônicas às de Jango, a exceção da manutenção de uma proposta de
reforma agrária.
Após o Golpe de 64, as articulações políticas para a escolha do novo Presidente
tornaram-se o principal eixo de discussão entre os participantes do movimento. De início a
presidência foi ocupada respeitando-se a especificação constitucional, pois, segundo o texto,
uma vez declarada vaga a presidência o Presidente da Câmara dos Deputados deveria
ocupar o cargo por um prazo máximo de 30 dias, enquanto o Congresso se encarregava de
eleger um novo chefe de governo. Com isso, pela segunda vez e, novamente em um período
bastante conturbado, Ranieri Mazzilli, tornou-se provisoriamente Presidente da República.
No entanto, os diversos interesses políticos em jogo e a acirrada disputa pelo poder nos
bastidores do movimento, encurtaram o mandato de Mazzilli.
152
Imediatamente após o movimento de 31 de março mostrar-se vitorioso, os
governadores que apoiaram o Golpe por meio de uma comissão formada por Carlos
Lacerda, Magalhães Pinto e Adhemar de Barros, passaram a reivindicar, junto ao recém
empossado Ministro da Guerra, Arthur da Costa e Silva, o abreviamento do período de
152
SKIDMORE, T. Brasil: de Castello a Tancredo, op. cit.
82
82
interinidade. Esses governadores que vislumbravam as eleições presidenciais de 65
desconfiavam que Costa e Silva pretendia prorrogar o período de interinidade para, assim,
poder controlar o governo. Tais desconfianças resultavam da própria cisão no meio militar
quanto aos objetivos da “Revolução”. Segundo Roberto Campos,
Para os moderados, como Castello, a Revolução de 1964 devia ser
concebida como uma restauração democrática. Independentemente das
intenções pessoais de Goulart, a infiltração da extrema esquerda na
administração e a crescente frustração econômica tinham levado o país a
uma radicalização. Pairava no ar o espectro da “revolução sindicalista”.
Para a “linha dura”, entretanto, as prioridades eram diferentes. A guerra à
corrupção e à subversão era um objetivo em si mesmo, postergando-se a
“restauração democrática” até que estivesse concluída a tarefa
moralizadora.
153
Os governadores, ao reivindicarem o adiantamento do processo eleitoral para a
escolha do Presidente da República, partiam da análise dessa cisão e isso potencializou as
incertezas em torno das pretensões políticas de Costa e Silva que, neste período, destacava-
se na tomada de decisões quanto aos rumos políticos do país. Neste sentido, a estratégia
consistia em apoiar um candidato militar caracterizado como moderado dada a remota
possibilidade, naquele contexto, de os militares aceitarem um candidato civil. Com um
moderado no poder afastar-se-ia, em tese, o temor pela implantação de um regime de
“exceção de fato" e a continuidade das eleições indiretas. Como sugestão, os governadores
indicaram o nome de Humberto de Alencar Castello Branco.
154
Embora Costa e Silva não tenha recebido a indicação de Castello como a mais
apropriada para a ocasião, tendo em vista as concepções moderadas de Castello, este cedeu
ante o forte consenso em torno de seu nome por parte do empresariado, dos militares e dos
governadores que engrossaram o movimento golpista. Para a população, de uma forma
geral, tratava-se de quase um desconhecido.
153
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa: Memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p.p.565/566.
154
Mas afinal, quem era o general Humberto de Alencar Castello Branco? Filho de militar, Castello Branco
nasceu em Fortaleza em 1897 e fez carreira militar nas Forças Armadas, especificamente no Exército. Foi
instrutor de infantaria em Realengo, Rio de Janeiro. Quando se tornou capitão foi estudar na França na École
Supérieur de Guerre. Quando se tornou tenente coronel, foi enviado em 1943, em função do envio de tropas à
Segunda Guerra, para a Comand and General Staff School, no Fort Loaverworth, EUA, com o propósito de se
familiarizar com os métodos e regulamentos norte-americanos. Foi chefe de seção de operações da Força
Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial, na Itália. Por ocasião da Guerra, tornou-
se próximo do major norte-americano Vernon Walters. Os estudos realizados na escola norte americana
influenciaram-no significativamente, ao ponto dele ter se tornado um grande admirador dos Estados Unidos.
Após o retorno ao Brasil reassumiria sua cadeira na Escola de Estado Maior do Exército, onde coubera a
Castello a tarefa de adequar o currículo da Escola à realidade do Pós Guerra, substituindo a influência da
Missão Militar francesa pela pragmática doutrina militar norte-americana. Aliás, essa tendência evidenciava
sua clara sintonia com a política anticomunista americana. Foi comandante do IV Exército e Chefe do Estado
maior do Exército de 1963 a 1964.
NETO, L. Castello: A Marcha Para a Ditadura. São Paulo: Contexto, 2004.
83
83
Enquanto nos bastidores construía-se o lobby em favor do general, Costa e Silva
dava continuidade às modificações institucionais do país, formulando o Ato Institucional n.º
1. Dentre as demais especificações cabe destacar que:
1) O presidente pode apresentar emendas constitucionais ao Congresso,
que terá apenas trinta dias para examiná-las, sendo necessário para
sua aprovação apenas o voto da maioria (ao contrário dos dois terços
requeridos pela constituição de 1946). 2) o presidente tem o exclusivo
poder de apresentar projetos de lei envolvendo despesas ao
Congresso, o qual fica impedido de alterar para mais qualquer artigo
referente a gastos do governo. 3) O presidente tem o poder de declarar
o estado de sítio ou prolongá-lo por mais trinta dias no máximo, com
a exigência de um relatório ao Congresso dentro de 48 horas. 4) O
presidente, “no interesse da paz e da honra nacional”, tem amplos
poderes para suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer
cidadão e cancelar os mandatos de legisladores federais, estaduais e
municipais. 5) Suspensão da estabilidade dos servidores públicos por
seis meses.
155
O aumento dos poderes do Executivo era justificado pelo Ato em função da
necessidade de reestruturação do país, mas também pode ser interpretado como uma forma
de restringir o raio de ação do Legislativo. O Presidente da República, segundo o
documento, era autorizado a enviar projetos de lei ao Congresso e esse teria no máximo
trinta dias para apreciá-lo, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, caso
contrário, os projetos seriam automaticamente aprovados por “decurso de prazo”. Como era
relativamente fácil obstruir as votações, o uso deste dispositivo tornou-se corriqueiro.
Projetos polêmicos, como o da reforma agrária, ironicamente terminaram sendo
beneficiados por esse recurso. Isso porque, em função do escasso tempo para as discussões e
sugestões de emendas, o projeto foi aprovado dentro do prazo estipulado. Isso não quer
dizer que o debate tenha transcorrido de forma tranqüila, pois no intervalo entre o
lançamento da proposta de reforma agrária, em abril, e sua efetiva aprovação, em 30 de
novembro de 64, o governo empenhou-se em uma ampla campanha de convencimento junto
às associações de classe, partidos e sindicatos,
156
visando comprovar a necessidade de
155
SKIDMORE, T. Brasil: de Castello a Tancredo, op. cit. p.p.48/49.
156
Ocorreu uma intervenção dos sindicatos de trabalhadores onde as lideranças consideradas mais radicais
foram substituídas pelas mais moderadas. Essa medida foi avaliada por alguns setores como tímida, e houve
ainda uma forte reação à proposta pela mesma ser considerada um antagonismo com relação aos princípios
que desencadearam o golpe, ou seja, o lançamento da proposta de reforma e de emenda constitucional eram
vistos como o retorno das discussões que tantos impasses causaram na década anterior e que não deveriam
compor o rol de ações do governo. Alguns representantes partidários como Bilac Pinto da UDN e Último de
Carvalho do PSD, em sintonia com os segmentos militares mais conservadores e a CRB, visualizavam um
retorno das idéias esquerdistas de Goulart. Além disso, entendiam que o desenvolvimento econômico do país
não estava atrelado a execução da reforma agrária. A insistência do governo em aprovar os dois dispositivos
que tantas discussões suscitaram no período anterior, aumentou ainda mais a cisão entre os militares no que se
refere ao alcance das medidas reformistas a serem empregadas pelo novo governo. Assentado sobre uma base
84
84
aplicação da reforma agrária. Além disso, havia a proposta de Emenda Constitucional que
tornava ainda mais explosivos os debates nos primeiros meses de seu governo.
157
O “Comando Revolucionário” modificou a cláusula da Constituição de 1946 que
tornava inelegíveis os oficiais das forças armadas para concorrer a cargos eletivos. Com o
esvaziamento deste dispositivo, abriu-se o caminho para a efetivação consensual de um
candidato que representasse os anseios dos militares e dos governadores que apoiaram o
golpe. Conjuntamente com o processo de reversão da inelegibilidade, o ato viabilizava a
instalação dos Inquéritos Policiais Militares que se destinavam a investigar os supostos
crimes contra o Estado, contra a ordem política e social, bem como as supostas ações de
guerra revolucionária.
158
A partir desses poderes excepcionais, desencadeou-se uma onda de perseguições
contra os inimigos da “revolução” ou, mais precisamente, àqueles que defendiam posições
nacionalistas e de esquerda, e que haviam apoiado o governo Goulart. Segundo os militares,
era necessário realizar uma “operação limpeza” desarticulando, com isso, possíveis focos de
resistência à nova ordem constituída. A resistência não chegou a se articular de fato, mas,
mesmo assim, foram realizadas várias cassações de mandatos tanto de parlamentares quanto
de governadores.
159
Conjuntamente com as ações na esfera política partidária, ocorreram
invasões como na sede dos estudantes da UNE/Rio de Janeiro e na Universidade de
Brasília-UNB, instituições especialmente visadas pela repressão por serem consideradas
focos da esquerda. Juízes e pessoas ligadas à burocracia civil também foram afastados.
No campo a “operação limpeza” concentrou-se na detenção das lideranças dos
trabalhadores rurais, principalmente das Ligas Camponesas. Nas grandes áreas urbanas,
sindicatos e federações de trabalhadores tiveram suas principais lideranças sindicais detidas.
política quase tão frágil quanto a de Goulart, o governo Castello teve que equilibrar-se entre suas concepções
políticas e a dos seus pares, que em muitas ocasiões exigiam medidas mais intervencionistas.
157
VIANA FILHO, L. O Governo Castello Branco. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1975.
158
FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial do Estado, 2002 e NETO, L.
Castello: A Marcha Para a Ditadura. São Paulo: Contexto, 2004.
159
Dentre esses, o governador de Pernambuco Miguel Arraes. Nesta primeira fase de afastamentos estava o
nome de Celso Furtado, colaborador de João Goulart na criação do Plano Trienal e que exercia o cargo de
Superintendente da SUDENE, além de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas e o ativista do Partido
Comunista, Gregório Bezerra. As perseguições também atingiram líderes religiosos que realizavam o trabalho
pastoral com os trabalhadores rurais e organizações católicas, tais como Movimento de Educação de Base, a
JUC (Juventude Universitária Católica), entre outras.
85
85
No entanto, apesar da truculência
160
das investidas neste período, o recurso do hábeas
corpus ainda era praticado.
No dia 11 de abril, após o afastamento das lideranças políticas tidas como
indesejáveis, Castello Branco foi eleito Presidente do Brasil pelo Congresso Nacional por
meio de uma eleição indireta. Após sua posse, empenhou-se na formação de seu ministério
que, segundo Skidmore, tentava combinar as indicações anteriormente realizadas por Costa
e Silva e suas próprias escolhas, visando atingir uma formação que contemplasse
conservadores e tecnocratas.
2.2- GOVERNO REFORMISTA
A meta a ser atingida pelo novo governo centrava-se na retomada do
desenvolvimento econômico, mas para alcançar tal propósito era necessário controlar a
grave crise econômico-financeira dos últimos meses do governo Jango por meio de uma
política de estabilização. Dentro deste contexto, a equipe econômica contava com o nome
de Roberto de Oliveira Campos, indicado para compor o Ministério do Planejamento e
Coordenação Econômica, e para o Ministério da Fazenda, Octávio de Gouveia de
Bulhões.
161
Na primeira reunião do ministério com Castello Branco, Roberto Campos
apontou a grave situação financeira do país com o setor econômico sendo corroído pela
inflação galopante, fato que, segundo seus apontamentos, estava colocando o país à beira da
insolvência financeira. Alertava também que as medidas a serem adotadas eram duras e
impopulares, ressaltando em seu diagnóstico que,
160
Na bibliografia consultada, os autores ressaltam que entre o desfecho do golpe e o processo eleitoral que
efetivou a posse de Castello Branco, ocorreram casos de tortura. Destacam que o Presidente Castello não era
favorável a práticas de torturas, embora tenha sido conivente com os casos de cassações e expurgos políticos.
Ver: VIANA FILHO, L. O Governo Castello Branco. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1975; FAUSTO, B.
História do Brasil. São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial do Estado, 2002; SKIDMORE, T. Brasil: de
Castello a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
161
Octávio de Gouveia Bulhões foi professor da Fundação Getúlio Vargas.
* Roberto de Oliveira Campos era economista e iniciou sua carreira profissional ingressando no corpo
diplomático brasileiro. No final da década de 50 passou a ocupar postos governamentais, foi diretor do BNDE
e um dos responsáveis pelo plano de estabilização do governo Kubitschek. Basicamente no plano para
conseguir a aprovação dos empréstimos do FMI, o governo teria que adotar uma política de restrição salarial,
de crédito e fiscal. Pela impopularidade das medidas, o plano foi abandonado. Esse foi o primeiro de alguns
reveses que, o pragmatismo econômico de Roberto Campos, acumulou na vida política. Roberto Campos tecia
uma crítica contundente contra os nacionalistas que atacavam o capital estrangeiro. Em virtude da defesa da
entrada do capital estrangeiro no país e de sua postura assumidamente liberal, Roberto Campos ficou
conhecido pelos seus detratores pelo apelido americanizado de “Bob Fields”.
86
86
O problema é que num país desorganizado pela inflação é impossível
planejar um crescimento, sem uma dolorosa preparação de terreno. A fase
inicial da luta contra a inflação é plena de desapontamentos. Os resultados
são lentos; muitas vezes o começo da luta contra a inflação resulta em
mais inflação, pela necessidade de corrigir preços defasados, notadamente
no setor público. que cortar orçamentos, limitar o crédito, e não deve
ser afastada a hipótese de um período recessivo. Observei, finalmente,
que não conhecera até então nenhum político disposto a atravessar esse
inverno de impopularidade. Castello amuou-se um pouco e disse-me: -
Talvez o senhor me subestime. Não tenho pretensões eleitoreiras.
Dedicar-me-ei a salvar o país do caos. A única coisa que o senhor precisa
fazer é persuadir-me intelectualmente de que seu programa está correto,
de que não alternativas mais suaves. Se disso estiver persuadido,
comprometo-me a executá-lo e enfrentarei as conseqüências políticas.
162
Com o aval do Presidente, Roberto Campos e Octávio de Gouveia Bulhões
dedicaram-se na formulação do plano de estabilização denominado Plano de Ação
Econômica do Governo para o biênio 64/66. Roberto Campos propunha o planejamento das
atividades em três estágios. O primeiro seria um programa de emergência. Após o
diagnóstico da situação financeira do país, desenvolver-se-ia um programa de coordenação
das atividades governamentais no que se referia à economia, ou seja, tratava-se de uma
estratégia de desenvolvimento e um programa de ação para dois anos. No segundo estágio,
criar-se-ia um Conselho de Planejamento, um mecanismo participativo onde se faria as
avaliações sobre o processo de aplicação do PAEG.
163
O terceiro estágio seria a confecção
de um plano decenal para a continuidade da planificação dos governos seguintes, isso
porque, dado o curto período do governo, havia a necessidade de se planejar uma estratégia
geral de desenvolvimento em longo prazo e também dos demais projetos setoriais que
estavam sendo formulados. A reforma agrária era um desses projetos setoriais projetados
para uma aplicação continuada nos governos subseqüentes.
164
De acordo com Campos, o
PAEG,
(...) diferenciava claramente os objetivos dos instrumentos. Os cinco
objetivos enunciados eram rituais e clássicos, no sentido de que haviam
norteado vários esforços anteriores de planejamento. Eles seriam: a)
acelerar o crescimento e desenvolvimento econômico do país,
interrompido no biênio 1961/1963, b) conter progressivamente o processo
inflacionário durante 64/65, objetivando-se um razoável equilíbrio dos
preços a partir de 1966; c) atenuar os desníveis econômicos setoriais e
regionais e as tensões criadas pelos desequilíbrios sociais mediante a
melhoria das condições de vida; d) assegurar pela política de
investimentos, oportunidades de emprego produtivo à mão-de-obra que
162
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa: Memórias, op. cit. p.560.
163
Segundo Campos, este Conselho contaria com a participação de quatro representantes trabalhistas, quatro
da indústria, dois economistas, um sociólogo e um engenheiro.
164
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa: Memórias, op. cit.
87
87
continuamente aflui ao mercado de trabalho; e) corrigir a tendência a
déficits descontrolados do balanço de pagamentos, que ameaçavam a
continuidade do processo de desenvolvimento econômico pelo
estrangulamento periódico da capacidade para importar. Mais importante
que a enunciação de objetivos genéricos foi a explicação dos instrumentos
– política financeira, política de produtividade social e política econômica
internacional.
165
Com relação à política financeira, previa-se a redução do déficit orçamentário,
da carga tributária e um controle mais eficaz da política monetária, da política bancária e
dos investimentos públicos. Para a questão da “produtividade social”, incluíam-se a reforma
agrária, a reforma habitacional, a política educacional e a formulação de uma política
salarial. Por último, no item sobre a política internacional, concluía-se a necessidade de
reformulação cambial, a renegociação da dívida externa e o estímulo ao capital estrangeiro.
Como bem destacou Roberto Campos, a aplicação dos itens contidos no Plano de Ação
Econômica do Governo causou uma série de descontentamentos. A compressão dos salários
começou a ser realizada pela indexação de fórmulas que os corrigiam com índices abaixo da
inflação. Conjuntamente a essa aplicação, foram aprovadas medidas para impedir a
organização de greves, além disso, o fim da estabilidade de emprego, substituída pelo Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), causaram protestos entre os trabalhadores.
166
Além dessas medidas ocorreu, ainda, a aprovação, por decurso de prazo, da nova
lei de remessa de lucros que estabelecia novos itens regulamentadores dos investimentos
estrangeiros no país. Tal medida revogava a lei restritiva de 1962, enfurecendo os militares
e civis nacionalistas.
Desde a primeira reunião ministerial, o tema da reforma agrária passou a ser
tratado pelo presidente Castello Branco como emergencial. Partia-se do pressuposto de que
nenhum setor econômico poderia desenvolver-se mergulhado em um clima de permanente
insegurança, por isso era preciso encontrar respostas não demagógicas para a questão da
reforma agrária”,
167
que desde a década anterior suscitava debates e reações violentas.
Com tal afirmação declarada em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, o
governo tornava público, oficialmente, o posicionamento que iria assumir, ao longo dos
primeiros meses de seu governo, com relação à temática da reforma agrária: a defesa de um
165
Idem, p.610. Segundo o autor, no ano de 64 foram aprovados os projetos do governo: Lei de Greve;
reforma o imposto de renda e cria as ORTN´s; institui o sistema financeiro de habitação; liberaliza a lei de
remessa de lucros; cria o salário educação; lei do inquilinato; Estatuto da Terra; regulamenta os condomínios
em edificações e incorporações imobiliárias e a reforma bancária.
166
FAUSTO, B. História do Brasil, op. cit.
167
Jornal O Estado de São Paulo, 23/05/1964.
88
88
conjunto de leis que regulamentassem a posse e o uso da terra, bem como o estabelecimento
dos instrumentos que viabilizassem sua execução. Mas obviamente a declaração criticando
as respostas demagógicas com relação à questão agrária apontava para uma questão muito
pertinente naquele contexto para o governo Castello Branco, pois consistia em diferenciá-lo
dos governos anteriores no que concerne à concretização de compromissos firmados em
planos de governo ou campanhas políticas. Neste sentido, indiretamente reafirmava o
comprometimento do governo com relação a determinadas medidas encaradas como
essenciais para a estabilização econômica, visando a retomada do desenvolvimento
econômico do país. Nestes termos, em discurso proferido na cidade de Osório no Rio
Grande do Sul, declarava a vigência de grupos de estudos cuja incumbência versava sobre a
organização do Estatuto da Terra, que seria
O instrumento legal para a efetiva realização da reforma agrária. Uma
reforma agrária que, livre dos radicalismos demagógicos, atenda às reais
aspirações do trabalhador rural e, também, o crescente aumento da
produção nacional. Isto é, um conjunto de medidas que, a partir da
modificação do regime de posse e uso da terra, vise a tornar mais
numerosa a classe média rural, o que equivale a dizer que, promovendo a
justiça social no campo, destinar-se-ão a aumentar o bem-estar do
trabalhador rural e de sua família, contribuindo, ao mesmo tempo, para o
desenvolvimento econômico do País e a progressiva extinção dos erros
muito acumulados.
168
Além da importância econômica, pesava sobre a concretização da reforma
agrária um aspecto claramente político. A definição de uma lei regulamentadora para a
questão agrária objetivava atingir, segundo Castello, a “avalanche especulativa” que existia
em torno da temática e que desde a década anterior assolava a discussão no cenário político
nacional. No seu entender, a indefinição gerava a apropriação e exploração do tema
enquanto plataforma política por parte de políticos de diferentes matizes ideológicos, o que
propiciava núcleos de instabilidade política. Referindo-se especificamente aos partidos, aos
políticos e aos movimentos de esquerda, Castello ressaltava que as incertezas em torno da
questão agrária permitiam ainda, que a reforma agrária se tornasse uma espécie de moeda de
troca, na medida em que o termo era utilizado como fator aglutinador de apoio político
frente a população mais necessitada. Castello destacava, também, que na defesa da reforma
agrária estaria embutida a idealização de projetos políticos mais amplos que visavam
mudança estrutural da sociedade.
Em discurso proferido na cidade de Recife, Castello declarava que,
168
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 22 de Maio de 1964. Secretaria de Imprensa, p.53.
89
89
Precisamos encontrar soluções que nos dêem a segurança de estarmos
construindo a justiça sobre bases sólidas, que afastem das populações
brasileiras o espectro da miséria, compreensivelmente propícia à
disseminação das mais estranhas ideologias.
169
Depreende-se claramente que as “estranhas ideologias” citadas no discurso eram
endereçadas às propostas de reforma agrária dos partidos e políticos de esquerda. Apesar
dos movimentos sociais e os partidos políticos de esquerda terem sido reprimidos após o
golpe, especialmente por meio dos expurgos, a desigualdade social era entendida enquanto
uma fonte inesgotável para a reprodução e desenvolvimento das “estranhas ideologias”. Na
ótica de Castello, o enfraquecimento da esquerda enquanto projeto político deveria ir muito
além dos expurgos, os militares tinham que ter a capacidade de suprir os anseios populares
que, segundo ele, nutriam a militância subversiva.
Partindo dessa lógica e como parte de uma política anticomunista, Castello via,
então, que era imperioso combater o discurso da esquerda com bases sólidas, ou seja,
adentrando no terreno das realizações, fator de legitimidade e ao mesmo tempo de
desmobilização. Já que, segundo sua análise, o chamado comunismo brasileiro
(...) não quer dar de comer a ninguém; nem pretende dar terra a pessoa
alguma. O que quer é destruir as nossas instituições políticas
democráticas, desbaratar as Forças Armadas e levar o caos a economia
brasileira, a fim de poder implantar a ditadura instalada em outros
países. Não tenho complexo anticomunista. Procuro, sim, distinguir e
valorizar o que pode enfrentar a ideologia marxista–leninista. Nem meu
anticomunismo exclui o conhecimento de conquistas da Revolução de
1917, cuja evolução se processa mais de quarenta anos. Acredito,
porém, mais no homem do que no Estado, mais na liberdade democrática
do que na igualdade comunista. Até porque não creio que o regime
marxista-leninista traga o bem-estar geral para o povo brasileiro.
170
Para além das críticas desferidas contra a chamada esquerda radical, quanto ao
questionamento de suas reais intenções em realizar a distribuição de terras, o discurso
revelava a contradição que permeou todo o período do governo Castello: a defesa das
reformas dentro de uma perspectiva liberal convivia com a ampliação, em escala crescente,
dos poderes concedidos ao Executivo. Para o grupo da chamada Sorbonne, em nome da
liberdade democrática, o golpe de março justificava-se pela eminência de um golpe de
esquerda que implantaria no país uma ditadura comunista. Para este grupo do qual o
Presidente era um dos principais interlocutores, a chamada “liberdade democrática” teria
169
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 06 de Junho de 1964. Secretaria de Imprensa, p.32.
170
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 05 de Maio de 1964. Secretaria de Imprensa, p.27.
90
90
que ser precedida de um autoritarismo de transição
171
, ou seja, a almejada “normalidade
democrática”, caracterizada pela supressão do partido comunista, fim das agitações sociais e
pela retomada do desenvolvimento econômico, seria alcançada com um governo forte
revestido de poderes excepcionais com os quais seria possível sanear o país, sem a agitação
do período anterior. Uma vez atingida tal meta, somente então, a transmissão do poder a um
civil estaria assegurada. Dessa forma, para Rezende,
É evidente que o embate teórico sobre a democracia ressoava nos
pressupostos dos componentes do grupo de poder do regime militar, mas
de forma absolutamente singularizada pelas condições sociais vigentes,
em que se lutava para elaborar uma perspectiva de democracia angulada
por valores tais como: associação de liberdade e autoridade, ordem e
disciplina, combate ao comunismo, defesa da família, da propriedade e da
empresa privada, dentre outros. Dessa forma, a ditadura pelejava para
criar uma consciência coletiva favorável a ela alegando que somente um
setor do grupo de poder, no caso, os militares, teria condições de
resguardar e desenvolver esses valores que seriam o próprio fundamento,
segundo eles, do movimento de março de 1964.
172
Controle, ordem e disciplina eram observados como elementos que garantiriam a
aplicação do projeto reformista, a ser desenvolvido em um ambiente desintoxicado dos
radicalismos ideológicos.
173
Tornava-se imprescindível, portanto, a neutralização da
esquerda radical, considerada totalitária pela maioria dos militares, e ao mesmo tempo
buscar refrear os arroubos oposicionistas de sua base aliada para os projetos considerados,
por estes, como uma continuidade das propostas do governo Goulart. Apesar do consenso
inicial em torno de seu nome para ocupar a Presidência, observa-se que, desde o início do
mandato, suas ações reformistas e a intenção de devolver o cargo a um civil começaram a
provocar fissuras em sua base política. Segundo Roberto Campos, as divergências que vão
se acentuando ao longo de seu governo possuíam raízes que remontavam ao golpe de
março, pois, para o autor,
A revolução nunca foi homogênea de início, porque havia entre os
militares dois grupos. Havia a linha dura, que achava necessário um longo
período disciplinar autoritário. E havia a linha da “Sorbonne”, que queria
apenas um autoritarismo de transição. Acabou prevalecendo a linha dura,
que teve como expoente principal o Costa e Silva, que não era o candidato
dos sonhos de Castello Branco.
174
171
Termo utilizado por Roberto Campos em entrevista concedida à Ronaldo Costa Couto. COUTO, R.C.
Memória Viva do Regime Militar: Brasil de 1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1999. p.36.
172
RESENDE, M. J. A Ditadura Militar no Brasil: Repressão e Pretensão de Legitimidade. Londrina: Ed.
UEL, 2001. p. 70.
173
Entrevista de Castello Branco ao Jornal O Estado de São Paulo. 16/05/64.
174
Roberto Campos em entrevista concedida à Ronaldo Costa Couto. COUTO, R.C. Memória Viva do
Regime Militar: Brasil de 1964-1985, op.cit. p.36. Para Reginaldo Perez, “Vale lembrar que o movimento
que conduziu os militares ao poder em 1964 era composto de grupos não pouco heterogêneos, e que tinham na
91
91
Mas as diferenças não se restringiam ao período de permanência dos militares no
poder. Os desentendimentos excediam tal perspectiva, e nos primeiros meses do governo
Castello, estavam centralizados na criação das reformas e seu alcance, pois em determinadas
situações essas foram interpretadas como excessivamente progressistas e contra os
interesses nacionais. Além disso, as declarações do governo quanto à constituição de grupos
de estudos para a formulação da lei de reforma agrária provocaram divisões dentro dos
partidos e entre os militares. Havia uma parcela da base aliada que apoiava a iniciativa do
governo por considerá-la essencial rumo ao desenvolvimento econômico, e outra que via no
grupo de estudos uma desnecessária retomada de um tema polêmico que teria contribuído
para a desestabilização do cenário político nacional.
O discurso realizado por Castello na cidade de Recife, veiculado pela imprensa
nacional, acirrou ainda mais o debate ao afirmar que
O meu anticomunismo admite que a evolução política do Brasil deve
incorporar também idéias e propósitos da esquerda democrática, sem o
que não estaríamos presentes na segunda metade deste século. Não
compreendo, no entanto, porque importarmos toda uma ideologia que
destruirá as melhores qualidades do brasileiro, a começar pelo amor à
liberdade e o desejo de viver a seu jeito.
175
A declaração de Castello causava descontentamento não somente por ter
encampado o discurso sobre a necessidade de se promover a reforma agrária no país, mas
também, por defender alterações em alguns dispositivos constitucionais que, no seu
entender, atravancavam qualquer iniciativa de pôr em prática as reformas pretendidas.
Guardadas as devidas diferenças ideológicas, o fato de haver certa semelhança no tocante à
avaliação do governo com o conjunto de reivindicações do pré 64,
176
foi suficiente para que
a ala mais conservadora taxasse o governo de traidor dos ideais da “Revolução”.
Como resposta, em discurso no Rio de Janeiro, salientou que as reformas faziam
parte de seu programa de governo e que, portanto, eram fundamentais para o
aperfeiçoamento das instituições políticas do país. Ao mesmo tempo em que procurava
rejeição a uma ‘certa forma de fazer política’ ou algo em comum, mas não necessariamente detinham o mesmo
projeto para o futuro do Brasil. Entre os divisores de águas mais comuns, por exemplo, estavam o grau de
tolerância ou intolerância com que deveria ser tratada a oposição, o conteúdo preciso do nacionalismo a ser
desenvolvido, o perfil do desenvolvimento desejado etc..”. PEREZ, R. T. O Pensamento Político de Roberto
Campo: da Razão do Estado à Razão do Mercado(1950-1995). Rio de Janeiro: FGV, 1999. p.146.
175
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 05 de Maio de 1964. Secretaria de Imprensa, p.27.
176
Pode-se destacar várias continuidades com relação às reivindicações do período da década de 50, tais
como: a avaliação da estrutura fundiária como obstáculo ao desenvolvimento econômico, por estar calcada no
latifúndio improdutivo e no minifúndio, a questão da desapropriação de terras e o pagamento das
desapropriações em títulos da dívida pública.
92
92
sintetizar as críticas sobre as ações governamentais, Castello também sinalizava aos seus
interlocutores que o governo não iria recuar frente à oposição ao projeto reformista,
Primeiro, o atual governo, fugindo a compromissos da revolução,
empreende reformas, ora tachadas de inoportunas, ora acusadas de serem
uma repetição da demagogia do governo passado. Segundo, deixa de lado
problemas cruciantes para se entregar à neurose reformista. Terceiro,
claudica em relação ao expurgo. Finalmente, entrega-se a cambalachos e a
conlúios com politiqueiros contumazes. As reformas estão
inabalavelmente no programa deste governo. Quando a Revolução se
tornou vitoriosa e foi constituído um Governo que a representasse na
realidade brasileira, de todos os cantos surgia o imperativo de que aqueles
que assumiam a liderança nacional estavam na obrigação de reformar o
País. Em conseqüência, o Presidente, que assumiu o Governo em abril,
colocou em seu discurso de posse a bandeira da reforma como sendo uma
legítima aspiração da revolução. E não podia deixar de assim proceder.
mais de trinta anos o País assiste a um debate interminável em torno
de idéias e proposições com as quais procura aperfeiçoar as instituições
do Brasil. Não era agora, então, a oportunidade de se fugir ao debate. Não
era o momento de se ter medo de enfrentar as idéias opostas às
proposições do Governo. Na chefia deste Governo está um ex-militar que
aprendeu na vida cotidiana dos quartéis a não ter medo das idéias, nem
mesmo das idéias novas. O mandato deste Governo é limitado no tempo e
está dotado de prerrogativas especiais para promover, sem os processos
de rotina, todas as reformas que se impõem. Então, é preciso não perder
tempo, empreendê-las, realizá-las até o fim deste mandato. Finalmente,
meus senhores, sob o aspecto estritamente político, se o chamado
Governo da revolução empreender agora as reformas, que aliás não são
apanágio de um grupo político, estará realizando o que a democracia
brasileira necessita e evitará, grandemente, que a demagogia e a
subversão retomem, como de sua exclusividade, a bandeira reformista.
177
Se por um lado a apropriação da bandeira reformista tinha como objetivo
exteriorizar o comprometimento do novo governo, perante o povo, com relação à
formulação e execução das reformas entendidas enquanto elementos chave rumo a
estabilização econômica, política e social do país, por outro, tal apropriação garantiria
também o controle do direcionamento do processo reformista e o poder de intervenção
direta quando se fizesse necessário.
178
Além disso, a centralização das decisões, quanto ao
formato e o alcance das reformas, teoricamente, permitiria construir uma espécie de
“blindagem” cujo objetivo consistiria em distanciar o processo reformista das especulações
ideológicas, contribuindo, assim, para que este pudesse ser determinado com base em
princípios e avaliações técnicas.
177
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 04 de Julho de 1964. Secretaria de Imprensa, p.p.61/62.
178
Castello Branco, segundo depoimento de Carlos Lorena e José Gomes da Silva, acompanhou pessoalmente
a formulação do Estatuto da Terra.
93
93
A intenção era evitar o debate mais amplo com a sociedade no sentido da
construção das propostas. Estas seriam esquematizadas no âmbito do governo, numa espécie
de tutoreamento obrigatório e, a partir de então, eram disponibilizadas para apreciação pelo
Congresso e pelas representações de classe. Dentro desta perspectiva, segundo Bruno, no
governo Castello, as reformas e a reforma agrária foram tratadas a partir de um
compromisso social diferente. Elas desvincularam-se de suas origens sociais e passaram a
ser uma concessão da ´revolução´(...).”
179
Mas enganou-se o Presidente ao supor que bastava vontade política e um
governo forte para implementar as reformas, principalmente a reforma agrária. Ao
institucionalizar a proposta e afastar os chamados agitadores comunistas, acreditava que iria
encontrar o terreno propício para o desenvolvimento de sua proposta, já que
A “revolução” de 64 havia afastado o perigo do comunismo e neutralizara
o radicalismo daqueles que impediam a reforma, porque não admitiam
qualquer modificação na estrutura de propriedade vigente. Agora sim,
num clima de ordem, paz e democracia, seria possível realizar a
ambicionada reforma agrária democrática e cristã e assim, derrotar, na
prática, a opção socialista.
180
No entanto, o governo subestimou a oposição, inclusive de seus aliados políticos
com relação às reformas, uma vez que a continuidade dos trabalhos evidenciaria um jogo de
forças tão atuante quanto no período dos governos que o precederam. A iniciativa de criar
um terreno neutro desprovido das pressões ideológicas revelou-se inócuo, na medida em
que foi também unilateral. Conseguiu-se de fato neutralizar a esquerda, mas tornou-se
politicamente inviável a neutralização dos setores mais conservadores, que estes
compunham a base aliada do governo. Formada a partir dos espólios do golpe de março,
suas divergências internas, eram um subproduto do descompasso de interesses que envolvia
todo o grupo que desencadeou o Golpe.
As discrepâncias que permaneceram de certa forma latentes, ainda que
subjugadas em face do interesse comum em afastar o suposto perigo de uma ditadura de
esquerda, paulatinamente intensificaram-se no decorrer da implantação do novo governo. O
foco de atenção migrou para a profundidade e as conseqüências políticas que as reformas
propostas poderiam ocasionar, tendo em vista que muitas delas trariam grande
impopularidade para o governo,
181
podendo afetar o pleito de 66 e, por conseguinte, o
179
BRUNO, R. O Estatuto da Terra: Entre a Conciliação e o Confronto. Estudos Sociedade e Agricultura.
Rio de Janeiro, 1995. p.05.
180
Idem, p.09.
181
“É um plano para matar os pobres de fome e os ricos de raiva”. Tal declaração proferida por Carlos
Lacerda, por ocasião do lançamento do PAEG, seria sintomática para ilustrar a insatisfação ocasionada não
94
94
controle político perante a oposição. Tal possibilidade era interpretada pelos mais
conservadores como inadmissível por representar o enfraquecimento dos ideais da
“Revolução”.
Assentado em uma base política tão frágil quanto de seu antecessor, Castello, em
nome da governabilidade, teve que se equilibrar entre a pressão exercida pelo grupo
contrário às reformas, cedendo em pontos que contradiziam as convicções legalistas
propaladas em seus discursos, contribuindo, sobremaneira, para o endurecimento do regime
e o trabalho de convencimento quanto à importância das mesmas para o processo de
saneamento do país.
Especificamente com relação à reforma agrária, logo foi possível perceber que as
obstruções sofridas pelas propostas que circulavam na década anterior não haviam vingado
somente pelo argumento de que eram defendidas por setores de esquerda e por isso
representavam um perigo eminente para a propriedade privada. A lógica dos argumentos
dos anti-reformistas de que somente defenderiam uma reforma agrária “democrática-cristã”,
contra o que chamavam de opção socialista, perdia força a partir do momento em que o
governo lançava a sua proposta fincada na premissa de que somente funcionavam as
reformas de tipo capitalista que mantinham a propriedade individual.
182
Em verdade, a
oposição advinha da negação da reforma agrária em si, respaldada na idéia dos chamados
“espaços vazios” e na contestação dos instrumentos que viabilizariam a execução da
mesma, tal como a alteração dos dispositivos constitucionais que estabeleciam o pagamento
das indenizações em dinheiro, no caso de desapropriação de terras.
Interpretada como uma das principais medidas de seu plano de estabilização e
desenvolvimento, sua efetivação, enquanto lei, dependeria, sobremaneira, de uma outra
estratégia. Impossibilitado de neutralizar a oposição dentro de sua base governista sob pena
de desestabilizar seu governo, Castello assumiria uma postura incisiva, porém parcialmente
aberta ao debate e à negociação com as lideranças partidárias e de classe. Neste sentido,
Paulo de Assis Ribeiro
183
era enfático ao afirmar que as concessões feitas pelo governo,
fruto de negociações e intervenções pessoais de Castello, foram responsáveis pela
somente pelo PAEG, mas também com relação às medidas mais gerais que afetariam diretamente os vários
setores da sociedade, tais como a Lei de Greves, os Atos Institucionais, a Lei de Remessa de Lucros, o FGTS,
a intervenção nos sindicatos, o arrocho salarial, entre outras.
182
CAMPOS, R. O. Antologia do Bom Senso: Ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.246.
183
Paulo de Assis Ribeiro foi um dos coordenadores do grupo de estudos encarregado de estruturar o Estatuto
da Terra.
95
95
congregação de uma maioria capaz de aprová-lo no Congresso Naciona,
184
embora
publicamente a imagem a ser transmitida fosse de um governo forte e indiferente à
insatisfação de seus aliados, conforme discurso realizado na cidade de Salvador, onde
Castello declarava que,
Na verdade, a idéia da reforma, através da história do País, representa o
ariete com se tem abatido as muralhas dos privilégios. E isso não pode
acontecer sem a reação dos que se julgam protegidos ou abrigados por
esses muros defensores. Há, pois, que enfrentar resistências e até
compreendê-las. Mas nem por isso ceder diante delas. Por que não
reformar a constituição em muitos dos dispositivos que o tempo
mostrou inadequados aos fins almejados? Por que protelar a reforma
agrária?
185
Assim, o processo de expurgos, prisões e perseguições das lideranças
identificadas com uma proposta de reforma agrária mais radical, revelou-se uma faca de
dois gumes, pois, se por um lado resolvia, sob sua ótica, a questão da subversão, por outro
acabou minando, também, as possíveis bases de apoio ao seu projeto reformista.
186
Dentro
desta perspectiva os expurgos realizados com base na decretação do AI-01, tornou o
processo de discussão e aprovação do Estatuto da Terra no Congresso conturbado, haja vista
que a maioria partidária formada pelas legendas udenistas e pessedistas eram, por meio de
seus presidentes, publicamente contrários a qualquer lei de reforma agrária.
O período foi tão conturbado que até leituras contemporâneas apresentam visões
distorcidas. Segundo Stedile, a proposta do Estatuto da Terra teria sofrido uma tramitação
rápida, foi analisada pelos assessores do presidente durante algumas semanas e
promulgada sem passar pelo Congresso Nacional que, naquela ocasião, sob intervenção e
sem forças políticas, encontrava-se totalmente desfigurado de suas atribuições.
187
Tal afirmação apresenta uma série de imprecisões em torno do contexto em que
se deu a discussão sobre o período de formulação e aprovação do Estatuto. Em primeiro
lugar, a formulação da lei não se deu apenas pelos assessores diretos do Presidente,
englobou também estudiosos da questão agrária, que inclusive haviam participado de
outras tentativas de implantação da reforma agrária, como por exemplo, a experiência de
São Paulo, na vigência do governo de Carvalho Pinto. Em segundo lugar, a proposta
permaneceu em debate e sendo sistematizada do início de maio ao começo de novembro de
184
O Estatuto da Terra e a Execução da Reforma Agrária. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro/Arquivo
Nacional: Rio de Janeiro. Caixa 129, 1964 o.
185
Jornal O Estado de São Paulo, 07/08/64.
186
BRUNO, R. O Estatuto da Terra: Entre a Conciliação e o Confronto, op. cit. p.06.
187
STÉDILE, J. P. A Questão da Reforma Agrária no Brasil: Programas de Reforma Agrária:
1946-2003. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p.145.
96
96
1964, quando foi finalmente submetida à apreciação do Congresso somente depois da
confecção de doze versões, evidenciando a dificuldade para torná-la minimamente
consensual, fato que facilitaria a sua aprovação final. Neste sentido, Bruno resume a
situação política que o grupo encarregado da organização do Estatuto encontrou, pois o
mesmo teria elaborado
Os princípios gerais do anteprojeto de reforma agrária com um olho
voltado para a conjuntura anterior de mobilização e de lutas
reivindicatórias, e outra para o momento atual de reação a proposta de
reforma agrária do período militar, visando aprender o que se deveria
evitar da experiência anterior e o que se poderia negociar na conjuntura
atual.
188
Embora a tramitação do Estatuto da Terra no Congresso tenha ocorrido em trinta
dias, em função do dispositivo denominado decurso de prazo, as discussões foram intensas e
exigiram dos seus formuladores, bem como do próprio presidente da república, uma série de
rodadas de negociações com lideranças partidárias e de classe, para a aprovação da emenda
n.º10 que instituía alterações na Constituição de 46 e abria caminho para a aprovação do
Estatuto da Terra, em novembro de 64.
Mas se havia a formação de uma oposição gravitando perigosamente em torno
do governo e alimentando de forma crescente uma base cada vez mais hostil à implantação
de medidas reformistas e distributivistas, porque o governo Castello Branco se empenhou na
defesa do Estatuto da Terra, cuja reivindicação havia suscitado tantas reações no período
anterior? Quais os fundamentos que nortearam a defesa sobre a reforma agrária? Qual a
natureza dessa reforma, e quais objetivos e interesses que a mesma vislumbrava atingir?
As análises clássicas sobre a questão agrária e a luta pela terra, invariavelmente
contemplam a explicação sobre a origem do Estatuto da Terra como uma manobra política
do primeiro governo militar para desmobilizar os movimentos sociais do período anterior,
ou como uma manobra para aumentar seu poder político, como uma forma de legitimação
de seu governo. Segundo a perspectiva de Martins, compartilhada por outros autores, a
verdadeira função do Estatuto da Terra caracterizava-se por ser um instrumento de controle
das tensões sociais, ou seja, para o autor,
O Estatuto revela, assim, a sua verdadeira função: é um instrumento de
controle das tensões sociais e dos conflitos gerados por esse processo de
expropriação e concentração da propriedade e do capital. É um
instrumento de cerco e desativação dos conflitos, de modo a garantir o
desenvolvimento econômico baseado nos incentivos à progressiva e
188
BRUNO, R. O Estatuto da Terra: Entre a Conciliação e o Confronto, op. cit. p.09.
97
97
ampla penetração do grande capital na agropecuária. É uma válvula de
escape que opera quando as tensões sociais chegam ao ponto em que
podem transformar-se em tensões políticas. O Estatuto está no centro da
estratégia do governo para o campo e se combina com outras medidas de
cerco e desativação dos conflitos das reivindicações e das lutas sociais.
189
Essa explicação é também compartilhada por Iokoi e Linhares,
190
quando
argumentam que, apesar do Estatuto da Terra ter definido o caráter social da propriedade,
permitiu, no mesmo compasso, sua concentração tanto para empresas quanto para
proprietários individuais.
191
A questão da reforma agrária contida no Estatuto seria uma
espécie de subterfúgio político que de início desmobilizaria os movimentos sociais,
preparando o terreno para que fosse desencadeada a política de implantação das empresas
rurais.
Esta linha de interpretação é reafirmada por Fernandes, ao ressaltar que para
tornar essa política viável
(...) o Estado manteve a questão agrária sob o controle do poder central,
de forma que o Estatuto da Terra não permitisse o acesso à terra para os
camponeses, à propriedade familiar, e sim aos que tinham o interesse de
criar a propriedade capitalista.
192
Por essa ótica, percebe-se que nas entrelinhas tais estudos desqualificam
qualquer possibilidade do primeiro governo militar avaliar a execução da reforma agrária,
enquanto uma medida necessária rumo ao processo de estabilização econômica e social do
país. O Estatuto da Terra não é analisado a partir de sua lógica de construção, mas sim do
resultado de sua “manca” aplicação. Disso resultam as afirmações de que o Estatuto teria
apenas a função de desestruturar os movimentos sociais, limpando o terreno para o
desenvolvimento das grandes empresas capitalistas, ou então, que Castello não objetivava
de fato a reforma agrária, mas sim angariar apoio político.
Sua preocupação centrava-se no aumento da produtividade, mas para atingir essa
meta, da qual decorreriam outras, segundo sua lógica, uma série de medidas tinham que ser
desencadeadas e não somente o incentivo à formação da grande empresa agropecuária.
Aliás, para o incentivo da grande empresa agropecuária, não havia a necessidade de se
189
MARTINS, J. S. A Militarização da Questão Agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985. p.35.
190
Sobre essa linha de análise sobre a origem do Estatuto da Terra ver: IOKOI, Z. M. As Lutas Camponesas
no Rio Grande do Sul e a Formação do MST. Revista Brasileira de História: Relações Agrárias e
Estruturas de Poder, 22, 1991, LINHARES, M. Y. Terra Prometida: Uma História da Questão
Agrária no Brasil. Rio de Janeiro, 1995, MINC. C. A Reconquista da Terra: Estatuto da Terra, Lutas no
Campo e a Reforma Agrária. Rio de Janeiro, 1986.
191
IOKOI, Z. M. As Lutas Camponesas no Rio Grande do Sul e a Formação do MST, op. cit. p.53.
192
FERNANDES, B. M. MST: Formação e Territorialização. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999. p.33.
98
98
estruturar uma lei tão complexa como o Estatuto da Terra, que trouxe em seu bojo um
grande desgaste político. Na ótica do governo Castello, transformar latifúndios
improdutivos em empresas com rentabilidade e gerando empregos, constituía-se em parte da
solução do problema. Ao contrário do que é pontuado pelos autores, o aumento da
produtividade passava pela “mudança de cenário” no que se refere à estrutura agrária,
considerada um empecilho para atingir o objetivo do governo. Nesta esfera, a lógica do
governo apontava para a adoção de medidas mais profundas, tais como: a implementação de
regras e punições para o uso da terra, desestimulando a especulação fundiária e o avanço de
novos latifúndios improdutivos; a regularização da posse da terra; a criação de medidas de
contenção do avanço dos minifúndios; a adoção de medidas que possibilitassem o acesso à
terra, sem que isso se tornasse oneroso ao Estado e à implantação de uma política agrícola
de amparo ao proprietário rural.
193
O Estatuto, ao contrário do que afirma Fernandes, não surgiu como um projeto
de favorecimento a uma determinada classe em detrimento de outra. A expectativa era, ao
contrário do que afirma Fernandes, aumentar o número de proprietários, que, o
investimento focalizado apenas nas grandes propriedades não surtiria o efeito desejado na
questão do aumento da produção e produtividade, nem tão pouco atingiria a contento a
parcela da população rural alvo de suas preocupações políticas e econômicas. Assim,
buscar-se-ia gerar empregos no campo, ampliar a gama de proprietários rurais e criar uma
classe média, capaz de aquecer o mercado consumidor. Por outro lado, tais medidas não
deixavam de ter seu componente político, uma vez que as péssimas condições de vida de
uma grande parcela da população constituíam-se, na visão do grupo da Sorbonne, em uma
permanente fonte de reprodução das idéias socialistas e comunistas. Estrategicamente, o
governo considerava um grave erro manter os trabalhadores rurais à margem do processo de
desenvolvimento capitalista.
É inquestionável a repercussão dos movimentos sociais neste período como
instrumento de pressão junto à sociedade, desnudando as contradições e os problemas
inerentes ao processo histórico brasileiro. É fato também, que a dimensão adquirida por
esses refletiu no processo que desencadeou o golpe de 64. No entanto, a análise fincada na
resposta política, de certa forma revela uma superestimação dos movimentos pró-reforma,
como se estes representassem uma ameaça para a concretização e manutenção do primeiro
193
Ante-Projeto do Estatuto da Terra. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
Caixa 63, 1964 i / Ver também: Brazilian Presidential Messages, 1890 – 1993. Disponível em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/prestoc.htm
99
99
governo militar havendo, por isso, a necessidade de ceder junto às suas reivindicações mais
imediatas. Entretanto, segundo Regina Bruno,
(...) a resposta do governo Castello Branco ao conjunto de movimentos
sociais foi sobretudo a repressão aberta, a extinção das Ligas
Camponesas, a intervenção nos sindicatos, a cooptação das lideranças
populares, o afastamento das lideranças mais expressivas e sua
substituição pelas moderadas.
194
A desmobilização dos movimentos por meio da repressão e perseguição,
avalizadas pelo Ato Institucional n.º1, era veiculada como uma operação desencadeada para
desbaratar a suposta “guerra revolucionária”, e eliminar os focos de agitação, criando, dessa
forma, o ambiente propício para a execução das reformas. Além disso, o governo ainda
dispunha de um amplo apoio dos partidos políticos conservadores e das classes sociais que
entendiam essas medidas antidemocráticas como parte do processo de “descomunização”
do país.
2.3 – A PROPOSTA CAPITALISTA DO GOVERNO UM LIBERALISMO SOB
EXCEÇÃO
A obstinação
195
de Castello em organizar um conjunto de leis que permitisse a
realização da reforma agrária, a despeito do fortalecimento dos anti-reformistas, ultrapassa o
argumento da manutenção do poder. Isso porque sua iniciativa ao invés de aglutinar apoio
político, acabou estilhaçando ainda mais uma base aliada frágil no que tange às propostas
reformistas e porque congregava em seu interior interesses políticos diversos. Para os
aliados civis, como Lacerda, Magalhães Pinto e Ademar de Barros, a oposição ao governo
passou a ser sinônimo de sobrevivência política, já que todos se colocavam como candidatos
potenciais à presidência e, por isso, era imprescindível a dissociação de políticas
impopulares e de temas eleitoralmente perigosos. Para as classes patronais, com o apoio dos
representantes da linha dura, para parte da Igreja e para a ala mais conservadora dos
partidos, o governo estaria desvirtuando os ideais da “revolução”. Em primeiro lugar, por
defender medidas tidas como excessivamente progressistas no caso da reforma agrária e, em
segundo lugar, por adotar um plano de estabilização econômico, visto como ortodoxo,
impopular e entreguista.
194
BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra: A Nova Face Política das Elites Agroindustriais
no Brasil, op. cit. p.99.
195
Termo utilizado por vários autores que participaram do processo de organização do Estatuto da Terra.
100
100
De acordo com Bruno, diversos estudos clássicos sobre a questão fundiária,
especialmente do período compreendido entre o primeiro governo militar e a chamada
redemocratização, não compreendem o experimento político de cunho liberal e reformador
de Castello Branco. Tais tendências são impulsionadas, segundo a autora, porque
A maioria dos estudos sobre a política fundiária do período tende a
ressaltar principalmente as tendências mais gerais e estratégicas do
processo de desenvolvimento da agricultura ou, quando muito, a
apresentar os principais momentos de consolidação do que se
convencionou chamar a “modernização conservadora”. A subestimação
dos elementos de conjuntura e das inúmeras mediações econômicas,
sociais e políticas, específicas de cada período- em especial ao governo
Castello Branco – conduz invariavelmente à homogenização das situações
que, via de regra, são consideradas em bloco e pelo viés dos traços que os
definem enquanto regime político, contribuindo muitas vezes para
encobrir os interesses de classe em jogo.
196
Obviamente que a forma como o governo arquitetou o encaminhamento e a
concretização da lei, baseado na centralização do debate praticamente excluindo deste o que
poderia convencionar-se em grupos de apoio às suas propostas, muito contribuiu para
respaldar os estudos questionadores quanto à sua intenção reformista. Em nome da
“segurança nacional” a ser conquistada com a busca de uma estabilidade política jamais
alcançada pela própria disputa de poderes no “quintal do governo”, mas que
imaginariamente seria atingida com a supressão dos agentes de mediação entre os
trabalhadores e o Estado. Partia-se da premissa que somente o Estado forte teria condições
de transpor a barreira de resistência que se levantava em torno da temática desde período
anterior. A partir daí, segundo Martins,
O governo militar separava o problema social e econômico, representado
pela concentração fundiária, da questão política, das mediações os
sindicatos, as ligas camponesas, os partidos e grupos políticos que se
interpunham entre os trabalhadores do campo, entre as lutas camponesas,
nelas se legitimando, e o Estado, cuja composição se chocava com tais
pressões. O governo militar entendia, portanto, que as medidas
reformistas eram necessárias, mas que os grupos e as mediações políticas
para concretizá-las eram desnecessários e nocivos. Ao invés de a reforma
ser obtida de baixo para cima, legitimada pela participação popular, seria
feita de cima para baixo, conduzida como problema técnico e militar e
não como problema político. Tratava-se de conduzir a implantação da
reforma sem causar maior lesão ao direito de propriedade, particularmente
de modo a evitar que ela instaurasse o confisco do latifúndio.
197
196
BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra: A Nova Face Política das Elites Agroindustriais
no Brasil, op. cit. p.98.
197
MARTINS, J. S. A Militarização da Questão Agrária no Brasil, op. cit. p.p.31/32.
101
101
Como se pode perceber, o discurso reformista de Castello possuía razões que
contemplavam, mas que ao mesmo tempo ultrapassavam a justificativa pelo político. A
reforma agrária, segundo Bruno, enquadrava-se num conjunto de medidas definidoras de
uma estratégia geral. Sua racionalidade econômica encontrava-se plenamente justificada
no Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG)”,
198
em especial no que se refere ao
papel da agricultura no processo de desenvolvimento mais abrangente do país e na
perspectiva de uma reorganização fundiária, pré-requisito para a modernização da
agricultura rumo ao aumento da produtividade. Segundo Xico Graziano:
Sabe-se que o general Castello Branco, primeiro presidente militar,
pertencia à facção nacionalista das forças armadas, diferente dos brucutus
que os seguiram. Era um anticomunista convicto, por certo, mas
democrata e inteligente suficiente para entender a importância de um
projeto de reforma agrária que pudesse, como propunha, criar uma nova
classe de empresários rurais, em substituição aos coronéis da velha
oligarquia.
199
Os fundamentos que norteavam a defesa da implantação da reforma agrária, no
Plano de Ação Econômica do Governo, versavam sobre o princípio de que era preciso,
segundo Campos,
(...) completar uma ´revolução capitalista’ na agricultura, acabando com
os restos das formações pré-capitalistas. Para isso, era preciso que o custo
da terra fosse determinado pelo seu produto marginal, ou dito menos
tecnicamente, que a terra oferecesse uma rentabilidade comparável a
outros ativos, ao invés de ficar ociosa em grandes propriedades, como
reserva de valor.
200
Neste sentido, observava-se que o latifúndio improdutivo, bem como o
minifúndio, eram considerados grandes obstáculos para o desenvolvimento agrícola e para o
crescimento econômico. Sendo assim, a reforma agrária capitalista seria a forma tida como
adequada para promover reestruturação fundiária e expandir o mercado interno, ou seja, o
governo percebia a estrutura fundiária como inadequada aos princípios do desenvolvimento
capitalista, pois se caracterizava como um limitador efetivo à possibilidade de modernização
tecnológica do meio rural restringindo a sua produtividade, segundo Delgado, no PAEG
A estrutura fundiária, ou seja, a predominância do sistema latifúndio–
minifúndio é também um dos determinantes cruciais da não adoção de
melhorias técnicas no campo brasileiro. Segundo o PAEG, existem dois
tipos de malformação na estrutura agrária: a grande propriedade, na qual o
uso da terra como fator de produção é, em larga medida, desperdiçado, e a
198
BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra: A Nova Face Política das Elites Agroindustriais
no Brasil, op. cit. p.99.
199
GRAZIANO, X. O Carma da Terra no Brasil. São Paulo: A Girafa, 2004. p.44.
200
CAMPOS, R. Agricultura, Reforma Agrária e Ideologia. Folha de São Paulo. 12/11/95.
102
102
imploração demasiado pequena, incapaz de gerar economias de escala a
permitir o uso da força motriz e de certos implementos agrícolas. Existe,
portanto, uma extrema disparidade na distribuição da terra que se amplia à
medida que passa do nível nacional para o regional, onde, de um lado, os
elementos institucionais do monopólio tornam o latifundiário um
monopsonista com relação ao fator trabalho e um obstáculo ao uso mais
eficiente da terra e da força de trabalho, e, de outro, a reduzida parcela
utilizada pelos minifundiários e sua extrema dispersão espacial dificultam
a modernização, principalmente porque a amortização dos custos fixos
requerida pelo emprego de máquinas e equipamentos é incompatível,
economicamente com a pequena dimensão desses estabelecimentos. Daí
que o PAEG conclua, como o Plano Trienal, que a adoção de progresso
técnico na agricultura brasileira, pressupõe a implementação, pelo Estado,
de uma reforma agrária. E qualifica: ‘o tipo de reforma que o país deve
realizar não pode apenas considerar a redistribuição em termos de imóvel
rural. Terá de incorporar a esse processo de mudança econômico-social
elevado conteúdo de política agrícola, traduzido em medidas tais como
educação, novos esquemas de tributação da terra, organização cooperativa
e melhoria do sistema de crédito rural’.
201
Não se tratava, portanto, de uma batalha ao tamanho da propriedade em si no
caso das grandes propriedades, mas sim de sua baixa taxa de aproveitamento. Sendo assim,
o imposto progressivo puniria os proprietários que mantivessem suas propriedades como
reserva de valor. Com a efetiva aplicação do imposto haveria os recursos necessários para o
assentamento dos pequenos produtores rurais e para a assistência técnica visando seu
desenvolvimento.
Em resumo, a defesa da reforma agrária por parte do governo baseava-se em
uma avaliação de que a estrutura fundiária, na forma como estava configurada, ou seja,
marcadamente pouco produtiva e concentracionista,
202
representava um obstáculo estrutural
para a modernização e industrialização. Analisando especificamente o caso do Nordeste
brasileiro, por ocasião de um discurso proferido na cidade de Recife, Castello salienta que,
201
DELGADO, G. Capital Financeiro e a Agricultura no Brasil. São Paulo: Ícone/UNICAMP, 1985. p.27.
202
Segundo Castello, os dados colhidos no Censo Agrícola de 1960 revelavam que, “menos de 1% dos
estabelecimentos absorve a metade da área total; ao revés, mais de 50% dos pequenos imóveis rurais ocupam
menos de um quarto dessa área. Comparativamente à situação verificada pelo Censo Agrícola de 1950, a
posição relativa dos estabelecimentos de menos de 100 hectares, permaneceu mais ou menos a mesma,
enquanto aumentou o número das propriedades de menos de 10 hectares, revelando um desfavorável
parcelamento dos estabelecimentos de dimensões médias. Essa distorção fundiária pode ser ainda avaliada
pelo aumento da percentagem de área ocupada pelos estabelecimentos rurais que se enquadram nos extremos
das classes de área. Dados referentes ao último período inter-censitário revelam, na verdade, um inconveniente
aumento da ocupação de área tanto no que tange às propriedades com área superior a 10.000ha. como nos
estabelecimentos inferiores a 10ha. Particularmente com relação a esses últimos, o aumento verificado mais de
76%- identifica uma inconveniente anomalia estrutural que cabe a uma reforma agrária corrigir.” Mensagem
Presidencial 33. In: CONTAG. Questões Agrárias: Estatuto da Terra e Decretos Regulamentadores.
Brasília: CONTAG, 1973. p.07. Os dados referentes ao crescimento do número de estabelecimentos
caracterizados como latifúndio e minifúndio, bem como uma análise apurada da configuração geral da
agricultura brasileira, também podem ser encontrados no documentoA relação homem terra no Brasil”,
disponibilizado no Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, caixa 53, 1964 h.
103
103
apesar de estar referindo-se a um estado em particular, tal situação poderia ser observada em
outras regiões do país, traduzindo-se em forte impacto negativo sobre produtividade da
agricultura brasileira. O que reforçava, no seu entender, a adoção de medidas que
permitiriam introduzir profundas modificações no sistema existente.
203
Embasado em
estimativas de 1960, Castello alertava para o aumento do número de latifúndios no
Nordeste, destacando a área inaproveitável, provavelmente utilizada apenas para fins
especulativos. Segundo ele, “... dos seus 120 milhões de hectares o Nordeste cultivava
apenas 4,5 por cento, enquanto 11 por cento se destinavam a pastagens. Os 84 por cento
restantes são praticamente inaproveitados.”
204
Por essa avaliação, tal configuração convertia-se em um sério comprometimento
no que tange à produtividade e em um empecilho para a resolução da crescente demanda
nacional de produtos primários e alimentícios, que permitiriam reverter às importações
desses mesmos produtos. Em discurso realizado na cidade de Curitiba ressalta que
Não se pode deixar de ser extremamente penoso para nós verificarmos
que, malgrado as imensas possibilidades dos nossos campos e do espírito
de iniciativa dos nossos agricultores, estamos obrigados a importar
apreciável quantidade de produtos alimentícios, a exemplo do que
ocorreu, poucos anos, numa rumorosa compra de feijão estrangeiro. É
esse, sem dúvida, o terrível preço pago pela incúria de administrações que
parecem não se ter dado conta de que 55% da nossa população vivem nos
campos e 89% das nossas divisas provêm da agricultura.
205
Partindo do pressuposto de que a agricultura era um dos suportes para a
estabilidade da economia nacional, o governo abriu um leque de medidas no sentido de
dinamizar e revitalizar a produtividade agrícola. Algumas delas teriam um caráter
emergencial e de aplicabilidade imediata pelo fato de dependerem exclusivamente da ação
governamental por meio dos decretos.
Com este propósito, o governo promoveu a liberação de crédito rural, iniciando
um amplo programa de incentivos à tecnificação da agricultura com incentivos para a
compra de tratores, considerados insumos modernos, subsídios para fertilizantes e garantia
de preços mínimos visando, com isso, a intensificação da agricultura e o aumento da
produtividade. Além disso, tais incentivos eram considerados essenciais para que os
produtores abandonassem métodos obsoletos de produção.
206
Segundo Castello, “...métodos
203
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 06 de Junho de 1964. Secretaria de Imprensa, p.199.
204
Idem, p.198.
205
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 04 de Setembro de 1964. Secretaria de Imprensa, p.76.
206
VIANA FILHO, L. O Governo Castello Branco. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1975. Segundo o
autor, Castello “possuía a nítida idéia de que 55% da nossa população vivia nos campos, e 89% das divisas
104
104
apenas compensados pela utilização de terras virgens, e que, em muitos casos, não
demoram em ser transformados em desertos. Contudo, não é mais possível permanecermos
entregues a uma agricultura empírica e itinerante, e por isso mesmo incapaz de atender às
necessidades do País.
207
A meta era garantir uma otimização da produção, fornecendo os requisitos
básicos para que houvesse estímulo ao uso racional da propriedade. Em contrapartida, o
imposto territorial seria aplicado, entre outros fins, como desestímulo ao uso indevido da
propriedade, ou seja, para fins meramente especulativos. Com o propósito de injetar
recursos para a agricultura, Vianna afirmava que
O setor financeiro do Governo desempenhou papel fundamental.
Convictamente, Bulhões e Roberto Campos seguiam a orientação do
Presidente. E, quando se cortavam despesas por causa da inflação,
Bulhões, que contava ciosamente o dinheiro público, autorizou o Banco
do Brasil a operar sem limitações orçamentárias nos financiamentos
agrícolas, também confiados à rede bancária privada. Compreendia-se
nada ser duradouro enquanto os campos não retomassem à
normalidade.
208
Além do acionamento da rede bancária privada, o governo também organizou,
pelo Decreto 54.019 de junho de 64, a Coordenação do Crédito Rural e o Fundo de
Investimentos de Refinanciamento Rural. Por esses meios buscava-se assegurar recursos
financeiros que deveriam ser resgatados sem maiores dificuldades burocráticas por parte
dos pequenos e médios proprietários agrícolas.
Para Castello era impossível dissociar o baixo nível de produtividade do país ao
sistema de posse e uso da terra, pois,
Impossibilitados de ter acesso à propriedade da terra, além da
produtividade reduzida, o trabalhador rural não cria para si condições de
melhoria de padrão de vida. Não introduz práticas novas, não absorve
qualquer técnica tendente a aumentar a produtividade. Sem possuir terra
não pode exigir a concessão de facilidades creditícias da assistência
técnica, da mecanização, do aperfeiçoamento, do sistema de escoamento
dos produtos agrícolas. (...) Não havendo estímulos especiais para o
aumento da produtividade(...)a propriedade da terra, ao invés de se ligar à
sua exploração agrícola, à sua utilização, converte-se na apropriação com
intuito especulativo. (...) A experiência universal mostra que a
modificação da estrutura agrária dos países que realizaram reformas
provinham da agricultura. No discurso proferido no Paraná, em setembro de 1964, ele expôs o seu
pensamento, partindo de que a revitalização da agricultura se impunha menos para atender aos reclamos de
grandes parcelas da população, do que por ser o ‘caminho seguro para dar vigor e estabilidade a toda economia
nacional.” p.262.
207
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 04 de Setembro de 1964. Secretaria de Imprensa, p.p.76/77.
208
VIANA FILHO, L. O Governo Castello Branco, op. cit. p.263.
105
105
agrárias bem sucedidas, cria condições novas para o trabalho rural e força
a modificação dos sistemas creditícios, assistencial e de mecanização.
209
À questão da produtividade acrescentava-se a preocupação com o êxodo rural.
Para Roberto Campos a migração para as cidades representava uma conseqüência inevitável
do processo tecnológico, mas o seu ritmo teria que ser abrandado, sob pena de causar um
agravamento da pobreza nos centros urbanos, pela incapacidade absortiva da indústria e
insuficiência da infraestrutura”.
210
A lógica seria, então, possibilitar o acesso a terra,
ofertando meios para que houvesse uma otimização da produção, criando, por essa via, as
condições propícias para que o proprietário pudesse extrair o rendimento suficiente para
desencadear a elevação de seu padrão material e o poder de contratação de mão de obra,
desestimulando, por conseguinte, o fluxo migratório.
A elevação do padrão material estava ligada à tentativa de fortalecimento de uma
classe média no campo, capaz de absorver os produtos industrializados, ou seja, aumentar o
poder de consumo entre os trabalhadores. Nesta mesma linha, os incentivos creditícios e os
impostos, teoricamente, tinham a função de estimular ou forçar os proprietários de
propriedades improdutivas ou mal aproveitadas a racionalizarem a produção, abrindo novos
quadros de absorção de mão-de-obra.
211
Pela análise do governo, havia um descompasso
entre o desenvolvimento de dois campos econômicos que deveriam ser complementares.
Segundo Castello,
(...) o sistema de incentivos destinados a acelerar a industrialização
nacional não se fez acompanhar de iniciativas que também estimulassem
a expansão da agricultura de modo compatível com o desenvolvimento
harmônico do País, proporcionando o equilíbrio indispensável (...) O
problema agrava-se agudamente com a crescente industrialização do País
e com a concentração populacional nos grandes centros urbanos. Toda
essa população, absorvida no trabalho urbano cria exigências cada vez
maiores de suprimentos de alimentos, demandando uma organização mais
sistematizada de sua produção, transporte e distribuição. Em
contraposição o crescimento da população industrial gera a necessidade
de alargamento do mercado consumidor, ou seja, a incorporação de novas
209
Mensagem Presidencial 33. In: CONTAG. Questões Agrárias: Estatuto da Terra e Decretos
Regulamentadores, op. cit. p.08.
210
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p.688.
211
Tal interpretação revelou-se, ao longo do período militar, insustentável por dois motivos: em primeiro lugar
a tributação, defendida inclusive por Caio Prado Júnior, foi, segundo Campos, aplicada de forma deficitária e
por isso não conseguiu atingir o objetivo de liberar porções de terras, contribuindo para diminuição do preço
das mesmas. Em segundo lugar, as facilidades fiscais e creditícias que visavam incentivar a produtividade nas
propriedades subaproveitadas e improdutivas, além de intensificar produtividade nas consideradas produtivas,
geraram um resultado praticamente inverso, no que concerne à absorção de mão-de-obra, pois ao mesmo passo
em que se verificava essa intensificação, o processo de liberação de mão-de-obra, tornou-se cada vez mais
crônico em função da crescente mecanização da agricultura, especialmente, a partir da década de 70.
106
106
áreas da população ao consumo dos produtos industriais, o que se obterá
pela elevação dos padrões econômicos da população rural, facutando-lhe
poder aquisitivo para acesso aos produtos manufaturados. A
interdependência entre campo e meio urbano e industrial é contingência
do próprio desenvolvimento econômico do País(...) .
212
Na Mensagem n.º 33, Castello salientava que o desequilíbrio era fruto das
contradições e desigualdades da estrutura fundiária, corrigível somente por meio de uma lei
de reforma agrária. Sendo assim,
A necessidade de uma lei de Reforma Agrária não é só do Brasil, mas fato
constatado na generalidade dos países. O incremento da demanda de
alimentos em face de crescimento da população e das profundas
modificações organizacionais geradas pela industrialização e pela
concentração urbana obrigaram em toda a parte à modificação das
estruturas agrárias. A sensível diferença, outrossim, no ritmo de melhoria
entre as condições de vida da população rural e urbana, estavam impondo
uma participação mais ativa do Poder Público na remoção dos obstáculos
ao progresso social da camada assalariada da classe rural. Representando
cerca de 52% do contingente demográfico ativo na agricultura, essa
população sem terra tem estado praticamente alijada dos benefícios do
nosso progresso, formando um vazio sócio-econômico, tremendamente
mais sério que os nossos vazios demográficos.
213
A afirmação contida na mensagem de encaminhamento da proposta do Estatuto
da Terra ao congresso já reforçava a diferença de concepção, cada vez mais evidente quanto
à necessidade de mudanças na estrutura agrária enquanto fator essencial rumo ao
desenvolvimento do país. Se para Castello a estrutura fundiária constituía o cerne das
anomalias verificadas no campo brasileiro, para seus pares, identificados com a ala mais
conservadora, o processo de desenvolvimento poderia ser desencadeado sem que houvesse
alterações profundas na estrutura fundiária.
Neste caso, o problema fundamental a ser solucionado seria a ocupação dos
chamados vazios demográficos, uma vez que abrandaria a pressão exercida pela demanda
por distribuição de terras, ao passo que atenderia aos preceitos do projeto de segurança das
fronteiras nacionais. Segundo a oposição, que fazia coro contrário à proposta do governo, o
problema não era falta de terras, mas excesso de gente.
214
Tal sentença simbolizava e
resumia o pensamento de uma maioria, interna e externa ao governo, que desqualificava a
212
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 04 de Setembro de 1964. Secretaria de Imprensa, p.76.
213
Mensagem Presidencial 33. In: CONTAG. Questões Agrárias: Estatuto da Terra e Decretos
Regulamentadores, op. cit. p.07.
214
Frase atribuída ao senador Bilac Pinto, presidente da UDN, no debate travado com o Ministro do
Planejamento Roberto Campos, por ocasião da apresentação do projeto do Estatuto da Terra no Congresso
Nacional no dia 03 de Outubro de 1964. CASTELLO BRANCO, C. Os Militares no Poder. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1977.
107
107
reforma agrária em prol da colonização, vinculando o desenvolvimento do capitalismo no
campo e a questão da produtividade, à aplicação de uma efetiva política agrícola.
Para o governo, a mudança da estrutura fundiária viabilizada por meio da
reforma agrária, bem como a aplicação de uma política agrícola, não constituía uma política
antagônica e contraditória, pois era, ao contrário, tida como medida complementar, cuja
aplicação em conjunto, a partir da promulgação do Estatuto, deveria ser permeada pelo
equilíbrio sob pena de agravar ainda mais as distorções da estrutura fundiária. No entanto
para o grupo oposicionista, a política agrícola e a colonização deveriam figurar enquanto
uma alternativa a alteração da estrutura fundiária.
215
As divergências de análise quanto à necessidade ou não de uma lei de reforma
agrária, somada à constatação de que as razões que fundamentavam a proposta de reforma
agrária do governo, possuíam elementos de continuidade com o período anterior,
216
fizeram
voltar à tona, depois de apenas alguns meses em estado de dormência, uma forte reação ao
projeto reformista. A oposição foi articulada em torno dos mesmos argumentos,
características e personagens
217
que delimitaram as discussões em torno da temática no
pré-64.
Tendo em vista a organização do movimento anti-reformista, que rapidamente
articulou-se, gerando um cenário político pouco favorável à concretização das medidas de
teor reformista, a determinação de Castello em elaborar o Estatuto da Terra, chegava a
parecer um contra-senso. Entretanto, essa determinação tinha como ponto de partida a
215
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p.690.
216
Ao analisar as razões que justificavam a defesa, por parte de Castello, quanto à necessidade de elaboração
de uma lei de reforma agrária para o país, é possível perceber que havia, apesar das diferenças ideológicas e
dos objetivos a serem alcançados, semelhanças com as reivindicações do período anterior. Neste sentido, a
convergência de análise quanto ao papel a ser desempenhado pela reforma versava sobre a extinção do
latifúndio improdutivo e do minifúndio, por considerá-los um entrave para o processo de modernização e
industrialização do País; a formação de uma classe média rural por meio da distribuição de terras, facultando
aos trabalhadores rurais a participação no processo de desenvolvimento capitalista; a defesa da mudança
constitucional como elemento chave rumo à concretização da reforma e a questão da tributação, que
compreendia duas funções simultâneas: forçar o parcelamento das propriedades mantidas ociosas e, ao mesmo
tempo, pressionar os proprietários rumo à exploração racional da propriedade. A insatisfação quanto às
iniciativas do governo eram geradas pela sensação de proximidade e até de convergência, em muitos aspectos,
com as propostas dos chamados “inimigos da revolução”. Portanto, acusavam o governo de estar praticamente
legitimando o programa revolucionário da esquerda e do projeto nacional populista de João Goulart.
Evidentemente, tais acusações ao projeto reformista do governo Castello tinham por finalidade promover uma
campanha de enfrentamento e desqualificação desse mesmo projeto, objetivando legitimá-la com base na
política de contenção dos ideais comunistas, que, ainda, encontrava respaldo entre vários setores sociais.
Temia-se que o retorno das discussões em torno do tema alimentasse, mais uma vez, o avanço “das idéias
subversivas”, consideradas sob certo controle após o Golpe. Mas este discurso ultrapassava os limites de uma
perspectiva antiesquerdista, este servia para legitimar a negação da reforma agrária e de seus instrumentos
viabilizadores, ambos considerados atentados ao direito de propriedade.
217
CARVALHO FILHO, J. J. Política Fundiária: Oportunidades perdidas, Revolução Cultural e Lampedusa.
São Paulo em Perspectiva: Brasil Agrário. V.11/nº 2. São Paulo: SEADE, 1997.
108
108
convicção de que a reforma agrária, assim como as demais medidas reformistas, tão
impopulares ou mais impopulares que a agrária, por atingir direta ou indiretamente um
maior número de setores sociais, faziam, cada qual com sua especificidade, parte de uma
engrenagem cuja função era, segundo Reginaldo Perez,
Criar condições institucionais adequadas a um melhor funcionamento da
dinâmica capitalista no Brasil. O estatuto que se buscava pode ser tomado
pelo exame das palavras de ordem do movimento de 64: ‘Segurança
Nacional e Desenvolvimento’. A ‘questão nacional’ foi encaminhada em
1964 visando ao ‘fortalecimento do poder nacional, instrumento
indispensável à prosperidade’. Para a consecução deste fim a afirmação
da nação - todo o resto seriam meios.
218
Neste sentido, Vianna Filho procura definir o que seria poder nacional como
A bússola da Revolução, ele (poder nacional) seria o norte imutável,
insubstituível, que por vezes exigiu a correção dos rumos.
Desenvolvimento, nacionalismo, reforma agrária, habitacional, bancária,
tudo seriam meios para o engrandecimento desse poder. Tanto mais ele
pujante, maior o bem estar que se almejava ao povo. Daí as incansáveis
pesquisas e revisões em torno desses objetivos nacionais, entre os quais
avultava o de transformar-se o país numa potência não pela força militar,
mas pela sua riqueza.
219
De acordo com Reginaldo Perez, se de um lado, para a maioria dos militares, a
construção da nação e a sua segurança manifestavam suas maiores preocupações,
220
por
outro, Roberto Campos conferia a “essas noções um sentido mais utilitário: seu objetivo era
a criação de condições adequadas ao melhor funcionamento do sistema capitalista. A
partir daí criar-se-iam as bases da nação. Com isso, demonstra ser coerente com o que
afirmava nos primórdios da década de 50: a pujança traz segurança.
221
Por essa lógica,
218
PEREZ, R. T. O Pensamento Político de Roberto Campo: da Razão do Estado à Razão do
Mercado(1950-1995), op. cit. p.138.
219
VIANA FILHO, L. O Governo Castello Branco, op. cit. p.81.
220
Para Campos a expressão ‘Segurança Nacional e Desenvolvimento’ deveria ser invertida. Em uma palestra
na Escola Superior de Guerra, Campos apontava um ideal estranho à maioria dos militares, preocupados,
exclusivamente, com o aparelhamento das Forças Armadas em função dos desdobramentos da Guerra Fria e
com a Doutrina de Segurança Nacional. Para ele, o verdadeiro poder era o econômico, numa clara inversão
dos preceitos aceitos pelos militares. Assim, em sua palestra salientava que: “No país subdesenvolvido,
entretanto, as despesas de armamento (...) impedem o fortalecimento da estrutura econômica, por
comprimirem o potencial de inversões produtivas. É esse seguramente um dos dilemas mais sérios que
enfrentam os países subdesenvolvidos. Ao tentarem armar-se, diminuem os recursos disponíveis para o
desenvolvimento econômico e industrialização. O armamento passa a ser elemento de fraqueza, conquanto
criando a ilusão de segurança.” PEREZ, R. T. O Pensamento Político de Roberto Campo: da Razão do
Estado à Razão do Mercado(1950-1995), op. cit. p.37.
221
Idem.
109
109
ainda conforme Reginaldo Perez, Campos apoiou o regime militar enquanto considerou-o
importante para o desenvolvimento do modelo econômico em que acreditava.
222
A anuência de Campos com relação à crescente centralização do poder político
em torno do Executivo, provinha da análise de que o fortalecimento dessa instância
conferiria certa disciplina e racionalidade, indispensáveis ao setor público e privado. Nestes
termos, a estabilidade econômica proveria, de antemão, do ordenamento sócio-político. A
“indisciplina” do período pré-64 deveria ser superada. Assim, o pressuposto era,
Num primeiro momento, conferir racionalidade ao Estado para que ele
pudesse distribui-la à sociedade; feito isso, passado o tempo e observadas
as conseqüências, derivadas de toda a sorte de variáveis (internas e
externas), a sociedade, minimamente racionalizada e definida como
mercado -, pode e deve rever o modelo de Estado
223
.
Cabia ao Estado forte engendrar as reformas entendidas como meios primordiais
para se implantar uma economia verdadeiramente capitalista e de mercado no país. A
pressão do governo em aprovar o Estatuto da Terra partia da análise de que a agricultura era
parte fundamental desse processo e, por isso, deveria desenvolver-se em sincronia com os
demais setores ativos da economia nacional. Entretanto, para atingir tal expectativa, fazia-se
urgente eliminar as barreiras que impediam seu pleno desenvolvimento. Ainda que a
reforma agrária figurasse como uma das questões prioritárias, tornava-se claro que os riscos
políticos assumidos em sua defesa provinham muito mais de avaliação técnica em torno dos
benefícios econômicos resultantes da sua execução, do que propriamente embalados por
uma motivação social em função da demanda dos trabalhadores rurais por terra.
224
O Governo Castello objetivava estruturar um aparato legal para direcionar as
ações rumo à solução dos problemas fundiários, isso porque, independente dos fatores
desencadeadores dos conflitos entre trabalhadores e proprietários de terras, o fato era que,
para o governo, a agudização dessa situação causava um clima de permanente instabilidade,
refletindo negativamente sobre todo processo produtivo.
222
Para Reginaldo Perez, “Duas lógicas distintas presidiram as delimitações temporais do pensamento do
economista: a primeira respeitou a ‘situação’ política dos militares; a segunda atendeu à posição do autor em
relação aos mesmos. Com isso, temos o Campos decisor (1964-67) e o Campos ‘do outro lado da
cerca’ (1967-82)”. PEREZ, R. T. O Pensamento Político de Roberto Campo: da Razão do Estado à Razão
do Mercado(1950-1995), op. cit. p.137.
223
Idem, p.39.
224
Com a reforma agrária colocar-se-ia em sincronismo, porque vistos como interdependentes, campo e
cidade. A reforma ao promover os ajustamentos na estrutura fundiária, teria como principais atribuições:
A) Suprir a base alimentar indispensável à intensificação da vida urbana;
B) Criar, pela elevação do nível de vida no meio rural, através da distribuição de terras, um alargamento
do mercado interno de consumo para absorver o crescimento da produção industrial do País;
C) Concorrer com produtos de exportação mais diversificados para ajudar o equilíbrio do balanço de
pagamentos externo.
110
110
Isso não quer dizer que o governo estivesse totalmente indiferente à situação dos
trabalhadores rurais. Até porque, não era interessante aos propósitos do governo mantê-los à
margem do processo de desenvolvimento capitalista, ou seja, a elevação de seu padrão
material por meio da distribuição ou regularização de terras, bem como a observância com
relação aos contratos de arrendamentos, parcerias e direitos trabalhistas, atendia aos
preceitos de formar uma classe média rural com poder aquisitivo suficiente para alargar o
mercado consumidor interno. Dilatar o setor produtivo promovendo o aumento do número
de proprietários era um dos objetivos da regularização da posse da terra, bem como de sua
distribuição, que, pela lógica dos idealizadores do Estatuto da Terra, a aplicação somente
da política agrícola seria insuficiente para atingir a meta estabelecida.
A máxima adotada no núcleo castelista era de que a situação dos trabalhadores
rurais e a baixa produtividade resultavam do mesmo foco de problema, a saber: a estrutura
agrária. Assim, trabalhava-se sob a perspectiva pragmática de causa e efeito. Se os
problemas advinham da configuração da estrutura fundiária, convinha então aparelhar o
Estado com os instrumentos necessários para que este promovesse as devidas correções.
Embora o foco imediato para a defesa da reforma não estivesse vinculado diretamente às
reivindicações dos trabalhadores rurais, era imprescindível para a exeqüibilidade do sistema
econômico que o governo almejava atingir, que estas fossem atendidas pari passu com o
ajustamento da estrutura fundiária. Obviamente, que além dessa solução intrínseca ao
sucesso do projeto de desenvolvimento do capitalismo, havia a intenção de arrefecer os
conflitos no campo que se agravaram no decorrer da década de 50 e que trouxeram, sob o
ponto de vista do governo, a desorganização do setor produtivo.
Se para o governo era inegável o papel a ser desempenhado pela reforma agrária,
o mesmo não se poderia afirmar com relação aos agentes mediadores, uma vez que
conferiam um aspecto “subversivo” às suas manifestações. Propositalmente, a
institucionalização das propostas reformistas - e porque não dizer do debate com as
representações de classe - formalizava-se enquanto uma estratégia do governo. A demanda
dos trabalhadores pela reforma agrária era entendida como legítima, sua execução atenderia
aos anseios dos trabalhadores por terra, e ao mesmo tempo atenderia aos anseios do próprio
governo quanto à formação da classe média. Mas seus contornos, suas características, bem
como seus instrumentos viabilizadores seriam definidos estritamente no âmbito
governamental.
111
111
E mais, tal estratégia inseria-se na própria concepção de Estado, como regulador
das necessidades nacionais. Assim, em um contexto político e econômico considerado
desfavorável pelo próprio governo, haja vista a própria definição de Castello que auto-
rotulava sua gerência como um governo de entressafra,
225
Castello e seus colaboradores
estabeleceram o papel a ser desempenhado pelo governo militar, qual seja um governo
encarado como uma primeira etapa, onde seriam gestados e concretizados os meios
necessários à estabilidade econômico-social, ou seja, seria um período quase que
inteiramente utilizado para a organização e aprovação das reformas que deveriam ser
seguidas por um possível sucessor. Portanto, para o governo e seus colaboradores o
intervencionismo estatal, teoricamente, garantiria o controle e a disciplina tidos como pré-
requisitos para a estabilização econômica e social.
A impopularidade das ações reformistas era potencializada pela forma como
foram introduzidas, mas isso era avaliado pelo governo enquanto um custo inerente ao
processo de estabilização e contornável pelas características assumidas pelo Estado no
período imediato ao Golpe. Com isso, a questão da legitimidade das ações não seria
observada em curto prazo, mas sim na medida em que aparecessem os resultados práticos
esperados, ainda no decorrer do governo Castello.
O isolamento político das decisões governamentais, embora fosse desejável, pois
teoricamente reduziria as especulações ideológicas em torno das reformas, tornou-se
impraticável. Campos, ao realizar uma avaliação do primeiro ano do governo Castello,
destacava que
A primeira deficiência do nosso planejamento tem sido a insuficiente
participação dos vários grupos econômicos - trabalhadores, empresários,
órgãos de imprensa e difusão, entidades de planejamento estadual e
regional - no esforço de elaboração e execução do programa de governo.
(...) Nosso planejamento nesta primeira fase - temos que confessá-lo - foi
uma ‘introspecção criadora’, numa desesperada corrida contra o tempo.
226
Mas a “introspecção criadora” a que ele se refere não se ateve apenas aos
trabalhos que imprimiriam os contornos e as diretrizes do Plano de Ação Econômico do
Governo, ela também foi um recurso utilizado para a organização de outras leis, visando
uma abreviação dos debates com as representações sociais.
Paralelamente às medidas tidas como emergenciais, consideradas pelo próprio
governo como insuficientes, seguia o trabalho de sistematização do Estatuto da Terra que
225
CAMPOS, R. Ensaios Contra a Maré. Rio de Janeiro: APEC, 1969. p.309.
226
CAMPOS, R. Mitos Políticos. Rio de Janeiro: APEC, 1965. p.p.30/31.
112
112
completaria o rol de ações governamentais voltadas para o campo. De acordo com a
Mensagem Presidencial n.º 33, que acompanhava o encaminhamento do projeto para
apreciação no Congresso, as razões para a atribuição de prioridade para a matéria
justificava-se pela necessidade de se dar a terra
Uma nova regulamentação, modificando-se a estrutura agrária do país, é
de si mesma evidente, ante os anseios de reforma e justiça social de
legiões de assalariados, parceiros arrendatários, ocupantes e posseiros que
não vislumbram, nas condições atualmente vigentes no meio rural,
qualquer perspectiva de se tornarem proprietários
227
.
Evidentemente que a preocupação em regulamentar um conjunto de dispositivos
que possibilitasse não somente a distribuição de terra, mas também a regularização da
posse, passava pelo fato de tentar arrefecer os conflitos fundiários e as tensões sociais
decorrentes de disputas por terras; pela reivindicação dos trabalhadores e seus agentes de
mediação no que tange à redistribuição de terras; pelo atendimento das exigências em torno
de uma maior atenção do governo no que concerne à assistência técnica e financiamentos.
Neste sentido, as diretrizes gerais que compunham cada reforma foram delineadas passo a
passo, em primeira instância, no âmbito do governo e somente então partir-se-ia para a
segunda fase, caracterizada pela estruturação das mesmas por meio de comissões ou grupos
de trabalho.
2.4 – A FORMAÇÃO DO GRET E O ESTATUTO DA TERRA
Com relação à organização do Estatuto da Terra, a sistemática de trabalho seguiu
este mesmo princípio. Na primeira reunião ministerial, Castello Branco e Roberto Campos
colocaram a questão da reforma agrária como uma das medidas emergenciais do plano de
governo e, em seguida, definiram os aspectos essenciais que deveriam constar da nova Lei.
Desse modo, a lógica adotada para o início dos trabalhos de estruturação do Estatuto da
Terra versava sobre os seguintes pontos: tributação progressiva e regressiva; desapropriação
de terras; colonização; adoção de módulos rurais; regulamentação das parcerias e
arrendamentos; política agrícola. Ressalta-se que ao longo do trabalho dos grupos de
estudos, vários pontos foram adicionados aos citados acima.
227
Mensagem Presidencial n.º 33. In: CONTAG. Questões Agrárias: Estatuto da Terra e Decretos
Regulamentadores, op. cit. p.06.
113
113
Após esquematizar as premissas do Estatuto da Terra, Castello, em entrevista
coletiva, ratificava publicamente os pontos básicos a serem desenvolvidos pelo grupo de
trabalho. Assim, salientava que,
Através desse instrumento legal, serão regulados o acesso à propriedade
da terra e financiamento da reforma, a execução e administração de
planos nacionais e regionais. Cuidar-se-á, igualmente, do zoneamento e
do cadastro de propriedade agrícola. E, no quadro de uma política
objetiva de desenvolvimento rural, merecerão todo o relevo o problema
da justa tributação da terra, a desapropriação, a colonização, a assistência
e proteção à economia agrícola, em todas as suas facetas. Não serão
esquecidas as questões de arrendamento rural, da parceria e dos foreiros.
Estou certo de que, assim, num ambiente não intoxicado pelo temor ou
pelo ódio, em clima não mais emocional, possamos atender justos
anseios, impulsionando vigorosamente o programa rural do país.
228
Com a finalidade agilizar os trabalhos referentes à concretização de uma
proposta de reforma agrária a ser apreciada pelo Congresso, ainda no decorrer do primeiro
ano do governo Castello, o Ministério do Planejamento organizou o GRET (Grupo de
Trabalho sobre o Estatuto da Terra)
229
que, segundo Bruno,
O GRET transformou-se então na instância onde se elaboraram os
fundamentos da lei de reforma agrária e das estratégias oficiais de uma
política fundiária. As medidas do governo sobre o disciplinamento da
propriedade da terra passaram pelo GRET, ou dele partiram. Foi o canal
competente e legítimo que agregou, em torno de si, quase todas as
decisões de ordem prática, política e teórica. A sua proposta passou a ser
então o discurso oficial do primeiro governo ‘revolucionário’. Era o
‘projeto do Executivo’. Neste contexto, é o GRET que vai estabelecer os
228
Entrevista do Presidente Castello Branco. In: jornal O Estado de São Paulo, 16/05/1964.
229
A preocupação com a otimização dos trabalhos frente à organização do projeto do Estatuto da Terra,
segundo Roberto Campos e alguns colaboradores como José Gomes da Silva e Carlos Lorena, advinha do fato
que, tendo em vista a polêmica que começou a ser gerada pelo simples fato do governo ter publicamente
colocado a reforma agrária como uma de suas medidas prioritárias, certamente haveria uma demanda maior de
tempo para organizar a lei com conceitos bem definidos, a fim de restringir as brechas pelas quais os
congressistas e os anti-reformistas de uma forma geral, poderiam se ater para obstruir a aprovação da mesma.
Segundo Bruno, “Surpresos com a força da reação à reforma agrária do governo revolucionário, os intelectuais
do GRET perceberam logo de início que, embora a ‘revolução’ houvesse garantido o fim da radicalização, isso
não era suficiente, nem bastava simplesmente ater-se aos princípios gerais de uma reforma agrária
‘democrática e cristã’. Havia a necessidade de formular uma lei objetiva e restrita o máximo possível em seus
termos, que satisfizesse, sobretudo, à distribuição racional da terra”. BRUNO, R. O Estatuto da Terra: Entre a
Conciliação e o Confronto, op. cit. p.10. Para os integrantes do grupo, a organização de uma lei tão complexa,
sua aprovação e os preparativos para alicerçar em bases sólidas sua aplicação demandariam todo o período do
primeiro governo militar, que, a princípio, iria até o mês de janeiro de 1966. Para José Gomes da Silva, em
entrevista concedida a Mayla Yara Porto, a curta do mandato de Castello era um fator a mais de pressão para
os organizadores do Estatuto, e colocava o presidente entre duas situações, o trabalho de convencimento
quanto à necessidade das reformas e a tentativa de neutralizar as implicações políticas das mesmas. Dessa
forma, segundo Gomes da Silva, “o mandato do primeiro presidente pós 64 foi bastante tumultuado devido à
teimosia do Castello de impor-se um mandato de duração limitada; e a ambição dos candidatos a sua sucessão,
particularmente Lacerda e Magalhães Pinto de um lado e de Costa e Silva de outro. Isso fez com que Castello
não pudesse empregar na execução a mesma dedicação que dera durante a preparação do Projeto de Lei e do
debate para a sua promulgação”. Entrevista com José Gomes da Silva. Reforma Agrária. Jan/abril, 1995. p.
224.
114
114
contornos e as fronteiras do que será ou não discutido sobre a questão
fundiária pelas elites políticas e empresariais e, posteriormente, pelo
Congresso nacional e pela sociedade.
230
Este grupo de trabalho foi criado para atender a dois objetivos principais. Em
primeiro lugar, o grupo seria o responsável por desenvolver os preceitos da reforma agrária,
previamente definidos pelo governo, convertendo-os em um conjunto de leis que
regulamentassem a posse e uso da terra, bem como os instrumentos legais para a realização
da reforma agrária e a aplicação da política agrícola. Em segundo lugar o grupo foi pensado
como o lócus de discussão, pretensamente desprovido de motivações ideológicas por
estarem seus membros incumbidos de realizar uma avaliação técnica no que concerne à
execução da reforma agrária. O trecho do documento Fundamentos do Processo de
Reforma Agrária, a princípio, ratificava tal preceito ao afirmar que,
A reforma agrária é um empreendimento de política nacional e não de
política partidária, nem de luta de classes. È tarefa mais complexa que o
desenvolvimento industrial. Seu alcance é mais amplo, seus objetivos
mais profundos. Por tudo isso, poderá efetivar-se num clima de ordem,
paz social e democracia, objetivos precípuos deste anteprojeto.
231
Além disso, por encontrar-se diretamente vinculado ao Ministério do
Planejamento, sob a coordenação geral de Roberto Campos, creditava-se ao grupo uma
liberdade de atuação no sentido de pairar sobre as constantes investidas dos anti-reformistas.
Mas no decorrer dos meses de trabalho de estruturação da lei, a suposta isenção
do governo na busca de concretizar uma reforma agrária “quimicamente pura”, tornou-se
um processo cada vez mais distante e porque não dizer utópico. O fato de ter sido
organizado sob os auspícios do Estado não poderia assegurar a formação do desejado
“terreno neutro” para o avanço dos trabalhos, pois, embora a centralização e adoção de
poderes excepcionais permitissem uma maior mobilidade de atuação para o governo, no
sentido de impor mudanças e reformas prioritárias, isso não garantiu na prática, como
haviam anteriormente pensado, mantê-lo indiferente ao jogo de forças e interesses políticos
que gravitavam ao seu redor.
Logo se percebeu que o governo não conseguiria manter a pretendida auto-
suficiência do processo reformista, e que para a aprovação de suas metas teria que dar início
a uma série de negociações, cedendo em vários pontos, em especial no que se referia à
questão do Estatuto da Terra. No decorrer dos trabalhos de elaboração da proposta houve
230
BRUNO, R. O Estatuto da Terra: Entre a Conciliação e o Confronto, op. cit. p.08.
231
Fundamentos do Processo de Reforma Agrária. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio
de Janeiro. Caixa 129, 1964 d.
115
115
uma clara supervalorização do poder do Estado e uma subestimação do poder político dos
anti-reformistas.
Além do mais, a idealização de uma reforma “quimicamente pura”, esbarrava na
própria configuração do grupo de trabalho. Já nas primeiras reuniões do grupo, a dificuldade
centrava-se na conciliação entre os contornos e características previamente estipuladas pelo
governo e que deveriam ser contempladas no projeto, estabelecendo de antemão o que seria
uma proposta julgada como ideal para o país e as convicções pessoais dos componentes do
grupo quanto ao formato e os instrumentos a serem definidos como prioritários para a
execução da mesma. Não raro, foi possível perceber que o choque de idéias sobre a reforma
indicava, também, a representação e a influência de interesses partidários, ideológicos e
institucionais.
A despeito dos debates e conflitos de posicionamentos verificados no transcorrer
dos trabalhos de concretização da lei, Roberto Campos, ao promover a estruturação do
grupo de estudos, procurou selecionar seus integrantes de modo a facilitar, minimamente, o
desenvolvimento do anteprojeto do Estatuto da Terra, ou seja, buscou-se configurá-lo de
modo que os inevitáveis choques de idéias, não se transformassem em impasses
intransponíveis, impedindo a formação de um consenso em torno dos princípios gerais da
lei, o que inevitavelmente frustraria, assim como no período anterior, qualquer iniciativa de
organização do Estatuto.
A despeito da afirmação de Dreifuss
232
de que o GRET teria sido formado apenas
com representantes do IPES/RJ,
233
verificou-se que Roberto Campos procurou integrar ao
232
DREIFUSS, R. A. 1964: A Conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.p.p.434/435.
233
O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - IPES surgiu oficialmente em novembro de 1961, por iniciativa
de vários representantes da classe empresarial. A princípio, sua organização tinha como objetivo central à
defesa dos interesses empresariais e promover a livre iniciativa, desenvolvendo um centro de produção de
estudos econômicos em defesa da mesma. Segundo dados da Revista Isto É de 24 de março de 2004, chegou a
reunir representantes de mais de 500 empresas. Possuía dois pólos principais de representação fincados em
São Paulo e Rio de Janeiro, mas rapidamente se espalhou por outras grandes cidades brasileiras, como Belo
Horizonte, Santos, Curitiba, Manaus etc...Apesar de ter sido fundado e mantido com recursos de empresários
nacionais e internacionais (apoio que denotava uma clara oposição à suposta aproximação do Jango com
setores de esquerda e pela aprovação da Lei de Remessa de Lucros do mesmo governo), o objetivo era
expandir base de apoio para o projeto do Instituto. Com este propósito, o Instituto passou a desenvolver uma
política expansionista, agregando em seus quadros representantes das classes patronais, militares da reserva,
como o General Golbery do Couto e Silva e civis identificados com o projeto do IPES. Segundo Dreifuss, “dos
encontros planejados e discussões preliminares com um constante e crescente números de indivíduos de
destaque, surgiu a idéia de se estimularem todo o país uma reação empresarial ao que foi percebido como a
tendência esquerdista da vida pública.(...) Aos olhos dos simpatizantes de defensores, a face pública mostrava
uma organização de ‘respeitáveis homens de negócio’ e intelectuais, com um número de técnicos de destaque,
que advogavam ‘participação nos acontecimentos políticos e sociais e que apoiavam a reforma moderada das
instituições políticas e econômicas existentes’. Seu objetivo ostensivo era estudar ‘as reforma básicas
propostas por João Goulart e a esquerda, sob o ponto de vista de um tecno-empresário liberal”. DREIFUSS, R.
A. 1964: A Conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981. p.163. Mas rapidamente, tanto o Instituto quanto
116
116
grupo indivíduos que, apesar de discordarem entre si quanto às características que a reforma
deveria assumir, pensassem a reforma agrária enquanto um processo prioritário para o
desenvolvimento nacional. Entrementes, priorizou-se, também, indivíduos que acumulavam
experiências no trato com a questão, em virtude da participação em outras tentativas em se
concretizar um conjunto de leis que viabilizassem a reforma agrária, seja em âmbito
nacional ou estadual. Somado a esses grupos foram convidados estudiosos que compunham
o núcleo de estudos agrários do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e juristas
especializados em questão agrária.
Segundo José Gomes da Silva, o GRET resultou da união da experiência
paulista com a intelectualidade carioca
234
. Assim, participava deste primeiro grupo os
principais remanescentes da Revisão Agrária do Estado de São Paulo, que foi realizada em
1959, no decorrer do governo Carvalho Pinto. Dentre esses membros, encontrava-se o
próprio José Gomes da Silva, interventor do SUPRA e que, no interior do grupo de trabalho,
exercia a função de coordenador de atividades; Fernando Pereira Sodero, advogado
especializado em Direito Agrário; Carlos Lorena, especialista em tributação de terras;
Messias Junqueira, advogado especializado em processos de desapropriação de terras no
estado de São Paulo e Copérnico de Arruda Cordeiro, engenheiro agrônomo, especialista em
trabalhos relativos aos instrumentos convencionais de desenvolvimento rural.
No que foi convencionado como sendo o grupo do Rio, representantes do
Ministério do Planejamento, encontrava-se o coordenador geral do GRET, Paulo de Assis
Ribeiro
235
engenheiro e especialista em cadastros; Luiz Gonzaga do Nascimento e Silva,
sua campanha anticomunista e de defesa da iniciativa privada por meio de uma maior participação na política,
tornou-se um forte chamariz da campanha conspiratória contra Jango. O IPES agregou não somente uma
campanha contra o governo Jango, como também apoiou o golpe militar. Posteriormente, vários de seus
componentes, principalmente os ligados ao IPES-RJ, foram convidados a integrar importantes quadros
burocráticos no primeiro governo militar. De acordo com De Paula, “o acirramento nos debates sobre as
chamadas "reformas de base" agrária, bancária, urbana, universitária e tributária, promovidas pelo governo
Goulart incitou nos membros do IPÊS a percepção de que o país marchava inexoravelmente para o
comunismo e que cabia aos ‘homens bons’ a interrupção desse processo. Dessa forma, o instituto promoveu
intensa campanha anti-governamental. Associando as propostas do governo ao comunismo, a entidade utilizou
os mais diversos meios de comunicação na defesa da ‘democracia’ e da livre iniciativa. Publicou artigos nos
principais jornais do país; produziu uma série de 14 filmes de ‘doutrinação democrática’, apresentados em
todo o país; financiou cursos, seminários, conferências públicas; publicou e distribuiu inúmeros livros,
folhetos e panfletos anticomunistas, dentre os quais UNE, instrumento de subversão, de Sônia Seganfredo,
dirigido aos estudantes universitários”. DE PAULA, C. J. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais-IPES.
Dicionário cpdoc. Torna-se importante ressaltar que dentro da perspectiva de oferecer estudos paralelos às
propostas de João Goulart, consideradas esquerdistas, tanto o IPES/SP, quanto o IPES/RJ, desenvolveram
projetos paralelos no que concerne à reforma agrária. Muito do que foi discutido pelo IPES/RJ foi
posteriormente utilizado pelo GRET, no trabalho de organização do Estatuto da Terra.
234
SILVA, J. G. A Reforma Agrária Brasileira na Virada do Milênio. Maceió: EDUFAL, 1997. p.41.
235
Paulo de Assis Ribeiro segundo Campos além de coordenar o GRET, havia também coordenado os estudos
do IPES/RJ sobre questões referentes à reforma agrária.
117
117
advogado incumbido de coordenar os trabalhos de análise sobre as implicações jurídicas dos
itens do anteprojeto; Frederico Maragliano e Eudes de Souza Leão, ambos secretários
auxiliares designados pelo Ministério do Planejamento; e Júlio César Belisário Viana,
economista (e sobrinho de Castello Branco que havia sido designado para secretariar os
trabalhos da equipe).
Segundo Gomes da Silva, o fato de Júlio Viana possuir laços de parentesco com
o Presidente não representou a criação de um ambiente intimidatório para o andamento dos
trabalhos, pelo contrário, para Gomes da Silva, Viana foi credor de inestimáveis serviços
na agilização dos trabalhos e na comunicação com o Presidente.
236
Ainda faziam parte do
debate interno os coordenadores dos subgrupos formados para o desenvolvimento das
atividades, tais como: o Presidente do BNDE, José Garrido Torres e o Ministro da
Agricultura Oscar Thompson, posteriormente substituído por Hugo de Almeida Leme.
Além do Coordenador Geral e dos Coordenadores dos subgrupos de atividades, o
GRET era diretamente subordinado ao Ministro do Planejamento sob a chefia de Roberto
Campos, e contava com a tutela direta de Golbery do Couto e Silva, Chefe do Serviço
Nacional de Informação,
237
além, é claro, da participação constante do próprio Presidente da
República, Castello Branco, nas atividades do grupo, discutindo e analisando as propostas e
muitas vezes se envolvendo pessoalmente no lobby realizado entre congressistas e
representantes de instituições de classe. Carlos Lorena, em entrevista a Regina Bruno,
rebate as críticas contemporâneas e posteriores à organização do Estatuto, cujo conteúdo
indicava uma participação dissimulada do Presidente, remetendo a uma possível manobra
política de retaliação aos anseios da classe trabalhadora, bem como uma tentativa para, na
verdade, desviar a atenção da sociedade em relação às conseqüências políticas provenientes
236
SILVA, J. G. A Reforma Agrária Brasileira na Virada do Milênio.op. cit. p.37.
237
O SNI foi instaurado oficialmente em junho de 1964, segundo Boris Fausto, idealizado por seu primeiro
Chefe, o General Golbery do Couto e Silva, tinha como objetivo “coletar e analisar informações pertinentes à
Segurança Nacional, à contra-informação sobre questões de subversão interna. Na prática, transformou-se em
um centro de poder quase tão importante quanto o Executivo, agindo por conta própria na ‘luta contra o
inimigo interno” FAUSTO, B. História Concisa do Brasil. Op. cit. p. 259. Mas antes de assumir a Chefia do
SNI, Golbery do Couto e Silva, foi membro permanente do IPES/RJ e compôs, também, o grupo de trabalho
sobre a Reforma Agrária do mesmo Instituto, coordenado por Paulo de Assis Ribeiro. No GRET, sua
participação não tinha uma função decisória sob os pontos a serem inseridos na lei, esta resultava das
discussões e consensos no interior do grupo que, posteriormente, eram chancelados pelo Coordenador do
Grupo Paulo de Assis Ribeiro, pelo Coordenador Geral Roberto Campos e pelo Presidente. Sua função
específica era cuidar para que não houvesse vazamentos para a imprensa sobre as pautas discutidas,
enquadrando-as como confidenciais, como uma forma de evitar prematuramente as especulações sobre a
matéria e, obviamente, exercer o trabalho de vigilância quanto ao debate, como uma forma de garantir o
cumprimento do objetivo em se organizar uma proposta de reforma agrária fundamentalmente de cunho
capitalista, embora houvesse a absorção de várias reivindicações realizadas pela esquerda no pré-64.
118
118
da implantação do regime de exceção. Lorena destaca em sua entrevista que tais críticas
tentavam justificar o empenho de Castello, a partir do seguinte argumento,
[Castello] fez isso ai [Estatuto da Terra] como um golpe ou aproveitando
da situação ou para se justificar da situação. Mas a gente que participou
daquilo lá, tem sempre presente o interesse do Castelo como pessoa,
como Presidente da República e demonstrou isso o tempo todo. Ele
diariamente queria ser informado de como estavam às discussões, do que
havia de novo a respeito do estatuto da terra. Ele criticava cada vírgula,
mandava bilhetinhos escritos, pedindo em letra dele para alterar isso ou
aquilo ou pedindo para explicar qualquer proposta desse ou daquele jeito.
(...) Ele mostrou um interesse enorme vírgula por vírgula pelo estatuto da
terra a a elaboração final. Agora, para fazer passar no congresso, o
congresso naquele tempo tinha muito mais força do que esse congresso
que nós temos visto depois, completamente emasculado e estragado pela
revolução, fazendo o que o governo manda. Naquele tempo para fazer
passar um projeto de lei o Castelo tinha que discutir com os deputados e
senadores e ceder em alguma coisa. E essa luta foi enorme e sempre
contando com a presença constante do Castelo dando apoio, chamando os
deputados e senadores para tentar convencer, discutindo com eles. Foi um
luta grande e sempre ele demonstrando esse apoio. Sorte que eu acho que
havia realmente um sentimento liberal da parte dele (...).
238
Apesar dos cuidados iniciais para a configuração do GRET, o primeiro incidente
envolvendo a incompatibilidade de concepções quanto à necessidade e o alcance de uma lei
que viabilizasse a execução da reforma agrária no país partiu do Ministério da Agricultura,
sob o comando de Oscar Thompson. Considerado um dos maiores produtores agrícolas do
país, ele havia exercido o cargo de Secretário da Agricultura do Estado de São Paulo no
governo de Adhemar de Barros. Visto como um experiente administrador, logo no decorrer
dos trabalhos, se tornou um elemento inconveniente para o grupo, haja vista que, segundo
relatos de Gomes da Silva, o ministro posicionava-se declaradamente contrário à idéia do
Estatuto da Terra, entravando a execução das atividades do GRET.
239
Os problemas com Oscar Thompson atingiram o ápice no episódio que culminou
em sua demissão, resultante do vazamento de uma das versões do Estatuto da Terra para o
jornal O Estado de São Paulo. A estratégia dos elaboradores do Estatuto era que, somente
238
Entrevista de Carlos Lorena, concedida a Regina Bruno em 06/07/1984. Outro depoimento que corrobora a
participação e empenho do Presidente Castelo Branco no processo de elaboração e aprovação do Estatuto da
Terra é concedido por José Gomes da Silva. Segundo este, “O primeiro deles é o testemunho de seu empenho
pessoal e diuturno na elaboração das propostas de Emendas Constitucionais e do anteprojeto do Estatuto da
Terra, e, sobretudo, do esforço dispensado pelo Presidente no acompanhamento dos debates público e
legislativo que antecederam a promulgação desses dois diplomas legais. Na verdade, em minha opinião, foi o
único presidente até hoje, que realmente tomou a decisão política que os doutos ensinam como indispensável
para a realização de um processo de mudança com as implicações e alcance de uma RA. Infelizmente, os dias
conturbados que se seguiram à promulgação do Estatuto da Terra não permitiram a Castello passar à história
como o general da reforma (...)” SILVA, J. G. A Reforma Agrária Brasileira na Virada do Milênio, op. cit.
p.36.
239
Entrevista com José Gomes da Silva. In: Estudos Sociedade Agricultura, 6, julho de 1996. p.p.36/48.
119
119
após a finalização da proposta, esta seria aberta ao público e à grande imprensa, objetivando
reduzir as especulações e as pressões no decorrer dos trabalhos. Sobre o episódio, Gomes da
Silva relatou que:
Eu comprei o Estadão e quando eu o abri, eu falei: ‘pegaram o meu
documento! Acharam!’. Estava a versão publicada com todos os
carimbos de ‘secreto e confidencial’. Isso foi uma das falsetas que a
chamada contra-reforma tinha nos pregado. O ministro da Agricultura,
Oscar Thompson havia dado o texto para o Estadão. Foi uma maneira de
torná-lo público. O Castello o chamou e o demitiu.
240
O ato do ministro, portanto, além de ter sido interpretado como um
descumprimento das normas estabelecidas significou, sobretudo para o governo, a opção do
ministro pela não colaboração com relação à concretização do Estatuto.
Em nota, o Presidente Castello não comentaria os reais motivos da demissão
241
do Ministro da Agricultura, atendo-se apenas a uma breve comunicação onde justificava a
decisão com base na suposta falta de entrosamento do ministro com as ações do governo.
Ao dirigir-se ao Ministro, em seu anúncio oficial, Castello argumentava que
O assunto desta comunicação me é imposto pelo anunciado constante de
meu discurso de posse de ministros, em dias de abril último, de que o meu
Governo teria ‘unidade de pensamento e ação’ e os problemas
administrativos exigiam ‘verdadeiro dinamismo’. Isso determina métodos
e normas de trabalho comuns, sobretudo para produzir resultados
eficientes. Vossa Excelência, homem de ação e de personalidade, por sua
maneira de agir muito pessoal, se isola no ministério e não permite
entrosar uma ação interpenetrada, coesa e de rendimento em relação à sua
pasta. Trata-se sem dúvida, de um modo particular de trabalho que eu
respeito, mas que julgo incompatível com os métodos e normas adotadas
por este Governo.
242
Em verdade, a atitude do governo em preservar os motivos da demissão consistia
em evitar um provável agravamento da crise política, claramente estabelecida tanto entre
os representantes da linha dura, quanto entre as associações dos proprietários rurais.
Logicamente, que o do vazamento das informações sobre o Estatuto da Terra
que, entre outros pontos, destacava a desapropriação como um dos instrumentos de reforma
agrária e a defesa da mudança constitucional como elemento essencial para viabilizá-la,
240
Idem.
241
Dreifuss também ressalta a incompatibilidade de Thompson com as novas diretrizes políticas que estavam
sendo implantadas pelo governo Castello, no entanto ele afirma que isso resultou no pedido de demissão do
ministro, quando na verdade foi o contrário. A incompatibilidade com as diretrizes políticas de Castello
resultou em sua demissão pelo presidente. DREIFUSS, R. A. 1964: A Conquista do Estado. Petrópolis:
Vozes, 1981.p.436.
242
Trecho do decreto de demissão do Ministro da Agricultura extraída do livro de VIANNA FILHO, L. O
Governo Castello Branco, op. cit. p.261.
120
120
gerou uma oposição não mais baseada em especulações, quanto aos possíveis
posicionamentos adotados pelo governo com relação à reforma, mas sim, sobre as ações e
instrumentos relativos a matéria, concretizados no anteprojeto do Estatuto. A partir daí,
declarações como a do presidente da Sociedade Rural Brasileira, Sálvio Pacheco de
Almeida Prado, onde este conclamava os proprietários a conspirarem novamente”,
tornaram-se lema para uma parte, considerável, da classe patronal.
Silvio Heck, um importante membro da Sociedade Rural Brasileira, em um
pronunciamento contrário à reforma agrária, porque na interpretação do ruralista não havia
o que ser reformado, dava mostras até qual ponto poderia chegar a oposição ao governo ao
afirmar que:
(...) não pretendemos fazer outra revolução, queremos até colaborar com o
governo, mas que ele faça o que nós desejamos. A revolução parece estar
fugindo de seus fins, mas os rumos que a nortearam serão concretizados
de qualquer modo. Os dez militares que a comandaram estão mais unidos
do que nunca, já temos cobertura militar, precisamos de cobertura popular
e civil.
243
A preocupação do presidente com a repercussão da demissão de Oscar
Thompson centrava-se em dois motivos básicos. O primeiro deles referia-se à própria
condição e atividade do ministro, como grande proprietário de terras e político próximo a
Adhemar de Barros (um dos principais oposicionistas do Estatuto), sua demissão poderia
inflamar ainda mais os proprietários de terras de São Paulo contra o projeto do governo.
Outro ponto a ser considerado com relação à demissão do ministro relacionava-
se ao fortalecimento político que, particularmente, o IPES/SP havia construído por ocasião
da campanha política realizada em prol da intervenção militar para destituir João Goulart do
poder.
Composto por empresários e grandes proprietários de terras, o IPES/SP,
configurou-se no mais combativo e atuante opositor da proposta de reforma agrária de
Jango e, posteriormente, contra qualquer proposta de reforma agrária. Por esse motivo, o
IPES/SP passou, contraditoriamente, a ser considerado como um “perigo político” para as
intenções do governo, pois, se no período pré-golpe somou forças e atuou decisivamente
para angariar apoio da população, utilizando-se da estrutura organizacional do Instituto, cuja
representação espalhava-se por várias cidades do país, da mesma forma poderia valer-se de
sua representação junto à classe patronal para gerar mobilizações contra o projeto do
243
Jornal O Globo 15/12/1964.
121
121
governo, a ponto de obstruir, assim como no pré-64, qualquer tentativa de regulamentação
da reforma agrária.
Neste sentido, temia-se que a divulgação dos reais motivos da demissão de Oscar
Thompson fosse interpretada não apenas como punição ao ato do ministro, mas também
como uma medida de retaliação frente à classe patronal paulista por ele representada.
Isso porque o crescente movimento anti-reforma estruturava-se com mais força
nos estados de São Paulo e Minas Gerais, coincidentemente, representados por políticos
engajados no golpe de março, mas que, em função da implantação das reformas, tornaram-
se críticos ferrenhos das ações governamentais, engrossando, conjuntamente com os
conservadores da linha dura, o coro recorrente que acusava Castello Branco de adotar
medidas perigosamente progressistas por um lado e, por outro, medidas ortodoxas e
entreguistas que, inevitavelmente, trariam grande impopularidade junto à sociedade,
ameaçando os princípios da “Revolução de Março.”
244
Embora a indicação para ocupar os cargos ministeriais estivesse,
preferencialmente, subordinada aos conhecimentos técnicos ligados a cada pasta, a diretriz
para a substituição de Oscar Thompson passou por uma sondagem dos indicados quanto
seus posicionamentos em relação à reforma agrária, procurando aliar experiência no trato
das questões relativas à agricultura e apoio ao projeto do governo, segundo estabeleceu
Gomes da Silva em seu relato sobre a escolha de Hugo Leme para compor o Ministério da
Agricultura,
Recebi um telefonema do General Golbery, consultando-me sobre três
nomes, novamente de agrônomos paulistas para ocupar a pasta. Não sei se
adiantou a minha informação de que o professor Hugo de Almeida Leme,
como diretor da Escola Superior de Agricultura ‘Luiz de Queiroz’, de
Piracicaba, acreditava na reforma agrária e que discursara no
encerramento de um curso sobre o tema realizado naquela escola, do qual
eu, por coincidência participara com palestras. O fato é que o Repórter
Esso, o novidadeiro da época, a tarde, anunciava a nomeação do Hugo
de Almeida Leme, ao qual o Brasil, daí em diante, passou a dever novos
serviços em favor da agricultura, inclusive de ter assinado o Estatuto da
Terra.
245
Outra manobra política do governo foi tentar isolar politicamente o IPES/SP,
privilegiando o IPES/RJ na composição do GRET, ao eleger como coordenador do grupo,
Paulo de Assis Ribeiro.
246
Segundo Roberto Campos,
244
NETO, L. Castello: A Marcha para Ditadura. São Paulo: Contexto, 2004. p.p.277/278.
245
SILVA, J. G. A Reforma Agrária Brasileira na Virada do Milênio, op. cit. p.38.
246
BRUNO, R. O Estatuto da Terra: Entre a Conciliação e o Confronto, op. cit.
122
122
No caso da reforma agrária, digladiavam-se no IPES duas tendências
discrepantes. A do grupo do Rio, que favorecia uma reforma agrária de
tipo capitalista (...) sem prejuízo da produtividade; e a do grupo de São
Paulo, que não a considerava questão de urgência e temia a
desorganização da produção rural pela intimidação dos produtores. A
divergência era compreensível. O IPES/SP era composto por ativistas,
que tiveram destacado papel na eclosão do movimento revolucionário.
Um seu componente importante eram os ruralistas, que viam na reforma
agrária uma convalidação das idéias janguistas. (...) O IPES deo Paulo
chegou mesmo a patrocinar a publicação de um panfleto ‘A reforma
agrária, uma questão de consciência’ redigido pelo Bispo D. Eugênio
Sigaud, no qual se questionava a relevância e oportunidade da medida. A
posição do IPES/Rio era mais intelectualizada e reflexiva. Via na reforma
agrária um meio de fortalecer o princípio da propriedade privada e da
liberdade política.
247
Portanto, a tendência hegemônica no interior do IPES/SP, ultrapassava o limite
da discordância com relação a determinados instrumentos ou concepções que
inevitavelmente seriam aplicados com a execução da reforma agrária, pois a oposição do
Instituto Paulista centralizava-se na negação da necessidade de se alterar o sistema de posse
e uso da terra por meio da regularização de qualquer lei que permitisse a reforma agrária.
Neste sentido, em documento enviado ao IPES/RJ, diretamente envolvido com a elaboração
do Estatuto da Terra, destacava o descontentamento de seus integrantes principalmente os
ruralistas- quanto as primeiras declarações do presidente relacionadas a alteração do sistema
agrário do país, questionando, inclusive, sua legitimidade. Segundo o documento,
A expressão ‘sistema justo de propriedade’ importa implicitamente na
condenação do atual regime da propriedade privada do ponto de vista
moral; que o anteprojeto considera moralmente justa a pequena
propriedade, revelando insólita prevenção contra a propriedade de
dimensões superiores à propriedade familiar que tal posição não tem
fundamento doutrinário ou científico; que não argumento de natureza
econômica que justifique, no setor agrário, a intervenção do Governo
Federal, visando promover a divisão da propriedade familiar; que até o
momento nada se sabe sobre a eficiência produtiva da estrutura agrária
nacional, dada a precariedade dos levantamentos até agora realizados, os
quais não acusam diferenças de produtividade entre grandes e pequenas
explorações rurais; que por traz do conceito da propriedade familiar acha-
se a concepção de que a condição do assalariado é indigna do ser humano,
o que envolve uma condenação implícita do capitalismo; que a noção
‘função social da terra envolve uma concepção semi-socialista e reduz o
proprietário à mera condição de gerente a serviço da comunidade, o que
doutrinariamente é inaceitável.
248
247
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p.685.
248
Parecer Sobre o Documento do Grupo de Doutrina do IPES/SP sobre Anteprojeto de Reforma
Agrária do IPES/RJ. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Caixa 51/53 s/d,
1964 f.
123
123
A partir da declaração acima, é possível perceber que a oposição à iniciativa do
governo, fundamentava-se na distorção dos principais pontos sugeridos por este para
justificar a reforma agrária, deixando claro que a oposição visava apenas tumultuar o
processo de elaboração da lei.
Por isso, cabe enfatizar que o governo não realizava uma condenação prévia à
grande propriedade, mas sim à propriedade improdutiva, geralmente mantida com fins
especulativos e ao minifúndio, considerado, por suas dimensões, insuficiente para atender
aos objetivos do governo: elevar o padrão material dos trabalhadores rurais, promover a
disseminação da classe média no campo e aumentar a produtividade.
Ao contestar a intervenção do governo, baseado na alegação de que não
haveriam estudos econômicos que pudessem embasá-la, o documento não somente negava a
urgência da medida, como também, a existência de problemas na estrutura agrária. Sendo
assim, a intervenção do governo não estava sendo contestada em virtude da centralização
adotada para abordar o tema, excluindo-se, por conseguinte, grande parte dos trabalhadores
rurais, mas pelo fato de que, no seu entender, ao centralizá-la o governo, indiretamente,
tentava impor limites à participação da classe patronal na defesa de seus interesses.
No documento encaminhado ao IPES/RJ, o IPES/SP sugeria que as discussões
sobre o texto do Estatuto da Terra não permanecessem circunscritas ao GRET, considerado
lócus privilegiado de defesa dos interesses do Estado. Para solucionar o impasse, o IPES/SP
apoiou a criação das Comissões Agrárias, a serem implantadas por todo o país, como forma
de democratizar a discussão sobre o tema da reforma agrária, tendo inclusive, o papel de
sugerir alterações no anteprojeto. Segundo o documento do IPES/SP,
O documento parte do princípio errôneo de que uma reforma agrária é um
instrumento exclusivamente técnico. Na realidade, ela é uma medida de
grande alcance político e de sentido amplamente democrático, exigindo,
portanto, além dos órgãos técnicos e de atuação do Poder Público, a
criação de pontos de encontro e de consulta entre os principais
interessados na reforma. Desde que se admite que uma reforma agrária
democrática visa estabelecer um equilíbrio e um sistema mais justo de
relações, todos os interessados, tanto o Estado como os proprietários e os
candidatos à terra, devem ter a maior oportunidade possível para a troca
de opiniões e para o debate das soluções propostas. É esse o sentido e essa
a principal finalidade das Comissões Agrárias que se pretende constituam
uma barreira, tanto contra o arbítrio do Estado na defesa dos interesses
particulares como contra as explorações demagógicas e subversivas.
249
249
Parecer Sobre Documento do Grupo de Doutrina do IPES/ São Paulo Sobre o Anteprojeto de
Reforma Agrária do IPES/RJ, op. cit. p.09.
124
124
Sob este aspecto, a demissão de Oscar Thompson, a despeito dos cuidados do
governo em omitir os reais motivos de sua demissão, recaiu, inevitavelmente, sobre o IPES/
SP como mais um golpe frente à classe produtora do país, pois, argumentavam que o
governo estaria privando a classe de possuir um representante de peso político no processo
de consolidação da lei.
Segundo trecho do documento do IPES/SP, o anteprojeto divulgado pela
imprensa, era doutrinariamente errado (...) e fortalecia a corrente comunisante.
250
O
emprego dos termos comunisante e semi-socialista,
251
mais do que exteriorizar a insatisfação
quanto aos integrantes do GRET, que defendiam abertamente a realização da reforma
agrária no país, tinha a função de impactar e reacender entre seus componentes a campanha
anti-reforma agrária. Curiosamente, o IPES/SP estabelecia como base de contestação ao
projeto do governo, a mesma argumentação empregada para, não somente refutar a proposta
de reforma agrária do governo Goulart, como também, para mobilizar a população em torno
da necessidade do Golpe.
Entretanto, a tática de atacar o projeto do governo aproximando-o do projeto de
reforma agrária de João Goulart seria, paulatinamente, absorvida pelo andamento do
processo de estruturação do Estatuto da Terra, obrigando os anti-reformistas a repensarem a
estratégia oposicionista. Da oposição à reforma agrária respaldada em uma campanha
anticomunista, passou-se a uma campanha centrada no questionamento dos instrumentos e
bases legais do anteprojeto do Estatuto. Segundo Regina Bruno,
O discurso anti-reformista do pós-golpe, apesar de manter os mesmos
pressupostos utilizados no período anterior a 1964, aos poucos foi
perdendo sua força política e ideológica, e mudando a lógica de suas
argumentações, porque não mais podia afirmar que a reforma agrária de
Castello Branco significava a instauração do comunismo no Brasil. Os
anti-reformistas e os grandes proprietários fundiários haviam defendido e
apoiado publicamente uma reforma agrária ‘democrática e cristã’ contra o
que consideravam a opção socialista. Agora, verificavam que a proposta
do primeiro governo militar significava a vitória da opção democrática e
cristã, e a derrota da proposta socialista que, segundo eles, ‘pregava o
confisco como elemento preferencial da reforma e objetivava a
implantação de uma luta de classes no campo’”
252
.
250
Idem.
251
A expressão semi-socialista foi empregada para refutar o termo “função social da terra”, constante no
anteprojeto do Estatuto da Terra. Segundo o IPES/SP, ao estabelecer critérios para o enquadramento da
propriedade enquanto cumpridora de suas funções sociais, o anteprojeto do governo impunha limites e
cerceava o princípio do direito de propriedade. Parecer Sobre o Documento do Grupo de Doutrina do
IPES/SP sobre Anteprojeto de Reforma Agrária do IPES/RJ, op. cit.
252
BRUNO, R. O Estatuto da Terra: Entre a Conciliação e o Confronto, op. cit. p.02.
125
125
A iniciativa de acolher no governo representantes do IPES/RJ não pode ser
analisada somente como uma manobra política, visando anular a influência IPES/SP em
virtude de seu anti-reformismo, mas, especialmente pelo fato de haver uma clara
convergência de idéias entre o projeto estruturado por este Instituto e as concepções iniciais
formuladas pelo governo. Dentre os pontos principais destacavam-se a tributação e a
desapropriação de terras enquanto instrumentos prioritários e complementares rumo à
execução da reforma agrária, cujos objetivos versavam em torno do aumento da
produtividade, do número de proprietários, do crescimento da classe média rural, a
eliminação dos latifúndios e minifúndios e da questão dos arrendamentos e parcerias.
Segundo o documento do IPES/RJ, divulgado pelo jornal O Estado de São Paulo,
A reforma agrária deve permitir um progressivo acesso à propriedade
mediante uma progressiva política tributária e a desapropriação por
interesse social, levando sempre em consideração os aspectos regionais e
favorecendo os planos de colonização de forma a evitar que a reforma
resulte apenas na proletarização dos agricultores.
A lei agrária sobre as relações de propriedade que constitui a peça mestra
da reforma, explica claramente a meta do diploma legal promover um
sistema de propriedade da terra que assegure a formação de uma classe
média rural. Considera-se latifúndio a propriedade rural cujas
dimensões e aproveitamento excedam as que resultem da aplicação dos
termos contidos no artigo anterior relativo a propriedade familiar, quando
a) seja caracterizada por fins meramente especulativos, b) mantida
relativamente inexploradas em proporção as suas possibilidades físicas,
econômicas e sociais do meio, e deficiente e inadequada o uso, mesmo no
caso de parcial ou totalmente aproveitada ou de dimensão que exceda o
limite máximo indicado pelas condições e sistemas agrícolas regionais.
253
Para a questão dos arrendamentos e parcerias, o jornal, ao comentar o projeto do
grupo do Rio, manifestava-se contrário à argumentação estabelecida para estancar os
conflitos agrários e problemas inerentes a essa condição. Apesar de não ter realizado na
íntegra a transcrição do dispositivo referente à questão do arrendamento, o comentário
realizado sobre a temática evidenciava o posicionamento do grupo do Rio com relação a
temática, cujo teor destacava a gravidade da situação dos trabalhadores envolvidos com a
atividade e a possível solução para o problema: regularização da atividade por meio de uma
legislação específica e a distribuição de terras para os interessados em tornarem-se
proprietários. Tais preocupações foram assumidas em discussões posteriores no interior do
GRET. De acordo com o Jornal,
O arrendamento e parceria constituem realmente no ponto fraco do estudo
que mereceria ser mais aprofundado numa edição popular. Os autores
partem de uma constatação de que o lavrador arrendatário vive em
253
Jornal O Estado de São Paulo, 29 de maio de 1964.
126
126
condições de insegurança, pobreza e fadiga, que o levam a emigrar para
os centros urbanos e, conseqüentemente, a sua favelização. A
responsabilidade que cabe ao arrendamento pelas migrações internas que
se verificam no Brasil é realmente muito grande. Não é de crer que tão
rapidamente se possa realizar o que constitui o ideal dos autores do livro
que ora analisamos o acesso de todos os lavradores a propriedade
familiar. Admitindo que o Brasil disponha dos recursos financeiros
necessários a execução deste fim, não nos parece desejável apressar o
ritmo de proprietarização. Ser proprietário é uma arte que exige
qualidades especiais, tradições, recursos financeiros e preparação, desde
que se entenda por propriedade um bem social que tem de se colocar a
serviço da sociedade. O arrendamento e a parceria nos parecem constituir
justamente um meio adequado ao preparo do homem do campo para ser
proprietário quando essa preparação não se puder fazer por meio da
colonização. O que a legislação deve permitir a estas formas de
exploração da terra é justamente que elas preencham as suas funções
sociais habilitando para a ação de proprietários os que não sejam apenas
donos de suas terras, mas antes, de mais nada, responsáveis por um
capital que deve servir ao bem da comunidade.
254
A tributação de terras apresentava-se no anteprojeto do IPES/RJ, como a peça
mestra da reforma, visa favorecer a propriedade familiar e a empresa rural, nunca
excluída pelo legislador, e a impedir a expansão do latifúndio.”
255
Neste quesito, havia
discordâncias entre governo e o Instituto quanto à forma e a alíquota do imposto a ser
cobrada, pois, para o governo, o ônus do imposto progressivo deveria recair sobre as
grandes propriedades que não cumpriam sua “função social”, haja vista que caberia à
tributação frear o crescimento do latifúndio improdutivo, forçar as propriedades mal
aproveitadas a rever a sua situação e ao mesmo tempo garantir os recursos necessários para
as possíveis desapropriações, assentamentos, assistência técnica e creditícia aos
proprietários, sem causar uma sobrecarga aos cofres públicos.
O IPES/RJ previa a cobrança do imposto territorial, mas sua proposta incluía a
criação de um fundo nacional de reforma agrária, possibilitando uma amortização do
imposto sobre a terra, o que a princípio contrariava um dos principais focos do governo,
qual seja, de punir as propriedades mantidas com fins especulativos, além de sobrecarregar
a carga tributária à população, podendo acarretar o agravamento da crise de impopularidade
junto ao projeto reformista do primeiro governo militar. Segundo o jornal O Estado de São
Paulo, o documento do IPES/RJ almejava para o financiamento da reforma agrária,
A formação de um fundo nacional de reforma agrária com os seguintes
recursos adicionais do imposto de consumo, produto da arrecadação da
contribuição de melhoria consecutiva á realização de obras públicas 10%
254
Jornal O Estado de São Paulo, 30 de maio de 1964.
255
Jornal O Estado de São Paulo, 29 de maio de 1964.
127
127
de adicional sobre o imposto de renda das pessoas físicas que atinja valor
igual ou superior a 5 vezes o maior salário mínimo mensal do país, 5% de
adicional sobre o imposto de renda das pessoas jurídicas do imposto sobre
o lucro imobiliário e finalmente, doações recebidas no País ou no exterior
para este fim.
256
Para o IPES/RJ e para o governo, a desapropriação de terras enquadrava-se
também como instrumento de reforma agrária, no entanto, em uma escala de aplicabilidade,
esse dispositivo deveria estar submetido à cobrança do imposto territorial e seria acionado
em situações emergenciais caracterizadas por conflitos e disputas por terras, ou seja, quando
a situação não pudesse se enquadrar no processo contínuo e progressivo esperado para a
execução da reforma agrária.
O ponto de divergência frente a esse dispositivo referia-se ao pagamento das
indenizações das desapropriações, pois, para o governo, a mudança constitucional era
considerada essencial para garantir o pagamento das indenizações em títulos da dívida
pública como forma de desonerar os cofres públicos, enquanto o IPES/RJ defendia a
desapropriação com pagamento indenizatório, preferencialmente, em dinheiro, sem
emendas constitucionais.
Segundo o jornal, tanto na proposta do IPES quanto na do governo, a questão da
colonização não deveria ser considerada enquanto uma medida isolada, mas sim aplicada
em conjunto com os demais dispositivos constantes no Estatuto para fins de distribuição de
terras e em regiões com certa infra-estrutura, objetivando, com isso, facilitar o escoamento
da produção, excluindo os gastos adicionais provenientes do desbravamento de regiões
isoladas e do investimento com infra-estrutura. O consenso era de que esses pontos eram
imprescindíveis para viabilizar os projetos de colonização. Sob essa perspectiva, priorizar-
se-ia para fins de colonização,
A utilização de terras públicas, o diploma legal determina que estes
projetos serão executados preferencialmente em terras incultas mas
produtivas em áreas de êxodo, nas proximidades de cidades e mercados
em locais de fácil acesso e comunicação, de acordo com os planos
nacionais de vias de transporte, e secundariamente em áreas
longínquas, despovoadas ou de fraca densidade demográfica.
257
O perceptível sincronismo de idéias entre o grupo do Rio e as diretrizes iniciais
consideradas adequadas pelo governo, não significou a criação, no interior do GRET, de um
terreno desprovido de impasses e discordâncias no que concerne à elaboração do Estatuto da
256
Jornal O Estado de São Paulo, 29 de maio de 1964.
257
Jornal O Estado de São Paulo, 29 de maio de 1964.
128
128
Terra, ou que o grupo remanescente da Revisão Agrária Paulista tenha se convertido em
meros espectadores do processo decisório.
A idéia inicial de constituir o GRET como uma espécie de organismo autônomo
de discussões e definições sob os ditames da lei de reforma agrária, isolado das
especulações externas ao grupo, começou a ruir a partir do momento que o anteprojeto,
prematuramente, na visão de seus autores, vazou para a imprensa, tornando o processo mais
lento que o esperado, haja vista que o objetivo seria apresentá-lo apenas quando seus
conceitos e preceitos estivessem cuidadosamente definidos, visando diminuir os espaços,
as brechas e as burlas, para limpar o terreno e reduzir ao mínimo possível a reação.
258
Obviamente que o episódio obrigou o governo a adotar uma “política de
compartilhamento”, antes do previsto, com os grupos próximos ao poder e com as
representações trabalhistas. Da pressão resultou a iniciativa de organizar fóruns de discussão
para esclarecer e convencer seus interlocutores sobre os pontos contemplados pela lei,
resultando em uma avalanche de críticas, sugestões e emendas.
A partir daí o GRET, além de lidar com suas divergências internas quanto aos
instrumentos e formalizações da lei, viu-se na tarefa de tentar coordenar e difundir, em uma
única proposta, os fundamentos do próprio grupo que contava com forte representação
governamental e das instâncias externas.
Uma das maiores divergências no interior do grupo trabalho sobre o Estatuto
vinculava-se sobre os instrumentos a serem considerados prioritários para a execução da
reforma agrária. Para o coordenador do grupo e representante do IPES/Rio, Paulo de Assis
Ribeiro, que contava com o apoio de Roberto Campos, a tributação deveria figurar na lei
como o principal instrumento da reforma, que esta não implicaria em um processo
redistributivo indiscriminado. Sob seu ponto de vista, o fato de se eleger a desapropriação
como instrumento prioritário, poderia ser interpretado enquanto uma tentativa do governo
em promover a reforma agrária de cunho confiscatório, levando-se em conta as críticas dos
anti-reformistas na imprensa, que acusavam a iniciativa do governo de atentado ao direito
de propriedade. Além disso, defendia a tributação como meio eficaz para induzir o uso
produtivo da terra ou seu parcelamento forçado pela inviabilidade de manutenção das
propriedades mantidas com fins meramente especulativos.
259
258
BRUNO, R. Estatuto da Terra: entre a Conciliação e o Confronto. op. cit. p.10.
259
SILVA, J. G. A Reforma Agrária no Brasil: Frustração Camponesa ou Instrumento de
Desenvolvimento?, op. cit. p.p.182/189.
129
129
Por outro lado, o grupo de São Paulo reagiu de forma incisiva rejeitando a
tributação como instrumento preferencial de reforma agrária. Para este, a tributação, se bem
empregada, funcionaria como um dispositivo importante de retaliação à formação de novos
latifúndios e arrecadação de recursos, mas seria inócuo quando empregado como único
instrumento gerador de oferta de terras para o assentamento dos trabalhadores rurais,
tornando o processo moroso e atravancado. Isso porque a desapropriação apresentava-se
como um processo mais ágil, que para sua efetivação bastava a comprovação de
improdutividade somada a extensão da mesma, que poderia vir acompanhado ou não de
comprovação de grilagem e agravamento de conflitos agrários.
260
Para o grupo de São Paulo, a tributação, ao contrário, representava um processo
mais lento por estar subordinada à concretização de uma série de etapas burocráticas, sejam
elas a definição da alíquota a ser cobrada - motivo de uma intensa queda de braço entre
governo e proprietários rurais, a bancada ruralista e as instituições de classe -, o
enquadramento das propriedades nas modalidades a serem constituídas e a definição dos
módulos regionais aos quais tais modalidades estariam submetidas. Por fim, argumentavam
que para implantar o imposto progressivo e regressivo haveria a necessidade de se promover
um extenso e demorado trabalho de cadastramento das propriedades, colocando a
desapropriação em modo de espera” até que se completasse o ajustamento proveniente da
aplicação dos dispositivos acima citados. Com isso, abrir-se-ia umprazo de carência” para
que os proprietários adeqüassem suas propriedades aos novos parâmetros, o que reduziria a
possibilidade de utilização do dispositivo.
As críticas realizadas por José Gomes da Silva, quanto às diretrizes e o
desvirtuamento de atuação do recém criado Instituto Brasileiro de Reforma Agrária - órgão
responsável pela execução da reforma agrária no país apontavam para a importância da
questão do tributo neste órgão, era indicativo da descrença em torno da tributação de terras
como elemento principal de reforma, segundo o autor,
Num país onde não existe nenhuma tradição gloriosa como contribuinte,
mormente no setor agrícola (onde a cobrança de impostos tem sido feita
sempre com grande parcimônia e discrição), os teóricos do IBRA
decidem inventar a falácia da tributação como instrumento para conseguir
uma mudança social da magnitude e profundidade de uma reforma
agrária. (...) A tributação com boa vontade pode ser considerada um
instrumento auxiliar de reforma agrária e exatamente com essa dimensão
foi inserida no título próprio do Estatuto da Terra. Jamais poderá ser
tomada como reforma em si, ou como instrumental de reforma, como
inscreviam os dirigentes do IBRA. (...) A desapropriação por interesse
260
Idem.
130
130
social é o instrumento destinado a criar novos proprietários, dentro de
projetos organicamente elaborados e convenientemente implementados.
É, por assim dizer, o instrumento ‘curativo’ da nossa combalida estrutura
agrária, aparecendo a tributação como simples medida ‘preventiva’,
destinada a impedir a reaglutinação do latifúndio que fosse fracionado
pela desapropriação.
261
Carlos Lorena, outro integrante do GRET, apontava suas críticas na mesma
direção de José Gomes da Silva, salientando que
Um sistema de lançamento desse imposto que visava o grande
proprietário a produzir ou a dividir a sua propriedade. Isso nós o
acreditávamos de jeito nenhum. Não que fosse fazer o menor efeito nas
zonas habitadas do Brasil. No Nordeste, São Paulo Rio Grande do Sul,
Minas, Bahia, não teria efeito nenhum. Nunca passou pela nossa cabeça
que isso fosse fazer reforma agrária nesses estados. O que se pensava e se
tivesse sido executado rigorosamente o Estatuto nessa questão do imposto
territorial teria funcionado, era impedir a formação de maiores latifúndios
nas áreas pioneiras, nas áreas de ocupação. Nós queríamos que essa
ocupação fosse feita racionalmente. E com o jeito que o imposto
territorial estava lançado no Estatuto da Terra se ele tivesse sido
efetivamente cobrado, não teriam se formado esses enormes latifúndios
que os incentivos fiscais vieram a criar.
262
Das divergências em torno da questão da tributação, abriu-se um impasse quanto
ao enquadramento conceitual dela no Estatuto da Terra. Era uma questão crucial, pois desde
o princípio, segundo Gomes da Silva, a estrutura do que a viria a ser definido como a Lei n.º
4504 de 30 de novembro de 64,
Afora as considerações de praxe relativas às disposições preliminares,
gerais e transitórias, repousa em dois grandes títulos: um relativo a
Reforma Agrária, destinado a criação de uma vasta massa de pequenos
proprietários rurais através da mudança do regime de posse e uso da terra;
e outro denominado Política de Desenvolvimento Rural, formado por um
conjunto de medidas dirigidas aos proprietários, seja os existentes, seja
os parceleiros beneficiários da ação da reforma agrária.
De acordo com seus argumentos, a alocação do dispositivo da tributação no
Título II da lei referente à Reforma Agrária causaria o desvirtuamento dos propósitos a que
se destinava a lei, perpetuando um caráter secundário à desapropriação no Estatuto.
Entendida como uma lei auxiliar, a tributação, para o grupo de São Paulo, deveria figurar no
Título III, referente à política de desenvolvimento rural, ao contrário das ponderações do
coordenador do grupo, Paulo de Assis Ribeiro. Em resumo, a disputa no interior do GRET,
quanto a alocação do dispositivo da tributação, passava pela disputa em torno das
261
SILVA, J. G. A Reforma Agrária no Brasil: Frustração Camponesa ou Instrumento de
Desenvolvimento?, op. cit.p.187.
262
Entrevista de Carlos Lorena concedida a Regina Bruno, 06/07/84.
131
131
características a serem assumidas pela execução da reforma agrária, inseridas no interior do
Estatuto da Terra.
O impasse foi resolvido com a inserção da tributação da terra no Título referente
à Política de Desenvolvimento, ato que contou com a aprovação final de Castello Branco.
Isso era reivindicado pelo grupo de José Gomes da Silva, segundo o autor,
Essa foi uma das questões que ganhamos, porque a tributação não aparece
no título (referente à Reforma Agrária). Para dizer que tributação não é
reforma agrária nós não aceitávamos que fosse incluído no título da
reforma agrária. Era um título da Política de Desenvolvimento. E o Paulo
não. Queria divulgar como reforma agrária. Tanto que ele tentou aplicar
depois isso. Como não consta da lei, na prática acabou virando tributação.
O Castello preocupado com milhões de coisas que aconteciam no
governo, mesmo nós não tivemos cacife para reparar isso. o Castelo
passou a ter o Costa e Silva na garupa e começou todo o tipo de
coisa.
263
A alteração ressaltada por José Gomes da Silva é perceptível quando se compara
a versão preliminar do Estatuto da Terra e a versão final da lei submetida à apreciação no
Congresso. Pelo anteprojeto, a questão da tributação aparecia no Título II referente à
Reforma Agrária, mais precisamente no Capítulo II que balizava os princípios norteadores
ao acesso à propriedade da terra. De acordo com o artigo 21 do anteprojeto do Estatuto,
O Poder Público, para efeito de facultar o acesso à propriedade da terra,
além das providências, diretas ou indiretas, que objetivem criar ou
melhorar, as condições rurais, utilizar-se-á dos seguintes meios:
I- Tributação progressiva;
II - Desapropriação por interesse social;
III- Colonização;
IV- Arrecadação dos bens vagos;
V- Recebimento de terras por doação ou permuta;
VI- Aquisição de terras por contratos de compra e venda.
264
Na versão final, a tributação foi retirada do Título II, e a desapropriação por
interesse social passou a encabeçar os meios pelos quais seria possível viabilizar o acesso a
terra. Com isso, no artigo 17 do Capítulo I, referente aos meios de acesso a propriedade
rural, encontrava-se a seguinte redação:
O acesso à propriedade rural será promovido mediante a distribuição ou a
redistribuição de terras, pela execução de qualquer das seguintes medidas:
a) desapropriação por interesse social;
b) doação;
c) compra e venda;
263
Entrevista com José Gomes da Silva , concedida a Regina Bruno, 14/08/1984.
264
Anteprojeto do Estatuto da Terra. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
Caixa 63, 1964i.
132
132
d) arrecadação dos bens vagos;
e) herança e legado.
265
Outra reivindicação do grupo de São Paulo que contou com o apoio de Castello
Branco, dizia respeito à criação de órgãos diferenciados para gerir a aplicação do Estatuto
da Terra. Em consonância com o argumento de que reforma agrária e política de
desenvolvimento agrícola eram processos diferenciados, mas pensados dentro de uma lógica
que primava pela complementaridade e execução em conjunto, optou-se pela criação de dois
órgãos, cada qual com uma função determinada. A execução da reforma agrária ficou a
cargo do citado Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e instituiu-se o Instituto
Nacional de Desenvolvimento Agrícola (INDA), para a aplicação da política agrária. A
separação em dois órgãos distintos, com funções claramente definidas, objetivava impedir,
segundo o grupo de São Paulo, que determinadas ações (desapropriação, colonização,
regularização de terras de um lado e política agrícola de outro) fossem priorizadas em
detrimento de outras.
266
A divisão, neste caso, também atendia ao cumprimento da reivindicação
governamental centrada na expressão reforma agrária quimicamente pura”, tantas vezes
proferida por Castello, ora significando a tentativa de estruturar uma proposta de reforma
265
Estatuto da Terra, Lei 4504 de 30 de novembro de 1964.
266
Mensagem Presidencial n.º 33. op. cit. De acordo com o especificado no anteprojeto do Estatuto e
ratificado pelo projeto final, estabeleciam-se três órgãos específicos para a execução da reforma agrária: o
IBRA; as Delegacias Regionais do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária e as Comissões Agrárias, essas
últimas subordinadas ao IBRA. O Estatuto da Terra em seu artigo 41 e 42 especificava as atribuições
concernentes às Delegacias e as Comissões: “Art. 41 As Delegacias Regionais do Instituto Brasileiro de
Reforma Agrária, cada qual dirigida por um Delegado Regional, nomeado pelo Presidente do Instituto
Brasileiro de Agrária dentre técnicos de comprovada experiência em problemas agrários e reconhecida
idoneidade, são órgãos executores da reforma nas regiões do País, com áreas de jurisdição, competência e
funções que serão fixadas na regulamentação da lei, compreendendo a elaboração do cadastro, classificação
das terras, formas e uso atual e potencial da propriedade, preparo das propostas de desapropriação e seleção
dos candidatos à aquisição das parcelas.
Parágrafo único Dentro de cento e oitenta dias, após a publicação do decreto que a criar, a Delegacia
Regional apresentará ao Presidente do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária o Plano Regional de Reforma
Agrária, na forma prevista nesta lei.
Art. 42 – A Comissão Agrária constituída de um representante do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, que
a presidirá, de três representantes dos trabalhadores rurais, eleitos ou indicados pelos órgãos de classe
respectivos, de três representantes dos proprietários rurais eleitos ou indicados pelos órgãos de classe um
representante categorizado de entidade pública vinculada à agricultura e um representante dos
estabelecimentos de ensino agrícola é órgão competente para:
I – instruir e encaminhar os pedidos de aquisição e de desapropriação de terra;
II – manifestar-se sobre a lista de candidatos selecionados para a adjudicação de lotes;
III - oferecer sugestões à Delegacia Regional na elaboração e execução dos programas regionais de Reforma
Agrária;
IV acompanhar, até sua implantação, os programas de reformas nas áreas escolhidas mantendo a Delegacia
Regional informada sobre o andamento dos trabalhos.
§ - A Comissão Agrária será constituída quando estiver definida a área prioritária regional de reforma
agrária e terá vigência até a implantação dos respectivos projetos.” Estatuto da Terra, op. cit. p.p.23/24.
133
133
sem a chamada interferência externa, ora pretendendo que, dentro da complexa engrenagem
originada com o Estatuto, os órgãos responsáveis por sua execução mantivessem suas
especificidades próprias. Demarcando o território de atuação de cada órgão, o governo
procurava evidenciar, publicamente, a importância atribuída à execução das duas políticas
para atingir as metas propostas para o campo brasileiro
267
e assim reafirmar as fronteiras que
separavam a reforma agrária da política agrícola, ressaltando-as como medidas distintas,
porém complementares.
268
O fortalecimento da proposta de criação de dois órgãos ganhou impulso no
decorrer dos trabalhos de estruturação do Estatuto da Terra, quando se tornaram mais
evidentes as críticas à lei, embasadas no argumento de que bastava a efetivação de uma
política agrícola para “revolucionar o campo”. Por vezes, a reforma agrária era entendida
apenas como aplicação da política agrícola e, neste caso, negava-se não somente os aspectos
mais intervencionistas da lei como a própria lei.
O peso das críticas que negavam a reforma agrária em prol de uma política
agrícola pode ser sentido no documento intitulado justificativa de anteprojeto de lei de
reforma agrária”, em que o GRET justificava a necessidade da reforma agrária no país, no
início dos trabalhos de organização do Estatuto. Entre notas explicativas, definições de
conceitos e avaliação da estrutura agrária, o documento salientava a importância de se
organizar um órgão autárquico, com personalidade jurídica e autonomia financeira,
diretamente subordinada ao Conselho de Ministros e dirigido por um Superintendente com
a assistência de um Conselho Consultivo e a base em uma Secretaria Executiva, ficando
sujeito ao controle de um Conselho Fiscal.
269
Conjuntamente á SUPRAN (Superintendência Nacional de Reforma Agrária),
como inicialmente foi chamado o órgão responsável pelo planejamento e execução da
reforma agrária, o documento defendia a implantação das instâncias regionais da SUPRAN,
denominadas: Superintendências Regionais da Reforma Agrária (SUPRAR), através das
quais se descentraliza a execução da Reforma, dirigida cada uma por um Superintendente
Regional, contando com Secretaria Executiva e órgãos zonais e locais, e tendo junto a elas
representantes dos Estados compreendidos na área onde a SUPRAR esteja operando.
270
267
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p.693.
268
Idem.
269
Justificativa de Anteprojeto de Lei de Reforma Agrária. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo
Nacional. Rio de Janeiro. Caixa 53. Este documento possui duas impressões arquivadas no Arquivo Paulo de
Assis Ribeiro, uma resumida e outra na integra, por isso, aparecem no texto com numerações diferentes,
embora com o mesmo título.
270
Idem.
134
134
Além da SUPRAN e seus desdobramentos regionais, o documento defendia, ainda, a
formação de Comissões Agrárias, que deveriam ser submetidas às Superintendências
Regionais, constituídas por representantes dos proprietários das áreas atingidas por
desapropriações, de órgãos da classe de trabalhadores rurais e por especialistas na matéria.
Se por um lado o documento firmava a importância de um órgão específico para
lidar com a questão da reforma agrária, esmiuçando inclusive suas atribuições, por outro
nenhuma referência foi realizada quanto à política agrícola.
Os primeiros registros que versavam sobre a criação dos dois órgãos não
somente coincidem com as críticas dos proprietários rurais que acusavam o governo de
colocar a questão da reforma agrária “comunizante” em primeiro plano, em detrimento de
uma política agrícola, mas também pela não aceitação da nomenclatura do órgão que,
segundo alegação de seus aliados políticos diretamente interessados nos desdobramentos da
reforma agrária, a escolha da sigla remetia a Superintendência de Reforma Agrária
(SUPRA), criada no governo Goulart, o que reforçava as afirmações de continuidade da
questão agrária do período anterior, num contexto onde a intenção era justamente promover
a ruptura com qualquer temática que remetesse ao pré-64.
A despeito das discordâncias internas do grupo, o trabalho em conjunto,
incluindo a presença do próprio Castello e de Roberto Campos, foi possível, segundo
Bruno, porque havia consenso em torno de algumas questões básicas, (...) o que
possibilitou a elaboração dos princípios e preceitos da reforma agrária
271
, na primeira fase
de elaboração do Estatuto da Terra.
Cabe ressaltar sob este aspecto, os princípios norteadores referentes à
necessidade da reforma agrária, fundamentados no documento Justificativa de anteprojeto
de lei de Reforma Agrária”, produzido pelo grupo como ponto de partida para condução dos
trabalhos de elaboração do Estatuto. Por este documento,
A solução de tais problemas, notadamente o do acesso à propriedade da
terra por aqueles que a cultivam ou têm capacidade para cultivá-la, vai
sendo gradativamente entendida como de interesse não apenas para as
populações que diretamente os sofrem mas como imperativo político
destinado, ao mesmo tempo, a exercer profunda influência no
desenvolvimento socioeconômico. Em outros termos, adquire-se a
consciência de que a Reforma Agrária é condição essencial na luta contra
o subdesenvolvimento. Neste sentido cumpre entendê-la não apenas como
distribuição, redistribuição ou subdivisão da propriedade, como um
processo amplo em que sua reestruturação e as medidas que promovam o
aumento da produtividade, proporcionando melhor padrão de vida àquelas
271
BRUNO, R. O Estatuto da Terra: entre a Conciliação e o Confronto, op. cit. p.07.
135
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populações, resultem de um esforço comum, cujos resultados virão, por
sua vez, a beneficiar toda a estrutura econômica do país.
272
Sem dúvida, a preocupação partia do princípio de que a agricultura não se
encontrava desenvolvida o suficiente para promover o devido sincronismo com o setor
industrial. De acordo com suas premissas,
Nenhum desenvolvimento industrial se processa de maneira sadia e
segura sem base numa agricultura igualmente progressista que lhe
proporcione matéria-prima, contribua para o bem estar geral mediante a
abundância de alimentos e constitua mercado interno para as
manufaturas.
273
As razões para o descompasso entre campo e cidade, segundo o documento,
resultava das distorções da estrutura agrária do país. Mas seguindo a lógica de pensamento
do grupo, da tendência concentracionista e desigual da estrutura agrária brasileira, emergia
também outros problemas, a saber:
A ínfima percentagem de área cultivada por pessoa, a alta percentagem do
analfabetismo no meio rural e as condições miseráveis de habitação,
decorre uma produtividade ínfima responsável pela baixíssima renda per
capita e pelas repercussões demográficas e sociais de mortalidade infantil
e demais índices de padrão de vida.
274
Portanto, se um dos objetivos a serem atingidos centrava-se na solução dos
desníveis entre campo e cidade, a meta, para o grupo, somente seria atingida se antes fossem
removidos os entraves que impediam o pleno desenvolvimento do campo. Sendo assim,
destacava o documento que,
foi reconhecido, assim, que a modificação da estrutura agrária é
essencial para atenuar os graves desníveis entre a cidade e o campo, e
corrigir a contradição entre o crescimento das forças produtivas em
particular nas indústrias e nos serviços básicos e o atraso que impera na
agricultura. Medidas adequadas de reforma da situação agrária permitirão
superar aquele atraso, conduzirão ao aumento e melhoria da distribuição
da renda agrícola, aumento da demanda de bens de consumo, formação de
poupanças e conseqüente elevação na procura de bens de capital.
275
Afora as motivações econômicas e as discordâncias internas, o grupo estabelecia
uma relação político-social com a questão da execução da reforma agrária, plenamente
sintonizada com os pressupostos governamentais. Isso não significava que a questão política
272
Justificativa de Anteprojeto de Lei de Reforma Agrária. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo
Nacional, Rio de Janeiro. Caixa 57, 1964e. Versão completa do documento sem os cortes resultantes de sua
revisão.
273
Idem.
274
Idem.
275
Idem.
136
136
representasse um fim em si mesmo, como invariavelmente é estipulado pela bibliografia que
trabalha com a temática para explicar a motivação do governo em levar adiante o projeto do
Estatuto da Terra. Para o grupo, não somente as condicionantes políticas, como também as
sociais, encontravam-se “diluídas” no aspecto geral da proposta, ou seja, apesar da
motivação ser claramente econômica, a questão política e a social aparecem enquanto
objetivos a serem atingidos com o processo contínuo de aplicação da proposta. De acordo
com o documento fundamentos da reforma agrária, uma das finalidades da reforma,
posicionamento, aliás, partilhado por vários elementos do grupo, seria
(...) facilitar, por todos os meios, o acesso do maior número de
trabalhadores à propriedade da terra, encarada como fator primordial de
democratização e de desenvolvimento humano no campo. Não é pela
expansão do salariado ou do arrendamento que se difundem na massa
trabalhadora as aptidões necessárias a um processo contínuo, estável e
democrático de desenvolvimento. É pela propriedade da terra que se
formam qualidades básicas de previsão e capacidade administrativas, bem
como se dissemina uma forte motivação de melhoria educacional e de
progresso econômico.
276
Partindo do pressuposto de que a proposta de reforma agrária, segundo seus
formuladores, deveria ter contornos claramente capitalistas, obviamente, não se tratava de
promover a distribuição indiscriminada de terras, extinguir a classe assalariada do campo ou
determinar o fim das relações de parceria e arrendamento. Para Campos e Castello, tratava-
se de combater a propriedade improdutiva, caracterizada como o “parasita” da estrutura
fundiária, propositalmente mantida enquanto reserva de valor. Por isso não se modernizava,
não produzia e não empregava.
O minifúndio era outro grande problema a ser resolvido, por motivos
diametralmente opostos à grande propriedade improdutiva, que a razão de sua baixa
produtividade encontrava-se diretamente ligada à sua pequena dimensão, insuficiente para
que o proprietário conseguisse extrair renda suficiente para manutenção familiar e promover
investimentos na propriedade. Neste sentido, tanto a grande propriedade improdutiva quanto
o minifúndio jogavam contra os objetivos do governo. Representando os dois lados de uma
mesma moeda, eram acusados de bloquear o aumento da produtividade, a absorção de
técnicas modernas de produção e impedir a formação da classe média rural, dificultando, no
entender do grupo e do governo, a expansão do mercado consumidor.
276
Fundamentos do Processo de Reforma Agrária. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio
de Janeiro. Caixa 129.
137
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No que se refere ao arrendamento e às parcerias, a meta era promover a
humanização das relações estabelecidas,
277
com a formulação de uma legislação
específica, evitando as distorções e a exploração comuns em várias regiões do país, entre
contratantes e contratados. Em um segundo momento, após o levantamento cadastral
considerado imprescindível para o conhecimento mais apurado da realidade agrária do país,
a intenção era privilegiar os arrendatários e parceiros como possíveis beneficiários da
reforma, em função da experiência com o trato da terra. Assim como a regularização das
terras dos posseiros que estivessem enquadrados nas especificidades do Estatuto.
278
Para o grupo, a estrutura agrária brasileira era problemática sob vários aspectos,
desestimulava a produtividade e estimulava os conflitos agrários. Da conjugação desses
fatores, ainda resultavam as péssimas condições de vida de parte dos trabalhadores rurais.
Partia-se do princípio de que, embora a atuação dos movimentos sociais
organizados tivesse sido praticamente anulada por ocasião do golpe, os conflitos agrários
persistiam, ainda que de forma isolada em várias regiões do país. A situação considerada
“controlada” sob o ponto de vista político não deixou de causar impactos negativos sobre o
setor produtivo, acentuando o clima de permanente intranqüilidade e instabilidade, e
contribuindo para a reafirmação de umperigoso círculo vicioso”, terreno fértil, segundo o
governo, para o fortalecimento e desenvolvimento das idéias dos ideais socialistas.
Assim, para o governo e o grupo de trabalho, a estrutura agrária alimentava
diversos problemas que se manifestavam em cadeia, ou seja, problemas de ordem
econômica, social e política. A ruptura desse processo implicava na adoção de medidas que
forçassem os proprietários de terras ociosas a produzir, possibilitando o alargamento do
setor produtivo e facilitando o acesso dos trabalhadores a terra.
A defesa do acesso a terra pode ser resumida na frase utilizada por Roberto
Campos no livro A Lanterna na Popa: o homem que possui sua própria terra torna-se
melhor defensor de sua própria liberdade.
279
Evidentemente, essa frase simbolizava o
pensamento do governo e do grupo quanto ao aspecto político da reforma, onde havia: a
crença de que facilitando o acesso a terra e dando condições para que os futuros
proprietários produzissem e aumentassem sua renda per capita, conseguiriam barrar a
assimilação dos ideais de esquerda no meio rural.
277
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p.684.
278
De fato tanto o pré-projeto do Estatuto quanto sua versão final no capítulo IV, seção I, II, III e IV estão
dispostos o regulamento quanto a utilização temporária da terra, seja na forma de arrendamento ou parceria.
Na seção IV estabelecem-se as regras para ocupação e domínio de posse das terras públicas.
279
CAMPOS, R. Lanterna na Popa, op. cit. p.686.
138
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A execução da reforma agrária era entendida, então, como um meio de fortalecer
o princípio da propriedade privada e não o contrário. Somava-se ainda a esse preceito, a
idéia de que a concessão de terra ou sua posse definitiva operasse favoravelmente no que se
refere à intensificação das atividades agrícolas, atuando como princípio ativo rumo à adoção
de técnicas modernas de produção.
2.5 - O ESTATUTO DA TERRA E O PROCESSO DE DEFINIÇÃO DOS SEUS
CONCEITOS ESSENCIAIS NO ÂMBITO DO GRET
As contendas foram comuns e as divergências, otimizadas pela multiplicidade de
conceitos resultantes das experiências políticas e ideológicas de cada integrante com relação
à temática, por vezes ameaçaram tanto o avanço do projeto quanto a continuidade do
próprio grupo. No entanto, a construção minuciosa dos conceitos e diretrizes do projeto,
valeu-se da constatação de seus membros quanto à importância de uma lei que regesse,
tanto a questão da reforma agrária quanto da propriedade da terra e o seu uso. Segundo José
Gomes da Silva,
No transcorrer deste processo, a polarização ficou muito clara, a ponto de
a gente pensar, em determinado momento, em sair. Mas, nós examinamos
a situação e resolvemos ficar. O grupo achou que seria melhor a gente
engolir o sapo. Seria um sacrifício muito grande, calar a o final para
tentar dar essa contribuição de campo que necessitava principalmente do
Lorena, que trabalhara na revisão Agrária em São Paulo, e tinha
participado dos projetos de campo e sabia pelo menos como não fazer,
como evitar os erros que tinham sido cometidos.
280
É preciso destacar o papel assumido pelo grupo de São Paulo, claramente
definido na fala acima citada. O grupo, a partir dos desentendimentos relativos à questão da
tributação, passaria a exercer a função de “contrapeso” e de contestação frente às decisões e
definições, que a seu ver, poderiam comprometer a exeqüibilidade da proposta. Além desse
papel fiscalizador, o grupo, representado por José Gomes da Silva, seria companhia
freqüente de Roberto Campos nos debates organizados com as várias organizações de classe
e com os partidos políticos no Congresso, bem como nas audiências com o Presidente, para
explicar e muitas vezes tentar convencê-lo da inclusão de temas que, apesar de polêmicos e
impopulares sob a ótica dos proprietários de terras, eram de extrema importância para a
formalização do Estatuto da Terra.
281
280
Entrevista de José Gomes da Silva. In: Estudos Sociedade e Agricultura, op. cit. p.06.
281
De acordo com depoimentos de José Gomes da Silva e Lorena, Castello Branco cultivava os debates e
direcionava seu apoio, geralmente, após ouvir os argumentos das diversas partes discordantes. Por ocasião da
139
139
Se a defesa da reforma agrária constituiu-se na amálgama entre os participantes
do grupo, contribuindo para a continuidade dos trabalhos, não podemos deixar de destacar o
papel desempenhado por Castello Branco nesse período. O acompanhamento em todas as
fases de construção da proposta permitiu que interviesse quando as discordâncias
alcançavam o grau do impasse, atuando como “voto de minerva”. Isso não quer dizer,
obviamente, que suas decisões em apoiar determinadas ações em detrimento de outras
fossem, fundamentalmente, imparciais. No entanto, ao abrir-se para o debate com elementos
que defendiam visões diferenciadas sobre o processo, criou um “elo de confiança” que
auxiliou na manutenção do GRET. Ou seja, o grupo de São Paulo, mesmo ciente da
simpatia do Presidente para com as diretrizes formuladas pelos remanescentes do IPES/Rio
intensa pressão exercida pela classe patronal paulista, Castello Branco, comprometeu-se a ouvir as
reivindicações dos representantes de São Paulo sobre o Estatuto da Terra antes de submetê-lo a avaliação no
Congresso Nacional. Segundo Gomes da Silva, estavam presentes nesta reunião ele próprio como assessor de
Roberto Campos e Paulo de Assis Ribeiro, também assessor de Campos, defendendo os interesses da classe
patronal paulista: Saulo de Almeida Prado Presidente da Sociedade Rural Brasileira, Plínio de Correia de
Oliveira, Delfim Neto, entre outros. Na reunião o principal ponto discutido referia-se a posição da classe
patronal, pró-colonização, mas frontalmente a uma lei que regulamentasse a questão da reforma agrária.
Segundo Gomes da Silva, os proprietários argumentavam que “(...) não precisaria fazer a reforma porque a
colonização resolveria tudo”. A proposta apresentada pelos paulistas contava com o aval do Delfim Neto,
inclusive a presença do Delfim nessa reunião deve-se a sua postura contrária a reforma agrária, manifestada
claramente nos governos posteriores a Castello, quando o mesmo tornou-se ministro. Gomes da Silva ressalta
que: “Eles pegaram o Delfim como assessor, mas na reunião com os representantes de São Paulo ele quase não
falou nada. O pessoal de São Paulo era muito arrogante, muito agressivo, e logo no começo da reunião eles
partiram para o ‘pau’ em cima do Paulo e de mim, que éramos assessores do Roberto Campos. Essa reunião
estava comprometida porque eles estavam vendo ali a figura da CEPAL e um discípulo do prof. Carvalho
Pinto. Se dependesse dessa reunião, a gente teria perdido feio. Depois da reunião o Castello Branco então me
chamou e disse que estava resolvido ficar com a gente (...)” e para ilustrar sua decisão fez a seguinte
declaração: “contou Castello que: - isso é a mesma coisa que no Ceará. No Ceará quando falam bem do
caixeiro, quando a freguesa fala bem do caixeiro é porque o caixeiro não lhe serve. De modo que vocês são
bons caixeiros, porque vieram falar mal de vocês.” Entrevista com José Gomes da Silva, cedida a Regina
Bruno em 14/08/84.
Em outros momentos, no que se refere a estruturação do Estatuto, na qual participou ativamente, lançava
questionamentos, sobre supostas brechas deixadas pelo grupo, para que estes procurassem saídas ou então
argumentos adequados para a defesa de determinadas teses. Na ocasião da visita de De Goulle ao Brasil,
Castello Branco cedeu o Palácio das Laranjeiras no Rio e hospedou-se no Copacabana Palace com todo o
grupo de estudos sobre o Estatuto da Terra. De acordo com Gomes da Silva, “ele disse que o grupo não se
dissolveria, e que continuaríamos a trabalhar. ‘Peguem um apartamento do meu lado, qualquer coisa estou ali’.
Diversas vezes ele saiu do apartamento dele e foi ao nosso discutir um caso qualquer. Um dia ele disse: ‘Está
bem, vamos desapropriar os latifúndios, mas e meu compadre do Ceará?’ Mas, presidente, que história é essa
de compadre do Ceará?, perguntamos. O compadre do Ceará era uma figura que ele imaginou, uma pessoa
tem um latifúndio mas quer transformá-lo em empresa. No Estatuto da Terra havia quatro tipos de módulos: o
latifúndio por dimensão, latifúndio por exploração, a empresa e o minifúndio. A empresa, que resultou, hoje,
na figura da propriedade produtiva, está fora da desapropriação. O compadre queria recuperar o latifúndio
dele, o que ele poderia fazer? Era um problema novo. O cara quer ser bonzinho, quer se converter, o jeito é dar
um pedaço, uma parte. No Estatuto da Terra tem um artigo para o cara que quer fazer isso”. Entrevista com
José Gomes da Silva. In: Fundação Perseu Abramo, 21, maio/julho de 1993. O problema novo colocado
por Castello, visava responder as acusações de inflexibilidade da proposta, o que poderia dificultar a
aprovação do projeto no Congresso. Além disso, a reflexão procurava sinalizar que o projeto não tinha uma
base simplesmente confiscatória, mas produtivista, ou seja, seriam verdadeiramente punidos os que
mantivessem suas propriedades com caráter especulativo ou a margem da lei que passaria vigorar com sua
aprovação.
140
140
e das limitações políticas existentes, encontrou na flexibilidade do Presidente, baseada no
poder de argumentação das partes, uma importante brecha para a introdução de algumas
“(...) inovações no tocante às Cooperativas Integrais de Reforma Agrária, dispositivos
sobre terras públicas, medidas de proteção à economia rural e direito agrário,
282
além da
questão da tributação e dos órgãos de gerenciamento da reforma agrária e da política
agrícola.
A essa fase conturbada de “ajustamento” no interior do grupo, seguiu-se o que
poderíamos denominar de fase, marcada pela tarefa de dar forma à lei demarcando seus
conceitos norteadores e os instrumentos que a colocariam em andamento.
Desde a primeira versão, o conceito chave referia-se ao de Reforma Agrária, até
porque derivaria desta a definição dos demais conceitos e instrumentos do Estatuto da Terra.
Sendo assim, no primeiro rascunho do projeto, a Reforma Agrária aparecia como um
conjunto de providências que visa a ampliação da classe média rural a partir da
modificação do regime de posse e uso.
283
Em sua versão final a Reforma Agrária adquire
uma caracterização mais robusta, em que se ressaltava a a melhor distribuição de terras,
mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de
justiça social e ao aumento da produtividade.
284
Mas como atender a tal postulado e, ao
mesmo tempo, não ferir a questão do direito de propriedade? Como modificar o regime de
posse e uso da terra, promovendo uma melhor distribuição, sem ferir os preceitos
estipulados pelo governo? Vale lembrar que para este, a reforma não deveria ser nem
socialista nem coletivista, e sim capitalista com forte ênfase no aumento da produtividade,
proporcionado pela oferta de terras aos trabalhadores interessados juntamente com
benefícios creditícios para incentivar a modernização do setor diminuindo,
concomitantemente, com o aumento da renda, a miséria no campo. Além de forçar os
proprietários de terras ociosas a produzir ou parcelar a propriedade, aumentando, dessa
forma, os níveis de oferta de empregos e a diminuição da taxa do êxodo rural.
Estava fora de cogitação o estabelecimento de um limite máximo para o tamanho
da propriedade a ser aplicado em todo o país, sob pena de desestabilizar todo o setor
produtivo, além das implicações políticas que tornariam impossível sua aprovação no
282
SILVA, J. G. A Reforma Agrária no Brasil: Frustração Camponesa ou Instrumento de
Desenvolvimento?, op. cit. p.122.
283
Anteprojeto do Estatuto da Terra. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
Caixa 63, 1964 i.
284
Estatuto da Terra, Lei 4504 de 30 de novembro de 1964.
141
141
Congresso, já que o estabelecimento de um limite máximo para as propriedades era
entendido com uma medida confiscatória.
No tocante ao direito de propriedade, pedra angular das discussões sobre a
reforma agrária, desde o pré-64, Paulo de Assis Ribeiro no documento O processo
Brasileiro de Reforma Agrária destacava a importância de se atrelar o direito de
propriedade ao uso que se fazia da mesma, no sentido do cumprimento ou não de sua função
social, pois segundo esse,
A constituição de 1946 fixou, no artigo 147 a norma de que o uso da
propriedade da terra será condicionada ao bem-estar social, e que a lei
poderá promover a justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade para todos, desde que observado o preceito do parágrafo 16
do art. 141, que garantia o direito de propriedade, salvo o caso de
desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou interesse social,
mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Antes e depois de
promulgada a Constituição, cogitou-se da elaboração da Lei que deveria
tornar efetiva aquela norma, ampla no art.147 e profundamente restritiva
do parágrafo 16 do art. 141. Ampla, que, condicionado ao bem –estar
social, o uso da propriedade a ninguém seria lícito mantê-la em sua posse
se não estivesse usando com observância de sua função social. Assim, nos
casos de inobservância dessa norma seria lógico admitir-se a distinção de
garantia do direito de propriedade entre os que se enquadrassem na norma
do art.147 e os que a violassem. Restringiu-se por isso mesmo, a
indenização em dinheiro, sem qualquer condicionamento do uso da
propriedade dentro de sua função social.
285
Objetivava-se manter a amplitude da lei que buscava garantir a igualdade de
oportunidade no quesito distribuição de terras, mas tentava-se disciplinar a “manutenção”
do direito de propriedade, mediante o cumprimento de determinados compromissos. Neste
caso, estabelecidos pelos fundamentos norteadores da “função social”, cujo principal
elemento é o trabalho, o cultivo da terra, no interesse do bem comum, como ensina a
tradição jurídica brasileira desde suas origens portuguesas
286
. No Estatuto da Terra, desde
sua primeira versão a questão da função social da propriedade adquire uma definição mais
ampla, fincando o balizamento na questão da produtividade e não somente no fator “cultivo
da terra”, incluindo, assim, qualquer atividade, desde que favorecesse o bem estar dos
envolvidos no processo de produção. Dessa forma, a propriedade cumpriria integralmente a
sua função social quando:
(...) favorece o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela
labutam, assim como de suas famílias; mantém níveis satisfatórios de
285
O Processo Brasileiro de Reforma Agrária. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de
Janeiro. Caixa 129, 1964 g. p.10.
286
Fundamentos do Processo de Reforma Agrária. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio
de Janeiro. Caixa 129, 1964. p.07.
142
142
produtividade; assegura a conservação dos recursos naturais e observa as
disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que
a possuem e a cultivam.
287
O condicionamento do direito de propriedade, bem como o seu uso na função
social era de extrema importância para colocar em andamento a engrenagem do Estatuto da
Terra, atendendo as prerrogativas dos seus idealizadores. Em teoria, a função social
justificava a desapropriação por interesse social e o pagamento das indenizações em títulos
da dívida pública, e foi justamente esse particular, segundo Paulo de Assis Ribeiro, que
polarizou e radicalizou o processo para a estruturação de uma Reforma Agrária no
Brasil”.
288
Cientes do risco político, enfatizado pela afirmação acima, a defesa de tal
princípio ligava-se ao fato de que a vinculação e a regularização do uso da terra ao
cumprimento de sua função social, poderia funcionar como um poderoso instrumento de
pressão junto aos proprietários que mantinham grandes extensões de terras ociosas, uma vez
que seu descumprimento, em tese, acarretaria a perda parcial ou total da área com
indenização de títulos resgatáveis em um prazo máximo de vinte anos e não mais a vista e
em dinheiro.
Ainda que o direito de propriedade se constitua inviolável, a forma como ele
estava sendo utilizado, ou melhor dizendo, a forma como as propriedades estavam sendo
exploradas, tornou-se para o primeiro governo militar, quase que uma questão deutilidade
pública,”
289
tendo em vista a política de reestruturação econômica do país que requereria um
desenvolvimento equilibrado entre o setor agrícola e o industrial.
290
Neste sentido, exigia-se
o comprometimento dos proprietários com esse projeto maior. Tal prerrogativa levou Paulo
de Assis Ribeiro a fazer a seguinte afirmação: quanto ao pagamento, em títulos das
indenizações devidas pelas desapropriações, sua necessidade decorria, como dissemos,
mais de uma razão moral do que de uma exigência de ordem financeira(...).”
291
É claro que
o fator financeiro contava, pois o pagamento das indenizações em títulos causaria um
impacto bem menor para os cofres públicos do que o pagamento em dinheiro,
292
no entanto,
287
Estatuto da Terra, lei 4504 de 30 de novembro de 1964.
288
O Processo Brasileiro de Reforma Agrária, op. cit.
289
A expressão destacada tem a função de explicitar que para o governo, a forma de exploração da
propriedade ultrapassava os limites da mesma, ou até mesmo do campo, recaindo de forma negativa ou não
sobre toda a sociedade.
290
CNBB. Pastoral da Terra: Posse e Conflitos. São Paulo: Edições Paulinas, 1976. p.79.
291
O Processo Brasileiro de Reforma Agrária, op. cit.
292
Devemos ressaltar que a intenção era que a reforma agrária fosse auto-financiada por meio dos recursos
provenientes da aplicação da tributação progressiva e regressiva.
143
143
a “razão moral” destinava a caracterizar a falta de comprometimento dos proprietários com
o processo de reestruturação econômica, política e social do país, justificando, nestes
termos, uma possível desapropriação.
O empenho em classificar as propriedades em consonância com os preceitos da
função social atendia um outro princípio, a saber, a preservação das propriedades
consideradas produtivas. Com isso, abria-se, uma brecha por onde se viabilizaria a
permanência das grandes propriedades utilizadas com observância de sua função social.
Vale lembrar que para o governo, o problema não se centrava na grande extensão da
propriedade, mas sim na sua improdutividade.
A rigor, a operacionalização da observância ou não da função social, a
desapropriação e indenização em títulos da dívida pública, trazia em seu bojo a retomada do
movimento pró-mudança constitucional. A revisão dos artigos da Constituição iniciou-se,
conjuntamente com a formação do GRET, em meados de abril de 1964, mas sua a
aprovação pelo Congresso somente aconteceu em 09 de novembro de 1964, com forte
reação dos contra-reformistas. De acordo com a Emenda Constitucional n.º10, a
Constituição de 1946, nos itens selecionados no texto, passaria a ter a seguinte redação:
Art. - § 16 do art. 141 da Constituição Federal passa a ter a seguinte
redação:
§ 16. É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação
por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante
prévia e justa indenização em dinheiro, com a exceção prevista no § 1º do
art. 147. Em caso de perigo eminente, como a guerra ou comoção
intestina, as autoridades competentes poderão usar a propriedade
particular, se assim o exigir o bem público. Ficando, todavia, assegurado
o direito à indenização ulterior.
Art. 5º Ao art. 147 da Constituição são acrescidos os parágrafos seguintes:
§ Para fins previstos neste artigo, a União poderá promover a
desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento de
prévia e justa indenização em títulos especiais da vida pública, com
cláusula de exata correção monetária, segundo índices fixados pelo
Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte
anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a
qualquer tempo, como meio de pagamento de até 50% do Imposto
Territorial Rural e como pagamento do preço de terras públicas.
§ A lei disporá sobre o volume anual ou periódico das emissões, bem
como sobre as características dos títulos, a taxa dos juros, o prazo e as
condições de resgate.
§ A desapropriação de que trata o § é de competência exclusiva da
União e limitar-se-à às áreas incluídas nas zonas prioritárias fixadas em
decreto do Poder Executivo, recaindo sobre propriedades rurais cuja
forma de exploração contrarie o disposto neste artigo, conforme for
definido em lei.
144
144
§ A indenização em títulos somente se fará quando se tratar de
latifúndio, como tal conceituado em lei, excetuadas as benfeitorias
necessárias e úteis, que serão sempre pagas em dinheiro,
§ Os planos que envolvem desapropriação para fins de reforma agrária
serão aprovados por decreto do Poder Executivo, e sua execução será de
competência de órgãos colegiados constituídos por brasileiros de notável
saber e idoneidade, nomeados pelo Presidente da República, depois de
aprovada a indicação pelo Senado Federal.
§ Nos casos de desapropriação, na forma do § do presente artigo, os
proprietários ficarão isentos dos impostos federais, estaduais e municipais
que incidam sobre a transferência da propriedade desapropriada.
293
Sobre a fase de elaboração do Estatuto, pesava, ainda, a concepção de que os
princípios a serem elaborados deveriam ter um alcance nacional, mas ao mesmo tempo
atender as diversidades regionais, ou seja, tanto o governo quanto o GRET
(...) desaconselhavam um sistema rígido e uniforme para a aplicação nas
diversas regiões e sub-regiões de uma mesma superfície territorial de oito
milhões de quilômetros quadrados onde se verifica, por sua vez, a
diversidade de clima, densidade demográfica, desenvolvimento,
distribuição da propriedade rural, formas de exploração (do ponto de vista
legal, técnico e de destinação agrícola e pastoril), de alfabetização e
estado sanitário.
294
Nesse sentido, é possível afirmar que todo o trabalho de elaboração do Estatuto
foi balizado para atender a essa perspectiva, que lhe conferiu um alto grau de complexidade
e burocratização, dificultando, posteriormente, sua operacionalização. Do atendimento à
diversidade regional, seguiu-se o engessamento da proposta.
Na ótica do grupo, para que a proposta alcançasse uma aplicação realista dentro
da diversidade de condições e estágios de desenvolvimento, tornava-se imprescindível a
realização do processo de zoneamento do país, visando delimitar regiões homogeneas
tanto do ponto de vista sócio econômico como da estrutura agrária do país”.
295
Previa-se,
então, com o zoneamento o enquadramento da situação agrária em quatro regiões:
-regiões ainda em curso de ocupação econômica em que se situam áreas
pioneiras carentes de programas próprios de desenvolvimento, de
povoamento e de colonização;
293
Emenda Constitucional n.º 10 de 09 de novembro de 1964. In: SILVA, J. G. A Reforma Agrária no
Brasil: Frustração Camponesa ou Instrumento de Desenvolvimento?, op. cit. p.144. Além dos dispositivos
elencados acima, a emenda constitucional transferia para a União a competência de fixar os critérios para
lançamento e cobrança da tributação e, ainda, disciplinava questões relacionadas à ocupação de terras
devolutas e públicas. Nestes casos, segundo Gomes da Silva, a emenda “aumentou para 100 hectares a
prioridade dos posseiros para a aquisição de terras devolutas, e reduziu a menos de 1/3 o limite para a
concessão de terras públicas, sem a autorização prévia do Congresso Federal. Finalmente, ampliou para 100
hectares o limite para o exercício de direito de usucapião pro labore”. Idem p. 144 e Jornal O Estado de São
Paulo, 04/10/1964.
294
Justificativa de Anteprojeto de lei de Reforma Agrária. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Rio de Janeiro.
Caixa 57, 1964. p.05.
295
O processo Brasileiro de Reforma Agrária, op. cit. p.13.
145
145
-regiões economicamente ocupadas, porém, onde predomina uma
economia de subsistência, carecendo, assim, de uma assistência adequada
e transformação de sua estrutura agrária para sua incorporação à
economia de mercado;
-regiões em estágio avançado de desenvolvimento social e econômico em
que não ocorrem, ainda, tensões sociais de vulto e nas quais será
desenvolvido o aperfeiçoamento tecnológico por meio da assistência à
economia rural e por fim,
-regiões críticas entre as quais serão selecionadas as áreas prioritárias para
a execução da reforma agrária.
296
Porém, a aplicação do zoneamento dependia de dados estatísticos precisos e foi
justamente esse particular que dificultou o trabalho, não somente do zoneamento em si,
como também da definição das áreas prioritárias para a execução da reforma agrária de
caráter “emergencial”. Para Lorena, integrante do GRET, tanto os dados estatísticos do
censo de 1960, relacionados à densidade demográfica, quanto o censo agrícola não eram
precisos. As informações sobre ocupação espacial, os tipos de estabelecimentos, a relação
entre proprietários e não proprietários na população total dedicada à agricultura, a dimensão
das terras públicas e devolutas, enfim, todo o rol de números associados à terra precisavam
ser revistos. Até porque, segundo Lorena, os dados foram publicados parcialmente e se
referiam apenas a alguns Estados.
297
Parte dos problemas apresentados deve-se ao fato do
trabalho estatístico ter sido baseado, em parte, em dados ultrapassados, herança de pesquisas
anteriores.
Em entrevista a Regina Bruno, Lorena apontava que
O recenseamento de 1960 foi à coisa mais relaxada que houve até hoje no
Brasil. Com uma autorização por escrito do Presidente da República, nós
entramos em todas as repartições para procurar o que havia de dados
estatísticos, por que o IBGE o tinha uma coleção para nos fornecer
296
O processo Brasileiro de Reforma Agrária, op. cit. p.p. 13/14. Neste documento também estão descritos
os complexos, do ponto de vista operacional, dos índices utilizados para o zoneamento. De acordo com o
documento, “para a delimitação do zoneamento do País e caracterização das áreas homogenias, estabeleceu-se
um índice sintético, que foi calculado, para cada unidade geográfica do País, considerando-se, o produto da
média geográfica de 3 índices específicos por uma função demo-econométrica relacionada com o sentido
econômico da área, em face de sua posição geográfica relativamente aos centros econômicos de várias ordens
existentes no País. (...) Os três índices admitidos foram calculados levando-se em conta, para cada unidade
geográfica, considerada:
-para o índice de caráter fundiário: a intensidade de ocorrência de áreas em imóveis rurais, acima de 1000 ha e
abaixo de 50 ha, a área média dos estabelecimentos, e a porcentagem de ocupação jurídica da superfície rural
total.
-para o índice que exprime as condições demográficas: a população rural, a densidade rural e o incremento
demográfico médio;
-e, para o índice que exprime as condições geo e socioeconômicas, a dependência da população ativa do setor
agro-pecuário e extrativista; a área média das propriedades, por pessoa ocupada; e a porcentagem da força de
trabalho relativa aos proprietários e seus dependentes familiares sobre a força de trabalho total de pessoas
ocupadas.”
297
A relação Homem – Terra no Brasil. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro,
Caixa 53, 1964 h.
146
146
desse recenseamento. Nós fomos catando, se vocês quiserem procurar,
vocês vão encontrar, aqui, de biblioteca de repartições diferentes. Cada
pedaço foi arranjado em um lugar. Não fizeram uma penetração completa
no IBGE, uma das coisas que descobrimos foi o censo demográfico de
1960, foi publicada a sinopse preliminar do recenseamento. Publicou a
sinopse preliminar com base na folha de pagamento dos recenseadores
que recebiam com caneta, quer dizer, se um recenseador desonesto,
quisesse ganhar mais era aumentar a população. E depois fizeram um
trabalho de revisão para publicar definitivo. Publicaram o definitivo em
três estados do Brasil. Vocês são obrigados a saber quais: Sergipe,
Alagoas e Espírito Santo. Os três estados maiores do Brasil. E morreu,
não continuou o trabalho. E nós fomos encontrar esse material numa casa
para as bandas do Jardim Botânico. Amontoado, completamente
revolvido. O IBGE mudou duas vezes de sede nesse período. Eu tenho a
impressão que eles pegavam um trator, uma faca e juntavam aqueles
papelões e chegava com o caminhão e despejava lá. Só que numa situação
dessas, era mais barato fazer um novo recenseamento do que tentar tirar
qualquer coisa daquele material.
Nesse contexto, inseria-se a questão do cadastramento rural obrigatório. Para
zonear, ou seja, para selecionar as áreas do território que comporiam cada região
descriminada pelo zoneamento, fazia-se necessário um mapeamento mais preciso sobre as
áreas ocupadas sob a perspectiva das modalidades de propriedades previamente definidas no
processo de construção do Estatuto da Terra. Além disso, o grupo previa que o
cadastramento, base para a aplicação da tributação das terras, permitiria fazer um
levantamento das terras públicas destinadas à colonização e à regularização de domínio de
posse, dando condições aos atuais ocupantes para o uso pacífico e tranqüilo das terras
que exploravam ao abrigo de litígios e conflitos”.
298
Para se ter uma idéia da dimensão deste trabalho, basta salientar que havia mais
de 4 milhões de imóveis rurais, em mais de 4.000 municípios, numa área total de 8,5
milhões de Km² de território, mobilizando para o trabalho de coleta de dados mais de
100.000 auxiliares executivos.
299
Somava-se a isso o fato de que a coleta de dados era
praticamente realizada de forma manual, sobre uma extensão territorial de proporções
continentais, o que no mínimo inviabilizava o cruzamento dos dados. No entanto, pelas
condições políticas do contexto, criou-se a visão, de certa forma megalomaníaca, que este
298
CNBB. Pastoral da Terra: Posse e Conflitos. p. 71. Paulo de Assis Ribeiro, destacava que o cadastro
rural permitiria o conhecimento da estrutura agrária brasileira e forneceria, segundo esse, “elementos para a
aplicação do sistema tributário de progressividade e regressividade, além de elementos de controle sobre as
formas de exploração social e econômica dos imóveis, sobre as condições de arrendamento e parcerias; sobre o
descumprimento dos dispositivos do Estatuto de Trabalhador Rural (...)”. Também gerariam os elementos que
orientariam “(...) os trabalhos de idenficação de terras públicas e de terras devolutas e de regularização de
títulos das áreas ocupadas por posseiros ou sem títulos regulares por conflitos de domínio (...).” Processo
Brasileiro de Reforma Agrária, op. cit. p.18.
299
Processo Brasileiro de Reforma Agrária, op. cit.
147
147
trabalho complexo pelas limitações operacionais, realizar-se-ia dentro do menor prazo
possível e que o curto período do governo Castello seria suficiente para finalizá-lo e colocar
em pleno funcionamento toda a estrutura do Estatuto da Terra. Roberto Campos, ao realizar
uma reflexão a posteriori sobre esses dispositivos afirmava que
Acusava-se, justificadamente, o Estatuto da Terra de ser uma lei
extremamente complexa. Além dos módulos regionais variáveis, a partir
dos quais se calcularia a incidência dos tributos, estes seriam ajustados
progressivamente, em função do tamanho da terra e sua proximidade do
centro de consumo, e regressivamente, em função do grau de
aproveitamento econômico e utilização social da propriedade. Não havia,
entretanto, alternativas a essa complexidade, em virtude das dimensões
continentais do país e diversidade de situações regionais e de
concentração populacional. A fórmula tradicional, e mais simples, de
reforma agrária através da fixação de um limite máximo, e relativamente
baixo, da dimensão da propriedade, não seria apropriada. Sob certos
aspectos, sem dúvida, o Estatuto da Terra foi um sonho tecnocrático, com
modulações difíceis de aplicar num país com defasados cadastros rurais e
numa época em que o uso da informática na administração pública era
quase inexistente. Boa parte do governo Castello Branco foi gasta no duro
trabalho de montagem de cadastros rurais, de definição de módulos
regionais e de ativação da sistemática do imposto territorial rural, que
seria o principal instrumento de reforma agrária. Havia nada menos que 4
milhões de propriedades a cadastrar, e era complexo o trabalho de fixar os
quatro coeficientes norteadores da tributação: utilização da terra,
eficiência econômica, condições sociais e rendimento agrícola.
300
Percebe-se que a montagem do Estatuto exigia dos integrantes do GRET, a
abertura de várias frentes de trabalho, que no fechamento do “esqueleto” geral da proposta
tinham que se encaixar de forma sincrônica. Desta feita, o zoneamento requeria o
cadastramento e este por sua vez exigia a definição das categorias sobre as quais incorreria a
classificação das propriedades por meio do cadastramento. Tais modalidades definir-se-iam
com base no módulo rural, com características variáveis de acordo com a região. Instituído
pelo GRET, o módulo rural foi estabelecido para ser, segundo Paulo de Assis Ribeiro,
Uma unidade de medida que exprima a interdependência entre a
dimensão, a situação geográfica dos imóveis rurais e a forma e as
condições de seu aproveitamento econômico. Como conceito físico, o
módulo é definido pela área agricultável, que deve ser considerada em
cada região e para cada tipo de exploração. (...) A regionalização do país
para a fixação da dimensão dos módulos, foi determinada em função das
características ecológicas e econômicas homogêneas, levando-se em conta
o nível tecnológico compatível em cada uma das zonas típicas,
definidoras do tipo de exploração intensiva e extensiva a ser admitido. Os
tipos de exploração considerados foram agrupados em seis grandes áreas:
hortigranjeira e pecuária de pequeno porte; lavoura permanente; lavoura
temporária; pecuária de médio porte; pecuária de grande porte e florestal.
300
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p. 694.
148
148
Nos termos do Estatuto da Terra, o módulo rural equivaleria à propriedade
familiar, considerada o tipo ideal de propriedade a ser implantada com a reforma agrária.
Neste sentido, estabelece o Estatuto que a distribuição de terras somente efetivar-se-ia sob a
forma de propriedade familiar.
301
Desde suas primeiras versões, a propriedade familiar
constituir-se-ia no imóvel rural que direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua
família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso
social e econômico, com área máxima fixada para região e tipo de exploração, e
eventualmente trabalhado com ajuda de terceiros.
302
Se a propriedade familiar constituía a base de referência do módulo rural, e se o
módulo, de acordo com Bruno, “era considerado a ferramenta básica de todo o processo de
reformulação da estrutura agrária”, a propriedade familiar tornou-se, diretamente, a base
de cálculo para as demais modalidades de propriedades, o que enfureceu a classe patronal
sob o argumento de que ao privilegiar a propriedade familiar, automaticamente estar-se-ia
condenando moralmente as propriedades que excedessem a tais limites.
303
Assim, a partir do conceito de módulo seguia-se a definição de latifúndio,
minifúndio e empresa rural. No que concerne ao termo latifúndio, este foi subdividido
quanto à sua dimensão e nível de exploração. Portanto, de acordo com o Estatuto da Terra,
latifúndio é o imóvel rural que “exceda a dimensão máxima fixada na forma do artigo 46, §
1º, alínea b da lei, tendo em vista as condições ecológicas, sistemas agrícolas regionais e o
fim a que se destine”. Pelo artigo 46, os limites máximos permitidos para a área dos
imóveis rurais não deveriam exceder a 600 vezes o módulo médio da propriedade rural, nem
a 600 vezes a área média dos imóveis rurais na respectiva zona.
304
O latifúndio por
exploração, mesmo não excedendo o limite máximo de área, tinha a função de caracterizar
as propriedades mantidas com fins especulativos e inexploradas em relação às
possibilidades físicas, econômicas e sociais, ou então, que fossem deficientes ou
inadequadamente exploradas, de modo a vetar-lhe a classificação como empresa rural.
Para o GRET e para o governo, latifúndio e minifúndio foram encarados como
problemas centrais da estrutura fundiária brasileira pelas graves conseqüências que
geravam, sejam elas, políticas, econômicas e sociais. Mas, em uma escala de valor o
latifúndio mantido com fins especulativos era moralmente inaceitável, uma vez que não
301
Estatuto da Terra, op. cit. p.19.
302
Idem, p.14.
303
Processo Brasileiro de Reforma Agrária, op. cit.
304
Idem, p.p.14 /27.
149
149
possuía as limitações financeiras do meio e, obviamente, de área, sua improdutividade era
conscientemente mantida. Neste caso, cabia extingui-lo de forma acelerada, pela
inobservância de sua função social. os minifúndios, caracterizados como os imóveis
rurais de área e possibilidades inferiores à propriedade familiar
305
eram analisados sob outro
prisma. Considerava-se sua ineficiência econômica, como resultado inevitável da
conjugação de fatores inerentes à própria estrutura agrária, bem como das suas limitações
econômicas e de área, decorrendo desse quadro um processo de constante subdivisão a cada
nova geração.
A inversão desse quadro dependeria, segundo o GRET, da junção de duas
perspectivas: uma macro, resultante do ajustamento da estrutura agrária como um todo e
outra mais pontual, com base em medidas que objetivavam aumentar e intensificar a área
produtiva dos pequenos proprietários. Dentre essas, figuravam as desapropriações e
realocação dos proprietários em imóveis rurais familiares, com o suporte técnico das
Cooperativas Integrais de Reforma Agrária (CIRA).
306
No decorrer dos trabalhos de definição das categorias de propriedades, o GRET
ainda tentava demarcar uma quarta categoria de propriedade, a chamada Empresa Rural. De
acordo com o especificado no Estatuto, considerar-se-ia Empresa Ruralo empreendimento
de pessoa física e jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente
imóvel rural, dentro de condições de rendimento econômico da região em que se situe e que
explore área mínima agricultável do imóvel, segundo padrões fixados, pública e
previamente, pelo Poder Executivo.
307
Neste item houve uma clara tentativa de flexibilização do conceito, que poderia
abarcar desde uma propriedade familiar que fosse explorada racionalmente dentro de
condições de rendimento econômico satisfatório para a região, até uma grande propriedade
que também atendesse a esses preceitos.
Enquanto a propriedade familiar era considerada o modelo ideal de propriedade a
ser implantado com a reforma agrária, a empresa rural era o modelo ideal de exploração
econômica a ser atingido ou preservado. Porém, o grupo não as encarava como categorias
estanques e antagônicas, pois o ideal, segundo o GRET, seria que, pela exploração racional
305
Estatuto da Terra, op. cit. p.14.
306
Segundo o Estatuto da Terra, a CIRA é “(...) toda sociedade cooperativista mista, de natureza civil, criada
nas áreas prioritárias de Reforma Agrária, contando temporariamente com a contribuição financeira e técnica
do poder Público, através do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, com a finalidade de industrializar,
beneficiar, preparar e padronizar a produção agropecuária, bem como realizar ao demais objetivos previstos na
legislação vigente”. Estatuto da Terra. Título I, op. cit. p.15.
307
Idem, p.14.
150
150
e intensificação da produtividade, as propriedades atingissem o “status” de empresa rural
familiar.
Longe de ser entendido como um “descuido” dos elaboradores do Estatuto, a
flexibilidade apresentada pela elaboração do conceito atendia aos princípios de “proteção”
às propriedades que não se enquadravam na modalidade de propriedade familiar em função
de sua dimensão, mas que ao mesmo tempo, sob o ponto de vista do governo e do grupo,
enquadravam-se na categoria de produtiva, que uma, vez avaliada como empresa rural,
esta, segundo o Estatuto, não poderia ser passível de desapropriação. A flexibilidade
representava, ainda, uma forma de enquadramento legal nos ditames do Estatuto, quando
houvesse interesse dos grandes proprietários em “legalizar” a situação de suas propriedades
condicionando-as à sua função social.
O dispositivo legal acabou transformando-se em uma brecha que, ao longo de
sua vigência, avalizou e estimulou a criação de grandes empresas agropecuárias no norte do
país, pois o subterfúgio de adaptar-se ao enquadramento de empresa rural deixava-as fora
dos limitadores de extensão aplicados aos latifúndios.
A flexibilidade do termo ajuda a identificar o confronto de objetivos do governo:
preservar e reformar. Para este, a conjugação destes termos não parecia antagônicos entre si,
representavam dois lados de uma mesma moeda que se complementavam. O modelo
representava o dilema do governo entre fazer a reforma preservando setores considerados
com grau de produtividade satisfatório e, em atendimento à função social, objetivava-se
promover o equilíbrio de desenvolvimento entre as quatro regiões estipuladas pelo
zoneamento, aquelas em curso de ocupação, ou seja, as regiões pioneiras, nas quais não
existia pressão sobre a terra e as localidades economicamente ocupadas, mas com a
persistência da economia de subsistência. Nestes dois casos não se pensava em reforma
agrária no sentido de distribuição de terras, mas em programas de desenvolvimento,
povoamento e colonização. A terceira caracterização regional tentava identificar as regiões
em estágio avançado de desenvolvimento, sem tensões sociais graves, onde seriam
desenvolvidos programas de aperfeiçoamento tecnológico, e a quarta região que englobava
as áreas críticas onde se verificava uma forte pressão sobre a terra.
O mapeamento permitiria emergir a inserção na lei, das chamadas áreas
prioritárias que, segundo o relato de Lorena, “(...) era sobre elas que iam se fazer exercer
diretamente o projeto de reforma agrária,
308
por englobarem áreas onde as tensões sociais
308
Entrevista com Carlos Lorena concedida a Regina Bruno em 06/07/84.
151
151
e a pressão sobre a terra se faziam presentes, constituindo-se em bolhas de instabilidade
econômica e política.
De acordo com o Estatuto da Terra e o decreto regulamentar n.º 55.891 de 31 de
março de 1965, a declaração das áreas prioritárias far-se-ia por meio de decreto do
Executivo e obedeceria, segundo os pressupostos do artigo 39 deste mesmo decreto,
“(...) à seleção das áreas em que se incluam regiões críticas do
zoneamento, caracterizadas pelos índices considerados definidores de
ocorrência de tensões nas estruturas demográficas e agrárias, geradores
das condições determinantes da necessidade de reforma agrária, nos
termos daquele Estatuto.
§ A seleção referida neste artigo far-se-á tendo em conta os fatores
descritos nos incisos seguintes:
I – os índices mais elevados que caracterizem as regiões críticas;
II a ocorrência de fatores de ordem sócio-política que tendam a agravar
a situação evidenciada no zoneamento;
III as possibilidades de caráter técnico, financeiro e administrativo
ocorrentes nas áreas, que permitam uma ação conjugada dos respectivos
órgãos regionais do IBRA e dos órgãos federais e estaduais da
administração centralizada ou descentralizada atuantes nas respectivas
áreas;
IV – a existência de acordos internacionais já firmados ou em andamento,
para financiamento ou prestação de assistência técnica visando a solução
de problemas direta ou indiretamente ligados à reformulação agrária nas
respectivas áreas;
V - a proximidade dos grandes centros de concentração demográfica e dos
principais centros consumidores do país, que determinem à exigência de
mais intensiva exploração dos recursos da terra.
§ A delimitação das áreas prioritárias far-se-á levando em conta a área
necessária para localizar os minifundiários, arrendatários, parceiros e
trabalhadores rurais que se achem localizados nas áreas críticas e sejam
candidatos a unidades a serem criadas.
Art. 40 Enquanto e a que todas as condições enumeradas nos incisos
de I a V do item anterior e a delimitação das regiões críticas do
zoneamento sejam definidas por decreto do Executivo, poderão ser
declaradas áreas prioritárias de emergência em regiões cujos índices
evidenciem a necessidade de uma ação pronta e urgente para aplicação
das medidas de reforma agrária, nos termos definidos no Estatuto da
Terra.
309
A inclusão do artigo 40 no decreto regulamentar assinado a posteriori,
evidenciava a dificuldade de colocar em pleno andamento e de forma sincrônica as várias
frentes e instrumentos estipulados pelo Estatuto da Terra. Desta feita, o artigo 40 do referido
decreto, consistia na tentativa de agilizar o processo em casos onde a gravidade dos
conflitos requeria medidas de cunho emergencial, não podendo esperar os trâmites
309
Decreto regulamentar n.º 55.891 de 31 de março de 1965 e Estatuto da Terra.
152
152
burocráticos estipulados pelas várias fases do Estatuto, tais como: o zoneamento, o
cadastramento e a elaboração dos Planos Regionais de Reforma Agrária.
Com o decreto, Castello viabilizava a declaração de outros decretos de
regularização das áreas prioritárias que iriam compreender a zona úmida nordestina, o
litoral de Pernambuco e Paraíba; bacia do Vale do Paraíba e adjacências do Rio de Janeiro,
São Paulo, Minas Gerais; Brasília; Distrito Federal e adjacências de Goiás; a região noroeste
do Rio Grande do Sul e o Estado do Ceará.
310
O Ceará foi o único Estado considerado em
sua totalidade como zona prioritária. Neste caso, segundo relato de Lorena, a inclusão de
todo estado se deu mais por motivos pessoais e sentimentais - que Castello era cearense -
do que propriamente pelas características que enquadravam determinada região como zona
prioritária. Ao descrever a atitude do presidente, Lorena afirmava que havia surgido
(...) um decreto duramente sentimental do Castello declarando inteirinho o
Ceará, o estado todo área prioritária de reforma agrária. Ele era cearense.
Aliás, não teve razão de ser nenhuma, o Ceará naquele tempo, apesar de
miséria, não era uma área de grandes conflitos de terra, como a zona
úmida do nordeste. (...) era na zona úmida, era onde a cana dominava, era
310
A descrição das áreas prioritárias pode ser encontrada no livro Estudos da CNBB, op. cit. p.71, na
entrevista com Carlos Lorena concedida a Regina Bruno em 06/07/84 e no livro de DE CARLI, G. História
da Reforma Agrária, op. cit. p.p. 206-208. De acordo com De Carli, “Pelo Decreto n.º 56.583, de 19 de julho
de 1965, o Presidente da República dispõe sobre a criação de áreas prioritárias de emergência visando a
reforma agrária. Pelo seu artigo 1º ‘ fica declarada área prioritária de emergência, para fins de reforma agrária,
a região constituída pelas zonas fisiográficas litoral Mata e Agreste do Estado de Pernambuco, Litoral
Mata, Agreste e Caatinga Litorânea, Borborema Oriental e Brejo, do Estado da Paraíba, segundo as
confrontações adotadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (...) Havia uma particularidade
neste decreto, uma vez que ‘a intervenção governamental na área far-se-á por dois anos, podendo ser
prorrogada’. O plano de emergência abrangia a constituição de 5000 unidades familiares; a organização de até
cinco Cooperativas Integrais de Reforma Agrária; o estudo das condições socioeconômicas da área para a
elaboração dos programas de promoção agrária; cadastro técnico da região; e a regulamentação dos títulos de
posse dos imóveis rurais de posseiros existentes na área (...) Pelo Decreto n.º 56.795, de agosto de 1965, ficou
declarada área prioritária de emergência, para fins de reforma agrária, a região constituída pelo Distrito
Federal, e pelas áreas que o envolve. A intervenção visava a constituição de 3 mil propriedades familiares. (...)
Pelo Decreto 57081, de 15 de outubro de 1965, criaram-se as áreas prioritárias no Estado do Rio de Janeiro, a
Fazenda Nacional de Santa Cruz, e várias zonas fisiográficas, como a Baixada da Guanabara, Baixada do Rio
São João, Baixada dos Goitacazes e baixada Araruama.(...) Pelo Decreto nº 58162, de 6 de abril de 1965, ‘fica
declarada área prioritária de emergência para fins de reforma agrária a área constituída pelo Estado do Rio
Grande do Sul’. O decreto visava a solução definitiva dos problemas gerados pelas invasões e desapropriações
de terras, antes de 31 de março de 1964, e regularizar a ocupação dos imóveis rurais pertencentes à União, e a
desapropriação das terras públicas federais, atualmente invadidas e destinadas à constituição de unidades
coloniais, reservas florestais e à proteção de mananciais. Também o decreto tinha em vista a constituição de
2700 novas unidades familiares e o remembramento e reorganização de, pelo menos, 5000 minifúndios
existentes na região do Alto Paraguai.(...) Pelos Decretos n.º 56.716 e 56.717, ambos de 24 de junho de 1966,
ampliam-se as áreas de emergência para fins de reforma agrária, em alguns municípios do Estado de Minas
Gerais, inclusive toda a sua Zona da mata e várias zonas fisiográficas do Estado de São Paulo. (...) Pelo
Decreto n.º 59.210, de 14 de setembro de 1966, ficam consideradas de interesse social para fins de Reforma
Agrária, imóveis rurais situados nos municípios de Ribeirão e Amaragi, em Pernambuco. No mesmo dia, pelo
Decreto n.º 59.210, é declarado de interesse social para fins de desapropriação, imóveis rurais situados no
município de Cabo, no mesmo Estado.(...) Pelo Decreto n.º 60.465, de 14 de março de 1967, ficou declarada
área prioritária de emergência para fins de reforma agrária, área constituída pelo Estado do Ceará em toda sua
extensão fisiográfica.”
153
153
onde o pessoal passava miséria em conseqüência dessa situação de terra.
311
Tais decretos tinham prazo de validade variável, compreendendo um período de
10 a 15 anos para serem aplicados. Após a primeira etapa, caracterizada pelo decreto do
Executivo com base nos dados colhidos pelo zoneamento e firmados no Plano Nacional de
Reforma Agrária, iniciava-se, sob a responsabilidade do IBRA, uma segunda etapa: o Plano
Regional de Reforma Agrária, que antecederia qualquer processo de desapropriação. De
acordo com o Estatuto da Terra em seus artigos 35 e 36, o Plano Regional obedeceria aos
seguintes requisitos:
I - delimitação da área de atuação;
II determinação dos objetivos específicos da Reforma Agrária na região
respectiva;
III – fixação das prioridades regionais;
IV – extensão e localização das áreas desapropriáveis;
V – previsão das obras de melhoria;
VI – estimativa das inversões necessárias e os custos;
Art. 36 Os projetos elaborados para regiões geo-econômicas ou grupos
de imóveis rurais, que possam ser tratados em comum, deverão consignar:
I – o levantamento socioeconômico da área;
II os tipos e as unidades de exploração econômica perfeitamente
determinados e caracterizados;
III as obras de infra-estrutura e os órgãos de defesa econômica dos
parceiros, necessários à implantação do projeto;
IV – o custo dos investimentos e o seu esquema de aplicação;
V – os serviços essenciais a serem instalados no centro da comunidade;
VI – a renda familiar que se pretende alcançar;
VII a colaboração a ser recebida dos órgãos públicos ou privados que
celebrarem convênios ou acordos para a execução do projeto.
312
Mesmo nas áreas consideradas de emergência, especificadas no artigo 40 do
Decreto n.º 55.891, previa-se a indicação de um plano de emergência a ser executado nas
referidas áreas e que posteriormente deveria ser incorporado ao Plano Nacional e Regional.
Com base na projeção realizada pelo Plano Regional de Reforma Agrária, iniciar-se-ia a
aplicação dos demais dispositivos previstos pelo Estatuto da Terra, tais como a
desapropriação e distribuição de lotes, reagrupamento de minifúndios, implantação de
cooperativas agrícolas, legalização de títulos de terras e o aperfeiçoamento da infra-estrutura
regional.
que se ressaltar que a centralização no Executivo para a decretação das áreas
prioritárias, bem como sua limitação de prazo, definitivamente abriu precedente para que
311
Entrevista com Carlos Lorena concedida a Regina Bruno em 06/07/84.
312
Estatuto da Terra, op. cit. p.23.
154
154
esta fosse, convenientemente, ignorada ou estrategicamente substituída por outros projetos
ao longo dos governos militares posteriores a Castello. Mas, segundo Campos, ao submeter
o instrumento da desapropriação à competência exclusiva da União, geralmente atrelada às
áreas prioritárias, igualmente sancionadas pelo Executivo, se evitaria as desapropriações de
cunho político, em função das querelas regionais.
313
que se ressaltar que este processo
evidencia uma insegurança com o contexto político, ainda indefinido. Deve-se levar em
conta que no período de concretização da proposta e de idealização de sua aplicação, era
corrente a perspectiva de manutenção do calendário eleitoral, no qual se inseriam eleições
para governador.
Pelas características ressaltadas acima, a inserção das zonas prioritárias passa a
ser interpretada ambiguamente no contexto da lei, pois na medida em que estabelecia os
ditames, sobre os quais se desencadearia a reforma agrária, as áreas prioritárias apareciam
como uma amarra ao processo pensado em âmbito nacional. No entanto, na visão dos
autores do Estatuto, apesar da falta de unanimidade, vingou a idéia de que “(...) na situação
brasileira a reforma agrária não era um problema de âmbito nacional e sim regional.
314
Para Campos, a pressão sobre a terra, não era um problema generalizado por todo o país,
descartando, por isso, uma reforma agrária de cunho redistributivista ou com limite máximo
ao tamanho da propriedade. Cabia então ao Estado, por meio dos órgãos específicos,
identificar as regiões onde havia maior ocorrência de latifúndios e minifúndios agrupando-
os dentro de zonas prioritárias, e a partir de então haveriam intervenções mais incisivas e
urgentes. Nas demais regiões, caberia à tributação, o ajustamento da estrutura fundiária de
forma contínua e progressiva, conjuntamente com a aplicação de uma efetiva política
agrícola. que se observar, no entanto, que um processo não excluiria o outro. As
propriedades improdutivas ou mal aproveitadas que estivessem fora da zona prioritária, caso
não se ajustassem aos princípios do Estatuto da Terra, poderiam igualmente ser
desapropriadas.
A tributação apresentava etapas que se completavam, uma coercitiva,
representada pelo imposto progressivo incidindo sobre o tamanho da propriedade e sua
proximidade com centros urbanos, e outra regressiva, em função do grau de aproveitamento
econômico e utilização social da propriedade.
315
Nestes termos, a função da tributação era
313
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p.692.
314
Idem, p. 692.
315
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p.694 e CAMPOS, R. Antologia do Bom Senso, op. cit. p.
246.
155
155
coagir os proprietários a produzir, sob pena de perder sua propriedade por meio da
desapropriação ou simplesmente ser conduzido a vender o imóvel pela incapacidade de
arcar com os tributos, dessa forma evitava-se mantê-las apenas enquanto reserva de valor.
Por outro lado, a tributação regressiva, ofereceria uma margem de segurança e a
preservação das grandes propriedades, desde que alinhadas com a utilização social,
conforme delineado no projeto do Estatuto. Representava, ainda, uma “segunda chance”
para que os proprietários regularizassem a situação de suas propriedades, de acordo com os
preceitos da lei, por meio de projetos apresentados aos órgãos competentes.
O prognóstico otimista do governo apontava para a fusão dos dois pólos -
preservar e reformar - em um prazo relativamente curto. Em discurso em Joinville, Castello
afirmava que a reforma agrária é uma realidade que assinala o início de uma estrutura.
Em 1980 o Brasil terá alcançado plenamente os resultados desta verdadeira revolução nos
campos que é fator do desenvolvimento econômico e bem-estar geral do povo brasileiro.
316
A projeção para além das fronteiras de seu governo revelava a tendência progressiva da
proposta. Se no período de organização do Estatuto existia uma aura otimista por parte do
GRET de que seria possível, ainda no governo Castello, organizar e finalizar as primeiras
etapas do Estatuto, como: o zoneamento, o cadastro e a criação das áreas prioritárias, no
segundo momento a prática revelaria a complexidade da proposta.
A tentativa quase obstinada em atender às diversidades regionais, sobre as quais
foram elaboradas as propostas, reforçava as duas sistemáticas de funcionamento tidas como
ideais, preservar e reformar, que ao final do processo deveriam se fundir resultando no
aumento exponencial da produtividade, por meio da modernização e do desenvolvimento no
campo, resultando no aumento da classe média no campo, nas melhorias das condições de
vida do trabalhador rural e por fim na diminuição dos conflitos, que causavam instabilidade
econômica e política, tanto para o campo quanto para o governo.
Dentro deste propósito, o objetivo geral encontrava-se associado ao aumento da
produtividade, tendo como seus objetivos específicos a melhoria das relações de trabalho, o
aumento da oferta de empregos e a diminuição das taxas do êxodo rural. No entanto, para
atingi-los era necessário aumentar o número de proprietários de terras com amparo de uma
política agrícola que os incentivasse a modernizar suas propriedades; a exigência de
contratos mais justos e regulamentados de arrendamento e parceria; conter o avanço dos
latifúndios improdutivos, combatendo os existentes; diminuir o crescimento dos
316
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 10/11/66. Secretaria da Imprensa.
156
156
minifúndios e promover o reagrupamento dos existentes; e regularizar a posse da terra. Na
prática, se todos os objetivos fossem concretizados, na ótica do governo, a reforma agrária
estaria sendo feita.
Porém, ao buscar atingir os objetivos do lema: punir quem não produz, preservar
quem produz e distribuir terras e oferecer condições para quem quer produzir, de acordo
com os complexos índices, criados, aliás, para atender as diversidades regionais, o governo
tornou a mesma praticamente inoperante no curto governo Castello. O documento A
relação do Homem Terra no Brasil”, ressaltava a problemática da diversidade regional,
para justificar a complexidade da proposta, destacando que para atingir os objetivos
propostos pelo governo, as medidas que compunham o Estatuto deveriam ser aplicadas em
conjunto, mesmo que tal operacionalização demandasse mais tempo do que o previsto,
numa clara mudança de perspectiva com relação ao início dos trabalhos, pois, caso
contrário, agravar-se-iam as disparidades regionais. De acordo com o documento, o sistema
de leis proposto
(...) não deve ser encarado isoladamente, sendo mesmo a aplicação
exclusiva de uma única dessas medidas tão nociva ao desenvolvimento
econômico quanto a manutenção do status quo. Essas medidas, no plano
agrário nacional, devem obedecer a uma hierarquização e a um sistema
flexível de aplicação que atenda à diversidade de problemas do
‘continente’ brasileiro. Com esta intenção primordial foi elaborado o
sistema constituído pelo projeto e as normas que se vão ler.
317
Mas pesava sobre o Estatuto, além da dificuldade de operacionalização, uma
clara subestimação do contexto político no qual estava inserido e a oposição política ao seu
projeto.
A execução de uma proposta complexa como a do Estatuto da Terra demandava
uma continuidade e afinidade de idéias quanto ao papel e o impacto a ser desempenhado
pela reforma agrária nos demais setores econômicos por parte dos governos posteriores. Por
isso mesmo, qualquer projeção para além do seu governo, embutia, automaticamente, certa
dose de vulnerabilidade e imprevisibilidade ao Estatuto da Terra. A continuidade dos
trabalhos passava a depender, por exemplo, do jogo político da sucessão presidencial, haja
vista que, desde o início das discussões da proposta, no interior da “cúpula revolucionária”,
observava-se a impaciência de certos grupos quanto à importância dada, pelo governo
Castello, a uma proposta de reforma agrária, bem como sua relevância para o
desenvolvimento nacional.
317
A Relação Homem – Terra no Brasil. Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
Caixa 53, 1964 h, p.19.
157
157
Conjuntamente ao desinteresse ou ceticismo pela reforma agrária como reforma
preponderante inserida no contexto das reformas estruturais do país, somava-se a
incapacidade do grupo mais conservador da cúpula militar de conceber o teor capitalista da
proposta de Castello e de seu grupo de estudo, considerando que a discussão em torno da
reforma agrária em períodos anteriores, especialmente no período Jango tinha sido feita
quase que exclusivamente pela esquerda. O setor militar, descontente com a proposta,
manifestava um senso comum já bastante disseminado que relacionava a reforma agrária ao
socialismo, fato que ajuda a esmiuçar a acirrada oposição não somente no meio militar, mas
também de proprietários, setores da Igreja, partidos políticos e de uma parcela significativa
da sociedade que se alinhava com o projeto político desses segmentos.
Na ótica desses segmentos, a proposta de Castello configurava-se em uma
contradição, com “ares de traição” dos ideais revolucionários. Essa confrontação assinalava
a incapacidade do governo em conciliar propostas político-econômicas dentro de sua cúpula
e base de apoio. Em verdade, sua proposta não convenceu e não agradou. E o fato do
governo ressaltar seu teor capitalista com a preservação da diversidade regional das
propriedades consideradas produtivas, acenando para um cenário de punições restrito às
propriedades consideradas improdutivas, não foi suficiente para garantir apoio à proposta.
Isso porque a raiz da impopularidade da mesma ligava-se à materialização dos instrumentos
de reforma agrária a serem instituídos pela reforma da Constituição e pelo Estatuto da Terra,
e o risco político em que essa “arma” poderia se transformar. No que tange à classe patronal
e aos partidos políticos, a oposição central ligava-se à materialização da proposta que
esta, uma vez aprovada, representaria um perigo institucionalizado e não mais eminente
como fora no período anterior.
Sem dúvida, a bandeira da reforma agrária enquanto discurso rendia mais
dividendos políticos do que propriamente sua materialização e servia a todas as plataformas
ideológicas. A especulação quanto a sua necessidade e as características que a reforma
agrária deveria assumir tinham atravancado o processo de aprovação de diversos projetos
apresentados em períodos anteriores, essas discussões também se fizeram presentes no caso
do Estatuto da Terra. A grande motivação para isso era o fortalecimento político dos grupos
ou agentes, que participavam dessas discussões, junto aos seus representados, na medida em
que estes apresentavam, protestavam ou apoiavam esta ou aquela proposta. Tratava-se de
ser contra ou a favor à emenda constitucional, contra ou a favor à desapropriação com
pagamentos da dívida pública, contra ou a favor de um limite máximo da propriedade.
158
158
Portanto, discursivamente, todos aclamavam a reforma agrária, mas o impasse circunscrito à
inclusão ou não dos instrumentos acima, em qualquer proposta de reforma agrária, tinha
uma razão política efetiva, pois representaria a materialização do que era tratado somente no
nível da especulação, ou seja, tornaria possível a efetivação da reforma agrária, tema
trabalhado apenas no nível da possibilidade ou necessidade.
No período em que permaneceu em discussão, o projeto do governo Castello não
foi poupado, pelo contrário, nos dizeres de Viana Filho,
(...) o debate radicalizara-se, e cada qual acastelara-se num extremo. O
meio termo inexistia. Dizia-se a propósito, que Delfim Neto, tal como
ocorria com Severo Gomes, temia a sorte da grande propriedade agrícola,
produtiva, implantada como empresa industrial, e que os tributos, tal
como concebidos, acabariam por transformar em inexpressivos
minifúndios. Era o problema dos módulos agrícolas, que a reforma fez
variar em função do local e da vocação de cada região, mas que os
opositores tinham como fatais à agricultura do país.
318
O acastelamento em extremos é representativo dos posicionamentos assumidos
perante o Estatuto da Terra: ou se estava a favor da lei ou contra ela. Com a balança
desfavorável para o governo, tiveram que se submeter a uma série de rodadas de discussões
e negociações para aprovar a lei. Além disso, a afirmação de Viana demonstrava o
descompasso de idéias entre o governo Castello e de figuras como a de Delfim Neto, que
viria a ocupar o cargo de ministro da Fazenda nos governos posteriores.
Os problemas advindos dessa falta de entendimento resultaram nas várias
interpretações equivocadas da lei. A gama de interesses políticos e a extensa lista de agentes
envolvidos com a temática que abarcava desde o governo, aos proprietários, trabalhadores,
as representações de classe, os partidos políticos e a Igreja, somente para explicitar os
principais, gerou diversas críticas e apropriações da lei que passam ao longe da
intencionalidade de quem a elaborou.
As discussões em torno do Estatuto, tanto na fase de sua elaboração quanto
depois da sua promulgação são carregadas de distorções de cunho ideológico e político.
Somente a partir da compreensão desses embates, enquanto manipulações em torno da lei, é
que conseguimos entender como Castelo foi acusado de ser um agente do comunismo no
Brasil, ou como a colonização tornou-se o principal norte do Estatuto nos governos militares
subseqüentes e, ainda, como apenas um item da Lei, no caso a desapropriação, tornou-se a
pedra fundamental a ser aplicada em todo o país, na visão da CPT e dos movimentos sociais
da década de 70.
318
VIANNA FILHO, L. O Governo Castelo Branco. op. cit. p.280.
159
159
CAPÍTULO III
OS (DES) CAMINHOS DO ESTATUTO DA TERRA
160
160
CAPÍTULO III
OS (DES) CAMINHOS DO ESTATUTO DA TERRA
“A confusão recente em torno das ocupações
de terras, dos movimentos políticos e dos
desafios à ordem jurídica interessa-me
particularmente, porque foi sob minha
responsabilidade que se elaborou, no governo
Castello Branco, o Estatuto da Terra,
documento ao qual geralmente se reconhece
um caráter moderno e inovador. Se houvesse
sido adequadamente cumprido, com toda a
probabilidade teria reduzido a um
insignificante resíduo os problemas (reais
alguns, imaginários outros) que ora esquentam
o debate público”.
ROBERTO CAMPOS
3.1 - A OPOSIÇÃO E O ESTATUTO DA TERRA
E novamente a reforma agrária emerge do lamaçal de onde se encontrava atolada
e provavelmente de onde se esperava que não fosse mais sair. Para muitos era um tema
inconveniente e que a “revolução de março”, teoricamente, teria garantido, em boa hora, sua
superação, juntamente com o perigo de uma ditadura comunista, tratava-se de tomar as
rédeas da situação, vista como ameaçadora.
Tem sentido, neste caso, a perplexidade que causou a retomada, pelo Executivo,
e justamente por ele, do tema. Segundo Campos é fácil imaginar as paixões despertadas
pelo tema da reforma agrária. Castello Branco foi bombardeado com cartas, exortações e
ameaças dos mais variados setores(...).”
319
A oposição sofrida pelo governo, por parte dos mais variados setores, como
destacava Campos, partia de premissas equivocadas, baseadas em distorções frente a real
proposta sugerida pelo governo. As primeiras críticas foram impulsionadas pelas
declarações do Presidente em favor da reforma agrária e da constituição de um grupo
específico para elaborar as diretrizes dessa mesma reforma, ignorando sumariamente os
projetos que se encontravam emperrados no Congresso.
319
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p.691.
161
161
O “encastelamento” da proposta no interior do governo deu início a uma série de
especulações, resultando, aliás, no contrário do objetivado pelo Presidente. O clima de
desconfiança era alimentado pela ausência de informações oficiais sobre a matéria. Nos
jornais e documentos da Câmara e Senado, emergiam questões sobre a necessidade de uma
reforma agrária ou sobre o teor dessa reforma agrária. Essas especulações foram
prematuramente, segundo o governo, levadas a público, pois o vazamento da proposta,
ainda incompleta, ajudou a acirrar sobremaneira o debate.
Então, essa primeira fase oposicionista caracterizou-se pela especulação quanto
às intenções do governo, por vezes permeada de ameaças veladas que buscavam salientar os
prováveis “desvios” do presidente com relação aos ideais da “Revolução”, obviamente
tentando demovê-lo do seu intento. As especulações tornaram-se críticas sistemáticas a
partir da exposição da proposta propriamente dita, quando o governo se viu pressionado,
pela repercussão ocasionada, a ampliar o debate até então restrito.
A partir de seus pronunciamentos em favor da reforma agrária, formou-se uma
opinião praticamente unânime entre os setores oposicionistas, que não se diferenciavam dos
argumentos levantados no pré-64. Neste sentido, a crítica destacava a suposta inversão de
prioridades, impetrada por parte do governo, ao defender a organização de uma lei de
reforma agrária em detrimento da “verdadeira” necessidade do homem do campo, a saber,
uma política agrícola que proporcionasse as condições básicas de produção, ou seja,
somente com uma efetiva política agrícola o governo atingiria seus objetivos de
dinamização da produção.
A esta defesa da política agrícola, vinculava-se a idéia de que antes de distribuir
terra havia a necessidade de amparar os proprietários existentes. O grande problema da
agricultura brasileira não estava na estrutura agrária, mas na falta de incentivos do governo.
Assim, o editorial do jornal O Estado de São Paulo, serve para resumir o posicionamento de
todos os segmentos contrários às intenções do governo.
Em nossos comentários jamais deixamos de insistir num ponto que
consideramos de importância fundamental para a preservação e
desenvolvimento de nossa economia: qualquer esquema de reforma
agrária que venha a ser aprovado pelo governo deve repousar, não na
alteração da estrutura rural existente no país, mas sim na moralização e
dinamização dos órgãos governamentais de incentivo e amparo ao
agricultor. Em outras palavras o que está errado no Brasil não é o sistema
de repartição e aproveitamento da terra, mas sim a maneira como esse
sistema é aplicado por alguns proprietários de mentalidade ultrapassada -
como certos senhores de engenho do Nordeste e pela quase totalidade das
repartições públicas encarregadas de apoiar sobre várias formas o
162
162
lavrador. Tal é a realidade que deve presidir as discussões e os
julgamentos relativos à nossa política agrária e as providências que o
governo está na obrigação de adotar em benefício de nossa agricultura e
de toda coletividade brasileira.
Esse nosso ponto de vista tem a seu favor inúmeras conclusões cientificas
e práticas de validade indiscutível, como por exemplo as freqüentes
revelações de dirigentes soviéticos a respeito das dificuldades
intransponíveis surgidas na agricultura dos países comunistas, onde a
repartição e a exploração das terras se fazem pelo Estado sem que atente
para as qualidades da pessoa humana no que concerne à posse e aos
anseios de progredir e de legar. (...) Quanto a nossa situação interna, o Sr.
Presidente não precisa ir muito longe para interar-se das verdadeiras
causas de nossa baixíssima produtividade de nossas lavouras. Examine
por exemplo, o que ocorre com os postos Mecanizados e com as Fazendas
Experimentais que o Ministério da Agricultura mantém no sul do Mato
Grosso. Encontrará dezenas de tratores novos paralisados mais de ano,
porque os funcionários públicos que os deveriam manter em
funcionamento recebem seus salários, quer essas máquinas permaneçam
imóveis ou sejam postas a trabalhar. Verificará que o mero de arados
mecânicos perdidos de ferrugem pela falta de manutenção daria para
dobrar ou triplicar a produção agrícola dessa fértil região.
Observará, enfim, que nem mesmo os estudos mais primários para a
determinação de tipos ideais de pastagem foram realizados pelos postos
agrícolas do governo.
Diante de tudo isso, no mínimo deveria ser feita a seguinte pergunta: se
todos esses recursos fossem aplicados com eficiência e honestidade em
beneficio da região, necessitaria o governo do Marechal Castelo Branco
de buscar soluções novas, de conseqüências imprevisíveis, para resolver o
angustiante problema rural do Sul do Mato Grosso?
Evidentemente essa pergunta é válida para todo o território brasileiro,
onde os sucessivos governos da República sempre se caracterizaram pela
mais completa falta de apoio aos que trabalham no amanho da terra..
320
Esse pensamento encontrava eco entre os partidos de maior representação no
Congresso. Paralelamente aos editoriais, representantes do PSD e UDN, em discursos no
plenário da Câmara, rechaçavam a possibilidade de uma lei de reforma agrária com base nos
mesmos argumentos salientados acima. Em discurso na Câmara, um dos maiores opositores
do projeto do governo dentro do PSD de Minas Gerais, o deputado Último de Carvalho, ao
analisar o problema da reforma agrária no país, incitava seus pares a manifestarem-se
contrariamente à proposta do governo. Último de Carvalho estimulava outros congressistas,
pois, segundo ele, quanto mais pontos de divergências fossem apresentados melhor, porque
isso evitaria o envio ao Congresso de um projeto eivado de defeitos. Segundo seu
posicionamento,
Todos os países que levam a sério o problema da reforma agrária decidem
em termos de produtividade da terra. E o minifúndio é improdutivo. Mas
acontece no Brasil mais o seguinte: dos três milhões e quinhentos mil
320
Jornal O Estado de São Paulo, de 18 de setembro de 1964.
163
163
proprietários no Brasil que vivem sob esta estrutura arcaica, dois milhões
possuem propriedades de menos de cem hectares. Pois esses dois milhões
de proprietários estão morrendo de fome em cima da terra, esses dois
milhões de homens que possuem terras precisam ser atendidos pelo Poder
Público. (...) o problema crucial propriedade da terra não deve ser dar
terras a quem não tem, porque dois milhões de brasileiros possuem
pequenas áreas de terras e morrem de fome em cima delas (...).
321
De acordo com suas afirmações o problema da produtividade do campo não se
concentrava na questão da estrutura agrária, muito menos a solução do problema estaria
atrelada à distribuição de terras. A solução deveria ser colocada em outros termos, tais
como, financiamento, créditos, maquinário, enfim, por estes meios tornar as propriedades
produtivas.
322
Em sua argumentação seguinte, afirmava que a estrutura agrária estava
ultrapassada, não pela sua configuração espacial, mas porque não tinha condições de
oferecer os índices de produtividade que todos esperavam. Isso, segundo sua explanação,
devia-se ao fato que o agricultor brasileiro ainda utilizava-se de instrumentos equivalentes
aos que existiam no tempo da pedra lascada, quando se fez o machado e a chavena de
pedra.
323
E na continuidade do seu discurso, aproveitou para criticar abertamente os
assessores diretos do governo, encarregados de organizar a lei de reforma agrária, pois, para
o deputado,
Dessa forma não pode haver produtividade no país. Os demagogos
querem fazer a reforma agrária em termos de agrimensura, prometendo
terra para acontecer aqui como aconteceu na Rússia, onde verificada a
revolução socialista, não se deu terra a ninguém, deixou o povo sem terra
como era antigamente. (...) o que é preciso é começar pelo princípio, e
estou certo que o eminente marechal Castello Branco vai começar é pelo
princípio, não pelo fim, por onde aqueles socialistas avançados, querem
começar a reforma agrária. Vamos começar pelo princípio, vamos levar
os recursos necessários para que se forme no interior o instrumento da
reforma agrária, o homem. Em seguida vamos levar a produtividade ao
homem do campo que já possui terras.
Das críticas à intenção do governo, entendida como equivocada, passou-se ao
ataque aberto contra a figura de Castello Branco, como “traidor da vontade popular”, pois
um dos motivos, segundo seus interlocutores, do apoio da população à “Revolução de
Março” teria sido o malfadado plano de reforma agrária do governo anterior. Destacava que
a insistência na preposição da matéria poderia tomar rumos imprevisíveis, a exemplo do que
aconteceu no período Goulart. De acordo com Último de Carvalho,
321
Discurso do Deputado Último de Carvalho, na Câmara dos Deputados, em 24 de junho de 1964.
322
DE CARLI, G. História da Reforma Agrária, op. cit. p.335.
323
Discurso do Deputado Último de Carvalho, na Câmara dos Deputados, em 27 de julho de 1964.
Agrimensura: medição de terras.
164
164
“(...) o presidente Castelo e o dispositivo militar que o apóia ‘são
expressão da vontade popular contra um dispositivo que contraria o
pensamento e os anseios da Nação’ com o propósito de assinalar que o
povo brasileiro se manifesta, na sua quase totalidade, pelo respeito ao
direito de propriedade e pela erradicação do comunismo.
‘Com esse objetivo é que as forças populares se levantaram e
galvanizaram as forças militares para que oferecesse à Nação essa
revolução salvadora’. E acrescentou, ‘não é por isso, de admitir-se que
esses homens, levados ao poder com objetivos certos, esqueçam os
compromissos com o povo e procurem dar-nos uma reforma agrária com
base na reforma da Constituição, contribuindo para o desaparecimento do
direito de propriedade sobre o qual repousa a Democracia.’
Sr. Brito Velho perguntou ao orador se uma reforma da Constituição com
vistas à reforma agrária contrariará os ideais da revolução. ‘Sim, se ela
abolir o direito de propriedade’ respondeu prontamente. Declarou então
que ‘se vier proposta ao Congresso nos termos sugeridos pelo governo
deposto, o presidente Castello provocará outro movimento armado,
porque com seu dispositivo teria aderido a um dispositivo político
ideológico que o povo brasileiro não permite, nem tolerará’. Longe de nós
admitir que o patriota que se chama Presidente Castello Branco, fosse
involuir no sentido de esquecer o seu passado, a sua revolução, para aliar-
se àqueles que se apóiam em S. Excia., apóiam-no para destruí-lo.”
324
Se no interior do PSD, crescia uma movimentação contrária aos pressupostos do
governo, na UDN suas bases regionais evoluíam na mesma direção, ressaltando a
necessidade de se respeitar as decisões firmadas na convenção de Curitiba, na qual
estabelecia-se um posicionamento contrário à emenda da Constituição que viabilizaria os
pagamentos das desapropriações em títulos da dívida pública, bem como outros dispositivos
que versavam sobre a regulamentação da posse da terra e contratos de arrendamentos. No
cerne da questão estava, na verdade, a difusão de pressupostos sobre a questão da reforma
agrária, que divergiam sobremaneira dos estipulados pelo presidente Castello e seus
assessores. A resistência crescente dentro do partido, advinha da idéia de que, segundo Bilac
Pinto, presidente nacional do partido, as primeiras informações sobre as premissas a serem
incorporadas ao projeto do governo eram diametralmente opostas às formuladas pelo
partido. Assim, a idéia do projeto do governo passou a ser interpretada,
(...) de um modo geral, nos setores responsáveis da UDN, como filiado à
corrente socialista, preocupando-se principalmente com a fixação da
massa de operários rurais no campo e com a redistribuição das
propriedades. Entre os peritos udenistas na matéria, os princípios
deveriam ser, ao contrário, retirar do campo os excedentes de
trabalhadores rurais, fixando-os na indústria urbana, ou em serviços e
atividades artesanais, e garantir a atual estrutura agrária, que vem
324
Jornal O Estado de São Paulo, 25 de junho de 1964 e Discurso do Deputado Último de Carvalho, na
Câmara dos Deputados, em 24 de junho de 1964.
165
165
abastecendo o país e oferecendo 85% das suas exportações, condições
técnicas e financeiras de aumentar a produtividade, com referência a uma
orientação geral que assegurasse o crescimento da quota de produção
exportável.
325
As contestações multiplicavam-se pari passu à tendência do governo em
centralizar a organização da lei. O fato do presidente, em conversas com representantes da
classe patronal, ter se recusado a prestar maiores esclarecimentos sobre a suposta lei sob o
argumento de que esta se encontrava em fase de estruturação, aumentava a especulação em
torno da natureza da lei. O deputado Pedro Zimmermann, em discurso na Câmara dos
Deputados, descreve o encontro realizado entre o Presidente da República e o Presidente da
Sociedade Rural Brasileira, Sálvio de Almeida Prado, onde este relatou o tratamento
indiferente de Castello com relação às reivindicações da SRB, segundo Zimmermann,
O atendimento glacial por parte do Chefe do Executivo não trouxe, ou
não permitiu, maior alento a quantos estão interessados na apreciação de
tão importante matéria. Pelo contrário, pelas notícias, parece que S. Exa.
O Senhor Presidente da República em princípio se mostrou insensível às
considerações da classe. (...) Vê-se, assim, portanto, que o assunto desde o
início vem sendo mal encaminhado. E, vindo mal encaminhado, de ser
a origem e foco de novas agitações e novos distúrbios, quando menos, de
ou errônea interpretação dos verdadeiros e legítimos interesses do
honrado presidente da República.
326
O debate realizado com base em suposições quanto a natureza do projeto do
governo tomou corpo e encontrou alvo certo com o “incidente do vazamento” do ante-
projeto na imprensa. A reação foi imediata. As críticas concentradas na atitude do governo
em defender a reforma agrária em detrimento de uma política agrícola, somaram-se à
condenação das premissas contidas no anteprojeto do Estatuto, quando não o próprio
Estatuto. Portanto, o fato do anteprojeto possuir uma parte específica dedicada à política
agrícola, não serenou os ânimos, pois às vésperas de ser submetido à apreciação no
Congresso, deputados e senadores ressaltavam que a política agrícola deveria substituir a lei
de reforma agrária.
Na medida em que abundavam reportagens e discursos sobre a matéria, o
recrudescimento da oposição evoluía na mesma proporção. Nos dizeres dos integrantes do
GRET, a principal oposição no Congresso foi a UDN, que congregava o apoio da classe
patronal e de uma parte dos militares, contrários à reforma agrária. Por outro lado, havia o
PSD que, embora composto por alguns representantes ferrenhamente contrários à reforma,
325
CASTELLO BRANCO. C. Os Militares no Poder, op. cit. p. 134.
326
Discurso do Deputado Pedro Zimmermann, na Câmara dos Deputados, em 23 de julho de 1964.
166
166
como Último de Carvalho, adotou no decorrer das discussões uma atitude mais
conciliatória, mediante negociações.
327
Já a UDN, principalmente as representações
regionais de Minas Gerais, Paraná e São Paulo, recusavam-se peremptoriamente a apoiar
qualquer atitude do governo que desaguasse em emenda constitucional para viabilizar a
reforma agrária, como pode ser observado na declaração de seus representantes na
reportagem do jornal O Estado de São Paulo,
O problema da reforma agrária foi objeto de todos os debates da reunião
de hoje da UDN. O líder Ernani Satiro, ao descrevê-la hoje à tarde,
assinalou que o partido evoluiu claramente para a aceitação das diversas
teses contidas na emenda constitucional propostas ontem pelo Presidente
da República. em relação à reforma constitucional para atender a
requisitos da reforma agrária, não tem ainda o partido uma posição
definida fazendo questão os seus dirigentes de afirmar que a UDN
examinará o problema sem se fixar numa intransigência preliminar.
Registra-se, entretanto, o fato de que a seção pela voz do Sr. Flores Soares
rejeita maciçamente as alterações constitucionais lutando pelo ditado na
convenção de Curitiba. Por outro lado, a seção paranaense articula um
movimento em defesa da intocabilidade da Constituição baseado também
no pronunciamento de Curitiba e prepara-se mesmo para a convocação do
governador Carlos Lacerda para que regresse ao País e assuma a liderança
de um movimento que se oponha aos rumos aparentemente adotados pelo
governo, e que a representação udenista do Paraná afirma contrários aos
espíritos da Revolução.
Em alguns setores udenistas, assinala-se que, se persistir na defesa das
emendas constitucionais, o Presidente da República verá esvair-se, em
curto prazo, a popularidade conquistada nos setores revolucionários,
oferecendo as condições ideais para um movimento de resistência que
poderia desaguar, com êxito, no próximo processo eleitoral.
328
Ante a repercussão do anteprojeto e da forte pressão exercida não somente pelos
partidos políticos, seus representados e representantes de certo peso político no cenário
nacional, mas também de governadores, Castello Branco adotou uma estratégia política
diferente daquela centralização inicial. Além da participação efetiva na organização do
Estatuto, no âmbito do GRET, o Presidente começou, também, uma movimentação rumo a
demarcação mais firme de posicionamento com relação a matéria ao iniciar e tornar público
o trabalho minucioso de entendimento pessoal com as bases políticas, ou seja, a partir da
repercussão negativa do anteprojeto, ficava cada vez mais evidente que a aprovação do
Estatuto da Terra dependeria menos da centralização política, possibilitada pelo estado de
exceção, e mais da habilidade política do governo, de seu poder de convencimento e
327
CAMPOS, R. Lanterna na Popa, op. cit. p.687.
328
Jornal O Estado de São Paulo, 25 de junho de 1964.
167
167
negociação. Neste sentido, passou a organizar reuniões e estabelecer contatos com
parlamentares e representações de classe a fim de diminuir o atrito entre as partes.
É dentro desta perspectiva conciliatória que Magalhães Pinto, governador de
Minas e representante da UDN, conseguiu formalizar um compromisso com Castello
Branco de que este somente enviaria ao Congresso o anteprojeto do Estatuto após uma
reunião com todos os secretários da agricultura dos Estados para que os assessores do
governo pudessem esclarecer os pontos “obscuros” do Estatuto. Segundo Regina Bruno, a
partir do “Encontro de Viçosa”, realizado em julho de 64,
O governo e o GRET passam a confrontar-se com a intensa reação da
grande propriedade fundiária e da anti-reforma. (...) Durante o Encontro
de Viçosa, quase nada e ninguém foram poupados. Questionava-se desde
o título da lei até a competência de seus formuladores. Procurou-se
também desqualificar os membros do GRET, sob o argumento de que
‘neste país tão vasto, de dimensão continental, não é possível que um
grupo de homens, por mais cultos, por mais experimentados, apenas na
cúpula do governo da revolução (...) possa equacionar os problemas
brasileiros’. Em contrapartida, defendeu-se que ‘os secretários de
agricultura é que o os verdadeiros representantes do povo. eles
conhecem os problemas de cada região porque estão em contato com a
terra e com o povo. Eles são homens do interior’.
329
Do Encontro resultou um estudo contra o anteprojeto do Estatuto, que, segundo
Gomes da Silva, contribuiu para o recrudescimento da pressão sobre o governo. Elias
Carmo, representante da UDN de Minas Gerais resume o motivo que desencadeava a
oposição dos partidos frente à perspectiva de lei de reforma agrária do governo
O tema da reforma agrária excitou de tal maneira toda a nossa população,
que quase nos envolvíamos em uma terrível guerra civil, não porque
houvesse uma ala que se opusesse à reforma, mas sim aos métodos ou
caminhos adotados para obtenção do melhor resultado.
330
O deputado udenista, ao estabelecer que não havia uma ala oposicionista à
reforma, procurava ressaltar que, tal como havia acontecido no governo Goulart, o governo
utilizava-se do tema como ferramenta política para atingir uma ditadura comunista”, o
presidente Castello estaria invertendo as prioridades, pois afirmava que antes de
cuidarmos da distribuição de terras do próprio Estado ou de particulares, não pensamos
seriamente em uma perfeita assistência ao agricultor.
331
Nestes termos, qual a razão para
incitar novamente os distúrbios conhecidos, originados da defesa de métodos e caminhos”
que, segundo sua ótica, seriam inócuos para atingir os melhores resultados?
329
BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra, op. cit. p.148.
330
Discurso do Deputado Elias Carmo, na Câmara dos Deputados, em 22 de junho de 1964.
331
Idem.
168
168
Foi sobre essa perspectiva que visava escamotear a negação de qualquer
possibilidade de alteração da estrutura agrária, que abundaram exortações contra as
intenções do governo, não somente referente à emenda constitucional, mas também, sobre
vários dispositivos contemplados pelo projeto. O discurso era quanto ao formato e às
prioridades, mas o fato era que esses grupos não admitiam nenhuma forma de reforma
agrária.
O esteio da negação da emenda constitucional era a defesa da propriedade
privada. Negar a emenda significava, para os anti-reformistas, defender a propriedade
privada. Para Último de Carvalho, a idéia da emenda era inaceitável, pois abalava o direito
de propriedade em suas bases e, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, dizia que
incluía
A propriedade como um dos direitos inalienáveis do homem, não lhe
conferindo o caráter transitório, como querem os reformistas. Temo toda
vez que vejo legisladores, reformistas de gabinete e, sobretudo os
militares da Utopia pretenderem transformar a reforma agrária, de técnica
de produtividade e do aumento progressivo da produção agropecuária, em
instrumentos da realização de seus sonhos mais ou menos vagos, numa
sociedade mais ou menos ideal.
332
Na mesma direção de argumentos, seria aprovado por unanimidade o manifesto
sobre o Estatuto da Terra, por parte das entidades representativas da classe agrícola de São
Paulo, Minas Gerais, Paraná e demais entidades simpatizantes da causa patronal. Este
documento, votado na sede da SRB e lido na íntegra pelo deputado Hebert Levy, da UDN S/
P, ressaltava que
As entidades democráticas signatárias, tomando conhecimento do
anteprojeto governamental da emenda constitucional e do Estatuto da
terra sentem-se no dever patriótico de se manifestar, de imediato,
contrárias à alteração da Constituição da República. Coerentes com toda a
sua pregação anterior à Revolução Libertadora de 31 de março, pensam
que modificações na forma tradicional de procedimento com respeito a
indenizações em caso de desapropriações por interesse social, virão ferir o
direito de propriedade, um dos pilares em que se assenta a sociedade que
vivemos.
333
Além da oposição individual dos partidos e das classes patronais, outros setores
sustentavam uma notável oposição à emenda constitucional, era o caso da Ação
Democrática Parlamentar que, conforme reportagem do jornal O Estado de São Paulo,
332
Jornal O Estado de São Paulo, 20 de outubro de 1964.
333
Manifesto da SRB, lido durante o discurso do Deputado Herbert Levy, na Câmara dos Deputados, em 20 de
outubro de 1964.
169
169
passou a emitir notas deixando claro a sua disposição de ‘combater medidas que a
pretexto da reforma agrária importem em confisco direto ou indireto da propriedade
privada’.” Segundo a mesma reportagem, isoladamente, também numerosos deputados,
vão afirmando sua decisão de resistir a qualquer tentativa de emendar a Constituição para
dar exeqüibilidade à reforma agrária.
334
Mas o jogo de forças que se abre entre o governo e seus assessores de um lado, e
os partidos majoritários, com experiência na campanha oposicionista à reforma agrária e
com forte representação entre vários setores sociais, de outro, abre uma brecha dentro
desses partidos, iniciando uma campanha crescente rumo ao entendimento e apoio ao
presidente mediante negociações, nem sempre acompanhado do apoio dos dirigentes
partidários, como é possível perceber por meio da reportagem do jornal O Estado de São
Paulo, ao tratar dos posicionamentos irredutíveis da UDN e do abrandamento oposicionista
do PSD,
O partido (UDN) revela-se contrário pela sua maioria a qualquer
investida contra a garantia de direito de propriedade, estabelecida no § 16
do art. 141 da Constituição. Essa posição reflete, indiscutivelmente, o
pensamento de largos setores civis e militares que se situaram no
comando da revolução. Seus dirigentes, no entanto, levam na devida
conta alguns pronunciamentos do Presidente da República, dos quais
recolhem a impressão de que se o marechal Castello Branco ainda não se
fixou rigidamente no propósito de obter esta alteração constitucional, por
outro lado, não deixa dúvida sobre o fato de que não alimenta
preconceitos quanto a idéia de modificar-se a Carta Magna, dispondo-se a
pleitear no Congresso as medidas desde que convencido de sua
necessidade.
Também está mais ou menos assentado que na hipótese de vir o chefe da
nação dar por válidos os argumentos em favor da emenda
constitucional,encontrará sustentação parlamentar não apenas no PTB,
cuja liderança reitera que não negará o voto favorável, mas igualmente no
PSD. O PSD, reitera o voto desde que houvesse uma razoável correção
monetária para os títulos.
Dentro da UDN, por parte dos que buscam uma condição conciliatória
com o governo, que, aliás, era uma pequena parte no início das
discussões, procuram orientar a agremiação no sentido de ceder à
proposta de emenda constitucional caso o marechal Castello Branco se
obstine em solicitá-la ao Congresso estabelecendo, entretanto, uma
condição a de que o uso dos títulos se limitaria a indenização dos
latifúndios improdutivos desapropriados, garantindo-se para os
minifúndios e para a média propriedade o pagamento prévio e em
dinheiro.
334
Jornal O Estado de São Paulo, 02 de outubro de 1964.
170
170
Essa atitude se enquadraria nas observações de Pedro Aleixo sobre as
desastrosas conseqüências que poderiam advir, no plano social do
emprego dos títulos para a indenização aos pequenos proprietários.
335
Sem dúvida, a oposição à emenda constitucional monopolizou o cenário das
discussões por justamente viabilizar juridicamente as preposições do Estatuto da Terra, no
entanto, as declarações nos jornais de que o Presidente, em conversas com parlamentares,
teria reforçado sua disposição de preservar (...) a filosofia do projeto de qualquer forma,
inclusive no que se refere à emenda constitucional e também de enviar a mensagem de
modo a aproveitar os dois meses que restam de sessão legislativa em curso,
336
provocou
certo desmembramento do foco da oposição fincada quase que exclusivamente na negação à
emenda constitucional. As atenções dispersaram-se entre o conteúdo da emenda
constitucional e o Estatuto da Terra.
Neste sentido, dentre os diversos pontos questionados alguns prevaleciam, como:
a tributação, as cooperativas agrícolas, a propriedade familiar e as indenizações das
desapropriações. Esses pontos muitas vezes eram questionados individualmente, mas,
também não faltavam questionamentos ao conjunto do projeto, como o estabelecido por
Bilac Pinto, que ao ser questionado sobre o projeto do governo afirmou que:
‘Minha impugnação ao projeto, disse ele, esta tarde, é total.’ O presidente
da UDN entende que é a própria política defendida na preposição do
governo que está errada, pois baseia a reforma agrária na reversão de
grande parte das populações urbanas para as zonas rurais. ‘Tal princípio
inexeqüível na prática, tem ainda contra toda experiência mundial (...) na
luta pelo aumento da produtividade, o qual se consegue obter na razão
direta em que se reduz a densidade demográfica das zonas rurais’.
337
A visão da UDN é totalmente contrária ao projeto de Castello, porque para estes
não havia a necessidade de mexer na estrutura agrária, muito menos aprovar instrumentos
que tornassem tal empreitada viável sob o ponto de vista jurídico. Embora objetivassem
igualmente o aumento de produtividade, o caminho para atingir a meta divergia do
estabelecido pelo Estatuto.
A questão do êxodo é sintomática dessa divergência, enquanto para Castello e
seus assessores este era sinônimo dos problemas do campo e que refletia negativamente nos
centros urbanos, no próprio campo e na economia nacional, devendo ser resolvido com a
aplicação dos dispositivos previstos no Estatuto, a UDN defendia o êxodo como solução
335
Jornal O Estado de São Paulo, 24 de junho de 1964.
336
Jornal O Estado de São Paulo, 02 de outubro de 1964.
337
Jornal O Estado de São Paulo, 07 de outubro de 1964.
171
171
para os problemas do campo, transferindo para a cidade esse “grupo” que não tinha mais
“função” no meio rural. Não se tratava mais de discutir reforma agrária, mas a
modernização do campo, sendo a liberação de mão de obra um processo “natural”, a ser
resolvido com a migração da população rural para os centros urbanos.
Portanto, na ótica do governo Castello, não se tratava de excluir os trabalhadores
rurais do processo de desenvolvimento capitalista do campo, mas o contrário, a meta era
inseri-los neste processo, orquestrando medidas como: a distribuição de terra e incentivos à
produção, legalização da posse da terra, geração de empregos, entre outras. Conforme
afirmação de Viana, em resumo a reforma deveria fomentar a criação de uma classe
média rural estável e próspera, mediante acesso a terra própria, e aumento da
produtividade.
338
Assim como Bilac Pinto, Magalhães Pinto, em entrevista, dizia-se partidário das
colocações de seu companheiro de partido, inúmeras vezes destacadas em entrevistas e
divulgadas pelos jornais, apesar do crescente movimento dentro do partido que apontava
para um possível voto favorável à emenda constitucional e ao Estatuto. De acordo com
Magalhães Pinto,
(...) O Sr. Magalhães Pinto aproveitou a oportunidade para marcar
nitidamente sua posição, assinalando que ela se aproximava bastante
daquela que é defendida por Bilac Pinto. Não lhe adianta fixar críticas a
pormenores do projeto do governo, examinando artigos e sugerindo
pequenas alterações, pois sua divergência é fundamental: recusa o
governador de Minas a estranha filosofia do projeto de reforma agrária
que ainda pretende resolver: o problema por meio da criação da
propriedade familiar, estímulo ao minifúndio que é um dos espantalhos de
toda economia rural modernizada.
O governador de Minas entregou por escrito ao Presidente da República
as suas sugestões que apenas condensam as decisões do encontro dos
Secretários de Agricultura de Viçosa.
339
A voz destoante de Magalhães Pinto encontrou eco em outras paragens com
relação a negação da propriedade familiar, justificando tal negação com base na afirmação
de que haveria no Estatuto
(...) um pensamento dominante de transformação generalizada da
estrutura fundiária no Brasil em propriedade familiar, como o módulo
para a aplicação da progressividade do imposto em função da dimensão
do imóvel, exige a institucionalização da propriedade familiar (...) Como
a propriedade familiar é contrária à produtividade e a exploração racional
338
VIANA FILHO, L. O Governo Castello Branco, op. cit. p.278.
339
Jornal O Estado de São Paulo, 03 de outubro de 1964.
172
172
da terra, isso significava a institucionalização da propriedade familiar em
detrimento da empresa rural.
340
Em se tratando de jogo de forças políticas, cada qual estabelecia a interpretação
que lhe convinha para defender seus interesses, pessoais ou de classe. Em primeiro lugar a
questão da propriedade familiar era estabelecida enquanto uma base de referência, para se
dimensionar outras propriedades de acordo com as especificidades regionais e como
referência para se distribuir novas propriedades. Não se cogitava transformar a estrutura
agrária em propriedades familiares, até porque o Estatuto previa outras formas e tamanhos
de propriedade, desde que produtivas. Além disso, os elaboradores do Estatuto não viam
antagonismo entre propriedade familiar, produtividade e exploração racional da terra, desde
que houvesse a uma efetiva política agrícola de suporte.
Na linha de argumentação “fundamentada” no que poderíamos definir de lógica
do absurdo, centrava-se a fala do líder da UDN na Câmara dos Deputados em entrevista ao
jornal O Estado de São Paulo. Segundo Satiro, este é um projeto que nem na Rússia de
hoje seria admitido. A União Soviética revisou a fase experimental da transformação da
propriedade rural em familiar. E é o que o projeto do governo aspira: transformar os
latifúndios em chácaras.
341
No afã de bloquear qualquer proposta de reforma agrária,
chegou-se a traçar esse paralelo entre Stalin e Castello, pois a referida experiência colocada
pelo líder da UDN, referia-se ao período Stalinista.
Outro ponto polêmico do Estatuto transitava em torno da tributação, que a
despeito de todos os esforços dos integrantes do GRET em apresentá-lo como uma política
de planejamento democrático de distribuição de renda e da terra”, os anti-reformistas
entendiam-no como “confisco puro e simples.
342
Questionava-se a complexidade dos dados,
acusavam-no de imprecisão, reivindicavam a redução de alíquota e a sua completa
supressão do Estatuto da Terra, sob a alegação que o imposto traria mais dificuldades para o
desenvolvimento da agricultura.
343
Segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo,
(...) A restrição principal do presidente da UDN atinge os itens que tratam
da tributação das atividades rurais. As demais disposições -inclusive a
emenda constitucional - são julgadas aceitáveis pelo Sr. Bilac Pinto e
poderia, assim, merecer o acatamento da grande maioria da UDN.
Quanto ao imposto, observa o deputado que ele tem fins extrafiscais,
tendendo a provocar a reforma da estrutura rural por meio do
constrangimento imposto aos proprietários numa redistribuição forçada da
340
Idem.
341
Jornal O Estado de São Paulo, 07 de outubro de 1964.
342
BRUNO, R. Estatuto da Terra: Entre a Conciliação e o Confronto, op. cit. p.13.
343
Jornal O Estado de São Paulo, 08 de outubro de 1964.
173
173
propriedade a que a atual organização agrária do País não resistiria. Este é
o ponto inaceitável que o sr. Bilac Pinto confia ainda ser reexaminada
pelo Marechal Castello Branco.
Tal posicionamento foi compartilhado por Delfim Netto, assessor de Bilac Pinto.
Segundo Campos, Delfim chacoteava a reforma agrária, como tendente a criar ‘chácaras
na Amazônia’ e hiperbolicamente, alegava que os tributos, como concebidos, acabariam
convertendo as grandes propriedades agrícolas, implantadas como empresas industriais,
em inexpressíveis minifúndios.
344
A questão das Cooperativas Agrícolas, também foi duramente criticada, sob a
alegação de que estas tinham um teor socializante, que funcionava como elemento de
intervenção estatal em detrimento das ações individuais. Na ótica do GRET e do governo, as
Cooperativas tinham uma função primordial de amparo aos produtores, servindo como um
elo entre esses e os órgãos governamentais responsáveis pela política agrícola e reforma
agrária. De início funcionariam com ajuda financeira do Estado até que se tornassem
plenamente “independentes” financeiramente.
345
Mas de acordo com comentários de Bilac
Pinto, representando as posições de uma maioria dentro da UDN
Continua, assim, inteiramente inaceitável, não para a UDN, como
ampla maioria do Congresso. Isso em decorrência da persistência
inexplicável num homem da estatura do ministro Roberto Campos, de
encarar o problema a partir de uma perspectiva não errônea como
“nitidamente marxista”. Diz o Sr. Bilac Pinto, que o projeto determina a
criação de Cooperativas Agrícolas, de inspiração claramente marxista,
pelas conseqüências políticas, sociais e econômicas que seguramente
resultaria de sua aplicação (...) As cooperativas preconizadas no projeto,
além de inoperantes para a solução dos problemas, implicariam em
avançada socialização das atividades rurais, pois os proprietários das
terras perderiam totalmente seus direitos sobre as mesmas, pois nada
poderiam fazer a não ser por meio dessas cooperativas e, portanto, do
Estado. Seriam mantidos como proprietários, mas nenhum direito teriam
de utilizar as terras, a não ser agindo por intermédio e em conformidade
com o rígido esquema socialista prefigurado no projeto.
346
O acirramento dos debates ressaltava a ineficácia da estratégia até então adotada
pelo governo. As reuniões constantes com líderes partidários ao invés de reverterem-se em
344
CAMPOS, R. Lanterna na Popa, op. cit. p.690.
345
Segundo o Estatuto da Terra, as CIRAs, seriam constituídas de parceleiros que tiverem adquirido lotes ou
parcelas em áreas prioritárias destinadas à Reforma Agrária, ou então em casos de colonização fora da zona
prioritária. (...) Sua função era cuidar preferencialmente: da produção rural; das vendas em comum; dos
créditos e financiamentos; da industrialização; do beneficiamento; da classificação; da padronização; da
embalagem e outras operações necessárias ao preparo ou transformação da produção dos associados para a
comercialização; da prestação de serviços, inclusive relacionados com a mecanização e a eletrificação; de
assistência técnica; da assistência social; do seguro agrícola e construção de habitações. Decreto n.º 56798, de
27 de agosto de 1965. In: CONTAG, Estatuto da Terra, op. cit.
346
Jornal O Estado de São Paulo, 24 de setembro de 1964.
174
174
catalisadores de apoio ao projeto, apenas revelavam e fortaleciam impasses que
respingavam no interior dos partidos. Carlos Castello Branco, ao descrever uma dessas
reuniões de Castello com o presidente da UDN, ressaltava que
A obstinação de lado a lado é, aliás, a característica do debate que se
separou em campos opostos uma ala da UDN e o Governo. Ela se nutre
no temperamento irredutível dos dois principais contendores – o Marechal
Castello Branco e o Sr. Bilac Pinto mas encontra sua força principal no
fato de que nem um lado nem outro deseja ouvir ponderações: o problema
deixou de ser técnico para ser apenas político, e é no plano político que
encontrará o seu destino e, se tudo correr bem, a sua solução.
347
A verdade é que as modificações reclamadas pelos principais partidos eram
substanciais e implicavam numa verdadeira reformulação do projeto, a começar pelas
diretrizes básicas sobre as quais ele foi construído. Daí as imensas dificuldades de fórmulas
clássicas de composição e entendimento, e a fixação de áreas firmes de resistência de tal
sorte que o destino do projeto no Congresso estava sendo considerado com pessimismo
pelos assessores mais próximos do marechal Castello Branco.
348
Diante disso, Castello muda sua estratégia e adia o envio da proposta de Emenda
Constitucional e do Estatuto da Terra, inicialmente previsto para o início do mês de outubro.
Tal mudança incluía a divulgação da Emenda e do projeto oficial nos meios de comunicação
e reuniões abertas com as bancadas. O objetivo consistia em reverter os votos contrários,
angariar votos dos indecisos e buscar apoio dos partidos menores com o propósito de
ampliar a base de apoio para a aprovação do projeto, sem que isso incorresse no
desvirtuamento total da proposta. Assim, no dia três de outubro o jornal O Estado de São
Paulo divulga a seguinte notícia:
O presidente da república decidiu hoje adiar por dez dias, no mínimo, o
envio ao Congresso do projeto do Estatuto da Terra, acompanhado das
respectivas emendas constitucionais. Durante esse período além de
divulgar, por intermédio da imprensa, as íntegras daquelas proposições, o
marechal Castello Branco enviará os ministros da Agricultura e
Planejamento à Câmara, para debater com as lideranças partidárias vários
aspectos da propositura.
(...) Ao invés do Presidente provocar o debate com a mensagem em
tramitação no Congresso, o que faz é revelar sua posição
antecipadamente, deixando as forças políticas representadas no
Legislativo inteira liberdade de críticas. Esforça-se-à o governo para
convencer os parlamentares sobre as vantagens de seu projeto de reforma
agrária, mas manter-se-à receptivo a qualquer sugestão útil, disposto
mesmo a subscrever alguns dos pontos de vista que venham a ser
anunciados no debate.
347
CASTELLO BRANCO, C. Os Militares no Poder, op. cit. p.142.
348
Jornal O Estado de São Paulo, 08 de outubro de 1964.
175
175
Reunião com as bancadas do UDN, PSD, PTB e os pequenos partidos,
deverão ir o ministro do planejamento com seus assessores, dentre eles o
José Gomes da Silva e o Hugo Leme, Ministro da Agricultura, munidos
com todos os dados sobre o Estatuto.
Segundo relatos dos integrantes do GRET, a metodologia adotada para as
reuniões consistia em responder aos questionamentos, recolher sugestões e apresentar os
argumentos do governo com relação à necessidade da lei. No entanto, em várias ocasiões,
segundo esses relatos, as reuniões desencadeavam discussões acaloradas.
Para os membros do GRET, a reunião mais tumultuada foi com a bancada da
UDN, pela incompatibilidade de concepções e por congregar um maior número de
deputados e senadores que faziam clara oposição ao projeto do governo. Segundo o próprio
Roberto Campos, na reunião com a UDN
Os deputados se viram expostos a uma saraivada de estatísticas, todas
plausíveis, Bilac Pinto tentando demonstrar a desnecessidade, e eu, a
urgência da reforma agrária. Foi então que formulei, para consolo dos
deputados, minha teoria de que as estatísticas são como biquíni: o que
revelam é interessante, mas o que escondem é essencial.
349
Segundo os integrantes do GRET que acompanharam a reunião, Roberto
Campos procurava colocar Bilac Pinto na defensiva citando vários documentos da UDN que
apresentavam pontos em comum com o Estatuto da Terra. No entanto, o presidente da UDN
insistia que os problemas seriam solucionados com a política agrícola e a transferência para
a indústria de parte da mão de obra rural, sem tocar na estrutura da propriedade. Em função
dessa insistência, Roberto Campos declarou ironicamente que, Bilac Pinto e a UDN,
Ao advogar uma rápida emigração dos campos para a indústria urbana, e
ao mesmo tempo, uma intensa automatização da indústria, Bilac estaria
inconscientemente promovendo uma nova e perigosa teoria populacional
a “solução Guandu”. Meu comentário irônico deflagrou indignado
debate, em que fui apoiado por Brito Velho, combativo deputado gaúcho
do PL, que advertiu a audiência ao lembrar que a “solução Guandu” tinha
precedentes na “solução Swift”. Esse grande humorista inglês dissera em
sua sátira que alguns excedentes populacionais poderiam ser convertidos
em salsichas.
350
349
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p.689.
350
A “Solução Guandu”, fazia referência ao caso dos mendigos que foram lançados no rio Guandu pela
polícia carioca, episódio que, segundo Campos, causou enorme embaraço a Carlos Lacerda, então governador
da Guanabara. CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p.688.
176
176
A discussão que quase se transformou em violência física, segundo o jornalista
Carlos Castello Branco, foi contornada, mas teria agravado a situação conhecida: quem
era contra ficou mais contra, quem era a favor ficou mais a favor.
351
De fato, os discursos anti-reformistas tornaram-se mais violentos e centrados no
objetivo de desqualificar a legitimidade do governo Castello ao afirmar que suas reformas
não passavam uma mera continuidade das reformas apresentadas pelo governo João
Goulart, seria a continuidade do esquerdismo no Brasil. O discurso proferido pelo Sr.
Deputado Abel Rafael do PRP resumia a opinião de muitos congressistas e ao mesmo
tempo condensava o teor no qual centravam-se as críticas ao governo e à sua proposta de
reforma agrária. De acordo com este,
É a mesma coisa. É mudar o nome. Estamos vendo que os mesmos
teóricos estão procurando as soluções. São os mesmos homens,
acadêmicos distantes da realidade social. Diríamos que são as mesmas
pessoas. Quando, por ventura vamos a algum Ministério, são os mesmos
assessores do tempo do Sr. João Goulart; na SUNAB, no Planejamento,
em todo lugar, os mesmos homens. Então, são as mesmas soluções que
eles nos apresentavam, embora dourando-as com palavras um pouco
diferentes. A história se repete.
Nos parece que o governo do Sr. Castello Branco é o testamenteiro do
Governo do Sr. João Goulart que nomeou seu testamenteiro o Marechal
Castello Branco. As mesmas coisas ressurgem neste Governo. Para que
houve uma revolução? Foi, por ventura, contra o Senhor João Goulart, ou
contra o Senhor Brizola? Por mim eu nunca me levantaria contra o Sr.
João Goulart, com quem tinha boas relações, nem contra o Sr. Brizola,
contra quem, pessoalmente, nada tenho, mas sim, contra as suas idéias,
contra o seu esquerdismo contra o rumo que tomava a administração no
Brasil.
A mim, portanto, não interessa que seja o Sr. João Goulart nem o Sr.
Castello Branco. Interessa o rumo de suas idéias, interessa o esquerdismo
de sua administração. E hoje, vemos com desprazer que a revolução
dominante pelos seus detentores, apenas substituiu os homens, não
substituiu idéia nenhuma. Então, não é uma revolução de idéias, é apenas
a luta de ambiciosos que tomaram o poder para realizar as mesmas coisas
que os anteriores queriam realizar.(...)Queria dizer que o governo está
sem bússola e sem leme. Agora vem a reforma agrária, a mesma do Sr.
João Goulart e o Sr. Brizola. É melhor mandar buscar o Sr. João Goulart
e o Sr. Brizola no exílio, porque eles teriam mais autenticidade para
realizar essa reforma do que o Sr. Castello Branco, que veio em nome da
anti-reforma agrária.
352
Sem dúvida, as afirmações do Deputado e as reações suscitadas pelo seu
discurso refletiam a inquietação que o tema provocava. Até a Comissão Mista organizada
351
CASTELLO BRANCO, C. Os Militares no Poder, op. cit.143.
352
Discurso do Deputado Abel Rafael, na Câmara dos Deputados, em 26 de outubro de 1964.
177
177
para o estudo da matéria não foi poupada, sob a alegação de que esta era composta de
parlamentares com “grande afinidade” com o tema e com o partido de Goulart.
Mesmo entre os que se colocavam favoráveis à reforma, havia um receio do
passo decisivo que se iria dar.
353
O apoio existia, mas era vulnerável à dinâmica do jogo de
forças políticas que se estabeleceu em torno da matéria.
354
Em meio ao turbilhão de emendas e substitutivos que objetivavam manipular e
alterar toda a filosofia e sistemática do projeto, o governo travava uma “quebra de braço”
para mantê-lo fiel em suas bases. Diante do radicalismo, restou ao governo e ao GRET, nos
dizeres de Bruno, reavaliar as prioridades.
355
As negociações e o trabalho de convencimento mostraram-se igualmente
vulneráveis, dando lugar ao processo de concessões conciliatórias para aprovar o projeto.
De fato, nenhum instrumento considerado imprescindível foi suprimido da Emenda
Constitucional ou do Estatuto da Terra, mas sem dúvida, os pontos alterados de alguma
forma prejudicaram a sistemática do projeto original. De acordo com o jornalista Carlos
Castello Branco, em sua coluna diária,
O presidente da república resolveu agir politicamente no caso da reforma
agrária, ao determinar, ainda contrariando o pensamento do Ministro
Roberto Campos, uma revisão tanto do texto da emenda constitucional
quanto do projeto de Estatuto da Terra, de modo a atender algumas das
353
DE CARLI, G. História da Reforma Agrária, op.cit. p.338.
354
Uma voz destoante em meio às incertas manifestações de apoio que o governo conseguiu angariar pode ser
atribuída a Brito Velho do PL gaúcho. Em seu discurso proferido na Câmara dos Deputados no dia 20 de
outubro de 1964, Brito Velho chama a atenção para as conseqüências políticas que poderiam advir das
ameaças veladas ao Executivo em função da proposta de reforma agrária, e ao mesmo tempo defende a
Reforma Agrária do governo, desabonando as críticas até então realizadas. Em seu discurso ressaltava que:
“Erram e gravemente os que vêem nos Projetos Emenda Constitucional e reforma agrária qualquer
discordância com o direito natural ou com a doutrina da Igreja, consubstanciada particularmente nos
documentos pontifícios, publicados nos últimos setenta anos. Erram os que imaginam estar implícitos, no
conceito de Democracia, o sistema vigorante de garantir ao direito de propriedade, a exigir, para a
desapropriação por interesse social, pagamento prévio e em dinheiro. Erram os que, ao tratar de reforma
agrária, esquecem ou subestimam os aspectos sociais da questão, pondo a tônica no problema econômico da
produtividade e produção, a denotarem que se fundamentam em concepções que está longe do Humanismo
Cristão, e se aproximam do economicismo marxista. Erram os que proclamam ser a pequena propriedade, de
caráter familiar, necessariamente incapaz de produção, para mercado, restringindo-lhe a aptidão à chamada
produção de subsistência. Fazem-no por ignorarem, de todo, o que é capaz o cooperativismo e por não
saberem que, em regiões do país, tal como o Rio Grande do Sul, essa espécie de propriedade rural, atuante e
florescente, apesar os azares climáticos e do esquecimento do poder público, é desmentido vivo do que contra
ela se articula. Erram os que lutam pela concentração da propriedade, favorecendo a permanência da maioria
na condição de assalariado, ainda que, condignamente retribuídos por seu trabalho, quando a tendência
moderna predominante é elevar o maior número à categoria, ao status de proprietário. Erram os que descobrem
no Projeto a intenção de transformar o Brasil num tabuleiro de hortas, ou chácaras, de vez que a propriedade
familiar rural não se conforma com isso, e, aos demais, porque o mesmo Projeto grande importância e
realce a empresa rural de tipo capitalista.”
355
BRUNO, R. Estatuto da Terra: Entre a Conciliação e o Confronto, op. cit. p.15.
178
178
principais objeções que levavam a UDN a opor-se a essa iniciativa
reformista.
356
A contestação de Roberto Campos dizia respeito à diminuição da alíquota que
recairia sobre a cobrança do imposto progressivo, considerado um importante instrumento
de punição e liberação de terras, além de fonte de recursos para a sistemática de
implantação dos planos de reforma agrária pela União. A alteração da taxa de 0,5% para
0,2% foi considerada pelos integrantes do GRET uma derrota do governo frente ao
movimento anti-reformista. Assim como a perda do controle da União frente à arrecadação
do imposto territorial para os Estados. A partir das alterações exigidas pelos partidos, o
Estado ficaria com vinte por cento da arrecadação e oitenta por cento seria repassado para
os municípios. Para os governistas, partindo do princípio que os projetos de reforma agrária
partiam do executivo, essa medida comprometia a destinação dos recursos para a
implementação dos projetos.
Para aprovar o item referente aos pagamentos das desapropriações em títulos da
dívida pública, teve que ceder na questão da exata correção monetária e restringir esses
pagamentos em casos de desapropriação das propriedades caracterizadas como latifúndio,
excluindo dessa forma de pagamento as benfeitorias, que passariam a ser ressarcidas
sempre em dinheiro. O jornal Folha de São Paulo, ao caracterizar a posição udenista frente
às alterações da emenda constitucional, oferecia a dimensão do sentimento de insatisfação
presente em boa parte do Congresso Nacional e em vários setores da sociedade, ao afirmar
que, após muito debate, a UDN conseguiu afinal que algumas de suas ponderações
fossem atendidas. De qualquer forma, a emenda proposta pelo governo, embora
amortecida, é mais do que os udenistas supunham aprovar.
357
Em meio aos embates políticos, a Emenda Constitucional, foi aprovada, em 10
de novembro de 1964, pelas mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, seguida
da aprovação do Estatuto da Terra, Lei 4504, em 30 de novembro de 1964.
A persistência do governo em manter as propostas da Emenda Constitucional e
do Estatuto da Terra, a despeito da intensa movimentação anti-reformista, pode ser
considerada como importante indício de sua convicção acerca da necessidade da reforma
agrária. Para Castello, a estrutura agrária fincada do binômio latifúndio-minifúndio
356
CASTELLO BRANCO, C. Os Militares no Poder, op. cit. p.144.
357
Trecho de reportagem do jornal Folha de São Paulo extraído do livro de SILVA, J.G. A Reforma Agrária
no Brasil, op. cit. p.141.
179
179
constituía um obstáculo estrutural para o processo de modernização e industrialização do
Brasil.
Neste sentido, o jogo de forças estabelecido revelava muitos elementos de
continuidade com o período anterior. Se por um lado havia o governo elegendo um
determinado tipo de reforma agrária como elemento essencial ao processo de
desenvolvimento do país, por outro havia um movimento anti-reformista, utilizando-se dos
mesmos argumentos do pré-64 para refutar a idéia da reforma agrária.
Mas se não havia uma esquerda atuante, elemento que justificava, na visão
desses, a permanente “vigília” geradora de toda sorte de obstrução com a qual o tema foi
abordado, então o que lastreava a intensa oposição ao tema no período pós-golpe? Em
verdade, o que estava na raiz do problema era o significado simbólico construído em torno
do próprio tema. A Reforma Agrária necessariamente era tida como sinônimo do fim da
propriedade privada ou fim do poder representado por esta. Desta feita, o que impulsionava
o movimento oposicionista era a tentativa de barrar qualquer lei que, de certa forma,
possibilitasse a mudança da estrutura agrária, configurando-se em uma ameaça a
propriedade privada. Pouco importava se a reforma pretendida pelo governo tinha teor
capitalista, explicitada em sucessivas reuniões com as bancadas partidárias e associações de
classe, cujo discurso apontava para a preservação da propriedade produtiva.
Isso porque para a oposição, a idéia centrava-se na perspectiva de que o
desenvolvimento rural, especificamente, e do país de uma forma geral, não necessariamente
teria que vir precedido de mudanças na estrutura agrária do país. Como destaca Bruno,
obstáculo não significava, propriamente, antagonismo.
358
E os militares contrários ao
reformismo de Castello, que desde do início das discussões fizeram uma oposição velada no
que se refere à lei do Estatuto da Terra, partilhavam desde mesmo princípio.
A promulgação do Estatuto, sem dúvida representou um avanço, mesmo diante
dos trancos e solavancos sofridos no seu processo de estruturação. Apesar de ter sido
vulnerável às pressões dos que efetivamente “compartilhavam os meandros poder do
político” o Estatuto conseguiu condensar os fundamentos jurídicos que tornariam possível o
desencadeamento da Reforma Agrária no Brasil.
Neste sentido, o Estatuto da Terra encerrava uma etapa e ao mesmo tempo
reabria uma outra. Sua promulgação encerrava as reivindicações em prol de uma lei que
regulamentasse um sistema de medidas capaz de transformar a estrutura agrária brasileira.
358
BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra, op. cit. p.109.
180
180
Por outro, as conseqüências de sua malfadada aplicação, ou não aplicação, alavancou o
ressurgimento das reivindicações em torno da reforma agrária, com vistas à aplicação do
Estatuto da Terra. Ou seja, o Estatuto da Terra, nos dizeres de Palmeira, tornou-se uma
referência capaz de permitir a reordenação entre os grupos e propiciar a formação de
novas identidades,
359
empunhando velhas bandeiras.
3.2 – (DES) CAMINHOS: A COLONIZAÇÃO DIRIGIDA E A APROPRIAÇÃO À
ESQUERDA DO ESTATUTO
Com a promulgação do Estatuto, novas dificuldades juntavam-se ao rol das
velhas dificuldades, que a oposição ao projeto não desapareceu com a concretização do
mesmo em lei. Em discurso em Joinville em 10 de novembro de 1966, portanto dois anos
após a aprovação do Estatuto, Castello Branco ressaltava que embora o governo estivesse
tentando colocar em andamento os dispositivos e as fases estabelecidas em lei, este
encontrava dificuldades em função (...) de uma velha estrutura agrária muito distante de
uma desejada e moderna estrutura social, de uma extensão de território em contraste com
os recursos existentes e de uma mentalidade inadequada em muitas regiões do país.
360
A essas dificuldades somava-se a incapacidade do governo em ultrapassar os
obstáculos impostos pela configuração complexa na qual fundamentava-se a proposta no
que se refere à sua primeira fase, caracterizada pela organização dos cadastros, pelo
zoneamento e preparação do sistema tributário, além dos problemas burocráticos e
administrativos gerados dentro do órgão, IBRA, criado para a operacionalização da proposta
e que efetivamente não conseguia fazer avançar os trabalhos operacionais.
361
Apesar de ter conseguido manter, na Constituição de 67, os dispositivos
estabelecidos com a Emenda Constitucional n.º10, o fato é que Castello conseguiu, num
contexto político desfavorável, avançar na concretização das leis, mas, no terreno prático,
poucas ações foram finalizadas. Como as demais medidas do Estatuto dependiam da
concretização da primeira fase, a morosidade desta seguia comprometendo a execução das
demais ações num movimento em cadeia.
359
PALMEIRA, M. Modernização, Estado e Reforma Agrária. In: Estudos Avançados. n.º 7, 1989. p.95.
360
CASTELLO BRANCO. Discursos, op. cit. p.60.
361
SILVA, G. S. A Reforma Agrária no Brasil, op. cit.
181
181
Assim, a organização do Plano Nacional de Reforma Agrária e dos Planos
Regionais, bem como as desapropriações nas áreas prioritárias, a legalização de posse, a
colonização, a descriminação das terras públicas e até mesmo a tributação, permaneciam à
mercê da finalização dos trabalhos de zoneamento e cadastramento.
Conforme enfatizado em trecho do livro A Lanterna na Popa de Roberto
Campos, o tempo restante do governo Castello foi gasto no trabalho de preparação dos
cadastros, definição dos módulos, sistematização da tributação e do Plano Nacional de
Reforma Agrária. Desta feita, ao final de seu governo, de prático, seguiu-se a decretação das
áreas prioritárias, bem como a publicação de uma série de decretos regulamentares relativos
ao Estatuto, mas cuja continuidade dos trabalhos passou a depender venalmente do sucessor
de Castello Branco. Tarefa, aliás, cada vez mais distante no horizonte. Contraditoriamente,
as reformas que necessitavam de um sucessor para o seu processo de implantação eram as
mesmas que ocasionavam o alargamento das fissuras em sua suposta base aliada,
engrossando as reivindicações oposicionistas rumo a um redirecionamento da política
governamental, principalmente com relação à questão da implantação do Estatuto.
Neste sentido, a oposição frente às reformas, especialmente aqui a agrária,
transformou-se em uma importante fonte de apoio à ala do governo, insatisfeita com o
reformismo de Castello
362
e ansiosa para tomar as rédeas da situação. Nestes termos,
segundo Elio Gaspari, Costa e Silva soube administrar em seu favor os percalços políticos
do governo, sinalizando em prol de uma política mais conciliadora com os interesses
oposicionistas. Segundo o autor,
Enquanto Castello procurava manter uma ordem constitucional e se
chocava com o radicalismo, Costa e Silva valia-se dele. (...) Castello
recuava, Costa e Silva avançava. (...) Em maio de 1964, durante uma
recepção oferecida pelo presidente alemão Heinrich Lubke no
Copacabana Palace, aproximou-se do visitante e, apontando para a casaca
de Castello, disse: ‘Quem devia estar com essa casaca era eu, mas não
quis´. (...) Costa e Silva roera com astúcia e audácia a autoridade de
Castello. Se os radicais abriam uma crise exigindo a cassação do ex-
presidente Juscelino Kubitschek, o ministro da Guerra tornara-se porta-
voz da exigência. Quando surgia um movimento contra a realização de
eleições, o ministro amparava-o. Se Castello procurava pacificar as
relações dos intelectuais com o governo, seu ministro solidarizava-se com
a caça às bruxas na Universidade de São Paulo. Quando o governo
acertava, Costa e Silva era seu ministro da Guerra. Quando o Presidente
desagradava os quartéis, Costa e Silva transformava-se em comandante
revolucionário, capaz de negociar a indisciplina. Jogara nessas duas
posições com maestria. Colocara-se como estuário das frustrações de
todos aqueles que achavam necessário aprofundar o processo arbitrário e
362
BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra, op. cit.
182
182
punitivo. Não que fosse um radical: era apenas um manipulador da
anarquia. (...) Amparado pelo dispositivo militar, favorecido pela
impopularidade de Castello e apoiado pela elite política ligada ao
governo, Costa e Silva era chamado pelo Jornal do Brasil de encruzilhada
de todas as aspirações. Eleito indiretamente pelo Congresso em outubro
de 1966, juntara aspirações demais na sua encruzilhada. Aos políticos,
oferecia mais abertura. Aos militares, a continuação do regime. (...) E
acenava com uma política econômica mais suave que a de Castello.
Castello acreditava que com a fúria legiferante dos últimos meses de seu
governo, quando se votaram uma Constituição e dezenas de novas leis,
seu sucessor assumiria enquadrado, mas Geisel desafiara seu otimismo:
‘Ora Presidente, tenha paciência. Na primeira dificuldade que o Costa e
Silva tiver ele bota tudo isso fora. Se apóia no Exército ou nos amigos
dele e vira ditador.
363
Para além do processo de corrosão política, que minou as expectativas de um
sucessor em sintonia com o projeto castelista, havia, ainda, segundo Roberto Campos, as
limitações inerentes à proposta, evidenciadas no transcorrer do processo de implantação do
Estatuto. A conseqüência da conjugação desses fatores seria o emaranhado de medidas sem
uma finalização no qual se transformou a tentativa de implantação da proposta, facilitando o
seu progressivo desvirtuamento ou revogação tácita, segundo Martins
364
, nos governos
posteriores. Assim, Campos, ao ressaltar a diferença de pensamento entre Castello e seus
sucessores, assumia que a incapacidade de promover a reestruturação agrária em tempo
hábil, no decorrer do governo Castello, foi um dos motivos para o agravamento da
distribuição de renda no país. De acordo com o autor,
(...) no caso do Estatuto da Terra as intenções foram melhores que os
resultados. O trio gaúcho de presidentes militares que se sucederam
Costa e Silva, Médici e Geisel não tinha o mesmo sentido dramático do
problema de acesso à terra que tinha Castello, espectador do conflito
agrário do agreste nordestino, e consciente do sonho do caboclo de uma
nesga de terra perto do açude. Médici era pecuarista, habituado à grande
propriedade, e Geisel, medularmente preocupado com os problemas
urbanos de industrialização. (...) Hoje se reconhece, na literatura
econômica, que nossa falha em promover uma adequada reestruturação
agrária foi um dos motivos para a distribuição de renda no Brasil,
comparativamente aos dois rivais asiáticos Taiwan e Coréia do Sul. A
reforma agrária foi parte do elenco de reformas desses países na década
de 60, o que não melhorou a distribuição da renda como do poder
político entre as cidades e o campo, impedindo distorções de preços
punitivos para a agricultura, para subvencionamento dos consumidores
urbanos.
365
363
GASPARI, E. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.p.270/273.
364
MARTINS, J. S. A Militarização da Questão Agrária no Brasil, op. cit. p.54.
365
CAMPOS, R. A Lanterna na Popa, op. cit. p. 695.
183
183
A despeito do sentido dramático do acesso a terra, atribuído a Castello pelo
autor e teoricamente ausente nos demais governos, ressalta-se que o cerne da divergência
ultrapassa essa questão. Para Castello, o aumento da produção e produtividade, causa e
efeito do processo de modernização do campo e fator condicionante para a diminuição dos
desníveis de desenvolvimento entre campo e cidade, requeria um reordenamento da
estrutura fundiária, algo que todos os demais governos militares julgaram desnecessário e
até mesmo contraproducente.
Segundo a análise realizada por Castello e seus assessores, havia uma demanda
crescente que não era acompanhada no mesmo ritmo, pela oferta de produtos agrícolas. Tal
desequilíbrio, na ótica do governo, operava desfavoravelmente tanto no que tange à
manutenção dos preços dos produtos agrícolas como também contribuía para o descontrole
inflacionário, considerada uma das pragas inibidoras do desenvolvimento nacional. No
discurso pronunciado em Cuiabá, Castello reafirmava a preocupação com a necessidade de
aplicação de medidas que organizassem e incentivassem o setor agropecuário, posto que, no
seu entender, o ritmo de desenvolvimento deste setor deve ser superior ao da expansão
demográfica, na tentativa de controlar o êxodo dos campos e a demasiada concentração
urbana (...).”
366
A preocupação com a concentração urbana advinha da análise de que o setor
industrial não tinha condições de absorver o contingente populacional, agravando o
problema do desemprego e da miséria nas cidades, o que potencialmente enfraquecia o
consumo. Mas a essa preocupação somava-se o fato de que o reaquecimento do setor
proporcionaria, além da oferta maior de produtos no mercado, o excedente necessário para
reverter a posição do país de importador de alguns produtos primários, inclusive agrícolas,
em grande exportador, fortalecendo a poupança interna.
Assim, conjuntamente à adoção da política de preços mínimos, entendida como
imprescindível naquele momento, pois ofereceria certa segurança frente às inconstâncias do
mercado, o governo entendia que o reordenamento da estrutura fundiária tornava-se
imprescindível em função dos obstáculos impostos por esta rumo à concretização de seus
objetivos.
Dessa forma, tal reordenamento a que se refere, passava pela defesa de um
sistema de distribuição de terra que favorecesse a ampliação de uma classe média rural, com
pleno estímulo à sua capacidade de produção e, obviamente, de poder de consumo. Mas o
366
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 20 de março de 1966. Secretaria de Imprensa, p.77.
184
184
aumento da produção e produtividade passava, sobretudo, pelo combate às duas
malformações dessa estrutura: o latifúndio improdutivo e o minifúndio. O primeiro em
função do sub-aproveitamento da terra, utilizando-a como fator de especulação, gerando
uma “riqueza estéril”, fator de desestímulo ao uso eficiente da terra e da força de trabalho, e
o minifúndio, que por seu tamanho reduzido incapacitava o proprietário de obter
rendimentos compatíveis para o investimento em equipamentos capazes de proporcionar o
aumento da produtividade.
Para o primeiro caso a tributação e a desapropriação seriam as formas mais
adequadas de desestímulo ao uso especulativo da terra, e no segundo caso a distribuição de
terras e a organização dos proprietários em cooperativas, objetivando acesso mais fácil aos
créditos e assistência técnica, as medidas mais plausíveis. A esse intento somava-se a
questão da regularização da posse da terra e dos contratos de arrendamento e parceria. A
permanência do enorme contingente de produtores rurais à margem da regularização da
posse da terra comprometia sobremaneira a produção e produtividade, dado o estado de
permanente instabilidade e dificuldade de acesso a crédito e assistência técnica. Neste
mesmo sentido, defendia-se a regulamentação das relações contratuais no campo.
Em resumo, o aumento e diversificação da produção e a intensificação da
produtividade, não somente dependia do esquema de mudança econômico-social, mas
também de uma política agrícola entendida como adoção de um novo sistema tributário
sobre a terra, educação, assistência técnica, organização em cooperativas e a melhoria do
sistema de créditos, para que fosse acessível a todos os proprietários, independente do
tamanho do imóvel.
A análise realizada por Castello e seus assessores não encontrava eco entre os
militares mais conservadores. Havia somente um ponto em comum, a importância da
agricultura na economia nacional, pois em todo o resto divergiam. O cerne da divergência
versava sobre o entendimento de Castello quanto à análise da estrutura agrária
compreendida como obstáculo ao desenvolvimento do campo. Para os militares posteriores
a Castello, a estrutura agrária não era impedimento para o desenvolvimento do campo,
portanto, promover mudanças na estrutura agrária, com base em uma reforma agrária, ainda
que tivesse contornos capitalistas, era inócua, desnecessária e somente traria mais
instabilidade ao sistema produtivo agrícola. Essas concepções distintas, em muitos aspectos,
eram endossadas pelas avaliações sobre a situação da agricultura brasileira, realizadas pelos
assessores de governo a partir de Costa e Silva. Sobre esse debate Delgado afirma que
185
185
A leitura sobre o desempenho do setor agrícola no Pós-guerra, na
perspectiva do PAEG (1964-66), tentou fazer um misto da interpretação
da agricultura expressa no Plano Trienal (63-65) e uma ponte com a visão
desenvolvimentista-funcionalista (EPEA, 1965:91-108). Diagnosticou
atraso no desempenho da agricultura, comparativamente à indústria, baixo
grau de incorporação tecnológica, facilitado por uma fronteira agrícola em
contínua expansão, estagnação no comércio exterior, pressões
inflacionárias oriundas do desenvolvimento da agricultura e inadequação
da estrutura agrária. A esse diagnóstico, o grupo da USP, liderado por
Delfim Netto (1965:279-298), respondeu com uma crítica radical
conservadora, fortemente apoiada na justificação técnica e econométrica.
Os pontos principais desse debate foram os seguintes: os preços por
atacado de produtos agrícolas no período 1949/63 cresceram
sistematicamente aquém dos preços industriais, não havendo pressão
inflacionária oriunda da agricultura; o produto bruto do setor agrícola tem
crescido a taxas adequadas à trajetória do produto industrial no pós-
guerra; as exportações agrícolas ficariam de fato estagnadas e não
diversificadas; a estrutura agrária não seria problema para o
crescimento, nem haveria necessidade de reforma agrária nos termos do
Estatuto da Terra (grifo meu), mas tão somente ações pontuais e
regionais (Leia-se Nordeste), onde o sistema agrário não responderia ao
sistema de preços; a agricultura precisaria se modernizar e continuar
cumprindo suas funções clássicas no desenvolvimento econômico. Esse
diagnóstico e programa de crescimento agropecuário, explícito nas teses
de 1963-64 do grupo da USP liderado por Delfim Netto, correspondem,
na verdade, a uma proposta de modernização sem reforma. O resgate das
teses modernizantes de Delfim Netto e de seu grupo iniciou-se no
governo Castello Branco como reação ao Estatuto da Terra, mas
manifestou-se como projeto explícito do governo a partir do momento em
que Delfim Netto assumiu o Ministério da Fazenda em 1967, e começou a
implantar o Sistema Nacional de Crédito Rural como principal estrutura
de fomento à produção agropecuária.
367
Portanto, por essa avaliação, o aumento da produção e da produtividade poderia
desvincular-se de medidas que almejassem mudanças da estrutura fundiária, pois a raiz do
problema encontrava-se em outra esfera, na falta de incentivos fiscais, de créditos e
subsídios, e o aperfeiçoamento do setor agrícola poderia ser alcançado com a aplicação de
uma efetiva política agrícola. Tais pressupostos foram defendidos inclusive pelos setores
contrários à organização do Estatuto da Terra, sob a alegação de que havia um grande
número de proprietários com terra mas sem condições de fazê-la produzir.
Esta alegação também era utilizada para justificar a oposição ao novo sistema de
tributação, pois serviria apenas, segundo os oposicionistas, para agravar a situação dos
proprietários sem condições de fazer sua terra produzir, configurando-se, por isso, em mero
confisco de terras.
367
DELGADO, G. C. Expansão e Modernização do Setor Agropecuário no Pós-Guerra: Um Estudo da
Reflexão Agrária. In: Estudos Avançados, 15 (45), 2001. p.p.160/161.
186
186
Apesar das afirmações de Delgado, o governo Costa e Silva não representou uma
ruptura brusca com o governo anterior, mas sem dúvida foi no seu governo que mudanças
substanciais com relação à questão agrária começaram a ser cristalizadas. Como elemento
que aglutinou em torno de si a forte representação anti-Castello, Costa e Silva, logo depois
de sua posse, em mensagem enviada ao Congresso procurou demarcar um posicionamento
“revisionista” com relação ao governo anterior, ao destacar que
O governo que tenho a honra de chefiar encontrou situação delicada, a
despeito da grande obra de desbravamento realizada pelo eminente
marechal Humberto de Alencar Castello Branco, cujo falecimento privou
o Brasil da figura de um estadista excepcional. Muito que consolidar,
recompor, refazer, reconstruir.
368
No entanto, ao mesmo tempo em que havia uma forte movimentação dentro do
governo que rumava para o fortalecimento do discurso em prol da substituição da política de
mudança da estrutura agrária pelo enrijecimento da política agrícola, nas mensagens
presidenciais enviadas ao Congresso, nos anos subseqüentes de seu governo, o termo
Reforma Agrária ainda aparecia discriminado.
Mas a partir de 1967 o termo Estatuto da Terra e “a prestação” de contas quanto
às atividades desenvolvidas relacionadas à lei, presentes no item “Economia e Políticas
Sociais” das mensagens anuais de Castello, desaparecem do discurso oficial. Em seu lugar,
o termo Reforma Agrária começa a ser apresentado enquanto sinônimo de política agrícola
e colonização. Tanto que, nas primeiras mensagens, a colonização deixava de ser alocada no
item específico do Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA), para constituir o
rol das concretizações na área específica destinada à Reforma Agrária.
A supressão do Estatuto da Terra das mensagens governamentais representava a
tentativa de transformar a teoria que fazia frente aos postulados de Castello em projetos
práticos, reafirmando, com isso, a divergência existente entre Castello e seus sucessores, no
que concerne à necessidade de uma lei que promovesse mudanças na estrutura agrária. De
acordo com Martins,
Durante o governo Castello Branco, a questão fundiária fora encaminhada
a partir da perspectiva de que era possível dar uma solução empresarial e
econômica ao problema social da terra, sem produzir lesões no direito de
propriedade, até mesmo como recurso para atenuar as tensões sociais,
diminuir o êxodo rural, aumentar a produção de alimentos. a partir do
368
Mensagem do Presidente Costa e Silva p.09. Brazilian Presidential Messages, 1890 – 1993. Disponível em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/prestoc.htm Acesso em: 09/04/2007.
187
187
governo Costa e Silva, o problema da terra, e particularmente da terra da
Amazônia, transformou-se progressivamente num problema militar.
369
A partir do governo Costa e Silva, o Estatuto da Terra passa a ser
convenientemente negligenciado em seus aspectos formais.
370
Sob a ótica dos militares mais
conservadores, o Estatuto era considerado inócuo, porque resultava de uma avaliação
equivocada da estrutura agrária brasileira. Se o diagnóstico estava errado, o remédio não
surtiria o efeito desejado, podendo, inclusive, agravar o problema. Os militares pós-Castello
tinham outro diagnóstico e, com base neste, iriam paulatinamente colocar em andamento,
segundo Delgado, o seu próprio projeto para o campo. Com isso, as ações desencadeadas no
período Castello que versavam sobre o início da aplicação da lei, tais como: a atualização
dos cadastros rurais, zoneamento e a continuidade das ações nas áreas prioritárias foram
suspensas e substituídas por outras áreas mais condizentes com o “novo projeto”, como foi
o caso da região Amazônica, ou simplesmente colocadas em “modo de espera”.
Em meio a esse processo revisionista, uma nova série de políticas de Estado e
instituições emergiu para constituir esse novo projeto que contemplava o crescimento
acelerado da produção agrícola com vistas à modernização e à política de integração
nacional, unificados pela noção geral de segurança nacional
371
sem que houvessem
mudanças na estrutura fundiária. A aplicação do Estatuto da Terra, enquanto um conjunto
de medidas a serem aplicadas em conjunto de acordo com os problemas levantados pelo
zoneamento e cadastramento, deixava de ser priorizada. Passou-se a privilegiar apenas
alguns instrumentos que melhor se enquadravam à perspectiva do desenvolvimento,
integração e segurança nacional.
Assim, o Estatuto da Terra ora passa a ser caracterizado como sinônimo de
Colonização Dirigida, Oficial ou Particular, com os mais diversos objetivos, dependendo
dos interesses oficiais, ora a Colonização substitui o Estatuto transformando-se em política
oficial do Estado para o campo. Nada mais distante da meta visada por Castello, pois a
colonização constituía-se apenas em um dos instrumentos do Estatuto. Ao direcionar todo
enfoque somente para a Colonização, os governos militares faziam uma interpretação
parcial do Estatuto.
O Estatuto da Terra foi elaborado para dar conta das diversidades regionais, por
isso vários instrumentos foram incorporados ao conjunto da lei. De acordo com o
369
MARTINS, J. S. A Militarização da Questão Agrária no Brasil, op. cit. p.41.
370
HOUTZAGER, P. Os Últimos Cidadãos: Conflito e modernização no Brasil Rural (1964-1995). São
Paulo: Globo, 2004. p.54.
371
Idem, p.53.
188
188
zoneamento e os problemas encontrados, determinados instrumentos eram considerados
mais eficazes do que outros. Assim, nas regiões com forte pressão sobre a terra, geralmente
identificadas pela concentração de latifúndios e minifúndios, bem como pela forte
incidência de conflitos e êxodo rural, a desapropriação e redistribuição de terras deveriam
ser os instrumentos priorizados em conjunto com a organização de cooperativas para os
pequenos produtores. Em regiões caracterizadas como pioneiras, onde não havia ainda forte
pressão sobre a terra, a colonização representava o instrumento mais adequado, com fins de
povoamento dos “espaços vazios” e reversão do êxodo para as cidades, mas isso não
significava um enquadramento inflexível desses instrumentos, pois a colonização não se
restringiria somente às áreas pioneiras, como a desapropriação também, não
necessariamente, se limitaria às áreas prioritárias.
A divisão em regiões com características homogêneas e com ações preferenciais
determinadas para cada uma delas, não significava que no andamento de sua aplicação
determinadas regiões seriam privilegiadas em detrimento de outras. No entender dos
organizadores do Estatuto, as ações teriam que ocorrer de forma sincrônica, pois ao
privilegiar uma determinada região em detrimento da outra, ocorreria o agravamento do
quadro já conhecido, como o acentuamento dos conflitos agrários e do êxodo rural.
Para Moacir Palmeira, uma legislação não determina uma política”, mas, sem
dúvida, o emaranhado de dispositivos contidos na lei, justificados pela diversidade regional,
possibilitava diferentes vias de desenvolvimento da agricultura e oferecia múltiplos
instrumentos de intervenção ao Estado”, e após 67 várias vias foram priorizadas, a
modernização do latifúndio em prejuízo à formação da propriedade familiar, a colonização
e, mais adiante o enfoque na constituição de grandes empresas no campo, especialmente na
região Amazônica. Ainda segundoPalmeira,
Sorj, referindo-se à Amazônia, havia chamado a atenção para a não
definição a priori da forma que a colonização acabou assumindo na
região. Na verdade, seria mais justo dizermos que uma via de
transformação no campo foi sendo construída, à medida mesmo que
aqueles instrumentos de intervenção iam sendo acionados em função das
diferentes conjunturas do jogo de interesses que se antepõem em torno
das questões ligadas à terra e à produção rural, que estão longe de ser
estáticas ou referidas a um elenco fixo de grupos sociais e instituições.
372
No decorrer do governo Castello, a problemática da ocupação das zonas
pioneiras, especialmente a Amazônia, fora encaminhada sob o prisma, segundo Ianni,
372
PALMEIRA, M. e LEITE, S. Debates Econômicos, Processos Sociais e Lutas Políticas: Reflexoes sobre a
Questao Agrária. Rio de Janeiro. CPDA/UFRRJ, 1997. p.73.
189
189
Do vazio demográfico, vazio econômico, escassez de recursos de capital,
dispersão de recursos humanos e econômicos, insuficiência dos meios de
transporte e comunicações, predomínio de atividades econômicas
extrativistas, identificação entre borracha e Amazônia, populações e
culturas indígenas desconhecidas ou pouco cultivadas, terras virgens,
fartas e talvez férteis ou ricas, inclusive em minerais, cobiça
internacional, geopolítica.
373
No entanto, essa avaliação não havia sido originada nos bastidores do governo
que se instaura em 64. Pelo contrário, tal perspectivahavia influenciado a criação de dois
órgãos federais cujo objetivo centrava-se na questão do desenvolvimento da região e sua
inclusão na órbita do desenvolvimento nacional. Em 1942 criou-se o Banco de Crédito da
Borracha S.A., cuja incumbência versava sobre a compra e venda da borracha destinadas ao
mercado nacional e internacional. Em 1950, esse órgão federal passa a denominar-se Banco
de Crédito da Amazônia, dilatando suas funções creditícias para além das atividades
vinculadas à extração e comercialização da borracha. No decorrer do governo Castello, o
Banco passa por mais uma reestruturação interna a fim de atender com mais agilidade a
procura crescente por créditos, e novamente sua denominação é alterada para Banco da
Amazônia S.A. (BASA).
374
A Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia
(SPVEA), o segundo órgão criado no âmbito do Governo Federal em 1953, tinha como
finalidade promover levantamentos quanto aos problemas econômicos e sociais da região e
propor soluções. De acordo com seu regulamento, a SPVEA visava,
a) assegurar a ocupação da Amazônia num sentido brasileiro; b)construir
na Amazônia uma sociedade economicamente estável e progressista,
capaz de, com seus próprios recursos, prover a execução de suas tarefas;
c) desenvolver a Amazônia num sentido paralelo e complementar ao da
economia brasileira. Para alcançar esses objetivos, o projeto previa o
desenvolvimento da agropecuária, transportes, comunicações, energia,
desenvolvimento cultural, recursos naturais, saúde e saneamento, crédito
e comércio.
375
Em 1965, em discurso realizado em Belém do Pará, Castello reforçava as
preocupações com relação ao “vazio demográfico” da região e com a ausência de ações
efetivas do poder público relacionadas à infra-estrutura, o que no seu entender contribuíam
para a reprodução do jargão: “região abandonada à própria sorte”. Para Castello, as
tentativas frustradas dos governos anteriores de disciplinar o desenvolvimento da região
373
IANNI, O. Colonização e Contra-Reforma Agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 36.
374
Idem, p.36.
375
Jornal Folha de São Paulo, 16 de abril de 1967.
190
190
resultavam das numerosas irregularidades e intencionais deformações, que permitiram
calculada dilapidação do erário público na Amazônia. Daí a necessidade que tivemos de,
primeiramente, sanear, organizar e planejar os serviços a cargo da União.
376
Assim, pela
Lei n.º 5.173 de 27 de outubro de 1966, foi criada a SUDAM (Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia) sob os pilares da extinta SPVEA, incorporando, inclusive,
bens e recursos pertencentes a esta última.
377
Dentre as principais atribuições da SUDAM, figurava a elaboração,
administração e fiscalização do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, cujas
orientações versavam sobre:
Realização de programas de pesquisas e levantamento do potencial
econômico da região como base para a ação planejada em longo prazo;
definição dos espaços econômicos suscetíveis de desenvolvimento
planejado, com a fixação de pólos de crescimento capazes de induzir o
desenvolvimento de áreas vizinhas; concentração de recursos em áreas
selecionadas em função de seu potencial e populações existentes;
formação de grupos populacionais estáveis, tendente a um processo de
auto-sustentação; adoção de uma política imigratória para a região, com
aproveitamento de excedentes populacionais internos e contingentes
selecionados externos; fixação de populações regionais, especialmente no
que concerne às regiões de fronteiras; ordenamento da exploração das
diversas espécies e essências nobres nativas da região, inclusive através
da silvicultura e aumento da produtividade da economia extrativista
sempre que esta não possa ser substituída por atividade mais rentável;
incentivo e amparo à agricultura, à pecuária e à piscicultura como base de
sustentação das populações regionais; ampliação das oportunidades de
formação e treinamento de mão-de-obra e pessoal especializado
necessário às exigências de desenvolvimento da região; adoção de intensa
política de estímulos fiscais, creditícios e outros, com objetivo de: I-
assegurar a elevação da taxa de reinversão na região de recursos nela
gerados, II- atrair investimentos nacionais e estrangeiros para o
desenvolvimento da região; concentração da ação governamental nas
tarefas de planejamento, pesquisa de recursos naturais, implantação e
expansão da infra-estrutura econômica e social.
378
O objetivo com esses projetos, SUDAM e BASA, não era substituir o Estatuto
da Terra, muito menos fazer deles o instrumento de implantação exclusiva da grande
empresa, mas sincronizar as ações e os órgãos de modo que tanto a iniciativa privada quanto
os organismos federais e estaduais pudessem otimizar e agilizar o desenvolvimento
econômico e social da região.
376
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 13 de Junho de 1965. Secretaria de Imprensa, p.199.
377
BASA, Amazônia: Legislação Desenvolvimentista. Belém: Departamento de Estudos Econômicos, 1969,
p.72.
378
BASA, Amazônia: Legislação Desenvolvimentista, op. cit. p.p.56/57.
191
191
O mito do vazio demográfico alimentava a idéia de que seria possível uma
estratégia que combinaria estímulo à iniciativa privada para o estabelecimento de empresas
de beneficiamento
379
, que geraria empregos no campo, com as ações previstas pelo Estatuto
da Terra, a cargo do IBRA e INDA. Nestes termos, ainda no discurso realizado em Belém,
Castello afirmava que
O que significa estar o governo preocupado em dar crescente eficiência
aos órgãos que tem a seu cargo a importante tarefa de transformar
fundamentalmente as condições econômicas e sociais da região. Para
tanto, contamos inclusive com a experiência auferida dos próprios
malogros, que nos permitirão rever os problemas dentro de ampla visão
de conjunto, a começar pelo plano de valorização da Amazônia (...). E a
ação dispersa, desconexa, dos vários órgãos de desenvolvimento regional
deverá polarizar-se num plano unificado e harmônico. Objetivo que
deverá ter como passo inicial a revisão de uma série de leis que
vincularam gradativamente os recursos constitucionais, hoje empenhados
em cerca de sessenta por cento, e, portanto, fundamentalmente reduzidos
para as grandes iniciativas de caráter geral. Dispersaram-se e
pulverizaram-se os recursos, cada qual interessado em reservar-se um
quinhão preferencial, mas indiferente ao panorama global,
inevitavelmente sacrificado
380
.
Pensada como uma região a ser desbravada em quase sua totalidade, a princípio,
os esforços do governo centralizar-se-iam na colonização
381
para localidades da Amazônia
379
Embora o Plano de Valorização Econômica da Amazônia ressaltasse o incentivo à agricultura, pecuária e
piscicultura, no Capítulo II parágrafo único da lei que o institui, lia-se “para aprovação pela SUDAM terão
preferência os projetos de industrialização de matéria-prima regional.”. BASA, Amazônia: Legislação
Desenvolvimentista, op. cit. p.59.
380
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 13 de junho de 1965. Secretaria de Imprensa, p.200.
381
De acordo com o Estatuto da Terra a colonização oficial deveria ser realizada em terras incorporadas ao
Patrimônio Público ou que viriam a sê-lo. Ela seria efetuada, preferencialmente, nas áreas: ociosas ou de
aproveitamento inadequado; próximas a centros urbanos e de mercado de fácil acesso, tendo em vista os
problemas de abastecimento; de êxodo, em locais de fácil acesso e comunicação, de acordo com os planos
nacionais e regionais de vias de transporte; a integração e o progresso social e econômico do parceleiro; o
levantamento do nível de vida do trabalhador rural; a conservação dos recursos naturais e a recuperação social
e econômica de determinadas áreas e aumento da produção e produtividade no setor primário. De acordo com
o decreto 59.428 de 27 de outubro de 1966 que trata da regulamentação do item referente à colonização e
outras formas de acesso à terra, diz que: “Art. 5 – Colonização é toda atividade oficial ou particular destinada a
dar acesso à propriedade da terra e a promover seu aproveitamento econômico, mediante exercício de
atividades agrícolas, pecuárias e agro-industriais, através da divisão e lotes ou parcelas, dimensionadas de
acordo com as regiões definidas na regulamentação do Estatuto da Terra, ou em cooperativas de produção nela
previstas.§ 1.º - A colonização em áreas prioritárias terá por objetivo promover o aproveitamento econômico
da terra, preferencialmente pela divisão em propriedades familiares, congregando os parceleiros em
cooperativas ou mediante a formação de cooperativas de colonização de tipo coletivo. § 2.º - A colonização
com fins de povoamento e segurança nacional terá caráter pioneiro, devendo a área das parcelas ajustar-se,
sempre que possível, às características das pequenas e médias empresas rurais, definidas nos termos da Lei, e,
em especial no § 2.º do artigo 60 do Estatuto da Terra (conforme parágrafo: a empresa rural, desde que
incluída em projetos de colonização, deveria permitir a livre participação em seu capital dos respectivos
parceleiros). Art. - Nas regiões definidas nos incisos II e III do artigo 43 do Estatuto da Terra (esses incisos
referem-se: no caso do inciso II às regiões em estágio mais avançado de desenvolvimento social e econômico,
em que não ocorrem tensões nas estruturas demográficas e agrárias e o III: refere-se as regiões
economicamente ocupadas em que predomine economia de subsistência e cujos lavradores e pecuaristas
192
192
Legal com certa infra-estrutura
382
, pois do contrário elevaria os custos adicionais de sua
efetivação pela completa ausência de condições mínimas de estabelecimento dos núcleos.
Progressivamente, na medida em que a SUDAM promovesse a implantação e expansão da
infra-estrutura, a tendência seria a ocupação gradativa, inclusive nas regiões de fronteira.
Portanto, a colonização oficial e em caráter complementar, a particular
383
, objetivava a
fixação de núcleos para locais pré-determinados pelos órgãos federais onde prevalecesse
certa infra-estrutura sob pena de reproduzir os problemas e as dificuldades que os
trabalhadores rurais encontravam na região e em outras regiões. E isso definitivamente não
contribuiria para atingir os objetivos de aumento da produção e produtividade, bem como o
fortalecimento de uma classe média no campo. Assim, pode-se afirmar que a colonização
seria uma forma de ordenar e racionar a ocupação da região em terras devolutas ou
desapropriadas. Por isso, ela deveria ser, segundo discurso promovido por Castello em
Manaus, “uma conquista gradual, progressiva e planificada”.
384
Para a implantação desses núcleos, a intenção inicial centrava-se no chamado
fluxo migratório natural, constituído por trabalhadores que abandonavam os campos rumo
aos centros urbanos. A idéia, então, consistia em redirecionar esse “êxodo” para a ocupação
careçam de assistência técnica), através da criação de propriedades familiares e pequenas e médias empresas
rurais, a colonização visará: a) ao aproveitamento de área cuja exploração seja inadequada e acarrete o uso
predatório dos recursos naturais, ou cujos proprietários não disponham de meios para adoção de práticas
conservacionistas; b) ao aproveitamento de áreas incluídas em planos preferenciais de implantação de grandes
obras de infra-estrutura; c) ao aproveitamento de áreas situadas nas bacias de irrigação de açudes públicos e
particulares; d) ao aproveitamento de áreas de bacias hidrográficas que possibilitem o uso múltiplo de suas
águas; e) à fixação de migrantes ao longo dos eixos viários. É preciso ressaltar que a viabilização da
colonização tanto oficial quanto particular requeria a formulação de um projeto de colonização a ser submetido
ao órgão responsável para aprovação. Neste deveria constar: a avaliação e caracterização dos aspectos físicos
da área. Neste item incluía-se sua denominação e localização; topografia, superfície e limites; vias de acesso e
comunicações; índices climáticos; cobertura vegetal; solos e hidrografia. No item, esquema da organização
proposta para a área, exigiam-se os objetivos sociais e econômicos do projeto; número de unidades e tipos de
parcelas, e respectiva exploração econômica; indicação das obras de infra-estrutura e dos serviços a serem
instalados nos centros comunitários; organização técnico-administrativa prevista para a implantação e
administração do conjunto. No item, características sociais, econômicas e financeiras dever-se-ia incluir no
projeto, estrutura da cooperativa ou de outros órgãos de assistência aos parceleiros; condições de mercado e
possibilidades de comercialização da produção; custo provável dos investimentos, seu esquema de aplicação e
demonstração da rentabilidade e viabilidade do projeto. Além desses, exigia-se ainda o valor e modalidade de
amortização de cada tipo de lote.
382
A fixação dos núcleos em locais com certa infra-estrutura era pensada sob a perspectiva das facilidades de
escoamento da produção, tornando os produtos da região mais competitivos no mercado, além do acesso a
financiamentos e créditos, fatores considerados essenciais para a otimização da produção e produtividade.
383
De acordo com o decreto 59.428- de 27 de outubro de 1966, no capítulo VI, artigo 81, “A colonização
particular tem por finalidade complementar e ampliar a ação do Poder Público na política de facilitar acesso à
propriedade rural através de empresas organizadas para sua execução”. Às empresas de colonização que se
destinavam a complementar as ações do governo federal em locais determinados por este, seriam concedidos
alguns estímulos, tais como: terras disponíveis e financiáveis a longo prazo; obras e recursos de infra-
estrutura; seleção, capacitação e encaminhamento de agricultores; apoio aos pedidos de financiamento de seus
projetos.
384
CNBB, Pastoral da Terra: Posse e Conflitos, op. cit. p. 68.
193
193
da região. Além disso, a colonização visava suplantar a ocupação espontânea na região que
desde a década de 50, induzida pela propaganda realizada pelos antigos projetos
implantados na região que propalavam a Amazônia como o Eldorado brasileiro, local de
riquezas incontáveis, onde prevalecia a abundância de terras virgens e férteis, promovia a
ocupação desordenada da região.
Em função da colonização espontânea, Castello e seus assessores primavam pela
urgência do cadastramento que permitiria identificar o número de propriedades em situação
irregular e, posteriormente, regularizá-las como ponto fundamental para que esses
proprietários conseguissem beneficiar-se dos créditos e financiamentos do Banco do
Amazonas. Em suma, dever-se-ia cadastrar as propriedades, regularizar as posses de terras e
identificar a extensão das terras devolutas e improdutivas para fins de colonização.
Assim, no governo Castello, a questão da região Amazônica permanecia restrita
à tentativa de solucionar os problemas da região identificados pelo zoneamento e não como
solução prevista para os problemas de outras regiões em função de seu suposto “vazio
demográfico”, até porque, em teoria, as ações para as demais regiões haviam sido
traçadas em função do zoneamento.
No entanto, a velocidade das ações burocratizadas do Estado não conseguia
acompanhar a velocidade das necessidades reais. A colonização oficial não conseguia
acompanhar a colonização espontânea, muito menos substituí-la enquanto medida racional
de ocupação. Ironicamente, a colonização espontânea que acontecia para a região
Amazônica tomou fôlego a partir da criação do BASA e SUDAM. Ao mesmo tempo em
que a SUDAM e o BASA eram considerados os órgãos do governo federal incumbidos da
formulação e adoção de medidas que possibilitassem o desenvolvimento econômico da
região, a colonização era tida como uma medida prática que poderia dinamizar o setor
produtivo regional e progressivamente solucionar o problema da chamada segurança
nacional”. Segundo Ianni,
A essa época, a SUDAM colocava o problema da colonização como um
assunto setorial, definido principalmente em termos de “colonização e
segurança”, isto é, nos termos da geopolítica inspirada na doutrina de
defesa posta pelo poder público como uma forma de preencher vazios,
reforçar núcleos preexistentes, ocupar áreas, de modo a garantir a
Amazônia na esfera do poder nacional.
385
A partir do governo Costa e Silva (1967/1969), a preocupação com a inserção”
da Amazônia na esfera do poder nacional, ou seja, a integração política e econômica da
385
IANNI, O. Colonização e Contra-Reforma Agrária na Amazônia, op. cit, p.37.
194
194
região tornava-se a pedra de toque do governo e de seus principais assessores. O caráter
emergencial da ocupação da região Amazônica era motivado pelas questões de segurança e
soberania nacional, consideradas ameaçadas pela incapacidade do governo federal de
“incorporar” de fato e rapidamente o território, povoando-o e promovendo seu
desenvolvimento econômico. Tais impressões podem ser extraídas por meio da reportagem
do jornal Folha de São Paulo, onde este afirmava que
Um país que tem, na Amazônia, mais de 1.100 km de fronteiras apenas
teóricas e não tem meios ou disposição para exercer a sua soberania
nessas fronteiras e áreas adjacentes, é porque não tem personalidade ou
força suficiente para exercer essa soberania. É o que ocorre com o Brasil
em relação às suas fronteiras amazônicas, e, também, em relação à
Amazônia Central (ou Interior) e à Periférica. Mais da metade do
território nacional ainda não está incorporado à sua vida econômica,
conforme Documento Básico do Encontro sobre a Ocupação do
Território, promovido pelo IBRA e pelo Ministério da Agricultura, no ano
passado. O que está ocorrendo na Amazônia? As notícias sobre
contrabando; sobre violação de fronteira; sobre a fuga de aventureiros
presos, em vôo direto e clandestino de Brasília a Miami; sobre
loteamentos e grilagem de grandes glebas, praticadas também ilegal e
clandestinamente, por estrangeiros e seus testas-de-ferro brasileiros
386
.
Não se tratava de uma crítica isolada do jornal, mas o reflexo e a confirmação de
uma visão que se ampliava no âmbito do governo e se irradiava para outras esferas sociais.
Em artigo no jornal Folha de São Paulo, o então Ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho,
enfatizava que
Ou seremos capazes de lançar vigorosamente a Amazônia no caminho do
desenvolvimento, ou a História não nos perdoará o havermo-la perdido.
Sim, perdido. Ela não ficará impunemente em nossas mãos, apenas
balizada pelas denotadas e sofredoras guarnições militares de fronteira,
quando a pressão demográfica mundial a exigir em nome da luta contra a
fome. (...) Chegamos, pois, ao ponto em que não precisamos fazer o
célebre “jogo floral de palavras” para enfatizar a tremenda
responsabilidade que enfrentamos. A solução do problema amazônico, é
imperativo obtê-la a curto prazo. Se desejamos retê-la na área de nossa
soberania, urge que aceitemos em definitivo o desafio e que, abandonando
as frases de efeito partamos decididamente para o cumprimento da
ciclópica missão, que é lhe dar e concreto a destinação prevista por
Humbold: fazê-la o “celeiro do mundo”
387
.
A expressão do ministro Jarbas Passarinho, a solução do problema amazônico,
é imperativo obtê-la em curto prazo”, é emblemática para se explicar o impulso que os
projetos de colonização adquirem neste período. A colonização era interpretada como um
processo mais vantajoso sobre vários aspectos. Em primeiro lugar, o problema do “vazio
386
Jornal Folha de São Paulo, 28 de abril de 1968.
387
Jornal Folha de São Paulo, 16 de abril de 1964.
195
195
demográfico” poderia ser revertido com a colonização que ainda ofereceria a expansão da
fronteira agrícola do país, sem que houvesse a necessidade da alteração da estrutura
fundiária nos moldes do Estatuto da Terra, considerado mais complexo e politicamente mais
conflituoso. Ou seja, conseguir-se-ia um aumento da produção, utilizando-se de maneira
mais eficiente os “espaços ociosos” da região.
Além disso, a ênfase na colonização dirigida para a região passa a ser
interpretada como uma alternativa para a solução dos problemas de outras regiões, a
princípio do Nordeste e depois das regiões Sul e Sudeste caracterizadas, anteriormente,
como áreas prioritárias para a reforma agrária por estarem enquadradas como regiões com
forte pressão sobre a terra e alta concentração de latifúndios e minifúndios. De acordo com
Martins,
O Ministério do Interior, ocupado pelo general Albuquerque Lima, um
general nacionalista identificado com o pensamento da Escola Superior de
Guerra, definiu como objetivo nacional prioritário a política de integração
da Amazônia. Reduzindo a questão a termos simples, a pressão social e
fundiária do Nordeste poderiam ser resolvidos na Amazônia, mediante o
desenvolvimento de projetos de ocupação dos “espaços vazios”, criação
de pólos de desenvolvimento, com envolvimento decisivo das Forças
Armadas.
388
Tendo em vista a perspectiva de “solução rápida” para a questão amazônica,
Jarbas Passarinho ressaltava ainda que os dispositivos reformulados e acionados pelo
governo Castello mostravam-se insuficientes para solucionar os problemas da região. Em
função disso, sugere que estes fossem igualmente revistos a fim de dinamizar os
investimentos privados, ao declarar que: de mim, receio que os diplomas legais que hoje
constituem o corpo da ‘Operação Amazônica’ ainda não sejam o ideal desejado para os
fins a que se destinam, o que pode ser facilmente obviado por modificações relativamente
simples.
389
Tais modificações referiam-se especificamente à necessidade de reformulação
das leis de dezembro de 66 que versavam sobre a criação da SUDAM e do Plano de
Valorização Econômica da Amazônia. Segundo Ianni,
A lei que criou a SUDAM, em 1966, foi alterada pela Lei n.º 5.374, de 7
de dezembro de 1967, de tal modo que os objetivos e os meios da
SUDAM se tornaram mais precisos e essa agência governamental ganhou
maior capacidade de atuação, no sentido de induzir a formação de
empresas agropecuárias ou atrair esse tipo de empresa. Simultaneamente à
criação e ao aperfeiçoamento da SUDAM, o governo federal adotou uma
388
MARTINS, J. S. A Militarização da Questão Agrária no Brasil, op. cit. p.42.
389
Jornal Folha de São Paulo, 16 de abril de 1964.
196
196
série de diretrizes legais, específicas para a criação para a concessão de
incentivos fiscais a empresários e empresas que se orientassem para a
agropecuária.
390
Os “aperfeiçoamentos jurídicos”, visando agilizar a colonização para a região, se
completaram com o decreto n.º 63.104 de agosto de 68, que estabelecia quatro áreas
prioritárias na região amazônica para fins de colonização. Esse decreto desautorizava o
próprio Estatuto da Terra, pois, a princípio, a região não havia sido considerada como área
prioritária. No entanto, ao incluí-la como tal, determinando inclusive os locais de
intervenção, o governo visava atrair, mediante estímulos, a participação das empresas
privadas de colonização interessadas em complementar a ação do governo federal na
região.
391
Percebe-se que as ações do governo centravam-se na tentativa de ultrapassar a
“metodologia de atuação” destacada por Castello em seu discurso em Manaus, considerada
demasiadamente lenta e dispendiosa. Assim, agilizar o processo demandava uma
descontinuidade com as ações anteriores, o que implicou na relativização da força do
movimento extremamente dinâmico da colonização espontânea que rapidamente mudava a
configuração geográfica regional.
Neste sentido, o “congelamento” da atividade de atualização cadastral
392
das
propriedades, das terras devolutas e ocupadas, contribuiu para o agravamento das disputas
por terras na região, pois, baseados em dados defasados, tendo em vista a dinâmica de
ocupação, o governo estimulava a colonização e compra de terras para regiões que, em
muitos casos, se encontravam ocupadas. A preocupação com a ocupação não foi seguida
de uma preocupação com o amparo e a qualidade dos núcleos que estavam sendo
estabelecidos.
Neste contexto, o “novo” imposto com seus índices de progressividade e
regressividade também foram negligenciados. Temia-se que sua efetivação criasse
obstáculos ao estímulo à implantação das grandes propriedades na região, quando, na
verdade, figurava entre os objetivos do imposto, mesmo desfigurado pela pressão exercida
pela oposição na ocasião de sua aprovação no Congresso, impedir a formação de novos
390
IANNI, O. A Luta pela Terra: História Social da Terra e da Luta pela Terra numa Área da
Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979, p.224.
391
DE CARLI, G. História da Reforma Agrária, op. cit. p.211.
392
De acordo com a mensagem anual enviada ao Congresso no final de 1966, Castello destacava que os
cadastros deveriam ser “permanentemente atualizados para inclusão das novas propriedades que forem sendo
constituídas, e, no nimo, de cinco em cinco anos, serão feitas revisões gerais para atualização das fichas
levantadas” p. 96. Brazilian Presidential Messages, 1890 1993. Disponível em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/prestoc.htm Acesso em: 10/04/2007.
197
197
latifúndios com fins meramente especulativos. Esse período de “congelamento” contribuiria
decididamente para o aquecimento do mercado especulativo da terra na região. Tanto a
tributação quanto o cadastramento somente entraram novamente na agenda governamental
de forma mais incisiva quando a situação na região tornou-se potencialmente explosiva a
partir da década de 70.
A fim de selar o cinturão de integração econômica das regiões consideradas
pouco desenvolvidas, no final de 68 o governo cria oficialmente a SUDECO
(Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste), nos moldes da SUDAM e
SUDENE, respectivamente reformuladas. Tal órgão objetivava estimular ainda mais a
intensa movimentação para a região, registrada por inúmeras reportagens pelo Jornal Folha
de São Paulo antes mesmo da criação oficial do órgão. Em abril de 68, o Jornal lançava um
suplemento especial denominado: Série Realidade Brasileira, especial Centro-Oeste: “O
vazio em Ocupação”, com artigos que refletiam a mistura de certa perplexidade com a
velocidade da transformação da paisagem regional, com propaganda institucional realizada
pelas secretarias governamentais em prol da ocupação do Centro-Oeste. Segundo Calazans
Fernandes, coordenador do suplemento, o Centro-Oeste,
(...) depois do desbravamento, já se passa para a fase de integração e da
incorporação econômica da região ao resto do Brasil, graças à confiança
empresarial, ao planejamento e à racionalização. Com novos métodos,
nova mentalidade e um tipo de preocupação projetos industriais e
agropecuários, impulsionados por empresários agressivos e respaldados
em lideranças motivadas para o desenvolvimento, o Centro-Oeste vive o
desafio da mudança.
393
A exemplo da colonização da Região Amazônica, pregava-se que para a solução
do vazio demográfico do Centro-Oeste, além do estabelecimento de empreendimentos
agropecuários na região, com especial atenção à pecuária, ressaltava-se o papel a ser
desempenhado pelo estímulo à migração nordestina para a região. De acordo com o
secretário do planejamento de Goiás,
O problema inicial é remover os excedentes populacionais do Nordeste
para com eles acelerar o crescimento demográfico do Centro-Oeste.
Como fazê-lo? Por certo não à força, ditatorialmente, mas sim por
persuasão, por motivação, por ambição. Não será difícil mostrar, ao
agricultor, que labuta duramente na terra nordestina, que a vida lhe será
mais fácil se a terra der produção unitária maior e mais segura, como
ocorre no Centro-Oeste. Ao pai de família vitimado pela seca, sua prole
morrendo à mingua, é fácil convencer que regiões de clima mais
ameno, sem secas prolongadas, onde a chuva vem, cada ano, na data certa
393
Centro-Oeste. Suplemento Especial. Folha de São Paulo, 21 de abril de 1968, p.7.
198
198
e os campos reverdessem, crescem as plantas doiram as colheitas, com
regularidade e abastança.
394
Paralelamente à tentativa de imprimir maior fluidez ao desenvolvimento
econômico e à ocupação das chamadas regiões pioneiras, o governo inicia um trabalho de
intervenção no IBRA, no segundo semestre de 1968, em função do emperramento das ações
destinadas para as regiões onde os problemas agrários se faziam sentir com maior
intensidade. A diretoria do órgão foi afastada e o general Carlos Tourinho assume a
presidência do IBRA como interventor.
Tal intervenção justificava-se pelas denúncias de irregularidades cometidas em
processos de desapropriação de terras no estado do Paraná. Embora as denúncias tenham
sido comprovadas, o emperramento das ações do órgão não pode ser atribuído
exclusivamente às irregularidades cometidas, e sim a uma somatória de fatores, tais como: a
burocratização das ações, reflexo da complexidade do Estatuto e da necessidade de controle
das ações pelo Executivo e disputas políticas internas. Além dessas, no período Costa e
Silva as ações foram colocadas emmodo de espera” em virtude da maior atenção atribuída
à questão da colonização no primeiro ano de seu governo e todo trabalho de “ajustamentos”
a fim de viabilizá-la.
A partir da intervenção, criou-se o GERA (Grupo Executivo da Reforma
Agrária) encarregado de analisar os obstáculos “que se estavam apresentando à
concretização da reforma e de acelerar o planejamento e execução de medidas de
reformulação da estrutura fundiária.
395
Entre os pontos objetos de análise pelo Grupo
incluía-se, entre outros fatores,
Revisão dos projetos de reforma agrária em execução ou em estudo;
análise das áreas prioritárias para fins de reforma agrária; exame dos
aspectos relacionados com a tributação para fins de reforma agrária,
destinação e aplicação dos recursos arrecadados.
396
Em janeiro de 69, o grupo entregava seu relatório final onde propunha mudanças
no processo de desapropriação de terras e a reestruturação no interior do IBRA e INDA.
Como conseqüência das sugestões o governo baixa o AI-09. A principal característica dessa
emenda foi a eliminação da palavra prévia do texto da Constituição de 67, referente ao
394
Idem, p.7.
395
MARTINS, J. S. A militarização da Questão Agrária no Brasil, op. cit. p.42.
396
DE CARLI, G. História da Reforma Agrária, op. cit. p.211.
199
199
pagamento das indenizações de desapropriações de terras, o que permitiria a efetivação de
desapropriação dentro de um prazo de 72 horas nas áreas prioritárias a serem estipuladas.
397
Como a publicação do AI-9 demandava a identificação das áreas prioritárias, no
segundo semestre de 68 o GERA começa a receber as indicações realizadas pelo IBRA de
áreas que poderiam figurar, enquanto prioritárias para as intervenções. No entanto, estas
áreas não eram as mesmas consideradas como tal pelo governo Castello Branco, nem as
que, ao final do segundo governo revolucionário, são levadas pelo Ministro da Agricultura
Ivo Arzua para a aprovação dos ministros militares.
398
As dificuldades de consenso com
relação às áreas prioritárias destinadas à intervenção mais contundente por parte do
governo, bem como a dificuldade de atuação do próprio ministério era atribuída por Ivo
Arzua a um jogo de forças que buscavam desativar qualquer tentativa de reforma elaborada
pelo governo. Em discurso na Academia Nacional de Polícia em julho de 69, declarava que,
No jogo das forças econômicas e políticas que pressionaram os poderes
governamentais para a obtenção de medidas de amparo e estímulos às
respectivas atividades, geralmente, as oriundas da área agrícola são
minimizadas pela alta potencialidade e agressividade dos grupos de
proprietários de terra, banqueiros e industriais.
399
Com a criação do GERA, inicia-se o processo de perda de autonomia e “status”
de ministério que os dois órgãos possuíam até meados de 68, processo, aliás, que se
concretizaria no governo Médici (1969/1974). Isso porque o GERA, vinculado ao ministério
da Agricultura, funcionaria como uma espécie de órgão tutor do IBRA. Com isso, caberia
ao GERA, pelo decreto 64.852 de julho de 69,
Deliberar sobre os Planos Nacional e Regional de Reforma Agrária,
elaborados pelo IBRA e promover a sua integração nos Planos de
Desenvolvimento do Governo Federal; (...) deliberar sobre programas,
planos e projetos de reforma agrária e supervisionar a sua execução;
encaminhar ao Presidente da República proposta de fixação de áreas
prioritárias relacionadas pelo IBRA; decidir sobre o estabelecimento de
áreas operacionais, selecionadas pelo IBRA, nas áreas prioritárias;
deliberar sobre oportunidade de desapropriação, por interesse social, de
imóveis rurais situados nas áreas declaradas pelo Presidente da
República(...).
400
Pelo mesmo decreto, em seu artigo 16, caberia ao IBRA, de acordo com as
diretrizes traçadas pelo GERA,
397
CNBB, Pastoral da Terra: Posse e Conflitos, op. cit. p.77.
398
Idem, p.190.
399
CNBB, Pastoral da Terra: Posse e Conflitos, op. cit. p.79.
400
DE CARLI, G. História da Reforma Agrária, op. cit. p.215.
200
200
Concentrar-se na função básica e precípua de planejamento, orientação
geral, coordenação e execução de trabalhos específicos de Reforma
Agrária, em conjunção com outros órgãos do Governo, transferindo para a
iniciativa privada, sempre que houver conveniência, o que por ela possa
ser desempenhado, dentro da orientação prevista nos Programas de
Desenvolvimento do Governo Federal.
401
Torna-se importante ressaltar que as atribuições do INDA referentes à
colonização são transferidas também ao IBRA, reforçando a perspectiva, desde antes
anunciada, de efetivar a colonização como reforma agrária, alterando o previsto no Estatuto
da Terra que a alocava na parte referente à Política de Desenvolvimento Rural. Além disso,
ao se estabelecer que o órgão deveria, sempre que conveniente, passar à iniciativa privada
trabalhos específicos de reforma agrária. Indiretamente, na medida que a colonização
passava a ser atribuição deste órgão, pensava-se em atribuir, o máximo possível às empresas
privadas, o estabelecimentos de núcleos de colonização, proposta que foi sendo
sistematicamente assumida a partir de 1973.
No entanto, a aparente homogeneidade de convicções quanto aos caminhos a
serem trilhados pelo governo com relação ao campo, encobria sérias divergências entre seus
assessores quanto à estrutura agrária e, consequentemente, quanto as medidas a serem
priorizadas para o campo. Para o Ministro do Interior, coronel Costa Cavalcanti, ao qual
estavam subordinadas as três superintendências de desenvolvimento, a reforma agrária iria
manter intocada a estrutura fundiária, pois a política do governo, segundo este, era de
realizá-la sem divisões de terras”, numa clara referência à ênfase na política de colonização,
enquanto para o presidente e interventor do IBRA, general Carlos de Morais, a reforma
agrária se implantaria através de uma ampla modificação na estrutura fundiáriae quea
desapropriação por interesse social seria o instrumento básico de tal reforma.
402
As divergências entre os assessores representavam um período transitório onde
era possível identificar, ainda de acordo com Carlos Castelo Branco, a influência e a defesa
das ações do governo anterior pelos chamados “órfãos do castelismo” e a tentativa do
governo Costa e Silva de imprimir suas próprias diretrizes. Tal perspectiva foi abordada
pela coluna diária de Carlos Castelo Branco ao salientar que:
Querem os ministros do Marechal Costa e Silva deixar claro que não
estão submetidos à orientação do governo anterior, que a condenam e que
não lhes falta coragem para fazer a inversão de comandos, que a seu ver,
será necessária para enfrentar a crise nacional e obter soluções efetivas, de
modo a ajustar o objetivo antiinflacionário ao objetivo
401
Idem, p.215.
402
CNBB, Pastoral da Terra: Posse e Conflitos, op. cit. p.190.
201
201
desenvolvimentista. (...) Acentua-se nas esferas oficiais a complexidade
da tarefa que se atribuiu o governo do Marechal Costa e Silva, qual seja,
aceitar os objetivos definidos pelo governo do Marechal Castello Branco,
recusando sua conceituação dos problemas e rejeitando os processos a que
recorriam seus antecessores.
403
Dentro desta perspectiva, o período Costa e Silva representou a tentativa de
articulação de uma política para o campo que se limitava à utilização praticamente cirúrgica
de apenas alguns dispositivos do Estatuto da Terra, com atenção especial à colonização,
desvirtuando a metodologia pensada inicialmente para a aplicação da lei.
Mas indubitavelmente foi no governo Médici que o processo tornou-se
amplamente difundido. O termo Estatuto da Terra segue suprimido das mensagens. Em seu
lugar o termo colonização, alocado nas questões referentes à agricultura, definitivamente
passa a ser caracterizado enquanto parte integrante do programa de reforma agrária que
tanto preocupa o Governo, dos espaços vazios existentes, mediante deslocamento,
tecnicamente ordenado, dos excedentes populacionais de áreas de escassa
produtividade.
404
Ou seja, levar a diante projetos de reforma agrária passava a significar
levar adiante projetos de colonização. Segundo Ianni, pouco a pouco, os documentos, as
decisões e as atuações do poder estatal não se referem mais à ‘reforma agrária’, mas à
‘colonização’.
405
A permanência de Delfim Neto no Ministério da Fazenda demandava uma
continuidade com a política para o campo do governo antecessor. Com isso, a ênfase na
colonização permanecia vinculada às três perspectivas iniciais, quais sejam: de ganhos
adicionais na produção com a expansão da fronteira agrícola até a região do Amazonas, a
preocupação com o vazio demográfico das zonas pioneiras e a idéia de colonização como
solução para os problemas sociais e econômicos, a princípio do nordeste e depois de outras
regiões.
Somava-se a isso a visão da equipe econômica de que o país deveria
Desenvolver um moderno setor agroindustrial orientado para a
exportação, isso ajudaria o Brasil a redefinir seu papel na economia
internacional e atingir um período de crescimento sustentável. No
essencial, a nova equipe econômica ignorava o Estatuto da Terra. Isso fez
dos créditos, subsidiados abundante e extensamente, o único e mais
importante instrumento na modernização da agricultura. A reforma
403
CASTELO BRANCO, C. Os Militares no Poder. vol.II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p.p. 47/51.
404
Mensagem de Médici ao Congresso, 1970, p. 35. Brazilian Presidential Messages, 1890 – 1993. Disponível
em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/prestoc.htm Acesso em: 20/05/2007.
405
IANNI, O. Colonização e Contra-Reforma Agrária na Amazônia, op. cit, p. 134.
202
202
agrária, mesmo na forma limitada imaginada pelo Estatuto da Terra,
parou no meio do caminho.
406
A partir de 70, o governo Médici deu início a uma nova onda de planos e
projetos de desenvolvimento
407
cujo objetivo versava sobre a ocupação das regiões
consideradas desvinculadas do desenvolvimento econômico do restante do país. Neste
contexto, são criados o PIN (Plano de Integração Nacional) em 1970 e o PROTERRA
(Programa de Redistribuição de Terra e Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste) em
1971. Este último tinha a função de facilitar o acesso à terra no Nordeste, deixando para a
SUDENE apenas a responsabilidade de implantação de projetos industriais, o que causou
protestos uma vez que os recursos financeiros para alimentar o PROTERRA sairiam dos
recursos destinados à SUDENE. No entanto, em 1975 foram instalados os trabalhos da
Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar ou avaliar a execução do programa,
mediante as constantes notícias sobre a revisão dos projetos do programa de
redistribuição de terras e racionalização da agricultura do nordeste”.
408
Os ínfimos resultados desse projeto e dos demais que foram criados para,
teoricamente, desafogar o papel a ser desempenhado pelas Superintendências de
Desenvolvimento, foram alimentados dentro do próprio governo que os gerou, na medida
em que a prioridade, em 70, vinculava-se à necessidade de intensificar a colonização da
Amazônia e a implantação de um moderno setor agropecuário. Ou seja, os programas que
supostamente criariam o espaço para os trabalhadores sem terra
409
no Nordeste foram
eclipsados pelo PIN, que tinha o mesmo destinatário, porém com outro objetivo: não se
tratava de assentar, mas incentivar a retirada do excedente populacional do nordeste e de
outras regiões, alocando-os ao longo das rodovias em construção, com destaque especial à
Transamazônica.
406
HOUTZAGER, P. Os Últimos Cidadãos: Conflito e Modernização no Brasil Rural (1964-1995), op. cit.
p. 54.
407
O Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), segundo mensagem enviada ao Congresso em 1973,
destacava que o objetivo era fornecer “apoio técnico, financeiro e fiscal, capaz de promover a sua
transformação tecnológica, realizar a expansão de áreas mediante projetos de colonização de grande
magnitude, e facilitar acesso à terra aos novos produtores agrícolas, especialmente no Norte e Nordeste”. Para
tal, além dos projetos destacados acima, havia também a criação do PRODOESTE (Programa de
Desenvolvimento do Centro-Oeste), que objetivava incentivar a criação de uma rede de armazéns, silos,
frigoríficos e usinas de beneficiamento de algodão e arroz, e o PROVALE (Programa Especial para o Vale do
São Francisco), que objetiva incentivar o reflorestamento e proteção das nascentes dos rios em Minas Gerais e
apoio a projetos de colonização e irrigação. pp. 30/31. Torna-se necessário ressaltar que a criação de novos
projetos, que muitas vezes não substituíram projetos existentes, criou um burocrático e a dispersão dos
recursos destinados para a implantação dos mesmos.
408
DE CARLI, G. História da Reforma Agrária, op. cit. p.233.
409
MARTINS, J. S. A Militarização da Questão Agrária no Brasil, op. cit. p. 44.
203
203
Ainda em 1970, pelo decreto n.º 1.110 foi criado o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária, INCRA. Por este decreto, extinguia-se definitivamente o
IBRA, o INDA e o GERA, cujas atividades seriam transferidas ao novo órgão que estaria
subordinado ao Ministério da Agricultura. Neste sentido, cabia também ao INCRA a
execução dos projetos de colonização preconizados no PIN.
Para José Gomes da Silva, a junção de atribuições num mesmo organismo
representava a consolidação de uma política iniciada no período Costa e Silva que elegia,
em termos de decisão política ao mais alto nível, a colonização como solução para o
problema agrário brasileiro, inclusive no Nordeste”. Além disso, para Martins, a junção dos
organismos em torno do INCRA, subordinado ao Ministério da Agricultura, representava a
destruição da base institucional da reforma agrária, pois segundo este,
Com a redução do INCRA a uma autarquia do Ministério da Agricultura,
a questão agrária passou a ser tratada como questão menor. O efeito
principal dessa medida foi o de liberar as propostas de desenvolvimento
econômico de terem em conta a questão social dos trabalhadores sem
terra. Essa mudança indicava uma tendência que teria desdobramento
rápido nos três anos seguintes: a de desvencilhar os programas de
desenvolvimento de concessões à questão fundiária, a dar peso decisivo
aos interesses e propostas das empresas privadas e a de permitir uma
reformulação da política governamental no sentido de reorientar os fluxos
migratórios para fora do campo e não para o campo, abrindo espaço maior
e sem conflitos para a instalação e expansão da grande empresa capitalista
no setor agropecuário, especialmente nas novas regiões. Com isso, na
prática, o governo descomprometeu a Amazônia Legal como solução
prevista, no encaminhamento da proposta do Estatuto da Terra, para a
questão agrária. Pode-se dizer que essas medidas constituíram uma
revogação tácita do Estatuto da Terra.
410
No ano de 1970, o governo brasileiro adotou uma política sistemática e ativa de
colonização prevista no PIN vinculando-a à construção da Transamazônica, como forma de
promover a integração da região e como solução mais ágil para os problemas sociais do
nordeste, agravados com a seca de 1970.
411
Para a realização da colonização oficial, previa-
se a utilização de uma faixa de dez quilômetros às margens das rodovias, principalmente da
Transamazônica e da Cuiabá-Santarém. Neste sentido, previa-se a utilização da mão-de-
obra nordestina para a abertura das estradas e sua posterior fixação na área, por meio dos
projetos de colonização a serem executados pelo INCRA.
Em 1971, um novo decreto declarava indispensáveis para a segurança e
desenvolvimento da Amazônia Legal, as terras devolutas localizadas numa faixa de cem
410
MARTINS, J. S. A militarização da Questão Agrária no Brasil, op. cit. p.p. 44/45.
411
TAMER, A. Transamazônica: Solução Para o Ano 2001. São Paulo: APEC, 1970.
204
204
quilômetros de largura, em cada lado do eixo das rodovias em construção ou a serem
construídas para fins de colonização. Essas terras que pertenciam aos Estados passariam à
União e caberia ao Conselho de Segurança Nacional deliberar sobre seu destino. Essa
medida, na prática, viabilizou, a partir de 73, uma maior participação das empresas privadas
de colonização na região.
412
Na medida em que crescia o fluxo migratório para a região impulsionado pela
intensa propaganda federal e estadual em torno dos grandiosos” empreendimentos na
região, somado ao mito da terra fácil e fértil, crescia também as denúncias sobre a falta de
planejamento por parte do governo com relação à fixação dos trabalhadores nos núcleos de
colonização. Tamer, ao descrever a intensa política de colonização para a região,
principalmente nas margens das rodovias, advertia que,
Não somos contra a construção da Transamazônica, mas não acreditamos
que venha a ser uma solução para o drama nordestino. Não condenamos a
estrada, como elemento de integração da Amazônia. Condenamos antes e
voltamos a condenar agora a sua construção sem qualquer plano.
Condenamos e voltamos a condenar o início das obras quem quase toda
sua extensão sem estarem concluídos os levantamentos, agora já
realizados e em fase de interpretação, de toda a área por censores remotos.
(...) Aqui também mantemos o nosso ponto de vista: o INCRA está se
precipitando, ao colocar, de súbito, centenas e centenas de famílias em
plena selva, sem antes preparar a terra e o homem. Muitos estão
retornando aos seus lares. Outros voltarão também. E inúmeros dos que
permanecerem com muita probabilidade se tornarão em apenas mais um
elemento da selva, convivendo com ela sem a dominar. A estrada está
sendo construída e alguns elementos e alguns trechos prontos.
Mas entre abrir o caminho na mata e colonizar a selva um passo
imenso que não pode e não deve ser dado precipitadamente, pois estão em
jogo vidas humanas (...). Houve precipitação na construção da estrada.
Está havendo precipitação - absurda precipitação - na colocação do
homem na selva, mesmo antes da conclusão dos primeiros trechos e da
ligação das futuras colônias com os eventuais centros consumidores.
413
Em pouco tempo as advertências de Tamer encontravam eco na avaliação de
outros autores. Segundo relato de Otávio Ianni, nove anos após a publicação das reportagens
de Tamer,
Em 1970-73, à medida que se punha em prática a política de colonização
oficial, principalmente às margens da rodovia Transamazônica, também
se constatavam os problemas, as dificuldades e os fracassos da política.
As terras impróprias para a agricultura ou pecuária, a inexistência ou a
insuficiência de mercados para o escoamento da produção dos colonos, a
carência de recursos financeiros para movimentar os empreendimentos, as
doenças adquiridas no local, devido à insuficiência das defesas do
412
IANNI, O. Colonização e Contra-Reforma Agrária na Amazônia, op. cit.
413
TAMER, A. Transamazônica: Solução Para o Ano 2001, op. cit, p.19.
205
205
organismo dos trabalhadores e seus familiares chegados do Nordeste, Sul
e outras regiões, várias foram as dificuldades encontradas por todos,
posseiros e colonos
414
.
Essas ponderações que se complementam como uma pequena amostra de uma
realidade mais ampla e complexa do processo, expõem os limites da solução simplista
impingida pelo governo e plenamente resumida na frase do presidente Médici onde este
enfatizava que a colonização da Amazônia seria asolução de dois problemas: homens sem
terra do Nordeste e terras sem homens na Amazônia”. Em primeiro lugar, os órgãos
federais não conseguiam amparar os núcleos na mesma velocidade em que se abriam as
estradas, nem na mesma velocidade em que eram criados os núcleos fora do eixo viário e
nas zonas de fronteira.
Em segundo lugar, paralelamente a essa colonização oficial, desenvolvia-se a
chamada colonização espontânea à margem do processo oficial. Ao intensificar-se e
generalizar-se a colonização espontânea, segundo Ianni, surgem e ressurgem questões
como estas: a luta pela posse e uso da terra; confronto entre a colonização espontânea,
oficial e particular (...).”
415
Isso porque o estímulo dado à colonização muitas vezes não era
precedido pelo estudo mais apurado que pudesse evidenciar a real situação, em termos de
ocupação, tanto das áreas consideradas devolutas e/ou tribais como das áreas determinadas
para a realização da colonização oficial e particular. Além disso, a omissão dos órgãos
governamentais com relação às atividades ilícitas, executadas por intermediários e grileiros,
contribuía para tornar a situação potencialmente explosiva na região.
Sobre esse aspecto, Ianni destacava que
A violência observada nas disputas de terra é um reflexo dos embaraçosos
procedimentos administrativos e judiciais seguidos pelo INCRA para
resolver as reivindicações dos posseiros...Contudo, tanto a freqüência
quanto a complexidade destas disputas são agravadas por transações
ilegais de propriedades e a venda de escrituras falsas...A atividade do
grileiro, se em terras públicas ou propriedade privada inexplorada,
aumenta diretamente o mero de reclamantes rivais de terras e com isso
agrava a situação social.
416
Neste sentido, a ausência do processo de cadastramento freqüente numa região
de ocupação dinamizada pelo incentivo e propaganda governamental, gerava situações onde
os órgãos responsáveis em organizar as ocupações acabavam realizando-as “às cegas”.
414
IANNI, O. Colonização e Contra-Reforma Agrária na Amazônia, op. cit. p.95.
415
Idem, p.20.
416
Idem, p.24.
206
206
Empresas compravam terras ocupadas por posseiros ou indígenas, expulsando-os. Posseiros
ocupavam terras que pertenciam a outrem. Empresas privadas de colonização que
recebiam incentivos compravam extensões de terras como devolutas, quando na verdade
não eram mais. Para além dessa situação, ainda havia uma “migração” interna da Amazônia,
vítimas tanto do descaso do poder público nos núcleos criados por este, da expansão das
empresas e propriedades agropecuárias nacionais e estrangeiras e dos especuladores de
terras.
417
A partir de 73, frente às dificuldades financeiras e estruturais para desenvolver
os núcleos criados, o governo passa a incentivar de forma crescente a colonização realizada
por empresas privadas. Tal mudança representava a tentativa de desonerar os cofres
públicos, colocando sobre a iniciativa privada a responsabilidade de colonizar grandes
extensões da Amazônia mediante incentivos que eram concedidos, desde 69, por meio do
decreto-lei n.º 756. Segundo Ianni,
Foi o decreto-lei n.º 756, de 11 de agosto de 1969, do governo federal,
que estabeleceu uma nova ordenação dos favores e estímulos destinados a
atrair empresários e empresas. Como estimulo à implantação, ampliação,
diversificação ou modernização de atividades produtivas na região, a
legislação federal oferece às empresas instaladas ou que vierem a se
instalar na área, colaboração financeira e isenções tributárias, com vistas a
fornecer-lhes condições competitivas e assecuratórias ao bom
funcionamento dos seus empreendimentos. Assim, a referida lei
estabelece, em seu primeiro artigo, que todas as pessoas jurídicas
registradas no país poderão deduzir do imposto de renda e seus adicionais
restituíveis até 50% (cinqüenta por cento) do valor do imposto devido
para inversão em projetos agrícolas, pecuários, industriais e de serviços
básicos que a SUDAM declare, para os fins expressos neste artigo, de
interesse para o desenvolvimento da Amazônia. De forma cada vez mais
sistemática e ágil, em favor do setor privado, o poder público federal tem
atuado tanto no setor agropecuário como em outros setores. Desde 1973 o
governo federal vem dando apoio mais ostensivo às grandes empresas
rurais, consideradas como instrumento ideal para a ocupação e
desenvolvimento da Amazônia
418
A mudança de estratégia coincidia com uma mudança substancial de perspectiva
do governo. O agravamento dos conflitos nas regiões Sul e Sudeste mais uma vez endossava
a orientação do governo em privilegiar os trabalhadores dessas regiões, a exemplo do que
havia sido realizado com os nordestinos, com o objetivo de dinamizar a ampliação da
417
Para maior detalhamento ver: TAMER, A. Transamazônica: Solução Para o Ano 2001, op. cit.
418
IANNI, O. A Luta pela Terra, op. cit. p.225.
207
207
fronteira econômica nacional e elevar a produção agrícola nacional, lançando mão da
transferência de proprietários de minifúndios do Sul do País para a Amazônia.
419
A orientação do INCRA em parceria com a Cooperativa Regional de Tritícola
Serrana Ltda do Rio Grande do Sul constitui-se em apenas uma amostra que indicava, além
da preocupação com os sucessivos conflitos na região, a ênfase em uma política de
intensificação da produção agrícola com base na modernização do setor e nos grandes
empreendimentos, não somente na região Amazônica mas também em outras regiões do
país. De acordo com a normativa do projeto, havia a necessidade de,
Implantar na Amazônia agricultura intensiva, mecanizada e altamente
tecnificada, objetivando a maximização da produção por unidade de área
e perpetuar a potencialidade do solo (...)Acreditamos que o agricultor
gaúcho pela experiência que adquiriu através dos tempos, na utilização
dos insumos modernos: máquinas, corretivos, fertilizantes, defensivos,
etc...e nas práticas de conservação do solo, está plenamente capacitado a
desempenhar, na Amazônia, o papel inovador de efeito e demonstração
eficaz. Necessidade de se criarem alternativas adicionais para a solução
do Rio Grande do Sul, de um problema de ordem estrutural - minifúndio
que sem dúvida representará para os próximos anos o maior entrave ao
continuado desenvolvimento do produto agrícola
420
.
A ênfase à colonização privada e à política de implantação de empresas
agropecuárias na região conduzida pelo governo federal, foi acompanhada por toda uma
legislação estadual destinada a agilizar os incentivos fiscais e creditícios para o setor
privado. Como exemplo, pode-se destacar a Lei Estadual n.º 4.074 do governo do Pará, que
estabeleceu isenção total ou parcial de imposto de circulação de mercadorias de empresas
agrícolas, pecuárias entre outras.
421
Neste contexto é sintomático a afirmação do governador
do Estado ao ressaltar que a administração do Estado estaria, com a legislação, integrando-
se ao planejamento federal de ocupação do espaço físico da região. Afirmava ainda que,
A colonização prevista no plano permitirá o êxito da atividade pecuária,
uma vez que se propõe a explorá-la, primordialmente, através de grandes
e médias empresas, sendo válido enfatizar que as empresas de maior porte
não se constituirão em obstáculo para a pequena iniciativa que poderá se
desenvolver com o tempo, incentivada pela tecnologia incrementada por
esta .
422
Para Martins, a retração dos projetos oficiais de colonização em favor da
empresa privada e do estímulo à fixação de empresas agropecuárias na região coincidia com
419
IANNI, O. Colonização e Contra-Reforma Agrária na Amazônia, op. cit. p.102.
420
Idem, p.104.
421
IANNI, O. A Luta pela Terra, op. cit. p.224.
422
Ver: Jornal Folha de São Paulo, 28 de abril de 1968.
208
208
novos projetos de desenvolvimento. Era o início da política dos pólos de
desenvolvimento,
423
que viabilizados burocraticamente no governo Médici, concretizam-se
no governo Geisel. Segundo Martins,
A mudança da política fundiária, em 1973/74, representou, de fato, a
vitória política daqueles que desde a época da elaboração do Estatuto da
Terra, contestavam a reforma agrária como instrumento de política
econômica e social ao mesmo tempo. Bilac Pinto, o representante da
UDN, que nas conversações com o governo militar expressava esses
pontos de vista, tinha como um dos seus assessores principais nessa
questão, o economista Delfim Netto. É muito significativo que, em 1979,
em artigo assinado, Delfim Netto reafirme essa tese como solução para a
crise econômica atual, que é basicamente a tese da constituição da grande
empresa no campo e da modernização das atividades agrícolas. As
diretrizes da política econômica deixaram de ser ambíguas, no que diz
respeito ao problema fundiário, abandonando o governo a posição pró-
reforma agrária modernizadora, herdada do IPES e preconizada por
Roberto Campos. A mudança desloca a ênfase da contenção do êxodo
rural, e sua orientação para as regiões pioneiras, para a criação e a
drenagem de excedentes populacionais no campo, transformando a
política governamental para as novas regiões de política de povoamento e
desenvolvimento unicamente em política de desenvolvimento econômico
e modernização agrícola
424
.
A retração dos projetos de colonização oficial indicava uma mudança de
estratégia do governo. A colonização privada, de certa forma, continuaria o trabalho prático
de deslocamento dos trabalhadores de áreas de tensão para as áreas pioneiras com o apoio e
incentivo do Estado, enquanto o governo efetivamente desdobrar-se-ia nos esforços de
viabilização dos projetos de implantação de pólos de desenvolvimento com o intuito de
modificar a estrutura da exploração agrícola no Brasil”, e não a estrutura agrária,
transformando-a de agricultura tradicional em agricultura empresarial, por meio de
investimentos pesados em créditos e financiamentos, facilitando a absorção de tecnologia
avançada e de mecanização.
425
Com isso, a partir de 74, o INCRA sofre algumas reformulações para se adequar
aos princípios de uma agricultura competitiva e de mercado. As novas diretrizes
reafirmavam a retração dos projetos oficiais que se restringiriam apenas às zonas de
fronteira
426
dando ênfase à implantação de pequenas, médias e grandes empresas privadas.
423
POLONORDESTE; POLOCENTRO e POLOAMAZÔNIA.
424
MARTINS, J. S. A militarização da Questão Agrária no Brasil, op. cit. p.54.
425
Depoimento de Reis Velloso, ministro do Planejamento. Jornal O Estado de São Paulo, 28/01/1975.
426
Para o presidente Geisel, a retração dos projetos oficiais explicava-se pelos resultados negativos dos
assentamentos de colonos na Transamazônica, onde o índice de abandono dos lotes era considerado elevado e ,
por outro lado, o índice de produtividade baixo. Portanto, a mudança de planos para a colonização da região
209
209
Com isso, objetivava-se aumentar a oferta de empregos para uma população que
espontaneamente continuava afluir para a região. Segundo o presidente do INCRA,
Lourenço Viera da Silva, caberia ao INCRA canalizar racionalmente estes fluxos
migratórios e oferecer oportunidades de trabalho simultaneamente a concessões para
beneficiar empresas e cooperativas.
427
Ao mesmo tempo e tardiamente, quando os conflitos na região avolumaram-se e
se organizaram, a autarquia passou a adotar como política prioritária, que se estende até o
final do período militar: a regularização da posse da terra. Segundo o ministro Paulinelli, a
ausência de regularização fundiária constituía o principal obstáculo para o processo de
desenvolvimento da região, que, segundo o ministro, sem possuir legalmente a terra, o
colono era impedido de ter acesso a créditos e financiamentos, dificultando, por isso, a
inclusão de técnicas mais modernas de produção.
428
Contudo, a preocupação com a
regularização da terra voltava-se para a tentativa de amainar os conflitos, facilitando o
acesso, na região, dos grandes investimentos.
Como ressaltou Martins no trecho citado cima, a ênfase nos grandes
empreendimentos associados a uma política extensiva de créditos, incentivos fiscais e
financiamentos, com vistas ao processo de modernização, representou a coroação de um
pensamento que alimentou a ala oposicionista no período de elaboração do Estatuto da
Terra. Para estes, o aumento da produção e produtividade vinculava-se à necessidade de se
viabilizar uma política de desenvolvimento rural que, centrada em uma robusta política
agrícola, induzisse a um rápido processo de modernização da agricultura. Isso porque,
segundo os críticos, o problema central não se ligava à estrutura agrária, mas sim à falta de
incentivos por parte do governo.
Tal visão, partilhada pelos militares posteriores a Castello imprimiram uma
apropriação distorcida do Estatuto da Terra que o desvinculava de sua característica básica
no que concerne a sua aplicação, tendo em vista que o Estatuto da Terra havia sido
planejado para ser aplicado de forma coordenada nas regiões identificadas pelo zoneamento.
Se havia uma convergência entre os militares com relação à necessidade de se promover o
objetivava eliminar, nas palavras do ministro da agricultura, “as paupérrimas culturas de subsistência” que os
colonos vinham praticando. Assim, por determinação do Presidente Geisel, a continuidade dos projetos estaria
condicionada à implantação prévia de uma infra-estrutura básica no que concerne a serviços de saúde,
transporte e assistência técnica. CNBB, Pastoral da Terra, op. cit. p. 125.
427
Plano de Realizações e Metas do INCRA. Apud, CNBB, Pastoral da Terra, op. cit. p.121.
428
Ver: Jornal do Brasil, 15/05/1975.
210
210
desenvolvimento do setor agrícola, havia também uma grande divergência com relação ao
caminho a ser trilhado para atingir o objetivo.
Se a estrutura agrária não constituía um entrave para o processo de
desenvolvimento, os esforços, na concepção dos governos pós-Castello, deveriam centrar-se
em medidas pontuais e não na aplicação em conjunto da lei. Neste contexto, a colonização
representava, para os militares pós-Castello, a tentativa de submeter a lei às suas próprias
diretrizes, de forma, teoricamente, mais ágil e mais simplificada. Buscava-se, com a
colonização, solucionar os problemas de demanda por terra nas chamadas regiões mais
antigas, sem incorrer em medidas consideradas demasiadamente evasivas e politicamente
mais conflituosas, como a desapropriação. Ao mesmo tempo expandir-se-ia a fronteira
agrícola, auxiliando na expansão da produção agrícola nacional e ainda responderia aos
anseios da ocupação dos chamados “espaços vazios” na região.
Por outro lado, o aumento da produção e produtividade seria alcançado com uma
intensa política de modernização do setor produtivo e a implantação, por meio de incentivos
fiscais e creditícios, de empresas privadas no meio rural. Política que se intensificou com os
malogros da colonização oficial para a região.
A multiplicação dos conflitos não somente na Amazônia, mas também em outras
regiões do país, conseqüência da política fundiária assumida pelos governos militares pós-
Castello, somado a uma apropriação parcial da lei, paradoxalmente fez renascer uma ampla
campanha em favor da realização da reforma agrária, apoiada na reivindicação em torno do
cumprimento também parcial da lei.
A transmutação impetrada no Estatuto, ou melhor, na interpretação do Estatuto
não restringiu-se ao meio militar, afinal uma outra leitura, também parcial da lei foi levada a
cabo, na década de 70, tanto pela CONTAG quanto pela CPT.
A reivindicação em torno da aplicação dos dispositivos considerados mais
“progressistas” do Estatuto passava a endossar a perspectiva de uma reforma agrária
massiva e redistributivista. Sob esse ponto de vista, o Estatuto era resgatado como um ponto
de partida pelos vários agentes sociais que procuravam organizar os trabalhadores em prol
da sua aplicação como caminho para uma reforma agrária mais ampla. De acordo com
Regina Bruno,
O movimento sindical rural, apesar de ter crescido sob a roupagem
assistencialista e sem condição de fazer prevalecer a autonomia e a
liberdade sindical, teve como tendência geral a legitimação da
organização sindical como instrumento de representação dos interesses
dos trabalhadores rurais e a busca de uma expressão política própria. Com
211
211
relação a reforma agrária, a reconstrução do movimento a partir de 67,
quando setores mais combativos do NE voltam à CONTAG, traz consigo
um esforço no sentido de resgatar a reforma agrária como bandeira de
luta. A proposta que começa então a delinear-se encontra uma base legal
existente. A partir de agora, a aplicação do Estatuto da Terra torna-se
uma das reivindicações básicas dos trabalhadores organizados nos
sindicatos.
429
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG),
segundo Medeiros, teria papel decisivo no sentido de adequar,
As demandas das lutas por terra do pré-64 à linguagem do Estatuto da
Terra. Ao longo dos anos 70, a CONTAG fez uma leitura
“desapropriacionista” dessa legislação, de um lado difundindo entre os
trabalhadores a concepção de que havia direitos, inscritos na lei; de outro
encaminhando os casos de conflitos às instâncias estatais, pedindo
desapropriação das áreas envolvidas com base na legislação vigente. Se
poucos foram os resultados em termos de áreas desapropriadas, foi
possível, no entanto, manter viva a demanda por reforma agrária.
430
A leitura “desapropriacionista” da lei como forma de promover a reforma agrária
massiva e imediata somava-se à reivindicação da aplicação da lei como contestação das
ações do governo, acusado de utilizá-la de forma parcial em detrimento dos interesses dos
trabalhadores. Nos anais do Congresso da CONTAG realizado em 1979, ao lado da
orientação que versava sobre a necessidade de se intensificar a autonomia do Movimento
Sindical, havia a preposição de que “o sindicalismo centralizasse e reorientasse os esforços
e recursos humanos e financeiros para a luta pela implantação da reforma agrária,
partindo do cumprimento do Estatuto da Terra.
431
Desta forma, não somente o movimento em prol da realização da reforma agrária
adquiriu robustez em torno das reivindicações visando a aplicação do Estatuto, como
também suas definições e instrumentos balizariam ações mais incisivas de pressão sobre o
poder público. De acordo com a deliberação do 3º Congresso da CONTAG, dar-se-ia ênfase
nas ações de resistência, pois segundo Graziano da Silva,
Havia uma deliberação no sentido de que o Movimento Sindical dos
Trabalhadores Rurais assumissem o compromisso de desenvolver
trabalhos de base programados, de organização, motivação e mobilização
dos trabalhadores rurais no sentido de ocuparem as terras improdutivas,
fixando residência e tornando-as produtivas. Orientação semelhante era
encaminhada com relação aos parceiros, que devem ser organizados para
resistir na terra e não aceitar saídas amigáveis.
432
429
BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra, op. cit. p.128.
430
MEDEIROS, L. S. Reforma Agrária no Brasil, op. cit. p.28.
431
CONTAG. 3º Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais. Brasília, 1979. p.123.
432
SILVA, J. G. Para Entender o Plano Nacional de Reforma Agrária. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.48.
212
212
Dentro da perspectiva de organização dos trabalhadores não se pode deixar de
destacar o papel desempenhado pela Igreja, especialmente da ala ligada à Teologia da
Libertação, pois foi no interior desse grupo, principalmente a partir de 1975, que foi gestada
e criada a Comissão Pastoral da Terra. Poker ressalta que
Embora não seja o único organismo pastoral ligado à Igreja Católica
presente no campo - oficialmente existem a ACR (Animação Católica
Rural) e MER (Movimento de Evangelização Rural) - a CPT talvez seja o
principal e o mais importante deles todos. (...) Ligada à Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a CPT foi formalmente criada
numa reunião, em meados de junho de 1975, entre lideranças da Igreja
ligadas ao campo, embora tenha surgido mesmo por inspiração, e
sobretudo articulação de D. Pedro Casaldáliga, que em novembro de
1974, durante a Assembléia Geral da CNBB, provocou uma reunião dos
bispos e prelados da Amazônia com o objetivo de discutir os conflitos de
terra nessa região.
433
A CPT organizou-se em torno do trabalho pastoral com as populações mais
pobres do campo, dentro dessa definição ampla encontramos a figura do posseiro, do bóia-
fria e do ex-trabalhador rural recém chegado à periferia dos centros urbanos, parte desse
trabalho pastoral foi, posteriormente, dividido com a Pastoral do Migrante.
A principal reivindicação da CPT frente ao governo versava em torno da
necessidade urgente e premente de realização de uma reforma agrária de cunho
distributivista e compensatório, pois sob sua ótica existiria uma dívida histórica com essa
população e cabia ao governo, utilizando-se dos aparatos legais previstos no Estatuto, levar
a cabo as desapropriações de terras e a promoção dos assentamentos familiares.
O contexto econômico do campo passou por profundas mudanças durante a
década de 70, no bojo da mecanização e modernização houve um crescimento vertiginoso
do desemprego e do êxodo rural, dessa forma o contingente assistido pela Pastoral cresceu,
o que propiciou, mesmo na vigência do regime, a reorganização dos movimentos sociais no
campo.
A reforma agrária defendida pela CPT ampara-se juridicamente no Estatuto, mas
difere deste quanto aos seus objetivos, pois a concepção em torno da reforma agrária como
uma resposta à dívida histórica com os menos favorecidos, foi uma característica gestada no
interior da Pastoral e que resultou na idealização da propriedade familiar. O Estatuto da
Terra previa a redistribuição de terra e a formação da propriedade familiar, mas
paradoxalmente isso não significava um alinhamento conceitual entre CPT e Estatuto. As
433
POKER, J. G. A. B. A Prática da Vida e os Desencontros da Libertação. São Paulo, Dissertação de
Mestrado, USP, 1994, p.130.
213
213
similitudes, no sentido da existência da distribuição de terras e da propriedade familiar, são
apenas aparentes, pois se os objetivos não eram diametralmente opostos, diferiam
acentuadamente. O Estatuto previa a redistribuição não como uma política massiva, afinal
sua utilização deveria ser pontual e preferencialmente condicionada às áreas prioritárias, já a
interpretação dada pela CPT coloca a distribuição de terras em outro patamar, imbricando
indissociavelmente a mesma com a reforma agrária.
A associação umbilical entre distribuição de terra e reforma agrária também
influenciou a interpretação dada à propriedade familiar, segundo Rudá Ricci:
A Igreja procurava, enfim, naturalizar uma comunidade rural idealizada,
equilibrada socialmente, imune às formas de exploração e dominação
capitalistas. A operação conceitual até aqui não inova em relação ao
discurso religioso e se aproxima em muito das formulações dos socialistas
utópicos através da busca da integração e ordenação de valores que
produzissem uma consciência comunitária.
434
A propriedade familiar prevista no Estatuto da Terra tinha outra natureza, pois
ela deveria estar inserida no agronegócio e condicionada à produtividade, na idealização dos
formuladores do Estatuto a propriedade familiar ideal seria uma espécie de mini-empresa-
rural, nada mais distante da propriedade familiar comunitária apregoada pela CPT, que
dividia conceitualmente as propriedades em terra de trabalho e terra de exploração. A
terra de trabalho seria, segundo Martins, o espaço para a produção agrícola baseada nos
preceitos comunitários, a terra de exploração era um conceito amplo e que englobava
tudo o que deveria ser combatido, indo desde a especulação fundiária e o latifúndio, até a
exploração do trabalho alheio.
A profunda diferença interpretativa, no que tange as funções e a natureza da
propriedade familiar não foram um empecilho para a CPT exigir a aplicação do Estatuto da
Terra, paradoxalmente a CPT exigia o cumprimento do aparato legal do Estatuto, mas tinha
uma outra finalidade para o uso da terra, conforme o documento de Itaici o objetivo era:
(...) aproximar a defesa da economia familiar - cuja argumentação guarda
grande afinidade teórica com a proposição de Chayanov em relação ao
modo de produção camponês com um sistema de produção coletivo. O
documento propõe, neste sentido, formas alternativas de propriedade que
superem a exploração capitalista, indicando a possibilidade do trabalho
comunitário em grande escala.
435
A atuação da CPT, especialmente na proposição de formas alternativas de
vivência, muitas vezes não encontrava ressonância na base, o anseio da massa em tornar-se
434
RICCI, R. Terra de Ninguém. Campinas: Unicamp, 1999. p.147.
435
Idem, p.148.
214
214
pequeno proprietário confluía muito mais com as concepções originais do Estatuto. A
contradição do “camponês” transformando-se em pequeno proprietário inserido no modelo
capitalista, portanto, na ótica da esquerda, transmutando-se em um obstáculo a revolução,
está intimamente ligada ao surgimento do MST, pois o trabalho de “conscientização
coletiva” deveria ser a mola propulsora da transformação da sociedade.
O surgimento do MST no interior da própria CPT deriva desse complexo quadro
sócio-político, segundo Martins
A unidade de origem de CPT e MST, (...) está no fato que o MST nasceu
no interior do trabalho pastoral, justamente em conseqüência das
virtualidades e também dos limites políticos desse trabalho socialmente
emancipador. Quando a religião e a própria organização eclesiástica da
igreja se revelaram uma barreira às implicações e desdobramentos
políticos da ação pastoral, foi inevitável o nascimento do MST. A unidade
de origem se manteve numa complicada relação de face e contraface. Se o
MST ganhou na definição de identidade política, a CPT perdeu na
diluição e indefinição de sua própria identidade como serviço pastoral aos
pobres da terra.
436
O MST nasceu no interior do trabalho da pastoral e, como apontou Martins,
ainda está intimamente ligado a essa ala da Igreja, tanto que o seu surgimento não
representa uma ruptura no que tange a atuação da CPT e CEBs, mas sim um passo além.
Neonato o MST, os limites até então colocados pela própria institucionalização e hierarquia
da Igreja puderam ser mais facilmente transpostos, assim o movimento organizou-se em
torno de um projeto político mais claramente tipificado do que o trabalho que era
desenvolvido pela pastoral.
A relação do movimento com o governo no que se refere à aplicação do Estatuto
carrega uma contradição intrínseca a própria existência do MST, ora o movimento surgiu
para conscientizar a massa popular denominada “sem-terra” da exploração capitalista do
campo e da necessidade de superação desse modelo para a implantação de um modelo não-
capitalista. Não é nosso objetivo aqui compreender qual modelo seria implantado em
substituição ao capitalismo, haja vista as diversas tendências no interior do MST, como
Marxistas, Leninistas e Maoistas somente para citar algumas, mas se não existe um modelo
único a ser implantado, existe um modelo único a ser superado, o capitalismo.
A crítica ao modelo agrário previsto no Estatuto se fazia, e ainda é feita, em
uníssono. Uma homogeneidade indiscutível dentro do quadro da liderança do movimento,
436
MARTINS, J. S. Reforma Agrária: O Impossível diálogo, op.cit. p.152.
215
215
referia-se à crítica feita ao latifúndio, às propriedades rurais pertencentes a multinacionais,
bem como a reivindicação para a fixação de uma área máxima para as propriedades
437
.
Todos os itens acima, de certa forma, constavam do Estatuto da Terra, mas com
uma intencionalidade totalmente diferente à do MST, disso resulta uma das grandes
contradições que envolvem o movimento, pois a crítica frontal à Lei, ou mesmo o não
reconhecimento dela, haja vista seu “caráter burguês”, não impedia o MST de fazer uso dos
dispositivos do Estatuto.
Dentre os diversos dispositivos da Lei, um em especial foi, e ainda é,
extremamente esgarçado pela interpretação do MST a função social da terra. No Estatuto
o dispositivo condicionava-se à produtividade, à observação da legislação trabalhista, à
preservação ambiental e à garantia da saúde daqueles que trabalhavam na terra. A questão
da função social carrega em seu âmago certa subjetividade e também margens para
diferentes interpretações jurídicas, afinal existiria ou não uma vinculação e uma
condicionante entre a função social e a propriedade? A função social é determinada pela
terra em si ou pela propriedade da terra? Na visão de alguns juristas os proprietários devem
cumprir sua função social, ou seja, parte-se da propriedade, no entanto a interpretação da
Lei não se constitui em um consenso, e juristas como Miranda atribuem a função social à
terra,
Função social da terra, pode-se afirmar que constitui o princípio central
do Direito Agrário, do qual a função social da propriedade da terra é um
subtema, bem como todo e qualquer princípio ou instituto que tenha como
objeto a terra.
438
A interpretação que a função social é inerente a terra é utilizada pelo MST para
reivindicar uma distribuição massiva de terra a todos os “sem terra”, aliás, a toda e qualquer
pessoa que queira um pedaço de terra. Isso na prática se consubstanciou em um moto-
contínuo” produzindo indefinidamente demanda por terras.
A leitura realizada pelo MST da função social da terra possui uma estreita
vinculação com outro componente do Estatuto, a desapropriação de terras. A ala
progressista da Igreja, o MST e a CONTAG possuem, em comum, o discurso da
desapropriação de terras como sinônimo de reforma agrária e cabe ressaltar que a
437
Segundo Martins “Ainda hoje, quando o MST ocupa terras o faz com base num pressuposto do Estatuto, o
de que são potencialmente destinadas à desapropriação para reforma agrária as terras do latifúndio e latifúndio
improdutivo. Convém não esquecer de que foi o Estatuto que nos deu o primeiro, e até hoje único, conceito
operacional de latifúndio (...)” MARTINS, J. de S. Reforma Agrária o Impossível Diálogo, op.cit. p.135.
438
MIRANDA, A. G. Teoria de direito agrário. Belém: CEJUB, 1989. p.84.
216
216
desapropriação havia sido institucionalizada pelo Estatuto da terra, mas sua utilização
deveria ser pontual, restrita a algumas regiões e condições. O discurso pró-desapropriação,
especialmente a partir da segunda metade da década de 70, passou a dominar as discussões
em torno da reforma agrária e a ser apontando, por diversos agentes, como a solução ideal
para a questão agrária. Segundo Roberto Campos,
Infelizmente, os líderes militares que se seguiram a Castello Branco não
tinham a mesma sensibilidade para o conflito de terras. O Estatuto da
Terra foi gradualmente esquecido. E o Imposto Territorial Rural, que, se
bem aplicado, provocaria parcelamento e parcerias, tornou-se
inexpressivo. Não serviu nem para desencorajar a terra ociosa, nem para
financiar a colonização. Quando o problema repontou no governo Sarney,
sob a pressão dos sindicatos e da Igreja, se falava num instrumento: a
desapropriação. É só disso que fala o Incra (...)
439
A discussão já transitava somente em torno da desapropriação quando, na década
de 80, a reforma agrária voltou com força total a figurar entre uma das principais questões
nacionais. A polarização do debate foi crescente, parte disso resultava dos argumentos
contrários a uma reforma agrária baseada na desapropriação e no distributivismo, esse
posicionamento ganhou força devido às transformações econômicas que estavam em pleno
curso no campo. Segundo Graziano,
(...) ao contrário do que se imaginava, o Brasil progrediu e o campo se
modernizou. Essa foi a maior ironia que a História pregou na economia
agrária brasileira. O Brasil não precisou da reforma agrária para se
desenvolver. O latifúndio continuou grande, mas abandonou o atraso,
transformando-se em empresa capitalista. Quando os militares tomaram o
poder, o Brasil apresentava uma economia agrária atrasada. Agora, o país
produz com tecnologia própria (...) Decididamente, proeza assim não se
consuma com oligarquia no comando.
440
Na esteira dessa modernização no campo é que surgiram os dois grandes agentes
do debate na década de 80, o MST e a UDR. O processo de redemocratização associado aos
embates entre esses agentes, bem como a necessidade de legitimação do governo Sarney
interferiram diretamente na formulação do PNRA (Plano Nacional de Reforma Agrária).
O Brasil havia passado mais de 20 anos sob o regime militar e, do ponto de vista
agrário, sob a égide exclusiva do Estatuto da Terra, o PNRA de certa forma surgiu como um
complemento, mas, também, enquanto uma sobreposição ao Estatuto.
441
A conjuntura
439
CAMPOS, R. Cheiro de terra. Jornal Folha de São Paulo. 30/6/1996.
440
GRAZIANO, X. Ironia Agrária. Jornal O Estado de São Paulo 30/11/2004.
441
Segundo Graziano: “Quando ressurgiu a questão agrária no Brasil, trazida pelo processo de
redemocratização, em meados de 80, o país ainda vivia sob a égide do Estatuto da Terra. Valendo desde 1964,
a lei nunca conseguiu promover a distribuição fundiária tão aguardada. Sonhos foram contidos.Sarney tomou
posse e, embalado pelos ventos da liberdade, anunciou as metas do seu plano nacional de reforma agrária: 1,4
217
217
política impulsionava as transformações e no processo de “reinvenção” do país o Estatuto
estava atado com os militares, portanto a elaboração do PNRA entrava no bojo da revisão
política impetrada pela redemocratização, ao menos inicialmente era essa a proposta..
Se, num primeiro momento, o Estado Brasileiro absorveu o tema, logo a
seguir se viu recortado pelas contradições inerentes a uma ampla aliança
política, que envolvia forças com interesses bastante diferenciados. O fato
de ter sido criado, logo nos primeiros dias do novo governo, um
Ministério especialmente voltado para o tema não significou garantia de
realização da reforma fundiária almejada pelos trabalhadores do campo. A
trajetória da proposta do PNRA, ao longo de 1985, e o processo
constituinte, em 1987-1988, mostraram a força dos proprietários de terra
(que muitos consideravam fragilizados ante o crescimento urbano-
industrial) e explicitaram, tanto para os atores presentes como para os
pesquisadores do tema, a complexidade do jogo de forças que se
desenvolvia no interior das diferentes instâncias do Estado.
442
A complexidade do tema não se esgotou com a promulgação do PNRA que, na
melhor das hipóteses, conseguiu de fato apenas dividir o holofote de críticas até então
direcionadas apenas ao Estatuto.
milhão de famílias a serem assentadas. Chegara a hora de resgatar avida social no campo. Os ideólogos da
esquerda aplaudiram. Os economistas rurais julgaram uma temeridade. Na política, o enterro da ditadura
militar gerou duas criaturas antagônicas: o MST e a UDR. Nada estranho. Como na Física, cada ação provoca
sua reação. Os fazendeiros, liderados pelo impetuoso Caiado, bateram de frente com os sem-terra do intrépido
Stédile. Um choque de alta voltagem”. In: GRAZIANO, X. Mistério vermelho. Jornal O Estado de S. Paulo
23/11/2004.
442
MEDEIROS, L. S. Reforma Agrária no Brasil, op. cit. p.34.
218
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CONCLUSÃO
219
219
CONCLUSÃO
Ao longo das discussões, desde as preliminares até sua promulgação, o Estatuto
da Terra dividiu opiniões e motivou uma série de especulações e questionamentos em torno
das reais intenções do governo Castello Branco com relação à Lei.
Ao longo de sua vigência, estudiosos da questão agrária apontaram a origem do
Estatuto da Terra como uma manobra ou artifício político, cujo intuito seria desmobilizar o
movimento pró-reforma agrária que havia tomado corpo na década precedente. Afinal, com
qual objetivo o primeiro governo militar encamparia a bandeira da reforma agrária, senão
esse? Desse postulado, originar-se-ia a afirmação comumentemente reproduzida, quando se
trata de tentar apreender a origem do Estatuto: O Estatuto da Terra nasceu como e para
ser letra morta” e decorreria dessa perspectiva seu posterior esvaziamento.
Tendo em vista o que foi exposto com a presente pesquisa, buscou-se analisar a
formulação do Estatuto da Terra no governo Castello Branco, e a constatação é que o
mesmo não pode ser considerado, simplesmente, como uma ação política cujo objetivo seria
a contenção e desmobilização dos movimentos pró-reforma agrária.
Por meio de uma análise conjuntural, verificamos que o Estatuto da Terra, com
suas definições, instrumentos e regulamentos, enquadrava-se como uma estratégia de ação
econômica plenamente ajustada às premissas do Plano de Ação Econômica do Governo
PAEG.
Neste sentido, a mobilização do governo, a despeito da forte oposição sofrida
durante o processo de formulação e aprovação da lei, fincava-se na análise de que a
estrutura agrária representava um obstáculo para seu próprio desenvolvimento e
modernização. E, em um sentido mais global, impunha limites para o próprio processo de
estruturação econômica nacional. Apresentando, com isso, uma aproximação com as várias
correntes de pensamento da década de 60 e anterior a ela que colocavam como condição
indispensável ao processo de desenvolvimento econômico do país, a promoção de
mudanças na estrutura fundiária.
Assim, essa necessidade ligava-se a outras problemáticas, tais como: a
contenção da inflação resultante do aumento da demanda por produtos agrícolas induzida
pela procura crescente de matérias primas; a necessidade de elevar os índices de
exportação, cujo objetivo central era incrementar a poupança interna; aumentar o mercado
consumidor, principalmente para amparar o crescimento da indústria nacional e diminuir o
220
220
êxodo rural, visto como resultado direto do “achatamento” da condição de vida tanto do
trabalhador rural, quanto do pequeno proprietário.
Solucionar tais questões implicava em um aumento substancial da capacidade
produtiva e a formação de uma próspera classe média no campo. Tais objetivos seriam
atingidos, segundo Castello e seus assessores, a partir de um conjunto de leis que não
somente promovesse uma melhor distribuição da terra, mas também legislasse sobre outros
pontos que gravitavam em torno da questão da terra, tais como: a regulamentação dos
contratos de arrendamento e parceria; a elaboração de uma política agrícola capaz de atingir
tanto os grandes quanto os pequenos e médios proprietários; a regularização da posse da
terra e a tributação progressiva e regressiva.
Portanto, a iniciativa que moveu o governo a elaborar o Estatuto da Terra não
decorreu de uma motivação meramente política, mas sim do objetivo de alavancar o
desenvolvimento capitalista no campo, fator considerado indispensável não somente para
diminuir os desequilíbrios entre o meio rural e urbano, como também, para potencializar o
desenvolvimento capitalista do país.
Embora tenha sido promulgado ainda no primeiro ano de governo do Presidente
Castello Branco, o Estatuto da Terra não foi objeto de consenso entre os militares.
Desnudando entre os mesmos, posicionamentos, caminhos e diagnósticos diferenciados
para a mesma questão: o desenvolvimento do setor produtivo rural.
No âmbito das discussões, os militares representantes da chamada linha dura,
mostravam-se insatisfeitos com o reformismo de Castello, especialmente com relação à
questão agrária, alinhando-se aos demais setores oposicionistas. A base da argumentação
além de apontar para questões políticas, como a suposta traição dos ideais da “revolução”
exatamente por encampar “as velhas bandeiras” do período pré-64, enfatizava que o
problema não era a estrutura agrária e sim a ausência de uma efetiva política agrícola que
amparasse o setor e incentivasse sua modernização. Neste sentido, a partir da posse de
Costa e Silva observou-se um claro redirecionamento da política agrária.
A preocupação com a aplicação coordenada dos vários instrumentos do Estatuto
da Terra nas regiões indicadas pelo zoneamento, paulatinamente foi sendo abandonada em
favor de um dispositivo bem mais específico, a colonização dos “espaços vazios”, item que
era condizente com os princípios políticos do setor oposicionista ao Estatuto da Terra.
Na ótica da linha dura bastava a efetivação de uma política agrícola agressiva
para induzir à modernização e, conseqüentemente, o aumento da produção e isso deveria
221
221
ser desvinculado de um reordenamento fundiário. A defesa da colonização baseava-se na
mesma concepção, pois traria ganhos extras no que concerne ao aumento da produção por
representar a expansão da fronteira agrícola nacional. Além disso, poderia ser utilizada
como alternativa para aliviar a pressão sobre a terra em regiões de conflito que haviam sido
caracterizadas como áreas prioritárias pelo governo Castello, onde se previa a utilização de
medidas mais incisivas como veículo da reorganização fundiária.
A esse redirecionamento calcado na ênfase apenas da colonização, somou-se
uma extensiva campanha de implantação de empresas agropecuárias no campo, entendidas
enquanto fatores de otimização da produção e da modernização do setor.
Partindo deste pressuposto, devemos compreender que o esvaziamento contínuo
frente à sua proposta inicial não resultaria do fato de ter sido, pretensamente, “concebido”
enquanto “letra morta”, mas sim do redirecionamento político, impetrado nos governos
militares posteriores que, ao contrário de Castello e seus colaboradores, não vinculavam a
execução da reforma agrária ao processo de desenvolvimento econômico nacional.
Como conseqüência, e contrastando com os objetivos da política adotada, os
governos militares pós-Castello enfrentaram a ampliação não somente dos conflitos no
campo, mas também a crescente organização de movimentos de luta pela terra. Com o apoio
de agentes pastorais ligados à Teologia da Libertação, a Igreja organizou a CPT. Além da
CPT outras associações surgiram a reboque da não implementação do Estatuto, dentre essas
o MST.
Enquanto os militares pós-Castello centravam-se no esforço de imprimir uma
legislação paralela ao Estatuto relegando-o parcialmente ao ostracismo, os agentes sociais
mantinham viva a bandeira da reforma agrária, reivindicando sua aplicação. Mas se o
Estatuto não era aplicado pelos governos militares na íntegra, a reivindicação para a sua
aplicação também vinha recheada de contradições, pois amparava-se apenas em alguns
pontos da Lei.
O estatuto foi formulado com o objetivo de modernizar e capitalizar o campo
brasileiro, rompendo assim os traços oligárquicos que impediam seu desenvolvimento, seus
formuladores buscaram dar conta de toda a complexidade rural brasileira e o resultado foi
uma Lei também complexa e de difícil operacionalidade. Em uma leitura posterior, até de
quem participou efetivamente da sua confecção, como Roberto Campos, encontramos o
relato da dificuldade de levar a cabo até mesmo o recadastramento rural, primeiro e
essencial item, pois seria a partir dele que outros pontos ganhariam definição.
222
222
A complexidade da Lei e as profundas transformações que a mesma acarretariam
possui uma estreita ligação com o esvaziamento consciente e proposital impetrado pelos
governos militares pós-Castello, haja vista que os mesmos não almejavam alterar a estrutura
agrária.
Os instrumentos legados pelo Estatuto da Terra também serviram a outros
propósitos políticos que em muito superavam sua proposta inicial. A leitura parcial da Lei,
sobretudo dos instrumentos de desapropriação e distribuição de terra, deu o tom das
reivindicações organizadas pelos movimentos sociais e que, mesmo em segundo momento,
quando se reverteram em elementos de contestação à própria da lei não deixaram de
amparar os fundamentos de uma reforma agrária que era apregoada como ampla, massiva e
distributivista.
...
Quem formulou não deu conta da complexidade, quem veio depois não queria
sua aplicabilidade e quem se amparou em seus dispositivos não almejava modificar
apenas a estrutura fundiária. Carmem Lúcia Gomes De Salis
223
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FONTES
1.0 -Arquivos
1.1 - Arquivo digitalizado do Center for Research Libraries (CRL)
443
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Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. Caixa 53, 1964.
Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. Caixa 57, 1964.
Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. Caixa 63, 1964.
Arquivo Paulo de Assis Ribeiro. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. Caixa 129, 1964.
2.0 Discursos
Discurso do Deputado Elias Carmo, na Câmara dos Deputados, em 22/06/1964. Anais da
Câmara.
Discurso do Deputado Último de Carvalho, na Câmara dos Deputados, em 24/06/1964.
Anais da Câmara.
Discurso do Deputado Pedro Zimmermann, na Câmara dos Deputados, em 23/07/1964.
Anais da Câmara.
Discurso do Deputado Último de Carvalho, na Câmara dos Deputados, em 27/07/1964.
Anais da Câmara.
Discurso do Deputado Herbert Levy, na Câmara dos Deputados, em 20/10/1964. Anais da
Câmara.
Discurso do Deputado Abel Rafael, na mara dos Deputados, em 26/10/1964. Anais da
Câmara.
2.1 – Discursos Presidenciais
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 04/09/1964. Secretaria de Imprensa.
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 05/05/1964. Secretaria de Imprensa.
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 22/05/1964. Secretaria de Imprensa.
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 06/06/1964. Secretaria de Imprensa.
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 04/07/1964. Secretaria de Imprensa.
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 04/09/1964. Secretaria de Imprensa.
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 13/06/1965. Secretaria de Imprensa.
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 20/03/1966. Secretaria de Imprensa.
CASTELLO BRANCO, H. A. Discursos. 10/11/1966. Secretaria da Imprensa.
3.0 – Entrevistas
Entrevista de Castello Branco ao Jornal O Estado de São Paulo, 16/05/1964.
Entrevista de Reis Velloso ao Jornal O Estado de São Paulo, 28/01/1975.
Entrevista com Carlos Lorena, concedida a Regina Bruno, 06/07/1984.
Entrevista com José Gomes da Silva , concedida a Regina Bruno, 14/08/1984.
Entrevista com José Gomes da Silva, concedida a Mayla Yara Porto, 1995.
443
O Latin American Microform Project (LAMP) no Center for Research Libraries (CRL) foi patrocinado pela
Fundação Andrew W. Mellon de Nova York, com o intuito de produzir imagens digitais de, uma série de
publicações, emitidas pelo Poder Executivo brasileiro, entre 1821 e 1993. O projeto proporciona acesso, via
Internet, aos documentos.
224
224
4.0 - Jornais
Jornal O Estado de São Paulo, 02/05/1962.
Jornal O Estado de São Paulo, 01/06/1962.
Jornal O Estado de São Paulo, 16/02/1963.
Jornal O Estado de São Paulo, 18/02/1963
Jornal O Estado de São Paulo, 20/02/1963
Jornal O Estado de São Paulo, 26/02/1963.
Jornal O Estado de São Paulo, 14/03/1963.
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Jornal O Estado de São Paulo, 10/05/1963.
Jornal O Estado de São Paulo, 14/09/1963.
Jornal O Estado de São Paulo, 16/02/1964
Jornal O Estado de São Paulo, 14/03/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 16/05/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 23/05/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 29/05/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 30/05/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 25/06/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 24/06/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 07/08/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 18/09/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 24/09/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 02/10/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 03/10/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 07/10/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 08/10/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 20/10/1964.
Jornal O Estado de São Paulo, 23/11/2004. (GRAZIANO, X. Mistério vermelho.)
Jornal Folha de São Paulo, 16/04/1964.
Jornal Folha de São Paulo, 16/04/1967.
Jornal Folha de São Paulo, 21/04/1968. (Centro-Oeste. Suplemento Especial)
Jornal Folha de São Paulo, 28/04/1968.
Jornal Folha de São Paulo, 12/11/1995. (CAMPOS, R. Agricultura, Reforma Agrária e
Ideologia)
Jornal Folha de São Paulo, 30/06/1996. (CAMPOS, R. Cheiro de terra.)
Jornal do Brasil 19/09/1961.
Jornal do Brasil 29/09/1961.
Jornal do Brasil 15/05/1975.
Jornal O Globo 15/12/1964.
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