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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
ADRIANA SOARES
ESPIRITUALIDADE E EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE:
“o opressor ‘hospedado’ no oprimido” de Paulo Freire
e a teoria do desejo mimético de René Girard
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2008
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ADRIANA SOARES
ESPIRITUALIDADE E EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE:
“o opressor ‘hospedado’ no oprimido” de Paulo Freire
e a teoria do desejo mimético de René Girard
Dissertação apresentada em cumprimento
parcial às exigências do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião,
para obtenção do grau de Mestre.
Orientação: Prof. Dr. Jung Mo Sung.
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2008
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FICHA CATALOGRÁFICA
So11e Soares, Adriana
Espiritualidade e educação para a liberdade “o opressor
‘hospedado’ no oprimido” de Paulo Freire e a teoria do
desejo mimético de René Girard / Adriana Soares. São
Bernardo do Campo, 2008.
129fl.
Bibliografia
Dissertação (Mestrado) – Universidade Metodista de São
Paulo, Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião, curso de
s-Graduação em Ciências da Religião.
Orientação de : Jung Mo Sung
1. Teologia da libertação 2. Freire, Paulo, 1921-1997
Crítica e interpretação 3. Girard, René 4. Educação
(Liberdade) I.tulo.
CDD 261.8
ADRIANA SOARES
ESPIRITUALIDADE E EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE:
“o opressor ‘hospedado’ no oprimido” de Paulo Freire e a teoria do
desejo mimético de René Girard
Dissertação apresentada em cumprimento
parcial às exigências do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião,
para obtenção do grau de Mestre.
Orientação: Prof. Dr. Jung Mo Sung.
Data da defesa: 15 de setembro de 2008.
Resultado: _______________________
BANCA EXAMINADORA
Jung Mo Sung Prof. Dr. _____________________
Universidade Metodista de São Paulo
Elydio dos Santos Neto Prof. Dr. _____________________
Universidade Metodista de São Paulo
Ênio José da Costa Brito Prof. Dr. _____________________
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
A todos aqueles
que insistem e persistem na
“estranha mania de ter fé na vida”
e que buscam fazê-lo
em cada gesto...
em cada palavra...
em suas próprias vidas...
AGRADECIMENTOS
A Deus,
que por caminhos tortuosos me conduziu à realização deste trabalho,
possibilitando que, mesmo diante de todas as dificuldades,
eu perseverasse até o fim.
A minha família,
em especial aos meus pais,
pelos ensinamentos, pelos limites,
por todo amor, carinho, apoio e cuidado.
A minha amiga e “mestra” Karen,
por sempre acreditar em meu potencial
e pelos fundamentais apoio, incentivo e colaboração.
A minha amiga Sandrinha,
que apesar de agora um tanto “distante”,
esteve sempre presente pois as sementes deste trabalho
foram regadas pela nossa amizade.
Ao meu orientador Professor Jung Mo Sung,
pela incansável paciência, pelo encorajamento
e por desde o início apostar nas minhas intuições.
A todos os meus amigos e amigas na caminhada,
que de alguma maneira fazem parte daquilo que sou e acredito.
O Medo de Amar e o Medo de Ser Livre
Beto Guedes
O medo de amar é o medo de ser
Livre para o que der e vier
Livre para sempre estar onde o justo estiver
O medo de amar é o medo de ter
De a todo momento escolher
Com acerto e precisão a melhor direção
O sol levantou mais cedo e quis
Em nossa casa fechada entrar prá ficar
O medo de amar é não arriscar
Esperando que façam por nós
O que é nosso dever: recusar o poder
O sol levantou mais cedo e cegou
Os medo nos olhos de quem foi ver
Tanta luz
Banca de defesa de Adriana Soares – UMESP, 15 de setembro de 2008.
Elydio dos Santos Neto
Esta belíssima canção de Beto Guedes,
que certamente representa muito do que penso e acredito,
além de expressar as intuições que permeiam este trabalho,
foi-me entregue ao final da banca pelo Professor Elydio dos Santos Neto,
cuja participação foi muito importante tanto
em minha qualificação quanto em minha defesa.
Meus agradecimentos pelo incentivo e pelo encorajamento.
“Nós devemos ser a mudança que queremos ver no mundo”.
Mahatma Gandhi
RESUMO
Este estudo discute a relação entre espiritualidade e educação para a liberdade, a partir da
perspectiva antropológica da natureza mimeticamente desejante do ser humano como
elemento chave para a compreensão das relações humanas, e da espiritualidade como
dimensão fundamental para o engajamento na luta pela transformação da sociedade. Por meio
de pesquisa bibliográfica, procede-se à análise do problema identificado por Paulo Freire, de
que o opressor “hospedado” no oprimido representa um obstáculo para a libertação, sob a
ótica da teoria do desejo mimético de René Girard. Trabalha-se com a hipótese de que o
elemento antropológico fundamental presente no pensamento de Paulo Freire, esquecido à
medida que sua proposta pedagógica assumiu um caráter meramente conscientizador, refere-
se à dimensão da espiritualidade. Diante do abismo que se coloca entre a utopia da libertação
e a realidade instaura-se o cenário de crise que recai, não apenas sobre educadores formais,
como também sobre muitos daqueles que, em algum momento de suas vidas, se engajaram na
luta pela transformação social. Uma vez que o método é sabido, e é conscientizar, o fato de
que a transformação sonhada não tenha ocorrido leva a conclusão de que alguma coisa falhou
no processo.
Palavras chaves: opressor-oprimido, desejo mimético, educação para a liberdade,
espiritualidade, testemunho, libertação.
RESUMEN
Este estudio analiza la relación entre la espiritualidad y la educación para la libertad, desde la
perspectiva antropológica de la naturaleza miméticamente deseante de los seres humanos
como clave para la comprensión de las relaciones humanas, y la espiritualidad como una
dimensión fundamental para el compromiso con la lucha por la transformación de la sociedad.
Por medio de búsqueda bibliográfica, se hace un análisis del problema identificado por Paulo
Freire, de que el opresor “alojado" en los oprimidos representa un obstáculo para la
liberación, desde la perspectiva de la teoría del deseo mimético de René Girard. Trabaja con
la hipótesis de que el elemento esencial en el pensamiento antropológico de Paulo Freire,
olvidado una vez que su propuesta pedagógica ha asumido un carácter meramente
conscientizador, se refiere a la dimensión de la espiritualidad. En razón de la distáncia que
surge entre la utopía de la liberación y la realidad, se establece el escenario de una crisis que
no sólo recae sobre los educadores formales, sino también en muchos de los que, en algún
momento de sus vidas, se comprometeran con la lucha por la transformación social. Dado que
el método es bien sabido, y es concientizar, el hecho de que la soñada transformación no ha
ocurrido lleva a la conclusión de que algo falló en el proceso.
Palabras clave: opresor-oprimido, deseo mimético, educación para la libertad, espiritualidad,
testimonio, liberación.
ABSTRACT
This study discusses the relationship between spirituality and education for freedom from the
anthropological perspective of human mimetic desire as key to the understanding of human
relations, and spirituality as a fundamental dimension in the engagement in the battle for
transformation of society. Through literature search, it is the analysis of the problem identified
by Paulo Freire, that the oppressive "hosted" the oppressed represents an obstacle to the
liberation, from the perspective of the theory of mimetic desire of René Girard. Works with
the hypothesis that this essential element in anthropological thinking of Paulo Freire,
forgotten as his pedagogical proposal assumed a character purely on conscience, refers to the
dimension of spirituality. Because the distance between utopia of the liberation and the
reality, establishes itself the scene of a crisis that falls not only on formal educators, but also
on many of those who, at some point in their lives, whether in the battle for the engagement in
social transformation. Since the method is well known, and it is acquire consciousness, the
fact that the dreamed transformation has not occurred leads the conclusion that something
failed in the process.
Key words: oppressive-oppressed, mimetic desire, education for freedom, spirituality,
testimony, liberation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................12
1 PAULO FREIRE E A CONTRADITÓRIA CONDIÇÃO HUMANA.................................16
1.1 A humanização como vocação ontológica e histórica de ser mais.................................16
1.2 A desumanização como possibilidade histórica do ser menos .......................................29
1.3 A educação bancária como instrumento da desumanização...........................................36
1.4 A libertação e o medo da liberdade ................................................................................40
2 A PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DE RENÉ GIRARD............................................52
2.1 O desejo mimético e a humanidade da violência humana..............................................52
2.2 A crise mimética e a solução sacrificial .........................................................................61
2.3 Satanás: o príncipe da ordem e da desordem deste mundo ............................................68
2.4 O Cristianismo e a revelação do mecanismo vitimário..................................................74
3 ESPIRITUALIDADE E EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE..........................................82
3.1 Paulo Freire e René Girard em diálogo ..........................................................................82
3.2 O perigo da conscientização: a ameaça de morrer para nascer de novo.........................85
3.3 O desejo mimético e o medo da liberdade......................................................................87
3.4 Em busca de um estatuto para a liberdade humana........................................................91
3.5 A dialogicidade como dinâmica da capacidade humana de relacionar-se......................97
3.6 A espiritualidade como experiência fundamental para a humanização........................105
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................116
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................123
12
INTRODUÇÃO
O grande problema está em como poderão os oprimidos,
que “hospedam” ao opressor em si, participar da elaboração,
como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação.
Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor
poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora.
Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer
e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo.
1
Minha vida foi marcada pelo engajamento pastoral e militante. Dentre tantas
experiências que sem dúvida marcaram minha trajetória, as principais delas se deram na
Pastoral da Juventude (PJ) da Igreja Católica, onde fui militante de 1996 a 2003, e no MIRE
(Mística e Revolução), um então nascente movimento de jovens cristãos, no qual participei de
2000 a 2005. Em minha atuação tanto na PJ quanto no MIRE, uma das questões que sempre
me inquietou foi como despertar jovens comprometidos com a transformação da sociedade.
Participei, organizei e orientei vários daqueles que considerávamos momentos de formação e
espiritualidade que, no meu entender, diante das dificuldades em organizar e mobilizar a
juventude, não traduziam a experiência capaz de impulsionar um processo de conversão
pessoal e de levar ao engajamento. Para mim, os horizontes revolucionários definitivamente
não significavam uma prática revolucionária, o que me levou à compreensão de que havia um
profundo descompasso entre a perspectiva da transformação pessoal e a possibilidade da
transformação social.
Disto brota minha perspectiva de que uma relação estreita entre educação e
espiritualidade que se constrói na medida em que apenas a reflexão sobre os rumos da
sociedade não é suficiente para o engajamento na luta pela transformação social “porque o
sentido [deste engajamento] não nasce das teorias, mas de uma aposta fundamental, de um ato
de
2
”, ou seja, nasce da “capacidade de apostar e ver que todos os seres humanos têm a
mesma dignidade fundamental e, por isso, devem ser tratados de acordo
3
”.
Diante disto, acredito que meu projeto de pesquisa tenha significado uma espécie
de “resposta” a uma angústia que sempre me inquietou, além de nele vislumbrar uma
possibilidade de abertura à reflexão sobre a própria prática pastoral, militante e educativa,
1
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 34-35.
2
SUNG, Jung Mo. Sementes de esperança: a fé em um mundo em crise, p. 9
3
Ibidem, p. 97.
13
levando em consideração o cenário de “crise das utopias” que se abate sobre os movimentos
pastorais e sociais. No curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião – área “Práxis
Religiosa e Sociedade” –, encontrei o espaço ideal para refletir sobre as questões que se
tornaram centrais em minhas preocupações e que giram em torno das contradições entre teoria
e prática, entre transformação social e transformação pessoal.
É possível educar para a liberdade sem a espiritualidade? Em outras palavras, qual
a importância da espiritualidade em uma educação que se proponha à liberdade? Estas
questões espelham a intuição fundamental que permeia este ensaio. Sendo que a vida revela-
se sempre como uma tarefa à qual nos lançamos, pressupomos que “viver é andar” e que
“andar supõe um caminho
4
”. Uma vez que todo caminho segue para algum lugar, a vida
pressupõe uma direção, a presença de um sentido pelo qual valha a pena viver. A temática da
liberdade adquire importância, na medida em que vivemos os des-caminhos de uma sociedade
onde vigoram a dominação e a desumanização.
Referindo-se à metodologia de Paulo Freire, que atingiu seu ápice na década de 70
como fundamento da educação popular, e que tem na conscientização seu elemento central,
José Comblin diz que “alguma coisa falhou na relação entre consciência e liberdade
5
”, pois “o
despertar dos povos permanece como meta” sendo que “os caminhos que levam à meta parece
que são mais complexos e mais longos do que se esperava há uma geração
6
”. Esta proposição
de Comblin representa o pano de fundo para a questão que norteia este projeto. Qual o
elemento presente na prática pedagógica proposta por Paulo Freire e que não foi devidamente
tratado pelos adeptos da educação popular, e que significou a falha no processo de libertação?
Neste estudo pretendemos resgatar o problema apontado por Paulo Freire de que
os oprimidos “hospedam” em si o opressor, buscando compreendê-la a partir da teoria do
desejo mimético de René Girard. Considerando que a libertação, para Freire, consiste na
superação da contradição opressores-oprimidos, isto significa por fim à dominação, ou seja,
fim à violência opressora que submete os seres humanos uns aos outros. A partir da
perspectiva de Girard de que a violência é um problema inerente às comunidades humanas,
nos deparamos com outra questão: qual é o caminho capaz de levar à superação da
internalização do opressor no oprimido e da violência opressora? Trabalhamos com a hipótese
de que o elemento antropológico fundamental presente no pensamento de Paulo Freire e que
4
BOFF, Leonardo. Vida segundo o espírito, p. 36.
5
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, p. 265.
6
ibidem, p. 269.
14
fora esquecido à medida que sua proposta pedagógica assumiu um caráter meramente
conscientizador de cunho racional se refere à dimensão da espiritualidade.
Nossa metodologia de pesquisa foi fundamentalmente bibliográfica
7
e o
desenvolvimento do tema dividido em três capítulos.
No primeiro capítulo analisamos as bases antropológicas da pedagogia libertadora
de Paulo Freire, sob o foco da contraditória condição dos oprimidos de serem “hospedeiros”
do opressor, identificando como tal condição representa um entrave para a relação entre
consciência e liberdade.
No segundo capítulo abordamos a perspectiva antropológica de René Girard
representada em sua teoria do desejo mimético, buscando elementos que nos possibilitem
compreender a contradição peculiar à condição dos oprimidos mediante a qual se sua
desumanização, o que nos auxiliará na tentativa de encontrar possíveis “saídas” para tal
situação.
No terceiro capítulo tratamos de estabelecer as aproximações entre as perspectivas
antropológicas de Freire e Girard, encontrando elementos que nos remetam à questão da
espiritualidade como uma dimensão não apenas presente, mas indispensável para a relação
entre consciência e liberdade, e como tal, para o processo de libertação e humanização.
Considerando que cada vez mais somos colocados diante de questões relativas ao
futuro da humanidade e à possibilidade de sobrevivência humana no planeta mediante os
rumos de uma sociedade que produz uma exclusão social em proporções cada vez maiores,
faz-se urgente encontrar caminhos que nos levem a uma profunda transformação nos
parâmetros que regem as relações humanas. Assim, faz-se necessário identificar os elementos
que pautam tais relações, identificando suas contradições e encontrando possibilidades a partir
da reflexão crítica sobre suas bases, sob a perspectiva de que a transformação da realidade
está dialeticamente relacionada à transformação do ser humano.
Esta realidade desumanizante exige uma resposta, uma perspectiva alternativa aos
seus rumos catastróficos. Assim, o resgate da dimensão “esquecida” no pensamento de Paulo
Freire, a partir da compreensão de que se trata de um elemento de natureza espiritual, torna-se
fundamental para a atividade educativa que se pretenda libertadora, a partir da libertação do
7
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa, p. 44.
15
ser humano de sua própria condição como possibilidade de restabelecer as bases da
convivência humana.
Este trabalho pretende contribuir no campo das Ciências da Religião, bem como
da Educação, na medida em que pretende estudar a relação entre espiritualidade e educação
para a liberdade, trazendo à pauta das reflexões a perspectiva antropológica da natureza
mimeticamente desejante do homem, como elemento chave para a compreensão das relações
humanas, e a dimensão da espiritualidade, como dimensão fundamental no engajamento na
luta pela transformação da sociedade.
Diante do cenário da “crise das utopias que assola não apenas os educadores
formais, como muitos daqueles que em algum momento de suas vidas se engajaram na luta
pela transformação da sociedade, seja no âmbito da educação popular, seja nas pastorais ou
movimentos populares, nossa reflexão adquire importância uma vez que pretende incidir
sobre o mecanismo gerador desta crise, identificando os elementos que falharam no processo
e resgatando questões fundamentais que não foram devidamente consideradas.
16
1 PAULO FREIRE
8
E A CONTRADITÓRIA CONDIÇÃO HUMANA
Nosso objetivo neste capítulo é analisar as bases antropológicas sobre as quais se
sustenta a pedagogia libertadora de Paulo Freire, a partir da compreensão de que esta, antes de
se tratar de um modelo pedagógico, representa uma concepção de ser humano que norteia a
tarefa de educar. Partindo do pressuposto de que alguma coisa falhou na relação considerada
“direta” entre consciência e liberdade, pretendemos explorar o problema do opressor
“hospedado” no oprimido apontado por Freire, analisando de que modo representa um entrave
para tal relação.
1.1 A HUMANIZAÇÃO COMO VOCAÇÃO ONTOLÓGICA E HISTÓRICA DE SER
MAIS
A condição necessária de ser é estar sendo.
9
O mundo não é. O mundo está sendo
10
.
O pensamento de Paulo Freire gira em torno de sua defesa e prática de uma
educação que possibilite ao ser humano “sua vocação de humanizar-se
11
”. Para ele, não é
8
Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 1921, no Recife, Pernambuco. Suas idéias o tornaram inspiração para
gerações de professores, especialmente na América Latina e na África. Freire apresentou uma síntese inovadora
das mais importantes correntes do pensamento filosófico de sua época, como o existencialismo cristão, a
fenomenologia, a dialética hegeliana e o materialismo histórico. Essa visão foi aliada ao talento como escritor
que o ajudou a conquistar um amplo público de pedagogos, cientistas sociais, teólogos e militantes políticos. A
partir de suas primeiras experiências no Rio Grande do Norte, em 1963, quando ensinou 300 adultos a ler e a
escrever em 45 dias, Freire desenvolveu um método inovador de alfabetização, adotado primeiramente em
Pernambuco. Seu projeto educacional estava vinculado ao nacionalismo desenvolvimentista do governo João
Goulart. A carreira no Brasil foi interrompida pelo golpe militar de 31 de março de 1964. Acusado de subversão,
ele passou 72 dias na prisão e, em seguida, partiu para o exílio. Durante o exílio, no Chile, escreveu o seu
principal livro: Pedagogia do Oprimido (1968). Em 1969, lecionou na Universidade de Harvard (Estados
Unidos), e na década de 1970 foi consultor do Conselho Mundial das Igrejas (CMI), em Genebra (Suíça).
Retornou ao Brasil em 1980, depois de 16 anos de exílio. Lecionou na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1989, foi secretário de Educação
no Município de São Paulo, sob a prefeitura de Luíza Erundina. Doutor Honoris Causa por 27 universidades,
Freire recebeu prêmios como: Educação para a Paz (das Nações Unidas, 1986) e Educador dos Continentes (da
Organização dos Estados Americanos, 1992). Paulo Freire faleceu no dia 2 de maio de 1997 em São Paulo,
vítima de um infarto agudo do miocárdio.
9
FREIRE, Paulo. Conscientizar para libertar. In: TORRES, Carlos Alberto. Consciência e história: a prática
educativa de Paulo Freire, p. 103.
10
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia, p. 76.
11
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 70.
17
possível pensar em educação sem fazê-lo a partir do próprio ser humano
12
, de forma que toda
prática educativa pressupõe necessariamente uma perspectiva antropológica em que se
sustente, um núcleo em torno do qual se fundamente. Para Freire, o núcleo fundamental em
que se sustenta um processo educacional pensado a partir da experiência existencial dos seres
humanos é o seu inacabamento ou sua inconclusão
13
. No entanto, a educação é possível não
apenas mediante a inconclusão, mas porque os seres humanos inacabados reconhecem-se
como tal:
O cão e a árvore também são inacabados, mas o homem se sabe inacabado e
por isso se educa. Não haveria educação se o homem fosse um ser acabado.
O homem pergunta-se: quem sou? de onde venho? onde posso estar? O
homem pode refletir sobre si mesmo e colocar-se num determinado
momento, numa certa realidade: é um ser na busca constante de ser mais e,
como pode fazer esta auto-reflexão, pode descobrir-se como um ser
inacabado, que está em constante busca. Eis aqui a raiz da educação.
14
Assim, para Freire, é a consciência de sua inconclusão que leva o ser humano a
educar-se, lançando-o numa busca que “deve traduzir-se em ser mais: é uma busca
permanente de ‘si mesmo’
15
”. Ao inscrever a existência humana em uma busca constante de
ser mais, que representa a busca permanente de si mesmo, Freire identifica a vocação humana
de humanizar-se com a “vocação ontológica e histórica de ser mais
16
”, de forma que a
inconclusão, como experiência fundante dos seres humanos, consiste em uma experiência de
abertura que nos insere no plano histórico:
Inacabado como todo ser vivo a inconclusão faz parte da experiência vital
o ser humano se tornou, contudo, capaz de reconhecer-se como tal. A
consciência do inacabamento o insere num permanente movimento de busca
a que se junta, necessariamente, a capacidade de intervenção no mundo,
mero suporte para os outros animais. o ser inacabado, mas que chega a
saber-se inacabado, faz a história em que socialmente se faz e se refaz. O ser
inacabado, porém, que não se sabe assim, que apenas contacta o seu suporte,
12
Não apenas por respeito às questões de nero, mas por exigência da coerência, ainda que nas principais obras
de Paulo Freire sua menção seja “homem”, no decorrer do texto a substituiremos por “ser humano”. Em
Pedagogia da Esperança, Freire fala sobre as críticas que mulheres lhe fizeram por utilizar uma linguagem
machista em que elas não se sentiam incluídas. Tais críticas lhe revelaram o caráter ideológico e falso do “ora,
quando falo homem, a mulher está necessariamente incluída” e o levou a compreender que “a recusa à ideologia
machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor da
mudança do mundo” (FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança, p. 35).
13
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança, p. 27.
14
Idem
15
Ibidem, p. 28.
16
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 59.
18
tem história, mas não a faz. O ser humano que, fazendo história, nela se faz,
conta não só a sua, mas também a dos que apenas a têm.
17
O conceito de relações representa outro elemento apontado por Freire como
fundamental na esfera da existência humana. Freire afirma que “o homem, ser de relações e
não de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo
18
”, de modo que o fato de
relacionar-se com o mundo, de ser no e com o mundo, não apenas estando nele, é que
distingue os seres humanos dos animais para os quais o mundo é apenas um suporte para
sua existência –, visto que estes são seres da mera adaptação, que se ajustam ao mundo na
medida em que estabelecem simples contatos com ele. Diante da variedade de desafios que
partem da realidade que o cerca, o ser humano estabelece uma pluralidade de relações com o
mundo, pluralidade que decorre não apenas da diversidade de desafios, mas das diferentes
soluções possíveis para um mesmo desafio. Para Freire os seres humanos são seres de
integração, o que se por sua capacidade de captar os dados da realidade que os cerca, de
identificar os desafios por ela colocados e de encontrar uma pluralidade de respostas para esta
realidade desafiadora, isto é, pela possibilidade de relacionar-se com seu mundo, de integrar-
se a ele, sendo que a integração resulta da capacidade de ajustar-se à realidade acrescida da
de transformá-la a que se junta a de optar, cuja nota fundamental é a criticidade
19
”. Desta
forma,
A partir das relações do homem com a realidade resultantes de estar com ela
e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele
dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a.
Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é fazedor. Vai
temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. [...] E, na medida em
que cria, recria e decide vão se conformando as épocas históricas. É também
criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas.
20
Assim, o ser humano “no jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio
ato de responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se. Age
21
”. Desta forma, a
dinâmica histórica se pauta na própria dinâmica da realidade com a qual se relaciona,
dinamicidade que não permite absolutizações:
17
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação, p. 119-120.
18
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 47
19
Ibidem, p. 50. Conferir nota de rodapé nº 4.
20
Ibidem, p. 51
21
Ibidem, p. 48.
19
A integração ao seu contexto, resultante de estar o apenas nele, mas com
ele, e não a simples adaptação, acomodação ou ajustamento, comportamento
próprio da esfera dos contatos, ou sintoma de sua desumanização, implica
em que tanto a visão de si mesmo como a do mundo, não podem absolutizar-
se, fazendo-o sentir-se um ser desgarrado e suspenso ou levando-o a julgar o
seu mundo algo sobre que apenas se acha. A sua integração o enraíza. Faz
dele, na feliz expressão de Marcel, um ser “situado e datado”.
22
A condição de seres integrados ao seu contexto, situados e datados, distingue os
seres humanos dos animais que por sua adaptação ao mundo apenas vivem, não existem. Para
Freire “existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele. E
é essa capacidade ou possibilidade de ligação comunicativa do existente com o mundo
objetivo [...], que incorpora ao existir o sentido da criticidade que não no simples viver
23
”.
É nesta criticidade característica dos seres humanos que Freire inscreve a práxis humana:
[...] os homens são seres da práxis. São seres do quefazer, diferentes, por isto
dos animais, seres do puro fazer. Os animais não “ad-miram” o mundo.
Imergem nele. Os homens, pelo contrário, como seres do quefazer
“emergem” dele e, objetivando-o, podem conhecê-lo e transformá-lo com
seu trabalho.
24
Para Freire, a práxis representa o modo humano de existir, o que possibilita que o
ser humano exista e não apenas viva, que seja e não apenas esteja no mundo, pois “é reflexão
e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo
25
”. Como seres do quefazer
Os homens [...] ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que
estão, [...] ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e em suas relações
com mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença
criadora através da transformação que realizam nele, na medida em que dele
podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao
contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é
histórica. Se a vida do animal se dá em um suporte atemporal, plano, igual, a
existência dos homens se no mundo que eles recriam e transformam
incessantemente. Se, na vida do animal, o aqui não é mais que um “habitat”
ao qual ele “contata”, na existência dos homens o aqui não é somente um
espaço físico, mas também um espaço histórico.
26
22
Ibidem, p. 50.
23
Ibidem, p. 48. Conferir nota de rodapé nº 2.
24
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 141.
25
Ibidem, p. 42.
26
Ibidem, p. 103-104
20
Assim, a história humana – reflexo do permanente processo de busca do ser
humano se escreve a partir de sua capacidade de intervir no mundo, de interagir com a
realidade que o cerca, a partir de sua práxis. Esta capacidade abre aos homens a possibilidade
de fazer história e inscreve a humanização como vocação plenamente humana. No entanto,
para Freire, a humanização possibilidade histórica do ser mais é a “vocação negada na
injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores
27
”, frutos de uma sociedade
cuja dinâmica é dada pela dominação das consciências, pela desumanização possibilidade
histórica do ser menos. Para o autor, humanização e desumanização são possibilidades postas
aos homens dentro de um contexto objetivo e situado na história, diante de sua condição de
seres inconclusos e conscientes deste fato. No entanto, uma vez que para Freire apenas a
humanização representa a vocação dos homens, a desumanização é a distorção de tal vocação
decorrente de uma ordem injusta em que vigora a violência dos opressores.
Freire aponta que a desumanização enquanto possibilidade histórica, se na
medida em que o ser humano, “renunciando” sua práxis como via pela qual faz do mundo seu
espaço histórico, assume o comportamento típico da esfera dos contatos, isto é, a simples
adaptação, acomodação ou ajustamento ao mundo, sacrificando a sua potencialidade
criadora
28
ao abrir mão de sua dimensão de integração, de sua capacidade de relacionar-se
com o mundo. É a supressão da dimensão humana da integração de relacionar-se com o
mundo que o cerca, de intervir e transformar a realidade exercendo sua capacidade criadora,
resultado de seu ajustamento, que rebaixa os homens a condição de expectadores própria da
adaptação, típica da esfera dos animais. A desumanização, fruto da violência opressora,
representa a negação de sua “ontológica vocação de ser sujeito
29
” enquanto negação da práxis
humana, de sua capacidade criadora e interventora no mundo, de forma que “a opressão
existe quando se constitui em um ato proibitivo do ser mais dos homens
30
”, como
rebaixamento dos seres humanos a condição de meros objetos:
Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que
é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade
organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez mais,
sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das
decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples,
mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e lhas entrega em
27
Ibidem, p. 30.
28
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 50.
29
Ibidem, p. 44.
30
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 49.
21
forma de receita, de prescrição a ser seguida. E, quando julga que se salva
seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação,
sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: não é sujeito.
Rebaixa-se a puro objeto.
31
A referência de Freire à força dos mitos que dominam o “homem moderno” o
pode passar despercebida. Contraditoriamente a sua afirmação de que o “homem moderno” se
encontra dominado por mitos que impedem sua vocação ontológica de ser sujeito, sabemos do
empenho da modernidade, com a ascensão do saber racional científico, em destruir os mitos,
julgados como saber primitivo, de caráter ilusório e fictício que, como tal, não poderiam ser
considerados como saber válido porquanto não dotados de qualquer racionalidade.
Sung destaca o fato de que a distinção entre o saber mítico e o saber científico não
se dá mediante o grau de racionalidade destes, mas decorre do fato de que “os mitos
respondem a um outro tipo de questões que não são propostas explicitamente pelas
ciências
32
”. A pergunta central para as ciências é o “como” das coisas, de forma que
“procuram descrever como os fenômenos acontecem, as causas, as conseqüências e as leis que
regem esses fenômenos
33
”. Por outro lado, os mitos centram-se no sentido, no por que e no
para que das coisas, e assim “procuram encontrar um sentido para além do que é mensurável,
um sentido que sentido à vida do sujeito que pergunta
34
”. Assim, para perguntas diferentes
cabem linguagens diferentes para elaboração de respostas diferentes. Sung argumenta de que
O questionamento sobre o sentido das coisas e dos fatos para além do
empiricamente mensurável é uma das características que diferencia a espécie
humana das outras espécies vivas. [...] Já na década de 40, Ernest Cassirer
escreveu: “[...] Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se
encontram em todas as espécies animais, encontramos no homem um
terceiro elo, que podemos descrever como o sistema simbólico. [...] [O
homem] Já não vive num universo puramente físico, mas num universo
simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste
universo”.
35
Neste mesmo sentido, Roger Bastide diz que “o homem não pode viver sem
mitos; o mito está de certa forma, na raiz ontológica de seu ser
36
”. Para Sung, é por sermos
31
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 51.
32
SUNG, Jung Mo. Educar para reencantar a vida, p. 53
33
Idem
34
Idem
35
Ibidem, p. 55.
36
BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem, p. 97.
22
seres simbólicos que vivem em um mundo simbólico e por sermos capazes de nos questionar
sobre o sentido e o significado de nossa existência, que
O mito o é algo que se opõe à ciência, nem algo que pertence ao passado
da humanidade, mas faz parte do fazer ciência especialmente das ciências
humanas e sociais e da vida humana porque somos seres que estamos
sempre perguntando pelo sentido e construindo um horizonte de sentido
baseado em esperanças e intuições ainda não provadas, somente explicadas e
justificadas por mitos que abraçamos e nos quais estamos mergulhados.
37
Para Mircea Eliade, ainda que os mitos sejam usualmente tratados como ficção,
como mera invenção da fértil imaginação humana, seu estudo ganhou um novo valor
semântico a partir do momento em que passaram a serem compreendidos tal como eram pelas
sociedades arcaicas, para as quais “o mito designa, ao contrário, uma ‘história verdadeira’ e,
ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo
38
”. A partir
desta perspectiva, os mitos ganham papel e função fundamentais para a compreensão da
dinâmica destas sociedades, na medida em que o mito “fornece os modelos para a conduta
humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência
39
”.
Uma vez que qualquer tentativa de definição do mito pode ser insuficiente diante
da complexidade desta realidade cultural, passível de ser abordada a partir de múltiplas
perspectivas, diz Eliade:
A definição que a mim, pessoalmente, parece a menos imperfeita, por ser a
mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um
acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do
“princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos
Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total,
o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de
uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.
40
Temos, então, que os mitos são histórias sagradas cujos personagens o seres
sobrenaturais, aos quais são atribuídas façanhas de caráter fundante, na medida em que
marcam as circunstâncias em que uma dada realidade passa a existir. Neste sentido, “os mitos
descrevem as diversas e algumas vezes dramáticas irrupções do sagrado (ou do
‘sobrenatural’) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o
37
Ibidem, p. 54.
38
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade, p. 07.
39
Ibidem, p. 08.
40
Ibidem, p. 11.
23
converte no que é hoje
41
”. Portanto, os mitos estão sempre atrelados às diversas realidades,
cuja existência se deve a um poder de ordem sobrenatural que as origina.
Sendo que “conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas
42
”, o
conhecimento do conteúdo narrado pelos mitos confere poder àqueles que o detém, pois “esse
‘conhecimento’ é acompanhado de um poder mágico-religioso
43
”, uma vez que “conhecer a
origem de um objeto, de um animal ou planta, equivale a adquirir sobre eles um poder
mágico, graças ao qual é possível dominá-los, multiplicá-los ou reproduzi-los à vontade
44
”.
No mais, conhecer os mitos não é suficiente, pois é também necessária sua recitação o que
representa “uma proclamação e uma demonstração do próprio conhecimento
45
”. Aquele que
recita os mitos é reintegrado ao tempo fabuloso de sua narração, de forma que “a pessoa
torna-se conseqüentemente, ‘contemporânea’, de certo modo, dos eventos evocados,
compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis
46
”.
No mais, “se o Mundo existe, se o homem existe, é porque os Entes Sobrenaturais
desenvolveram uma atitude criadora no ‘princípio’
47
”, de forma que a temporalidade presente
nos mitos rompe a cronologicidade em curso. Para Eliade, está o fundamento da
experiência religiosa dos mitos, pois estes remetem aos tempos primordiais, fazem sair do
tempo profano e ingressar no tempo sagrado. Dá-se uma transfiguração do tempo e do espaço
como retorno destinado ao “reviver” da experiência presente no “princípio” originário:
“Viver” os mitos implica, pois, uma experiência verdadeiramente
“religiosa”, pois ela se distingue da experiência ordinária da vida quotidiana.
A “religiosidade” dessa experiência deve-se ao fato de que, ao reatualizar os
eventos fabulosos, exaltantes, significativos, assiste-se novamente às obras
criadoras dos Entes Sobrenaturais; deixa-se de existir no mundo de todos os
dias e penetra-se num mundo transfigurado, auroral, impregnado da presença
dos Entes Sobrenaturais.
48
Como “história verdadeira” que relata as manifestações de poder de “Entes
Sobrenaturais”, “o mito se torna modelo exemplar de todas as atividades humanas
41
Ibidem, p. 11.
42
Ibidem, p. 18.
43
Idem
44
Ibidem, p, 19.
45
Ibidem, p. 21.
46
Idem.
47
Ibidem, p. 16.
48
Ibidem, p. 22.
24
significativas
49
”, e nisto se distingue das “histórias falsas”, uma vez que refletem diretamente
na condição humana:
Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos animais,
das plantas e do homem, mas também de todos os acontecimentos
primordiais em conseqüência dos quais o homem se converteu no que é hoje
um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar
para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras.
50
Isto posto, para compreendermos a profundidade com a qual Freire expõe o papel
indispensável dos mitos na dinâmica da desumanização, tomaremos uma extensa, mas
relevante citação, onde ele destaca diversos mitos engendrados para sustentar a lógica da
dominação e manter a estrutura opressora:
O mito, por exemplo, de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade.
De que todos são livres para trabalhar onde queiram. Se não lhes agrada o
patrão, podem então deixá-lo e procurar outro emprego. O mito de que esta
“ordem” respeita os direitos da pessoa humana e que, portanto, é digna de
todo apreço. O mito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem
chegar a ser empresários mais ainda, o mito de que o homem que vende,
pelas ruas, gritando : “doce de banana e goiaba” é um empresário tal qual o
dono de uma grande fábrica. O mito do direito de todos à educação, quando
o número de brasileiros que chegam às escolas primárias do país e o dos que
nelas conseguem permanecer é chocantemente irrisório. O mito da igualdade
de classe, quando o “sabe com quem está falando?” é ainda uma pergunta
dos nossos dias. O mito do heroísmo das classes opressoras, como
mantenedoras da ordem que encarna a “civilização ocidental e cristã”, que
elas defendem da “barbárie materialista”. O mito de sua caridade, de sua
generosidade, quando o que fazem, enquanto classe, é assistencialismo, que
se desdobra no mito da falsa ajuda [...]. O mito de que as elites dominadoras,
“no reconhecimento de seus deveres”, são as promotoras do povo, devendo
este, num gesto de gratidão, aceitar a sua palavra e conformar-se com ela. O
mito de que a rebelião do povo é um pecado contra Deus. O mito da
propriedade privada, como fundamento do desenvolvimento da pessoa
humana, desde, porém, que pessoas humanas sejam apenas os opressores. O
mito da operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos
oprimidos. O mito da inferioridade “ontológica” destes e o da superioridade
daqueles.
51
Ao analisarmos o conteúdo dos diversos mitos apontados por Freire, somos
remetidos à idéia que ele expressa no último mito a que se refere. O eixo central que vincula
estes mitos entre si é a tarefa de estabelecer uma “real” distinção ontológica entre opressores –
49
Ibidem, p. 12.
50
Ibidem, p. 16.
51
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 159-160.
25
em sua superioridade e oprimidos em sua inferioridade. Cabe-nos compreender de que
maneira os mitos cumprem esta função. De acordo com o pensamento de Freire, o mito da
ontológica inferioridade corresponde ao mito da ontológica incapacidade dos oprimidos
52
,
representando um dos mitos fundamentais para a manutenção da estrutura opressora,
traduzido no sentimento de autodesvalia nutrido pelos oprimidos:
A autodesvalia é outra característica dos oprimidos. Resulta da introjeção
que fazem eles da visão que deles têm os opressores. De tanto ouvirem de si
mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que
são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto,
terminam por se convencer de sua “incapacidade”.
53
Esta introjeção no oprimido da visão que dele tem o opressor, Freire remete à obra
de Albert Memmi Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, onde o autor
afirma que o opressor sempre traça o perfil dos oprimidos
54
. Para os oprimidos, o opressor
representa uma figura bem sucedida na dinâmica histórica, diante da qual se sentem de tal
modo incapazes que “falam de si como os que não sabem e do ‘doutorcomo o que sabe e a
quem devem escutar
55
”. Freire diz que os oprimidos “têm uma crença difusa, mágica, na
invulnerabilidade do opressor. No seu poder de que sempre testemunho. Nos campos,
sobretudo, se observa a força mágica do poder do senhor
56
”. Assim, diante do “‘homem
ilustre’ da chamada classe ‘superior’
57
e de seu sentimento de incapacidade, aos oprimidos
resta apenas adaptarem-se na medida em que a realidade opressora representa um limite
intransponível, um resultado da história na qual não reconhecem qualquer tipo de
responsabilidade ou possibilidade.
Considerando a perspectiva de Eliade de que os mitos são histórias verdadeiras e
sagradas cujos personagens são entes sobrenaturais, tracemos um paralelo entre tais seres
sobrenaturais e a figura do opressor. Ora, esta crença mágica apontada por Freire que os
oprimidos têm na invulnerabilidade do opressor membro da classe superior que domina
todo o saber e cujo poder se sustenta em uma força mágica se traduz em uma crença na
sobrenaturalidade dos opressores, diante do que nada cabe aos oprimidos senão a submissão
52
FREIRE, Paulo. Conscientizar para libertar. In: TORRES, Carlos Alberto. Consciência e história: a prática
educativa de Paulo Freire, p. 101.
53
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 56.
54
“El opressor siempre traza el perfil de los oprimidos”. Conforme citado em FREIRE, Paulo. Conscientizar
para libertar. In: TORRES, Carlos Alberto. Consciência e história: a prática educativa de Paulo Freire, p. 101.
55
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 56.
56
Idem
57
Ibidem, p. 55.
26
decorrente de sua “ontológica incapacidade” que se contrapõe à “ontológica
sobrenaturalidade” dos opressores. Como vimos em Eliade, aquele que possui o
conhecimento dos mitos é distinto dentre os demais, na medida em que por conhecer a origem
das coisas é dotado de um poder mágico-religioso que lhe imputa domínio sobre elas,
conhecimento que não basta se não for acompanhado da recitação dos mitos como
demonstração do conhecimento. Este é perfil do “doutor que tudo sabe” e que, como tal, é
dotado de superioridade diante dos “ignorantes que nada sabem”, superioridade que vem
“carregada” de um poder mágico que a justifica. Para Freire, “nisto reside sua conivência’
com o regime opressor
58
”, na medida em que, diante da introjeção de sua inferioridade e da
aceitação da superioridade dos opressores, os oprimidos, fatalistamente, aceitam sua
condição.
Outro ponto que nos interessa no pensamento de Eliade é a questão dos mitos
como modelos exemplares para as atividades humanas significativas, como narração sobre
como os seres humanos se tornaram o que hoje são, ou seja, como “definidores” da condição
humana resultante da manifestação de entes sobrenaturais. De modo mais simples, isto
significa dizer somos o que somos porque os entes sobrenaturais assim quiseram”. Esta
passividade parece ecoar na seguinte afirmação de Freire: “os oprimidos, como objetos, como
quase ‘coisas’, não têm finalidades. As suas finalidades são as que lhes prescrevem os
opressores
59
”.
Para Freire, a prescrição constitui a base da mediação opressores-oprimidos, na
medida em que “é a imposição da opção de uma consciência a outra
60
”. Assim, a renúncia dos
oprimidos à sua capacidade decisória e interventora no mundo se na medida em que “o
comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas
estranhas a eles as pautas dos opressores
61
”. Considerando que, segundo Eliade, os mitos
contém narrativas que fornecem modelos para a conduta humana, a prescrição cumpre este
papel de “fornecer” à consciência oprimida os parâmetros “adequados” a sua conduta, na
medida em que os oprimidos são dominados “pela prescrição de uma palavra veiculadora de
uma ideologia da acomodação
62
que, diretamente associada ao mito da ontológica
inferioridade e incapacidade dos oprimidos, desumaniza-os, rebaixa-os à condição de animais.
Vale destacar a experiência de Freire com camponeses sobre a qual diz que “muitas vezes
58
Ibidem, p. 58.
59
Ibidem, p. 53.
60
Ibidem, p. 36-37.
61
Ibidem, p. 37.
62
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade, p. 17.
27
insistem em que nenhuma diferença existe entre eles e o animal e, quando reconhecem
alguma, é em vantagem do animal. ‘É mais livre do que nós’, dizem
63
”. É a prescrição que
dita aos homens as finalidades que lhe cabem de acordo com as finalidades dos opressores, de
forma que os oprimidos são o que são porque assim querem os opressores.
Isto posto, temos que a prescrição cumpre o papel de difundir os mitos necessários
à manutenção da estrutura opressora. Parece-nos relevante a seguinte afirmação de Edgar
Morin, sobre a metamorfose histórica sofrida pelos mitos:
A aventura do mito começa igualmente com as origens do Homo Sapiens;
inscreveu-se nas grandes religiões ecumênicas e, depois, metamorfoseou-se,
nos tempos contemporâneos, em aventuras de ideologia. O mito perdeu seus
hábitos tradicionais e introduziu-se na esfera aparentemente laica das
sociedades: o mito moderno pode, ao contrário do antigo, dispensar seu deus
[sic] e até mesmo a narrativa. [...] Infiltra-se nas ideologias, dá-lhes energia e
força de possessão. às idéias abstratas uma vida, um caráter providencial
quase divino.
64
Esta metamorfose dos mitos mediante sua infiltração nas ideologias corresponde à
menção que Freire faz acerca dos mitos que dominam o “homem moderno”. Cabe-nos,
portanto, a consideração de Roger Bastide de que “precisamos partir da observação, tão
correta, de Karl Marx de que nossa civilização, longe de destruir os mitos, multiplicou-os
65
”.
Os mitos ordenavam o mundo do “homem primitivo” concebendo para ele um cosmo
harmonioso e misterioso. O saber científico “transfigurou” o mundo, destituindo-o de sua
ordenação cósmica e conferindo ao ser humano o domínio do mundo. Assim, para Bastide “a
ciência não destruiu esses mitos, destruiu apenas a sua ordenação
66
”, de forma que “a
passagem da ordem cósmica para a ordem histórica, deve corresponder uma evolução paralela
na mitologia
67
”, pois estamos diante de “novos ‘significantes’, mas eles encarnam tão-
somente os mesmos ‘significados’
68
”. Neste mesmo sentido, Eliade diz que “o pensamento
mítico pode ultrapassar e rejeitar algumas de suas expressões anteriores, tornadas obsoletas
pela história, pode adaptar-se às novas condições sociais, mas ele não pode ser extirpado
69
”.
Desta forma, considerando que aos mitos cabe oferecer um horizonte de sentido aos seres
humanos, Sung aponta a necessidade de adquirir “conhecimento sobre essa lógica de
63
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 57.
64
MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade, p. 55.
65
BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem, p. 97.
66
Ibidem, p. 98.
67
Ibidem, p. 101.
68
Ibidem, p. 99.
69
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade, p. 152.
28
criadores e criaturas de mitos
70
que somos e de termos “critérios apropriados para discernir
entre mitos e sentidos de vida humanizantes e desumanizantes
71
”.
Temos que Freire aponta o caráter desumanizante dos mitos que dominam o
“homem moderno”, na medida em que estes compõem a dinâmica pela qual se sustenta a
lógica da opressão. Isto porque “os opressores se esforçam por matar nos homens a sua
condição de ‘ad-miradores’ do mundo. Como não podem consegui-lo, em termos totais, é
preciso então mitificar o mundo
72
”, como recurso cujo objetivo é fornecer às massas
oprimidas um falso mundo, “um mundo de engodos que, alienando-as mais ainda, as
mantenha passiva em face dele
73
”. Para exemplificar, tomemos a menção que Freire faz à
situação dos camponeses do Nordeste brasileiro:
Eles apresentam uma consciência fortemente oprimida que lhes impossibilita
uma percepção estrutural da realidade. São incapazes de perceber o fato, a
situação limite, como algo que se constrói na realidade objetiva e concreta
em que está. Mas apesar disso e pelo fato de serem homens, necessitam
explicar a realidade em que vivem, Como se questionam? Que razões se
dão? Como sua consciência oprimida analisa este caso?
Assumem, geralmente, uma postura valorativa da situação extrema em que
se encontram. Buscam suas causas, a origem deste estado, em entidades
superiores mais poderosas que o homem. Uma dessas entidades é Deus, que
aparece como o agente, a causa de seu estado. Deus é responsável e, por
isso, não há nada a fazer...
74
Sendo que “ao objetivar ou admirar o mundo (admirar usado aqui no sentido
filosófica), os homens, são capazes de atuar conscientemente sobre a realidade objetivada
75
”,
o que faz dos seres humanos seres da práxis, da mitificação da realidade operada pelos
opressores a fim de manter a estrutura opressora, decorre a inversão da práxis, na medida em
que diante de uma falsa visão de mundo, aos oprimidos dá-se uma “falsa ‘ad-miração’ [que]
não pode conduzir à verdadeira práxis, pois que é a pura espectação
76
”. É como espectadores,
ajustados ou acomodados à realidade, alienados de sua condição de seres do quefazer, que os
oprimidos deixam sua condição de sujeitos reduzindo-se à condição dos animais, do que
decorre sua desumanização.
70
SUNG, Jung Mo. Educar para reencantar a vida, p. 56.
71
Idem
72
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 158.
73
Idem.
74
FREIRE, Paulo. Conscientizar para libertar. In: TORRES, Carlos Alberto. Consciência e história: a prática
educativa de Paulo Freire, p. 95.
75
Idem.
76
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 158.
29
1.2 A DESUMANIZAÇÃO COMO POSSIBILIDADE HISTÓRICA DO SER MENOS
[...] a desumanização, mesmo que um fato concreto na história,
não é porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta
que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos.
77
Freire diz que “a desumanização [...] é distorção da vocação do ser mais. É
distorção possível na história, mas não vocação histórica
78
”. Apontar a desumanização como
possibilidade e não como vocação, sina ou destino, abre a perspectiva de caminhar na direção
da restauração da humanidade aos homens, da transformação da realidade opressora:
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da
ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são
produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre
eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é
tarefa dos homens.
79
Freire argumenta que a desumanização “não se verifica apenas nos que têm a
humanidade roubada, mas também ainda que de forma diferente, nos que a roubam
80
”, de
forma que restaurar a humanidade perdida não significa restaurar a humanidade perdida aos
oprimidos, uma vez que, para Freire, a relação de dominação em que se pauta a estrutura
opressora oprime tanto opressores quanto oprimidos, desumaniza ambos, rouba a humanidade
em ambos.
Desta forma, a transformação da realidade opressora não se dá pela restauração da
humanidade tão e somente aos oprimidos, aqueles a quem se julga desumanizados pela
situação opressora. A partir da compreensão de que a realidade opressora desumaniza tanto
opressores quanto oprimidos, distorcendo em ambos a vocação ontológica de ser mais, temos
que, de acordo com o pensamento de Paulo Freire, a transformação da sociedade se dará pela
superação da contradição opressores-oprimidos, o que para ele significa o fim da opressão, a
superação de uma ordem social pautada pela lógica da dominação como condição necessária
77
Ibidem, p. 32.
78
Idem
79
Ibidem, p. 41.
80
Ibidem, p. 32.
30
para a humanização tanto de oprimidos quanto de opressores, porquanto desumanizados pela
mesma realidade opressora que os faz ser menos.
Assim, a pedagogia do oprimido de Paulo Freire, enquanto pedagogia libertadora,
se inscreve na luta pela recuperação da humanidade aos homens como “pedagogia que faça da
opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu
engajamento necessário na luta por sua libertação
81
”. A pedagogia do oprimido “é um
instrumento para esta descoberta crítica a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores
pelos oprimidos – como manifestações da desumanização
82
”. No entanto:
algo, porém, a considerar nesta descoberta, que está diretamente ligado à
pedagogia libertadora. É que, quase sempre num primeiro momento deste
descobrimento, os oprimidos, em vez de buscar a libertação na luta e por ela,
tendem a ser opressores também, ou subopressores. [...] O seu ideal é,
realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que
sempre estiveram e cuja superação não está clara, é ser opressores.
83
Freire ressalta que a descoberta da realidade opressora pode levar os oprimidos a
uma luta que tão e somente realiza uma inversão da ordem opressora, gerando outra situação
de dominação em que os oprimidos se tornarão opressores. Isto porque “a estrutura de seu
pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial em
que se ‘formam’
84
”, uma vez que, por sua imersão na realidade opressora, para eles, ser
humano significa ser opressor, de modo que
[...] em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma
irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar
destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem,
a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo.
85
Os oprimidos buscam a identidade com os opressores porque desejam
irresistivelmente ser como eles, pois “estes são o seu testemunho de humanidade
86
”. Esta
condição representa para Freire “a dualidade existencial dos oprimidos que ‘hospedando’ o
opressor, cuja ‘sombra’ eles ‘introjetam’, são eles e ao mesmo tempo são o outro
87
”. Por sua
81
Ibidem, p. 34.
82
Ibidem, p. 35.
83
Idem
84
Idem
85
Ibidem, p. 55.
86
Ibidem, p. 32.
87
Ibidem, p. 54.
31
condição de “hospedeiros” do opressor, Freire reconhece a tendência dos oprimidos de, na
busca de sua libertação, realizar apenas uma inversão de papéis, em que oprimidos se tornam
opressores dos opressores:
O “homem novo”, em tal caso, para os oprimidos, não é o homem a nascer
da superação da contradição, com a transformação da velha situação
concreta opressora, que cede seu lugar a uma nova, de libertação. Para eles,
o novo homem são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A sua
visão do homem novo é uma visão individualista. A sua aderência ao
opressor não lhes possibilita a consciência de si como pessoa, nem a
consciência de classe oprimida.
88
Assim, para Freire, esta contraditória condição dos oprimidos representa o maior
desafio a ser enfrentado, pois a superação desta contradição não é uma tarefa simples, na
medida em que
Sofrem uma dualidade que se instaura na ‘interioridade’ do seu ser.
Descobrem que, não sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem
ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado
neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles
mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não o opressor de ‘dentro’ de
si.
89
Freire elabora sua proposição do “opressor hospedado no oprimido” a partir da
dialética do senhor e do escravo de Hegel. Sendo que “a verdade do opressor reside na
consciência do oprimido
90
”, os oprimidos representam a “contradição do opressor, que tem
neles a sua verdade
91
”. O problema da contradição opressores-oprimidos se inscreve no plano
das relações de dominação que se estabelecem entre os homens.
No entanto, Alexandre Kojève em sua obra Introdução à leitura de Hegel, aponta
esta tendência a oprimir mencionada por Freire não como o simples resultado da imersão na
realidade opressora em que sempre estiveram os oprimidos, mas encontra na contradição
opressores-oprimidos a dinâmica própria da existência humana.
Para Kojève, “o Ser humano se constitui em função de um desejo que busca
outro desejo
92
”, pois “todo desejo humano, antropogênico, gerador da consciência-de-si, da
88
Idem
89
Ibidem, p. 38.
90
Ibidem, p. 08.
91
Ibidem, p. 39.
92
KOJEVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel, p. 14.
32
realidade humana, é afinal, função do desejo de reconhecimento
93
”. Sendo que o ser humano
realiza sua humanidade somente ao ser reconhecido pelo outro, Kojève diz que “o homem se
confirma como humano ao arriscar a vida para satisfazer seu desejo humano, isto é, seu desejo
que busca outro desejo
94
”. Uma vez que todo ser humano deseja ser reconhecido como tal
deseja ser reconhecido pelo outro –, instaura-se uma luta de morte pela busca do
reconhecimento na medida em que cada um dos seres dotados deste mesmo desejo pretende ir
até o fim para satisfazê-lo e para tanto estará disposto a arriscar sua vida para “impor-se ao
outro como valor supremo
95
”, na tentativa de fazer com que o outro reconheça seu valor e
assuma como seu este valor, tornando-o seu desejo.
Para Kojève, na medida em que o reconhecimento é o que realiza e revela a
humanidade, “sem essa luta de morte por puro prestígio nunca teria havido seres humanos na
Terra
96
”. Por outro lado, se todos os homens assumissem o mesmo comportamento decidido
de ir até o fim na busca da satisfação de seu desejo, o resultado seria a morte ou de ambos ou
de um daqueles que lutam entre si pelo reconhecimento, de forma que a humanidade jamais
seria revelada, pois a morte de um ou de ambos os concorrentes eliminaria a possibilidade do
reconhecimento. Por isso
Para que a realidade humana possa constituir-se como realidade reconhecida,
é preciso que ambos os adversários continuem vivos após a luta. Ora, isso
é possível se eles se comportarem de modo diverso durante a luta. Por atos
de liberdade, irredutíveis, até imprevisíveis ou indeduzíveis, devem
constituir-se como desiguais nessa e por essa luta. Um, sem ter sido a isso
predestinado, deve ter medo do outro, deve ceder, deve recusar-se a arriscar
a vida em nome da satisfação de seu desejo de reconhecimento. Deve
abandonar seu desejo e satisfazer o desejo do outro: deve reconhecê-lo sem
ser reconhecido por ele. Ora, reconhecê-lo assim é reconhecê-lo como
senhor e reconhecer-se (e fazer-se reconhecer) como escravo do senhor.
97
Assim, para Kojève, “a sociedade só é humana [...] sob a condição de implicar um
elemento de dominação e um elemento de sujeição, existências autônomas e existências
independentes
98
”. Isto significa que a possibilidade de os homens serem humanos, isto é, de
realização de sua humanidade, se inscreve no plano da dominação entre os homens.
93
Idem
94
Idem
95
Idem
96
Idem
97
Ibidem, p. 15.
98
Idem
33
Ora, tal afirmação contrapõe-se à perspectiva apontada por Paulo Freire, de que a
humanização somente é possível pela transformação da situação opressora a partir do fim da
dominação, como superação da contradição opressores-oprimidos. Ainda que seu ponto de
partida para a compreensão da realidade opressora seja o mesmo de Kojève a dialética do
senhor e do escravo de Hegel – para Freire, a humanização como vocação ontológica e
histórica do ser humano não se funda no desejo de reconhecimento, como eixo em torno do
qual funciona todo desejo humano, mas na vocação humana de ser mais. Ainda que a
perspectiva de Hegel permeie seu pensamento, para Freire a realização da humanidade sua
humanização – se dá como superação desta dialética histórica pautada pela dominação.
Se para Kojève “a dialética histórica é a dialética do senhor e do escravo
99
”, para
Freire a superação de tal dialética como superação da lógica da dominação em que se
pautam as relações humanas remete à sua humanização, a “realização” da vocação
ontológica do ser humano de ser mais. Assim, somente compreendendo os seres humanos
como seres duais, “hospedeiros” do opressor e como tal submetidos à gica da dominação,
poderemos compreender o que significa a realização da vocação humana de humanizar-se, de
tornar-se sujeito, de ser mais, como libertação desta condição.
Para Freire, “somente na medida em que se descubram ‘hospedeiros’ do opressor
poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a
dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo
100
”,
de forma que o maior desafio que se coloca aos oprimidos é emergir da realidade dominadora.
Sem esta emersão, os oprimidos não poderão superar a contradição de sua condição e fazer
nascer o “homem novo”, não mais submetido à lógica da dominação:
O importante, por isto mesmo, é que a luta dos oprimidos se faça para
superar a contradição em que se acham. Que esta superação seja o
surgimento do homem novo não mais opressor, não mais oprimido, mas
homem libertando-se. Precisamente porque, se sua luta é no sentido de fazer-
se Homem, que estavam sendo proibidos de ser, não o conseguirão se apenas
invertem os termos da contradição. Isto é, se apenas mudam de lugar, nos
pólos da contradição.
101
A partir da afirmação de que é impossível aos oprimidos empreender sua
libertação enquanto vivam a dualidade que os faz “hospedeiros” do opressor, não podemos
99
Idem
100
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 34-35.
101
Ibidem, p. 48.
34
deixar de considerar que nossa “primeira impressão” acerca do pensamento de Freire parece
nos levar a compreender que se os oprimidos emergirem da realidade opressora e superarem
sua dualidade existencial de serem “hospedeiros” do opressor terão realizado sua libertação.
No entanto, para Freire, o “homem novo” surgido da superação de sua
contraditória dualidade não é o “homem liberto como em um estado pronto e acabado
resultante de uma libertação que simplesmente ocorreu –, mas é o “homem novo não mais
opressor, não mais oprimido, mas homem libertando-se
102
”. Isto é, não mais “opressor” em
sua atividade –, não mais oprimido em sua passividade –, mas “homem libertando-se” em
processo. A expressão “libertando-se” nos coloca diante da questão da factibilidade da
libertação plena, sendo esta o sonho a utopia presente em todas as sociedades de todos os
tempos e que remete “à libertação para sempre de toda sociedade da exploração e
opressão
103
”, “uma realização que significaria a criação de um novo ser humano e da
verdadeira história, que não seriam mais o ser humano e a história como nós
conhecemos
104
”. Para Sung, “devemos assumir o fato de que as utopias, se realmente
utópicas, não são factíveis através das ações humanas
105
”, de forma que
[...] a utopia da libertação plena, ou a ucronia (não-tempo) da construção de
um futuro absolutamente novo, não são factíveis historicamente. São objetos
de desejos de toda a humanidade, desde os tempos mais remotos e estão
expressos em mais diversos mitos religiosos e “seculares”, mas impossíveis.
São amostras de que nós somos capazes de desejarmos para além das
possibilidades humanas.
106
A não factibilidade da libertação nos parece presente no pensamento de Freire em
sua referência ao “homem novo” não como “homem liberto”, mas como “homem libertando-
se”. Esta perspectiva parece presente quando Freire fala sobre a necessidade da confiança nas
massas populares, alertando que
Esta confiança nas massas populares oprimidas, porém, não pode ser uma
confiança ingênua. A liderança há de confiar nas potencialidades das massas
a quem não pode tratar como objetos de sua ação. Há de confiar em que elas
são capazes de se empenhar na busca de sua libertação, mas de
desconfiar, sempre desconfiar, da ambigüidade dos homens oprimidos.
102
Ibidem, p. 48.
103
SUNG, Jung Mo. A utopia do Manifesto Comunista e a Teologia da Libertação, p. 2
104
Idem
105
Ibidem, p. 3.
106
Idem
35
Desconfiar dos homens oprimidos, não é, propriamente, desconfiar deles
enquanto homens, mas desconfiar do opressor “hospedado" neles
107
.
Disto poderíamos simplesmente concluir que esta “confiança desconfiada” se
atribui apenas aos seres humanos em sua condição de oprimidos, de forma que extirpada a
opressão, isto é, dada a superação da contradição opressores-oprimidos, se realizaria por
completo a libertação.
No entanto, se considerarmos, por exemplo, a perspectiva apontada por Kojève,
de que a dominação representa a dinâmica peculiar dos seres humanos em sociedade,
podemos compreender em que sentido, para Freire, o “homem novo” é o “homem libertando-
se”. Se todos somos seres desejosos de reconhecimento, de forma que o enfrentamento destes
desejos nos insere no plano da dominação, temos que nossa própria condição humana nos
remete à condição de opressores e de oprimidos. Desta forma, ao dizer que o “homem novo” é
o “homem libertando-se”, Freire indica que a libertação não representa um dado momento em
que ela acontece, mas que se trata de um processo permanente de libertar-se do que em nós
mesmos permanentemente possibilita a instauração da realidade opressora, o que se confirma
em sua afirmação de que “a pedagogia do oprimido [...], transformada a realidade opressora,
[...] deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de
permanente libertação
108
”.
Por isto, Freire salienta a necessidade de que os oprimidos se descubram como
“hospedeiros” do opressor, que se deparem com a dualidade que os insere na dinâmica da
dominação, de forma que a libertação não representa a realização da vocação humana de
humanizar-se, como um fato consumado, mas como um processo permanente que se pela
afirmação e reafirmação dos seres humanos em sua vocação ontológica e histórica de ser mais
diante da possibilidade de superação da lógica da dominação. Neste sentido, Freire diz que
“libertação e opressão [...] não se acham inscritas, uma e outra, na história, como algo
inexorável. Da mesma forma a natureza humana, gerando-se na história, não tem inscrita nela
o ser mais, a humanização, a não ser como vocação de que o seu contrário é distorção na
história
109
”, ou seja, a desumanização.
107
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 194.
108
Ibidem, p. 46.
109
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança, p. 51.
36
1.3 A EDUCAÇÃO BANCÁRIA COMO INSTRUMENTO DA DESUMANIZAÇÃO
Os oprimidos, como objetos, como quase ‘coisas’, não têm finalidades.
As suas finalidades são as que lhes prescrevem os opressores.
110
Como vimos, a prescrição é um instrumento fundamental para a desumanização,
pois seu resultado é “inversão da práxis” na qual se sustenta a estrutura da dominação, de
modo que os seres humanos deixam sua condição de seres do quefazer para assumirem o puro
fazer – característico dos animais – baseado nas prescrições do “doutor que tudo sabe”.
De acordo com o pensamento de Freire podemos identificar aquela que ele
denomina como educação bancária” como um dos principais instrumentos pela qual se
realiza a atividade prescritiva dos opressores. Partindo de sua concepção de que a raiz da
educação é a inconclusão dos homens que os lança em uma permanente busca, ao analisar as
relações educador-educando Freire identifica que tais relações se estabelecem
fundamentalmente a partir da separação que coloca de um lado os narradores e do outro os
ouvintes. O educador-narrador representa a figura central para esta prática educativa, uma vez
que este é o grande portador do “saber” a ser transmitido aos educandos-ouvintes, o grande
responsável por “enchê-los” com os conteúdos de sua narração. Quanto aos educandos,
[...] a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem
“enchidos” pelo educador. Quanto mais “enchendo” os recipientes com
seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem
docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão.
111
A narração petrifica a realidade na medida em que a torna estática, parada e bem
comportada, sedimentando-se por “conteúdos que são retalhos da realidade desconectados
112
”.
Para Freire, a concepção “bancária” de educação sustenta sua prática em uma falsa visão de
ser humano, na medida em que, permeada pela inexistente dicotomia humanidade-mundo,
compreende os seres humanos como meros espectadores e não como recriadores do mundo,
seres meramente dotados de uma consciência-compartimento que deve ser preenchida, pois
concebe
110
Ibidem, p. 53.
111
Ibidem, p. 66.
112
Ibidem, p. 65.
37
A consciência como se fosse alguma seção “dentro” dos homens,
mecanicistamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo que a irá
“enchendo” de realidade. Uma consciência continente a receber
permanentemente os depósitos que o mundo lhe faz, e que se vão
transformando em seus conteúdos. Como se os homens fossem uma presa do
mundo e este um eterno caçador daqueles, que tivesse por distração “enchê-
los” de pedaços seus.
113
Diante da consciência passiva dos homens a quem apenas cabe esperar que o
mundo a adentre, “ao educador não cabe nenhum outro papel que não o de disciplinar a
entrada do mundo nos educandos”, isto é, “o de ordenar o que se faz espontaneamente. O
de ‘encher’ os educandos de conteúdos
114
”. Nesta tarefa insere-se também a imitação do
mundo, pois, diante da passividade dos homens em relação a este, tanto mais educados serão
quanto mais adaptados a ele. Para Freire, “esta é uma concepção que, implicando uma prática,
somente pode interessar aos opressores, que estarão tão mais em paz, quanto mais adequados
estejam os homens ao mundo
115
”, constituindo, desta forma, um instrumento de
desumanização:
Eis a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação
que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e
arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que
arquivam. No fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na
melhor das hipóteses) equivocada concepção “bancária” da educação.
Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem
ser.
116
A partir de sua compreensão da consciência humana como um recipiente vazio
que precisa ser “enchido”, a prática “bancária” da educação imobiliza os seres humanos ao
colocá-los diante de uma realidade inerte, perante a qual nada que fazer, de forma que
“nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não transformação, não
saber
117
”, há apenas a negação da práxis humana. Para esta concepção o “saber” constitui uma
doação dos sábios educadores aos ignorantes educandos, mediante a prescrição do conteúdo
que lhes couber, o que para Freire representa um instrumento da ideologia opressora através
da alienação da ignorância, que está sempre presente no outro. A relação educador-educando
desta concepção constitui nada mais que a reprodução da realidade opressora, na medida em
113
Ibidem, p. 72.
114
Idem.
115
Ibidem, p. 73.
116
Ibidem, p. 66.
117
Ibidem, p. 67.
38
que, tal como se dá na contradição opressores-oprimidos, “o educador se põe frente aos
educandos como sua antinomia necessária
118
”, ao reconhecer a razão de sua existência na
ignorância destes. Desta forma, “refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da ‘cultura
do silêncio’, a ‘educação’ ‘bancária’ mantém e estimula a contradição
119
”.
É neste sentido que Freire aponta o antagonismo existente entre duas concepções
de educação: “uma, a ‘bancária’, que serve à dominação; outra, a problematizadora, que serve
à libertação
120
”. A educação problematizadora representa “a educação como prática da
liberdade [que], ao contrário daquela que é prática da dominação, implica na negação do
homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo
como uma realidade ausente dos homens
121
”.
Freire coloca que a superação da contradição educador-educando é uma exigência
para a pedagogia libertadora, tendo em vista que uma das concepções fundamentais em seu
pensamento é a de que “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si
mesmo: os homens se educam em comunhão mediatizados pelo mundo
122
”. Diante desta
concepção, rompem-se as relações educador do educando (em sua atividade enquanto aquele
que educa) e educando do educador (em sua passividade enquanto aquele que é educado), de
forma que
[...] o educador não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é
educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa.
Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em
que os “argumentos de autoridade” já, não valem. Em que, para ser-se,
funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e
não contra elas.
123
Freire argumenta que “para manter a contradição, a concepção ‘bancária’ nega a
dialogicidade como essência da educação e se faz antidialógica
124
”, de forma que “não seria
possível à educação problematizadora [...] realizar-se como prática da liberdade, sem superar
a contradição entre o educador e os educandos. Como também não lhe seria possível fazê-lo
118
Ibidem, p. 67.
119
Idem
120
Ibidem, p. 78.
121
Ibidem, p. 81.
122
Ibidem, p. 78.
123
Ibidem, p. 79.
124
Ibidem, p. 78.
39
fora do diálogo
125
”. A dialogicidade representa a essência mesma da prática de uma educação
libertadora, na medida em que
O diálogo fenomeniza e historiciza a essencial intersubjetividade humana;
ele é relacional e; nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Os dialogantes
“admiram” um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele coincidem; nele
põem-se e opõem-se. [...] O diálogo não é um produto histórico, é a própria
historicização.
126
Desta forma, na educação problematizadora não cabe a autoridade do sábio-
educador responsável pelo ato cognoscente que “depositará” o saber aos ignorantes-
educandos. Tampouco a passividade dos ignorantes-educandos de docilmente arquivarem os
conteúdos neles “depositados” pelo sábio-educador. Neste espaço onde se inter-relacionam
educador-educando e educando-educador, ambos constituem-se como sujeitos cognoscentes
em processo permanente de fazer e refazer seu conhecimento, ambos sendo investigadores
críticos do mundo que os cerca:
[...] embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e
quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É neste sentido que
ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela
qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e
acomodado. Não docência sem discência, as duas se explicam e seus
sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição
de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende
ensina ao aprender.
127
Esta relação de empatia entre educador e educador rompe a verticalidade própria
da educação bancária, estabelecendo uma situação de comunicação que se contrapõe à
narração de comunicados. Desta forma, o diálogo representa o “como” para a educação
libertadora:
E que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma
matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade,
da esperança, da fé, da confiança. Por isso, somente o diálogo comunica. E
quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança,
com fé um no outro, se fazem críticos na procura de algo. Instala-se, então,
uma relação de empatia entre ambos. ali comunicação. “O diálogo é,
portanto, o caminho indispensável”, diz Jaspers, “não somente nas questões
125
Idem.
126
FIORI, Ernani Maria. Aprender a dizer sua palavra. Prefácio à FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p.
16.
127
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia, p. 23.
40
vitais para nossa ordem política, mas em todos os sentidos da nossa
existência".
128
No mais, “quem dialoga, dialoga com alguém sobre alguma coisa
129
”, de forma
que, se é pela sua capacidade de pronunciar o mundo que os homens o transformam, “o
diálogo é uma exigência existencial. [...] Ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o
agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado
130
”. Para a
educação problematizadora, como processo de desvelamento da realidade, o diálogo
131
representa “a conquista do mundo para a libertação dos homens
132
”.
Ao negar o conhecimento como processo de busca, e desta forma a própria
educação, na medida em que leva os homens ao ajustamento, à acomodação, a concepção
“bancária” de educação nega aos homens sua capacidade de intervir e transformar o mundo.
Nega a práxis como modo humano de existir. Como instrumento da desumanização, cumpre a
tarefa de prescrever aos oprimidos as finalidades dos opressores. “Daí que um dos seus
objetivos fundamentais, mesmo que dele não estejam advertidos muitos dos que a realizam,
seja dificultar, em tudo, o pensar autêntico
133
”, o que se traduz em manter a paz dos
opressores, em alienar os oprimidos de sua capacidade de questionar a realidade que os cerca,
de transformar e recriar o mundo.
Como situação gnosiológica, “a educação problematizadora se faz, assim, um
esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão
sendo no mundo com que e em que se acham
134
”. Na medida em que na prática “bancária” de
educação não há conhecimento realizado pelos educandos, dela resulta a manutenção da
imersão na realidade opressora; de forma contrária, “a educação problematizadora, de caráter
autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade
135
”, a busca
da emersão das consciências a partir de uma inserção crítica na realidade.
1.4 A LIBERTAÇÃO E O MEDO DA LIBERDADE
128
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 115.
129
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 116.
130
Ibidem, p. 91.
131
Retomaremos a discussão acerca da importância do diálogo na pedagogia libertadora de Freire no capítulo 3.
132
Idem.
133
Ibidem, p. 73.
134
Ibidem, p. 82.
135
Ibidem, p. 80.
41
Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos”
na própria engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade,
enquanto não se sentem capazes de correr o risco de assumi-la.
136
Diante da realidade dominadora onde vigoram a alienação e a desumanização, a
conscientização
137
constitui o instrumento fundamental da pedagogia do oprimido freireana,
na medida em que a ela cabe a tarefa de desvelar a realidade e desmascarar os mecanismos
que servem à manutenção da sociedade opressora
138
. Em virtude da condição de “hospedeiros
do opressor”, uma vez que o comportamento dos oprimidos se faz a partir da pauta dos
opressores, Freire diz que “expulsar esta sombra pela conscientização é uma das fundamentais
tarefas de uma educação realmente libertadora e por isto respeitadora do homem como
pessoa
139
”. Porém, não por mero acaso, Freire inicia a Pedagogia do Oprimido comentando
quanto fora surpreendido pelo medo da liberdade
140
expresso pelos participantes dos cursos de
capacitação que ministrara, ao falar sobre o papel da conscientização na educação libertadora:
Não são raras as vezes em que participantes destes cursos, numa atitude em
que manifestam o seu "medo da liberdade”, se referem ao que chamam de
“perigo da conscientização”. “A consciência crítica (... dizem...) é
anárquica”. Ao que outros acrescentam: “Não poderá a consciência critica
conduzir à desordem?”.
141
A conscientização representa um perigo mediante a possibilidade de que ao
colocar as massas populares diante da realidade injusta e opressora que as desumaniza surjam
“fanatismos destrutivos
142
”. Segundo Freire, “o medo da liberdade, de que necessariamente
136
Ibidem, p. 37-38.
137
Cabe o esclarecimento de Freire: “Pensa-se, geralmente, que eu sou o autor deste estranho vocábulo, pelo fato
de ser ele um conceito central em minhas idéias sobre educação. [...] Porém, a verdade é outra. Ela nasceu de
uma série de reflexões que uma equipe de professores desenvolveu no ISEB, Instituto Superior de Estudos do
Brasil, associado ao Ministério da Educação Nacional, criado depois da chamada Revolução Libertadora do
Brasil no ano de 64. A palavra foi criada por um dos professores daquela época, eu não saberia dizer qual. [...]
foi precisamente no ISEB que ouvi, pela primeira vez, a palavra conscientização. Ao ouvi-la, percebi,
imediatamente, a profundidade de seu significado, pois estava absolutamente convencido de que a educação
como prática da liberdade é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade”. FREIRE, Paulo.
Conscientizar para libertar (noções sobre a palavra conscientização). In: TORRES, Carlos Alberto. Consciência
e história: a práxis educativa de Paulo Freire. p. 93.
138
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação - uma introdução ao pensamento de Paulo
Freire, p. 17.
139
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 45.
140
Em nota de rodapé, Freire destaca que o medo da liberdade também se instaura nos oprimidos, porém como
medo de perder a “liberdade” de oprimir. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 36. Nota nº 3.
141
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 23.
142
Ibidem, p. 24
42
não tem consciência o seu portador, o faz ver o que não existe. No fundo, o que teme a
liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel, preferindo-a a liberdade
arriscada
143
”.
Paul Tillich em sua obra A Coragem de ser diz que “o medo [...] tem a função
biológica de anunciar ameaças de não-ser
144
e provocar medidas de proteção e resistência
145
”.
No entanto, indica que estudos recentes têm revelado uma distinção fundamental entre medo e
ansiedade, apontando que “ansiedade e medo tem a mesma raiz ontológica, mas não são o
mesmo na realidade”, pois “o medo, quando comparado à ansiedade, tem objeto definido
146
”.
Segundo Tillich,
Medo é estar assustado com algo, uma dor, a rejeição de uma pessoa ou um
grupo, a perda de alguma coisa ou de alguém, o momento de morrer. Mas na
antecipação da ameaça que se origina das coisas, o que está assustando não é
a negatividade em si que eles trarão para o sujeito, porém a ansiedade sobre
as implicações possíveis desta ansiedade.
147
Distinta do medo de algo”, a ansiedade é a antecipação da ameaça do não-ser
isto é, da negação do ser ao ser, não possuindo objeto na medida em que seu “objeto” é a
ameaça mesma. Segundo Tillich, o não-ser ameaça o ser em três direções as quais
correspondem três modalidades de ansiedade:
O não-ser ameaça a auto-afirmação “ôntica” do homem, de modo relativo,
em termos de destino, de modo absoluto, em termos de morte. Ameaça a
auto-afirmação espiritual do homem, de modo relativo em termos de
vacuidade, de modo absoluto, em termos de insignificação. Ameaça a auto-
afirmação moral do homem relativo em termos de culpa, de modo absoluto
em termos de condenação. A confirmação desta ameaça tripla é ansiedade,
aparecendo em três formas, a do destino e da morte (em resumo, a ansiedade
da morte), a do vazio e perda de significação (em resumo, a ansiedade da
vacuidade), a de culpa e condenação (em resumo, a ansiedade da
condenação).
148
De acordo com Tillich, a ansiedade do destino e da morte representa a ansiedade
mais básica e universal, a qual não se pode escapar na medida em que, como antecipação da
143
Idem.
144
Tillich diz que “[...] se o ser é interpretado em termos de vida, ou processo, ou vir a ser, o não-ser é
ontologicamente tão fundamental quanto o ser”, de forma que “se se pergunta como o não-ser se relaciona com o
ser-em-si, pode responder por metáforas: o ser ‘abarca’ ele próprio e o não-ser”. TILLICH, Paul. A coragem
de ser, p. 26 e 27.
145
TILLICH, Paul. A coragem de ser, p. 61.
146
Ibidem, p. 28.
147
Ibidem, p. 29.
148
Ibidem, p. 32.
43
ameaça à auto-afirmação “ôntica” do ser humano, representa uma ameaça a sua existência
mesma. Isto nos remete à seguinte afirmação de Freire:
Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na própria
engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se
sentem capazes de correr o risco de assumi-la. E a temem, também, na
medida em que, lutar por ela, significa uma ameaça, não aos que a usam
para oprimir, como seus “proprietários” exclusivos, mas aos companheiros
oprimidos, que se assustam com maiores repressões.
149
Sendo que, para Tillich, “o destino é a lei da contingência, e a ansiedade referente
ao destino está baseada na certeza do ser finito de ser contingente a todos os respeitos, de não
ter necessidade básica
150
”, temos que o risco de assumir a liberdade nos remete à ansiedade
relativa do destino, na medida em que este nos coloca diante de nossa própria contingência, de
nossa imprevisibilidade, do fato de que “nossa existência não tem necessidade
fundamental
151
”, de forma que nos cabe a tarefa de criar nosso próprio destino, de fazer nossa
história, o que nos remete à afirmação de Freire de que “a condição necessária de ser é estar
sendo
152
”. Por outro lado, Freire aponta que a luta pela liberdade representa uma ameaça
diante de maiores repressões, ou seja, diante do uso da violência mesma, que nos remete à
ansiedade da morte mediante a ameaça absoluta posta à existência mesma. Tomemos mais
uma afirmação de Freire acerca do medo da liberdade próprio dos oprimidos:
Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suas
pautas, temem a liberdade, à medida em que esta, implicando na expulsão
desta sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio” deixado pela
expulsão, com outro “conteúdo” o de sua autonomia. O de sua
responsabilidade, sem o que não seriam livres. A liberdade, que é uma
conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca
permanente que só existe no ato responsável de quem a faz.
153
Tillich diz que “a auto-afirmação espiritual ocorre em cada momento em que o
homem vive criadoramente nas várias esferas de significação”, ressaltando que “criador, neste
contexto, tem o sentido não de criação original [...], mas de viver espontaneamente, em ação e
149
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 37-38.
150
TILLICH, Paul. A coragem de ser, p. 35.
151
Ibidem, p. 34.
152
FREIRE, Paulo. Conscientizar para libertar. In: TORRES, Carlos Alberto. Consciência e história: a prática
educativa de Paulo Freire, p. 103.
153
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 37.
44
reação, com o conteúdo de nossa vida cultural
154
”, de forma que, o ser humano “afirma-se
quando recebendo e transformando a realidade de modo criador
155
”. Temos que a condição
dos oprimidos apontada por Freire de serem “hospedeiros” do opressor porquanto
introjetam em si mesmos sua sombra, na medida em que seu comportamento é prescrito por
estes; de desumanizados porquanto reduzidos à condição de animais, uma vez que,
acomodados à realidade opressora, renunciam sua práxis como ação e reflexão sobre o mundo
para transformá-lo representa a negação da auto-afirmação espiritual dos seres humanos,
sendo que nesta negação se inscreve a ansiedade da vacuidade e da insignificação:
A ansiedade da vacuidade é despertada pela ameaça do não-ser ao conteúdo
especial da vida espiritual. Uma certeza rompe através dos acontecimentos
externos ou processos interiores: somos cortados da participação criadora
numa esfera de cultura, nos sentimos frustrados a respeito de algo que se
tinha afirmado com paixão, somos conduzidos da devoção a um objeto à
devoção por outro e de novo por outro, porque o sentido de cada um deles
desvanesce e o eros criador se transformou em indiferença ou aversão. [...] A
ansiedade da vacuidade conduz-nos ao abismo da insignificação.
156
Tillich destaca que “vacuidade e perda de significação são expressões da ameaça
do não-ser à vida espiritual” característica do ser humano, através da qual se revela sua
realidade básica de ser participante enquanto significador de seu mundo, capaz de criar e
transformar a realidade que o cerca, de forma que “ama-se a si próprio ao participar da vida
espiritual e ao amar seu conteúdo”, sendo que “o ama porque é sua própria realização e
porque ele se realiza através dele
157
”. Deste modo, a ameaça do não-ser à vida espiritual se
realiza no extravio do homem
158
de sua condição de criador de significações, ameaça que
pode ser traduzida como a instauração da dúvida total:
O homem é capaz de perguntar por que está separado de embora
participando em, daquilo sobre o que está perguntando. Em toda pergunta
está implicado um elemento de dúvida, a certeza de não haver. Na indagação
sistemática a dúvida é efetiva; por exemplo, o tipo cartesiano. Este elemento
de dúvida é uma condição de nossa vida espiritual. A ameaça à vida
espiritual não é a dúvida como um elemento, mas a dúvida total. Se a certeza
de não haver engolfou a certeza de haver, a dúvida cessou de ser indagação
metodológica e tornou-se desespero existencial.
159
154
TILLICH, Paul. A coragem de ser, p. 36
155
Ibidem, p. 36.
156
Ibidem, p. 37.
157
Ibidem, p. 36.
158
Ibidem, p. 37.
159
Idem.
45
Na medida em que não se pode escapar da dúvida, Tillich diz que “a vida
espiritual tenta manter-se, o quanto possível, apegando-se a afirmações que ainda não estão
minadas
160
” a fim de escapar do caminho que leva à situação extrema da perda de significação
mediante a dúvida total e o desespero existencial, de forma que
O homem tenta um outro caminho: a dúvida se baseia na separação do
homem do todo da realidade, da sua falta de participação universal, no
isolamento de seu eu individual. Ele tenta sair desta condição, renunciar à
sua separação e auto-relacionamento. Voa da liberdade de perguntar e
responder por si mesmo, para uma situação na qual não podem ser
formuladas questões ulteriores e as respostas às questões prévias são
impostas a ele arbitrariamente. A fim de evitar o risco de perguntar e
duvidar, ele renuncia ao risco de perguntar e duvidar. Renuncia a si próprio
tentando salvar sua vida espiritual. Ele “foge de sua liberdade” (Fromm)
tentando fugir à ansiedade da insignificação. [...] A significação está salva,
mas o eu é sacrificado.
161
Este risco de perguntar e duvidar nos remete ao risco de assumir a liberdade como
apontado por Freire. De acordo com o pensamento de Tillich, estes riscos representam a
ameaça da insignificação, da dúvida total, do desespero existencial. A ameaça da
insignificação absoluta, antecipada pela ansiedade da vacuidade, leva os seres humanos a
fugir de sua liberdade, a escapar do “perigo” de duvidar, isto é, de perguntar e responder. É
neste sentido que, segundo Freire, os oprimidos temem a liberdade, pois expulsar o opressor
de dentro de si mesmos significa assumir sua própria autonomia, ou seja, assumir os riscos de
perguntar e responder por si mesmos. Para Tillich, a ameaça à vida espiritual antecipada pela
ansiedade da vacuidade, ou pelo “medo da liberdade” como em Freire, representa uma
ameaça à própria existência humana, de forma que
As auto-afirmações ôntica e espiritual precisam ser distinguidas, mas não
podem ser separadas. O ser do homem inclui sua relação com suas
significações. Ele é humano por compreender e moldar a realidade, seu
mundo é ele, de acordo com significações e valores. Seu ser é espiritual,
mesmo nas expressões mais primitivas do mais primitivo ser humano. Na
“primeira” sentença significativa toda a riqueza da vida espiritual do homem
está potencialmente presente. Portanto, a ameaça a seu ser espiritual é uma
ameaça a todo seu ser.
162
160
Idem.
161
Ibidem, p. 38.
162
Ibidem, p. 39.
46
O sacrifício do eu mediante o qual se salva a significação, mas cujo resultado é o
“extravio do homem” de si próprio ou, em termos freireanos, sua desumanização, nos remete
à ansiedade da culpa e da condenação. Segundo Tillich,
O homem é essencialmente ‘liberdade finita’; liberdade, não no sentido de
indeterminação, porém no sentido de ser capaz de se determinar por meio de
decisões no núcleo de seu ser. [...] Em cada ato de auto-afirmação moral o
homem contribui para a realização de seu destino, para a concretização do
que ele é potencialmente.
163
Para Tillich, o ser “se afirma criadoramente, conquistando eternamente seu
próprio não-ser
164
”, de forma que esta representa a “norma” que “pauta” o destino dos seres
humanos. Neste sentido, a auto-afirmação moral do ser humano reflete a “cobrança” de si
sobre si e acerca de si mesmo, relativa à realização de sua potencialidade criadora como
“norma” para seu destino. Assim sendo, “ele é responsável por ele-próprio; literalmente,
exige-se que responda, se perguntado, o que fez de si próprio. Aquele que pergunta é seu juiz,
a saber, ele próprio, que, ao mesmo tempo se coloca contra ele
165
”.
Na medida em que o ser humano é responsável por fazer-se a si mesmo, a
ansiedade da culpa e condenação decorre do fato de que “embora a norma esteja formulada, o
homem tem o poder de agir contra ela, de contradizer seu ser essencial, de perder seu destino.
E, sob condições de extravio do homem de si próprio isto é uma realidade
166
”. O ser humano
em condição de extravio tem em si a negação de si, na medida em que renuncia sua liberdade,
sacrificado “livremente” seu eu para salvar-se do desespero existencial. Ao extraviar-se de si
mesmo, negando sua potencialidade criadora, o ser humano se depara com sua
responsabilidade de fazer-se a si mesmo, de forma que a ansiedade da culpa “pode levar-nos à
completa auto-rejeição, para o sentimento de estar condenado – não a um castigo externo, mas
ao desespero de haver perdido nosso destino
167
”. A perspectiva de Tillich de que o ser
humano afirma seu ser conquistando eternamente seu não-ser, nos remete a visão de Freire de
que liberdade como uma conquista exige uma permanente busca. Sendo que, para Tillich, “o
homem, como liberdade finita, é livre dentro das contingências de sua finidade
168
”, o medo da
liberdade apontado por Freire se inscreve na imprevisibilidade e nos limites do contingente
163
Ibidem, p. 40.
164
Ibidem, p. 27.
165
Ibidem, p. 40.
166
Idem.
167
Idem.
168
Idem.
47
diante do que o ser humano tem de assumir a responsabilidade fazer-se a si próprio, o que
significa assumir a ameaça de seu autoquestionamento acerca daquilo que fez de si mesmo.
A partir destas aproximações entre o “medo da liberdade” abordado por Freire e a
face tripla da ansiedade, consideremos a seguinte afirmação de Tillich: “medo e ansiedade são
distintos mas não são separados. São imanentes um do outro: o acicate do medo é a ansiedade,
e a ansiedade se esforça na direção do medo
169
”. Este esforço na direção do medo se na
medida em que a ansiedade que não possui objeto definido pois seu “objeto” é a própria
ameaça por ela antecipada estabelece objetos de medo na tentativa de nele tornar-se, uma
vez que este pode ser alcançado pela coragem
170
. Segundo Tillich, a coragem – “auto-
afirmação ‘a-despeito-de’, isto é, a despeito daquilo que tende a impedir o eu de se afirmar
171
– contrapõe-se ao medo na medida em que este possui um objeto a ser enfrentado:
A coragem pode enfrentar cada objeto de medo porque é um objeto, e torna a
participação possível. A coragem pode incorporar nela o medo produzido
por um objeto definido, porque este objeto, embora assustador o quanto seja,
tem um faceta com que participa em nós e nós nele. Pode-se dizer que desde
que haja um objeto do medo, o amor, no sentido de participação, pode
dominar o medo.
172
No que se refere à ansiedade, “participação, luta e amor em relação a ela são
impossíveis
173
”. Assim, temos que o “medo da liberdade”, embora assuma perfis que o
remetem à ansiedade, não é a ansiedade mesma, mas representa o esforço desta em tornar-se
medo a partir do objeto estabelecido que é a liberdade. Considerando a afirmação de que
“toda vez que se suprime a liberdade [ao ser humano], fica ele um ser meramente ajustado ou
acomodado
174
”, recordemos que, para Freire, o ser humano é um ser que se relaciona com a
realidade que o cerca, integrado ao seu contexto uma vez que não apenas está no mundo, mas
no mundo e com o mundo, ou seja, integrado porque faz parte de seu mundo, participando
dele na medida em que pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu
mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a.Vai acrescentando a ela algo de que
ele mesmo é fazedor
175
”. Sendo que a desumanização nega o ser de relações que é o ser
humano, reduzindo-o à esfera dos contatos típica dos animais, o que significa sua adaptação,
169
Ibidem, p.
29.
170
Ibidem, p. 30.
171
Ibidem, p. 25.
172
Ibidem, p. 28-29.
173
Ibidem, p. 29.
174
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 50.
175
Ibidem, p. 51.
48
seu ajustamento à realidade que o cerca, disto resulta que o ser humano deixa de ser
participante tornando-se mero espectador de uma realidade sob a qual tem a ilusão de que
participa. Ora, se a supressão da liberdade torna os seres humanos ajustados ou acomodados,
sua liberdade está diretamente relacionada à sua condição de participante do mundo que o
cerca, de forma que sacrificada sua liberdade, sacrificado está o próprio ser humano. É neste
sentido que Tillich afirma que a ameaça à auto-afirmação espiritual do ser humano representa
também uma ameaça à própria existência humana.
Como vimos, diante da responsabilidade de ser participante e como tal criador,
transformador, significador de seu mundo, o ser humano encontra outro caminho e renuncia a
si mesmo ao renunciar sua capacidade de perguntar e responder, assumindo respostas lhe são
impostas arbitrariamente. Isto nos remete à seguinte afirmação de Freire: para os oprimidos,
num momento da sua experiência existencial, ser nem sequer é ainda parecer com o opressor,
mas é estar sob ele. É depender. Daí que os oprimidos sejam dependentes emocionais
176
”.
Temos que sua dependência emocional se na medida em que os oprimidos dependem das
respostas que lhes são dadas pelos opressores para não cair na insignificação. Esta referência à
dependência emocional dos oprimidos nos conduz ao pensamento de Humberto Maturana.
Contrapondo a visão de que a razão caracteriza os seres humanos como tal, ou
seja, de que somos seres puramente racionais, Maturana diz que “todo sistema racional tem
um fundamento emocional
177
”, isto é, “[...] se constitui no operar com premissas previamente
aceitas, a partir de uma certa emoção
178
”. Para Maturana,
As emoções não são o que correntemente chamamos de sentimento. Do
ponto de vista biológico, o que conotamos quando falamos de emoções são
disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação
em que nos movemos. Quando mudamos de emoção, mudamos de domínio
de ação.
179
Tais premissas são aceitas a priori, “aceitas porque sim, aceitas porque as pessoas
gostam delas, aceitas porque as pessoas as aceitam a partir de suas preferências”.
Considerando que nossas premissas fundamentais são aceitas a partir das emoções, e que as
emoções definem nossos campos de ação, na medida em que, segundo Freire, para os
oprimidos ser não é apenas parecer com o opressor, mas estar sob ele, a dependência
176
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 58
177
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política, p. 15.
178
Ibidem, p. 16.
179
Ibidem, p. 15.
49
emocional dos oprimidos se dá na medida em que seu comportamento é prescrito pelos
opressores, o que significa dizer que são os opressores que estabelecem suas premissas
fundamentais. Segundo Freire, o “‘medo da liberdade’, de que se fazem os oprimidos, [...]
tanto pode conduzi-los a pretender ser opressores também, quanto pode mantê-los atados ao
status de oprimidos
180
”. Desta forma, temos que o medo da liberdade constitui a emoção em
que se pautam as ações dos oprimidos, ações que podemos entender como não-ações, pois,
contraditoriamente, representam freios à vocação humana de ser mais, na medida em que o
medo da liberdade imobiliza os seres humanos levando-os ao ajustamento à ordem opressora.
Freire compreende que “a opressão é uma coisa tão forte que produz o medo da
liberdade [sendo que] o medo da liberdade existe quando se pensa que falar ou discutir sobre
ela é uma ameaça
181
”. Retomando a afirmação de Maturana de que “quando mudamos de
emoção, mudamos de domínio de ação”, temos que o medo da liberdade – como a emoção em
que se pautam as premissas fundamentais dos oprimidos –, se expressa na afirmação do
perigo da conscientização na medida em que este representa o perigo de mudar de domínio de
ação, ou seja, de mudar suas premissas fundamentais. Para Maturana, as diferenças entre as
premissas constituem o pano de fundo para os desentendimentos entre as pessoas:
[Há] discussões que geram conflitos: é o caso de todas as discussões
ideológicas. Isso acontece quando a diferença está nas premissas
fundamentais que cada um tem. Esses desacordos trazem consigo uma
explosão emocional, porque os participantes vivem seu desacordo como
ameaças existenciais recíprocas. Desacordos nas premissas fundamentais são
situações que ameaçam a vida, que um nega ao outro os fundamentos de
seu pensar e a coerência racional de sua existência.
182
De acordo com Freire, naquele que teme a liberdade, está incutida a idéia de que
“‘melhor será que a situação concreta de injustiça não se constitua num ‘percebido’ claro para
a consciência dos que a sofrem’
183
”. Isto porque “‘[...] a conscientização abre caminho à
expressão das insatisfações sociais’
184
”, representando, assim, a possibilidade do desacordo
entre opressores e oprimidos, ou seja, do confronto de suas premissas fundamentais, o que,
segundo Maturana, representa uma ameaça a suas vidas.
180
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 36.
181
FREIRE, Paulo. Conscientizar para libertar. In: TORRES, Carlos Alberto. Consciência e história: a prática
educativa de Paulo Freire, p. 103.
182
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política, p. 17.
183
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 24.
184
WEFFORT, Francisco. Educação e Política. Reflexões sociológicas sobre uma pedagogia da liberdade.
Prefácio à FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 20.
50
Na medida em que a conscientização, enquanto processo de desvelamento da
realidade, implica a descoberta da realidade opressora, isto é, a descoberta pelos oprimidos de
sua própria condição e da figura dos opressores, ela representa a tomada de postura diante da
realidade, e como tal, não pode existir fora da práxis humana, na medida em que “pede que os
homens criem sua existência com o material que a vida lhes oferece
185
”. Diante de sua
capacidade criadora, os seres humanos temem a responsabilidade que ela implica, temem
assumir sua liberdade:
[...] a responsabilidade surge quando nos damos conta de se queremos ou
não as conseqüências de nossas ações; e a liberdade surge quando nos damos
conta de se queremos ou não nosso querer, ou não querer as conseqüências
de nossas ações. Quer dizer, responsabilidade e liberdade surgem na reflexão
que expõe nosso pensar (fazer) no âmbito das emoções a nosso querer ou
não querer as conseqüências de nossas ações, num processo no qual não
podemos nos dar conta de outra coisa a não ser de que o mundo que vivemos
depende de nossos desejos
186
.
Ora, se o mundo em que vivemos depende de nossos desejos, temos que a
desumanização, como realidade histórica decorrente da ordem opressora, encontra no desejo
humano um elemento de fundamental importância. Retomemos a afirmação de Paulo Freire,
já citada anteriormente, onde ele diz que
[...] em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, [há] uma
irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar
destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem,
a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo.
187
Eis aqui uma referência à dinâmica do desejo dos oprimidos. Diante de seu
incontido desejo de imitar o opressor, que de acordo com a afirmação de Freire se trata do
desejo direcionado aos padrões de vida do opressor, temos que, de acordo com Maturana, o
“mundo” dos oprimidos depende de seu desejo de imitação do opressor. No entanto, é em sua
alienação que desejam a todo custo imitá-lo, o que nos remete mais uma vez à “dualidade
existencial dos oprimidos que “hospedando” o opressor cuja “sombra” eles “introjetam”, são
eles e ao mesmo tempo são o outro
188
”. Assim, temos que o desejo de imitação dos oprimidos
185
FREIRE, Paulo. Conscientizar para libertar. In: TORRES, Carlos Alberto. Consciência e história: a prática
educativa de Paulo Freire, p. 97.
186
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política, p. 33-34.
187
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 55.
188
Ibidem, p. 54.
51
direcionado à figura do opressor está diretamente relacionado à sua dualidade existencial de
serem “hospedeiros” do opressor. Cabe, porém, destacar o termo “existencial” utilizado por
Freire, na medida em que nos remete a uma condição que não é anormal ou meramente
acidental, mas pertinente à própria existência humana.
A partir deste entrelaçamento entre o desejo de imitação e a dualidade existencial
dos oprimidos, somos remetidos à perspectiva antropológica de René Girard a partir de sua
teoria do desejo mimético, tema que abordaremos no capítulo seguinte.
52
2 A PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DE RENÉ GIRARD
189
Nosso estudo acerca do pensamento de René Girard senorteado a partir de dois
elementos presentes no pensamento de Paulo Freire os quais pretendemos aprofundar. São
estes a dualidade existencial dos oprimidos, decorrente de sua condição de “hospedeiros” do
opressor, enquanto situação fundamental sob a qual se sustenta a dinâmica da opressão, e a
compreensão freireana de que o ser humano é um ser no mundo e com o mundo, portanto um
ser de relações. A partir destes, buscaremos no pensamento de René Girard elementos que nos
possibilitem compreender a contradição peculiar à condição dos oprimidos mediante a qual se
dá sua desumanização, o que nos auxiliará na busca possíveis “saídas” para esta situação.
2.1 O DESEJO MIMÉTICO E A HUMANIDADE DA VIOLÊNCIA HUMANA
[...] existe no seio dos grupos humanos uma tendência
muito forte para os conflitos causadores de rivalidade.
190
O ponto de partida da perspectiva antropológica de René Girard é sua
compreensão de que “o homem é uma criatura que perdeu parte do seu instinto animal para
aceder àquilo que se chama desejo
191
”. No entanto, “uma vez satisfeitas as suas necessidades
naturais, os homens desejam intensamente, mas não sabem exatamente o que, pois nenhum
189
René Girard nasceu na França em 1923, na cidade de Avignon. Entre 1943 e 1947, estudou em
Paris, na École des Chartres, uma instituição para a formação de arquivistas e historiadores, onde se
especializou em história medieval. Em 1947 foi para a Universidade de Indiana, onde cursou o
doutorado em história contemporânea e começou a lecionar literatura, o campo em que primeiramente
se tornaria conhecido. Ensinou na Duke University e em Bryn Mawr antes de se tornar professor da
Johns Hopkins em Baltimore. Em 1971, foi para a Universidade Estadual de Nova York em Buffalo
permanecendo por cinco anos. Retornou ao Johns Hopkins e, em seguida, terminou a sua carreira
acadêmica na Universidade de Stanford onde lecionou de 1981 a sua aposentadoria em 1995.
Atualmente, Girard é professor de literatura comparada na Universidade de Palo Alto, Califórnia.
Além de proferir palestras e continuar escrevendo, Girard se dedica ao Colloquium on Violence and
Religion, estabelecido em 1990 por seus amigos e colegas para refletir sobre o pensamento girardiano.
O Colóquio reúne anualmente seja na Europa ou nos Estados Unidos. Autor de 15 livros e de
numerosos ensaios e artigos, sua principal contribuição é sua perspectiva antropológica delineada em
sua teoria mimética, onde busca compreender a origem das diversas culturas e do mundo
contemporâneo a partir de sua leitura revolucionária do sentido histórico do Cristianismo.
190
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 25
191
Ibidem, p. 32.
53
instinto os guia
192
”. Uma vez que o ser humano não tem desejo próprio, pois “o próprio do
desejo é não ser próprio
193
”, a capacidade desejante que diferencia os seres humanos dos
animais se é possível mediante a imitação, pois “para desejarmos verdadeiramente, temos
que recorrer aos homens que estão à nossa volta, temos que lhes imitar os desejos
194
”. Deste
modo, a natureza humana não é apenas desejante, mas é mimeticamente desejante, porquanto
o ser humano não deseja por si próprio, mas deseja a partir daquilo que o outro deseja.
Para Girard, tal é o desejo mimético: “o desejo que é sugerido por um modelo
195
”.
Uma vez que “todos temos sempre um modelo que imitamos
196
”, as relações que se
estabelecem entre os indivíduos devem ser compreendidas a partir deste desejo que representa
o “desejo ‘real’
197
característico de todos os seres humanos. No mais, Girard argumenta que
“imitação e aprendizagem são inseparáveis”, o que pode ser observado ao se considerar o
mimetismo infantil, pois “toda criança tem apetites, instintos e um ambiente cultural no qual
aprende imitando
198
”. É de sua capacidade de aprendizado, atrelada à natureza mimeticamente
desejante dos seres humanos, que resulta o avanço da cultura humana, uma vez que “o ser
humano observando, registrando e imitando os comportamentos de seus parceiros de raça,
consegue acumular, mais do que qualquer outro animal, uma enorme quantidade de
informações e soluções para os difíceis problemas da sobrevivência humana
199
”.
Girard encontra o eixo central de sua perspectiva antropológica na narrativa
bíblica. Para ele, “um exame atento mostra que existe, na Bíblia e nos Evangelhos, uma
concepção original e desconhecida do desejo e dos seus conflitos
200
”, como realidade peculiar
à condição humana, cuja expressão maior ele identifica no décimo mandamento do Decálogo:
Não cobice a casa do seu próximo, nem a mulher do próximo, nem o
escravo, nem a escrava, nem o boi, nem o jumento, nem coisa alguma que
pertença a seu próximo.
201
Girard ressalta que, diferentemente dos mandamentos anteriores “Não matarás.
Não cometerás adultério. Não roubarás. Não dirás falso testemunho contra o teu próximo
202
192
Idem.
193
Idem.
194
Idem.
195
GIRARD, René. Um longo argumento do princípio ao fim, p. 84.
196
Ibidem, p. 85.
197
Ibidem, p. 84.
198
Ibidem, p. 85.
199
BARBÉ, Domingos. Uma teologia do conflito, p. 13.
200
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 23
201
BÍBLIA. Êxodo. Cap. 20, vers. 17.
54
que expressam a proibição de ações concretas que constituem atos de violência contra o
próximo, o décimo mandamento expressa a proibição pura e simplesmente de um desejo
203
.
No entanto, na medida em que a esta proibição é dedicado o último e mais extenso dos
mandamentos, o que nos remete a sua posição de destaque em relação aos demais, nele temos
a proibição de um desejo que não se trata de qualquer desejo. O décimo mandamento
expressa uma proibição que se dirige a um desejo característico de todo ser humano, que é o
desejo de ter aquilo que pertence ao outro. Girard salienta que, inicialmente, a proibição se
dirige a diversos objetos, mas seu final se refere diretamente ao desejo que se dirige a tudo
aquilo que pertence ao próximo, o que nos leva à compreensão de que “se os objetos que
desejamos pertencem sempre ao próximo, é com toda evidência, o próximo que os torna
desejáveis
204
”. Diz Girard:
O que o décimo mandamento esboça, sem o definir de maneira explícita, é
uma revolução copérnica na inteligência do desejo. Julga-se que o desejo
possa ser objetivo ou subjetivo, mas, na realidade, baseia-se num outro que
valoriza os objetos, o terceiro que está mais perto, o próximo. Para se manter
a paz entre os homens, que definir a proibição em função desta atroz
constatação: o próximo é o modelo dos nossos desejos. É a isto que chamo o
desejo mimético.
205
Uma vez que aquilo que define nosso desejo não é o objeto desejado, mas o fato
de ser desejado pelo outro, a teoria girardiana do desejo mimético ultrapassa a convencional
relação sujeito objeto e insere um terceiro elemento como mediador do desejo humano, ou
seja, o modelo tomado como referência para tal desejo. Sendo que o desejo humano se dá pela
mímesis, ou seja, pela imitação do desejo do outro, o objeto desejado não é desejado enquanto
objeto, mas porque desejado pelo modelo escolhido como referência, de modo que é o fato de
ser desejado pelo modelo que valoriza o objeto e não o objeto em si. Girard sustenta que a
rivalidade mimética representa a origem dos conflitos humanos
206
e, diante disto, “o legislador
202
Sexto, sétimo, oitavo e nono mandamentos. BÍBLIA. Êxodo . Cap. 20, vers. 13-16. O grifo é nosso.
203
Girard destaca o fato de que o emprego do verbo cobiçar nas traduções modernas do texto bíblico pode
resultar em uma interpretação errônea que identifique tal desejo como algo de natureza perversa e fora do
comum, o que não confere com o termo hebreu que fora traduzido por “cobiçar” e que remete tão e
simplesmente a “desejar”. (GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 24).
204
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 26
205
Idem.
206
Cabe considerar a seguinte argumentação de René Girard, acerca da afirmação de Lucien Scubla de que “a
rivalidade mimética é a única fonte da violência humana”. Diz Girard: [...] evito dizer que [a rivalidade
mimética] é a ‘única’ fonte de violência, pois isso me parece desvalorizar em demasia o objeto. Equivale a dizer
que todos os conflitos se originam no desejo mimético. Ora, existem apetites capazes de desencadear conflitos.
Uma vez desencadeados, contudo, facilmente caem na armadilha de um mecanismo mimético. [...] Hoje fala-se
55
que proíbe o desejo dos bens do próximo esforça-se por resolver o problema número um de
qualquer comunidade humana: a violência interna
207
”, o se que representado nos
mandamentos anteriores, que se referem a atos de violência que podem ser cometidos contra o
próximo. Assim, o problema da violência mostra-se como uma realidade inerente às
comunidades humanas, uma vez que a rivalidade entre os seres humanos decorre de seu
desejo essencialmente mimético:
O desejo mimético nem sempre é conflitual, mas assim acontece com
freqüência, e isto por razões que o décimo mandamento torna evidentes. O
objeto que desejo segundo o exemplo do meu próximo, pretende ele
conservá-lo para si, reservá-lo para seu próprio uso e não abrirá mão dele
sem luta. O meu desejo será contrariado, mas, em vez de resignar-se e se
virar para um outro objeto, vai nove vezes em dez, insurgir-se e reforçar-se,
imitando mais que nunca o desejo do seu modelo.
208
Uma vez que nem o sujeito desejante nem o outro, seu modelo, abrirão mão do
objeto desejado sem luta, a rivalidade entre os homens é gerada pela imitação do desejo, de
forma que “a natureza mimética do desejo explica o habitual mau funcionamento das relações
humanas
209
”. Sendo que na dinâmica do desejo não estão relacionados apenas sujeito e objeto,
mas também um terceiro termo, que é o modelo, cabe-nos compreender qual a real posição
que ele ocupa nesta relação. Girard identifica no comportamento infantil um aspecto
fundamental decorrente da capacidade humana de imitação, “a rivalidade mimética [que] se
evidencia assim que a criança começa a interagir com outras
210
”, levando-as a disputar um
mesmo brinquedo ainda que haja outros idênticos a sua disposição. Barbé diz que:
[...] analisando esta capacidade de mimetismo, veremos que ela, ao mesmo
tempo, gera cultura (aprendizado) e violência. É uma experiência que todos
podem fazer: colocar na mesma sala várias crianças com grande número de
muito da violência, mas o que se tem em mente como ‘ato violento’ é o assalto de que as pessoas são vítimas nas
grandes cidades. [...] Trata-se de uma violência totalmente divorciada do seu contexto relacional ou associada
apenas ao background sociológico mais geral. Uma violência sem antecedentes, sem seguidores. Todos os
profissionais que lidam com problemas de violência dirão que a agressão fortuita não é a principal causa da
violência. A conduta violenta ocorre sobretudo entre pessoas que se conhecem muito tempo. Em geral, a
violência tem atrás de si uma história mimética, como no caso de cônjuges que, na milésima briga, disparam uma
arma contra o outro. Esse é o crime mais comum, bem mais que qualquer violência entre desconhecidos.
Assaltar alguém na rua não pode ser considerado um comportamento diretamente mimético, no tocante à relação
entre vitima e assaltante. Por trás da agressão aleatória, costuma haver, contudo, uma relação mimética que
permanece oculta. Cabe descobri-la e explorá-la”. (GIRARD, René. Um longo argumento do principio ao fim, p.
99-100)
207
GIRARD, René. Eu via satanás cair do céu como um raio, p. 25.
208
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 26.
209
Ibidem, p. 27.
210
GIRARD, René. Um longo argumento do principio ao fim, p. 85.
56
brinquedos. Por estranho e ilógico que seja, elas não ficarão satisfeitas com a
abundância dos objetos oferecidos; a tendência delas é apoderar-se do
brinquedo em posse de uma delas! Vão brigar por isso!
211
Esta disputa se na medida em que ao desejar o que é desejado pelo outro,
aquilo que pertence ao modelo, o sujeito depara-se com a resistência deste outro, que lutará
pelo objeto em questão. Isto se deve ao fato de que “ao imitar o seu desejo, dou ao meu rival a
impressão de que tem boas razões para desejar o que deseja, para possuir o que possui, e a
intensidade do seu desejo aumenta
212
”, isto é, “dou um modelo ao meu próprio modelo, e o
espetáculo do meu desejo reforça o seu
213
”.
Tal como entre as crianças, na medida em que “dois desejos que convergem para
um mesmo objeto constituem um obstáculo recíproco”, temos que “qualquer mimese
relacionada ao desejo conduz necessariamente ao conflito
214
”. No entanto, tomando como
exemplo o comportamento infantil, Girard diz que “a criança tem uma relação de mediação
externa, isto é, de imitação, com os adultos, e uma relação de mediação interna, isto é, de
imitação e rivalidade, com seus pares
215
”. Desta forma, temos que a relação conflituosa se
estabelece mediante a proximidade entre modelo e sujeito:
Se o desejo é mimético, o sujeito deseja o mesmo objeto que seu modelo. Se
o sujeito deseja o objeto possuído ou desejado pelo modelo, há duas
possibilidades: ou o sujeito se encontra no mesmo mundo que o modelo, ou
pertence a outro mundo. Uma vez que estejamos num outro mundo, não
podemos possuir o objeto pertencente ao modelo ou por ele desejado,
podemos ter com esse modelo uma [...] mediação externa. Com isso, um
conflito direto entre o sujeito e o seu modelo está fora de questão, e a
mediação externa acaba sendo uma mediação positiva. Se nos achamos no
mesmo mundo que o modelo, então o objeto que ele deseja está ao nosso
alcance e a rivalidade irrompe. Chamei a esse tipo de rivalidade mediação
interna. É uma rivalidade que se reforça por si mesma. Em decorrência da
proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-
se mais simétrica; pois à proporção que o imitador deseja o mesmo objeto
desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo.
Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo,
imitador de seu imitador.
216
211
BARBÉ, Domingos. Uma teologia do conflito, p. 13.
212
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 27.
213
Idem.
214
GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 185.
215
GIRARD, René. Um longo argumento do principio ao fim, p. 85.
216
GIRARD, René. Um longo argumento do principio ao fim, p. 86-87.
57
Assim, as crianças brigam pelo mesmo brinquedo porque estão entre pares, ou
seja, porque estabelecem entre si uma relação de mediação interna, onde sujeito e modelo
estão ao alcance um do outro, pertencem ao mesmo mundo. É neste sentido que o décimo
mandamento se refere ao desejo que se dirige a tudo aquilo que pertence ao próximo, pois o
perigo apontado nos mandamentos anteriores ameaça aqueles que pertencem a um mesmo
mundo e que estabelecem entre si uma relação de mediação interna, de proximidade, de modo
que o sujeito, ao desejar o objeto desejado pelo modelo, reforça-lhe o desejo e constitui-lhe
também um modelo.
Nesta relação em que o sujeito deseja o objeto desejado pelo modelo tão e
somente porque é desejado por ele, Girard afasta a primazia tanto do objeto quanto do sujeito,
afirmando a primazia do modelo enquanto rival do sujeito, de forma que
a rivalidade não é fruto da convergência acidental de dois desejos para o
mesmo objeto. O sujeito deseja o objeto porque o próprio rival o deseja.
Designando tal ou tal objeto, o rival designa-o ao sujeito como desejável. O
rival é o modelo do sujeito, não tanto no plano superficial das maneiras de
ser, das idéias etc., quanto no plano mais essencial do desejo.
217
No entanto, uma vez que o objeto em si não dispõe de qualquer atrativo que o
torna desejável ao sujeito, sendo que o deseja tão e somente porque é desejado pelo outro,
pelo modelo, temos que a dinâmica da instauração da rivalidade e da violência entre os seres
humanos não se deve ao desejo direcionado ao objeto em si:
Imagina-se que de início haja o objeto, em seguida os desejos convergem de
forma independente para este objeto e finalmente a violência, conseqüência
fortuita, acidental, desta convergência. [...] [Conforme avança a crise], a
violência torna-se cada vez mais manifesta: não é mais o valor intrínseco do
objeto que provoca o conflito, excitando cobiças rivais, mas é a própria
violência que valoriza os objetos, inventando pretextos para desencadear-se
mais facilmente.
218
Girard salienta que não é a natureza mimeticamente desejante dos seres humanos
que, ao instaurar a rivalidade, suscita a violência, mas que o objeto para o qual convergem os
desejos do sujeito e do modelo representa apenas o pretexto para que a violência característica
dos grupos humanos possa se manifestar. Deste modo, “não se deve relacionar o desejo a
nenhum objeto determinado, por mais precioso que pareça é preciso orientar o desejo para a
217
GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 184.
218
Ibidem, p. 182.
58
própria violência
219
”. A violência intrínseca ao desejo Girard identifica na própria condição
humana enquanto seres que desejam indefinidamente na medida em que seu desejo se
direciona a sua carência de ser:
Uma vez que seus desejos primários estejam satisfeitos, e às vezes mesmo
antes, o homem deseja intensamente, mas ele não sabe exatamente o que,
pois é o ser que ele deseja, um ser do qual se sente privado e do qual algum
outro parece-lhe dotado. O sujeito espera que este outro diga-lhe o que é
necessário desejar para adquirir este ser. Se o modelo, aparentemente
dotado de um ser superior, deseja algo, pode se tratar de um objeto capaz
de conferir uma plenitude de ser ainda mais total. Não é por meio de
palavras, mas de seu próprio desejo que o modelo designa ao sujeito o objeto
sumamente desejável.
220
Assim, o que o sujeito busca no modelo é o ser, e por isso coloca-se à espera de
que este lhe diga, através daquilo que deseja, o que é lhe necessário para alcançá-lo, situação
que lança o sujeito à condição de discípulo de seu modelo. Sendo que aquilo que o modelo
designa com seu desejo não é valor do objeto em si, mas a possibilidade de saciar a carência
de ser do sujeito, temos que o desejo essencialmente mimético dos seres humanos elege o
objeto desejado pelo modelo como desejável, na medida em que identifica a posse deste com
a superioridade de ser de que dotado o modelo. Ora, se é a posse de tal objeto que confere
superioridade ao modelo, ao imitar seu desejo, o discípulo deseja ter o mesmo objeto que o
modelo possui, para que assim possa ser, o que se traduz, portanto, em um desejo de
apropriação daquilo que pertence ao seu modelo. Eis aqui a fonte da rivalidade, tal como
expressa no décimo mandamento do decálogo, pois, como vimos, o modelo não abrirá mão do
objeto que a ele pertence, o que significa frustrar o desejo do discípulo. Porém, a frustração
não afasta o discípulo do objeto desejado, mas, ao contrário, este desejo de apropriação se
acirra de tal forma que o objeto em si desaparece, sendo que a crise mimética estoura a partir
do momento em que o desaparecimento do objeto significa que não mais mediação entre
discípulo e modelo, o que instaura a luta entre os indivíduos. Desta forma, “a crise mimética é
sempre uma crise de indiferenciação que irrompe quando os papéis de sujeito e modelo são
reduzidos ao de rivais. Essa indiferenciação se torna possível pelo desaparecimento do
objeto
221
”. Diz Barbé:
219
Ibidem, p. 183.
220
Ibidem, p. 184.
221
GIRARD, René. Um longo argumento do princípio ao fim, p. 87.
59
Os que lutam um contra o outro o fazem porque o mimetismo que está em
cada um o empurra a querer imitar a violência do vizinho. O que,
exatamente, está atrás desta competição? A nosso ver, isto: o desejo de se
apoderar da “potência”, da força vital que está no outro.
222
Considerando que o discípulo atrela a superioridade de ser do modelo ao ter do
objeto em questão, podemos compreender que, se num dado momento, a rivalidade se
instaura mediante a resistência do modelo em abrir mão do objeto para o qual convergem seu
desejo e o de seu discípulo, em outro, quando se dá o desaparecimento do objeto, a rivalidade
se instaura na medida em que o discípulo sua possibilidade de ser negada por seu modelo,
pois “sempre que o discípulo acredita encontrar o ser diante dele, esforça-se por atingi-lo,
desejando o que o outro lhe designa; e inexoravelmente ele encontra a violência do desejo
adverso
223
”, isto é, a resistência do modelo que pretende reservar o objeto que possui para si
próprio. Porém, “o modelo considera-se superior demais ao discípulo, e este inferior demais
ao modelo para que cheguem até mesmo a conceber a idéia de uma rivalidade, ou seja, da
identidade de dois desejos
224
”, o que caracteriza uma situação de sujeição do discípulo em
relação ao modelo. Girard argumenta que
Há no homem, no nível do desejo, uma tendência mimética que vem do mais
essencial dele mesmo, freqüentemente retomada e fortificada pelas vozes de
fora. O homem não pode obedecer ao imperativo “imite-me”, que ressoa por
toda parte, sem se ver quase imediatamente remetido a um “não me imite”
inexplicável, que vai mergulhá-lo no desespero e fazer dele o escravo de um
carrasco na maioria das vezes involuntário.
225
Assim, o modelo compõe o coro dos que “repetem em todos os tons ‘imitem-nos’,
‘imite-me’, ‘sou eu quem detém o segredo da verdadeira vida, do verdadeiro ser...’
226
”, de
forma que a negação do desejo do discípulo significa que o modelo, ao reservar para si o
objeto, pretende preservar a superioridade de ser que o discípulo lhe atribui. O discípulo cai
em desespero na medida em que seu desejo, ora impulsionado ou freado, o leva à frustração
que o remete a sua inferioridade em relação ao modelo, fazendo-o escravo de seu “carrasco
involuntário”. No entanto, uma vez que a crise mimética estoura quando se a
indiferenciação, temos que a ruptura desta relação de sujeição do discípulo mediante a
222
BARBÉ, Domingos. Uma teologia do conflito, p. 14.
223
GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 187
224
Ibidem, p. 185.
225
Ibidem, p. 186.
226
Idem
60
superioridade do modelo, coloca ambos no mesmo “nível”, ou seja, como rivais que disputam
um mesmo objeto, deflagrando a violência na medida em que “por um processo de abreviação
ao mesmo tempo lógico e demente, ele [o discípulo] se convence rapidamente que a própria
violência é o signo mais seguro do ser que sempre se esquiva
227
”. Segundo Girard,
Por um efeito estranho mas explicável da relação que os une, nem o modelo
nem o discípulo estão dispostos a reconhecer que eles se destinam a um
sentimento de rivalidade recíproca. Mesmo que tenha encorajado a imitação,
o modelo fica surpreso com a concorrência do qual é objeto. Pensa que o
discípulo o traiu; ele “invade seus domínios”. O discípulo, por sua vez,
sente-se censurado e humilhado. Ele imagina que seu modelo julga-o
indigno de participar da existência superior que ele próprio desfruta.
228
A negação do ser ao discípulo representa a violência cometida pelo modelo,
diante da qual o discípulo se convence de que o ser está atrelado à violência que nega ao outro
a possibilidade de ser. É diante disto que “a violência e desejo permanecem ligados. O sujeito
não pode sofrer a primeira sem que o segundo desperte
229
”, e desperte como um desejo
orientado para a própria violência, pois “o desejo liga-se à violência triunfante; ele se esforça
desesperadamente para dominar e encarnar esta violência irresistível
230
”. Portanto,
[...] quanto mais as rivalidades se radicalizam, tanto mais os rivais tendem a
esquecer os objetos que deflagraram o conflito, e estão mais fascinados uns
pelos outros. A rivalidade se purifica de tudo o que a ela é exterior, por
exemplo, do objeto que provocou a competição no início, para tornar-se uma
rivalidade, no fundo, de puro prestígio. Cada rival acaba sendo o modelo
obstáculo, ao mesmo tempo adorado e odiado, aquele que eu devo, a
qualquer preço, derrubar e absorver. O mimetismo essa capacidade
humana de imitação e aprendizado é mais forte do que nunca, mas, de
agora em diante, ele não se exerce mais a nível do objeto esquecido, mas
como a imitação da violência do parceiro, como puro antagonismo e desejo
de se apoderar desta força temida e admirada.
231
A partir deste “fascínio” que uns exercem sobre os outros, temos que a
possibilidade de saciar a carência de ser se associa ao prestígio dado pela posse do objeto em
questão, de forma que da condição de discípulo que venera seu modelo, o sujeito passa à
condição de rival, o que caracteriza sua contraditória condição de adorar e odiar seu modelo
227
GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 187.
228
Ibidem, p. 185.
229
Ibidem, p. 187.
230
Ibidem, p. 189.
231
GIRARD, René. Des choses cachées la fondation du monde. Conforme Citado em BARBÉ, Domingos. Uma
teologia do conflito, p. 14-15.
61
ao mesmo tempo, na medida em que este lhe sugere, contraditória e simultaneamente, imitá-lo
e não imitá-lo. Neste sentido, Girard afirma que
os desejos e os homens o feitos de tal maneira que eles enviam
perpetuamente uns aos outros sinais contraditórios, cada um ainda menos
consciente de estar preparando uma armadilha para o outro, pelo fato de
estar ele próprio, caindo em uma armadilha análoga. Longe de ser reservado
a certos casos patológicos, como pensam os psicólogos americanos que o
evidenciaram o double bind, o duplo imperativo contraditório, ou melhor, a
rede de imperativos contraditórios na qual os homens incessantemente
aprisionam-se mutuamente, deve ser considerada como um fenômeno
extremamente banal, talvez o mais banal de todos, constituindo o próprio
fundamento de todas as relações entre os homens.
232
Deste modo, “se o desejo segue a violência como sua sombra, é porque ela
significa o ser
233
e, portanto, a rivalidade mimética nada tem a ver com a disputa por um
simples objeto, mas com uma disputa pelo ser. No entanto, se este desejo persistisse até as
últimas conseqüências, a humanidade se auto-extinguiria, uma vez que “a guerra seria
perpétua no seio de todos os grupos humanos, de todos os sub-grupos, de todas as famílias”,
de modo que “a porta ficaria aberta ao famoso pesadelo de Thomas Hobbes, a luta de todos
contra todos
234
”. Tal é a ameaça instaurada pela crise mimética.
2.2 A CRISE MIMÉTICA E A SOLUÇÃO SACRIFICIAL
Só é possível ludibriar a violência fornecendo-lhe
uma válvula de escape, algo para devorar.
235
A frase supramencionada expressa a mensagem essencial que Girard identifica na
narrativa bíblica da história de Caim e Abel. Para ele, a diferença fundamental que o texto
apresenta entre os irmãos está no tipo de culto que cada um deles oferece a Deus. De acordo
com a narrativa, temos que
Um dos irmãos mata o outro, justamente o que não dispõe deste artifício
contra a violência, o sacrifício animal. Esta diferença entre o culto sacrificial
232
GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 186.
233
Ibidem, p 190.
234
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 24.
235
GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 15.
62
e o culto não-sacrificial é na verdade inseparável do julgamento de Deus em
favor de Abel. Dizer que Deus acolhe favoravelmente os sacrifícios de Abel,
o que não ocorre com as oferendas de Caim, é redizer em uma outra
linguagem, a do divino, que Caim mata seu irmão, ao passo que Abel não o
mata. [...] Os “ciúmes” que Caim sente em relação a seu irmão são
inseparáveis da privação da válvula de escape sacrificial que define o
personagem.
236
Portanto, a “válvula de escape” para a violência intestina
237
de Abel é o assassinato
de seu cordeiro primogênito como sacrifício oferecido a Deus. De acordo com Girard, na
medida em que o cordeiro representa um alvo substituto para o qual Abel direciona seu apetite
violento, o sacrifício constitui “um instrumento de prevenção na luta contra a violência
238
”,
pois “o objetivo da substituição sacrificial é enganar a violência”, subterfúgio do qual Caim
não lançara mão ao oferecer frutos como “sacrifício”.
Girard destaca a violência nos sacrifícios como um elemento inerente a sua
prática, qualquer que seja o povo, a cultura ou a época em questão. Mediante o desejo voltado
para a violência, encontra-se uma vítima alternativa capaz de substituir aquela que o incitou o
desejo. Esta substituição não ocorre por qualquer tipo de semelhança, mas apenas porque a
vítima alternativa é como uma presa vulnerável e ao alcance. Assim, Girard assinala que
convém perguntar se o sacrifício ritual não se baseia em uma substituição do
mesmo tipo, embora em sentido inverso. Podemos pensar, por exemplo, que
a imolação de vítimas animais desvia a violência de certos seres que se tenta
proteger, canalizando-as para outros, cuja morte pouco ou nada importa.
239
Tal substituição nada tem a ver com culpa, de modo que a vítima alternativa o
está sendo sacrificada no lugar de um outro culpado em potencial, na medida em que nela
“não nada a ser expiado
240
”, ela é apenas a vítima determinada como sacrificável, pois,
caso contrário, se instauraria um ciclo de violência generalizada que colocaria em risco a
existência da comunidade ao atingir todos os seus membros. Como vimos, a crise mimética é
uma crise de indiferenciação, que estoura quando o desaparecimento do objeto instaura o puro
antagonismo entre sujeito e modelo. Porém, na medida em que “o espetáculo da violência tem
algo de ‘contagioso’
241
”, Girard destaca o caráter cumulativo da crise mimética: “à medida
236
Idem.
237
Ibidem, p. 26.
238
Ibidem, p. 30.
239
Ibidem, p. 13.
240
Ibidem, p. 14.
241
Ibidem, p. 45.
63
que a mímesis se converte em antagonismo, a tendência é que ela se torne cumulativa,
passando a envolver vários membros de uma dada comunidade
242
”. Deste modo, “a função do
sacrifício é apaziguar as violências intestinas e impedir a explosão dos conflitos
243
”, é
proteger a coletividade do risco que colocaria em perigo sua existência, uma vez que ao
dirigir o desejo de violência ao próximo, este não pode ser saciado sem desencadear outros
conflitos:
Em um universo onde o menor conflito pode produzir desastres, como uma
pequena hemorragia em um hemofílico, o sacrifício faz convergir as
tendências agressivas para vítimas reais ou ideais, animadas ou inanimadas,
mas sempre não suscetíveis de serem vingadas, sempre uniformemente
neutras ou estéreis no plano da vingança.
244
Os seres sacrificáveis distinguem-se dos seres o-sacrificáveis, pelo fato de que
seu sacrifício não gera outras situações conflitantes, na medida em que entre a comunidade e a
vítima não há uma relação de defesa, pois a vítima sacrificial é aquela que, ao ser colocada em
perigo, não encontrará quem venha tomar seu partido. Portanto, “o sacrifício impede o
desenvolvimento dos germens da violência, auxiliando os homens no controle da
vingança
245
”, eliminando, assim, o perigo do desencadeamento de um ciclo infinito de
violência e de vingança. Girard afirma que o antagonismo entre os indivíduos vigora até o
momento em que a violência generalizada se volta, unanimemente, contra um único
antagonista – o bode expiatório: “essa última vítima se converte no inimigo comum da
comunidade, que então se reconcilia em virtude da canalização da violência contra a
vítima
246
”. Ao canalizar a violência generalizada sobre uma única vítima, todas as culpas a ela
são transferidas sendo que a sua eliminação é que põe um fim à crise instaurada pela
rivalidade mimética: “quando uma única vítima e ela é destruída, não se tem a vingança
como reação, porque todos hostilizavam e culpavam uma única tima. E, assim, alcança-se
um minuto de paz e silêncio
247
”. Desta forma, o que temos é o sacrifício da vítima em nome
da paz, ou seja, a prática contraditória de uma violência instauradora da paz:
242
GIRARD, René. Um longo argumento do principio ao fim, p. 88.
243
GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 26.
244
Ibidem, p. 30-31.
245
Idem
246
Idem.
247
Ibidem, p. 92.
64
O sacrifício tem aqui uma função real, e o problema da substituição coloca-
se no nível de toda a comunidade. A vítima não substitui tal ou qual
indivíduo particularmente ameaçado e não é oferecida a tal ou tal indivíduo
particularmente sanguinário. Ela simultaneamente substitui e é oferecida a
todos os membros da comunidade, por todos os membros da comunidade. É
a comunidade inteira que o sacrifício protege de sua própria violência, é a
comunidade inteira que se encontra assim direcionada para vítimas
exteriores. O sacrifício polariza sobre as vítimas os germes de desavença
espalhados por toda parte, dissipando-os ao propor-lhes uma saciação
parcial.
248
Portanto, a violência sacrificial representa um mecanismo capaz de por fim à
violência que beira a atingir toda a comunidade, de forma que tal mecanismo expiatório
sempre precede um cenário de crise, de desordem social e cultural. A ritualização do
mecanismo expiatório se torna a única possibilidade de manutenção da ordem, sendo esta,
para Girard, a origem real da experiência religiosa humana. É pelo rito que o homem controla
tudo o que lhe foge ao controle mediante a ordem social desequilibrada pelo ciclo de violência
desencadeado pelo mecanismo mimético, pois o ato ritual visa regular aquilo que foge a
qualquer regra; busca realmente retirar da violência fundadora uma espécie de técnica de
apaziguamento catártico”.
249
Em sua reflexão sobre o sacrifício enquanto prática ritual, Girard dialoga com as
idéias de alguns pensadores que apontam o sacrifício como origem do fenômeno religioso.
Para tais pensadores, a repetição da cerimônia do sacrifício teve como efeito secundário a
criação de uma personalidade a quem foi atribuída a condição de divindade e a quem, ao
longo do tempo, foram destinadas todas as práticas sacrificiais. Girard argumenta que a
utilização do sacrifício como explicação do fenômeno religioso faz com que não haja
qualquer questionamento acerca da origem do próprio sacrifício, tampouco sobre sua natureza
ou função, o que remete a questão:
Se os deuses só são engedrados ao termo de uma longa repetição dos
sacrifícios, como explicar esta própria repetição? Em que estariam pensando
os sacrificadores quando eles ainda não tinham deuses com que se
“comunicar“? Por quem e por que eles repetiam seus sacrifícios diante de
um céu completamente vazio?
250
248
Ibidem, p. 19.
249
Ibidem, p. 132.
250
Ibidem, p. 118.
65
Segundo Girard, identificar a repetição do sacrifício como origem da divindade
nada mais é que o resultado da propensão antiteísta da modernidade, que procura de toda
forma eliminar qualquer elemento que possa ser considerado divino, de modo que,
desconsiderando o sacrifício enquanto instituição presente nas mais diversas culturas, não
encontra em sua prática qualquer função que corresponda ao plano da realidade. Desta forma,
não se interrogar sobre a origem e a função do sacrifício, significa “afirmar que a linguagem
religiosa está destinada a permanecer letra morta, que ela sempre será um abracadabra
certamente bastante sistemático, mas completamente desprovido de significação
251
”.
O fato é que a prática sacrificial é dotada de uma certa unidade técnica, o que se
revela pela semelhança entre os diversos ritos sacrificiais presentes nas mais variadas culturas
e que se essencialmente na prática de um assassinato. Resgatando a lógica do pensamento
mítico, que sempre retoma algo que se passou em um momento tido como criador, Girard
conclui que “se o assassinato ocupa um lugar tão importante (no ritual) é preciso que ele tenha
uma lugar particularmente importante (no momento fundador)
252
". Assim, o sacrifício deve
remeter a um acontecimento decisivo que deixou uma impressão profunda nos homens, de
forma que “esta impressão perpetua-se por meio do religioso, e talvez de todas as formas
culturais
253
”. Girard salienta a enorme quantidade de comemorações rituais que giram em
torno de uma morte, nos leva a compreensão de que “o acontecimento original seria
normalmente um assassinato
254
”, isto é, uma violência em torno da qual se instaura a ordem
social.
Girard afirma que a ritualização deste assassinato fundador é a origem real da
experiência religiosa humana como meio de perpetuação deste ato violento que fora capaz de
estabelecer a ordem social. Esta violência fundadora cometida contra uma vítima expiatória,
apontada por todos como culpada pela desordem instaurada, coloca fim ao círculo de
violência que põe em risco a comunidade, dando início a um outro círculo que se consolida na
prática do rito sacrificial, pois “o rito é a repetição de um primeiro linchamento espontâneo
que trouxe a ordem de volta na comunidade
255
”. Assim, a religiosidade não é apenas uma
mera projeção da mente humana, mas garante aos seres humanos a sobrevivência, uma vez
que consolida o sacrifício como mecanismo capaz de reverter a crise de violência que levaria
251
Ibidem, p. 120.
252
Idem.
253
Ibidem, p. 121.
254
Idem.
255
Ibidem, p. 124.
66
a comunidade à destruição. É pelo rito que a comunidade reordena as situações o que lhe
fogem ao controle, de forma que
a presença do religioso na origem de todas as sociedades humanas é
indubitável e fundamental. [...] Afirmamos, portanto, que o religioso possui
como objeto o mecanismo da vítima expiatória; sua função é perpetuar ou
renovar os efeitos deste mecanismo, ou seja, manter a violência fora da
comunidade. [...] Se a violência unânime contra a vítima expiatória
realmente acaba com a crise, então é claro que ela deve se situar na origem
de um novo sistema sacrificial. Se somente a vítima expiatória pode
interromper o processo de destruição, ela se encontra na origem de qualquer
estruturação.
256
Desta forma, se a violência praticada contra a vítima expiatória é capaz de
interromper o processo de destruição gerado pela crise de violência generalizada, trata-se
também da origem de um novo processo de estruturação. Assim, o sacrifício da vítima ritual
possibilita a reprodução do mecanismo responsável pelo final feliz encontrado na crise
solucionada pela violência fundadora cometida contra a vítima expiatória. Tal é o processo de
metamorfose da violência, pois ao atrair para si toda a violência maléfica, a vítima ritual a
transforma, através de sua morte, em uma violência que traz paz a toda a comunidade, de
modo que “a metamorfose da violência recíproca em violência unilateral é explicitamente
figurada e revivida no rito
257
”, sendo que
A violência original é única e espontânea. Os sacrifícios rituais, pelo
contrário, são múltiplos: são repetidos interminavelmente. Tudo o que
escapa ao controle dos homens na violência fundadora o lugar e a hora da
imolação, a escolha da vítima é determinado pelos próprios homens nos
sacrifícios.
258
Portanto, por mais violentos que possam parecer os ritos sacrificiais, eles não
manifestam o caráter criminoso, macabro ou patológico do homem. É fato que a violência
persiste, mas trata-se de uma “violência menorque visa expulsar uma violência de alcance
incalculável, sendo que esta prática se orienta essencialmente à manutenção da paz e da
ordem na comunidade humana.
256
Ibidem, p. 121.
257
Ibidem, p. 127.
258
Ibidem, p. 132.
67
De acordo com Girard, “o sacrifício sempre foi definido como uma mediação
entre um sacrificador e uma ‘divindade’
259
”, de forma que o elemento religioso está inserido
em sua prática. Eis uma questão problemática para o autor diante da experiência da
modernidade, para a qual nenhuma divindade é dotada de qualquer realidade. Ao eliminar do
mundo a presença do divino, subestima-se o perigo da violência decorrente do ciclo de
vingança, descartando o religioso e com ele a lógica sacrificial em seu papel de regulador
social, ignorando o importante elemento antropológico nela presente: a violência latente no
homem em sociedade.
Girard ressalta que nas sociedades modernas, assim como em outras sociedades
onde a prática sacrificial não foi adotada, é o sistema judiciário que funciona como regulador
social destinado a solucionar as questões decorrentes da violência. Através de uma atuação
limitadora, como um curativo feito a fim de evitar que a violência se alastre, “o sistema
judiciário racionaliza a vingança, conseguindo dominá-la e limitá-la a seu bel-prazer
260
”. No
entanto, nas sociedades sacrificiais o trato com a violência se através da prevenção, de
forma que “o domínio do preventivo é primordialmente o domínio religioso
261
”. É fato que
este domínio religioso se faz a partir de um ato de violência presente na prática do sacrifício,
mas, de acordo com Girard, isto se à medida que “a violência e o sagrado são
inseparáveis
262
”, uma vez que a violência embutida na prática do sacrifício é cometida em
nome do sagrado. Ao religioso cabe não apenas impedir a instauração do ciclo de violência,
mas evitar que ela seja desencadeada, de forma que o rito se estabelece como elemento de
prevenção cuja prática pode repetir-se indefinidamente, pela “utilização ‘ardilosa‘ de certas
propriedades da violência, e em especial de sua capacidade de deslocar-se de um objeto a
outro
263
”. Por outro lado, de acordo com Girard, ainda que a sociedade moderna pretenda
eliminar a presença de toda e qualquer divindade, o sistema judiciário estabelecido como
regulador da violência é eficaz na medida em que é dotado de uma transcendência
reconhecida por todos e que garante sua legitimidade:
Assim como, em princípio, as vítimas são oferecidas à divindade e por ela
aceitas, o sistema judiciário também, refere-se a uma teologia que garante a
verdade de sua justiça. Mesmo que esta teologia desapareça, como
desapareceu em nosso mundo, a transcendência mantém-se intacta. Passam-
259
Ibidem, p. 17.
260
Ibidem, p. 35.
261
Ibidem, p. 32.
262
Idem.
263
Idem
68
se séculos antes que os homens percebam que não existe diferença entre seu
princípio de justiça e o princípio de vingança.
264
Tem-se que a atuação do sistema judiciário não significa a eliminação da
violência, mas apenas a substituição de uma violência ilegal, perigo a ser evitado, para uma
violência legal, a penalidade judiciária, de forma que os procedimentos utilizados pelos seres
humanos para moderar sua própria violência não se furtam à prática da violência em ambos os
casos. É a soberania da autoridade judiciária, como instância acima de todos, que assegura ao
sistema judiciário o monopólio da prática de uma vingança legal, que lhe permite impedir o
alastramento de uma violência generalizada, através da violência pertinente à estrutura do
castigo legal aplicado. Assim, a prática sacrificial não se distingue da prática do castigo legal,
na medida em que ambos tratam de impedir que estoure a crise mimética e que se instaure o
ciclo de vingança que colocará em risco a ordem social.
2.3 SATANÁS: O PRÍNCIPE DA ORDEM E DA DESORDEM DESTE MUNDO
Satanás procura fazer-se imitar [...]
Quer, acima de tudo, seduzir.
265
A figura de Satanás, o sedutor
266
tal como apresentado por Girard, é fundamental
para compreendermos a perspectiva girardiana do ciclo mimético como desencadeador da
violência humana, bem como de que maneira a violência sacrificial constitui a dinâmica
restauradora da paz e da ordem social. Ora, nada mais ligado ao campo do desejo do que a
sedução, sendo este seu propósito, na medida em que “Satanás se propõe como modelo para
os nossos desejos
267
”. Tomemos o relato evangélico das tentações sofridas por Jesus:
Então o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo.
Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, sentiu
fome. Então, o tentador se aproximou e disse a Jesus: “Se tu és Filho de
Deus, manda que essas pedras se tornem pães!” Mas Jesus respondeu: “A
Escritura diz: Não de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da
boca de Deus’”.
264
Ibidem, p. 37.
265
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 53.
266
Ibidem, p. 54.
267
Ibidem, p. 53.
69
Então o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o na parte mais alta do
Templo. E disse: “Se tu és Filho de Deus, joga-te para baixo! Porque a
Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão
nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. Jesus respondeu-lhe:
“A Escritura também diz: ‘Não tente o Senhor seu Deus’”.
O diabo tornou a levar Jesus, agora para um monte muito alto. Mostrou-lhe
todos os reinos do mundo e suas riquezas. E lhe disse: “Eu te darei tudo isso,
se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. Jesus lhe disse: “Vá
embora, Satanás, porque a Escritura diz: ‘Você adorará ao Senhor seu Deus
e somente a ele servirá’”. Então o diabo o deixou.
268
A expressão “se tu és Filho de Deus”, ao contrário da idéia de provocação a que
nos remete, nos parece conter um convite que revela o intuito sedutor de Satanás. Seu objetivo
não é provocar ou mesmo desdenhar a condição de Jesus, mas seduzi-lo a assumir sua
divindade, a manifestar seu poder ao transformar pedras em pão, e a assumir seu prestígio
diante do Deus que lhe coloca anjos à disposição. Considerando que não é da natureza
mimeticamente desejante do homem que advém os conflitos e rivalidades, mas do desejo
mimético que se traduz no desejo de apropriação daquilo que pertence ao outro e, no mais,
que a rivalidade instaurada se acirra de tal modo que o objeto desaparece e a disputa passa a
ser por puro prestígio, na medida em que o que se busca é a superioridade do ser, temos que
as tentações sofridas por Jesus nada mais são do que a tentativa de Satanás de seduzi-lo a
assumir sua “superioridade” diante dos outros homens, transformando-se assim em um
modelo passível de gerar rivalidade. Porém, o oferecimento claro e expresso dos objetos
capazes de lhe conferir tal superioridade diante dos outros seres humanos ocorre somente na
terceira tentação. Ainda que tenhamos citado anteriormente o relato contido no Evangelho de
Mateus, particularmente este trecho resgataremos do Evangelho de Lucas:
O diabo levou Jesus para o alto. Mostrou-lhe por um instante todos os reinos
do mundo. E lhe disse: “Eu te darei todo o poder e a riqueza desses reinos,
porque tudo isso foi entregue a mim, e posso dá-lo a quem eu quiser.
Portanto, se te ajoelhares diante de mim tudo isso será teu".
269
Nestes versículos temos Satanás se manifestando como senhor deste mundo,
como possuidor de todo o poder e a riqueza de todos os reinos. Ao incitar em Jesus o desejo
de imitá-lo, oferecendo-lhe tudo aquilo que a ele pertence, Satanás revela a sua divindade ao
pedir que Jesus se ajoelhe diante dele em um ato de adoração. O evangelista Lucas conclui
sua narrativa sobre as tentações dizendo: “Tendo esgotado todas as formas de tentação, o
268
BÍBLIA. Evangelho segundo Mateus. Cap 4, vers. 1-10.
269
BÍBLIA. Evangelho segundo Lucas. Cap. 4, vers. 5-7.
70
diabo se afastou de Jesus, para voltar no tempo oportuno
270
”. Se de alguma maneira podemos
captar um eixo em torno do qual possamos giram “todas as formas de tentação”, este nos
parece ser o objetivo de fazer de Jesus, o Filho de Deus, um modelo que longe de afastar os
homens de sua própria violência, a promova, ou seja, um modelo dotado da superioridade que
é capaz de incitar o desejo humano e de promover a rivalidade entre os seres humanos.
Satanás conhece a natureza humana, sabe de sua potencialidade não apenas desejante, mas
mimeticamente desejante, de forma que pretende inserir Jesus na dinâmica que governa o
mundo. Neste sentido, Girard afirma que
Deus e Satanás são os dois ‘arquimodelos’ cuja oposição corresponde [...]
[àquela que se dá] entre os modelos que nunca se tornam, para os seus
discípulos, obstáculos e rivais, pois nada desejam de forma ávida e
concorrencial, e os modelos cuja avidez se repercute imediatamente nos seus
imitadores, transformando-os de imediato em obstáculos diabólicos.
271
Desta forma, “também Satanás se propõe como modelo para nossos desejos
272
”,
mas “porque ele próprio deseja o que nos leva a desejar, o nosso modelo opõe-se ao nosso
desejo
273
”. É assim que surge o rival:
É a primeira das metamorfoses de Satanás: o sedutor do início depressa se
transforma num adversário rebarbativo, um mais sério obstáculo do que
todas as proibições ainda não transgredidas. O segredo desta lastimável
metamorfose é fácil de descobrir. O segundo Satanás é a conversão do
modelo mimético em obstáculo e em rival, é a gênese dos escândalos.
274
O termo escândalo é fundamental para compreender o significado da figura de
Satanás no pensamento de Girard. Para ele, é preciso ver [...] em todas as violências míticas
e bíblicas, acontecimentos reais cuja recorrência esta relacionada, em todas as culturas, com a
universalidade de um certo tipo de conflito entre os homens, as rivalidades miméticas, a que
Jesus chama escândalos
275
”. Tomemos uma citação bíblica acerca dos escândalos:
Quem escandalizar um desses pequeninos
276
que acreditam em mim, melhor
seria para ele pendurar uma pedra de moinho no pescoço, e ser jogado no
270
BÍBLIA. Evangelho segundo Lucas. Cap. 4, vers. 3-13.
271
Ibidem, p. 61.
272
Ibidem, p. 53.
273
Ibidem, p 54.
274
Idem.
275
Ibidem, p. 16.
276
Jesus se refere às crianças.
71
fundo do mar. Ai do mundo por causa dos escândalos! É inevitável que
aconteçam escândalos, mas ai do homem que causa escândalo!
277
Esta frase de Jesus expressa de modo evidente a tamanha gravidade dos
escândalos, embora não pareça explicitar seu significado. De acordo com Girard, “as palavras
que designam a rivalidade mimética e suas conseqüências são o substantivo skandalon e o
verbo skandalizein
278
”. Neste sentido, diz: “A palavra grega skandalizein vem de um verbo
que significa ‘coxear’. Com que é que se parece um coxo? A um indivíduo que segue como a
suas sombra um obstáculo invisível no qual não para de tropeçar
279
”. Desta forma, temos o
escândalo associado a uma situação de tropeço. Recorramos, então, a outro trecho da narrativa
evangélica:
E Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que devia ir a Jerusalém, e
sofrer muito da parte dos anciãos, dos chefes dos sacerdotes e dos doutores
da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar ao terceiro dia. Então Pedro levou
Jesus para um lado, e o repreendeu dizendo: “Deus não permita tal coisa,
Senhor! Que isso nunca te aconteça!”. Jesus, porém, voltou-se para Pedro, e
disse: “Fique longe de mim, Satanás! Você é uma pedra de tropeço para
mim, porque não pensas as coisas de Deus, mas as coisas dos homens!” (Mt
16, 21-23)
Embora a tradução empregada não utilize a palavra escândalo, a frase “você é
uma pedra de tropeço para mim” expressa seu significado. Girard afirma que ao chamar Pedro
de Satanás, pedindo que dele se afaste por ser para ele uma pedra de tropeço, Jesus estabelece
a identidade entre Satanás e os escândalos. Porém,
[...] escândalo’ significa não um desses obstáculos vulgares que se evitam
com facilidade após se ter esbarrado com eles uma primeira vez, mas um
obstáculo paradoxal quase impossível de se evitar: com efeito quanto mais o
escândalo nos causa repulsa, mais nos atrai.
280
Assim, Pedro representa o “semeador de escândalos, o Satanás que desvia Deus
dos homens, em proveito dos modelos de rivalidade
281
”. O que Pedro pretende é que Jesus, ao
invés de resignar-se, imite seu desejo e abandone sua missão, de forma que “se Jesus se
afastasse de seu Pai para seguir Pedro, ambos cairiam na rivalidade mimética e o destino do
277
BÍBLIA. Evangelho segundo Mateus. Cap. 18, vers. 6-7.
278
Ibidem, p. 33.
279
Ibidem, p. 34.
280
Idem.
281
Ibidem, p. 55.
72
Reino de Deus deixar-se-ia cair em querelas irrisórias
282
”. Considerando que os escândalos
compreendem as rivalidades miméticas e seu acirramento com o estouro da crise generalizada
de violência entre os indivíduos, para Girard longe de se tratar de uma figura irreal, fruto da
imaginação humana, “Satanás é o príncipe deste mundo
283
”:
Satanás semeia os escândalos e colhe a tempestade das crises miméticas.
Para ele, é a ocasião de mostrar aquilo de que é capaz. As grandes crises
conduzem ao verdadeiro mistério de Satanás, ao seu mais desconcertante
poder, que é o de expulsar a ele próprio e de restabelecer a ordem nas
comunidades humanas.
284
Girard aponta que o texto evangélico que relata o poder de Satanás de expulsar a
si próprio é a resposta de Jesus à acusação de que é em nome de Satanás que ele expulsa
Satanás:
Jesus foi para casa, e de novo se reuniu tanta gente que eles não podiam
comer nem sequer um pedaço de o. Quando souberam disso, os parentes
de Jesus foram segurá-lo, porque eles mesmos estavam dizendo que Jesus
estava ficando louco. Alguns doutores da Lei, que tinham ido de Jerusalém,
diziam: “Ele está possuído por Belzebu”; e também: “É pelo príncipe dos
demônios que ele expulsa os demônios”.
Então Jesus chamou as pessoas e falou com parábolas: “Como é que Satanás
expulsa Satanás? Se um reino se divide em grupos que lutam entre si, esse
reino acabará se destruindo; se uma família se divide em grupos que brigam
entre si, essa família não poderá durar. Portanto, se Satanás se levanta e se
divide em grupos que lutam entre si, ele não poderá sobreviver, mas também
será destruído. (Mc 3, 20-26)
Em sua argumentação, ao invés de expressar uma contradição na afirmação
daqueles que o acusam, o que Jesus pretende é evidenciar o poder de Satanás, sendo que
“longe de negar a realidade da auto-expulsão satânica, o texto afirma-a
285
”, revelando “o
paradoxo fundamental de Satanás: um príncipe da ordem ao mesmo tempo que da
desordem
286
”. É de sua capacidade de auto-expulsar-se que advém o poder de Satanás, de
modo que
o Satanás expulso é aquele que fomenta e exaspera as rivalidades miméticas
ao ponto de transformar a comunidade numa fornalha de escândalos. O
282
Idem.
283
Ibidem, p. 56.
284
Ibidem, p. 55.
285
Idem.
286
Ibidem, p. 56.
73
Satanás que expulsa é essa mesma fornalha quando atinge o ponto de
incandescência suficiente para desencadear o mecanismo vitimário. A fim de
impedir a destruição do seu reino, Satanás faz da sua própria desordem, no
seu paroxismo, um meio de se expulsar a si mesmo.
287
Assim, “é este extraordinário poder que faz de Satanás o príncipe deste
mundo
288
”, pois “se fosse puramente destruidor, havia muito tempo que Satanás teria perdido
o seu domínio
289
”. O mecanismo mimético gerador de vítimas representa o instrumento pelo
qual Satanás exerce seu poder sobre este mundo, através do qual “pode sempre voltar a pôr
ordem suficiente no mundo, de forma a prevenir a destruição total do seu bem
290
”, isto sem
deixar de lado “seu passatempo favorito, que é o de semear a desordem, a violência e a
infelicidade entre os homens
291
”. Neste sentido,
a crucificação é um daqueles momentos em que Satanás restaura e consolida
seu poder sobre os homens. A passagem do todos-contra-todos’ ao ‘todos-
contra-um mimético’ permite ao príncipe deste mundo prevenir a destruição
total do seu reino, ao acalmar a cólera da multidão e ao restituir a
tranqüilidade indispensável à sobrevivência de toda a comunidade
humana.
292
Na medida em que é o sacrifício da vítima expiatória que restaura a paz perdida
pela comunidade, Jesus representa o bode expiatório sobre o qual fora canalizada a violência,
aquele que “precisava ser acusado, responsabilizado pela ruptura da ordem social, pela
irrupção da violência
293
”. Girard destaca que “‘Satanás’ quer dizer o acusador, esse é o
significado mais antigo da palavra e repete o momento final do ciclo mimético com a escolha
do bode expiatório
294
”, de modo que “aquele ou aqueles que acusam são a voz de Satã
295
”, tal
como aqueles que acusam Jesus de agir em nome de Belzebu.
Girard afirma que “Satanás é o mimetismo que persuade a comunidade inteira,
unânime, de que a culpabilidade é real
296
”, é que ele que se encarrega de semear a violência
entre os seres humanos e de, ao mesmo tempo, fornecer à violência desencadeada uma
287
Idem
288
Idem
289
Idem
290
Ibidem, p 58.
291
Idem.
292
Idem.
293
GIRARD, René. Um longo argumento do principio ao fim, p. 202.
294
Ibidem, p. 235.
295
Ibidem, p. 202.
296
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 56.
74
válvula de escape apontando o “culpado” pela crise: o bode expiatório, a vítima sobre o qual
recairá a “boa violência” capaz de restaurar a paz.
2.4 O CRISTIANISMO E A REVELAÇÃO DO MECANISMO VITIMÁRIO
Os Evangelhos revelam tudo aquilo de os homens têm
necessidade para compreenderem as suas responsabilidades
em todas as violências da história humana
e em todas as falsas religiões.
297
Girard encontra na narrativa bíblica do “Julgamento de Salomão
298
”, um relato
fundamental para sua compreensão acerca do papel do sacrifício ao longo da história humana.
De acordo com este relato bíblico, duas prostitutas se apresentam ao Rei Salomão disputando
entre si um menino. Ambas tiveram filhos dentro de um curto intervalo de dias, sendo que
uma acusa a outra de roubar-lhe o filho para substituir o próprio filho que morrerra. Diante do
conflito, a ordem do Rei é clara: “Cortem o menino vivo em duas partes e dêem metade para
cada uma”. Diante de tal ordem, a mãe verdadeira do menino diz: “Meu senhor, a ela o
menino vivo. Não o mate”. A outra, no entanto, retruca: “Nem para mim, nem para você.
Dividam o menino pelo meio”. Considerando ambas as reações, o Rei decreta sua sentença:
“Entreguem o menino vivo à primeira mulher. Não o matem. Ela é sua mãe”. A atitude da
prostituta bondosa, que prefere abrir mão do menino a vê-lo morto, revela que ela é a
verdadeira mãe do menino. Girard prefere não dizer que ela se sacrifica no lugar dele, porque
ela não está escolhendo morrer no lugar do filho porque deseja a morte, mas se dispõe a
morrer para salvá-lo. Assim, a narrativa bíblica nos apresenta “a mulher má e o mau sacrifício
como metáfora da inabilidade do ser humano para evitar a violência
299
”. A disputa entre as
duas prostitutas pelo menino revela duas naturezas diferentes no que se refere ao sacrifício: “o
sacrifício como assassinato e o sacrifício como disposição para morrer a fim de não tomar
parte naquela primeira modalidade de sacrifício
300
”, de modo que estes “opõem-se
radicalmente um ao outro, sendo contudo inseparáveis
301
". Para Girard, esta modalidade de
bom sacrifício, enquanto ato de sacrificar a si próprio, representa o sacrifício de Cristo.
297
Ibidem, p. 160.
298
BÍBLIA. Primeiro Reis. Cap. 3, 16-28.
299
GIRARD, René. Um longo argumento do principio ao fim, p. 197.
300
Ibidem, p. 198.
301
Ibidem, p. 198.
75
A partir da perspectiva de que “a verdadeira história do homem é sua história
religiosa
302
”, Girard compreende as religiões arcaicas como responsáveis por um verdadeiro
processo de educação da humanidade, na medida em que o sacrifício da vítima ritual,
enquanto uma espécie de repetição do ato solucionador do perigo de eclosão da violência
contra todos, possibilita ao homem abandonar sua própria violência. No entanto, “Deus torna-
se vítima, a fim de libertar o homem da ilusão de um Deus violento
303
”, de forma que este é o
propósito da cruficicação, pois Cristo não é sacrificado o que caracteriza o assassinato –,
mas sacrifica-se na medida em que nele não encontram culpa alguma que justifique sua
condenação, de forma que “mediante seu sacrifício, torna impossível recorrer ao bode
expiatório
304
”. Desta forma, a crucificação de Jesus foge à regra do mecanismo expiatório
gerador de culpados, revelando que os culpados são, na verdade, vítimas:
[...] a crucificação de Cristo significa que o mecanismo vitimador não mais
funcionará, pois ninguém irá julgar culpado o Jesus retratado nos
Evangelhos. Assim, o mecanismo fica exposto, tanto em seu caráter ilusório,
mentiroso, quanto em seu papel fundamental para a cultura humana.
305
Ora, temos que a inocência de Cristo pesa até mesmo sobre quem o entregou:
“Então Judas, o traidor, ao ver que Jesus fora condenado, sentiu remorso e foi devolver as
trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e anciãos, dizendo: ‘Pequei, entregando à
morte sangue inocente’” (Lc 27, 3-4). Este é o diferencial do sacrifício da Paixão, pois, além
de não ter sido unanimemente acusado, sabe-se da inocência de Cristo, sendo que até mesmo
Pilatos, que ordenou sua crucificação, admite não encontrar nele culpa alguma que justifique
sua morte (cf. Lc 23, 13-16). Desde modo, a narrativa bíblica, ao tomar partido da vítima, não
nega a natureza mimética do homem, ainda que denuncie o desejo mimético como origem da
violência, mas recusa o resultado violento decorrente de um modo de interação que é peculiar
aos homens, ou seja, o mecanismo mimético que leva à rivalidade entre os homens e que
encerra uma lógica sacrificial. Assim, temos que o problema não é imitar, mas é a escolha dos
modelos a quem imitamos e a perspectiva de apropriação desta imitação. É neste sentido que
a Bíblia aponta Cristo como modelo a ser imitado, pois sua imitação não levará à rivalidade
mimética uma vez que não há objeto pelo qual competir:
302
Ibidem, p. 199.
303
Idem
304
Ibidem, p. 198.
305
Ibidem, p. 210.
76
A maioria das pessoas erroneamente supõe que, nos Evangelhos, a imitação
é uma só: imitação de Jesus, logo imitação que priva o indivíduo de seu
próprio desejo não imitativo. Mas não é verdade! priva do skándalon,
implicado na rivalidade mimética. Significa, pois, as escolha, de um modelo
que resguarda os indivíduos da rivalidade mimética, que a inibe, ao invés de
encorajá-la. O modelo que estimula a rivalidade mimética não é pior do que
nós, talvez seja até melhor, mas ele deseja do mesmo modo que desejamos,
egoística, avidamente. E imitamos o egoísmo dele, que é um mau modelo
para nós, e vice-versa.
306
Na medida em que Girard afirma que “os homens estão condenados a desejar
mimeticamente
307
”, o significado real da conversão é a descoberta do caráter mimético do
desejo humano e de suas conseqüências. Diante disto,
implica escolher Cristo ou alguém semelhante a Cristo como modelo de
nossos desejos. E implica ver a si mesmo como inserido nesse processo
desde o início, em lugar de assumir a seguinte posição: “Não quero imitar
Jesus, pois sou senhor de mim mesmo tenho meus próprios desejos”.
Converter-se é descobrir que, sem saber, sempre estivemos imitando os
modelos errados, modelos que nos levam ao círculo vicioso dos escândalos e
da frustração perpétua - ao círculo mimético, pois.
308
De acordo com Girard, “para que o mecanismo vitimário seja eficaz, [...] é preciso
que o impulso mimético contagioso e o todos-contra-um mimético escapem à observação dos
participantes
309
”. É com o intuito de revelar esta ignorância acerca do mecanismo expiatório
que Jesus questiona Saulo de Tarso: “Saulo, Saulo, por que você me persegue?
310
”. Para
Girard, é o reconhecimento de nossa condição de perseguidores que constitui o centro da
conversão cristã, de forma que “a antiga ordem sacrificial está desaparecendo por causa do
Cristianismo
311
”. Ao anunciar a defesa da vítima, afirmando sua inocência, o Cristianismo
causa o descrédito da prática sacrificial denunciando o ato violento nela presente. Desta
forma, se torna responsável pela destruição das religiões:
O Cristianismo não é apenas uma das religiões destruídas, é o agente dessa
destruição. A morte de Deus é, em todos os sentidos, um fenômeno cristão.
[...] O desaparecimento da religião é um fenômeno cristão por excelência,
pois. Quando falo de desaparecimento, refiro-me à religião como algo que
306
Ibidem, p. 86.
307
Ibidem, p. 112.
308
Ibidem, p. 214.
309
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 160.
310
BÍBLIA. Atos dos Apóstolos. Cap. 22, vers. 7.
311
GIRARD, René. Um longo argumento do princípio ao fim, p. 205.
77
associamos à ordem sacrificial. E a religião assim entendida continuará a
desaparecer
312
.
Temos que a morte de Deus, enquanto Deus violento, se na medida em que
este era apenas um personagem que servia para justificar os atos de violência perpetuados
através dos ritos sacrificiais e dedicados à divindade como oferenda a fim de assegurar a paz.
Sob a prática sacrificial estava oculta nada mais que a própria violência presente no interior
das relações humanas, impedindo, assim, que esta verdade viesse à tona.
Como vimos, Girard defende que o significado fundamental do Cristianismo é a
destruição das religiões. Isto porque “a crucificação de Cristo significa que o mecanismo
vitimador não mais funcionará
313
pois, mediante a revelação da inocência das vítimas, “o
mecanismo fica exposto, tanto em seu caráter ilusório e mentiroso, quanto em seu papel
fundamental para a cultura humana
314
”. O mecanismo expiatório gerador de vítimas
representa uma saída para assegurar a sobrevivência das comunidades humanas, sem a qual
não seria possível controlar as crises de violência generaliza decorrentes da inabilidade dos
seres humanos em evitá-las. Diante disto, diz que “[...] precisamos de bodes expiatórios”, de
modo que “Deus os permitiu porque necessitávamos deles
315
”. No entanto, Girard afirma que
Cristo desfaz essa situação: mediante seu sacrifício, torna impossível
recorrer ao bode expiatório. E assim posso usar o termo “sacrifício” para
nomear o ato de sacrificar a si mesmo com fez Cristo. Torna-se viável então
dizer que, a seu próprio modo imperfeito, o primitivo, o arcaico é profético
em relação a Cristo.
316
O sacrifício de Cristo é distinto daquele peculiar à ordem sacrificial, na medida
em que não recai sobre Jesus a unanimidade capaz de apontá-lo como culpado. Deste modo,
pode-se dizer que ele não é “assassinado”, mas que se entrega à morte para não tomar parte da
dinâmica sacrificial. Ora, considerando que o sacrifício representa a mediação entre o
sacrificador e uma divindade, de acordo com Girard, o sacrifício como assassinato representa
uma mediação entre a comunidade humana assolada pela crise de violência generalizada
que sobre ela se abate – e Satanás, o príncipe deste mundo. Desta forma, o mecanismo
expiatório representa uma engrenagem fundamental para a ordem satânica do mundo
312
Ibidem, p. 214.
313
GIRARD, René. Um longo argumento do princípio ao fim, p. 210.
314
Idem.
315
GIRARD, René. Um longo argumento do princípio ao fim, p. 197.
316
Ibidem, 197-198
78
instaurada pela própria violência humana. No entanto, diante de sua evidente inocência, Cristo
entrega a si próprio em sacrifício, de forma que “a força reveladora da Cruz dissipa as trevas
sem as quais o príncipe deste mundo não pode passar para manter o poder
317
”. Aquilo que as
trevas de Satanás ocultam é a inocência da vítima:
O Diabo é forçosamente mentiroso, pois, se os perseguidores soubessem a
verdade, a saber a inocência da vítima, não poderiam libertar-se da sua
violência às custas desta. O mecanismo vitimário só funciona devido à
ignorância daqueles que o fazem funcionar. Acreditam estar na verdade,
quando na realidade estão na mentira.
318
Se, por um lado, a divindade de Satanás se mediante a força pacificadora do
mecanismo expiatório, por outro, “a divinização de Cristo não se baseia na escamoteação dos
impulsos miméticos que produz o sagrado mítico, mas, pelo contrário, na plena e total
revelação da verdade que esclarece a mitologia
319
”, de modo que “às divindades míticas opõe-
se um Deus que, em vez de surgir do mal-entendido a respeito da vítima, assume,
voluntariamente, o papel da vítima única que torna possível, pela primeira vez, a revelação
plenária de um mecanismo vitimário
320
”. Portanto,
A divindade de Jesus obriga-nos a distinguir dois tipos de transcendência
semelhantes no seu exterior, mas radicalmente opostos: uma enganadora,
mentirosa, obscurantista, a da realização não consciente do mecanismo
vitimário na mitologia; a outra, ao contrário, verídica, luminosa, que destrói
as ilusões da primeira ao revelar o envenenamento das comunidades pelo
mimetismo violento e pelo remédio suscitado pelo próprio mal, a que
começa no Antigo Testamento e se esvanece no Novo.
321
Girard assinala que “os homens não conseguem enfrentar a nudez insensata de sua
própria violência
322
e, por isso, tendem a “colocar sua violência fora deles mesmos,
transformando-a em um deus, um destino, ou um instinto, pelo qual eles não são responsáveis
e que os governa de fora
323
”. É nisto que se sustenta a divindade de Satanás, ou seja, como
legitimação da violência intestina que os seres humanos não podem suportar. No entanto, é o
próprio Satanás que se encarrega de conduzir as comunidades humanas à violência e de
317
GIRARD, René. Eu via satanás cair do céu como um raio, p. 226.
318
Ibidem, p. 63..
319
Ibidem, p. 165.
320
Idem
321
Ibidem, p. 166.
322
GIRARD René. A violência e o sagrado, p. 108.
323
Ibidem, p. 183.
79
devolver-lhes a paz perdida, o que faz dele o príncipe da ordem e da desordem deste mundo.
No entanto, ainda que a crucificação represente, para Satanás, um momento oportuno para a
manifestação de seu poder, pois “quando desencadeou o mecanismo vitimário contra Jesus,
Satanás julgava proteger o seu reino
324
”, entregando-se ao sacrifício Jesus consegue
desarticular o mecanismo vitimário e ludibriar o artifício de Satanás:
A idéia de Satanás enganado pela Cruz não é, pois, de modo algum mágica e
não ofende, de maneira alguma, a dignidade de Deus. A astúcia de que
Satanás é vítima não comporta nem a mínima violência, nem a mínima
dissimulação por parte de Deus. Não é verdadeiramente uma astúcia, é a
impotência do príncipe deste mundo em compreender o amor divino. [...]
É Satanás que transforma o seu próprio mecanismo numa armadilha na qual
cai. Deus não se conduz de uma maneira desleal em relação a Satanás, mas
deixa-se crucificar para a salvação dos homens, o que Satanás o pode
conceber de modo algum.
325
A proposição de que Satanás é incapaz de compreender o ato de Jesus de se
entregar à cruz para salvar os homens como expressão do amor divino, nos remete ao fato de
que é a dimensão do amor que torna verdadeira a divindade de Jesus, distinguindo-a da falsa
divindade de Satanás cuja expressão é a violência. Porém, embora aponte este ato do amor
divino como responsável pelo desmascaramento do mecanismo satânico, Girard alerta que
“não se deve concluir [...] que basta detectar o mimetismo para se ser liberto dele
326
”. Ora, se
por um lado Girard afirma que converter-se é descobrir que, sem saber, sempre estivemos
imitando os modelos errados, modelos que nos levam ao círculo vicioso dos escândalos”, isto
é, mais que reconhecer o mecanismo mimético é reconhecer-se inserido nele, por outro diz
que este reconhecimento não é suficiente para libertar-nos do ciclo mimético gerador de
rivalidade e violência. Fica a questão acerca do que pode, então, nos libertar do mimetismo
violento. Para elucidar esta questão, Girard toma como exemplo o pequeno grupo de
discípulos que se reúne no terceiro dia da Paixão em redor do Cristo ressuscitado:
Algo se produziu in extremis, que nunca se verifica nos mitos. Aparece uma
minoria contestatória, firmemente erguida contra a unanimidade
perseguidora [...].
A minoria contestatária é tão minúscula, tão desprovida de prestígio e,
sobretudo, tão tardia, que em nada afeta o processo vitimário, mas o seu
heroísmo vai permitir-lhe não apenas manter-se, mas também redigir ou
mandar redigir os relatos, difundidos mais tarde pelo mundo inteiro, que
324
GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 188.
325
Ibidem, p. 190.
326
Ibidem, p. 189.
80
distribuirão por todo o lado o saber subversivo dos bodes expiatórios
injustamente condenados.
O pequeno grupo de fiéis estava já mais do que semi-apanhado pelo contágio
violento. Onde vai buscar, subitamente, a força de se opor à multidão e às
autoridades de Jerusalém? Como explicar esta reviravolta contrária a tudo o
que aprendemos sobre a força irresistível dos impulsos miméticos?
A todas as perguntas feitas neste ensaio sempre consegui encontrar aqui
respostas plausíveis dentro de um contexto puramente humano,
antropológico, mas desta vez, a coisa é clara, é impossível.
327
Destacar a afirmação de Girard de que lhe fora impossível responder à pergunta
acerca de que como é possível vencer o mimetismo violento no âmbito antropológico nos
pareceu pertinente na medida em que nos remete à intuição que permeia este estudo.
Consideremos, então a resposta encontrada por Girard:
Para quebrar a unanimidade mimética tem de se postular uma força superior
ao contágio violento e se aprendemos apenas uma coisa, neste ensaio, é que
não existe nenhuma na Terra. [...]
A Ressurreição não é somente milagre, prodígio, transgressão das leis
naturais; é o sinal espetacular da entrada em cena, no mundo, de uma força
superior aos impulsos miméticos. [...]
Que força é esta que triunfa do mimetismo violento? Os Evangelhos
respondem que é o Espírito de Deus, a terceira pessoa da Trindade cristã, o
Espírito Santo. É ele, com toda a evidência, que se encarrega de tudo. Por
exemplo, seria falso dizer dos discípulos que ‘voltaram a recuperar’: é o
Espírito Santo de Deus que os recupera
.
328
Para sublinhar o papel do Espírito Santo na superação do mimetismo violento,
Girard menciona o apóstolo Pedro e os personagens evangélicos conhecidos como os
“discípulos de Emaús”
329
. Sobre Pedro diz:
Exatamente antes de renegar pela terceira vez, Pedro ouve cantar um galo e
lembra-se da pregação de Jesus
330
. então descobre o fenômeno de
multidão em que participara. Julgava-se orgulhosamente imunizado contra
qualquer infidelidade a Jesus. Ao longo dos Evangelhos sinóticos, Pedro é o
joguete ignorante de escândalos que o manipulam sem que o saiba. Ao
dirigir-se à multidão da Paixão alguns dias mais tarde, insistirá na
ignorância dos seres possuídos pelo mimetismo violento. Fala com
conhecimento de causa.
331
327
Ibidem, p. 232-233.
328
GIRARD, René. Eu via satanás cair do céu como um raio, p. 233-234.
329
BÍBLIA. Evangelho segundo Lucas, Cap. 24, vers. 13-35.
330
“Pedro, eu lhe digo que hoje, antes que o galo cante, três vezes você negará que me conhece”. (BÍBLIA.
Evangelho segundo Lucas. Cap. 22, vers. 34).
331
GIRARD, René. Eu via satanás cair do céu como um raio, p. 235.
81
no que se refere aos “discípulos de Emaús”, temos que é diante do gesto de
Jesus de partilhar o pão que seus olhos se abrem e os discípulos reconhecem o mestre, de
modo que “o que os dois convertidos se tornam capazes de ver, graças às duas conversões, é o
gregarismo violento do qual não se sabiam possuídos nem um nem outro, o mimetismo que
nos faz participar todos na crucificação
332
”. A descoberta pela qual passaram tanto Pedro
quanto os discípulos de Emaús e a mesma pela qual passou Paulo quando fora questionado
por Jesus: “Saulo, Saulo, por que me persegues?
333
”. É à descoberta do mimetismo violento
gerador de vítimas que o Espírito Santo conduz. Ele é o paráclito, o advogado que vem em
defesa das vítimas.
Diante disto, temos que Girard, ao afirmar que a “força superior” capaz de livrar
os seres humanos do mimetismo violento é o Espírito Santo, nos remete ao fato de que se trata
de uma força de cunho espiritual. É este apontamento que nos remete à intuição chave deste
estudo, ou seja, de que a espiritualidade constitui uma saída para o problema antropológico
identificado no pensamento de Paulo Freire, isto é, de que um desafio que se coloca à
educação para a liberdade é a questão do opressor “hospedado” no oprimido. Deste modo, a
este entrelaçamento entre o pensamento de René Girard e Paulo Freire que nos dedicaremos
no capítulo que se segue.
332
Idem
333
BÍBLIA. Atos dos Apóstolos. Cap. 22, vers. 7.
82
3 ESPIRITUALIDADE E EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
A partir das reflexões elaboradas em torno do pensamento de Paulo Freire e de
René Girard, neste capítulo pretendemos estabelecer as aproximações entre suas perspectivas
antropológicas, a partir da compreensão de que o eixo comum que perpassa as perspectivas
antropológicas de ambos é a questão da liberdade como realização da humanidade humana.
No curso destas aproximações pretendemos identificar a dimensão da espiritualidade como
uma perspectiva propícia para a humanização, como um caminho necessário na direção da
libertação e da realização da vocação humana de ser mais tal como proposto pela pedagogia
libertadora de Freire.
3.1 PAULO FREIRE E RENÉ GIRARD EM DIÁLOGO
Iniciemos retomando os principais pontos dos pensamentos de Paulo Freire e de
René Girard. Como vimos, para Freire é possível pensar em educação fazendo-o a partir
daquilo que constitui a experiência fundamental dos seres humanos, ou seja, a consciência de
seu inacabamento. Esta consciência constitui a raiz mesma da prática educativa compreendida
como processo que permite ao ser humano seguir em sua busca permanente de si mesmo, isto
é, seguir na direção de sua vocação de humanizar-se, como vocação ontológica e histórica de
ser mais. No mais, para Freire o ser humano é essencialmente um ser de relações, que
integrado em seu tempo e espaço, não apenas capta a realidade que o cerca, mas cria uma
pluralidade de respostas aos desafios com os quais se depara, o que lhe permite dinamizar o
mundo e humanizar a realidade.
Assim, para Freire, a práxis enquanto ação e reflexão dos seres humanos sobre o
mundo no sentido de transformá-lo, representa o modo humano de existir, aquilo que permite
que o ser humano seja e não apenas esteja no mundo, porquanto seres do quefazer, situados e
datados em seu contexto. Desta forma, a humanização representa também a vocação humana
de ser sujeito a partir de sua capacidade de intervir no mundo, de interagir e transformar a
realidade que o cerca, ou seja, a partir de sua práxis. Porém, na contramão da vocação
humana, Freire identifica a desumanização decorrente de uma sociedade opressora que
rebaixa os seres humanos à condição de objetos. É mediante a renúncia de sua práxis, que os
83
seres humanos assumem o comportamento típico dos animais e se fazem meros espectadores
diante da realidade. Freire destaca os diversos mitos através dos quais se sustenta a estrutura
opressora, sendo que o eixo central que os perpassa é o intuito de fundamentar uma distinção
“ontológica” entre opressores e oprimidos. É a superioridade “ontológica” dos opressores que
lhes assegura o “direito” de prescrever aos oprimidos as tarefas de seu tempo.
Ao definir a desumanização como possibilidade histórica, não como vocação
humana ou destino dado, Freire abre o caminho para a possibilidade da transformação da
realidade. Porém, embora considere que tal tarefa compete aos oprimidos, destaca que, ao
assumirem a luta pelo fim da dominação, estes tendem a buscar tão e somente uma inversão
da ordem opressora onde se tornariam opressores dos opressores, o que significaria a
manutenção da opressão e da desumanização. Isto se na medida em que para os oprimidos
ser humano significa ser opressor, pois, imersos na realidade opressora, assumem o opressor
como seu testemunho de humanidade. Freire salienta que a condição fundamental dos
oprimidos é sua contraditória dualidade existencial, pois “hospedando” em si a figura do
opressor, são eles e ao mesmo tempo o opressor neles hospedado, na direção do qual movem
tanto seu desejo quanto sua perspectiva de realizarem-se como seres humanos. A contraditória
condição dos oprimidos de serem “hospedeiros” do opressor tal como apontado por Freire,
constitui a conexão a ser estabelecida com o pensamento de René Girard.
De acordo com Girard, o ser humano se constitui como tal na medida em que
ultrapassa o instinto puramente animal e faz-se um ser desejante. No entanto, uma vez que o
ser humano deseja intensamente, mas não sabe o que desejar, o desejo constitutivo do seres
humanos é um desejo que busca um modelo ao qual imitar. Deste modo, o desejo mimético é
o desejo característico do ser humano, aspecto que constitui o eixo central das relações que os
seres humanos estabelecem entre si. Girard destaca que o ser humano deseja incessantemente,
porém ele não sabe exatamente o que desejar uma vez que aquilo que ele deseja é o ser. Deste
modo, o sujeito, ao imitar o desejo de seu modelo, o faz porque nele vê a superioridade de ser
que deseja. No entanto, a superioridade de ser que ele identifica no modelo lhe parece
associada à posse de um determinado objeto. Desta forma, atrela o ser ao ter, de modo que seu
desejo se faz um desejo de apropriação daquilo que pertence ao modelo.
Portanto, a rivalidade mimética não se origina mediante a convergência de desejos
voltados para um mesmo objeto, mas porque a posse do objeto está relacionada à
superioridade do ser. Assim, a violência se na medida em que a rivalidade mimética deixa
de ser mediada pelo objeto em questão e se converte em uma disputa tão e somente por
prestígio. Neste sentido, Girard aponta o double bind o duplo imperativo contraditório
84
como fundamento das relações entre os seres humanos, constituindo o pano de fundo da
rivalidade mimética, na medida em que o sujeito se vê entre “vozes” que lhe dizem “imite-me
se quiser ser” e ao mesmo tempo “não me imite porque eu não abrirei mão da minha
superioridade”. Disto procede não apenas a violência resultante da rivalidade entre modelo e
sujeito, mas que o desejo humano se volte para a violência mesma como signo de
superioridade.
Esta dinâmica pela qual o desejo do discípulo se torna um desejo pela violência
mesma corresponde à tendência que Freire identifica nos oprimidos de, na luta pela sua
humanização, realizarem apenas a inversão da ordem opressora. De acordo com a perspectiva
do desejo mimético, temos que os oprimidos “hospedam” em si o opressor uma vez que este é
o modelo a quem imita os desejos. Para os oprimidos o opressor é seu modelo de humanidade,
sendo que os opressores lhe parecem dotados do ser que almejam em sua incompletude, em
sua carência de ser. Porém, é pela opressão que os opressores sustentam sua superioridade de
ser, de modo que, por internalizarem em si o opressor, o que os oprimidos desejam é oprimir.
Cabe ressaltar que, para Freire, a contraditória condição dos oprimidos de serem
“hospedeiros” do opressor é o resultado de sua imersão na realidade opressora. No entanto,
considerando a teoria do desejo mimético de Girard, temos que tal condição não é
simplesmente fruto da dinâmica de uma sociedade opressora, mas de uma situação que remete
à condição existencial do próprio ser humano, na medida em que é por natureza que ele deseja
mimeticamente. Ao que nos parece, Freire se aproxima da compreensão de Girard ao afirmar
que os oprimidos sofrem uma dualidade que se instaura na interioridade de seu ser,
designando-a como uma dualidade existencial que os leva a uma “luta interior” nascida do
dilema entre serem eles mesmos ou serem duplos, entre expulsarem ou não o opressor de
dentro de si.
Neste sentido, Freire aponta a conscientização como uma das tarefas fundamentais
da educação, uma vez que a ela compete o papel de desvelar os mecanismos da sociedade
opressora. No entanto, ressalta que a opressão exerce tamanha força sobre os seres humanos
que seu resultado é o medo da liberdade, o que leva os oprimidos a verem a conscientização
não como uma via de libertação, mas como um perigo a ser evitado. Deste modo, preferem
refugiar-se em sua segurança vital a lançar-se à liberdade arriscada. A partir destas
considerações, partiremos para a tentativa de encontrar uma “saída” que torne possível
transpor esta contraditória condição em que se encontram os oprimidos.
85
3.2 O PERIGO DA CONSCIENTIZAÇÃO: A AMEAÇA DE MORRER PARA NASCER
DE NOVO
A conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade,
que a ‘desvela’ para conhecê-la e para conhecer os mitos que
enganam e ajudam a manter a realidade da estrutura dominante
334
.
A despeito da definição supramencionada que podemos considerar de certa forma
simples acerca da conscientização, Freire lança mão de uma metáfora um tanto forte para
evidenciar o significado do ato de conscientizar, ao afirmar que “a conscientização é um parto
doloroso para o qual não existe o lenitivo dos exercícios que diminuem a dor nas mulheres
335
”. Ora, diante disto, parece-nos “natural” compreender que a conscientização representa um
perigo na medida em que a ela venha associado um aspecto doloroso. No entanto, Freire vai
mais fundo em sua compreensão, salientando que a conscientização implica, também, um
momento perturbador, tremendamente perturbador, no ser que começa a se conscientizar,
momento em que o ser começa a renascer. Porque a conscientização exige morrer para nascer
de novo
336
”. Diante disto, temos que o medo da liberdade surge mediante uma ameaça que se
coloca à existência mesma dos oprimidos, de modo que estes preferem refugiar-se em sua
segurança literalmente vital, porquanto estão diante de um perigo de morte.
Na tentativa de compreender o significado do medo da liberdade apontado por
Freire, recorremos ao pensamento de Paul Tillich onde identificamos uma perspectiva acerca
do medo que nos pareceu muito fecunda na compreensão desta questão. Como vimos,
segundo Tillich, o medo tem uma função biológica que é a de provocar medidas de proteção
ao ser diante da ameaça do não-ser, de modo que tal ameaça se em três direções: como
ameaça à auto-afirmação ôntica, à auto-afirmação espiritual e à auto-afirmação moral do ser
humano. As aproximações entre as ameaças do ser ao não-ser, expostas por Tillich, e o medo
da liberdade a que se refere Freire, nos levam à compreensão de que existe uma estreita
relação entre a afirmação do ser e a afirmação de sua liberdade, pois assumir a tarefa de
realizar a si mesmo diante de sua própria contingência sua auto-afirmação ôntica –, assumir
sua capacidade de significar o mundo que o cerca, isto é, de perguntar e responder por si
334
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo
Freire, p. 17.
335
TORRES, Carlos Alberto (org). A práxis educativa de Paulo Freire, p. 103.
336
FREIRE, Paulo. Conscientizar para libertar (noções sobre a palavra conscientização). In TORRES, Carlos
Alberto (org). Consciência e história: A práxis educativa de Paulo Freire, p. 103.
86
próprio sua auto-afirmação espiritual –, e assumir sua responsabilidade diante de si próprio
pelo que fizer de si mesmo sua auto-afirmação moral –, representam três dimensões da
afirmação do ser humano que são possíveis apenas como atos de liberdade, considerando-se,
principalmente, que o ser humano pode abdicar de realizar a si próprio e seguir na direção
contrária de sua auto-afirmação.
Considerando esta tripla face do medo da liberdade que identificamos a partir das
proposições de Tillich, e tendo em mente a proposição de que a conscientização exige àquele
que se conscientiza morrer para nascer de novo, tomemos a seguinte afirmação de Freire
onde ele se refere à luta interior sofrida pelos oprimidos:
Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre
expulsarem ou não ao opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou
se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre
serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam,
na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz,
castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o
mundo.
337
Ora, a luta mencionada por Freire é a luta que os oprimidos devem travar para
superar sua contradição de serem eles e ao mesmo tempo o opressor neles “hospedado”. Tal
proposição nos remete diretamente à auto-afirmação espiritual do ser humano exposta por
Tillich, cabendo ressaltar que, segundo ele, a ameaça que se coloca à auto-afirmação
espiritual do ser humano, tal como a ameaça que se coloca à sua auto-afirmação ôntica,
representa uma ameaça que se impõe à existência mesma do ser humano enquanto humano,
na medida em que seu ser é essencialmente espiritual, isto é, na medida em que o ser humano
se realiza mediante sua capacidade de participar e de significar o mundo que o cerca.
Desta forma, a conscientização constitui um processo que incide diretamente
sobre a dimensão espiritual da existência humana tal como apresentada por Tillich. Diante
disto, ao afirmar que a conscientização exige morrer para nascer de novo, Freire nos remete
ao fato de que, mediante o desvelamento da realidade através do qual os oprimidos se
deparam com a estrutura de dominação, a conscientização os coloca diante da necessidade de
expulsarem o opressor de dentro de si mesmos, isto é, de morrerem como “hospedeiros” do
opressor, condição necessária para sua libertação, a fim de nascer de novo. É neste sentido
que Freire, recorrendo à mesma metáfora com a qual se referira à conscientização, afirma que
337
Idem.
87
A libertação [...] é um parto, e um parto doloroso. O homem que nasce deste
parto é um homem novo que é viável na e pela superação da contradição
opressores-oprimidos, que é a libertação de todos.
A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo
não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se
338
.
No entanto, o nascimento deste “homem novo”, possível tão somente pela
superação da contradição opressores-oprimidos, encontra como principal entrave o medo da
liberdade. A partir da perspectiva de René Girard, temos que a questão fundamental que se
coloca aos oprimidos, diante de sua condição de “hospedeiros” do opressor, é imitar ou não
imitar os opressores, ou seja, tomar ou não como modelo para seus desejos a figura do
opressor, o que nos remete ao fato de que a natureza mimética do desejo humano representa,
em última instancia, um espaço de realização da liberdade humana.
3.3 O DESEJO MIMÉTICO E O MEDO DA LIBERDADE
[...] só o desejo mimético pode ser livre,
ser de fato desejo, pois tem de escolher um modelo
339
.
Cabe-nos resgatar esta afirmação de Girard uma vez que ela nos remete ao caráter
fundamental da questão da liberdade em sua teoria do desejo mimético. Embora o identifique
como a principal fonte para a violência existente nas comunidades humanas, para Girard o
desejo mimético nem sempre é conflituoso, mas isto se na medida em que se converte em
um desejo de apropriação que leva o sujeito a querer tomar para si aquilo que pertence ao seu
modelo. Apesar disto, considerando que é por natureza que o ser humano é um ser
mimeticamente desejante, pensar em suprimir o desejo mimético como solução para os
conflitos humanos seria algo impossível, de modo que Girard sustenta que o desejo mimético
não é mau e, ao contrário disto, afirma que “sem desejo mimético não haveria liberdade nem
humanidade
340
”, pois este faz-nos escapar à animalidade. É em nós responsável pelo melhor
e pelo pior, pelo que nos faz descer abaixo do animal, assim como pelo que nos eleva acima
338
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimidos, p. 38
339
GIRARD, René. Um longo argumento do princípio ao fim, p. 85
340
GIRARD, René. Eu via satanás cair do céu como um raio, p. 32.
88
dele
341
”, de forma que “as nossas intermináveis discórdias são a contrapartida da nossa
liberdade
342
”. Ora, esta afirmação de Girard de que o desejo mimético é responsável pelo que
nos faz descer abaixo do animal bem como pelo que nos eleva acima dele, ao ser lida sob a
perspectiva de Freire, remete-nos ao fato de que o desejo mimético é responsável tanto pela
desumanização quanto pela humanização do ser humano. No entanto, da proposição de que
sem o desejo mimético não haveria liberdade nem humanidade, compreendemos que tanto
humanização quanto desumanização, ambas possibilidades históricas tal como sugere Freire,
representam nada mais que o resultado do exercício da liberdade humana.
Uma vez que, ao se traduzir em um desejo de apropriação do que pertence ao
outro, o desejo mimético leva os homens não apenas à violência, mas ao desejo pela
violência, segundo Girard este desejo voltado para a violência pode ser ludibriado ao ser
direcionado para uma válvula de escape, mecanismo que ele identifica na prática sacrificial
ritualizada pelas religiões, como ato a partir do qual a violência intestina dos seres humanos
se volta para uma vitima sacrificial, imolada com intuito de prevenir as comunidades humanas
da eclosão da violência. No entanto, a ritualização deste mecanismo é possível mediante a
prática de uma violência “primeira”, isto é, aquela que recai sobre o bode expiatório
designado como culpado pela violência generalizada que atinge a comunidade. Deste modo,
mediante a unanimidade que permite canalizar sua violência sobre uma única vítima, a
comunidade se livra da ameaça da destruição, pois não perigo de que se desencadeie
qualquer ciclo de vingança em defesa da vítima. O sacrifício do bode expiatório representa o
ato de violência pelo qual a comunidade pode restituir sua paz, perdida devido à crise de
rivalidade mimética nela instaurada, de forma que o bode expiatório, inicialmente considerado
culpado pela crise de violência espalhada pela comunidade, ao ser assassinado restitui a paz e
devolve a ordem à comunidade. É mediante o caráter benéfico da violência ao qual fora
submetido que o bode expiatório é divinizado e passa a significar a origem da presença do
religioso na comunidade, de modo que é em torno da divindade, isto é, do bode divinizado,
que se pautam e sustentam suas práticas rituais como atos de repetição da violência fundadora
que representam a mediação entre a comunidade e a divindade.
Deste modo, Girard argumenta que a novidade trazida pelo Cristianismo é a
ruptura com a lógica do mecanismo expiatório presente na origem das religiões. Isto porque a
figura de Jesus Cristo não possibilita que se instaure a unanimidade que legitima a culpa do
341
ibidem, p. 33.
342
idem.
89
bode expiatório, de modo que não como ocultar sua inocência, ficando evidente que Jesus
é uma vítima deste mecanismo. Neste sentido, a crucificação representa um momento de
restauração da paz e da ordem à comunidade, cuja culpa pela desordem pretende-se atribuir a
Cristo. Porém, diante da evidência de sua inocência, Jesus desmascara o mecanismo
expiatório em seu caráter gerador de vítimas, de modo que ele não é sacrificado, porquanto
não é dotado de qualquer culpa, mas sacrifica-se com o intuito de revelar que os “culpados”
são na verdade inocentes. Neste sentido, Girard sustenta que o Cristianismo não é apenas
responsável, mas é o agente da destruição das religiões, na medida em que desmascara o
mecanismo expiatório gerador de vítimas e a violência da ordem sacrificial em que se
sustentam. Considerando que tal mecanismo se origina a partir da instauração da rivalidade
mimética decorrente do desejo mimético, aquilo que o Cristianismo pretende revelar não é o
caráter violento do desejo humano, mas o caráter violento do desejo mimético transmutado
em desejo de apropriação, porquanto esta é a fonte do mimetismo violento.
No entanto, Girard considera que o caráter conflituoso do desejo mimético
evidenciado pelo Cristianismo é ocultado pelo mundo moderno que, estritamente
individualizado, cria a ilusão de que existe o “meu desejo” como desejo único, inigualável,
fixado nos limites do indivíduo uma vez que “cada um se julga mais original que o outro
343
”,
o que priva o ser humano de sua liberdade de escolher o modelo ao qual imitar. Retomando a
perspectiva da contradição opressores-oprimidos apontada por Freire, temos que o
conhecimento desta realidade existencial é prejudicado pela imersão do oprimido na estrutura
da dominação. É por sua imersão, reforçada pelos mitos engendrados pela estrutura opressora,
que os oprimidos não apreendem sua condição de “hospedeiros” do opressor, ou seja, de
imitadores do desejo do opressor.
Uma vez que o conflito entre os seres humanos explode mediante o desejo
mimético convertido em desejo de apropriação, cabe-nos considerar em que medida não
eclodem por toda parte conflitos diretos entre opressores e oprimidos. Freire nos leva à
compreensão desta questão ao se referir à força dos mitos que dominam o homem moderno,
designando-a como uma engrenagem fundamental para a manutenção da estrutura opressora.
Como vimos, apoiados no pensamento de Mircea Eliade, os mitos narram os grandes feitos de
entes sobrenaturais a partir dos quais uma dada realidade se faz dotada de existência. Uma vez
que, segundo Freire, aos mitos que dominam o homem moderno compete a tarefa de
estabelecer uma real distinção “ontológica” entre opressores e oprimidos, isto é, de delinear a
343
GIRARD, René. Um longo argumento do princípio ao fim, p. 109.
90
superioridade dos opressores e a inferioridade dos oprimidos, sob a perspectiva de Girard
temos que tais mitos cumprem sua função na medida em que, ao estabelecer a superioridade
“ontológica” dos opressores, os lançam em uma relação de mediação externa com os
oprimidos, ou seja, separam opressores em um mundo “superior” como cabe aos entes
sobrenaturais e oprimidos em um mundo “inferior”, de modo que estes não são mais pares
entre si, não representam um para o outro a figura do próximo tal como apontado pelo último
mandamento do decálogo. Desta forma, o conflito entre opressores e oprimidos não eclode na
medida em que os oprimidos se submetem à superioridade dos opressores tal como justificada
pelos mitos que estes lhes prescrevem para a compreensão da dinâmica da sociedade, de
modo que, na realidade opressora, vigora tão e somente a violência desumanizadora
protagonizada pelos opressores, enquanto negação aos oprimidos de sua possibilidade de ser.
De acordo com o pensamento de Girard, somente a assimilação de sua própria
natureza mimeticamente desejante, o que implica em ver a si mesmo inserido neste processo,
abrirá aos seres humanos a possibilidade da redefinição do modelo a ser imitado. É neste
sentido que identifica no Cristianismo uma perspectiva de superação da rivalidade entre os
homens, pois propor Jesus Cristo como o modelo a ser seguido não nega o desejo mimético,
mas representa a substituição do desejo mimético competitivo pelo bom desejo mimético, de
forma que “converter-se é descobrir que, sem saber, sempre estivemos imitando os modelos
errados
344
”. Porém, por que Jesus constitui um bom modelo? Porque seu desejo o está
egoisticamente centrado em Si mesmo:
O convite para imitar o desejo de Jesus pode parecer paradoxal, pois Jesus
não pretende possuir um desejo próprio, um desejo muito seu.
Contrariamente ao que nós próprios fazemos, Jesus não pretende ser ele
próprio, não se vangloria de apenas obedecer ao próprio desejo. O seu
propósito é tornar-se a imagem perfeita de Deus. Assim, consagra todas as
suas forças à imitação do Pai. Ao convidar-nos para o imitarmos, convida-
nos a imitarmos sua própria imitação.
345
Jesus constitui um modelo por excelência porque seu desejo não é pautado pelo
egoísmo, de forma que “se imitarmos o desinteresse divino, nunca a armadilha das rivalidades
miméticas nos apanhará
346
”. Deste modo, para Girard a melhor saída para proteger a
humanidade de sua própria violência é oferecer modelos que ao invés gerar crises de
344
Ibidem, p. 214.
345
GIRARD, René. Eu via satanás cair do céu como um raio, p. 30.
346
Ibidem, p. 31.
91
rivalidade mimética, a proteja delas. No entanto, na contramão daquilo que pode parecer uma
perspectiva simplista acerca da capacidade humana de escolher modelos aos quais imitar,
cabe-nos considerar o medo da liberdade como entrave para a libertação. Ora, se, como
vimos, o medo da liberdade leva àqueles que a temem a refugiarem-se em sua segurança vital,
isto significa que a liberdade representa uma ameaça à existência. Porém, a partir dos
apontamentos destacados tanto no pensamento de Freire quanto no de Girard, identificamos a
liberdade como símbolo da realização da humanidade humana. Diante desta controvérsia,
seguiremos na tentativa de compreender a dinâmica da liberdade.
3.4 EM BUSCA DE UM ESTATUTO PARA A LIBERDADE HUMANA
A qualidade mais desenvolvida da humanidade,
o que a constitui como coroação da criação, é a liberdade.
347
Ao falarmos sobre liberdade, somos remetidos ao marco histórico da
modernidade, grande anunciadora da liberdade humana a partir de sua declaração de que
“todos os homens nascem livres”. Para o mundo moderno, a vocação natural do homem de ser
livre não pode ser barrada por nada, sendo urgente eliminar toda e qualquer estrutura que
impeça sua realização, pois basta deixar o homem livre e ele o será espontaneamente.
A ascensão da modernidade e o desabrochar da racionalidade moderna mudam
radicalmente o homem e suas relações, seja com os outros homens, seja com o mundo, pois o
avanço do conhecimento científico, único saber legítimo, torna o mundo não apenas passível
de ser conhecido, mas também de ser explicado, transformado e explorado. A ciência
moderna se afirma como única fonte verdadeira de todo o conhecimento, submetendo tudo ao
seu olhar científico e reduzindo todo saber válido ao mundo material. É pela observação do
mundo fenomênico que o homem apreende seus mecanismos, desvendando um universo até
então tido como complexo e assustador. Neste universo mecânico tudo pode ser calculado,
mensurado e previsto, pois tudo nele é determinado.
As ciências físicas convertiam tudo em esquemas necessários de funcionamento, a
partir de um determinismo universal que colocava em xeque a liberdade humana. Na medida
347
COMBLIN, José. A vida: Em busca da liberdade, p. 165.
92
em que a ciência se torna cada vez mais capaz de mensurar e prever todas as coisas, a
liberdade humana vai se tornando uma mera ilusão, pois neste mundo totalmente determinado
e previsível não nada que possa lhe servir de fundamento. A perspectiva de que mesmo a
conduta humana poderia ser reduzida ao determinismo, negava a realidade de que os homens
estavam o tempo todo diante de situações que lhes exigia decidir “livremente” sobre as
questões pertinentes ao cotidiano de suas vidas. Desta forma, a liberdade se torna um fato que
não pode ser negado nem justificado.
Por outro lado, ao admitir o acaso em sua base teórica, as ciências biológicas
seguiam pela via oposta às ciências físicas. O estudo sobre a evolução das espécies evidencia
que tal processo resulta de duas situações dadas pelo acaso, a saber, as falhas na produção das
cópias genéticas e as mudanças ocorridas no meio ambiente. A presença do acaso coloca em
questão a possibilidade de um determinismo universal capaz de prever todas as coisas. O
advento da física quântica e a descoberta da aleatoriedade presente na natureza, bem como a
compreensão de que a própria observação pode alterar o objeto observado, leva a cabo os
questionamentos sobre a possibilidade de um conhecimento “necessário” sobre o universo,
uma vez que nele existe uma dose de indeterminação. Seria, então, o acaso um espaço
reservado à liberdade presente na própria natureza? O fato é que a evolução das espécies
parece determinada apenas pelo desejo mais básico de todo ser vivo: escapar da morte. Diante
dos desafios que o meio coloca, uma simples ameba se lança num processo de trial and error,
em um ensaio de hipóteses do qual depende sua vida: se acertar, sobreviverá e sua hipótese
ganhará validade para ser repetida em outras situações; se errar, a hipótese será descartada e,
com ela, também a ameba. Temos que desde o mais elementar ser vivo até o homem, todos os
seres são colocados diante de desafios cada vez mais complexos e inesperados, cujas soluções
não encontram respostas em sua bagagem genética, e diante dos quais submetem à prova a
validade de hipóteses elaboradas na tentativa de garantir sua sobrevivência. No entanto, o
homem é dotado de um diferencial que o coloca no outro extremo da escala evolutiva, pois
nele muda o lugar onde acontece a prova: “antes, acontecia no próprio corpo da ameba, em
seu centro vital. Agora, os problemas desafiam primeiro a mente. E as hipóteses são
escolhidas deliberando sobre elas com a mente
348
”.
A figura de um Deus criador do universo logo entra em xeque com o avanço das
descobertas científicas. Quer se assuma ou determinismo ou o acaso como “regentes” do
universo, o fato é que Deus nada tinha a ver com isso, principalmente levando-se em conta
348
SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus?. p.158.
93
que Ele nada mais era do que uma figura “irreal”. Surge, então, a preocupação com a
existência de Deus, na medida em que a razão moderna instaura o método científico como
único legítimo para a construção do saber e a materialidade como base de todo conhecimento
verdadeiro. Sendo Deus uma “realidade” indemonstrável, é o problema do ateísmo que leva a
reflexão teológica do Concílio Vaticano I à definição dos traços da natureza divina. A
existência de Deus é “demonstrada” através dos seres criados, a partir da compreensão de que
todo ser finito depende de uma causa que o faça existir, de forma que, buscando a causa que
trouxe à existência o universo contingente que conhecemos, chegaremos a um ser que existe
por si mesmo e que, portanto, é infinito. Desta forma, a existência de Deus não é mais
atestada através da revelação bíblica, mas de um raciocínio dedutivo elaborado a partir de sua
própria criação. Esse Deus “racional”, princípio de tudo o que existe, cujas características são
sua “real e essencial felicidade em si e de si
349
”, sua absoluta e infinita perfeição, e sua
imutabilidade porquanto de nada carece, muito se aproxima do motor imóvel tal como
proposto por Aristóteles: um Deus que simplesmente “está lá”, um tanto quanto distante da
realidade humana.
No entanto, a existência desse Deus, motor imóvel, causa da existência do
universo e de todas as coisas, não agrega qualquer sentido à existência humana na medida em
que não traz nenhum elemento que sirva de orientação para seu agir. Eis o diferencial da
narrativa bíblica em sua mensagem da auto-revelação de Deus, o que não significa que ela
trate de provar sua existência, mas que assume sua existência na medida em que apreende o
modo como Ele age em relação a sua criação. Para o homem bíblico não existe a preocupação
com a existência ou não de Deus, uma vez que estando diante da revelação de Deus, sua
existência é dada. Tampouco importa saber sobre a natureza divina ou sobre como Deus
criou o mundo. Ao homem bíblico interessa “saber como [Deus] dirige e governa os
acontecimentos desta terra
350
”, pois compreende que disto depende sua própria sobrevivência
na busca de sentido para sua existência.
Porém, na medida em que conhecer Deus se torna sinônimo de conhecer sua
natureza em seus atributos divinos, submete-se o próprio Deus em sua natureza infinita à
ambição do homem ser finito de, através da razão, prever e determinar todas as coisas.
Assim, esse Deus determinado e previsível se torna prisioneiro da natureza que lhe foi dada
pela lógica racional humana, na medida em que, em sua absoluta perfeição e imutabilidade,
349
Ibidem, p. 176
350
Ibidem, p. 437
94
não é logicamente possível que Ele assuma qualquer forma que transgrida ou diminua sua
própria natureza enquanto ser infinito e perfeito. Uma vez que o determinado é a base do
conhecimento verdadeiro e o contigente é sinônimo do que é acidental o que, portanto,
designa um conhecimento falho, Deus é radicalmente excluído da possibilidade de ser livre,
pois o pleno exercício da liberdade pertence à esfera do contingente. Disto resulta que “a
natureza divina, assim concebida, esteja como que infectada de impossibilidades: imutável,
incapaz, de ter uma causa final para criar algo fora de si, incapaz de depender, pelo amor, de
outro ser em própria felicidade, impassível, inacessível...
351
”.
Desta forma, considerando a lógica racional, Deus não pode ser livre sem
contradizer sua própria natureza. Para Juan Luis Segundo, essa necessidade lógica o
confere com a revelação bíblica, através da qual compreendemos “a diferença que existe entre
o fato de que a natureza de Deus não o obriga, como ocorre com outros entes limitados, a
mover-se para obter o que lhe falta, por um lado, e o fato de que, livremente, Deus tenha
decidido mover-se
352
”, de forma que Deus é livre em relação ao seu próprio ser, e esta
liberdade se manifesta exatamente no momento em que decide “criar ou encarnar-se, pois
essas duas coisas (verbos) são incompatíveis com a imutabilidade
353
”. Assim, o que temos são
imagens distintas de Deus, pois “o Deus de Aristóteles e o Deus que, segundo João, é Amor
não são a mesma coisa
354
”. Se concebermos Deus como o motor imóvel que apenas representa
o princípio originário de todas as coisas, estamos diante de um Deus que pouca diferença faz
em nossas vidas, pois, imóvel que é imóvel permanecerá. No entanto, se admitirmos que
“Deus é pessoa da mesma maneira que nós somos pessoas
355
”, tal como Ele próprio se
revelou, compreendemos que diante de sua perfeição, Deus pode escolher mudar sem que sua
livre decisão represente qualquer finitude, de forma que
[...] nada no mundo pode impedir que Deus dependa dos seres a quem ele
decida amar. Se decide amar então, sim não pode continuar dizendo-se
‘imutável’. E não porque lhe falte algo à infinitude de sua natureza, mas
muito pelo contrário. Sua liberdade não tropeça com qualquer limitação
“natural”. Só que ele é algo mais que o que a natureza contém.
356
351
Ibidem, p. 442
352
Ibidem, p. 176 - 177
353
Ibidem, p. 177
354
Ibidem, p. 441
355
Ibidem, p. 455
356
Ibidem, p. 444
95
Essa livre decisão de Deus se estabelece a partir de uma lógica que a lógica
racional humana não compreende. Tal “é a lógica de um amor ‘infinito’”, amor que não se
instaura em um mundo desprovido de personalidade e de liberdade, mas amor que é
simplesmente a manifestação plena da liberdade. Este amor se manifesta na criação como
portadora de “uma grande promessa instalada em nosso universo: a de que Deus tenha
querido fazer seres realmente parecidos com Ele
357
”.
Por outro lado, outra dedução um tanto quanto contraditória sobre Deus, também
extraída da definição de sua natureza divina ser imutável, absoluto e perfeito – é sua
providência. Sendo Ele o Criador todo – poderoso, estamos todos submetidos “[à] ordem com
a qual o próprio Deus, em sua criação, ‘vinculou’ todo o universo ao fim para o qual cada ente
chegou à existência
358
”. Desta forma, o agir humano encontra-se determinado pela obediência
à lei natural que Deus estipulara para o universo, o que significa dizer que o próprio Deus, que
criou o homem livre, anula a liberdade humana.
Assim, além de conceber um Deus determinado e previsível, a reflexão teológica
elimina do plano divino qualquer perspectiva de abertura ao acaso como espaço em que se
abrem possibilidades, na medida em que Deus, em sua providência, tudo sabe, governa e
determina conforme seus desígnios, mesmo aquilo que é fruto da ação “livre” dos homens, de
modo que a conduta humana, que parecia imune à perspectiva determinista, acaba submetida
à vontade de Deus. Tal é o resultado de uma “imatura concepção de uma providência divina,
onde o acaso não existe, [e que] atribui tudo o que acontece a uma vontade de Deus, que o
homem deve, fundamentalmente, aceitar
359
”. Se este Deus providente existe, o homem nada
mais é que uma simples marionete em suas mãos, pois qualquer que seja sua ação, se esta não
estiver inscrita nos planos da providência divina, não terá relevância alguma. Diante disto,
Juan Luis Segundo adverte que “para ser lógicos, se um Deus assim existe, o homem com sua
liberdade não tem qualquer sentido
360
”, afinal o que quer que aconteça de bom ou ruim se
inscreve no plano do “Deus quis assim!”. Para o autor, esta antinomia que revela a
incompatibilidade entre a providência divina e a liberdade humana, permanece um problema
sem resolução no pensamento teológico.
357
Ibidem, p. 447
358
Ibidem, p. 155
359
Ibidem, p. 483
360
Ibidem, p. 484
96
No entanto, Segundo compreende que “Deus, em sua kenosis de amor, se atém ao
que a liberdade do homem decide
361
justamente pelo fato de que a liberdade constitui o
elemento central do plano divino, isto é, “a atuação de liberdades criadoras, inventoras de
caminhos e provedoras de novidades
362
”, de forma que Deus exerce sua providência apenas
ao determinar o sentido da vocação humana, não os caminhos que o homem deve percorrer
para alcançá-lo. A vontade de Deus “tende à salvação humana, ao incremento da liberdade e à
humanização de todos
363
”, e para tal deixa o caminho livre para que os homens caminhem ou
não na direção de seu projeto. Tal é o que Juan Luís Segundo chama de a “sutilíssima
aventura de Deus
364
e que representa para nossa limitada perspectiva mental um paradoxo
intransponível: é o Deus todo-poderoso que cria um ser limitado, diante do qual renuncia seu
poder e se coloca à porta para “respeitosa e ansiosamente, esperar para ver se a liberdade
desse ser convidava-o ou não a entrar
365
”. Esse Deus diz “eis que estou a porta e bato: se
alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele
comigo” (Ap, 3-20). Ele não invade, não obriga e não ordena. Ele simplesmente espera o
momento em que ouçam seu chamado.
Juan Luis Segundo diz que “pelo desejo de sobreviver com sentido e através do
procedimento de ensaio e erro, Deus nos foi ensinando a conhecê-lo e a conhecer-nos”, sendo
que “quem diz ‘ensaio e erro’ no caminho para a verificação de hipóteses práticas, diz
liberdade
366
”. Na mesma direção, José Comblin diz que “a vocação para a liberdade é a
experiência fundamental, constitutiva do ser humano” sendo que “hoje ela é o caminho pelo
qual Deus revela sua existência
367
”. Esta vocação se sustenta na experiência de um Deus que,
no exercício de sua própria liberdade, deixa vir ao mundo o homem com quem deseja tão
somente partilhar a experiência de sua liberdade, cujo ápice se na libertação de si próprio,
como ato capaz de manifestar o amor. Neste sentido, diz que “a liberdade não é inata. Não
aparece espontaneamente. É apelo que, em última instância, vêm de Deus
368
”, “não procede
da natureza, nem da corrente de vida biológica, nem de outras pessoas. O seu valor
incondicional é a presença de Deus em nós
369
”.
361
Ibidem, p. 480
362
Ibidem, p. 479
363
Ibidem, p. 483
364
Ibidem, p. 176
365
Idem
366
SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus?, p. 158
367
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, p. 241
368
Idem, p. 240
369
Idem, p. 242
97
Diante destes apontamentos, ainda que pudéssemos distinguir de um lado um
estatuto cientifico e de outro um estatuto espiritual para a liberdade, temos que ambos nos
remetem a um único princípio sobre o qual se pauta a liberdade, a saber, a liberdade está
diretamente ligada à possibilidade humana de se relacionar seja com a realidade que lhe cerca
seja com os demais seres.
3.5 A DIALOGICIDADE COMO DINÂMICA DA CAPACIDADE HUMANA DE
RELACIONAR-SE
O diálogo fenomeniza e historiciza
a essencial intersubjetividade humana [...].
370
Na pedagogia libertadora de Paulo Freire o diálogo representa um elemento
fundamental. Enquanto fenômeno humano presente no cerne das relações humanas, “o
diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo
371
”, que se
dá através de “uma relação horizontal de A com B
372
”. No entanto, esta relação horizontal que
é o diálogo não é possível sem amor, humildade e fé nos homens:
Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos
homens. [...] Porque é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é
compromisso com os homens. Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato
de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa de sua libertação.
[...]
Não há, por outro lado, diálogo, se não há humildade. [...]
Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é
que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro
com eles. Neste lugar de encontro, não ignorantes absolutos, nem sábios
absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais.
Não também, diálogo, se não uma intensa nos homens. no seu
poder de fazer e de refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais,
que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. A nos
homens é um dado a priori do diálogo. Por isto, existe antes mesmo de que
ele se instale.
373
370
FIORI, Ernani Maria. Aprender a dizer sua palavra. Prefácio à FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p.
16.
371
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 91
372
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 115.
373
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 91a 93.
98
Freire diz que “ao fundar-se no amor, na humildade, na nos homens, o diálogo
se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência
óbvia
374
”. Desta modo, “a confiança implica no testemunho que um sujeito aos outros de
suas reais e concretas intenções. Não pode existir, se a palavra, descaracterizada, não coincide
com os atos. Dizer uma coisa e fazer outra, não levando a palavra a sério, não pode ser
estímulo à confiança
375
”. Sendo a palavra a essência mesma do diálogo, mais do que um
simples meio para que ele aconteça, Freire destaca que nela duas dimensões inseparáveis
para que seja autêntica: “ação e reflexão, de tal forma solidárias, em uma interação tão radical
que, sacrificada, ainda que em parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a outra
376
". Sendo
a práxis ação e reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo, para Freire “não
palavra verdadeira que não seja práxis. Daí dizer que a palavra verdadeira seja transformar o
mundo
377
”. Desta forma, a palavra descaracterizada se faz palavra inautêntica, fruto da
dicotomia entre ação e reflexão mediante a qual não há o diálogo, porquanto não há confiança
entre aqueles que dialogam:
A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a
realidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos
constituintes. Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão da ação,
sacrificada, automaticamente, a reflexão também, se transforma em
palavreria, verbalismo, blablablá. [...]
Se, pelo contrário, se enfatiza ou exclusiviza a ação, com o sacrifício da
reflexão, a palavra se converte em ativismo.
378
Temos que a dialogicidade somente é possível a partir da palavra verdadeira, isto
é, da práxis autêntica, sem o que deixa de ser transformadora da realidade e se converte e
palavreria ou ativismo. Freire sustenta que “o diálogo se impõe como caminho pelo qual os
homens ganham significação enquanto homens
379
”, na medida em que a dialogicidade
representa uma exigência existencial sem a qual os homens não podem transformar o mundo,
uma vez que afastados de sua capacidade de dialogar encontram-se submetidos ao
comportamento típico da esfera animal. É porque a realidade opressora representa uma força
funcionalmente domesticadora, que o ser humano “[...] sem a capacidade de visualizar esta
374
Ibidem, p. 94.
375
Ibidem, p. 94.
376
ibidem, p. 89
377
Ibidem, p. 89.
378
Ibidem, p. 90.
379
Ibidem, p. 91.
99
tragédia, de captar criticamente seus temas, de conhecer para interferir é levado pelo jogo das
próprias mudanças e manipulado pelas referidas prescrições que lhe o impostas ou quase
maciamente doadas
380
”.
Freire, ainda que não seja teólogo, argumenta que a teologia tem um importante
papel a desempenhar na luta pela humanização, pois “como a Palavra se fez carne, é
possível aproximar-se Dela através do homem. Por isso, o ponto de partida da teologia tem
que ser a antropologia
381
”, de forma que
tem que estar associada à ação cultural para a libertação, através da qual os
homens substituem sua concepção ingênua de Deus, como um mito
alienante, por um conceito novo: Deus como uma presença histórica, que
não impede, de forma alguma, que o homem faça a história de sua
libertação
382
.
A imersão na realidade opressora, ao anular a dialogicidade e a práxis humanas,
ou cria a ilusão de que tal realidade é instransponível, ou suscita uma perspectiva de
superação desta realidade que somente é possível a partir de uma esperança de caráter
fatalista, uma esperança inativa que entrega nas mãos de Deus a responsabilidade de, quando
for de sua vontade, aliviar o jugo dos oprimidos. Freire diz que
Uma teologia em que a esperança fosse uma espera sem busca, seria
profundamente alienante porque estaria considerando o homem como
alguém que tenha renunciado à sua práxis no mundo [...]. Esta espera nos
leva à acomodação, ao “status quo” e encerra um equívoco fatal: a dicotomia
absurda entre mundanidade e transcendência.
Desta forma, me faço cúmplice da injustiça, do desamor, da exploração dos
homens no mundo e nego o próprio ato de amor com que Deus Absoluto
limita-se a si mesmo (e somente Ele poderia limitar a Si Próprio) ao
valorizar os homens, ainda que limitados, inconclusos, inacabados, como
seres de decisão, co-participantes de Sua obra criadora.
383
Considerando que, para Freire, o homem é um ser da práxis, deste fragmento
podemos compreender que ele o é porque assim fora criado pelo Deus Absoluto. A práxis,
enquanto modo humano de existir, constitui a via pela qual os homens devem corresponder à
missão de serem co-criadores da obra divina. É interessante notar a maneira como Freire se
380
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 53.
381
FREIRE, Paulo. Terceiro Mundo e Teologia. Carta a um jovem teólogo. In TORRES, Carlos Alberto.
Consciência e história: a práxis educativa de Paulo Freire, p. 91.
382
Idem
383
Ibidem, p. 89.
100
refere a Deus. Ele não menciona Deus simplesmente, mas se refere ao Deus Absoluto que
num ato de amor limita-se a Si Próprio ao valorizar os homens. Esta figura do Deus Absoluto
nos remete à já vista controvérsia entre a ciência – para qual Deus, enquanto realidade
indemonstrável, é apenas uma figura irreal fruto da imaginação humana e a religião para
qual Deus, enquanto Criador, é absoluto, perfeito, imutável e providente.
Ao que nos parece, é exatamente desta controversa concepção de Deus que Freire
diz que o homem deve se libertar, pois esse Deus que tudo sabe e governa contradiz a
experiência pela qual Deus se revela ao homem, mediante um ato de amor que se como
manifestação de sua liberdade, de forma que sua “absoluticidade” se na medida em que
deixa de lado sua própria condição para permitir ao ser humano existir. Ressaltemos a
referência de Paulo Freire ao Deus Absoluto, atendo-nos a mais uma citação de sua obra:
A sua transcendência está também, para nós na raiz de sua finitude. Na
consciência que tem desta finitude. Do ser inacabado que é e cuja plenitude
se acha na ligação com seu Criador. Ligação que, pela própria essência,
jamais será de dominação ou de domesticação, mas sempre de libertação.
Daí que a Religião religare que encarna este sentido transcendental das
relações do homem, jamais deva ser um instrumento de sua alienação.
Exatamente porque, ser finito e indigente, tem o homem na transcendência,
pelo amor, o seu retorno à sua Fonte, Que o liberta
384
.
Freire argumenta que o Deus Absoluto limitou a si próprio para valorizar os seres
humanos tornado-os seres de decisão, co-participantes da obra divina. Ora, se para Freire os
seres humanos são seres da práxis, seres do quefazer, esta representa a via pela qual o ser
humano pode exerce sua missão co-criadora, missão esta conferida pelo ato de amor através
do qual Deus, livremente, limitou sua condição divina para conferir existência à humanidade.
Deste modo, a referência ao amor é fundamental no pensamento de Paulo Freire, como
caminho de retorno ao Criador na medida em que se trata de uma experiência que permite ao
outro existir.
Como vimos, segundo Comblin a vocação para a liberdade é a experiência
fundamental dos seres humanos, representando um apelo que vem de Deus. Sendo a liberdade
um apelo, este deve nos mover na direção de “algo”. Temos que Deus realiza sua liberdade ao
mover-se na direção de um outro a quem quis fazer semelhante a Ele, o que fez livremente,
não por qualquer limitação ou necessidade decorrente de sua natureza. Nesta decisão de
libertar-se de sua própria condição para dar existência ao outro, Deus manifesta-se como
384
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 48.
101
Deus. Neste sentido, Comblin diz que “o que desperta o ser humano como pessoa, por
conseguinte como liberdade, é o Outro”.
385
Diante do outro somos obrigados a fazer alguma
coisa, pois a sua presença nos questiona, nos incomoda. Assim, “a chegada do Outro é
problema e desafio. É justamente o que vai desafiar a liberdade
386
”, pois nos coloca diante de
nós mesmos através da experiência de estar diante do outro, o que necessariamente nos leva a
optar por uma conduta a ser adotada em relação a este “diferente”. Portanto, “assim nasce o
apelo: diante do Outro, aceito e reconhecido, o ‘eu’ deve livrar-se do temor, do egoísmo, do
pequeno mundo que criou para a sua própria defesa e tranqüilidade
387
”, de forma que a
vocação para a liberdade consiste em um chamado a amar:
A chegada do Outro deve despertar o amor. O amor será aceitação, abertura
e, portanto, leva a uma reconstrução da vida. Uma vez que se tem de abrir
espaço para o Outro, tudo muda. O Outro incomoda necessariamente. Se não
incomoda, é porque ainda não foi reconhecido e aceito tal como é.
388
A presença do Outro suscita o medo e por esta razão somos muito mais propícios
à negação do que a aceitação do Outro. Uma vez que amar significa deixar que o Outro exista,
isto nos perturba, pois exige que deixemos nossa segurança vital. O amor se manifesta como
um ato de renúncia à nossa segurança, para que possamos nos relacionar com o diferente que
se coloca diante de nós. Somente nesta interação o ser humano pode construir uma conduta
que compreende no relacionamento humano o caminho fundamental para o despertar de sua
própria humanidade, uma possibilidade de tornar-se pessoa a partir do que representam as
modificações provocadas em nós pelos outros, de forma que a liberdade é possível no
campo das relações. Porém, ela é uma conquista que se realiza ao longo da jornada da vida,
cada vez que a ameaça chamada outro se coloca diante de nós e colocamos em prática nosso
ensaio pela sobrevivência. Nosso trial and error tende a nos levar além de nós mesmos, na
medida em que “a liberdade pertence à ordem da eternidade, da transcendência da vida
puramente biológica
389
”. Assim, o homem tem diante de si a possibilidade de errar e aprender
com seu erro, o que torna a liberdade uma via de aprendizado.
Essa liberdade só é possível no momento em que o homem se depara com o outro
e se descobre como pessoa. Neste sentido, Comblin diz que se o passo fundamental da
385
Ibidem, p. 243
386
Ibidem, p. 244
387
Idem
388
Idem
389
Ibidem, p. 238
102
liberdade é a libertação de si próprio, do medo, da covardia, dos desejos, entende-se que o
agir libertador seja o serviço ao Outro
390
”. O fato é que se a liberdade humana é um apelo que
vem de Deus, isto somente é possível porque Deus é livre. Deus sai de si e o faz pelo simples
exercício de sua liberdade. Um exercício que se reflete num ato de amor. Este sair de si
mesmo não é uma questão simples de ser entendida por consistir em uma opção onde a
renúncia é fundamental, na medida em que Deus se afasta de sua condição divina para, num
ato de puro amor, deixar ser o Outro. Este ato de renúncia do eu que permite ao outro existir
reflete a essência da vocação humana, pois constitui o ato de amor fundamental ao qual Deus
se entregou para criar o homem, não apenas o homem, mas o homem livre.
Comblin sustenta que a vocação humana fundamental é a liberdade. Freire afirma
que a vocação ontológica e histórica do homem é ser mais, é humanizar-se. Temos que a
vocação humana constitui um chamado a experienciar o ato de liberdade, enquanto ato de
amor, pelo qual Deus limitou-se para dar existência ao homem. A vocação humana nada mais
é que transcender sua própria condição em sua tendência de comportarem-se como seres de
contato para tornar-se homem ser de relações da mesma maneira que Deus se faz Deus
ao transcender a si próprio, para permitir ao homem existir. Porém, Freire comenta que os
seres humanos se encontram subtraídos desta liberdade que se realiza tão e somente no campo
das relações humanas, na medida em que
[...] infelizmente, o que se sente, dia a dia, com mais força aqui, menos ali,
em qualquer dos mundos em que o homem se divide, é o homem simples
esmagado, diminuído e acomodado, convertido em espectador, dirigido pelo
poder dos mitos que forças sociais poderosas criam para ele. É o homem
tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de
sua possibilidade. Ao mesmo tempo, porém, inclinando-se a um gregarismo
que implica, ao lado do medo da solidão, que se alonga como medo da
liberdade”, na justaposição de indivíduos a quem falta um vínculo crítico e
amoroso, que a transformaria numa unidade cooperadora, que seria a
convivência autêntica.
391
Cabe lembrar que Freire considera que a tarefa histórica de restaurar a
humanidade cabe aos oprimidos, o que não significa restaurar apenas a sua humanidade, mas
restaurar a humanidade tanto de opressores quanto de oprimidos. Esta empreitada pode ser
realizada pelos oprimidos, uma vez que somente eles poderão compreender o significado e se
engajar na luta pela libertação, pois conhecem por experiência própria o peso de uma
390
Ibidem, p. 244-245.
391
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 53.
103
sociedade opressora, de modo que esta seuma “luta que, pela finalidade que lhe derem os
oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos
opressores
392
”.
Engajar-se na luta por um ato de amor. Esta proposição de Paulo Freire parece
remeter a uma questão muito profunda. Trata-se de um ato de amor na medida em que lutar
pela libertação não significa lutar apenas pela libertação dos oprimidos, mas também pela
libertação dos opressores:
O contrário do amor não é, como se pensa muitas vezes, o ódio e sim, o
medo de amar, que é o medo de ser livre. A maior e a única prova de amor
verdadeiro que os oprimidos podem dar aos opressores é retirar-lhes,
radicalmente, as condições objetivas que lhe conferem o poder de oprimir
em vez de se acomodarem, masoquisticamente, à opressão. Somente assim,
os que oprimem podem humanizar-se. E esta tarefa amorosa, que é política,
revolucionária, pertence aos oprimidos.
393
Da afirmação de que “exatamente porque, ser finito e indigente, tem o homem na
transcendência, pelo amor, o seu retorno à sua Fonte, Que o liberta
394
”, apreendemos que
somente pelo amor o homem transcende seu próprio ser, a sua finitude, e retorna ao seu
Criador, retorno que significa sua libertação. Temos, então, que o amor representa uma
condição fundamental, sine qua non, para a liberdade humana. No entanto, o medo de amar é
o medo de ser livre porque a liberdade exige responsabilidade. O medo da liberdade é o medo
de arriscar, de decidir, de assumir a missão conferida pelo Criador de transformar e humanizar
o mundo. O medo da liberdade é o medo de assumir sua própria condição de seres em
processo, uma vez que “a liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma
permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz
395
”.
Esta perspectiva da liberdade como processo, isto é, como busca permanente, e
que Freire enfatiza ao dizer que o homem nascido da superação da contradição opressores-
oprimidos é aquele que não é nem opressor nem oprimido, mas é o homem libertando-se, nos
remete ao fato de que não existe um momento de “realização plena” da libertação, mas que a
libertação se inscreve no ensaio da existência humana, como via de aprendizado em que o ser
humano pode se deparar tanto com o acerto quanto com o erro. Neste sentido, Segundo diz
392
Ibidem, p. 34
393
FREIRE, Paulo. Terceiro Mundo e Teologia. Carta a um jovem teólogo in TORRES, Carlos Alberto.
Consciência e história: a práxis educativa de Paulo Freire, p. 91.
394
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 48.
395
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 37.
104
que “o Absoluto, a quem seguimos, não nos impõe cegueira obediente a mistérios
ininteligíveis, mas nos guia, como seres livres e criadores, para uma verdade sempre mais
profunda e enriquecedora
396
”, o que significa dizer que Deus não nos guia para a “verdade
absoluta” mas para a verdade à qual livremente vamos ascendendo mediante nossos erros e
acertos:
Por que a tolerância do erro se fundamentaria, nada menos do que no
respeito e primado da verdade e não, como se ouve habitualmente, no
respeito pela liberdade e dignidade humanas daquele que erra? A resposta
está nisso que Lercaro
397
acrescenta à palavra “verdade”: a maneira
humana de aceder a ela. Efetivamente, o erro faz parte dessa maneira
“humana” e a distingue de uma verdade material: a pobre verdade” que
pode “ter” um papagaio ou um gravador, quando transmitem uma
informação correta
398
.
Deste modo, a capacidade humana de ensaiar-se está relacionada à práxis
humana, ou seja, à interação profunda entre ação e reflexão sobre o mundo para transformá-
lo, pois
A realidade empurra o homem para uma verdade sempre maior pelo
procedimento que, em epistemologia, se chama de “prova e erro” (trial and
error). Daí que o experimentado, detectado e corrigido se torne componente
de todo processo de interiorização da verdade. Dito em outras palavras, de
toda “pedagogia”. E, é claro destacá-lo, da pedagogia divina.
399
Assim, o caminho da libertação do ser humano é aquele em que ele, conhecedor
de sua própria condição, é capaz de fazer-se a si mesmo, de ensaiar-se mediante sua busca
permanente de si mesmo, a partir do trial and error enquanto método pertinente à pedagogia
divina pelo qual o ser humano pode exercer sua liberdade. Neste sentido, Leonardo Boff diz
que
A palavra caminho concentra em si uma das mais profundas experiências do
homem em seu enfrentamento com a tarefa da vida. A vida nunca é um
dado. É sempre uma tarefa. Algo que deve ser feito e conduzido. Não se vive
simplesmente porque não se morre. Anda-se pela vida. Viver é andar. Andar
supõe um caminho. Qual é o caminho da vida? É a própria vida.
400
396
SEGUNDO, Juan Luis. O dogma que liberta, p. 145.
397
Segundo se refere ao texto escrito em 1958 pelo Cardeal Lercaro onde aprofunda o tema da tolerância.
Conferir SEGUNDO, Juan Luis. O dogma que liberta, p. 143.
398
Ibidem, p. 144.
399
SEGUNDO, Juan Luis. O dogma que liberta, p. 144.
400
BOFF, Leonardo. Vida segundo o espírito, p. 36.
105
Desta forma, é pondo-se a caminho que o ser humano realiza sua própria
existência, caminho no qual ele percebe que sua vida é uma permanente tarefa diante da qual
ele tem que assumir sua responsabilidade. Isto porque
Caminhar significa auscultar e seguir os apelos que emergem do coração da
própria vida. A vida humana apresenta toda sorte de apelos, mas que
fundamentalmente se reduzem a duas ordens: apelos que conclamam para o
eu e apelos que chamam para o outro.
401
Sendo o homem um ser de relações, um ser cujo modo de existir se dá pela práxis,
chamado a amar porque chamado a ser livre, o encontro com o outro não pode se dar em uma
relação de opressão cujo resultado é a desumanização. Neste sentido, o encontro com o outro
e com o outro desumanizado deve constituir um momento de reconhecimento de sua
humanidade perdida. Para Jung Mo Sung, a experiência do reconhecimento da humanidade do
outro, negada por uma sociedade injusta e opressora, suscita em nós uma indignação ética
diante das situações de desumanização, nos levando à contramão de uma sociedade em que a
dignidade das pessoas está enquadra por classificações de ordem social, dadas a partir de sua
raça, cor, sexo, religião ou classe social. Trata-se de uma experiência que representa para a
práxis humana um fundamento de natureza espiritual, na medida em que a indignação ética
brota de uma experiência espiritual que, segundo a tradição cristã, é a “experiência espiritual
de encontrar Jesus Cristo no rosto das pessoas oprimidas
402
”, ou seja, de reconhecê-las como
vítimas inocentes. Para Sung, tal experiência é libertadora não apenas da pessoa oprimida,
mas também da pessoa tocada pela indignação, por se tratar de uma experiência em que o
“face a facefaz surgir uma nova significação para a vida. “É por isso que a experiência da
indignação ética que leva ao compromisso social foi e deve ser interpretada como uma
verdadeira experiência espiritual
403
”. Isto nos remete ao tema da espiritualidade.
3.6 A ESPIRITUALIDADE COMO EXPERIÊNCIA FUNDAMENTAL PARA A
HUMANIZAÇÃO
Uma noção que coloca o foco nas questões mais profundas da nossa vida
401
BOFF, Leonardo. Vida segundo o espírito, p. 40.
402
SUNG, Jung Mo. Sujeito e sociedades complexas: para repensar os horizontes utópicos, p. 46.
403
Ibidem, p. 49
106
inclui a dimensão do conhecimento, mas agrega também
a noção de desejo que nos impulsiona para a ação.
404
De acordo com Girard, “a posição de discípulo é a única essencial”, sendo que “é
por meio dela que deve ser definida a situação humana fundamental
405
”. No entanto, o desejo
mimético de apropriação lança o discípulo na armadilha do duplo imperativo contraditório, de
modo que o discípulo se ao mesmo tempo atraído e repelido por seu modelo. No entanto,
as duas possibilidades são colocadas ao discípulo, imitar ou não imitar, de modo que se
responder ao apelo “imite-me”, o resultado imediato será o conflito; se atender a proibição
“não me imite”, o resultado imediato será sua submissão. O fato é que tanto o apelo quanto a
proibição remetem o discípulo à violência decorrente do desejo mimético. No que se refere à
contradição opressores-oprimidos, temos que o oprimido em sua condição de discípulo
submete-se à superioridade de seu modelo, o opressor.
Considerando a contraditória condição dos oprimidos de serem “hospedeiros” do
opressor, temos que a luta pela libertação significa uma luta que se instaura na interioridade
do seu ser, luta que significa expulsarem ou não de dentro de si o opressor, isto é, deixarem ou
não de imitar um modelo que os leva à rivalidade e à violência. Cabe considerar o
questionamento de Comblin: “A consciência do oprimido será suficiente para entrar nos
combates pela liberdade? Não haverá um pressuposto duvidoso: de que os seres humanos
desejam a liberdade a qualquer preço, e bastaria despertar a consciência do oprimido para que
ele queira se libertar?
406
”. Freire responde a este questionamento:
[...] não queremos dizer que os oprimidos [...] não se saibam oprimidos. O
seu conhecimento de si mesmos, como oprimidos, se encontra, contudo,
prejudicado pela “imersão” em que se acham na realidade opressora.
“Reconhecer-se” a este vel, contrários ao outro, não significa ainda lutar
pela superação da contradição. Daí esta quase aberração: um dos pólos da
contradição pretendendo não a libertação, mas a identificação com o seu
contrário.
407
Neste sentido, Comblin argumenta que “o que a experiência ensinou é que, para
suscitar um povo comprometido pela sua libertação, há necessidade de penetrar num nível
mais profundo
408
”, de modo que “sem motivação profunda não haverá conscientização
409
”.
404
SUNG, Jung Mo. Um caminho espiritual para a felicidade, p. 19-20.
405
GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 185.
406
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, p. 265.
407
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 35.
408
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, p. 269.
107
Isto porque “é preciso ter motivações muito fortes para enfrentar as resistências, arriscar a
vida, sacrificar as várias formas de lazer em vista de uma libertação bem remota
410
”. Uma vez
que a superação da contradição opressores-oprimidos significa a superação do mimetismo
violento, esta necessidade de “motivação profunda” nos remete à reflexão de Girard de que
isto somente é possível mediante a atuação de uma “força superior” inexistente na Terra.
“Que força é esta que triunfa do mimetismo violento? Os Evangelhos respondem que é o
Espírito de Deus, a terceira pessoa da Trindade cristã, o Espírito Santo
411
”, diz Girard.
Considerando que o Espírito Santo é aquele que vem em defesa das vítimas do mecanismo
sacrificial decorrente do mimetismo violento, é pertinente identificar quem são as vítimas de
hoje. Para Girard,
Num universo onde a violência já não é ritualizada e onde é objeto de um
interdito poderoso, de uma maneira geral a cólera e o ressentimento não
podem ou não ousam saciar-se com os objetos que as excitam diretamente. O
pontapé que o empregado, seja onde for, não tem a audácia de dar no patrão,
dá-lo-á ao cão quando chegar à noite em casa, ou talvez maltrate a mulher e
os filhos, sem de modo algum dar conta de que fez deles os seus ‘bodes
expiatórios’. As vítimas substituídas ao alvo realmente visado são o
equivalente moderno das vítimas sacrificais de outrora.
412
Desta forma, o mecanismo da substituição sacrificial perpetua-se em nosso
universo desritualizado, embora em situações “menores”, como o caso do empregado, ou “sob
formas mais virulentas do que nunca e a uma escala gigantesca, tal como na destruição
sistemática por Hitler dos judeus inocentes e em todos os genocídios e quase-genocídios que
se produziram no século XX
413
”. Sob a perspectiva de Freire identificamos uma outra
violência geradora de vítimas, a violência da desumanização sofrida pelos oprimidos.
Considerando a reflexão de Girard de que apenas a “força superior” que os Evangelhos
denominam “Espírito Santo” pode nos levar a escapar do mimetismo violento, temos no
contexto da opressão um campo peculiar para sua atuação. Deste modo, é diante da
incapacidade dos seres humanos de se furtarem à violência por si próprios, que não se pode
pensar uma educação para a liberdade como um simples processo de conscientização que
conduz ao reconhecimento da realidade opressora. Resgatemos as considerações de Maturana.
Para ele, ainda que as emoções definam nossos diferentes domínios de ação, de modo que
409
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, p. 269.
410
Ibidem, p. 266.
411
GIRARD, René. Eu via satanás cair do céu como um raio, p. 233-234.
412
GIRARD, René. Um longo argumento do princípio ao fim, p. 193.
413
Ibidem, p. 196.
108
“quando mudamos de emoção, mudamos de domínio de ação
414
”, na medida em que nossa
“responsabilidade e liberdade surgem na reflexão que expõe nosso pensar (fazer) no âmbito
das emoções a nosso querer ou não querer as conseqüências de nossas ações
415
”, temos que o
“mundo que vivemos depende de nossos desejos
416
”. Logo, é sobre os nossos desejos que esta
“força superior” da ordem do espírito tem de agir. Somente ela é capaz de alcançar nossas
“motivações profundas”. Estamos no campo da espiritualidade.
Convém esclarecer o que estamos entendendo por espiritualidade, diante dos
perigos aos quais o termo nos lança. O primeiro deles é a identificação entre espiritualidade e
religião, de modo que “[...] a primeira distinção que cabe fazer é entre religião e
espiritualidade. Sem ela não resgatamos a alta relevância da espiritualidade para os dias
atuais, marcados pelo modo secular de ver o mundo [...]
417
”, de modo que
Não devemos confundir espiritualidade com religião. Podemos fazer uma
distinção fundamental aqui entre uma e outra. A religião é formada por
crenças, dogmas, ritos cúlticos, práticas, entre outras características. A
espiritualidade geral, por sua vez, está relacionada a todas as qualidades do
espírito humano. E, neste sentido, ela também pode ser vista como um
estado de espírito de felicidade e de capacidade de produzir o bem. A
religião nem sempre produz uma forma positiva de espiritualidade. Aliás, às
vezes, a religião pode mesmo tornar-se a negação desta espiritualidade
positiva.
418
No mais, deparamos-nos também com a perene dicotomia espírito-matéria, a qual
não podemos deixar de considerar, de forma que
“Espiritualidade”, decididamente, é uma palavra infeliz. [...]
A palavra espiritualidade deriva de “espírito”. E, na mentalidade mais
comum, espírito se opõe à matéria. [...]
Para a Bíblia, espírito não se opõe à matéria, nem ao corpo, nem à maldade
(destruição); opõe-se à carne, à morte (a fragilidade do que está destinado à
morte); e opõe-se à lei (a imposição, o medo, o castigo). Neste contexto
semântico, espírito significa vida, construção, força, ação, liberdade. [...]
O espírito de uma pessoa é o mais profundo de seu próprio ser: suas
“motivações” últimas, seu ideal, sua utopia, sua paixão, a mística pela qual
vive e luta e com a qual contagia os outros.
419
414
Ibidem, p. 15.
415
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política, p. 33-34.
416
Idem
417
BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação, p. 23.
418
ARAÚJO, Alan Ricardo de Souza. Complexidade, espiritualidade e educação, p. 210.
419
CASALDÁLIGA, Pedro; VIGIL, José Maria. Espiritualidade da Libertação, p. 21-22.
109
Estamos diante do fato de que as qualidades que se agregam àquilo que é
espiritual podem gerar muitas confusões acerca do termo espiritualidade, pois “muitas
pessoas pensam que a espiritualidade tem a ver com uma consciência ampliada ou aquisição
de algum conhecimento esotérico, reservado a poucos, que permitiria conhecer as realidades
‘metafísicas’ do mundo espiritual, realidades que iriam além do mundo meramente
material
420
”. Nossa reflexão parte da consideração de que a espiritualidade se inscreve no
plano das motivações mais profundas pelas quais o ser humano vive e orienta sua vida.
Neste sentido, em Leonardo Boff encontramos uma definição muito peculiar:
“Espiritualidade é aquilo que produz em nós uma mudança interior
421
”. Esta perspectiva da
espiritualidade como “aquilo que produz em nós” nos leva à compreensão de que nela há algo
que se no nível da experiência. Embora considerando a gama de discussões acerca desta
palavra, tomaremos aqui as considerações de Larrosa Bondía:
[...] a experiência é, em espanhol, “o que nos passa”. Em português se diria
que a experiência é “o que nos acontece”; em francês a experiência seria “ce
que nos arrive”; em italiano “quellho que nos succede” ou “quello que nos
accade”; em inglês seria “that what is happening to us”; em alemão seria
“was mir passiert”.
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o
que se passa, não o que acontece, ou o que toca
422
.
Desta forma, podemos dizer que a espiritualidade é aquilo que “nos passa”, “nos
acontece”, “nos toca” e que em nós produz uma mudança interior. No entanto, não parece
claro de que se trata “aquilo” que experimentamos. Segue Bondía:
Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra experiência. A palavra
experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é
em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se
experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em
periculum, perigo. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes
de tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de prova. Em grego
numerosos derivados dessa raiz que marcam a travessia, o percorrido, a
passagem: peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através, perainô,
420
SUNG, Jung Mo. Um caminho espiritual para a felicidade, p. 19-20.
421
Leonardo Boff aponta esta definição mencionando uma reflexão de Dalai Lama. Diz Boff: “Agora cabe
colocar diretamente a pergunta: afinal, o que é espiritualidade? Uma vez fizeram essa pergunta ao Dalai-Lama e
ele deu uma resposta extremamente simples: ‘Espiritualidade é aquilo que produz no ser humano uma mudança
interior.’ Não entendendo direito alguém perguntou novamente: - Mas se eu praticar a religião e observar as
tradições, isso não é espiritualidade? O Dalai-Lama respondeu: - Pode ser espiritualidade, mas, se não produzir
em você uma transformação, não é espiritualidade.” BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de
transformação, p. 16.
422
BONDÍA, Jorge Larrosa. Nota Sobre a Experiência e o Saber da Experiência, p.21.
110
ir até o fim; peras, limite. Em nossas línguas uma bela palavra que tem
esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da
experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um
espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua
oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de
estrangeiro
423
, de exílio, de estranho
424
e também o ex de existência. A
experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem
essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente ex-iste” de uma
forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão,
experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-
alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo.
Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência
contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.
425
Preservamos a íntegra da explanação de Larrosa Bondía porque em seu conjunto
apreendemos tanto a complexidade, quanto a profundidade, e mesmo a beleza contida na
palavra experiência. No mais, ela nos remete à condição do sujeito da experiência:
[...] o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua
passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura.
Trata-se de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de
uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção,
como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental,
como uma abertura essencial.
O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da
experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos),
nem a o-posição (nossa maneira de opormos), nem a im-posição (nossa
maneira de impormos), nem a pro-posição (nossa maneira de propormos),
mas a ex-posição, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por
isso, é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou
se propõe, mas não se ex-põe. É incapaz de experiência aquele a quem nada
lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada
toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada
ocorre.
426
Assim, aquilo à que a espiritualidade nos conduz é à experiência de abertura
enquanto “receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma
abertura essencial
427
que nos coloca diante de nossa própria condição de seres humanos
“com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco
428
”. Diante disto, a que nos remete a
experiência? À nossa condição de seres inconclusos, ao inacabamento como condição
423
Em espanhol, escreve-se extranjero. (Nota do tradutor)
424
Em espanhol, extraño. (Nota do tradutor)
425
BONDÍA, Jorge Larrosa. Nota Sobre a Experiência e o Saber da Experiência, p.25
426
Idem
427
Idem
428
Idem
111
fundamentalmente humana e que se configura como uma “dimensão de travessia e perigo
429
”.
A experiência abre o sujeito em relação a si mesmo como “um ser que não tem essência ou
razão ou fundamento, mas que simplesmente ex-iste” de uma forma sempre singular, finita,
imanente, contingente
430
e em relação ao outro diante do qual ficamos expostos, e
perante o qual não pretendemos nos opor, propor ou impor. Desta forma, “ao contrário do
experimento que se fecha, que cerceia o homem em sua singularidade, a experiência implica
em abertura ao novo, ao desconhecido, àquilo que é dado a conhecer
431
”. Ao que nos parece, é
nesta direção que Sung inscreve sua noção de espiritualidade:
Com a noção de espiritual estou querendo falar da busca pelo sentido mais
profundo da vida, da força que nos impele a esta caminhada e nos ajuda a
superarmos as dificuldades internas e externas que enfrentamos. Assim
como da experiência gratificante de sentirmos a qualidade infinita e
transbordante que caracteriza a nossa subjetividade quando nos encontramos
“face a face” com outras pessoas. Uma noção que coloca o foco nas questões
mais profundas da nossa vida inclui a dimensão do conhecimento, mas
agrega também a noção de desejo que nos impulsiona para a ação.
432
Da compreensão de Sung, extraímos três elementos relativos à espiritualidade: ela
nos remete à nossa busca de um sentido mais profundo para vida, ela é a força que nos impele
nesta busca e nos leva a assumir suas implicações, ela se manifesta como experiência do
encontro “face a face” com o outro. Ora, diante disto temos que ao falarmos de
espiritualidade estamos falando de experiência, mas agregando um terceiro elemento: a força
que nos impele. Deste modo, esta força representa aquilo que nos provoca, que nos chama
para a experiência, para a abertura em relação a nós mesmos e aos outros. Deste modo,
espiritualidade pressupõe experiência e experiência pressupõe espiritualidade. Este chamado
se traduz como nossa vocação: vocação de ser mais, vocação para a liberdade.
Espiritualidade é a força que nos impele. É possível perguntar quem ou o que é
esta força? Para Girard o Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade cristã. Para Comblin,
Deus. Sabemos de tudo o que foi feito ao longo da história humana “em nome de Deus”. Por
isso, parece-nos relevante nos aproximar desta figura. Para tanto, tomemos a seguinte
“definição” de Rubem Alves: “Não, Deus não é um substantivo. É esta estranha conjunção,
429
Idem
430
Idem
431
NETO, Elydio dos Santos; SILVA, Marta Regina Paulo da. Por uma pedagogia da infância oprimida: uma
construção a partir de Freire e Agamben. In Caderno de Educação Reflexões e Debates n° 13, p. 48.
432
SUNG, Jung Mo. Um caminho espiritual para a felicidade, p. 19-20.
112
todavia, que enuncia a absurda ligação entre a morte que se anuncia e a vida que brota, a
despeito de tudo
433
”. Comentando esta “definição”, Sung diz:
O que significa dizer que Deus não é um substantivo, mas uma estranha
conjunção todavia? Deus não é algo ou alguém sobre quem podemos falar e
apontar como fazemos com as coisas que compõem nosso mundo. Deus é,
para R. Alves, o fundamento misterioso que permite esperar para além do
que está dado, para além da dominação, injustiça e alienação apresentados
como imutáveis e “naturais”. Deus é o nome que Rubem Alves e tantas
outras pessoas dão à força misteriosa que nos permite resistir e lutar contra
as injustiças do mundo e também contra a nossa tendência de se acomodar e
de procurar somente os nossos interesses imediatos. É essa estranha
conjunção todavia que permite ver o que ainda não é visível ou o que foi
escondido ou tornado ausente pela ideologia dominante.
434
Além das dificuldades que expusemos em relação ao termo espiritualidade,
temos que ela vem carregada de um conjunto de preconceitos exatamente por ser atrelada a
figura de Deus. Porém, nossa referência à espiritualidade vem permeada pela compreensão de
que ela se refere à
[...] uma dimensão fundamental do ser humano: a busca pelo sentido último
da vida e a conseqüente aposta na possibilidade de se viver uma vida mais
humanamente significativa e de construir uma sociedade mais justa. Mesmo
pessoas que não crêem na existência de um Deus ou de seres divinos
compartilham com os que crêem a mesma necessidade e o desejo de um
sentido último da vida que nos encante e faça valer a pena nossa
existência.
435
Sob este foco, a questão da espiritualidade ganha fundamental importância para a
educação libertadora, na medida em que ela é a força misteriosa capaz de sustentar o
compromisso com a transformação da realidade opressora. Considerando a afirmação de
Maturana de que o mundo em que vivemos depende de nossos desejos, temos que nossas
ações provêm de nossos desejos. Desta forma, ao afirmar que a espiritualidade inclui a
dimensão do conhecimento, mas agrega a noção do desejo que impulsiona nossas ações, Sung
nos remete à questão da suficiência da conscientização como instrumento da educação para a
liberdade.
Uma vez que a vocação humana de ser mais se constitui como vocação para a
liberdade e que esta é um apelo de ordem espiritual, temos que a possibilidade de
433
ALVES, Rubens. Da esperança, p. 35.
434
SUNG, Jung Mo. Educar para reencantar a vida, p. 156.
435
Ibidem, p. 151.
113
corresponder à exigência posta pela conscientização, isto é, morrer para nascer de novo como
“homem libertando-se”, pressupõe a existência de uma dimensão mais profunda que permeie
este processo, experiência de natureza espiritual que nos remete à “‘religiosidade’ presente em
todas as pessoas”, como “desejo de um sentido último da vida que nos encante e faça valer a
pena a nossa existência
436
". É desta forma que a espiritualidade se inscreve no plano da
significação da existência humana. No mais, trata-se de uma experiência de abertura que nos
remete à gratuidade das relações onde o outro é reconhecido e aceito como outro em sua
humanidade.
Comblin sustenta que este chamado não pode ser percebido senão a partir da
própria experiência humana, isto é, através do testemunho de “outras pessoas no caminho
da liberdade pela sua vida e pela sua palavra
437
”. Daí a importância da escolha do modelo que
alimenta o desejo humano, essencialmente mimético. O valor da luta pela libertação não pode
ser encontrado pela razão, mas através do fascínio que exerce o testemunho daqueles que
assumiram a libertação com suas próprias vidas. Para Sung, na medida em que não se pode
puramente ensinar os valores norteadores da vida, adquire importância “o testemunho de vida
das pessoas que nos mostre que vale a pena apostar a nossa vida nesse sentido
438
”. Isto porque
sua experiência espiritual se faz contagiante. Neste sentido, diz Leonardo Boff:
O que faz os mestres serem mestres? [...] Os mestres são mestres e Cristo é o
Mestre porque seus caminhos de vida realizaram por excelência o sentido de
todo o caminho que é o de unir dois pontos distantes e distintos. Quais são os
dois pontos? Aquilo que somos e aquilo que devemos ser; a realidade e o
projeto; o afirmativo e o imperativo. O caminho dos mestres ligou e
aproximou os dois pontos. Os mestres foram aquele que caminhando pela
vida lograram transformar o projeto cada vez mais em realidade, o dever-se
humano em ser e o imperativo em afirmativo. Quanto mais conseguiram
realizar semelhante tarefa, mais mestres se fizeram, mais evocadores e
convocadores de outros se tornaram.
439
É por seu caráter “evocador” e “convocador” que o testemunho adquire
fundamental importância na medida em que constitui modelo pelo qual “aprendemos a
caminhar com aqueles que caminharam primeiro e exemplarmente
440”
. Através da experiência
destes “mestres”, nos defrontamos com “as experiências acumuladas, codificadas,
436
SUNG, Jung Mo. Educar para reencantar a vida, p. 151.
437
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade, p. 240
438
SUNG, Jung Mo. Educar para reencantar a vida, p. 150.
439
BOFF, Leonardo. Vida segundo o espírito, p. 38.
440
Ibidem, p. 37.
114
sistematizadas e propostas como orientações aos que entram na vida e se põem a
caminhar
441
”. No entanto, isto não significa que o testemunho daqueles que caminharam
exemplarmente nos coloque diante de fórmulas às quais simplesmente devemos seguir, pois
“para o mundo das pessoas não vigora nenhuma fórmula feita. evocações, apelos,
chamados, orientações
442
”, sendo que
Cada qual vê o mundo com olho que possui e sintetiza a realidade a partir de
um centro pessoal irredutível. Mesmo que alguém se proponha seguir
fielmente os passos de Jesus Cristo ou São Francisco jamais acabará sendo
Jesus Cristo ou São Francisco. Terá seguido e construído o seu caminho, na
inspiração daqueles mestres. Em outros termos: nunca haverá um simples
uso de um caminho feito por outros. Não existem caminhos construídos para
o homem que o levem infalivelmente à meta. Ele tem de caminhar.
443
Caminhar pressupõe uma direção e, como vimos, a vida contém apelos que nos
guiam ora por caminhos que nos levam ao outro, ora por caminhos que nos fecham em nós
mesmos. Assim, temos que na dinâmica da natureza mimeticamente desejante do ser humano
se inscreve a possibilidade de escolher ou modelos que nos levem a realizar nossa
humanidade, isto é, a nos realizarmos como seres de relação que somos, ou modelos que nos
conduzem à dominação e à opressão.
Os modelos que nos remetem à humanização constituem-se como modelos a
partir de sua experiência de abertura que brota de sua espiritualidade. É esta experiência de
abertura que apreendemos daquelas pessoas que nos convocam e invocam a partir de seu
testemunho de vida a caminhar em busca de um sentido que faça valer a pena nossa vida.
Trata-se da dimensão mais profunda da realização humana que se manifesta como vocação
para ser mais enquanto vocação para a liberdade. É isso que faz do “homem novo” um
“homem libertando-se” na medida em que, consciente de sua própria condição, é capaz de
perceber-se inserido em uma dinâmica que tanto pode conduzi-lo a humanizar-se quanto a
desumanizar-se.
A partir destas considerações, compreendemos que na pedagogia libertadora de
Paulo Freire há algo que ele aponta, mas não aprofunda. Algo que se inscreve no fato de que o
campo de “atuação” da educação para a liberdade é o desejo humano, essencialmente
441
Idem
442
Ibidem, p. 39.
443
Idem
115
mimético como apreendemos em Girard. Desta forma, a conscientização, instrumento por
excelência da educação para a liberdade, não se faz suficiente porquanto ela não é capaz de
mudar a direção do desejo humano, via única pela qual é possível mudar o agir humano. Isto
porque a força que incide sob o desejo humano e o faz mudar de direção é uma força de
ordem espiritual. De que modo esta força pode atuar na educação para a liberdade? A partir
do testemunho daqueles e daquelas que nos inspiram e se fazem verdadeiros mestres que nos
evocam e convocam. Nisto se inscreve sua dialogicidade que se manifesta em seus atos de
amor, humildade e fé no ser humano, pelos quais comunicam sua experiência. Experiência de
abertura que se revela em sua busca por coerência, em sua práxis, no seu reconhecimento de
si mesmos como seres em processo, como “homens e mulheres novos” porque “homens e
mulheres libertando-se”. Como manifestação de espiritualidade. Este é para nós um desafio.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação libertadora proposta por Freire é aquela que, inscrita na luta pela
humanização, deve levar ao desvelamento da realidade desumanizadora. A conscientização
acerca das estruturas da dominação tem como objetivo o “engajamento necessário” na luta
pela libertação, aspirando a humanização tanto de opressores quanto de oprimidos uma vez
que a desumanização atinge a ambos.
O grande entrave para o “engajamento necessário” é a contraditória dualidade dos
oprimidos em sua condição de “hospedeiros” do opressor. A descoberta da realidade
opressora implica a descoberta pelos oprimidos do opressor neles internalizado, uma vez que
mantida esta dualidade não é possível aos oprimidos sua libertação. A libertação representa o
parto que trará ao mundo o “homem novo” não mais encerrado na lógica da dominação. A
exigência é morrer e nascer de novo. Nisto o medo da liberdade se faz um medo de morte.
Nossa leitura girardiana do problema do opressor internalizado no oprimido
identificado por Freire nos levou à compreensão de que a natureza mimeticamente desejante
do ser humano representa seu pano de fundo. Diante de seu desejo essencialmente mimético,
o oprimido tem o opressor internalizado em si, uma vez que este é o modelo de humanidade
que lhe é oferecido pela realidade opressora. Porém, ao imitar os desejos do opressor o
oprimido encerra a si mesmo na violência da dominação que o desumaniza.
A questão que se coloca aos oprimidos é expulsar ou não o opressor de dentro de
si, imitar ou não os seus desejos. Expulsar o opressor significa assumir sua capacidade de
significar, criar, intervir, transformar o mundo que o cerca, o que implica arriscar-se. Diante
de seu medo da liberdade, não expulsar o opressor de dentro de si significa refugiar-se em
segurança vital.
Sob ótica de Freire, a liberdade se inscreve na consciência de nosso inacabamento,
representando a condição fundamental para nossa busca permanente de nós mesmos.
Sob a ótica de Girard, seres que desejam incessantemente, mas não sabem
exatamente o que desejar porque aquilo que desejam é saciar sua carência de ser, que
precisam de modelos a quem imitar os desejos. No entanto, a escolha do modelo pode levar
tanto ao ser quanto ao não-ser.
Seu ser inscreve-se na realização de sua condição humana, cuja afirmação de sua
própria humanidade está em sua capacidade de criar, intervir e transformar o mundo, como
ser de relações cuja existência não tem nada de fixo e determinado, mas se inscreve como
117
ensaio na medida em que, a cada novo desafio que a realidade lhe coloca, precisa encontrar
novas respostas que podem levá-lo ao acerto ou ao erro. Seu caminho se faz uma via de
realização de sua práxis fundamentalmente humana.
Seu não-ser se mediante seu rebaixamento à condição dos animais, ao fazer-se
um ser que tem no mundo apenas um habitat diante do qual cabe, tão e somente, sua
acomodação. Seu caminho leva à rivalidade, à violência, à dominação, à opressão.
O medo da liberdade enquanto medo de morte faz-se medo do não-ser.
Contraditoriamente, condena os oprimidos a não-ser. Conscientizados da realidade opressora,
descobertos em sua própria condição de oprimidos e confrontados com a figura do opressor,
poderão os oprimidos se engajar na luta pela libertação? Poderão vencer o medo da liberdade
e expulsar o opressor neles internalizado?
Se a conscientização, o reconhecimento da realidade opressora, a descoberta de si
e do opressor, não resulta a libertação é porque ela é um parto doloroso em que nasce o
homem libertando-se e morre o opressor, morre o oprimido.
Sob a perspectiva de Girard, o significado deste parto é sair do ciclo mimético que
leva os seres humanos à violência e à dominação. É necessário “algo mais” que consciência
para fazer suportar a dor deste parto que é a descoberta de que sempre imitamos modelos
errados e que em nós mesmos se inscreve a realidade da violência opressora. É necessária a
força superior que ele conclui não haver nesta Terra.
Esta força superior é aquela que nos coloca diante de nossa vocação de ser mais,
de humanizar-se, de ser sujeito porquanto vocacionados para a liberdade. Liberdade que não
pode existir senão em nossa condição de seres de relação. O desafio maior de nossa liberdade
a nós se coloca na figura do outro. É em relação a outro que nós escolhemos entre ex-por-nos
ou im-por-nos, o-por-nos, pro-por-nos. É ao seu encontro que caminhamos ao reconhecê-lo e
aceitá-lo como outro. É diante do outro que reconhecemos e aceitamos a nós mesmos.
Esta força se inscreve no âmbito de nossas motivações profundas, de nossa busca
por um sentido pelo qual valha a pena viver. É uma força capaz de nos fazer mudar a direção
de nossos desejos, de nos conduzir à escolha de modelos que levem os seres humanos não à
violência e à rivalidade, mas à comunhão.
Como é possível “chegar” a esta força misteriosa?
Através daqueles e daquelas cujo testemunho nos invocam e convocam.
118
Em suas “Primeiras Palavras” sobre a Pedagogia do Oprimido, Freire afirma que
ela se trata de um “trabalho para homens radicais
444
”: “O radical, aquele que,]
comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em ‘círculos de segurança’,
nos quais aprisione também a realidade
445
”.
O desafio da libertação lança àqueles que com ela se comprometem à necessidade
de serem vigilantes em relação a si mesmos, pois “àqueles que se comprometem
autenticamente com o povo é indispensável que se revejam constantemente. Esta adesão é de
tal forma radical que não permite a quem faz comportamentos ambíguos
446
”.
Ambigüidade decorrente da dicotomia entre ação e reflexão, entre teoria e prática,
da qual resulta uma falsa práxis que se manifesta seja por um “blábláblá” sem sentido, seja
por um ativismo inoperante, que os afasta da radicalidade inerente à verdadeira práxis
libertadora:
A questão da coerência entre a opção proclamada e a prática é uma das
exigências que educadores críticos se fazem a si mesmos. É que sabem
muito bem que não é o discurso o que ajuíza a prática, mas a prática que
ajuíza o discurso. Nem sempre, infelizmente, muitos de nós, educadoras e
educadores que proclamamos uma opção democrática, temos uma prática em
coerência com o nosso discurso avançado. Daí que o nosso discurso,
incoerente com a nossa prática, vire puro palavreado. Daí que, muitas vezes,
as nossas palavras “inflamadas”, porém contraditadas por nossa prática
autoritária, entrem por um ouvido e saiam pelo outro [...].
447
Diante disto, a radicalidade pertinente à verdadeira práxis libertadora exige uma
coerência profunda, que Freire cobrava de si mesmo:
[...] a Pedagogia do oprimido é para mim um momento importante de minha
vida de que ela, Pedagogia, expressa um certo instante, exigindo, ao mesmo
tempo, de mim, a coerência necessária com o nela dito.
Entre as responsabilidades que, para mim, o escrever me propõe, para não
dizer impõe, há uma que sempre assumo. A de, vivendo enquanto escrevo
a coerência entre o escrevendo-se e o dito, o feito, o fazendo-se, intensificar
a necessidade desta coerência ao longo da existência. A coerência não é,
porém, imobilizante. Posso, no processo de agir-pensar, falar-escrever,
mudar de posição. Minha coerência assim, tão necessária quanto antes, se
faz como novos parâmetros. O impossível para mim é a falta de coerência,
mesmo reconhecendo a impossibilidade de uma coerência absoluta.
448
444
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 25.
445
Ibidem, p. 28.
446
Ibidem, p. 54.
447
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler, p. 15.
448
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança, p. 34.
119
Este é o caráter da coerência radical que representa uma exigência fundamental
para a luta pela libertação, coerência que se faz e refaz durante a própria luta ao passo que
nela se manifesta:
Sem preocupações puristas, os revolucionários devem, contudo, exigir de si
mesmos uma radical coerência. A coerência entre seu discurso e sua prática
para que não sejam uns ao falar, outros ao agir. Como homens e mulheres,
podem equivocar-se e mesmo errar; o que não podem é, num momento,
verbalizar a opção revolucionária e noutro, ter uma prática pequeno-
burguesa.
449
Peter Park diz que a força da pedagogia de Freire provinha não apenas de seu
conjunto teórico ou de sua eficácia metodológica, mas de um elemento que não tem sido
devidamente considerado e que diz respeito “à corporificação do amor em seus ensinamentos
e em sua pessoa
450
”. Este era o elemento que banhava “[...] o comportamento de um homem
experiente na arte de criar relacionamentos pessoais por meio do desvendar de sua alma para
aqueles(as) que lhe eram caros(as): seus ouvintes que estavam lá para dialogar com ele
451
”:
Em encontros pessoais, quer públicos, quer particulares, Freire aparecia
como uma corporificação do humanismo que sua pedagogia estimula. Ele
nos impressionava com a generosidade de espírito, que o fazia considerar
qualquer forma de solicitação de atenção em público uma pergunta, um
comentário ou até mesmo um desafio com respeito e mente aberta. Ao
mesmo tempo, ele nos tocava com sua humildade, a qual não era fruto de sua
falsa modéstia, para dizê-lo com suas próprias palavras.
452
Freire era daqueles homens cuja presença não podia passar despercebida. Um
homem capaz de nos tocar pois sua experiência de abertura, sua alma desvelada, nele
afloravam. É porque “Paulo Freire ensinava com sua pessoa
453
”, que “é fácil perceber porque
as pessoas se apaixonam por sua pedagogia e pela sua própria pessoa
454
”:
Os escritos de Freire, especialmente a Pedagogia do oprimido, estão
infundidos de uma paixão que advém de sua enfática identificação com a dor
449
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade, p. 93-94.
450
PARK, Peter. O amor na pedagogia de Paulo Freire. In FREIRE, Ana Maria Araújo (Org.). A pedagogia da
libertação em Paulo Freire, p. 198.
451
Ibidem, p. 200.
452
Ibidem, p. 201.
453
Ibidem, p. 199.
454
Ibidem, p. 201.
120
dos(as) oprimidos(as). Essa paixão arrebata o(a) leitor(a). Seus escritos
deixam claro que ele se consagra à causa dos oprimidos(as), o que torna
simples e natural que o(a) leitor(a) seja levado(a) a um tipo de coalizão,
senão união, com o autor. Isto é ainda mais verdadeiro nas situações em que
o leitor tenha tido experiências pessoais com a opressão ou dela tenha
tomado conhecimento.
Freire está muito presente em seus escritos, ensinando não apenas por meio
do contar, mas convidando o(a) leitor(a) a juntar-se a ele em suas idéias e
práticas revolucionárias.
455
Talvez este seja o significado mais profundo presente na dedicatória que abre a
sua Pedagogia do Oprimido: “Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e,
assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam
456
”.
Assumir a causa dos esfarrados do mundo, enquanto ato de amor é um ato de
liberdade, que nos leva na direção do outro diante do qual temos que fazer algo. Nossa
resposta pode nos levar ao encontro ou ao desencontro, ao reconhecimento de sua
humanidade ou não, a abrir-nos em relação a ele ou a fechar-nos em nós mesmos, à comunhão
ou à rivalidade. De nossa própria condição nos advém um obstáculo: o medo da liberdade.
Antes de mais nada, reconhecemos que é normal sentir medo. Sentir medo é
uma manifestação de que estamos vivos. Não tenho que esconder meus
temores. Mas, o que não posso permitir é que meu medo seja injustificado, e
que me imobilize. Se estou seguro do meu sonho político, então uma das
condições para continuar a ter esse sonho é não me imobilizar enquanto
caminho para sua realização. E o medo pode ser paralisante. Neste momento,
estou tentando ser didático na interpretação desse problema.
Agora, estou reconhecendo o direito de sentir medo. Entretanto, devo
estabelecer os limites para “cultivar” o meu medo (rindo). Cultivá-lo
significa aceitá-lo. [...]
Sim! O medo existe em você, precisamente porque você tem o sonho. Se seu
sonho fosse o de preservar o status quo, então o que você teria a temer? Seu
medo pode estar voltado para as forças na sociedade que estão lutando
contra o status quo. Você está vendo? Então, você não precisa negar seu
medo. Se você racionaliza o medo, então nega o sonho. Para mim, é
necessário ser absolutamente claro a respeito desses dois pontos: o medo
vem de seu sonho político, e negar o medo é negar o sonho.
457
“Cultivar” o medo representa um ato de aceitação de nossa própria condição. É
como seres inconclusos que somos que nos vemos diante de nosso ensaio pela sobrevivência.
Neste ensaio cabe-nos tanto o acerto quanto o erro. Mas temos medo de errar. O erro traz
455
Ibidem, p. 198.
456
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. p. 23. O grifo é nosso.
457
FREIRE, Paulo. Medo e ousadia, p. 39.
121
insegurança, ameaça nossa existência. Por isso preferimos “caminhos prescritos” que
assegurem o refúgio em nossa segurança vital, afinal, eles não nos levam aos riscos de nossa
liberdade. Se o medo de amar é o medo de ser livre, a corporificação do amor em Paulo Freire
nos remete à sua capacidade de “cultivar” o medo como ato necessário para sua liberdade.
Freire nos fala por seu exemplo. É a conexão profunda entre o dito e o feito, sem
o que não seria um homem da práxis, é sua dialogicidade encarnada que convoca à sua mais
profunda motivação: a identificação com a dor daqueles e daquelas que sofrem, dos oprimidos
e oprimidas onde quer que eles estejam.
Esta é uma experiência de abertura. A radicalidade é a qualidade daquele “homem
novo” que se sabe não homem liberto”, mas “homem libertando-se”. E porque se reconhece
como ser em processo sabe que a utopia é apenas uma meta longínqua cujo único objetivo é
nos impedir de ceder ao imobilismo, é nos fazer caminhar.
É a experiência profunda de descobrir a si mesmo no outro esfarrapado que nos
leva não apenas a compadecer-nos de seu sofrimento, mas a lutar com ele pela libertação. É a
experiência de ver, no rosto dos esmagados pela opressão, vítimas injustamente condenadas
diante das quais temos que reconhecer nossa própria responsabilidade.
Para Freire, ao nos fazermos cúmplices da violência opressora, negamos o ato de
amor pelo qual Deus deixa sua própria condição para permitir que o ser humano possa ser.
Por outro lado, “ser inacabado que é e cuja plenitude se acha na ligação com seu Criador
458
”,
“tem o homem na transcendência, pelo amor, o seu retorno à sua Fonte, que o liberta
459
”. É
essa ligação e retorno à sua Fonte, que Freire expressa ao corporificar o amor em seus
ensinamentos e em sua prática. O amor é a expressão de sua espiritualidade.
O que nos diria René Girard se lhe pedíssemos para falar sobre Paulo Freire?
Certamente, Girard diria que Freire representa um daqueles modelos cuja imitação
do desejo nos afasta da violência mimética porquanto nos remete ao “desinteresse divino”.
458
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade, p. 48.
459
Idem
122
Diria que Freire é um exemplo daqueles sobre quem agiu a força superior, inexistente na
Terra, mas única capaz de vencer os impulsos miméticos. Força que os Evangelhos
denominam “Espírito Santo”. Força que o levou a detectar a inocência das vítimas e a
reconhecer em si mesmo a culpa pela sua condenação. Força que o levou a compreender que
nós somos miméticos sim, mas que não precisamos ser satânicos.
O que Freire nos explica mais que em seus escritos e ensinamentos, em sua
própria pessoa, e que as idéias de Girard nos ajudam a compreender, é que não é possível
pensar uma pedagogia libertadora sem levar a sério a questão da espiritualidade. O trabalho de
conscientização é necessário, mas não suficiente, pois a opção que leva ao compromisso com
a libertação é uma questão relativa ao desejo. O plano do desejo humano é o plano da
espiritualidade.
A espiritualidade é portadora da força misteriosa capaz de nos levar à conversão
de nossos desejos, a ouvir os apelos que nos levam ao outro e que representa o encontro
conosco mesmos. É a espiritualidade a portadora desta experiência de abertura sem a qual não
podemos “cultivar” nosso medo da liberdade, sem a qual não podemos morrer para nascer de
novo, sem a qual não podemos fazer-nos homens e mulheres libertando-se.
Que esta força misteriosa que nos impele, abra caminhos para que surjam estudos
sérios de aproximação e aprofundamento entre espiritualidade e antropologia, espiritualidade
e educação, espiritualidade e transformação social. Estudos que abram perspectivas para uma
leitura do conteúdo das diversas tradições religiosas a partir da identificação do elemento que
lhes é comum, a perspectiva da espiritualidade como um elemento antropológico.
Desta caminhada, cujo resultado apresento neste breve ensaio, fica a certeza de
que ela representou uma oportunidade fecunda de superação, de cultivo” do meu próprio
medo da liberdade. Cabe-me, daqui por diante, considerar e assumir os desafios e
responsabilidades que por meio dela a mim vierem.
123
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