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O privilégio da phoné não depende de uma escolha que se pudesse ter evitado.
Responde a um momento da economia (digamos da ‘vida’ da ‘história’ ou do ‘ser
como relação para consigo’). O sistema do ‘ouvir-se falar’ através da substância
fônica – que se dá como significante não-exterior, não-mundano, não-empírico,
pois, ou não-contingente – teve que dominar durante toda uma época a história do
mundo, produziu mesmo a idéia de mundo, a idéia de origem do mundo a partir da
diferença entre o mundano e o não-mundano, o fora e o dentro, a idealidade e a não-
idealidade, o universal e o não-universal, o transcendental e o empírico, etc.
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A escrita
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seria, para esta tradição, a do privilégio da phoné, uma representação
do discurso falado, desta substância fônica. E o alfabeto, sistema dominante desde a
Grécia Antiga, a representação deste discurso por excelência. Esta concepção entende,
então, que a voz estaria mais próxima de uma linguagem natural, da alma, e a escrita
seria sua seguidora, numa hierarquia. Lembremos a definição aristotélica
: “
Os sons
emitidos pela voz são os símbolos dos estados de alma, e as palavras escritas, os
símbolos das palavras emitidas pela voz
”.
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E é
acompanhando esta distinção entre a voz
e a escrita que o autor afirma estar a origem das noções de significado e significante:
Em todos os casos, a voz é o que está mais próximo do significado, tanto quanto este
é determinado rigorosamente como sentido (pensado ou vivido) como quando o é,
com menos precisão como coisa. Com respeito ao que uniria indissoluvelmente a
voz à alma ou ao pensamento do sentido significado, e mesmo à coisa mesma (união
que se pode fazer, seja segundo o gesto aristotélico que acabamos de assinalar, seja
segundo o gesto da teologia medieval, que determina a res como coisa criada a partir
de seu eidos, de seu sentido pensado no logos ou entendimento infinito de Deus),
todo significante, e em primeiro lugar o significante escrito, seria derivado. Seria
sempre técnico e representativo. Não teria nenhum sentido constituinte. Esta
derivação é a própria origem da noção de “significante”. A noção de signo implica
sempre nela mesma, a distinção do significado e do significante, nem que fossem no
limite, como diz Saussure, como as duas faces de uma única folha. Tal noção
permanece, portanto, na descendência deste logocentrismo que é também
fonocentrismo: proximidade absoluta da voz e do ser, da voz e do sentido do ser, da
voz e da idealidade do sentido.
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Na seqüência deste raciocínio, o filósofo discute o próprio conceito de signo e de
ciência. E nos propõe que o conceito de escrita deveria definir o campo de uma ciência,
a Gramatologia. Para isso, ele pergunta o que significará uma ciência da escrita, e
levanta alguns pontos, dentre eles, destaco alguns: “que a própria idéia de ciência
nasceu numa certa época da escritura; [...] que, nessa medida, ela, primeiramente, ligou-
se ao conceito e à aventura da escritura fonética, valorizada como o telos de toda
escritura; [...] que a própria historicidade está ligada à possibilidade da escritura [...]. E
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DERRIDA. Gramatologia, p. 9.
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Haverá uma substituição de escritura por escrita, como sinônimos durante o texto, pois a tradução
brasileira optou por traduzir écriture, do texto original, por escritura. Concordando com o professor
Evandro Nascimento, optei por utilizar escrita, ao invés de escritura, que parece manter mais a riqueza do
jogo lingüístico que Derrida propõe com este termo, que se quer mais próximo do texto escrito, da
caligrafia, do traço.
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DERRIDA. Gramatologia, p. 37.
70
DERRIDA. Gramatologia, p. 14.