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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
CRISPIM ANTONIO CAMPOS
ESPERANÇAS EQUILIBRISTAS:
A INCLUSÃO DE PAIS DE FILHOS COM
DEFICIÊNCIA
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
CRISPIM ANTONIO CAMPOS
ESPERANÇAS EQUILIBRISTAS:
A INCLUSÃO DE PAIS DE FILHOS COM
DEFICIÊNCIA
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Tese apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de
Doutor em Psicologia Social,
sob a orientação da Profa. Dra.
Mary Jane Paris Spink.
SÃO PAULO
2007
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Banca Examinadora
_____________________________________
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Ao futuro e à esperança
de Camila, Felipe e Bruno.
Aos pais e sua contínua
perseverança.
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Aquele que amo
Disse-me
Que precisa de mim.
Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morta
Por uma só gota de
chuva.
BERTOLT BRECHT
Poemas 1913-1956
6
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Mary Jane Spink por apostar em mim e nessa pesquisa nos
instantes mais difíceis, pelo seu carinho e respeito dedicados ao longo deste
trabalho.
Ao Prof. Dr. José Leon Crochik e ao Prof. Dr. Odair Sass pelas suas
contribuições a este trabalho.
Ao Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa pelas sugestões a esse trabalho.
À Profa. Dra. Consuelo de Paiva G. Costa e ao Prof. Dr. Francisco de Fátima
da Silva que corrigiram essa tese e sugeriram valiosíssimas intervenções,
sem eles esse trabalho não existiria, os meus sinceros agradecimentos.
Ao Prof. Dr. José Roberto Zan e a Profa. Dra. Dirce Djanira Pacheco e Zan
pela amizade, pelo carinho, pelas sugestões durante a execução desse
trabalho. A vocês minha gratidão e meu reconhecimento.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação da Psicologia Social
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo os meus agradecimentos,
pelo carinho e pela consideração.
Ao Prof. Dr. Márcio Pochmann pelo incentivo e colaboração para que esse
trabalho fosse realizado, os meus maiores agradecimentos.
Ao Prof. Daner Hornich amigo e companheiro de trabalho, pelas
contribuições de leitura e discussões sem conta, pela sua gentileza, carinho
e amizade, o meu muito obrigado.
Aos queridos professores, amigos e companheiros de trabalho e de
esperanças, com quem compartilhei grande parte dessas discussões: Kátia
Boschero, Claudia DeNardi, Cristina Tempesta, Fernando Rumstein,
Ricardo Benetton Martins (in memorian), Regiane, Álvaro, Marcos Francisco,
Severino Moreira Barbosa, Regis Toledo, Salete Affonso Pedroni (in
memorian) e João Felix Andreis, o meu muito obrigado a todos vocês.
A Piera Prandoni, Ricardo Lidington e Simone Toulois Lidington, Suzana
Boni de Meirelles, Liomar Quinto de Andrade, Adelaide Costa, Milder
Facchini Júnior, Carlos Latuf, Márcia Bittar, Cristiane Franco Barbosa
Ribeiro, Agnesa Soligo (in memorian), Wagner Campagnone, Mônica Gentil (in
7
memorian), Heloisa Crissiuma (in memorian), Maria Aparecida de Almeida
Cretes, Vera Lucia Moreira dos Santos, Célio Carvalho Lima, Neyde Thadeu
Lima, Cícero, Rosa, Nathália, Renato, Gabriel e Thiago, Alfredo Campos,
Regina e Dalva Campos, amigos de longos anos e de convivências
incontáveis, meus agradecimentos pelas suas contribuições a esse trabalho.
À Helen Justino, pelas colaborações valiosas na digitação desse trabalho,
pelos cafés e pelo incentivo, o meu muito obrigado.
Aos funcionários da Biblioteca da Unisal Americana: Terezinha Galan (Zizi),
Janete Dutra, Virgínia Souza, Jamiris Calia e Jonatas de Carvalho.
À Marlene, secretária do Programa de Psicologia Social da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, os meus agradecimentos.
Aos pais entrevistados que contribuíram valiosamente para que esse
trabalho tivesse seus depoimentos, sua participação, seus relatos e parcelas
de vida, a todos eles o meu respeito, gratidão e reconhecimento.
8
RESUMO
Esta tese aborda as experiências de pais que possuem filhos com
deficiência e a necessidade de repensar a inclusão social desses mesmos
pais. Tem como objetivo, conhecer um pouco mais de seu cotidiano em
relação à deficiência e suas complexidades, descrever as características
desse tipo de família, discutir ainda o preconceito que recai também sobre os
filhos, problematizar a cidadania em relação à educação inclusiva, analisar
os procedimentos e os dados obtidos em nossa pesquisa. Partimos de uma
abordagem psico-social para darmos conta dessas discussões que são
caracterizadas pelos relatos e depoimentos dos pais. O trabalho discute o
papel dos pais e suas relações com o preconceito, a educação inclusiva e a
cidadania que são questões diretamente relacionadas aos pais e à
deficiência. As entrevistas com os pais refletem suas histórias de vida e nos
permite concluir que se houver uma maior participação deles nas políticas
sociais, considerando que, se os pais forem também inclusos, haverá
também maior inclusão de seus filhos. A discussão teórica precede os
depoimentos, e esses últimos a complementam. Os depoimentos descrevem a
realidade dessas famílias, e a teoria procura demonstrar que a preocupação
com a inclusão social não deve ter como foco sómente os filhos, mas de
maneira similar os pais, uma vez que estes constituem, primeira e
definitivamente, o núcleo no qual a pessoa com deficiência se desenvolve.
Apesar de comumente se pensar a escola como unidade de inclusão social,
esse trabalho pretende evidenciar a importância de se iniciar um trabalho
inclusivo que abarque os pais, de forma a fornecer-lhes algum suporte no
seu enfrentamento com a deficiência.
PALAVRAS-CHAVE: inclusão social, pais, filhos, deficiência, psicologia
social.
9
ABSTRACT
This thesis approaches the parent’s experiences who possess children
with disability and the necessity of rethinking the social inclusion
concerning to those parents. Its aim is to know a little bit more their daily
life in relation to the disability and its complexities, to describe the features
of this kind of family, to discuss the prejudice towards their children, to
criticize the citizenship role upon inclusive education, to analyse the
procedures and the data obtained from our research. One starts from a
psychosocial approach in order to understand better all those discutions
wich are defined by parents reports and testimonies. This work talks about
parents role and their relations to the prejudice, to the inclusive education
and to the citizen ship, wich are issues directly related to the disability. The
interviews extracted from the parents testimonies show us their life stories,
and they allow us to conclude that if there is a greater participation in social
life, considering that if the parents will be included in social policies, so will
be their children. The theoretical discussion precedes the testimonies, and
those ones supplement it. The testimonies describe the families reality, and
the theories serves to demonstrate that the preoccupation towards the social
inclusion should not only concern to the children, but also to the parents,
since they constitute once for all the nucleus in which the person with
disability develops itself. Despite of considering the school as a unit of social
inclusion, this work intends to highlight the importance in starting an
inclusive task wich involves the parents, so that it can provide some support
in their struggle against disability.
KEY-WORDS: social inclusion, parents, children, disability, social
psychology
10
RESUMÉ
Cette thèse aborde les expériences des parents qui possèdent enfants
handicapés et la nécessité de penser à nouveau l’inclusion sociale de ces
mêmes parents. Elle a pour but de connaître un peu plus leur par rapport
au handicap et ses complexités, décrire les caractéristiques de ce type de
famille, discuter ancore le préjugé qui tombe aussi sur les enfants,
problématiser la citoyenneté par rapport à l’ éducation inclusive, analiser les
procédés et les données obtenus dans notre recherche. On commence ainsi
par une approche psychosociale afin de faires les discussions, qui sont
caracterisées par des histoires des parents. Le travail discute le rôle des
parents et leur relations avec le préjugé, l’ education inclusive et la
citoyenneté qui sont questions liées au problème du handicap. Les entretiens
avec les parents sont produits de leurs histories de vie et ils nos permet de
conclure que s’il y a une plus grand participation de ces mêmes individus
dans les politiques sociales, en considérant que si les parents sont aussi
inclus, il y aura une inclusión encore plus efficace de leurs enfants. La
discussion théorique précède les témoignages et ceux derniers la
complément. Les témoignages décrirent la réalité de ces familles, et la théoríe
cherche à démontrer que le souci de la famille avec l’inclusion sociale ne doit
pas se réduire aux enfants, mais de même il doit avoir avec les parents,
puisqu’ils sont d’abord le centre dans lequel la personne handicapée se
développe. Même qu’on pense l’école comme unité d’inclusion sociale, ce
travail prétend mettre au clair l’importance de commencer un travail inclusif
que prend en compte les parents de façon a leur fournir quelque soutien
dans leur lutte vis-à-vis d’une déficience.
MOTS-CLÉS: inclusion sociale, parents, enfants, handicap, psychologie
sociale.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................... 12
CAPÍTULO I ......................................................................................... 16
A FAMÍLIA E SUAS RELAÇÕES COM A DEFICIÊNCIA ........................... 16
1.1 A INSTITUIÇÃO FAMÍLIA ........................................................................ 16
1.2
A FAMÍLIA NO CONTEXTO DA DEFICIÊNCIA ............................................... 21
CAPÍTULO II ....................................................................................... 30
A DEFICIÊNCIA, O ESTIGMA E O PRECONCEITO ................................. 30
2.1
SOBRE A ESTRANHEZA PERANTE A DEFICIÊNCIA ....................................... 30
2.2 - ESTIGMAS E ESTEREÓTIPOS .................................................................. 33
2.3 - OS PRECONCEITOS ............................................................................. 35
2.4 - A DEFICIÊNCIA E A TERMINOLOGIA: AS ARMADILHAS DA LINGUAGEM ............. 40
CAPÍTULO III ...................................................................................... 44
SOBRE A POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO DOS PRECONCEITOS:
CIDADANIA E EDUCAÇÃO INCLUSIVA ................................................. 44
3.1 CIDADANIA E EDUCAÇÃO INCLUSIVA : A MUTUALIDADE DOS DOIS CONCEITOS 44
3.2 - A EDUCAÇÃO INCLUSIVA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS ................... 46
3.3 A INCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA PELA EDUCAÇÃO: A RELAÇÃO
ENTRE PAIS E ESCOLA
. ................................................................................ 52
CAPÍTULO IV ...................................................................................... 63
PROCEDIMENTOS DE PESQUISA ......................................................... 63
4.1 - HISTÓRIAS DE VIDA ............................................................................ 63
4.2 - PARTICIPANTES .................................................................................. 64
4.3
PROCEDIMENTOS ............................................................................... 69
4.3.1 - Coleta de Dados ............................................................................. 69
4.3.2 – Análise dos dados ......................................................................... 69
CAPÍTULO V ........................................................................................ 71
ENFRENTANDO A DEFICIÊNCIA .......................................................... 71
5.1
O DIAGNÓSTICO ................................................................................ 71
5.2 ROTINA ............................................................................................ 78
5.3 A MORTE NO HORIZONTE: MEDOS E INCERTEZAS A SEREM ULTRAPASSADOS ... 85
CAPÍTULO VI ...................................................................................... 94
A INCLUSÃO NO DEPOIMENTO DOS PAIS ............................................ 94
6.1
A RELAÇÃO INEVITÁVEL COM AS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE ........................... 94
6.2
SOBRE A POSSIBILIDADE DA INCLUSÃO PELA VIA DA ESCOLA ..................... 102
12
À GUISA DE CONCLUSÃO .................................................................. 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................... 111
INTRODUÇÃO
Toda esperança traz consigo um medo,
e todo medo cura-se ao tornar-se a
esperança correspondente. Foi por sua
natureza mutável, instável e inquieta
que esses sentimentos foram incluídos
pela Antiguidade Clássica entre os
males da caixa de Pandora.
O que a alma exige do espírito, nessa
situação desconfortável, não é tanto um
dom profético para prever o futuro, e,
assim confirmar a esperança ou o
medo.
HANNAH ARENDT
A vida do espírito
Esta pesquisa trata dos pais de crianças e adultos com deficiência,
enfatizando suas relações, seja no âmbito interno, seja no externo. Quanto
ao âmbito interno, buscamos problematizar as implicações da presença de
uma pessoa com deficiência no convívio familiar, considerando a percepção
da família diante deste fato. O impacto, o cuidado e a forma de estruturação
familiar são temas que serão tratados no Capitulo I. Quanto ao âmbito
externo, os pais terão que conviver com as questões relacionadas ao
preconceito e discriminação.
Quando uma pessoa apresenta algum tipo de deficiência – seja ela
originada em fatores genéticos
1
ou em fatores externos, como um acidente -
o efeito que esse fato tem sobre a família é quase sempre desestruturador. Se
1
Consideramos dois tipos de deficiência originada em fatores hereditários: os de percepção
imediata – como, por exemplo, os problemas de má formação – e aqueles que só irão se
manifestar ao longo da vida – dos quais um exemplo é a esclerose múltipla.
13
a exclusão na sociedade moderna atinge a todos, a incerteza atinge
sobremaneira as pessoas com deficiência e suas famílias.
Nesse contexto, os pais possuem pouca ou quase nenhuma
informação técnica sobre questões genéticas ou médicas e ou cuidados que
deverão ser tomados após esse acontecimento. Isso faz com que eles tenham
a necessidade premente de buscar apoio em entidades que prestam esse tipo
serviço como forma de facilitar a assistência aos filhos. Dessa forma, sob o
impacto inicial da deficiência, os pais têm que assimilar, em curto espaço de
tempo, informações, orientações, práticas médicas e condutas familiares
envolvendo inúmeros fatores que darão outras configurações no seu modo de
vida.
O objetivo do presente trabalho é problematizar a inclusão social dos
pais que possuem filhos com deficiência a partir de suas próprias
observações e relatos, que podem ser utilizados como indícios das
dificuldades de sua inserção social. A respeito dessa dificuldade Léo
Buscaglia
2
afirma que:
Embora possam não se dar conta disso, a criança que nasce com
uma deficiência e o adulto que sofre um acidente que o incapacita
serão limitados menos pela deficiência do que pela atitude da
sociedade em relação àquela. É a sociedade, na maior parte das
vezes, que definirá a deficiência como uma incapacidade, e é o
indivíduo que sofrerá as conseqüências de tal definição (BUSCAGLIA,
1997, p. 21).
Essas conseqüências se resumem na chamada exclusão social.
Partimos do pressuposto que essa exclusão está associada, sobretudo, ao
preconceito, à estranheza e à estigmatização, temas que serão abordados no
Capítulo II.
Em nosso entendimento, uma das características para a superação
dos preconceitos pode ser a inclusão através educação. Acreditamos que ela
pode propiciar uma maior visibilidade social de pais e filhos, podendo
representar uma maior integração social, por meio da qual a sociedade
“toma conhecimento” da existência desses grupos e, como resultado,
2
Escolhemos dialogar nesta tese com Léo Buscaglia por suas reflexões contundentes sobre
pais de pessoas com deficiência e seus “enfrentamentos” sociais.
14
promover uma maior equanimidade social. Para tanto, faz-se necessário falar
de algumas vertentes teóricas, que possam explicar as relações de pais e
filhos com deficiência, e a possível construção da cidadania no âmbito
escolar. Esses temas serão abordados no Capítulo III.
No Capítulo IV, retomamos o objetivo principal da Tese: entender as
possibilidades de inclusão social como forma de superação das dificuldades
decorrentes do preconceito e do cuidado cotidiano das pessoas com
deficiência. Para tanto, entrevistamos os pais com o objetivo de conhecer
suas histórias de vida. Os dados obtidos foram analisados em duas
perspectivas:
a) O enfrentamento da deficiência e as dificuldades vivenciadas
pelos pais.
b) A vivência do preconceito e seus depoimentos sobre o
enfrentamento da deficiência.
Os depoimentos dos pais se encontram nos Capítulos V e VI, por
tratarem de temas distintos. Naquele, os depoimentos fazem alusão à
maneira como os pais reagem o diagnóstico da deficiência, como lidam com
suas rotinas (há pais que trabalham para o sustento da própria casa) e como
lidam com a expectativa de sua própria morte. Neste, discutimos a relação
inevitável com as instituições de Saúde (há casos em que a ausência de
atributos como o zêlo e a abnegação resultam em uma negligência de pais
ausentes que deixam seus filhos à sorte das instituições ou até mesmo ao
completo abandono). Além disso, apostamos na possibilidade de inclusão de
seus filhos pela escola.
Esta aposta não é nada mais do que a esperança traduzida em nosso
título, que traz ao mesmo tempo a urgência do equilíbrio nas relações
sociedade e indivíduo, e principalmente se este é o sujeito com deficiência. A
esperança também é dos pais que funciona como um paliativo ao lidar com a
ausência de políticas públicas e com seu distanciamento do ambiente
escolar. É com essa realidade, que os pais, como equilibristas que são,
sempre buscam o caminho da inclusão necessária.
Para terminar, consideramos que esse trabalho pode ser uma
contribuição para um melhor entendimento da relação pais e filhos com
15
deficiência. Espera-se ainda, dar-lhes maior visibilidade, contribuindo para
que uma política pública que os ampare e os ajude, seja eficaz em termos de
inclusão conjunta. Mais do que ser ouvidas, essas famílias necessitam ter
seus anseios atendidos, embora esta seja uma lacuna presente não apenas
no âmbito da deficiência, mas em todos os grupos excluídos. Como nos
indica Martins:
A exclusão moderna é um problema social porque abrange a todos: a
uns porque os priva do básico para viver com dignidade, como
cidadãos; a outros porque lhes impõe o terror da incerteza quanto ao
próprio destino dos filhos e dos próximos (MARTINS, 2002, p. 21).
Se estas famílias não são percebidas como participantes plenos da
sociedade, elas ficam relegadas ao silêncio e à impossibilidade de se
manifestarem no campo individual e sócio-político. Consideramos, assim,
que este trabalho pode trazer algumas contribuições à interpretação da
diferença e prospecção da igualdade necessária para que os pais conquistem
a singularidade do locus social de sua representação, sua importância
enquanto indivíduos e grupos sociais.
16
CAPÍTULO I
A FAMÍLIA E SUAS RELAÇÕES COM A DEFICIÊNCIA
Sei que, se pudéssemos penetrar nas
famílias enquanto as crianças são muito
jovens para lidar com alguns dos
problemas sociais difíceis, mudaríamos as
famílias [...]
PATRÍCIA DEUS
1.1 – A instituição família
A família se constitui, historicamente, como o primeiro grupo decisivo
no desenvolvimento de qualquer ser humano. Estruturalmente, ela é um
conjunto de pessoas que se relacionam consanguineamente e se consolidam
por meio da hereditariedade, outorgando-lhes um caráter de continuidade.
Vejamos o que escreve Bott:
A pressuposição implícita parece ser de que os parentes são, de
alguma forma, parte de nós mesmos e nós somos parte deles, até
mesmo quando nunca os havíamos visto antes. Podemos desfazer
completamente uma amizade mas não podemos desfazer
completamente uma relação “consangüínea” (...) Eles dão um
sentimento de continuidade. Devemos necessariamente morrer, mas
a nossa família, no sentido geral, prossegue (BOTT, 1976, p. 153).
Além disso, ela se caracteriza pelas relações de interdependência, de
tal forma que esses atributos a consolidam como grupo familiar. Horkheimer
e Adorno apontam o que seria esta instituição familiar dizendo que
17
para compreendê-la é necessário ter em conta o antagonismo que,
desde o começo da sociedade burguesa, passa através da instituição
familiar. No seio de um ordenamento total determinado pelo sistema
de troca e, portanto, pelo racionalismo individual dos homens em
seu trabalho, a família manteve-se como instituição essencialmente
feudal, baseada no princípio do “sangue”, do parentesco natural
(ADORNO & HORKHEIMER, 2000, p. 137).
Ela é parte intrínseca e fundamental, ainda, na formação da cultura e
dos valores, pois ela interfere justamente no lugar que ocupa, ou seja,
estabelece uma relação de dependência ao se comprometer com o
desenvolvimento da moral e ao atendimento das necessidades físicas,
psíquicas ou sociais. Sarti, considerando o universo familiar, nos sugere
que:
(...) tanto para o homem como, particularmente para a mulher, que
tem uma posição subordinada na hierarquia familiar – é expressa
fundamentalmente como uma questão de ordem moral. Tal
dificuldade aparece como incongruência em seu universo moral,
onde os elos de obrigações em relação a seus familiares prevalecem
sobre os projetos individuais (SARTI, 2003, p. 20).
Bosi também reflete sobre a importância desse grupo social,
acentuando o papel que exerce a família em nossa personalidade:
De onde vem, ao grupo familiar, tal força de coesão? Em nenhum
outro espaço social o lugar do indivíduo é tão fortemente destinado.
Um homem pode mudar de país; se brasileiro, naturalizar-se
finlandês; se leigo, pode tornar-se padre; se solteiro, tornar-se
casado; se filho, tornar-se pai; se patrão, tornar-se criado. Mas o
vínculo que o ata à sua família é irreversível, será sempre o filho da
Antonia, o João do Pedro, o “meu Francisco” para a mãe. Apesar
dessa fixidez do destino nas relações de parentesco, não há lugar
onde a personalidade tenha maior relevo. Se, como dizem, a
comunidade diferencia o indivíduo, nenhuma comunidade consegue
como a família valorizar tanto a diferença de pessoa a pessoa (BOSI,
1994, p. 425).
Do ponto de vista prático e político a família continua a ocupar um
lugar de destaque na sociedade. Talvez em nenhuma outra instituição haja
tanto espaço e cuidados em torno da diferença. Autores como D’Incao
(1989), Bott (1976) e Vitale (1995) consideram a família como um sistema
cujo fim é o pertencimento e a diferenciação sociais e, por princípio, é
criadora da matriz social que possibilita a identidade e desenvolvimento de
18
seus indivíduos na vida social. Tanto em termos de necessidades físicas,
quanto em termos de formação moral.
Em outros termos, o dever e a moral nos levam, também, a valorar a
instituição família, pois podem ser vistos como condição para que se
estabeleça os vínculos familiares, dando lhes a necessária durabilidade.
Dessa forma, a esfera da intimidade, fundamental para a concepção da
família, é, na verdade, de cunho social, marcada pelas dimensões do
trabalho assalariado e pelo desenvolvimento da sociedade burguesa em sua
dimensão histórica.
3
Portanto, a família como referência simbólica é o
privilégio da ordem moral sobre a ordem legal, a palavra empenhada sobre o
contrato escrito, o costume familiar sobre a legislação, como nos sugere Sarti
(2003).
Podemos afirmar que o modelo de família da sociedade burguesa
ocidental é patriarcal. Ao pai são destinadas as responsabilidades de
sustento da casa, além disso, sua condição hegemônica permite que delibere
e decida sobre o patrimônio e outras instâncias, o que confere à figura
paterna uma posição de poder. O papel da mãe resume-se à dimensão do
lar: a ela cabe o cuidado dos filhos, a manutenção da rotina da casa.
Esse status da figura paterna é conservado, uma vez que o pai
mantém o patrimônio da família, sua herança, perpetuando, assim, a
própria ordem social vigente. Nesse sentido, a família, nessa formação
burguesa, constitui-se como guardiã do capital.
Assim, a família depende da realidade social que a cerca, mesmo em
suas estruturas mais íntimas. É justamente essa particularidade que a torna
uma instituição. Ela se apresenta como um universo constelado por pessoas
com um nível acentuado de intimidade, nível esse que vem se alterando
significativamente. Apenas na época moderna a família começa a sofrer
transformações. De acordo com Trigo:
A passagem de uma sociedade restrita como a burguesia agrária do
início do século para um meio social mais complexo com o aumento
de oportunidades traz uma mudança nas determinantes de
igualdade como se, na complexidade da vida moderna, cada
indivíduo estivesse inserido em vários “campos” nos quais ele
3
Ver D’INCAO, 1989, p. 57.
19
encontra pontos de identificação com outro. A substituição da ordem
estamental pela sociedade de classes faz com que as variáveis que
identificam os agentes sociais como iguais não sejam mais a de
parentela mas as de nível de instrução, profissão e poder aquisitivo
(apud D’INCAO et alii, 1989, p. 91)
Então, na particularidade do núcleo em que se constitui a família, a
construção social da infância é diretamente ligada à construção social da
família. Não são raros os exemplos em que a crise dos valores da
humanidade parece refletir-se diretamente no universo familiar, conforme
alerta Adorno e Horkheimer:
A crise da família é a crise de desintegração da humanidade.
Enquanto se vislumbra a possibilidade de uma total realização do
direito humano na emancipação da mulher, obtida em virtude da
emancipação da sociedade, não é menos previsível uma recaída na
barbárie, tão depressa ocorra a atomização e dissolução da
coletividade (ADORNO & HORKHEIMER, 2000, p. 141).
Essa ordem social, mantida ao longo dos séculos XIX e XX, começa a
sofrer alterações das quais decorrem mudanças significativas nos papéis
daqueles que compõem a família. Na década de 1960, a organização social e
os movimentos populares vinculavam a instituição família aos regimes
políticos totalitários, como se ela fosse um microuniverso destes. É como se
ela refletisse espaços da reprodução do autoritarismo e do capital. Sawaia
comenta esta questão quando diz que:
Nos anos 60, nas teorias e nas práticas sociais críticas, a família é
vista como antagônica à organização popular e aos movimentos
sociais. Ela é o espaço da reprodução do capital e da alienação;
garante, por meio da ação da mãe (boa gestora da pobreza), a
socialização menos rebelde e menos dispendiosa; é menosprezada
como o lugar da intimidade, das emoções e da irracionalidade, como
mediação privilegiada da reprodução da desigualdade e do
autoritarismo (SAWAIA, 2003, p. 41).
Ainda nesse período, autores como Laing (1967) e Cooper (1970) vêem
a família como a força individualizada contrária ao desenvolvimento humano
e à personalidade e propõem, inclusive, que a educação dos filhos seja
realizada longe dos pais e de qualquer estrutura familiar, com pessoas
20
profissionalmente aptas à complexa e densa educação das crianças (como se
isso fosse possível nessa sociedade).
Além disso, as mudanças históricas incidiram também sobre a moral
intrínseca ao modelo de família e casamento. Se antes essa instituição não
acolhia a idéia do amor estrito, visto que as famílias correspondiam a
alianças que tinham por objetivo a conservação e multiplicação das fortunas,
hoje em dia, ela nasce mais autônoma em relação a essas alianças, ainda
que a idéia (ou idealização) do amor seja exatamente seu ponto crucial. O
que se observa é uma mudança nos papéis dos indivíduos que compõem a
família. Nesse sentido, Sarti nos indica algumas questões referentes à
divisão das obrigações no universo familiar, quando sugere que:
A distribuição da autoridade na família fundamenta-se, assim, nos
papéis diferenciados do homem e da mulher. A autoridade feminina
vincula-se à valorização da mãe, num sentido simbólico em que a
maternidade faz da mulher mulher, tornando-a reconhecida como
tal, senão ela será uma potencialidade, algo que não se completou.
Outro importante fundamento da autoridade da mulher está no
controle do dinheiro, que não tem relação com sua capacidade
individual de ganhar dinheiro, mas é uma atribuição de seu papel de
dona-de-casa (SARTI, 2003, p. 64).
Como já apontamos então, sobre a família vem incidindo a disciplina,
a pressão social e a sobrevivência que atinge todos os seus membros.
Embora a mulher atue no mercado de trabalho, é através desse mesmo
trabalho que essas pressões se efetivam. Dessa participação decorre a
manutenção e o pleiteamento de sua individualidade, e também as
redefinições de responsabilidades, rotinas e obrigatoriedades próprias do
universo familiar.
Esse quadro pode se alterar tanto em famílias pobres (onde, muitas
vezes, a figura do pai sequer existe) quanto em famílias ricas (nos casos em
que a boa situação econômica se reverte em conhecimento e emancipação).
No entanto, é na classe mais pobre que esse conflito tende a se tornar mais
evidente, pois as mães não podem escolher entre ficar e cuidar da casa e dos
filhos ou sair e ajudar a sustentá-la (ou mesmo fazê-lo sozinha), na grande
maioria dos casos.
21
Para Adorno e Horkheimer, hoje, a família se constitui como
instituição cultural, cerceada pela sobrevivência e ameaçada também por
ela. Em seus dizeres:
A existência da família só pode ser hoje preservada como “instituição
de cultura” neutralizada e semelhante sobrevivência ataca,
precisamente o seu nervo vital. Existe uma correspondência imediata
entre a rígida conservação artificial do status quo familiar e a
dissolução da família; a própria irracionalidade da família converte-
se em objeto do cálculo publicitário e da indústria da cultura (...)
(ADORNO & HORKHEIMER, 2000, p. 142).
Horkheimer e Adorno se referem diretamente à família como parte
componente do todo social, considerando que são processos sociais que a
produzem e transformam, e não apenas esta ou aquela iniciativa isolada
desses processos. Para esses autores, “se a família está indissoluvelmente
ligada à sociedade, o seu destino dependerá do processo social e não da sua
própria essência como forma social auto-suficiente” (ADORNO &
HORKHEIMER, 2000, pp. 146-7).
1.2 – A família no contexto da deficiência
Possuímos fortes vínculos identificatórios com a família e, no contexto
da deficiência, é ela quem tem que se desdobrar para dar conta das questões
de ordem econômica e social, tanto quanto daquelas de ordem médica e
educacional. Embora as instituições cumpram um papel importantíssimo, é
a família quem primeiro traz para junto de si essa incumbência e
enfrentamento. Amaral escreve:
Com efeito, tenacidade é, sem dúvida, “requisito” familiar para o
enfrentamento... Por quê? Porque além das contingências expostas, é
usual (embora não compulsória) a necessidade de investimento
constante e diferenciado, quer de caráter afetivo, de dispêndio de
tempo ou de ordem econômica (AMARAL, 1995, p. 79).
22
A família representa fundamentalmente um elo da maior importância
quando se trata da deficiência, posto que é por ela que as pressões internas
e externas serão sentidas, como nos sugere Buscaglia:
As famílias não terão que lidar apenas com as pressões internas,
mas também aquelas exercidas por forças sociais externas. Os
parentes, amigos e conhecidos bem-intencionados com freqüência
criam problemas adicionais. Inconscientemente, podem, através de
atitudes, exercer pressões sobre a família do deficiente, sugerindo
que há médicos e clínicas mais indicados para a criança ou novas
técnicas de tratamento que deveriam ser experimentadas de
imediato. Esses comentários repletos de boa intenção muitas vezes
são interpretados pelas famílias supersensíveis e extenuadas como
um questionamento crítico e cruel de suas capacidades e decisões
como indivíduos maduros (BUSCAGLIA, 1997, p. 89).
À família que se sente desamparada de alguma forma, não se pode
desejar dela atitudes sensatas que caberiam a uma família de maior poder
aquisitivo. É preciso considerar ainda que enquanto grupo, ela é diversa,
pautada pela pluralidade. É nesses termos que Gascoigne nos fala do
aspecto dos pais no universo da infância, dos filhos e da deficiência. Para
ele, os “pais não são um grupo homogêneo. Possuem várias formas,
tamanhos, atitudes e emoções” (GASCOIGNE, 1995, p. 26). Essa diferença
faz com que pensemos em termos de heterogeneidade, para não cairmos no
risco de produzir uma crítica injusta.
Já no aspecto coletivo, a paternidade e a maternidade são condições
constituídas a partir de papéis sociais atribuídos. Portanto, apenas vivemos
essa condição quando temos um filho, o que vale dizer, que nos tornamos
pais também a partir da experiência que esta condição nos exige. Nesse
caso, ainda não nascemos pai ou mãe, somos designados dessa forma a
partir do instante em que realizamos a possibilidade de gerar filhos, ou então
de adotá-los.
Pode-se dizer, então, que a função paternidade-maternidade é
também, de certa forma, a repetição de uma mesma gestualidade a cada dia,
seja nas tarefas de casa, da escola ou do trabalho. Como já afirmamos, a
condição paternidade–maternidade não diz respeito somente a gerar ou
adotar a uma criança, mas também à continuidade da condição de pais por
toda a vida. No caso da deficiência, as dificuldades que envolvem o processo
23
podem ser constatadas, porque um filho com deficiência requer algumas
demandas e necessidades diferenciadas. Amaral nos aponta alguns aspectos
dessa trajetória, ao elencar algumas dificuldades possíveis:
Dentre outros fatores merecem ser mencionados: a possibilidades de
ruptura do cotidiano por eventuais internações hospitalares,
prolongadas, da criança; o desgaste no próprio cotidiano; a presença
de múltiplas peculiaridades decorrentes, algumas vezes, de
determinados tipos e graus de deficiência: comportamentos bizarros,
não responsividade, distúrbios de sono e alimentação. Ou, ainda,
questões como o relacionamento conflitivo com os irmãos, problemas
de férias e fins-de-semana; dificuldades econômicas (...)
Ainda no que concerne à tenacidade, vale também uma referência ao
acidentado percurso, tantas e tantas vezes, trilhado pela família na
busca de tratamento, de formas de atendimento ou de internação
técnica (AMARAL, 1995 p. 80).
Mesmo quando a crise não é presente, os pais de crianças com
deficiência passam pelo dilema de conciliar trabalho, obrigação pessoal e
cuidado maternal. Dilemas que, ocasionados pelas necessidades, conferem
aos pais uma identidade constituída através da reinvidicação e ordenação
como grupo social, através do cuidado com a casa, da orientação para a
vida, das expectativas sobre o futuro, da dignidade do sustento e dos
cuidados com a família.
Vale ressaltar ainda que, em uma sociedade em que a abundância e a
escassez convivem lado a lado, as mães e os pais enfrentam, muitas vezes, o
problema de ter que lidar com o aspecto financeiro além do emocional. De tal
modo que os pais têm que se desdobrar na rotina do lar, equilibrando o
trabalho cotidiano para o sustento e os cuidados com os filhos.
Quando a família toma conhecimento de que, dali por diante, terá um
membro com deficiência, este é um momento de preocupações, já que o
futuro daquela criança dependerá tanto dos cuidados que a família lhe
dedicará, quanto da aceitação pela sociedade.
Todos os fatos em relação ao papel de qualquer família são
verdadeiros no que se refere à família do deficiente. Porém, há provas
que indicam que os problemas serão mais intensos no caso de uma
família com um membro deficiente.
A partir do momento em que uma criança ou adulto deficiente é
trazido para casa, vindo do hospital, o clima da família se transforma
(BUSCAGLIA, 1997, p. 85).
24
No que diz respeito aos pais, trata-se de uma questão que perpassa
toda sua existência: o “choque” que pode ser sofrido por conta do
diagnóstico, quando o filho nasce, ou após qualquer acidente traumático,
acaba por transformar a convivência familiar de forma inesperada. Buscaglia
elenca alguns sentimentos vividos pelos pais, diante desse quadro:
Eles sentem raiva? Estão aturdidos? Aterrorizados? Hostis?
Indefesos? Não importa! Eles são o produto de uma experiência não
invejável e enfrentam essa experiência da única forma que sabem
da forma que descobriram ser, se não confortável, pelo menos
razoavelmente tolerável (BUSCAGLIA, 1997, p. 149).
Assim sendo, a deficiência é uma situação que pode ser vivida de
forma traumática pela família, por conta do desconhecimento e das
consequências que seu advento pode provocar. Cunningham (1988) e Lefèvre
(1981) apontam para o desconhecimento da deficiência como causa de
processos de angústias e ansiedades, que podem ter início na família. Omote
considera que esse impacto familiar e seus vínculos dependem de algumas
variáveis:
A história anterior da família e seus dinamismos.
O sentido por ela atribuído à deficiência em pauta.
O grau de comprometimento no caso de seu filho.
A forma como lhe foi transmitida a notícia.
Nível sócio-econômico familiar.
Expectativas em relação à prole e/ou em relação a esse filho
em particular (apud AMARAL, 1995, p. 78).
A presença de uma pessoa com deficiência em uma família poderá
exigir de cada um de seus membros uma alteração, por vezes, radical em
sua maneira de agir com o outro, além de requerer mudanças de atitude em
relação ao modo de vida, rotinas do lar, rotinas médico-hospitalares e, até
mesmo, mudanças de valores. Uma alteração que incide, portanto, em
diferentes dimensões. Amaral chama atenção para o caráter de
imprevisibilidade, que reveste essas questões na família:
25
(...) as situações críticas previsíveis para todos os indivíduos, em
dado contexto, estarão eventualmente acrescidos das dificuldades
inerentes à deficiência, como por exemplo, o ingresso à escola, a
adolescência com sua busca de parceira afetiva, o exercício da
sexualidade, a escolha e o encaminhamento profissional, o
casamento, a velhice [...]
Já no caso de uma deficiência adquirida, seja por doença ou
acidente, o caráter de imprevisibilidade é comum ao indivíduo e à
família (AMARAL, 1995, pp. 76-7).
Isto sem contar que a atenção para com o filho com deficiência
significa, muitas vezes, a diminuição daquela dada a outros filhos, o que
pode ocasionar ciúmes, animosidades e mais conflitos no âmbito familiar.
Para Buscaglia,
as preocupações cobrarão seu pro à família – os problemas reais
em relação ao bem-estar da criança, as maiores responsabilidades
pessoais, a carga financeira, a constante incerteza, a exaustão física
que se transforma em irritabilidade e freqüentemente se transmuta
em lágrimas.
Podem ocorrer súbitas explosões de temperamento, que parecem
levar um anseio por isolamento e fuga (BUSCAGLIA, 1997, p. 88).
Os sentimentos enfrentados por uma família que possui um membro
com deficiência podem interferir bastante no relacionamento dessa família.
Assim, ela pode aceitar ou rejeitar uma criança com deficiência. Refletindo
sobre o sentimento dos pais, o autor mostra que
quando os indivíduos se tornam pais, vêem os filhos como uma
extensão de si mesmos. Esperam que as crianças, de certa forma, se
tornem um reflexo do melhor de si próprios e sentem-se
envergonhados quando isso não acontece (BUSCAGLIA, 1997, p.
107).
Banish (1961) considerou que as crianças na família costumam seguir
as atitudes dos pais. No que tange à deficiência, se a mãe se torna queixosa,
desamparada, triste e melancólica, geralmente o pai e os filhos, seguirão seu
exemplo. Nessa perspectiva, parecem ser os pais, por vezes particularmente,
as mães, aquelas, na estrutura familiar, que enfrentam essas dificuldades,
geralmente cabendo ao pai o sustento da família e a provisão da casa. Em
nossa experiência com o tema, a mãe possui, quase sempre, um papel de
destaque no cuidado dos filhos com deficiência. O abandono do lar vem,
quase sempre, da parte do pai; embora esta não seja uma característica
26
exclusiva de famílias que possuem membros com deficiência, é também
nestas que o abandono paterno é mais freqüente.
Se o abandono do lar deixa tanto o pai quanto a mãe sujeitos à
solidão, à preocupação e à responsabilidade excessivas, no caso da família
com um filho com deficiência, esses problemas se acentuam ainda mais, por
conta da enorme quantidade de sentimentos que envolvem a situação, como
descrença, incerteza, tristeza, depressão, ou ainda, de acordo com Amaral:
Podemos dizer que o impacto da deficiência na família reveste-se de
tonalidade muito semelhante, uma vez que os sentimentos gerados
pela sua ocorrência oscilam entre polaridades muito fortes: amor e
ódio, alegria e sofrimento; uma vez que as reações concomitantes
oscilam entre a aceitação e rejeição, euforia e depressão – para citar
o que ocorre com maior freqüência (AMARAL, 1995, p. 73).
As reações envolvem não apenas pais e irmãos, mas parentes e,
evidentemente, amigos. São das mais variadas as reações: desde uma maior
disponibilidade da família - no intuito de ser solidária e prestativa - até um
distanciamento, talvez provocado pela vergonha ou até mesmo pelo medo do
desconhecido, que impede, muitas das vezes, um gesto de apoio. Amaral
aponta para algumas situações críticas vividas pelos pais e para alternativas
de superação. Segundo ela, estas situações:
podem não resultar em crise mas, pelo contrário, acarretar o
crescimento, na medida em que se caracterizam como re-organização
e aprendizagem.
podem encaminhar-se para a formação de uma crise larvada
(algo que não eclodiu mas existe de forma encoberta), quando as
adaptações são feitas rigidamente e as tentativas de reestruturação,
embora não tendo êxito, não chegam a configurar um patente
fracasso.
podem desembocar na crise propriamente dita, na
desorganização psíquica, a qual para ser enfrentada necessitará da
“coragem vital” em aceitar o fracasso e denunciar a dificuldade.
Implica, em outras palavras, na esperança de encontrar a
transformação necessária (AMARAL, 1995, p. 75).
Por outro lado, D’Antino aponta que, embora esses conflitos familiares
surjam em razão da deficiência e da dificuldade dos pais em lidar com tal
situação, suas origens remontam a outras instâncias sociais, pois
27
quanto mais estruturada emocionalmente for a família, com relações
afetivas satisfatórias, com vivência de trocas verdadeiras, e quanto
mais precocemente puder ser orientada, tanto maior será sua
possibilidade de reestruturação e redimensionamento de suas
funções e papéis (...)
Do movimento de pais, iniciado no Brasil na década de 50, emergiu
um sinal claro e explícito de alerta da emergência de enfrentamento
de um de nossos graves problemas sociais (...) (D'ANTINO, 1988, pp.
35-6).
Tratando-se de filhos com deficiência, o sentimento de vergonha a que
se refere Buscaglia deve ser relacionado a questões sociais, ao preconceito
que recai sobre esses filhos sob uma forma discriminatória. Quando
consideramos o universo de pessoas com deficiência, os pais também são
vitimados pelo preconceito tanto quanto os filhos, como demonstram
depoimentos que recolhemos.
Tais sentimentos, de alguma forma, são resultado desse não
pertencimento a que se refere Martins. Para ele,
a verdadeira exclusão está na desumanização própria da sociedade
contemporânea, que ou nos torna panfletários na mentalidade ou
nos torna indiferentes em relação a seus índices visíveis no sorriso
pálido dos que não têm um teto, não têm trabalho e, sobretudo, não
têm esperança (MARTINS, 2002, p. 21).
Dessa forma, os pais são atingidos pela incerteza em relação ao seu
futuro e ao futuro de seus filhos que os torna presas fáceis do isolamento
social. O resultado desse isolamento, ocasionado, de um lado pelo
preconceito e exclusão de seus filhos e, de outro, pelas condições de
desumanização quase sempre presentes, é também a origem das condições
acima citadas, que fazem deles alvos do conflito social inevitável como
indivíduos, em relação à sociedade que os cerca. Como diz Buscaglia:
A sociedade tem dificuldade em conviver com as diferenças, e deixará
isso claro de muitas formas sutis, dissimuladas e mesmo
inconscientes através do modo como isola o deficiente físico e
mental, olha-o abertamente em público e evita o contato com ele
sempre que possível.
(...) Esses sentimentos da sociedade têm seus efeitos sobre toda a
família e sua relação com o membro deficiente (BUSCAGLIA, 1997, p.
89).
28
Conforme nos sugere o autor, o alerta de emergência aponta ainda,
para a necessidade de confrontar os problemas sociais, em lugar do
confinamento das pessoas com deficiência e seus familiares. Assim, pode
estar em curso um enfrentamento da questão, através de reinvidicações que
partem do âmbito privado, para incursões de abertura nesse coletivo. Os
pais, nessa condição, enquanto parte da família, são imprescindíveis nos
cuidados, no território da afetividade, na ação emancipadora que permite
fazer valer seu grupo social como emergência desse confronto, que tenciona
ultrapassar a humilhação, a vergonha e o medo.
Parece-nos, nesse caso, que a família terá que lidar não apenas com a
aceitação da diferença no meio externo a ela, mas também com todas as
questões que circunscrevem a própria familia nessas condições, como nos
indica Buscaglia:
Em grau maior ou menor, os membros da família não reagirão às
crianças apenas como mestres conscientes, mas apresentarão
também sentimentos inconscientes em relação a elas. É em parte por
medo desses sentimentos inconscientes e disfarçados, em conjunto
com os sentimentos expressos, que elas perceberão quem são. Assim
nasce a autoconsciência. Se os integrantes da família, como um
grupo, reagirem a elas de modo positivo, é provável que as crianças
se vejam sob uma luz positiva... Por outro lado, se as reações forem
negativas, assumirão que são limitadas, sem atrativos, atrapalhadas
e obtusas, com um futuro sombrio à frente (BUSCAGLIA, 1997, p.
83).
Em relação a uma pessoa com deficiência na família, sua presença
deve então ser vista como questão social e questão particular ao mesmo
tempo, sem nos esquecermos de que ambos são aspectos do mesmo tema,
como anotam Camargo e Pássaro:
(...) acreditamos que é necessário que os grupos sociais em que os
“diferentes” estejam inseridos dirijam seus esforços para romper com
preconceitos e estigmas, tendo em vista a história da civilização
ocidental, que vinculou competências e capacidades à inserção no
mercado de trabalho e nas concepções capitalistas sobre o homem.
Talvez hoje possamos vislumbrar algumas perspectivas de inclusão
social, mas isto só será realmente eficaz se possibilitarmos reflexões
do grupo social sobre esses indivíduos e sobre o papel desse grupo
nas perspectivas e possibilidades de cada sujeito que a ele pertence
(com ou sem acometimentos neurológicos/orgânicos) (apud
MARTINS, 2006, p. 124).
29
Se para Sawaia (2003) a família hoje está em evidência e é reconhecida
socialmente, e se ela é o centro de algumas políticas públicas, o mesmo não
podemos dizer da família que possui um membro com deficiência. Essa
família ainda tem necessidade da visibilidade, da inclusão nas políticas
públicas
4
e de seu reconhecimento enquanto grupo social, embora
atualmente, os movimentos desses grupos apontem para sua contínua
transformação. Para Neri:
De maneira geral, o que se percebe é que ações específicas para
grupos discriminados necessitam mais do que políticas
compensatórias paliativas. São urgentes políticas que promovam a
sustentabilidade das ações empreendidas, provendo meios para que
o público-alvo consiga se inserir permanentemente na sociedade. As
pessoas com deficiência são historicamente o grupo cuja política
pública é do tipo mais assistencialista possível, vista por muitos
quase como uma esmola. É preciso que, pelo menos, uma parcela
expressiva da população composta por pessoas com deficiência,
deixem de ser objetos da mera filantropia institucional para se
tornarem sujeitos protagonistas das melhoras alcançadas em suas
vidas (NERI et alii, 2003, p. 179).
Falar então da exclusão de pessoas com deficiência é falar também
daquela vivida por seus pais. Nesse sentido, defendemos políticas capazes de
contemplá-los, de auxilia-los em uma situação que eles, muitas das vezes,
não contam com um aparato eficaz em lidar com o problema da deficiência.
Não são raros os que relatam a falta de pertencimento e de um sentimento
gregário, da ausência de um laço de identificação que os una às suas
comunidades. Em grande parte, esse sentimento é gerado pelos
preconceitos, pelo sentimento de estigmatização a que estão sujeitos em
conjunto com seus filhos, ou seja, os pais, em larga extensão, podem receber
e carregar as avaliações atribuídas a seus filhos.
4
Sobre políticas públicas ver NERI et alii, 2003. p. 177-179.
30
CAPÍTULO II
A DEFICIÊNCIA, O ESTIGMA E O PRECONCEITO
Bem, será assim: sua franqueza será seu dote. Pelo sagrado resplendor do sol, pelos
mistérios de Hécate e da noite, por todos os influxos dos astros conforme os quais somos e
deixamos de existir, abdico de todo cuidado paterno, parentesco e identidade de sangue, e
desde já, para sempre, te considerarei como estranha a mim e ao meu coração.
WILLIAM SHAKESPEARE
Rei Lear
2.1 – Sobre a estranheza perante a deficiência
A definição da palavra “normal” no dicionário
5
nos remete ao que está
dentro da norma, da regra. Entretanto, conceituar “normalidade” parece
uma questão impossível por duas razões: primeiro que critério usar para
definir qual é a norma e, segundo, como estabelecer normas (regras) para
classificar seres humanos que, por definição, são tão heterogêneos? Logo, o
que está fora da norma, é considerado não usual, incomum e não natural,
sendo, portanto, estranho e, não raro, excluído do meio em que vive.
A estranheza, o estranho, o estranhamento, via de regra, são palavras
ligadas a outras no dicionário, como: esquisito, excêntrico, estrangeiro,
extraordinário, misterioso, desconhecido, enigmático, que foge ao convívio.
Além disso, a palavra “estranho” refere-se a algo fora de um padrão, que não
5
Do latim normalis, e, feito, tirado da esquadria (instrumento para traçar ângulos), por
extensão; normal, conforme a regra (Cf. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.
Ed. Objetiva, 2001).
31
se encaixa em um contexto, corporação, ou mesmo a um agrupamento
social.
Se, por um lado, em línguas românicas, a palavra “estranho” não é
tão taxativa quanto ao juízo de valor (veja-se, por exemplo, “extraordinário”,
que remete a um significado não-pejorativo), por outro, em línguas como o
árabe e o hebraico, “estranho” faz alusão a demoníaco, horrível. Na língua
alemã unheinlich significa “estranheza”, palavra oposta à heinlich, que
significa intimidade
6
. Assim, estranheza nos remete tanto ao que é inusitado,
como ao que nos é próximo ou familiar.
Freud sabia dessas relações entre aquilo que nos é familiar e o que
nos parece estranho. Daí ele afirmar que:
Naturalmente, nem tudo o que é novo e não familiar é assustador; a
relação não pode ser invertida. Só podemos dizer que aquilo que é
novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas
novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo
tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-lo
estranho (FREUD, 1996, p. 239).
Com isso, é possível considerar que toda forma de estranheza contém
algo inovador que, por excelência, é desconhecido, diferencial, estranho,
dotado de uma ambigüidade intrínseca, a estranheza que pode conter o
assustador, pois
o tema do “estranho” é um ramo desse tipo. Relaciona-se
indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca medo
e horror; certamente, também, a palavra nem sempre é usada num
sentido claramente definível, de modo que tende a coincidir com
aquilo que desperta o medo em geral (FREUD, 1996, p. 237).
Freud pondera que toda estranheza pode ser portadora de um
componente de angústia, o que significa que falar deste tema é sempre falar
de angústia, no entanto, nem toda angústia é sinônimo de estranheza.
Assim, vale dizer, que o novo pode se constituir como estranho ou como algo
obscuro e ameaçador.
Esse autor nos aponta ainda que o estranho é uma variedade de
aterrador que pode remontar um conhecimento prévio, antigo, e portanto, ao
6
FREUD, 1996, p. 239.
32
familiar. De forma análoga, Crochik nos sugere também que a estranheza
possui relações com aquilo que nos é próximo quando afirma que
quanto maior a debilidade de experimentar e de refletir, maior a
necessidade de nos defendermos daqueles que nos causam
estranheza. E isso ocorre – e nunca é demasiado repetir – porque o
estranho é demasiado familiar (CROCHIK, 1997, p. 14).
Nesse sentido, Koltai mostra que “a intolerância assimila o estrangeiro
e hostil. O homem teme aquele que se assemelha a ele, sem no entanto, ser
idêntico a ele” (apud GALLO, 2004, p. 94). A intolerância parece ser o temor
daquilo que nos é estranho tornar-se semelhante. É como se houvesse uma
perda de identidade. Daí o momento da estranheza ser ameaçador, poder
gerar preconceitos. O resultado pode ser tão grave que poderemos estar
diante de uma situação de estigmatização. Por estigma, entende-se algo que
reduz qualquer pessoa ou objeto a um congelamento de estereótipos,
posturas e comportamentos
7
. É preciso, assim, ao analisar a estranheza,
levar em conta impressões, sentimentos e sensações que atingem indivíduos
ou grupos sociais, ou seja, aquilo que de mais recôndito provoca a própria
estranheza.
Os indivíduos considerados estranhos em nossa sociedade podem vir a
ser confinados em instituições. Goffman considera que essas instituições são
criadas e voltadas a um certo “fechamento”, no sentido de colocar barreiras
ao mundo externo, em um confinamento representado por portas fechadas,
altas paredes, fossos etc. Do lado de fora das instituições, vivemos a
simbolização da estranheza, evidenciada por medos, evitações e
constrangimentos, quando estamos diante de algo avaliado como estranho.
O autor ressalta, ainda, que “há instituições criadas para cuidar de pessoas
que, segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; nesse caso, estão as
casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes” (GOFFMAN, 2001, p. 16).
Portanto, a convivência com a estranheza, quer no âmbito individual
ou no institucional, pode apontar para a pluralidade humana e para a
capacidade de aceitação intrínseca das características da alteridade. Caso a
7
GOFFMAN, 1988, p. 27.
33
estranheza resulte numa não-aceitação da diversidade, pode-se ter como
conseqüência a estigmatização.
2.2 - Estigmas e estereótipos
No período clássico, os gregos deram o nome de estigma às marcas
corporais, como é o exemplo das cicatrizes, evidenciando algo de suspeito,
ou até mesmo maléfico, naquele que as porta. A pessoa marcada era vista
com reservas, separada ou apartada do convívio social. Goffman considera
que os gregos
criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os
quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou
mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram
feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um
escravo, um criminoso ou traidor – uma pessoa marcada,
ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares
públicos (GOFFMAN, 1988, p. 11).
No entanto, hoje em dia, o significado da palavra “estigma” se
estendeu também para “marcas” psicológicas ou sociais. Não se trata apenas
da marca física (no caso das deficiências), mas diz respeito à identidade, aos
atributos conferidos aos “marcados”: seu status social, expectativas
normatizantes do comportamento etc. Referimo-nos, aqui, ao modo como
esta pessoa deve se comportar, vestir-se, enfim, ao seu modo de vida como
um todo. Dessa forma, deixamos de considerar tal pessoa como um ser
humano comum.
No entender de Goffman, “um estigma é, então, na realidade um tipo
especial de relação entre atributo e estereótipo, embora [ele] proponha a
modificação deste conceito, em parte porque há importantes atributos que
em quase toda a nossa sociedade levam ao descrédito” (GOFFMAN, 1988, p.
13). Assim, segundo o autor, o estigma se refere sempre a avaliações
pejorativas e depreciativas. Para Goffman, há diferentes tipos de
estigmatização: 1. As deformidades físicas ou do corpo; 2. As deformidades
decorrentes do caráter individual: desonestidades, crenças falsas e rígidas,
comportamento político radical; 3. Os estigmas tribais de raça, nação e
34
religião (os códigos de conduta rígidos em alguns grupos étnicos ou raciais.
O sistema de castas na Índia seria exemplo dessa estigmatização) (cf. p. 14).
O autor afirma ainda que “por definição, é claro, acreditamos que
alguém com um estigma não seja completamente humano” (GOFFMAN,
1988, p. 15). Ora, dessa forma, estigmatiza-se alguém porque este
representa um perigo a ser destruído, uma representação humana a ser
desconsiderada, uma ameaça. Esse tipo de comportamento, em que já se
definiu previamente o caráter de outrem, pode causar angústia naquele que
é estigmatizado. Nesse sentido, o estigma pode ser contentor de uma relação
de aflição. Goffman acrescenta que “o indivíduo estigmatizado – pelo menos
o visivelmente estigmatizado – terá motivos especiais para sentir que as
situações sociais mistas provam uma interação angustiada” (GOFFMAN,
1988, p. 27).
A questão, portanto, quando tratamos de estigma, é que, quase
sempre, o estigmatizado pode apresentar características paradoxais, no que
diz respeito à sua compreensão, pois
sentimos que o estigmatizado percebe cada fonte potencial de mal-
estar na interação, que sabe que nós também a percebemos e,
inclusive, que não ignoramos que ele a percebe.
(...) quer isso signifique tratá-lo como se ele fosse alguém melhor do
que achamos que seja, ou alguém pior do que achamos que ele
provavelmente é (GOFFMAN, 1988, p. 27).
Esse tipo de comportamento é o que designamos de estigma, e sua
forma característica aparece como a diminuição de capacidades do outro, a
atribuição de fraquezas, marginalidade, apartheid. Nessa perspectiva, o
estigmatizado é sempre aquele cujas características são, quase sempre,
avaliadas como “menores”. Assim, ser estigmatizado significa não pertencer
aos padrões convencionais, tanto físicos quanto de comportamento: os
estereótipos.
É evidente que, na sociedade atual, a possibilidade de interagir e
conviver com estranhos é freqüente e, muitas vezes, o problema do estigma
resulta nos afastamentos (muitas vezes voluntários) ou nas evitações de
determinadas relações pessoais, isto tudo por conta das dissemelhanças.
Assim, o estigma possui características que apontam para a discriminação: o
35
evitar da proximidade física, o negar, por vezes sistemática, o diálogo e as
relações sociais.
Nesse aspecto, enquanto sociedade, relegamos o convívio social destas
pessoas à privacidade do lar ou das instituições, já que a estranheza pode
dificultar interações sociais, situação que pode ser seguida pelos pais,
conforme nos sugere Goffman:
Nós próprios podemos sentir que, se mostramos sensibilidade e
interesses diretos por sua situação, estamos nos excedendo, ou que
se, na realidade, esquecemos que ele tem um defeito, far-lhe-emos,
provavelmente, exigências impossíveis de serem cumpridas ou,
inadvertidamente, depreciaremos seus companheiros de sofrimento
(GOFFMAN, 1988, p.27).
Amaral classifica três estereótipos relacionados à deficiência e ao
preconceito. Para ela:
(...) na área da diferença/deficiência três são os estereótipos mais
usuais: vítima, herói, vilão. Qualquer um deles (malgrado as
sutilezas) situa o diferente num lugar “extra-humano”. Ou seja, a
partir do preconceito o relacionamento não é com uma dada pessoa,
mas com o estereótipo de sua “categoria”.
(...) pensamos sempre que o “outro” é a vítima do preconceito e nos
esquecemos que ao nos atermos a uma visão preconceituosa somos
nós que dela também passamos a ser vítimas, ao perdermos a
possibilidade de pensar e escolher aquela visão que nos será própria,
em dado momento histórico e baseada em nossa experiência
(AMARAL, 1995, pp. 189 e 192).
Os pais estão sujeitos aos estereótipos mais usuais a que se refere a
autora, contudo, o intolerante pode ser tão vítima do seu preconceito quanto
o discriminado, pois perde a oportunidade de refletir sobre o fato e avaliar. A
estereotipia pode estar diretamente relacionada ao preconceito que, através
dos estereótipos, padroniza linhas de comportamento levando, por
conseqüência, o indivíduo ao isolamento e à segregação.
2.3 - Os preconceitos
Assim, na medida em que falamos de exclusão, falamos também de
discriminação.
36
Se consultarmos o dicionário
8
, veremos que a palavra “discriminação”
é sinônimo da palavra preconceito, onde, por extensão de significado,
discriminação é definida como “tratamento pior ou injusto dado a alguém
por causa de características pessoais; intolerância, preconceito”.
Contudo, Pierson (1971), em suas reflexões sobre brancos e negros na
Bahia, considera que a discriminação se dá quando algumas características
de uma pessoa (como, por exemplo, a cor da pele, a religião e outros) são
consideradas como único critério de avaliação. Já Skliar define
discriminação comoum tipo de tratamento diferencialista, quer dizer, uma
produção específica de alteridade, que penaliza aquilo que no Ocidente foi e
é nomeado, ainda hoje, com o eufemismo ‘minorias’” (apud GALLO, 2004,
p.76). Para esse autor, a discriminação se caracteriza, primeiro, na
diminuição e na redução do outro, sem dar-lhe chance de uma outra
intepretação possível dos seus valores e de suas normas. Impondo assim,
uma única forma fixa permitida, de pensar, de se olhar, perceber, julgar, dar
nome a esse grupo.
Convivemos sistematicamente com a discriminação em nossa
sociedade, sendo que as origens dessas discriminações podem ser
encontradas na interação entre indivíduo e sociedade. Esta rigidez, a fixação
desses comportamentos tem origem na cultura através da estereotipação dos
objetos, que dificultam sua incorporação e assimilação, impossibilitando,
assim, relações humanas e interações sociais.
Se discriminarmos é porque pensamos ser legítimo segregar. No
entanto, segregar significar estar imbuído de preconceito, que, por sua vez,
pode ser definido segundo o Aurélio como: “conceito ou opinião formados
antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia
preconcebida... suspeita, intolerância, aversão...” (FERREIRA, 1985, p.
1363). No entanto, a definição da palavra “preconceito” diz mais sobre o
“preconceituoso” do que sobre aquele que é alvo do preconceito. O
preconceituoso apresenta como característica a repetição, a rigidez de suas
convicções e pode se materializar em uma conduta rígida frente aos diversos
objetos alvos do seu preconceito. Embora os diversos objetos e causas dos
8
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (2001).
37
preconceitos sejam diferentes entre si, no entender de Crochik (1997), o
preconceito diz respeito a duas dimensões, que são a ameaça que as pessoas
vivenciam em relação ao outro (alvo do preconceito) e a distorção do outro,
realizada pelo preconceituoso diante da ameaça que esse representa.
O preconceito é, quase sempre, uma reação a uma ameaça, origem e
causas de segregações sem fim, distanciamentos incontáveis do objeto que o
provocou e, motivo quase sempre de conflitos e violências.
Não devemos, portanto, deixar de interpretar o preconceito como
desordem social, assim como devemos relacioná-lo a uma sociedade que
desampara os que estão fora do que se estabelece como norma social. Vale
dizer, ainda segundo o mesmo autor, que “os ideários e as práticas sociais
correspondentes conseguem unir os homens pela identificação que podem
promover entre eles” (CROCHIK, 1997, p. 43). Isso necessariamente exclui
aqueles que não são partes intrínsecas desta sociedade, que não fazem parte
dela por similaridade, identificação.
Ainda tratando de preconceito, parece-nos que ocorre quase sempre a
desconsideração dos traços do indivíduo e sua redução a uma só
característica. Assim, um homossexual é alguém que, antes de ser ou não
homossexual, é uma pessoa, um trabalhador, tem (ou não) sua religião, pode
ter crenças, ser alegre ou triste. Contudo, essas atribuições pouco importam
no seu julgamento, já que a pessoa é relegada à condição de homossexual e,
como tal, é tratada. Esse tratamento, ao mesmo tempo que faz valer uma
condição, em contrapartida, invalida todas as outras, aparentemente de
menor valor.
Embora o preconceito seja parte da sociedade em que vivemos, ele
pode criar e revelar faces discriminatórias dessa mesma sociedade, que
culminam em dificuldades de relações sociais mais livres, mais equânimes,
mais solidárias dentro deste contexto social.
Para Crochik, uma sociedade potencialmente destrutiva é a que
considera seres humanos sob a ótica do preconceito: “(...) esta sociedade
ainda consegue, ao menos parcialmente, defender-se desses impulsos,
remetendo-os para o próprio indivíduo, e gerando aqueles que são adaptados
e os que não o são” (CROCHIK, 2004, p. 42).
38
Ainda segundo o autor, “(...) se não devemos interpretar as desordens
psíquicas imediatamente pelas desordens sociais, não devemos deixar de
relacioná-las” (idem).
Comumente, parece que o preconceito é considerado algo intrínseco ao
ser humano, o que poderia sugerir que sua origem é individual. Essa é uma
visão equivocada, posto que todo indivíduo é um ser social, inserido e
recebendo influências do meio do qual é constitutivo. Isso faz com que
reproduza, mesmo que irracionalmente e sem críticas, os preconceitos
criados na sua sociedade e cultura.
Dessa forma, o preconceito não deve ser entendido apenas pela
concepção psíquica dos indivíduos, mas também pela cultura e sociedade.
Pois, na sociedade atual, o preconceito pode ser resultante ainda de aspectos
econômicos. O preconceito vivido pelas populações excluídas pode ser
considerado efeito de uma modernidade que privilegia determinadas formas
de produção (a exploração do homem pelo homem), ao invés de formas
comunitárias de vida; que privilegia formas massificantes e alienadoras de
produzir e não formas cooperativas e núcleos de participação e integração.
Elias mostra a existência de uma ligação direta entre o preconceito e
dimensões de pequena e larga escala do desenvolvimento econômico. Para o
autor, “(...) os problemas em pequena escala do desenvolvimento de uma
comunidade e os problemas em larga escala do desenvolvimento de um país
são inseparáveis” (ELIAS, 2000, p. 16). Fazendo crer que questões
individuais e coletivas se equivalem, quando se trata de pontuar a origem
dos preconceitos.
Para ele, não faz sentido algum estudarmos fenômenos oriundos das
comunidades sem considerarmos as relações sociais que se processam nesse
meio. Para Adorno, contudo, o preconceito e suas causas devem ser
buscados não na comunidade, mas na base intrínseca das pessoas que
produzem esse preconceito, nunca nos seus alvos: “É preciso buscar as
raízes nos perseguidores e não nas vítimas...” (ADORNO, 1995, p. 121).
Não raro, para o preconceituoso, aquilo que dá origem a seu
preconceito também pode se constituir em ameaça às suas convicções, à sua
moral. Para Crochik:
39
O que leva o indivíduo a desenvolver preconceitos, ou não, é a
possibilidade de ter experiências e refletir sobre si mesmo e sobre os
outros nas relações sociais, facilitadas ou dificultadas pelas diversas
instâncias sociais, presentes no processo de socialização (CROCHIK,
1997, p. 16).
No entanto, ser preconceituoso é uma denominação pejorativa em
termos sociais, mas isso não nos redime, nem tampouco nos livra de
atitudes, comportamentos, decisões que são notadamente preconceituosas.
Segundo Crochik, nosso comportamento pode esconder e revelar, por
vezes, outros impulsos, pois “quanto mais distintos julgarmos que somos
dele [o preconceito], mais protegidos nos sentiremos dos impulsos hostis que
nos pertencem” (CROCHIK, 1997, p. 22).
Esse enorme leque de características sociais que envolvem o
preconceito tem as mais diversas origens, já que diz respeito a diferentes
culturas.
O autor ainda nos alerta que, a ausência de compromisso das pessoas
pode ser responsabilizada pela origem e causa dos preconceitos no sentido
de evocar atitudes e compromissos sociais, que em grande medida impeçam
os preconceitos de surgirem e de se ampliarem, tal qual o histórico episódio
ocorrido em Auschwitz
9
:
Se existe algo que pode ajudar contra a frieza como condição da
desgraça, então trata-se do conhecimento dos próprios pressupostos
desta, bem como da tentativa de trabalhar previamente no plano
individual contra esses pressupostos. Agrada pensar que a chance é
tanto maior quanto menos se erra na infância, quanto melhor são
tratadas as crianças (ADORNO, 1995, p. 135).
Conhecer os pressupostos da condição da pessoa com deficiência é
requisito indispensável para se ter consciência do preconceito, e para isso,
Adorno enfatiza o papel da educação cuja contribuição crítica seria
fundamental:
Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência,
voltaram contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva. (...) A
9
Auschwitz se refere à um campo de concentração na Polônia, durante a segunda Guerra
Mundial, um campo de extermínio nazista.
40
educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma
auto-reflexão crítica (ADORNO, 1995, p. 121).
A educação, portanto, tem um papel fundamental no objetivo de
refletir e criticar o preconceito nas suas mais diversas formas de
manifestação. A via educacional pode ser uma ferramenta da maior
importância no combate aos preconceitos em geral, cabendo aos
pesquisadores de educação e professores a tarefa de, cada vez mais, lutar
pela eliminação dos preconceitos.
2.4 - A deficiência e a terminologia: as armadilhas da linguagem
Que palavras usar para falar da deficiência sem inadvertidamente
acirrar o preconceito ? Como a terminologia a designa? Historicamente, as
nomenclaturas que se referem a ela têm se alterado significaticamente nos
últimos dez anos.
10
Assim, essas denominações têm mudado no sentido de
designar também necessidades e ações educacionais, como sugere Mazzotta:
Sob o título de Educação de deficientes encontram-se registros de
atendimentos ou atenção com vários sentidos: abrigo, assistência,
terapia, etc. Daí revestir-se de extremo cuidado a seleção das
medidas e ações educacionais destinadas aos deficientes
(MAZZOTTA, 2003, p. 17).
Linguisticamente muitos dos termos adquiriram conotações
pejorativas, o que acarretava constante mudança das palavras, fazendo crer
na posssibilidade de criar conceitos, pois as palavras não apenas nomeiam
através da linguagem, mas apontam elementos de poder e conflito
intrínsecos a ela. Para Foucault,
(...) o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é
simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também,
aquilo que é objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa
de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se
10
Autores como Mazzotta (2003), Mittler (2003), Reily (2004) e Rodrigues (2006) também
discutem a questão da nomenclatura nesta área.
41
luta, o poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT, 2006, p.
10).
A linguagem, portanto, pode provocar preconceitos, estigmas e
estereótipos, dependendo das características do objeto a ser denominado.
Reily, ao tratar o mesmo tema, aponta relações entre língua e sociedade,
dizendo que “uma língua é língua porque tem uma estrutura de regras
socialmente convencionada. Existe possibilidade de novas criações na
língua, mas o grupo precisa aceder às mudanças, caso contrário, a
comunicação fica impossibilitada” (REILY, 2004, p. 17).
Corbett
11
considera que a palavra “necessidades” é portadora de
evidentes sinais de falta de valor e falta de independência. Assim, expressões
como “crianças com necessidades” ou “adultos com necessidades” sugerem
uma “solicitação” diferente de serviços dados a outras pessoas.
Mittler reflete brevemente sobre a terminologia da deficiência na área
da Educação. De acordo com ele, “(...) será que podemos, de fato, trabalhar
em direção a sistemas mais inclusivos e continuar a falar sobre
‘necessidades educacionais especiais’? Quais alternativas seriam aceitáveis?”
(MITTLER, 2003, p. 31). Para o autor, é estranho o fato de utilizarmos a
expressão “inclusão” enquanto nos utilizamos igualmente das expressões e
práticas ditas “necessidades educacionais especiais”.
No entanto, uma das considerações que deve ser feita em relação às
deficiências (necessidades especiais, portadores de especialidades,
cadeirantes, pessoa especial, ou qualquer denominação que faça referência a
eles) não se reduz necessariamente ao ato de nomear. Isso porque, embutido
na nomeação está uma avaliação, um julgamento e estes contribuem para
estigmatizar aquilo a que se faz referência. Tomando como exemplo a
educação inclusiva, verifica-se que hoje, o “aluno incluso” pertence a uma
categorização que, por vezes, o destaca dos outros alunos, mostrando que as
palavras adquirem valor de acordo com o contexto histórico e social em que
estão inseridas. Giangreco constata que:
11
apud MITTLER, 2003.
42
Nós saberemos que a educação inclusiva foi completamente atingida
quando designações como “escola de inclusão”, “sala de aula
inclusiva”, “o estudante de inclusão” já fizerem parte de nosso
vocabulário educacional. A inclusão somente sobrevive como um
assunto enquanto alguém é excluído (apud MITTLER, 2003, p. 161).
Neste mesmo sentido, Mazzotta aponta que a impropriedade dos
termos utilizados ainda persiste, o que é de se lamentar, pois apesar da
terminologia se alterar, a condição social desta população não se altera em
igual medida:
Uma investigação sobre estas medidas mostra que até o final do
século XIX diversas expressões eram utilizadas para referir-se ao
atendimento educacional dos portadores de deficiência: Pedagogia de
Anormais, Pedagogia Teratológica, Pedagogia Curativa ou
Terapêutica, Pedagogia da Assistência Social, Pedagogia Emendativa.
Algumas expressões, ainda hoje, são utilizadas, a despeito de sua
impropriedade segundo meu ponto de vista (MAZZOTTA, 2003, p.
17).
Assim, as pessoas com necessidades especiais foram denominadas
dessa forma, segundo o autor, pelo próprio sistema educacional, o que pode
sugerir que este, raramente, pode ter respondido às necessidades reais
dessas pessoas. A terminologia então usada pode apontar a falta de apoio
constituído e pode acabar por fazer valer ainda mais o preconceito.
Booth (1999), Ainscow (1997), Mittler (2003), Mazzotta (2003) e
Rodrigues (2006b) consideram que o uso das terminologias para designar as
pessoas com deficiência – tais como portadores de necessidades especiais,
classe especial, educação especial – são denunciadores, por vezes, das
injustiças e preconceitos sociais intrínsecos. Por outro lado, a denominação,
além de possuir uma importância vital, necessita vir acompanhada de ações
efetivas no sistema educacional, que objetivem a inclusão. Uma vez este
objetivo alcançado, o aluno “incluso” precisará apenas de seu nome para
identificá-lo como aluno no ensino regular. Só assim ele será, realmente
incluso.
Crochik, nessa perspectiva, assinala que não são apenas os alunos
ditos “inclusivos” que são parte dessa inclusão, outros grupos sociais
também são partes deste processo, como já apontamos ao longo desse
trabalho. Para o autor:
43
Deve-se assinalar também que a educação inclusiva não se volta
unicamente às crianças deficientes, ou portadoras de necessidades
especiais, mas para crianças de etnias minoritárias, mulheres – nos
países que as excluem da educação – meninos de rua, delinqüentes
etc (CROCHIK, 2003, p. 21).
Apesar disso, como diz Mittler, “aprendemos a evitar uma linguagem
sexista e levará tempo até que possamos desenvolver uma linguagem que
evite a rotulação e a segregação e que promova a inclusão. Todavia,
precisamos iniciar” (MITTLER, 2003, p.34).
Nesse trabalho, optamos por utilizar sempre o conectivo “com” nos
momentos em que referimos às pessoas consideradas como tendo algum tipo
de deficiência. Portanto, a terminologia pode ser decisiva quando se trata dos
preconceitos. No entanto, eles não têm origem apenas nas palavras, mas ao
lado delas, o comportamento discrimina e aparta. Nessa perspectiva, a
terminologia nomeia uma ação ou objeto no mundo, mas não é o objeto em
si. É necessário promover a inclusão para que se mude a terminologia que
rotula a condição de exclusão.
44
CAPÍTULO III
SOBRE A POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO DOS PRECONCEITOS:
CIDADANIA E EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Quanto mais “em movimento” está uma
classe, quanto maiores são suas
possibilidades de uma praxis efetiva, tanto
menos são preconceitos os seus juízos. A
atividade política (no mais amplo sentido
da expressão), a atividade que dirige o
movimento e mobiliza as grandes
integrações, pode ter êxito apenas quando
se coloca na altura de um pensamento
isento de preconceitos.
AGNES HELLER
O Cotidiano e a História
3.1 – Cidadania e Educação Inclusiva : a mutualidade dos dois conceitos
A relação entre olhares de diferentes pessoas é a própria efetivação do
conceito de eu e o outro
12
. Esta relação sugere igualdade ou diferença, sendo
um dos pilares principais a serem discutidos quando falamos de inclusão.
Não dá para falar de inclusão sem falar de “cidadania”. O conceito de
cidadania, então, perpassa a inclusão na sociedade. Arendt nos mostra que
a cidadania é construída de pluralidades e diversidades:
Os conceitos políticos se baseiam na pluralidade, diversidade e
limitações mútuas. Um cidadão é, por definição, um cidadão entre
cidadãos de um país entre países. Seus direitos e deveres devem ser
definidos e limitados, não só pelos seus companheiros cidadãos, mas
também pelas fronteiras de um território (ARENDT, 1987, p. 75).
12
Clarice Lispector assinala, na literatura, esta diferença: "Eu antes tinha querido ser os
outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso
era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu"
(LISPECTOR, 1979, p. 20).
45
Nesse caso, a ausência de inclusão caracteriza a ausência de
cidadania. Trazendo o conceito de Arendt para o contexto da deficiência
abordado neste trabalho, se uma família é excluída da sociedade por possuir
um membro com deficiência, a ela também é negado o acesso à cidadania.
Desta forma, se a inclusão no ensino regular das pessoas com
deficiência se manifesta como um movimento de ampla abrangência entre
educadores, pesquisadores e sociedade em geral, requer também como
movimento a recuperação do direito à cidadania, do direito à emancipação,
contra o preconceito e discriminação das crianças com deficiência na escola,
sugerindo olhares e atitudes que vão além das vicissitudes e prevenções que
esses comportamentos implicam.
O apoio e o incentivo da comunidade e o convívio cultural que a escola
propicia podem contribuir enormemente para a aceitação das diferenças.
Estas podem ser promovidas por aqueles diretamente envolvidos com a
educação (professores, diretores, psicólogos, pedagogos e outros).
Assim, a inclusão faz referência às práticas educacionais que se valem
das atitudes e comportamentos que possibilitam o acesso à cidadania, não
apenas às crianças excluídas, mas também aos pais que podem ser
acolhidos no ambiente da escola.
A inclusão na educação pode ser considerada como uma perspectiva
de humanidade e superação de limites da sociedade, como sugere Crochik
em sua afirmação de que
tendo em vista as dificuldades da educação existente, que não forma
para a autonomia, mas para o desempenho; que não forma para a
sensibilidade, mas para a não-diferenciação; que não forma para a
vida, mas para o trabalho; que não forma para a pacificação das
relações sociais, mas para a competição, a educação inclusiva
deveria ser discutida como a possibilidade de tentarmos, ainda que
com os limites sociais estabelecidos, uma educação que auxilie a
construção da humanidade (CROCHIK, 2002, p. 296).
Nesse aspecto, a educação inclusiva pontua a aceitação da diferença,
acentua o processo de um aprendizado possível e vislumbra uma cidadania
provável. Rodrigues complementa que a superação das dificuldades passa
46
pelo conhecimento pedagógico a favor da inclusão e por melhores estratégias
de aprendizado na escola. Consoante suas palavras:
(...) conhecer as diferenças, sim, mas para promover a inclusão e não
para justificar a segregação. Conhecer as diferenças mais comuns
que são certamente as mais numerosas. Enfim, não dar a conhecer a
diferença realçando a “patologia” psicológica ou médica, mas
acompanhando cada caracterização com indicações pedagógicas que
contribuam para que o futuro professor possua um esboço de
entendimento que lhe permita iniciar seu processo de pesquisa sobre
as melhores estratégias para que esse aluno se integre e aprenda na
escola (RODRIGUES, 2006b, p. 308).
Para se ter idéia da importância da educação inclusiva, não apenas no
que se refere à deficiência, mas também do acesso à cidadania para outros
grupos minoritários que também lutam pela inserção social, podemos citar o
fato de que há mais de uma década a educação inclusiva vem sendo
discutida pela UNESCO. Para os representantes dessa instituição,
enquanto escolas inclusivas fornecem o contexto favorável para
atingir oportunidades iguais e participação total, no processo de
ensino e aprendizagem, seu sucesso requer um esforço articulado
não somente entre professores e o pessoal da escola, mas também
entre colegas, pais, famílias e voluntários. A reforma das instituições
sociais não constitui somente uma tarefa técnica; ela depende,
sobretudo, da convicção, compromisso e boa vontade dos indivíduos
que constituem a sociedade (UNESCO, 1994, p. 11).
Um compromisso que talvez esteja em falta no nosso contexto, pois em
termos internacionais, de acordo com Mittler (2003), países tão diversos
socio-economicamente, tais como Canadá, Inglaterra, Itália, EUA,
Moçambique e Angola, são incentivados a torná-la possível. Com o Brasil
não poderia ser diferente, ainda que sua constituição política em termos
educacionais seja tão distinta daqueles outros.
3.2 - A educação inclusiva: algumas considerações teóricas
A questão da educação inclusiva no contexto da deficiência tem
recebido o devido destaque de pesquisadores e educadores. Para alguns
47
deles, como Coll (1995); Mantoan (1997); Sassaki (1997); Sarmento,
Fernandes e Tomás (2006); Magalhães e Stoer (2006), a discussão da
inclusão de alunos com deficiência na escola regular não significa apenas
uma nova nomenclatura, mas é uma alteração da perspectiva da criança em
relação à classe e, do relacionamento dessa classe com toda a escola. Assim,
estes autores consideram que uma mudança estrutural no âmbito da escola
é o caminho para a inclusão.
Mantoan, por sua vez, entende que a educação deve ser uma forma de
esclarecimento e superação do individualismo presente na sociedade,
cedendo seu lugar à solidariedade e à cooperação. Ela considera que,
(...) a cooperação e a criatividade prevalecerão sobre toda e qualquer
manipulação de individualismo e do narcisismo, nos acena, enfim,
com a oportunidade de exprimir o que é característico da nossa
espécie. Estamos, portanto, no limiar de uma situação em que
pensar sobre educação é, acima de tudo, um ato que extrapola a
própria questão pedagógica dos métodos, currículos, didáticas,
embora não se possa jamais desconsiderá-los de vez (MANTOAN,
1997, p. 45).
A autora sugere que os parâmetros da inclusão e da escola regular
podem ser alterados, para que, igualmente, o quadro que nos reportamos
acima se diferencie. Pois ela acredita que
ao incluir o aluno com deficiência mental na escola regular estamos
exigindo desta instituição novos posicionamentos diante de
processos de ensino e aprendizagem, à luz de concepções e práticas
pedagógicas mais evoluídas. A inclusão é, pois, um motivo para que
a escola se modernize e os professores aperfeiçoem suas práticas e,
assim sendo, a inclusão escolar de pessoas deficientes torna-se uma
conseqüência natural de todo um esforço de atualização e de
reestruturação das condições atuais de ensino básico (MANTOAN,
1997, p. 120).
Embora não possamos encontrar definições definitivas, podemos
encontrar pontos de partida muito úteis nesse caminho. A inclusão envolve
um processo de reforma e de reestruturação das escolas como um todo, essa
reformulação tem por objetivo assegurar que todos os alunos possam ter
acesso à vasta gama de oportunidades sociais e educacionais que a escola
pode oferecer, impedindo assim a segregação e o isolamento.
48
A esse respeito, alguns autores discutem aspectos psico-sociais
inerentes à inclusão. Amaral (1995), Glat (1989, 1995) e Omote (1994)
abordam tanto as condições de políticas e relacionamentos sociais que
ocorrem no meio educacional quanto as relações de conflito social.
Marginalizações e preconceitos, por exemplo, são algumas das questões
envolvidas que podem promover ou segregar as pessoas com deficiência.
Outra perspectiva teórica, a da Psicologia da Aprendizagem,
fundamentou-se, por um lado, nos estudos de Jean Piaget e Emilia Ferrero
e, por outro lado, nas reflexões sobre a sócio-interação proposta por
Vigotsky, apesar da sua incompatibilidade teórica. Assim, essa última
vertente demonstra que é possível a construção do conhecimento, do
desenvolvimento da linguagem, da leitura e da escrita, notadamente em
situações de interação social, na escola como apontam Moussatché (1992),
Fernandes (1993, 1994) e Carvalho (2006). Vale dizer ainda que, apesar de a
sócio-interação ser importantíssima, os pais continuam a ser base de
sustentação na educação dos filhos, funcionando como coadjuvantes na
construção do conhecimento, na conquista da linguagem e da leitura.
Neste sentido, metodologias de ensino mais eficazes concederam às
pessoas com deficiência maiores condições de adaptação social e
educacional. Glat (1989; 1995), Resende (1995), Pereira (1990), Kadlec &
Glat (1984), Blascovi-Assis (1997) e Aguiar (2004) apontam para a melhora
dessas condições que proporcionam um avanço nessa área.
Esses autores estimulam a melhoria de práticas que evitem a
discriminação e consideram que a discussão deve ser feita pensando em
uma escola necessariamente inserida numa sociedade. Mittler realça, além
disso, uma política calcada na parceria escola-pais em relações de trabalho e
cooperação, pois
qualquer escola necessita de sua própria política de relação casa-
escola para ir além de palavras bonitas e para incluir propostas
concretas a fim de alcançar melhores relações de trabalho com os
pais e a comunidade local. Apesar da retórica sobre a importância do
trabalho com pais, não há nenhuma exigência legal para escolas ou
autoridades educacionais terem uma política escrita detalhada sobre
o trabalho com os pais; portanto, não há nenhuma diretriz sobre os
títulos sob os quais tal política poderia ser desenvolvida (MITTLER,
2003, p. 208).
49
No entanto, essa discussão deve ser capaz de mobilizar os pais, a
escola e a comunidade, para fortalecer os indivíduos, almejando a eliminação
dos preconceitos que cercam a questão da deficiência. Esta discussão,
contudo, levanta um sem número de outras questões, no que tange aos
aspectos da condução dessas modificações educacionais.
Neste aspecto, vale ressaltar que, assim como nos países
desenvolvidos, também naqueles em desenvolvimento as propostas
educacionais estão ainda tentando fazer com que todas as pessoas tenham
acesso à educação, conforme menciona Ferreira:
Toda e qualquer pessoa nesta nova escola será vista como um ser em
potencial para contribuir e se desenvolver plenamente (...) desde que
todos nós iniciemos uma luta contra nossos preconceitos e formas
mais mascaradas de práticas de exclusão (FERREIRA, 2005, p. 46).
A proposta da inclusão de pessoas com deficiência na escola deve ser
amplamente debatida, tendo em vista o seu caráter de urgência. Assim, não
podemos desconsiderar a discussão internacional e os direitos humanos
concernentes à inclusão, ou à discriminação de qualquer natureza. A
discussão e o apoio da comunidade educacional a essas idéias podem alterar
os direitos humanos no plano do indivíduo e na dimensão social, como
enfatiza Rodrigues, ao afirmar que:
No que diz respeito à justiça social, a questão é igualmente difícil: o
fosso entre ricos e pobres continua aumentando em escala nacional
e internacional, os países ricos começam a amuralhar-se contra a
previsível entrada de estrangeiros (mais pobres) em suas fronteiras,
as periferias das grandes cidades são pungentes exemplos de
exclusão. As instituições sociais defrontam-se com novas questões
de exclusão social em nível de cidadania, do trabalho, da educação,
do território e da identidade (RODRIGUES, 2006b, p. 300).
Para o autor, a inclusão se encontra em uma situação nada
confortável, pois ela é pensada a partir daquilo que lhe faz oposição. Ela
nasce justamente daquilo que ele tenta combater, uma vez que
é nesse terreno controverso, desigual e crescentemente complexo que
a inclusão (seja social, seja educativa) procura prevalecer. Nesse
50
aspecto, poder-se-ia dizer que, quanto mais a exclusão social
efetivamente cresce mais se fala em inclusão (idem; grifo do autor).
Essas colocações nos remetem sempre a uma estrutura tripartite:
indivíduo, escola e sociedade. Elas precisam caminhar juntas em uma
discussão que pretende promover a inclusão social de pessoas com
deficiência, pois “tanto a legislação como o discurso dos professores se
tornaram rapidamente ‘inclusivos’, enquanto as práticas na escola só muito
discretamente tendem a ser inclusivas” (p. 302).
Um indício de que essa discussão deva perpassar a coletividade é o
fato dos diversos interesses envolvidos na inclusão precisarem se alinhar
quanto a seus discursos e práticas, o que somente ocorrerá através de
muitas discussões. Assim, essa discussão, embora seja particularizada na
escola, diz respeito a questões com implicações mundiais, como mostra
Ferreira:
Embora aqui, nossa atenção esteja centrada na realidade
educacional brasileira, a realidade da exclusão educacional dos
chamados “grupos sociais vulneráveis, ou grupos de risco” é uma
realidade mundial que também afeta os grupos que vivem em
situações de desvantagem nos países ricos.
Grupos sociais em risco de exclusão se referem a crianças e jovens
que vivem nas ruas, crianças que sofrem maus tratos e violência
doméstica, crianças e jovens com deficiência, meninas que são
levadas a se prostituírem, crianças e jovens com o vírus HIV/AIDS,
com câncer ou outra doença terminal, crianças e jovens em conflito
com a lei, crianças negras e indígenas e outros grupos que por
razões distintas, sejam produto da desigualdade social e econômica
e, principalmente, sejam objeto de discriminação e preconceito
dentro e fora das escolas (FERREIRA, 2005, p. 42).
Assim, a desigualdade social mundial, parece ser mais visível em
países em desenvolvimento, onde “um em cada quatro adultos não sabe ler
ou escrever, dois terços são mulheres” (MITTLER, 2002, p.11). E “esses
números também nos lembram que, embora tal movimento inclua as
crianças deficientes, elas tendem a ser as últimas a serem incluídas” (idem).
Nesse cenário, sugerido pelos autores, Rodrigues aponta para uma
divisão entre riqueza e pobreza, cidadania e não-cidadania, inclusão e
exclusão. Constituindo assim em uma proporção que acentua as
51
desigualdades. No que respeita à justiça social a questão é igualmente difícil,
pois “o fosso entre ricos e pobres continua a aumentar à escala nacional e
internacional” (RODRIGUES, 2006a, p. 75).
Permitindo-nos uma digressão, digressão esta que segue os caminhos
da inclusão e da transformação da escola, projetos particularizados nessa
área, como aqueles de países como Uganda, Laos, Lesoto (no Continente
Africano), têm dado mostras de que a inclusão é possível, com base em
projetos de participação político-educacional, em esforço comum, envolvendo
educadores, familiares e, de forma generalizada, a sociedade. A inclusão,
portanto, não se refere somente à realidade brasileira, mas também à
realidade de outros países, sendo frequentes os debates mundiais
envolvendo a discriminação e preconceito de forma genérica. Mittler nos
oferece um exemplo europeu, afirmando que
a Itália não estava preparada para esperar por um tempo indefinido,
mas preferiu lançar o experimento a fim de criar as fundamentações
para as mudanças. Apesar de os italianos não poderem estar certos
de que o que estavam fazendo necessariamente responderia às
necessidades de todas as crianças envolvidas, enfatizaram que seus
objetivos não eram apenas educacionais, mas também sociais, uma
vez que queriam garantir que a próxima geração de italianos adultos
tivesse a oportunidade de ir à escola com as crianças que teriam sido
previamente excluídas das escolas do sistema regular de ensino
(MITTLER, 2003, p. 54).
Paralelamente a essas discussões e propostas, o ideal seria pensar em
uma educação melhor para todos, com ampla abrangência, cujo privilégio de
melhoria, desenvolvimento e emancipação, devesse ser um propósito bem
mais genérico, na dimensão da cidadania e da humanidade. Na mesma
linha, a Convenção dos Direitos da Criança, como um instrumento legal das
Nações Unidas, estabelece que:
Os Estados assegurarão a toda criança sob sua jurisdição os direitos
previstos nesta convenção sem discriminação de qualquer tipo,
independentemente de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião
pública ou outra, origem nacional, ética ou social, posição
econômica, impedimentos físicos, nascimento ou qualquer outra
condição da criança, de seus pais ou de seus representantes legais
(ONU, 1989, art. 2, p. 45).
52
A inclusão, no entender de Mittler, ultrapassa as nações, etnias e
conceituações geo-políticas dessas divisões (cf. 2003, p. 84). Segundo o
autor, a maior barreira entre países pobres e ricos não é financeira, mas é a
das atitudes negativas e refratárias à inclusão oriundas de professores,
políticos e lideranças comunitárias. Isso talvez explique um dado
surpreendente apresentado por ele, em que apenas 1% das pessoas com
deficiência nos países em desenvolvimento (o que inclui o Brasil) freqüenta
algum tipo de escola.
A inclusão possibilita refletir sobre formas diferentes de práticas
escolares e também as relações sociais que mediatizam essas práticas. Como
nos faz crer Arendt ao afirmar que
O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas,
a partir dos tempos antigos, mostra o quanto parece natural iniciar
um novo mundo com aqueles queo por nascimento e por natureza
novos (ARENDT, 1992, p.225).
Portanto, inclusão e cidadania são temas que se completam
mutuamente. Os avanços que aquela proporciona são legitimados por esta. A
educação, então, pode ser a instância em que os valores vigorosos criados
pela cultura e pelo conhecimento dão lugar não somente à inclusão de
pessoas com deficiência, mas também ao exercício da cidadania e da
alteridade.
3.3 – A inclusão das pessoas com deficiência pela educação: a relação
entre pais e escola.
À medida que avançamos o século XXI, as perspectivas relacionadas à
inclusão têm sido discutidas no mundo todo, como nos sugere Sánchez:
Desde meados dos anos 80 e princípio dos 90, inicia-se no contexto
internacional um movimento materializado por profissionais, pais e
as pessoas com deficiência, que lutam contra a idéia de que a
educação especial, embora colocada em prática junto com a
integração escolar, estivera enclausurada em um mundo à parte,
dedicado à atenção de reduzida proporção de alunos qualificados
53
como deficientes ou com necessidades educacionais especiais
(SÁNCHEZ, 2005, p. 08).
Devemos considerar que a inclusão de crianças com deficiência motiva
inúmeras preocupações para os pais, seja porque seus filhos terão pela
frente a aceitação ou não da escola, seja porque qualquer rito de passagem
envolve sempre a dicotomia Indivíduo/Sociedade que pode determinar esses
caminhos.
As preocupações se acentuam porque não se trata de “integrar
crianças com deficiência”, mas sim de permitir ou conquistar, junto à escola,
o acesso e o convívio com a diferença e, em um sentido mais amplo,
conceder aos alijados do ensino regular o pleno acesso a ele. Através da
inclusão não são apenas as crianças que são acolhidas na escola regular,
mas também os pais que podem igualmente ser acolhidos à medida que
participam de eventos na escola: reunião de pais, conselhos de pais e
mestres, comemorações etc. Isso pode conceder a eles não apenas
visibilidade, mas participação e inserção sociais.
Alguns autores como Buscaglia (1997), Amaral (1995) e Gascoigne
(1995) discutem a adaptação dos pais a novas realidades. Para estes
autores, a realidade da deficiência e o delicado estado emocional dos pais
nessa condição podem gerar sentimentos de raiva, culpa e tristeza. Neste
contexto, eles têm que se reestruturar para possibilitar uma reorganização
dos cuidados médicos, escolares etc.
Buscaglia nos mostra aspectos da realidade vivida pelos pais, ao
indicar que:
Todos nós precisamos nos interessar mais pelos outros ; quando
experimentamos uma dor profunda, de natureza espiritual,
precisamos que as pessoas se aproximem de nós com muita
sensibilidade ; precisamos ser aceitos nos tempos difíceis ;
necessitamos sentir que podemos confiar nos outros o suficiente
para baixar nossa guarda, dizer o que quisermos e não sermos
julgados ou criticados (BUSCAGLIA, 1997, p. 165).
Amaral nos revela que são os pais que vivem intensamente não apenas
o sentimento de perda em relação aos filhos, mas um processo de luto na
família que redunda em sofrimento e superação:
54
(...) Ou seja, a cada momento significativo do processo de
desenvolvimento do filho, ou a cada uma das situações críticas
previsíveis, corresponderá sempre, em maior ou menor grau, um
certo nível de sofrimento psicológico e de elaboração do luto: a
aquisição da linguagem, a autonomia motora, a entrada na escola
(...) (AMARAL, 1995, p. 79).
Sabemos, contudo, que a inclusão altera radicalmente a visão de pais
de crianças, jovens ou adultos com deficiência. Buscaglia aponta para a
dimensão dessas mudanças, cuja abrangência alteraria muito
substancialmente não apenas a vida de seus filhos, mas também a vida dos
pais. Pois para ele:
Crescer como pais é, de uma forma bem significativa, propiciar o
crescimento de todas as coisas. Uma criança deficiente pode ser a
chave para a realização contínua, acelerada e única de uma pessoa.
Em um certo sentido, como um indivíduo único, cada um de nós
deve crescer de modo independente, a fim de crescer com os outros.
Os pais, porém, só podem realizar isso se estiverem dispostos a
aceitar o fato de que são pessoas em primeiro lugar, pais em
segundo, e só então pais de uma criança deficiente (BUSCAGLIA,
1997, p. 101; grifo do autor).
Ainda com essas dificuldades, a convivência social, que a inclusão
possibilita, representa uma grande conquista dos pais. De forma particular,
ela pode responder pela diversidade e acolher com um olhar diferencial e
receptivo as pessoas com deficiência. Por outro lado, a inclusão exige deles o
enfrentamento frontal do preconceito e da estigmatização na escola e na
comunidade, o que poderá acarretar uma sobrecarga extra aos pais cujas
atribuições e tarefas já são por demais atribuladas.
Os pais, portanto, tendo assegurado o direito à escola para os seus
filhos, terão uma preocupação a menos, no seu já repleto cabedal de
preocupações. A inclusão, portanto, é para eles uma necessidade, uma
urgência para que sentimentos, a que Buscaglia se refere, não os impeçam
de participar e que as suas preocupações sejam, no âmbito escolar,
minimizadas, de forma que apelos como o de Buscaglia sejam superados:
55
Piedade, dor, ridículo. Tememos pelo futuro e pela segurança dessa
criança. Receamos que não haja escolas adequadas, nenhum
emprego. Assustamo-nos com o que nosso filho irá pensar ou sentir
e se seremos fortes o bastante para atender a esses sentimentos e
necessidades especiais (BUSCAGLIA, 1997, p. 108).
Esses sentimentos nos chamam atenção para o protagonismo dos pais
nesse embate, provocador e desafiador a um só tempo, não sem grandes
doses de tensão, angústias e esperanças. Conforme nos pontuam Camargo e
Pássaro:
Na opinião da mãe cuja filha freqüentou uma instituição de
educação especial e uma escola regular de ensino, a inclusão
beneficiou sua filha em todos os sentidos e destaca a importância da
filha saber ler e escrever. Por outro lado, as mães revelaram o medo e
a angústia diante da possibilidade da discriminação que o filho pode
sofrer na escola (...) (apud MARTINS et alii, 2006, p.136).
Assim, os pais com alguma ou nenhuma orientação sobre os filhos,
podem se defrontar com sentimentos estranhos em relação a si e eles, nessa
tarefa os profissionais que os ajudam nesse trajeto podem ser vários, no
entanto, a responsabilidade sobre os filhos, ainda cabe aos pais.
O que freqüentemente temos observado, no entanto, é que os
professores raramente tentam quebrar barreiras, e como consequência dessa
atitude, muitos pais poderão sentir que as relações de poder podem estar
dirigidas contra eles. Por outro lado, professores podem se sentir ameaçados
pelos pais, que podem insinuar que as dificuldades da criança podem estar
relacionadas, pelo menos em parte, à qualidade e oportunidade de ensino
vindas e oferecidas pela escola, ou a forma com que ela é aplicada aos
alunos.
Não é raro as vezes em que os professores fazem notar que não houve
nenhuma referência às famílias em seu treinamento inicial, ou que houve
poucas oportunidades de capacitação nesse sentido, nos seus cursos
oficiais. Eles reivindicam uma formação mais adequada ao seu trabalho,
acreditando ainda, que essa formação poderia minimizar o problema da
inclusão, escolar ou social, como nos indicam a fala de um professor:
56
(...) Se tiver suporte, se não, não dá. Eu trabalhei o ano passado em
uma escola, mas foi assim... foi muito difícil de ver isto, nem ali
dentro da classe especial você consegue, o portador é diferente, a
criança que tem uma deficiência na escolaridade um portador de
deficiência, agora, por outro lado, os ditos “normais”, as classes
regulares, a maioria tem problema também, vai incluir um que mal
pega no lápis, numa primeira série que todo mundo já está assim... é
difícil, eu acho que não tem suporte, eu senti isso na pele o ano
passado fora daqui... (CAMARGO & PÁSSARO apud MARTINS et alii,
2006, p. 127-128).
O que nos chama a atenção nessa citação, é que no depoimento da
professora acima, não dá para incluir alguém que não consegue segurar um
lápis, ou seja, não é tarefa do professor “ensiná-lo a segurar”, nem tampouco
de superar as tarefas consideradas “difíceis”. Os professores alegam ainda,
que devem ser preparados para receber tais pessoas, no entanto, se é
necessário preparar os alunos para receber alguém que teoricamente deve
ser aceito sem preconceitos na convivência com os outros, qual a
necessidade de uma preparação? Um contrasenso, sem dúvida, por isso é
que, nenhuma formação por mais especializada, dá conta de “resolver” todas
as dificuldades da inclusão e todos os desafios que ela nos impõe, conforme
já acentuamos ao longo desse trabalho, assim como também atestam
exemplos de autores e experiência em outros países
13
, cuja inclusão está
sendo feita enfrentando essas colocações acima.
Questões dessa ordem costumam não aparecer ou ficam veladas em
grande parte do tempo, porque são questões de dimensão delicada e,
sobretudo, porque há pouco tempo ou espaço psicológico para que essas se
tornem assuntos a serem abordados convenientemente.
Acreditamos que a escola, por vezes, é pouco afeita à convivência com
a diferença, às poucas condições do apoio comunitário. Comportamentos de
recusa às crianças com deficiência são passíveis de ocorrer na dimensão
escolar, o que os torna motivos mais do que suficientes para que a inclusão
se constitua em um obstáculo a ser superado.
Alguns pais ainda não se vêem no direito de participar das decisões e
das diretrizes metodológicas da escola, limitadas, por vezes, pela ausência de
parcerias e reciprocidades nesse caminho. Tal como nos aponta Mittler:
13
A esse respeito, ver Mittler (2003) e Ainscow (1997).
57
(...) muitos pais ainda são inatingíveis e correm o risco de serem
rotulados como “inalcançáveis”. Alguns pais necessariamente não
querem assistir às reuniões escolares ou podem ser alienados por
algumas das línguas e das documentações que encontram. Eles não
devem ser dispensados das reuniões como “desinteressados pela
educação de suas crianças” (MITTLER, 2003, p. 206).
Os pais que vivenciam suas possibilidades ou impossibilidades
através dos filhos sabem, entretanto, o que significa um trabalho
educacional que os levará a uma maior participação social. Ballard (1990),
Berg & Way (1969), Drotar et alii (1975), Omote (1980) e Viana et alii (1994)
são exemplos de autores que fazem essas reflexões, cujo centro é a
reorganização psíquica e os cuidados com os pais. Wolfendale (1997) e
Wolfendale & Bastiani (2000) pontuam, além disso, que a parceria pais-
escola pressupõe cuidados que se iniciam no lar, porém, tem a escola como
coadjuvante e parceira neste processo.
Mittler, caminhando na mesma direção, considera que os meios para
a substituição dos individualismos devem ser buscados ou assentados sobre
as parcerias possíveis entre pais e escola, pois para ele,
talvez o desafio mais importante para o futuro seja o de tornar as
crianças e jovens capazes de falar por si próprias, até mesmo se
desafiarem o sistema e as visões de suas famílias e dos profissionais
que trabalham com elas. Esse processo deve começar nas escolas,
em parceria com os pais (MITTLER, 2003, p. 250).
Assim, de acordo com o mesmo autor, é necessário desencadear um
processo que deve ter origem na escola, considerando que os pais, os
educadores e a comunidade devam fazer parte desse processo.
Por outro lado, as bases que sustentam as relações entre família e
escola devem ser repensadas, criando maneiras e estratégias que visem unir
pais e professores em relações mais profícuas e de benefícios mútuos.
Professores, tanto quanto pais, apesar de ligações cordiais, enfrentam
tensões intrínsecas, que podem emergir do desequilíbrio de poder entre eles.
Contudo, Susan Stainback e William Stainback sugerem que essas
desigualdades devem ser ultrapassadas pela cooperação entre professores,
pais e alunos, observando que, quando todos puderem trabalhar em
58
colaboração, poderá surgir uma base maior de consolidação dos propósitos
escolares, construídos em parceria e colaboração mútuas, uma vez que:
Professores, pais e alunos nas escolas inclusivas têm
consistentemente declarado em entrevistas, em apresentações de
conferências e em várias publicações que uma razão importante para
o sucesso dessas escolas é o envolvimento de alunos, professores,
especialistas e pais trabalhando em colaboração. (...) Resta uma
enorme quantidade de trabalho a ser feito para termos escolas
eficientes, inclusivas e interessadas em uma base mais disseminada
(STAINBACK & STAINBACK, 1999, p. 223).
Mittler ainda nos aponta que, no âmbito educacional, a escola ainda é
detentora da transição entre o novo e o antigo, vale dizer, entre a família e a
escola, entre a criança e o mundo e os desafios que eles nos colocam. Para
ele:
As escolas, em uma única geração, mudaram completamente, mas
muitos pais tiveram pouca experiência direta sobre tais mudanças e
obtiveram muitas das informações que possuem através da mídia e
de encontros casuais com vizinhos. Pais de crianças com
necessidades especiais têm uma grande necessidade de relações de
trabalho com professores baseadas no entendimento e na confiança
(MITTLER, 2003, p. 206).
Assim, poderíamos indagar o quanto pais e professores em suas
capacitações poderiam trabalhar juntos e conjuntamente sobre suas
necessidades e percepções. Contudo, parcerias como essas seriam benéficas
para ambos: para os pais, momentos de reflexão e participação na escola e
na vida de seus filhos, para os professores, uma maior integração com o
universo dos pais e toda a complexidade de seus desafios também a serviço
da escola.
Por outro lado, os pais concebem a inclusão escolar como uma
possibilidade, um horizonte a ser alcançado, e parte de suas expectativas de
transformação social. A escola, a educação no geral, é freqüentemente um
braço social por meio do qual essas conquistas podem ocorrer.
Mittler aponta para o acesso à escola que pode incluir, ao invés de
excluir, os pais em parceria e colaboração. Em sua opinião:
59
Assim como a inclusão, esta é uma jornada empreendida como
expressão de certos valores e princípios. Uma verdadeira parceria,
como em qualquer relação próxima, implica respeito mútuo baseado
em uma vontade para aprender com o outro, uma sensação de
propósito comum, um compartilhamento de informação e, alguns
acrescentariam, um compartilhamento de sentimentos... Conhecer a
individualidade de cada família é uma das tarefas mais difíceis para
qualquer professor, pois há poucas oportunidades para conhecer os
pais e mães como pessoas (MITTLER, 2003, p. 213).
Per si, o quadro social em debate, com relação às pessoas com
deficiência, mostra que nós vivemos em uma sociedade opressiva e
segregadora, portanto, a sistemática alteração desses obstáculos pode
promover de forma significativa a mudança na vida das pessoas com
deficiência. Com isso Mittler diz:
(...) quero sugerir que nós precisamos repensar a base inteira de
relações entre família e a escola para todas as crianças. Inventar
modos novos de trazer os professores e os pais para uma relação de
trabalho melhor é válida para a própria causa e também beneficia
todas as crianças, os pais e os professores. Além disso, pode
provocar um impacto sobre a aprendizagem das crianças e promover
a inclusão escolar, sobretudo àqueles pais que estão experimentando
exclusão social. As crianças com necessidades especiais e as suas
famílias também são beneficiadas de imediato sem a necessidade de
princípios e procedimentos especiais (MITTLER, 2003, p. 205).
Por isso, a inclusão é, em se tratando deles, uma tarefa que envolve de
um lado passagens, perspectivas e horizontes na relação com a escola, a
sociedade e a comunidade, e de outro, um esforço sem conta para os
possíveis debates e enfrentamentos na escola, envolvendo o aprimoramento
de professores, metodologias e abordagens.
Pessoti (1989), Capovilla (2004), Andrade & Capovilla (2004) e Pinheiro
(1994) são exemplos de pesquisadores nacionais que consideram princípios
de análise experimental de comportamento e metodologias, que propiciam
um novo enfoque sobre essa questão.
É importante salientar que, neste caso, as metodologias são
importantes para a evolução da inclusão, por gerar novas possibilidades de
ensino e aprendizado. Sánchez nos aponta que a inclusão é um processo que
se beneficia das metodologias, embora não se reduza a elas, uma vez que:
60
Isto supõe conceber a educação para além de uma visão puramente
instrumental, utilizada para conseguir determinados resultados
(experiência prática, aquisição de capacidades diversas ou para fins
de caráter econômico) e buscar a sua função em toda sua plenitude.
O que supõe a plena realização da pessoa (SÁNCHEZ, 2005, p. 11).
Assim, é necessário que os avanços recentes na área médica sejam
associados às teorias que nos remetem à compreensão dessas questões. Ou
seja, os pais ao lado da escola enfrentariam mais facilmente os processos de
desenvolvimento dos filhos, aliados aos avanços científicos e educacionais
que podem fazer avançar na supressão do preconceito, do estigma da
deficiência e da discriminação. Nesse aspecto, são importantes os trabalhos
de pesquisadores no Brasil que oferecem sua contribuição nesse sentido. A
nosso ver, estes avanços na inclusão se deram por algumas razões
fundamentais. Por um lado, a rapidez no diagnóstico pode possibilitar, em
alguns casos, procedimentos técnicos que têm permitido agilizar alguns
serviços médicos e paramédicos e alterar, por vezes de forma significativa, a
irreversibilidade atribuída a essa ou aquela deficiência. Contudo, em outros
casos, mais que procedimentos, são necessárias medidas políticas e
programas sociais que viabilizem esses atendimentos. Por outro lado, as
possibilidades da ciência e da tecnologia, associadas às pesquisas de
educadores em todo o mundo, propiciaram a intervenção de recursos
pedagógicos que têm transformado o panorama educacional. A inclusão,
como parte integrante deste movimento mundial, contribui assim para que a
questão não perpasse apenas a área médica, mas abarque o social e os
processos de aprendizagem.
Ou como diz Ferreira, cujas palavras cabem bem aos pais, à escola e à
inclusão:
A Educação Inclusiva, portanto, não diz respeito somente às crianças
com deficiência – cuja grande maioria no Brasil ainda permanece
fora das escolas, porque nós nem tentamos aceitá-las – mas diz
respeito a todas as crianças que enfrentam barreiras: barreiras de
acesso à escolarização ou de acesso ao currículo, que levam ao
fracasso escolar e à exclusão social. Na verdade, são essas barreiras
que são nossas grandes inimigas e devem ser foco de nossa atenção
para que possamos identificá-las, entendê-las e combatê-las
(FERREIRA, 2005, p. 42).
61
Assim, a inclusão pode trazer para a escola, não apenas as pessoas
com deficiência, mas todos aqueles que estão excluídos da escola, podendo
então, ter a possibilidade de serem parte integrante da escola regular.
Esse fato, por si só, representa uma ruptura na abordagem
educacional, capaz de ampliar enormemente esse universo, ou seja, incluir
pessoas que até então, não tinham acesso à escola. Em contrapartida, é
capaz de levantar as mais altas muralhas que podem ser vistas como
ameaças ao ensino e à aprendizagem como um todo, em virtude exatamente
dessa ruptura. Assim, a inclusão, ao mesmo tempo em que é um grande
avanço educacional, pode, paradoxalmente, levantar um sem número de
resistências e preconceitos, exatamente por conter uma proposta que pode
alterar alguns paradigmas da escola.
Estas constituições de interesse mútuo entre escola, pais e
profissionais também são atribuições que recaem sobre os pais em sua
relação mais estreita com professores e com toda a escola, conforme
observam Mittler (2003) e Ainscow et alii (1997). As diferenças entre o lar e a
escola podem e devem ultrapassar as tensões inerentes do desequilíbrio de
poder entre eles, procurando formas alternativas para a abordagem desses
pais como indivíduos, como parceiros da escola. Nessa perspectiva, a escola
e os pais alcançariam outras dimensões e horizontes se suas variadas
vontades, desejos e projetos pudessem ser conjuntamente discutidos, para
conseguirem cooperações e colaborações que propiciassem a superação de
obstáculos.
Esses aspectos aumentam a configuração da cidadania, podendo fazer
com que a reciprocidade e colaboração, vividas pelos pais e pela escola,
alcancem planos da condição humana. Assim, através dessas medidas faz-se
urgente a consciência dos nossos próprios preconceitos.
Nesse caso, a superação pode residir em parcerias intrínsecas que nos
conduzam a uma nova concepção, calcada no diálogo, no entendimento.
Como bem diz Skliar:
Se o professor(a) se dispusesse a me ouvir, eu lhe diria que não há
mudança educativa num sentido amplo, significativo, sem um
62
movimento da comunidade educativa que lhe outorgue sentidos e
sensibilidades (apud RODRIGUES, 2006b, p. 32).
Precisamos repensar as bases das relações que compreendem família,
pais e escola. Reinventar modos e alternativas de juntar pais, professores e a
comunidade para uma relação de cooperação e trabalho; de forma que os
pais, que vivem a exclusão social, e as crianças, com deficiência, fossem
beneficiadas de forma imediata se pudessem contar com estas parcerias,
alterando significativamente o quadro que cerca a inclusão. Nesta
perspectiva, a minimização dos preconceitos seria sentida não apenas pela
escola e pelos pais, mas pela sociedade de forma genérica.
63
CAPÍTULO IV
PROCEDIMENTOS DE PESQUISA
Creio que, na fonte oral, as entrevistas
que fazemos nos transformam e
transformam o outro, porque você está
chegando a portos novos, fazendo um
autêntico descobrimento.
MERCEDES VILANOVA
História Oral 4
4.1 - Histórias de Vida
Pode-se considerar que, de alguma forma, todos somos um
“reservatório” de lembranças, de acontecimentos passados. A narrativa
desses eventos é marcada pela recuperação de memórias. Essas vivências
podem deixar marcas que são reativadas quando se acessa novamente estas
memórias arquivadas. Não sem razão, etimologicamente, a palavra
“recordar’” vem do latim re-cordis e significa “tornar a passar pelo coração”,
como se os eventos fossem revividos ao serem recordados. Como colocam
Grossi e Ferreira, “assim, a razão narrativa leva o sujeito, no ato de lembrar
e de recordar, à reflexão de sua existência efêmera neste mundo” (GROSSI &
FERREIRA, 2001, p. 33).
Assim, considerando o caráter da narrativa como substrato de
memória, podemos dizer que sua autenticação nos remete à preservação dos
fatos, resgatando-os do esquecimento e da passagem inexorável do tempo.
Podem ser também identificadas como re-construção, construção de
lembranças fazendo referência às identidades, particularidades e nuances da
história.
64
4.2 - Participantes
Nesta pesquisa, procuramos explorar os depoimentos de pais que
possuem filhos com alguma deficiência, tratando-os como narradores das
histórias das quais são também personagens. Segundo Benjamin, “a
tentativa de captar sua verdadeira essência não pode ser realizada sem
reconstituir a história de sua gênese, por mais impenetrável que seja a
obscuridade que cerca esse tema” (BENJAMIN, 1993, p. 111).
O objetivo desse trabalho é, portanto, investigar a trajetória de vida de
pais de pessoas com deficiência, verificar a maneira em que concebem sua
própria história de vida e analisar o fato de essa trajetória se tornar ou não
uma referência pontual. Além disso, pretendemos mostrar como a inclusão
social pela educação pode auxiliar essas famílias a minimizar seu
sentimento de isolamento e exclusão. Partindo dessas considerações,
escolhemos alguns pais para entrevistar, com o objetivo de formar um grupo
o mais heterogêneo possível, abarcando pessoas de diferentes faixas de
renda, diferentes níveis de escolaridade, além de diferentes tipos de
deficiência.
P1 e M1: um casal cujo pai tem 76 anos e a mãe, 72. O pai, atualmente
aposentado, foi funcionário de uma empresa multinacional e possui o curso
primário. A mãe, funcionária pública também aposentada, possui
igualmente o curso primário. Ambos apresentam baixo nível sócio-
econômico. A filha com deficiência sofreu um acidente aos 15 anos, tendo
ficado paraplégica (segundo os pais) por erro médico. Hoje ela tem 44 anos.
P2 e M2: trata-se de um casal, cujo pai tem 41 anos, possui curso superior
completo e é funcionário de uma empresa. A mãe, 34 anos, também possui
curso superior completo, é professora da rede pública municipal. O filho teve
paralisia cerebral
14
e hoje tem oito anos. A família possui nível sócio-
econômico médio.
14
“Paralisia Cerebral é uma lesão de alguma(s) parte(s) do cérebro.
Acontece durante a gestação, durante o parto ou após o nascimento, ainda no processo de
65
M3: Mãe viúva, com 60 anos, funcionária pública estadual, possui curso
superior completo e tem três filhos, dois deles se tornaram paraplégicos por
acidente. Desses dois, um deles faleceu há algum tempo, o outro, tem hoje
36 anos. A família possui nível sócio-econômico médio.
M4: Mãe com 35 anos, trabalhadora do lar, possui curso primário
incompleto, é separada. A filha, que tem mielomeningocele
15
, hoje tem 15
anos. A família possui nível sócio-econômico baixo.
P5 e M5: um casal cujo pai tem 44 anos, é profissional liberal e possui curso
superior completo. A mãe tem 43 anos, também profissional liberal, com
nível superior completo. A filha, 12 anos, tem esclerose tuberosa
16
. A família
possui nível sócio-econômico alto.
M6: Mãe viúva, com 55 anos, trabalhadora do lar, possui curso médio
completo, tem quatro filhos (dois com deficiência): uma filha com Síndrome
de Down
17
e outro filho com problemas neurológicos
18
. A família possui
nível sócio-econômico baixo.
amadurecimento do cérebro da criança. É uma lesão provocada, muitas vezes, pela falta de
oxigenação das células cerebrais. Se a pessoa portadora de paralisia cerebral tiver sua visão
ou audição prejudicada pela lesão, terá dificuldades para entender as informações como
normalmente são transmitidas; se os músculos da fala forem atingidos, terá dificuldade
para comunicar seus pensamentos ou necessidades. Quando tais fatos são observados, a
pessoa portadora de paralisia cerebral pode ser erroneamente classificada como deficiente
mental ou não inteligente. A pessoa portadora de paralisia cerebral tem inteligência normal,
a não ser que a lesão tenha afetado áreas do cérebro responsáveis pelo pensamento e pela
memória (STEDMAN, 1982 p. 934).
15
“Uma das lesões congênitas mais comuns da medula espinhal é causada pelo fechamento
incompleto do canal vertebral (coluna vertebral). Quando isso acontece, o tecido nervoso sai
através desse orifício, formando uma protuberância mole, na qual a medula espinhal fica
sem proteção. Isto é denominado espinha bífida posterior e, embora possa ocorrer em
qualquer nível da coluna vertebral, é mais comum na região lombossacra. A denominação
Mielomeningocele significa a protusão da bolsa subcutânea contendo tecido nervoso central,
ou seja, a medula espinhal lesada com raízes nervosas” (STEDMAN, 1982 p. 842).
16
"A Síndrome de Bourneville-Pringle (Desiré Magloire Bourneville, neurologista françês,
1840-1909 - John James Pringle, dermatologista inglês, 1855-1922) ou Epilóia ou ainda
Esclerose Tuberosa é uma doença - onde anomalias congênitas neurológicas combinam-se
com defeitos congênitos da pele, retina e outros órgãos, é de herança dominante,
manifesta-se pela tríade clínica de crises convulsivas, retardo mental e adenoma sebáceo"
(PACIORNIK, 1978 p. 236).
17
“A Síndrome de Down consiste em um grupo de alterações genéticas, das quais a
trissomia do cromossomo 21 é a mais representativa (no contexto da medicina, uma não-
66
P7 e M7: um casal cujo pai tem 42 anos e a mãe, 38. O pai trabalha em sua
própria empresa e possui segundo grau completo. A mãe, trabalhadora do
lar, tem, igualmente, segundo grau completo. O filho, de 19 anos, tem
microcefalia
19
. A família possui nível sócio-econômico médio.
P8 e M8: um casal cujo pai tem 54 anos e a mãe, 53. O pai é empresário, a
mãe é professora, ambos possuem superior completo. O pai é diretor de uma
instituição que cuida de crianças com deficiência. O filho, 23 anos, tem
Síndrome de Down. A família possui nível sócio-econômico alto.
P9 e M9: um casal cujo pai tem 38 anos e a mãe, 36. O pai trabalha como
profissional liberal e a mãe é do lar, ambos têm superior completo. A filha,
de 8 anos, tem mielomeningocele. A família possui nível sócio-econômico
médio.
P10 e M10 : um casal cujo pai tem 34 anos e a mãe, 35. O pai é comerciante
e a mãe é cabeleireira ; ambos possuem o curso primário completo. O filho,
que faleceu há três anos, sofreu três derrames cerebrais e onze intervenções
cirúrgicas. A família possui nível sócio-econômico baixo.
Os dados das famílais entrevistadas estão sintetizados no quadro a
seguir, o qual será apresentado também em separado:
disjunção, pela qual esta síndrome é também conhecida), causando graus de dificuldades
na aprendizagem e de incapacidade física altamente variáveis. Esta ocorrência genética deve
o seu nome a John Langdon Haydon Down, o médico britânico que a descreveu” (STEDMAN,
1982, p. 1272).
18
De acordo com a mãe, o filho não tem um diagnóstico conclusivo. Por vezes, apresentando
convulsões e dificuldades na fala.
19
“Microcefalia (do grego mikrós, pequeno + kephalé, cabeça) é uma condição neurológica
em que o tamanho da cabeça é menor do que o tamanho típico para a idade do feto ou
criança. Também chamada de Nanocefalia, constitui-se no déficit do crescimento cerebral,
quer pelo pequeno tamanho da caixa craniana, quer pelo diminuto desenvolvimento do
cérebro” (STEDMAN, 1982,p. 801)
67
Quadro 1: Alguns dados sobre os pais entrevistados
20
M3 tinha dois filhos com deficiência, porém, um já faleceu.
ENTREVISTADOS NÍVEL EDUCACIONAL Nº DE FILHOS Nº DE FILHOS
COM
DEFICIÊNCIA
TIPO DE DEFICIÊNCIA IDADE DOS
PAIS
IDADE DOS FILHOS
COM DEFICIÊNCIA
P1
M1
Fundamental
Fundamental
1
1
Tetraplegia por acidente 76
72
44
P2
M2
Superior
Superior
1
1
Paralisia cerebral 41
34
8
M3 Superior 3 1
20
Paraplegia por acidente 60 36
M4 Fundamental 3 1 Mielomeningocele 35 15
P5
M5
Superior
Superior
2
1
Esclerose tuberosa 44
43
12
M6 Médio 4 2 Síndrome de Down / problemas
neurológicos
55 21
28
P7
M7
Médio
Médio
3
1
Microcefalia 42
38
19
P8
M8
Superior
Superior
3
1
Síndrome de Down 54
53
23
P9
M9
Superior
Superior
2
1
Mielomeningocele 38
36
8
P10
M10
Fundamental
Fundamental
1
1
Derrames cerebrais 35
34
falecido
68
O processo de escolha dos pais não foi tarefa das mais fáceis, já que
encontramos um número muito maior de pais aptos a contribuir com nosso
estudo do que aqueles que a pesquisa exigia, além disso, com filhos que
possuiam faixas etárias muito diferentes.
Nossa opção foi, num primeiro momento, escolher, de um lado, pais
jovens e, de outro, pais de idade avançada, por julgarmos que uma grande
amplitude etária nos oferecería pontos de vista diferenciados: pais que já
vivenciaram a experiência efetivamente, assim como aqueles que estão
iniciando-se nessa trajetória.
Além do critério de idade, procuramos contemplar famílias com
diferentes faixas de renda salarial e classes sociais distintas, procurando,
assim, uma maior variedade de participantes e distintas experiências. Foi
solicitado ainda, aos pais que escolhessem lembranças, fotos, souvenirs de
seus filhos, em qualquer idade, ficando ao critério deles essa escolha, essas
fotos ilustram os capitulos dessa pesquisa.
Foram feitas aos pais as seguintes perguntas:
1- Fale um pouco sobre você(s) (o casal). Como se conheceram?
Onde nasceram?
2- Em relação ao seu filho, como vocês receberam os
diagnósticos? Como vocês reagiram?
3- Como vocês avaliam os cuidados médicos obtidos? Houve
mudanças na condução desses cuidados?
4- Como seus parentes mais próximos reagiram? Como seus
amigos reagiram?
5- Vocês recebem alguma ajuda de algum órgão, ou de alguém?
Como isso acontece?
6- Como é a sua rotina em relação ao seu filho e à sua casa?
7- Como foram as relações com as instituições que vocês
freqüentaram?
8- Em relação ao seu filho, quais as suas expectativas? E suas
perguntas mais freqüentes?
69
9- Que medo mais freqüente tem ocorrido? Do que vocês têm
medo mais comumente?
10- Vocês desejam dizer mais alguma coisa para deixar
registrado?
4.3 – Procedimentos
4.3.1 - Coleta de Dados
Em relação ao procedimento usado nas entrevistas, estas eram
marcadas por telefone. No primeiro encontro, explicávamos aos pais o
objetivo da pesquisa, além de colocar-lhes a par da necessidade do uso de
equipamentos como o gravador. Assim, os pais ficavam cientes de que seus
relatos orais serviriam como fonte da pesquisa.
Os pais se dispuseram a nos conceder algumas horas de seu tempo
para que pudéssemos entrevistá-los e colher os dados necessários. O local
escolhido por todos foi a própria residência, já que esta propicia um
ambiente que não representa uma grande quebra de sua rotina.
Iniciávamos nosso contato com uma breve conversa que tinha o
objetivo de preparar o ambiente para a entrevista. Assim que percebíamos a
disposição do entrevistado, começávamos as perguntas. Não percebemos
nenhum constrangimento pelo uso do gravador. As questões seguiam uma
ordem cronológica dos acontecimentos (diagnóstico da deficiência, cuidados
médicos, rotina, apoios institucionais, esperanças e medos mais freqüentes),
tentando abarcar os vários momentos da relação pais e filhos com
deficiência. As entrevistas foram realizadas de janeiro de 2005 a agosto do
mesmo ano.
4.3.2 – Análise dos dados
70
A interpretação dos dados é uma forma de releitura das histórias
vividas pelos pais, já que a lembrança, nesse caso, passa pela constituição
do indivíduo através de sua memória.
Buscamos classificar as perguntas, como mencionamos acima,
segundo critérios temáticos que seguem a ordem dos acontecimentos,
começando pelo diagnóstico (o momento do primeiro contato com a
deficiência) até as preocupações com a morte, o que nos permitiu ampliar o
universo de hipóteses prováveis.
Apesar de usarmos as mesmas perguntas para todos os pais, as
diferenças individuais possibilitaram observar como cada sujeito responde
de maneira singular às situações, como bem nos indica Schwarzstein :
As narrativas se estruturam envoltas em tempos diferentes, não
seguem, em geral, uma cronologia específica. O tempo biográfico,
representado por momentos chaves do ciclo de vida individual,
impõe-se em quase todos os casos no mesmo tempo histórico
(SCHWARZSTEIN, 2001, p. 81).
Assim, a análise está organizada em dois capítulos. O primeiro
concerne à experiência dos pais nesta árdua tarefa de deparar-se com a
deficiência (o momento do diagnóstico), de estabelecer uma rotina e de um
projeto futuro de seus filhos.
O segundo retoma o foco da pesquisa: a vivência do preconceito e o
papel possível da escola na superação da discriminação e preconceito.
71
CAPÍTULO V
ENFRENTANDO A DEFICIÊNCIA
Não parece haver uma ponte que ligue a
subjetividade mais radical, na qual eu já
não sou “identificável”, ao mundo exterior
da vida. Em outras palavras, a dor, que é
realmente uma experiência limítrofe entre
a vida, no sentido de “estar na companhia
dos homens” (inter homines esse), e a
morte, é tão subjetiva e alheia ao mundo
das coisas e dos homens que não pode
assumir qualquer tipo de aparência.
HANNAH ARENDT
A condição humana
Este capítulo tem o objetivo de apresentar a forma com que os pais de
crianças com deficiência enfrentam a questão. Ele subdivide-se em três
tópicos: o primeiro trata o diagnóstico da deficiência, o segundo, a rotina
enfrentada pelos pais, e o terceiro considera seus medos mais freqüentes em
relação aos filhos com deficiência e suas impressões com relação à morte.
5.1 – O Diagnóstico
O diagnóstico da deficiência é o momento em que os pais tomam
conhecimento de que, dali em diante, terão que lidar com a deficiência. A
partir daí, delinea-se um quadro de incertezas para os pais, motivado pelas
dificuldades de aceitação e convivência com uma situação incomum.
Os depoimentos que se seguem são resposta à seguinte pergunta :
“Em relação ao seu filho, como vocês receberam os diagnósticos? Como
vocês reagiram?”
72
M7:Brutalmente. Eu ganhei o D. às 2h30min.da manhã, aí desci para o quarto, na hora
que o D. nasceu eles não me mostraram. Não teve aquele... os outros dois. Aí eu desci para
o quarto, o pediatra desceu, falou assim: “Mãe, sinto muito, seu bebê nasceu com problema,
não vai dar tempo de você conhecer seu bebê”. E virou as costas, foi embora. Eu levantei e
falei: O que eu estou fazendo aqui? Já tive meu filho, vou catar ele e vou para casa. Se ele
nasceu, ele vai ficar comigo.
Tomei banho gelado, porque na maternidade, de madrugada, ficava fechado a parte da
energia. Me troquei, isso meia hora depois do parto, a enfermeira chegou e perguntou:
“Escuta, aonde você vai ? Tá ficando louca ?” Não. “Onde você tomou banho?” No banheiro.
“Tomou banho gelado?” Foi, banho gelado, não estava quente, tomei banho gelado. E eu
estou indo embora, vou pegar meu filho e vou embora. “Mas por quê você vai embora?”
Porque o médico falou que meu filho nasceu com problema e não vai dar tempo de eu
conhecer ele. Eu vou pegar ele e levar para casa.
Nisso tentaram me controlar, ligaram para o O
21
.
A reação de M7 ao diagnóstico da deficiência reflete o desespero através
de uma coragem extrema a afrontadora às regras institucionais do hospital.
As metáforas que a mãe usa, como “vou catar ele e vou para casa, e o banho
gelado, como uma atitude extremamente simbólica, representam a forma
com que esta mãe reagiu e como lidou com a aflição provocada pelo
diagnóstico. Diferentemente de M7, o casal P5 e M5 tiveram outra reação:
P5: – Ela,ela se contorcia e os bracinhos dela se fechavam, e o pescoço e a cabeça
também, né?
M5: – É, era um espasmo.
P5: – Aí a gente achou que devia ser gases, né ?! Alguma coisa...
M5: – É, não sabia o que era, mas daí o F... Ela deve estar engasgada. Eu falei: mas
os movimentos são iguais, né? Daí, fomos prá casa da minha mãe; a gente almoçou na
minha mãe. Quando foi umas... eram umas sete e meia da noite, mais ou menos, a M,
no meu colo, começou a ter de novo os espasmos, e eu comecei a gritar. Falei: ela es
tendo alguma coisa e é...é...são movimentos repetitivos, é alguma coisa muito
estranha.
Aí a gente ligou pro M., que era o pediatra, e daí o M. falou no telefone: “Ela tá
convulsionando, isso daí é uma convulsão”. Daí ele falou: “Vou ligar para o Dr. P., e
daqui a pouquinho o Dr. P. te liga”. Daí, o Dr. P. ligou e marcou para o dia seguinte, foi
no dia onze... No dia onze de setembro. E aí...
P5: – Nosso, nosso onze de setembro já aconteceu...
M5: – Já... foi...é...
P5: bastante tempo...É, todo mundo chorou; todo mundo triste.
M5: – É, e nós ficamos sozinhos em casa, nós dois, por...com a M. A minha cunhada
foi buscar a C.
22
, e nós ficamos sozinhos, porque tava tendo a festa na casa da minha
mãe já... A festa né, todo mundo tinha ido prá lá prá comemorar o aniversário dela, e a
gente naquele, naquele sofrimento. Daí, quando foi mais tarde minha mãe foi prá casa;
aquela coisa horrível, né, que... daí, daí nós fomos fazer os exames.
P5: – Mas nós fomos prá sua mãe depois. Olha, chorei muito, chorei muito, muito. Foi
assim, desespero, foi desespero mesmo, de...
M5: – É, é deseperador, é...
21
A mãe faz referência ao seu marido (P7).
22
C. é a outra filha do casal.
73
A reação de P5 e M5 talvez seja conseqüência da comparação entre o
aniversário da mãe de M5 – motivo de festas e alegria – e o nascimento de M.
que, diferentemente, ao invés de alegria, trouxe-lhes, num primeiro
momento, desespero e tristeza.
M9: – É, então, aquilo que eu já te falei: teve um pouquinho de sangramento; eu fiquei
preocupada, fiz ultra-som. Aí, no ultra-som, completando três meses, o médico deu o
diagnóstico da minha
23
‘mielomeningocele’; aí, foi assim: na hora do diagnóstico
parece que o chão sai do lugar, né ? E aí, né, querendo saber como vai ser a criaa,
como vai ser esse defeito, como é que ela vai nascer. Aquelas coisas: “vai ser sem
braço? Sem perna? Sem olho? Como é que é?” E aí eu fiquei assim: não conseguia
saber, lembrar o que é mielomeningocele. Aí, lógico, eu comecei a chorar; chorei
bastante. Mas aí, o médico começou a me explicar mais ou menos o que era, porque eu
não conseguia lembrar o que era. Aí foi falando o que eram os defeitos, do que ela ia
precisar de médico, de cirurgia, logo que nascesse, tal... Então assim, nessa idade, né
C
24
? O M
25
. não estava comigo; então, na hora que eu saí do consultório foi uma coisa
assim também de... foi muito difícil, porque o primeiro filho você imagina tudo de lindo
e maravilhoso, né? Então, é aquela morte mesmo, assim de que... Pôxa! Eu vou ter que
receber uma criança que não é bem aquilo que eu pensava que era. E a minha
preocupação é que ele, M., estava viajando. E aí, a gente sempre idealizou esse filho, a
gente sempre quis muito, né?, a I.
26
P9: – Embora a gente já havia conversado muito antes dela ficar grávida, ela sempre...
Bem, e se a criança tiver algum problema? Bem, a gente vai carregar, vai conduzir da
melhor maneira que a gente tiver condições. Eu não vejo isso como um problema. A
gente tem que cuidar do que tivermos em mãos.
M9: – Aí, eu saí do consultório e vim para casa. Eu cheguei em casa, aí chorei, chorei,
chorei. Aí, minha mãe chegou, minha irmã, todo mundo; aí eu contei. Elas ficaram um
pouco assustadas, mas eu me preocupava também como é que ia ser a reação dele. Eu
falava: Ah, meu Deus, será que ele vai continuar gostando de mim? Será que ele vai
gostar do bebê? Será que ele vai aceitar esse bebê? Será que ele vai achar que a culpa
é minha? Tem toda essa fantasia. E aí, eu lembro que isso foi numa quarta-feira e ele
chegava só na sexta. Então, na quinta e sexta, eu chorei o dia inteiro, não fui
trabalhar; eu chorei; eu lembro que eu fiquei na cama; a gente chorou, chorou, chorou.
E veio a minha mãe e falava assim: “não precisa chorar, a gente está do seu lado, seja
como for, a gente está com você; a criança não vai se sentir rejeitada”. E eu falava pra
minha mãe: eu não estou chorando por rejeição, porque eu não quero; eu quero essa
criança. Eu estou chorando porque não era assim que eu queria. Eu não queria que ela
sofresse, porque o médico tinha dito que ela ia ter que nascer, operar, pôr a válvula,
que ela corria o risco de óbito em setenta e duas horas. Então, eu tinha medo desse
sofrimento dela; também eu não queria que ela sofresse. Então, eu acho que esse
choro meu foi mais assim de sofrimento mesmo, do que de rejeição. Eu sempre
rememoro aquele momento; eu não consigo sentir que foi uma rejeição, porque eu
nunca pensei em aborto, nunca. Então foi um choro de dor mesmo, de não querer
passar por aquilo, nem eu nem ela.
M9: – Olha C., coisas do tipo: porque comigo? Você sabe que não. Porque comigo não?
Ao contrário. A minha irmã tinha três filhos homens quando a I. nasceu, e a minha
irmã sofreu muito. Ela mesma verbalizou isso: “Ah, não sei porque nasceu pra você,
não foi pra mim, que já tenho três normais, não sei que...” Mas aí, nessa hora, eu
23
Grifo meu.
24
O entrevistador.
25
M. é o marido (P9).
26
I. é a filha com deficiência do casal.
74
respondi pra ela: sabe por què, L.
27
? Porque você não teria estrutura pra cuidar de
uma criança assim. Como hoje, comprovadamente, a gente percebe que ela não tem
mesmo estrutura pra isso. Então é assim: o que vinha na minha cabeça não era nem
porque comigo era assim. Por que aconteceu isso? Porque como eu não tenho uma
etiologia, eles não têm uma causa, fica a causa assim: a deficiência nasce no fólico, ou
fator ambiental, ou alguma coisa assim. Então, eu não passei por nada disso: nenhum
fator ambiental, nenhuma deficiência de ácido fólico. Aí eu fiquei pensando: mas como
é que aconteceu isso? Na verdade, não é bem porque comigo; é como acontece. Mas aí,
eu falo: é porque realmente eu tinha que passar por isso; eu que estava preparada
para recebê-la; eu que talvez tenha estrutura para ajudar ela na missão; talvez a
missão não é nem pra ela, é pra mim, né?, nessa vida.
Vários aspectos nos chamam a atenção nesse depoimento de P9 e M9,
dentre eles, a compreensão e a solidariedade da família após o diagnóstico
que forneceram aos pais o acolhimento necessário para tornar menos penoso
aquele momento tão difícil. Outro aspecto que se destaca é a ruptura da
expectativa, tão natural a todos os casais, de uma criança que não
corresponde ao ideal imaginado. Nos chama a atenção, ainda, o sofrimento
da mãe que, diferente do que se podia esperar - como ela mesma diz - não
era conseqüência da não aceitação da deficiência, mas sim, por imaginar o
sofrimento pelo qual a filha passaria. Junte-se a isso o risco de morte em
setenta e duas horas que representava para a mãe, ao contrário do que se
podia esperar, o aumento do sofrimento e não o seu fim.
Por fim, observe o pronome possesivo grifado no primeiro parágrafo da
transcrição da entrevista de M9, “minha”. Com ele, a mãe parece tomar para
si a deficiência da filha.
M10: – Foi dado antes dele nascer, na ultra-som. Eu estava com vinte e oito semanas.
Eu fiz a ultra-som. A médica falou pra mim que o líquido amniótico estava diminuindo,
pediu pra ver se eu não estava perdendo nenhum líquido. Eu falei : não, não estou
perdendo. Aí ela falou: tá muito cedo pra gente ver agora. Quando fizer trinta e seis
semanas eu vou te mandar pra Unicamp, porque lá eles têm um exame que vê melhor.
Mas nisso, aquilo, a minha intuição de mãe falou: não, eu quero saber agora o que está
acontecendo. Ela falou assim: se você for lá agora, eles não vão te atender. O convênio
que a gente pagava no começo, particular, vo pra chegar lá é muito difícil. Eu falei :
tudo bem. Eu peguei os exames dela e fui pra Unicamp.
Quando cheguei lá, já cheguei, inventei uma história que eu estava passando mal, que eu
estava perdendo líquido; eu queria que o médico falasse comigo. Nisso ele falou: “você
está em jejum?” Eu falei: estou! Ele passou lá, fez o exame e já chamou o professor, saiu
correndo, e falou pra mim: o nenê vai nascer agora. Eu falei: não, agora é impossível; eu
só queria saber. Inclusive, eu não estou passando mal; eu só quero saber porque eu
acabei de sair da minha médica e ela me falou que ele tinha algum probleminha no rim,
mas ela não sabia me informar o que era. Ele falou: “olha, além do problema no rim, ele
27
L. é irmã de M9.
75
está com insuficiência respiratória, os batimentos cardíacos dele já não está agüentando
mais, a gente tem que salvar a vida dele agora”. E nisso, eu já subi. Ele nasceu; eles me
mostraram rapidinho, correram pra entubar ele. Ele falou: “olha, ele tem poucas horas de
vida, ele não tem quase nada de função renal e ele está com pneumonia que ele pegou
dentro da sua barriga. E nem se apegue com ele”. A hora que eu fui visitá-lo, ela falou:
“não se apegue, ele não tem... é questão de segundos para ele morrer”.
E ali começou a minha luta. Eu falei: não, Deus, eu não te pedi um filho, e eu pedi um
com saúde e eu não quero que ele morra, eu não aceito isso. Ali já começou a minha
revolta. Eu falei: não, ele vai viver e, discutindo com eles, ele vai viver. E aí, eu fiquei ali
dentro daquela UTI com ele três meses seguidos, sem vir embora pra casa, sem nada.
Minha vida passou, sei lá. Ele ia me visitar e eu fiquei amamentando, tirava meu leite,
colocava na sondinha, que era pelo nariz, e ele começou.
Diferentemente, M10 reluta diante do dignóstico de morte e, na revolta
contra Deus e contra os médicos, mostra a sua capacidade de lutar contra
um diagnóstico que parecia inevitável. Esse depoimento nos remete às
observações de Mannoni sobre o tema:
Os pais irão tentar questionar indefinidamente o diagnóstico (quer
dizer, a afirmação do caráter quase irrecuperável da doença); e,
desde o nascimento, o bebê irá tornar-se um cliente habitual dos
consultórios médicos (MANNONI, 1999, p. 22).
Percebemos no depoimento de M10, uma mãe que pede a Deus que o
filho não morra, mesmo que este não corresponda ao ideal de filho esperado
por ela, reflete a não aceitação da morte em prol da vida.
O tempo de UTI, que se estendeu por três meses contrariando as
previsões dos médicos, revela o cuidado da mãe com o filho, em detrimento
da preocupação com a sua própria vida.
A seguir, observamos o depoimento de M1 que se refere a uma
deficiência adquirida em acidente de trânsito pela filha. Podemos verificar,
neste caso, que o diagnóstico mescla um pouco a dor do aciedente a uma
desconfiança e, conseqüente, revolta por um possível erro médico.
M1: – ...Então ela veio em casa, porque ela trabalhou aquele dia; ela trabalhava até o
meio-dia; ela veio em casa, tomou banho, e o rapaz ficou esperando. Ele era um meio
namoradinho, não era namorado, não era um namorado, era meio... com uma moto
1000, daquelas grandes. E ela disse : “Mãe, eu vou almoçar na casa dele, depois eu
vou fazer a prova”. Eu falei: Tudo bem. E depois nós vamos no Shopping, na Festa
Junina, que tinha no Shopping Iguatemi. Quando foi quinze para as seis, nós recebemos
um telefonema do hospital: “Vocês venham aqui porque ela sofreu um acidente”.
Aquilo foi um choque, né? Aquilo foi um choque que a gente não sabia como nós saímos.
Eu saí do jeito que eu estava em casa, e o pai também, e fomos para o hospital. Agora,
no hospital, ela entrou gritando, falando, porque ela só teve fratura exposta do joelho
esquerdo até o pé. Ela não teve mais nenhum machucado, em lugar nenhum do corpo.
76
Quer dizer, ela não bateu a cabeça, ela não fez nada, e outras meninas também, e
outros meninos também, só ela. Foi uma porção, e eu tenho o jornal aí ainda. Aí nós
entramos, e eu, por telefone, também perguntei para o senhor que me atendeu, eu falei
assim :Como está a minha filha? Ele falou : “Ela está bem.” Está bem? Se sofreu um
acidente não podia estar bem. Então ela foi para o centro cirúrgico junto com as outras
meninas que machucaram a perna, os outros meninos também ficou lá. O pai, de vez
em quando, olhava pelo vitrô do centro cirúrgico. O anestesista toda hora ia mexer no
rosto dela. Aí ele chamou a gente e falou assim : “Vocês podem pegar um quarto aí em
frente, que ali pelas onze horas a R
28
. vai sair da recuperação e vai para o quarto”.
Tudo bem. Nós fomos até a portaria, pegamos um quarto e ficamos esperando no
corredor, nós dois e mais três amigos dela, uma moça e dois rapazes. Ficamos uma
noite inteirinha ali no corredor do centro cirúrgico. O pai ia olhar, e o médico toda hora a
mexer no rosto dela. Mas eu, na minha opinião, ela já estava em coma, você entendeu?
Quando foi cinco horas da manhã, eles chamaram o Dr. N.F., o neurologista. Então,
quando nós vimos ele sair do centro cirúrgico e passar por nós, para ir na UTI, eu falei :
Mas o que aconteceu? Aí, um dos enfermeiros falou assim : “Ela está em coma”. Eu
falei : Mas como, se ela entrou falando, ela entrou gritando pra não cortar a perna dela?
Porque a perna dela ficou só com o osso e o pé, e ela ficou segurando. Ela não
desmaiou. E foi demorado o atendimento no local do acidente, que foi um dos rapazes lá
que levou ela no carro para o hospital, porque a ambulância não teve acesso a eles para
levar rápido. Então daí, nós ficamos o dia inteirinho ali mesmo, na porta da UTI. Eu
falei : Mas o que aconteceu? Está em coma por quê, se ela estava falando, estava
gritando? Porque a pessoa geralmente desmaia né, quando tem uma batida de cabeça,
uma qualquer coisa assim, na coluna, ela perde os sentidos; ela não perdeu. Aí, foi
proibida a visita, nós vimos a R. na UTI em dezoito dias, duas vezes. Nós íamos todos
os dias de manhã, ficávamos até a tarde, sem comer, esperando pra ver se deixavam a
gente entrar para vê-la.
Para M1, os aspectos mais difíceis do momento do diagnóstico parecem
ser o choque pelo qual passaram quando a filha foi acidentada, a aflição em
busca de notícias, as críticas em relação às instituições hospitalares e o
coma, que agrava sobremaneira a fronteira entre a vida e a morte. Além
disso, destacam-se ainda as dolorosas rotinas hospitalares e o cansaço
estabelecido entre a dedicação e a esperança de vida pelos pais.
Ao contrário dos casos em que o indivíduo já nasce com a deficiência,
no caso de acidentes, os pais podem se eximir completamente de qualquer
culpa pelo ocorrido. Algumas diferenciações podem ser feitas entre estas
duas situações: por um lado, quando os pais não têm suas expectativas
ideais de filho realizadas por ocasião do nascimento de um filho com
deficiência e, por outro, quando um filho com deficiência adquirida, deixa de
corresponder a este ideal.
Em outros casos, as dificuldades presentes no diagnóstico da
deficiência do filho começam pela terminologia usada, muitas vezes
inadequada, principalmente apesar de vir de um profissional “qualificado”.
28
R. é a filha do casal.
77
Apesar da distância no tempo a mãe lembra-se com clareza do episódio.
Embora naquela época o termo usado não tivesse ainda a conotação
pejorativa que tem hoje, conforme discutimos no capítulo sobre
Terminologia, o termo usado pode provocar nos pais ressentimentos
duradouros:
M6: – Então, o médico... eu acho até que ele teve um descaso comigo, no sentido de
achar que eu era uma pessoa desprovida de qualquer tipo de conhecimento científico, a
respeito do que tava, do problema da minha filha, então ele deu um tiro de misericórdia.
Ele chegou e falou pra mim assim : “Ah, sua filha, ela é mongolóide, e... nesses termos,
e ela vai ser sempre uma criança que vai precisar de uma atenção especial, mas que vai
desenvolver de acordo com as possibilidades de vida que você der pra ela, porque a
gente não tem uma estatística de vida pra essas crianças.
As dificuldades que eu encontrei a partir do momento que a K.
29
começou a crescer,
foram todas,todas, porque as entidades não aceitavam enquanto era dependente de
usar fraldas, e de mamar. Então não tinha essa estimulação precoce que existe hoje em
dia. Então foi muito difícil. A gente ficou batendo de porta em porta... Eu espero que ele
tenha mudado, e muito, a respeito disso. Não sei se ele continua fazendo isso, não tive
mais conhecimento dele, só que nunca indiquei ele pra ninguém, porque acho que
ninguém merece ser tratado dessa maneira não... Agora, o que é mais assustador é que
nós vivemos numa cidade que é a segunda cidade do estado, a uma hora e meia de São
Paulo, no estado que é ponta da União. E ele trabalha na Unicamp, onde é uma
referência nacional e até internacional, né?
Então isso daí, o que que é? Por que como que pode, um médico, um cara que
estudou, que se especializou naquilo, ele não me vê como ser humano, pra vir e me dar
uma explicação correta a respeito daquilo que está nas mãos dele pra ser feito? Não, vir
falar pra mim que minha filha é uma criança mongolóide, o que é isso? Eu nem dei
importância, primeiro porque eu era muito jovem mesmo, não tinha nem noção disso;
segundo, quando eu vi minha filha ela era linda, perfeita, tinha braço, tinha perna, não
faltava nenhum dedo, então, daí o crescimento foi lento né? Daí foi... foi... porque daí
você vê que se o bebê vai... o tempo vai passando, ele não suporta o peso da cabeça, ele
não controla a língua dentro da boca, ele não tem a coordenação pra... normal pra ta
sentando, engatinhando, andando dentro do prazo normal, que toda criança faz.
Daí você para pra pensar, pra analisar e, até mesmo, cobrar: pô, mas como é que
aquele cara foi injusto comigo né? Por que ele não me deu mais atenção, explicando pra
mim tudo isso? É duro isso daí!
Mas a gente começa desde que eles nascem, como... hoje esse Dr. V.P. ele é uma figura
importante lá dentro da Unicamp, mas vinte e sete anos atrás, ele era um recém-
formado aí, que não teve nem capacidade de saber como lidar com uma situação dessa.
Pra vir falar pra mim que a minha filha era uma mongolóide? O que que é mongolóide?
Que coisa horrorosa de ser falada, que coisa... que significa, o que isso? Agora, ele se
sentiu de que maneira, achando que eu era uma pessoa ignorante, analfabeta. Sei lá o
que que ele pensou, ou então uma pessoa que tava ali num atendimento público...
O diagnóstico faz parte de um momento de muita apreensão e, por
vezes, indesejado pelos pais; é um divisor de águas no sentido de que, a
partir dele, a realidade dos filhos e dos pais pode se transformar de maneira
29
K. é a filha com deficiência de M6.
78
radical e permanente. A partir daí, o enfrentamento dessa nova realidade e
de todas as dificuldades que fazem parte dela se torna um caminho a ser
percorrido.
5.2 – Rotina
A rotina se configura como o suceder dos fatos do dia-a-dia que se
repetem freqüentemente. Quando levamos em conta uma família que possui
um membro com deficiência, essa rotina vai incluir a resolução de uma série
de problemas do dia-a-dia, que envolvem cuidados médicos, educacionais ou
de lazer. Seguem as respostas dos pais à pergunta: Como é a sua rotina em
relação ao seu filho e a casa?
M4: – Um sofrimento. Se eu tivesse apoio da família, eu não tinha sofrido nem a
metade do que eu sofri. Meus filhos comiam pão com açúcar, era de manhã, era almoço
e era a janta; quando tinha né? E quando não tinha, eu ia na casa de, de uma amiga,
aqui no América, a Dorva, que eu falava pra ela dar um prato de comida pros meus
filhos. Aí ela dava, mas minha família...
Quanto a mim, ah!, eu vejo uma mulher assim, especial, só que eu não tenho tempo
pra me cuidar, né? Eu já não tenho mais tempo assim de... falar assim: eu vou poder
comprar um sapato pra mim, eu vou poder comprar um... falar verdade, uma calcinha;
eu não me vejo mais assim não! Eu ando com chinelo, pra não deixar faltar as coisas
pra eles, não só com a V.
30
, como os meus outros dois filhos, né? Nesse sentido, eu vou
descuidando um pouco de mim, hãn hãn, eu vou. Ai, não sei, não tem como explicar...
Queria mais conforto pra minha filha, uma cadeira maior, que ela pudesse, né? Que
essa já tá pedindo outra, já não serve mais...
Eu cuido deles, ô, nossa, eu cuido deles melhor do que eu, que eu. Depois que eu tive
ela, nunca mais fui em médico, nunca mais. Não faço tratamento, não vou em Posto, não
faço médico nenhum, só ter tempo pra cuidar deles, só pra cuidar deles, minha vida só
foi pra viver pra eles, e até hoje.
Não, eu falo: eu tô bem, não preciso ir em médico, eu tô bem, é assim. Se eles estão
bem eu tô bem, é.
O que mais impressiona neste depoimento é o fato da mãe procurar os
vizinhos para tentar ajudá-la a sustentar os filhos, o que demonstra uma
vida de extremas dificuldades financeiras que se refletem na rotina de
cuidado dos filhos. Por outro lado, temos que acentuar que M4 abre mão de
necessidades básicas e pessoais de cuidados com a própria saúde em prol da
saúde dos filhos. Conforme nos pontua Mannoni:
30
V. é a filha com deficiência de M4.
79
É a mãe que vai travar, contra a inércia ou a indiferença social, uma
batalha longa cujo alvo é a saúde de se filho deficiente, saúde que ela
reivindica mantendo uma moral de ferro em meio à hostilidade e ao
desencorajamento (MANNONI, 1999, p. 22).
Cabem assim igualmente, as observações de Barsted, destacando o
papel da mulher, provedora solitária das necessidades dos seus filhos.
Segundo a autora, essa demanda cresceu nas últimas décadas – pela
inserção da mulher no mercado de trabalho – perceptível também no caso de
mães que possuem filhos com deficiência (como constatamos no depoimento
da M4):
Os dados estatísticos desse final de século apontam para o fato de
que, em todo o mundo, cresce o número de mulheres chefes de
família, provedoras solitárias das necessidades afetivas e materiais
básica dos filhos. São mulheres trabalhadoras e mães que procuram
compatibilizar, na maioria das vezes sem ajuda do poder público ou
de parceiros, os espaços do trabalho e da família. Suas
reinvidicações são apresentadas como demandas das mulheres e não
vêm acompanhadas do apoio masculino. Mais uma vez a ausência se
destaca. Ou seja, a entrada das mulheres no mundo público, em
particular no mundo do trabalho, não significou sua liberação das
tarefas familiares e nem, tampouco, a entrada dos homens na
execução dessas mesmas tarefas (BARSTED, 1998, p. 68).
Nessa perspectiva, o depoimento a seguir nos aponta como a rotina de
sacrifícios pode permear a vida dos pais. Nesse aspecto, as normas e os
horários fazem das atividades diárias um suceder de obrigações, sugerindo
que esses encargos tornam os pais reféns da rotina, faltando-lhes tempo
para outras atividades que também envolvem a maternidade e a
paternidade:
P1: – E o banheiro? Tudo difícil.
M1: – E o banheiro? Porque, olha onde eu dou banho nela! Eu levo essa cadeira atrás
da porta do meu banheiro ali, porque não é muito grande. Não, se pôr essa cadeira
no carro ela não fecha, ela é fixa. E essa aqui, ainda foi o meu irmão que fez a
caridade de fazer, porque essa aqui é uma cadeira de banho que tinha só aquela
tábua aqui. Mas olha a posição minha, a posição minha, se eu fosse dar banho nela
lá, olha a posição minha! Uma cadeira dessa de plástico é muito baixinho, eu tenho
bico de papagaio daqui até o final, tenho essa ruptura de nervo que eu não vou
operar, de jeito nenhum.
P1: – Que nós nunca fomos numa praia depois que aconteceu isso aí, em São Paulo.
Fomos uma vez só, ainda levaram nóis. O médico queria ver ela, porque ela tem o
80
ordenadinho da minha cunhada, que ficou, sabe? Eno ela teve que assinar aquele
papel. Esse sr. G., chegávamos até o carro da prefeitura, esse é amigo, ele fez tudo,
ele arrumou até o carro da prefeitura, isso foi em 83? Em 85 (...) Depois de tudo isso
que aconteceu com a R., mudou tudo na nossa vida.
M1: – Ah, mudou tudo pra nós.
P1: – Nós temos horário para comer, horário para dormir, horário para levantar, pra
tudo, pra tudo. Se eu for dormir meia noite, tenho que levantar às seis, quando não
vai na clínica, quando vai na clínica, tenho que levantar às cinco, porque são duas
vezes por semana, e quando não é às seis horas. Ou vai dormir meia noite, uma
hora, duas horas, três horas, o horário nosso é seis horas, pra dar banho nela, às
sete horas. Se almoça onze horas ou onze e meia, e jantar ou lanche, qualquer coisa
assim é quatro e meia, quinze para as cinco. É o horário nosso. Depois assiste um
pouco de televisão, quando é oito horas vamos dormir. Eu fico um pouco mais, às
vezes, quando tem jogo eu fico assistindo, mas aí, se eu assistir um jogo, ficar até
meia noite, no outro dia eu sei o quanto que eu sofro. Mudou tudo. A gente passeia
muito pouco, porque tem dificuldade para levar ela. Se leva, por exemplo, na casa da
minha irmã, em Lindóia, eu tenho que ir lá no carro. Tem que tirar, tem que levar no
banheiro, é eu e ela. Eu tinha uma cunhada no começo, depois de três anos ela
faleceu também; então é nós dois.
Futebol? Nunca mais eu fui ao campo. Lazer? Sabe o que é o meu lazer? Assistir
futebol na televisão. Nós não queremos ninguém que fique com a R., porque nós, eu
não fico fora, por exemplo, se eu pedir para minha cunhada, a irmã dela, ela vem. Eu
falo: eu vou fazer um passeiozinho. Ela vem. Mas eu não vou, eu não fico, não durmo,
não fico sem ela, nem ela, nem um dia. Eu posso sair assim, numa precisão. Se eu
precisar eu fico meio dia, que nem eu já fui no INPS, fiquei meio dia lá, tudo bem ;
mas a minha cunhada estava aqui. Mas falar assim pra mim passear, eu e ela
passear? Ela não aceita e nem eu. Não quero! Eu quero ficar com ela! Eu já acostumei
nessa rotina.
Mas graças a Deus, com todos os problemas que tem, eu não tenho nada, graças a
Deus. De vez em quando,dá uma coisinha na coluna, assim, mas passa. Eu carrego
ela da rua. Você já viu ela, né? Parece que nem é eu que carrego, porque eu peço
muito a Deus e ele me ajuda, parece que não é eu que carrego. A Turma fala lá, mas
o senhor não pode fazer essa força...
M1: – Ela fala: “posso, não sou eu que estou carregando”.
P1: – Jesus que carrega [...] Nós não temos condições de pagar empregada.
M1: – Eu não tenho condições de pagar empregada. Então faz o seguinte: a gente
cuida da R.; ela fica sentadinha aí; eu limpo um quarto, eu limpo outro quarto num
dia; depois eu limpo outro quarto, depois eu limpo a sala. Olha! Ontem eu vim na
cozinha, fui no banheiro; então, assim que eu fico fazendo.
P1: – E às vezes eu saio pra conversar um pouquinho, mas estou vendo que está na
hora dela ir ao banheiro; então lá eu estou pensando está na hora da R. ir ao
banheiro, e ela não pode levar, eu que levo. Ou andando ou carregado, de noite é
carregado, né? Então, eu estou conversando com a pessoa lá fora, vinte, quinze
minutos, mas eu estou pensando. E, se eu não venho, não tenha dúvida que a O
31
vai
lá na janela e chama eu, se ela estiver apertada de ir ao banheiro, qualquer coisa.
Então é por isso.
Os horários delimitados para as atividades que podem tirar dos pais a
possibilidade de lazer – o que se reflete no futebol visto pela televisão, como o
único ou um dos poucos espaços de lazer –; o temor de que a filha fique sem
os seus cuidados e, ainda, a religiosidade do casal que funciona como um
apoio nos instantes em que essas obrigações se tornam muito difíceis “Jesus
31
O é esposa de P1, a M1.
81
que carrega”. Tudo isso somado à rotina da casa faz com que esta família
prossiga incansavelmente nos cuidados com a filha. O que nos parece
também importante comentar é que a rotina da deficiência e os espaços da
vida social dos pais se entrelaçam.
Já nos depoimentos de M7 e P7 abaixo, a vida dos pais está tão
entrelaçada com a rotina da deficiência que houve a necessidade de alguma
separação para que ambos tivessem vida própria:
M7: – É complicado. Agora que a H.
32
está me ensinando a começar separar o O.
33
do
D
34
., mas então era o D. e a E.
35
uma pessoa só. Até que eu acordei e vi que eu estava
fazendo mal.
P7 : Porque o D. não precisava pedir nada, ela já sabia o que ele queria. Antes de
qualquer gesto, ela já tá aqui. Então eu sempre cobrava: não, espera aí!
M7: Eu achava que o D. só tinha eu. E falava para ele: D., você só tem a mãe. Então,
eu tinha que ser a super-poderosa, eu tinha que saber a dor antes dele sentir a dor, eu
tinha que saber, eu me cobrava que eu tinha, não deixava ninguém tomar meu espaço.
E com isso, eu fui largando de tratar do O. também, porque não sobrava tempo. Aí
vieram as crianças, fui largando mão também porque...
P7: Largou as crianças também, né?
M7: – Mas, tudo é igual? Não, não é igual! O D. requer vinte e cinco horas por dia de
mim. Os outros, conforme foram crescendo... Hoje a gente vê que passou e eu não dei
conta.
P7: – Hoje, agora, de três anos pra cá, às vezes a gente tira a E., tira uma horinha do
dia, a gente sai com o Dn
36
., vai com o D. a algum lugar, e eu falo pra ela, cobro dela
também, dar mais atenção para a T
37
. Enquanto ela não está andando ainda, e a
gente vai se cobrando e vai, só que às vezes ela não aceita, ela é turrona, é teimosa
demais. Que eu seja igual a ela? Não!
M7: – Aí veio a frustração de eu olhar no espelho, e falar assim: Eu sou a esposa do
O., mãe do Dn., da T., e cadê a E.? Do que a E. gosta? O que a E. faz? Pedir, não pedi.
Também não sei o que aconteceu com ela, tanto que até pela rejeição do meu pai e da
minha mãe, quer dizer, eu perdi pai e mãe. A E. nem isso tem mais. Quer dizer, na
hora em que nasceram as crianças, sempre sozinha, não tinha quem apoiasse,
sozinha, aí a H. falou assim:” E., acorda! Do que você gosta? O que você quer? O que
você não quer?” Aí ela foi me mostrando, devagarzinho, e eu vi, com isso, que o que eu
achei que estava fazendo de melhor para o D., eu estava fazendo o pior, eu era o pior!
Eu considero ruim a não separação e eu querer ser o D. e o D. ser eu. Uma pessoa só.
Ainda sobre essa confluência de dois indivíduos, Mannoni pondera
sobre a relação entre a mãe e o filho com deficiência, que parece ligá-los
simbioticamente, ao dizer que:
32
H. é a psicóloga que cuidava do filho com deficiência e da mãe M7.
33
O. é o marido de M7, P7.
34
D. é o filho com deficiência.
35
E. é a mãe, M7.
36
Dn. É o filho do meio do casal.
37
T. é a filha mais nova do casal.
82
(...) a criança retardada e sua mãe formam, em certos momentos, um
só corpo, o desejo de um confundindo-se tanto com o desejo do
Outro, que os dois parecem viver uma única e mesma história
(MANNONI, 1999, p. 49).
M5: – Sabe porque? Ontem eu tava saindo, entendeu? Eu ia sair pra me divertir, aí a
minha mãe, que já tem idade, que tem um problema no joelho, ia ficar aqui pra cuidar
da M., entendeu? Então é aquela coisa assim: como que ela vai armar todo aquele
pampeiro ali?
P5: – Isso, e a M. apronta por quê? Porque ela percebe tudo isso. A M
38
., se a gente tiver
arrumando a mala agora, aqui, ela já começa a zanzar pra cá e pra lá, percebendo, e já
começa. Quando a gente vai se arrumar pra ir trabalhar então... você não acredita.
Agora ela já vai pra escola, num vê a gente, mas na época que ela vinha almoçar em
casa, a gente... que ela não estava no Instituto Ser
39
, que ela vinha da escola na hora
do meio dia, a gente não conseguia almoçar normalmente, ela tinha que almoçar na
cozinha. Na hora que a gente tava se preparando pra segunda parte do dia, que era
hora de trabalhar, era um inferno, era um desgaste, todo dia briga, todo dia desgaste. A
C. chorava, não sei o que, pra ir pro escritório, por quê? Porque a M. já percebia que a
gente ia sair.
(...) É uma briga do nível da de ontem, né? Aconteceu isso, né? Acaba com a gente,
acaba com todo mundo, aquela coisa toda, quer dizer, a gente acaba sendo uma família
assim, meio que estigmatizada, sabe? Aquela coisa assim da marca né? De achar que...
então... é... as pessoas... eu acho que... eu... Eu sinto esse estigma porque... é difícil,
assim... Eu acho que, primeiro, parte da gente, não em relação aos outros, que os outros
não queiram a nossa presença ou a nossa convivência. Eu acho que é um pouco nosso,
da gente achar, quer dizer, pô, não dá pra ficar toda hora indo também na casa dos
outros, ou então a gente fica parecendo... Tinha uma época que a gente só falava nisso:
Ah, porque a M., ah, porque não sei o que...
M5: – É.
P5: – Então, eu acho que eu seria um saco em casa... eu...
M5: – E eu só tinha esse assunto.
P5: – Assim, eu acho que seria o pior companheiro, o pior casal, companhia, de um
outro que vem, que leva, tal. Os filhos estão indo bem, estão indo pra escola. Outros
estão... tal... a vida tá, né?, caminhando com seus problemas tal, e vem um casal que
você fica aqui, você sai mais pra baixo do que... do que começou, né? Então eu acho que
isso é ruim. Tanto é que eu já cheguei até a falar pra C
40
: a gente tem que mudar um
pouquinho de assunto, tá entendendo? Porque a primeira pessoa... a gente tem muito
disso... a C. tem muito mais disso; a primeira pessoa que conhece, assim, vamos num
hotel, ficam amigos, tal: ah, porque a M. tem problema neurológico; porque não sei o
que, pi pi pi pi, as pessoas ficam olhando pra gente assim... tá entendendo? Daí, hum...
sabe? Ai meu, sai pra lá... problema! Porque que eu vou conversar com essa família se
eu vim aqui pra relaxar, tal, sabe?
Para o casal M5 e P5 a rotina da deficiência reflete-se no desgaste e na
tensão cotidiana, cuja demanda aponta para o trabalho, a dedicação e a
atenção que podem desequilibrar as relações conjugais através de brigas e
desentendimentos que acabam por afetar, além do próprio casal, os filhos.
38
M. é a filha com deficiência do casal.
39
Instituto que cuida da filha com deficiência do casal.
40
C. é a outra filha do casal.
83
No depoimento do pai, percebemos uma tentativa de se aproximar das
pessoas, porém, com medo de uma rejeição evidenciada, talvez, pela
presença ou convivência com a filha que apresenta deficiência. Nas
colocações acima, parece-nos que os pais tendem a se afastar por
antecipação, com receio de que as pessoas o façam antes.
As questões da deficiência podem tanto aproximar quanto distanciar os
pais e os filhos. No caso do casal P10 e M10, fica claro que a deficiência do
filho pode unir os relacionamentos e os fortalecer, processo que começa já
com a gravidez. Chama-nos a atenção, ainda, nesse depoimento o medo da
mãe com relação às crescentes ameaças de perda do filho. Soma-se a isso,
ainda, as dificuldades possíveis dessa perda, bem como, as comparações
(inevitáveis, por vezes) entre o filho com deficiência, que faleceu, e a filha
mais nova do casal.
M10: – Com tudo que o W
41
. viveu, o nosso relacionamento ficou melhor ainda, porque
um dependia do outro pra tudo. Então a gente ficou mais ligado; isso fortaleceu o nosso
relacionamento, fortaleceu, antes dele vir, até, a gente estava separado, a gente estava
assim... antes de eu saber que estava grávida, a gente estava separado por problemas
financeiros. A gente tinha uma padaria, e estava no auge. A padaria pegou fogo, a
gente perdeu tudo. Aí a gente comprou essa casa aqui, veio pra cá, ele montou o bar lá,
e eu queria que ele fosse trabalhar, porque eu achava que ali ele não ia ganhar nada, e
ele, com a idade também, não conseguia arrumar um serviço. Na idade dele, já não
queriam pegar, e aí falei: Não, eu não vou ficar com ele, não tem jeito, e eu querendo
trabalhar, porque eu sempre fui assim. Eu falei: Não, então não vai dar certo. A gente
estava num relacionamento péssimo, péssimo mesmo. Aí eu comecei a passar mal,
comecei a trabalhar num serviço à noite; e falei pra ele: Acabou nosso casamento. Ele
estava morando numa casinha que a gente tem aqui, que aluga, e eu aqui esperando a
venda da casa pra gente se separar.
E nisso eu passei mal, fui ao médico, e o médico falou: “Você está grávida”. Eu falei:
Não é possível doutor, a gente está esperando esse filho há mais dez anos e nada, eu
não posso engravidar. Ele falou: “Não, você está grávida e está de quatro meses; é um
menino”. Entendeu? Então aquilo, ele ainda brincou comigo na hora, ele não acreditava
que era verdade. Será que é verdade? Ele falou assim pra mim na hora, importante,
porque nem ele sabia se era o pai. Ele falou assim pra mim: “O importante não é o pai
que faz, é o pai que cria.”
Dois meses depois, a gente já soube da notícia, que ele era uma criança especial e aí a
gente se uniu mais e mais. O que a gente vê entre o W. e o novo bebê, a J.
42
: muita,
muita, muita diferença! As características dele, a felicidade, o jeito de fazer as coisas é
igual, mas hoje, eu, como mãe, não sei se faria pela J. o que fiz pelo W., porque é um
amor diferente. Não é que eu gostava mais do W. do que da J., ele era uma criança
especial pra mim, ele era a minha vida. Eu pensei que sem ele eu não ia continuar, eu
tinha medo de perder ele porque minha vida ia ficar vazia demais. Como eu vivia vinte e
quatro horas em função dele, só de pensar que eu não ia ter mais aquilo pra fazer,
aquilo lá me deixava maluca. E quando a gente se viu sem isso, ah, ficou um vazio
enorme.
41
W. é o filho com deficiência do casal, que faleceu tempos antes da entrevista.
42
J. é a filha mais nova do casal.
84
Hoje a nossa vida com a J. melhorou cem por cento. Hoje a gente vê ela fazendo tudo
aquilo que a gente... é... eu falo pra ele que eu me realizo vendo ela fazer tudo aquilo
que eu ensinava o W. fazer, a sentar, a mexer em cada movimentinho dele, cada
dedinho pra ele esticar, a mexer pra ele falar, e eu não precisei fazer nada disso, e ela
simplesmente andou, sentou, andou, falou e está cem por cento; só levo na pediatra e
ela fala:” Olha, está uma beleza, não tem nada, nem um resfriado forte assim, pra
gente ficar preocupado com ela.” Uma febre alta nunca teve, nesse um ano e três meses.
No depoimento a seguir, P9 e M9 apontam as dificuldades que
encontraram na adaptação da filha à cadeira de rodas:
P9: Eu acho que a gente precisa efetivamente de algum crédito, de alguma esperança.
É isso que nos move, é isso que nos faz viver. A gente precisa de desejos que sejam
constituídos, mesmo desejos que tornem inviáveis amanhã, não importa, mas a utopia é
exatamente isso.
M9: – Aí nós chegamos na Covenag
43
, a moça mostrou um monte de cadeiras, as
medidas. Eu estava com ela no colo. A hora que eu fui pôr ela na cadeira, quando eu a
coloquei na cadeira, ela chorou, chorou, chorou. Ela não queria: “eu não quero, não,
quero sair”, e chorou muito. Aí, foi quando eu olhei para ele e me assustei, falei: nossa,
o que nós fizemos? Aí ele falou: “nós não conversamos com ela”. Eu falei pra moça
assim: você dá licença um minutinho? Aí nós fomos pra fora da loja, entramos no carro,
conversamos com ela: filha, olha, o dr. R. indicou uma cadeira de rodas pra você, pra
você poder andar, pra você fazer isso, aquilo, mexer, brincar, tal. Você quer?
P9: – Ela não falou que sim nem que não.
M9: Ela falou assim: “eu vou brincar?” Aí eu falei: vai, você vai brincar muito. “Tá bom”.
Aí a gente entrou, ela sentou super bem na cadeira, medimos, medimos adaptação, só
depois que a gente conversou com ela.
O contundente relato do casal 9 nos mostra dois aspectos relevantes do
contato com a cadeira de rodas: em primeiro lugar, a dolorosa reação da
criança ao perceber que aquele equipamento a acompanharia para sempre;
em segundo, o sofrimento dos pais com essa nova realidade.
Para as crianças com dificuldades severas, a vida é um esforço
constante, de rotinas especiais, porque todo o modo de vida da
família frequentemente tem que se adaptar às necessidades da
criança com deficiência. Preparando alimentos, trocando fraldas para
incontinência, dando comida na boca, levantando e carregando-
estas são realidades diárias e a toda hora para muitos pais, ano após
ano. O stress adicional de avaliações formais frequentemente
tornam-se opressivos
44
(GASCOIGNE, 1995, p. 21).
O que percebemos no conjunto dos depoimentos acima é que a rotina
ocupa um lugar central na vida dos pais e na esfera familiar. É capaz de
43
Uma revendedora de veículos, que os adapta a pessoas com deficiência.
44
Tradução de minha autoria.
85
produzir um sem número de comportamentos, sendo causa de agregações
ou segregações familiares, conforme pudemos observar nos relatos dos pais.
Contudo, é tambem através da rotina que os cuidados com a deficiência
se processam. As preocupações e o zelo cobrarão seus preços dos pais e dos
membros que compõem a família. Assim, é através da convivência familiar
que os indivíduos com deficiência aprenderão que, malgrado suas limitações,
é permitido serem eles mesmos, e por outra, os pais podem tornar suas
rotinas menos extenuantes para que consigam sobrepujá-las, já que temas
como: criança, pais, família, deficiência, cultura, todos esses conceitos de
ordem sócio-psicológica ocasionarão conflitos e desavenças entre eles, mas
ainda assim, passíveis de serem superados e ultrapassados.
5.3 – A morte no horizonte: medos e incertezas a serem ultrapassados
A finitude da vida humana é um fator que não podemos deixar de
considerar. Tentamos, contudo, adiar tal idéia, afastando-a de nós, tanto
quanto possível e fazendo crer na irreal possibilidade de nossa imortalidade.
Elias reflete sobre esse tema na sociedade atual, mostrando que
A atitude em relação à morte e a imagem da morte em nossas
sociedades não podem ser completamente entendidas sem referência
a essa segurança relativa e à previsibilidade da vida individual – e à
expectativa de vida correspondentemente maior. A vida é mais longa,
a morte é adiada (ELIAS, 2001, p. 15).
Consideramos que nos aproximamos da morte, ao adoecer e ao
envelhecer. Há pessoas, no entanto, que morrem sem adoecer e sem
envelhecer, o que revela a imprevisibilidade da morte. Portanto, há os que
morrem jovens, o que estabelece um estatuto diferencial da morte, qual seja:
a morte também pode assolar os de tenra idade. Elias nos diz que: “na
verdade não é a morte, mas o conhecimento da morte que cria problemas
para os seres humanos” (ELIAS, 2001, p. 11).
86
Tais problemas se dão em virtude de a morte representar o fim da
vida, contudo Arendt adverte que a vida tem como objetivo, não a morte,
mas o recomeço.
Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo,
inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a
destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e
iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência
de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer,
mas para começar (ARENDT 2004a, p. 258).
Tudo isso nos faz crer que as incertezas e temores diante da morte
podem constituir uma questão constante na vida dos pais de crianças com
deficiência. Porém, Marcuse aponta a importância da resignação (nesse caso,
também dos pais) diante da morte:
O homem aprende que “não pode durar, de qualquer modo”, que
todo o prazer é curto, que todas as coisas finitas a hora do seu
nascimento é a hora de sua morte – que não poderia ser de outro
modo. Está resignado, antes da sociedade o forçar à prática metódica
da resignação (MARCUSE, 1981, p. 200).
Outra consideração que podemos fazer é que, de modo geral,
rejeitamos a velhice à medida que começamos a perceber seus efeitos, seja
nos outros, seja em nós mesmos. O isolamento obrigatório que a chegada da
velhice nos impõe é seguido do gradual apartheid dos idosos com aqueles de
seu convívio mais afeiçoados. No caso dos pais de crianças com deficiência, a
aproximação da velhice pode lhes impor, ainda mais, uma angústia diante
da morte inevitável. Pois, para muitos o receio maior é em relação aos efeitos
que a morte pode provocar nos cuidados com os seus filhos.
Nesse momento surgem questões como: quem cuidará do seu filho no
caso da morte dos pais? Quem se dedicaria a eles tanto quanto os seus pais?
Essas perguntas parecem permanecer sem resposta.
Nas entrevistas que realizamos, esta foi uma das únicas constantes no
depoimento dos pais, quando questionados sobre suas incertezas e medos
mais freqüentes. A morte parece ocupar um lugar de destaque não apenas
pelo que ela representa, mas, nesse caso, pelo que ela pode acarretar no
cuidado com os filhos.
87
No entanto, essa questão não se restringe apenas ao âmbito da
mortalidade. A perda dos entes queridos, o esgotamento dos bens materiais,
pelos quais os pais lutam intensamente durante a existência, a decrepitude
dos tecidos e a duração efêmera e consoante da vida remetem-nos
igualmente à finitude dos dias, assim como remetem também à incerteza do
futuro dos seus filhos. Nos depoimentos a seguir, podemos observar que a
preocupação mais recorrente dos pais não é em relação à sua morte, mas ao
destino que os seus filhos com deficiência podem ter após esse
acontecimento.
Percebemos, no depoimento de M6, que os medos da morte passam
por outras instâncias, como, segundo a mãe, a ausência de ajuda do Estado
e da sociedade de um modo geral. Isto traz uma outra preocupação, no caso
da morte dos pais, que é a possibilidade de os filhos com deficiência ficarem
desamparados.
M6: – A minha velhice! Olha, eu não parei pra pensar na minha, viu?. Não parei pra
pensar na minha velhice, eu gostaria sim, de estar envelhecendo em paz, né? Em paz,
que eu digo, é ter tudo isso daí que...É, mas eu não vou ter isso. Não vou ter isso. Olha,
fica tão difícil de a gente, né? O que que a gente teria que estar fazendo pra essa
velhice chegar em paz, né? Porque o próprio mundo aí não oferece essa paz pra gente;
como que a gente vai poder ter? A única coisa que a gente tem que procurar ter é a paz
interior, paz de espírito, porque o resto da paz fica difícil, né?
Eu vejo a morte como uma coisa natural, ela faz parte, a gente nasce e morre, né?
Mas, em relação a eles... ah, não! Eu não quero perder meus filhos, eu quero ir
primeiro então, se for o caso. Olha, a questão da morte em relação a eles é ainda que
eu acho que eu tenho muito que fazer por eles ainda, porque o máximo que eu puder
fazer pra eles, quando a morte chegar pra mim, eles vão estar mais seguros e mais
confiantes de que eles não vão estar passando por tanta necessidade,como passa no
caso de hoje em dia. Porque fora isso... Ah, não posso pensar no envelhecer, é preciso
deixar estrutura pra quando eu faltar. Eu acho. Eu tenho que pensar dessa maneira,
porque senão, quem que vai oferecer isso pra eles?
Medo? Nossa, muito! Sempre tive muito medo em relação ao futuro dela, deles, né?,
dos dois. Só esse medo que eu tenho. Só porque eu sinto que eu tenho uma família que
eu posso me apegar neles, eu posso sentir segurança de que eles vão ta cuidando pra
mim. Porque lá fora não, lá fora, eu sinto... Não conto com ninguém Não conto com
ninguém. Por que como que eu vou poder ta contando? Não tem como. O Estado não
me oferece isso, né? O governo não me oferece isso, a sociedade não me oferece isso;
então é difícil, é muito difícil. Ah, tenho medo que eles deixam de ser assistidos,
tenho... Porque eles vão envelhecer. E quem vai estar cuidando deles na velhice deles?
O Estado não tem nada de proposta pra isso, o governo não tem nada de proposta pra
isso. Como que vai ser? Eles vão se tornar idosos, eles vão, porque pela qualidade de
vida deles, a gente sabe que eles vão viver aí cinqüenta, sessenta anos. E que que vai
ser se os próprios velhos de hoje não têm apoio nenhum. Imagina um idoso deficiente
então! Portador de cuidados, aí, mais direcionado. Como que vai ser a velhice deles?
Por que pela lógica...
88
Ah, morrer é um dos grandes medos que eu tenho, viu? É porque se eu, por exemplo,
se eu sentisse que, não tivesse os dois, por exemplo, e o Jr
45
., e a L. sozinhos, eu podia
morrer de hoje pra amanhã. Eles voam com as próprias asas, eles andam com as
próprias pernas. Eles não precisam mais de mim, mas os dois é diferente, totalmente
diferente. Ainda mais no caso deles que eles foram já praticamente criados sem o pai.
Eu nunca tive um ombro pra falar assim: não, eu vou, mas vocês ficam com ele. Ou
então: ele vai e vocês ficam comigo.
Para o casal P9 e M9 o crescimento e desenvolvimento dos filhos está
ligado à sobrevivência, a capacidade da filha se desenvolver, da auto-estima
e da própria resiliência:
P9: – Sim, mas eu falo assim: a única preocupação que eu tinha com relação à I
46
. é
de como poderia ser o futuro dela, a parte do desenvolvimento, do crescer, do suporte,
como vai ser. Por exemplo, eu ainda me preocupo como pode ser o futuro sem nós, a
dependência dela, como que ela pode sobreviver sem nós. Porque enquanto nós formos
vivos... Não sei. Eu acho que hoje, do jeito que ela se desenvolve, eu acho que ela tem
condições de ter um futuro auto-sustentável sobre todos os aspectos, tanto financeiro,
quanto emocional. Eu acho que a I. se mostra, cada vez mais, uma pessoa muito forte,
muito forte, principalmente, eu acho que às vezes ela chega a ser mais forte do que nós
dois mesmo, porque ela passa por situações, onde ela nos ensina a sair dessas
situações. E você vê que ela não se abala. Então isso traz uma segurança de que ela
tem condições de entrar e sair de qualquer situação, desde que ela tenha o suporte
adequado para ela crescer com essa confiança nela, com essa auto-estima elevada.
M9: – M.
47
tem segurança de que ela sempre tem condições de poder conseguir aquilo
que ela quer. Eu acho que o objetivo, vamos dizer, a obrigação nossa, o caminho que
nós temos que dar para a I., é mostrar como ela... apontar o que ela tem que fazer para
atingir os objetivos dela.
P9: – Eu não delegaria a um irmão mais próximo, a alguém mais próximo, os
cuidados com a I. Na nossa falta, eu acho que nesse ponto não, porque nós somos
muito centralizadores, em todos os aspectos.
M9: – Mas, eu acho que esse centralizador é também porque a gente vê que ninguém
tem a disponibilidade que a gente tem, você entende? Pelo menos eu penso nisso, eu
acho que nós dois somos centralizadores. Primeiro, porque ela é nossa filha, a
obrigação é nossa, mas a gente vê que ninguém tem a mesma disponibilidade.
Solidão? Isso é exatamente isso que provoca o fato de você ser centrada, e precisar
ser, e de outro lado, você não tem com quem contar.
Podemos destacar, segundo o depoimento dos pais, que o contato com
a filha lhes permite um aprendizado de enfrentamento da vida. Esse
enfrentamento demonstra preocupação não somente em relação aos
problemas cotidianos, mas principalmente com relação à falta que os pais
podem fazer para a filha com deficiência, no caso da morte deles. No
depoimento fica claro também que os pais tentam preparar a filha para esta
possibilidade.
45
Jr. e L. são os dois filhos que não têm deficiência.
46
I. é a filha com deficiência do casal P9 e M9.
47
M. é P9, o pai de I.
89
Como podemos observar no depoimento de P8 abaixo, o relato inicia-
se com o questionamento da falta de apoio tanto governamental quanto da
sociedade civil. Posteriormente, suas preocupações revelam a apreensão com
relação ao futuro, já que, na ocasião da morte dos pais o filho com
deficiência ficaria sozinho no mundo, visto que não existem “estruturas”
externas à família que possam suprir essa falta. A simbologia escolhida por
P8 para expor essa dependência mútua – a mãe idosa que segura o filho pela
mão – evidencia o medo da efemeridade desse amparo materno/paterno em
relação à morte.
P8: – Então, mas aí, o problema é mais grave, que é assim: de um lado você não tem
uma sociedade que acolha, de outro lado você não tem uma comunidade que prepare,
e de outro lado você não tem autonomia na sociedade pra poder fazer isso. Então,
seria preciso costurar essas três instâncias. Sim, mas esse é o trabalho que eu digo.
Hoje você vai costurar, você vai costurar... empresa, sociedade... uma possibilidade
dentro do empregador, trabalhar isso, flexibilizar. Eu digo porque, antes de acontecer
essa experiência com o L
48
., eu era bem radical; tem hora pra entrar, tem hora pra sair,
tem dia pra começar, tem dia pra terminar, eu não admito qualquer mudança. Quando
eu tive essa experiência pessoal com o L., eu comecei a me questionar, porque não era
só o L., era a amiga do L. que também teve que negociar, porque os pais tavam
também de férias, porque qualquer ... uma coisa que me preocupa, é quando eu vejo
uma senhora de idade, com seu filho deficiente, com a mãozinha dada caminhando.
Aquilo me preocupa, porque eu olho pra aquilo e digo: eu não quero isso pra mim, eu
não quero isso pra mim. Por que que eu não quero isso pra mim? Agora, é egoísmo
meu. Primeiro que não quero a minha vida assim, eu não quero a minha vida tendo de
andar de mão dada com meu filho, porque, eu não vou poder viver; e segundo, se eu
morrer, quem que vai dar a mão pra ele? Então, de alguma maneira, esta mão dada
precisa ser equacionada. Qual é a solução? Até é uma das coisas que nós estamos
discutindo hoje: qual é a solução.
M8: – A terceira etapa...
P8: – ... pra esse momento da nossa vida? Qual é?
M8: – Terceira etapa. Nós já estamos pensando na terceira etapa.
P8: – A terceira via da Fundação
49
. Nós estamos discutindo porque eu não quero isso,
eu não quero. Eu quero poder, amanhã resolver, eu vou não sei aonde, e dizer pô, ai
mas eu não posso ir, não, eu não quero isso, aí eu tô sendo egoísta, primeiro, sabe?
M8: – E também se a gente morre ...
P8: – Segundo: isso que eu tô dizendo, ao morrermos, e se ele tava acostumado só
com a minha mão, quem vai ser a segunda mão pra dar a ele? Tô dizendo: se nós dois
morrermos, não sobrou nem pai, nem mãe. Quem será a segunda mão que vai dar pra
ele? Ou você monta alguma coisa, ou você prepara alguma coisa, ou você faz, seja lá o
que for, senão não vai ter essa mão, e quem, é lógico que nós dois discutimos isso, eu
não acho que isso seja responsabilidade dos irmãos.
No relato de M10 podemos perceber o questionamento sobre sua
vontade de manter o filho a seu lado, em contraposição ao sofrimento que
48
L. é o filho com deficiência do casal P8 e M8.
49
Fundação é uma instituição que cuida de crianças com deficiência, na cidade de
Campinas.
90
isso lhes impõe. Por isso, a mãe se pergunta se esse sacrifício teria valido a
pena, malgrado o amor egoista que também a incomoda. Contudo, pelas
palavras da própria mãe, ela não mediria esforços nos cuidados com seu
filho.
M10: Tudo bem, ele vai agüentar. Não tinha mais o que fazer. E como ele sabia, ele
estava já com dois anos, ele sabia da minha luta, tudo o que eu fazia por ele: fazia
diálise vinte e quatro horas todos os dias, dezesseis na máquina, todos os dias para o
hospital, fisioterapia. Aí ele reuniu a equipe médica novamente, me chamou no hospital
e falou:”Olha mãe, o W
50
não tem mais o que a gente fazer por ele. A gente
desconhece, pela medicina, o que fazer. A válvula ele não pode colocar porque é
drenada pelo peritônio, e o peritônio está ocupado com o líquido da diálise, pelo
coração.” Ele tinha uma insuficiência cardíaca, muito pouquinho mas não resistia,
então desistiram. Ela só falou pra mim assim; isso eu não esqueço como hoje: você
escolhe, você quer que ele morre em casa ou você quer que ele morre num leito de
hospital? Eu falei : Doutora, nenhum dos dois, eu não quero que meu filho morra. Aí
ela falou pra mim: “Então, a gente desconhece o que fazer. Está todo o material dele
aqui, você leva pra casa e faz o que achar; que der no seu coração. Se você achar que
deve ficar aqui, você deixa ele aqui; ele vai ficar internado. Se você achar que ele deve
ficar em casa, você leva ele para casa, está liberado”.
Tinha três furinhos: dois na barriga, um nas costas. O xixi saía pelas costas, tudo
aberto; um risco de infecção que não podia nem pensar no ar, que ele pegava infecção.
E aí, meu cuidado foi maior, porque eu sabia que ele podia morrer nas minhas mãos, e
ali eu comecei a cuidar como um cristal, uma pérola.
Eu só penso assim: eu me vejo com a consciência tranqüila, eu fiz o possível e o
impossível. Eu lutei e hoje eu estou com a mesma consciência tranqüila, ao mesmo
tempo, quando eu olho pra trás tudo o que eu passei com ele, eu me pergunto: Será
que não era egoísmo demais da minha parte querer que ele ficasse comigo, pagando
um preço tão alto? Porque eu não queria que ele fosse embora, se eu deixasse, se eu
realmente não tivesse lutado, ele tinha ido antes. Ele ficou aqui, com todo esse
sofrimento, porque se falasse: olha, tem lugar, tem nos Estados Unidos alguma
chance, meio por cento, estou lá. Mas ao mesmo tempo eu não sabia se era isso que
ele queria. Quer dizer, ele estava ali, mas ele estava sofrendo, aquele sofrimento dele
eu não via, eu só via que ele estava junto comigo.
No relato seguinte, a mãe M3 se preocupa com o destino do filho com
deficiência na ocasião da sua morte. Ela questiona se os irmãos aceitarão
essa tarefa. Também observamos que, na fala da mãe, medo e preocupação
se confundem, apesar de ela afirmar que “não é bem um medo, é uma
preocupação”.
M3: – Não, você só pode imaginar, né? Assim, eu, é claro, que a coisa que mais me
preocupa, né? Que volta e meia me passa pela cabeça é, assim, a minha ausência, né?
Minha ausência e como que isso vai ficar, como que vai ficar a história dos
remanescentes, né? Eu acho que eu, assim: tô fazendo tudo, de certa forma. Por
50
W. é o filho com deficiência de M10, já falecido.
91
exemplo: as minhas filhas sendo criadas com bastante autonomia e resolvendo tudo.
Eu acho que tem muito pra dar certo, mas eu acho que ninguém é obrigado a ficar
cuidando um do outro, eu não vejo assim, que tem que ter essa obrigação, porque eu
sempre fui muito livre pra isso também e criei livre, né?
Mas eu... essa preocupação... não é bem um medo, é uma preocupação, assim, que me
passa de vez em quando pela cabeça, mas eu... aí eu... eu penso que... aí a minha fé,
né? fala assim: Ah, Deus é grande, né? Eu acho que eu estou fazendo tanto, tô
procurando deixar tanta coisa preparada, assim, procurando o meu tempo, não é uma
troca com Deus, eu não sou de fazer promessa, essas coisas, mas eu acredito no
trabalho, sabe? Eu acho que a vida é um trabalho constante, em todos os sentidos,
não só profissional, mas o trabalho diário da gente em casa, na sociedade, na família
e na profissão da gente. Então, se eu tô fazendo o melhor que eu posso, o melhor vai
acontecer, é o que me... eu falo : Não, isso aí eu vou entregar pras esferas maiores. Eu
acho que... porque o que que eu posso fazer? Eu tenho... tô pensando em termos
assim: eu preciso ver direito a minha aposentadoria como é que vai ficar, já tenho tudo
separado isso, que eu vou ter que cuidar, essa parte, vamos dizer a parte material da
coisa, né? A parte legal da coisa me preocupa um pouco, por causa do meu regime
jurídico, isso é uma coisa que eu vou cuidar, e o resto C
51
., não sei. Eu espero que o
melhor aconteça, mas é uma preocupação.
Observamos que a preocupação com o futuro dos filhos com
deficiência é uma constante nos relatos dos pais:
M7: Eu tenho medo de morrer e o D
52
. ficar. Eu falo, o O
53
. vai arrumar outra
tranqüilo, sem o D. E a T
54
. e o Dn
55
. também são espertos, todo mundo vai querer,
mas o D.? Toda vez eu falo: ou eu morro junto com o D., porque eu não vou agüentar
ver o D. morrer e eu ficar, a gente tem que morrer junto. O O. ainda dá risada, ele fala:
“você tá querendo muito ainda, né? Você quer que nóis morre junto?” Não, eu quero
morrer junto. Aí a H
56
. falou: “Não! Você pode ficar sossegada”. Ela ficava com o D.
para mim. Aí eu parei e falei: Bom, você fica com o D. pra mim, então? Se acontecer
qualquer coisa você cuida, porque o O. vai poder seguir a vida dele, porque o primeiro
xilico, a primeira cagada dele a menina não vai querer o O. mais. Pode ser o melhor
homem do mundo, com o D. não vai!
Já o casal P1 e M1 mostra uma preocupação a mais, já que revelam
que não poderão contar com os parentes e amigos no caso de morrerem. A
única pessoa que a família parece poder contar para ficar com a filha é a
fisioterapeuta que cuida dela:
P1: – Medo de morrer.
M1: – Morrer. Só esse.
P1: E deixar ela? Quem vai cuidar dela?
M1: – Porque, olha, eu vou falar uma coisa pra você: eu não ouvi de nenhum parente
falar assim pra mim: se um dia você faltar, eu vou cuidar da sua filha, não.
51
O entrevistador.
52
D. é o filho com deficiência do casal.
53
O. é o marido de M7.
54
T. é filha do casal.
55
Dn. é filho do meio do casal.
56
H. era terapeuta do filho com deficiência do casal.
92
P1: Também não ouvi de amigo. Agora, essa V. aí, essa fisioterapeuta, não sei, ela
nunca falou, mas eu tenho uma dúvida. Se nós dois falecer, se ela não pega essa
menina aí. Digo menina, né? Pra gente não deixa de ser criança, né? O seu filho pode
ficar. É sempre uma criança, né?
Um outro aspecto das preocupações com a morte, que é ressaltado no
depoimento de M5 e P5, é a questão financeira e os medos em relação ao
desamparo que a família sente por parte do Estado:
M5: – Poxa, imagina! Amanhã se a gente morre, se acontece alguma coisa, a M. vai ter
uma pensão superboa, que ela vai poder continuar... ela vai ter lá o SER
57
, né? Não,
hoje a gente tem que pensar em fazer patrimônio e fazer alguma coisa pra deixar pra
ela, entendeu? Porque o estado não vai amparar. E se a família não ampara, pra quem
que vai sobrar a M
58
.? Você entendeu? Ela vai viver com uma pensão de R$ 180,00?
Então a gente tem que ralar, C
59
. A gente tem que trabalhar muito, a gente tem que
fazer... esse é o meu desespero. Você não imagina o quanto eu sou desesperada com
isso, sabe?, assim, de querer fazer pra poder deixar pra ela. Isso eu tenho assim na...
na... sabe? É uma coisa assim: não, eu vou, eu preciso, eu tenho que trabalhar muito
agora; hoje eu tenho saúde, ainda tenho quarenta e um anos; eu vou trabalhar,
trabalhar, trabalhar, porque eu preciso deixar muita coisa pra ela. Ela precisa ter um
monte de imóvel alugado pra ela poder... Porque senão, quem é que vai pagar pra ela
isso? Entendeu? O Estado vai pagar? Não vai. Ele vai dar uma pensão de R$ 160
reais, entendeu? Então ela vai ficar desamparada. Então ela tem que ter... A minha é
muito...
P5: – Mas acho que isso daí não é... a preocupação é, é secundária se você pensar o
seguinte: não adiante ela ter materialmente tudo, estar assegurada, ou estar numa
qualidade de vida, pra ela, até ela envelhecer. Quando a gente morrer...
M5: – Uai, mas é o mínimo...
P5: – …e não ter … quem vai gerir isso daí ou cuidar dela?
M5: – Que daí entra a parte da família.
P5: – Nós não temos isso. Eu acho que não é o Estado que vai fazer isso.
M5: – Não, mas se fizesse já seria...
P5: Não, mas não é o Estado que vai levar ela pra tomar banho…
Contudo, a expectativa de que seus familiares acolham os seus filhos é
quase sempre muito maior do que a esperança de que isso seja feito por
pessoas que não são da família. A morte para eles é vivida como ameaça em
relação aos filhos e, portanto, sob a ótica da necessidade do amparo, quase
sempre temida:
M4: – Ai! Medo eu tenho, de um dia chegar a perder eles. Eu tenho muito...de alguém
chegar e fazer alguma coisa pra eles. Isso eu tenho. Eu já luto pra isso nunca chegar a
acontecer. Porque eu já fui parada no Conselho Tutelar, porque quando a minha filha
estava com o gesso nas pernas, e fizeram uma denúncia que eu não queria levar ela
pra escola. Porque a V
60
. chegou a estudar na rede pública, e por ela ter muita cirurgia,
57
É uma instituição que cuida de crianças com deficiência na cidade de Campinas.
58
M. é a filha com deficiência do casal.
59
O entrevistador.
60
V. é a filha com deficiência de M4.
93
por ela ter esses problemas, chegaram a falar que eu tinha vergonha dos meus filhos,
principalmente da V., que eu não queria pros... por ela, o pessoal, sabe? Eu falei: Não!
De jeito nenhum! Eu tenho muito medo de um dia chegar, e eles chegarem e falar:
“Não, você não pode mais ficar com eles.” Não sei se eles poderiam dizer isso. Não sei,
mas eu tenho, de vez em quando eles vêm aqui fazer visita, né? Já faz uns dois anos
que eles não vem, né? Do ano passado e esse ano, até agora eles não vieram, e eu
rezo tanto pra eles não vim! O Conselho Tutelar queria tirar meus filhos, ah, porque
eu... claro que eu quero, porque ela não ta fazendo na escola, na Casa da Criança,
porque ela ia lá. Pra mim de ônibus era mais difícil, e eu falei: então, como ela faz
tratamento só na Unicamp, deixa ela só na Unicamp então, né? Faz tudo lá, ela faz
fisio, ela fazia, faz fono, fazia tudo lá, passava em todas as áreas dos médicos, então
pra mim eu achava mais fácil do que ir pra Campinas, porque lá em Campinas eu
tinha que pegar ônibus, levar ela no colo, ela era mais pesada, ia crescendo, eu falei:
Não tem mais como. Aí, foi a escola lá que colocou. Ligaram pro Conselho Tutelar vim
fazer uma visita na minha casa pra ver as minhas condições, e achava que eu num
tava mais me preocupando com a V. eu falei: Jamais! Minha filha, nossa! Eu largo de
cuidar de mim, mas meus filhos é o principal, jamais! Eu tenho muito medo de que
levem meus filhos... É, eu tenho.
Os pais não são pais a vida inteira... Ah, eu sei. Um dia a gente morre. Eu vejo assim:
pros outros dois que são normais, eu não me preocupo, mas eu me preocupo com a V.
né? Porque ela vai sofrer muito, né? Porque não vai ter quem vai acolher ela, se não for
os irmãos. Porque eu sei que o pai dela não. Na minha falta, se os irmãos acolherem,
aí eu acho que vai acabar prejudicando, né? Não sei, não sei, eu acho que eles vão
querer ter uma vida e vão falar assim: “não, eu não posso ter essa vida por causa da
minha irmã, né?” Eu não sei, né? Eu penso de uma né.... Ah, assim que eu espero, né?
Que eu sempre peço pra Nossa Senhora, né? Que me dê uma vida bem longa, pra mim
chegar a ver meus filhos casados. Uma vida, uma vida bem... bem... pra mim poder,
sabe? Aí eu posso, chegar a minha hora e falar assim: eu vi meus filhos bem, e eu sei
que a minha filha também está bem. Aí chegar a minha hora que Deus possa me levar,
que eu possa ir tranqüila. Eu penso assim. Não sei se todas as mães pensam assim,
né? Mas...eu tenho também, eu também tenho medo, de ir antes e não saber como
meus filhos vai ficar. É que se eu tivesse certeza de que eles estariam bem eu não me
preocuparia com isso. Não, não. Talvez eu não tenha essa certeza.
Podemos observar no depoimento de M4 uma constelação de medos
em relação à sua morte: o medo do Conselho Tutelar, que poderia lhe tirar a
guarda dos filhos; medo de que os irmãos não acolham a filha, tampouco o
pai; as orações para Nossa Senhora, pedindo uma morte tranqüila, por
deixar os filhos em boa situação. Portanto, todos os medos culminam na
falta de certezas em relação à morte.
Como vimos, a morte é, sem sombra de dúvida, o temor mais presente
nos depoimentos dos pais. Ela se manifesta de várias maneiras: com relação
ao acolhimento dos parentes, ao aspecto financeiro, a rotina do filho com
deficiência com a morte dos pais. Portanto, todos os pais temem a morte em
vários aspectos, mas o que nos chama a atenção é que essa preocupação
não se refere à morte para os próprios pais, mas as conseqüências dela para
os filhos com deficiência que, nas suas ausências, ficarão vivos.
94
CAPÍTULO VI
A INCLUSÃO NO DEPOIMENTO DOS PAIS
Se quisermos analisar o que se passa
num grupo, quer seja “natural” ou
“artificial”, pedagógico ou experimental, é
preciso admitir como hipótese prévia que o
sentido do que se passa aqui e agora nesse
grupo liga-se ao conjunto da contextura
institucional de nossa sociedade.
GEORGES LAPASSADE
Grupos, organizações e instituições
6.1 – A relação inevitável com as instituições de saúde
As instituições fazem parte da vida dos pais e, inevitavelmente,
ocupam um lugar de destaque na relação do indivíduo com deficiência com a
sociedade. Lugares de cuidados e tratamentos dos filhos: hospitais, APAE’s,
clínicas e todo o corpo de profissionais que os compõem são muito
importantes, na medida em que são responsáveis, ao lado dos pais e da
família, pelo zelo com os filhos que apresentam deficiência.
Por outro lado, os relatos dos pais sobre as instituições que seus filhos
freqüentam (ou freqüentaram) nem sempre são coroados de êxito ou isentos
de conflitos. Por conta dos relacionamentos existentes entre pais e
instituições, esses estabelecimentos constituem-se em espaços de
interdependência das relações humanas, conforme nos sugere D’Antino:
A existência individual se dá, desde sempre, no espaço institucional
– família, escola, igreja, etc. –, e é na vinculação do indivíduo ao
espaço instituído que vão se constituindo teias de relações de
dependência : indivíduo–instituição e instituição–indivíduo, em que a
existência de um só é possível nesta permanente e intrincada força
relacional (D’ANTINO, 1988, p. 46).
95
Neste aspecto, foi feita aos pais a seguinte pergunta: Como foram as
relações com as instituições que vocês freqüentaram? Vejamos como os pais
responderam a esta pergunta.
No relato de M1, observamos a forma com que denuncia o tratamento
recebido no hospital, desde a internação da filha – paraplégica por
conseqüencia de um acidente
61
– mencionando aspectos relacionados à
higiene do hospital, à desconfiança em relação ao corpo clínico e à
negligência médica também no que se refere ao atendimento à família:
M1: – Olha, assim... o hospital não freqüentei muito, pois em relação a R
62
. foi só a V
63
.
que pegou a R., foi só a V. Em relação ao I.P., o hospital foi o único hospital. Eu não
gostei, não gostei porque, a parte de higiene era horrível. Então o Dr. N. que foi no
quarto, e eu, a minha irmã e a minha cunhada, porque a R. não recebia visita, então
nós três que cuidamos dela o tempo todo, desde banho, porque as enfermeiras vinham
com uma canequinha lá para dar um banho. Então, outra coisa: ficamos três meses lá
dentro, todo mundo queria ver a R. Não sei porque, porque foi um erro de anestesia, o
caso da R. foi um erro de anestesia, ela tem duas lesões na cabeça e uma da fala,
porque ela entrou falando, gritando, para eles não cortarem a perna, ela só teve
fratura exposta na perna esquerda, ela não teve um pequeno arranhão no corpo inteiro
Então, ficamos três meses lá; fez duas plásticas na perna, aí nós saímos.
E também não gostei do Doutor N.; não gostei. Porque quando nós saímos, ele falou
assim para nós: “Olha! Vocês vão tratá-la como uma criança.” Mas não deu uma
medicação.”Um mês vocês vem aqui, para a gente olhar a R.” Nós íamos lá, levávamos
a R. lá em cima, aquela parte de cima onde era para examinar; vinha sempre o doutor
J., um que era da equipe dele, olhava, não tirava uma pressão, não via o jeito que a
perna dela estava. Ele só falava: “nossa, como ela está bem, não? Ela está bonita,
não?” Aí nós fomos três vezes lá, sem um remédio.
Aí a S. era uma fonoaudióloga, uma amiga nossa, que vinha aqui em casa, para
cuidar da R. Aí ela falou assim:Eu vou com vocês, sem falar que eu sou a fono
dela, para ver o que ele vão fazer
64
”. Ela chegou lá e ficou a mesma coisa; olhavam
a R. falavam isso; a gente vinha embora, aí ela falou assim: “Não quero que levem a R.
lá, porque eles não fazem nada!” E você vê, dez meses sem uma medicação, uma
pessoa que não tinha um movimento. Bom, aí ela falou assim: “Vamos conversar,se eu
conversar com o Doutor H.P. um neurologista ótimo” (ele fazia plantão no M.G
65
, tinha
consultório e fazia plantão no M.G.), “se vocês pagarem uma consulta para ele, eu
trago ele aqui na sua casa”.
Aí ela conversou com Doutor H. Ele falou: “olha, eu só posso ir na hora do meu lanche,
do meu almoço”. Aí então nós combinamos, colocamos a R. num acolchoado no chão,
como ela ficava sempre. Aí ele trouxe os aparelhos que ele podia trazer, ele examinou
tudo, tudo, tudo a R. Mas falou: “não deram um remédio, nada, nada?” Falei: não,
nem uma Aspirina! Aí nós contamos tudo para ele, como foi o acidente, tudo. Ele falou
assim: “olha, não vou falar que ela não vai andar, ou que ela vai andar, porque eu
estou pegando o bonde andando como diz o ditado, né?” Aí ele começou a dar dois
61
Controversamente, a mãe acredita que a filha ficou paraplégica por um erro médico
ocorrido no hospital.
62
R. é a filha com deficiência do casal.
63
V. é a fisioterapeuta de R.
64
Grifo meu.
65
M.G. é um hospital de Campinas.
96
remédios para ela: um chama Rineton e outro era Tegretol; esses dois remédios...
Olha, C
66
! Em três semanas, a R. mudou até a fisionomia; ela tinha o lado direito da
boca assim meio para baixo; mudou, mudou a fisionomia dela. Então o Doutor H. veio
aqui em casa três vezes. Aí ele falou assim: “bom, agora eu conheço um pouco da R. o
que ela pode fazer, o que ela não pode...” Nós começamos aí a ir no consultório dele e
vamos até hoje; o mês passado mesmo, já fomos. Então, da R. foi só o Doutor H. que
está cuidando dela. Vinte e quatro anos cuidando. No começo a gente levava mais
vezes, depois ele parou com a medicação. “Não a R. não precisa mais nada de
remédio”, falou. O remédio que tinha que tomar ela já tomou, sem remédio é exercício e
a fisioterapia, e a fono, né?!
Assim como M1 mostra sua desconfiança em relação à instituição,
apontada pelo fato de pedir que uma fonoaudióloga acompanhasse a visita
de R. ao hospital – já que um profissional da área da saúde poderia avaliar
melhor a qualidade do atendimento recebido – também observamos certa
desconfiança apontada no relato de outra mãe, M3:
M3: – Lá é um hospital escola e os residentes são obrigados a, todo mundo é obrigado
a, dar muita assistência, assistência médica técnica perfeita. Só que, em termos de
respeito pelo paciente, assim, quando vem aqueles... Falta humanidade, dos médicos
na hora de fazer... dar aula em cima do paciente é uma coisa ruim, né?,
terrível
67
. Mas tudo bem. Isso aí, até eu perdoei, porque ele foi bem tratado ali, só que
ele ficou três meses ali, depois desses três meses ele já era considerado um paciente
crônico, estava ocupando um leito. Essa que é a realidade: ele estava ocupando um
leito e como não tinha plano de saúde ainda, eu estava tentando resgatar ele pro meu
plano, ele foi transferido para um hospital chamado Hospital Auxiliar de Suzano. Não
sei se você já ouviu falar. Aí começou, aí Goffman
68
entrou na história, aí eu vi o que
foi, esse pedaço é muito difícil pra mim, viu C
69
?
Eu, eu falo, posso falar, responder todas as suas perguntas, vou te dar o trabalho que
eu escrevi porque a... no dia que eu fiz esse trabalho, uma colega minha falou: “Você
vai fazer uma catarse da sua vida, e é até bom”. Eu vou mesmo e fiz, mas mexer com
isso pra mim é muito difícil, porque eu era obrigada a ir visitar meu filho, nos dias
certos, no horário certo, eu tinha que sair sem olhar para trás, porque a minha vontade
que eu tinha era de catar meu filho, enfiar ele nalguma coisa e trazer para dar
dignidade pra ele. E só consegui isso – desculpa, viu bem! –, ele fica sofrendo,
tadinho, mas ele é legal, o F
70
. agüenta bem, ele me ajudou muito a cuidar dele depois,
viu C.? Eu só consegui realmente assim: nesse meio tempo eu fui atrás de um juiz de
Direito lá em São Carlos, que é meu amigo, e eu falei eu vou conseguir pegar tutela
dele, né?, porque eu já tinha experiência do F., eu já tinha experiência.
No relato de M3 observamos o desconforto com o fato do filho ser
atendido em um hospital universitário e, portanto, ser submetido a
procedimentos de aprendizagem dos médicos residentes, o que, para a mãe,
66
C. é o entrevistador.
67
Grifo meu.
68
M3 se refere a Erving Goffman, pesquisador da área.
69
O entrevistador.
70
F. é o outro filho com deficiência de M3.
97
é motivo de constrangimento e desagrado, chegando a ser considerado um
fato “terrível”.
Apesar das críticas aos procedimentos de aprendizagem nas
instituições universitárias, M3 reconhece a importância das instituições na
assistência aos indivíduos com deficiência:
M3: – Foi aí que eu fui entrando em contato com os grupos e fui o cego a se pronunciar,
né? Mas porque eu vou fazer uma biblioteca só pra deficientes físicos? E os cegos? E
os outros, né? E foi ampliando, eu fui pro CEPRE
71
conhecer, aqui no Gabriel Porto, os
equipamentos, escrevi o Projeto, entrei nessas coisas de Organização Mundial de
Saúde, em ONU pra pegar legislação, né? Prá poder embasar o Projeto, vou justificar
como? Nessa época não tinha lei ainda que obriga a Universidade a ser acessível, a
gente foi anterior a isso. Aí C.
72
, foi o Projeto, beleza, tudo, escrevi. Quem assinou foi a
Coordenadora porque eu não sou doutora, né?, para assinar Projeto. Daí ela assinou;
foi o nome dela embaixo, tal. Nesse meio tempo, então, minha diretora veio pra cá;
porque ela subiu lá, mudou de lugar tudo; veio uma outra diretora.
Quando o projeto foi aprovado, eu pulei de alegria, né gente? Foi aprovado o projeto.
Tudo foi no dia onze de fevereiro de 1999; eu entrei na sala da diretora, falei: C.
73
, foi
aprovado o projeto, olha que beleza! Ela falou: “mas eu não vou querer esse projeto
aqui”. Eu falei: Porque não? Já conversei com a comissão de biblioteca. “Nós não temos
nem pessoal e nem espaço pra dar conta de um atendimento pra pessoas com
deficiência”. Aquilo foi um baldão de água gelada assim em cima de mim. Eu falei:
Meu Deus! Ela falou: “e você pode ficar tranqüila que você vai com o projeto e tudo pra
biblioteca central”. E voltei; falei: Meu Deus! Aí fui conversar com a minha diretora, era
aniversário dela, na véspera do acidente do C.
74
, fui lá e falei: Olha o que aconteceu, a
pessoa não quer mais o projeto lá, não está querendo, o que que eu vou fazer agora
com esse projeto mulher? Ela falou: “não, fica sossegada que quando ele for pra BC
75
a gente dá um jeito, a gente puxa você pra lá”.
Naquela madrugada o C. foi acidentado, e eu me afastei completamente. Fiquei um
tempo. O meu diretor, de lá do IFCH
76
, foi maravilhoso. Oh pessoa linda! Me pegou no
colo e falou: “você esquece cartão de ponto, esquece Unicamp, vai cuidar dos seus
filhos, você não vai ter a menor condição de trabalhar”.
Quando eu olho pra trás, pro meu passado, eu falo: gente, como eu consegui fazer tudo
isso, trabalhar, cuidar da casa, dos filhos, das conta dessa... dessa loucura assim
muitas vezes [...] Mas o que faz a gente sobreviver é a necessidade que você tem da
vida, os outros, sabe? Tá todo mundo junto no mesmo barco; os outros filhos
precisando da gente também; o futuro pela frente; dar alguma coisa pra eles hoje
compensou muito quando eu vejo, né? Teve muita dor, sabe C.
77
? Muita dor: teve e
tem.
Se M3 critica alguns aspectos da instituição, num primeiro momento,
depois ela reconhece o valor da instituição e sua capacidade de suprir essas
71
M3 refere-se ao Centro de Estudos de Pesquisa em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel O. S.
Porto” – Faculdade de Ciências Médicas/UNICAMP.
72
O entrevistador.
73
C. é uma diretora do local de trabalho de M3.
74
C. é um dos filhos com deficiência de M3.
75
Biblioteca Central da UNICAMP.
76
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
77
O entrevistador.
98
necessidades. Portanto, se a mãe aponta que teve muita dor e sofrimento,
essas instituições cumprem um papel importantíssimo e, além disso, as
críticas servem (ou deveriam servir) para aperfeiçoá-las.
P8: – Então, o que que tem que mudar na sociedade? E o que que tem que mudar em
tudo para a inclusão? Primeiro é a qualificação das pessoas que trabalham com essas
pessoas; segundo, a visão da sociedade e o que essas pessoas são capazes. Do quê?
Não sei, vamos ver.
O depoimento a seguir narra as dificuldades encontradas pela família
no momento em que necessitava do apoio institucional. Nessa
particularidade o depoimento é importante porque reflete o sofrimento que
esses pais viveram no cuidado com seus filhos e no contato com a
instituição. Por outro lado, eles contavam com a solidariedade dos amigos e
até de desconhecidos, quando se tratava de ajuda financeira para o
tratamento.
P10: – Pra cuidar dele tinha que ser a mãe ou eu, porque a gente teve que ter um
treinamento lá na Unicamp pra poder fazer o tratamento, a diálise. E outra pessoa não
tinha jeito; então, tinha que ser eu a e M.
M10:Eram os dois. Aplicava injeção, inalação, tudo, a fisioterapia...
P10: – Começou a aparecer, entendeu? Não os amigos. Gente de fora com vontade de
ajudar.
M10: – As pessoas que a gente nem conhecia é que passou a saber da história.
P10: – Depois que o W.
78
faleceu. Não, a família continua a mesma, do mesmo jeito;
cada um na sua casa, cada um cuidando da sua vida. Os amigos, alguns,
continuaram vindo aqui; continuam vindo; a gente não perdeu os amigos que nos
ajudou na época da campanha. Os amigos são os amigos da campanha. Aqueles
antes do W.? Aqueles não voltaram mais.
M10: – Eles tinham vergonha da gente; passava a gente na rua, eles davam a volta
pra não falar com a gente; vergonha de ver. Aqueles amigos de churrasco, de final de
semana, de festas, de convidar você pra ir num aniversário, pra ir num casamento,
aqueles amigos...
P10: – Sobraram muito poucos.
M10 – Então, se você colocar todos na peneira, vai sobrar dois ou três. Aquele que
sobrou ficou fiel até hoje. O resto... não tem amigos.
Outro aspecto que parece incomodar os pais P10 e M10 é o fato de
perceberem que – na ocasião da campanha que fizeram para arrecadar
fundos para o tratamento do filho – as pessoas tinham vergonha deles e
procuravam evitá-los.
78
W. é o filho com deficiência do casal.
99
P10: – E os amigos que continuam são amigos que tem. Porque, na verdade, o W. era
uma criança que tinha bastante problema de saúde, eno ele comovia as pessoas; ora
ele estava bem ótimo, rindo pra todo mundo e jogando beijo, depois ele começava...
tinha uma crise, ele começava vomitar na frente de todo mundo, entendeu? Então, aí o
pessoal via o lado bom e o lado péssimo. Então, aquilo lá parece que comovia as
pessoas.
M10: – E pela história: uma criança que fez vinte e cinco cirurgias, quatro derrames
cerebral, duas meningites e sem nada de função renal, sem nenhum rim, sobreviver
quatro anos e seis meses! Então, só por aí já conta tudo, né? Um ser humano, como o
médico falou, não agüenta. É muita coisa. Vinte e cinco anestesia geral e ele, ali, firme:
ia e voltava. Então isso... a própria equipe médica já achava que...
O próprio médico veio, examinou e falou: “ele está com suspeita de meningite. Nós
vamos internar ele urgente”. Eu falei: ele não pode ficar internado aqui porque o
convênio não cobre. Ele falou: “não, agora ele não pode mais sair daqui”. Aí, internou;
e o médico já veio e falou: “olha mãe! Ele teve meningite; então entrou pela abertura...
o bichinho entrou lá dentro e contaminou, ele vai precisar internar urgente”. Já entrou
e foi pra UTI. Aí entrou em coma profunda, pegou todas as doenças que você possa
imaginar, dentro do hospital. Aí, paralisou tudo, deu aquela infecção generalizada.
Eu já estava há trinta e três dias com ele lá, dormindo no carro – que a gente tinha um
carro velho que não tinha nem condição; era uma Paraty muito mais velha do que essa
– sem tomar banho. Pra escovar os dentes, eu escovava na torneirinha do jardim do
hospital, porque a diária lá era cento e trinta reais, uma refeição, dezoito reais, eu não
tinha dinheiro para pagar e não tinha como sair dali, porque não tinha ninguém no
hospital, não tinha equipe que sabia mexer com a diálise.
Então ele falou pra mim: “a gente cuida da cabecinha dele e você cuida da diálise.
Você é a mestra dele aqui, vai vir um mestre, vem de um outro hospital que eles
chamaram e você se vira com a máquina”. Então, quer dizer, eu não podia sair de jeito
nenhum. Aí fiquei lá. Quando foi com trinta e três dias, eles chamaram ele; a infecção
generalizou, paralisou tudo. Aí era só o aparelho que tava o coração...
P10: – Qual era o nome que ele falou? Assepssemia, sepssemia...
M10: – É, infecção generalizada. Nisso ele ficou num quarto fechado, eles falaram:
“Olha mãe, não tem mais o que fazer, se você quiser providenciar o enterro dele lá, pra
sair daqui vai ficar muito difícil”. E esses médicos era assim. Não dá nem pra falar em
religião, mas no lugar que eu fiquei, dentro da UTI, toda hora eu via ele chegar e
colocar as mãos na equipe e fazer uma oração, as enfermeiras toda hora colocando a
mão dizendo que estava transmitindo energia pra ele. E esse Dr. O.T. falou assim:
“Mãe, seu filho tinha uma missão aqui com a gente, ele vai passar um bom tempo aqui,
até ele cumprir essa missão, mas ele vai ficar bom, acredite nisso que eu estou te
falando, ele vai ficar bom”.
Então trinta e três dias, eu já não agüentava mais, eles pediram pra preparar e
mandou chamar esse. Aí chegou lá, explicou pra gente: “se vocês quiserem a gente
desliga o aparelho, não tem mais mesmo o que fazer e nem dá, nem tem condição dele
continuar mais no hospital porque ele já está passando a bactéria para os outros
pacientes, generalizou”. Ele já estava todo inchado, a pele soltou inteirinha, estava em
sangue vivo, não tinha mais o que fazer realmente. Eu não tinha coragem de desligar o
aparelh. Aí, ele falou: “Olha, ele não vai até amanhã, a gente vai entrar com outra
droga porque a gente desconhece, todas as drogas a gente tentou e não tem mais o
que fazer, então a gente vai entrar com uma hoje, que derruba”. Só que ele falou: “Pra
você que não entende, derruba um elefante. Então, agora é tudo ou nada”. Isso foi tres
horas da manhã. Eu fiquei lá; chegou o Dr. e falou assim pra mim: “M., vai descansar
no carro um pouco, leva meu bip, qualquer coisa eu te chamo se a máquina apitar”.
Porque a máquina, de hora em hora, ela apitava; aí, dava um problema, e eu tinha que
resolver. Ele falou: “se a máquina apitar eu te bipo, então descansa um pouquinho”.
Aí eu fui para o carro, deitei no carro e apaguei. Eu acordei nove horas da manhã, um
sol no meu rosto. Aí, eu falei: pronto, morreu! Porque ninguém me falou nada, a
máquina não apitou até agora, e era de hora em hora...
100
Ainda no depoimento do casal 10, podemos observar o sofrimento que
foi, para a família, as inúmeras cirurgias e internações do filho. É preciso
salientar ainda que, grande parte das dificuldades que o casal passou foi em
conseqüência da falta de recursos financeiros da família. A iminência da
morte e a luta pela vida proporcionam uma situação de conflito e desgaste
emocional para os pais, o que percebemos no comovente relato de M10.
M10: – Quando cheguei lá eles estavam em volta, todos de mãos dadas, fazendo a
oração; eu não sabia se eu entrava ou se eu saía. Aí, eu só vi que ela me chamou e ele
pegou na minha mão e falou: “vamos fazer essa oração juntos e agradecer a Deus pelo
grande milagre que ele estava vendo ali novamente”. Aí, ele falou: “Mãe, olha para o
seu filho, olha o milagre que aconteceu aqui, agora”. Só que eu olhei pra ele, todo
inchado; pra mim, ele estava do mesmo jeito. Eu falei: Nossa doutor! Ele está do
mesmo jeito! Ele falou: “Olha os aparelhos, tudo funcionando, coração, pulmão, tudo”.
Como não filtrava o líquido, nos buraquinhos saiu todo o xixi, e ali começou a funcionar
todos os órgãos dele; tinham drenado o pulmão dele; ele estava com dois drenos; aí,
ele fez raios-X duas vezes, deu tudo perfeitinho. Ele falou: “Mãe, ele não tem mais
nada, a infecção desapareceu assim em questão de duas horas, e a gente não te
chamou até agora porque a gente estava fazendo todos os exames novamente pra
checar, e está cem por cento. Se ele continuar assim, amanhã ele está de alta para o
quarto”. E ali, eu já comecei a acreditar também, porque eu falei: Meu Deus!
Naquela hora, três horas da manhã, eu despedi dele, eu falei: Filho, pode ir! A mamãe
não agüenta mais ficar aqui, eu não agüento mais ficar sem tomar banho,
praticamente sem comer, eu não estou agüentando mais, acabou as minhas forças! Aí,
despedi dele e falei: Aonde você estiver eu nunca vou te esquecer! E fui pro carro, quer
dizer, a hora que eu entreguei ele, aí ele voltou novamente. Fui pro carro, saí de lá; ele
foi, no dia seguinte, realmente, pro quarto; só que ele ficou paralisado. Nada. Segundo
eles, a meningite afetou tudo, mas a cabecinha normal, ali não mexeu, na cirurgia
ficou perfeito. Então, eu saí com ele de lá assim: todo hipertônico, reto assim. Pra gente
pegar ele, a gente tinha que fazer assim, e dobrava, pra quebrar aquela hipertensão
aqui, pra segurar, senão a gente quebrava. Se eu tentasse levantar o bracinho dele
aqui, eu quebrava ele. E trouxe ele pra casa, uma múmia, esticada, cego, sem falar
nada, sem mexer nada, e só vivo.
Ainda esse discutiu com o médico, ele falou: “Seu filho es bom, pode levar pra casa”.
Uma dívida de noventa e oito mil reais no hospital; e o médico falou: “Tá tudo bem, foi
um milagre”.
Ele falou: “Mas bem doutor? Meu filho só está vivo”.
Ele falou: “Mas está vivo; isso que importa; não se preocupa não”.
Ele falou: “Como que eu vou levar pra casa desse jeito?”
Ele falou: “Ele está bem, não tem mais porque a gente segurar ele aqui”.
Então hoje, a gente tem que agradecer; hoje, eu voltei a trabalhar, graças a Deus.
Fiquei cinco anos sem trabalhar, fiquei quase louca, então voltei a trabalhar. A gente
ficou com dívida? Ficou. Quando ele nasceu, antes de tudo isso, a gente entrou em
especial no banco; a gente usou, e essa conta foi crescendo, crescendo, crescendo; o
nome sujo, nosso nome está sujo, mas hoje ela está com saúde, ele com saúde. A
gente tá conseguindo levantar a vida de novo... Ele foi assim: tipo um pesadelo;
quando a gente tem um pesadelo forte e a gente acorda e passou... eu acordei.
Observamos também no depoimento de M10 a aceitação da morte que,
naquele momento, parecia ser o único final possível para o sofrimento de
101
ambos. A mãe chega a se despedir do filho, o que mostra o seu amor
desapegado, preferindo vê-lo morto a sofrer.
Ainda com relação aos apoios extrafamiliares, o depoimento a seguir
pode revelar um certo estigma com relação ao uso da cadeira de rodas. Além
disso, o fato de ter sido derrubada da cadeira no hospital também contribui
para o medo que a filha tem do equipamento:
P1: – Cadeira de rodas ela não aceita. Ela já começou a andar comigo, ela vai a todo
lugar comigo. Por isso...
M1: – Sabe porque ela não aceita, C.
79
? Sabe porque? Lá no hospital, derrubaram ela
duas vezes da cadeira e uma da maca. Você entendeu? A única coisa que tá correndo
em benefício da R.
80
, a Bosch é que pegou. Porque ela não tinha nada a ver com o caso
dela, mas ela é filha dele, que era um funcionário exemplar que eles falaram, de vinte
e três anos e tanto, sem uma queixa de nada. Então, eles pegaram o caso da R. e tá
até hoje na justiça.
P1: – Tem um apartamento e um terreno que, no ano passado, o advogado falou que
estava para o juiz leiloar, e até agora nada. Então está assim. Agora o negócio de lazer
também não interessa. Nós não interessamos não, nós queremos só ela. Vinte e quatro
horas pra ela.
M1: – E na parte financeira, também é assim. Eu tenho o meu ordenado...
P1: – Mas é pouco, tudo pouco.
M1: – Também, porque eu trabalhei trinta e dois anos no Laboratório de Pesquisa do
Governo, no Instituto de Serviço e Cultura. Mas lá, quando foi extinta a Serviço e
Cultura para colocar a Ciretran, eles mandaram a gente lá pra Nova Odessa, no
Instituto de Zootecnia, mas eu não fui; eu já tinha um ano de licença prêmio, todas
aquelas coisas do governo; e eu fiquei em casa. Então, eu sou aposentada por um
lugar que eu não conheço, que eu nunca trabalhei. Entendeu como que é? E você sabe
quanto eu ganho? Com trinta e dois anos? Quatrocentos e vinte e um reais. Porque
naquela ida pra lá abaixaram a minha letra, o meu qüinqüênio tiraram, a minha sexta
parte foi tirada também, e ninguém conseguiu fazer nada. Agora, ele também, na
Bosch também não foi beneficiado não, foi quando ele saiu. Foi beneficiado, mas
ganha pouco tamm. Agora, ela tinha o ordenadinho dela, de funcionária, que é um
salário mínimo, né?
P1: – Não, mas é verdade, porque você vê, eu não sou jovem, eu tenho setenta e seis
anos; a O.
81
, setenta e dois. Então você vê, eu com setenta e seis anos, com todos
esses problemas que eu tenho...
P1 e M1 finalizam seu relato mencionando o medo que têm em relação
à idade avançada, já que a morte dos pais pode significar dificuldades
financeiras para a filha.
No mesmo sentido, o depoimento de M4 aponta para a preocupação
com as necessidades básicas de sobrevivência e mostra que, em muitos
79
O entrevistador.
80
R. é a filha com deficiência do casal.
81
O. é a esposa, M1.
102
casos, um dos únicos apoios extrafamiliares que as pessoas com deficiência
possuem é o da comunidade, na pessoa de amigos e vizinhos :
M4: – ...para pagar a conta de água, de luz...já chegou a cortar minha água, minha
luz, quando eu não tinha ninguém aqui na minha casa. Fiquei sem nada, né? Eu ia na
vizinha dar banho nos meus filhos, lavar minha roupa...
Como pudemos observar nos depoimentos selecionados, o apoio que
vem de fora da família, não se resume às instituições, embora elas cumpram
um papel importante nesse aspecto. Percebemos, através dos relatos, que o
auxílio pode vir tanto de amigos, de vizinhos como de desconhecidos,
mostrando que, muitas vezes, a comunidade é parte imprescindível do
suporte para que estas famílias enfrentem suas prerrogativas cotidianas de
forma digna.
6.2 – Sobre a possibilidade da inclusão pela via da escola
A inclusão é, quase sempre, um dos grandes desafios para os pais.
Parte das questões que envolvem o bem-estar da criança com deficiência
estão relacionadas com a escola (espaço de algumas das responsabilidades
pessoais e busca pelo conhecimento) e dizem respeito à aceitação de seus
filhos. A inclusão de seus filhos na escola parece ser, além de um desafio,
uma necessidade – do convívio social, da alfabetização, da possibilidade de
novas perspectivas na realização pessoal e social. Tal perspectiva pode ser
observada também nas colocações de Omote:
Há quem veja na família uma oportunidade potencialmente rica e
adequada para a educação do excepcional. Há outros que
consideram a família como uma fonte de eventos que podem
prejudicar o bom andamento dos programas desenvolvidos com as
crianças.
[...] promover a educação do indivíduo excepcional, com a suposição
de que, para alcançar este objetivo, a família deve ser aconselhada,
se estiver oferecendo obstáculos, bem como algum membro da
família deve ser treinado para que possa atuar como agente educador
do lar, uma vez que o progresso da criança afetada é bom para toda
a família (OMOTE, 1980, p. 33).
103
A inclusão, portanto, é uma questão que passa pela inserção no
ensino, promovendo o acesso ao conhecimento, assegurando também aos
pais o abrandamento das questões enunciadas acima no contexto
institucional e familiar. Como evidencia Buscaglia:
Em geral, as pessoas deficientes podem citar uma lista de mil
ocorrências verbais e não-verbais nas quais a sociedade revela sua
insensibilidade, falta de conhecimento, rejeição e preconceito em
relação a elas.
[...] Uma mãe expressou sua ansiedade em relação à mudança de
atitude de um de seus próprios filhos não-deficientes, que
freqüentava a escola primária. Ela contou que essa criança não
queria mais brincar ou mesmo ser vista em companhia do irmão
deficiente. Ela se recusava a ser vista com ele em público [...]
[...] O papel da família do deficiente, portanto, pode ser bem mais
compreendido em um contexto sociopsicológico, em que, como no
caso de uma família comum; há efeitos recíprocos contínuos entre a
família e a criança, e a família, a cultura e a criança, uns sobre os
outros (BUSCAGLIA, 1997, pp. 89-90).
A educação inclusiva seria, então, uma das formas de inserção social,
evidenciando questões relacionadas ao preconceito e à rejeição na escola,
conforme podem nos apontar os depoimentos dos pais. O convívio social, a
visibilidade que a inclusão provoca, a mobilização social que produz na
escola e nas suas estruturas, faz com que os avanços contra a discriminação
sejam pertinentes. O convívio mais amplo com outras crianças é, para os
filhos, muito importante e, para os pais, um acolhimento que pemite maior
tranquilidade e inserção social:
P5: – ...a M
82
, assim, até um certo momento lá; depois, quando na escola, ela já estava
mais conhecida, e é lógico, o que ela fazia era motivo assim, de todo mundo dizer: “oh!
Que bacana, né? Ela tá ... ela tá superando, né? Ou, “ela ta fazendo uma coisa que
todo mundo...” Ela fazia as gracinhas dela que todo mundo se encantava, né? E... Mas
assim, no geral, a gente fica com muito... com o coração na mão, né?, fica...
M5: – Nossa, quando ia chegando final do ano, que tinha aquela apresentação, eu já
ficava já falando: ah, meu Deus! Que que vai ser, né? Porque é assim: “ah, é a mãe da
M., é a mãe da M.”. Até no Ave Maria
83
, na Festa Junina: “ah, essa daí é que é a mãe
daquela menina que tem problema; essa daí que é a mãe da ... da menina que é
bobinha, sabe?” Assim: “Ai Jesus!” Em todo lugar que a gente, assim, nas escolas
sempre, sempre assim, uma mostrando: “aquela que é a mãe”. Porque ela era a única
ali dentro, né?
Normalmente eu procuro ler esse olhar, eu procuro ler se é um olhar de dó, ou será um
olhar de não conhecer o que ela tem. Porque muita gente, no começo quando ela era
bebezinha, perguntavam se ela tinha Síndrome de Down. Então, ela tem o olhinho
82
M. é a filha com deficiência do casal P5 e M5, tem 12 anos.
83
Ave Maria é uma das escolas católicas de Campinas, onde M. estudou.
104
puxadinho, ela tem essa preguinha aqui, né? Então eu vi que era uma coisa de não
conhecer. Aí,me perguntaram se ela tinha paralisia cerebral. Então quando eu vejo que
essas pessoas estão olhando assim, eu procuro analisar nesse sentido. Será que ela
tá olhando porque ela não conhece o problema? Normalmente é um olhar de dó, de
piedade, mas poucas e raras vezes acontece de ser assim: um olhar de desprezo, de
“ah, não gosto de deficiente, não quero olhar pra essa criança, não quero contato com
essa criança”. Poucas vezes também teve alguma criança que chegou perto dela, e a
mãe, normalmente o pai, puxa. Assim, não conversa. Aquela coisa de não querer que
fale com a criança, poucas vezes, incomoda.
Percebemos, no depoimento acima, o descontentamento da mãe com a
escola pouco afeita à inclusão, já que sua filha era a única criança com
deficiência da instituição, o que a destacava em relação às outras crianças,
de maneira a incomodar a mãe em virtude dos olhares segregativos e
comentários preconceituosos – com relação não só a filha, mas também à
mãe – feitos por outros pais.
Se uma escola tem um projeto pedagógico inclusivo, ela terá que
incluir não apenas as crianças com deficiência, mas também seus pais. E
um dos caminhos para essa inclusão, ao contrário do que poderia parecer, é
a inserção de todos os outros alunos e seus pais, como nos apontou
Buscaglia acima.
Ainda discutindo o projeto pedagógico de inclusão escolar, no
depoimento abaixo, a mãe M9 aponta uma certa descrença da escola na
capacidade de aprendizado dos alunos com deficiência:
M9:Mas mesmo se você pensar em toda preparação escolar, né? Escola, para
crianças com cognição normal, mas o motor comprometido, também é difícil. Existe
toda essa coisa da inclusão, mas na hora que você vê também, mesmo a I
84
., ela tem o
motor comprometido mas uma cognição boa. Eu vejo muita gente tratar ela como se
fosse uma criança com alteração neurológica. “Nossa, ela fala? Nossa, ela entende
tudo o que você fala?” Sabe, assim, então há uma generalização, não existe essa
diferença: ele é surdo, mas ele é inteligente, ou, ele tem Síndrome de Down, mas ele
faz um monte de coisa, ele é capaz, ou ele tem paralisia cerebral”. Eu vejo, às vezes,
eu falo de uma criança com paralisia cerebral que fala, né? Mas paralisia cerebral
fala?
M9 ressalta que não existe uma preocupação, por parte das escolas,
em pensar um projeto de inclusão que considere os vários tipos de
deficiência. A mãe aponta, ainda, que a escola parece não acreditar na
84
I. é a filha com deficiência de M9 e P9 e tem 8 anos.
105
capacidade dessas crianças de aprender e ultrapassar obstáculos, seja qual
for o tipo de deficiência que possuem.
Somando-se às constatações das dificuldades no que se refere à
inclusão escolar, o relato de M8, abaixo, nos mostra que, se a inclusão,
ainda hoje, apresenta-se como um tema polêmico, essas barreiras eram
ainda maiores quando sequer se discutia a inclusão escolar de pessoas com
deficiência. O caminho desta família foi procurar vias alternativas para
alfabetizar o filho e garantir o seu acesso ao conhecimento.
M8: – ...ele ia pra todo lado, viajava; no Rio ele ficava, ele ia pra lá quando já tava na
fase de andar de velocípede, brincava em casa com os sobrinhos, com os primos, com
todo mundo. Não, ninguém fazia nenhuma diferença em relação a ele, sabe? Então
isso era uma coisa assim que ele... A gente tinha essa certeza absoluta que ele ia
participar de tudo, como qualquer outra criança. A única coisa que realmente a gente
não foi atrás, foi de colocar ele numa escola regular pra você não entrar na
briga que naquela época existia essa briga, né?
85
. E, também, no fundo, que que
a gente não queria, que ele se sentisse diferente, que ele se sentisse é... é...
menosprezado, ou com dificuldades maiores que os outros. A gente não sabia, não
tinha essa novidade, essa coisa de falar de inclusão, de ter uma abertura na escola
pra receber um profissional até da Fundação
86
, como tudo que tem hoje, que naquela
época não tinha. Então, a gente achou que não ia fazer tanta falta assim, que pra mim
ele tava seguido de aprendizagem tudo pedagógica dentro da Fundação. Então, na
época a gente seguiu esse caminho por isso.
Na consideração dessa mãe, uma escola regular que aceitasse alunos
com deficiência não existia ainda nesse período. Parece, contudo, que a mãe
se refere a resistências por parte da escola e das pessoas que faziam parte
dela, quando ela fala da possibilidade do seu filho fazer parte da escola. No
entanto, não se trata de um conflito que a mãe queira produzir, daí ela abrir
mão de lutar por uma possível inclusão do filho na escola regular, algo que
era práticamente improvável na época.
Embora essas resistências fossem muito acentuadas nessa época, não
significa que hoje em dia elas tenham desaparecido completamente. Ao
contrário, o fato de se discutir a inclusão de alunos com deficiência em
escolas regulares pode apontar para o quanto, ainda, as pessoas são
excluídas. O que vale para os alunos vale também para os pais. Veja-se o
que diz Mittler a este respeito:
85
Grifo meu.
86
A mãe faz alusão a uma instituição que o filho com deficiência freqüentava, na cidade de
Campinas.
106
Qualquer escola necessita de sua própria política de relação casa-
escola para ir além de palavras bonitas e para incluir propostas
concretas a fim de alcançar melhores relações de trabalho com os
pais e a comunidade local [...]
[...] a aquisição e o progresso dos alunos; as atitudes e os valores que
a escola promove; a informação que a escola fornece aos pais;
incluindo relatórios; a ajuda e orientação disponível a alunos e
alunas; a tarefa de casa; o comportamento e freqüência às aulas; a
parte desempenhada pelos pais na vida da escola e a resposta da
escola às sugestões e às reclamações dos pais (MITTLER, 2003, p.
208).
Assim, os pais são parte fundamental do processo de relacionamento
entre a escola e o aluno com deficiência. A integração gerada pelo fato dos
indivíduos com deficiência deixarem o confinamento das escolas especiais
para unirem-se às outras crianças, em escolas regulares, deve ser, nessa
segunda etapa do processo, expandida para um convívio social mais amplo.
Conforme percebemos no depoimento de P8 a seguir:
P8: – quem diga que as crianças na escola especial saíram do confinamento do lar,
pra um outro lugar, pro outro tipo, e que foi conviver entre si. Agora o passo é sair pra
um outro âmbito social...
Da diferença do confinamento à exposição social proporcionada pela
inclusão, dos preconceitos aos estigmas, a inclusão é sem dúvida um lenitivo
e um avanço enorme naquilo que diz respeito aos pais como indivíduos e
como grupos sociais.
O surgimento de ações individuais e coletivas pode ser pleno de
sentido, quando se voltam para o seu mundo comum, em perspectivas que
parecem consolidar a escola como espaço de atuação e trocas sociais. Os
pais podem ter possibilidade de participar dessas ações sociais através da
escola que promove a inclusão social.
Assim, os pais podem se tornar parceiros da escola e de políticas
públicas que privilegiem o lugar desses como proteção psicológica e proteção
social, transformando-os conjuntamente, visando espaços de abertura à
igualdade e à cidadania.
107
À GUISA DE CONCLUSÃO
Os homens podem morrer sem angústia
se souberem que o que eles amam está
protegido contra a miséria e o
esquecimento.
HERBERT MARCUSE
Eros e Civilização
A palavra esperança nos sugere expectativa, espera e, freqüentemente,
desejo; dizemos que uma mulher está de esperanças, quando está grávida. A
esperança aparece no relato dos pais, como possibilidade de que os filhos
tenham uma vida produtiva, que tenham aceitabilidade e integração sociais.
Eles revelam por vezes, a falta de confiança nas instituições, e
paradoxalmente, as instituições aparecem com a única possibilidade de se
construir atalhos em busca de melhores horizontes. Suas palavras são o
reflexo do cuidado rotineiro com os filhos, seus anseios são o resultado das
dificuldades que encontram no enfrentamento com a deficiência.
A palavra equilíbrio sugere a manutenção de um corpo em postura
normal, sem oscilações ou desvios. Os pais são os que tentam se manter
nesse equilíbrio em cuidar dos filhos com deficiência, de si próprios e de
suas vidas. Poderíamos chamá-los de malabaristas, contudo, malabares não
são propriamente suas atividades; resolvemos nomeá-los equilibristas por
serem hábeis na arte do equilíbrio e resilientes, para alterar situações
adversas.
O título desse trabalho também faz alusão a um trecho da música de
João Bosco e Aldir Blanc, que fala do exílio, dos anos da ditadura no Brasil,
do retorno e da esperança de novas perspectivas políticas e sociais. E
fazendo menção às políticas sociais, esse trabalho aponta a necessidade de
políticas que os contemple de forma efetiva.
108
O objetivo do presente trabalho foi a de analisar a realidade vivida
pelos pais, cujos filhos têm deficiência. As crianças e os adultos com
deficiência possuem uma dependência direta dos pais e de seus familiares;
embora as instituições responsáveis pelos cuidados com pessoas com
deficiência cumpram seu papel, elas não substituem as atribuições exercidas
pela família.
Utilizamo-nos da discussão de alguns autores no domínio da
Psicologia Social, para analisar as relações entre pais e filhos com
deficiência. Os pais de pessoas com deficiência são o foco desse trabalho,
porque sobre eles recai a responsabilidade no cuidado dos filhos, seja na
esfera pessoal quanto na área social.
Ao longo desse trabalho, consideramos que, com todas as dificuldades
que cercam os pais de filhos com deficiência, as políticas públicas deveriam
dar apoio a esses pais em seu acesso às informações, às escolas, às
instituições de saúde que lhes possam dar guarida e ajuda nos cuidados
com os filhos. Embora tenha havido avanços consideráveis, muito falta a ser
feito, conforme pudemos demonstrar neste trabalho.
As dificuldades dos pais hoje advêm da subsistência do lar, das
exigências de trabalho e dos isolamentos sociais, gerados pelas convivências
e atribuições condicionantes da culpabilidade sobre si mesmos, da
discriminação e dos preconceitos sociais, conforme discutimos no capitulo II.
A família, com uma pessoa com deficiência embora pareça fornecer a
proteção necessária aos filhos, parece-nos ainda aquém de protegê-los
suficientemente, diante de tantas ameaças do mundo externo e essa
desproteção pode acarretar dúvidas, ameaças, medos e inseguranças de toda
monta na dimensão familiar, evidenciando também, que se as condições da
família evoluírem, crescerá em contrapartida, o desenvolvimento da criança e
do adulto com deficiência.
O advento dos pais, nesse cenário, pode derivar de sinais
particularizados: como a inclusão, as múltiplas experiências advindas das
escolas, do estado, das organizações do terceiro setor e, conforme já
anunciamos, da aparição pública, nos seus relatos de imagens, palavras que
podem conduzir a outras práticas inclusivas.
109
Em contrapartida, o número de pessoas com deficiência que se
“expõem” socialmente, saindo às ruas, trabalhando, participando das
atividades e da vida social em comum, freqüentando escolas, as publicações
nessa área, que cresceram enormemente nos últimos quinze anos, faz-nos
acreditar que pode haver sinais de que um “novo sujeito social” pode ter
lugar, em um processo em curso, na exata medida que esse sujeito se
constitui.
Nessa particularidade, segundo essa pesquisa, a mãe é quase sempre
a facilitadora, a protetora dos filhos e, de suas tarefas diárias. Ao pai, quase
sempre, cabe o sustento e as atribuições externas dessas cobranças. Isso per
si divide os pais em exigências que podem torná-los menos disponíveis para
os seus filhos. Entretanto, a aproximação dos profissionais, família, escola e
comunidade, poderiam ser de extrema valia nesse processo de sensibilização
e socialização dos pais, como recurso de inclusão não apenas dos filhos, mas
deles próprios.
Nossa pesquisa se pautou pela seguinte questão: como os pais
convivem com a realidade da deficiência de seus filhos, quais os obstáculos
que eles enfrentam em relação à inclusão deles na sociedade e na escola?
Consideramos, entretanto, que suas narrativas embora individuais
revelam particularmente, sua preocupação com os filhos, suas carências e
por vezes a ausência de uma política que os inclua como sujeitos ativos
numa sociedade que tem como característica a exclusão da alteridade.
Portanto, não existem atores sociais sem as respectivas inserções ou
incidências de um cenário político, seu palco individual é também em amplo
espectro, sua participação social, sua pluralidade enquanto sujeito, sugere
ainda, suas sedimentações nas questões das identidades coletivas.
Os desenhos, brinquedos e utensílios que compõem também esse
trabalho representam o cotidiano dos filhos, um pouco de suas atividades
lúdicas. Em termos cognitivos, são imprescindíveis ao desenvolvimento
afetivo e emocional dessas crianças. Por outro lado, no universo dos pais,
essas imagens são repositórios de lembranças e recordações, reforçando
relações e vínculos de afetos entre pais e filhos. Não se pode esquecer ainda
que, a inclusão não se refere apenas aos filhos, mas aos pais de forma
110
direta, posto que a exclusão já está colocada em vários aspectos desse
cenário, conforme esse trabalho quis demonstrar.
Os pais, hoje, são sujeitos a um conjunto de necessidades, anseios,
motivações e sonhos engedrados pela trama das relações sociais que eles se
constituem e são constituídos. Pais e filhos nos últimos dez anos tem tido
maiores aparições públicas, em espaços onde antes havia reclusão e
segregação, o que faz deles novos protagonistas no cenário da inclusão
social. Os pais, como protagonistas nesse cenário, raramente foram
considerados e tiveram poucas possibilidades de organização e
reinvidicações sociais como outros segmentos, tais como: os afro-brasileiros,
homossexuais etc. A partir daí, a necessidade de pensá-los como um novo
grupo em formação, porque eles são imprescindíveis na luta e no alcance
social para seus filhos no contexto da deficiência.
Hoje em dia faz-se urgente formular políticas públicas que levem em
conta os pais, como forma de criar meios mais eficazes e eficientes para as
pessoas com deficiência no seu convívio social. Porque as instituições
existentes, raramente, os colocam em pauta nesse sentido, tendo
conseqüências várias, conforme apontamos ao longo desse trabalho.
Em suma, a emergência da participação dos pais na questão da
inclusão faz sugerir novos discursos e novas práticas de atuação; se o seu
surgimento ocasionará formas outras de emancipação, é uma tarefa legada
ao tempo e à história futura. No entanto, os pais entrevistados, com seus
depoimentos, propiciaram-nos a oportunidade de refletir sobre as mudanças
de seus estatutos e dignidades. Ao considerarmos os pais nesse recorte de
pesquisa, o que estamos fazendo é promover uma reflexão que aposte em
uma política mais efetiva voltada para a pessoa com deficiência, pois é aos
pais que cabe ainda, a maior parcela de responsabilidades nesse tratamento.
111
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122
A N E X O S
123
Índice das Ilustrações
Figura 1: - parte de brinquedo de G. filho de P2 e M2, pg. 7.
Figura 2: - boneca de infância de R. filha de P1 e M1, pg. 8.
Figura 3: - desenho de L. filho de P8 e M8, pg. 10.
Figura 4: - desenho de L. filho de P8 e M8, pg. 14.
Figura 5: - desenho de L. filho de P8 e M8, pg. 28.
Figura 6: - desenho de L. filho de P8 e M8, pg. 42.
Figura 7: - parte de um desenho de M. filha de e P5 e M5, pg. 60.
Figura 8: - desenho de G. filho de P2 e M2, pg. 68.
Figura 9: - colchetes de fraldas de D. filho de P7 e M7, pg. 91.
Figura 10: - brinquedo de encaixe de G. filho de P2 e M2, pg. 105.
124
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Declaro que estou informado(a), acerca dos objetivos,
procedimentos, formas de divulgação e possíveis riscos e benefícios
da pesquisa intitulada
Esperanças Equilibristas: A inclusão de pais
de filhos com deficiência,
que me foram explicados em linguagem
clara e acessível pelo entrevistador responsável bem como que sou
livre
para procurar o pesquisador para maiores esclarecimentos. A
pesquisa em questão, tem como objetivo estudar a construção
identitária no âmbito dos pais, entendida à luz de uma teoria
psicossocial da identidade, que permite compreendê-la como
expressão potencial de movimentos de reposição e emancipação.
Para a coleta de dados, será utilizada a entrevista aberta
não
dirigida.
Declaro ainda, que estou ciente de que posso interromper a
qualquer momento a minha participação sem qualquer prejuízo bem
como impedir a utilização do material por mim fornecido, que será
utilizado apenas para fins desta pesquisa. Além disso, me foi
garantido que minha identidade será mantida em sigilo e que minha
participação não envolve qualquer custo financeiro, a ser ressarcido
pelo pesquisador.
Nome por extenso
_________________________________________________________________________
Assinatura________________________________ ____/___ /___
Termo de Compromisso
Eu, Crispim Antonio Campos, pesquisador responsável, comprometo-
me a utilizar as informações fornecidas na entrevista, obedecendo
os termos do presente consentimento informado. Garanto ainda, que
os resultados serão devolvidos aos participantes, na forma de
entrega da tese em meio digital.
Data__/__/__
_________________________________________________________________________
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