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Universidade de Brasília
Instituto de Ciências Sociais
Departamento de Antropologia
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
ESPELHO ANTE ESPELHO: A TROCA E A GUERRA ENTRE
O NEOPENTECOSTALISMO E OS CULTOS AFRO-
BRASILEIROS EM SALVADOR
Bruno M. N. Reinhardt
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade de Brasília
(DAN-UnB) para obtenção de título de
mestre
Orientadora
: Profª. Rita Laura Segato
Brasília
Novembro de 2006
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ii
BANCA EXAMINADORA:
Prof. José Jorge de Carvalho (PPGAS/UnB)
Prof. Otávio Velho (PPGAS/Museu Nacional/UFRJ)
Profa. Mariza Peirano (suplente) (PPGAS/UnB)
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iii
Para Letícia e Mathias, como um testemunho, que faz presente (com) um tempo bom.
Para Salvador: cidade-troca, cidade-guerra.
iv
AGRADECIMENTOS:
Gostaria de agradecer, primeiramente, a todos que me abraçaram na “volta ao lar” que foi este
projeto de pesquisa, permitindo o meu reencontro com Salvador. Familiares, amigos velhos e
novos e parceiros de reflexão, com quem pude compartilhar as questões que me levaram à
cidade.
Principalmente, à Dona Terezinha, ela e os seus braços sempre abertos.
À Margritt e Otto, pela Bahia que fizeram sua.
À Ângela Lühning, pelas coordenadas iniciais.
À Patrícia Freitas, por outras coordenadas.
Ao povo de santo de Salvador, sempre pronto a escutar e a falar, a abraçar o estrangeiro como
um dos seus. Especialmente “Jijio” e Jaciara, pelo ânimo e disponibilidade. Para todos, eu
peço Agô.
À Rita Segato, fonte de inspiração, pelas leituras, críticas e insights sempre produtivos e
instigantes.
Aos professores José Jorge de Carvalho e Otávio Velho, por aceitarem compor a banca e por
terem sido referências literárias presentes na concepção e no desenvolvimento deste trabalho.
À professora Mariza Peirano, por aceitar a vaga de suplente da mesma banca e pelos
ensinamentos fundamentais do seu curso de “Análise de Rituais”, presentes de modo
pulverizado por toda a dissertação e de modo enfático ao longo do primeiro capítulo.
Desde a UFMG, à professora Léa Perez, peça fundamental na minha “conversão” à
antropologia.
Agradeço também a outros professores importantes na minha passagem por Brasília: Wilson
Trajano Filho e Luís Roberto Cardoso de Oliveira, no Departamento de Antropologia, e
Gerson Bréa, no Departamento de Filosofia.
À minha família, pais e irmão, pelo apoio em todos os sentidos. Reforço ainda o
agradecimento ao meu pai, Mario Reinhardt, pelo amor e força incondicionais com que tem
abraçado os meus projetos ao longo desta jornada conjunta.
À Letícia, pelas leituras, conversas, delírios e pés no chão, mas, sobretudo, pela doçura e
carinho.
Às companheiras de morada e “exílio”: Beatriz, Carmela e Rosana.
Aos companheiros apenas de “exílio”, sem morada: Luana e Helder.
v
Aos amigos da querida Katacumba: Lívia, Carol, Gonzalo, Homero, Leonardo, Waldemir,
Luís, Carlos Alexandre, Cristina, Ana Julieta, Róder, Odilon, Paulo, Marcel, João Miguel,
Márcia, Júlio e Dona Iracilda.
Dentre estes, sublinho ainda o agradecimento aos amigos Leonardo, Luís e Marcel, pela
empatia mais intensa em torno dos debates da antropologia.
Às poucas amizades “extra-acadêmicas” de Brasília: Mari, Ada, Sarah e Paloma.
À Cristina Reis, pela amizade imprescindível.
À Carolina Junqueira, por Magritte e Flusser, alguns dentre tantos espelhos que passaram por
nossas conversações.
E já que aquilo que se escreve é tempo, não poderia deixar de agradecer a outros grandes
amigos de Belo Horizonte, alguns ainda lá, outros espalhados pelo Brasil e pelo mundo:
Gustavo, Rafael, Silvia, Murillo, Marina, Ana, Alain, David, Helena, Luís, Gérson e Daniel
Alves.
Ao CNPQ, pelo suporte financeiro.
À Rosa e à Adriana, pelo apoio administrativo sempre eficiente e gentil.
vi
RESUMO:
Ao longo das últimas duas décadas, um importante fenômeno de conflito tem alterado
profundamente a paisagem religiosa brasileira, de modo a colocar em questão um dos
principais alicerces sobre o qual tem se assentado historicamente as suas narrativas mais
oficiais, o sincretismo religioso. Em sua recorrência no tempo e em sua disseminação pelo
território nacional, as tensões entre denominações evangélicas “neopentecostais” e o cultos
afro-brasileiros acabaram sendo batizadas, pela opinião pública e pelos especialistas, como a
“guerra santa”. O objetivo central desta dissertação é abordar a “guerra santa” a partir de uma
atualização particular, em Salvador, e sob uma perspectiva “nativa”, ou seja, através da
construção textual de uma “exegese recíproca”, preocupada em reconstituir as auto e as alter
caracterizações produzidas pelas partes que nela guerreiam. Resulta desta proposta um
empreendimento textual dividido em duas partes espelhadas. Em um primeiro momento,
recupero o discurso neopentecostal sobre o “demônio afro-brasileiro” e as suas implicações,
para então, em um segundo momento, resgatar as diferentes formas do candomblé local
receber e especular sobre a presença ruidosa e violenta do inimigo evangélico. Ambos os
discursos podem ser pensados como estratégias utilizadas pelos grupos religiosos vinculados
pelo conflito (pensando enquanto troca e guerra) para lidar com questões concernentes às suas
próprias gramáticas, fazendo do inimigo um dado interno a elas. Como conclusão, coloco tais
estratégias de captura textual do outro sobre o contaste fotográfico do problema antropológico
clássico do “individualismo”, tendo em vista captar de modo mais explícito os movimentos
identitários dinamizados em ambos os grupos por esta nova economia da alteridade em que se
vêem jogados. Por fim, e pensada sob esta ótica, a “guerra santa” passa a mostrar-se como
uma verdadeira “guerra de espelhos”.
vii
ABSTRACT:
For the last two decades, an important phenomenon of conflict has altered deeply the
Brazilian religious scenario, questioning one of the main aspects of its official narratives,
religious syncretism. In its recurrence in time and in its dissemination throughout the national
territory, tensions between the “neopentecostal” evangelical denominations and afro-Brazilian
cults ended up being called, by public opinion and the specialists, a “holy war”. The purpose
of this thesis is to approach the “holy war” in a particular context, in the city of Salvador, and
through a “native” perspective, i.e., through the textual construction of a “reciprocal
exegesis”, concerned with the reconstitution of self and alter characterizations produced by
both parts fighting this war. The outcome of this proposal is a text divided into two mirrored
halves. In the first part, I describe the neopentecostal discourse about the afro-Brazilian devil
and its implications, while in a second part I reconstruct the different ways that local
Candomblé receives and speculates about the noisy and violent presence of its new enemy.
Both discourses might be thought as strategies used by the religious groups articulated by the
conflict to deal with questions concerning its own grammars, turning the enemy into data
internal to them. As a conclusion, I place those strategies of capturing the other above the
photographic contrast of individualism, aiming to observe clearly the identitary movements
put at work in either group by the new economy of otherness that they have lived in the last
years. Thought out through this optic, the “holy war” then shows itself as a “war of mirrors”.
viii
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO
Jogos de espelhos: interpretando como a “guerra santa” interpreta................................ 1
I. Quem guerreia? : a “guerra santa” como jogo....................................................... 6
II. Transferindo ausências: linguagem, discurso, religião e política......................... 10
III. Textualizando as pontes e os saltos gramaticais: “guerra”-“troca” / “metafórico”-
“metonímico”............................................................................................................. 16
PARTE 1
A batalha espiritual e o demônio afro-brasileiro: um mal libertador.............................. 21
Capítulo 1
Frente de libertação: performance ritual e economia da pessoa na “Sessão do
Descarrego”........................................................................................................................... 26
I. A Sessão do Descarrego enquanto sintagma: o espiral das trocas........................ 30
a) Antes do culto............................................................................................................. 32
b) Início do culto............................................................................................................. 32
c) Presentificação do Espírito Santo............................................................................... 33
d) Oferta.......................................................................................................................... 34
e) Início da cura espiritual............................................................................................... 36
f) O “Santuário do Descarrego”...................................................................................... 36
g) Manifestação............................................................................................................... 37
h) Interrogatório e tortura do demônio............................................................................ 38
i) Testemunho................................................................................................................ 39
j) Pregação...................................................................................................................... 40
k) Dízimo e fim do culto................................................................................................. 41
l) Síntese parcial............................................................................................................. 42
II. A Sessão do Descarrego enquanto paradigma: a troca e a guerra com o
“terceiro”.................................................................................................................... 45
Capítulo 2
Frente de ocupação: a disputa pelo cotidiano como “território inimigo”...................... 55
I. “Guerra de informação”: a produção confessional do inimigo e a disseminação
rumorosa do risco....................................................................................................... 58
a) Os conflitos amorosos e os riscos da intimidade......................................................... 61
b) Inimigo indigesto......................................................................................................... 63
c) A força dos “trabalhos”: das vítimas aos mediadores pela voz do feiticeiro.............. 64
II. Marchando sobre as trincheiras inimigas: agressões e invasões de terreiro como atos
religiosos..................................................................................................................... 71
a) O embate corpo a corpo.............................................................................................. 75
b) Os ataques e as invasões aos terreiros......................................................................... 76
ix
III. Luta e ocupação no território mágico da representação............................................. 84
a) Panfletando o pavor..................................................................................................... 86
b) O Dique do Tororó: “parque natural”, “lagoa de Oxum” ou “celeiro de encostos”?.. 90
c) “Acará”, “Acarajé” ou “Bolinho de Jesus”?............................................................... 96
[Sobre Deuses-espelhos: “Mirror”, de Silvia Plath]......................................................... 106
PARTE 2
Hospedando o inimigo: a “batalha espiritual” e as velhas e novas configurações do
candomblé baiano................................................................................................................ 107
Capítulo 3
Especulações mágico-religiosas: trânsito religioso e transferência de si........................ 111
I. Trânsito perigoso........................................................................................................ 118
II. O transbordamento do axé: doação e controle mágico de si...................................... 125
III. Um Exu evangélico?.................................................................................................. 134
Capítulo 4
Especulações políticas: rompendo o campo do outro....................................................... 142
I. O “Movimento Contra a Intolerância Religiosa”: do trágico ao utópico na presença
do inimigo................................................................................................................. 148
a) “O inimigo que faltava”............................................................................................. 150
b) Morte trágica/ Morte utópica: o caso de Mãe Gilda.................................................. 160
c) Fragmentos de um discurso utópico........................................................................... 164
II. Candomblé e Estado: da repressão e das políticas de aliança às “políticas do
reconhecimento”....................................................................................................... 169
a) A “política dos antigos”: personalismo e mistificação da ordem oficial................... 170
b) Das alianças ao “reconhecimento”............................................................................. 175
c) Esboçando o telos do reconhecimento....................................................................... 182
d) Novas políticas, nova tradição................................................................................... 190
CONCLUSÃO
“Deuses de quatro cantos”: ficções eficazes espalhando espelhos pelo chão do
individualismo...................................................................................................................... 197
I. A Igreja Universal e a ubiqüidade do mal: construindo um cristianismo de/em
risco........................................................................................................................... 205
II. O candomblé e o controle ét(n)ico de si ............................................................. 212
III. A não in-diferença mútua e as duas vias do englobamento................................. 220
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................. 226
x
O olho cheio sobe no ar, o globo dágua arrebentando, Narciso contempla narciso, no olho
mesmo da água. Perdido em si, só para aí se dirige. Reflete e fica a vastidão, vidro de pé
perante vidro, espelho ante espelho, nada a nada, ninguém olhando-se a vácuo. Pensamento
é espelho diante do deserto de vidro da Extensão. Esta lente me veda vendo, me vela, me
desvenda, me venda, me revela. Ver é uma fábula, - é para não ver que estou vendo.
Paulo Leminski - “Catatau”.
Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se devem deixar
abertos talões de cheque ou cartas que confessam algum crime horroroso.
Virginia Wolf - “A dama do espelho: reflexo e reflexão”.
INTRODUÇÃO:
Jogos de espelhos: interpretando como a “guerra santa
interpreta
René Magritte La reproduction interdite (Portrait d’Edward James) 1937 Óleo sobre tela, 79 x 65,5
cm – Roterdam, Museum Boymans-van Beuningen
2
Quatorze de agosto de mil novecentos e oitenta e nove, centro de Salvador. Uma
passeata evangélica desce a Avenida Sete, saindo do Campo Grande e caminhando rumo à
Praça Castro Alves. Cerca de 500 pessoas carregam faixas e cartazes, guiadas por um grande
carro de som, que serve de suporte para um grito de revolta que, àquela ocasião, ainda soava
excêntrico e isolado, mas que demonstraria, no correr dos anos, uma grande capacidade de
convencimento e de mobilização dentre a população da cidade. Em um dos cartazes lê-se a
inscrição: “Triste... crianças servem de sacrifício na macumba! Queremos justiça”.
O tom apelativo da manifestação continua. Logo atrás, um conjunto de crianças se
destaca, carregando uma faixa com um inusitado pedido em letras garrafais: “DEIXEM-NOS
VIVER!”. A súplica é precedida por um grupo de pastores, que, fazendo fundo às crianças,
portam outros cartazes, esses mais “técnicos”, visando demonstrar estatisticamente como os
cultos afro-brasileiros contribuiriam para as altas taxas de mortalidade infantil do país.
O argumento central, que permeia toda a manifestação, é o de que o candomblé e a
umbanda seriam cultos satânicos que, através de práticas sacrificiais cruéis, visariam agradar
entidades espirituais maléficas com o objetivo de alcançar determinados favores materiais e
espirituais. Esse seria um engano mortal, já que a única fonte saudável e legítima de poder
sobrenatural seria o Deus cristão, e a única forma de salvar essas pessoas das terríveis
conseqüências dos seus erros (assim como de salvar as crianças de uma morte violenta) seria
aproximá-las da “palavra de Deus” através do poder interventor do Espírito Santo
1
.
O espetáculo acima descrito, prenhe de aspectos trágicos e cômicos, pode ser
considerado a primeira de uma série de manifestações públicas organizadas pelo segmento
evangélico baiano, eminentemente pelas denominações autodenominadas “neopentecostais”,
contra os cultos afro-brasileiros. Em sua recorrência no tempo e em sua crescente divulgação
na opinião pública, esses eventos sinalizavam a processual instalação, justamente na “Cidade
dos Orixás”, dos ataques que, àquela época, já eclodiam em vários cantos do Brasil, e que
continuariam até os dias de hoje, vindo a receber, por parte da imprensa e dos especialistas, a
1 Descrição baseada na reportagem “Evangélicos protestam atrás do Trio”, do Jornal da Bahia de 15/08/89.
3
designação de “guerra religiosa”, ou ainda de “guerra santa”
2
(Soares 1990; Soares 1994; Oro
1997).
De fato, o belicismo dessas atitudes tende a se acirrar, e o que antes eram apenas
manifestações e acusações públicas logo se tornam, com o aquecimento das tensões, atos de
violência explícita. É o que se observa entre o final da década de 90 e a primeira metade da
década atual em Salvador, quando foram registradas pelas autoridades policiais e pela
imprensa local uma série de agressões físicas e morais realizadas por evangélicos aos
praticantes de cultos afro-brasileiros, que frequentemente resultaram em revide e briga.
Juntam-se a essas agressões pontuais, formas mais concatenadas de ação coletiva, como as
contínuas invasões dos espaços de culto dessas religiões, os “terreiros”, com a finalidade de
quebrar objetos litúrgicos e “tirar o diabo” das pessoas, lugares e coisas através do exorcismo,
sempre acompanhado por muito sal grosso e enxofre.
A cabeça da manifestação de 1989 é reconhecidamente a Igreja Universal do Reino de
Deus, que chegara à cidade havia pouco tempo e que já lotava estádios em seus cultos de
libertação, onde enfermos eram curados e demônios exorcizados a granel. Adentrando o
campo religioso baiano de forma radicalmente inovadora, com a abundância de criações
doutrinárias e litúrgicas que a caracterizam, a IURD passa a ser - intencionalmente ou não - a
representante de um grupo de insatisfeitos com a Bahia dos “feitiços e mistérios”.
Quando classifico essa capacidade representativa como não necessariamente
intencional, refiro-me às particularidades desta igreja, que se distinguiria dos grupos
evangélicos mais tradicionais, como tentarei demonstrar, principalmente pela sua ênfase na
“libertação” ritual em detrimento da perene “salvação”, administrada através do controle ético
de si. Tal diferença, a princípio fundamental, não impede que a IURD se estabilize, graças ao
seu proselitismo mais ativo e à sua presença pública mais ostensiva, como a inspiradora de
um movimento que teria em vista reformular o universo simbólico e valorativo sobre o qual
tem se assentado a identidade coletiva da cidade de Salvador, até então marcadamente
católico e, sobretudo, afro-brasileiro.
Durante uma conversa sobre um dos pilares desta identidade coletiva, o Carnaval, um
pastor da Assembléia de Deus uma vez me declarou:
2 De acordo com Giumbelli: “A expressão ‘guerra santa’ surgira nos jornais já no final da década de 90 para
fazer referência aos ataques de certas igrejas protestantes desferidos contra os cultos espíritas e afro-brasileiros”
(2003: 172).
4
Nós temos hoje um testemunho numeroso de pessoas que eram do candomblé e hoje são
evangélicas. Eu poderia lhe dizer que na Bahia pelo menos uns 20% dos evangélicos já foram
candomblecistas. Outros foram católicos. Os evangélicos foram cooptando pessoas... Nós
éramos aqui, há 50 anos atrás, menos de 2% da população, hoje nós somos mais de 15%, houve
uma cooptação numerosa. E de onde foi que vieram essas pessoas? Do catolicismo, do
candomblé, do espiritismo. Grande parte disso foi por causa da IURD. Eles nunca se
encaixaram muito bem no que a gente concebe como evangélico, sabe? Mas a gente viu que ela
podia contribuir. A idéia às vezes é partir da IURD, mas depois tentar adequar essas pessoas aos
compromissos que guiam uma vida propriamente “evangélica”, sabe? Mudar as práticas. Parar
de beber, parar de fumar, parar de exercitar a poligamia e outras coisas desse tipo. É claro que
se a maior parte da população se converter ao evangelho, o carnaval vai sentir, sem pensar duas
vezes né? Isso não quer dizer que o povo vai deixar de fazer festa, mas não terá o tom do
carnaval, aquele tom... O carnaval é uma festa relativamente violenta, muito regada a
sensualidade, e essas coisas dentre os evangélicos elas são desestimuladas. Poderíamos ter uma
festa na época do carnaval, mas uma festa com características diferentes.
A fala evidencia a força tão instável quanto inevitável com que a presença da IURD se
insere no universo das denominações evangélicas de Salvador, colocando em disputa o
próprio sentido da categoria. Nela, a Universal é referida como um meio, não tão evangélico
assim, para uma futura e derradeira disseminação deste ethos anti-carnavalesco dentre a
população da cidade. A sua necessidade é evidente, assim como a sua incompatibilidade com
o resto da cena religiosa em que se insere.
Grande parte desta incompatibilidade pode ser devida aos próprios vínculos que
articulam a IURD aos cultos afro-brasileiros, sempre dotados de forte teor crítico, mas
também de franca apropriação. Essa posição ambígua, que, como quase toda ambigüidade,
dificilmente gera consenso, acaba por se impor graças à sua eficácia na tarefa de atrair fiéis de
outras religiões, fundamentalmente por apoiar-se numa textualidade construída em constante
diálogo com a totalidade conceitual definida por Sanchis (2001) como “a religião dos
brasileiros”, especialmente no que tange um dos seus mais importantes traços: o
“espiritualismo” (26), uma concepção trágica de pessoa, onde o átomo individualista aparece
sempre ameaçado ou mesmo habitado por forças ou entidades que o superam e com quem ele
tece alianças.
Desse modo, a IURD parece atrair a “novidade” do avanço do evangelismo no Brasil
para um acordo com a sua tradição. Diante destas condições incontornáveis, as opções para as
outras denominações evangélicas passam a ser: ou opor-se ao seu campo de influências, ou
mimetizá-lo plenamente, ou ainda negociar contextualmente com os termos por ele impostos,
como pormenoriza o pastor logo acima, estratégias que veremos serem exemplificadas ao
longo desta dissertação.
5
Se a ancoragem da Universal em solo baiano implicou na desestruturação e na
conseqüente reorganização semântica e política do universo “evangélico”, isso não se torna
menos evidente caso atentemos para o universo das religiões afro-brasileiras, os “inimigos”
em questão. Uma informante do candomblé narrou a perplexidade com que recebeu o
desenrolar da ofensiva neopentecostal:
Começaram aqueles programas de televisão deles, falando que a gente fazia acordo com o
diabo, que fazia trabalho pra matar gente e eu achava até engraçado. Quando começaram as
invasões, eu olhava aquilo nos jornais e me assustava, parecia que a história estava andando ao
contrário pra gente, parecia que aquela época de perseguição, que os antigos falavam, estava
voltando. Mas quando eu fiquei sabendo que eles usavam banho de erva, descarrego e tudo
mais, aí é que eu me assustei mesmo! O que era aquilo! O candomblé ficou um pouco sem chão
mesmo depois que eles [a IURD] chegaram aqui, sabe.
Percebe-se que o fator desestabilizador destacado pela fala não é a simples demonização
do candomblé, informação que não ofereceria nenhuma novidade para uma comunidade de
culto já acostumada com as interpretações que, historicamente, têm associado as suas práticas
ao mal. O que de fato “tira o chão” do candomblé de Salvador, segundo a informante, são
duas mudanças que acompanham essa nova versão de um velho problema. Primeiramente, a
radicalidade e a organização com que essa captura textual das religiões de matriz africana é
realizada, uma perseguição insistente e racionalizada, diferente dos preconceitos cotidianos e
pontuais, já que guiada por uma ação visivelmente estratégica, assim como fora a repressão
policial na “época dos antigos”. Outro importante deslocamento é a inserção, nessa mesma
estratégia, de uma lógica de estímulos contraditórios, uma espécie de double-bind (Bateson
1958) entre distanciamento demonizador e aproximação e mesmo expropriação ritual e
cosmológica.
Nesses termos, o surgimento da IURD e a estabilização do seu estilo ambíguo e
agonístico de inserção pública representaram a chegada de uma oposição incomum para o
candomblé de Salvador, já que dotada de inédita intimidade com o seu domínio particular de
ação e pensamento. No entanto, e apesar do estranhamento inicial, veremos como a guerra é
lentamente aceita por setores do “povo de santo”, passando a ser utilizada como uma via para
a re-configuração política da sua comunidade. Visualizados sob esta ótica, os ataques
evangélicos acabam servindo de suporte para a conformação de um amplo e intenso debate
público acerca da “intolerância religiosa” na cidade, expressão que passa a fazer parte do seu
vocabulário cotidiano. Obrigado a habitar o interior do campo inimigo desde a sua origem,
6
produzindo com ele alianças, analogias e fusões, o candomblé vê no debate sobre a nova face
dos seus algozes a chance de moldar uma nova face para si mesmo.
I- Quem guerreia? : a “guerra santa” como jogo
Na rápida introdução logo acima, tendo o objetivo de apresentar os principais atores que
comporão a guerra que se desenrolará ao longo das páginas seguintes, acabei revelando que os
efeitos da presença da IURD em Salvados não foram, sob vários aspectos, exatamente
“destruidores”, mas, acima de tudo, “desestruturadores”, no sentido de suscitarem, tanto no
campo evangélico quanto no das religiões afro-brasileiras, releituras, revisões e reformas. Tal
situação tenderia a transformar a “guerra santa” em uma espécie de jogo de espelhos, cuja
ação colocaria em disputa a própria reflexividade dos atores em questão, ou a sua “ipseidade”,
nos termos de Ricoeur (1987), fazendo com que eles saiam do seu âmbito de tensões de modo
diferente do que nele adentram
3
.
Ao assumir o fato dos guerreiros não se situarem como uma presença prévia ao
acontecimento da guerra, ou seja, como elementos “dados” que estruturariam a realização das
suas disputas, minha intenção é destacar que o questionamento acerca de quem nela guerreia -
a princípio “externo”, metalingüístico, científico - configura-se no motivo da guerra mesma.
“Quem guerreia?” será, portanto, a pergunta antropológica desta investigação, mas também a
pergunta nativa, da própria guerra, aquela que administra o seu desenrolar, o chão consensual
mínimo para o salto do dissenso, a pergunta-guerra. É ela que circulará entre os personagens
desta dissertação, incluindo o seu autor, propiciando assim encontros não somente entre as
“auto” e as “alter” caracterizações produzidas pelos dois grupos religiosos em questão, mas
ainda o contato entre essas múltiplas “teorias nativas” e a teoria antropológica, em sua
tentativa tenaz de produzir com elas algum vínculo de reciprocidade
4
.
3 A “ipseidade” é defendida por Ricoeur em detrimento do conceito de “identidade”, no que tange à
reflexividade individual. Segundo ele, a ipseidade englobaria a identidade, de modo a inserir, como um dado
interno à sua constituição, a instância da alteridade. Nesses termos, a alteridade (diferença em relação a si
mesmo) seria intimamente associada à identidade (semelhança em relação a si mesmo), constituindo com ela
uma simultaneidade tencionada denominada “ipseidade”, o ápice do desenvolvimento subjetivo e moral do
indivíduo: “Há traços do outro desde o início, mas é apenas ao curso do nosso desenvolvimento que esse ‘outro’
[empírico] se torna ‘outrem’ [‘um outro’, uma categoria], na medida em que o indivíduo se torna um ipse”
(1987: 56).
4 Pude fazer um debate epistemológico mais detalhado sobre o estatuto da representação no trabalho de campo e
na escrita etnográfica em Reinhardt e Perez (2004). Por outro lado, desenvolvo melhor a proposta de se utilizar a
7
Assim, se há estratégias e cálculo na captura interpretativa do outro, há também riscos e
efeitos inesperados. Se há conflito e afastamento comunicativo, veremos que há também
trocas e entrelaçamentos inesperados. É essa diversidade de vínculos e circuitos que tentarei
descrever etnograficamente, interpretando a sua variedade fenomênica (ela mesma
interpretativa) como rastros deixados pelo trabalho insistente e silencioso, mas nunca
“subjacente”, de duas instâncias da realidade social, a alteridade e o discurso, ambas
agregadas em um mesmo campo de batalhas, e lá vividas enquanto “jogo”.
Ao longo de Verdade e Método, obra em que volta os seus esforços para a busca de uma
alternativa epistemológica tanto para o modelo cientificista do “método” quanto para o
modelo historicista e psicologizante da “empatia”, o filósofo hermeneuta Hans Georg-
Gadamer lança o seu olhar sobre o campo de fenômenos da arte. Contornando o subjetivismo
inerente à noção kantiana hegemônica de “gosto”, Gadamer lança a pergunta: “Será que não
deve haver nenhum conhecimento na arte? Não há também na experiência da arte uma
pretensão de verdade, diversa daquela das ciências, mas certamente não inferior?” (Gadamer
1997: 149). Algumas páginas adiante, na trilha da resposta, e tendo rejeitado as posições que
situam a verdade da arte exclusivamente na “consciência estética” ou na experiência da
recepção, Gadamer afirma: “A obra de arte é jogo” (179).
Antes de chegar a tal reposta, no entanto, o filósofo mergulha analiticamente na temática
do jogo, de modo a captar, através de um vai-e-vem reflexivo à empiria real-fictícia do “faz
de conta” infantil, dos jogos de tabuleiro e de bola e mesmo dos ritos religiosos, definidos por
ele como “jogos sagrados”, alguns elementos fundamentais que caracterizariam a verdade do
jogo. Deste longo e complexo debate, gostaria de reter dois aspectos que foram bastante úteis
para a conformação da perspectiva a partir da qual interpretei e textualizei a “guerra santa”
entre os evangélicos e os cultos afro-brasileiros em Salvador: i) a relação entre jogo e
subjetividade ou, no caso de coletivos, “identidade”, presente na discussão acerca do modo
com que o jogo engendra os jogadores; e ii) a natureza particular da verdade do jogo, cujo
acontecimento estaria vinculado a um modelo de mediação distinto da noção convencional de
“representação”.
O primeiro desses aspectos pode ser acessado pela seguinte questão: Em que consiste a
alienação de si que se presentifica no jogo, e que o instaura enquanto presença? Para que
noção maussiana de “reciprocidade” para a análise da relação teoria antropológica/teoria nativa em Reinhardt
(2006).
8
aconteça um jogo, não adianta a simples organização das suas condições materiais. Ele
demanda um acontecimento específico da subjetividade, e por isso é uma atividade, e não um
dado. Gadamer resume: “O jogo só cumpre a finalidade que lhe é própria quando aquele que
joga entra no jogo” (1997: 155). Em suma, o jogo acontece fora do espectro da consciência
jogadora, já que o jogar implicaria num descentramento da subjetividade na relação dela
consigo mesma. Sendo assim, somente a entrada do jogador no jogo, na situação simultânea
de agência doadora e de objeto penhorado, faz com que o último deixe de ser captado
enquanto “objeto” e passe a ser, como destacamos acima, o ponto de partida mesmo da
experiência. A partir de então, o verdadeiro sujeito do jogo passa a ser o jogo mesmo, fato que
Gadamer define como “o primado do jogo face à consciência do jogador” (158).
Tal característica torna-se ainda mais evidente quando atentamos para o fato de que,
para que haja jogo, não é imprescindível a existência de um outro humano. Quando um garoto
joga uma bola na parede e a recolhe, repetindo esse movimento de modo insistente, e
produzindo, na sua decorrência, pequenos desafios, vitórias e derrotas, não há outro, mas há
uma posição de alteridade, portanto, há jogo. O fundamental aqui é a abertura de um círculo
de troca, a entrada de um terceiro termo na relação reflexiva entre o eu e o self, instância
capaz de deslocar o equilíbrio da auto-referência do jogador. O jogo é feito, sobretudo, de
lances e contra-lances, que articulam de modo particular a liberdade de decisão, as restrições
impostas pelas regras (não há jogo sem lei, sem redundância) e o risco de implicar-se na troca.
Chega-se, assim, a uma espécie de fórmula postulada por Gadamer, que considero sintetizar
de forma magistral a profundidade da relação entre jogo e subjetividade (ou identidade):
“Todo jogar é um ser jogado” (160).
No entanto, se aquilo que se joga no jogo é sempre um “si mesmo” diante de outrem,
resta a pergunta: Aonde deve se assentar a representação do jogo, se não mais no sujeito
jogador, ele mesmo descentrado pela ação do jogo? A questão introduz o segundo aspecto que
gostaria de destacar, abordado por Gadamer em sua defesa do “sentido medial do jogo”, que
seria consumado no momento em que este tomaria a forma de “configuração” (165). Apesar
do jogo abarcar também o movimento designativo de se representar algo para alguém, pode-
se dizer que seu modo fundamental de ser estaria de fato no movimento performativo de
“representar-se”. A “auto-representação” seria, portanto, um modo de levar a representação ao
paroxismo, dissolvendo-se qualquer possibilidade de um ser-para-si, ou de uma “presença”
subjetiva a ser “re-apresentada” de forma inócua, intelectualista e não-transformadora no
9
acontecer do jogo
5
. Tal situação faz com que o jogo passe a repousar sobre si mesmo, ou seja,
passe a não estar mais “no lugar” de um outro nível de realidade, mas que seja inteiro e
imanente em seus circuitos, mesmo estando intimamente ligado ao movimento de apontar
para um “fora-jogo”. Essa seria a idéia central contida no projeto de se pensar o jogo enquanto
configuração:
Essa tese significa: a despeito de sua dependência do ser representado, trata-se de um todo
significativo, que como tal pode ser representado e entendido em seu sentido repetidas vezes.
Mas também a configuração é jogo porque, a despeito dessa unidade ideal somente alcança o
seu ser pleno a cada vez que é representada (173).
Percebe-se que o jogo seria composto por uma representação integrada ao seu objeto de
forma indissociável. Ser e representar passam, no acontecer do jogo, a não estarem mais
vinculados de forma lúdica, mimética ou arbitrária, mas necessariamente transformacional e
ostensiva, produzindo referência ao invés de designá-la. Essa seria a verdade do jogo, baseada
em um movimento diferente daquele que visaria alçar uma presença dada, e que teria na
mediação um palco para a sua “expressão”. Estaríamos lidando, antes de tudo, com um
fenômeno que seria fruto de uma situação de “mediação total” (177), capaz de levar à
ocorrência de uma “transformação no verdadeiro” (167).
Haveria, então, algo de inusitado no acontecimento da verdade no jogo, que entendo
poder ser estendido a uma série de âmbitos da interação social. Nele, e como em um passe de
mágica, a “presença”, que asseguraria e autorizaria a sua significação, tenderia a realizar-se
enquanto um a posteriori da sua própria re-apresentação, o seu ser constando como um a
posteriori adiado dos rastros que supostamente teria deixado
6
. Trata-se de uma inversão
desconcertante, como se insistissem em nos provar que a fumaça que é vista no horizonte
fosse anterior ao fogo cuja existência ela apontaria. Essa seria a mágica do jogo, que conteria
sempre algo de sagrado e miraculoso, mas também de político: “Na representação do jogo
surge o que é” (167).
5
A idéia de uma “auto-representação” é encontrada por Dilthey também na música, talvez a mais performativa
das linguagens. Segundo ele, por estar existencialmente associada à instância da execução, ou seja, à sua
realização no/enquanto tempo, “a música só representa a si mesma” (1976: 235).
6
A mesma concepção de uma significação que se dá enquanto um movimento de diferir e daiar pode ser
encontrada na obra de Derrida materializada pelo neologismo “différance”: “O grafema ‘différance’, então, é
uma estrutura e um movimento não mais concebidos na base da oposição presença/ausência. ‘Différance’ é o
jogo sistemático de diferenças, de traços de diferenças, de espaços (espaçamentos) por meio dos quais elementos
estão relacionados entre si. Este espaçamento é a produção simultaneamente ativa e passiva de intervalos (o ‘a
de ‘différance’ indica esta indecisão que concerne à atividade e à passividade, aquilo que não pode ser
governado por ou distribuído entre os termos desta oposição) sem os quais os termos integrais não significariam,
não funcionariam” (Derrida 1982: 27).
10
II- Transferindo ausências: linguagem, discurso, religião e política
O paralelismo entre a “guerra santa” e o jogo (que, como vimos, é sempre “jogo de
espelhos”) servirá, portanto, como uma saída para interpretá-la sem ter que resolvê-la em uma
estrutura identitária prévia à sua ocorrência. Assim como o jogo, a guerra entre evangélicos e
afro-brasileiros se preserva, enquanto fenômeno social, no desenrolar dos lances e contra-
lances que a constituem, a sua existência e a sua verdade se sustentando na rede de efeitos da
qual ela mesma seria a causa, mas que acaba, como no passe de mágica acima descrito, por
prescindir da sua existência enquanto presença original e auto-evidente
7
.
Portanto, se “Quem guerreia?” é a pergunta-guerra, fica claro que qualquer resposta
possível a ela deva passar pelo crivo do problema do discurso, e muitas vezes nele ficar presa.
Não por acaso, as principais armas de ataque, defesa e contra-ataque que encontrei em campo
foram palavras, assim como objetos, imagens e gestos, todos compartilhando a condição
específica de signos. Através do uso articulado desses suportes semióticos, pude ver serem
desenhados padrões hermenêuticos em ambos os grupos religiosos, tipos textuais implicados
em motivações para a ação e inserções públicas específicas.
Baseando-me na terminologia do lingüista Émile Benveniste (1966b: 130), assumirei
aqui que “discurso” seria aquilo que coloca em jogo o ponto de segurança de uma
“linguagem”, ou seu caráter de virtualidade, movimento uno que se realizaria através de três
deslocamentos simultâneos: i) a colocação desta linguagem no tempo; ii) a sua remissão a um
locutor e a um estado de coisas; e iii) a sua constituição enquanto uma relação de troca com
um interlocutor. Outra característica fundamental do discurso estaria no fato dele gerar, ao
longo deste movimento de circulação e designação, dois efeitos principais: o desejo e a
referência.
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem
revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de
7 A noção gadameriana de “jogo” pode ser uma saída interessante para a questão fundamental colocada por
Latour (2002). Em sua proposta de uma antropologia pós-social, imanentista e contrária à noção de “crença”,
assim como a todas as purificações nela implicadas, Latour lança a pergunta-chave: Como produzimos aquilo
que nos supera? Como ele mesmo afirma, destacando a necessidade de se levar a sério a fala nativa: “O ator
comum afirma, diretamente, aquilo que é a evidência mesmo, a saber, que ele é ligeiramente superado por aquilo
que construiu. ‘Somos manipulados por forças que nos superam’. Ele poderia dizer, cansado de ser sacudido de
todos os lados e de ser acusado de ingenuidade. ‘Pouco importa se as chamamos divindades, genes, neurônios,
economias, sociedades ou emoções. Nós nos enganamos talvez sobre a palavra que designaria tais forças, mas
não sobre o fato de que elas são mais importantes que nós’” (45).
11
espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo
que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é objeto do desejo; e visto que – isto a
história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou
os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar (Foucault 2000: 10).
Corroborando a fala de Michel Foucault, veremos, ao longo da análise dos eventos
comunicativos que constituem a “guerra santa”, a atualização do discurso enquanto meio e
fim, causa e efeito, das lutas que ela mobiliza. Veremos que o poder aplicado e disputado
nessas lutas é, antes de tudo, o poder de textualizar, de textualizar o outro, de textualizar-se
através do outro ou de livrar-se discursivamente da captura de si pelo outro, vindo, ao longo
desta fuga, a “encontrar-se” em estado de verdade. Coordenando esse entrelaçamento
discursivo, perceberemos a ação de duas categorias gramaticais fundamentais (linguagem),
sempre articuladas na forma de enunciados de acusação (discurso): “demoníaco” e
“intolerante”. Portanto, caso venha a ser abordada pela lógica acusatória que a guia
internamente, a “guerra santa” pode ser definida como a guerra entre o demoníaco e o
intolerante.
“Demoníaco” é o modo religioso com que o neopentecostalismo textualiza os cultos
afro-brasileiros, e é essa textualização que tentarei descrever de modo detalhado na primeira
parte da dissertação. Por sua vez, “intolerante” é o modo político com que parte do candomblé
de Salvador (a parte que aceita a guerra) textualiza e capitaliza a presença do inimigo, virando
os ataques ao seu favor, como tentarei descrever no último capítulo. Ambas serão tratadas
aqui como categorias nativas de alteridade, que tornam o inimigo intrínseco, ou seja, que
articulam o neopentecostalismo e setores do candomblé baiano em uma economia identitária
tencionada, mas interdependente: um “jogo de espelhos”. A partir desta ótica, que intenta
privilegiar a interpretação nativa, não interessa o debate meta-discursivo acerca da verdade ou
falsidade da natureza maléfica do candomblé (mais simples), assim como da natureza
intolerante do neopentecostalismo (mais complexo).
Percebe-se que a polaridade real/fictício, verdadeiro/falso, torna-se desnecessária
quando aquilo que está em jogo, por meio da representação, é a própria representação.
Prender-me neste debate seria algo tão frutífero quanto estudar o fenômeno religioso a partir
da questão: “Existe Deus?”. Existindo ou não, é evidente que Deus (entidade), ou mesmo
“Deus” (signo, posição numa estrutura textual) faz, e faz muito, sendo gerados, na sua
circulação discursiva, ou seja, na sua transferência, no adiamento da dúvida e na sua
12
presentificação pontual, efeitos bastante concretos, que servem como os rastros através dos
quais podemos acessar ou mesmo questionar a sua existência. Sob esse aspecto, a religião,
assim como a política, a outra esfera de intersecção da presente discussão, expõem claramente
o inevitável da sua natureza lingüística e comunicativa: ambos são modos de transferir
ausências.
Em um excelente artigo acerca da comunicação animal, Benveniste (1966c) questiona-
se sobre a existência de uma linguagem entre as abelhas. De fato, o complexo sistema de
comunicação desses insetos revela uma série de semelhanças com a linguagem humana:
Esses procedimentos colocam em marcha um simbolismo verdadeiramente rudimentar, pelos
quais os dados objetivos são transpostos em gestos formalizados, comportando elementos
variáveis e de “significação” constante. Por outro lado, a situação e a função são aquelas da
linguagem, no sentido que o sistema é válido no interior de uma comunidade dada e que cada
membro desta comunidade é apto a empregá-lo ou a compreendê-lo nos mesmos termos (60).
Baseado nos estudos do etólogo alemão Karl von Frisch, Benveniste descreve, ao longo
do texto, como, através de um complexo padrão de trajetórias de vôo, uma abelha consegue
transmitir para os outros membros da sua colméia a existência de alimento, informando
inclusive a direção e a distância em que ele se encontraria. No entanto, o lingüista destaca que
haveria uma limitação fundamental, que faria do sistema de comunicação das abelhas um
simples “código de sinais” (62) e não propriamente uma linguagem: nele não ocorreria a
transmissão de ausência: “A abelha não constrói uma mensagem a partir de uma mensagem”
(61). A frase indica que uma abelha poderia até perceber o alimento e comunicar esse fato a
uma outra que não o percebeu. No entanto, essa mesma abelha que não o percebeu seria
incapaz de transmitir a sua presença ausente para uma outra que, assim como ela, não teria
percebido esse mesmo objeto. Resulta desta incapacidade de transmitir ausência, ou seja, de
adiar a questão “verdadeiro ou falso?”, o fato de que, apesar desses insetos conseguirem
transferir informação, dados, eles seriam incapazes de produzir e circular “dados
lingüísticos”, o que impossibilitaria a introdução de entidades e agenciamentos de natureza
propriamente lingüística no seu universo de interação.
Confirmando essa mesma tese, Gilles Deleuze e Félix Guattari afirmam: “A linguagem
não se contenta em ir de um primeiro a um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu,
mas vai necessariamente de um segundo a um terceiro, não tendo, nenhum deles, visto”
(1995: 14). O movimento central aqui não seria comunicar o que se viu, mas transmitir o que
lhe foi comunicado, defendendo-se assim a existência de um vínculo originário entre a
13
linguagem e o discurso indireto: “Todo discurso é indireto, e a translação própria da
linguagem é o discurso indireto” (13). Nesses termos, a linguagem se sucederia em um
circuito diacrônico formado no mínimo por três pessoas: alguém que viu algo e alguém que
transmite esse algo sem vê-lo para outrem. Demonstra-se, por sua vez, a relação também
íntima entre a linguagem e uma outra modalidade de comunicação e produção de verdade
bastante presente nas informações que irei apresentar a seguir: o rumor. A origem da
linguagem não estaria no diálogo. A origem da linguagem é (a origem do) rumor.
Por sua vez, deixando de fundar a linguagem nas coisas, Deleuze e Guattari não
apontam a necessidade de fundá-la em outra instância, mas de fazer com que ela se torne
permeável a uma energia imanente e circulante de produção da “presença”: o poder
8
. Desse
modo, desvia-se o discurso da relação descritiva e cognitiva com a referência somente sob a
condição de que todo o seu campo semântico seja infiltrado a animado pelo poder. Essa
natureza inerentemente política do discurso é defendia pelos pensadores franceses através da
noção de “palavra de ordem”, associada, sobretudo, à reprodução por redundância: “Os
mandamentos do professor não são exteriores nem se acrescentam ao que ele nos ensina. Não
provêm de significações primeiras, não são a conseqüência de informações: a ordem se apóia
sempre, e desde o início, em ordens, por isso é redundância” (11).
Assim como o signo se apóia em outro signo, ou seja, assim como o discurso vai sempre
de um segundo para um terceiro e não de um primeiro para um segundo, constituindo-se em
comunicação antes de ser informação, a ordem apóia-se em outra ordem, antes de se
fundamentar numa autoridade “dada”, definida como a sua referência externa. “A unidade
elementar da linguagem - o enunciado - é a palavra de ordem” (12)
9
.
A partir desses termos, “religião” e “política” passam a designar recortes nativos feitos
sobre um corpo de condições lingüístico-discursivas fundamentais, deslocamento teórico que
implica na quebra com a equação semântica convencional que entende que “religião” é
produção de relação com uma presença sobre-natural, “política” é produção coletiva de
efeitos no mundo e “discurso” é enunciação de informação. Contrariando essa lógica
8 Na verdade, é o próprio movimento vertical de “fundar-se em” que tentarei evitar nesta dissertação, adotando-
se, como alternativa, o movimento horizontal de circulação e de transferência de ausência.
9 “Chamamos palavras de ordem não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no
imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja,
com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não
remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma
‘obrigação social’. Não existe enunciado que apresente esse vínculo, direta ou indiretamente” (Deleuze &
Guattari 1995: 16).
14
distintiva, lidarei com os fenômenos políticos e religiosos aqui em questão entendendo-os
como eventos discursivos, a idéia de “discurso” constando como a única categoria
exclusivamente meta-lingüística, ou seja, teórica, dentre as três, as duas outras sendo
entendidas pendularmente, ora como termos nativos e em disputa, ora como categorias
antropológicas.
Não por acaso, vimos que, do mesmo modo que a “religião”, o “discurso” também se
realiza enquanto comunicação do que não se viu, ou do que não se vê. Há sempre algo de
miraculoso na linguagem, como destaca Wittgenstein, ao criticar o separatismo mentalista
com que Frazer trata as informações vindas das “sociedades primitivas”. Referindo-se a um
dos conceitos centrais da filosofia moderna, a noção de “espírito”, “sprit”, “geist”, diz ele:
“(..) costuma-se dar pouca importância ao fato de termos em nosso vocabulário culto a
palavra ‘alma’, ‘espírito’. Comparado com isso, o fato de não acreditarmos que nossa alma
come e bebe é uma bagatela” (1979: 10e). Por outro lado, e agora destacando o caráter
fantasmagórico que rondaria todo e qualquer substantivo, Wittgenstein segue:
Nada é tão morto quanto ‘a morte’, nada é tão bonito quanto ‘a beleza’ ela mesma. Aqui, a
imagem que usamos ao pensar a realidade é que ‘morte’, ou ainda ‘beleza’ é uma substância
pura (concentrada), que é encontrada em objetos bonitos assim como um ingrediente é
adicionado a uma mistura (idem).
Vivemos em meio aos traços incompletos de uma série de presenças substantivas
ausentes, fantasmas produzidos a posteriori, que são disseminados e adiados de modo a
ocupar uma posição de a priori. Apropriando-me da noção de faitiche de Latour (2002), diria
que Wittgenstein pretende chamara a atenção dos seus leitores para o fato de vivemos em
meio a feitos que, em sua circulação comunicativa, apagam os seus rastros, e, assim,
estabelecem a si mesmos enquanto fatos. Submetidas a esse aspecto geral das práticas
discursivas, todas as grandes partilhas, como real/construído, ciência/mito, tenderiam a se
dissolver: “Toda uma mitologia está depositada em nossa linguagem” (Wittgenstein 1979:
10e).
Por outro lado, e agora colocado em paralelo com a noção convencional de “política”, o
discurso também estaria intimamente associado à produção de efeitos, tanto no mundo quanto
no outro ou nos outros que compõem a interlocução. De acordo com Michael Silverstein
(1997), a dimensão pragmática das trocas lingüísticas tenderia a ser recalcada pela concepção
hegemônica de linguagem no Ocidente, movida por uma espécie de falácia descritiva que,
15
enfatizando a sua dimensão simbólica e referencialista, instauraria uma dicotomia enganadora
entre comunicação e ação. A fala enuncia algo a alguém em determinado contexto ao mesmo
tempo em que reconfigura não somente os estados subjetivos dos sujeitos que através dela
trocam, mas também este mesmo contexto que, a princípio, a estruturaria “de fora”:
Juntamente com os atos de referência ou descrição, a fala consiste em atos concomitantes de
indexação, de produção das fronteiras da comunicação elas mesmas, sem descrevê-las
necessariamente num modo referencial: os papéis do falante, do ouvinte, da audiência, etc; os
atributos socialmente reconhecidos das pessoas; o tempo, lugar e ocasião da comunicação; as
finalidades do evento de fala ele mesmo; e muitos outros fatores (Silverstein 1997: 120).
Voltando a Deleuze e Guattari, pode-se dizer que este “fora” seria uma outra faceta do
“dentro” da troca lingüística, uma dimensão cujo adiamento ou exteriorização seria função de
um conjunto de variáveis pragmáticas que compõem a linguagem enquanto discurso:
“Existem variáveis de expressão que colocam a língua em relação com o fora, mas
precisamente porque elas são imanentes à língua” (1995: 21). Ao longo do primeiro capítulo,
introduzirei algumas dessas variáveis, que serão utilizadas ao longo de toda a dissertação: os
dêiticos, como os demonstrativos e os pronomes pessoais (Benveniste 1966a), a “força
ilocucionária” dos enunciados performativos (Austin 1975) e a distinção semiótica entre
“símbolo”, “ícone” e “índex” (Peirce 2000), todas elas envolvidas com o problema central de
como fazer coisas com palavras e signos em geral.
Por conseguinte, no decorrer da minha argumentação, assumirei não somente o fato de
que toda fala política contém em si algo de performativo. Indo um pouco além, tomarei como
pressuposto que toda fala, justamente por ser potencialmente performativa, contém em si uma
perene natureza política, que se encontraria de modo privilegiado em determinadas variáveis,
responsáveis por enraizar as ausências que a linguagem vincula no chão do “real”, fazendo-as
então frutificar. Portanto, e como alerta Jacques Derrida: “(...) se um texto se dá sempre uma
certa representação de suas próprias raízes, estas vivem apenas desta representação, isto é, de
nunca tocarem o solo. O que destrói sem dúvida a sua essência radical, mas não a
Necessidade de sua função enraizante” (1999:126, grifos do autor).
Finalmente, e como um último cruzamento possível entre as três categorias aqui em
questão, pode-se dizer que há sempre algo de “político” na própria “religião”, ambos
comungando da qualidade de entes discursivos, ou, retornando ao debate sobre a comunicação
animal, “dados lingüísticos”. Logo acima, quando cotejei “religião” e “discurso”, afirmei que,
assim como o discurso, a religião comunicaria aquilo que não se vê. Nesse ponto, devo
16
acrescentar que ela de fato comunica aquilo que não foi visto em causa, em origem, em
presença estática, podendo vir a comunicar aquilo que essa mesma ausência gera, ou seja,
aquilo se vê em efeito, em relação, em movimento ou em presentificação. Com esse
argumento, pretendo descolar a religião da noção metafórica de “crença”
10
, marcadamente
durkheimiana, inserindo no universo da agência religiosa a idéia metonímica de
“transformação em verdadeiro”, apresentada no debate acerca do jogo
11
.
Após o cotejamento crítico das noções convencionais de “discurso”, “religião” e
“política”, pude reuni-las sob a égide do mesmo movimento sintético e performativo de
transferência de ausências, o mesmo através do qual entendo que a “guerra santa” produz os
vestígios do seu acontecimento, traços posteriormente desmembrados, codificados e
capitalizados por seus agentes e assistentes a partir de estratégias de análise e
contextualização. A partir desta postulação, percebe-se que o campo de interesse do presente
estudo tende a ultrapassar o âmbito da “antropologia da religião”, vindo a focar o problema
mais geral de como as ficções da alteridade (ou do desencontro entre a reflexividade, como os
coletivos se pensam, e a alteridade, como os outros os pensam) são eficazes, produzindo
interdependência e mobilidade identitária. Se, como destaquei no título desta introdução, a
guerra santa mesma “interpreta”, constituindo-se em um amplo “conflito de interpretações”,
tal situação de modo algum significa que as suas batalhas, as batalhas entre o demoníaco e o
intolerante, sejam inócuas, ou “imaginárias”, mas, sobretudo, que esta guerra perde-se em si
mesma ao interpretar os efeitos que ela mesma gera.
III- Textualizando as pontes e os saltos gramaticais: guerra-troca/ metafórico-
metonímico
Ao longo da seção anterior, pude manifestar teoricamente a atenção especial que tentarei
dar ao caráter performativo dos “dados lingüísticos”, informação central para a minha
pretensão de abordar os conflitos entre os dois grupos religiosos sob uma ótica discursiva.
10 Como bem destaca Jean Pouillon, em sua análise do “eu acredito” (“je crois”), esse enunciado seria um índex
verbal de distanciamento crítico, e não de adesão: “... fazer a existência de Deus um objeto de crença, declarar tal
crença, é abrir a possibilidade da dúvida. Então, poder-se-ia dizer que somente um descrente (unbeliever) pode
acreditar que o crente (believer) acredita na existência de Deus” (1982: 2). Para o crente (não podemos escapar
desta linguagem), Deus não é uma crença (um valor), mas um fato, que deve ser percebido em sua obviedade, ou
seja, nos efeitos que a sua existência produz.
11 Corroborando essa faceta performática do discurso religioso afirma Latour: “(...) a religião não fala a respeito
de ou sobre coisas (...), mas de dentro de ou a partir de coisas, entidades, agências, situações, substâncias,
relações, experiências.” (Latour 2002: 35).
17
Cabe a mim agora, e como o último dos aspectos introdutórios, apresentar de forma sintética
as categorias que utilizarei de modo a textualizar as ligações e o entrelaçamento discursivo
produzidos pelas gramáticas desses dois grupos, categorias que serão mais bem esclarecidas
no próprio decorrer das análises. Para isso, farei rápida referência ao modo com que me
apropriei aqui das oposições entre guerra e troca e entre metafórico e metonímico.
A idéia de ler a “guerra santa” como uma guerra de espelhos está diretamente associada
à suposição de uma guerra-troca, ou seja, de um fenômeno social onde o conflito associa-se
internamente a um movimento de identificação. Antes de constituírem entre si um vínculo
dicotômico, veremos que os grupos aqui em conflito acabam por se associar através de uma
relação de oposição, permeada por vínculos que estabelecem diferenças ao mesmo tempo em
que as articulam numa totalidade interdependente.
Um excelente exemplo etnográfico desse tipo de fenômeno é fornecido por Marcel
Mauss (2003b) em suas análises do potlach, instituição dos índios do noroeste da América do
Norte. Ao longo do potlach, a relação entre tribos rivais é renovada e dramatizada através da
disputa pela destruição de bens, atos definidos por Mauss como “prestações totais de tipo
agonístico” (192). Neste caso, o valor circulante não é mais a generosidade ritualizada,
observada pelo mesmo Mauss no kula melanésio, mas o desprendimento improdutivo e
mesmo violento de determinados objetos-signos em grandes fogueiras. Esses eventos de
destruição mostram-se fortemente paradoxais, já que ao se desfazerem dos signos em torno
dos quais ocorre a batalha, os indígenas desprezam o ato mesmo de vincular-se, atitude que
colocaria as partes que rivalizam no potlach numa relação ambígua, pois fundada na própria
negação da relação.
Através da manifestação empírica do potlach, Mauss destaca, portanto, a articulação
estreita que existiria entre a dádiva e o sacrifício, funcionando como suporte para uma crítica
à dicotomia excessiva que coordenaria as noções de troca e de guerra no Ocidente. O potlach,
e aqui entendo estar o ponto de coincidência entre ele e os fenômenos tematizados por esta
dissertação, é uma instituição que supõe a possibilidade de um conflito vinculante
12
.
12 Essa mesma crítica à dicotomia troca/guerra, aliança/conflito, que se dá como uma constante no pensamento
ocidental (de Clausewitz a Lévi-Strauss e além), é continuada e aprofundada etnograficamente por Pierre
Clastres (2004). Em seus estudos sobre as sociedades ameríndias, Clastres encontra povos que, em seu desejo de
dispersão, tomariam a fragmentação social resultante das guerras como uma positividade, vindo a instaurá-las
como um elemento fundante da sua organização social e não como uma ameaça à integração social.
18
No entanto, se “troca” e “guerra” aparecem agora como dois modos de se designar
vínculos, e não mais como indicadores de uma possível dicotomia entre o vínculo e a sua
ausência, as noções de “metáfora” e “metonímia” me servirão como modos de designar a
atualização discursiva desses mesmos vínculos de identificação e conflito. Através delas,
pude textualizar os intervalos estabelecidos entre a gramática neopentecostal e a do
candomblé, me aproveitando da sua natureza de signos de relação, ou seja, signos de signo
(um outro nome para “relação”), para a construção de uma metalinguagem teórica capaz de
captar discursivamente os eventos discursivos que compõem a “guerra santa”.
Os debates acerca da metáfora e da metonímia, termos que hoje fazem parte do senso
comum da antropologia, remetem a Ferdinand de Saussure (1972), e incidem sobre a sua
distinção analítica entre os dois modos básicos com os quais coordenamos signos: a seleção e
a combinação. Articulados, esses modos corresponderiam, sucessivamente, aos dois eixos que
compõem a atividade discursiva: o eixo paradigmático, uma virtualidade dentro da qual
seriam selecionadas as unidades das cadeias enunciativas, e o eixo sintagmático, a
organização serial resultante da combinatória concreta e temporal dessas unidades antes
selecionadas
13
. Nesse sentido, enquanto o primeiro eixo funcionaria a partir da produção de
vínculos de analogia, o segundo operaria através da produção de vínculos de contigüidade.
Foi justamente a articulação entre metáfora e analogia, metonímia e contigüidade, bastante
útil aos seus estudos sobre a afasia, que fez com que Roman Jakobson (1987a) realizasse
aquilo que Paul Ricoeur classificou como um “golpe de gênio”: o resgate dessas “figuras de
linguagem” do campo de debates estéril da poética e a sua conseqüente elevação ao status de
operações fundamentais da significação. “O metafórico e o metonímico, não contentes em
qualificar as figuras e os tropos, qualificam doravante os processo gerais da linguagem
(Ricoeur 2000: 269).
Na trilha da tipologia das magias de Frazer (1993), e avançando no insight de Jakobson,
Lévi-Strauss parece desenvolver de modo mais refinado o paralelismo entre metáfora e
metonímia e alguns tipos de fenômenos sociais-discursivos. Em Totemismo Hoje, uma
tentativa de desconstrução crítica do campo semântico denominado “totemismo” pela
antropologia de até então, Lévi-Strauss defende, corroborando Jakobson, que “a metáfora não
é um tardio embelezamento da linguagem, mas um de seus modos fundamentais” (1976: 182).
Desse modo, o antropólogo parece não encontrar traços empíricos em comum que
13 Associado, para Saussure, à suposição do caráter linear do significante.
19
sustentariam adequadamente a unidade do fenômeno totêmico, remetendo-o, por outro lado, a
uma espécie de constância gramatical, que apontaria naqueles costumes fragmentários o
trabalho insistente da metáfora enquanto uma “forma primeira do pensamento discursivo”
(182).
A compreensão do totemismo como um fenômeno metafórico seria uma condição
epistemológica para o seu regate do universo de estudos da “antropologia religiosa”, tido
como redutor para Lévi-Strauss. Através desse deslocamento, que teria a finalidade de
enquadrá-lo como “qualquer outro sistema conceitual” (1976: 184), o estudo do totemismo
evitaria o particularismo da equação durkheimiana entre “sagrado” e “extraordinário”,
passando a ser abordado como um meio empírico cuja função seria “dar acesso aos
mecanismos do pensamento” (idem). Essa mesma postura rotinizadora é aprofundada em O
Pensamento Selvagem, onde a análise comparativa do totemismo tem como a sua contraparte,
o seu simétrico inverso, a ciência, e não o cristianismo. Assim como a ciência moderna, o
totemismo seria um modo gramatical dos povos ditos primitivos lidarem com o problema da
relação natureza/cultura, e não necessariamente corresponderia ao que percebemos como uma
“religião”: “O totemismo repousa em uma homologia postulada entre duas séries paralelas – a
das espécies naturais e as dos grupos sociais – das quais, não o esqueçamos, os termos
respectivos não se assemelham dois a dois (...)” (1997: 250).
Por outro lado, se o totemismo estaria associado aos modos analógicos, ou seja,
“metafóricos”, de associação de séries discursivas (sistemas de diferenças) entre si, o
sacrifício serviria como meio empírico para o acesso a um outro campo de fenômenos, estes
definidos por Lévi-Strauss como “metonímicos”:
No sacrifício, a série (contínua e não mais descontínua, orientada e não mais reversível) das
espécies naturais desempenha o papel de intermediário entre dois termos polares, dos quais um
é o sacrificador e o outro a divindade e entre os quais, no início, não existe homologia nem
sequer uma relação de qualquer tipo; o objetivo do sacrifício é precisamente instaurar uma
relação, que não é de semelhança mas de contigüidade, por meio de uma série de identificações
sucessivas que podem se fazer nos dois sentidos, conforme o sacrifício seja expiatório ou
represente um rito de comunhão; seja, pois, do sacrificante ao sacrificador, do sacrificador à
vítima, da vítima consagrada à divindade ou na ordem inversa (Lévi-Strauss 1997: 250-1).
A citação esclarece que o sacrifício estaria fora do campo intelectualista da
“homologia”, ou seja, da colocação em paralelo de diferenças classificatórias, movimento
conservador que, de acordo com Barthes, “coloca na língua uma eternidade” (2001: 170). Seu
problema central seria a produção de contigüidades temporais, assim como a transferência de
20
qualidades através da troca e a constituição de circuitos transformacionais. Esse seria um
espaço triádico, como destaca a frase de Lévi-Strauss, sobre cuja influência dar-se-ia a
desestabilização e a reconstrução de vínculos duais a partir do aparecimento do outro, do
estrangeiro, seja enquanto um meio para a expiação, seja enquanto um convite à comunhão.
Sob esse âmbito de fenômenos, valeria a máxima lacaniana: “Se é necessário, ao homem, de
tal forma, usar a palavra para encontrar algo ou para se encontrar, é em função de sua
propensão natural a se decompor na presença do outro” (Lacan 1991b: 261).
Raciocinando a partir desses pólos meta-discursivos, tentarei textualizar as relações
tecidas entre o neopentecostalismo e o candomblé a partir da localização, dentre elas, de
pontes metonímicas e de saltos metafóricos. Veremos que é através de pontes metonímicas
que o neopentecostalismo engloba os cultos afro-brasileiros como um dado interno à sua
gramática (Cap. 1 e 2). Por sua vez, é corroborando essas mesmas pontes, e mantendo-se no
mesmo sintagma, que parte do candomblé especula acerca das especificidades do poder
neopentecostal a partir do trânsito de filhos de santo para as suas frentes (Cap. 3). Central para
a construção e manutenção dessas pontes é a corroboração da capacidade performativa da
linguagem do outro, movimento que se dá sobre a instância da eficácia mágica inimiga.
Por outro lado, veremos que é através de um salto metafórico que os novos setores do
candomblé da cidade rompem a sua continuidade com o neopentecostalismo e, desse modo,
conseguem retirar da presença inimiga um telos para uma inédita politização da religião (Cap.
4). Central para esse salto, um salto utópico, é a fuga do sintagma “religioso” aberto pelos
neopentecostais através de uma textualização metafórica dos ataques, que passam a ser
entendidos sob o registro da raça e da etnicidade.
De um modo geral, ao longo de “guerras” e “trocas”, “saltos” e “pontes”, tentarei
desenhar etnograficamente economias da alteridade associadas a determinados padrões de
inserção pública reforçados e amenizados em ambos os grupos em questão. Através de uma
espécie paroxismo da representação, onde ela é questionada sobre os seus fundamentos,
politizada, demonizada, mas sempre multiplicada, tentarei mostrar como, espelho ante
espelho, esses grupos colocam em jogo a existência um do outro em um dado contexto
histórico e espacial.
21
PARTE 1:
A “batalha espiritual” e o demônio afro-brasileiro: um mal
libertador
O espelho é um ser em oposição. E é como tal que funciona. É um ser que assumiu uma
posição que é oposição: uma posição negativa. É um ser que nega. É por isto que reflete. Não
permite que aquilo que sobre ele incide passe por ele. Refletir é negar, e isto é a sua
estrutura. Não pode haver uma reflexão positiva. As respostas que o espelho articula são
todas negativas. São inversões das perguntas que o demandam. As equações da ótica
confirmaram esta afirmativa. E também o confirmarão as analises do pensamento reflexivo.
Diz essa analise que todas as sentenças do pensamento podem ser reduzidas à negação
formalmente. Não deve portanto surpreender que o fundamento do espelho seja o nada, essa
fonte de toda negação possível. O espelho é um ser em oposição justamente porque o seu
fundo é o nada do nitrato de prata. (...) Essa descoberta é, como disse, chã e rotineira. Basta
virar o espelho para fazê-la.
Vilém Flusser - “Ficções filosóficas”
22
O “neopentecostalismo”, ou a terceira onda pentecostal brasileira (Freston 1994), é um
importante movimento religioso originado nos anos 1970, que se expande fortemente nas
décadas seguintes do século XX tendo o Rio de Janeiro como seu centro e a Igreja Universal
do Reino de Deus (IURD), criada pelo Bispo Edir Macedo, como a sua ponta-de-lança. A
nomenclatura “pentecostalismo autônomo”, adotada por Bittencourt (1989), também é
adequada aos particularismos observados no pentecostalismo brasileiro pós-1970, que se
distingue dos “pentecostais clássicos”, associados ao movimento missionário norte-
americano, principalmente por inserir em seu modelo de gestão, sua liturgia e sua visão de
mundo, cores bastante autóctones.
De acordo com Mariano (1999), as principais características do neopentecostalismo são:
i) a influência da “teologia da prosperidade”, que potencializa as dimensões econômicas não-
ascéticas do cristianismo pela ênfase na realização cotidiana de milagres tendo em vista “uma
vida abundante”
14
; ii) a liberalização dos “usos e costumes”, que desmonta o controle estrito
do comportamento, que antes distinguia os pentecostais clássicos como um grupo “à parte”
ante a sociedade envolvente (fato geralmente ratificado pela aparência pessoal, pela
moralização da esfera sexual e pelas restrições de lazer desses indivíduos); e iii) o papel
central ocupado em sua cosmologia pelas entidades demoníacas, de onde resulta o freqüente
recurso ritual ao exorcismo e os intensos conflitos com as religiões mediúnicas,
principalmente as afro-brasileiras, como o candomblé, a umbanda e a quimbanda.
A partir dos três fios acima descritos, a IURD, assim como outros grupos do seu
universo de influências, consegue tecer uma textualidade religiosa bastante eficiente na tarefa
de dar conta significativamente do campo fenomênico de uma importante fatia da sociedade
brasileira, rompendo, desse modo, com o sectarismo e o ascetismo típicos do ethos evangélico
e pentecostal mais tradicional. Tal abertura para as questões intra-mundanas possibilita
inclusive a ocupação material e discursiva, por parte desses grupos religiosos, de esferas a
princípio “extra-eclesiásticas”, como a política partidária, os meios de comunicação de massa
e o mercado de consumo. Esse proselitismo bem-sucedido se vê fortemente atrelado a uma
espécie de democratização hedônica da graça operada pelo neopentecostalismo: “o crente está
destinado a ser próspero, saudável e feliz neste mundo (...) o principal sacrifício que Deus
14Apesar da origem norte-americana da “teologia da prosperidade”, veremos, ao longo do primeiro capítulo,
como a IURD insere em sua aplicação ritual a contra-parte de uma lógica de reciprocidade, onde o dízimo dos
fiéis passa a ocupar a função de meio intra-religioso dinamizador das trocas com o pólo sobrenatural,
viabilizando-se assim uma espécie de troca sacrificial mediada pelo dinheiro.
23
exige de seus servos é ser fiel nos dízimos e dar generosas ofertas com alegria, amor e
desprendimento” (Mariano 1999: 44).
Por outro lado, chama a atenção o fato desse movimento de integração religiosa com o
senso comum (Geertz 1989), associado à ruptura mágica com os alicerces teológicos da
“rejeição do mundo” e da “eleição”, ser acompanhado pela contra-face fortemente belicosa da
relação entre o neopentecostalismo e outras religiões. A tendência desse grupo a alimentar um
ambiente inter-religioso tenso e exclusivista, atitude rotulada por diversos setores da opinião
pública brasileira como sendo “intolerante”, pode ser entendida se atentarmos para o terceiro
dos aspectos antes destacados: a função gramatical ocupada pelo mal em sua cosmologia,
onde se assentaria a noção de “batalha espiritual”.
A “batalha espiritual” pode ser definida como uma meta-narrativa construída através da
bricolagem de elementos clássicos da narrativa bíblica, como o maniqueísmo e a existência do
diabo e das suas hordas, e modos de explicação de infortúnios tidos como “arcaicos”, como a
feitiçaria, a possessão e a transferência do mal através do contato. Unidos numa espécie de
“drama bélico”, esses elementos textuais teriam a finalidade de encenar metonimicamente a
subjetividade e o cotidiano dos fiéis neopentecostais como um perene campo de batalhas entre
forças “do bem” e “do mal”. Trata-se de uma espécie de padrão hermenêutico, formalmente
semelhante ao estudado por Crapanzano (2000), que parte da esfera “religiosa”, mas que
tende a projetar-se em outras áreas da sociedade, colocando em jogo a própria definição
intimista e individualista onde teria se assentado a “religião” na modernidade.
Cabe aqui destacar que o debate sobre o grau de legitimidade do discurso e das práticas
das igrejas neopentecostais, principalmente a IURD, vai muito além do caso de Salvador.
Giumbelli (2002), após um cuidadoso resgate dos argumentos e da repercussão da série de
ações jurídicas movidas contra a Universal desde a sua aparição
15
, que implicaram inclusive
na prisão de Edir Macedo em maio de 1992, define o modo de inserção paradoxal desse grupo
na opinião pública brasileira como sendo de “culpa sem condenação” (313). Um dos casos de
maior impacto, uma espécie de marco desta entrada pouco legitimada da IURD na esfera
pública nacional se viu no famoso episódio do “chute da santa”, de 1995, analisado de forma
detalhada pelo mesmo Giumbelli numa outra ocasião (2003).
15 Essas ações judiciais se referem a acusações de estelionato, charlatanismo e curandeirismo, respectivamente
artigos 171, 283 e 284 do Código Penal Brasileiro.
24
Enquadrada por um campo religioso caracterizado pela intensa circulação de fiéis, pelas
fracas adesões e pela “suspeita generalizada” (Carvalho 1991: 15), a IURD parece mesmo ter
optado por uma estratégia explícita de crescimento sem legitimação pública. Vislumbrando as
suas rivais como um exército uno e maléfico, a igreja de Edir Macedo capitaliza com extrema
habilidade essa lógica da suspeita inter-religiosa, não suspeitando de ninguém, ou seja,
dotando todos de eficácia, mesmo que de uma eficácia negativa, e, por isso, constituindo-se
no alvo preferencial da suspeita de todos. Talvez aí esteja a causa da radical polaridade das
opiniões que têm se voltado para esta instituição, que tende a relacionar-se negativamente
(apesar de organicamente) com o idioma da “pluralidade de busca” (Carvalho, 1999: 12),
retirando a alteridade religiosa do registro metafórico hegemônico da “fraude”, do “falso”, do
“inautêntico” enquanto a sobre-codifica a partir do registro metonímico, mas maniqueísta, do
“bem” e do “mal”. Resulta dessa atitude polarizadora o fato de que, no Brasil de hoje, ou se
está na IURD ou se está contra ela, já que o seu próprio proselitismo anularia qualquer
possibilidade de neutralidade. Veremos que é por potencializar o conflito que a IURD tem se
tornado bem sucedida, e, talvez por isso, o seu crescimento numérico até hoje nunca tenha
sido acompanhado por um aumento de legitimidade.
Ao longo do meu trabalho de campo, realizado entre setembro e novembro de 2005,
pude voltar as minhas atenções para o processo de instalação desta estratégia discursiva em
Salvador, cidade que tem nas religiões de matriz africana a principal fonte significante a qual
tem recorrido, ao longo das últimas quatro ou cinco décadas, a sua arte, costumes, imaginário
e economia, e onde a “guerra santa” parece tomar implicações sociais mais amplas. A partir
de uma série de relatos, recolhidos através de entrevistas e pesquisas em arquivos jurídicos,
policiais e jornalísticos, consegui separar duas frentes principais da ofensiva neopentecostal: a
ofensiva ritual, que chamarei nesse trabalho de “frente de libertação” e a ofensiva territorial,
ou “frente de ocupação”, que será desdobrada em três frentes secundárias: os ataques pela
mídia impressa e televisiva, as invasões de terreiros e as disputas pelos bens simbólicos
representativos da identidade da cidade. Apesar de analisar cada elemento acima descrito de
modo separado, vale destacar que estas duas frentes se desenrolam de modo integrado e
simultâneo, operando como dimensões que se retro-alimentam, e constituindo, desse modo,
uma mesma estratégia de combate.
Tendo como base o desenho descritivo e analítico dessas duas dimensões do conflito, a
minha intenção passa a ser, como conclusão parcial, compreender a função desempenhada
25
pelo “demônio afro-brasileiro” no padrão discursivo defendido e divulgado pela IURD e
aceito por seus fiéis. Tentarei demonstrar com isso como que, dissolvendo-se e se
encontrando nessas novas teias textuais, o fiel da Universal acaba por visualizar, espelhado
em um candomblé que ele mesmo constrói, o seu “mal libertador”, fazendo da violência
direcionada aos praticantes de candomblé um ato sagrado e religioso de libertação e de
ocupação da fonte geradora do mal.
26
Capítulo 1:
Frente de libertação: performance ritual e economia da pessoa na
“Sessão do Descarrego”
Em muitas de nossas reuniões, efetivamente, vemos um quadro assombroso; uma
verdadeira amostra do inferno. Se alguém chegar à igreja no momento em que as pessoas
estão sendo libertas, poderá até pensar que está em um centro de macumba, e parece mesmo.
Temos a impressão, muitas vezes, de que aquelas pessoas ficaram loucas; entretanto, após
alguns momentos, quando fazemos a limpeza em suas vidas, quando os demônios são
expelidos e levam com eles todo o mal, aí vem a bonança, a paz.
É como se um furacão tivesse passado. Nessas reuniões, milhares de pessoas têm se
libertado dos exus, caboclo, orixás, erês e outros demônios. Após a libertação, vem a
sensação de bem-estar. Aquelas pessoas, antes oprimidas, passam a glorificar a Deus e em
seus rostos transparece a alegria da libertação! Alguém poderá pensar: “Como podem
baixar esses espíritos em uma igreja, uma casa de Deus?” é importante, antes de mais nada,
termos ciência de que os espíritos infernais manifestados nas pessoas não foram encontrados
na igreja: estavam dentro delas.”
Bispo Edir Macedo - “Orixás, caboclo e guias: deuses ou demônios?”
27
A visita a um dos cultos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) pode ser uma
forma fascinante de se observar em ação uma das facetas contemporâneas da espiritualidade
no Brasil. Diante de uma situação de contato vivido com a diversidade comunicativa das suas
técnicas rituais, tornam-se claros, como nunca, os limites da concepção clássica de “religião”,
que ainda informa o olhar do antropólogo sobre os seus objetos-sujeitos. As combinações e
misturas prevalecem, fato que tende a se sobressair, principalmente em uma situação de
imersão no universo institucional do sagrado, que em sua etimologia - assim como na tese
basilar de Durkheim (1996) - já conteria o caráter de coisa ou ação “separada”
16
. À “religião”
ordenadora e representante da tradição, opõe-se um fluxo complexo e multifacetado de fé,
emoção, sacrifício e, porque não, cálculo utilitário.
De fato, a IURD parece fazer ruir grande parte do edifício durkheimiano, todo ele
fundado na oposição entre vínculos duráveis e utilitários, religiosos e mágicos. Capitalizando
as misturas, a IURD cresce nas brechas e, assim, multiplica os seus pontos de fala enquanto
oscila, na sua inserção na esfera pública nacional, entre a ambigüidade e a ambivalência:
igreja e/ou empresa, religião e/ou mercado, tenda dos milagres e/ou partido político, legítima
e/ou ilegítima. Graças a essa característica, “a existência da IURD provoca tanto a
visibilização do ‘religioso’ quanto a impressão de que ele está ‘fora de lugar’ na sociedade
brasileira atual” (Giumbelli 2002: 412).
Sendo assim, pode-se afirmar que a atuação da IURD retira sua potência e sucesso
justamente dos tabus de nosso senso comum e da nossa doxa acadêmica, esses últimos
personificados, na situação acima descrita, pelo olhar perplexo do antropólogo. Refiro-me
aqui ao sentido utilizado por parte da tradição antropológica para designar o termo “tabu”
(Leach 2000; Douglas 1976), ou seja, aquilo que estranhamente re-liga os pólos apartados
pelas classificações, destacando, não sem algum estranhamento, o contínuo que subjaze aos
quadros rígidos de uma linguagem. Atualizando a base teórica apresentada na Introdução,
diria que tabu seria aquilo que coloca “em jogo” (Gadamer 1997) uma classificação a partir
do contato travado com algum ente que a ela é integrado enquanto posição.
É um constante desafio para qualquer categorização, essa Igreja-tabu, que articula e
desarticula as esferas weberianas (supostamente dotadas de “autonomia funcional”) como um
malabarista brinca diante da platéia paralisada. Daí resulta o fato da IURD nunca estar onde o
16 Segundo Durkheim (1996): “(…) uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a
coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral,
chamada igreja, todos que a ela aderem” (32).
28
antropólogo, a imprensa, os outros segmentos religiosos, o judiciário ou o Estado pensam que
ela está. A Igreja-tabu é uma presa difícil de ser capturada.
Ao longo das cerimônias citadas, salta aos olhos o uso em profusão de elementos a
princípio profanos, que vão desde a iluminação, a música pop, o clima jocoso de algumas
pregações, até a tão comentada e criticada presença do dinheiro como fundamento
cosmológico, seja na forma da oferta e do dízimo, seja como índex
17
da transformação ritual,
representante causal da sua eficácia. Trazendo o universo profano de “fora” de nosso campo
religioso, a IURD, assim como vários dos outros grupos do chamado neopentecostalismo,
enriquecem radicalmente o seu léxico de mediações com o sobrenatural, abundando o mundo
com sinais, entidades encantadas, “fetiches” e milagres cotidianos e rompendo, desse modo,
com o Deus silenciado e a crítica do significante na doutrina protestante histórica.
Uma das formas clássicas de se defender esta cosmologia de mediação
18
seriam as
chamadas “curas espirituais”, um dos tipos de serviço mais procurados pelos clientes
19
da
Universal, que evidenciam o caráter fortemente mágico e pragmático da sua proposta
discursiva. Tais curas acontecem nas chamadas Sessões do Descarrego, que ocorrem toda
terça-feira em qualquer um de seus milhares de templos espalhados pelo país. Nelas, percebe-
se como a abertura neopentecostal para a salvação intra-mudana aproxima-se bem da urgência
dos problemas da vida cotidiana, das questões prosaicas que costumam escapar das
escatologias religiosas e dos grandes discussões existenciais por elas suscitadas. Por outro
lado, e talvez por causa dessa perspectiva, nota-se uma submissão da estrutura simbólico-
17 A tipologia de signos utilizada ao longo deste artigo encontra-se em Peirce (2000). Segundo ele, “um signo é
um ícone, um índice (índex) ou um símbolo. Um ícone é um sigo que possuiria o caráter que o torna significante,
mesmo que seu objeto não existisse, tal como um risco feito a lápis representando uma linha geométrica. Um
índice é um signo que de repente perderia seu caráter que o torna um signo se seu objeto fosse removido, mas
que não perderia esse caráter se não houvesse interpretante. Um símbolo é um signo que perderia o caráter que o
torna signo se não houvesse um interpretante” (74). Pode-se dizer que enquanto o ícone e o índex teriam um
fundamento concreto (territorializado), sendo constituídos respectivamente por uma associação de semelhança e
por uma associação de contigüidade, o símbolo teria um fundamento arbitrário, sendo constituído por operações
analógicas e intelectuais.
18 Com a noção de “cosmologia de mediação” refiro-me não somente à mediação objetal e ao conseqüente
imanentismo do sagrado na IURD, mas a uma concepção, também defendida em Birman (2001), que
compreende a IURD como uma instituição fundada numa ampla lógica de negociações, ou de “produção de
conexões”. Essas conexões tenderiam a englobar não somente outras cosmologias religiosas, como no caso da
afro-brasileira, mas também o Estado, a família, a mídia e o mercado. Tratar-se-ia, portanto, mais de uma
máquina de sobre-codificação de textualidades outras (estas já estabelecidas) do que de produção de um universo
textual radicalmente novo. Nesse sentido, sua força estaria mais na formulação de uma metalinguagem porosa e
circuladora do que na produção de uma linguagem totalizante.
19 Com o termo “clientes”, refiro-me aqui tanto a convertidos, ou seja, aqueles que completaram o seu trânsito
através do “batismo do espírito santo”, quanto aos não-convertidos e praticantes de outras religiões, ampla
maioria, que buscam essas sessões ou como forma de testar a eficácia do ritual de cura antes de realizar o trânsito
religioso ou para resolverem problemas pontuais, que não implicarão necessariamente num trânsito posterior.
29
metafórica da doutrina ao vivido pragmático-metonímico do ritual, processo que é habilmente
conduzido pelo discurso do pastor, palavra mediadora, que fala pelo outro e o constitui
enquanto um “eu” centrado e, por isso, “abençoado”.
Na Sessão do Descarrego, observa-se, como uma vez disse um pastor, a “fé em ato”
20
.
A fé que faz, mais do que especula (e que, assim, resiste a ser simples “crença”); a fé que
transgride, mais do que justifica; e, talvez por isso, a fé sinuosa e persuasiva, mais do que
esclarecedora e reverente diante do “mistério”.
No capítulo presente, pretendo analisar a Sessão do Descarrego como um evento
comunicativo performativo, tentando destacar alguns aspectos de sua organização serial (ou
sintagmática) e cosmológica (ou paradigmática). Para isso, realizei uma série de visitas ao
culto na Catedral da Fé da cidade de Salvador, tentando captar de forma vivida a gramática
dessa espécie de guerra ritual travada pela IURD tendo em vista a libertação dos seus fiéis
contra o julgo dos “encostos”, entidades maléficas geralmente mediadas pelos cultos afro-
brasileiros.
Com o termo “guerra ritual”, quero destacar que a “Sessão” seria uma máquina
comunicativa de subjetivação construída para realizar em seus participantes de forma mais
explícita e intencional aquilo que Bateson (1958: 293) denominou “meta-aprendizado”
(“meta” ou “deutero-learning”), ou seja, a produção de eventos comunicativos performativos
que se desenrolam no tempo visando atingir simultaneamente dois planos cognitivos (e
valorativos) dos seus receptores: o lingüístico e o metalingüístico. Trata-se de uma
aprendizagem gramatical, e não apenas conceitual, que interfere tanto nas “variáveis” quanto
nos “parâmetros” (Bateson, 1958: 292) de nossa apreensão do mundo. Neste caso, não
estaríamos lidando apenas com uma situação em que alguém aprende algo novo. Em um nível
de abstração mais alto (meta-discursivo), diria que se trata de uma situação em que o sujeito
aprende uma nova forma de aprender, de apreender o mundo (o “ele”), o outro (o “tu”) e o si
mesmo (o “eu”) e de se posicionar frente a eles a partir de uma nova economia de vínculos.
Pensar a Sessão do Descarrego enquanto um “meta-aprendizado” significa, portanto,
concebê-la tanto como uma experiência pessoal e significativa de libertação dos fiéis pela
construção de uma relação indexical entre texto e pessoa, quanto como a fonte propositora de
um modelo geral de alteridade, de cunho fortemente belicoso, que viria a se realizar de forma
20 O pastor aqui parece ecoar, à moda nativa, a declaração de Bruno Latour: “Elas [as divindades] são todas
ação” (2002: 83).
30
plena nos atos cotidianos de violência praticados por seus seguidores contra os objetos, os
templos e os praticantes dos cultos afro-brasileiros na cidade de Salvador. Resulta daí o fato
de ter começado o trabalho de campo e a escrita da dissertação pela análise desse ritual, pois
foi nele onde eu pude captar de forma mais explícita e estereotipada a linguagem que viria a
ordenar e a guiar o meu olhar sobre a multiplicidade de eventos com que tive contato em
campo. Assistindo aos rituais, pude aprender, juntamente com os fiéis da IURD, a capturar
esse outro afro-brasileiro numa dada textualidade, e com eles fui posteriormente às ruas, e
pude dotar as suas ações com sentido e compreender as suas motivações a partir de uma
perspectiva de alguma forma autorizada pelos meus “objetos”.
A construção textual deste capítulo se dividirá em duas etapas. A primeira, escrita a
partir de uma perspectiva “horizontal”, descreverá a série e os cortes temporais que compõem
o rito em sua totalidade, contendo a cura como ponto-ápice, de maior intensidade ritual. Neste
estágio, pensarei o processo de cura como um mecanismo comunicativo-pragmático de tipo
espiralado, onde a linearidade de seu decurso é afetada pela natureza circular das trocas que o
constituem. A segunda etapa, agora escrita a partir de uma perspectiva “vertical”, tratará das
formas com que tais práticas rituais tocam a cosmologia religiosa neopentecostal, fazendo-a
eficaz, concreta e vivida ao longo do culto. Defenderei, neste segundo momento do texto, a
centralidade da noção de “posse” enquanto “signo dominante” (Turner 1967) deste sistema
simbólico “nativo”, entendendo a cura agora como um processo de re-centramento do “eu” do
fiel, antes descentrado pelas inúmeras entidades afro-brasileiras que habitam o panteão da
Universal.
I- A Sessão do Descarrego enquanto série: o espiral das trocas
É difícil captar regularidades rígidas em um culto da IURD. A particularidade de cada
visita que fiz foi, com certeza, a característica que mais me chamou a atenção em campo.
Talvez tal dificuldade em se deixar tomar pelas intenções teorizadoras de um antropólogo,
com seus quadros abstratos e seu ascetismo intelectualista, pronto a reduzir formas a
significados, revele uma qualidade propositiva deste grupo, amplamente preocupado em
constituir uma fé imediatamente correspondida pela contra-dádiva do bem viver e, por isso,
bastante aberta ao desejo mutante do cliente. Talvez deste fato tenha surgido, também, a
tentação de se apelar a determinadas noções do senso comum, que têm se constituído como
31
doxa acadêmica, para desvendar o mistério do sucesso de seu proselitismo no “maior país
católico do mundo”. A liberdade dos pastores, que criam e invertem etapas e procedimentos
como um bricoleur, demonstra que as chamadas “ações tradicionalizantes” (Tambiah 1985a)
deste ritual estão sempre convivendo com a forte unicidade de um modelo de pregação
bastante inventivo, já que espelhado no carisma, na retórica e até mesmo nas técnicas
corporais de sua liderança maior, o bispo Edir Macedo
21
.
Destaco, portanto, que a primeira característica regular observada no ritual estudado
seria a sua própria fluidez, fruto de uma abertura estrutural aos interesses individuais dos
participantes envolvidos. Tal fato é gerador de uma grande e diversificada circulação de
objetos e de sentidos em sua recorrência no tempo, afastando, assim, juntamente com a
possibilidade dele se solidificar enquanto “tradição” (fundada no valor dado às coisas
perenes), a mínima probabilidade de “ossificação”
22
de seus mecanismos. Mais do que fundar
a autoridade de suas cerimônias numa resistência sagrada frente ao tempo comum, a IURD
entrega-se com facilidade e sem traumas ao perecível e ao desenraizado e, por isso, aumenta
sempre a “vida útil” (outra forma de tempo) de seus ritos. Esse anti-tradicionalismo aparece
de modo teologicamente justificado em um interessante trecho de um dos livros de Edir
Macedo, onde ele declara, apelando mais uma vez para a figura onipresente dos demônios:
“Creio que há um demônio chamado ‘exu tradição’, que penetra sorrateiramente, obrigando
os membros da Igreja a atentarem tão-somente para os usos, costumes e normas eclesiásticas,
de modo que entra a fraqueza espiritual na comunidade e esta se esquece dos princípios
elementares da fé” (Macedo 2005: 121-122).
Tendo destacado o caráter intrínseco da dificuldade de análise com que me deparei, e
demonstrando-se, através dela, que elementos tidos, a princípio, como “residuais” acabam por
desvelar para o antropólogo em campo traços estruturantes dos fenômenos com que ele se
encontra, pretendo agora passar à descrição etnográfica daquilo que considero uma “Sessão
do Descarrego Ideal”, fortemente criticável, caso referida ou comparada a qualquer caso
empírico particular. Sem mais delongas, vamos a ela.
21 A relação entre carisma e instituição é muito bem analisada por Oro (2003) no que se refere à atuação da
IURD no campo político.
22 Segundo Tambiah, “idéias cosmológicas, porque refletem a compreensão epistemológica e ontológica de uma
era particular em que se originaram, e porque são sujeitas à necessidade de serem acuradas e invariáveis, são
condenadas a se tornarem datadas com o tempo e cada vez mais incapazes de falar para as mentes e os corações
de gerações sucedâneas, que encararam a mudança e a transformação” (1985a: 165). A dialética entre a
ossificação e o revitalismo no ritual acompanha a polarização entre forma e sentido, força simbólica e força
indexical, semântica e pragmática e, porque não, indivíduo e sociedade.
32
a) Antes do culto:
Com a denominação “antes do culto” refiro-me ao estágio preparatório da “Sessão”,
aquele que se dá com as luzes plenamente ligadas e com a presença observadora de poucos
fiéis, que aguardam o início do evento já assentados na platéia. Tudo isso ocorre em meio a
um clima relaxante, composto por música instrumental ambiente, estilo “new age”. Os
assistentes de palco testam os sistemas de som e luz, mídias que veremos ter um papel forte
no desenrolar do evento. As pessoas começam a chegar lentamente e de forma bastante
fragmentada. Vestem-se de modo bastante variado e despojado. Ao fundo, um imenso painel
com uma fotografia do Monte Sinai, contendo em si a representação de uma fogueira,
enquadra o púlpito de madeira, marcado por uma grande cruz. No alto, um grande banner
enquadra o altar: “E, se alguém me servir, o Pai o honrará - João 12: 26”.
O altar pode ser entendido como um palco, onde o pastor tem ampla mobilidade e
liberdade criativa: canta, dança, grita e conta piadas, num espetáculo de comunicação e
carisma. Ao lado do púlpito, um teclado. O músico acompanhante irá tocar “ao vivo” as
canções (juntamente com o pastor e os fiéis) e realizar as intervenções instrumentais que
acompanham o clima variado da Sessão. Compõem ainda o palco: um cálice, uma taça de
vinho, um candelabro e quatro grandes poltronas, que nunca tiveram uso enquanto eu estive
presente.
Algumas preces individuais são realizadas. Na frente, alguns fiéis convertidos tecem
comentários sobre a fé e sobre benfeitorias conquistadas no passado, enquanto especulam
sobre a resolução de determinados casos ou sobre a origem de novos problemas. Percebe-se
que os indivíduos não-convertidos costumam ficar mais distantes do altar e distribuídos de
uma forma mais dispersa, demonstrando uma atitude de estranhamento ou dúvida frente à
situação. Já os convertidos sentam-se mais à frente e de forma mais concentrada. Alguns fiéis
tocam o altar enquanto oram, um procedimento comum ao longo do culto. Por outro lado,
alguns “obreiros”, que na maioria das vezes são pastores em formação, realizam orações
individuais, tocando a cabeça das pessoas e rezando alto e intensamente. Essas curas
individuais acontecem em pequeno número, e não fazem com que as pessoas desistam da
Sessão propriamente dita, tratando-se de um remédio paliativo. Os obreiros e as obreiras
destacam-se dos participantes pelo modo de se vestirem, os primeiros com roupas brancas,
como a dos pastores, reproduzindo curiosamente a vestimenta de líderes espíritas ou pais de
33
santo, as segundas com uniformes que lembram aeromoças, profissão cuja função de
organização e recepção também se assemelha à delas.
b) O início do culto:
A partir desta situação ainda “fria” em relações comunicativas, dá-se início ao culto
com a entrada do pastor. Ele sobe ao palco, cumprimenta sua platéia e logo se põe a cantar
uma canção de tom alegre e com tempo rápido, que narra cenas bíblicas onde ocorrem
milagres e curas espirituais. “Eu vim buscar minha libertação...”. Mãos para o céu. O pastor
diz e os fiéis repetem juntos: “Sr. Jesus, vem para a minha vida, faz um milagre. Eu entrego
em suas mãos a minha vida”. Música, canto, palmas: “O Espírito Santo está nesse lugar. O
mal sai agora, sai agora, desse corpo que não é seu”. Encerrada a canção, ocorre o tradicional
“paz de Cristo”, onde as pessoas se cumprimentam, quebrando-se, assim, a frieza inicial e
abrindo-se o canal comunicativo entre os indivíduos ali presentes.
Nesse estágio inicial, é bastante comum a referência ao Velho Testamento,
principalmente ao chamado “ Povo de Israel”, judeus escravos do faraó do Egito, que foram
libertos por Deus através de Moisés e migraram para a “Terra Prometida” no Monte Sinai. As
categorias “escravidão” e “libertação” funcionam aqui como pólos discursivos centrais, assim
como a noção de “povo escolhido”, destinado ao sucesso e à salvação, e constituem uma base
narrativa que insere aqueles indivíduos dispersos numa textualidade comum. Para a IURD,
curar-se é sempre “libertar-se” de algo e a sua apropriação da textualidade Bíblica, tanto nas
músicas quanto nas pregações, visa sempre à produção de uma aproximação metonímica entre
a narrativa sagrada e o vivido cotidiano dos seus fiéis
23
.
Após alguns rápidos comentários, o pastor põe fim a esta etapa inicial testando o seu
canal comunicativo recém formado. Diz ele: “Amém, pessoal?”. Enquanto o público de súbito
responde: “Amém”.
c) A presentificação do Espírito Santo:
Enquanto as mãos se mantêm estendidas, o pastor começa uma oração, clamando pela
presença de Deus, que deve acontecer através do Espírito Santo. O tema da presentificação de
Deus, este Deus que não é mais o protestante silenciado, mas aquele que faz e que se
23 Essa atitude difere de uma abordagem que eu chamaria de metafórica do texto Bíblico, que de forma mais
convencional teria como objetivo a retirada de um modelo de conduta universalista a ser transmitido de forma
intelectualista aos seus seguidores no decorrer do culto.
34
comunica através de seus atos, permanece como o tema central de toda esta fase inicial do
culto. Trata-se de um estágio de concentração de energia, de preparação espiritual e início de
efervescência coletiva, o que se vê representar claramente pelos obreiros que, de pé, ao lado
do altar, agitam-se repentinamente, rezando efusivamente com os olhos fechados.
O clima, antes alegre, torna-se sério e respeitoso, enquanto a música de fundo ajuda a
compor um quadro bastante emotivo. “O poder vai chegar”. O pastor desafia, usando de um
tom bastante pessoal: “Se você está aí Jesus, nós te chamamos”. É comum que as pessoas
orem individualmente em voz alta, ao mesmo tempo em que fala o pastor, enchendo o
ambiente com palavras entrecortadas que endossam o desafio lançado. Alguns gritam
“Aleluia!”, índex verbal que indica que algo já está acontecendo.
Nesse momento, os indivíduos antes dispersos do fundo da platéia formam um grande
aglomerado em frente ao altar, olhos fechados e braços abertos como antenas, atraídos pela
força que está por se manifestar. As mãos estendidas são consagradas, pois é através delas que
se dará o poder da cura. Constituído o “nós” desejoso dos fiéis enquanto agente coletivo,
passa-se a considerar o canal comunicativo plenamente criado e aberto. Deuses e demônios já
podem falar. Mas antes, os pastores.
d) A oferta:
A primeira característica interessante que percebi neste estágio é o fato dele não se
suceder como uma ruptura em relação ao estágio anterior. O tema do dinheiro,
convencionalmente evitado no decorrer dos momentos mais solenes dos cultos cristãos,
aparece justamente numa fase de alta sacralidade, o que ratifica o caráter intrínseco da oferta e
da “posse” no sistema simbólico que conforma a visão de mundo defendida por este grupo.
Como afirmam freqüentemente os pastores: “O dizimista e o ofertante são os fiéis de
verdade”
24
.
Criado e confirmado o triplo canal comunicativo, entre os indivíduos ali presentes, entre
estes e o pastor e entre os dois e o supra-natural, torna-se agora necessário o início da troca,
que se realiza mais pela oferta da coisa do que pelas palavras, que passam a exercer uma
24 Ao longo das minhas visitas, percebi que o dinheiro tomava três funções diferentes nos cultos da Universal, e
para cada uma recebia uma denominação diferenciada. O “dízimo” é o dinheiro devido à instituição mediadora; a
“oferta” é a doação interna ao ritual, nesse sentido, seria parte interna ao domínio do sagrado, como tentarei
demonstrar aqui; o “desafio”, geralmente entregue em envelopes, também é parte do “dinheiro sagrado”, mas é
utilizado em pedidos maiores e mais demorados e, portanto, geralmente são quantias maiores.
35
função meramente justificadora. Funcionando no interior do sintagma ritual, o dinheiro aqui
deixa de ter a sua função profana de anulamento da relação e passa a funcionar como o sinal
do desejo de comunicação com o deus. Como a “lança mística” de Simmel, a ação do dinheiro
enquanto equivalente geral das relações, tradutor universal do valor, parece aqui adentrar o
universo a princípio mais protegido à sua circulação:
Quanto mais o conhecimento se aproxima daquela raiz, tanto mais se perfilam as relações da
economia do dinheiro não só com os aspectos escuros como também com os mais altos e com
os mais fino da nossa cultura, com efeito de que o dinheiro, comportando-se como todas as
grandes forças históricas, pode parecer-se com a lança mística que pode curar com as sua
própria força as feridas causadas por ela (Simmel 2005: 40).
O discurso do pastor trabalha ainda num registro metafórico, utilizando-se da
hermenêutica bíblica e de casos cotidianos na tentativa de dar sentido à oferta do dinheiro
como um sacrifício, como perda que visa um ganho futuro. Se Deus foi desafiado a mostrar-
se, a superar a distância metafórica da representação e a expor-nos à presença da sua graça,
não podemos passar ilesos a tamanha concessão
25
.
Como exemplo do modo argumentativo oferta-sacrifício, posso citar uma situação em
que o pastor compara a oferta com o sacrifício dos hebreus acuados no Monte Sinai, que
deram “água” e não “sangue”, e por isso não tiveram seu pedido de proteção concedido.
Entramos num jogo de risco, aquele que, sendo parte de um ciclo de troca, dá-se de forma
proporcional: quanto mais se está disposto a sacrificar, mais se pode ganhar. Já no modo
argumentativo oferta-prosperidade, posso me referir a uma pregação em que o pastor conta
um caso que narra a existência de duas fazendas, uma pobre e improdutiva, a outra rica e
produtiva. O proprietário da primeira, incomodado com a situação inusitada, vai em visita ao
proprietário da segunda. Tendo encontrado um homem, pergunta se ele poderia levá-lo ao
“dono”. Este homem responde que é difícil levá-lo ao “dono”, mas graças à insistência do
primeiro leva-o a uma árvore e pede que ele se ajoelhe. Depois disso, diz: “Põe-se a rezar,
pois este é o verdadeiro ‘dono’”. Na segunda parte do texto, tentarei desenvolver melhor a
centralidade da categoria de “posse” nesse modelo cosmológico.
25 De acordo com Birman, esse modo específico de mediar a presentificação de Deus indicaria um importante
ponto de ruptura com a tradição do catolicismo popular: “O oferecimento de dinheiro na igreja efetivamente
antecede o recebimento de milagres, e nisto destoa da tradição católica, em que a troca com santos é paga a
posterirori” (2001: 74). Esse seria um modo de se produzir, através da sobre-codificação de uma instituição
clássica, o dízimo, um novo circuito de trocas, definido por ela, de acordo com a tradição maussiana, como um
vínculo de reciprocidade.
36
Finalizado o discurso metafórico, ordenador e legitimador do pastor, as pessoas passam
a ofertar (algumas vão à frente, a maioria) e são abençoadas com um líquido distribuído pelos
obreiros e passado na testa dos fiéis. Todos gritam imperativamente, já que agora podem
cobrar: “Tira o mal de mim Jesus!”. Acabada esta etapa de doação e consagração, resta agora
receber a retribuição de Deus, e é isso que eles desejam.
e) Início da cura espiritual:
A partir de então, a iluminação abaixa repentinamente. A música, arrastada e triste,
indica que estamos num outro estágio do culto: a cura vai começar. Amontoados frente ao
palco, os fiéis repetem as frases ditas pelo pastor, afirmam que querem a libertação, que agora
estão “abertos” para que Deus possa banir seus problemas afetivos, financeiros, familiares ou
de saúde. O pastor e os obreiros tocam a cabeça das pessoas, alguns fiéis repetem este gesto
exemplar em seus companheiros, enquanto repetidamente falam para o mal “sair”. Chegamos
a um momento metonímico do rito, em que ele alcança seu maior nível de realismo, e onde a
linguagem deixa de funcionar num registro descritivo, envolvendo e unindo as pessoas numa
narrativa comum, e passa a fazer, a transformar, a produzir uma temporalidade “vivida”, não
mais “narrada”.
Problemas dos mais díspares são citados pelo discurso do pastor: dor de cabeça,
doenças, depressão, tristeza, fracasso, suicídio, ódio, frieza sexual, problemas maritais, etc. A
causa, porém, é sempre monossilábica: a possessão pelos “encostos”, significante amplo, que
engloba um cabedal místico eminentemente afro-brasileiro (“exu da morte”, “Maria Padilha”,
alguns orixás, etc.), e que invadem a vida das pessoas através de uma extensa série de
“trabalhos” (“peça íntima na geladeira”, “trabalho com champanhe”, “trabalho com pipoca”,
“vela vermelha”)
26
. Chama a atenção, de imediato, o vasto conhecimento que têm os pastores
do repertório mágico afro-brasileiro, cujos termos são repetidos com uma fluência e uma
redundância impressionantes, vindas de uma voz agressiva e gutural, que dificilmente lembra
aquela do início do culto.
Choro, gritos, tensão. O pastor avisa: “Vai saindo, vai queimando!”. Com as duas mãos
na cabeça, as pessoas rezam e pedem, num fluxo aparentemente caótico de desespero.
26 De acordo com Edir Macedo: “Um demônio é uma personalidade; um espírito desencarnado desejando se
expressar, pois anda errante procurando corpos que possa possuir para, através deles, cumprir sua missão
maligna. Os orixás, caboclos e guias, na realidade, nunca fazem bem em favor do seu ‘cavalo’. Exigem
obediência irrestrita e ameaçam de punição aquele que não estiver andando ‘na linha’” (2005: 16).
37
Terminada esta primeira onda extática, os fiéis (ainda com as duas mãos na cabeça)
acompanham o pastor e berram: “Sai daí encosto!”, abrindo os braços, num movimento físico
que indica a retirada de alguma coisa. As ordens continuam, assim como o gestual indéxico:
“Sai! Sai! Sai!”.
f) O “Santuário do Descarrego”:
Finalizada a primeira fase da cura, inicia-se a passagem pelo “Santuário do
Descarrego”, tipo de portal branco, feito de plástico, em estilo neoclássico, que neste
momento é trazido para frente do altar. As luzes se apagam completamente, restando apenas o
santuário como foco iluminado, o que dá a ele um caráter bastante esotérico. É chegada a hora
da chamada “oração forte”. Devem estar preparados, pois, segundo um dos pastores: “Ela não
é bonita não! É oração de guerra!”. Cercados pela mais profunda treva, os fiéis devem
caminhar para a luz. Luz que, até então, havia sido um elemento responsável pela concepção e
mudança da ambiência, e que passa agora a ser um objeto-alvo a ser alcançado, símbolo
clássico da salvação e da pureza.
O pastor declara que o portal separa o bem do mal, a luz da escuridão, pois é um “lugar
consagrado”, “onde há o sacrifício”, constituindo-se num tipo de “filtro espiritual”. Os fiéis
passam por ele orando, com os braços levantados, muitos com bolsas e carteiras nas mãos,
ícones que remetem objetivamente à crise financeira pela qual estão passando. “O teu povo
vai passar, Senhor!”. Enquanto isso, repete-se exaustivamente: “Ele passa, o sofrimento não!
Ele passa, o sofrimento não!”. E volta ao tema da “saída” do mal: “Sai daí...!”.
g) A manifestação:
A partir da produção ritual deste ambiente tenso e extático, várias entidades tidas como
maléficas passam a se manifestar. O pastor as chama, desafia a Pomba Gira, o Exú, a Maria
Padilha. “Eu quero fogo! Manifesta!”. “Você que entrou nele pela comida oferecida, por um
presente estranho, por um trabalho maléfico, apareça!”. “Espírito da insônia, da depressão,
Oxóssi, Obaluaê”.
Elas são facilmente identificáveis pelos gritos roucos e desesperados que emitem
algumas das pessoas possuídas. Esse é o caso mais radical de “doença”. O portal consegue
apenas tornar tais entidades manifestas, não chegando a expulsá-las. Agora, quem controla
abertamente o corpo daqueles indivíduos é um outro, uma entidade que deve ser exorcizada
38
de imediato pelo pastor. Esse exorcismo pode se dar de duas formas, como uma continuidade
desta mesma etapa ritual ou como um novo estágio. No primeiro caso, o pastor desce do palco
e, apertando fortemente a cabeça do possesso, evoca o poder divino e ordena a saída do
espírito, gritando coisas incompreensíveis.
Num crescendo de intensidade, a palavra se perde em sua força material e emotiva até
chegar ao “sai!”, repetido inúmeras vezes. Mãos para o alto, elas são ungidas e colocadas
pelos fiéis onde há o problema. Uma música alegre passa a ser entoada: “Sai, sai, sai...”
(palmas). “É guerra sim! A boca do leão eu vou amarrar!”. Cantando e dançando numa
surpreendente coreografia carnavalesca, os fiéis afirmam: “Tô amarrado na mão de Jesus!”.
h) Interrogatório e tortura do demônio:
No segundo caso, o mais comum, o pastor separa os indivíduos possessos do resto dos
fiéis, leva-os para cima do palco e realiza a famosa “entrevista com o demônio”, evento típico
da IURD. Trata-se de uma forma específica e inovadora de se realizar a etapa ritual que
tentarei destacar a seguir, o chamado “testemunho”. Nela, o demônio é sabatinado sobre como
e por que passou a interferir na vida daquela pessoa, o que quase sempre resulta na confissão
de que ele fora enviado por alguém (seu nome é mencionado) e que esse fato se deu pelos
meios mágicos e rituais das religiões afro-brasileiras. Os encostos também podem ser
transmitidos de forma hereditária, e o momento do contágio é então descrito nesse momento.
Observa-se que o motivo que desencadeia o mal, em sua ampla maioria, são conflitos pessoais
reverberados pela ação mágica.
O pastor entrevista “a desgraça”, que colocou um menino de 7 anos no hospital. “Quem
mandou o trabalho pra ela?” A sua vizinha. “Ela só quer destruir”. Depois, entrevista o
segundo encosto, que tenta resistir, mas é torturado até confessar. É Obaluaê, tido pelo
candomblé como o orixá da saúde e da doença, que se vê, nesse contexto de captura, reduzido
ao segundo aspecto. “Vai queimando esse povo Jesus. Vou queimar ele até virar chuvisco!”.
Tortura a entidade espiritualmente, com extrema violência. O clima desafiador do discurso
agora se volta para a platéia: “Eu vou dar a minha vida por vocês, mas vocês vão ter que me
dar as suas e estar aqui na próxima terça. Vão receber um cordão e vão colocar em cada
sessão uma letra da palavra ‘felicidade’. Isso é uma bijuteria, mas é do Senhor. Se você
quebrar vai ficar sem Deus”. Exorciza o demônio: “Vai queimando... Deus de fogo,
transforma o meu corpo em brasa viva!”. Antes de finalizá-lo, no entanto, obriga-o a repetir:
39
“Eu, Obaluaê, sou um pinico!”. Coloca-o para andar de joelhos e “fura” o seu corpo lenta e
prazerosamente, num sadismo bastante inusitado para uma cerimônia cristã: “Eu quero, Jesus,
um anjo furando ele, fazendo ele sofrer”.
Exorcizado o demônio, o pastor pede “Palmas para Jesus”. É euforicamente
correspondido. No entanto, ele ameaça: “Se vocês não buscarem Deus, o diabo vai atrás de
vocês!” Distribui os colares abençoados e chama a bíblia para falar do dízimo. “E olha que lá
fora pensam que a gente é macumbeiro”, diz ele, em um desfecho que não podia ser mais
perfeito.
i) O testemunho:
O testemunho pode ser definido como um estágio que teria a função de verificação
verbal da “felicidade” do culto, segundo a terminologia de Austin (1975), que oporia
enunciados polares, julgados a partir da sua veracidade ou falsidade, a enunciados
performativos, julgados enquanto felizes ou infelizes em seus efeitos. Sendo assim, pode-se
qualificar a entrevista com o demônio, descrita acima, como um “testemunho negativo”.
Como se pode perceber, o modo discursivo mais utilizado ao longo do culto é o imperativo,
tipo de ato de fala que se qualifica como absolutamente não-referencial. Sua execução teria
como contrapartida imediata a geração de uma expectativa de realização, de transformação no
real. Por isso, um imperativo não pode ser polarizado como “verdadeiro” ou “falso”, mas
apenas como “feliz” ou “infeliz”, a partir da verificação empírica de seus “efeitos
perlocucionários”
27
.
Uma sentença como “Sai daí encosto!” só pode ser verificada caso tenha sido atendida,
ou seja, caso tenha interferido eficazmente no fluxo dos acontecimentos. Assim, se, de acordo
com Austin, a promessa seria um modo verbal centrado em um sujeito que empenha o seu
“eu” de forma responsável e duradoura no tempo diante de um outro, o imperativo seria uma
forma de empenhar a eficácia e o poder imediato do ato de fala de um sujeito. Tal verificação,
que ocorre de início no plano da ação e da sensibilidade pessoal do fiel, é corroborada no
27 Segundo Austin (1975), os atos de fala (“speech acts”) conteriam três dimensões desigualmente articuladas, a
depender do seu uso concreto: a dimensão “locucionária”, de cunho descritivo-referencial, a dimensão
“ilocucionária” (destacada em nomeações, ordens, promessas, declarações, perguntas etc.), que visaria uma
transformação no estado de coisas, e a dimensão “perlocucionária”, que englobaria os efeitos gerados no ouvinte,
como ofensa, estímulo, convencimento, etc. Enquanto a dimensão locucionária envolveria os aspectos
semânticos e sintáticos da linguagem e a dimensão ilocucionária destacaria seu aspecto pragmático, os efeitos
perlocucionários apontariam um fora-texto, alcançando os termos convencionais da ação social.
40
chamado “testemunho” a partir de uma confirmação discursiva, em que os fiéis vão ao
microfone e descrevem a ocorrência da cura tendo em vista legitimá-la frente à coletividade
28
.
A prática do testemunho também revela o modelo “político” do culto com que estamos
aqui lidando, tratando-se de uma reunião igualitária de indivíduos que, por livre iniciativa,
resolvem expor determinadas experiências pessoais. A partir de uma origem privada e única,
tais experiências convergem em seu fim, que seja, a vivência direta da salvação através do
Espírito Santo (Sanchis 1994). Como na sociedade política moderna, o grupo parte sempre de
átomos individuais, representados como sendo livres subjetivamente para se relacionarem ou
não
29
.
Por fim, e como forma de se estender as benesses do culto para o mundo “externo”, o
pastor pede para que as pessoas apontem suas mãos (ainda consagradas pelo poder divino)
para as suas casas, e que peçam por pessoas ali ausentes
30
. A partir de então, depois de
afirmadas, confirmadas e transferidas as curas, porque não mais algumas “Palmas para
Jesus!”?
j) A pregação:
Terminados os testemunhos, a luz é novamente acesa, ao mesmo tempo em que uma
música alegre e animada passa a ser cantada pelo pastor. Logo os fiéis juntam-se a ele,
entoando festivamente a letra, que descreve situações bíblicas onde ocorreram salvações pelos
milagres de Cristo. Finalizada a canção e utilizando um outro mecanismo típico de teste do
canal comunicativo, ou de execução da “função fática” da linguagem (Jakobson 1971), diz o
pastor: “Tá ligado?”. Os fiéis respondem prontamente, com uma palma seca, destacando
assim o fato de que eles ainda estão na mesma sintonia. Feitas, verbalizadas e, agora,
celebradas as curas, resta ao pastor domesticar (mesmo que parcialmente) a sua natureza
pragmática através da pregação, tentativa de migrar do pólo da magia e das técnicas rituais
para o da moralidade e dos costumes.
28 A frase clássica de Durkheim, que afirma não existirem religiões falsas, poderia ser aqui reformulada, pois
mesmo que elas sejam todas falsas, ainda assim não se pode negar que sejam “felizes”, já que geram efeitos
concretos e esperados, mesmo após a tão falada/escrita “Morte de Deus”.
29 O problema da “liberdade subjetiva” como fundamento da categoria moderna de pessoa será mais bem
desenvolvido na conclusão deste trabalho, onde produzirei um deslocamento em relação a essa continuidade
tranqüila entre “modernos” e “neopentecostais”.
30 Birnan (2001) destaca bem essa estratégia que transforma o fiel mesmo em mediador do poder representado
pela IURD, tornando-o meio e fim da graça que ali é ritualmente negociada: “Assim, cada fiel é, em princípio,
um mediador que vai atuar, ‘bricolando’ segundo instruções de seu pastor, sobre seus próximos, nas situações de
vida que eles enfrentam” (72). Esse seria o seu modo clássico de se disseminar na esfera familiar.
41
Não adianta só o descarrego, o diabo não deve conseguir voltar mais e, para isso, temos
que construir barreiras pessoais que nos tornem “fechados” à sua influência. Nesse estágio
ritual, o discurso volta a um registro metafórico, como destaca bem o silogismo operado por
um pastor: “Como Jesus venceu o Diabo? Com um 38, com uma espada? Não. Com a
palavra. Já que somos a imagem e semelhança de Deus, logo ...”. Responde a platéia: “Temos
o poder da palavra”. Palavra que cura, que ordena e que controla.
O estilo discursivo que sobressai nesse momento da oração é aquele em que o pastor
afirma “Repita assim: Eu ....”. E é correspondido pelos “eus” de sua platéia. Recebe-se e
passa-se adiante a dádiva pronominal do “eu”, mas quem administra a sua circulação
discursiva é sempre o pastor. As mensagens visam o reforço da auto-estima dos fiéis,
incentivados a serem “vitoriosos”, “guerreiros”, numa lógica que lembra explicitamente o
discurso laico e individualista da auto-ajuda. Essa oração ocorre num clima já bastante
amenizado, enquadrado por uma música lenta e relaxante. Os fiéis estendem as mãos para o
santuário, para a representação icônica da “fogueira santa do Monte Sinai”, onde são
queimados todos os “encostos”. Agradecem. Uma frase exemplar, colhida de um dos pastores,
pode ser aqui citada como síntese desse momento: “Que fique sabido que o senhor funciona!
Amém?”. “Amém”. “Ta ligado?”. Palmas.
k) Dízimo e fim do culto:
Começa então a oferta de produtos (jornal, revistas, a Bíblia, fotos do Monte Sinai), que
são trocados pelo dízimo, um dinheiro não mais referente ao Deus, mas à instituição. Afinal
de contas, como afirma um pastor: “É dando que recebe”. Retorna a música, cantam juntos e
batem palmas. “Amém?”. “Amém”. Com um sentimento de alívio e tranqüilidade, saem os
fiéis, e na saída se deparam com a entrega dos objetos consagrados, como a água para o
“banho do descarrego”, o “xampu abençoado”, o “óleo de Israel”, etc. Objetos que mantêm o
modelo da cura pelo toque, pelo contágio, posição que no culto é ocupada pelas mãos dos
pastores e do seu público, mas que pela transmissão ao objeto consegue entrar magicamente
no cotidiano das pessoas.
O pastor fala do “banho do descarrego”, que começa a ser distribuído no final do ano, e
é feito de “7 elementos bíblicos vindos de Israel”. Ele vai ser bastante útil nessa época, pois
começa a temporada das festas, quando os encostos estão em polvorosa: “O que dá de comida
42
amaldiçoada, de feitiço de ano novo, de agora (outubro) até o carnaval é uma coisa. Vocês
vão precisar dele...”.
l) Síntese parcial:
Tentei descrever o desenvolvimento linear daquilo que denominei uma “Sessão do
Descarrego Ideal” a partir de 11 fases distintas, que julgo ter observado em campo. Percebe-se
que o “aquecimento” do ritual deu-se de forma gradual, sendo que o “Santuário do
Descarrego” e a “Manifestação” (estágios f e g) podem ser tidos como o ápice, o fim último
da cerimônia, apesar de não constarem como sua última fase. Trata-se de um “turning point”,
eventos cuja ocorrência transforma os estágios anteriores e posteriores ou numa prévia
necessária para a produção de sua eficácia ou numa desaceleração gradual, que capitaliza
lentamente os efeitos neles realizados.
Como tentei destacar ao longo da descrição etnográfica, cada estágio do culto é
delimitado por determinados comportamentos, expressões lingüísticas e efeitos de luz e som.
Logo abaixo, no esquema 1, tentei destacar de forma sintética o ordenamento da série ritual,
que deve ser lido da esquerda para a direita, além do nível de sua intensidade, que é expresso
pela altura das letras que rotulam cada fase.
Assim como a magia Trobriand, estudada por Malinowski e revisitada por Tambiah
(1985b), a Sessão do Descarrego tem seus eventos comunicativos construídos a partir de três
43
procedimentos básicos: ações (o que inclui a manipulação de objetos e os “atos de fala”)
31
,
associações metafóricas (analogias) e associações metonímicas (transferências). Mecanismos
que tendem a caminhar juntos e a se sobrepor de forma bastante variada ao longo do rito, a
depender da posição e função de suas etapas.
Tentei demonstrar que nos momentos de maior intensidade ritual, o modo comunicativo
preponderante foi de tipo metonímico e indéxico, ligado à analogia por contigüidade, a um
entrelaçamento profundo entre mensagem e redundância, entre conteúdo e forma, que acaba
por se retirar do universo arbitrário do signo lingüístico. Nos estágios que compõem este
bloco ritual é sublinhada a utilização daquilo que Jakobson chamou de funções “poética” e
“emotiva” da comunicação, ambas seriam parte de uma estratégia que visa o envolvimento do
remetente pelo auto-centramento do discurso ou pela expressividade, seja pela ênfase no
encadeamento formal dos significantes, seja pela ênfase emotiva não-mediada na recepção.
Tal característica indicaria, de acordo com Mariano (1994), uma importante ruptura com a
corrente histórica do protestantismo: “A IURD quebra a dependência protestante da palavra,
fazendo uso amplo da visão, do tato e dos gestos” (138).
Por outro lado, nos momentos de maior esfriamento, tornava-se preponderante o recurso
a um modelo comunicativo metafórico e simbólico, ligado à analogia por substituição, ao uso
reflexivo e abstrato dos signos. O uso recorrente na pregação dos pastores da IURD da
chamada “função metalingüística” (Ex: vocês sabem o que é ... ?), que teria como finalidade
esclarecer o uso do código e abrir o discurso a uma referência explícita, revela a intenção de
se produzir o envolvimento dos fiéis a partir de uma comunhão compreensiva. A analogia
entre o pastor e o professor primário ou o mestre da auto-ajuda foi inevitável enquanto
presenciei em campo o estágio da pregação.
Tais variações gramaticais diferenciam os momentos do culto em que seria enfatizada a
produção de determinados efeitos, alcançando-se um ponto máximo de realismo, daqueles em
que seria visada a organização narrativa dos eventos, assim como a abstração reflexiva de
determinados princípios a partir da sua ocorrência empírica. Em determinados estágios (e, f,
g, h), observa-se que as analogias são orientadas para o controle da realidade, e assim se
conformam enquanto “transferências”. Em outros estágios (i, j, k), no entanto, as analogias
31 Como defendem Tambiah (1985) e Silverstein (1997), as ações rituais e as palavras rituais não devem ser
diferenciadas a priori pelo pesquisador, visto que podem, em contextos específicos, realizar as mesmas funções.
Devemos, portanto, estar abertos para captar em campo uma “teoria nativa da significação”, que pode ir além da
dicotomia comunicação/ação proposta pela “falácia descritiva” que move a concepção de linguagem no ocidente.
44
ritualmente construídas são orientadas para a produção de uma explicação ou de uma
justificação para determinados eventos, o que as constitui enquanto “metáforas”. A dosagem
dessas duas técnicas discursivas na linearidade temporal do culto é a função dos pastores,
tarefa realizada sempre muito bem: “Essa gestão de ritmos corporais, essa administração de
transições emocionais, é a grande arte dos pastores da Universal” (Mary 2002: 471).
Como tentei destacar no próprio título desta subseção, a linearidade temporal da série
ritual torna-se possível graças a um círculo de troca que a acompanha, bem ao estilo
maussiano, envolvendo o fiel e seu Deus e tendo como mediador/catalisador o pastor. Após a
construção do canal comunicativo com o sobrenatural através da prece (estágio c), realiza-se o
momento de doação, ou de sacrifício
32
, que é representado pela oferta como ato de abnegação
e proposição da troca comunicativa (estágio d). Tentei descrevê-lo, a partir da própria
textualidade nativa, como um jogo de azar, onde maior a aposta, maior o risco, mas também
maior o prêmio em caso de sucesso. O momento de contra-dádiva ocorre nos estágios
propriamente envolvidos com a cura (e, f, g, h), onde Deus, através do Espírito Santo,
consagra as mãos do pastor e dos fiéis, que tocam e transferem seu poder curador para si
mesmos ou para outros. A autoridade com que o pastor se refere aos espíritos, mandando-os
agressivamente “aparecer”, “sair” ou “queimar”, destaca seu papel de simples canal da
vontade divina, esse último a verdadeira fonte legitimadora deste momento de superioridade
humana diante das entidades maléficas: “Quando você ordena a um demônio que saia de um
corpo, o Espírito Santo confirma a autoridade de que você está investido. Pode chamar o
chefe dos demônios que está dominando aquele corpo; o que está na casa da pessoa, dos
parentes ou quem quer que seja, que eles têm de obedecer!” (Macedo 2005: 130)
33
.
Os estágios posteriores, principalmente o testemunho (i) e a pregação (j), restam como
formas de se retribuir e de se capitalizar moral-verbalmente a “felicidade” dos estágios
anteriores, de tipo mágico-pragmático, legitimando-se o culto através da exposição pública
daquela série de experiências íntimas que o constituem. Sua finalidade é traduzir uma etapa
performativa em termos constatativos. Esse mecanismo é de suma importância, pois graças ao
32 Cabe lembrar aqui o conceito de sacrifício tal como em Mauss, processo que consiste em “estabelecer uma
comunicação entre o mundo sagrado e o mundo profano por intermédio de uma vítima, isto é, de uma coisa
destruída no decurso da cerimônia” (1999a: 223).
33 Percebe-se que a “descida” do sagrado através do Espírito Santo, a saída de Deus do registro da “re-
presentação”, tendo como justificação bíblica o Livro de Atos 10. 44, coloca o discurso da IURD numa
gramaticalidade radicalmente imanentista. Não é por acaso que, no decorrer do culto, é a sua entrada em cena
que empurra as ações comunicativas dos fiéis e do pastor para um registro definitivamente metonímico e
indéxico.
45
tônus experiencial e emotivo da IURD, a sua dimensão institucional encontra dificuldades em
se firmar a priori como algo que ultrapassa a soma das experiências concretas dos indivíduos
ali presentes. O todo, neste caso, nunca ultrapassa a soma de suas partes, e se faz uno somente
a partir da confirmação e comunicação cotidiana de sua eficácia
34
.
Segundo o dicionário Aurélio, um espiral define-se como uma “curva plana gerada por
um ponto móvel que gira em torno dum ponto fixo, ao mesmo tempo em que dele se afasta ou
se aproxima segundo uma lei determinada”. Essa figura me serviu bem como modelo para a
compreensão e visualização da “Sessão”, pois nela observa-se uma correspondência entre dois
movimentos: um progressivo e um circular. Estes movimentos ocorrem a partir de uma
referência fixa, cuja aproximação ou distanciamento resulta na produção de determinados
efeitos globais no circuito. A situação móvel do sujeito ritual, de aproximação dadivosa ou de
afastamento sem troca em relação ao sagrado, abre ou não a possibilidade da ameaça
possessiva vinda das entidades maléficas. A configuração dramática em que se situa o sujeito
nesse sistema cosmológico, sempre ameaçado pelo mal e, por isso, sempre impelido para a
troca, é o que tentarei desenvolver melhor na etapa seguinte do trabalho. Reconhecida a série
linear que compõe o espiral, resta agora descrever a lei de sua circulação.
II- A troca e a guerra com o “terceiro”
Je est un autre.
Rimbaud
Na sessão anterior, observou-se a existência de uma mútua alimentação entre os canais
de comunicação do rito analisado. A constituição processual dos fiéis enquanto um “nós”,
aquilo que, segundo Durkheim (1996), seria o meio e o fim da ação comunicativa total do
culto, aparece como um processo gradual, eventual e interdependente. Nesse processo, torna-
se destacada a importância da função fática
35
da troca lingüística para o ritual religioso, que
exerceria o papel de indicativo de existência das partes que nele trocam. Numa dada situação,
como a da Sessão do Descarrego, em que o fiel visa a emissão de uma mensagem para um
34 Diferente do todo durkheimiano, experiência extática que é prontamente domesticada e transformada em
“categorias” e “instituições”, os grupos que compõem os cultos da IURD são formados e se fragmentam sem
deixar rastros.
35 De acordo com Jakobson (1971), a função fática da linguagem teria a finalidade de abrir, fechar ou testar o
canal comunicativo. Como ela, não seu comunica uma informação acerca do mundo, comunica-se o desejo do
emissor em se comunicar, transmite-se uma abertura do sujeito ao outro (o choro do bebê pode ser definido
como um belo exemplo de uso desta função).
46
receptor a princípio ausente (já que de caráter supra-natural), o teste do canal comunicativo
implica diretamente na comprovação ou não da existência das parte que se comunicam.
Doando, desprendendo-se proficuamente do seu dinheiro, o indivíduo indica seu desejo de
troca, de alteridade. Por outro lado, correspondendo eficazmente a tal desejo, o Deus não
apenas confirma a sua existência, pois como diz Mauss “os deuses também tem necessidade
dos profanos” (1999: 225), mas também constitui os seus sacrificantes enquanto um agente
coletivo.
Segundo Benveniste (1966a), o NÓS, essa junção entre o “eu” e o “não-eu”, pode ser
construído a partir de duas relações específicas: entre o EU e o ELES, o “plural exclusivo”, e
entre o EU e o VÓS, o “plural inclusivo”. Enquanto o primeiro se constituiria em oposição ao
TU ou ao VÓS, resultando numa junção de formas opostas, o segundo se constituiria em
oposição ao ELE ou ao ELES, resultando numa reunião de pessoas que exerceriam uma
“correlação de subjetividade”. Em um plural exclusivo, o EU sobressai, enquanto que num
plural inclusivo é o TU que se destaca
36
. É somente referindo-se a um ELE, a um terceiro
ausente que ocupa a posição de “não-pessoa”, que os fiéis, enquanto um conjunto de “eus”,
podem se conformar como um grupo corporado desejoso de troca.
Na parte final deste capítulo, tentarei pensar o “nós inclusivo” que se presentifica na
Sessão a partir das unidades relacionais concretas que o constituem: o EU (o seu self) e o TU
unidos em oposição ao ELE. Segundo Crapanzano (1992a: 72), a caracterização do self
acontece como um momento de captura num movimento contínuo e simultâneo que liga o
sujeito ao outro e ao si mesmo, captura fundada em determinadas tipificações convencionais
que necessariamente passam por um “terceiro” (third), doador e garantidor de seu significado.
Nesse caso, o “terceiro” seria aquilo que autoriza, que estabiliza, é o poder e a palavra de
ordem, capaz de enraizar o sujeito em si mesmo (ou de desenraizá-lo definitivamente) agindo
como um princípio textual que se esconde, vindo a ocupar a função de “fora-texto”, de
fundamento externo, de um determinado texto do qual, na verdade, é parte constituinte
37
.
36 É importante destacar que, para Benveniste, somente os indexes “eu” e “tu” apontam para pessoas, enquanto
que a terceira pessoa (o “ele”) seria uma forma verbal com a função de exprimir a “não-pessoa”. Em suma, o
“eu” é a pessoa que fala e que, em falando, refere-se a si (coloca-se na terceira pessoa) e a outro (o “tu”); o “tu” é
uma pessoa que não pode ser pensada fora da proposição de um “eu”; o “ele”, por sua vez, é “aquele que está
ausente” (Benveniste 1966: 250), forma excetuada da relação através da qual o “eu” e o “tu” se especificam.
37 Afinal de contas, como diria Jacques Derrida (1999) e como não cessa de corroborar o pensamento
antropológico: “Il n’y a pas hors-texte” (194) .
47
De Crapanzano, reterei para essa análise a informação de que o sujeito é sempre
habitado, em sua aparente dualidade, por uma estrutura triádica de alteridade, que o condena à
eterna externalidade em relação a si mesmo e ao eterno vínculo (cognitivo e moral) com o
outro. No caso da “Sessão”, veremos como a função
38
de “terceiro” é ocupada de forma
variante e dramática por dois pólos opostos, que interferem de modo alternante na inserção do
fiel na textualidade ritual.
De Benveniste, por sua vez, reterei que essa estrutura triádica que compõe o sujeito
realiza-se como um movimento de designação, não de referencialidade. O “eu” é um dêitico,
um índex, e não um substantivo, portanto, a relação significativa entre o self e o “eu” se dá
como um apontamento, um dedo em riste, assim como a fumaça indica a existência do fogo
(mesmo quando este não é visto). Os pronomes pessoais são sempre palavras-evento. Através
deles, o sujeito constitui-se no interior da linguagem como um apontar-se para si mesmo
gerador de conseqüências práticas nesse objeto apontado, que seja, a estabilização de si como
um “si-Mesmo”, uma coincidência e uma identidade em relação a si.
A finalidade desta reflexão será a de dar acesso à concepção de pessoa defendida pelo
ritual de cura da IURD. No entanto, a utilização desses autores servirá como impedimento à
tentação de se construir apenas mais um “desenho da pessoa humana” (Segato 2003: 93), ou
uma “categoria” espacializada, como na tradição inaugurada por Mauss, que tem se mostrado
ineficaz na tarefa de se pensar o sujeito no tempo vivido, palco onde acontece o inevitável do
seu encontro com o outro que o constitui e que o descentra, e que tende a transformá-lo num
processo incessante de perda e de captura de si. Respeitando a etimologia do termo sujeito,
subject ou sujet, a minha intenção é abordar o problema do acontecimento coletivo da
subjetividade sob duas óticas interdependentes: i) a de um ente que é tema para si (e por isso
não é mais ente entre entes), indicando-se a dimensão cognitiva da reflexividade, e ii) a de um
ente que é fruto de uma sujeição, conseqüência de um poder que o constrange “de fora”, mas
que é intrínseco à sua estabilidade.
No esquema 2, logo abaixo, tentei dispor sistematicamente algumas informações sobre
as partes envolvidas nas trocas comunicativas que constituem o ritual de cura analisado. Nele,
observa-se a situação liminar do fiel diante de uma cosmologia polarizada em duas entidades
morais-mágicas: o “Espírito Santo” (terceira face de Deus, termo doador da graça da presença
38 “O terceiro não é nem real, nem imaginário, mas uma função que pode ser incorporada em seres reais e
imaginários” (Crapanzano 1992b: 93).
48
divina) e o “Diabo” (termo utilizado aqui como definidor de uma categoria, de uma posição
que é ocupada, como demonstrei, por inúmeros “espíritos”, na maioria das vezes de origem
afro-brasileira). Como tentei destacar na descrição do ritual, o indivíduo articula-se com esses
dois “terceiros”, que poderiam ser definidos como o Uno (idêntico a si) e o Múltiplo
(incompleto e por isso predatório) a partir de dois modos bastante móveis de relação: a posse
e a troca. Ambos constam como signos-chave da narrativa a partir da qual o sujeito se captura
e se exterioriza na Universal, estando, numa linguagem típica dos cultos afro-brasileiros, com
o corpo “aberto” ou “fechado” para relacionar-se.
Todavia, os movimentos de vinculação acima descritos se sucedem sempre de modo
variante e interdependente. Relacionando-se com o Espírito Santo, o fiel troca ritualmente
coisas e palavras pela graça, o que ocorre sempre através do intermédio do pastor.
Relacionando-se com o diabo, essa força anti-social, o fiel acaba sempre dando mais do que
recebendo, estando apto a vir a ser plenamente tomado por sua multiplicidade a partir do
estado em que se encontra o seu vínculo de troca com o sagrado, pólo hierarquicamente
superior. “Com rituais, danças e oferendas, o diabo induz o ser humano a abrir a sua vida às
forças do inferno, de sorte que este fica escravo dos espíritos, pagando um preço
incrivelmente alto pelos pequenos favores recebidos” (Macedo 2005: 16). A afirmação do
bispo Macedo descreve bem como estaríamos lidando aqui com uma dualidade hierárquica
entre um pólo dadivoso, doador de si (mediante uma retribuição sacrifical) e um pólo
predatório, que só se vincula ao outro tendo em vista o consumo da relação mesma,
49
confundindo as partes que trocam através da tomada de posse desse outro. Como afirmara um
pastor numa das ocasiões que presenciei em campo: “Para Deus eu peço, para o Diabo eu
mando”. Traduzindo esses termos para a linguagem da escola antropológica francesa
teríamos: com um se troca e se produz aliança, contra outro se guerreia para se assegurar essa
mesma aliança.
Para uma melhor compreensão desse fluxo diferencial de violência e troca, torna-se
necessário o desvelamento de algumas categorias-chave da cosmologia em questão, dentre
elas as de “doença”, “cura” e “salvação”, o que nos levará, ao fim do capítulo, a uma nova
percepção da noção de “posse”. Não mais restrita ao movimento de tomada do sujeito pelo
outro (a possessão), veremos como a noção de “posse” exerce sua centralidade nessa
cosmologia a partir de um sentido amplo, ordenando uma situação em que a propriedade
sobre as coisas e a propriedade sobre si articulam-se a partir de uma interdependência
ontológica.
Na descrição do culto, observou-se que a categoria nativa de doença envolve um vasto
campo de problemas: doenças físicas (como deficiências, situações crônicas e dores), doenças
emocionais (como depressão, ansiedade, tensão, instintos suicidas, compulsão, etc.), situações
sócio-emocionais (como problemas com os filhos, tensões maritais) e situações sócio-
econômicas (desemprego, baixo salário, pobreza). Trata-se de um tipo de “significante
flutuante”, que se aplica a qualquer tipo de desordem, e refere-se a uma concepção holista de
“saúde”, envolvendo elementos físicos, espirituais e sociais. O mal “entra” e “sai” da pessoa a
partir do momento em que ela se encontra “aberta” ou “fechada” para trocar com o Bem ou
ser possuída pelo Mal. No primeiro caso, declara-se que ela está “abençoada”, enquanto que
no segundo caso, declara-se que ela está “amarrada”. Essas foram as duas categorias
excludentes utilizadas para descrever o estado da pessoa nos cultos presenciados. Não há
meio-termo, ou se está com Deus, ou se está com o Diabo, mesmo que ainda não saibamos
disso.
A categoria de cura, por sua vez, diferente de outros grupos evangélicos e pentecostais
clássicos, é amplamente dissolvida pela IURD. Em seus cultos, não é gerada ou defendida
uma “ética da saúde”, ou da vida como santificação. Migra-se de uma teologia que tem o
“pecado” e a “tentação” como modos de intervenção indireta (leia-se ética) do mal em nossas
vidas, para uma demonologia fundada nos mecanismos da “possessão” e do “contágio”,
modos arcaicos do tornar-se outro religioso. Um outro aspecto em que se percebe bem essa
50
guinada pragmática é a forma de utilização da figura de Jesus Cristo, não mais tido como um
modelo de ação exemplar, mas como um médico ou um curandeiro, capaz de operar milagres
quotidianamente.
O pastor opera discursivamente no culto através de um duplo movimento ritualizado:
primeiramente, estabelecendo determinados eventos da vida dos fiéis enquanto sinais de
doença e, posteriormente, submetendo-os a uma realização performática da cura. Constrói-se
a doença, impõe-se dedutivamente o desejo de cura, pratica-se a cura e, assim, legitima-se a
gramática que a fundamenta.
As noções de cura e de doença são subordinadas pela fala do pregador, por sua vez, a
uma determinada concepção de salvação, de cunho econômico e radicalmente intra-mundano.
Salvar-se, para a IURD e para a maioria dos grupos neopentecostais, é conformar-se com a
vontade divina, é estar em harmonia com ela e, assim, realizar o seu destino individual, que é
a felicidade espiritual e material (Gomes 1994). Inserida nessa salvação, a posse, no sentido
estrito, que seja, a detenção de bens materiais (a saúde incluída) tendo como fim a sua fruição,
constitui-se como uma vocação teológica do neopentecostal, constando simultaneamente
enquanto sinal e finalidade da escolha divina.
No entanto, uma questão básica tende a surgir a partir do choque entre a realidade que
circunda o fiel e a narrativa salvacionista acima descrita: se a posse é o nosso destino, como
chegamos a romper com ele? Como a pobreza/mal entra em uma vida destinada à
riqueza/bem? Nesse momento de tensão lógica, o panteão das entidades maléficas encontra a
sua função, preenchendo um universo antes estático e inexorável com uma dramaticidade que
garante a sua felicidade enquanto meta-narrativa existencial. A presença dessas entidades faz
com que aconteça um deslocamento discursivo nos termo da salvação. Desse modo, ela deixa
de acontecer como um movimento na direção da graça e passa a ser compreendia como um
movimento de ataque aos impedimentos, às barreiras, que interceptariam nosso fluir natural
para o bem. Ao mesmo tempo em que explica os desvios de percurso e a presença do mal no
mundo, a ocorrência dessas entidades desestabilizadoras consegue retirar do sujeito a
responsabilidade pela fuga de seu telos hedônico. Acaba-se, assim, com a noção clássica,
bastante destacada nos episcopais, que compreende a dor como fonte de aprendizado, como
teste divino da crença e da moralidade de seus fiéis.
O fechamento semântico que define a dor como signo exclusivamente do mal resolve
uma forte ambigüidade que se origina no próprio seio do cristianismo, sendo amplificada por
51
seu mito de fundação: a dor que mata e que salva, a cruz que nos liberta, mas que universaliza
e torna impagável nossa dívida com Deus. Nietzsche, em sua Genealogia da Moral, qualifica
a morte do deus cristão como um “golpe de gênio”. Diz ele: “Deus mesmo, oferecendo-se em
sacrifício para pagar as dívidas do homem, Deus pagando-se a si mesmo, o credor
oferecendo-se pelo devedor, por amor ao devedor, quem o acreditaria” (1976: 42). O
sacrifício do filho de deus é o último dos sacrifícios, é o erro fundante, que transforma a
religião em um simples modo de se capitalizar moralmente esse evento crítico. Através da
noção de “dívida”, o filósofo desenvolve a tese de que o cristianismo seria, a princípio, uma
espécie de política do sujeito, capaz de exercer seu domínio a partir da proposição
universalista e individualista de uma relação íntima, hierárquica e impagável entre o fiel e a
divindade: a culpa. Esse fato, por sua vez, seria gerador de uma reflexividade e de um modo
de ser-no-mundo bastante específico, batizado por ele de “consciência endividada”.
Herrenschmidt (1982), em um belíssimo artigo, descreve o processo histórico de
dissociação, no interior do cristianismo, entre as dimensões da lei e do cosmos e aquela do
sacrifício eficaz, que tenderia a se tornar cada vez mais “simbólico”. Assim, diferente das
religiões de sacrifício, o cristianismo seria fundado em um “pacto”, ou seja, em uma troca
definitiva e irrevogável que abre a possibilidade de um Deus que administre o mundo à
distância. O sacrifício mais radical (o do filho de deus que é deus, ou seja, do deus mesmo)
seria, portanto, o sacrifício final. Migra-se, desse modo, de uma economia sacrifical
(indexical) para uma economia da culpa (simbólica), avessa aos mecanismos do tabu e do
ritual.
No caso da Universal, percebe-se que a dívida abstrata e universalista da cruz,
constituintes da máquina de subjetivação da culpa, volta a tomar um tom concreto e
particular, servindo como base textual para a abertura do sujeito a Cristo. Desse modo, o
“golpe de gênio” da IURD me parece ser recolocar o cristianismo novamente em um registro
sacrificial, retirando-o, em boa medida, do registro da culpa. Com isso, ela continua
administrando uma “política do sujeito”, mas que é expressa de forma hiper-ritualizada e
expiatória
39
. Diante do impasse entre um destino divinamente determinado e uma frustração
39Anulando a relação clássica entre Cristo/culpa afirma Macedo: “Tais pessoas precisam aprender e crer que
Jesus Cristo já fez, por toda humanidade, um sacrifício que lhes dá o direito de adquirir todas as bênçãos do
cristianismo (...) O que Ele espera de nós, é apenas que Lhes entreguemos totalmente as nossas vidas” (109).
Nesse caso, o sacrifício de Deus nos dota de direitos, não de deveres. Uma boa análise da dimensão
reivindicativa do discurso da IURD, que se justificaria pela colocação da teologia da prosperidade no registro
dos direitos adquiridos é feita em Birman (2001).
52
humanamente construída - cabendo lembrar que os demônios entram na vida dos indivíduos
ou através de um contágio (por toque ou ingestão) ou através do “trabalho” encomendado por
seus inimigos - a oferta, como sacrifício da posse, dispêndio daquilo que se deseja ao
despender, institui um universo de ação para o sujeito através da troca com Deus. A doação
(de si e das coisas) é o âmbito mesmo da liberdade humana sadia para a IURD, pois é o
espaço aonde se possibilita ao sujeito a retomada das rédeas de seu destino através da
recriação de seus vínculos com o sagrado. Doando, o fiel chama o “terceiro” ausente (o deus
silenciado) da teologia protestante para o jogo profano das trocas, para o dinamismo de uma
narrativa que enquadra o cotidiano como uma luta perene e irresoluta entre o bem e o mal.
O exorcismo e as curas se sucedem, nesses termos, como mecanismos de supressão das
influências maléficas da vida dos indivíduos, deixando o seu destino desimpedido em seu fluir
natural para a felicidade, que se dá enquanto tomada de “posse de si”. A “manifestação” das
entidades perturbadoras, a presença explícita delas ao longo do culto, serve como um contra-
modelo que abre uma outra dimensão da noção de posse. Assim como o “testemunho”, a
“manifestação” teria uma finalidade pedagógica, que seja, confirmar a felicidade da cerimônia
e defender, através de uma linguagem dramática, o caráter degradado da ambigüidade no
nível da construção da pessoa.
O ser-múltiplo, esse ponto em que o pentecostalismo toca as fontes ancestrais da
religiosidade
40
, é posto no ritual tendo em vista o reforço performativo do ser-uno. No
entanto, de um ser-uno resultante de um dar-se do sujeito, que abre mão de si mesmo e se abre
para as forças do bem. Utilizando-se da linguagem do inimigo (que também é a sua) Macedo
descreve as opções em jogo: “O homem tem toda a liberdade para escolher entre servir a Deus
e servir ao diabo. O homem pode ser ‘templo do Espírito Santo’ ou ‘cavalo’, ‘burrinho’,
‘aparelho’, ‘porteira’ de um exu, um caboclo ou demônios semelhantes” (Macedo 2005: 32).
A serpente do livre arbítrio, da liberdade mundana e laica, permanece biblicamente como o
ponto pelo qual se infiltra o mal nessa criatura feita à imagem e semelhança de Deus. O
homem é um ser livre, mas que habita um universo de alianças inevitáveis, por isso é sempre
“livre para dar-se”: ou dar-se num ciclo de troca que respeita a distinção entre as partes dadas,
constituindo-se em “templo”, ou dar-se num ciclo que, iniciando-se como troca, acaba
consumindo a relação em escravização e tomada de posse.
40 “Num certo sentido, o pentecostalismo reencontra as linhas de força do campo religioso brasileiro tradicional,
onde a multiplicidade, alteração e/ou alternativa de identidades manifesta-se de modo privilegiado pela
possessão e o transe” (Sanchis 1994: 49).
53
Com a manifestação dos encostos, destaca-se dramaticamente no ritual a luta do pastor
com o terceiro múltiplo que nos possui, que nos descentra, e que é derrotado e humilhado pela
posse de si, tomada pela intervenção da unicidade sagrada de Deus através do Espírito Santo,
o único capaz de toca o ambíguo sem o risco de contaminar-se. É interessante notar aqui o
caráter simbiótico da relação entre a IURD (o uno) e as religiões afro-brasileiras (o múltiplo),
pois mesmo codificando as entidades ambíguas da segunda como sendo moralmente
maléficas, a IURD não deixa de confirmar a eficácia de sua práxis mística, expondo uma série
de efeitos concretos alcançados pelos “trabalhos”. Em forte contraste estaria a visão católica,
que permitiria a convivência com esses cultos, mas somente sob a condição de reduzi-los a
“crendices” e “superstições” populares inócuas, e por isso inocentes.
Assumir a eficácia dessas forças do mal é a primeira atitude de uma estratégia que,
trazendo performaticamente esse outro para dentro da sua textualidade (a função da
“manifestação”), consegue ritualizar o próprio embate entre essas religiões e as visões de
mundo que elas sustentam. Englobando a “manifestação” no seu território sagrado, recebendo
os deuses inimigos no interior dos seus templos, a IURD consegue criar a sensação viva de
que o cristianismo é capaz de derrotar os seus supostos opositores em seu próprio campo de
combate, aquele dos espíritos, do invisível, dos objetos encantados e da possessão. No
entanto, como demonstra Almeida (2003), essa atitude de confrontação não se dá sem a
produção de pontos de continuidade, deixando como saldo de guerra uma espécie de
pentecostalismo “à brasileira”, marcado pela “imanência do sagrado, ausência de
responsabilidade e perda da consciência” (337).
Percebe-se, dessa forma, que “possessão” e “exorcismo” são termos que indicam, nesse
contexto, movimentos de subjetivação centrados numa noção ampla de “posse”, uma
categoria de origem econômica, mas que aqui remete mais a uma determinada atitude diante
da natureza, do outro e de si do que ao seu sentido estrito de “conjunto de bens”. Trata-se
antes de uma “economia vinculante”, teia textual que administra ritualmente a presença e a
escassez da graça de modo performativo.
No culto, a “posse” é desdobrada em três dimensões complementares, englobando tanto
i) a posse de bens (saúde ou dinheiro), sinal e fim da salvação, quanto ii) a posse de si, meio
da salvação, e iii) a posse pelo outro, predação e impedimento da salvação. Articulando como
um móbile essas três dimensões, a “tomada de posse” como atitude fundamental prescrita pela
narrativa ritual vincularia i) a economia (o bem desejado como objeto do “eu”), ii) a
54
subjetividade (o “eu” como objeto reflexivo do “si mesmo”) e iii) a alteridade (o “eu” como
objeto do “outro”).
No primeiro sentido (i), a “posse” é uma forma do sujeito neopentecostal encontrar-se
no mundo material, encontrando na fruição hedônica das coisas o sinal da sua graça. No
entanto, a ameaça do outro ambíguo, que toma o sujeito vindo de fora, nunca está plenamente
afastada. É o que se vê previsto na terceira noção de “posse” (iii), representada pela
“possessão”. Esse fato insere o sujeito num dilema cosmológico que o impele para um “outro
outro”, para um Deus que expõe a salvação não somente nas coisas (riqueza física e material
adquirida), mas também pelas coisas (riqueza despendida), abrindo-se o ciclo de trocas. A
questão da posse de si (ii), o segundo sentido da categoria, aquilo que mantêm o sujeito
“fechado” para o mal, torna-se possível pela abertura da relação sujeito/mundo, onde o
protestante clássico funda o seu ascetismo intra-mundano, para um “terceiro” presente e
circulador, cuja função mágica é ocupada por Deus e principalmente pelo Espírito Santo. O
tema da liberdade subjetiva, esse mote moderno, adentra aqui o campo religioso, mas de
forma sempre trágica e dinâmica, ou seja, anti-naturalista e anti-filosófica. O fiel “chega a si”,
a esse eu autêntico, somente através de um árduo caminho ritual que o leva a outrem, a um
terceiro uno e legitimador que, por fim, caba por fazê-lo não tão autêntico assim.
Conclui-se que a construção ritual da pessoa na Universal implica, a princípio, numa
atitude ativa prescrita pela “posse de si”, individualismo que, por sua vez, é amenizado pela
necessidade dessa posse dar-se sempre através de um outro com quem se troca, e por isso,
com quem não se confunde. No entanto, encantando o mundo com sinais e forças mágicas
anti-sociais, a IURD produz uma narrativa repleta de riscos ontológicos. A ameaça de
descentramento pelo outro com quem não se troca e, por isso, com quem nos confundimos
pela “possessão”, deve ser respondida pela alienação consciente, pelo sacrifício da liberdade
monádica de um individualismo profano. Sugiro que, quando dá a Deus, o fiel esteja de fato
se dando, ou seja, sacrificando, num gesto sintético, um projeto civilizatório que passa por
uma concepção específica de pessoa, e rejeitando, desse modo, as benesses modernas da
autonomia individual em detrimento de alguma segurança ontológica. Em suma: dar-se para
quem pode retribuir e, assim, fechar-se para quem pode tomá-la, esse seria o drama da pessoa
narrado por esta “Frente de Libertação”.
55
Capítulo 2:
Frente de ocupação: a disputa pelo cotidiano como “território
inimigo”
É hora de ação; é chegado o momento do desfecho da grande batalha; não fomos
levantados para retroagir ou para ficarmos entrincheirados, mas para atacar, combater e
vencer.
Temos que sair por aí, dizendo que Jesus Cristo salva, que batiza com o Espírito
Santo, mas também, e antes de tudo, liberta as pessoas oprimidas pelo diabo e seus anjos.
Bispo Edir Macedo – “Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?”.
56
No capítulo anterior, tentei recolher, ao longo da análise do ritual de libertação, algumas
categorias centrais à gramática que fundamentaria a narrativa religiosa defendida pela
Universal, assim como os mecanismos de inserção e construção pontual do sujeito em suas
teias textuais. A idéia de defini-la como uma “guerra ritual” de modo nenhum implica na
negação do caráter profundamente ritualizado das outras dimensões da ofensiva
neopentecostal
41
. Diferente de “realistas” (geralmente em sua versão funcionalista) que
localizam nos ritos uma estratégia de mascaramento de uma realidade de outra ordem (essa
somente acessada pelo antropólogo), abordei a “Sessão” de forma imanente, levando a sério o
seu universo de enunciações e não escapando do discurso nativo pela via da “representação”
ou da “metáfora”.
Com isso, não pretendo de forma nenhuma despolitizar o meu olhar sobre o ritual em
questão, mas, pelo contrário, intento entendê-lo como um universo concatenado de “palavras
de ordem”, ou seja, eventos comunicativos intrinsecamente performativos, de acordo com a
concepção de Deleuze e Guattari (1995), apresentada na Introdução.
A relação entre o enunciado e o ato é interior, imanente, mas não existe identidade. A relação é,
antes, de redundância. A palavra de ordem é, em si mesma, redundância do ato e do enunciado.
Os jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato de nos dizerem o que é
“necessário” pensar, reter, esperar, etc. (Deleuze e Guattari 1995: 17).
Assim, a relação necessária entre ordem e redundância poderia indicar o caráter
ritualizado de todo poder, que se disseminaria como uma espécie de enunciado poético, onde
a forma e o conteúdo estariam ancorados de modo indissociável.
Essa é uma visão que os filósofos e a IURD parecem compartilhar. Assim como a
“palavra de ordem”, a força ritualmente administrada pela Sessão do Descarrego, que tem
como suporte cosmológico a “infusão do Espírito Santo”, supõe um constante
entrecruzamento entre o falar e o fazer, que, como tentei demonstrar, não cessa de transformar
o vínculo simbólico, metafórico e arbitrário em indéxico, metonímico e necessário. A
natureza radicalmente performática do agenciamento religioso analisado no capítulo anterior
41 O antropólogo britânico Edmund Leach me parece ter sido o primeiro a apontar para a necessidade de se
desconstruir o caráter extraordinário dado à “ação ritual” pela teoria antropológica, transformando-a agora numa
perspectiva, num ponto de vista particular a partir do qual se constitui um discurso sobre o social: “(...) técnica e
ritual, profano e sagrado, não denotam tipos de ação, mas aspectos de virtualmente qualquer tipo de ação. A
técnica tem conseqüências materiais econômicas que são mensuráveis e predizíveis; o ritual, por outro lado, é
uma declaração simbólica que ‘diz’ alguma coisa sobre os indivíduos envolvidos na ação” (Leach, 1996: 76).
Rompe, assim, com a longa tradição durkheimiana, que tendia a engessar o ritual como um tipo específico de
ação, referente ao universo do sagrado.
57
serviu bem para apresentar a atitude prescrita por essa concepção nativa de palavra, que
simultaneamente veicula e atualiza a força que nela é veiculada: “Se na igreja o poder de
Deus sobre os demônios não for exercitado, ela se transformará em um clube ou uma escola
bíblica. Evangelho é poder, e poder tem de ser exercido para a derrota de satanás e glória de
Deus!” (Macedo 2005: 126).
Com a Sessão do descarrego, observamos a face “libertadora” desse poder, capaz de
invadir o campo inóspito da possessão e resgatar, através de uma negociação ritualizada,
aqueles fiéis dispostos a entregar contratualmente as suas vidas (e parte dos seus bens) a
Deus. Encerrada essa fase, resta aos libertos a necessidade de preservar o seu fechamento
ritual diante das outras forças que habitam o mundo, ou seja, a força do outro, plenamente
reconhecida em sua eficácia maléfica. Cabe a eles agora buscar no mundo não mais os velhos
e seletivos sinais da graça, já que como vimos, a IURD declara democraticamente que
estamos todos fadados à felicidade (e essa seria a face por excelência da sua graça intra-
mundana), mas sim sair às ruas à caça desse outro que é fonte do mal. Dessa teodicéia
guerreira resulta, portanto, não o ascetismo ativo, típico dos protestantes históricos, que os
articula ao mundo e ao si mesmo através da ética do trabalho e da vigilância moral, mas uma
forte motivação à predação do outro e a tudo que com ele faz contigüidade, compondo um
campo externo à sua aliança, e cujo contato insere o risco no cosmos contratual do sujeito
religioso.
Ocupando a “Cidade dos Orixás” animados por essa atitude fundamental, esses fiéis
deixam o campo seguro da sua territorialidade ritualmente consagrada
42
e passam à cena
pública como um “território inimigo”, onde o mal e os seus intermináveis ciclos de contágio
instituem a insuportável presença do outro no silêncio da intimidade, no burburinho das ruas,
nos batuques dos terreiros, nas imagens das praças e das lojas, no sabor sedutor das comidas,
assim como nas profundezas do si mesmo. Invadindo terreiros, pregando nas ruas, quebrando
“ídolos”, sempre munidos de Bíblia, sal grosso e enxofre, esses indivíduos saem da
insuficiente “frente de libertação” rumo à “frente de ocupação”, partindo da luta ritual pelo
“corpo-território” (Segato, 2005: 18), onde os fiéis retomam a posse-de-si doando-se a Deus,
42 Refiro-me aqui aos templos ou, nos termos utilizados por Macedo na epígrafe deste capítulo, às “trincheiras”.
A relação dentro/fora, templo/rua é constantemente atualizada por várias instâncias discursivas da IURD como
sendo uma oposição entre trincheira/campo de batalha, ou seja, entre uma série delimitada de pontos
consagrados (dotados de segurança) cercados por um imenso universo de riscos.
58
para uma explícita disputa pela cidade, onde o objetivo passa a ser a tomada de posse do
outro-como-mal, esse mesmo outro que “toma posse”.
A “frente de ocupação” neopentecostal será aqui vislumbrada a partir de 3 de suas
fileiras: i) a fileira midiática, onde se dá a entrada de um novo personagem em cena, o
feiticeiro, assim como a divulgação em massa dos rumores de feitiçaria; ii) a fileira
responsável pelos atos individuais de violência e pelas invasões de terreiros visando o
exorcismo no território inimigo; e iii) a fileira responsável pela retirada do mal do espaço
público através da disputa político-religiosa por determinados elementos da cultura material
da cidade, habitando-se a fala silenciosa das coisas como mais um campo de batalhas.
I- “Guerra de informação”: a produção confessional do inimigo e a disseminação
rumorosa do risco
Ao longo de seus 29 anos de existência, a IURD tem registrado um crescimento
espantoso em seu número de seguidores, espalhando curas, demônios e polêmicas ao redor do
globo. Registrou, conjuntamente, o não menos espantoso aumento do seu patrimônio material,
vindo a constituir-se hoje num imenso império político e midiático. Tal gigantismo material
transforma a disputa aqui analisada em uma luta infinitamente desigual. Além de seus mais de
2000 templos espalhados por 39 países (estando mais de 80% deles no Brasil), a IURD é dona
de da Rede Record de Televisão, da Rede Mulher (UHF) e de um grande número de jornais e
revistas religiosos e comerciais, além de uma gravadora de música e uma série de estações de
rádio (Fonseca, 2003). Além disso, ela é possuidora de uma editora, responsável pela
publicação dos livros escritos por Edir Macedo e por outros bispos da organização. No ano
passado, a IURD deu um imenso passo para o seu avanço também na área política com a
fundação do PMR, “Partido Municipalista Renovador”, que já conta em seus quadros com
membros ilustres, como o vice-presidente José Alencar.
A utilização de meios de comunicação de massa por parte dos evangélicos no Brasil não
é nenhuma novidade. Já nos anos 60, observa-se um inventário extenso sobre a ocupação
evangélica das emissoras de rádio (Souza 1969). No entanto, somente na década de 80 este
segmento religioso começa também a disputar com os programas comerciais os horários das
redes de televisão, provavelmente influenciados direta ou indiretamente pelo avanço do “tele-
evangelismo” norte-americano, avaliado em suas dimensões e implicações por Carvalho
(1997), que demonstra como a processual instalação de um “mercado livre” no campo das
59
comunicações nos EUA se deu de fato como a estabilização de um monopólio da direita cristã
na mediação e na codificação da opinião pública desse país.
Assim como em outros aspectos da sociedade brasileira, a entrada da IURD no campo
das telecomunicações ocorre de forma radicalmente inovadora, incidindo mais uma vez
gramaticalmente, e não pontualmente, no seu universo de relações. Pois se de início a
organização adota a estratégia então comum em denominações evangélicas de se alugar
determinados horários na programação dos canais comerciais, com o passar do tempo, a sua
faceta comunicadora passa a aparecer de modo mais incisivo, culminando na polêmica
compra da TV Record, fortemente questionada na época pela justiça e por outros meios de
comunicação. Esse evento-chave fez com que a Universal passasse a cumprir a dupla função
de objeto e de parte estruturante da opinião pública brasileira, de notícia e de noticiário,
explorando em seus canais de rádio e de televisão uma programação ao mesmo tempo laica e
religiosa.
Se, sob o aspecto formal da ocupação dos aparelhos de comunicação de massa, a IURD
adequa-se ao movimento transnacional de evangelização-americanização
43
, sob o ponto de
vista das estratégias comunicativas, diria que esse grupo teria desenvolvido um idioma
bastante autóctone, e que viria a ser apropriado por uma série de outras denominações do
evangelismo brasileiro. Diferente do modelo dos “pregadores eletrônicos”, tipicamente norte-
americano, e representado no Brasil pela figura do bispo R. R. Soares (Igreja da Graça), os
programas religiosos produzidos e veiculados pela IURD se desenrolam a partir de uma
lógica menos personalista, além de menos focada no modelo comunicativo da pregação. Com
isso, a Universal consegue dar um substrato fortemente performativo aos seus programas de
televisão, apesar da relação ultra mediada entre emissores e receptores postulada por esse tipo
de suporte comunicativo. Juíza de uma série de acordos inusitados, a IURD parece aqui ter
conseguido articular mundos tão díspares como o simulacro televisivo (a mediação e o
adiamento ao infinito) e o presentismo sagrado da experiência religiosa.
Quando designo o caráter performativo, mais do que informativo, desses programas de
televisão, refiro-me especificamente a dois aspectos centrais. Primeiramente, ao aspecto da
eficácia ritual, pois ao longo deles, abre-se a possibilidade de ocorrência de uma série de
transferências de ordem mágica, como no exemplo já famoso do “copo d’água”, que é
43 “(...) há uma complexa relação entre essa forma de religiosidade que se expande através de um marketing
poderoso e um ethos específico do capitalismo que se desenvolveu nos Estados Unidos ao longo deste século e
que agora assume proporções mundiais” (Carvalho, 1997: 2)
60
consagrado pelo pastor através das ondas de transmissão e ingerido pelo fiel em casa de modo
a purificar-se
44
. No entanto, esses eventos sempre se dão em número reduzido, servindo como
um tipo de “amostra” do poder que se realiza em toda sua plenitude nos rituais da igreja, e
sempre são precedidos pela divulgação dos horários e funções dos cultos: “Se você se sentiu
bem com esse copo d’água, telespectadora, compareça às Reuniões da Felicidade: 2ª -
prosperidade, 3ª - sessão do descarrego e reunião de cura, 4ª - filhos de deus, 5ª - família, 6ª -
libertação, Sábado - terapia do amor, Domingo - louvor e adoração”.
Por outro lado, esses programas se baseiam na ampliação do espectro do modelo
comunicativo dos “testemunhos”, analisado no capítulo anterior, mantendo-se a estratégia ou
de afirmação vivida da felicidade do poder de cura ritual, o que ocorre com a entrevista de
determinados fiéis que tiveram a sua sorte transformada após freqüentarem as reuniões e
fazerem as “correntes” da Universal, ou de universalização e confirmação do mal antes
dramatizado para além do contexto discursivo restrito do ritual, o que se dá pela entrevista
com antigos “pais” e “mãe-de-santo” que se converteram à Universal e que agora desvelam
determinados segredos das suas supostas práticas maléficas.
Percebe-se que a própria entrada da IURD nos meios de comunicação de massa já seria
marcada por essa aproximação parasitária dos cultos afro-brasileiros:
A origem da Universal é associada ao uso do rádio. Somente após a veiculação de um programa
de quinze minutos, antecedendo a um programa de uma mãe de santo, é que a Igreja começou a
crescer. Diante dos resultados, passou a fazer parte da sua estratégia alugar horários antes ou
depois de programas mediúnicos para “aproveitar a audiência” (Fonseca 2003: 364-5).
Essa aproximação inicial pode ser lida como uma espécie de “mito de origem” do
discurso midiático da IURD, tratando-se tanto de um evento histórico pontual quanto da
proposição originária de uma lei de captura, de um tipo de redundância, em suma, de uma
estratégia textual.
Os programas são compostos por uma série de situações dialógicas, conversas
orientadas por algum pastor da instituição, onde indivíduos empenham publicamente o seu
“eu” de modo confessional. Esse seria um modo bastante eficaz de se dotar de autoridade e de
verificabilidade a narrativa defendida pela Universal, produzindo-se um sujeito que a justifica
textualizando-se. Nesse caso, não se trata de apontar o dedo para o ele-como-mal, mas de
44 Parece-me que a alegoria durkheimiana do sagrado como uma energia que perpassa um circuito animando-o é
aqui aplicável com extrema exatidão, expondo-se a insólita união entre o arcaísmo e ultra-modernidade que
marca a IURD.
61
declarar-se um “eu” que se responsabiliza por esse mal, tornando o apontamento deste “ele”
uma mera conseqüência dedutiva desse primeiro nível enunciativo.
Tentarei mostrar, através da descrição de uma série de trechos recolhidos de alguns
programas, como se realiza, ao longo dessas narrativas, a produção e a disseminação de um
universo de risco eminente através dos fatos e dos feitos da feitiçaria. No caso de Salvador,
focarei aqui excertos do programa “Ponto de Luz”, que ia ao ar pela TV Itapoã (a emissora
local da Rede Record), de segunda a sexta às 13 horas, e que teve sua emissão interrompida
pelo poder judiciário baiano. Utilizarei também, como material etnográfico, o controverso
livro de Edir Macedo, Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, obra de altíssima
circulação (segundo a chamada na capa do mesmo livro “mais de 2 milhões de exemplares
vendidos”) e que chegou recentemente a ter a sua venda proibida pelo Ministério Público.
Nesse ambiente de poucas pregações e de muitos testemunhos, sejam eles “do bem” ou “do
mal”, veremos como se divulga o receio e o medo sobrecodificando-se uma das principais
linhas de força da religiosidade brasileira: a magia e o mundo invisível dos espíritos.
O programa, que conta com uma larga audiência em Salvador, é iniciado pela
transmissão de partes de determinados cultos da IURD, assim como pela veiculação de
testemunhos de fiéis. Depois de algumas propagandas, que indicam o horário e os endereços
da série de templos da Universal em Salvador e em sua zona metropolitana, parte-se para a
seção que ocupa a maior parte das duas horas e meia de duração do programa. Nessa etapa,
geralmente dois pastores dialogam livremente entre si, respondendo dúvidas que chegam a
eles através dos telefones, entrevistando pessoas e, na maior parte do tempo, contando “casos”
e analisando determinados eventos trazidos a eles pelos entrevistados ou pelos telespectadores
que os abordam por telefone
45
. Aí vão alguns desses casos:
a) Os conflitos amorosos e os riscos da intimidade
Ao longo de um programa que tratava do tema “divórcio”, mal que, de acordo com
bispo Sérgio, um dos pastores em cena, “assolava a família brasileira sem dó nem piedade”,
45 De acordo com a descrição de Fonseca (2003), baseado numa pesquisa feita com o mesmo programa em sua
versão carioca: “Num balcão em estilo jornalístico, os bispos Romualdo – que aparece na legenda como o bispo
dos desesperados – e Guaracy debatem sobre a ação dos encostos sobre a vida das pessoas, ao mesmo tempo em
que atendem telefonemas de aflitos e ouvem os comentários especializados – como em programas esportivos –
de deus ex-adeptas de religiões mediúnicas” (267) O “Ponto de Luz” aparece em 2001, como complemento
midiático e corroboração discursiva das “Sessões do Descarrego”, analisadas no capítulo anterior e à época
recém criadas pela IURD.
62
começa a ser descrito um caso que havia chegado aos seus ouvidos em uma sessão de
atendimentos. Diz ele: “O sujeito me disse que uma mulher, com quem ele tinha saído umas
três ou quatro vezes por fora do casamento, uma simples brincadeira, coisa de uma noite,
tinha feito um mal danado na vida dele. Quando ele quis voltar pra sua esposa de vez, parar
com aquilo, ela lhe disse: ‘Não, se você não for meu não vai ser de ninguém!’. Rogou a
praga”. O “pastor Márcio” então interfere, demostrando que se trataria de um fenômeno
recorrente: “Sim, isso acontece mesmo, elas ficam até com algum objeto, essas mulheres, com
o intuito de fazer algum feitiço. Roupa íntima, essas coisas...”. O “bispo Sérgio” continua:
“Pois é, o casamento acabou mesmo, era só briga depois que essa mulher aconteceu na vida
do camarada”. E completa finalizando: “Tem caso até de impotência, mas só com a esposa,
com a outra não!”.
Dois pontos parecem se destacar aqui de imediato. Primeiramente, o fato do adultério
do marido, um dos mandamentos bíblicos, ou seja, suposto fundamento moral da religião
cristã, não ser mencionado em nenhuma hora ao longo da discussão. O fato da traição,
assumida pelo homem ao pastor, não aparece em nenhum momento como algo a ser avaliado,
julgado ou repreendido. Afinal de contas, aquela mulher tinha sido somente “coisa de uma
noite”. Por outro lado, a referência à intimidade, esse antigo santuário do sujeito moderno,
aparece sempre como um espaço de vulnerabilidade, de abertura do sujeito para a possível
entrada do mal em seu destino. O caso citado torna-se, sob esse aspecto, um exemplo da
infinidade de casos com que tive contato em que conflitos amorosos acabam gerando
conseqüências nefastas para o futuro da pessoa. Peças às quais somente a intimidade daria
acesso, como as roupas íntimas, são sempre os mediadores metonímicos a partir dos quais as
vítimas são atacadas, geralmente por mulheres rancorosas ou invejosas que apelam às técnicas
mágicas da feitiçaria.
“Olha só pastor, temos aqui uma mulher com 4 filhos, cada um de um pai diferente,
prostituta, pobre, moradora de Camaçari (cidade industrial próxima a Salvador). Ela fez uma
aliança com os encostos para prender um namorado. Eles fizeram o serviço pastor, mas
também cobraram tudo, e não restou nada em pé na vida dela”. Se as relações amorosas são,
convencionalmente, um âmbito permeado por tensões e desentendimentos, elas passam a ser
um universo especialmente propício à ação dos “encostos”, essas entidades anti-sociais,
aparentemente abertas às negociações rituais, mas que de fato são avessas a qualquer espécie
de contrato, pois sempre cobram mais do que o sujeito pode doar, vindo a cobrar, no limite, a
63
sua própria existência. No livro, Macedo descreve um desses casos, deixando claro que
nenhuma das partes desses litígios tende a prevalecer, já que os demônios seriam um meio
predatório de se acessar as coisas, um mediador que, diferente do Espírito Santo, exaure as
partes mediadas em sua ação:
Vejamos um exemplo: uma mulher inspirada pela pomba-gira se apaixona por um homem
casado e procura umbanda, quimbanda ou candomblé para resolver o seu problema. Fala com
um pai-de-santo ou uma mãe-de-santo, que incorpora um guia, e promete a solução desejada
pela consulente. A mulher conta o seu drama e pede que o guia afaste a esposa do seu amante, e
ele responde que fará isso. A pessoa, no entanto, tem de presenteá-lo com uma garrafa de
cachaça e muitas coisas mais. Passados alguns dias, acontece alguma coisa com a esposa
daquele homem, desde um ataque de loucura até um acidente que leva à morte e, aí, os dois
passam a viver juntos. O que o novo casal não esperava é que os demônios passassem a
conviver com eles. As constantes rixas e brigas intensas, seguidas de doenças e infelicidade
acabarão por destruí-los. Ela começa a sofrer uma série de enfermidades; ele perde o emprego;
as crianças vivem doentes; surgem os problemas íntimos, as brigas, as discussões ... até que se
separam. (2005: 105).
O caso demonstra bem como a abertura da relação por parte do fiel, a oferta enquanto
“trabalho”, acaba, por fim, gerando o consumo da relação mesma. Esses espíritos retribuem
aos indivíduos somente às custas desse consumo, que resulta na tomada de posse predatória,
no englobamento do pólo humano pelo pólo sobre-natural. Macedo conclui: ”Nenhum
demônio, por mais ‘bonzinho’ que pareça, faz algo que ajude alguém. Ele não tem nada para
dar; é enganador, traiçoeiro e mentiroso”.
Tentando demonstrar como casamentos sólidos e sem nenhum problema aparente
podem vir a se desmanchar muito rapidamente, já que tenderiam a se tornar cada vez mais
visados pela inveja e pela cobiça de terceiros (o “mal olhado”, da religiosidade popular), o
pastor conclui a sua fala com uma frase extremamente recorrente: “Pois é pastor Sérgio,
quando se está bem, se atrai um monte de mal olhado. Ou você faz uma aliança com Deus, ou
faz uma aliança com os encostos”. Não há ponto pacífico num universo de risco e de contágio
irrestritos.
b) Inimigo indigesto
Um outro tipo de caso bastante recorrente nesses programas, esse de alguma forma
também articulado ao universo da intimidade, é o que se refere às comidas “trabalhadas”. O
livro de Macedo já destaca que um dos sete modos dos encostos se apoderarem das pessoas
64
seria “por comidas sacrificadas a ídolos”, tipo de contágio que geralmente vem acompanhado
por dores misteriosas no estômago ou por doenças ligadas ao aparelho digestivo:
Um senhor chegou até nós afirmando sofrer de um problema no estômago há 10 anos. Disse que
foi submetido a cinco operações cirúrgicas, mostrou as cicatrizes, e nada, absolutamente nada o
curava. Sentia dores fortíssimas e nem ao menos podia tocar com os dedos na região do
estômago. Os médicos não resolveram o problema e sua situação era insuportável. Ao receber a
oração da fé, o demônio foi expelido da sua vida. Era um espírito maligno que o fazia sofrer do
estômago, simplesmente por causa de uma comida “trabalhada” que este homem ingeriu. Assim
que o demônio foi expulso daquele corpo, o homem ficou imediatamente curado e glorificou a
Deus (42).
É freqüente também a narrativa em que uma mulher, insatisfeita com seu marido por
algum motivo, recebe de uma “mãe-de-encosto” (o modo comum de se referir às mães-de-
santo na IURD) determinados temperos “trabalhados”, que devem ser utilizados no preparo
dos alimentos desse homem tendo em vista causar ou determinados males (geralmente em
casos de traição) ou benefícios que, por fim, acabam se tornando portas de entrada para o
poder escravizador dessas entidades no seio familiar.
No caso específico de Salvador, salta aos olhos a repetição dos alertas referentes às
comidas amaldiçoadas, principalmente pela centralidade dos alimentos ligados à tradição
afro-brasileira na culinária baiana, o que potencializa a infiltração do discurso da feitiçaria no
cotidiano das pessoas: “Pastor Márcio, o problema não são os acarajés, os sururus, os carurus,
etc. O problema é o feitiço que está neles, que vem das pessoas que os preparam”.
Esses alertas tornam-se ainda mais intensos nas épocas de festa popular. Os
“tabuleiros de Omolú”, que saem às ruas no fim de agosto distribuindo pipocas, e a festa dos
Ibejis, que acontece no final de setembro e tem como ação ritual obrigatória a distribuição de
caruru por parte das iaôs
46
, foram dois exemplos, durante o tempo em que eu estive na cidade,
de ocasiões de intensa multiplicação dos rumores de feitiçaria, tanto nas sessões de libertação
quanto nos programas de televisão: “Setembro vocês sabem que é um problema, cuidado com
que vão colocar na boca, lá pode morar o inimigo!”. As festas em terreiros, que geralmente
terminam num grande banquete ritual reunindo adeptos e convidados são também alvo de
fortes e repetidas advertências por pare dos pastores: “Tem gringo que volta pra casa com
uma dor no estômago! E nem sabe o que é que foi”.
c) A força dos “trabalhos”: das vítimas aos mediadores pela voz do feiticeiro
46 Nome em iorubá que significa “esposa dos deuses”, usado para designar as iniciadas.
65
A comensalidade é apenas um dos suportes sócio-culturais sobre os quais a IURD
constrói o círculo vicioso da sua demonologia. Ao longo do livro, Macedo acrescenta a ela
mais seis formas de contágio: hereditariedade, participação direta ou indireta em centros
espíritas
47
, trabalhos ou despachos, maldade dos próprios demônios, envolvimento com
pessoas que praticam o espiritismo e rejeição a Cristo. Dentre essas sete causas, os
“trabalhos”, ou “despachos”, costumam ocupar um lugar privilegiado, constando como as
principais técnicas de “abertura” do sujeito para a entrada do poder predatório dos demônios
em suas vidas. A força desses trabalhos, a sua eficácia maléfica, é constantemente
corroborada nos programas de televisão, principalmente através de entrevistas com ex-mães e
pais-de-santo.
Ao longo desses quadros televisivos, o foco então sai das vítimas e das conseqüências
dos “encostos” e transita para os mediadores mágicos dessas entidades. Esse é o momento em
que um novo personagem, inexistente no drama ritual descrito no primeiro capítulo, entra em
cena: o feiticeiro. Observa-se então um progressivo prolongamento da dimensão confessional
do discurso da IURD, superando a simples “manifestação” performática das entidades
demoníacas, que, como vimos, responsabilizam-se explicitamente pelos males que levam as
pessoas a essas reuniões, e indo na direção dos mediadores mágicos que costumam
administrar essas forças maléficas. Os feiticeiros aparecem, nesses termos, como a contra-
parte dos pastores, já que exerceriam a mesma função, ou seja, a produção de alianças, só que
numa lógica simetricamente inversa, pois relativa ao pólo “mal” dessa mesma gramática.
Para melhor ilustrar essas entrevistas, passo agora à análise do programa “Ponto de
Luz” de 9 de janeiro de 2003. Após muitas reclamações vindas do movimento negro baiano e
dos órgãos de imprensa, esse foi o episódio selecionado pelo Ministério Público para realizar
a análise da constitucionalidade desses programas, resultando num processo contra a IURD
que resultou na proibição da sua execução na cidade de Salvador.
O episódio é iniciado pela simulação de uma situação de desavença familiar causada
por um “trabalho” encomendado numa “casa de encostos”. Ao longo da dramatização, feita
com atores contratados, mas que teve seu roteiro baseado em casos que chegaram à igreja
através de fiéis reclamantes, aparecem uma série de instrumentos sagrados típicos do
candomblé sendo manejados ao som intenso de atabaques. Encerrada a pequena narrativa, a
47 O termo “espíritas” é utilizado ao longo de todo o livro e engloba os centros de candomblé, umbanda,
espiritismo e quimbanda. Juntas, essas religiões comporiam o campo maléfico e uno do “espiritismo”.
66
câmara volta para os dois pastores que dirigiam o programa naquela tarde, o pastor Sérgio e o
pastor Gilberto, que explicam para os telespectadores a diferença entre a “maldição lançada”,
feita através do manejo ritual de objetos e de palavras, a “maldição hereditária”, causada por
um contato prévio de alguma ascendente da família com as chamadas “casas-de-encosto”, e a
“maldição proferida”, que afeta a vítima através das palavras a ela dirigidas, o “rogar praga”
da religiosidade popular.
Na segunda parte do programa, os pastores entrevistam uma senhora, dona “Maria
Macedo”, que passa a se identificar como ex-mãe-de-santo de um terreiro de candomblé.
Transcrevo na íntegra um trecho da entrevista, que começa com a palavra de confissão:
Maria: Sim, trabalhei 22 anos fazendo o mal para os outros, chegando até a matar pessoas com
24 horas. Fiz um trabalho e essa pessoa morreu, foi uma amante que pediu para.... Pastor
Sérgio: A amante pediu para matar a esposa... M : Eu e a pessoa que trabalhava comigo. Nós
fizemos um trabalho e ela morreu com 24 horas. S: 24 horas... M: Com 24 horas. S: Morreu de
quê? M: Deu assim uma dor, porque a gente fez um trabalho assim com muita coisa, inclusive,
até com coração de boi, faca virgem, tudo então, a gente fez este trabalho à meia noite e com 24
horas... S: À meia noite é forte né? M: É forte.
Como duvidar de uma confissão? Daí a importância central dos pastores, obreiros e
fiéis que transitam do candomblé para Universal, eles representam a autoridade evidente do
seu discurso. A própria fala de Edir Macedo, referência maior da Universal, nunca cessa, em
suas declarações em livros, pregações ou para a imprensa, de se alimentar na autoridade
proveniente da sua situação de “ex-macumbeiro”. Diria inclusive que a “libertação” de
praticantes de cultos afro-brasileiros, esse movimento descrito no capítulo anterior como algo
que parte da escravização pelas forças do mal, passa pelo sacrifício de si e chega ao contrato
redentor com o bem, funcionaria como a alegoria mestra, a síntese da visão trágica de mundo
em que se funda esse cristianismo da insegurança, uma alegoria que é sempre movimento,
negociação, quebra e reconstrução de vínculos. Nesse sentido, não se trata apenas do uso
restrito da lógica da “acusação de feitiçaria” para a compreensão dos infortúnios, de acordo
com a linguagem que a antropologia britânica tornou clássica em seus estudos na África
negra. Também a lógica da confissão da feitiçaria, assim como nos tribunais inquisidores do
séc. XVI, toma importante papel aqui, sendo encenada de modo bastante particular.
Essa estratégia dúbia, de acusação-confissão, apresentou-se de forma ainda mais radical
num outro programa, emitido pela TV Aratu e organizado pela Igreja Batista do Caminho das
Árvores, demonstrando também a disseminação do modelo comunicativo da IURD para
67
outras denominações evangélicas. Nele, a suposta feiticeira liberta começa com as descrições
de praxe: “Os orixás e o exu são coisas do demônio. Eu já ralei osso de defunto pra fazer
‘pemba’ (tipo de pó usado em feitiços). Tem um trabalho no candomblé em que a pessoa
come carne de defunto, manifestado com o demônio”. A seguir, é o próprio pastor, que,
tomando a palavra, assume as acusações e o falar-de-si, colocando-se abertamente como um
ex-endemoniado:
Isso é obra de Deus? Isso é trabalho do diabo. Ir pro cemitério, corromper coveiro para comer
carne de defunto. Se você que está me ouvindo quiser, está aberto aqui o meu programa pra
você vir, você que é pai de chiqueiro, você que é pai de demônio, você que é pai de santo ou
mãe de santo. Venha pra cá, para o programa debater comigo. Está aberta a câmara para você
vir pra cá, para eu lhe mostrar como que eu trabalhei pro diabo, quando eu era ogã
48
de terreiro
de umbanda.
A fala do pastor é então corroborada por um colega, que coloca de forma explícita o
tema da autoridade daquele ponto de fala, a de um antigo “nativo” da feitiçaria: “Átila
Brandão (o nome do pastor) não está contra a raça negra, mas sim contra a prática do
candomblé, a prática da feitiçaria”, e assevera, “se Átila Brandão hoje protesta, é porque tem
autoridade e sabe que não presta”
49
.
Não estamos aqui diante de uma simples estratégia de adiamento da culpa, imputando-a
ao outro, esse outro que, como no caso da bruxaria africana (Evans-Pritchard 2005), nunca
assumiria a dádiva-veneno
50
desse “eu” a ele doado, mas sim de uma máquina de produção de
“evidências”, do fato mesmo da feitiçaria através da boca de pessoas que, asseguradas pela
lógica da libertação, falam de um si mesmo passado sem ter que responder por ele
contemporaneamente. Nesse caso, atraído por essa espécie de “lógica da des-
reponsabilização”
51
e do esquecimento-de-si sobre a qual se instalam esses grupos, aquele
48 Cargo masculino do candomblé, tido em Salvador como protetor e zelador do terreiro.
49 As citações explicitam bem a espécie de “autoridade etnográfica” que faz parte da estratégia comunicativa
dos pastores, fundada num “eu estive lá” semelhante ao observado por Clifford (1998) em suas análise da
narrativa etnográfica. Aqui, como na etnografia, trata-se de construir um jogo duplo, onde a subjetividade é
textualizada de modo a representar um outro ponto de fala, estando simultaneamente dentro e fora do universo
textual e moral desse outro, e se apropriando das benesses desses dois estados subjetivos.
50 A noção de “dádiva-veneno”, retirada das investigações de Mauss (1999b) acerca do interessante fato
lingüístico da mesma palavra designar, em uma série de línguas indo-européias, tanto “presente” quanto
“veneno”, é utilizada aqui tendo em vista evitar a associação costumeira entre reciprocidade e generosidade, ou
gratuidade, resolvendo-se as ambigüidades que estruturam a dádiva em apenas um dos seus pólos. Nesse sentido,
observa-se que o significante “feiticeiro” pode ser entendido como uma dádiva-veneno, visto que o circuito do
seu ponto de fala está sempre implicado numa doação de ilegitimidade, que circula vindo do outro através das
acusações e da produção a posteriori das evidências do mal.
51 De acordo com Ricoeur (1983), a “responsabilidade” seria um modo específico do sujeito colocar-se para si
mesmo (exercer a ipseidade) que teria como suposição básica a estreita continuidade temporal entre o eu e o self.
68
que no capítulo anterior era bode expiatório, desviando a culpa e propiciando a “libertação”
alheia, torna-se agora réu confesso, já que o “eu” empenhado sem já fala não se situa mais no
mesmo ponto que antes.
Por outro lado, ao discurso evangélico da conversão alia-se estranhamente uma fala
orgulhosa da sua capacidade maléfica, que descreve sem pudores as fórmulas mágicas e os
terríveis efeitos que elas são capazes de produzir: “chegando até a matar pessoas em 24
horas”. Essa fala não deixa de lembrar uma apropriação negativa de determinados aspectos de
alguns segmentos mais cristianizados dos cultos afro-brasileiros, como a umbanda e a
quimbanda, que dotam de prestígio as alianças com os espíritos do chamado “mundo da
esquerda”, e que indicaria, segundo Carvalho (1988), o fascínio que persiste em associar a
religião aos temas fundamentais da transgressão e da violência
52
.
Pastor Gilberto: Agora um detalhe do que você falou, o senhor vê a questão do sacrifício. A
amante fez um trabalho a tal ponto que deu o coração de boi, deu faca, talheres virgens, uma
relação... Maria: Muita coisa... Pastor Sérgio: Isso custa, ela teve que pagar, não teve senhora?
M: Pagar, inclusive tem um dinheiro que a gente pede... G: O dinheiro, ah! Ela tem de dar o
material e ainda tem de pagar o dinheiro do chão... M: E ainda paga a pessoa que vai com a
gente pra arriar. G: Aí o senhor vê. É a estória de que o bem perde para o mal. O senhor vê é a
esposa é que tem direito. A amante entrou no casamento, fez o trabalho, sacrificou e com 24
horas a esposa morreu, resultado do sacrifício. É uma fé negativa, mas é uma fé, para o encosto.
Ora...S: A esposa do rapaz não tinha proteção do pai das luzes. G: Por isso que aconteceu isso.
S: E acontece mesmo. G: Acontece. Com 24 horas ela perdeu a vida, resultado do sacrifício.
Uma vez que as pessoas tenham fé em Deus e procurem materializar essa fé sacrificando para
ele, ora, muito mais poder tem Deus do que o encosto, porque só o encosto mata e destrói, Deus,
ele abençoa. S: Exatamente. Quer dizer então que a senhora trabalhava realmente para o mal?
M: Trabalhava. S: Esse trabalho foi feito no cemitério? M: Não, esse trabalho foi feito na
encruzilhada à meia noite. Mas, a gente trabalhava no cemitério, inclusive a gente pegava... S:
Defunto... M: Osso, terra ...tudo isso a gente trabalhava. S: Isso é tudo planejado, maldição
mesmo. M: Maldição mesmo, a gente fazia com aquela pessoa e acontecia mesmo. Trabalhava
com um monte de encostos.
Percebe-se que a entrevista agora entra em um outro registro discursivo, passando a
focar o dinheiro e o sacrifício, temas que deságuam na questão da eficácia da “fé”,
independente de qual for a “religião” que venha a domesticá-la. O dispêndio improdutivo
Trata-se de um modo de subjetivação. Ser responsável é ratificar que o “eu” da ação passada ainda é o mesmo
que agora responde enquanto presença. É uma manifestação moral da memória e uma forma do sujeito
empenhar-se em suas palavras. Como se vê, estamos aqui diante de um tema muito próximo ao universo
religioso, à noção de “culpa” e aos eventos subjetivos de “salvação” e “conversão”, que parece tomar um rumo
bastante particular nos casos aqui em questão.
52 “Um outro pai de santo de Recife, por exemplo, mostra-me um dia seu assentamento de Tata Caveira e me
diz que do que ele gosta de fato é fazer trabalho para o mal, usar Exus bem pesados, apanhar terra de cemitério,
unha de cadáver, colocar nome das pessoas na boca de cavalo morto, etc. O uso, então, do idioma cristão da
violência pelo terror e pelo diabólico é extremamente freqüente. Contudo, apesar de sua difusão, esses aspectos
da religiosidade brasileira são ainda pouco comentados por nossos estudiosos” (Carvalho 1982: 17).
69
envolvido no sacrifício é corroborado em sua eficácia pelos pastores. Afinal de contas, o auto-
engano que faz com que essas pessoas trabalhem para o mal nunca está na fé por eles
empenhada, essa força poderosa mas cega, mas sim nas entidades com que ela é negociada: “é
uma fé negativa, mas é uma fé...”. Essa “fé”, sentimento e força que vaza os códigos
religiosos, é sempre uma fonte e uma moeda de troca que vincula a agência humana ao
sobrenatural. A constante confirmação, mesmo que negativa, da eficácia dos “trabalhos” na
realização de determinados efeitos na vida das pessoas, é uma das evidências de uma
estratégia de proselitismo que ataca a força mágica do outro sem colocar-se fora da sua
economia de vínculos, que a confirma tendo em vista invadir o seu jogo e derrotar as suas
entidades em seu próprio campo de combate. A feitiçaria passa a ser tida, nesses termos,
como um “mau negócio”, uma troca incerta, desordenada e mesmo perigosa, onde o dinheiro
e a fé são empenhados de um modo pouco lucrativo, já que gerador mais de débitos do que de
créditos.
Em um dos seus livros de doutrinas (ou de anti-doutrinas), A libertação da teologia,
Macedo afirma: “Uma das coisas que atrapalha o homem na sua comunhão com Deus, por
mais incrível que possa parecer, é a religião” (1997: 55). A essa surpreendente afirmação
acrescenta-se um pouco mais à frente: “Cristianismo jamais foi religião; cristianismo é vida, e
vida com abundância! Se você não está vivendo a fé cristã como ela deve ser vivida, sua vida
é um verdadeiro desastre e podemos garantir que o Senhor Jesus não está vivendo em você”
(88). A crítica da representação, ou da anterioridade da “crença” em relação à “fé”, que chega
mesmo a negar o cristianismo enquanto uma religião, é resultado de um imanentismo que
teria a sua origem bíblica no Pentecostes: “Antes da descida do Espírito Santo sobre os
discípulos, pairava sobre estes uma espécie de religiosidade em relação à obra que teriam que
fazer” (Macedo 1997: 128)
53
. Dotando os homens de poder, esse sagrado imanente e
pragmático funcionaria como uma espécie de armadura ritualmente construída para garantir a
posse-de-si de um sujeito jogado no mundo do outro. Protegido por ela, o cristão seria capaz
de invadir o mundo afro-brasileiro dos espíritos, afirmar a sua existência sem ter que
folclorizá-lo ou simbolizá-lo e, assim, produzir os contra-feitiços (uma nova forma, bem mais
discreta, de “salvação”) capazes de extinguir esse mal “por dentro”.
53 Tornou-se bastante difundida a frase do bispo Edir Macedo, que afirmara que “A Igreja Universal não é uma
religião”. Percebe-se que a tensão “religião”/”fé”, adesão institucional ou adesão direta ao “fato crístico”,
observada por Gauchet (1985) como elemento fundante da cosmologia cristã, toma uma resolução bastante
particular no caso da IURD
70
Pastor Sérgio: Mas, já aconteceu assim, eu não sei se aconteceu com a senhora, por exemplo, da
senhora fazer um trabalho e descobrir, hoje a senhora entende isso, e descobrir que aquela
pessoa que foi a vítima do trabalho, ela ser de Deus, ser uma pessoa protegida por Deus e o
trabalho não pegava de jeito nenhum? Aconteceu algum episódio assim com a senhora? Maria:
Não. Comigo não, mas com uma pessoa que trabalhava, era amiga e ela quando fez, mas a
pessoa... S: Era filha também de encosto. M: Sim, ela trabalhava também... S: Ela chegou a
comentar... M: Ela chegou a comentar, porque ela era amiga minha. Então ela fez, mas ela não
viu o resultado. Então ela ficou decepcionada, porque ela estava acostumada a trabalhar pára
vencer, para ver o resultado e ela não viu resultado... S: Nesse dia ela não viu... Aí ela
descobriu... M: Quer dizer, ela não, mas me despertou... S: Hoje né... M: Desperta um pouco,
por que eu trabalhava naquilo, e eu vendo assim, por que, que não aconteceu. Que é que essa
pessoa tem de melhor do que as outras que a gente faz, por que não aconteceu dela morrer
também ou ela adoecer? S: Nada, não aconteceu nada com a pessoa não? M: Com ela não, só
aconteceu com a filha da pessoa... S: Mas com ela não...? M: Com ela não. S: Sabe por que
pastor Gilberto? Quando a pessoa tem a proteção de Deus, do pai das luzes, pode colocar
cabelo, pode colocar peça íntima, pode colocar a unha, pode colocar o dente, pode colocar o
olho, pode colocar o que for, fotografia, pode colocar tudo, porque não pega, porque o pai das
luzes é mais forte do que qualquer feitiço que você possa imaginar. M: Quando eu estava
servindo aos encostos, se eu não procurasse deus estava morta. Pastor Gilberto: Ela é o caso da
maldição... S: Que foi quebrada... G: Que foi quebrada e virou bênção... S: E virou bênção. Hoje
a senhora é uma bênção. M: Graças a Deus. Eu e minha família, graças a Deus. S: Graças a
Deus.
O momento final da entrevista é aquele da redenção, que ocorre de um modo bastante
particular: no encontro e no embate do feiticeiro com o seu oponente, com o sujeito “fechado”
pela IURD, cuja presença interrompe o circuito expropriatório das entidades do mal.
Deparando-se com esse poder maior, capaz de quebrar os feitiços blindando a sua vítima num
mundo interior auto-contido e individualista, capaz de articular o sujeito ao sobre-natural de
um modo não mais predatório e englobador, mas contratual e distintivo, só resta à feiticeira
desertar e se somar às frentes do exército inimigo: “Não se desfaz macumba com macumba,
nem se expulsa um demônio com outro demônio, tenha lá o nome que ele venha a ter. Tudo
isso só é desfeito pelo poder de Jesus Cristo ministrado na sua vida” (Macedo 2005: 49).
Contra a troca paroxista e predatória da “macumba”, incapaz de anular o conflito, instaura-se
o jogo de soma zero de um cristianismo paradoxalmente sacrificial e utilitário.
Nesse sentido, a retórica da conversão utilizada por esses novos pastores e obreiros é a
da “mudança de lado”, a de um movimento horizontal realizado por esses detentores do poder
da fé, que, saindo das religiões afro-brasileiras, passam a utilizá-la para os fins corretos. A
sobre-codificação do discurso da feitiçaria acontece a partir da categoria comum de “fé”, é ela
que permite articular esses dois sintagmas e que possibilita o englobamento dualista da
feitiçaria pelo “cristianismo de resultados” da IURD. A partir daí, esses ex-feiticeiros, homens
71
acostumados com os mistérios da “fé”, fazedores e desfazedores de alianças com o mundo do
invisível, podem mudar de grupo religioso preservando o prestígio que as suas capacidades
mágicas detinham antes da transição. Diferente do sentido mais corrente de “conversão”, que
indica uma ruptura radical com o passado e com a memória, entendo que estamos aqui diante
de uma mudança de pólo dentro uma mesma gramática discursiva, mudança apoiada em uma
categoria reconhecida como uma força pré-simbólica e por isso, pré-doutrinária. Se, como
vimos, a narrativa salvadora para os fiéis costuma ser mais a da pontual e recorrente
“libertação” ritual do que a do tradicional e definitivo “born again”, a narrativa para os ex-
feiticeiros é sempre a de passar a “trabalhar para o bem”, para o lado certo, e não a de “nunca
mais trabalhar”.
II- Marchando sobre as trincheiras inimigas: agressões e invasões de terreiro como
atos religiosos
Observamos na seção anterior alguns aspectos do discurso midiático da IURD e
percebemos como a sua máquina de comunicação escrita e televisiva tende a disseminar o
medo na esfera pública através da produção de um universo maléfico auto-evidente,
constituído como um circuito de contágio incontornável, capaz de englobar desde as práticas
sociais mais íntimas até as mais ostensivas. Essa estratégia de evangelização através da
maximização do risco, corroborada pela fala confessional de supostos ex-sacerdotes dos
cultos afro-brasileiros, tem sido responsável não somente pelo grande número de fiéis que
recorrem diariamente às “armaduras rituais” oferecidas pela Universal, mas também pela
produção de um modelo comunicativo e de um modo de se colocar na cena pública
prontamente apropriados por outras denominações pentecostais, neopentecostais e até mesmo
por grupos históricos normalmente mais discretos, como os batistas
54
.
Essa espécie de “efeito mimético” (Oro 2003a, 2003b) causado pela entrada da
Universal no campo religiosos brasileiro é bastante evidente. Seu surgimento não implicou
simplesmente no aparecimento de um “novo grupo religioso”, mas na ocorrência de um
fenômeno que coloca em jogo a própria categoria (ou meta-categoria) “religião” a partir da
qual se organizava o campo. Esse efeito desestruturador afeta não somente a matriz católica
da religiosidade brasileira, que acentua a sua mobilidade na direção dos movimentos
54 É o que mostra o processo de intolerância religiosa aberto contra o programa de televisão comandado pelo
pastor batista Átila Brandão, em 1998.
72
carismáticos, da política e da utilização dos meios de comunicação de massa
55
, mas também o
polissêmico universo das denominações “evangélicas”. Como bem demonstra Mafra (1999), a
entrada da IURD no campo evangélico brasileiro, marcadamente múltiplo e fortemente
associado a uma identidade contrastiva de “não-católico”, é guiada por uma espécie de
discurso persecutório, que tenta reverberar as críticas a ela direcionadas para a totalidade do
segmento, tendo em vista desenhar e capitalizar alianças com as denominações mais
tradicionais e legitimadas
56
.
A tal uso negativo da representatividade evangélica, que se daria sob o ponto de vista
negativo da resistência à hegemonia católica, agrega-se uma dimensão afirmativa com a
criação, por iniciativa da IURD, da CNPB (Conselho Nacional de Pastores do Brasil), em
1993, como um modo de fazer oposição à AEvB (Associação Evangélica Brasileira), órgão
até então dominante na tarefa de regulamentar o universo das denominações evangélicas no
Brasil
57
. Observa-se, com isso, uma iniciativa explícita da IURD em entrar na disputa pelo
controle semântico das categorias “evangélico”, “pentecostal”, “neopentecostal”, tendo em
vista o reforço conceitual da sua legitimidade, constantemente questionada pelo argumento do
“charlatanismo” e do “curandeirismo
58
. Por outro lado, a IURD tenta, através das alianças
costuradas via CNPB, espelhar de forma mais adequada o seu forte crescimento quantitativo
em sua capacidade de representar os evangélicos de uma maneira geral. Com esses
movimentos, o antes idiossincrático “pentecostalismo à brasileira” praticado pela Universal
tenta oficializar-se através de uma espécie de apropriação político-semântica das categorias
que estruturam o campo religioso no qual se insere.
No que se refere a Salvador, observamos a ocorrência desse mimetismo de uma forma
um pouco diferenciada, talvez pela particularidade do solo sócio-cultural em que ele vem a se
desenvolver. O estabelecimento da IURD como a ponta-de-lança da guerra santa contra os
cultos afro-brasileiros na cidade implicou na entrada combativa de uma série de outros grupos
55 Por outro lado, Giumbelli (2002: 350) observa o mimetismo inverso, que seja, da IURD frente à igreja
católica no que se refere à entrada da primeira no campo da assistência social e da caridade como parte da
estratégia de legitimação da sua inserção na sociedade brasileira.
56 A prisão de Edir Macedo no final da década de 90 acirra ainda mais esse aspecto persecutório, quando a
instituição passa a absorver a enxurrada de críticas direcionadas a ela como uma espécie de “graça”, um
sacrifício que servia parte da promessa de vitória futura.
57 A série de disputas envolvendo o CNPB e a AEvB são bem descritas e analisadas por Giumbelli (2002: cap.
8).
58 É interessante perceber como a categoria “religião”, logo acima rejeitada por Macedo em sua defesa de uma
fé experiencial e não doutrinária, tona-se desejável quando se instaura o debate público acerca da real
“religiosidade” da IURD, questionada por segmentos laicos e religiosos da sociedade brasileira.
73
evangélicos no universo invisível da feitiçaria, vindo a conformar as suas igrejas (assim como
seria a própria IURD) em agenciamentos de produção discursiva e de inibição ritual dos
“trabalhos”. Desse mimetismo, que, como vimos, resulta de uma estratégia de assunção plena
da eficácia mágica das religiões inimigas, ocorrendo junto ao deslocamento gramatical do
problema do mal do âmbito individualizante do “pecado” para o âmbito externalizador do
“contágio”, resulta a instauração de um ambiente religioso fortemente tencionado
59
, e mesmo
violento, como alguns eventos citados demonstrarão.
Nesse sentido, creio que esta tensão seja fortemente devida à produção de um novo
contexto para a aplicação do discurso da feitiçaria, que não se atualizaria mais através da
acusação pontual e localizada, situação típica de sociedades fundadas no contato face-a-face e
na violência não-centralizada, como as estudadas por Evans-Pritchard (2005). A massificação
de suas regras e condições através dos meios de comunicação de massa fazem com que a
lógica de desconfiança que caracteriza esse idioma passa a assumir uma face difusa e
circulante, tendendo a disseminar-se sem as amarras comuns ao seu contexto mais tradicional.
A proposição desse mal ubíquo me parece agregar à dimensão confessional da textualidade da
IURD, baseada até então no discurso direto, no “eu” empenhado por demônios (no ritual) e
por feiticeiros (nos programas de televisão), uma segunda dimensão, a de rumor, que acredito
ser o modo privilegiado de generalização da sua narrativa religiosa para o espaço definido por
Geertz como o “senso comum” (1989: 136).
Afinal de contas, não caberia à IURD apenas defender egoisticamente os seus fiéis do
auto-engano mortal a que estão condenados os cultos afro-brasileiros, mas também, e como
afirma Edir Macedo, partir em defesa da “sociedade” brasileira, impedida de defender-se
graças às amarras legais que são as liberdades civis:
Pode, por acaso, uma seita que determina tais práticas ser considerada uma religião? Vemos
coisas assim serem publicadas quase que diariamente em nossos jornais e, já que a nossa
sociedade na pode tomar medidas contra isso, somos obrigados, em nome de Jesus Cristo, a
levantar a nossa voz! Uma ex-mãe-de-santo confidenciou-me também que trabalhou num
terreiro em Recife, onde comprava crianças recém-nascidas para sacrifícios nos cemitérios ou
encruzilhadas (2005: 108).
59 Essa tensão afeta também o interior do universo evangélico, já que a IURD instaura os acordos que fundam a
sua hegemonia não sem uma série de conflitos conceituais. Não foram poucas as vezes que vi em campo a IURD
ser definida pejorativamente, por praticantes de outras denominações evangélicas, como “o terreirão do Edir
Macedo”.
74
Agindo desse modo, que seja, divulgando os perigos da feitiçaria através dos veículos
de massa e, assim, potencializando determinados aspectos fundantes da religiosidade
brasileira, como a crença na ação dos espíritos e na ampla possibilidade de mediação com o
sobrenatural, a IURD e o seu campo de influência no universo evangélico parecem gerar na
cena pública efeitos institucionalmente incontornáveis
60
. Dentre esses efeitos, estariam
ocasiões em que se dá a ocorrência efetiva de violência física por parte de evangélicos contra
praticantes de cultos afro-brasileiros.
Destacando o caráter fluido dessa apreensão discursiva do mal, que, disseminando o
risco no tecido social, tenderia a perder o controle sobre os próprios efeitos da sua fala,
pretendo sublinhar o fato de que não necessariamente esses atos de violência são resultado de
uma prescrição feita por pastores ou lideranças da IURD ou de qualquer outro grupo
evangélico. Pelo contrário, no decorrer das minhas visitas aos cultos não presenciei nenhuma
incitação objetiva a esse tipo de atitude.
No entanto, se nos reportarmos rapidamente à descrição do rito de libertação, realizada
no primeiro capítulo, ficam claras tanto a natureza violenta de alguns procedimentos rituais,
que ali se dirigem a um inimigo ausente, mas que é afirmado enquanto posição gramatical e
parte de um modelo de alteridade, quanto a motivação para a ação que se retém desses
procedimentos, uma atitude agressivamente reivindicativa diante de um outro agressivamente
predatório. Além disso, ao longo da análise dos programas de televisão, observou-se como
esses grupos realizam a defesa narrativa da existência do mal com uma agência tão prosaica
quanto incontrolável, capaz de invadir os meandros mais íntimos da existência através de um
poder mágico vulgarizado, e que não poupa nenhum tipo de “escolhido”.
Em suma, se ao longo dos cultos, dos programas de televisão e de rádio e nos panfletos
distribuídos nas ruas, esses grupos tocam as trombetas, declarando guerra contra um inimigo
traiçoeiro, que nos afeta através de mediadores religiosos apontados com extrema nitidez,
dificilmente podem querer controlar um exército que já se pôs a marchar. Portanto, se a
60 Diria que, se no contexto analisado por Evans-Pritchard a feitiçaria seria um modo específico de resolução de
conflitos (típico de sociedades não centralizadas), no caso em que analiso, a feitiçaria enquanto rumor
incontornável seria um modo de reverberação e de maximização de conflitos, e que a sua resolução se
encontraria na construção de uma meta-linguagem ritual a princípio “externa” mas, como vimos, intrinsecamente
ligada a ela, capaz de restaurar as alianças e os vínculos antes quebrados a partir de um “fora” que de fato teria a
feitiçaria como um pólo interno a ela, ou englobado.
75
reação violenta contra esse mal de fato não é prescrita, no mínimo ela é deduzida com grande
facilidade pelos fiéis que aceitam os pressupostos narrativos defendidos por esses grupos
61
.
Esse perigoso e imprevisível avanço de determinados grupos evangélicos sobre os
cultos afro-brasileiros tem se dado, em Salvador, através de duas formas principais: i)
agressões públicas contra qualquer um que porte algum sinal que aponte a sua adesão a essas
religiões, e ii) ataques coletivos contra os terreiros, o espaço sagrado dessas religiões.
a) O embate corpo a corpo:
Pude encontrar um exemplo da primeira dessas formas de violência num registro
policial recolhido na 1ª Delegacia, bairro dos Barris, referente ao dia 7 de agosto de 2004.
Nele, descreve-se um caso ocorrido na Estação da Lapa, onde um ogã e uma ekedi de um
determinado terreiro de candomblé distribuíam pipocas e arrecadavam donativos para
determinados eventos em homenagem ao orixá Obaluaê, tradicionais no mês de agosto. A
acusação narra que a dona de casa e pregadora Maria Aldeci teria batido com uma bíblia na
face de um dos filhos de santo, Bruno Santos de Jesus, enquanto repetia insistentemente: “Sai
satanás!”. Em seguida, a evangélica teria derrubado o tabuleiro dos candomblecistas no chão,
que teria resultados na quebrado de um “ibá” (pote de cerâmica) referente ao culto do orixá
homenageado. Em resposta, a vítima teria tomado a bíblia das mãos da mulher e rasgado,
além de ter trocado empurrões e agressões verbais com ela.
O caso acima descrito, que teve seu desfecho na delegacia, serve bem como exemplo e
modelo de uma infinidade de conflitos desse tipo que me foram narrados nas visitas que fiz a
terreiros da cidade. Nele, são observados alguns elementos fortemente recorrentes nessas
agressões: a idéia de que através daqueles atos estaria sendo realizado um exorcismo, o uso da
bíblia como arma e a quebra de objetos litúrgicos da religião rival. A bíblia funcionaria,
nesses casos, a partir de uma dupla função: i) a de ícone, um demarcador objetivo de
identidade e de pertença ao grupo, algo que diz a todos: “território de Jesus”, em oposição aos
eledás, roupas brancas, colares de contas e escarificações, que marcariam o corpo-inimigo, e
ii) um índex, um objeto eficaz, fornecedor de proteção e de poder, mesmo quando utilizado de
61 Questionado sobre esses ataques pelo Estado de São Paulo em março de 2004, o senador Marcelo Crivella diz
que “a iniciativa de invadir terreiros não fazem parte de uma política da igreja, mas de pastores desesperados que
já agiram assim”. No entanto, após afirmar que 50% de seus fiéis já passaram pelos cultos afro (o argumento do
“estive lá”), afirma ele que: “Ninguém pode concordar que os ritos, onde as pessoas bebem cachaça, entram em
transe, caem no chão,sejam algo digno. Que pai gostaria de ver seu filho numa situação dessas? Eu respeito as
crenças afras, mas isso é uma coisas medieval”.
76
forma tão concreta quanto nesse caso. Nesse novo contexto discursivo, a bíblia aparece
simultaneamente enquanto brasão, arma e armadura dos membros do “Exército de Jesus”
62
,
sendo eficaz tanto pelo que nela está escrito quanto por sua existência material.
A imagem um tanto profana da mulher que bate o livro sagrado na cabeça do suposto
endemoniado, ordenando que o mal saia daquele corpo, serve como uma alegoria dessa nova
evangelização, que é tanto salvação do outro quanto salvação de si, ou seja, ajuda de e defesa
contra um outro desprovido da graça. Essa evangelização seria parte e função de um discurso
religioso amplamente anti-intelectualista, que se materializa por meios icônicos e indéxicos
no mundo objetivo enquanto readmite a entrada da violência na gramática do cristianismo. É
esse discurso que veremos, emitido em palavras, coisas e ações, realizar-se de forma ainda
mais radical nas agressões voltadas aos terreiros.
b) Os ataques e as invasões aos terreiros:
Os “terreiros”, o modo como são chamados convencionalmente os templos do
candomblé em Salvador
63
, podem ser caracterizados como os territórios contínuos (Souza,
1995) desta religião. Eles são o epicentro espacial da comunidade típica do candomblé, a
chamada “família-de-santo”, que articula humanos e divindades a partir de uma estrutura
hierárquica e de uma genealogia classificatória de cunho sagrado. Diferente de outras
denominações religiosas, como o catolicismo e o protestantismo, o espaço sagrado do
candomblé não é, sob o ponto de vista da sua arquitetura, radicalmente distinto da paisagem
urbana que o rodeia. Apenas o conhecimento prévio de alguns sinais que tipicamente
demarcam a sua territorialidade pode fazer com que algum passante perceba que naquele
espaço de moradia
64
presta-se culto aos orixás.
Por mais discreto que o terreiro possa ser, uma série de signos enunciam, mesmo que
silenciosamente, a sua existência naquele local: as bandeiras de Tempo (angola) ou de Iroco
(ketu), grandes mastros de bambu fincados no chão com uma bandeira branca no topo; o
62 Com essa denominação faço referência às blusas oliva, com padrões militares, vendidas por ambulantes em
todo o Brasil.
63 Outras denominações seriam “roça” e “casa de santo” em português e “ilê” (casa), “abassá” (salão) e “egbé”
(comunidade) em iorubá.
64 Os terreiros são um espaço simultâneo de moradia e de ritual, geralmente são compostos por 4 espaços
principais: os Ilê-Orixá, o Ilê-Axé, a casa ou espaço para o culto e as casas de moradia. A idéia de
“assentamento”, no entanto, utilizada para os objetos e os quartos onde se situam as divindades, já dá a idéia de
que, na verdade, todos, homens e deuses, moram naquela casa e fazem dela uma comunidade (communitas) no
sentido mais amplo e forte do termo.
77
mariwô (palhas do dendezeiro), que emoldura janelas e portas; as “quartinhas”, recipientes de
barro preenchidos por líquidos e colocados próximos a determinados assentamentos; o Ojá,
que envolve algumas árvores sagradas sob a forma de um laço semelhante ao vestido pelos
iniciados quando estão incorporados, etc. Se esses signos historicamente têm articulado os
espaços dos terreiros como “território do candomblé”, no atual contexto do campo religioso
soteropolitano, muitas vezes têm sido percebidos ou como um sinal de “território inimigo” ou
como o grito desafiador de “território a ser conquistado”.
Um olhar rápido sobre a urbanização de Salvador é suficiente para demonstrar como
esse ambiente de tensão inter-religiosa já mudou a face da cidade. Existe uma tendência
visível a se sobreporem igrejas evangélicas e terreiros de candomblé e de umbanda, fato que
se deixa perceber com mais clareza nas regiões tradicionalmente ocupadas pelos cultos afro-
brasileiros, como os arredores da Avenida Vasco da Gama, hoje inteiramente tomados por
templos evangélicos da IURD e de uma série de outras denominações. Essa estratégia de
ocupação territorial é seguida por uma espécie de adaptação dos horários e dias dos cultos ao
calendário do inimigo, vislumbrando-o como uma espécie de contra-referência espacial e
temporal dos neopentecostais. A partir dessa estreita e intencional aproximação dos
evangélicos tendo em vista o combate ao mal em suas próprias raízes, uma sucessão de
conflitos passam a ser potencializados. Logo abaixo, faço referência a uma forma bastante
recorrente de ataque: o uso de caixas de som, microfones e megafones para interferir na
execução das celebrações do candomblé. Esse caso, que pode ser tomado como exemplo de
uma série de outros que escutei em campo, ocorreu no tradicional terreiro do Bogum, e me foi
narrado por uma de suas liderança mais antigas, o agbagigan
65
Everaldo Duarte:
Já aconteceu lá no Bogum, por exemplo, de construírem uma igreja evangélica (da IURD) no
fundo do terreiro e fazerem as suas manifestações religiosas num volume ensurdecedor, com
caixas de som enormes, tentando atrapalhar os rituais da nossa comunidade, mas não
conseguiram, porque eles não sabiam nem as datas, então faziam num dia em que a gente não
tava fazendo nada, só atrapalhava a comunidade com o barulho. E os próprios moradores do
entorno se chatearam com tanto barulho que eles faziam que acabou fechando, eles mesmo
acabaram fechando.
O desfecho imprevisível desse caso, o erro de cálculo que acaba gerando a própria
expulsão do templo evangélico da vizinhança, pode ser tido como um dos vários momentos,
65 Título de honra no candomblé jêje.
78
esse bem prosaico, em que os excessos dessa ofensiva a princípio religiosa acabam entrando
em choque com o campo dos direitos civis e a dimensão laica da esfera pública.
A seguir, faço referência a um outro caso, esse bem menos humorado, que demonstra o
clima de tensão territorial e social que tem estruturado a relação entre os terreiros e o seu
entorno. Para isso, transcrevo um trecho dos autos de mais um processo de intolerância
religiosa movido pela Promotoria da Cidadania. A acusação descreve acontecimentos
ocorridos nos dias 28 de março e 12 de agosto de 2003, no bairro de Cosme de Farias, e tem
como réus dois homens e uma mulher:
(....) por volta das 02:00 horas, os denunciados, que são irmãos, travaram luta corporal com
familiares, nas proximidades do Terreiro de Umbanda Boiadeiro Rei de Águas Claras (..), e, ao
verificarem que Diego Conceição Silveira, ali residente, observava da porta a contenda,
passaram a apedrejar o referido Terreiro, depredando as instalações e diversos objetos e
imagens do culto. Apurou-se que a denunciada também jogou pedras no Terreiro de Umbanda e
incentivou os outros dois denunciados, seus sobrinhos, no apedrejamento, dizendo: “Vamos
invadir este pé de chiqueiro”. Constatou-se que os três denunciados costumam ofender e
discriminar os Filhos e Filhas de Santo daquele Terreiro. Assim, no dia 12 de agosto, do
presente ano, a denunciada, referindo-se à Rosenilde dos Santos, afirmou: “Lá vai a prostituta e
sapatona se reunir com os viados, no pé de chiqueiro”. Além disso, numa outra ocasião, no
decorrer deste ano, a denunciada chamou Honorina de Jesus Ferreira de “Putinha, fingida de
santo”. Ademais, a denunciada, num determinado dia do corrente ano asseverou que Sandra
Evangelista dos Santos era “filha de chiqueiro”.
O apontamento exato da origem religiosa dos réus torna-se aqui um dado desnecessário,
caso nos atentemos ao vocabulário utilizado por eles para ofender os filhos de santo. A
redundância com que utilizam os termos “filho de chiqueiro”, “pé de chiqueiro”, etc. atesta a
adesão destes sujeitos ao texto televisivo analisado na seção anterior. A adesão a um
vocabulário, mais do que a uma determinada instituição, parece ser aqui o foco principal, e a
inserção da IURD numa clientela fortemente plural, que tende a fazê-la um centro muito mais
de libertação expiatória do que de conversão, corrobora a sua associação com o discurso
indireto, o rumor, e não necessariamente com a fala oficial de supostos representantes
“convertidos”.
O evento parece expor bem não somente algumas “armas” convencionalmente
utilizadas nesses ataques, como as pedras e os palavrões, mas também a função expiatória que
têm assumido os terreiros de candomblé e umbanda no cotidiano das localidades de Salvador.
A imagem do filho-de-santo que observa exteriormente o conflito do outro e que logo é
plenamente envolvido por ele, vindo a tornar-se o foco que anula qualquer contenda ao seu
redor, é quase paradigmática.
79
Um outro tradicional terreiro da região da Vasco da Gama, o “Terreiro de Oxumaré”,
também me revelou um histórico de problemas com grupos evangélicos. Além da insistência
da panfletagem dentro das suas dependências, que chegou a ser diária, o seu babalorixá foi
envolvido em uma polêmica envolvendo o uso da imagem em um episódio do programa
Ponto de Luz, da IURD. A história começa quando o sacerdote dá uma entrevista, no início da
década de 90, a um jornal da TV Itapoã, filial do SBT na Bahia. Nela, comentava sobre o
sincretismo, a relação entre candomblé e Igreja Católica, e narrava alguns mitos. No entanto,
a transferência desta filial para a Rede Record de Televisão acaba resultando em uma surpresa
desagradável para a comunidade. Dou a palavra a Marcus Rezende, ogã do terreiro em
questão:
Ele deu essa entrevista pra Tv Itapoã que na época não era filiada a Record, era do SBT. Com
o passar do tempo, quando a Record acabou comprando a Tv Itapoã, ou seja, a Itapoã acabou
retransmitindo os programas da Record aqui, encontraram a imagem dele em arquivo,
colocaram chifres, colocaram uma língua bem grande, fizeram uma deformação no rosto e
fizeram uma montagem monstruosa mesmo falando “pai-de-encosto”, “e aí pai-de-encosto!” e
isso foi vinculado na televisão. Alguns filhos de santo viram, pessoas ligadas a religião e
amigos dele ligaram pra cá angustiados: “O que é que ta acontecendo Babá? O senhor dando
entrevista? Que loucura é essa?”. Então nós ligamos a televisão e pudemos constatar o absurdo
que tava sendo feito. Entramos na justiça, todas evidências mostravam o que aconteceu, mas o
juiz disse naquele momento que já que vocês não tem fita gravada comprovando, com é que a
gente vai ter uma comprovação factível, real, visível, de que foi o senhor mesmo? Não
tínhamos uma fita comprovando. Temos aqui até o processo dessa causa. Foi inclusive dos
primeiros, dos mais antigos aqui de Salvador, que nós levamos pra justiça, e acabamos não
ganhando.
Se o processo frustrado, acima descrito, parece ser precursor de um outro caso, esse sim
de maior repercussão e que tratarei de forma detalhada na segunda parte, um outro evento que
me foi narrado por Marcus exemplifica melhor o elemento da territorialidade, que pretendo
destacar nesse momento do texto. Nele, percebe-se como essas disputas incidem sobre a
relação entre os terreiros e as comunidades de onde fazem parte, onde o religioso se articula
às questões públicas da sua localidade, constituindo-as em mais um espaço de ruídos
comunicativos envolvendo os dois grupos. Se, por um lado, a construção de vínculos
positivos com a comunidade acaba sendo uma forma de se agregar defesas em torno dos
terreiros
66
, por outro, esse vínculos, hoje em dia multiplicados e oficializados pelo
66“Referente a invasão do espaço, tem sempre aqueles que chegam com os cartazinhos, os panfletos, dizendo
‘Jesus Cristo é o Senhor’, ou dando o jornal da Igreja Universal, mas nós temos um sistema de defesa aqui
bastante eficaz. Como nós temos diversas atividades na comunidade, pra você ter idéia, no Infocenter que nós
temos aí, não sei se você teve a oportunidade de ver, nós temos 10 computadores, acesso gratuito a internet de 8
80
estabelecimento progressivo dos terreiros enquanto associações civis pautadas em trabalhos
comunitários, acabam se transformando em canais para a entrada do inimigo. Marcus
exemplifica:
Às vezes a gente dá cursos aqui, um projeto que se chama “Consórcio da Juventude”, que é um
consórcio com o Governo Federal que nós somos o único terreiro de candomblé do Brasil que
faz parte. Tinha um dos meninos que fazia parte da turma, eram 80 meninos e meninas, ele era
da IURD, e a mãe dele não queria dar a identidade e o CPF, e era o governo que pedia, porque
dizia que a gente ia fazer um feitiço contra ele (risos). Eu liguei pra mãe dele, e ela disse que
não, que não ia dar, que não ia confiar a vida dela na mão da gente, e eu disse que não tinha que
dar não, mas que ele tava saindo do curso naquele dia.
A cena confirma alguns aspectos já descritos ao longo da análise do discurso ritual e
televisivo, principalmente a concepção de mal de cunho contagioso e imanente, que nesse
caso se agrega inclusive ao universo semiótico da burocracia estatal. Assim como as fotos,
documentos (como a carteira de trabalho) e objetos, que ao longo dos cultos representam de
forma icônica a pessoa ausente, constando como canal para a passagem da graça
presentificada nos templos, também esses elementos servem, nas situações cotidianas, como
suporte para a transmissão do mal. A mãe do garoto se nega a dar algo que a represente para
um terreiro, seja uma foto ou mesmo um impessoal número de CPF, pois essa seria uma
forma de dar-se para o inimigo, de abrir a possibilidade de realização de uma série de ações
contra ela através daqueles entes representativos, em suma, de fragilizar-se. A interessante
relação que se vê aqui postulada entre a ordem oficial dos documentos e o universo dos
feitiços serve também para corroborar a capacidade disseminadora deste discurso. Diria que a
cena nos expõe à “modernidade da feitiçaria”
67
na Bahia, à capacidade de um discurso a
princípio “arcaico” e “tradicionalista” dar conta textualmente de um universo fenomênico
marcadamente contemporâneo.
Enquanto o caso anterior dá uma amostra das estratégias defensivas dos evangélicos
frente ao universo de contágio eminente proporcionado pelo outro dos cultos afro-brasileiros,
o evento descrito a seguir consta como amostra da atitude reivindicativa com que esses
mesmos sujeitos têm encarado a sua tarefa evangelizadora. Esse evento foi a mim narrado por
da manhã a 8 da noite. Por mês, nós recebemos por volta de 1380 pessoas diferentes, da comunidade, que não é
de candomblé, tem gente que é, mas pode ser evangélico, pode ser da igreja que quiser ser. (...) Então, por causa
disso, por causa dos trabalhos que nós fazemos com as escolas públicas municipais, nós temos várias pessoas
que, mesmo não sendo do candomblé, nos apóiam. Quando chegam aqui distribuindo cartazinhos eles já falam:
‘não venha não, que você sabe que aqui é um terreiro de candomblé, então vamos respeitar’” .
67 Refiro-me aqui ao excelente livro de Peter Geschiere (1997).
81
“Mãe Helenice”, ialorixá do terreiro Ilê Axé Omim J’Obá, situado no antes isolado bairro de
Mussurunga, e que hoje se vê entrincheirado por templos batistas, da IURD, da Renascer em
Cristo e da Assembléia de Deus:
Eu estava na porta do meu templo e veio um grupo de crentes. Me saudaram e tudo e ficaram
três rapazes atrás. E nisso eles me oferecendo panfleto, dizendo que Jesus tinha um plano
especial na minha vida. Eu disse: “Tudo bem, eu sei disso pois eu sou filha dele perfeita, todos
nós somos filhos de Deus, agora cada um opta pelo lado que quer”. Aí eu disse: “Tome, tome,
tome, leve a alguém que precisa, pois eu já tenho a minha religião definida”. Ele disse: “Então,
quem é seu Deus?” Eu disse: “Não interessa, saia logo”, e fui entrando. Ele me acompanhou,
não me deixou fechar o portão e disse: “Você não me falou mesmo quem é seu Deus, então seu
Deus tá aqui, debaixo do meu pé”. Eu disse: “Se está, então é melhor tirar esse pé daí”, e tome-
lhe porrada, dei-lhe, dei-lhe, quebrei a sandália, dei de mão, e só saiu daqui porque vieram
buscar ele, porque eu ia acabar de arriar ele aqui dentro. Entendeu? Ele disse que o meu Deus
estava debaixo do pé dele, tava mais baixo do que ele. Aqui dentro não se faz essas coisas não...
A energia com que a ialorixá aceita o desafio dos evangélicos, partindo para o ataque
violento a um deles, demonstra a importância do espaço sagrado do candomblé para os seus
praticantes. Se, em outro contexto, as provocações e ameaças parecem não merecer tamanha
reação (segundo a sacerdotisa: “na rua, o que eles falam entra em um ouvido e sai pelo
outro”), quando esses ataques passam a tentar adentrar o espaço do terreiro, tido como uma
secular fonte de autonomia e de poder para o calejado candomblé baiano, esses eventos
tornam uma gravidade maior. Afinal de contas, “aqui dentro não se faz essas coisas não...”.
Um outro terreiro onde pude registrar uma extensa lista de embates com evangélicos foi
o “Onzo Nsumbu Tambula Dicoua Meià Dandalunda”, conhecido como “Terreiro do Beirú”,
da nação angola, e que se situa no bairro do mesmo nome
68
. Logo abaixo, “Jijio”, “pai
pequeno” e responsável pelas questões políticas e administrativas do terreiro, descreve alguns
eventos em que membros da casa foram abordados por fiéis de denominações evangélicas:
(...) nós estamos tendo uma festa de Enzila aqui dentro e de repente um camarada entrou por
essa porta aí do fundo “Um jornalzinho de Jesus, bora aqui!”, dando a todo mundo que estava
na festa. Eu peguei ele pelo braço, peguei os jornais dele, pedi que ele não saísse até que eu
recolhesse todos os jornais, coloquei jornal por jornal sobre o braço dele e disse a ele: “Você vai
distribuir o seu jornal em outro lugar, porque aqui a gente não quer esse tipo de coisa”. Ele
tentou me tirar a paciência, eu me contive um pouco, pra que eu não estourasse realmente, até
que ele saiu. Outras vezes, tipo assim, você tá aqui, estão os filhos de santo reunidos sentam
aqui em baixo, e aí de repente você vê aquela pessoa chegando no portão: “Jesus te ama meu
irmão! Largue disso!”, e sai. E às vezes a gente sai a trás pra dizer: “Pare com isso meu amigo,
tá ficando feio...”. Um outra vez foi saindo uns filhos de santo da casa e duas evangélicas
chegaram ao ponto de agredir mesmo, dizendo: “Vocês estão fazendo com que o diabo fique na
68 O bairro do Beirú, local em que floresceram vários terreiros ao longo do século XX, foi recentemente
rebatizado de Tancredo Neves, por uma iniciativa popular comandada pelos evangélicos que habitam o bairro.
82
Terra! Nós estamos querendo tirar o diabo da Terra e vocês estão deixando o diabo na Terra!
Saiam dessa coisa de candomblé!”. Irritadas, sabe? Eles se mostram até irritados. Até que eu
cheguei e disse pra ela: “Eu acho que quem tá com Satanás é a senhora, porque a senhora está
me provocando, fazendo com que duas pessoas percam o diálogo, então eu posso me sentir
também incomodado e lhe agredir verbalmente. E aí, a senhora vai gostar?”. “Não, porque Jesus
me disse que vocês vão me agredir, mas medo de agressão de vocês eu não tenho”. “Bom, lhe
agredir fisicamente ninguém vai, mas ouvir o que a senhora tem que ouvir a senhora vai”.
Dentre essa série de cenas cotidianas, gostaria de destacar a acusação das mulheres, que
culpam os membros do terreiro de candomblé de “fazer com que o diabo fique na terra”. Essa
fala me parece desvelar bem o corte que distinguiria, aos olhos desses evangélicos, os
praticantes de candomblé da clientela que utiliza esporadicamente os serviços mágico-
religiosos oferecidos pelos primeiros, como as práticas divinatórias, os ebós, os banhos e
outras prática curativas. Essa diferença seria, de forma sintética, aquela entre a fonte
produtora do mal e as suas ramificações ou canais de transmissão.
Assim define o bispo Edir Macedo, o “bori”, o rito de iniciação do candomblé: “Na
verdade, quando aquela senhora ‘fazia a cabeça’, estava se submetendo à escravidão de
satanás; dando lugar para que os exus, caboclos, preto-velhos em toda sorte de demônios
pudessem se apossar do seu corpo para usá-lo como bem entendessem” (2005: 104).
Continuando com a terminologia até aqui utilizada, baseada no universo de alianças
textualizado pela IURD, os “trabalhos” e as outras práticas mediadas pelos cultos afro-
brasileiros são tidos como uma espécie de “mau negócio”, onde uma troca pontual entre o
cliente e alguma dessas entidades predatórias implicaria na “tomada de posse” da vida do
primeiro pelo segundo. Por outro lado, percebe-se que a iniciação, ou o “fazer a cabeça” para
alguma entidade, indicaria uma forma de escravidão plena, de doação plena do sujeito para o
mal, prática que seria responsável pela retenção mais veemente dessas forças demoníacas no
espaço de convívio dos humanos e das coisas. A tomada plena do território corporal desses
iniciados os transformaria em pólos permanentes de transmissão do poder maléfico não-
contratual dos “encostos”.
Um outro evento que se deu no “Terreiro do Beirú”, e que teve uma forte repercussão
na mídia local, foi uma invasão que ocorreu no ano de 2001. De acordo com “Jijio”:
Esse aí foi um caso que aconteceu aqui, exclusivamente no Beirú. Em 26/11/2001 eles saíram
em um ataque aos terreiros porque estava sendo a festa comemorativa de São Cosme, e aí eles
saíram pra poder jogar enxofre e sal nos terreiros. O primeiro que ele achou pela frente foi esse,
e jogaram nesse aqui primeiro. Tentaram invadir o terreiro, sacudiram o portão, chamando a
gente de “filhos do demônio”, pedindo que a gente saísse, que largasse o local, porque eles se
83
sentiam extremamente incomodados com a nossa presença. Alguns falavam que a gente ia ter
que se converter e que ali iam construir um templo pra Jesus. Nisso, também eles trouxeram
alguma coisa corrosiva, que jogaram no cão que tomava conta da casa e o cão foi queimado.
Quando a gente chegou aqui o cão tava tentando lamber a parte do pescoço sem conseguir e
querendo tirar aquele líquido. Quando a gente foi ver depois que acalmou, vimos que tinha
alguma coisa que tinha queimado o pescoço do animal. Daí eles saíram em mais alguns
terreiros, mas em pequenas ações, só fez jogar o pó lá e sair correndo, não forçaram o portão
nem entraram. A tentativa maior foi aqui, onde eles chegaram a jogar do portão, a bater na porta
do barracão, uma janela ficou impregnada de enxofre. Isso por parte da Igreja Internacional da
Graça de Deus. Temos uma aqui no bairro ao lado da Igreja Católica, que eles disputam até com
a igreja católica hoje em dia...
Além da utilização das armas “purificadoras”, o enxofre e o sal grosso, contra-feitiços
que não costumam faltar a essas invasões, observa-se a utilização de uma espécie de ácido,
que acaba causando danos à saúde de um dos animais da casa. Esse caso de invasão violenta
foi o único a mim confidenciado que conta com a participação de seguidores da Igreja
Internacional da Graça. No entanto, a natureza não ordinária da origem dos invasores não se
reflete no conteúdo das acusações que acompanham a invasão. No decorrer do embate
narrado, percebe-se a ocorrência de um enunciado extremamente recorrente, e que me parece
expor algumas características da estratégia territorial que costuma mover esses grupos: a
afirmação de que naquele lugar um novo templo evangélico será erguido.
O desafio lançado, de se erigir novos templos sobre os escombros dos inimigos,
funcionaria como uma espécie de imagem síntese do exclusivismo com que uma parte do
segmento evangélico tem se instaurado no espaço público brasileiro. De acordo com Segato
(2005), essa estratégia político-territorial indicaria a adesão desses grupos a um código
“corporativo” e “faccionalista” (21), que teria como modelo de expansão a “anexação branda”
(15) de outros grupos religiosos e do aparelho estatal. Baseados numa lógica pulverizada de
crescimento, eles agiriam como uma rede em que “as próprias pessoas, com sua capacidade
agregadora vão constituindo, quer dizer, anexando território (idem). Tal situação molecular
designaria uma crise no modelo molar de produção dos sujeitos por parte do estado-nação
moderno, que, de acordo com a terminologia foucaultiana, perceberia o seu domínio pastoral
de controle das populações ser reorientado por esses grupos a partir de um poder fortemente
territorializado, ou seja, concreto e icônico, que dotaria o “rebanho” (agora desgarrado da
administração estatal) com a capacidade de carregar consigo o seu próprio território.
Entendo que a principal qualidade dessa leitura estaria em sua capacidade de romper
com o exclusivismo das teorias que tendem a definir o estatuto contemporâneo da religião
como sendo de simples fonte, dissecada e descontextualizada pelas agências modernizadoras,
84
do leque de opções para as sínteses de um sujeito religioso que passaria por elas “ileso”, ou
seja, sem colocar em jogo a segurança de uma presença-a-si marcadamente individualista.
Defendendo a tese de que essas denominações funcionariam como uma espécie de “para-
etnicidade” (8) hiper-ritualizada e espetacularizada em seus signos diacríticos, Segato entende
que as lideranças desses coletivos estariam defendendo e administrando, através da
instauração textual de alianças e de oposições simultaneamente espirituais e sociais, um novo
sujeito para uma nova cena política. A religião passa a ser, nos termos aqui colocados, não
uma esfera textual e territorial secundária, agregada de forma suplementar ao núcleo
individualista de um mundo em franca laicização, mas uma forma de codificação e de
materialização discursiva e institucional de fluxos de poder baseados numa gramática não-
universalista (em alguns momentos, ela chega a defini-la como “tribalista”), e que teriam
como fim último a colonização, via pauta espiritual, da esfera pública nacional.
Guiado por essa dinâmica exclusivista, o aparecimento e o avanço desses novos grupos
religiosos no Brasil seriam motivados não pela reivindicação de maior laicização de uma
esfera pública ainda fortemente católica, ou de uma maior “abertura” no mercado religioso
brasileiro, mas pela transformação, religiosamente justificada, do substrato universalista dessa
esfera pública em uma porta de entrada e expansão de sua organização faccionalista. Entendo
que os fenômenos descritos até aqui, e que continuarei a descrever na próxima seção, tendem
não somente a confirmar essa tese, mas a desenhar, de forma etnográfica, as especificidades
da atualização desse processo macro na cidade de Salvador.
III- Luta e ocupação no território mágico da representação
Na seção anterior, destaquei os aspectos mais concretos da ofensiva de setores
evangélicos sobre os cultos afro-brasileiros em Salvador, como a disposição dos seus templos,
as agressões morais e físicas e as invasões de terreiro. Nesse momento, a idéia é descrever a
terceira frente deste avanço, que se realiza através da disputa político-discursiva por espaços e
objetos historicamente associados aos cultos afro-brasileiros. Neste caso, a batalha também se
dá no e pelo espaço público, no entanto, nesses casos ela tende, em alguns momentos, a vazar
as delimitações explicitamente religiosas dos terreiros (que defini como “espaço contínuo” do
candomblé) e dos seus arredores e ampliar-se para setores chave do aparelho e do imaginário
urbano, incidindo, inclusive, sobre a base material da sua cultura.
85
As particularidades históricas de Salvador, grande centro receptor de escravos africanos,
reforçadas pela ênfase colocada pelos movimentos artísticos, pelo movimento negro e pelo
mercado de turismo na matriz africana da sua formação, fazem com que o candomblé exerça
uma espécie de hiper-representatividade no imaginário soteropolitano. Esse fenômeno faz
com que a sua existência passe a ocupar em Salvador uma dupla função, inexistente nas
atualizações (essas mais estritamente “religiosas”) que o culto vem tendo em sua expansão
recente pelo Brasil. Além de se constituir como um segmento religioso específico, que, de
acordo com os cruzamentos de dados censitários realizados pela Fundação Getúlio Vargas,
seria composto por apenas 0,48% da população da cidade, em Salvador o candomblé existe
como uma espécie de fonte primária, onde uma série de manifestações culturais, artísticas,
políticas e econômicas a princípio “laicas” têm se alimentado. Por outro lado, o sincretismo
do candomblé com o catolicismo (uma das causas deste pequeno número de pessoas que se
auto-declaram praticantes dos cultos afro) funciona como um outro importante canal para que
seus signos se disseminem na religiosidade popular da cidade. Um rápido contato com a vida
cotidiana de Salvador basta para se perceber a profusão de sinais e estímulos provenientes do
repertório simbólico e dos costumes do candomblé, que se atualizam tanto na sua “cultura
popular”, como a música, as artes plásticas, as festas, os produtos turísticos e as comidas,
quando nas demonstrações de fé de seu povo, que frequentemente também se manifestam
através do suporte material desses traços culturais, borrando qualquer distinção fácil que
venha a ser desenhada ente o “religioso” e o “laico”.
Como expõem os eventos que serão analisados nesta seção, essa hiper-
representatividade da matriz afro-brasileira, no atual contexto de conflito religioso, passa a
servir de ponte para a ocorrência de mais uma “aproximação metonímica” entre o discurso
evangélico até aqui apresentado e a cena pública da cidade. Caminhando nesse sentido,
passarei agora dos conflitos territoriais materializados nas brigas e invasões de terreiro para a
disputa semântica por determinados eventos e signos, que servem de foco de negociação entre
o discurso religioso e o senso comum. Relendo e re-classificando esses signos mais
sedimentados da identidade local, os evangélicos transformam a sua luta pelo imaginário
numa luta pela cidade, englobando tanto a sua disposição física quanto a identidade que a
sustenta.
Evangelizar a “Cidade dos Orixás” parece ser uma tarefa imensa, que vai muito além da
multiplicação de fiéis e de templos. Tais medidas permaneceriam insuficientes, caso
86
determinados signos-chave, que historicamente têm sustentado a cidade, passassem ilesos à
sua ação, signos que, saindo da matriz afro-brasileira, cristalizaram-se de tal modo que
passaram a constituir a base “laica”, apesar de sempre sagrada (no sentido durkheimiano do
termo), de sua gramática identitária. Aqui, a luta por território estende-se em luta pela
memória.
No que se segue, tentarei classificar essa frente em três cenas principais. A primeira,
que ocorre através dos panfletos distribuídos pelas ruas da cidade, tem como alvo as festas
populares que marcam o sincretismo religioso de Salvador. A segunda e a terceira referem-se
a dois debates que tiveram altíssima repercussão entre a população da cidade: a polêmica
acerca da colocação, por parte da prefeitura, de estátuas dos orixás no parque do “Dique de
Tororó”, e as negociações acerca das condições e práticas envolvidas na venda do acarajé. Se
na primeira o alvo de debates é o catolicismo popular, assim como a sua perigosa relação
interna (e certamente “religiosa”) com o sincretismo, a segunda e terceira incluem a intensa
negociação gramatical acerca do que seria “religião”, e de como ela seria inserida da forma
mais adequada na vida pública de uma sociedade a princípio “laica”.
a) Panfletando o pavor
Os panfletos são meios de comunicação já tradicionais entre o segmento evangélico. É
impossível caminhar hoje em dia pelo centro de Salvador (ou de qualquer grande cidade do
Brasil) sem tornar-se alvo desses fiéis incansáveis, que diariamente distribuem uma infinidade
de pequenos papéis, contendo trechos bíblicos, informações sobre os seus cultos, resumos das
doutrinas evangélicas e os endereços e telefones dos templos. Pretendo destacar aqui
rapidamente um tipo específico de estratégia discursiva materializada em alguns desses textos
curtos e sintéticos, que conteriam uma argumentação dotada de continuidade com o discurso
ritual e televisivo já descrito.
Logo abaixo, transcrevo um desses panfletos, distribuído por um pastor batista no bairro
do Rio Vermelho no dia 2 de fevereiro de 2002, epicentro da Festa de Iemanjá, que ocorre
anualmente nesta mesma data e que chega a reunir mais de um milhão de pessoas. Esse
documento veio a ser anexado em um processo de intolerância religiosa movido pela
Promotoria da Cidadania contra o pastor, que os formulou e os imprimiu com o intuito de
87
distribuí-los no decorrer da festa às pessoa que formavam a fila para entrar nos barcos que
levam as oferendas ao orixá homenageado
69
. Um dos seus trechos diz:
ALERTA
COM ISSO QUEREMOS DIZER QUE É ERRADO CONTINUAR A
CULTUAR A IEMANJÁ E A OFEECER-LHE PRECES OFERENDAS,
POIS, SEGUNDO A BÍBLIA, A PALAVRA DE DEUS, ISSO ACABARÁ
LEVANDO VOCÊ PARA O INFERNO.
Antes de fornecer às pessoas alguma informação, a intenção primordial parece ser a de
transmitir uma advertência explícita sobre o caráter maléfico de determinadas prática
tradicionais. Esse clima de ameaça e de risco é corroborado por um outro panfleto, que recolhi
certa vez no Centro Histórico de Salvador sendo entregue por um grupo de obreiros da IURD.
Nele, os horários e os nomes dos cultos da igreja são precedidos por uma advertência
destacada por letras garrafais: QUEM FALOU QUE VOCÊ NÃO TEM INIMIGOS?
O foco, como se vê, é alimentar o proselitismo religioso na insegurança das pessoas,
reverberando os conflitos, antes de abafá-los
70
. Durante os cultos que visitei, as festas
populares foram sempre tratadas de modo especial, pois seriam ocasiões dotadas de extremo
perigo de contágio pelo mal, principalmente através do suporte das comidas, objetos rituais e
oferendas envolvidas em sua realização. O foco como se vê, é a todo tempo o questionamento
da natureza do vínculo de troca produzido com o sobrenatural por estas religiões, que, no caso
das festas populares, passa a unir o catolicismo (através da dimensão mágica das
“promessas”) e os cultos afro-brasileiros (abertamente sacrificiais, já que fundados na relação
de troca objetal) no erro comum do sincretismo.
69 É importante destacar que para o candomblé o evento de 2 de fevereiro não é tão representativo e somente
alguns adeptos participam da festa, a maioria de forma quase diplomática, cedendo seus conhecimentos e
poderes rituais a essa festa criada pelos pescadores e que hoje se encaixa no complexo universo de fenômenos da
“religiosidade popular”.
70 É a mesma estratégia que se vê atualizada em um panfleto que recebi das mãos de pastores da igreja
neopentecostal Renascer em Cristo. Após uma curta descrição que associa o candomblé e a umbanda ao
satanismo, assim como a citação de alguns trechos bíblicos que tratam da questão da idolatria, lê-se: ELE (Jesus
Cristo) ESTÁ AFLITO POR SABER QUE A SUA CONDIÇÃO ESPIRITUAL NÃO É BOA. SUA ALMA
ESTÁ EM GRANDE PERIGO, SUJEITO A CONSEQUÊNCIAS DESAGRADÁVEIS, MAS AQUELE QUE
ESTÁ À SUA PROCURA QUER AJUDÁ-LO EM TODAS AS SUAS DIFICULDADES, POIS SÓ ELE ESTÁ
EM CONDIÇÃO DE SOCORRÊ-LO, PODENDO MUDAR COMPLETAMENTE O CURSO DA SUA VIDA.
88
A foto acima exemplifica um panfleto que encontrei colado em uma infinidade de
cabines de telefonia pública da cidade. Como se vê, o alvo desta vez é uma outra festa
extremamente popular na cidade de Salvador: a festa de Nosso Senhor do Bonfim.
A imagem de Nosso Senhor do Bonfim chega a Salvador vinda de Portugal na metade
do séc. XVIII. Ao longo do século XIX, o santo (e a sua imagem) estabiliza-se como o
padroeiro da cidade, a partir de uma série de eventos milagrosos operados por suas saídas da
“colina sagrada”, todos referentes à solução de problemas de ordem pública, como a guerra de
independência, uma grande seca e uma epidemia de cólera
71
. Se o tempo acaba por enredar o
Bonfim na vida pública da cidade, não deixaria também de envolvê-lo nas tramas do
sincretismo religioso, que passa a concebê-lo como o orixá Oxalá, grande rei morador da
colina branca (cor associada a ele), responsável por olhar pelo bem da cidade lá de cima.
Roger Bastide (1945), em sua primeira visita à cidade, já percebia a força desta analogia,
quando colocava em paralelo os festejos ao Senhor do Bonfim e o ritual das “Águas de
Oxalá”, que abre o calendário litúrgico das casas de candomblé mais tradicionais de Salvador,
como a Casa Branca e o Opó Afonjá.
Tendo se estabilizado como uma das maiores festas populares da cidade, capaz de
agregar mais de um milhão de pessoas em suas últimas realizações, a “Lavagem do Bonfim”
se conforma em um marco do sincretismo religioso local, além de um evento síntese, espécie
de fato social total da vida pública da cidade. Festa profana, rito religioso, palanque político e
71 Uma cuidadosa recuperação histórica da festa do Bonfim pode ser encontrada em Guimarães (1994).
89
atração turística, a “Lavagem do Bonfim” acontece como uma celebração da mistura, além de
um símbolo de um modo “tipicamente baiano” de se instalar na cena pública.
Logo na introdução do seu Orixás, caboclos e guias, Edir Macedo descreve
sumariamente a sua versão da perigosa história espiritual do Brasil, que teria como
característica principal o sincretismo:
O povo brasileiro herdou, das práticas religiosas dos índios nativos e dos escravos oriundos da
África, algumas religiões que vieram mais tarde a ser reforçadas com doutrinas espiritualistas,
esotéricas e tantas outras que tiveram mestres como Franz Anton Mesmer, Allan Kardec e
outros médiuns famosos. Houve, com o decorrer dos séculos, um sincretismo religioso, ou seja,
uma mistura diabólica de mitologia africana, indígena brasileira, espiritismo e cristianismo,
que criou ou favoreceu o desenvolvimento de cultos fetichistas como a umbanda, a quimbanda e
o candomblé (2005: 13, grifo meu).
Observa-se na “mistura demoníaca” descrita por Macedo algumas ênfases bastante
interessantes, que parecem se repetir na advertência que destaquei com a fotografia. Nelas, o
sincretismo serve como uma via indireta para se produzir a crítica ao catolicismo brasileiro,
inimigo poderoso, que mostrou toda a sua capacidade de mobilização nacional no polêmico
episódio do “chute da santa”, ocorrido em meados dos anos 90. A frase colada no telefone
público deixa bem claro isso: o demônio enganador não é o Senhor do Bonfim, mas quem se
passa por ele, “Oxalá, ou o diabo”. “Oxalá” é outro modo de se designar o diabo, já “Senhor
do Bonfim” é apenas um modo deste “demônio enganador” se expressar disfarçadamente.
A crítica indireta ao catolicismo popular tem como meio direto os culto afro-brasileiros,
utilizando-se habilmente as misturas e analogias produzidas pela religiosidade popular como
texto base, que é confirmado, mas reconfigurado tendo em vista a inserção dessa espécie de
meta-categoria que é o “diabo”. Apesar de ter citado líderes de correntes espíritas, além do
cristianismo, a produção histórica do infeliz sincretismo brasileiro deságua mesmo no
“desenvolvimento de cultos fetichistas como a umbanda, a quimbanda e o candomblé”. A
espécie de função gramatical chave ocupada pelos cultos afro-brasileiros nesse discurso seria,
portanto, a de mediação, de porta de entrada mais fácil, já que supostamente menos legitimada
e organizada, não só para se atingir o catolicismo, o ponto de fato nevrálgico desse campo
religioso, mas para adentrar, corroborar e interferir de forma inovadora no “mundo dos
espíritos” da religiosidade popular, que incluiria o catolicismo como uma das matrizes em
jogo. De acordo com os termos de Sanchis (2001), pode-se afirmar que a força e a
complexidade dessas ofensivas estariam em sua capacidade de se desenrolar sempre
90
simultaneamente sobre os planos lingüístico e metalingüístico tanto das “religiões” quanto da
“religião” dos brasileiros.
b) O Dique do Tororó: “parque natural”, “lagoa de Oxum” ou “celeiro de
encostos”?
No dia 22 de novembro de 2000, em Salvador, uma criança chamada Humberto Heitor
de Andrade Neto, à época com 7 anos, reconhecido por suas habilidades artísticas, foi
convidada pela direta de sua escola, Sara Campos, a enfeitar o muro do lugar pintando um
painel. O tema a ser pintado seria livre:
Constatou-se que Heitor, na tarde daquele dia, pintou, no muro da Escola Sul-
Americana, o Orixá Ogum e foi muito elogiado, inclusive por Sara. Todavia, no dia
23/11/00, (...) a genitora de Heitor, Maria da Penha, recebeu um telefonema de Sara,
exigindo que Heitor fosse apagar o painel, porque o pai de um aluno, que é evangélico,
ameaçou retirar o seu filho da escola, caso o Orixá Ogum continuasse sendo exposto.
Diante da recusa de Heitor de apagar o painel, Sara, por conta própria, mandou que o
mesmo fosse encoberto com tinta branca
.
No desfecho dessa contenda judicial, que acessei através dos seus autos, a diretora é
indiciada pela Promotora da Cidadania por discriminação religiosa, sendo julgada inocente.
Inicio esta sub-seção recuperando o caso acima, pois julgo que ele seja capaz de
sintetizar algumas implicações da “frente de batalha” que venho tentando descrever. Trata-se
de um evento quase inocente, assim como o nosso objeto de análise, uma espécie de batalha
pelo cotidiano da cidade, luta prosaica que faz desse evento uma introdução adequada às
armas e aos objetos de sua disputa. Gostaria de destacar nesta cena o contraste entre a
intenção “não-religiosa” que move o ato do garoto, que, segundo o promotor do caso, não era
adepto e nem provinha de uma família de adeptos dos cultos afro-brasileiros, e a postura
defensiva, assim como abertamente “religiosa”, com que o pai do garoto evangélico interpreta
e reage a tal gesto.
Entre a força estética e poética com que o orixá inspira a imaginação do pequeno artista
e a pressão realizada pelo pai para retirar o desenho dali, vendo nele uma espécie de ameaça à
segurança do seu filho, instaura-se um debate referente à natureza da representação religiosa e
ao modo do sagrado (seu e do outro) tocar as coisas e nelas se materializar. Por outro lado,
insere-se nesta primeira questão a propriedade fundamental que determinados objetos têm de,
sem escapar de sua concretude, fazer com que as pessoas se sintam representadas pela sua
91
presença, e neles se espelharem, encontrando em sua natureza de signo a um só tempo os seus
deuses e a si mesmas. Qual a diferença entre um objeto religioso e um laico? Qual é a
capacidade de influência desses objetos em nossa vida cotidiana? Como inseri-los
“adequadamente” na cena pública em um contexto de pluralismo religioso? Essas são
algumas questões que sustentaram o evento acima apresentado, e que aparecem de forma mais
destacada na polêmica desencadeada em Salvador pela colocação das estátuas dos orixás no
Dique do Tororó, em 1998.
A construção do Dique remete ao século XVIII, quando foram represadas as águas do
Rio Lucaia para a sua formação. De acordo com Dias (2003), desde então, o Dique ocupou
historicamente três funções territoriais distintas. Originalmente, conformou-se em uma
barreira para impedir a entrada de invasores por terra, isolando a cidade, antes restrita ao que
hoje é o Pelourinho, em seu limite oriental. Ao longo do século XIX, o Dique assume a
função de área sagrada do candomblé, passando a ser considerado um domínio de Oxum,
espaço propício para a realização de oferendas e outras práticas rituais referentes a este orixá.
De acordo com Everaldo Duarte, do terreiro do Bogum:
Havia quem visse Oxum desfilar, majestosa, por sobre as baronesas que, no verão, floriam todas
em seu louvor. Ora mergulhava, ora flutuava sentada a pentear longos cabelos que se
confundiam com os talos da baronesa. De vez em quando, ela seduzia um afoito que, sem se dar
conta, mergulhava em território proibido, a bacia que ainda é dela, e não voltava à superfície
antes do terceiro dia; e quando voltava era bem distante, do outro lado do Dique, na bacia dos
Eguns, onde os Ancestrais se reúnem para receber e conversar com os recém-chegados no Orum
(Duarte 2000: 264).
No entanto, e apesar dessa belíssima descrição, ao longo do século XX o Dique foi
sendo gradativamente aterrado, tanto pelos moradores quanto pelo poder público, que ali
construiu o Estádio da Fonte Nova. O aumento da urbanização, do trânsito de automóveis e
pessoas pelo local, acaba também afetando o seu caráter sagrado, impondo às divindades que
ali habitavam uma vida mais restrita: “Ali Oxum já não flutua mais, a não ser de madrugada,
em surdina, quando os ônibus, os carros, as ambulâncias e todo o resto da parafernália param
de circular e por causa disso ela pode cantar. Já não é mais o mesmo canto alto e solto.
Apenas alto e sincopado que traduz o seu pesar pela invasão ao seu lugar de brincar” (Duarte
2000: 265).
Após um período de forte decadência e abandono, o Dique foi recuperado e devolvido à
população no dia 2 de abril de 1998, passando a ocupar a sua terceira função histórica: a de
92
parque natural, espaço de lazer para moradores e turistas. Junto à recuperação de sua área
natural, ocorre também a instalação de esculturas representando 12 orixás, obras do artista
plástico Tati Moreno. Desde então, dentro da lagoa, são vistas as representações de Oxalá,
Xangô, Oxum, Iansã, Ogum, Iemanjá, Nanã e Logum Edé, enquanto que em terra estão as
representações de Oxossi, Euá, Oxumaré e Ossain.
No entanto, junto com os orixás, também se instala uma polêmica, que se vê ampliada
com a organização, por parte de setores do segmento evangélico, de uma série de
manifestações contrárias à sua permanência naquele lugar. Esse debate, rapidamente
disseminado pela opinião pública, realizou-se através de dois argumentos centrais. Por um
lado, ocorrem uma série de passeatas, críticas publicadas em jornais e medidas políticas,
como a mobilização de vereadores evangélicos, que se colocam contra as imagens por verem
nelas um acinte à “liberdade de crença”. Por outro lado, e dando um tom mais mágico que
jurídico ao debate, começam uma série de rumores referentes aos poderes diabólicos daquelas
representações, cuja presença teria transformado o Dique em um lugar dominado pelo mal.
No tocante ao segundo argumento, dois eventos podem ser citados de modo a ilustrá-lo.
O primeiro é o hábito que descobri, através de conversas com evangélicos de algumas igrejas
presentes na região do Dique, como a Assembléia de Deus, a Renascer em Cristo e a IURD,
de se evitar passar na área próxima às estátuas dos orixás. Questionada sobre o porquê de tal
atitude, uma mulher me disse que: “aquilo é área do candomblé, não é nossa não, quando eu
venho pra igreja, prefiro passar longe dali, dali não sai coisa boa, aquele lugar não é meu”.
Numa outra conversa, dessa vez com uma fiel da IURD, me foi confidenciado que ali era um
“seleiro de encostos”. O outro é uma longa entrevista, ocorrida no “Portal da Esperança”,
93
programa de televisão encabeçado pelo pastor da Igreja Batista do Caminho das Árvores,
Átila Brandão, e veiculado pela TV Aratu. Essa entrevista se desenrola entre o pastor e um
condutor de barco do Dique, serviço que, de acordo com o último, seria muito utilizado por
filhos de santo para levar as suas oferendas para próximo das estátuas. Depois de uma longa
fala de Brandão, que inicia o programa advertindo os seus telespectadores de que o
candomblé cultuaria o demônio, o condutor passa a servir de testemunha para um curioso
fenômeno que comprovaria a força do poder inimigo: após a instalação dos orixás no Dique,
os peixes do local estariam morrendo, sem que as autoridades pudessem encontrar alguma
causa natural capaz de explicar essa mortandade.
Por sua vez, o argumento da “liberdade religiosa” é bem sintetizado pela fala de um
líder evangélico local, com quem eu tive a oportunidade de conversar durante a minha estadia
na cidade. De acordo com ele:
No Dique a resistência vem do seguinte: todos os sacerdotes do candomblé entendiam que a
instalação daquelas estátuas tinha um cunho religioso. Ora, se tinha um cunho religioso, se era
um culto a determinada religião, então ofendia a constituição brasileira, porque o Brasil é um
estado laico e não pode o dinheiro público ser utilizado em um culto, e o dinheiro público estava
sendo utilizado para a celebração de um culto. Então eu poderia também pedir o dinheiro
público para imprimir bíblias, e não pode, é um contra-senso. A legislação brasileira proíbe.
Infelizmente nós fomos atropelados por essa disposição do poder público baiano em gastar o
dinheiro público na celebração de um culto à religião afro. É um equívoco que infelizmente foi
cometido.
Percebe-se que o raciocínio se constrói a partir de dois movimentos básicos. O primeiro
instaura as estátuas como objetos de natureza religiosa, nesse caso específico, defendendo-se
uma analogia entre elas e a bíblia. As figuras dos orixás seriam, nesses termos, objetos de
culto do povo de santo, e tal estatuto teria como conseqüência lógica, e segundo movimento
dessa estratégia, a colocação da atitude da prefeitura de financiar a sua exposição naquela área
como algo contrário aos princípios legais garantidores do Estado laico. Levando esse
argumento a algumas lideranças do candomblé, pude estabelecer entre os dois segmentos um
interessante diálogo sobre o estatuto do signo religioso, ou mesmo sobre a polissemia que
parece afetar a noção de “religião” que instaura o debate. Comentando a crítica evangélica,
uma liderança do candomblé uma vez me disse:
O Dique do Tororó eu acho uma coisa muito velhaca os evangélicos serem contra o Dique do
Tororó. Todo mundo, nós sabemos, sejamos candomblecistas ou não, que o que existe no Dique
são figuras que não são sagradas. São meras representações de um artista dizendo que aqueles
são os orixás, é certo que não é orixá, os orixás não têm forma, não têm forma física. Que
94
diabos! Aquilo está ali pra ornamentar, pra perpetuar uma imagem, vamos dizer assim, uma
imagem histórica de que existiram os orixás. Mas os evangélicos acham que aquilo é uma coisa
que está ferindo a sensibilidade deles e que ali se faz oferendas. Ninguém mais liga pra aquilo,
ninguém nunca fez oferenda naquelas estátuas. No Dique sim, mas não naquelas estátuas. Não
interferiram em nada, aquilo é somente uma figura que decora o espaço, estão bonitas ali, dão
um toque mais elegante no espaço, não vejo porque os evangélicos se danaram tanto por causa
daquelas imagens! (risos) Eles acreditam mais nas imagens do que nós! E eles falam que não,
imagine!
A fala desloca o estatuto semiótico e sociológico das figuras em questão, que saem do
campo da “religião” e passam a ser configuradas como uma espécie de “monumento”, que
expressaria o reconhecimento por parte do poder público, realizado através da representação
icônica das divindades do candomblé, da importância da matriz africana para a história,
cultura e imaginário do povo baiano
72
. Dá-se aqui uma característica aproximação entre
religião e etnicidade, que, neste caso, implicaria na utilização de signos provenientes da
primeira “esfera” (coloco aqui entre aspas, porque como veremos é a própria noção de esferas
que é colocada em jogo por este fenômeno) para representar a segunda em sua entrada na
cena pública. Esse deslocamento entre o signo (religioso) e o sistema nele atualizado
(etnicidade) implica em que os dois argumentos evangélicos, o mágico e o jurídico, sejam
colocados numa situação contraditória, já que passam a dotar de mais eficácia religiosa
aquelas imagens, vindas do campo “inimigo”, do que a própria religião que as gerou. É o que
se vê no destaque irônico dado pelo meu entrevistado ao fato de que os evangélicos
“acreditam mais nas imagens do que nós”, indicando, ao menos neste caso, uma familiaridade
maior dos praticantes de culto afro do que dos evangélicos com o regime moderno da
“representação”, do “símbolo”, em suma, do vínculo arbitrário.
É essa aparente inversão que se vê corroborada por dois outros eventos com que tive
contato. Os primeiros são as invasões e depredações de lojas especializadas em objetos
ligados ao candomblé, que seguem o mesmo padrão de exorcismo observado nas invasões dos
terreiros. Os outros foram os atos de vandalismo contra outras obras artísticas que fazem
referência ao universo mítico dos orixás, como as pinturas do artista plástico Juarez Paraíso,
que tiveram a sua destruição documentada pelo curta-metragem “Ira”. Além disso, e como
vimos anteriormente, também nas invasões de terreiro, a destruição das peças litúrgicas
aparece como uma atitude de importância central, dada a sua recorrência.
72 Uma declaração do vereador Edson Santos, ligado aos grupos afros de Salvador, também caminha nesse
sentido, produzindo um paralelismo com signos típicos dos festejos de natal: “Acho democrático dar ênfase à
multirreligiosidade que marca o Brasil, respeitando também a herança africana. Não deve haver espaço só para
árvore e Papai Noel”.
95
Essa espécie de “fetichismo” cristão, que nos rituais de libertação da IURD está
associado à produção ritual de objetos capazes de “fechar” a vida cotidiana das pessoas ao
mal e de gerar um compromisso de regularidade com o culto, através da sua utilização
enquanto centro dinamizador das “correntes”, nesses casos se manifesta de forma negativa,
produzindo através da apropriação do universo objetal inimigo a sua contraparte, com a qual
os evangélicos se vinculariam em termos de oposição. Desse modo, conformam-se no mundo
dos objetos dois campos em tensão: de um lado, tambores, ibás, quartinhas, ebós e
assentamentos, do outro, balas ungidas, rosas do descarrego, martelos da justiça, xampus
consagrados, etc. O destaque a essa aparente contradição evangélica, que, mesmo sendo parte
de uma corrente histórica fundada na crítica à mediação imagética, dota de excessiva atenção
e poder (mesmo que negativos) os signos provenientes do universo afro-brasileiro, aparece de
forma constante na fala de representantes do “povo de santo” com quem tive contato em
campo:
Pois é, a gente nunca ligou pra aquilo ali como templo, existem 2 locais sagrados no Dique que
a gente sempre fez oferenda, mas não é ali, é noutro lugar. A gente passa por ali e acha até
engraçado. “Olha lá Oxalá, olha não sei quem!”. A gente sabe que não é. Eles se preocuparam à
toa, e com isso eles deram um tom de veracidade àquilo que a gente não acreditava. Eles falam
que os católicos adoram imagens, e que o candomblé também, não tem sentido, lá não tem
imagem nenhuma pra gente adorar, e pra eles sim.
Nessa argumentação, é interessante a referência à noção de “templo”, que coloca de
forma explícita as duas concepções de territorialidade que entram em choque na disputa pelo
Dique: uma que é móvel e ritualizada (a do candomblé) e a outra que é essencialista e
exclusivista, que se projeta na primeira como parte de uma estratégia de congelamento de sua
mobilidade. Nesse sentido, pode-se dizer que o Dique seria uma espécie de “território
descontínuo” (Souza 1995) do candomblé, assim como uma série de outras áreas naturais da
cidade, como o parque de São Bartolomeu, a Lagoa do Abaeté, ou mesmo lugares mais
comuns, como uma pequena mata de um bairro qualquer ou uma determinada encruzilhada.
Esses lugares comporiam, juntamente com o território contínuo do terreiro, a totalidade da
territorialidade sagrada do candomblé, que, em seu limite, viria a ocupar, de forma potencial,
o todo da cidade.
Nas áreas descontínuas do candomblé, é a performance humana que instaura o sagrado,
gerando o retorno metonímico do tempo mítico, do eterno, do essencial, que se atualiza no
suporte material das matas, lagoas e ruas da cidade a partir de uma espécie de cópula ritual
96
com o mundo profano. Tal dinâmica não exclusivista possibilita, na polêmica dos orixás do
Dique, que os praticantes de candomblé declarem que naquele lugar há apenas um parque
natural, sem que essa posição impeça a sua pontual (e não contraditória) transformação em
lagoa de Oxum. Enquanto isso, impossibilitadas por seu essencialismo espacial, a corrente
mágica dos evangélicos define o Dique como um perigoso “celeiro de encostos”, enquanto a
corrente jurídica vê ali uma perene “lago de Oxum” (com as aspas que geralmente demarcam
a crença que vem do outro). Talvez seja essa maleabilidade, capaz de instalar e desinstalar
com a mesma rapidez o “religioso” no suporte profano da cidade, que faça cair em
contradição qualquer crítica que caminhe na direção de apontar possíveis excessos da
presença das religiões afro-brasileiras na esfera pública, o que se percebe pelos sucessivos
fracassos da iniciativa evangélica de tentar retirar as estátuas do Dique. Afinal de contas, e
como uma vez me disse um filho-de-santo: “O candomblé é o que a festa faz, está onde a festa
acontece”.
c) “Acará”, “Acarajé” ou “Bolinho de Jesus”?
Outro ícone identitário da cultura popular baiana sobre o qual se realizaram e ainda se
realizam intensas disputas é o acarajé. Hoje em dia, no Brasil, falar desse bolinho de feijão
fradinho, cebola e sal frito no azeite-de-dendê fervente, é instantaneamente referir-se à Bahia.
Ao mesmo tempo, e como parte dessa associação com a identidade baiana, o acarajé
permanece um signo que carrega em si de forma radicalmente condensada a dinâmica
histórica e sociológica relativa à instalação forçada das populações africanas na cidade.
Significando através do seu cheiro, das suas cores e do seu sabor, o acarajé, enquanto uma
espécie de síntese sensível da história do negro na Bahia, carrega consigo uma série de
mudanças e contradições, e talvez por isso seja, de acordo com o mote levi-straussiano, tão
bom para pensar quanto para comer.
O acarajé é filho do “acará” africano, consumido sem os recheios hoje comuns em seu
descendente brasileiro.
O bolo de fogo Acará significa bolinho, sendo o nome original do acarajé em locais do Golfo do
Benim, África Ocidental. Bolinho de feijão (Phaseolus angulares Wild); ajeum é verbo que, em
Iorubá, designa o ato de comer. Então, o que as mulheres (que fazem e vendem na rua o
alimento) anunciam acará, acará ajé, acarajé, é o “bolinho de comer” (Lody 2005: 75).
Narra o mito ioruba, transcrito em Verger (1997), que logo após se separar de Ogum e
se unir a Xangô, Iansã segue, enviada pelo segundo, à terra dos baribas em busca de uma
97
mistura que, caso ingerida, lhe daria a capacidade de lançar fogo pela boca. Sempre corajosa,
Iansã prova do líquido, vindo a adquirir a poderosa capacidade de cuspir fogo. Baseados nesse
mito, e tendo em vista homenagear os deuses nele envolvidos, os iorubas realizam as
cerimônias do fogo, onde um iniciado carrega na cabeça uma jarra cheia de furos com fogo
dentro, o àkàrà, onde os iniciados engolem mechas de algodão embebidas em azeite-de-dendê
em combustão.
A influência africana na culinária brasileira não se reduz, como sabemos, ao acarajé. O
Brasil é um dos países do “Novo Mundo” onde a culinária africana exerceu maior influência
nos hábitos alimentares. De acordo com Câmara Cascudo (1936), escravos africanos foram
levados para muitos lugares da América, no entanto, no Brasil a culinária negra se aprimorou
e se difundiu de forma extraordinária graças principalmente à maciça presença das mulheres
negras nas cozinhas dos senhores coloniais, particularidade histórica que fez com que uma
série de pratos africanos não tardasse em ocupar um lugar definitivo nas mesas brasileiras. Tal
regularidade inexistiu em outros lugares acessados pela diáspora africana, onde houve
inclusive contextos em que a colaboração negra na cozinha fosse terminantemente proibida.
No caso de Salvador, a esse aspecto geral vem a somar-se, no final do século XVIII, um
outro evento de suma importância para o desenvolvimento da culinária local: a reinstalação e
reorganização em comunidades estruturadas do sistema religioso de escravos de origem nagô
e iorubá, que vieram a configurar o que hoje é o candomblé. A relação entre candomblé e
alimentação é de forte interdependência. Lá onde houve orixás, conseqüentemente, houve
sacrifícios e oferendas de alimento, dado que esses seriam os modos típicos desta religião
produzir a comunicação ritual entre os homens e as suas divindades. A feitura dos pratos, que
são colocados em frente a cada “assentamento”, nome dado ao altar de cada orixá, e o
consumo ritual do restante pelos filhos de santo no “ajeum”, são eventos obrigatório em
qualquer cerimônia do candomblé. Onde comem os deuses, comem os homens, e assim,
constrói-se um poderoso suporte religioso para a memória da culinária africana, responsável
pela preservação, em novo solo, do ebó de Oxalá, do doboru de Obaluaê, do omolucum de
Oxum, assim como do acará de Iansã.
Enquanto comida sagrada, portanto, os acarajés fazem parte do cardápio predileto de
Iansã, além de unir-se ao amalá, prato de quiabos, dendê e pimentas, servido acrescido de
acarajés maiores e alongados a Xangô. Já no início do século XIX, o acará passou a ser uma
das principais fontes de renda das chamadas “baianas de acarajé” em Salvador, mas somente
98
sob a forte regulação religiosa das casas de candomblé. Filhas de Oxum vendem cocadas,
filhas de Nanã, mingaus, filhas de Oxóssi vendem frutas e filhas de Iansã e Xangô, acarajés.
Portanto, no passado, para montar um tabuleiro e ir vender na rua era preciso ser filha de
Iansã ou Xangô e ser designada pelos orixás para cumprir essa missão. Além disso, essas
vendedoras só poderiam sair às ruas mercando o “bolinho de fogo” depois das 17 horas. Sobre
essa estrita regulação religiosa da venda dessas iguarias, afirma um informante:
O acarajé também não é mais aquilo que era no início de 1900, porque acarajé naquela época
era pro sustento mesmo da família [refere-se aqui à ‘família de santo’]. A mulher saia vendendo,
mercando, o acarajé, botando seu tabuleiro aonde fosse, pra sustentar aquela família, ou até
pagando alguma obrigação depois que saia do santo, ela ia vender acarajé na cidade pagando
uma obrigação pra aquele santo. As iaôs [mulheres em iniciação] era que iam vender acarajé. A
depender do santo e o que o santo tirasse, então aí você tinha muito isso, a ligação dos
vendedores e da casa de candomblé. Pra você ter idéia, você tinha que mulheres que quando
saiam do santo eram obrigadas a vender, o santo tirava pra elas venderem fato [uma espécie de
gordura animal]. Tem mulheres que construíram riquezas vendendo fato na cidade de Salvador,
que o santo tirava pra ela trabalhar. Então é orixá que ordenava no que ela ia trabalhar e como
ela ia conseguir sobreviver daquele trabalho. Ordenava, quer dizer, não é uma ordem que eu
quero dizer, ele dava um caminho pra vida dela, e hoje você não vê mais isso.
A partir da segunda metade do século XX, muitas dessas baianas foram ganhando fama
e um bom dinheiro, e se estabeleceram como verdadeiras celebridades: Romélia, Vitorina,
Damásia e Quitéria, as mais antigas, cuja área de ação era principalmente o Centro e
Comércio, além de Dinha, no Rio Vermelho, dona Chica, na Pituba, e Cira, em Itapuã, que
acompanham o crescimento da cidade para o litoral norte. Nessa dinâmica, a atividade antes
restrita às filhas de Iansã e Xangô se populariza tanto que acaba rompendo com a sua
regulação religiosa, e passa a ser gerida por critérios de mercado. A abertura do mercado faz
com que a iguaria começasse a ser vendida por baianas vindas de todas as religiões, além
disso, passa a ser vendida também em lojas, bares, delicatessens, restaurantes e
supermercados. É no vácuo deste processo de laicização e de ampliação mercadológica que se
dá a entrada dos evangélicos neste universo, antes exclusivo dos cultos afro-brasileiros.
Signo que tem refletido e materializado, ao longo da sua existência, as contradições do
processo de modernização da cultura baiana, o acarajé não passaria ileso ao forte crescimento
evangélico que acontece na cidade a partir dos anos 80. Antigas baianas convertidas, novas
baianas evangélicas que entram nesse lucrativo nicho profissional e, principalmente, um
grande número de consumidores religiosamente orientados, esses são os personagens que
ajudam a compor as cenas de tensão e controvérsia que têm dirigido a relação entre os
99
evangélicos e o acarajé desde então. Dispostos, mais uma vez, a refletir o seu aumento
quantitativo na configuração da cena pública da cidade, esses segmentos religiosos passam a
realizar, através de pressões que incidem sobre o consumo e a produção, uma série de
adaptações no antigo “bolinho de fogo” de origem ioruba. Nesse sentido, instaura-se o
costume de que evangélico só pode comer acarajé “puro”, ou seja, ou feito por outros
evangélicos ou feito por profissionais que se preocupam em ocultar determinados diacríticos
afro-brasileiros, principalmente as vestimentas, ainda fortemente associadas ao mundo do
candomblé:
Eu acho que o candomblé perdeu bastante território. Mais ou menos em 1970, você tinha não
sei quantas mulheres vestidas de baianas pela rua, sem problema algum. Depois, já em 1980,
você foi perdendo as mulheres vestidas de baiana sensivelmente, pois algumas estavam se
interessando pela religião do evangélico, né? Quando agora, anos 90 até 2000, praticamente as
baianas perderam as suas roupas tradicionais na cidade de Salvador. Elas são do candomblé,
mas não querem perder a roupa porque não querem perder o cliente que é evangélico (“Jijio”).
O aparecimento do “bolinho de Jesus” em alguns tabuleiros evangélicos ocorre como o
ponto ápice deste processo de apropriação, que visa romper definitivamente com os vínculos
que ainda associavam o acarajé às religiões afro, evitando-se inclusive designá-lo através do
seu nome de origem iorubá. Espalhados por toda a cidade, e geralmente enquadrados por
letreiros como: “feito sem feitiço”, “feito sem trabalhos e rituais”, “assegurado por Jesus”,
esses tabuleiros se diferenciam dos seus parentes “impuros”, portanto, em dois aspectos
principais: primeiramente, por não serem servidos por uma “baiana”, e sim por uma pessoa
trajando roupas comuns, e consequentemente, por serem produzidos sem os intermédios
comuns ao candomblé, principalmente as ofertas a Exú. Referindo-se a esse ritual que
costuma abrir o dia de trabalho das baianas de acarajé tradicionais, afirma uma informante:
Eles não eram pra estar mexendo com acarajé, os crentes. Isso não é origem deles. O acarajé é
de origem africana. É o acará, é a comida do orixá. Eles aí tão trabalhando com isso como “bolo
de Jesus”. Ah, me deixe... Os primeiros 7 acarajés, despacha-se, como eu digo, pra aquele que
dá o caminho, aquele que dá a direção, aquele que faz a comunicação, que é Exú. Nós não
fazemos nenhum trabalho, em nenhuma festa, sem que a primeira oferenda seja de Exú. Ele é o
primeiro dos orixás, o que abre os caminhos. Ele tem uma comunicação com os demais, por
isso, depois de trabalhar com Exú, a festa vai transcorrer em paz, o dia de trabalho vai ser bom,
a vendagem vai ser boa, nada de ruim acontece, e tudo fica bem, porque nós louvamos a ele
primeiro. Exú e Oxalá, porque um dá comunicação, o outro dá paz (Mãe Lenice).
Como na controvérsia do Dique, as disputas pelo acarajé são compostas tanto por uma
corrente jurídica, “moderna” e individualista, que aqui é focada na questão das vestimentas,
100
quanto por uma corrente mágica, centrada no problema, já mencionado na análise do discurso
ritual e televisivo, das “comidas trabalhadas. Referindo-se a este último aspecto, Edir
Macedo é enfático:
Todas as pessoas que se alimentam dos pratos vendidos pelas famosas baianas estão sujeitas,
mais cedo ou mais tarde, a sofrer do estômago. Quase todas essas baianas são filhas-de-santo ou
mães-de-santo que “trabalham” a comida para terem boa venda, Algumas pessoas chegam a
vomitar as coisas que comeram, mesmo que isso tenho sido há muito tempo (Macedo 2005: 42).
Neste caso, e diferente, como veremos, do argumento jurídico, observa-se que, longe
que mudar de registro discursivo, a estratégia evangélica é mais uma vez a de vencer o
inimigo em seu próprio território, produzindo-se pontes textuais sem sair do invólucro
estritamente “religioso” do debate. Dois indícios da construção deste paralelismo são: i) a
produção do acarajé “do bem”, ou seja, feito sem a economia de vínculos agonística e
“possessiva” que articula o candomblé ao sobrenatural; e ii) a distribuição de uma série de
contra-feitiços, principalmente nos rituais da IURD, objetos mágicos como o “sal do
descarrego”, que devem ser acrescentados às comidas de origem africana de modo a anular
qualquer risco de contágio pelo poder maléfico que pode habitá-las
73
. Ao longo do trajeto que
vai da laicização plena até a apropriação evangélica do acarajé, percebe-se um caminho
paralelo em que a comensalidade, valor e código central para as religiões de origem africana,
sofre uma guinada em sua eficácia, que vai da completa anulação ao seu paroxismo. Nesse
processo de reaquecimento do poder performativo da comensalidade, a relação entre comida e
o sobrenatural sai do inócuo estatuto de “crença” ou de “simbólico” do outro e passa a ser
ativada como um tencionado e indéxico campo de ataques e contra-ataques discursivos.
Não somente a comensalidade, outros elementos textuais atualizados na venda do
acarajé também parecem “deslizar” metonimicamente de uma religião à outra, montando-se
um anteparo de trocas que estrutura e antecede as estratégias de guerra. Um desses elementos,
com que tive algum contato em campo, encontra-se na recorrente referência a uma “vocação”
entre as vendedoras de acarajé de origem evangélica. Distinguindo-a do “beruf” weberiano e
protestante histórico, vivido enquanto “ética do trabalho”, diria que esta “vocação” seria
dotada de alguns pontos de aproximação com a relação estabelecida entre orixá e profissão, a
mesma que dominara a venda do acarajé antes da sua abertura mercadológica. Conversando
73 Observa-se aqui uma divisão, pois enquanto a IURD dá maior ênfase ao argumento mágico, disseminando-o
entre a população, outros grupos evangélicos tendem a reforçar a ofensiva jurídica, e a usar os meios da política.
101
com “baianas” evangélicas, que se concentravam na região do Comércio e do Caminho de
Areia, pude recolher algumas declarações interessantes, que pareceram confirmar as minhas
suposições.
Em uma dessas conversas, dialogando com uma “baiana” ex-filha-de-santo e que
montara a sua banca de quitutes havia pouco tempo, escutei a declaração de que: “A venda do
acarajé foi uma estratégia de Jesus na minha vida. Eu era do candomblé, queria montar um
bar, mas ele me apontou esse caminho”. Neste caso, o trânsito religioso é seguido de perto por
uma mudança econômica, que se deixa ver no enunciado da mulher através da interessante
analogia de tipo “puro” / ”impuro”, que coloca o acarajé no primeiro pólo (oposto ao do
candomblé): candomblé /bar :: cristianismo evangélico /acarajé. Por sua vez, em uma
conversa com uma antiga “baiana”, agora convertida pela Assembléia de Deus, me foram
expostas algumas vantagens econômicas que balizaram a sua “mudança de lado”: “Fui tocada
pela inspiração divina, o Espírito Santo me disse que era isso que tinha que fazer, devia
mudar. Aí tudo melhorou, comecei a vender mais ao lado dele, ele me garante”. Gostaria de
colocar esses trechos em paralelo com o depoimento de dona Ivone do Carmo, 69 anos, que
tem mercado acarajés ao lado da igreja do Bonfim há 44 anos. Recolhi essas declarações de
uma entrevista concedida por esta, que é uma das mais tradicionais “baianas” da cidade”, ao
jornal Correio da Bahia, de 31 janeiro de 2003:
Quando tinha 12 anos, fui no terreiro perto da minha casa, no Pau Miúdo, procurar emprego.
Tomei a bênção, peguei a conversar e perguntei se precisavam de empregada. Veio a mãe-de-
santo, Maria do Socorro, e disse que eu não ia ser empregada não, que ia ser do terreiro, porque
ela tinha sonhado com uma senhora dando uma menina a ela. Fiquei morando lá, ela terminou
de me criar, fui iniciada e tomava conta de tudo. Foi lá que eu aprendi a fazer os acarás dele
[Xangô], compridinhos, e os dela [Iansã], bem redondinhos. Fazia pra comida, pra vender do
lado do barracão e repartir no candomblé. Ainda mocinha, vim morar no Bonfim e aqui tive um
sonho com Iansã me dizendo: “Ivone, você vai ser baiana, a baiana mais famosa da Bahia”.
Em comum entre a fala das vendedoras evangélicas e a de dona Ivone, encontra-se
uma relação com o sobrenatural que teria a função de revelar e avalizar a profissão escolhida,
“dando crédito” às ações dessas mulheres ao longo das suas carreiras. No bairro do Rio Sena,
encontrei mais um tabuleiro “tocado” pelo Espírito Santo, o de Rose, que logo que descobriu
o seu destino, contratou três ajudantes evangélicos para trabalhar com ela: “Pois é, só
evangélico, aqui tá fechado, o nosso acarajé é abençoado, posso até vestir roupa de baiana!”.
Percebe-se aqui que a função desta “vocação” seria a de assegurar as alianças corretas com o
outro mundo, e não a de fornecer preceitos tendo em vista regular eticamente a agência desses
102
sujeitos neste mundo. A idéia é, para os dois tipos de baianas, e de acordo com a terminologia
de origem afro-brasileira, estar sempre “fechado” durante o cotidiano do trabalho, seja
fazendo despacho para Exú, seja entregando a sua vida ao Espírito Santo.
Por sua vez, a corrente jurídica da ofensiva evangélica sobre o acarajé tem como
interlocutor não somente o candomblé, mas também o Estado, tanto no âmbito municipal
quanto no federal. O grande crescimento no número de tabuleiros, resultante do processo de
desregulamentação religiosa implicou na assunção, por parte do Estado, da tarefa de definir o
que viria a ser a forma “correta” de se comercializar essa antiga comida sagrada, fato que
passa a acontecer de forma mais programática somente a partir do final da década de 90. Os
novos critérios adotados deveriam incidir tanto sobre o controle das condições de higiene, que
passam a ser bastante questionadas por setores da imprensa
74
, quanto sobre os meios e modos
de produção e venda do quitute. Sob este segundo aspecto, estaria em questão, além do
recente surgimento de algumas controversas “lanchonetes” de acarajé, a crítica às
comerciantes evangélicas, que se recusavam a vestir a tradicional roupa de “baiana”. É nesse
contexto que o debate sobre o “bolinho de Jesus” toma a opinião pública da cidade, a partir da
ampla divulgação da sua ocorrência través dos órgãos de imprensa e da ABA, a “Associação
das Baianas de Acarajé”.
Nota-se que a progressiva quebra do monopólio do candomblé sobre o acarajé não
resulta necessariamente numa radical vulgarização deste alimento. A sua força representativa,
materializada em sua qualidade de ícone identitário da Bahia, tende sempre a blindá-lo com o
estatuto de um objeto “especial”, que deve ser protegido, de alguma forma, aos olhos do
Estado e de setores da população, das possíveis descaracterizações resultantes de um processo
desregrado de modernização. É esse caráter “sagrado”, apesar de laico, da venda do acarajé
para a cultura popular baiana, que é defendida pela série de medidas regulatórias que passam
a controlá-la.
O principal mecanismo regulatório utilizado pela prefeitura tendo em vista a atividade
das “baianas” foi o decreto municipal 12.175, de novembro de 1998, com portarias
subseqüentes, que indicava a padronização de indumentárias e tabuleiro, o controle da higiene
na preparação e manuseio do alimento e a localização de cada banca da cidade
75
. No que se
74 O produto já teve momentos de queda no início da década quando uma pesquisa realizada pelo “Fantástico”,
programa levado ao ar aos domingos à noite pela Rede Globo, mostrou que a qualidade do acarajé não era boa.
75 Consequentemente, e levando ao seu limite esse processo de “proteção” o acarajé foi tombado pelo governo
federal, em 2004, como patrimônio imaterial da nação.
103
refere à indumentária, ficou definido o uso obrigatório de “vestimentas típicas, de acordo com
a tradição afro-brasileira” (art. 2, par. 2) a toda vendedora, ou seja: “bata ojá, em algodão bico
de renda, saia rodada, torno pano-da-costa, colares de contas e argolas de búzios” (Portaria
171/99, art. 3), regra sancionada por uma multa de 30 Ufirs (mais de 30.000 reais).
A reação do segmento evangélico foi imediata, e se deu através dos jornais e da câmara
municipal. O argumento lembra de perto aquele defendido na polêmica do Dique, ou seja, a
acusação de que o Estado alimentaria uma relação privilegiada com o candomblé na cidade de
Salvador:
Sobre o caso das baianas de acarajé. Nós acreditamos que a indumentária tal qual foi colocada
também é uma preocupação de celebração de culto. Ora, não se pode obrigar a quem não quer
celebrar esse culto a ter que celebrar. Se pra poder vender um quitute você ter que ser adepto de
um culto, isso é um contra-senso. Estamos num país livre, laico, quem quiser vender quitute
deve fazer tendo a religião que ele quiser! Então, se pra vender um quitute tem que se estar
cultuando dessa ou daquela forma é também uma violência que não pode ser aceita. O uso das
roupas é colocado textualmente pelos babalorixás e ialorixás como uma forma de celebração do
culto. Nós não cultuamos as entidades do candomblé e devemos ter a liberdade de exercitar a
religião que queremos. Se alguém quer vender quitute dentro de todo preceitos legais não pode
ser obrigado a ter que celebrar um culto.
Tanto aqui quanto no caso do Dique, a estratégia é sair do registro horizontal das
acusações de feitiçaria e passar ao registro vertical da “acusação de religião”. Em ambas as
correntes da ofensiva, a mágica e a jurídica, a eficácia religiosa aparece como critério em
disputa. Se, na primeira, trata-se de reforçar a eficácia do objeto que vem do outro tendo em
vista demonstrar que é possível respondê-lo em seus próprios termos, com a produção de um
contra-objeto alimentado nas redes de um cristianismo “de alianças”, na segunda, a idéia
passa a ser projetar tal eficácia no universo objetal do outro tendo em vista construí-lo
discursivamente como uma evidência da “religiosidade” da ação que o acompanha.
Confirmando a centralidade do estatuto dos objetos nessa disputa, seja como ícone identitário,
seja como índex performativo, afirma um outro informante evangélico numa estranha
analogia:
Por exemplo, os crentes usam muito paletó e gravata. Talvez num domingo seja quem mais
anda na rua de paletó e gravata. Vou dizer então “agora pra costurar paletó e gravata tem que ser
crente!”. Não pode, toda pessoa tem que ter a liberdade de fazer e de comprar se quiser na mão
dele. A gente quer ter a liberdade de deixar quem quiser usar o símbolo usar, quem não quiser
não pode ser obrigado a usar. Porque o que é que foi que intentaram, intentaram que a pessoa
que fosse vender acarajé fosse obrigada a ser celebrante do culto. A gente acha que isso aí é
uma imposição descabida, né? É uma violência contra a liberdade.
104
Enquanto as duas estratégias evangélicas tendem a empurrar o acarajé novamente para o
compartimento “religioso”, mais uma vez o candomblé se refugia no campo do “etnicidade” e
da “cultura popular”, defendendo o caráter inócuo e, portanto, plenamente mercadológico,
apesar de “tradicional”, desses objetos:
Eu acho que o espaço comercial, falando do acarajé, tá aberto pra todo mundo. Todo mundo
pode negociar, pode comerciar o acarajé. O que não pode é ter privilégios. Se a evangélica quer
vender acarajé e a prefeitura diz que tem que se vestir de baiana, então tem que se vestir de
baiana mesmo, é a permanência de uma tradição, da cultura da cidade, e não de uma religião.
Não vou vedar, não vou deixar que ela deixe de vender acarajé só porque ela é evangélica. Pode
ser espírita, evangélica, candomblecista ou não, é um mercado que pode ser explorado por
qualquer pessoa que seja capaz de explorar (Everaldo Duarte
).
A defesa da lei tem em vista, portanto, a permanência de uma “tradição”, da qual as
vestimentas seriam simples sinais, indícios de um tempo que não há mais, signos
excessivamente estéticos e intelectuais, desprovidos de eficácia e, portanto, tornados
“símbolo”, “cultura”, e não mais “religião”. É essa capacidade do candomblé jogar com a
cena pública de Salvador tanto como “religião” quanto como representante privilegiado da
matriz étnica e histórica de maior visibilidade na cidade que permite às suas lideranças uma
maior capacidade de negociação, podendo ocupar com o seu argumento um ou outro desses
pólos a partir da problemática com que se deparam. Talvez por isso a analogia ensaiada por
meu informante evangélico entre o terno e a gravata e a roupa da “baiana” de acarajé soe tão
estranha, pois o caráter bem mais estrito de “religião” dos grupos evangélicos aos olhos do
senso comum tem como contraparte a baixíssima especificidade do seu universo objetal,
apesar da tentativa das correntes mágicas de sua ofensiva, lideradas pela IURD, de tentar
preencher esse vazio através daquilo que defini como uma oposição metonímica aos cultos
afro-brasileiros.
Se, por um lado, a relação com a etnicidade tem servido ao candomblé como alternativa
para justificar a sua agência e a defesa da sua influência no cotidiano da cidade para além da
esfera estrita da “religião”, por outro, ela tem fornecido o modelo identitário chave para um
dos aspectos de sua modernização, aquele que o articula ao Estado através das “políticas do
reconhecimento” (Taylor 1994). A partir dessa guinada para o registro da “etnicidade”, que,
como veremos a seguir, toca apenas alguns setores da sua comunidade, o candomblé passa a
reorganizar a economia de critérios que ordenam a sua visibilidade e a sua auto-
caracterização, assumindo novos valores centrais como, por exemplo, o de “autenticidade”:
105
ACARÁ JÁ!
Para Sônia de Yansã
chega de tanto enxerto! não!! tire tudo que disfarça
não quero mais desse jeito com salada? nem de graça tire cristo dessa
massa
a comida de minha mãe nem pense em botar mostarda eu só quero um a c a
r á... já!
quando pedi “completo” (era só o que faltava!)
era i n -t e i - r o ketchup? já botou?
não repleto de tanta aporrinhaçâo tire, tire por favor
não quero nem os parentes:
vatapá, o molho ardente
caruru ou camarão
Lande Onawale
O poema de Lande Onawale parece sintetizar bem essa última visada sobre o acarajé. O
que se deseja, nessas novas demandas, e fechando uma espécie de círculo que, de fato, revela-
se como um espiral, não é nem o acarajé, nem o bolinho de Jesus, mas o retorno ao acará
original. Com ele se quer saborear, e “já”, a África mãe, atualizada no candomblé “sem
enxertos”. Nesse compasso, expurga-se a modernidade da mostarda e do ketchup, além da não
menos moderna comunhão com o “cristo dessa massa”, mas retira-se também o vatapá, o
caruru, o camarão, em suma, todos os sincretismos que constituíram o acarajé como um
produto representante do “Novo Mundo”. Na massa pura, e não tão saborosa, do acará
africano, o candomblé quer se encontrar “autêntico”. Livre de “tudo que disfarça”, ele quer
quebrar o espelho, encontrar a sua “presença”, “encontrar-se”, e, por que não, usando a
mesma alegoria chave que conduziu a minha análise do rito de libertação da IURD, “tomar
posse de si”. São algumas dessas questões, fortemente potencializadas pela ofensiva
evangélica em Salvador, que passarei a tocar na segunda parte dessa dissertação, que tratará
das defesas e contra-ataques do candomblé diante dos avanços daquele que o tomou como a
sua dádiva-veneno, e que o abraçou como o seu “inimigo íntimo”.
106
[Sobre Deuses-espelhos]
“Mirror” - Silvia Plath
I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever I see I swallow immediately
Just as it is, unmisted by love or dislike.
I am not cruel, only truthful-
The eye of the little god, four cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.
Now I am a lake. A woman bends over me,
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully.
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.
107
PARTE 2:
Hospedando o inimigo: a “batalha espiritual” e as velhas e novas
configurações do candomblé baiano
Antes de tirarmos o espelho da parede para virá-lo, lancemos um último olhar furtivo. Para
ver quem é que vai virar o espelho. Não é esta função do espelho? Mostrar quem sou, aqui,
agora? Permitir que ajuste a máscara mais perfeitamente? Ou, em ocasiões mais raras e
extremas, permitir que tire a máscara e contemple o que está por detrás dela? Pois o nosso
olhar furtivo no espelho mostra a seguinte imagem: a máscara sorridente de quem sabe virar
espelhos. A máscara está um pouco solta. Ajustemo-la rapidamente e viremos. A massa
cinzenta do nitrato de prata é totalmente opaca.
Vilém Flusser - “Ficções Filosóficas”
108
Ao longo dos dois capítulos anteriores, recuperei a ofensiva evangélica sobre os cultos
afro-brasileiros em Salvador dividindo-a, para fins analíticos, em duas fileiras principais: a
frente de libertação, atualizada pelo “meta-aprendizado” ritual de uma narrativa bastante
particular sobre a pessoa e a alteridade, e a frente de ocupação, operada através de
mecanismos variados de inserção e de avanço desses grupos e dessa narrativa sobre a esfera
pública da cidade. Destaquei, conjuntamente, que ambas as frentes seriam parte de uma
mesma estratégia de expansão, que teria como base aquilo que defini como um ancoramento
“metonímico” do pentecostalismo no universo cosmológico dos cultos afro-brasileiros. Duas
categorias evangélicas apareceram como elementos-chave desta estratégia, tendo a finalidade
de articular as duas textualidades religiosas em questão em um sintagma único, constituindo
assim aquilo que denominei “campo de batalha”, o espaço textual onde se desenrolam tanto as
libertações ritual quanto os conflitos cotidianos: as noções de “fé” e de “mal”.
A valorização da “fé” do inimigo seria uma forma de animar a sua capacidade mágica,
dotando as suas práticas de eficácia, enquanto se passa a concebê-las como um “engano” e
não como um “erro”. Assim, vimos, na análise do discurso televisivo da IURD, como a
conversão de antigos pais e mães-de-santo pode ser considerada um fenômeno de “mudança
de lado”, constando como uma forma do antigo feiticeiro “trabalhar para o bem” e exercitar
de forma mais saudável e controlada as suas capacidades de mediação com o sobrenatural.
Essa seria uma atitude bastante distinta do estado atual da relação entre o catolicismo e os
cultos afro-brasileiros em Salvador, assumidos ou como um outro folclorizado, ou seja,
tolerado à custa de ter as suas práticas e crenças tornadas inócuas sob o ponto de vista
propriamente religioso, ou como uma versão “metafórica” de si mesmo, que, através de certa
versão do discurso do sincretismo, entende que estes grupos praticariam o catolicismo através
de outros meios
76
. Se, no primeiro caso, os orixás aparecem como simples ícones identitários,
representantes imagéticos de uma determinada matriz histórica e étnica, no segundo, eles
constam como símbolos, signos que representam sem nenhuma participação ou comunhão as
figuras chave do cristianismo católico, sem de fato constar como o fim último visado pela fé a
eles orientada.
76
Pude acessar uma exceção a essa concepção católica do sincretismo como justaposição metafórica em um
processo de intolerância religiosa aberto contra o padre francês, Pierre Manthon, em 1999, que ao avaliar, de
forma bem européia, a relação entre catolicismo e candomblé na cidade para uma reportagem do jornal A Tarde
afirmou: “Não pode haver comunhão entre Deus e os orixás, essa mistura que deram o nome de sincretismo é
coisas do demônio, pois é um pecado grave contra o primeiro mandamento de Deus” (grifos meus).
109
Ao acoplar-se a esse outro de forma horizontal, e não mais vertical, ou metafórica, a
IURD, assim como os outros grupos evangélicos atraídos por seu efeito mimético, exercem
uma sobre-codificação dualista dessas religiões de sacrifício. Desse modo, ao invés de
defender a ruptura com a sua lógica circular de trocas rituais, esses grupos apresentariam
como um novo modo de administrá-la. Através de um uso bastante especifico da categoria de
“mal”, o campo de batalha antes ativado pela “fé” passa ser vislumbrado como um universo
uno e aberto de alianças em potencial com o sobrenatural, universo em que se insere a
sobrecodificação: Espírito Santo /bem/ contrato/ individualismo/ liberdade :: Demônios/ mal/
expropriação/ possessão/ dependência, restando o homem como um nó precário, sustentado
por uma movimentada rede de vínculos em constante risco.
Fundamentando a sua guerra num anteparo de troca com os cultos afro-brasileiros,
identificando-se com a sua gramática antes de revertê-la contra eles, o neopentecostalismo
acaba por abrir um circuito daquilo que denominei, no capítulo anterior, de “dádiva-veneno”,
uma espécie de reciprocidade negativa que, como toda reciprocidade, acaba sempre colocando
em jogo aquele que recebe a coisa dada (Mauss 1999b, 2003b). Ao receber os cultos afro-
brasileiros como o seu “mal libertador”, a IURD abre-se à incerteza de ser habitada pelo
suposto inimigo. Incerteza que tenta administrar, como vimos, falando de forma confessional
“em nome de”, “dando voz” aos orixás no culto e aos feiticeiros na televisão, fato que daria ao
seu discurso uma natureza auto-evidente. No entanto, ao estimular o “povo de santo” a falar
sobre os conflitos em questão, ao compartilhar de forma mais explícita o problema que me
levara à cidade, percebi que parasitando o candomblé através dessa dialogia negativa, a IURD
e o seu universo de influências dentro das denominações evangélicas, realizam uma espécie
de “abertura” de si ao campo de ação do outro. A partir desse movimento, instaura-se a
possibilidade dela ser também hospedada pelo adversário, que de imediato passa a produzir as
suas teorias e funções tendo em vista englobá-la de modo particular e significativo. Assim, e
mantendo-me no tropo que vem conduzindo essa dissertação, o demônio dos evangélicos
também “especula” sobre os seus criadores, no sentido dado por Gadamer: “É especulativo
aquele que não se entrega direta e imediatamente à estabilidade disponível dos fenômenos ou
ao que se tem em mente enquanto se mantém numa determinação fixa” (1997: 601).
Partindo do pressuposto de que esses grupos evangélicos também foram tomados como
a contra-dádiva do veneno afro-brasileiro que narram ter recebido (ou que recebem em sua
narrativa), a segunda parte dessa dissertação tem o objetivo de descrever as reações dos
110
praticantes de candomblé de Salvador à presença desse inimigo, adversário que difere de
todos (e foram muitos) que o candomblé já enfrentou em seu processo de implantação em
solo brasileiro, dada a radical intimidade com que adentra o seu universo discursivo. Para
isso, defini dois modos diferenciados encontrados pela comunidade do candomblé de circular
e dinamizar a sua captura pelo outro evangélico, que corresponderão respectivamente aos dois
próximos capítulos: uma versão propriamente “religiosa” ou “mágica”, que tende a manter-se
no registro metonímico do campo de batalhas aberto pelo inimigo, e uma versão “política”,
que implica na fuga metafórica para o universo dos direitos e da organização civil. Essas duas
versões representam bem as forças heterogêneas que têm composto as novas configurações do
candomblé baiano, fortemente dinamizadas e potencializas desde o início da ofensiva
evangélica.
Tentarei demonstrar, por fim, que, inserida em ambos os modos do candomblé hospedar
o veneno do inimigo estaria a prescrição silenciosa de um mesmo remédio: o controle de si.
Com isso, veremos que, ao encher de espelhos o campo “opaco” do individualismo, a IURD e
o seu universo de influências parecem potencializar em Salvador um fenômeno interessante:
pois ao tomar do inimigo a força trágica da sua narrativa, retirando o cristianismo do topo
contemporaneamente improdutivo da sua “superioridade moral” (Segato 2003b), esses grupos
evangélicos parecem reforçar o desejo do candomblé de enraizar-se cada vez mais no solo de
valores individualistas. Avançando sobre o outro que “toma posse” como meio de garantir a
sua “posse de si”, esses setores evangélicos fortalecem no candomblé o desejo de um
encontro “autêntico” consigo mesmo, seja para preservar os perigosos segredos do axé, seja
para adentrar de forma mais adequada no campo das políticas da identidade.
111
Capítulo 3:
Especulações mágico-religiosas: trânsito religioso e transferência
de si
Ao candomblé você vem desorientado, com algum problema espiritual, de cabeça, alguma
dificuldade, alguma pedra, no sentido mais correto. Tem aquele tropeço no seu caminho que
impede que você dê determinado passo. A nossa missão é tirar aquela pedra do meio do seu
caminho e dar a aquela pedra a direção dela. Pedra essa que a gente tem que ver se ela foi
colocada na sua vida para o mal ou para o bem. Se for para o bem, a gente vai cultuar e
cultivar aquela pedra pra brilhar pra você. Se for para o mal a gente atira, e pega em quem
mandou, pega em quem merecer.
Mãe Helenice
112
Os jornais e a televisão tiveram um papel chave no aumento da extensão e do calor do
debate sobre a “guerra santa” que se instalara na cidade. Uma série de reportagens e
investigações jornalísticas tiveram como foco, principalmente ao longo dos últimos cinco
anos, as práticas de “intolerância religiosa” realizadas por setores do segmento evangélico
local. O papel nelas ocupado pela IURD é sempre de destaque, sendo relatada como o centro
irradiador dessas atitudes violentas e responsabilizada por recolocar o cristianismo evangélico
num registro tido como obscurantista, frequentemente associado ao catolicismo medieval.
Freqüente também é a veiculação, nesses aparelhos da mídia, de declarações críticas de
intelectuais, políticos e líderes de movimentos sociais, que em ampla maioria se mostram
solidários aos cultos afro-brasileiros aos serem convidados a se colocar sobre o tema. Nesse
universo de oposição à IURD se inserem também lideranças religiosas católicas, afro-
brasileiras, espíritas e mesmo evangélicas, que, ao temer a possibilidade de terem as suas
denominações confundidas com as igrejas neopentecostais e outros grupos considerados
“intolerantes”, não perdem a chance de defender publicamente características que as
definiriam como “verdadeiramente evangélicas”, e não meramente “comerciais” ou
“espetaculares”.
O ano de 2003 parece ser um marco nesse processo de estabilização da ilegitimidade da
IURD diante da opinião pública baiana
77
, que coincide com a primeira grande derrota da
instituição na justiça: a abertura do processo que resulta na reformulação do programa Ponto
de Luz, analisado no capítulo anterior. Em outubro do mesmo ano, época de franca
politização de setores do povo de santo acerca da “intolerância religiosa”, que será analisada
no capítulo seguinte, e respondendo a uma reportagem do jornal “A Tarde”
78
, o bispo Sérgio
Correa faz uma declaração em seu programa de televisão que tematiza de forma explícita a
relação entre a sua igreja e os cultos afro-brasileiros. Diz ele:
Não tenho nada, absolutamente nada, contra você pai-de-santo, mãe-de-santo, filho-de-santo. Eu
amo os pais-de-santo, os filhos-de-santo. Eu amo os cambonos, os ogãs. Não tenho nada contra
vocês. O que estamos fazendo é bíblico. A bíblia diz que a nossa luta não é contra o sangue e a
carne, mas sim contra os principados, os dominadores desse mundo tenebroso e contra as forças
espirituais do mal. A nossa luta não é contra as pessoas. Os espíritas são de muita fé. Eu creio,
até, que haja muitos espíritas que tenham mais fé que os evangélicos e católicos. O grupo de
77
No decorrer do meu trabalho de campo reuni 32 reportagens dos jornais locais, que vão de 1982 a 2006 e que
tiveram como tema o neopentecostalismo e os seu conflito com os cultos afro-brasileiros. Dessas 32, 28 foram
publicadas a partir de 2003.
78
A “Guerra Santa na Bahia – Terreiros x evangélicos” de 12/01/03. O jornal reproduz trechos da réplica da
IURD em “Arquidiocese condena ataques ao candomblé” de 14/01/03
113
pessoas espíritas é um grupo de muita fé. A nossa intenção e a nossa visão não é, de maneira
nenhuma, atingir você, pai-de-santo, mãe-de-santo. Amamos você sem demagogia nenhuma. Eu
não estou aqui para fazer guerra santa. Eu quero paz.
Percebe-se que a declaração carrega um argumento construído a partir da categoria de
“fé”, já mencionada, que se atualiza aqui de modo a possibilitar que o pedido de paz nela
inserido não implique em nenhum compromisso de mudança de atitudes da instituição frente
às entidades da umbanda e do candomblé. A fala é clara: a função da IURD é combater os
espíritos maléficos, e não os fiéis. No entanto, por um movimento fatídico, o poder possessivo
dessas entidades tende a misturá-las às pessoas
79
. Essa seria a sua forma delas se preservarem
no mundo, produzindo trocas enganadoras, potencializadas pela poderosa fé dos “espíritas” (o
modo de Macedo referir-se em seus livros à totalidade do campo das religiões mediúnicas). A
partir da distinção narrativa entre meios (humanos) e fins (espirituais), o debate, insurgente na
opinião pública, acerca da “intolerância religiosa” é textualizado como excessivamente
mundano diante da urgência da tarefa espiritual que moveria as disputas em questão.
A declaração tende, portanto, a anular a possibilidade de se retirar o debate de certo
sintagma religioso, mesmo quando as práticas em jogo são questionadas “de cima”, por
valores individualistas, como o de “liberdade de crença”. O excedente textual da IURD frente
ao universo desencantado da esfera pública laica me parece estar fundado no tipo de uso
narrativo dado por ela aos demônios e às trocas das quais eles se alimentam, os “trabalhos”,
que teriam a função de transferir insistentemente os conflitos privados para a cena pública. A
própria teoria dos malefícios da IURD, baseada no “contágio” e na “feitiçaria”
(externalizantes) e não na “culpa” (internalizante) exerceria a tarefa de, mantendo a
individualidade protestante da relação com Deus (apesar de agora mediada por uma lógica de
reciprocidade), encher de espíritos maléficos o mundo, produzindo, através deles, uma
narrativa religiosa eminentemente pública, que teria o seu motor proselitista na constante
socialização do mal. O bispo Sérgio continua:
Por causa dessa matéria, parece que tem um grupo de pais-de-santo e mães-de-santo, que estão
se preparando para estar nessa terça feira nas reuniões para poder fazer um teste, etc.etc. Aliás,
79
De acordo com Macedo, o homem exerceria, para os espíritos, a dupla função de barreira para a força de Deus
e meio de expressão deles no mundo: “Procuram seres vivos para através deles se exprimirem, e o homem é o
seu principal alvo. Como não possuem corpos, vivem se apossando daqueles que não tem cobertura de Deus (...)
Possuem os homens, não somente para afastá-los de Deus, mas também porque desejam se expressar no mundo
físico em que vivemos. São entidades espirituais que atuam organizadamente, atingindo e destruindo
constantemente a humanidade, tendo Satanás por chefe” (2005: 20).
114
dias atrás veio um grupo e fez um trabalho na porta da Catedral. Mas se você quiser vir, a gente
vai receber. A gente aceita você chegar aqui para fazer esse desafio.
O pastor desafia com tranqüilidade o grupo de pais e mães de santo a praticar o seu
plano de atacá-los magicamente, afinal de contas, uma instituição que teria como função
“fechar” as pessoas para o mal estaria ela mesma sempre “fechada”. Nessa mesma época, foi
constante esse tipo de desafio veiculado nos programas de televisão: “Podem vir que a gente
está pronto! Aqui não passa feitiço não!”. Desse modo, a codificação mágico-religiosa que a
IURD costuma dar aos conflitos inter-pessoais passa a englobar inclusive a sua própria
relação com esses outros mediadores religiosos. Pois se textualizar conflitos de forma eficaz é
o principal talento da IURD, ela não deixaria de repetir esse expediente consigo mesma, e
com a grande batalha espiritual que estaria enfrentando.
Por sua vez, o candomblé também produz uma série de especulações bastante
particulares sobre a sua relação com os grupos neopentecostais, quase sempre focadas na
Igreja Universal. A própria proposta de se fazer o “trabalho” contra a igreja, relatada na fala
do pastor, já implica em uma reação que passa além do universo desencantado da
reivindicação de direitos. Mais do que especular, diria que, de acordo com a linguagem que os
dois atores religiosos aqui colocam em jogo, a da magia, o candomblé passa de fato a
“experimentar” sobre a IURD, operando uma forma de especulação que, como afirma
Bastide, é sempre concreta e enraizada em casos pontuais:
A magia se apresenta, desse ponto de vista, como uma ciência experimental onde não haveria,
aliás, mais do que ‘experiência para ver’; o feiticeiro experimenta sucessivamente tudo o que
sabe, tudo o que imagina, a fim de alcançar mais seguramente seu objetivo. Ora, é essa lei da
acumulação, característica do pensamento mágico em oposição ao pensamento religiosos e
ligada ao desejo individual e coletivo, que vai procurar justamente o processo do sincretismo
(1971: 384).
A citação acima nos fornece um instrumental bastante útil, apesar da ênfase excessiva
na oposição entre religião e magia, pois revela, através de uma espécie de subdivisão analítica
do movimento sincrético que associou as religiões africanas ao cristianismo no novo mundo,
uma espécie de continuidade arqueológica entre a relação candomblé/catolicismo e
candomblé/neopentecostais. Bastide define como “sincretismo religioso” o trabalho lento e
coletivo de se tecer analogias a partir da combinação criativa de cosmologias justapostas
hierarquicamente pela história. Essa dimensão se mostraria de forma exemplar, de acordo
com o antropólogo, nos complexos e variados paralelismos que vieram a articular no Brasil os
115
santos católicos e os orixás no processo de integração forçada do africano na sociedade
brasileira
80
. Entre o orixá e o santo seria estabelecida uma analogia onde, de acordo com
Tambiah, “um objeto pode ser nomeado ou descrito por referência a um outro objeto que ele
lembra” (1985c: 66). Construído, portanto, a partir de um movimento de designação, ou de
“referência”, esse tipo de vínculo atualizaria as dimensões mais intelectuais do pensamento
analógico, presentes na cuidadosa arquitetura com que se desenham, no caso da relação
santo/orixá, as correspondências entre características de personalidade e, sobretudo, entre
episódios bíblicos e mitológicos.
Por outro lado, o “sincretismo mágico” seria um movimento orientado não por uma
intenção combinatória, mas por uma espécie de ímpeto quantitativo, gerador de sínteses
menos preocupadas com a consistência lógica do texto final e mais centradas na resposta
pragmática a determinados problemas individuais ou coletivos. Sob esse aspecto, o que era
justaposição entre entidades torna-se identificação e acúmulo de poder sobrenatural:
“Realmente, não há combinação de elementos mágicos e de elementos católicos, há aumento,
desenvolvimento, intensificação da magia africana pela utilização de processos católicos que
tomam imediatamente, no novo complexo formado, um caráter mágico” (Bastide 1971: 385).
O famoso balangandã, comumente utilizado pelas “baianas”, é tomado por Bastide,
como o modelo exemplar dessa dimensão do sincretismo afro e brasileiro:
O balangandã das baianas reproduz numa mesma base de pratas as ‘figas’ dos antigos
romanos, as estrelas de Salomão do judaísmo, os peixes e as pombas que são símbolos
cristãos, os chifres africanos contra o mau-olhado, os atabaques dos candomblés, as chaves,
os trevos de quatro folhas da feitiçaria européia, num encontro comovente de todas as
magias do mundo (384).
Materialização de um sintagma discursivo apto a encadear uma infinidade de signos
religiosos de origens heterogêneas, o balangandã indica a face radicalmente acumulativa da
magia, quase blindada ao princípio de contradição, e que se organizaria tendo como centro
não o respeito a uma lógica narrativa, mas o desejo de segurança espiritual do sujeito que o
compõe e que nele se espelha. Nessa dimensão do sincretismo (prefiro entendê-la assim, ao
80
Bastide define essas analogias sem identificação utilizando-se da metáfora do dicionário, e entende que seriam
similares às construídas entre as etnias africanas no Brasil: “Era, pois, necessário compor uma espécie de
dicionário que permitisse passar de uma religião à outra, demonstrando assim a unidade da classe dos escravos
no respeito às origens étnicas. Esse trabalho que havia começado na África, entre os ioruba e os daomeanos,
continuaria no Brasil estendendo-se até aos bantos. É claro que esse dicionário era de analogias e não de
sinônimos (...) É no seio dessas classificações analógicas que o catolicismo vai se inserir; o sincretismo afro-
católico não apresenta nada de novo e nem de particular em relação ao sincretismo das religiões africanas” (382).
116
invés de um “tipo” de sincretismo, como em Bastide), a ênfase recai no trabalho da analogia
onde “a semelhança entre objetos pode formar um vínculo mágico entre eles e, manipulando
um objeto, pode-se influenciar outros” (Tambiah 1985c: 67). Observa-se que o problema em
jogo aqui é muito mais a capacidade de controlar a realidade do que prover explanações para
ela, tal fato implicando na dissolução dessas analogias em transferências, na conformação de
uma síntese terceira.
Essa espécie de inclinação metonímica da magia, sintética, pragmática, orientada para o
englobamento dos novos eventos e signos numa totalidade progressivamente inflada, fez com
que o candomblé produzisse, por sua vez, laços bastante específicos com o catolicismo, e
diferentes dos paralelismos fornecidos pelo “sincretismo religioso”. De acordo com Bastide, o
contato africano com a explícita dimensão mágica de um catolicismo ibérico marcado pelas
“orações fortes”, “ex-votos” e “promessas”, não demorou muito a revelar uma profunda
identificação entre esses grupos aparentemente tão díspares: “[o escravo africano] Não podia
deixar de reconhecer, portanto, já que possuía diante de si a prova ‘experimental’, que o
branco era tanto como o negro, possuidor de forças benignas ou temíveis” (1971: 384).
O recurso às técnicas mágicas sinalizava que o branco não estava “fora” do jogo de
trocas com o sobrenatural, como a dimensão ética da sua religião, focada na salvação, tendia
sempre a reforçar. Observado sob esta ótica, o catolicismo não representaria, para os
africanos, um paradigma totalmente outro, que, no máximo, poderia ser usado de modo a
codificar a sua crença como estratégia de invisibilidade. A magia do branco demonstrava,
pelo contrário, que existiam pontes entre essa diversidade paradigmática, e esse seria um dado
fundamental para que houvesse a abertura da possibilidade de serem construídas leituras
alternativas dos africanos sobre o domínio católico no “Novo Mundo”. Bastide arrisca:
“Talvez estabelecessem [os africanos] mesmo em seu pensamento uma ligação inconsciente
entre a superioridade do mana da religião católica e a superioridade do branco na escala
social” (384)
81
.
81
Bastide transcreve também um interessante diálogo que destaca bem a leitura mágica sobre os sacramentos
católicos realizada pelos negros, que invertem o locus original da sua eficácia, retirando-a do santuário da
interioridade ética: “Meu pai, há seis meses que estou doente e de dois meses para cá sinto-me pior. Mas, se eu
me confessar, sararei. – Meu amigo, a confissão não serve para a saúde do corpo, só assegura o bem estar da
alma. – Meu pai, vós não sabeis (ele não ousa dizer abertamente: vós não quereis). Confessando-me, ficarei bom,
Meu vizinho tinha um espírito que o atormentava e quando o Padre Gaspar por ali passou, ele se confessou e
sarou. Minha mãe foi consultar o feiticeiro, mas ele nada pode fazer por mim (...) Agora, não há outro remédio
senão a confissão” (apud Bastide 1971: 385).
117
Mas a construção dessas pontes não forneceu apenas identificações que justificassem a
hierarquia que elas articulavam, transformando os padres em poderosos feiticeiros detentores
de segredos mortais, mas também, e de acordo com outra tendência da magia, a da oposição,
demonstrava que os brancos estariam “abertos”, assim como eles, aos efeitos violentos dessas
trocas rituais. Desse modo, as práticas mágicas passam a ser ativadas como uma espécie de
“poder dos fracos”, que, no caso negro, entrona o antes mensageiro Exu como o seu principal
guardião: “Exu foi usado pelos negros em sua luta contra os brancos como patrono da
feitiçaria e, dessa forma, o caráter sinistro, como o dissemos, se acentuou em detrimento do
seu caráter de mensageiro. O deus fanfarrão tornou-se o deus cruel que mata, envenena,
enlouquece” (Bastide 1971: 349).
Permanecendo nesse registro, veremos que a dimensão mágica da resposta do
candomblé à ofensiva contemporânea dos evangélicos guarda a marca da vocação
identificadora e opositora acima destacada. É justamente esse movimento mágico de reforço
simultâneo da identidade na oposição que tentei destacar com a noção de “campo de batalha”
no capítulo anterior, defendendo que essa guerra seria baseada numa aproximação
sintagmática entre os dois grupos. Talvez por isso, para esses setores, e diferente da sua
versão política que será apresentada a seguir, mais vale explicar a nova “guerra santa”
circunscrevendo-a a partir de uma linguagem já disponível, a do axé, a ter que dobrar a sua
gramática tradicional com tanta facilidade ao extraordinário dos novos eventos. Operando
nesta lógica, e semelhante ao modelo do balangandã, o candomblé mantém a capacidade de
englobar o novo sem ter que romper com o fio da sua narrativa, assim como os signos
religiosos do colar, que não param de acumular sobre o cordão de prata. Assim, o ruído
comunicativo entre as duas religiões é sempre respondido pela processual ampliação do
discurso que tenta abarcar a sua relação: acham-se mais objetos, invocam-se mais deuses,
multiplicam-se os meandros das atitudes rituais, como forma de adequar-se ao novo contexto
de modo a um só tempo eficaz e conservador.
Ao provocar os meus informantes candomblecistas a comentar a nova “guerra santa”
em que haviam sido colocados, pude desvelar um pendor explícito dos seus setores mais
tradicionalistas a enfatizar as características mágicas desenvolvidas pelos novos grupos
evangélicos, destacando frequentemente o recurso exagerado desses grupos ao idioma da
feitiçaria. Além disso, o eixo central que tendeu a sustentar a visão desses sujeitos sobre a
nova face da “magia dos brancos” (agora não tão branca assim) foi sempre o trânsito
118
religioso. Diferente do caso do catolicismo, em que a magia seria geradora de uma
interpenetração, sempre hierarquizada, de paradigmas historicamente diversos (mana branco x
mana negro), a magia evangélica seria explicada através da transferência (outra operação
básica da magia) do mana do candomblé, o axé, para o seu inimigo, que passara a utilizar as
suas antigas armas contra ele.
Por essa ótica, as atitudes bastante heterogêneas de determinados grupos evangélicos
brasileiros seria explicada, por parte do “povo de santo”, como resultado da migração de
pessoas, categorias e segredos da sua religião, o que se deixaria perceber de modo mais
radical pela explícita apropriação ou adaptação, principalmente por parte da IURD, de um
sem número de técnicas rituais originadas do candomblé, como o descarrego, os banhos de
erva, as “rosas ungidas”, os “machados da justiça”, etc. Por fim, a configuração religiosa
original, que venho descrevendo até aqui como um “pentecostalismo à brasileira”, passa a ser
pensada, pelas teorias nativas do candomblé, como uma criação sua, ou pelo menos como
uma criação baseada no assalto aos seus conhecimentos mágico-religiosos.
I- Trânsito perigoso
O caso de Jessé Lima dos Santos me parece exemplificar bem a complexidade textual
do trânsito religioso entre esses grupos, complexidade geralmente obscurecida pela noção de
“conversão”, responsável por dotar de um caráter excessivamente exclusivista e oficial esses
fenômenos de transformação pessoal, geralmente prenhes de ambigüidades. “Pai Jessé”
dedicou-se ao candomblé por mais de 20 anos, tendo alçado o cargo de babalorixá e montado
o terreiro Ilê Axé Mure Cedam, no bairro de Paripe, periferia de Salvador. Graças a uma
“grande decepção”, que ele se nega a revelar, Pai Jessé se virou para a Assembléia de Deus
em busca de consolo. Três meses haviam se passado, e o ex-pai-de-santo se sentia bem em
sua nova casa, tinha abandonado completamente o seu terreiro e já percebia uma série de
melhorias na sua vida.
Satisfeito com essa nova situação, Jessé toma uma importante atitude: realizar o seu
primeiro testemunho. No entanto, um evento trágico se sucede quando o novo “crente” pisa
no púlpito, tendo em vista narrar para o público presente as melhorias que Cristo havia lhe
assegurado:
119
Rapaz, e não é que quando eu abri a boca pra falar, na frente daquela igreja lotada, Exu me
pegou! Tinha muito tempo que ele não aparecia. Ele me pegou e quebrou tudo naquele lugar. Eu
rodava de um jeito que eu nunca tinha rodado, derrubava tudo e todos que passavam na minha
frente. Depois de destruir o lugar, ele começou a me jogar no chão, a me arranhar todo, me
machucou mesmo, eu quase morri. Depois desse pandemônio ele foi embora, e eu tive que ir nu
pro posto de saúde.
Jessé compreende este evento traumático como uma espécie de punição aplicada pelo
orixá, e sancionada, nesse caso, com uma cena de humilhação pública que quase custou a sua
própria vida. Além disso, ele percebe o ato violento de Exu como uma manifestação de força,
que teria em conta demonstrar, na casa do inimigo, a sua ira diante dos antigos filhos que não
o obedecem mais: “Ele queria mostrar pros crentes que ali era ele que mandava”. O “ali” a
que Jessé se refere é o seu corpo, ou melhor, a sua pessoa, território construído e integrado, ao
longo de muitos anos, através de progressivos mecanismos iniciáticos, que teriam como fim
assentar, codificar e “domesticar” as entidades que lhe acompanharam. Esse foi o primeiro de
uma série de acontecimentos estranhos que passaram a acontecer na vida de Jessé após o seu
trânsito para a Assembléia de Deus, fenômenos de ordem espiritual que pareciam afirmar
enfaticamente que ele ainda teria contas para acertar com a sua antiga religião.
Um outro acontecimento de impacto se deu pouco tempo após o incidente na igreja,
quando foi diagnosticado em Jessé um problema no pescoço, algo aparentemente grave, que
ele preferiu não revelar, e que demandaria dele uma cirurgia. Obedecendo à prescrição
médica, ele se internou no Hospital das Clínicas e começou os trâmites para a operação. No
entanto, um estranho incidente ocorreu quando Jessé já se encontrava na sala de cirurgia: “Já
estava lá deitado, a anestesia já tinha dado efeito. Você acredita que na hora em que o médico
ia começar a operação, a luz acabou! A energia do hospital todo, e demorou o tempo
suficiente pros médicos desistirem. Achei tudo muito estranho... mas eu já sabia o que era”.
Completando a série, um fenômeno decisivo se deu quando Jessé retornou do hospital:
uma representação do orixá Iansã, que ele havia guardado no fundo de um armário da sua casa
(e antigo terreiro), se incendiou de repente, sem nenhuma causa natural aparente que pudesse
ser percebida pelo ex-pai-de-santo: “Eu tinha até esquecido daquela Iansã. Não joguei fora
não, guardei num armário, achava que era a melhor decisão. Num belo dia, vejo uma fumaça
saindo daquele lugar. Rapaz, quando chego lá, a imagem tava pegando fogo mesmo”. Após
mais esse sinal, Jessé acabou desistindo da sua curta situação de “crente” e retornou ao
candomblé:
120
Eu tive que fazer isso, eu percebi que a minha vida dependia dessa decisão. Voltei pro
candomblé pra continuar vivo. Se eu continuasse insistindo na Assembléia, não sei o que
poderia ter acontecido comigo. Depois que reabri o terreiro e retomei minhas obrigações
direitinho, tudo voltou a como era antes, e eu nem precisei mais de fazer a tal operação!
Hoje, “pai Jessé”, de volta à ativa, e conformado com o seu destino de babalorixá,
reabriu o seu terreiro em Paripe, e voltou a cultuar os orixás, dobrando-se à espécie de
“pressão sobrenatural” que sofreu.
Destaquei o caso dramático de “pai Jessé” com o objetivo de chamar atenção para a
variedade das possibilidades de contato entre os dois sintagmas religiosos aqui em questão,
atualizadas na infeliz batalha do pai-de-santo por deixar uma economia religiosa que insistia
em englobá-lo através de um perene circuito de endividamento. Jessé era uma pessoa “em
débito” com o candomblé, fato que impossibilitou o seu trânsito “seguro” para a Assembléia
de Deus.
A idéia de uma pessoa “devedora” no candomblé passa ao largo da idéia nietzscheana
de “consciência endividada”, que utilizei no primeiro capítulo, tendo em vista sublinhar
alguns deslocamentos realizados pela IURD diante de uma economia cristã da pessoa, na sua
acepção mais clássica. Diferente das chamadas “religiões de salvação”, baseadas sempre em
algum grau no ascetismo e na distinção moral entre “eleitos” e “condenados”, o candomblé
seria uma religião baseada na alimentação constante, através das trocas rituais, do canal
comunicativo entre homens e divindades. Nesse sentido, a presença da dívida no candomblé
estaria sempre inserida como parte do círculo de reciprocidade que vincula, sempre
hierarquicamente, esse e o outro mundo (Aiê e Orum), que comungam e se separam de forma
tensa e pendular no solo da subjetividade humana, tendo como ponto de máxima integração o
momento da possessão
82
.
Essa economia sacrificial pode ser mais bem compreendida se atentarmos para o
processo iniciático do candomblé, responsável pela englobamento inaugural do sujeito pelo
circuito religioso das trocas. A iniciação parte sempre da definição prévia de quem seria o
“dono da cabeça” do neófito, responsabilidade do babalorixá ou da ialorixá que coordena o
82
Desse modo, a relação orixá/pessoa atualizaria de modo exemplar o double-bind entre liberdade e
obrigatoriedade da reciprocidade, descrito por Mauss (2003b). Assim, entrar no jogo de trocas com o orixá
implica em assumir compromissos. Tais compromissos de ordem ritual seriam distintos dos compromissos éticos
de “religiões de dívida”, como o cristianismo. O caso de Jessé demonstra como o candomblé seria uma “religião
de reciprocidade”, sua punição resultando de um desequilíbrio contextual entre liberdade e obrigação. Para o
candomblé, conquista-se a liberdade através da troca, e nunca contra ela, os estados subjetivos sendo
significados enquanto pontos de parada em um constante processo de construção de alianças.
121
terreiro
83
, e que se desenvolve pela interrogação dos oráculos (hoje menos o colar de Ifá e
mais os búzios), pela interpretação dos sonhos, pela releitura de eventos da vida da pessoa ou
mesmo pela leitura de características físicas dela (Segato 1995: 171). Definida a cabeça,
segue-se uma série de cerimônias, que, por não demandarem aqui uma descrição detalhada,
podem ser periodizadas pela “lavagem de contas”, o “bori” (ou o “dar comida à cabeça”) e a
iniciação propriamente dita, onde acontece, no espaço secreto do “roncó”, a morte e o
renascimento ritual do neófito sob a sua nova identidade. Esse complexo ritual,
exaustivamente descrito por Bastide (2001), Verger (1999), Santos (1986), e muitos outros,
teria, de forma sintética, a finalidade de produzir e fixar, ao longo de uma série de atos
sacrificais e de transferências rituais, o orixá na cabeça do seu mais novo filho.
O santo é assim “feito”, modelado numa forma particular, e assentado na pessoa, além
de ser materializado numa pedra pessoal, que se soma ao peji, como centros materiais em que
se instalaria o axé daquela entidade, energia vital que coordenaria todo o movimento
cosmológico do candomblé. Outro modo de internalização dessa força integradora seriam as
escarificações e o corte da cabeça, pontos de exposição do sujeito para a economia cósmica
do axé. Nesse sentido, a feitura e o assentamento ritual do orixá tem a finalidade de
materializar e encarnar, de forma indexical, o quadro de diferenças cosmológicas que
constitui o candomblé como um “sistema classificatório”
84
.
A contraparte da feitura e do assentamento do orixá seria o compromisso assumido por
seu novo filho de dobrar-se a uma série de prescrições resultantes do vínculo existencial que o
integra, de forma dinâmica e hierárquica, ao seu santo de cabeça: “Os orixás agora detêm
poder sobre ele [o iniciado]; se violar os tabus, se não desempenhar suas novas obrigações, o
deus que em parte já reina sobre a sua cabeça pode puni-lo por meio de uma série de
infelicidades, doenças, desgraças familiares, que irão se acumulando se não fizer caso dos
primeiros avisos” (Bastide 2001: 42).
Essas prescrições compreendem principalmente as “obrigações” e as “quizilas”, cuja
desobediência é geralmente sancionada com alguma espécie de castigo sobrenatural. As
“obrigações” são um modo de adicionar à fé do filho-de-santo e ao poder da divindade uma
83
Essa seria, no contexto africano, uma função dos babalaôs, cargo em extinção no Brasil.
84
A distinção entre “sistema totêmico”, metafórico, e “sistema religioso” (metonímico) no candomblé é
defendida em Goldman (1985: 44). A dimensão sacrificial e ritual do candomblé conformaria o seu caráter de
“religião”, propriamente dita, instituindo uma relação dinâmica de contato e dispersão humana ante o
sobrenatural, que teria como ápice metonímico o momento da possessão.
122
orientação intencional, que ocorre através da troca com a divindade: “Os orixás só subsistem
na medida em que são adorados, em que recebem alimentos que os fortificam, e que as pedras
são lavadas no sangue dos animais sacrificados, em que se encarnam enfim em seus cavalos
(...). É o orixá que dá ou que aumenta o ser, mas por sua vez o orixá necessita desse ser´
(Bastide 2001: 231).
Por sua vez, as “quizilas” são os tabus do candomblé, tipos de comportamento
litúrgico e cotidiano, verbal, sexual, alimentar, que devem ser evitados pelos filhos-de-santo a
partir da posição do seu orixá de cabeça no quadro classificatório da mitologia. A partir
desses dois elementos, observa-se que o filho-de-santo adquire uma espécie de
responsabilidade diante do seu orixá:
Ensinando os filhos a sentirem-se responsáveis por seus atos diante dos santos, este [o orixá de
cabeça] os condiciona a comportarem-se dentro de um senso de responsabilidade, embora esta
responsabilidade deva ser compreendida aqui como referida mais a um sentido de regularidade
na conduta e a um sujeitamento a uma vontade superior do que a um conteúdo propriamente
ético (...) (Segato 1995: 229).
Estaríamos aqui bem distantes do modelo de responsabilidade do cristianismo, um
movimento de interiorização do sujeito, que vincula e estabiliza a relação entre o eu e o self a
partir da vigilância moral. O que de fato se apreende do candomblé para a vida profana seria,
pelo contrário, um padrão de conduta baseado na regularidade ritual e no controle dos
contatos e transferências, além de uma “teoria da personalidade”, capaz de fornecer ao seu
seguidor a compreensão a posterirori do comportamento dos outros e de si mesmo a partir de
uma especulação sobre os santos, erês, exus e eguns que comporiam a “cabeça” dos agentes
em questão. Como enuncia a citação de Bastide sobre a relação orixá/ser, a iniciação
possibilita ao filho-de-santo a capacidade de, ao dar-se para a divindade, espécie de nó
articulador das ordens social, natural e sobrenatural, adquirir a capacidade de negociar com a
sua própria ontologia, definida como uma espécie de móbile, já que sempre múltipla e aberta
à circulação dos seus termos. Nesse sentido, para o jogo do candomblé, você é e troca com o
orixá, administrando-se a “si mesmo” ao mesmo tempo em que administra a sua abertura a
um outro que o constitui, um deus voluntarioso e desejoso de relação. O sujeito e o santo
formam um duplo, no sentido de estabilizarem-se de forma diferencial como simultaneidades
que têm na troca a face e a contra-face da sua relação.
Após essa tentativa de síntese, pode-se entender melhor o drama de Jessé, assim como
as resistências que impossibilitaram o seu trânsito religioso. Tendo passado por todo esse
123
processo de iniciação e, inclusive, completado os sete anos de santo que resultam na “entrega
do Deká”, evento possibilitador da sua ascensão ao cargo de babalorixá, Jessé estava
radicalmente enredado no círculo de reciprocidade, ou seja, de liberdade e de obrigação,
acima descrito. Jessé tinha “santo forte”
85
.
Dada esta situação, observou-se que somente a retomada do circuito das “obrigações”
fez com que a paz retornasse para a vida do pai de santo. Por sua vez, o transe de Jessé no
templo evangélico, situação em que ele narra ter “rodado como nunca antes”, pode ser lida
como a tomada de posse, por parte do orixá, de um corpo que perdeu a capacidade de
codificar, controlar e administrar a sua comunhão com essas entidades. Sem nunca ter saído
de fato da égide dos orixás, já que essa quebra de contrato tende a ir muito além da simples
intenção humana de quebrá-lo, Jessé se encontrou jogado no campo de influências dessas
divindades numa forma radicalmente indefesa, e inclusive perigosa. O fato do seu algoz ter
sido Exu também não surpreende. Uma rápida passagem pela mitologia (apud Prandi 2003)
serve para ilustrar a ênfase violenta desse orixá na manutenção do seu círculo de
reciprocidade com os membros do Aiê. Se, por um lado, Exu parece estar sempre disposto,
com a inteligência e os métodos moralmente maleáveis de um “trickster”, a enriquecer os
pobres (81-2), recuperar os doentes (57-8) e mesmo a ajudar os trapaceiros (52-3), por outro,
o seu caráter vingativo não se sucede com menos veemência, promovendo guerras em família
(52-3), causando desastres naturais (55-6), crises financeiras (56-7 e 58) e mesmo
promovendo agressões físicas contra os que se esquecem dele (63-65).
Procurado pelo jornal Correio da Bahia para narrar o seu caso, Jessé dá uma declaração
em que demonstra que esteve sempre atento para os perigos que acompanharam o seu trânsito
religioso. Pressionado pelos pastores da Assembléia a destacar em seu testemunho frustrado a
analogia orixá/demônio, o na época ex-pai-de-santo se negou. Ele argumenta: “Quando
começaram a falar essas coisas, eu disse que não ia sujar o prato que comi. Falei pra eles: eu
não vim aqui pra discutir candomblé, eu quero Jesus e acabou. Eu não era maluco de brincar
com os orixás”. Jessé segue, nessa mesma entrevista, desenvolvendo um tema que não pude
tocar de forma mais aprofundada em minha conversa com ele: a possibilidade de equacionar
as duas religiões. Diferente de assumir o discurso da “guerra santa”, Jessé usa um argumento
radicalmente sintético: “Minha visão espiritual aumentou. Conheci a Bíblia e acredito em
85
É comum, no meio do candomblé, a interpretação de tragédias pessoais como sinal de força do orixá.
Iluminados sob essa luz, eventos negativos que afetam a vida dos filhos de santo acabam sendo narrados, de
modo paradoxal, com orgulho.
124
Deus até hoje. Acredito em milagres na igreja, assim como tem muita coisa, muita gente que
eu já salvei no candomblé”.
A fala demonstra o desejo que parece ter orientado a ida de Jessé à Assembléia:
acumular mais conhecimentos religiosos em sua bagagem espiritual. Ele queria de fato
“acrescentar Jesus”, e não necessariamente ter que optar por ele ou pelos orixás, como foi
obrigado tanto pelo idioma exclusivista da “conversão” (evangélico) quanto pelo idioma
performativo das “obrigações” (do candomblé). Essa intenção acumulativa se viu frustrada,
nesse caso, principalmente pelo excessivo desleixe de Jessé frente ao sistema religioso dos
orixás, que se viu subitamente desaquecido, deixando-o “em débito” com a sua economia
ritual. Tentando acumular, produzir sínteses, o pai de santo se viu cobrado pelos dois
paradigmas que, a princípio, pretendia articular.
Um mesmo desejo de síntese foi a mim manifestado por uma ex-filha-de-santo, Elza,
que conseguiu, através de uma interessante estratégia, transitar de forma segura para a Igreja
Internacional da Graça. A sua solução foi deixar o candomblé, mas, através de ritos privados,
feitos na intimidade da sua casa, manter as suas oferendas com alguma regularidade.
Destacando mais uma vez a dimensão de obrigatoriedade e hierarquia da relação orixá/pessoa,
fato que dificultaria a “quebra de contrato” entre os dois, ela afirma: “Eu não posso largar o
meu santo, só deus sabe o que poderia acontecer comigo! O que eu posso fazer é alimentar ele
pra poder me proteger, pra poder ir pro templo tranqüila de que eu não vou ser incomodada
por ele”. Troca-se negativamente com o santo, para mantê-lo longe e, assim, possibilita-se um
caminho livre, apesar de não exclusivista, para os milagres de Jesus
86
.
Pude sublinhar, até então, alguns temas envolvidos na passagem de pessoas do
candomblé para grupos evangélicos. O “trânsito perigoso” de Jessé serviu como um exemplo
do conjunto de resistências internas que podem frustrar esse movimento de mudança
paradigmática. No entanto, e como demonstrou o rápido caso de Elza, o trânsito é sempre
possível, seja por estratégias mais sintéticas, como a dela, capazes de instituir, através de uma
série de negociações, um campo uno de ancoragem da pessoa, seja através de uma
“conversão” poderosa o suficiente para garantir as salvaguardas que o fiel necessita para
“mudar de lado”. “Jesus me garante”, “Tô fechado pro meu santo”, “Agora eu tenho o poder
do Espírito Santo” são frases que escutei em campo da boca de ex-candomblecistas, e que
86
Observa-se aqui um tipo de sacrifício propiciatório semelhante a aquele realizado na forma do padê de Exú, no
caso do candomblé, onde se dá ao orixá tendo em vista afastar o seu poder incerto para a chegada segura dos
outros orixás.
125
exemplificam bem uma postura de maior enfrentamento diante do orixá, que de forma alguma
é acompanhada pela negação do seu poder eficaz, mas sim pela construção de alianças com o
pólo evangélico que possibilita o abandono seguro das negociações (positivas e negativas)
com o pólo candomblé.
II- O transbordamento do axé: doação e controle mágico de si
Se a seção anterior demonstrou que o trânsito, apesar de sempre perigoso, é possível,
resta a pergunta: qual é a bagagem que possibilita essa complexa passagem pela teia de
alianças, que o sujeito religioso do candomblé vence tendo como porto não tão seguro o
universo das denominações evangélicas? Essa é mais uma questão que eu pude compartilhar
com os meus informantes do povo de santo, intrigados e atentos, assim como eu, com a nova
face do evangelismo baiano, permeado por feitiços, descarregos e objetos encantados.
Assumindo que, junto com as pessoas, o candomblé tem perdido categorias, técnicas e
poderes para esses grupos evangélicos, o mote central das especulações dos meus “nativos”
sobre esse tema foram sempre os segredos do axé, que passam a ser subvertidos pelo dinheiro.
Nessa espécie de negociação escusa entre os dois grupos, fica frequentemente a impressão de
que, juntamente com a “conversão” de membros dos terreiros há a contraparte de uma
conversão das denominações evangélicas numa nova espécie de candomblé. É o que se deixa
ver na fala de uma mãe-de-santo com quem conversei:
O que esses evangélicos fazem é tipo um “morde” e “assopra”. Eu acho é que depois que teve a
invasão dessa Igreja Universal, e essas diversas igrejas que apareceram no rastro dela, esse
conflito diferente começou a aparecer, que a gente nem consegue entender, de tão confuso. O
candomblé é uma coisa que eles chegaram e já encontraram, e muitos deles são ex-
freqüentadores de terreiros. Muita gente. A IURD mesmo, hoje em dia ela pode se chamada de
um candomblé elitizado, distorcido. Tem muita gente que foi do candomblé e que não teve a fé,
o amor, o respeito, a dedicação que outras pessoas adeptas têm, e que estão se vendendo lá na
IURD. Através de propina, através de dinheiro, estão vendendo os segredos que o candomblé
tem guardado há muito tempo.
Percebe-se que o argumento associa a constituição de um “candomblé elitizado” por
parte da IURD ao fenômeno ilegítimo, mas eficaz, de transmissão do repertório mágico dos
terreiros, antes protegido pelos segredos do axé. Corroborando esta tese, declara uma filha de
santo: “Sem segredo não tem candomblé, não tem a magia, o respeito e a hierarquia que a
gente cultua, e eles se aproveitam da dificuldade material do povo dos terreiros pra tirar o
126
conhecimento da gente”. Por sua vez, assim um babalorixá analisou o sucesso de Edir
Macedo, ao ser provocado pelas minhas perguntas:
Eu vou lhe dizer o porquê ... O tal pastor Edir Macedo, ele vem de uma origem de umbandista, e
ele passou pela umbanda, pelo candomblé também, adquiriu algum conhecimento, você sabe, o
mundo de segredos que a gente esconde. Ele sabe que as nossas ervas curam, são poderosas, por
isso ele tem um banho de descarrego, feito com nossas ervas. Ele tem o sabão da aroeira, ele
tem o óleo ungido, conhece o rio Orobô, ele conhece que as Iá Mi
87
têm poder, por isso ele usa,
ele invoca aquilo mesmo que ele chama de “demônio”, que em nossa religião não existe.
Demônio, satanás são coisa do catolicismo, dos evangélicos.
Esse mesmo tema retornou certa vez, quando discutia o livro Orixás, caboclos e guias
com um informante candomblecista, obra onde Edir Macedo demonstra, como substrato da
sua leitura demonizadora, um profundo conhecimento da liturgia das religiões afro-brasileiras.
Em sua fala, o contato entre a IURD e o candomblé é colocado inicialmente como sendo de
“estudo”, mas ele não deixa de destacar a importância do trânsito religioso e das apropriações
realizadas pelas IURD, produzindo um interessante paralelismo em que a IURD estaria para o
candomblé hoje assim como em outros tempos o candomblé esteve para o catolicismo:
É uma prática mais da Universal. A Igreja Católica sempre nos recriminou, mas nunca se
apropriou de nada da gente. Por sinal, a gente até como uma estratégia, acabou se
apropriando de algumas coisas da igreja católica, como os santos, e isso aconteceu por
muito tempo. A igreja batista também nunca fez isso, eu não tenho conhecimento de que a
igreja batista fizesse. A única que chegou na verdade, querendo se apropriar e se
aprofundara no estudo sobre o candomblé foi a IURD, isso é declarado. Quando ela lançou
esse livro, “Orixás, caboclos e guias”, eles tiveram que desenvolver um estudo pra saber a
origem, pra eles poderem falar. E muita gente saiu do candomblé e foi lá pra dentro, o
próprio Edir Macedo. Aí eles se apropriaram de imagens, de fotos, de uma série de coisas,
além de aproveitarem os segredos que as pessoas conhecem.
A centralidade do segredo para o candomblé pode ser pensada como uma espécie de
testemunho da raiz oral da sua lógica discursiva, onde o controle da transmissão direta do
conhecimento estaria associado intimamente à administração da sua estrutura hierárquica,
recortada por uma série de “cargos” que compõe o todo do seu quadro sacerdotal
88
. É esse
controle dos meandros da liturgia e da mitologia através de uma informação lentamente
disponibilizada pelos mais experientes que faz com que o principal critério de mobilidade e
deferência dentro do sistema do candomblé seja o “tempo de santo”.
87
Mães feiticeiras primordiais.
88
Pode-se dizer que, para o candomblé, todos participantes são sacerdotes, tantos os iaôs (iniciados) quanto os
cargos não-rodantes, como as ekedis e os ogãs.
127
Além desse elemento organizacional, Bastide (1971: 345) destaca que o segredo
ocuparia uma segunda importante função, essa relacionada ao processo de implantação do
culto dos orixás no Brasil: a de arma de defesa do negro e da sua comunidade de culto diante
da repressão da sociedade branca envolvente. Desse modo, o segredo, assim como o
sincretismo religioso, seria fundamental para a constituição daquilo que Bastide definiu como
uma estratégia de “duplo corte”, que protegeria a comunidade dos candomblés pelo
ocultamento dos seus reais fundamentos. A partir dessa configuração, o homem negro da
sociedade colonial habitaria dois mundos distintos relacionados hierarquicamente, um
“verdadeiro” e um “representativo”, podendo controlar de forma menos conflituosa a sua
imagem pública de modo a preservar os seus valores mais caros.
No entanto, resta ainda a dúvida sobre a natureza desse segredo, debate que tende a ir
além da sociologia desses grupos, e que se instalaria nos elementos mais particulares da sua
cosmologia. Bastide nos dá uma dica, utilizando-se da linguagem nativa da reciprocidade:
“(...) a lentidão na divulgação dos conhecimentos secretos do candomblé é uma espécie de
inoculação progressiva, de vacinação de coisas cada vez mais fortes, para que o dom do
segredo não se transforme em perigo, tanto para quem o ‘dá’ quanto para quem o ‘recebe’”
(Bastide 1971: 346). O segredo teria, nesses outros termos, a função de dosar o acesso do
neófito a um poder sempre permeado pelo perigo (Douglas 1976: cap. 6). Se, sob a ótica
anterior, a finalidade dos segredos seria proteger a comunidade da repressão da sociedade
colonial que a englobava, a idéia aqui seria proteger o candomblé de si mesmo, dos poderes
imensos que ele intenta administrar, e que devem ser manuseados com a calma e a sabedoria
que só a experiência pode proporcionar: “Um lema muito cultivado da chamada lei-do-santo
afirma que o mais velho sabe mais e que sua verdade é incontestável. Saber é poder, é
proximidade maior com os deuses e seus mistérios, é sabedoria no trato das coisas de axé, a
força mística que move o mundo, manipulada pelos ritos” (Prandi 2005: 47-48).
A frase de Prandi alerta adequadamente para o fato da centralidade do segredo para o
candomblé estar associada a uma concepção radicalmente performática de conhecimento, que
aqui pretendo associar a uma concepção transbordante da agência mágico-religiosa, sempre
apta a escapar de forma inesperada das formas rituais que tentam contê-la. A relação
indissociável entre o conhecimento, a existência e a capacidade de intervenção no mundo
(poder) é atualizada numa concepção de pessoa que pode ser definida como “processual”,
como nos alerta Goldman (1985), mostrando que esse saber-poder do candomblé,
128
progressivamente liberado, indica que quando se sabe mais se é de outro modo: “Pode-se
então dizer acima que é apenas aos vinte e um anos ‘de santo’, com seus sete orixás (ao lado
do Exu, do Erê e do Egum) assentados, que a pessoa está realmente construída, já que é
apenas nesse momento que seus múltiplos componentes encontram certa estabilidade mais
duradoura de si” (46)
89
.
A existência dos segredos indicaria, nesse sentido, uma espécie de deferência da
comunidade do candomblé frente àquilo que a funda, que a coloca em movimento, e que
insiste em excedê-la: o axé. Como mostra a fala de um babalorixá informante, o candomblé
parece estar mais atento do que qualquer outro grupo religioso à diferença, defendia por
Bataille (1981), entre “religião”, entendia como código analítico e domesticador, e “sagrado”,
entendido como presença sintética e transbordante
90
.
Os segredos não se revela...O segredo não sai, você pode conhecer a filosofia, você pode
conhecer os trâmites, alguma coisa, mas o segredo é segredo, se você revela deixa de ser
segredo e está tudo perdido. É o axé, o segredo é o axé, é o gunzo
91
, o gunzo é a força, se você
pega o seu gunzo, a sua força, e entrega você... olha aí, quando souberam do segredo de Sansão
cortaram-lhe o cabelo e ele perdeu as forças. Todos os líderes dos grandes terreiros aqui de
Salvador são sábios e sabem que só é revelado o que a gente quer que seja revelado. Agora, há
uma preocupação com essas pessoas que se infiltram, é preciso que se tenha um cuidado muito
grande, sabe a quem que se dá cargo, que cargo, o porquê, pra que isso não caia em mãos
erradas e a pessoa fique exposta. Nós somos tão abertos, é uma religião tão aberta, entra quem
quer, mas a nossa força deve ser manuseada com cuidado, pra não cair nas mãos erradas, e
inclusive pra não machucar ninguém do nosso povo.
Comparando o axé iorubano ao mana polinésio, à orenda iroquesa e ao manitu
algoquino, categorias hoje quase integradas à linguagem antropológica, Bastide destaca que
ele seria uma espécie de “depositário de força sagrada” (77). Para isso, refere-se à sua
utilização discursiva no cotidiano dos terreiros para indicar as ervas e os alimentos que
compõem o culto, destacando assim as suas características mais substanciais. Juana Elbein
também sublinha essa mesma dimensão material do axé, subdividindo-o em “axé do terreiro”
(geralmente plantado em seu mastro central), “axé de cada orixá” (plantado nos peji dos ilê-
89
Tal situação de integração plena, onde a pessoa torna-se “senhora de si” de modo definitivo (pelo menos até a
sua morte e a tudo que ela carreta para o candomblé), tem como um indício interessante o freqüente
encerramento das crises de possessão, espécie de síntese temporária que nesse novo contexto perde a sua função
90
A concepção “atéia” de sagrado defendida por Bataille, presente não somente na religião, mas também na
experiência estética e erótica, vê nele um movimento de dissolução das barreiras que teriam a função de
apresentar o cotidiano profano como um campo distintivo e analítico. A experiência do sagrado, sob o ponto de
vista da sua economia pulsional, seria, nesses termos, o desnudamento do homogêneo que subjaze ao
heterogêneo, que, neste caso, pode unir até os inimigos mais declarados.
91
Versão angola para o “axé” iorubano.
129
orixá), o “axé de cada membro do terreiro” (adquirido pela iniciação) e o “axé dos
antepassados do terreiro”, acumulados nos assentos do “ilê ibo” (1986: 40). No entanto,
Elbein segue, demonstrando que antes de ser adjetivo (“isso tem axé”), e substantivo (“isso é
axé”), o axé é verbo, sendo definido como uma espécie de poder de realização: “trata-se de
um poder que se recebe, se compartilha e se distribui através da prática ritual, da experiência
mística e iniciática, durante a qual certos elementos simbólicos servem de veículo” (43).
Desse modo, o axé formaria antes de tudo um circuito, que tenderia a ser domesticado e
capitalizado pela atividade ritual, capaz de organizar em seus inúmeros suportes materiais,
objetos litúrgicos, instrumentos musicais, ervas, pedras, corpos, etc. , uma série de pontos
concretos de captura e de transferência da sua força, que seriam consagrados e articulados
pela ação integradora deste princípio motor. Nesse sentido, os limites da comunidade de
candomblé seriam, tragicamente, os limites do próprio axé, uma força fluida e agregadora,
com tamanho desejo de alteridade, que acaba por dissolver sempre o outro num outro-eu.
Além de colocar o sistema em movimento, o axé também teria a função de princípio de
realidade do candomblé, sendo responsável por “incorporar” este mesmo sistema no mundo,
fazendo com que a complexidade metafórica dos seus quadros classificatórios, que colocam
Aiê (mundo natural) e Orum (mundo das divindades) “em paralelo”, seja encarnada de modo
efetivo nos entes. Assim, a dança da possessão feita sem axé torna-se “representação”, “santo
de eké”, e nada do candomblé costuma acontecer no registro representativo. Do mesmo modo,
o terreiro sem axé suficiente tende a virar um simulacro, uma fraude, e uma fraude
potencialmente perigosa. Manter a “verdade” do terreiro seria uma das funções das ialorixás e
babalorixás, as primeiras também conhecidas como “ialaxés”, mães do axé, ambos portadores
do máximo poder no terreiro, e responsáveis por zelar por seu uso correto e por sua herança.
São esses terreiros “fracos” que têm preocupado as comunidades mais tradicionais do
candomblé de Salvador, e são eles que são frequentemente responsabilizados pela fuga do axé
para o lado do inimigo. Neles, o “Agô Ebomi!”, saudação de deferência dos jovens aos mais
velhos, tem sido abafada pela ânsia dos primeiros por conseguir o “deká”, fato que resultaria
na colocação dos fundamentos da religião em risco. Em minhas visitas aos terreiros mais
tradicionais, como o do Bogum e da Casa Branca, pude captar um perene descontentamento
com as novas gerações, freqüentemente acusadas de desrespeitar a “lei-do-santo”: “Hoje
ninguém quer ser filho-de-santo, todo mundo quer ser logo pai. Ficam no terreiro o tempo
suficiente pra colher o conhecimento e ir embora”. Nesse ritmo de rápida transformação dos
130
neófitos em mestres, os terreiros de Salvador estariam se multiplicando de forma
descontrolada (fontes informais afirmam que hoje seriam mais de três mil), evento que viria
acompanhado por uma forte queda qualitativa no seu axé.
Questionado sobre a saída de membros de terreiros para igrejas evangélicas, uma antiga
liderança do terreiro do Bogum declara, interpretando esse fenômeno à luz da diferença entre
terreiros “fortes” e “fracos”:
Sim, sai gente do povo-de-santo sim, mas de casas menos tradicionais e menos sólidas. Eu diria,
com menos axé. Isso tem acontecido, tanto lá como cá tem falsos profetas, falsos sacerdotes,
falsos religiosos, em todas as religiões e todas as profissões. Eu não posso negar que nas
religiões afro-brasileiras também têm pessoas que usam dessa forma pra sobreviver e fazem
coisas que não devem fazer. Vamos admitir que num terreiro desses, falsos, onde tem um chefe
que não sabe coisa nenhuma dos fundamentos religiosos, inicia uma pessoa, ele não está
iniciando, ele está apenas atrapalhando a vida daquela pessoa. Mas ele se diz autêntico, se diz
forte, se diz sabedor dos segredos. Essa pessoa passa mal, porque não foi iniciada da forma
correta. De repente, passam pela porta dessa pessoa, que está enferma porque atrapalhou todo o
ritmo do processo religioso dela, e oferecem acolhida, oferecem calor humano, oferecem
oração, leite, pão, enfim, essa pessoa se passa pra lá, e vai professar a fé de uma forma mais
carnavalesca dentro das igrejas. Lá ele tem alguém do lado dele todos os dias dizendo que ele
tem de deixar de seguir a religião do satanás, e de repente ele melhora de vida. Claro, ele vai
totalmente não querer mais pertencer a aquela religião que ele nunca pertenceu na realidade, ele
foi vítima de um sabotador, vítima de um embusteiro.
Provocado pela tese da “transferência do axé”, o seu discurso segue, agora articulando
essa diferença qualitativa entre terreiros, baseada no critério da “autenticidade”, ao processo
de subversão dos segredos:
Eu acredito que sim, eles levam as experiências que viveram dentro do roncó, dentro duma
camarinha [aposentos utilizados na iniciação], pra essas neopentecostais. Eles viram, viram as
coisas como são e vão lá e contam, e fazem, isso é fácil de entender. Mas o terreiro tradicional
ou o não-tradicional tradicionalista que tem o processo forte de iniciação não sai nenhum
religioso pra religião evangélica, não tem saído. Só essas pessoas falsas que não sabem como
fazer. É como um médico, tem muita gente que não tem curso de medicina e professa, de
repente alguém passa mal, isso quer dizer que todos os médicos são desonestos? Isso não pode
ser
.
Por outro lado, ele não deixa de destacar as resistências internas à relação orixá/iniciado
a essa transferência indevida, as mesmas que vimos serem exercidas de forma ostensiva no
caso de pai Jessé:
Você sabe que há um juramento, há todo um processo litúrgico em que o iniciado se
compromete a não estar revelando, e aqueles que revelam, passam mal... Eu já presenciei várias
vezes a ira de um orixá com um filho desobediente. Os orixás, os voduns, os inquices, eles
cobram. Não cobram inicialmente de forma acintosa, mas aos poucos as pessoas sentem que
estão em situação difícil, vão lendo os sinais, vão vendo que eles vão piorando. Sabem que
131
aqueles males passaram a existir porque descumpriram o regulamento, descumpriram o
fundamento do axé.
Um babalorixá informante também corrobora a tese da transferência referindo-a aos
terreiros fracos, e defende a lentidão tradicional na revelação dos segredos e no acesso aos
cargos destacando a qualidade orgânica do sagrado no candomblé, que deve ser plantado e
cuidado com a paciência adequada:
Hoje os filhos de santo entram no axé porque o Exu dá um caminho, aí já se intitula pai-de-
santo. Antigamente você tinha que completar o seu tempo, ou seja, seu rosário, você tinha que
entrar, ser abiã, ser iaô, até completar a obrigação de um, de três, de sete anos. Hoje o sujeito
entrou e já quer sair pai-de-santo, já quer sair com o deká. O fator econômico influencia muito,
porque alguns pais-de-santo, ou seja, zeladores, carentes de recursos, abrem mão dos primórdios
da religião, e por dinheiro se faz tudo... Aí depois, o inquice, o orixá dessa pessoa se afasta,
porque não concorda com o que é feito. Aí você diz: Ah! O pai-de-santo (como se diz
vulgarmente) agora é evangélico!”. Mas ele perdeu a crença dele quando ele perdeu o respeito
dele próprio, pra atender a ganância de alguns e a pressa em querer ser o que ainda não pode ser.
Pra você colher um fruto, primeiro tem que se plantar, regar, ele tem que crescer, frutificar, ele
ainda vai florar, tem muitos estágios até uma árvore frutífera realmente dar fruto. Claro, você
não deita e acorda zelador do axé. Mesmo tendo o dom você tem que esperar o tempo, só no
tempo certo pode, tem que ter tempo pra tudo.
Um outro informante definiu esses terreiros de axé fraco, aqui associados a uma certa
inocência, como “pontos fracos” da comunidade como todo, já que seriam prezas fáceis para
a transferência do axé que as une:
Eles criaram ao longo do tempo, estudos sistemáticos até, pra poder saber quais seriam, vamos
dizer assim, “os pontos fracos”, os pontos onde não tinham dentro dos terreiros uma maior
instrução sobre os fundamentos. Era fácil você induzir uma pessoa dessas dizendo que a religião
que ele aceitava era a religião do demônio, que ele precisava da salvação. É mais fácil você
ganhar as pessoas pelo medo o que pela lógica, pela razão. Isso aconteceu por muito tempo com
os evangélicos, eles começaram a fazer um trabalho de formiguinha, eu ainda me lembro muito
bem quando as primeiras igrejas deles ali no Aquidabam, perto da Barroquinha, e eles já
começaram agressivamente. Hoje, Edir Macedo tem a verdadeira “Umbanda de Edir Macedo”,
banho de descarrego, martelo de não sei o que, machado, e uma série de coisas... Através desses
pontos fracos, saíram conhecimentos valiosos pro lado de lá.
O sacerdote chama a atenção para um outro fator importante que ajuda a compor esse
contexto de abertura indevida do candomblé às religiões rivais: o dinheiro. E não é por acaso
que se mostrou bastante comum ao longo do meu trabalho de campo a associação entre a
inautenticidade desses terreiros de axé fraco com a sua inserção indevida no mercado de
serviços mágico-religiosos:
132
Olha, vou te dizer uma coisa. Muita gente vai às casas de candomblé com o fim de ganhar
dinheiro. Mas eu vou lhe dizer uma coisa: quem realmente tem no seu eledá um vodun, um
inquice, um orixá, um caboclo, não sai dessa religião. Agora, pessoas que desconhecem, só
porque tomou um banho, só porque começou a freqüentar uma casa e tal, se intitulam pais e
mães de santo, ou seja, zeladores e sacerdotes, e com pouquíssimo conhecimento saem lendo
búzios, falando em nome sem poder. É esse o povo que tem saído. Quem é da religião mesmo,
conhece o seu mistério, não sai dessa religião. Quem tem o dom, ou seja, quem traz consigo o
seu odu, o seu orixá não sai.
A partir dos anos 60, observa-se um processo gradual de aumento da legitimidade ou ao
menos de diminuição da marginalidade do candomblé frente à sociedade nacional, fenômeno
que se dá no rastro da disseminação da umbanda pelo país (Prandi 1996). Essa retirada do
candomblé do campo das religiões étnicas, sinalizada pela sua abertura para um público
branco e de classe média, efetua um corte qualitativo entre os freqüentadores dos terreiros,
que passam a ser distinguidos em “seguidores” e “clientes” (20). Diferente dos primeiros, os
clientes mantêm uma relação de externalidade frente à comunidade, indo aos terreiros
geralmente para consultar o oráculo dos búzios e realizar sacrifícios propiciatórios
recomendados (os ebós), serviços mediados por pagamento em dinheiro. Mesmo
demonstrando curiosidade sobre o seu orixá de cabeça e freqüentando as suas festas, essa
categoria se mantém fora do grupo dos iniciados e, portanto, não efetuam nenhum
compromisso com a religião.
De acordo com Prandi, os clientes ocupariam duas funções centrais na configuração
atual do candomblé no Brasil: “(...) antes de mais nada, sua demanda por serviços ajuda a
legitimar o terreiro e o grupo religioso em termos sociais”. A presença de uma grande
clientela de classe média tornou-se um forte sinal de prestígio entre o povo de santo, que
costuma ver neste sucesso um sinal de reconhecimento da seriedade do terreiro. Além disso,
“é da clientela que provém, na maioria dos terreiros, uma substancial parte dos fundos
necessários para as despesas com as atividades sacrificiais” (1996: 22). A partir dessa
dinâmica, a abertura do candomblé para o “mercado das crenças” teria transformado o cargo
de ialorixá e babalorixá em uma promissora opção de carreira para um segmento social de
origem pobre e com pouca educação formal, função dotada de um prestígio negado às
profissões normalmente ocupadas por este grupo.
Assim, o candomblé parece ser cada vez mais habitado por forças ambivalentes. Por um
lado, uma tendência contemporânea à profissionalização dos seus “serviços”, colocando-o
num movimento de integração com o universo individualista da “religião à la carte” (Lenoir
133
2003), da descontextualização e submissão dos signos religiosos ao desejo pessoal de um fiel
em constante mobilidade. Por outro, as tendências centrípetas, já seculares, observadas na
discussão acerca dos segredos, que inserem no primeiro movimento uma diferença entre o
“dentro” e o “fora” do terreiro, corte difícil de ser sustentado em sua inteireza, já que sempre
ameaçado pela inclinação universalista à quebra dos códigos responsáveis pela proteção não
só da força da “tradição”, mas do próprio fundamento mágico-religioso do candomblé. Como
se vê, esse campo de forças contraditórias no qual habita hoje a religião dos orixás torna-se,
em Salvador, um terreno fértil para as experimentações discursivas sobre a sua relação
orgânica com o neopentecostalismo, sobre a venda dos segredos e a fuga do axé.
Um dos meus informantes falou dessa delicada relação monetarizada entre os terreiros e
o seu entorno, canal que, segundo ele, deve ser controlado com muito cuidado:
Eu acho que tudo em excesso é sobra, se você botou muita água num copo vai derramar. Todos
os candomblés precisavam e precisam das ajudas dos filhos de santo pra manter o seu templo.
Precisam também da ajuda do povo de fora, que nos procura pra algum serviço. A luz aqui
dessa casa tem vez que chega por mês a 300 e poucos reais. A mãe de santo sozinha, imagine
como ela poderia manter essas despesas. Os custos são elevados, manutenção da casa, obras. Os
filhos de santo ajudam o ano inteiro no que podem, pra poder manter a casa, as pequenas
reformas que vão sendo feitas. Aqueles terreiros que já têm um apoio do governo do estado,
ótimo, mas quem não tem, tem que se virar dentro disso. Agora, eu acho que há uma diferença
entre você cobrar por um trabalho, alguma coisa que você fez dentro do terreiro, a um cliente, a
uma pessoa que venha, porque muitas pessoas também vêm pro candomblé e num momento
depois, ou se deu bem ou se deu mal, não voltam mais. A casa cobra um valor x, mas eu acho
que deveria se ter também um bom senso na hora de fazer, pra não chegar, como eu já vi, em
200 reais. Eu acho isso um pouco complicado. Cobrar eles até podem, mas eu acho que vai
muito no bom senso e na honestidade de cada um. O importante então é saber que uma coisa é o
serviço pra fora, outra coisa é a vida do terreiro, o respeito pelo axé e pela ancestralidade.
Percebe-se que a fala do pai-pequeno começa fazendo uma distinção importante, que
veremos se colocar com maior clareza na próxima seção, aquela entre terreiros com e sem a
ajuda financeira do Estado. Além disso, destaca a disposição, existente nos terreiros fracos, de
se apagar a diferença “dentro”/”fora” acima referida, misturando-se indevidamente os campos
do dinheiro e do sagrado. A sustentação dessa barreira seria o único modo do axé ser mantido
de forma adequada no interior dos templos. O debate acerca da extensão adequada do axé, um
princípio transbordante por natureza, acaba por alcançar contemporaneamente mesmo alguns
setores da esfera pública antes liberados, como a cultura popular. É o que demonstra a fala de
uma ekedi, criticando as apropriações carnavalescas dos elementos do candomblé, tema que
tem se rotinizado entre as lideranças do povo de santo na cidade:
134
Não, o axé não vai pra rua não, quando vai é erradamente. Isso é visto no carnaval, isso é visto
nas lavagens de bairro. Alguém que tem um pouco e aí leva, mas isso são pessoas
despreparadas, são pessoas que não tem realmente a sua origem, como eu lhe falei, de berço,
são pessoas que por dinheiro vendem até a própria alma”.
Observa-se, nessa crescente demanda por deferência ao axé, o avanço do critério
qualitativo que diferencia grupos “autênticos”, “sérios” dos “inautênticos”, “falsos”, inclusive
nos argumentos sobre o trânsito religioso para as neopentecostais, que vimos aqui estar
freqüentemente associado à polêmica acerca do controle do movimento histórico de
universalização do culto dos orixás. Como afirma um jovem ogã do tradicional terreiro de
Oxumaré:
Eu não sei se eles têm tirado gente que é do candomblé. Daqui do terreiro eu não conheço
nenhum. Não conheço. Uma coisa é a pessoa ser, vamos dizer, simpatizante do candomblé. Ou
que usa os serviços, vem aqui, joga búzios, ou num dia de quarta nós temos amalá pra Xangô,
eles vêm, tomam um banho e tal. Outra coisa é a pessoa que é do candomblé, que faz a sua
obrigação religiosa, que faz o orixá, que é o filho-de-santo da casa. Desse terreiro não saiu
ninguém.
A fala argumenta que, antes de discutir o trânsito, antes de projetar sobre a Igreja
Universal a imagem de um candomblé subvertido, o candomblé deve passar por uma
redefinição da sua identidade, respondendo de forma clara o que ele “é” e o que ele “não é”.
Antes de lamentar a dádiva da magia roubada, a mesma que se torna o seu veneno, caberia ao
povo de santo repensar as condições de existência da sua religião hoje, é isso que o debate
acerca da autenticidade, reverberado pela presença da IURD na cidade, quer colocar como
prioridade.
III- Um Exu evangélico?
Para finalizar o capítulo, inconcluso e aberto, assim como o fenômeno que ele visa
analisar, resta continuar mergulhando no imaginário dos cultos afro-brasileiros sobre o
neopentecostalismo, tentando agora abordar as especulações nativas acerca da natureza desse
poder subvertido pela IURD, chegando ao tema das suas condições de utilização. Quem
melhor desenvolveu essas questões ao longo das minhas entrevistas em campo foi “Mãe
Helenice”, ialorixá de um terreiro no bairro Mussurunga. Observa-se que o seu argumento se
baseia em evidências colhidas por ela mesma e recebidas pelo intermédio de um informante
que trabalhara para a Igreja Universal:
135
Eu tenho uma pessoa, que já foi lá de dentro, foi segurança de lá. Pois é, ele me garantiu que lá
na Igreja Universal, ali no Iguatemi [o Templo Maior da IURD em Salvador], tem um senhor
quarto de Exu. Lá dentro. Além disso, outro dia eu mesma cheguei em São Joaquim
92
pra fazer
compras e tinha uma carreta de quartinhas, de aguidar, já fretada que ia pra Igreja Universal.
Quer dizer, as coisas que nós estamos usando para o nosso trabalho, para a nossa proteção, eles
estão usando. É banho de descarrego, é banho de pipoca, é banho de sal grosso, é rosa não sei de
quê, e aí? Isso mostra que tem gente que foi do candomblé que está lá. São essas pessoas fracas,
que não têm fé, que não têm confiança no seu orixá, que por qualquer coisa no candomblé se
decepcionou, e vai pra lá dar de mão beijada as nossas origens. Olhe só: um quarto de Exu pra
ninguém botar defeito!
Mais uma vez, o motivo dessa transferência de pessoas e categorias é colocado na
ganância e na fé fraca de determinados setores do povo-de-santo: “Eu acredito, pois o
dinheiro faz tudo, né? Pra eles. E aí pessoas enfraquecidas, que não têm coragem de mudar,
de batalhar, vão e se entregam. Geralmente é gente desses terreiros de segunda, sem tradição
nem axé. Eu, por dinheiro nenhum eu vou abandonar o meu candomblé!”. Através dessas
pessoas, a IURD teria conseguido invadir o campo de ação do candomblé, apoiando-se, de
acordo com a ialorixá, na figura mais complexa e ambígua do seu panteão, que tem servido
secularmente como signo-chave para o contato do candomblé com os seus outros: o Exu,
também conhecido como Elegbara, na nação Jeje, ou Inzila, em sua versão angola.
De acordo com Verger, e a mitologia confirma, o orixá Exu seria dotado de uma série
de qualidades a princípio “negativas” para olhos estrangeiros, ele seria “suscetível, violento,
irascível, astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente” (1999: 119). Talvez por isso, “os primeiros
missionários, espantados com tal conjunto, assimilaram-no ao diabo e fizeram dele o símbolo
de tudo o que é maldade, perversidade, abjeção e ódio, em oposição à bondade, pureza,
elevação e amor a Deus” (idem). Essa associação entre o Exu e o diabo, corroborada não só
pelos cultos da IURD, mas também por setores mais cristianizados dos próprios cultos afro-
brasileiros, como a umbanda e a quimbanda, mostra-se incorreta caso seja observada sob a
ótica iorubana, incorreção devida principalmente a dois desentendimentos principais.
O primeiro é aquele que traduz o Exu patrono da cópula, Príapo africano, deus da
fertilidade, associado ao elemento central da organização social iorubá, a ancestralidade,
como o Exu guiado por uma sexualidade descontrolada, selvagem, anti-social, evidenciada
pelas representações materiais da divindade, geralmente marcadas por grandes signos fálicos.
O segundo é aquele que traduz o deus mensageiro, mediador entre o Aiê e o Orum, associado
92
Grande feia popular onde são comprados os objetos e os animais utilizados pelas celebrações do candomblé da
cidade.
136
à atividade oracular, interpelado pelo homem através dos sacrifícios votivos, como o Exu
interesseiro, imoral, mesquinho e mercenário. Em suma, a figura de Exu parece tocar de
forma indevida duas pedras fundamentais do imaginário ocidental, fato que torna difícil
deixá-lo passar ileso à sua fúria: a oposição entre a sexualidade e o sagrado e a distinção
dicotômica entre ações livres e altruístas, pertencentes ao campo da moral e da religião, e as
ações interessadas e egoístas, associadas ao campo utilitário do profano.
Nesse sentido, Exu seria dotado de uma espécie de existência medial, expressa não
somente nas ambigüidades que ele inseriria nas categorias cristãs, ocidentais, ou modernas.
Também para o mundo dos candomblés, Exu estaria associado a um poder distinto dos outros
orixás, e mais do que nenhum outro estaria vinculado à capacidade de promover mudanças, de
alterar o status quo
93
. Tal poder transgressor de Exu pode estar sediado na especificidade da
sua função na estrutura classificatória do candomblé: a de termo capitalizador das relações,
elemento móvel envolvido com a promoção dos nós de aliança. Por articular mundos, Exu
sabe e participa de tudo, seu poder é extenso, mais do que intenso
94
.
Assim, Exu parece retirar a sua autonomia frente às rígidas hierarquias do candomblé
do fato de mediar todos os vínculos, situação que o entrona como a peça essencial da
dinâmica ritual e da magia.
Como mensageiro dos deuses, Exu tudo sabe, não há segredo para ele, tudo ele ouve e tudo ele
transmite. Ele pode quase tudo, pois conhece todas as receitas, todas as fórmulas, todas as
magias. Exu trabalha para todos, não faz distinção entre aquele a quem deve prestar serviço por
imposição do seu cargo, o que inclui todas divindades, mais os antepassados e os humanos. Exu
não pode ter preferência por aquele ou este (Prandi 2005: 74).
Por “trabalhar para todos”, Exu se instaura como uma porta de entrada para o novo,
tornando-se a principal categoria de alteridade do candomblé. Não por acaso, ele se estabelece
como um significante-chave para as especulações do povo-de-santo sobre o atual contexto de
conflito e apropriação entre a sua religião e a dos evangélicos neopentecostais. Assim
Helenice descreve a sua visão mais genérica sobre o senhor das encruzilhadas:
93
A qualitade de “trickster” de Exu na mitologia demonstra a sua postura crítica e mesmo jocosa diante dos
outros orixás, exemplificando um tipo de poder dos fracos.
94
Tal existência medial é expressa na posição de observador participante ocupada por Exu no processo de
criação do Aiê, como destaca o mito que narra como ele ganhou o poder sobre as encruzilhadas: “Exu ficou na
casa de Oxalá dezesseis anos Exu prestava muita atenção na modelagem e aprendeu como Oxalá fabricava as
mãos, os pés, a boca, o pênis dos homens, as mãos os pés, a boca, a vagina das mulheres. Durante dezesseis anos
ali ficou ajudando o velho orixá. Exu não perguntava. Exu observava. Exu prestava atenção. Exu aprendeu tudo”
(apud Prandi 2003: 40).
137
Exu domina o movimento de todo o processo divinatório. É ele que agita as peças sistemáticas
na comunicação dos seres humanos. Ele é a comunicação, pro mal ou pro bem, entendeu? Aí
depende de quem o direciona, somos nós. Se alguém pegar ele pra trabalhar pro mal, ele vai ser
do mal. Se a gente executar ele pro bem, vai ser do bem. Ele é ligação, entende? No entanto é
necessário abraçar o lado favorável de Exu. Pois o seu lado caótico poderá estar vibrando no
momento a ser evocado. Nesse caso, tudo poderá ficar exposto a grande dano. Essa é a origem
do bem e do mal, é equilíbrio ou desequilíbrio. É por isso que ele é tratado por ignorância como
algo ruim, associado até ao diabo. Logicamente, o ruim é aquele que se dedica de maneira
desajustada a mexer com as coisas desconhecidas dependendo do contexto da cabeça de cada
um. Amigo espiritual, Exu é um ser comunitário, comunicativo e social.
Por outro lado, a seguir ela descreve o tipo particular de aliança costurada entre esse
orixá “comunicativo e social” e a Igreja Universal:
Com Exu, depende de como manda, de como faz, de como deseja, você tá entendendo? Esse
mesmo que eles da Universal devem ter lá assentado, ele vai sair daquela pessoa que vai no
culto deles e vai trabalhar pra eles encaminhando o dinheiro todo que eles têm ganhado. Eles
livram e guardam ele ao mesmo tempo. Quando eles ficam naquela chamada, naquela coisa do
“sai, sai, sai...”, quer dizer, ele sai de um jeito e eles firmam de outro. Você acha que ele foi,
mas na verdade eles tão é firmando, senão pra quê que eles iam voltar lá? Não vai deixar solto.
Quando vão essas pessoas fracas, possuidor até de coisas boas, mas que passam por um
momento de desespero, de perturbação, então, eles aproveitam, e vão fazer a segurança do outro
lado.
Nos termos colocados pela ialorixá, a relação fiel/IURD/sobrenatural passa a ser lida
como uma espécie de círculo vicioso, que colocaria o fiel na necessidade perpétua de retornar
ao processo ritual de libertação. Percebe-se que através de uma linguagem “nativa”, a minha
informante chega a uma conclusão não muito diferente da que eu mesmo cheguei no primeiro
capítulo: a de que a IURD seria resultado de uma espécie de hiper-ritualização do
pentecostalismo resultante de um deslocamento narrativo do mal do controle, ou melhor, do
auto-controle do sujeito. É interessante notar, por sua vez, que o argumento parece ser
inverso, mas simétrico à visão que a própria IURD defenderia sobre o candomblé: a de que a
crença do inimigo indicaria uma decadência da troca, ou do sacrifício, em expropriação,
realizada pela predação dos bens e da subjetividade de fiéis iludidos. Assim, a aliança entre a
igreja e Exu teria transformado a primeira em uma espécie de máquina ritual devoradora de
coisas e pessoas, fundada numa economia de dívida perene e incontornável, e oposta a um
movimento de reciprocidade representado pelo candomblé.
Dois elementos do caráter de Exu parecem ser potencializados por este acordo com a
IURD: a sua capacidade de ludibriar e o seu pendor expropriatório, características presentes
nas narrativas mitológicas do candomblé. Em “Exu ajuda um homem a trapacear” (apud
Prandi 2003: 51), percebemos de modo evidente a capacidade de Exu de simular situações
138
tendo em vista alçar determinados fins para quem o requisite através do ebó. Nesse mito, um
homem evoca Exu para ajudá-lo a iludir um rei acerca dos seus supostos poderes mágicos.
Propõe à autoridade um desafio a princípio absurdo: ele plantaria inhames assados que não
deixariam de brotar e criar folhas dentro de alguns dias. Na calada da noite, Exu ilude os
guardas que controlavam a plantação e troca os inhames assados por novos. No fim da
aventura, o rei recompensa o suposto mágico tornando-o muito rico.
A própria ialorixá reconhece este lado ludibriador de Exu, apesar de não condená-lo
eticamente em nenhum momento. Pelo contrário, demonstra uma espécie de apreço
desresponsabilizador ao compará-lo a uma criança: “Exu é mestre em enganar as pessoas,
ainda mais se você não conhece bem ele, o jeito que ele trabalha (risos). Ele é meio criança,
entra nas coisas sem saber o que vai dar”. Assim, com o consenso de Exu, a IURD teria
montado uma espécie de encenação durante os seus cultos, um truque onde o orixá seria
demonizado, assumiria o mal causado às pessoas, e seria “solto”, sendo logo em seguida
“preso” novamente, voltando a interferir na vida dos supostos “libertos” da Universal. O
motivo dessa encenação seria fazer com que os fiéis nunca deixassem de retornar e doar o seu
“dízimo”, “oferta” ou “desafio” para a igreja.
Essa voracidade material seria a segunda característica de Exu potencializada pela
IURD de acordo com a ialorixá. Em “Elegbara devora até a própria mãe” (apud Prandi 2003:
73-5), observa-se de forma exemplar a força insaciável desse orixá, a sua capacidade de
consumo, assim como as alianças costuradas tendo em vista domesticá-la. O mito começa
narrando o nascimento de Elegbara, filho de Orunmilá, a divindade oracular:
Para espanto de todos, [Elegbara] nasceu falando e comendo tudo o que estava diante de si.
Comeu tudo quanto era bicho de quatro pés, comeu todas as aves, comeu os inhames e as
farofas. Engolia tudo com garrafas e garrafas de aguardente e vinho. Comeu as frutas, o mel e
os de azeite-de-palma, quantidades impensadas de pimenta e noz-de-cola. Sua fome era
insaciável, tudo o que pedia, a mãe lhe dava, tudo que lhe dava a mãe, ele comia. Já não tendo
como saciar a medonha fome, Elegbara acabou por devorar a própria mãe (74).
Pretendendo controlar tamanha fome, que acaba se voltando contra ele mesmo,
Orunmilá entra em um acordo com Exu. Assim, Exu passa a trabalhar para Orunmila, levando
oferendas e mensagens dos homens. Em contraparte, ele adquire o direito de ser saudado
antes dos demais orixás, e sempre que um sacrifício for feito para algum deles, Exu deve ser o
primeiro a comer. A associação entre o poder e o ato de comer acontece como uma invariável
cosmológica em quase toda a África negra, fato que o articularia fortemente à instância do
139
consumo, e não da produção (Fabian 1998)
95
. O mito parece figurar em Exu um poder levado
às últimas conseqüências, à anti-socialidade, e mesmo à autodestruição. Por outro lado, essa
fonte “natural” de poder passa a ser canalizada graças ao estabelecimento de uma aliança, que
socializa e codifica a sua capacidade de intervenção ao conformar aquilo que antes era
mobilidade predatória em uma força de mediação comunicativa. Assim, declara-se a paz da
guerra que é Exu, mas uma paz fundada em um contrato nem um pouco perpétuo, já que
fadado à renovação cotidiana.
Nesses termos, e continuando com o insight da ialorixá, a IURD parece deixar correr de
forma distinta essa propensão predatória de Exu, capitalizando a troca em consumo, e não o
contrário.
Outro dia mesmo eu tive que salvar um homem ali no Iguatemi. O homem saiu desesperado, eu
tava com meu filho, e ele louco, com a mão na cabeça. Eu disse: “Ave Maria, ele vai se jogar do
túnel! Vamos parar pra ver”. E meu filho disse: “Não minha mãe, o que é que a senhora vai
fazer aí, deixe lá, deixe lá!”. Peguei o rapaz, botei assim num canto e disse: “O que é rapaz, o
que é que você tem?”. Ele tava desesperado, saiu do emprego, esperava receber um seguro
desemprego veio outro, muito pouco. Ele desesperado com tanto compromisso que tinha pra
pagar, casa, tudo, foi pra Igreja Universal. Chegando lá, mostrando ao pastor, chorando, se
lamentando, o pastor disse: “Bote meu filho, bote aqui, que vai render, vamos pedir a Jesus que
vai render!”. E ele bota o dinheiro todo, quando é daqui a pouco, ele esperando. Cadê o pastor?
Ele já tinha ido lá pro fundo da igreja, se picou, e ele perdeu o dinheiro todo. Isso é ajudar? O
rapaz tava desesperado, onde é que ele ia ver mais esse dinheiro? Não tinha prova concreta,
ficou o dito pelo não dito. Quer dizer, muitos de levar televisão, par de aliança grossa de ouro,
terreno, tomando carro, tudo, quem botar o dízimo maior vai ter a salvação maior. Eles devoram
tudo, querem tudo que você tem, e não importa se você pode ou não pode dar, eles são um poço
sem fundo
.
Ela segue com o argumento, desdobrando-o na oposição sacrifício/expropriação, e
colocando inclusive o catolicismo ao lado do candomblé, ambos ocupando o primeiro pólo:
Quando, lá no candomblé, chega uma pessoa perturbada, uma pessoa desesperada, a gente tem
um banho, a gente tem um remédio, um acalento. E todas as pessoas que chegam no candomblé
desesperadas, eles saem em paz..Porque ele vai receber o sacrifício, pro ori. O ori, a cabeça,
estando sã, o corpo anda. É como a Igreja Católica, lá também tem o sacrifício que eles fazem.
Colocam o santíssimo sacramento dentro de si, pra dar paz. E essas igrejas estão fazendo o que?
Só tirando. Dar o dinheiro, dar o dízimo, arrancar. Aqui no candomblé é diferente, na maioria
das vezes a pessoa vem sem nada, sem nada. E sai todo feito, todo bonitinho, todo arrumado,
pra depois dar... Uns te reconhecem depois, outros não.
95
De acordo com Fabian, utilizando-se de uma frase nativa, quando se trata de política na África negra, deve-se
saber que lá “le pouvoir se mange entier” (127).
140
É interessante notar que essa força expropriatória dos “evangélicos” se expressaria não
somente na sua relação com as pessoas, mas também em um outro campo fenomênico,
intimamente associado ao humano na visão do candomblé: a natureza.
Eu tô doida pra comprar uma camerazinha dessas, que já duas vezes que eu vou botar oferenda
no Abaeté, eles tão fazendo o batismo ali. Tão batizando lá. Uma mulher que você vê que era de
candomblé, fazendo aquelas coisas todas pra batizar. Coisas nossas, ali é a água sagrada de
Oxum, é a fonte de Oxum, onde nós sempre fizemos nossas coisas. Por isso que a água ta
secando, só secando... (Helenice)
Assim, esse poder ambíguo atualizado em Exu institui-se como o significante essencial
do espelhamento metonímico da ofensiva evangélica por parte do candomblé. O de Jessé
cobrando de forma vingativa, anulando violentamente os seus anseios de mudança, o da
IURD, montando mais uma das suas trapaças de “trickster”, que, nesse caso, volta-se
curiosamente contra a sua própria casa. O que resta dessa tentativa de amostragem das
experimentações do candomblé sobre o conflito (muito mais ampla e variada do que aqui
expressa) é a sensação disseminada de que “os evangélicos”, generalização produzida pelo
povo de santo a partir da IURD, fundariam a sua eficácia mágica em um poder familiar porém
alheio, já que pouco domesticado e, por isso, potencialmente perigoso tanto para os outros
quanto para si mesmos:
Deus deu a cada um a consciência de suas capacidades mentais e de poder de captação e
destituição do axé. A fé não pode esbarrar na falta de conhecimento de deus, da natureza e do
homem mesmo. O desconhecimento pode levar praticantes de toda e qualquer religião à
destruição de sua auto-crítica. Você tá entendendo? Porque se não tiver convicção do que é, do
que está fazendo, chega ao ridículo. Eu tenho convicção do que eu estou fazendo. Eu tenho
convicção nos meus trabalhos, eu sei até onde eu estou certa, eu sei onde até eu tô errada.
Portanto, sei onde eu tô pisando. Eles [“os evangélicos”] estão mexendo com coisas que não
conhecem, porque as nossas coisas são da nossa ancestralidade, isso já existia, isso existe na
nossa mãe África, né? As nossas origens têm os nossos ancestrais não sei há quantos mil anos. E
eles agora que chegaram que querem roubar e aterrar isso? Por quê? Com que objetivo? Eu
temo até por eles mesmos.
Ao mesmo tempo, a concepção do neopentecostalismo como um “candomblé elitizado”,
assentado sobre um sagrado selvagem e irascível é acompanhada, por parte dos setores mais
antigos do povo de santo, por uma atitude de paciência, justificada pela crença de que um dia,
na hora certa, eles receberão a sua punição por terem se “aberto” aos poderes do axé de forma
tão acintosa:
[“os evangélicos”] Levaram o axé, mas levaram em parte. Em parte, porque aquilo que é bom
não se arranca assim. Mas levar em parte, sem saber a fundo como é a lei do axé, isso também
141
deixa eles fragilizados. Eles se encontram fragilizados, porque a força está ainda com nós, que
estamos vivenciando a tradição, que estamos dando força, dando valor. Eles que tão fazendo
isso, tão ficando cada vez mais próximos da gente, eles que se preparem...
142
Capítulo 4:
Especulações políticas: rompendo o campo do outro
O importante pra mim é ter paciência, é não responder às provocações, é não entrar no
campo de batalhas que eles estão montando.
Everaldo Duarte
Há um mal-estar, que se nós não tomarmos cuidado, poderemos estar chegando em algum
espaço e em algum momento em uma guerra mesmo, santa, que ao meu ver, pode acabar se
tornando necessária pra que se tenha respeito. Candomblé é uma religião em que as pessoas
são estimuladas a não acatar determinadas coisas. Os orixás não são cordeirinhos. Os orixás
são mesmo de guerra, de briga, de falar desaforo, de dar o que é certo, de fazer.
Marcus Rezende
143
No capítulo anterior, descrevi e analisei eventos e narrativas que julgo ilustrarem os
modos discursivos metonímicos do povo de santo responder aos avanços da “batalha
espiritual” neopentecostal, repercutindo a sua textualidade a partir da velha linguagem de
circulação de poder e eficácia mágica associada ao axé e aos orixás mediadores, como Exu.
No atual capítulo, apontarei algumas cenas tendo em vista iluminar as dimensões metafóricas
dessa mesma resposta. Com isso, pretendo indicar a tendência a ler os fenômenos de conflito
religioso sob um registro gramatical distinto, agora os articulando verticalmente ao campo da
“política”, entendida no sentido oficial e moderno de reivindicação de direitos.
A relação entre o candomblé e o idioma da cidadania, da pessoa à luz dos quadros
narrativo e valorativo do Estado-nação, tem sido um tema estudado de forma insuficiente pela
antropologia brasileira, insuficiência talvez resultante da confusão entre o silêncio de grande
parcela do povo de santo sobre temas explicitamente “políticos” e a ausência de reflexão
sobre os mesmos. Diferente da “ausência”, a “omissão” me parece, de fato, ser o signo-chave
desta relação em ambos os lados que a compõem, situação pouco surpreendente, caso nos
atentemos para o fato da religião em questão remeter historicamente a um povo que veio ao
Brasil sem ser convidado para a festa da nação, e que construiu a sua existência nas franjas
dos valores oficiais, atualizados por um Estado que, de fato, jamais legislou sobre os seus
interesses. Além disso, se o fosso entre aparelho estatal e realidade nacional, no Brasil, é
classicamente lido como uma marca estrutural da sua formação (Faoro 1975), no caso das
populações de origem africana, essa distância parece ser estendida ao seu limite, já que, como
vimos anteriormente no debate acerca do segredo, as condições sociológicas da inserção do
candomblé no Brasil fizeram do ocultamento, ou da fala indireta, estratégias centrais para a
articulação segura entre a sua comunidade e a sociedade na qual teria sido inserida.
Segato (1992) parece entender bem as implicações dessas estratégias de invisibilidade
para a proposta antropológica de se captar um “discurso político” nos cultos afro-brasileiros,
no seu caso específico, no Xangô do Recife. Através de uma interessante saída analítica,
encontra no caminho alternativo da “linguagem cifrada do mito e da organização social do
culto” (1992: 3) uma expressão comunicativa suplementar, capaz de dotar com um sentido
propositivo o silêncio do povo de santo sobre a ordem social que o cerca. Nessas instâncias,
encontra uma espécie de “microcosmos” que, apesar de marginal e minoritário, comprova que
os cultos afro “também produzem um ‘pensamento social’, uma teoria sobre o Estado, e
144
participam do processo de construção da idéia de nação, mesmo que seja, como nesse caso
particular, negativamente” (4).
Após um mergulho atento na mitologia dos orixás, a antropóloga encontra em Iemanjá e
Oxum categorias nativas, associadas à maternidade, com as quais se escreve um discurso
indireto sobre dois tipos de autoridade. A primeira representaria a ordem estatal, dada a sua
legitimidade, e seria vinculada à hipocrisia e ao formalismo sem fundamento: “a posição de
mãe de maneira puramente formal, burocrática, como uma administradora fria e distanciada”.
A segunda, sempre ocupando as muitas brechas deixadas pela primeira, seria associada a uma
posição que, apesar de ilegítima, seria a da mãe autêntica, que de fato cuida, se preocupa e se
doa aos seus filhos: “(...) assim, no espaço deixado vazio pela maternidade instituída de
Iemanjá, entra a autêntica vocação materna de Oxum” (10).
A partir da análise da sua gramática mítica, percebe-se que os cultos afro-brasileiros
alimentariam uma visão cética frente à lógica oficial, trabalhando no registro da oposição
entre aquilo que é real (o “dentro” do terreiro) e aquilo que é legítimo (o “fora” do terreiro).
No entanto, a adequação entre esse ceticismo e uma postura reivindicativa, passagem
aparentemente óbvia, parece nunca se dar, fato que se observa na resistência visível do povo
de santo em somar-se às frentes e aderir ao discurso dos movimentos negros
96
:
Enfim, alguém pode, ingenuamente, perguntar-se: se as narrativas míticas contêm uma crítica
metafórica ao Estado; se suas instituições são invalidadas, por que não dar essa mensagem
claramente: ‘Somos afro-brasileiros, esse Estado não nos representa’? Por que camuflar essa
mensagem em mito? Por que não transformar-se em grupo negro, em busca de uma cidadania
negra? Por que não somar-se às filas dos movimentos sociais? E a resposta é não, pelo menos,
todavia não (Segato 1992: 17
).
A constatação da ausência de representatividade do Estado é seguida, nesses termos,
pelo afastamento completo do seu campo de problemas do universo da religião. Diferente de
um ceticismo reivindicatório, político, descrença fundamental à cultura democrática, pois
instauradora de um ímpeto para a ação, estaríamos aqui diante de um ceticismo paralisante,
mantenedor e mesmo assegurador do abismo entre o campo de ação do Estado e o conjunto de
coisas que de fato interessam à comunidade religiosa. Essa postura de suspeição sobre o
universo da legitimidade se justificaria, em última instância, pela caracterização desses grupos
96
Tal característica poderia ser lida, no entanto, como um paralelismo cosmológico com aquilo que defini, no
capítulo anterior, e através de Bastide, como uma “estratégia de duplo corte” (1971: 345) do candomblé, que,
através do segredo e do sincretismo metafórico, distinguiria uma existência “real” de uma “disfarçada”, a
primeira correspondente ao “dentro” do terreiro e a segunda ao “fora” da esfera pública.
145
como coletivos “não-essencialistas” (Segato 1992), ou ainda “tautológicos” (1995), ou mesmo
como “religiões trágicas” (2003b).
Com essa terminologia, a antropóloga visa assentar a abstinência política do povo de
santo em algumas barreiras de ordem “cosmológica”. Primeiramente, na incompatibilidade
entre a gramática identitária do candomblé, marcadamente universalista, onde todos possuem
um santo de cabeça, e o modelo “étnico” do movimento negro. Consequentemente, por esse
universalismo não vir acompanhado por uma concepção de pessoa individualista (dimensões
que, agregadas, comporiam a figura do “cidadão”), ou seja, interiorizante, responsabilizadora
e prescritiva, mas antes por uma postura descritiva (“tautológica”) e explicativa ante o mundo,
o outro e o si mesmo
97
. Nesses termos, o candomblé pode ser definido como “um comentário
sobre a realidade social, a posteriori, por parte de quem não partilha da responsabilidade de
impor uma direção a uma sociedade” (Segato 1995: 416). Por fim, desse universalismo não-
individualista, a-ético, onde mais vale o “tabu” (remeter o infortúnio a um “contato” indevido
num quadro classificatório) do que o “pecado” (remeter o infortúnio a um erro proveniente da
interioridade subjetiva de um ator) resultaria uma visão de mundo marcada pela ausência de
utopia. Com isso, agrega-se, por um lado, um conteúdo “democrático” ao culto, referente à
sua capacidade quase ilimitada de absorver setores marginalizados pela ordem dominante,
mas por outro, seriam alimentados valores associados à paciência e à adaptabilidade, em
detrimento daqueles relativos ao descontentamento e à mudança. Assim, o que resta é sempre
uma espécie de transgressão conservadora, tranqüila e silenciosa quanto aos seus efeitos, já
que pouco prescritiva. Dessa cosmologia específica resultaria, enquanto atitudes fundamentais
do candomblecista em sua inserção na sociedade brasileira, a paciência ilimitada e o apelo
indireto de um Oxalá ou o charme e o fascínio dissuasivos de um Xangô.
Um caso interessante, que parece corroborar e representar de forma icônica essa espécie
de indiferença do candomblé ante os signos “oficiais”, foi recolhido por mim de uma
reportagem do Jornal da Bahia do dia 02 de julho de 1966. Nela, é descrito que a famosa
ialorixá Mãe Senhora havia sido condecorada pelo embaixador do Senegal à época, Henry
Senghor, com a medalha do Mérito da Ordem Nacional do Senegal, sob a justificativa de que
a matriarca seria “um símbolo da presença africana na Bahia”. A reportagem continua,
97
Tal postura descritiva seria capaz de fornecer ao indivíduo a compreensão a posterirori do comportamento dos
outros e de si mesmo a partir de uma especulação sobre os santos que comporiam a “cabeça” dos agentes em
questão e não de julgar o estado de coisas a partir de um estado interior ou intersubjetivo do sujeito ou dos
sujeitos que dele participa.
146
destacando o fato jocoso da ialorixá ter confundido a medalha oficial com um ornamento,
uma peça “para usar no pescoço”, e ilustra o aparente engano com uma foto onde ela, com as
suas vestimentas tradicionais, é vista sorrindo e expondo a medalha como mais um dos seus
adereços, aquela hora já ocultada pelas contas, búzios e sinais de prata que compunham o
grande colar que sustentava em seu pescoço. A reportagem termina afirmando que “embora
sem demonstrar estar alcançando o seu verdadeiro sentido, a ‘Senhora’ mostra-se muito
satisfeita com a condecoração”, seguida por uma frase da sacerdotisa, onde declara que “o
embaixador do Senegal é muito boa pessoa” e que estava “muito feliz com a gentileza”,
desejando que “Deus proteja a todos”.
Senhora parece encarnar, na cena descrita, a concepção de que o mundo da pompa, do
formalismo burocrático, das palavras superlativas seria um assunto alheio, sobre o qual o
candomblé teria muito pouco a declarar. Inserida em uma situação explicitamente “oficial”,
como o é uma cerimônia de condecoração, a sacerdotisa se vê colocada em um limite de
tradução, sobrando a ironia e o humor como as marcas do insucesso da tentativa de capturá-la
através das redes de uma linguagem estrangeira, falada pelas coisas, gestos e enunciados dos
“homens grandes”. Assim, se no capítulo anterior tivemos contato com uma espécie de
paroxismo da capacidade do candomblé de englobar o outro como um outro-eu, mesmo
quando esse outro em questão se coloca numa postura aberta de enfrentamento violento da
sua comunidade de origem, agora parece que chegamos ao ponto em que essa mesma
capacidade se exaure. É o que veremos.
Caso levemos ao limite essa linha de raciocínio, chegaremos à conclusão de que se há
outro de fato no mundo do candomblé, uma fronteira de contenção para a sua extensão de si,
esse outro se encontra mais no Estado do que nas outras religiões com quem ele tem se
defrontado em sua trajetória histórica. Todo o resto é refletido e desdobrado, mantendo-se
intocado e alheio nesse processo apenas o “pacto da nação”, com quem o candomblé dialoga
tradicionalmente através de uma “ideologia do prestígio” (Lima 1987: 153), atualizada pelo
poder personalista, carismático e irônico de suas lideranças. Nessa dinâmica, e sem nunca
adentrar o universo de ação do pacto, são tecidas alianças pontuais, gestos desorganizados
sempre vindos “de fora” do seu campo de ação. A história de resistência do candomblé em
Salvador em vários momentos exemplifica essa hipótese: já que não se reivindica do poder
público, enreda-se nele pela troca, recebendo proteção (ou apaziguamento da repressão) e
suporte financeiro enquanto se estende à autoridade laica o apelo sagrado do terreiro enquanto
147
centro da cultura popular e da identidade baiana. Assim fizeram os antigos, como tentarei
demonstrar a seguir.
Tendo a hipótese acima como contraponto, essa seção se desenvolverá guiada pelo
objetivo de destacar o avanço gradual de um modelo “oficial” de ação política dentro do
candomblé de Salvador, o mesmo que aparece como obliterado no argumento acima exposto.
Esse avanço, ainda em ocorrência, e por isso desenvolvido aqui como uma tendência, mais do
que como uma realidade plenamente estabelecida, parece apontar o desabrochar de um novo
candomblé na cidade (um “candomblé dos novos”), como veremos a seguir. É importante
destacar que não entendo que tal movimento estrutural tenha tido a sua origem no recente
confronto do povo de santo com os grupos evangélicos, mas que a instauração do debate
acerca do conflito inter-religioso na cena pública soteropolitana me parece ter sido um fator
crucial para a sua ocorrência, agindo como uma espécie de variável catalisadora de processos
até então adormecidos. Ocupando um lugar central nesta química política insurgente estaria a
“intolerância religiosa”, tida aqui como uma categoria nativa de alteridade do povo de santo,
que teria a função de balizar uma nova economia identitária, implicada em novos critérios de
liderança e em uma nova postura da religião diante da esfera pública e do Estado, uma postura
que pode ser definida, a grosso modo, como “politizada”.
Nesse novo registro, as agressões e apropriações, antes pensadas pelas figuras mediais
do trânsito e do “axé da IURD”, passam a figurar num universo marcadamente político, sendo
lidas como atos de “intolerância religiosa” ou de conceitos afins, como o racismo. Desse
modo, a retirada do axé da IURD, o reconhecimento nela de um outro de fato, torna-se um
dado básico para se entrar no combate com reivindicações, passeatas e manifestos, e não mais
com paciência e ebós. Só se luta contra um outro, construído, nesse caso, através do explícito
anulamento, por parte das jovens lideranças do candomblé, daquela que tem sido a fonte
inesgotável das fusões metonímicas da sua religião com as demais: a eficácia mágico-
religiosa. Sob a ótica desse novo candomblé, as curas e os “fetiches” evangélicos passam a ser
lidos como farsa ou charlatanismo e não como uma manipulação diversa de princípios
compartilhados. São alguns elementos dessa ótica ainda em desenvolvimento que tentarei
apontar ao longo deste capítulo.
Antes de desenvolver a discussão, cabe a mim destacar desde já que a divisão entre
reações “religiosas” e “políticas” é aqui posta para ser questionada, tanto por mim quanto
pelos “nativos”, não passando de um recurso analítico que deixaria como resto uma série de
148
eventos mais matizados. Para isso, remeto ao comentário de um informante sobre uma das
mais importantes conquistas do “Movimento Contra a Intolerância Religiosa”, nome dado à
frente “política” do candomblé da cidade: o “Dia Municipal de Combate à Intolerância
Religiosa”. O comentário gira em torno da votação do projeto de lei que instituía a data
oficial, e foca o embate entre a vereadora Olívia Santana, criadora do projeto e membro do
movimento, e “Tia Erom”, vereadora ligada à Igreja Universal do Reino de Deus:
Foi Olívia Santana que conseguiu o Dia Municipal “Contra” a Intolerância Religiosa pra gente,
o dia 21 de janeiro. Esse projeto foi árduo, ela levou várias vezes pra poder colocar em votação
e Tia Erom e o restante da bancada dos evangélicos, todos eles recusaram o processo. Parecendo
que foi coisa de orixá, de inquice, de vodum, estávamos lá sentados, fomos convidados a
presenciar a sessão, e o projeto subiu novamente. Eu não acreditava nem mais que o projeto
passasse, quando de repente “projeto da vereadora Olívia Santana...”, eles dizendo que estava lá
pra ser contemplado. E ninguém escutou o que o cara falou. Ele falou em boa voz e bom tom,
novamente repetiu-se, nada foi dito. Até que na terceira vez o projeto passou. Quando passou
foi que Tia Erom ouviu: “Projeto aprovado”. Ela: “Não, não, não”, esperneou, mas não tinha
mais jeito, já tinha passado.
A narrativa é então concluída por um enunciado que serve de advertência para todo o
capítulo: “Veja só, lá dentro [na Câmara dos Vereadores] eles [orixás, voduns, inquices]
também funcionam...”.
I- O “Movimento Contra a Intolerância Religiosa”: do trágico ao utópico na
presença do inimigo
Pour soulever les hommes, il faut avoir le diable au corps.
Mikhail Bakunin
No decorrer dos últimos cinco anos, a “intolerância religiosa” tem se mostrado um
termo e um tema dos mais recorrentes no cotidiano da cidade de Salvador, saindo do âmbito
de convivência dos grupos religiosos em questão e ganhando a opinião pública. Uma rápida
passagem pelos jornais lançados neste período me permitiu acessar, junto aos eventos de
conflito entre evangélicos e praticantes de cultos afro-brasileiros e da sua repercussão dentre
autoridades, intelectuais, fiéis e sacerdotes, uma série de manifestações e encontros
articulados à demanda por maior “liberdade religiosa” para o povo de santo. Tais
acontecimentos, organizados a princípio de modo fragmentário, passam a ser veiculados
posteriormente sob a insígnia do “Movimento Contra a Intolerância Religiosa” (MCIR).
149
A concepção do MCIR surge em 2000, e parte de intelectuais do CEAO (Centro de
Estudos Afro-Orientais), integrado à Universidade Federal da Bahia (UFBA). A idéia era,
provocados pelo aumento de casos de conflito religioso, principalmente após o avanço do
neopentecostalismo na cidade, convidar representantes de várias religiões, lideranças do
candomblé, católicos, protestantes, espíritas, budistas e judeus, tendo em vista realizar um
debate acerca do convívio religioso e os seus limites. Organiza-se, no mesmo ano, o Fórum
Baiano Contra a Intolerância Religiosa, tendo em vista avançar com a discussão e torná-la
mais pública.
Ao longo do fórum, o foco genérico na “intolerância religiosa” logo recai para uma
defesa do candomblé contra os grupos neopentecostais, quase sempre referidos através da
Igreja Universal do Reino de Deus. Com isso, instaura-se a defesa do sincretismo contra o
segregacionismo, utilizando-se do candomblé como um exemplo de religião espiritualista e
não-expancionista e a IURD como o modelo de uma religião agressivamente, e mesmo
ilegalmente, proselitista. Desse modo, através desses dois grupos religiosos, passa-se a
configurar um contraponto entre duas visões de mundo, elevando-os a pólos discursivos bons
para se pensar um amplo Estado de coisas. Para os intelectuais, defende-se a “cultura baiana”,
marcadamente sincrética e aberta ao outro, contra uma modernização opressiva e
homogenizadora. Para outras lideranças religiosas, defende-se a “liberdade religiosa” contra o
autoritarismo evangélico. Para os setores históricos do protestantismo, defende-se a divisão
entre evangélicos “falsos” e “verdadeiros”. Para o candomblé, através da fala de lideranças
tradicionais, pede-se paz para poder continuar a cultuar os seus orixás e a sua ancestralidade.
A partir desse evento inicial, o termo “intolerância religiosa” rapidamente se populariza,
inclusive dentro dos terreiros, e o movimento é progressivamente ampliado e reforçado em
seus setores não-religiosos, destacando-se inicialmente a forte presença de organizações do
movimento negro, além da própria política partidária. Com a penetração desses grupos no
debate, passa a ser enfatizado no próprio interior dos terreiros um discurso que também tende
a deslocar o tema do conflito com os evangélicos do seu âmbito estritamente “religioso”. Tal
fato me possibilitou escutar da boca de membros mais novos do povo de santo frases como:
“Às vezes acho que não há nada de religioso na intolerância religiosa, ela é um movimento
político mesmo...”, ou ainda, “Intolerância religiosa, isso é outro nome pro racismo que
sempre existiu nessa cidade”. Juntamente com o avanço desse discurso, o candomblé passa a
dar voz a um novo tipo de liderança: jovens, principalmente ogãs e ekedis, vindos de terreiros
150
tradicionais, médios e pequenos, que tiveram problemas diretos ou não com invasões de
terreiro e agressões de evangélicos, mas que se assemelham pelo perfil combativo e
reivindicativo com que representam a sua comunidade.
a) “O inimigo que faltava”
Originalmente articulado por segmentos acadêmicos e envolvido com uma abordagem
mais intelectual da temática do conflito religioso, o MCIR passa a crescer para todos os lados,
de modo inclusive a perder um comando visível, as suas reivindicações infiltrando uma série
de organizações civis sem, no entanto, perder o caráter representativo ante um setor em
crescimento na nova configuração do candomblé baiano. Meus informantes do povo de santo
foram unânimes em destacar o grau de mobilização política inédito que a chegada do
neopentecostalismo na cidade foi capaz de gerar em torno dos terreiros, seja através do
anulamento de antigos conflitos existentes entre eles, seja através da atração de novos
membros e simpatizantes:
Agora com a IURD e as demais pentecostais parece que o diálogo entre a gente está aparecendo.
Os terreiros voltam a se organizar, e se no dia 20 de novembro você ainda estiver aqui em
Salvador está convidado, às 19hs, nós vamos estar fazendo uma reunião aqui no Oxumaré, e já
convidamos diversos terreiros outras organizações da sociedade civil, pessoas físicas, porque no
20 de novembro nós vamos fazer uma caminhada, saindo do Engenho Velho da Federação,
local onde tem a maior concentração de terreiros do Brasil, os mais antigos inclusive do Brasil,
essa região aqui, pra dar um abraço no dique. Os terreiros hoje atendem ao apelo, se juntam,
conversam, sentam, discutem sobre isso e vão sai de mãos dadas pra resolver isso. Eles estão
construindo uma resistência muito forte. Até aqueles que, num determinado momento, eram do
movimento negro e não eram de terreiro, não eram de candomblé, passaram a se identificar
como de candomblé. Muitos jovens também. Hoje tem gente inclusive que fala “Eu não sou de
terreiro não, mas eu defendo o terreiro porque não pode esses ataques”. Ta começando a
acontecer isso. A Universal tá atacando tanto que estão fazendo com que pessoas cheguem pros
terreiros somente para defendê-los, coisa que não acontecia. Nesse caso a gente tem até que
agradecer esses esforços que eles têm feito pra isso
Tendo a finalidade de corroborar esta tese, foi freqüente a textualização da presença do
neopentecostalismo na cidade como a chegada do “inimigo que faltava”, expressão que pude
escutar repetidas vezes ao longo das minhas entrevistas, com a finalidade de sublinhar o fato
dos ganhos relativos à batalha espiritual terem sido maiores do que os danos causados pelas
ações intolerante que dela resultaram:
Eu acho que esses evangélicos eram aquilo que tava faltando na vida dos terreiros realmente. A
gente tem que pensar que, às vezes, um inimigo pode ser algo muito bom. Em parte, como eu já
dizia antigamente, os evangélicos estão sendo ótimos pra muitos candomblés, sabe? Porque aqui
151
em casa eles só tentaram essa única vez [uma invasão], quando eles viram que o meu poder de
ação era bastante forte, eles recuaram. Eu acho que nunca mais, enquanto vida eu tiver, e outra
gestão, de outros filhos de santo vierem aqui pra dentro, eu acredito que nós não vamos ter. O
terreiro mudou. Mas daí foi quando veio a surgir vários outros segmentos que se formaram,
como o grupo da intolerância, o grupo 1, o grupo 2, como já denominam hoje, o grupo 3, um diz
que combate o ódio religioso, o outro diz que combate a intolerância, o outro é de defesa do
negro. Nesses tantos combates, quem está lucrando agora é o filho de santo, porque esse povo ta
ganhando organização nos seus terreiros, está fundando as suas sociedades civis, está podendo
colocar em suas portas, em suas janelas, aonde for, o nome da sua casa, sem ter medo de
qualquer repressão. Os tempos mudaram, saímos de uma época de ditadura, de opressão, de
repressão, e passamos pra uma época de liberdade. Mas nós só passamos a ter essa liberdade, eu
digo só de 2001 pra cá, sabe? Foi quando a gente iniciou um grito de “não quero mais”, “não
vou aceitar mais”, e “vou denunciar à imprensa”, “vou mostrar, vou mostrar ao povo”. E aí foi
que todo mundo embarcou nesse barco e “vamos botar junto” e todo mundo foi junto e deu
certo.
A declaração é do Pai Pequeno do “Terreiro do Beirú”, invadido por fiéis da Igreja
Universal da Graça em setembro de 2001, sob circunstâncias já descritas no cap. 2, que surge
a partir desses eventos como uma das lideranças ativas do movimento. No mesmo terreiro se
organiza, em maio de 2003, um dos marcos da aproximação recente entre os terreiros e o
Estado, espécie de feedback dessa estratégia de maior exposição política do povo de santo:
uma audiência pública da Assembléia Legislativa, iniciativa da Comissão para Assuntos da
Comunidade Afro-Descendente (Cecad), que se dá em meio a tambores e cantos para Ogum.
Ao pisar o solo sagrado do terreiro em busca de informações, os vereadores e deputados
estaduais davam a indicação de que a “intolerância religiosa” àquela época já se estabilizara
como um campo fértil para exercerem a sua função representativa.
Um pouco antes, em 20 de março de 2003, observa-se de forma ainda mais ostensiva os
resultados da pressão realizada pelo Movimento na esfera da política partidária. Em reposta a
um “Manifesto Contra a Intolerância Religiosa”, enviado ao presidente Lula pelo MCIR em
janeiro do mesmo ano, inteirando-o sobre os eventos de conflitos que se desenrolaram nos
últimos anos em Salvador, realiza-se uma sessão especial na Câmara dos Deputados em
homenagem às religiões afro-brasileiras, cujo mote foi a crítica e o debate acerca da
discriminação religiosa do país. A sessão, organizada pelo deputado Luís Alberto (PT-BA),
foi composta por organizações do movimento negro, pelo presidente da Fundação Palmares,
pelo ministro da cultura Gilberto Gil, deputados (a sua maioria da Bahia) e uma série de
lideranças do candomblé baiano
98
, inclusive do interior, todos quebrando o protocolo ao
preencher o ambiente com as suas vestes brancas tradicionais.
98
Cerca de 200 pessoas, segundo o jornal A Tarde de 21/03/2003.
152
No discurso dos deputados, observa-se um duplo enfoque. Por um lado, uma forte
tendência a se falar, através dos eventos ocorridos em Salvador, da nacionalidade, referindo-
se ao neopentecostalismo como um fenômeno atípico na cultura brasileira. Nas palavras do
próprio coordenador da sessão: “Na certeza de que o nosso País não fará parte da lista de
Estados que têm como característica a intolerância religiosa, provocada pela postura de falsos
religiosos, estes sim, agente, pela sua postura, em espalhar o ódio e a discórdia entre os nossos
povos”. Por outro, e retirando o caráter extraordinário desses eventos, houve também a
tendência a associá-los à repetição de um fenômeno estrutural da sociedade brasileira, o
racismo, tido como “uma realidade no Brasil, embora disfarçado em atos como a intolerância
contra os cultos afros”, nas palavras do deputado Alceu Colares (PDT).
Logo no final da sessão, o deputado Bispo Rodrigues (PL-RJ), da IURD, que assistira à
sessão sentado na primeira fila, pede a palavra e tenta uma estratégia conciliatória:
Fui pastor na Bahia durante cinco anos, durante os quais exerci meu direito constitucional, sem
agredir a religião de ninguém. Saí de lá amando aquela terra e deixando grandes amigos. Estou
aqui no Parlamento, ouvindo tudo que está sendo falado, para levar essa discussão às
comunidades de bispos e pastores evangélicos, a fim de que tudo que agride o direito de todos
seja revisto.
O discurso, que deságua inclusive na proposta de “consertas nossos erros”, é
respondido, por sua vez, por um protesto dos representantes do candomblé, que em conjunto
viram as costas ao pastor no momento em que ele começa a falar.
Apesar da boa repercussão nos poderes legislativo e executivo, observada nos dois
acontecimentos citados acima, pode-se dizer que o foco principal de mobilização do
Movimento, e o meio mais eficaz para a sua intenção de alterar efetivamente a inserção
pública dos neopentecostais na cidade, tem sido o poder judiciário. A ênfase na demanda por
“justiça”, feita pelo intermédio do idioma dos direitos, sempre aplicado a casos pontuais, tem
dado a tônica das mobilizações, como exemplifica o panfleto reproduzido a seguir:
153
O panfleto menciona as duas maiores derrotas da IURD desde a instalação da batalha
espiritual em solo baiano, ambas resultantes de processos acionados por praticantes de
candomblé e pelo Ministério Público. Não por acaso, ao longo das minhas entrevistas com as
novas lideranças do candomblé da cidade foi comum a referência a leis e artigos. Dentre os
mais citados, posso destacar: i) o artigo 5º, em seu parágrafo VI: “é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”; ii) a Lei 7716/89, de
combate ao racismo, modificada em maio de 97 de modo a incluir a “intolerância religiosa”
como prática discriminatória em seu artigo primeiro: “Serão punidos, na forma desta Lei, os
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
154
nacional”
99
; além iii) do Artigo 275, da Constituição Estadual, que define que é dever do
Estado “preservar e garantir a integridade, a respeitabilidade e a permanência dos valores da
religião afro-brasileira”. A partir do sucesso desses contra-ataques jurídicos, observa-se a
visível rotinização de uma abordagem jurídica da realidade por parte das comunidades de
terreiro de Salvador.
Tendo como objetivo reforçar a proteção específica fornecida às religiões de matrizes
africanas pela Constituição Estadual da Bahia, é criada pelo Ministério Público Estadual, em
1997, agindo no interior da 2ª Promotoria de Justiça e da Cidadania, um departamento
especial com a função de apurar casos de intolerância religiosa
100
. Os dois casos citados no
panfleto passaram pela alçada da Promotoria da Cidadania, e podem ser indicados, juntos com
a tentativa recente de proibição do livro “Orixás, caboclos e guias”, como as duas grandes
causas que contaram com a participação do órgão desde a sua fundação.
O processo contra o programa televisivo “Ponto de Luz”, da IURD, o mesmo utilizado
como material etnográfico no capítulo 2, foi aberto em abril de 2003, e teve como réus o
bispo Sérgio Correa e os pastores Gilberto Pereira e Aurélio Trindade. Acusados de infligir o
artigo 20 da lei 7716/89
101
, os responsáveis pelo programa foram condenados, recebendo
como sanção a mudança do seu horário de 13 horas para o fim da noite. Por sua vez, o
segundo caso descrito pelo panfleto contou com uma ajuda parcial da Promotoria da
Cidadania, através do processo aberto em janeiro de 2001 contra Eliane Araújo e André
Moura, integrantes da Igreja Assembléia de Deus, por ingressar sem permissão no terreiro
Axé Abassá de Ogum, da ialorixá Gildásia dos Santos, em agosto de 1999. Mesmo sob
protestos de “mãe Gilda”, que passou mal após o ocorrido, os fiéis invadiram uma cerimônia,
declarando que a casa pertencia ao demônio e desafiando os presentes que aquele lugar iria
cair e que lá seria erguido um templo evangélico. Não satisfeitos, os mesmos invasores
retornaram e repetiram o procedimento no fim de semana seguinte, agora com a finalidade de
converter a mãe de santo. O processo ainda está em andamento.
99
O texto original era: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou
preconceito de raça ou de cor”.
100
O órgão, único no Brasil, surge a partir de um primeiro caso, envolvendo o Museu Estácio de Lima, de
criminalística, que reunia peças litúrgicas do candomblé apreendidas pela polícia junto a objetos históricos
vinculados ao crime, como armas, drogas, fotos e fichas de criminosos, etc. Na visão da Promotoria, tal fato
tendia a vincular de modo perigoso, para os olhos dos espectadores, a religião dos orixás ao crime. Por fim,
através de uma série de reuniões com a diretoria do museu, ficou acordado (sem a necessidade de abertura de
processo) que as peças seriam movidas para um anexo do Museu da Cidade.
101
“Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional.”
155
Os desentendimentos entre “mãe Gilda” e “os evangélicos” ainda continuaram,
implicando na maior derrota jurídica dos segundos desde o início da batalha espiritual em
Salvados, dessa vez fruto da iniciativa pessoal da própria ialorixá e da sua filha, Jaciara
Ribeiro dos Santos. O processo, desta vez, teve como tema de acusação danos morais e uso
indevido da imagem da ialorixá por parte da Igreja Universal e, como narra Jaciara, remete a
fatos ocorridos em 1992:
Mãe Gilda, que é minha mãe biológica, em 1992 ela saiu na revista Veja, fotografada em uma
manifestação pelo impeachment do Collor, Na época ela apareceu como a ialorixá que tava
querendo que o Brasil melhorasse, né? Fazendo um ato público para tirar as coisas ruins e junto
ir o presidente Collor. Depois de 7 anos, a IURD em São Paulo, a editora da Universal, pegou a
foto dela e botou no jornal deles. O jornal dizia: “Macumbeiros e charlatões lesam o bolso e a
vida de clientes”. E eu passando nas ruas daqui de Itapoã, peguei o jornal e vi e disse: “se não
fosse o povo de candomblé eles não teriam o que falar”. Aí quando eu abri, olha a foto da minha
mãe! Enlouqueci né? Foi um choque tremendo, que eu cheguei aqui e não deu mais tempo pra
preparar a minha mãe. Já tava todo mundo aqui com o jornal “Mãe Gilda, a senhora com uma
tarja preta, aparecendo os lábios!”. [Referiam-se à traja preta que teria a finalidade de esconder
a identidade da ialorixá]. Quer dizer, a linguagem deles né? O povo quando não tem um estudo
termina visualizando de outra forma. Mas foi chocante, eu perdi assim a razão, fui na Igreja
Universal, peguei o pastor pelo paletó assim, joguei ele lá e peguei cinco jornais. Ele falou que
ia me processar, que aquela não era a minha mãe não
.
O impacto desse acontecimento na vida da sacerdotisa foi traumático, tanto social
quanto espiritualmente, culminando em sua morte no dia 21 de janeiro de 2000, aos 65 anos,
um dia após ter assinado a procuração para iniciar a ação contra a IURD. Jaciara, que herdou
tanto a direção espiritual do terreiro quanto a ação judicial, defende a existência de um
vínculo direto, médico e religioso, entre a atitude da IURD e a morte da sua mãe:
Ela chorou muito... “Minha filha eu não quero morrer com essa tarja no rosto. Por que Ogum
deixou isso acontecer?”. É a questão da religião, eu senti que a minha mãe morreu por isso, se
sentiu abandonada pelo santo. Antes de eu entrar com o processo, eu fui procurar os médicos
dela. A minha mãe tem um plano de seguro da aeronáutica, então desde que ela teve o primeiro
filho, até o último dia da vida dela ela foi acompanhada pelos médicos. Para não passar por
ridículo também, né? Pois se ela já tivesse com um problema agravado eu não ia nem processar.
Mas eu tenho plena certeza.
Destaca ainda que as resistências para que ela tomasse alguma atitude contra a IURD
vieram de todos os lados:
O cotidiano dela complicou, porque as pessoas ficaram com medo. Os próprios clientes e filhos
de santo. “Não, não vá não, que eles vão terminar espancando a gente também!”. As igrejas
começaram a fazer culto aqui na frente, rumaram várias pedras no terreiro, depois que minha
mãe já tinha procurado advogado comigo, num domingo, os mesmos que vieram aqui e
rumaram a bíblia na cabeça dela [refere-se à invasão de 1999] voltaram me procurando. “Cadê
156
aquela sua filha?”. Ela ligou pro meu celular super preocupada. Aí pronto, minha mãe foi
ficando deprimida, deprimida, não tocou mais candomblé pra Iansã em dezembro. Quando foi
em janeiro, dia 21, ela assinou a procuração no dia 20 e no dia 21 ela teve um infarto
fulminante. Saiu bem, e voltou dentro de um caixão. Aí pra mim como filha,que já tava há
quatro meses correndo atrás disso foi chocante, né? Eu fiquei no lugar dela, mas com uma
questão de dar a minha vida por isso, né?
A atual ialorixá do terreiro Axé Abassá de Ogum me narrou também o processo de
convencimento da sua mãe, representante de um tipo mais tradicional de liderança do
candomblé:
Ela não entendia nada, que existia lei de resposta, que a imagem dela não podia ser usada. Foi
difícil até pra ela aceitar. Uma que a mãe pequena da casa, os filhos de santo que já tinham a
cabeça mais antiga, junto com ela, “não, isso vai ser problema pro terreiro, eles vão exterminar,
eles são exterminadores”. Ela passou mal nessa situação, de escolher ou não o caminho, se
poderia ou não processar a IURD. Ela ficou um pouco confusa, e eu “Não minha mãe, a gente
vai conseguir, os orixás estão com a gente”, mas isso deixou ela muito triste. Ela conseguiu
através do orixá. Ela arriou comida pra Ogum e falou “Ô meu pai Ogum, com a sua espada
corte tudo isso dentro do meu coração”. Mas Ogum não pôde cortar tudo, porque ela teve um
enfarte fulminante. A nossa religião tem a ver com o mágico, com a fé, mas a gente tem a nossa
vida, a gente tem o que a gente vai passar, tem o destino tb, né? Ela conversava comigo, e no
dia da morte dela ela amanheceu o dia falando sobre isso, porque Ogum deixou acontecer isso
com ela. Por que Deus fez isso comigo? Ela pede a Orum, né? Minha mãe era uma ialorixá
muito integra à religião dela, sabe, ela respeitava demais, tudo dela era muito certo.
A fala destaca não só a ocorrência de um conflito de gerações dentro do terreiro no que
se refere à avaliação da tomada de decisão sobre o caso, mas também um certo limite interno
encontrado pela ré no campo da “religião”, que acaba por empurrar a sua ação para o campo
dos direitos. Afinal de contas: “Ogum não pôde (ou não pode?) cortar tudo”. Jaciara mesma
destaca o caráter não ordinário desta atitude reivindicativa por parte de um terreiro de
candomblé, fato devido, segundo ela, à sua própria presença à frente da causa, defendendo
assim as particularidades do seu perfil dentre o povo de santo:
Se fosse uma casa que não tivesse uma filha como eu, isso ficava esquecido. Nem percebiam
isso. Como é que um povo de candomblé vai ler o jornal da IURD? Não lê, eu li porque eu sou
polêmica, eu já tinha isso em mim, de entender essa coisa de racismo, até porque eu morei em
Curitiba, cidade completamente capitalista, racista, ucraniana, alemã, italiana, e eu ter que
esconder que eu era ialorixá. Eu trabalhava na FEBEM, numa fazenda com 80 meninos de rua, e
eu não podia dizer que eu era de candomblé, porque a presidente de lá era evangélica. Um dia
eu dei entrevista e falei, “eu sou do candomblé”, que eu não era ialorixá. Aí todo mundo deixou
de ir no meu apartamento, na minha casa. Lá eu era uma “baiana bruxa”, então eu já venho com
um pouco de intolerância vivida. Quando eu vejo na rua o tal jornal e que era a foto de mãe, aí
eu caí. Eu fiquei louca. Como ela ia aceitar isso? Porque minha mãe era uma mulher de 65 anos,
já viveu todo tipo de preconceito, mas que não sabia nem o que era intolerância religiosa, é
complicado.
157
Percebe-se que Jaciara justifica o seu perfil combativo no fato de ter sido fortemente
estigmatizada ao longo da sua vivência em Curitiba. No entanto, é interessante notar que não
é exatamente essa experiência que a diferencia da sua mãe, já que logo a seguir ela mesma
declara que mãe Gilda já havia sofrido uma série de preconceitos (algo corriqueiro para a
maioria dos praticantes de candomblé no Brasil). Destaca, na verdade, que a sua mãe
desconhecia, representante que era de um estilo antigo e tradicionalista de candomblé, a noção
de “intolerância religiosa” (que conteria aspas na própria fala de Jaciara), categoria chave no
atual processo de visibilização jurídica dessas atitudes preconceituosas, a mesma que em sua
fala modernizante é articulada de imediato ao tema do racismo.
Jaciara também me informou sobre um outro tipo de resistência à continuação do
processo, desta vez externo à sociabilidade do terreiro
102
:
Pra mim isso virou uma questão de honra, inclusive quando eu processei a IURD depois da
morte da minha mãe, que saiu no jornal e tudo eu fui ameaçada de morte várias vezes por
telefone. Ligavam e diziam “eu to indo aí agora, cortar a sua cabeça!”. Eu tinha que dormir em
hotel. Foi horrível, bateram no meu carro, deu perda total. Eu não queria botar na cabeça que foi
o povo da igreja, mas foi um evangélico, ele teve que pagar. Bateram no meu carro também no
Pelourinho. Arranharam o meu outro carro todo. Deram um tiro uma vez aqui, no telhado, bateu
na geladeira e eu tive que dormir em hotel. Já paguei pessoas pra dormir aqui no terreiro pra me
fazer proteção.
Tais conflitos diretos com fiéis evangélicos, algumas vezes resultando, de acordo com a
minha informante, em atos de violência explícita, foram também vividos por Jaciara no
próprio seio da sua família:
Eu também tive um problema sério dentro da minha casa, dentro da minha família, porque o
meu irmão, ela passou a ser evangélico, e ele não vem mais aqui ver meu pai, nem entra aqui na
minha casa. Outro dia eu tava aqui sem carro, meu pai passou mal, e ele não quis emprestar o
carro porque eu era mãe-de-santo. [Pergunto: E no caso da sua mãe, eles apoiaram?]. Aí eu tive
102
Uma outra pressão interna ao terreiro, e dessa vez de cunho estritamente religioso, foi a sucessão da casa,
conquistada por Jaciara não sem muita insistência, como ela mesma destaca, projetando o seu caráter combativo
para o próprio âmbito espiritual: “Tanto que eu, por estar aqui no Abassá de Ogum, por ser jovem, eu sou
obrigada a aprender a conviver dessa forma. As filhas de Ogum já são mulheres muito sérias. Minha mãe era
uma mulher muito tradicional. E eu sou filha de Oxum, e eu ouvi de gente mais antiga que pra ser sucessora da
casa tinha que ter o mesmo orixá, agora só que muitas casas não têm isso. São seis filhos, e eu sempre tive ao
lado da minha mãe, o orixá quis dessa forma. Eu sou filha de Oxum, é água né, Ogum é ferro. Um pai de santo
até falou: ‘Olha Jaciara, essa luta vai ser difícil pra você, que é filha de Oxum, a água vai estar estiando o ferro
de Ogum’. Eu digo: ‘Então Ogum vai ter que estar comigo, eu sou de Oxum e Oxóssi, então eu vou ter que estar
chamando Oxóssi mais pra perto de mim nessa luta, com Xangô’. E eu acredito que nós não temos nada escrito,
pra dizer é certo isso, é certo aquilo. Cada casa tem um jeito, eu acho que cada terreiro é uma família. Na minha
casa eu fui criado de um jeito, você de outro, a mesma coisa é o candomblé. Um terreiro é feito de vários
caminhos que a gente anda, com um balaio na mão, com o perfume na outra, mas se você não tiver o balaio, tiver
a cuia, tiver a moringa, você não vai chegar ao orixá.”
158
que fazer muito ebó, né? Acredito que o orixá mudou isso, pra eles me darem essa procuração.
Eu tive que dizer que não tava brigando com a IURD, eu tive que forjar uma situação, dizer que
era pela questão do terreiro, que a imagem ela foi maculada, tive que ter um texto que não era
meu, eu tive que representar, né? Eu nunca represento na minha vida, mas pra conseguir isso eu
tive que representar. Um dos meus irmãos não estava aqui, ele mora em Foz, o outro mora em
Curitiba, e um aqui em Itapoã. São 3, e são evangélicos. Com 2 eu me dou até bem, mas um tem
dois anos que eu não vejo, ele passa e vira a cara pra mim. É o que mora aqui, no outro lado da
rua. Eu quando desço, eu não passo na rua dele pra não passar esse vexame.
A esse sem número de dificuldades já descritas, pressão evangélica, má recepção dos
setores mais antigos do terreiro ao seu estilo “polêmico”, conflito familiar, vem a se somar
ainda a falta de apoio institucional dos órgãos representativos do candomblé, que tiveram de
início uma postura reticente diante da envergadura do inimigo em questão:
Aí nós andamos, outubro, novembro, dezembro, sem conseguir apoio nenhum de advogado.
Tanto que a Federação [dos Cultos Afro] disse que era um caldo muito grosso, que eles não iam
mexer na Universal. Fui na Federação dos Cultos Afro com a minha mãe viva ainda. Isso em
novembro. Aí em dezembro, ela não conseguiu mais fazer o ritual da casa, do terreiro. Porque a
comunidade de outras religiões e do terreiro começou a pressionar, né? Aí eu fui no Ministério
Público.
O apoio do Ministério Público foi acrescido pela ONG ecumênica Koinonia, e pela
Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR), que disponibilizaram a
assessoria jurídica para a abertura do processo, em janeiro de 2000. A partir de então, a causa
é progressivamente divulgada, e passa a receber apoio de instituições a princípio alheias ao
problema, como a imprensa e setores do movimento negro. Vindo a tornar-se o ícone do
Movimento Contra a Intolerância Religiosa, mãe Gilda tem o dia da sua morte instituído pela
Câmara dos Vereadores em 2004 como o “Dia Municipal de Combate à Intolerância
Religiosa”, demonstrando que a essa época o termo já se estabilizara enquanto categoria
política, inclusive dentre o povo de santo, fazendo-se presente no tradicional terreiro Axé Opó
Afonjá, em 2003, como principal tema de debate do Alaiandê Xirê daquele ano, a Semana da
Herança Africana
103
.
Por sua vez, Jaciara, antes uma guerreira solitária, torna-se, nesse mesmo período, uma
referência forte ante a opinião pública, representando um tipo ainda incomum de mãe de santo
politizada (ela tem a sua participação na viagem a Brasília destacada pela mídia local). A
103
A reunião contou com a presença do bispo Gilio Felício, responsável pela implantação da Pastoral Afro na
Bahia, e que viria, naquele ano, a assumir a Diocese de Bagé. A despedida de bispo Felício da cidade ainda
resultou em um encontro com representantes de 20 terreiros, cuja tônica continuou sendo “uma manifestação de
repúdio aos segmentos das igrejas evangélicas que têm criticado o sincretismo religioso na Bahia” (“Afros e
católicos unidos contra a intolerância”. A Tarde, 16/01/03), que conteve a negritude como um eixo inter-
religioso e o racismo como principal categoria de acusação.
159
processual visibilidade da “intolerância religiosa” em Salvador resulta numa disparada nos
processos contra igrejas evangélicas
104
, além da entrada progressiva dos terreiros nas fileiras
do movimento, representados em grande parte pelos seus filhos de santo intelectuais (muito
comuns nas casas mais tradicionais), mas também, e em sua maioria, por uma geração jovem
que, assim como Jaciara, adquire cada vez mais prestígio no interior das suas comunidades.
Em janeiro de 2004, o processo contra a IURD é ganho em primeira instância, quando a
igreja e a sua gráfica (Gráfica Universal) são condenadas a pagar à família de Mãe Gilda uma
indenização de 1.372.000 reais, valor correspondente à tiragem do jornal Folha Universal, que
havia estampado a foto da ialorixá em sua capa em 1999. No mesmo ano, e no clima dos
acontecimentos, dá-se um outro evento central: uma passeata do povo de santo, que sai às
ruas do bairro do Engenho Velho da Federação numa caminhada organizada em torno da
defesa da religião contra os seus mais novos opositores. A imprensa não tardou em destacar o
caráter inédito da iniciativa: “esta é a primeira vez que os praticantes de candomblé vão às
ruas para defender abertamente o direito à religião herdada dos africanos de várias nações”
105
. O tom jurídico da manifestação é reforçado pela foto do jornal, onde um conjunto de
crianças, representando o futuro da religião, porta um cartaz defendendo o “direito de culto”
aos orixás.
Outra importante manifestação política que demonstra o sucesso progressivo dessas
estratégias “cidadãs” de mobilização dentre o candomblé baiano, acontece em maio de 2005,
organizada por Jaciara tendo a finalidade de cobrar rapidez do Tribunal de Justiça no
julgamento do recurso da IURD. Nesse momento, já se percebe uma forte diferença no tipo de
inserção da jovem ialorixá no mundo do candomblé. Antes solitária, “polêmica”,
acompanhada apenas por alguns conhecidos em suas manifestações públicas, Jaciara agora é
vista dentre ialorixás e babalorixás de grandes terreiros da cidade, como o Bogum, Tumba
Juçara, Mansu Dandalunda e Ilê Axé Omin J Oba. Denominado “Comissão do Axé”, o grupo,
apoiado por mais de uma centena de manifestantes, levava uma série de faixas e cartazes
acusando o Estado de racismo e discriminação. Numa reportagem relatando o evento
106
,
Jaciara defende a sua dimensão espiritual: “Eu não viso essa manifestação nossa pelo
104
Dentre esses casos, posso citar o caso do babalorixá Anselmo Santos, do terreiro Onzó Ngunzo, primeiro a
acionar a IURD, em outubro de 2002, o processo do Terreiro do Beirú contra Igreja Internacional da Graça, em
janeiro de 2003, e o da comerciante de artigos de umbanda Antônia Natividade, da loja Taw tal Amin, que acusa
a IURD como vítima de coação.
105
“Povo de santo vai às ruas pedir respeito”. A Tarde, 24/12/2004.
106
“Candomblé pede justice”. A Tarde, 05/05/2005.
160
dinheiro, porque ele não vai trazer minha mãe de volta. É pelo mundo do candomblé, essa luta
tem esfera espiritual”. Ainda lembra que aquele dia era uma quarta-feira, dia de Xangô, orixá
mais intimamente associado ao tema da justiça no candomblé baiano
107
.
b) Morte trágica/ Morte utópica: o caso de Mãe Gilda
Assim, através da presença “intolerante” do inimigo, o candomblé de Salvador vai
assumindo uma unidade e uma capacidade de organização e de mobilização inéditos em sua
história de cismas e conflitos internos. Unificada após a chegada do inimigo, propositor
(mesmo que negativamente) de uma referência utópica para a sua inserção pública, a
comunidade de candomblé acaba por vislumbrar na morte de Mãe Gilda uma espécie de
evento redentor, função gramatical bastante próxima àquela das religiões de salvação.
107
O processo movido por Jaciara é ganho em segunda instância em 06/07/2005, a sanção indenizatória caindo
para 960.000 reais, divididos entre a igreja e a gráfica, mas sendo acrescida pela obrigação da sentença ser
publicada em duas edições consecutivas da Folha Universal. A IURD promete ainda recorrer à última instância.
161
É o que se percebe de forma quase explícita no panfleto acima, produzido e distribuído
pelo MCIR tendo em vista divulgar uma celebração pluri-religiosa que seria realizada na
UFBA, em 2004. Na sua parte anterior, defende-se o encontro como parte de um “momento
de pensarmos em nossos preconceitos, as nossas formas de julgar e excluir o outro; de
apreciar as diferentes tradições religiosas que marcam a cultura da nossa cidade e de
afirmarmos o princípio constitucional que determina que é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de cultos e suas liturgias”. O panfleto é concluído com
uma interessante equação sintagmática: “Jesus Cristo, Mahatma Gandhi, Mãe Gilda de Ogum.
Todos eles foram vítimas da incompreensão/intolerância. E todos eles buscavam a paz”.
A contigüidade entre a figura de mãe Gilda e a de Cristo indica a corroboração nativa da
função utópica que entendo ter sido desencadeada pela morte da ialorixá, uma morte que,
assim como a do Cristo, teria se instituído como um centro agregador e prescritivo, bastante
162
distinto (um salto paradigmático?) do lugar convencional da morte no candomblé,
francamente desagregadora. A própria Jaciara destaca as dificuldades que passou para manter
o terreiro de sua mãe funcionando logo após a sua morte, dada a imediata debandada dos seus
filhos de santo, temerosos ante os acontecimentos:
Os filhos da casa, quando uma ialorixá morre, não é todo mundo que está preparado. O povo de
candomblé não está preparado pra esse lado... o natural e o sobrenatural, a passagem pro orum,
a morte. É caso certo, morreu uma ialorixá todo mundo já tem que tirar a mão do eledá. Então
as pessoas ficaram muito assim, nervosas com o que aconteceu, além de acharem que a igreja
poderia pressionar mais ainda e eu perdi toda uma população que fazia parte da comunidade. As
pessoas foram pra outro terreiro, hoje é que eu to mudando, revitalizando isso com uma dor
muito grande. Hoje mesmo faleceu mãe Olga do Alaketu, e as pessoas temem, porque uma
ialorixá tão antiga, com tantos segredos ... e quando morre, o espírito é chamado novamente, pra
ser cultuado junto com os ojés, e as mulheres não têm muito contato com isso, quem é
preparado pra isso são os homens. Geralmente as casas de candomblé têm mais mulheres,
quando o terreiro é de uma ialorixá são mais mulheres do que homens. As mulheres ficam mais
sensíveis a esse medo. Quando a casa tem mais homens, ogãs, ojés, é diferente, eles conseguem
conduzir tudo isso um pouco melhor. É nesse sentido que o povo fica meio confuso com a
questão da morte, se fala que vai ter axexê, dizem que é uma cerimônia muito forte.
As incompatibilidades internas do candomblé com as questões suscitadas pela morte
foram destacadas por grande parte dos seus estudiosos clássicos (Bastide 2001, Verger 1999,
19997; Santos 1986). Tal fato diferiria frontalmente a sua lógica das chamadas “religiões de
salvação” (Weber 2000), de base ascética, que teriam o mundo como um meio e, portanto, a
morte como um movimento de libertação ou, pelo menos, como um ponto externo de
avaliação, prescrição e julgamento da vida. Diferente dessas textualidades religiosas
construídas sob a perspectiva da morte, o candomblé seria, corroborando o fundamento
trágico da sua visão de mundo, marcadamente pluralista e especulativo na tessitura de
vínculos significativos e existenciais com o contraditório campo dos acontecimentos (a
“vida”, no sentido nietzscheano, o que inclui a morte). As suas divindades mesmas, os orixás,
são descritos pela mitologia como seres temerosos diante da morte, à exceção de Iansã e Exu,
os únicos que participam da cerimônia fúnebre do candomblé, o axexê, definido por Bastide
(2001) como uma cerimônia de expulsão do ori, a força vital, antes assentado pela iniciação e
alimentado pelos circuitos rituais. Após a morte, o que era ori se torna egum, assentado num
espaço distinto dos ilê-orixá, a “casa de balé”, onde é cultuado com uma série de cuidados
especiais.
Os eguns causam temor na comunidade do candomblé, principalmente por nela
ocuparem uma posição ambígua. Por um lado, a morte está associada a um elemento fundante
163
do culto, a ancestralidade, por outro, os eguns são dotados de um poder de difícil controle
que, como afirmou Jaciara, foge frequentemente do repertório de conhecimentos litúrgicos
dos filhos e filhas de santo das casas, talvez pelas perdas da tradição em seu processo de
diáspora. Assim, os eguns são cultuados, na Bahia, apenas na Ilha de Itaparica, onde reside
mestre Didi, famoso babaojé, sacerdote encarregado pelos cultos dos mortos. No resto dos
terreiros, os eguns são apenas afastados, compartilhando com Exu a oferenda do padê, que
teria a finalidade de afastar a sua força imprevisível e assustadora de modo a propiciar a
chegada dos orixás.
Por isso tudo, no candomblé, morre-se sozinho, sem o orixá: “Quando a morte se
aproxima do indivíduo, o orixá a que pertence a cabeça foge espavorido, pois os deuses
temem Icu, a selvagem ceifadora de homens” (Bastide 2001: 65). Tal solidão tenderia a
empurrar os praticantes da religião para a justaposição dos seus valores e sistema simbólico
com os do catolicismo, religião que teria na morte um ponto de conforto, de encontro
definitivo com o divino. Jaciara, ao longo das nossas conversas, apontou alguns sinais,
sentidos por ela e por sua mãe, que sinalizavam o fim próximo de Mãe Gilda, incluindo aí a
fuga do seu santo de cabeça:
Vou lhe dizer bem uma coisa que aconteceu. Eu morava aqui no terreiro, mas tinha um salão de
beleza em Lauro de Freitas. Eu não vinha pra casa na noite que ia anteceder a morte da minha
mãe. Quando eu fui no açougue, comprar algumas coisas eu senti um buraco abrir assim, um
buraco que eu não vi, mas senti que era algo negro. Eu ia caindo, aí eu passei mal pensei: “Pô, o
que foi isso...”. Eu não quis ir dormir lá, na casa de uma irmã de santo minha. Vim pra casa e
falei com a minha mãe, bati na porta “Agô ia!”, que a gente pede agô [a bênção] minha mãe. E
ela não olhava nos meus olhos. “Oxente minha mãe, tem alguma coisa?”. Aí meu irmão ia
chegar de Foz, ele tinha 5 anos que não via minha mãe, chegou uma hora da manhã e ela ficou o
tempo todo assim, acordada ... Eu tenho certeza que teve um aviso, porque o povo de
candomblé tem isso. E quando foi no ano novo, geralmente a ialorixá no ano novo ela abre a
porta do quarto do santo, o orixá vem, desde menina, desde que eu me entendo por gente, de 7
até a minha idade. Antes da minha mãe falecer, o Ogum dela vinha pra saber qual era o orixá
que ia reinar naquele momento e no ano da morte dela o orixá não veio. Ela passou mal, falou
“Minha filha, eu não consigo sentir meus pés no chão!”. Ela ficou do dia primeiro até o dia 21
dizendo que tava andando fora do chão, ela falava muito isso... Aí eu dizia: “Pô minha mãe,
deve ser porque a senhora não deu festa de Iansã”. Mas ela não tava com nada de saúde pra eu
levar ela pro hospital, e ela saiu às 9 da manhã e teve um enfarte fulminante. Então foi isso que
aconteceu, ela saiu e foi despreparada.
Se, sob a ótica de uma textualidade tradicional, observamos na fala acima o encontro
trágico e solitário da ialorixá com a sua morte, a apropriação a posteriori desses eventos sob
uma ótica utópica permitiu a Jaciara e ao MCIR, como um todo, o desencadeamento de um
telos coletivo, ou, nas palavras da sua filha, de uma “missão”: “Depois dessas dificuldades
164
todas, eu comecei a perceber que a morte da minha mãe tinha um sentido. Ela colocou uma
missão para mim e pro candomblé de Salvador: tomar as rédeas do seu destino”.
A frase sintetiza a natureza modernizante deste telos encarnado na morte da ialorixá,
que, inclusive, demonstra ter uma série de pontos de contato com aquele extraído por mim do
rito de cura da IURD, no primeiro capítulo, principalmente no que se refere à prescrição de
um acesso à liberdade através do controle autônomo e autêntico de si.
c) Fragmentos de um discurso utópico
É essa dimensão “cidadã” que se vê enfatizada de modo exemplar em vários momentos
da fala de Jaciara, herdeira mais direta da “missão” acima apontada. Mostrou-se recorrente em
nossas conversas a idéia da tomada de “posse de si” do candomblé, realizada através de uma
postura marcadamente pública e ostensivamente política, movimento frequentemente atrelado
à postulação da necessidade de se “abrir” a religião, retirando-a do campo dos segredos e dos
mistérios, que teriam gerado uma comunidade desagregada e pouco solidária:
O candomblé tem que se abrir para ser respeitado. Eu sei disso por que hoje eu sou uma pessoa
totalmente diferente do que antes da minha mãe falecer. Eu mudei completamente a minha
visão, até porque eu aprendi uma vivência nova com o que minha mãe passou aqui. A invasão
do terreiro, a imagem dela, a falta de amor da própria religião com si própria, que demorou a se
unir na causa. Percebi que o candomblé é sempre falado pelos outros, e que ele deveria assumir
a sua voz, sabe?
Com o avanço dessa dimensão discursiva, observa-se a ampliação do já referido “efeito
mimético” da IURD no campo religioso brasileiro que, nesse caso, passa a abranger, mesmo
que negativamente, até o seu principal inimigo. Um dos fenômenos que expressa a ação de tal
efeito é o crescente desejo de exposição pública da religião, assumido assim pela fala de
Jaciara:
Se A IURD falasse: “você quer 1.372.000 ou quer a mídia na sua mão?”. Eu preferia a mídia, eu
preferia ir pra Faustão, pra Gugu, botar foto da minha mãe em todos os outdoors: “Mãe Gilda
sem tarja preta”. Isso é que vai trazer a dignidade de volta ao povo de candomblé. Dinheiro,
dinheiro a gente faz, a IURD, se ela me desse o templo dela lá do Iguatemi, pra eu colocar lá
“Igreja Universal Abassá de Ogum”, aí sim. Era uma posse bem feita, entendeu?
Jaciara segue, descrevendo uma experiência protagonizada por ela na área da
comunicação: um programa veiculado por uma rádio comunitária do seu bairro, Itapoã, que
165
ela passa a apresentar no crescendo da divulgação da causa da intolerância religiosa na cidade,
mas que acaba sendo fechado por uma série de pressões dos setores evangélicos:
Meu programa de rádio era polêmico, porque eu dava bom dia em iorubá e tudo mais. Eu
consegui um grande número de ouvintes, de ligar na minha casa, de vim trazer presente pra
mim, eu já tava me sentindo a tal... Eu chegava em um restaurante e já queriam pagar pra mim,
porque eu era a ialorixá que fazia o programa. Mas é isso, o candomblé faz festas belíssimas,
cura as pessoas, tira as pessoas da droga, muda caminhos de mulheres que são espancadas, que
o marido abandona. A ialorixá consegue conduzir as pessoas para uma vida melhor. E isso a
gente não pode passar na televisão, a gente não pode mostrar isso como uma “glória”, na
linguagem deles. A gente não tem esse espaço. Tanto que, pra mim, estar na rádio foi ótimo,
poder mostrar essas coisas.
Como contraparte desse desejo, observa-se a conseqüente crítica ao modo tradicional
de se exercer o poder nos terreiros, encenado de modo reverente, distanciado e, muitas vezes,
silencioso. Comentando uma tentativa de encontrar-se com Mãe Estella, do tradicional
terreiro do Opó Afonjá, logo após o falecimento da sua mãe, Jaciara me confidenciou:
Ela [Mãe Estella] é muito tradicional. Eu tive lá no candomblé dela e não tive acesso nenhum. A
gente fica sem ter acesso. Eu pensei até por ela ser essa matriarca, tão famosa, que seria
importante eu estar em contato, mas ainda não tive abertura nenhuma. Falar da minha dor, ter
até o colo de uma iá, entende? É uma coisa muito fechada, parecendo que tinha seguranças em
volta. Isso até me chocou...
Além desse caso particular, Jaciara ainda aponta de modo geral as dificuldades impostas
à sua relação com os terreiros mais tradicionais durante as atividades do MCIR. Sublinhando
o corte de gerações que a separaria das ialorixás mais clássicas, ela declara:
Eu já visitei terreiros grandes, que eu pensei que eu fosse ser tratada de uma forma: “Ah! Você é
a ialorixá que processou a IURD!”. Mas as pessoas acham que “Ah, você ta se expondo muito,
você tem que falar menos, cuidar mais da nossa religião”. Tudo que eu tô falando aqui com
você, se fosse uma ialorixá mais antiga ela não falava nem certas palavras, ela não falava de
egun, ela não falava de axexê. Eu falei de algumas coisas que a gente só fala e faz com quem é
de dentro do candomblé.
Observa-se nesses encontros o choque entre duas configurações específicas do
candomblé em sua relação com a esfera pública: uma centrípeta, que entende que preservar a
religião implica em manter as suas questões no interior dos limites do terreiro, e uma
centrífuga, moderna, que teria na exposição pública um meio eficaz de reivindicação de
direitos, o seu modo particular de “proteger” a religião.
166
Outra importante área de abrangência deste mimetismo do candomblé em relação à
IURD seria a política partidária, área tida como de inserção fundamental para as novas
lideranças como Jaciara:
Então eu acho que a gente precisaria um pouco disso, né? De pessoas ligadas à política mesmo,
né? Aqui em Salvador, a gente tem um grande problema, a gente não tem nenhuma
representação da religião de matriz africana na câmara. Você vai lá e vê 500 pastores, todos
evangélicos, eles vão fazer tudo pra igreja deles. Agora, procura uma ialorixá, ou ogã, ou ekedi
lá, vestida. Não adianta também você ser do candomblé só de noite, botar o fio de contas,
assumir isso. Então eu me preocupo com esse lado, os evangélicos acabam conseguindo abafar
o povo de candomblé por causa da presença deles na política. Isso que aconteceu aqui no
terreiro, acontece em vários outros terreiros, e a pessoa não sabe a quem procurar. O povo de
candomblé é muito organizado, da porta para dentro, pra fazer festas belíssimas, a gente tinha
que usar isso também em outras áreas.
Jaciara segue, revelando inclusive a sua intenção de candidatar-se futuramente a algum
cargo eletivo:
Eu virei a ialorixá polêmica dentro de Salvador, porque eu sou jovem tenho uma carinha ainda
de menina. E as pessoas ficam meio assim, e eu chego junto mesmo. Pego o microfone... Acho
que uma coisa é o fundamento, é você fazer o axé no terreiro, outra coisa é você ser política, e
eu consegui conduzir vários terreiros de candomblé em meu favor, no programa de rádio. Eu
vou acabar me candidatando, algum dia, eu acho isso importante, uma ialorixá. Se não fosse eu
seria outra, a gente precisa ter esse respeito, acho que tá faltando acontecer isso na Bahia
também. Não temos representações do candomblé na câmara. Não temos pessoas que realmente
queiram mudar essa história, e é difícil.
No registro do discurso da “libertação”, a ialorixá associa a postura retraída do
candomblé mais tradicional ao fenômeno da escravidão, usando do sincretismo como um
exemplo desta maneira subordinada de reagir aos estímulos e desafios vindos da sociedade
envolvente:
Se a gente ficar se escondendo muito, o candomblé vai ficar igual ao mico-leão aí, vai estar em
extinção. Eu acho que isso foi devido a própria escravidão. O sincretismo, o modo dos escravos
cultuarem os orixás, por exemplo, eles enterravam os orixás, Ogum, e botavam Santo Antônio
pra branco achar. Entende? Eu acho que isso ficou enraizado. É igual uma família, você é
educado na sua casa almoçando meio dia, tomando banho antes do jantar, isso fica, você vai
envelhecer assim. Eu acho que o sagrado é que traz o mágico pra próximo, mas eu acho que a
gente não pode botar tudo isso no sagrado. A gente tem que começar a separar, e trazer para
público, pro âmbito político, social, a coisas que possam vir a dar fortaleza à religião.
O discurso utópico atualizado na fala de Jaciara, que visa uma libertação acessada
através da maior exposição pública da religião, tem as suas particularidades sublinhadas
quando colocado em contraste com a fala de uma liderança antiga, representante de um
167
discurso avesso à idéia de uma inserção explícita do candomblé na cena pública. Esse contra-
discurso foi por mim acessado quanto tive a oportunidade de debater as características desse
novo candomblé com um ebomi do tradicional terreiro do Bogum:
Aí de repente a gente se depara com uma questão muito mais intransigente que é a violência
religiosa por parte dos evangélicos, e principalmente por parte de uma igreja evangélica, que é a
igreja do Edir Macedo. Foi a que começou tudo isso, todo mundo sabe disso, não se precisa
falar mais, porque já está tão divulgado... Como eu me sinto nessa história toda? Com muita
força pra resistir, mas pra não descer à linha de combate. A IURD já provocou muitas vezes a
gente das religiões afro-descendentes pra sair pras ruas, pra uma guerra religiosa, isso a gente
nunca admitiu, nós nunca cedemos às provocações dessa igreja. Sabemos que eles fazem tantas
coisas usando os nossos dogmas, usando as nossas crenças... Numa ocasião, num seminário, na
Barroquinha, me perguntaram: “Como é que o senhor pode resistir a essas provocações todas e
não reagir?”. Eu respondi: “Porque não é de nosso costume reagir”, e citei que nós temos
sobrevivido em todos esses 400 anos de Brasil sem nunca ir à luta direta com o inimigo, entre
aspas, né? A gente sempre teve a paciência de preservar a nossa cultura, a nossa religiosidade
dentro da nossa própria comunidade, isso nos fortalece. Isso faz com que cada um dos nossos
ascendentes tenham essa consciência de se preservar com dignidade, forte, e não descer ao nível
da provocações dos evangélicos nessas questões de intolerância.
O choque com a fala de Jaciara é visível. O foco aqui é a contenção, o controle da
reação, acompanhado por uma leitura rotinizadora das agressões sofridas por parte dos
neopentecostais, imediatamente inseridas no bojo de “400 anos de Brasil”. Desenha-se então
um inimigo que leva aspas, assim como um candomblé que se nega a adentrar no campo de
batalhas por ele proposto. Por sua vez, o valor mestre aqui ratificado é a paciência, qualidade
associada à ênfase na “dignidade” e na “preservação”, e não na “libertação” ou “justiça”. O
importante, no calor dos eventos, é “não descer à linha de combate”.
A necessidade de manter um critério de distinção frente os seus agressores, de negar o
seu mimetismo, é justificada pela defesa da oposição tradicional mencionada no início do
capítulo: aquele que entende que o perene, o válido, o fundamental, estaria para além do
campo do visível, do ostensivo, do oficial, esse sim o território de ação de grupos como a
IURD.
De certa forma, a gente acredita que nenhum império dura uma vida toda, ou muito tempo. Uma
vida até que pode durar, 2, 3 gerações, mas ele se acaba como todos os impérios. A história tem
mostrado. Pode durar 100 anos ou 200, mas eles vão se esfacelar. A nossa impressão, e os
búzios tem mostrado isso, é que dentro da própria estrutura da igreja, eles próprios vão se
devorar. Eles vão se comer uns aos outros e nós vamos continuar livres com a nossa religião.
Contra a maré, mas sempre sobrevivendo.
A declaração defende que, por habitar um território alheio ao conturbado campo do
perecível, real objeto de disputa dos seus “inimigos”, o candomblé de fato já é livre, ou
168
sempre foi livre, tendo a liberdade como um dado, e não como um objetivo. Meu informante
usa a relação histórica entre o culto dos orixás e a polícia para corroborar o sucesso dessa
estratégia paciente e perseverante:
Pode durar 10 dias ou pode durar 10 anos, ou 50 anos ou 100 anos, e agora eu acrescento, coisa
que eu não havia acrescentado antes, mas eu até falei hoje na reunião, a polícia, a forma da
polícia nos bater, nos violentar, destruir nossos objetos sagrados. Fomos esperar quanto tempo?
200 anos pra que os policiais percebessem que essa perseguição era uma bobagem, é uma tolice.
Dessa forma, é bem provável que a igreja evangélica, daqui a 200 anos nem exista, e ainda
estaremos professando a nossa religião.
Parte fundamental dessa mesma estratégia seria resistir às pressões relativas à entrada da
religião na arena da política partidária, como destaca meu informante logo a seguir:
Muita gente diz: “Por que vocês do candomblé não elegem pessoas partidariamente falando,
político-partidário, pra defender vocês na prefeitura, no Estado, no senado, senadores negros
candomblecistas!”. A gente nunca fez isso nesses 400 anos, acho que não é por aí o caminho. A
religião afro-descendente, eu acho que não tem vocação político-partidária, eu acho que não tem
e nem nunca vai ter. A gente pode ter um deputado, um senador aí, esporadicamente. Não pela
religião, mas pelo prestígio que ele tem, pelas coisas que ele tem feito, ele pode ser eleito. Mas
acho que nenhuma pessoa pode esperar ser eleita para um cargo político, partidário, em função
da religião. Os vonduns e os orixás não querem isso.
Assim, na fala do ebomi, a política volta a ser o território de um outro instransponível,
alheio aos interesses reais do candomblé, que se opõe à lógica oficial do Estado-nação assim
como o movimento e a tensão das águas profundas se opõe à superfície tranqüila do mar que
as torna visíveis. O discurso segue, demonstrando que subjacente à falta de “vocação política”
da religião estaria de fato uma categoria de “política” semanticamente diversa, que assegura
que a negação dos voduns e dos orixás em expor as suas questões na arena partidária não
implica no anulamento do seu caráter profundamente político. A política real é outra, é a da
administração cotidiana de vínculos e alianças móveis, exercida sempre no âmbito exterior à
ação do terceiro estatal, uma política norteada por outras regras e práticas, mas, antes de tudo,
por outros entes e agências:
Então eu digo, nunca foi vocação nossa eleger pessoas pra cargos eleitorais. Que as coisas não
se misturem. Nossa política é interna, de preservar, de viver com a natureza, políticas bem
definidas, comportamentais, hierárquicas, a gente preza por isso, até o louvor aos deuses que nós
acreditamos tem toda uma política, bem arrumadinha por acaso. Agora, de conquistar o outro,
essa nunca foi a nossa. A gente nunca foi de conquistar o outro, sempre fomos de deixar um
espaço para que o outro venha a nós, com suas dificuldade, nas suas necessidades, e que a gente
possa abrir os braços e ajudá-los. E assim tem sido, tem funcionado. Nossa política é outra.
169
Por fim, analisada sob a ótica política, a presença particular do inimigo neopentecostal
(com ou sem aspas) parece provocar, no mínimo, uma desestruturação e uma colocação “em
jogo” (Gadamer 1997) da economia identitária do candomblé de Salvador. Se, ao longo das
“reações mágico-religiosas”, tentei fazer o inventário de algumas cenas em que observamos a
tendência a dissolver esse outro evangélico numa nova versão de si mesmo e se, ao longo das
reações políticas “utópicas”, vimos a construção bem delimitada de um outro intolerante
tendo em vista produzir, através da sua ação, um telos coletivo antes inexistente, estamos aqui
numa posição média, que também delimita esse outro, mas com a finalidade de resistir ao seu
efeito mimético. Cientes de que a oposição é mais uma das modalidades deste mimetismo,
alguns setores do velho candomblé, o candomblé dos velhos, manifestaram frequentemente o
sentimento de que, ao encarar o inimigo em seu próprio campo de ação, o MCIT parece
estranhamente perder a guerra, mesmo quando vence as batalhas:
Como eu te falei, todo império acaba um dia, todo partido político também acaba um dia, todo
mandado de deputados e vereadores acaba um dia. Agora, nossa presença religiosa nunca acaba.
Se você começa hoje a eleger um vereador, um deputado, você tem que permanecer sempre
reelegendo outros e outros e outros, isso preocupa muito, isso gasta tempo e nós não teremos
tempo de cuidar do que realmente interessa...Tem gente no candomblé, principalmente os
jovens, que quer combater esses evangélicos assim, na política, na TV, nas ruas. O problema
que eu sinto é que quanto mais eles vão pra guerra, mais ficam parecidos com quem eles
querem combater!
II- Candomblé e Estado: da repressão e das políticas de aliança às “políticas do
reconhecimento”
No início deste capítulo, como parte de uma reflexão acerca das diferentes
configurações históricas do candomblé de Salvador, associadas a tipos distintos de economias
de alteridade, apontei o pacto da nação como um possível outro mais outro da religião dos
orixás, situação que parece ter sido alterada, ou pelo menos problematizada
contemporaneamente após a instalação do neopentecostalismo no campo religioso local. No
entanto, se a IURD e o seu lastro de influências no evangelismo representaram, para os
setores modernizantes do candomblé baiano, a chegada do “inimigo que faltava”, não se deve
concluir daí que não faltaram inimigos em potencial ao longo sua história. Nina Rodrigues já
destacara que, de verdadeiras religiões de Estado no contexto africano, garantido pela ordem e
pela tradição, esse cultos teriam se tornado, na Bahia, “pratica de feitiçaria, sem proteção das
170
leis, condenadas pela religião dominante e pelo desprezo, muitas vezes apenas aparente, é
verdade, das classes influentes que, apesar de tudo, as temem” (1935:214).
Como se vê, os inimigos foram muitos, destacando-se, dentre eles, o próprio Estado
brasileiro, que, alimentado por fortes vínculos oficiais e não-oficiais com o catolicismo,
muitas vezes mudou o registro da sua relação com as religiões de matrizes africanas da
omissão para a repressão.
e) A “política dos antigos”: personalismo e mistificação da ordem oficial:
Ao longo de uma cuidadosa pesquisa em arquivos jornalísticos, Lühning (1996)
descreve com riqueza o fenômeno da repressão policial ao candomblé em Salvador, realizada
de modo sistemático ao longo de toda a primeira metade do século XX, através da
recuperação de uma série de eventos associados à figura hoje quase mítica do “delegado
Pedrito”. Pedro Azevedo Gordilho, tido como uma espécie de símbolo da perseguição ao
candomblé na cidade, foi chefe de polícia entre as décadas de 20 e 40 do século passado,
quando promoveu uma série de batidas violentas em terreiros, resultando na prisão de pessoas
e na apreensão ou quebra de objetos litúrgicos da religião.
Passando além e aquém da garantia de liberdade religiosa existente tanto na
Constituição de 1891 quanto na de 1937
108
, Pedrito agia movido por queixas que ocultavam o
seu fundo valorativo (autorizado à época por uma opinião pública fortemente informada pelas
teorias racistas vigentes na Europa
109
) apelando para tipos jurídicos tais como: “distúrbio da
ordem pública”, causado pelos atabaques e supostos gritos e discussões ocorridos nas
cerimônias; “distúrbios à higiene e limpeza pública”, causado pelos ebós ofertados em
espaços públicos, ou ainda “curandeirismo” e “charlatanismo”, incidindo sobre as práticas
108
Na Constituição de 1891 lê-se no artigo 72: “A constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes
no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos
termos seguintes: § 3º Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer livremente o seu culto,
associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum”. Já na Constituição
de 1937, lê-se no artigo 122/4: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer política e livremente
o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as
exigências da ordem publica e os bons costumes”.
109
Sobre essas pressões da esfera pública no policiamento do candomblé, Nina Rodigues declara, criticando a
imprensa baiana de sua época: “Não é menos para lamentar que a imprensa local revele, entre nós, a mesma
desorientação no modo de se tratar o assunto, pregando e apregoando a crença de que o sabre do soldado de
polícia boçal e a estúpida violência de comissários policiais igualmente ignorantes hão de ter maior dose de
virtude catequista, mais eficácia como instrumento de conversão do que teve o azorrague dos feitores” (1935:
239).
171
terapêuticas e as atividades oraculares da religião
110
. O texto indica ainda a diversidade das
reações do povo de santo a essas iniciativas repressivas, que podem ser reunidas em três
categorias principais: i) a invisibilidade; ii) os ataques e defesas de ordem mágica e iii) a
infiltração direta ou indireta na ordem oficial.
No que concerne à primeira categoria, além das estratégias já citadas, o segredo e o
sincretismo, Lühning recolhe nos jornais pesquisados outras atitudes do mesmo tipo tomadas
pelos praticantes de candomblé com a finalidade de ocultar-se diante dos olhos policiais:
Outros tiveram o máximo de cautela, procurando não chamar a atenção com nada, escondendo
os pejis e os objetos de culto, só tocando de madrugada, depois da meia-noite, num horário em
que as “caravanas” policiais supostamente já tivessem passado, outros fecharam a casa, para
depois reabri-la, ou na periferia ou como centro espírita, dotado de estatutos, etc., de modo a
serem cobertos pelo “parágrafo constitucional que assegura o livre exercício de todas as
religiões” (201).
O universo da segunda categoria, as atitudes mágico-religiosas, é ilustrado por uma série
de casos interessantíssimos, demonstrando como os feitiços foram utilizados com recorrência
pelo povo de santo tanto como arma de ataque às autoridades quanto como arma de defesa e
anulamento da sua capacidade interventora. O evento abaixo exemplifica o primeiro tipo de
reação:
(...) até a própria polícia ou outras autoridades receberam ebós, tanto o promotor público, quanto
o subcomissário do Rio Vermelho, como também uma pessoa do palácio Rio Branco. Este
último episódio é descrito com bastante humor. Relata como uma moça, trajada com elegância,
deixara tranqüilamente um pacote, embrulhado com bom gosto, na porta do palácio. Quando os
transeuntes abriram o objeto, supostamente caído sem querer, descobriram “um autêntico
feitiço” (202).
Por sua vez, uma história transmitida oralmente no Opó Afonjá, que se passa no tempo
de Vovó Aninha, serve bem como um exemplo dos usos defensivos da magia:
“Vinte e nove de junho de 1912... Começou a festa. Horas tantas, o homenageado principal já
chegara - ouviu-se um tropel de cavalos; era a polícia que, a mando do ‘Homem’, vinha acabar
com aquela manifestação de negros, ‘coisa de gente ignorante, primitiva...’. Xangô dançava
tranqüilamente. No melhor da dança, determinou a um Ogã que lhe trouxesse três rolos de
linha: uma preta, uma vermelha e uma branca. Entoando cantigas, desenrolou os novelos, um a
um. O barulho das patas dos animais estava mais e mais perto: sentia-se o cheiro de cavalos.
Filhas de santo entravam em pânico, pensando no pior: surra dos policiais, atabaques furados,
saias rasgadas. Aconteceu o encanto; os soldados se embrenharam mato adentro e ‘nada de
110
Lühning aponta ainda outras categorias jurídicas utilizadas, como a leitura da reclusão e das escarificações
feitas nas yaôs durante a iniciação como respectivamente “seqüestro” e “tortura”.
172
conseguirem achar o barracão do candomblé’; continuou a festança, com atabaques e fogos,
comidas, bastante aruá e muita alegria” (203).
No entanto, é a terceira categoria, a influência direta ou indireta na polícia, que consta
historicamente como a estratégia mais eficaz do povo de santo na tarefa de evitar os excessos
policiais. Lühning destaca que vários policiais participavam da vida dos terreiros, como
iniciados ou parentes de iniciados, fato nada extraordinário se atentarmos para o fato desses
supostos algozes serem originados, em sua maioria, da mesma classe social, dos mesmos
bairros e da mesma origem étnica das suas supostas vítimas:
Esse aspecto - segundo me consta - nunca foi abordado, mas aparece com tanta freqüência nos
jornais, que parece ter sido um dos elementos-chave para que o candomblé pudesse manter a
sua integridade. Os policiais estavam entre os freqüentadores (público), alguns tinham cargo de
ogã, ou algum outro cargo de confiança, se não eram “feitos”, ou talvez fossem maridos, irmãos
ou, enfim, parentes de filhas-de-santo. Os jornais, muitas vezes, fazem alusões à cobertura que o
candomblé recebe da polícia, e censuram a falta de conseqüência e coerência nas campanhas
contra o candomblé (202).
A citação destaca também uma importante forma indireta do candomblé exercer
influência sobre as ações policiais, que teriam como alvo primário não somente os seus altos
comandantes, mas também uma série de outras autoridades oficiais: a produção de alianças
através da cessão de cargos não-rodantes, principalmente o de ogã. Bastide já destacara a
função eminentemente política que a posição de ogã detinha no candomblé baiano:
Há duas espécies de ogã. Alguns são escolhidos devido apenas à situação social e financeira,
servindo de protetores do candomblé com relação às autoridades constituídas; defendem-na
contra as possíveis arbitrariedades da polícia; auxiliam-na em caso de necessidade, lançando
mão de seus próprios recursos. Outro, porém, conservando algo da origem sacerdotal do termo,
ougangas (ou sacerdotes, no Gabão), formam uma espécie de sacerdócio secundário (Bastide
2001: 59-60).
Médicos, juristas, políticos, artistas e intelectuais, dentre eles uma série de
antropólogos, foram ogãs dos terreiros mais tradicionais de Salvador. Como observa Artur
Ramos, que ocupara esse cargo por anos no terreiro do Gantois: “o ogã é quase sempre um
branco, senhor, a quem os negros respeitam, enxergando nele um protetor do terreiro” (1988:
51). A cessão de cargos de proteção representa, contudo, apenas uma das manifestações de
uma tendência mais ampla dessas comunidades: a de responder à sua marginalização cultural
e valorativa através de uma atitude englobadora, não-reativa, tendo em vista a produção de
laços pontuais de troca com os seus supostos inimigos. Referindo-se à década de 50, quando a
repressão policial direta dá lugar a um controle de natureza mais jurídica, realizado através da
173
solicitação de licenças junto à Secretaria de Segurança Pública antes da realização dos cultos,
além da instituição, por parte do Estado, de um calendário litúrgico para as festas, Braga
afirma que:
(...) muitos desses candomblés já desfrutavam de grande prestígio junto ao poder constituído,
com bom trânsito nas classes mais altas e com efetivas alianças com autoridades policiais que os
isentavam dessa obrigação. Essa situação era ideologicamente trabalhada e usada por esses
candomblés como um símbolo de prestígio social e de poder, não somente na comunidade
inclusiva dos terreiros, mas também junto à sociedade baiana de uma maneira geral (1993: 57
).
A existência deste novo aspecto injeta uma boa dose de ambigüidade na relação entre
Estado e candomblé, até aqui descrita de forma exclusivamente negativa: ou pela omissão ou
pela repressão. Torna-se visível, através do seu sucesso, um certo fascínio por parte da ordem
oficial pela religião de origem africana, muitas vezes utilizada como um meio para a
sacralização do seu poder laico ante a cultura popular, permitindo agregar à sua imagem
pública um tipo de prestígio que vai além da impessoalidade dos critérios meritocráticos. É na
gramática do prestígio, e nunca na pressão ostensiva ou na reivindicação, que estaria o foco
dessa política dos antigos, sendo ele a sua principal moeda de troca:
O conceito de prestígio talvez possa ajudar na compreensão deste tipo de relato e de outras
formas verbais: enquanto a polícia, em nome de um certo segmento da sociedade, partia para a
agressão, e os jornais empregavam um discurso partidário e ideológico contra o candomblé, este
simplesmente desmontava tanto o discurso quanto o ataque, através da transformação verbal do
agressor de prestígio em membro do grupo, adquirindo por extensão, dessa forma, seu prestígio
(Lühning 1996: 203-4).
Implantada no solo fértil do personalismo brasileiro, tal lógica de circulação de prestígio
gerou uma série de importantes frutos para os terreiros. Dentre estes, destaca-se a amizade
entre o governador Juracy Magalhães e o babalorixá Bernardino do Bate-Folha, que garantiu
uma trégua entre a polícia e os terreiros durante a sua gestão, de 1934 a 1937. Um outro
importante nó de aliança tecido entre esses mundos foi aquele entre Osvaldo Aranha e Mãe
Aninha, do Opó Afonjá, o primeiro sendo filho-de-santo da segunda e chefe da Casa Civil do
presidente Getúlio Vargas, o que tendia a potencializar esse vínculo direto com o candomblé
em uma extensa influência indireta no aparelho estatal. O caso descrito logo abaixo dá o real
peso e extensão do poder dessas velhas lideranças do candomblé de influenciar ações
governamentais, servindo também como ilustração dos mecanismos comuns à sua lógica de
circulação de prestígio:
174
Com a implantação do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, o Interventor da Bahia era o
Dr. Bulcão Viana. Embora a situação não permitisse a realização do candomblé com uso de
atabaques, o seu governo não proibiu. Posteriormente, o Dr. Bulcão Viana cedeu lugar ao Dr.
Landulfo Alves de Almeida. Nesta época era comandante da IV Região Militar o General
Renato Onofre Pinto Aleixo. Estando proibido o uso dos atabaques nos candomblés, o General
Pinto Aleixo, que estava em divergência, mandou, por intermédio do Sr. Antônio Leão, que o
terreiro do Gantois tocasse uma de suas festas. Para tanto, mandou uma guarnição comandada
por um capitão, para garantir a realização da festa. Uma hora após o começo da festa, chegava
uma “banheira” ou “viuvinha”, nome dado na época ao que hoje se chama radiopatrulha. Ao ver
o terreiro guarnecido pelo exército, deram meia-volta e não disseram para que foram. Três ou
quatro dias depois, o Sr. Jorge Manuel da Rocha foi à Delegacia de Jogos e Costumes, para tirar
uma licença para tocar candomblé, e a mesma foi dada com uma ressalva: “É proibido o uso de
atabaque”. Diante disso retrucou o Sr. Jorge: “Não está mais proibido, foi concedido ao
Gantois”. O delegado respondeu: “O Gantois tocou por ordem do Comandante da IV Região
Militar. Vá a ele, se ele lhe conceder conforme feito com o Gantois você toca também”. Dito
isso, o Sr. Jorge procurou tomar providências. Ele era Ogã do terreiro do Axé Opô Afonjá e
sabia que a ialorixá Aninha, do mesmo terreiro, tinha influência com Getúlio Vargas, Presidente
da República, em razão de ser seu filho-de-santo, o Sr. Oswaldo Aranha, Chefe da Casa Civil do
Presidente Vargas. Por esta razão, o Sr. Jorge viajou para o Rio de Janeiro à procura da ialorixá
Aninha em sua residência. Lá chegando contou-lhe as ocorrências. A mesma Ia telefonou para o
Sr. Oswaldo Aranha, informando-lhe o que havia. O mesmo ouviu também o Sr. Jorge, após o
que marcou uma audiência com Getúlio. Dessa audiência resultou o Decreto Presidencial n.
1.202, amparando as religiões e seitas, liberando os terreiros, que voltaram ao uso dos
atabaques. De volta à Bahia, o Sr. Jorge Manoel da Rocha trouxe o “Diário Oficial” que
publicou o referido decreto. Aqui chegando, foi à Delegacia de Jogos e Costumes com a
finalidade de mostrar a decisão e fez sua festa, acompanhado pelos seus reais instrumentos que
são os atabaques (Barbosa 1984: 70).
Trata-se, como vemos, de uma descrição “nativa” dos trâmites que deram origem a um
decreto que assegurou o candomblé por alguns anos na cidade de Salvador. A lei é nela
textualizada como o resultado de uma série de pressões pessoais, que começam “de baixo” e
se disseminam lentamente, até chegar ao próprio presidente da República. O decreto aparece
então como uma espécie de cristalização de vínculos pessoais em um mecanismo impessoal,
fruto de um lento processo de convencimento levado à frente pelo ogã, com a finalidade de
ampliar o espectro de ação das decisões oficiais de ordem pessoal colocando-as em contraste
consigo mesmas. Assim, a questão colocada pelo ogã para os seus aliados no Estado é sempre
“Se pode o Gantois, por que não pode o Opó Afonjá?” e nunca a reivindicação universalista
de “liberdade de crença” ou algo do tipo.
Uma outra figura de destaque desta espécie de “fase heróica” do candomblé baiano foi
Mãe Menininha do Gantois. Assumindo o comando espiritual do terreiro em 1922 e vindo a
falecer em 1986, Menininha parece levar ao apogeu a via carismática de inserção do
candomblé na esfera pública soteropolitana. Em um artigo sobre a trajetória de Menininha,
Santos (2000) destaca como, na época da repressão policial, instalou-se no Gantois uma
175
espécie de “tradição científica” (137), resultante da estratégia de capitalizar o interesse
intelectual pela religião através do englobamento de importantes ogãs, como o já citado Artur
Ramos, além de Nina Rodrigues e Estácio de Lima
111
. A partir da década de 60, reduzida a
repressão policial, o terreiro do Gantois parece acompanhar a inclinação mais auto-
referenciada da nacionalidade brasileira, encarnada na figura do presidente Jânio Quadros,
passando a ter a sua inserção pública mediada agora pela arte e pela cultura popular, de um
modo geral. Jorge Amado, Dorival Caymmi, Carybé e outros foram figuras centrais nesta fase
de valorização da cultura de origem africana em Salvador, que passa a abordar o candomblé
principalmente através da sua exuberante dimensão estética. Como contraponto, ao serem
pintados, cantados e narrados, o Gantois e Menininha adquirem uma divulgação e uma
respeitabilidade nacional, fato gerador de uma supervalorização da sua moeda de prestígio.
Saindo das margens da sociedade para tornar-se um ícone privilegiado da baianidade,
Menininha torna-se peça importante para o, à época crescente, projeto de apropriação turística
da identidade africana da cidade, estabelecendo, nesse processo, pontes bem fundadas com a
elite política local. Referindo-se à relação especial nutrida por Mãe Menininha e pelo então
governador Antônio Carlos Magalhães, que implicou na transformação do segundo, por muito
tempo, numa espécie de guardião do candomblé baiano, Santos parece indicar uma espécie de
fórmula geral subjacente a toda a fase carismática da relação entre o candomblé e a política na
Bahia: “glorificação do poder sagrado e sacralização do poder da política” (2000: 133). Esse
seria um mote geral, que comandou a dinâmica desses vínculos recíprocos por alguns anos: o
Estado dá proteção, divulgação, prestígio e recursos, recebendo em troca a aura sagrada do
candomblé e, por que não, alguma proteção espiritual, troca que, no caso de ACM, resultou na
explícita mistificação da amplitude e da longevidade do seu poder na cena política local.
f) Das alianças ao “reconhecimento”:
Todavia, além do estabelecimento de uma série de “áreas protegidas” (Lühning 1999:
203), irrigadas pelos recursos públicos através de canais personalistas, essa “política dos
antigos” deixou, de acordo com os olhos contemporâneos, um outro legado, desta vez,
negativo: a falta de “solidariedade de classe” do povo de santo de Salvador. Foram
111
Essa inserção privilegiada no mundo acadêmico, que continua com Ruth Landes, Donald Pierson e Roger
Bastide, elevou o Gantois a uma espécie de modelo teórico do candomblé, outro exemplo do sucesso desta
política de cristalizar laços pessoais em tipos impessoais.
176
recorrentes, ao longo das minhas conversas com as lideranças associadas ao MCIR, as
queixas acerca do exclusivismo de certos terreiros (geralmente os mais tradicionais) no acesso
ao financiamento estatal, fato que teria impedido o florescimento anterior de movimentos
reivindicatórios mais organizados:
Tá certo, as batidas policiais acabaram, a gente nem precisa mais de licença da Secretaria de
Segurança Pública, os terreiros viraram autônomos. Mas acabamos desenvolvendo, nesse
caminho, a idéia de que cada qual vai garantir o seu próprio espaço, mesmo porque esse próprio
Estado acabou sendo apoiador de alguns e deixando outros de fora, a questão das políticas, né?
Ao invés de reprimir, com antes, você pega aquele que passa por necessidades e faz ofertas.
Então, se não tivermos o pé no chão, formos muito centrados, muitos acabam cedendo. O
Estado acaba ajudando nesse esfacelamento das relações. Por que? Porque vai gerando inveja,
né? “Tudo é pro Gantois!”. “Não sei quem recebe todas as benesses!”. Então aquilo vai criando
um mal-estar entre as casas e as casas vão se afastando, mesmo sem perceber. Assim foi com o
candomblé aqui em Salvador.
A fala destaca o efeito supostamente desestruturador dessas políticas de alianças na
capacidade de agência coletiva dos terreiros, que acabariam por arruinar, em disputas internas,
a sua unidade potencial. Antes de um “candomblé baiano”, o que haveria de fato entre os
antigos seriam “candomblés”, terreiros isolados, ilhas desagregadas entre si, muitas vezes em
conflito. Assim, construiu-se, ao longo do tempo, um grande eixo qualitativo, que antes
distinguia os terreiros de “dentro” e de “fora” do campo de ação das leis e do controle
policial, e que, posteriormente, passaram a distinguir terreiros de “dentro” e de “fora” das
fontes de recursos públicos. Vislumbrando essa situação a partir de um olhar “utópico”, meu
informante tende a concebê-la inclusive como uma estratégia consciente do Estado tendo em
vista a dominação indireta da comunidade afro-brasileira da cidade
112
.
Devo destacar que várias atitudes de cooperação e ajuda mútua por parte dos antigos
foram apontadas no decorrer do meu diálogo com as novas lideranças, que, apesar de visarem
o estabelecimento de uma nova política para a religião, demonstram freqüente respeito e
reverência pelos modos anteriores de resistência: “Pense no próprio navio negreiro! Negros
que eram inimigos na África, de etnias inimigas, acabavam se juntando aqui”. Ou ainda:
112
É curioso pensar que, corroborando esta tese, a associação entre a política personalista e a falta de
solidariedade interna aos terreiros parece estar na própria origem da religião em Salvador. De acordo como
Silveira (2000), logo na virada do século XVIII, as comunidades afro-brasileiras, antes perseguidas de forma
rígida pela administração do Conde da Ponte, observaram uma mudança de tratamento por parte do seu sucessor,
o Conde dos Arcos. Tendo em vista alimentar a rivalidade entre essas comunidades, o governo resolve apoiar
financeiramente e oficializar a irmandade jejê-nagô da Barroquinha, a Irmandade dos Martírios, afastando a
possibilidade de uma perigosa união entre esta e a Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de origem
angolana, de maior destaque até então. Esse apoio resulta na construção de um salão nobre, anexado à igreja da
Barroquinha, lugar que hoje é tido como o primeiro terreiro de candomblé de Salvador.
177
Nós temos cartas aqui de Mãe Menininha pra Simplícia. Iá Simplícia de Ogum, falando: “Olha,
eu estou aqui esperando o dia de chegar o meu ponto na Caixa porque a gente tá numa grande
dificuldade”. Aí Mãe Simplícia fala assim: “Oi querida, dessa vez eu tenho um dinheiro aqui
sobrando, como você me emprestou outro dia eu posse lhe emprestar, porque eu confio”.
Contudo, esses casos sempre aparecem como parte de uma fala onde a cooperação e a
reciprocidade (com o Estado e com os outros terreiros) parecem ter perdido a sua centralidade
para o âmbito da reivindicação de direitos e de inserção definitiva, e não mais pontual, no
universo da cidadania: “É como se antes a gente estivesse nessa época mais preocupado
mesmo em sobreviver, e pra que isso acontecesse, era importante manter a distância, agora a
gente ainda tem essa preocupação em sobreviver, mas percebemos que o caminho melhor é
cobrar aquilo que tiraram da gente aí fora, nas ruas mesmo”.
Desse modo, a chegada do “inimigo que faltava” em Salvador, um inimigo com quem
não se produz trocas e alianças, mas se sofre expropriação ou “intolerância”, parece também
dar agilidade à mudança no tipo de relação histórica costurada entre o candomblé e a ordem
oficial. Continuamos aqui, assim como na seção anterior, ainda num campo de fenômenos em
aberto, já que em plena ocorrência, mas é visível a continuidade entre ele e o processo que
defini anteriormente como o avanço de um tipo de narrativa “utópica” dentro dos terreiros.
Se, anteriormente, observamos essa narrativa sendo realizada nos movimentos
reivindicatórios organizados pela religião tendo como alvo o judiciário, o Estado e a opinião
pública, agora passamos à participação coletiva dos terreiros no terceiro setor e no próprio
âmbito governamental, num guinada da política personalista à organização civil através do
espelho das “políticas do reconhecimento” (Taylor 1994).
De acordo com Taylor, a tese fundamental que estrutura o universo de reivindicações
organizado sob essa insígnia é:
(...) nossa identidade é parcialmente moldada pelo reconhecimento ou por sua falta, geralmente
pelo reconhecimento errôneo [“misrecognition”] dos outros. Assim, uma pessoa ou um grupo de
pessoas podem sofrer um dano real, um distorção real, se as pessoas ou a sociedade em volta
delas refletirem uma figura limitada, depreciativa ou desdenhosa delas mesmas. Não-
reconhecimento [“nonrecognition”] ou reconhecimento errôneo [“misrecognition”] pode
implicar em danos, pode ser uma forma de opressão, prendendo alguém num modo de vida
falso, distorcido e reduzido (1994: 25).
Apesar de indicar, a princípio, uma ruptura com o ethos universalista da cultura política
liberal e democrática, Taylor entende que as reivindicações apoiadas na tese acima,
178
geralmente observadas nos movimentos feministas e das minorias étnicas
113
, indicariam na
verdade o reforço de uma outra dimensão desta mesma matriz, desta vez associada ao âmbito
da identidade individual e coletiva: a noção de “autenticidade”. A politização da diferença
estaria sempre associada ao debate sobre a reflexividade desses grupos, realizado na forma de
uma luta semântica na arena sempre polissêmica da alteridade. Uma vez criticada a
“misrecognition” do outro, deve-se definir, ou pelo menos propor, aquilo que viria a ser um
reconhecimento “verdadeiro” de si, ou seja, “autêntico”, indicando um ponto onde a
alteridade (a textualização por parte do outro) deva coincidir de modo adequado com a
reflexividade (a auto-textualização
114
). Não por acaso, a entrada desses grupos na arena
política tende sempre a vir acompanhada pela problematização das suas identidades, que,
assim como no caso do candomblé, passam a funcionar como uma nova moeda de
negociação, agora formal, com os centros de poder. Na fala de um informante:
Toda a demonização, toda a perseguição na televisão, toda a distorção que nossa imagem sofreu
com os evangélicos, fez com que a gente repensasse onde nós estávamos. Quem somos nós?
Porque teve gente que acreditou na imagem que eles criaram, algumas pessoas realmente saíram
dos terreiros... Depois de colocar essa questão, vimos que a nossa diferença podia ajudar numa
série de ações, podia se transformar em uma alternativa, mas pra que a nossa diferença virasse
alternativa a gente tem que mostrar pra sociedade o que a gente é de verdade, entende?
A partir deste novo referencial político, que retira a diferença das franjas da sociedade
com a finalidade de defendê-la enquanto “alternativa”, aumenta a possibilidade de setores do
candomblé serem inseridos na esfera pública da cidade através da execução de “projetos”
organizados em torno das particularidade culturais da religião e construídos em parceria com
uma série de Ongs e órgãos de governo. Contribui para o sucesso desta reflexividade étnica
algumas vicissitudes da diáspora das religiões africanas, dentre elas, a impossibilidade de
reproduzirem no “Novo Mundo” a sua situação original de culto aos antepassados, fato que
teria enraizado a sua organização identitária no Brasil em torno de “nações”, e não mais de
linhagens. Angola, Congo, Jeje, Queto, Ijexá são algumas designações de nação do
candomblé de Salvador, indicando a origem africana da visão de mundo ali atualizada,
percebida através de traços lingüísticos e cerimoniais distintivos.
113
A idéia de “minoria” e “maioria” aqui aplicada tem uma natureza gramatical, e não quantitativa. De acordo
com Deleuze: “é evidente que ‘o homem’ tem a maioria, mesmo se é menos numeroso que os mosquitos, as
crianças, as mulheres, os negros, os camponeses, os homossexuais.. etc. É porque ele aparece duas vezes , uma
vez na constante, uma vez na variável de onde se extrai a constante” (1995: 52).
114
Refiro-me aqui à noção de “self-textualization” de Crapanzano (1992b).
179
Entretanto, como afirma Serra (2003), tal dimensão étnica do culto de modo algum
depõe contra a existência de uma tradição de fato compartilhada pelo povo de santo da cidade,
vindo a assumir uma função hoje de ordem mais “estilística”:
No mundo do povo de santo, as marcas étnicas caminham para uma estilização. As nações
tendem a cifrar-se em liturgia; sua música, sua dança, aspectos cerimoniais, mais que fazê-las
reconhecer, informam-nas e nelas encarnam. Um fundo comum de tradição compartilhada
sustenta o brilho das particularidades que se destacam. O étnico estiliza-se, deixa-se dominar
pelo simbólico, no campo do mistério, de uma forma que aproxima dos jogos da arte (2003: 61).
Toda a história das religiões africanas no Brasil se desenrola sobre o campo de forças
complexo, mas nunca contraditório, de propensões particularistas e universalistas, que se
concretizam contemporaneamente, de acordo com Prandi (2006), em dois fenômenos
principais: a entrada bem-sucedida dos terreiros no “mercado das crenças” e a re-
africanização. O primeiro, que concerne à “clientela” e à prestação de serviços mágico-
religiosos, reforça a veia universalista do culto, principalmente a sua ênfase descritiva na
individualidade e no destino. O segundo, que concerne aos “iniciados”, indica o processo,
originado nos anos 60, de crítica ao sincretismo (entendido cada vez mais como um
mascaramento metafórico de uma configuração originária) e de recuperação do conteúdo
estritamente (e supostamente) africano da religião
115
. Tal movimento teria como efeito,
inclusive, a crescente homogenização da “nacionalidade” dos terreiros, ocorrendo, junto com
a sua “descatolização”, a “desbantualização” e a conseqüente “iorubanização” das suas
práticas, a última indicando a língua e a etnia que abrigariam os candomblés tidos como os
mais nobres e resistentes ao contato com o catolicismo (Silva 2006: 156).
Assim, se o nascimento da umbanda nos anos 20 teria ocorrido como uma via de
imersão da religião de origem africana na sociedade nacional através do seu branqueamento,
da sua moralização e da exclusão dos seus elementos tidos como mais “incivilizados”, como o
sacrifício de sangue, a iniciação excessivamente traumática e a língua nativa, essa mesma
imersão se daria, nas circunstância atuais, pela ênfase contrária, nos diacríticos de
africanidade e na quebra dos vínculos internos com o cristianismo. Observa-se que a entrada
de valores de pureza e autenticidade étnica, relegando ao campo da inautenticidade traços
associados à brasilianidade, não significam, portanto, o estabelecimento de uma contradição
115
Originado na tradição nagô, esse processo de busca de legitimidade étnica do candomblé tem como marco
histórico o II COMTOC (Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura), realizado em 1983 em
Salvador, de onde se retira um manifesto contra o sincretismo assinado por algumas grandes ialorixás e liderado
por Mãe Estella, do Opó Afonjá. Esse manifesto é analisado de forma mais detalhada por Consorte (2006).
180
com a universalização dos cultos afro-brasileiros, indicando, para alguns autores, até mesmo
formas complementares de adaptação às condições impostas pelo atual campo religioso
brasileiro:
(...) sem paralelismos e outras impurezas a religião se torna mais coerente, discernível, aberta a
sistematizações e codificações do seu campo cosmológico que, em certas circunstâncias, podem
torná-la mais apropriada ao consumo pelo mundo moderno (principalmente por uma clientela
interessada também na coerência das tradições de sua religião em termos teológicos e
filosóficos) (Silva 2006: 155).
A intelectualização da religião através da formulação de uma tradição escrita é
frequentemente citada como outra conseqüência desse processo de formulação de um corpus
litúrgico e mítico mais coerente para o consumo (esse nunca tão coerente) de uma nova
clientela, muitas vezes branca e com maior poder aquisitivo
116
. As viagens à Nigéria e Benin
através dos “cursos de África” são outros exemplos dados por Silva (2006) de estratégias
associadas à africanização dos terreiros de São Paulo, hoje talvez os mais “africanos” do país,
assim como os que contam com o maior número de membros brancos.
Esse conjunto de forças distintivas internas a um campo religioso cada vez mais
supranacional, onde a diferença serve como meio de atração de um fiel ansioso pelo acesso à
novidade e exotismo, se vê acirrado, no caso de Salvador, por um modelo cada vez mais
étnico de visibilização dos terreiros ante o campo a princípio “externo” das políticas do
reconhecimento. Vítima mais direta das inclinações analíticas tanto da relação “religiosa”
construída entre os terreiros e a sua nova clientela quanto da relação “política” construída
entre os mesmos, o Estado e o terceiro setor, o sincretismo, antes peça fundamental para a
sobrevivência das religiões africanas no Brasil, torna-se progressivamente “desnecessário”.
Nesse trajeto, as pontes historicamente construídas entre os dois paradigmas são ruídas pela
metaforização do seu fundamento, processo adequado ao desejo geral de outros mais outros,
que, no caso do candomblé, significa ser mais africano e menos brasileiro.
Um dos meus informantes narra o paralelismo existente entre o grau de africanização
dos terreiros e a sua tendência maior ou menor a perder filhos para o neopentecostalismo. Sua
fala destaca também, de forma interessante, como esses terreiros se vêem fortalecido diante da
116
Nos anos 70, Bastide já parece perceber esse processo, na época ainda insipiente: “Pois seria um erro
acreditar que os “zeladores” (nome pelo qual se designam hoje os pais-de-santo) são pessoas ignorantes. Eles
lêem os livros que se escrevem sobre eles e pode haver uma influência dos mesmos sobre as suas crenças ou
religiões, principalmente na medida em que esses livros cotejam os fatos brasileiros com os fatos africanos, pois,
na impossibilidade de ir à África, como se fazia outrora, o zelador de hoje estuda a África através dos livros para
reformar sua própria religião” (1973: 168).
181
comunidade na qual estão inseridos a partir das áreas de interseção produzidas pelos
“projetos”, além de sublinhar a centralidade da “imagem pública” como termo de fato em
disputa nos conflitos com os evangélicos:
Essa idéia de um candomblé que é norteado por valores ligados a sua matriz, a África, não deve
ser modificada. Nós temos que ver que pessoas de candomblé que eu conheço desses terreiros,
nenhuma foi pra IURD. Você vem aqui num dia de festa e esse barracão não cabe de gente, esse
espaço aqui não cabe de gente. Se eu tenho mais de 1300 pessoas aqui naquele curso e tenho
250 crianças todas terças, quintas e sábados aqui nesse terreiro, mais 80 de um outro projeto,
mais 30 de um programa de discussão de juventude. Então, podem ter tido terreiros que
perderam fiéis, terreiros mais fracos, menos africanos, mas o que mais um terreiro tem pedido
com os ataques da igreja é a imagem pública.
Por sua vez, uma cena protagonizada por mim e por uma ialorixá em campo exemplifica
de forma exata as condições ainda inexatas dessa espécie de adeus ao sincretismo. Após uma
série de falas corroborando a necessidade de uma comunidade de culto mais “verdadeira”, ou
seja, “com o pé bem fincado na África”, seguidas pela avaliação de que “não há mais
necessidade pro sincretismo aqui na cidade”, questiono a sacerdotisa sobre um quadro,
dependurado em uma das paredes da sua sala, representando Santo Antônio. Após certo
desconforto inicial, a mulher declara:
Eu não sou católica, mas é como diz... Nós temos esses quadros antigos... Na verdade, a minha
trajetória começa aí, eu era da Igreja Católica antes de ser do candomblé, e por muito tempo eu
fui dos dois, né? Hoje o candomblé é outro, mas eu não desfaço do catolicismo, aquilo ali é
como o retrato de um pai, de uma mãe, de um ente querido nosso que se foi. A gente vai jogar
no lixo? Não vai entendeu? É como o retrato de uma pessoa amiga nossa, uma amigo antigo,
que a gente se afastou, mas que entende e que gosta. Eu não vou abandonar um amigo. Eu não
vou pegar a imagem de Santo Antônio, que é representado no culto de candomblé como Ogum,
quebrar ele e jogar no lixo. Não, eu vou manter ele ali até quando ele quiser ficar...
A defesa nostálgica deste velho amigo, hoje não tão conveniente, demonstra como a
entrada ostensiva do candomblé na luta contra a sua “misrecognition” por parte da sociedade
envolvente estaria implicada com uma lógica de auto-caracterização que parece colocar os
seus protagonistas numa sala de espelhos, ante-sala aparentemente necessária à sua libertação.
As intensas polêmicas acerca do sincretismo afro-católico na cidade, a sua crescente (mas
nunca unânime) textualização política na forma de “máscara branca”, demonstra as
dificuldades impostas ao avanço do discurso da autenticidade numa cosmologia acostumada a
entronar tragicamente a multiplicidade, a ambigüidade e a presença sagrada circulante em
detrimento de uma lógica onde vale a contradição, a ambivalência e a dualidade
presença/representação. Desse modo, saindo do mundo sintético do “... e ...”, das cadeias
182
sintagmáticas quase infinitas, o candomblé adentra, em graus bastante diversos de
profundidade e estratégia, o mundo oficial do “ou ... ou ...”.
g) Esboçando o telos do reconhecimento:
Um dos marcos do avanço das políticas do reconhecimento no mundo dos terreiros foi o
1° Seminário de Políticas Públicas para Comunidades de Terreiros, organizado pela
SEPPIR
117
em Salvador no final de outubro de 2005, encontro do qual participei como
ouvinte. O objetivo principal da reunião foi apresentar e filtrar, sob o ponto de vista da sua
constitucionalidade, as demandas das comunidades de terreiros apresentadas na 1ª
Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR), ocorrida no final de
junho e início de julho do mesmo ano. Ambos os encontros aconteceram como fóruns de
debate entre representantes dos governos federal, estadual e municipal, membros da sociedade
civil organizada (principalmente do movimento negro) e lideranças das comunidades de
terreiros.
Se a “intolerância religiosa” tem marcado até então a entrada mais reivindicatória do
candomblé baiano no campo antes alheio da política, no Seminário não foi diferente, a
categoria constando logo na justificativa do evento, transcrita na ata da reunião:
O eixo Religiões de Matriz Africana – Comunidades de Terreiro teve destaque na conferência e
apresentou as principais demandas desses grupos, pois, não obstante a relevância da
participação da cultura africana na formação da nação brasileira, a cosmovisão africana continua
a ser alvo da ação do racismo estrutural e da intolerância que se retroalimentam de forma cíclica
e recorrente no país. As conseqüências danosas da intolerância se manifestam não somente de
forma material, mas também simbólica, reafirmando continuamente preconceitos, estigmas e
estereótipos, que interferem significativamente no processo da diversidade cultural brasileira
.
Na mesma ata, podem ser lidos os objetivos específicos do Seminário, que sinalizam a
progressiva institucionalização do, até então informal, avanço da gramática dos direitos e da
cidadania nas comunidades de terreiros. Dentre esses objetivos posso citar:
117
“A Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) foi criada pelo Governo Lula
em março de 2003. Segundo uma fonte oficial: “A missão da Seppir é estabelecer iniciativas contra as
desigualdades raciais no País. Seus principais objetivos são: i) Promover a igualdade e a proteção dos direitos de
indivíduos e grupos raciais e étnicos afetados pela discriminação e demais formas de intolerância, com ênfase na
população negra; ii) Acompanhar e coordenar políticas de diferentes ministérios e outros órgãos do Governo
Brasileiro para a promoção da igualdade racial; iii) Articular, promover e acompanhar a execução de diversos
programas de cooperação com organismos públicos e privados, nacionais e internacionais; iv) Promover e
acompanhar o cumprimento de acordos e convenções internacionais assinados pelo Brasil, que digam respeito à
promoção da igualdade e combate à discriminação racial ou étnica; v) Auxiliar o Ministério das Relações
Exteriores nas políticas internacionais, no que se refere à aproximação de nações do continente africano”
(http://www.planalto.gov.br/seppir/).
183
I – Dialogar com segmentos das comunidades de terreiros na perspectiva de fortalecimento e
empoderamento deste setor, promovendo o fortalecimento institucional e o controle social.
III - Incentivar as casas de terreiros, espaços vivenciais de tradição da matriz africana e/ou afro-
brasileira a implementarem, em seus territórios, atividades que contribuam para promover os
direitos humanos e civis, restabelecendo a dimensão da cidadania dos vivenciadores de
terreiros.
IV - Estimular a implementação de políticas públicas para ampliar a sustentabilidade das
comunidades de terreiro, levando em consideração a natureza e relevância social do trabalho
desenvolvido nestes espaços de tradição e matrizes africanas.
Metas como (I) estimulo à autonomia e controle de si, (III) promoção do discurso dos
direitos humanos no interior das comunidades e como filtro jurídico da relação delas com a
sociedade envolvente, e (IV) incentivo à protagonização de políticas publicas sinalizam
também o engajamento do próprio Estado no projeto de dissolução da distinção paralizante
entre oficial/real sobre a qual funcionaria o candomblé classicamente.
As demandas, 62 no total, foram divididas em 12 áreas de atuação, correspondentes aos
12 grupos de estudo onde seriam discutidas: políticas públicas “em geral”, “de direitos
humanos”, “de saúde”, “de acesso à previdência social”, “de educação”, “de patrimônio
cultural”, “de infra-estrutura e equipamentos sociais”, “de acesso ao sistema de
telecomunicações”, “de fomento ao desenvolvimento econômico sustentável”, “de meio
ambiente”, além de “produção de conhecimento estatístico” e “propostas de alteração da
legislação vigente”. A noção de “intolerância religiosa” aparece de modo quase onipresente
nelas, o seu anulamento ou apaziguamento constando como a principal força dinamizadora
das políticas propostas, e talvez de todo o Seminário.
Algumas propostas mais diretamente relacionadas ao problema do combate à
intolerância religiosa foram:
11. Criar um conselho inter-religioso para a promoção de campanhas periódicas, estratégias
para a construção do respeito à diversidade religiosa, bem como para recebimento de denúncias
de intolerância.
12. Estimular que Estados e municípios solicitem audiências públicas sobre a intolerância
religiosa com as promotorias ambientais, o legislativo e as secretarias de justiça, do meio
ambiente e de direitos humanos.
13. Promover, com subsídios da Seppir, o intercâmbio e a integração dos terreiros de Matriz
Africana, com vistas a potencializar ação coletiva que coíba a intolerância.
16. Combater a intolerância religiosa e assegurar, no Plano Nacional de Direitos Humanos, a
inclusão de legislações que definem e punem a intolerância étnico-religiosa, a discriminação e o
preconceito contra as religiões de modo a dar cumprimento ao preceito constitucional que
assegura o livre exercício da fé e da coletividade afro descendente.
20. Assinar e ratificar a declaração para a eliminação de todas as formas de intolerância e
discriminação fundadas em religião ou crença (OEA, 1981).
184
26. Estabelecer um Fórum permanente contra a intolerância religiosa e pela diversidade.
De uma forma geral, as solicitações demonstram não somente a felicidade da
textualização dos ataques e desentendimentos que tem como objeto a religião afro-brasileira
como atos de “intolerância”. Expressam, da mesma forma, a capacidade da categoria
funcionar como um centro agregador: i) em torno do qual os terreiros podem se organizar
entre si (11, 13), ii) cujo debate media a aproximação (agora mais diplomática do que
sincrética) de outras religiões (11, 26) e iii) cuja reivindicação serve de meio de acesso à
ordem oficial (12, 16, 20). Assim, a “intolerância religiosa” se estabiliza como uma categoria-
chave para os dois movimentos fundamentais às políticas do reconhecimento do candomblé: a
assunção dos danos causados pela “misrecognition” do outro e a virada desta assunção em um
pólo motivador da agência coletiva. Ambos os movimentos articulados e interpretados como
uma espécie de ajuste de contas histórico, que aparece transcrito de forma evidente na ata da
reunião:
14. Reconhecer a dívida com os líderes e seguidores das religiões de matriz africana, pelos
séculos de perseguição perpetrados a essa forma de manifestação religiosa, seus territórios,
objetos sagrados e aos seus adeptos e envidar todos os esforços no sentido de superar as formas
de estereótipos que ainda se mantêm, bem como lhes conferir direitos idênticos aos das demais
religiões e fortalecer os mecanismos legais que punam exemplarmente as ações segregatórias e
discriminatórias
.
Pensada sob essa ótica, a demanda destacada logo acima funcionaria de fato em um
outro registro discursivo, subjacente a todas as outras reivindicações, já que operaria como a
sua condição de possibilidade. Nesses termos, a defesa do ancoramento da linguagem abstrata
e consensual dos direitos no campo concreto das contradições históricas através da postulação
de um laço de dívida seria uma espécie de meta-demanda desses movimentos. Tal
deslocamento indicaria o desvelamento crítico, por via da positivação do particularismo
cultural desses grupos marginalizados, das particularidades inerentes ao próprio universalismo
liberal, dotando de cor, classe e historicidade a figura do “indivíduo”, o seu principal
pressuposto gramatical.
Como vemos, as políticas do reconhecimento são políticas da imagem, no sentido mais
profundo, ou seja, realizadas enquanto politização da semiose
118
e luta por controle da auto e
da “alter” caracterização. Talvez por isso, as demandas associadas à visibilidade pública da
118
A idéia peirceana de “semiose” refere-se a qualquer tipo de ação do signo, ou seja, à ação e circulação de um
signo em sua capacidade de gerar ou produzir um interpretante de si mesmo.
185
religião foram as mais recorrentes durante o Seminário, a regulamentação sobre os meios de
comunicação de massa, arma que vimos ser fundamental à “batalha espiritual”
neopentecostal, merecendo um grupo de estudos específico, cujas reivindicações foram:
49. Cumprir a legislação internacional e nacional referente à discriminação e/ou ao preconceito
com as religiões de matriz africana, revisando a concessão de rádios e televisões que veiculem
em seus programas a intolerância religiosa, o trato pejorativo, o desrespeito e a perseguição à
religião de matriz africana.
50. Instituir cotas específicas para as religiões de matriz africana nos meios de comunicação e
nos espaços de visibilidade e representatividade, para divulgação de seus valores, crenças e de
seu papel sóciopolítico, cultural e econômico.
51. Realizar e convocar os meios de comunicação (rádio, tv’s, revistas e jornais) para vincular
programas contínuos, em rede nacional contra a intolerância religiosa, informando e
esclarecendo sobre as religiões de base africana e indígena, de acordo com a lei n° 7716/89, art.
20.
No entanto, o debate supera de longe o âmbito específico da mídia, recaindo no
problema geral da inserção das religiões afro-brasileiras na esfera pública nacional e
resultando na proposição de novas estratégias de visibilização para os terreiros, como
demonstram as solicitações abaixo:
1. Reconhecer a participação das religiões de matriz africana no cenário político e social do
país, incluindo os religiosos de matriz africana nos espaços e fóruns públicos e nas cerimônias
ecumênicas.
21. Reconhecer as sacerdotisas e sacerdotes das religiões de matriz africana, assim como os
pajés e xamãs, assegurando a respeitabilidade e legitimidade social das funções por eles(as)
desenvolvidas. Garantir seu livre acesso a cemitérios, hospitais e presídios, mas mesmas
condições dos demais representantes religiosos.
29. Assegurar que a presença e a expressão de líderes religiosos de matriz africana seja
equivalente aos demais sacerdotes religiosos que se façam presentes em todo e qualquer evento
público.
Se, na seção anterior, tentei ilustrar, no bojo do Movimento Contra a Intolerância
Religiosa, o impulso crescente dado ao discurso e ao ethos utópico pelo candomblé baiano, as
demandas aqui apresentadas visam indicar de modo mais claro a face propositiva desta
mesma tendência, fornecendo um desenho mais detalhado do telos político em questão.
Percebe-se que a idéia de “reconhecimento” é peça fundamental dessa construção. Não apenas
o reconhecimento da importância histórico-cultural da religião de matriz africana para as
populações negras e/ou brasileiras, de um modo geral (1), mas, antes disso, e como seu pré-
requisito, o reconhecimento definitivo e legítimo da própria “religiosidade” desses grupos,
ainda obscurecida pela sobre-representação e mistificação da sua dimensão mágica (seja ela
“branca” ou “negra”) no senso comum e nas outras religiões (21, 29).
186
Como contraparte necessária a esta luta por reconhecimento, observa-se a substituição
das estratégias tradicionais de invisibilidade por uma visibilização cada vez mais jurídica dos
terreiros, explicitadas por duas demandas em especial: “47. Desenvolver ações para o resgate
e legalização dos espaços ocupados pelas comunidades de terreiros” e “52. Realizar
campanhas de divulgação dos direitos das casas religiosas de matriz africana”. Indo além das
medidas que visam a familiarização da linguagem dos direitos humanos no cotidiano dos
praticantes dos cultos afro-brasileiros, outro importante modo dessa visibilização é a
organização jurídica das suas comunidades na forma de sociedades civis, dotadas de estatuto,
ata de fundação, diretoria e funcionários, fato cada vez mais comum em Salvador. Enquanto
sociedade civil, os terreiros passam a ter uma existência formal que possibilita a eles a
protagonização de políticas públicas em parceria com o Estado e outras associações, os
“projetos”.
A demanda por visibilidade jurídica funcionaria ainda como pressuposto para uma série
de outras reivindicações, como as citadas abaixo:
32. Garantir a divulgação dos direitos de aposentadoria dos sacerdotes e sacerdotisas daqueles
que professam a religião de matriz africana de acordo com a Lei 6696/79.
58. Garantir a isenção de impostos para os terreiros, a exemplo do benefício concedido às casas
religiosas de outras confissões.
59. Isentar as casas de cultos das religiões de matriz africana de cumprimento da lei do silêncio,
considerando a sua especificidade.
60. Estimular o reconhecimento dos efeitos civis dos casamentos religiosos nas casas de cultos
afro-brasileiros.
Desse modo, o candomblé parece lentamente assumir o fato de que para existir aos
olhos do Estado deve adequar-se a uma ordenação jurídica, ou seja, que para ser “sujeito de
direito” deve antes ser “sujeito para o direito”. Aqui a idéia política de “reconhecimento”
sócio-cultural comunga diretamente com o problema do reconhecimento jurídico de
determinadas categorias até então exclusivamente nativas. Desse modo, torna-se essencial que
o conjunto de casas, a estrutura material do terreiro, seja traduzida juridicamente como
“templo” para que assim possa pleitear determinadas garantias legais hoje inexistentes (58,
60). Do mesmo modo, é necessário que babalorixás e ialorixás sejam reconhecidos como
“sacerdotes” antes de reclamarem acesso a benefícios como a aposentadoria
119
(32).
119
Essa nova visibilidade implica, da mesma forma, no aparecimento de novas contradições. No caso da
legalização das funções religiosas, tive contato em campo com uma polêmica acerca da definição de “sacerdote”
que, no caso do candomblé, uma religião de iniciação, corresponderia a um espectro maior do que apenas os pais
187
Outra área estratégica desta luta por reconhecimento por parte das religiões afro-
brasileiras é a educação, as demandas associadas a ela tendo merecido um grupo de estudos
próprio ao longo do Seminário, que teve como algumas das suas principais reivindicações:
34. Cumprir o que estabelece o artigo 33 da Lei de Diretrizes de Base, no que se refere à
pluralidade religiosa nas escolas, efetivando os parâmetros que dizem respeito à diversidade
religiosa na educação formal e na formação de educadores.
35. Garantir a implementação de projetos pedagógicos alternativos nos espaços de terreiro,
utilizando-o para o desenvolvimento de atividades de educação.
36. Destinar verbas para estabelecimento de espaços de referência religiosa das culturas afro-
descendentes, indígenas, como bibliotecas, memoriais, arquivos, museus e publicações
mediante a criação, manutenção e contratação e formação de quadro técnico especializado.
Através da promoção de atividades educacionais sobre as religiões de matriz africana
nas escolas (34), no interior dos próprios terreiros (35) e em parceria com lideranças da
religião (36), a idéia fundamental é de se utilizar essa que seria a principal fonte dos valores
compartilhados do estado-nação, como uma via de dissolução da “misrecognition”
historicamente projetada sobre esses grupos no Brasil. Essencial para o sucesso deste projeto
é a Lei 10.639, sancionada em janeiro de 2003, que reforma a lei de diretrizes e bases da
educação nacional tendo em vista incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Providencialmente a lei foi
citada em duas demandas específicas relacionadas à educação:
38. Monitorar a implementação da Lei n° 10.639, contribuindo para desmistificar e combater a
folclorização das religiões afro-brasileiras.
40. Assegurar a participação de religiosos de matriz africana na formação e capacitação dos
educadores, inclusive os de nível superior, como também na elaboração de materiais didáticos a
serem adotados de acordo com a lei n° 10.639/2003.
Assim, se antes a luta pelo reconhecimento do candomblé como uma “religião” legítima
foi destacada em oposição às tendências que ainda insistem em textualizar as suas práticas na
forma da “magia” ou da “seita”, nesse momento, essa mesma luta realiza-se em oposição a
uma outra categoria de “misrecognition”, essa bastante alimentada, no caso baiano, pelo
mercado de turismo: o “folclore” (38). Contrárias a essa visão excessivamente estética,
estática e dessacralizante das suas práticas, o povo de santo aponta duas demandas em
específico, ambas vinculadas ao processo descrito anteriormente como a “africanização” da
religião, responsável pela ênfase contemporânea na sua dimensão étnica:
e mães de santo. “Por que aposentadoria só pra mãe de santo? Quem corta também é sacerdote! Quem toca
também é sacerdote! A gente não é cristão não!”.
188
5. Promover ações afirmativas às religiões de matriz africana compreendendo intercâmbio com
os países africanos e da diáspora africana.
33. Incluir na grade curricular dos níveis superior e médio os idiomas africanos iorubá e
quimbundo.
41. Fazer valer os instrumentos normativos de combate à descaracterização dos valores culturais
dos afro-brasileiros.
Demandas como estas demonstram que a politização da semiose identitária seria um
fenômeno sempre associado a uma politização do tempo, realizando-se pelo movimento
simultâneo de construção da contemporaneidade e da ancestralidade. Nesses termos, luta-se
para que seja “reconhecida” uma dada “presença” cultural, que já estava lá, mas que se
encontrava obliterada, ao mesmo tempo em que essa mesma presença é “produzida” e adiada,
de modo cada vez mais autêntico, em suma, mais africano. Conclui-se que antes de ser
designativa, tendo em vista corrigir no presente um erro histórico (passado) na
referencialidade da sociedade nacional sobre esses grupos-signos, a ação política do
“reconhecimento” é performática, e por isso reorienta passado, presente e futuro.
Um último conjunto de reivindicações associadas à visibilidade pública da religião, e
que merece todo um grupo de trabalho no Seminário é aquele que tem como tema o seu
reconhecimento estatístico, cujas principais solicitações foram:
56. Garantir a inclusão dos campos religiões de matriz africana, indígena e cigana no quesito
referente às religiões no censo demográfico (IBGE).
57. Fomentar pesquisa nacional, realizada pelo IBGE, para coletar dados sobre as religiões de
matriz africana, buscando mapear e identificar as casas de umbanda, candomblé e demais
variantes da religiosidade de matriz africana e criar um banco de dados, a ser disponibilizado
através dos meios de comunicação (portal, e-mail, ou qualquer outro), com vistas a promover o
resgate histórico e cultural dessas comunidades
.
O desejo de definição, descrição e divulgação estatística mais acurada da religião
sinaliza bem a intenção de “oficializar” a sua imagem através desta que é a mais oficial e, por
isso, a mais legitimada das linguagens. Demonstra, da mesma forma, que a luta pelo
reconhecimento dos particularismos desses grupos pressupõe a sua existência no âmbito de
uma gramática universalista, ainda insuficiente no caso brasileiro, que de fato não seria a
“inimiga” das políticas do reconhecimento, mas sim o palco em que se desenhariam as suas
batalhas.
Até então, tentei apresentar as demandas debatidas no Seminário através da sua
distinção analítica em dois grupos: aquelas associadas à produção de uma nova visibilidade
pública para a religião (uma imagem mais “verdadeira”) e aquelas associadas à
189
protagonização de políticas públicas por parte das suas comunidades, que passaria a abordar
de forma mais detalhada neste momento. No entanto, o aparecimento imperativo do caráter
performativo da própria idéia de “reconhecimento” demonstrou, ao longo da análise, a
impraticabilidade de distinções entre informação e ação no que tange as políticas do
reconhecimento. Reivindicações que exemplificam essa fusão de modo explícito são aquelas
onde ocorre o encontro entra a idéia de “reconhecimento” e de “políticas públicas”:
4. Reconhecer os espaços dos terreiros de candomblé, de religiosidade indígena e de outros
grupos discriminados como irradiadores de políticas públicas, disponibilizando para essas
comunidades recursos públicos destinados à promoção, desenvolvimento, fomento, resgate e
preservação desses espaços e de sua função social.
30. Reconhecer a importância das tradições de matriz africana na preservação, manutenção e
conscientização da saúde física e mental das pessoas e comunidades em seu entorno,
assegurando-lhes condições para a sua atuação
.
A partir de uma releitura da tradição sob a ótica dos “serviços públicos”, a exemplo da
textualização das práticas curativas seculares da religião como atividades de saúde e terapia
(30), o candomblé anuncia, defendendo a existência de uma perene “função social” (4) na sua
organização, que a principal meta das suas demandas seria regulamentar e oficializar
atividades já existentes. Agindo com uma lógica simultaneamente conservadora e
modernizante, o novo candomblé faz política sobre a tradição, a fonte última da sua
autoridade e legitimidade política, e nunca contra ou além dela. É justamente em torno dessa
autoridade tradicional, que deve ser modificada sem rupturas, que os terreiros constroem hoje
novos vínculos de financiamento com o Estado:
2. Subsidiar ações que proporcionem estruturação, politização e maior organicidade e afirmação
às religiões de matriz africana.
3. Desenvolver políticas públicas para ampliar a sustentabilidade das comunidades de terreiros,
levando em consideração a natureza do trabalho desenvolvido nesses espaços e garantindo
iniciativas com incentivo concreto do poder constituído nas áreas de saúde, educação, meio
ambiente, geração de emprego e renda, e cultura.
46. Apoiar a reforma das casas de terreiro, bem como promover a sua ampliação.
53. Incentivar e apoiar oficinas, seminários, cursos de formação com e para as comunidades de
terreiro.
Realiza-se, desse modo, uma espécie de distinção funcional entre os meios e os fins da
política dos terreiros. Por um lado, é o estatuto jurídico e político de “comunidade
tradicional”, adquirido através da adequação a determinados padrões oficiais de visibilidade
(não mais de alianças pessoais), que dota os terreiros de capacidade reivindicatória, inclusive
de financiamento, a sua existência constando como um fim em si e um dever do estado. Por
190
outro, os meios pelos quais de dá a luta pelo reconhecimento desses espaços enquanto
patrimônio histórico-cultural nacional e fonte alternativa de organização social, educação,
saúde, emprego, etc., tem sido cada vez mais fóruns “modernos” de participação, além de uma
mediação mais jurídica que personalista, fato que tenderia a alterar os modos internos de
distribuição de poder nos terreiros. Essa ruptura formal com a política de alianças, ou com a
“política dos antigos”, na terminologia nativa indicaria a tendência a ser fazer política cada
vez mais por causa e em nome tradição, e cada vez menos através de meios tradicionais.
É essa mesma inclinação histórica que se observa de modo explícito em uma das “meta-
demandas” apresentadas no Seminário, que versa diretamente sobre as novas condições de
mediação da relação candomblé/Estado em Salvador: “6. Garantir a participação igualitária
das casas religiosas de matriz africana nos projetos sociais desenvolvidos pelos órgãos
governamentais, sem monopólio, simpatias, preferências e opções pessoais”. Se o enunciado
expressa a intenção de parte do povo de santo de desestruturar antigos canais pessoais que
sustentara, por muitos anos, a política dos antigos, resta lembrar que, organizado enquanto
uma reivindicação, ele tende a expressar, pelo menos por enquanto, um desejo, e não uma
realidade.
h) Novas políticas, nova tradição:
Na seção anterior, percebemos o desenhar de uma ruptura modernizante entre os modos
políticos antigos e contemporâneos de mediação entre o candomblé e o Estado em Salvador.
Permanece ainda o problema de se definir ou ao menos esboçar a nova configuração interna
que dá suporte a essa nova visibilização pública do candomblé, além de tentar examiná-la não
apenas a partir das demandas que dela resultam, mas da própria fala de suas lideranças.
Conversando com os representantes de comunidades de terreiros presentes no 1° Seminário de
Políticas Públicas para Comunidades de Terreiros tentei ter acesso a esse dois aspectos de
modo um pouco mais detalhado.
Um rápido contato com esses representantes me revelou de imediato a atualização de
uma velha figura de mediação da religião, o ogã, que agora tenderia atuar com a companhia
mais freqüente da sua contraparte feminina, a ekedi. A fala de um desses ogãs ilustra bem as
condições de reaparição do cargo na cena política de Salvador:
Muitos ogãs voltaram a ter aquele posto político. É verdade. Isso já acontecia no passado. No Opó Afonjá
nós tivemos grandes homens políticos, na Casa Branca tivemos grandes mulheres políticas também, mas
191
você via que a idéia era conseguir gente de fora da comunidade pra dar suporte ao terreiro. Você vai
observar que isso já acontecia no passado, só que aí depois, quando os chefes, as grandes iás foram
morrendo, algumas casas perderam isso, e outras novas não tinham essa força de liderança, sabe? De
querer ir lá pra fora. Muitas vezes a mãe de santo, como lá em casa, fica muito mais recuada. Você vê,
hoje eu tô fazendo entrevista com você, a maioria das entrevistas sobre a casa quem dá sou eu. Porque ela
fica muito mais recuada, eu acho que é um perfil de quase todas elas hoje, a de cuidar das questões
espirituais. Então a gente que está de junto da ialorixá, assessorando nas outras questões.
A declaração esboça a nova configuração, interna aos terreiros, que teria a função de
sustentar os seus modos contemporâneos de funcionamento: a mediação política quase
sempre nas mãos de um cargo não-rodante, ocupado por alguém da própria comunidade,
geralmente jovem e com maior grau de educação formal, enquanto o comando religioso é
concentrado, à maneira tradicional, nas mães e pais-de-santo. Assim, o novo e o velho
candomblé parecem ter adequado as suas diferenças ao fazê-las funcionar de modo justaposto
em alguns terreiros, o segundo especializando-se nas questões propriamente “religiosas”, cada
vez mais delimitadas enquanto tal, e o primeiro se ocupando das questões “políticas” da
comunidade (essas também cada vez mais restritas semanticamente), ambos embasados em
critérios distintos de autoridade.
Questionado sobre a ausência de ialorixás e babalorixás na reunião e provocado a falar
sobre a pouca participação políticas delas, um desses representantes declara:
Aí é que está a visão destorcida, eles estão participando, eles é que comandam a nossa vinda.
São eles que orientam esses ogãs e essas ekedis a participarem. Nenhuma dessas pessoas se
arriscaria a ir pra um seminário sem a autorização da ialorixá ou do babalorixá. A questão é que
os zeladores têm muito compromisso dentro da própria comunidade, o que impede que eles
passem o dia inteiro sentado aqui participando dessas discussões.
A fala destaca que essas duas funções, a política e a religiosa, não estariam tão
dissociadas, como se poderia imaginar, demonstrando que os zeladores do axé exerceriam um
tipo de comando à distância sobre essas figuras mais públicas do atual candomblé. No
entanto, o raciocínio segue, sublinhando o fato das diferenças entre o “dentro” e o “fora” do
terreiro resultarem em certa resistência a uma atitude mais ostensiva por parte dos sacerdotes:
Alguns deles também não têm a paciência pra essa coisa (risos), tem que ter uma outra
disciplina. É engraçado, você falou uma coisa interessante, é que cada babalorixá e cada ialorixá
dentro da sua comunidade é a figura maior, ele é o rei, ele é que dá ordem. Agora imagine se
essas pessoas tivessem sentadas todas numa sala, niveladas, sem poder dizer o que deveria ser
feito (risos). Essa, entre aspas, submissão às regras, isso incomoda a eles, sabe? Então eles
mandam, determinam as pessoas que eles acham capazes de discutir e mandam pros encontros,
mas estão sempre por trás. Não é que eles estejam se omitindo não, eles estão juntos, mas eles
dão preferência às questões espirituais, as mais importantes, as do terreiro mesmo. Estão sempre
192
a par das decisões políticas do terreiro, mas isso hoje é assunto mais de outros setores do
terreiro, sabe?
Observa-se, nos termos acima colocados, que a distinção funcional entre cargos
“religiosos” e “políticos” no interior dos terreiros teria a finalidade de responder de forma
mais adequada a dois tipos de poder cada vez mais afastados contemporaneamente: um poder
sagrado, controlado pela hierarquia, por valores etários (o “tempo de santo”) e pelo carisma
pessoal da liderança e um poder laico, participativo, horizontal, baseada em uma autoridade
cada vez mais dialógica e escolarizada. Nesse sentido, os novos fóruns de interação com o
Estado, democráticos e impessoais, tornam-se áreas improváveis para a ação das ialorixás e
babalorixás que, como afirma o ogã, “não têm disciplina pra isso”. O poder que eles detêm
não se divide, possibilidade que soa hilária e absurda para o meu informante.
Tais mudanças estariam associadas a uma tendência geral a maior “democratização” da
organização dos terreiros, no sentido de abrigar uma comunidade mais diferenciada, dotada de
responsabilidades mais compartilhadas e até com setores profissionalizados, resultantes da
recente fundação de sociedades civis, deslocamentos responsáveis pela descentralização do
poder personalista típico da “fase heróica” do candomblé. Nessa dinâmica, as grandes mães
de santo do passado, líderes carismáticos que participavam de cada meandro da vida dos
terreiros que administravam, dão lugar a sacerdotes mais centrados nas questões “espirituais”
da religião:
Mas da modernidade a gente faz umas apropriações né? A modernidade tá tirando aquilo “a mãe
Menininha”, é muito importante a mãe Menininha, que ajudou a construir o Gantois, como ia
Simplícia, que ajudou a construir Oxumaré, mas acabou envolvendo ambientes maiores, em que
se conversa além do babalorixá. Hoje falam pra você: “Ta fazendo pesquisa? Fale com Marcus,
que é do terreiro de Oxumaré”. Mas alguns anos atrás essa pessoa ia falar: “Eu vou te dar o
telefone do Oxumaré, você vai tentar falar com o babalorixá, ele vai dizer a pessoa que vai te
receber, essa pessoa vai marcar um dia pra te receber...”, ou seja, tinha uma burocracia em que
tudo tinha que passar pela figura principal, o sumo sacerdote. Hoje em dia a gente tenta filtrar,
só chega no sumo sacerdote aquilo que tem que chegar nele. Então fez-se um caminho inverso.
Antigamente não. Até a capacidade de articulação do próprio negro era mais dificultosa, não
tinha uma intimidade maior com a educação. Se alguém fosse falar por mãe Menininha, ou pelo
terreiro, poderia cometer uma gafe grande. Então mãe Menininha dizia: “Olha, sou eu que falo
aqui!”. Ficava muito no indivíduo mesmo, uma centralização ligada a essas pessoas por causa
dos riscos que se corria. E a hierarquia interna muito dura mesmo. Hoje você vê umas pessoas
aqui, como Aline, que veio conversar aqui comigo, ela é funcionária do terreiro, mas é filha de
santo da casa, então ela trabalha no terreiro, recebe como funcionária do terreiro e ao mesmo
tempo é filha de santo do terreiro, faz obrigação no terreiro, vai estar com uma roupa de
obrigação trabalhando no terreiro, no passado você não podia nem imaginar isso. Por um lado é
bom, porque os pais e mães de santo podem cuidar com mais atenção do cultivo do axé mesmo.
193
Por outro lado, e correspondendo a essa nova configuração interna, pude captar, ao
longo das conversas com os seus representantes na esfera pública, uma releitura da tradição
que, assim como aquela captada nas análises das demandas apresentadas no Seminário, teria a
finalidade de destacar a existência ancestral de um fundamento político na egbé, a
comunidade de terreiro:
A gente também tem que ter cuidado com essa “novidade” do candomblé politizado. Pense no
Ilê-Ayê. Quem é que tá por traz do Ilê-Ayê? Mãe Hilda, a mãe de Vovô, uma mãe de santo.
Pense no Olodum? A saudosa mãe Alice, que tem quatro meses que faleceu, uma ialorixá. Aí
você vai pensando que diversos focos de resistência estão todos ligados ao terreiro. Então eles
falam: “Se eu corto esse canal de irrigação aqui, os caras não sabem nem mais qual é a origem,
qual é a base nem nada”. Assim fica mais fácil pra eles pegarem a pessoa no meio do caminho,
sem nenhum tipo de suporte.
Desse modo, devo destacar que, diferente da fala iconoclasta de Jaciara, essa
perspectiva reformista, que visa colocar “em perspectiva política” a tradição, mostrou-se
como o discurso hegemônico das lideranças vinculadas às políticas do reconhecimento.
Enquadrada nessa estratégia, a fala do meu informante ilustra o candomblé como um canal
irrigador de uma série de instituições hoje estabelecidas do movimento negro, vínculo que
serviria não apenas como um meio para se estender as implicações dos ataques evangélicos do
âmbito religioso para o étnico e o racial, mas também como uma forma de se neutralizar o
caráter extraordinário que a opinião pública da cidade tem aferido à “recente” politização da
religião. Por essa lógica, se houve algum dia de fato um modo negro de se fazer política, é
porque sempre houve a religião de matriz africana. Ela seria uma espécie de depositário de
poder negro, poder embasado em hábitos e visões de mundo muitas vezes representantes de
um modo autóctone de ser “moderno”, como ele mesmo destaca a seguir:
É o terreiro que alavanca, que vai falar assim: “Ei, olhe o respeito a esse meio ambiente. Olhe
você negro, que no 13 de maio de 1888 não tinha família, chegando aqui você encontrou um
pai, uma mãe, um irmão, um filho, um avô, uma avó, você recriou a família que não tinha. No
terreiro você recriou valores de respeitar as diferenças, no terreiro os idosos são fonte de
sabedoria, não é pra estar em asilo. No terreiro a um homossexual você vai ter que pedir a
benção, não é doente. No terreiro o deficiente físico vai ser comparado ao orixá Ossaim, que
tem um pode muito grande”. Ou seja, o terreiro é o que se tem de construção religiosa mais
moderna, para se respeitar numa sociedade tão diversa. E aí pessoas que falam: “Não use
camisinha”, e a AIDS matando, que vão falar que homossexual é doente reclama da gente...
sabe? Uma sociedade que diz que mulher é inferior, e no terreiro a mulher manda, é ialorixá, é
matriarca, tem que beijar a mão. Eu quero entender na verdade como é que tem tanta gente que
não é de candomblé? Como é que as pessoas conseguem ser de religiões que fazem tanto mal ao
eu, ao indivíduo, e ainda julgarem aos outros
?
194
Além de sublinhar alguns aspectos comportamentais da religião, como a sua relação
responsável com o meio ambiente e tolerante com as diferenças de gênero e sexualidade,
traços cada vez mais adequados a uma “sociedade tão diversa”, observa-se, nesta nova leitura
da tradição, a constante textualização do terreiro como um espaço que transborda os limites da
prática religiosa. Superando o campo da espiritualidade, esse espaço sagrado passa a
configurar-se num foco explícito de resistência, de inversão de valores e de cultivo de um
ethos “revolucionário”:
A sociedade no geral atinge tudo que tenha poder de corrompê-la, tudo que tem o poder de
mostrar que ela está errada, de meter o dedo e dizer: “Isso é mentira!”. Então eles dizem
“Vamos detonar esses caras, são um risco eminente, são revolucionários”, e revolucionários têm
que ser destruídos. Terreiro constrange, sabe? É o espaço onde o branco vai ter que entrar e vai
ter que bater a cabeça pro babalorixá. É o único lugar que eu já vi na minha vida em que o
branco político, médico, advogado vai ter que parar na frente daquele senhor que tava aqui,
baixinho, humilde, que estudou até o segundo grau, [refere-se ao babalorixá da casa] e ele vai
ter que baixar a cabeça, vai ter que bater a cabeça no chão e vai ter que beijar a mão. É o único
em que o branco vai beijar a mão de um negro, e vai falar: “Você é superior a mim”. E ainda um
negro que não foi pra faculdade, que não é doutor. É a inversão dos valores, e o cara fala: “Pô,
eu tô fodido com isso. O que é que eu faço? Eu vou ter que destruir esse troço, que é muito
louco, não vai dar pra mim não”. Aqui é o espaço de poder mesmo do povo negro e é por isso
que tem que ter sempre gente fazendo essa resistência, essa luta. E acreditamos que, se por um
lado, os neopentecostais acham que estão nos destruindo, eles precisam ser informados que eles
também estão nos auxiliando, nos auxiliando a remodelar a nossa resistência, nos auxiliando a
rever de que forma nós vamos fazer essa luta.
É esse mesmo movimento de extensão semântica das atividades que compõem a vida
dos terreiros, sempre realizado enquanto atividade de “reconhecimento”, que se percebe na
estratégia de visibilização da organização social da egbé pelo mimetismo das funções estatais,
principalmente aquelas associadas à assistência social. Confirmando as impressões deixadas
anteriormente, pela análise das reivindicações apresentadas no Seminário, foi freqüente em
minha conversa com os representantes que lá estavam a defesa de uma “função social” secular
nos terreiros, função finalmente desvelada aos olhos do estado:
Quando a gente fala que em 1922 tinha uma notícia de jornal de que o babalorixá foi preso
porque ele queria curar pessoas, pode-se pensar: o terreiro já oferecia serviços de saúde, como
oferece hoje. Serviços de cura, de saúde, tanto física quanto psicológica. Se ele faz isso e não
cobra nada, é um serviço social! O terreiro fazia, como eu te falei, ações de empreendedorismo.
Colocar as pessoas pra aprender a cortar um bicho, pra depois virar fateiro na feira. Então tava
fazendo um empreendedorismo pra depois as pessoas ganharem dinheiro lá fora. O terreiro já
garantia emprego e renda, já garantia saúde, já garantia educação, já fazia tudo isso. Só que o
terreiro teve que obrigatoriamente se legalizar por causa de um novo momento histórico e
também teve que criar uma série de normatizações para as ações que estava fazendo
.
195
Uma vez desvelada a identidade política e assistencial dos terreiros, resta às lideranças a
luta por torná-la viável sob o ponto de vista administrativo, o que significa dotá-la de
existência legal, em suma, oficial:
O fato do terreiro ser sociedade civil, primeiro é uma exigência do Estado, né? Não é que os
terreiros só tenham começado a fazer política quando o Estado exigiu, mas ele teve que se
legalizar dentro das normas estatais. O motivo das comunidades de terreiro se organizarem está
também nessa acessibilidade, de se chegar até financiadoras, de conversar com o Estado, com o
executivo, com o legislativo, com o judiciário de igual pra igual. É muito importante, porque
hoje nós sentamos com o secretário de Estado e falamos: “Não, a nossa sociedade, a nossa
comunidade, o nosso patrimônio exige que você tome medidas com relação a isso”. No passado
falavam “Sim, mas você é pessoa jurídica? Como é que eu vou poder repassar algum recurso
pra você se você não tem CNPJ?” Facilitou esse tipo de diálogo, mas não que nós não tenhamos
feito antes, é isso que eu quero deixar bem claro, pois pra algumas pessoas parece que a gente
só faz isso agora. Não é de hoje.
É essa política de tradução de práticas e categorias nativas para um registro oficial que
pude vislumbrar em uma série de entrevistas, quase todas guiadas pelo mesmo movimento
performativo de “encontro de si”:
Minha mãe fazia um trabalho social inconsciente. A pessoa vinha fazer o ebó, não tinha comida
ela fazia o ebó, não cobrava, dava o banho de erva, dava o chá e ainda dava alimentação. Por
isso que hoje eu to criando o projeto Tobô Ginâ, que é o nome do orixá dela, pra trabalhar com
as crianças, com a comunidade, resgatar o que é nosso, passar realmente a verdade da religião.
No início do capítulo, falávamos de um candomblé que teria o seu outro mais outro no
“pacto da nação”, situação que tenderia a empurrá-lo para o silêncio e para o segredo como
estratégias de invisibilidade. Da oposição paralizante entre “oficial” e “real”, passamos a
vislumbrar, nas falas apresentadas ao longo do capítulo, um candomblé que encontra
justamente na mediação de uma nova gramática oficial, a das políticas do reconhecimento, um
trampolim para uma nova visibilidade, mais ostensivamente política. Sob essas novas
circunstâncias históricas, a arena pública deixa de ser o campo do alheio e é elevada ao palco
onde se daria o drama reivindicatório do encontro “real” do candomblé consigo mesmo, ou,
nas palavras da minha informante, do encontro com “a verdade da religião”.
E o desrespeito frente a nossa ancestralidade. É isso que dói. É como se o fato de nós fossemos
de um Brasil que não quer ver a gente, de um Brasil que não quer reconhecer a gente, a gente
não fosse nada pra governo, pra ninguém. A gente quer entrar numa escola, a diretora não deixa
porque tá todo de branco numa sexta-feira. A gente vai colocar um ebó ali no meio da rua vem o
outro e não quer deixar. Então eu tô falando de direitos humanos, de artigos da constituição, o
artigo 5. Ou seja, o que mais eles [os evangélicos] têm feito é desrespeitar a Constituição, é
incitar o ódio religioso. O que mais nos tem doido é que não dá pra acreditar em “Estado de
196
direito”, quando na verdade esse Estado não funciona. Pra que ele funcione também, a gente viu
que ele tem que reconhecer a gente do jeito que a gente é, e é essa questão que os ataques
evangélicos trouxeram à tona, felizmente pra gente...
A declaração demonstra que estamos aqui diante de um processo triangular, onde o
espelho deformado da “intolerância religiosa” neopentecostal aparece frequentemente como o
vértice, o terceiro negativo, para a construção de novos vínculos entre o candomblé e a
sociedade nacional. Assim, através da sua captura discursiva pela “batalha espiritual”, os
terreiros de Salvador passam a questionar, reavaliar e reconfigurar, como nunca antes, a sua
inserção pública a partir do telos da justiça e do reconhecimento. O seu “real”, presença que
antes deveria ser protegida e resguardada da influência perecível do oficial, é dissolvido e
adiantado, passando a ter a função de objetivo, ou mesmo de utopia.
Sempre utilizado por seus outros como um espelho para que eles falassem de si, sejam
esses o estado, a política, a cultura popular ou as outras religiões, o candomblé deseja
finalmente falar-se publicamente, controlar e politizar a sua circulação enquanto grupo-signo.
No entanto, se tal superação do fosso “real”/”oficial” ocorrerá pelo aumento do valor de
realidade do universo oficial ou pela oficialização daquilo que seria o seu real, ainda não
podemos responder. O processo ainda caminha, ainda é obscuro, e é no seio das áreas
ambíguas que se originam as distinções, quando se originam.
197
CONLUSÃO:
“Deuses de quatro cantos”
: ficções eficazes espalhando espelhos
pelo chão do individualismo
(...)l’individualisme est d’ une part tou-puissant et de l’autre perpétuellement et
irrémédiablement hanté par son contraire.
Louis Dumont
[A expressão “deuses de quatro cantos” é uma referência ao poema “Mirror”, de Silvia Plath, que se encontra
transcrito na íntegra no corpo da dissertação. A expressão é utilizada por Plath com a finalidade de descrever o
espelho como um deus sem luz própria, um vazio performativo que, em conflito com a lua e as estrelas, vive a
expectativa irresoluta da sua completude].
198
Em um artigo hoje clássico, Luís Eduardo Soares (1993) analisa a “guerra santa” entre o
pentecostalismo e os cultos afro-brasileiros tendo em vista destacar as suas “dimensões
democráticas”. De acordo com ele, através dos traços tortuosos da luta entre esses grupos
religiosos, ambos fortemente entranhados nas classes populares brasileiras, estaria se
desenhando um fenômeno inédito de crise de hegemonia na sociedade nacional.
Paradoxalmente, Soares percebe nessa querela supostamente interna ao âmbito da “Senzala”,
inteiramente alheia ao olhar estupefato da “Casa-Grande”, o desenrolar de um processo de
integração que passaria além e aquém do crivo vertical da hierarquia brasileira:
(...) hoje, a relação social privilegiada no reordenamento do campo religioso é horizontal, o que
torna dominante o encontro com os iguais, e isto só é possível – eis o ponto chave – porque
parcela significativa dos passageiros está abandonando o grande barco da ordem brasileira
tradicional, cuja tripulação até então fora bem-sucedida em seu projeto de integração com
segmentação vertical (ou assimilação hierárquica, como diria o professor Roberto Da Matta),
muito eficaz para a preservação do poder das elites, para sua moderada renovação sob tutela (ou
por recrutamento do tipo paretiano) e para a limitação à mobilidade ascendente (206)
Abordado sob esta ótica, o conflito passa a indicar a ocorrência de uma crise, mas de
uma crise sofrida não pelos grupos que dele participam diretamente, incidindo, na verdade,
sobre o próprio arranjo sócio-político que teria submetido secularmente esses supostos
inimigos (irmãos sociológicos) a um crivo valorativo alheio à sua realidade, e que assim teria
impedido o desenvolvimento de alguma solidariedade interna a eles. Tal ruptura se deveria,
em última instância, a um contexto histórico de elevação do abismo entre a ordem oficial e a
realidade sociológica do país ao limite do suportável: “o barco está fazendo água e expelindo
mais do que a taxa média tradicional de exclusão, apesar dos inegáveis e decisivos avanços
institucionais” (206).
Nesses termos, a “guerra santa” seria um fenômeno permeado por elementos
“igualitários”, que poderiam ser agrupados em três aspectos principais: i) os dois grupos
representariam segmentos minoritários do campo religiosos brasileiro, ii) os ataques e defesas
que compõem a guerra prescindiriam da mediação estatal e iii) haveria uma intimidade
ontológica entre os grupos, explicitada pela aceitação, por parte dos pentecostais, da eficácia
mágica das entidades afro-brasileiras. Os três aspectos indicariam que, apesar de estarem em
conflito, pentecostais e afro-brasileiros formariam um campo uno quando pensados em
oposição ao catolicismo, representante religioso, cultural e político da ordem oficial em cujas
margens eles estariam inseridos: “No plano da religiosidade, os brasileiros pobres começam a
199
prescindir da direção católica da hegemonia tradicional que se exerce, fundamentalmente, no
plano simbólico” (213).
Resultando desta crise de hegemonia, Soares destaca a ocorrência de dois deslocamentos
complementares na cultura popular brasileira: a destruição de antigas e a estabilização de
novas referências simbólicas fundamentais: “Em lugar da linguagem católica ibérica, surgem,
com força, paradigmas inspirados pela reforma e vocalizados por pastores egressos dos meios
populares” (212). Assim, a religiosidade seria o palco para uma mudança valorativa no
sentido do apagamento das áreas nebulosas e ambíguas dos valores tradicionais, áreas
privilegiadas para o desenvolvimento da dominação doce e amena do nosso personalismo:
Nesse mundo em que a casa e a rua já não podem contar com a mediação da Senzala, a guerra
religiosa no interior das camadas populares é o maior sinal de que, no Brasil pós-ditadura, as
classes subalternas se aproximam e se ligam entre si, organicamente, através, mais uma vez, da
principal de suas linguagens, a religiosidade (207).
Essa espécie de postura negativa diante das fusões conciliatórias e dos hibridismos,
vinda de uma atitude beligerante e alheia a novas alianças, teria como um dos seus principais
sinais a emissão do sincretismo religioso para o plano do arcaico. Assim, uma nova
linguagem começa a se desenhar, com traços distintivos mais nítidos e, portanto, “modernos”,
como destaca o próprio autor: “A população pobre começa a descobrir uma nova linguagem e
uma outra forma de disciplina, outra maneira de conceber a ordem do mundo e de
experimentar a subjetividade, valores distintos, perspectivas diferentes” (213).
Desse modo, o pentecostalismo aparece, para Soares, como uma resposta retrospectiva
para o importante questionamento colocado por Velho (1995) alguns anos depois acerca de
quais seriam os novos “agentes de modernização” do Brasil. Nesse sentido, a articulação
guerreira entre pentecostais e afro-brasileiros, face empírica de uma possível substituição
estrutural do “patrimonialismo e da verticalidade estamental” pelo “igualitarismo segmentar
popular” (214), passa a ser pensada como um fenômeno de modernização movido por
agências que passariam ao largo das forças modernizadoras clássicas, como o mercado ou o
Estado
120
. No entanto, e apesar da força do argumento, o próprio autor assume que estaríamos
120
Tal associação é corroborada pela comparação que fecha o artigo de Soares, onde o avanço do
pentecostalismo brasileiro é comparado ao revivalismo evangélico inglês do século XIX, que teria disseminado,
na forma do Metodismo, uma espécie de “ética protestante do proletariado”, adequada ao contexto histórico de
forte industrialização do país.
200
aqui em um campo de problemas ainda em aberto: “Quando as elites deixam de dirigir a
cultura, correm o risco de ceder o comando político” (214).
A descida ao chão etnográfico obviamente impõe alguns limites imediatos ao campo de
reflexão extremamente abstrato descrito logo acima, que passa a manifestar-se muito mais
como uma rica proposta de pesquisa do que como uma apresentação de resultados. Logo na
abertura do artigo, após defender a necessidade de se apoiar esta mesma reflexão em “material
etnográfico sistematicamente elaborado” (203), Luis Eduardo Soares chama a atenção para
uma das principais ausências da sua tese: “seria necessário investigar as diferentes percepções
que os participantes do conflito têm a respeito de si próprios, como agentes religiosos, e dos
outros que agridem ou pecam, e devem ser contidos ou desmascarados ou purificados e
convertidos, conforme o lado da disputa que se adote” (idem). Um dos sintomas da natureza
muito mais sociológica do que antropológica do artigo, no sentido dele prescindir dos modos
com que os próprios agentes se pensam e pensam o outro no decorrer do fenômeno, é o fato
de a “guerra santa” textualizada ao longo das suas páginas ser composta apenas por um dos
lados que supostamente guerreiam: aquele dos pentecostais. Assim, a “guerra santa” torna-se,
na verdade, uma “ofensiva”, e é essa ofensiva que passa a ser pensada enquanto uma potência
modernizadora, o argumento rendendo-se, apesar de algumas resistências pontuais, à equação
de natureza weberiana hoje convencional (e que julgo problemática), onde moderno/
evangélico :: tradicional/ cultos afro-brasileiros.
Outra discordância fundamental que tenho frente ao argumento de Soares relaciona-se
com a leitura sócio-econômica dos agentes em conflito, materializada na hipótese de que
pentecostais e afro-brasileiros seriam “irmãos de Senzala”. Por um lado, não creio que a
cabeça da ofensiva evangélica em Salvador, a IURD, possa ser definida como uma igreja
exclusivamente “popular”, inclusive por abarcar, como vimos, uma larga clientela que, apesar
de não ser convertida, faria uso freqüente das suas práticas rituais, um segmento ignorado
pelas leituras estatísticas da organização. Uma visita a qualquer um dos templos da Universal
localizados em bairros de classe média (comuns na cidade) revela de imediato o largo fluxo
de pessoas com maior renda e instrução na direção dos seus cultos, setores cujo universo
fenomênico também se encontra contemplado pelo discurso lá defendido. Por outro lado,
apesar de estarem obviamente enraizados nas faixas mais empobrecidas e marginalizadas da
escala social brasileira, os cultos de matriz africana observam hoje uma tendência à crescente
201
afluência de setores brancos de classe média para o seu âmbito de convivência, seja como
clientes, seja como iniciados, passando por um processo visível de universalização.
A tese sócio-econômica peca também porque ignora o seguinte aspecto destacado por
Segato, algo muito comum nos estudos de religião:
Não podemos supor que todas as pessoas que convergem em um grupo – como, por exemplo, um grupo
religioso – perseguem o mesmo desejo-interesse ou participam da mesma subjetividade, e devemos
considerar que pessoas diferentes posicionadas em diferentes grupos, podem estar ali desenvolvendo
processos em parte não coincidentes (2005: 3).
Aplicado a este caso, a necessidade de distinguir a clientela do “board of directors” dos
grupos religiosos aqui em questão impede, por exemplo, que a constatação de que o público
da IURD seja “popular” não implique diretamente na assunção de que a sua lógica narrativa e
a sua administração também o seja. Essa advertência seria simétrica e inversa, caso fosse
aplicada aos cultos afro-brasileiros, onde o debate sobre o “embranquecimento” da religião se
mostraria dissociado da constatação da quantidade de brancos que freqüenta as suas
cerimônias.
No entanto, e apesar das discordâncias de conteúdo, gostaria de preservar da hipótese
acima apresentada o seu escopo formal, principalmente a proposta de se pensar um fenômeno
imediatamente dado como “religioso” através das repercussões mais arqueológicas que
tenderiam a acompanhá-lo. Tal ampliação de foco é realizada, no caso de Soares, através da
dissolução de categorias como “política” e “religião” em instâncias tidas como mais
fundamentais, como “cultura política” ou “cultura popular”, o que faria das duas primeiras
categorias simultaneidades contextualmente produzidas, ou seja, termos “em jogo”, e não
prévios a ele. É somente quando vislumbrada sob essa ótica que o momento de forte
efervescência da religiosidade popular brasileira representado pela “guerra santa” passa a
revelar, para este autor, a tensa constituição de um novo eixo sociológico que serviria de
suporte para novas fidelidades e novos valores, elementos que transbordariam por todos os
lados a idéia estrita de “campo religioso”.
Logo na Introdução, pude assumir a minha pretensão, talvez inspirada nesta mesma
proposta, de interpretar a “guerra santa” evitando enquadrá-la como um fenômeno de
concorrência inter-religiosa, que teria em vista, em termos bourdianos, a simples luta pelo
202
“monopólio” sobre uma determinada “clientela”
121
. Partindo desta resolução, defendi a idéia
de uma “guerra santa” pensada enquanto “jogo de espelhos”, ou seja, implicada em uma
abordagem dos ataques e contra-ataques entre neopentecostais e afro-brasileiros em Salvador
baseada nas especulações recíprocas produzidas pelos dois grupos. A partir deste
deslocamento analítico, e guiado teoricamente por uma concepção performática e sintética de
“discurso”, pude distinguir, no corpo das minhas informações de campo, alguns circuitos de
auto e de “alter” representação que vinculavam, através de pontes e saltos, as gramáticas dos
grupos ali em conflito.
Finalizada a apresentação dos dados, creio que agora seja possível perceber de modo
mais claro o fio condutor desta dissertação. Ele se situa, sobretudo, nas questões suscitadas
pelo encontro desestabilizador com o outro, choques de alteridade implicados com a produção
discursiva de ficções como “o demoníaco” e “o intolerante”, eficazes e circulantes em sua
capacidade de espelhamento. Esses seriam os “deuses de quatro cantos”, os mesmo que,
descritos por Weber, revelam a sua resistência em se deixarem circunscrever pelo
exclusivismo institucional que às vezes ronda os estudos do fenômeno religioso nas ciências
sociais:
(...) não há ação social nem individual que não tenha seu deus especial e precise dele quando
aspira à durabilidade garantida da relação associativa. Sempre que uma associação ou relação
associativa se manifeste não como posição pessoal de um detentor de poder individual mas sim
efetivamente como “associação”, ela necessita de um deus particular (Weber 2000: 286).
O sociólogo alemão parece captar com maestria essa “função deus”, que estabiliza e
dissolve vínculos, agindo como um “terceiro” propositor e sustentador de tríades coletivas e
subjetivas (mas sempre plurais), através das quais são colocadas em circulação estratégias
associativas. Nesse sentido, poderia dizer que, ao longo dos fenômenos que pude apresentar
ao leitor, percebemos tanto a religião quanto a política comungando da condição geral de
propositores de “terceiros”.
De agora em diante, e à guiza de conclusão, minha intenção será recuperar de modo
mais detalhado a dinâmica de atuação destes “deuses de quatro cantos”. Para isso, a questão
inicial que pretendo perseguir será: Quais vazios a presença conflituosa do outro preenche no
121
Essa hipótese é corroborada inclusive pelo crescimento estatístico tanto do pentecostalismo quanto do
candomblé em âmbito nacional, havendo, por outro lado, uma crise nos setores mais cristianizados dos cultos
afro-brasileiros, como a umbanda e quimbanda (Prandi 2005), fenômeno que parece corroborar a tendência, já
mencionada ao longo da segunda parte desta dissertação, a uma desvalorização, no interior desta última matriz,
das linguagens sincréticas em detrimento de uma valorização dos critérios de autenticidade.
203
interior dos movimentos discursivos colocados “em jogo” pela “guerra santa”? Subjacente a
esta questão etnográfica, veremos o desenrolar simultâneo de um problema mais geral,
inspirado no debate aberto por Soares, sem, no entanto, ter a pretensão de chegar a respostas
tão gerais quanto as suas: Como ambos os grupos colocam “em jogo” os termos do
individualismo através das batalhas que compõem a “guerra santa”? Tentarei responder essa
última questão perseguindo uma expressão que, em campo, pude ver sendo compartilhada
pela fala dos dois grupos com que mantive contato: a textualização do conflito enquanto um
meio para a “tomada de posse de si”.
De acordo com Louis Dumont (2000), um dos elementos fundamentais da ideologia do
individualismo seria a sua pretensão de fundar a sociedade na “propriedade”, em sentido
gramatical, o que implicaria em derivá-la do esforço de átomos individuais tanto pela “posse
de si” (o universo da “liberdade”) quanto pela “posse das coisas” (o universo da
“propriedade”, em sentido estrito): “Os homens são livres porque são proprietários de si
mesmos, de seus corpos e de seus trabalhos” (62). A análise é extremamente feliz em
demonstrar como a economia adquire a função de linguagem dominante na tarefa de
mediação do sujeito e do mundo na modernidade, não devendo ser entendida como apenas
uma “esfera” isolada da existência social, restrita ao âmbito de influência do mercado, a sua
contrapartida institucional.
Nesses termos, Dumont encontra na “tomada de posse” uma força sintética que,
partindo do âmbito individual, ou do campo volitivo do “mundo interior”, teria a capacidade
de, simultaneamente, fundar um “mundo” e uma “sociedade” que passassem ao largo das
considerações holistas e hierárquicas da tradição
122
. Através da “posse de si” pode-se,
portanto, estabelecer uma ordem humana autônoma (uma “sociedade”, palco da subjetividade,
distinta de uma “natureza”, palco da objetividade)
123
e fundar esta mesma ordem humana, a
“sociedade”, numa interioridade subjetiva autônoma e universal, fonte sagrada dos pilares da
122
Dumont (2000) afirma que o caráter hierarquicamente superior do econômico frente o político é fruto de um
processo histórico em que se migra modernamente de um universo holista, onde ocorre a primazia da relação
entre os homens frente a relação entre homens e coisas (mundo, natureza), para um universo individualista, onde
ocorre a primazia da relação entre homens e coisas (através da propriedade) em detrimento da relação entre
homens e homens.
123
Esse seria o corte cosmológico defendido pela oposição individualista entre “ser” e “dever ser”, o primeiro
correspondendo ao campo da ciência enquanto o segundo corresponderia ao da moralidade e da política.
204
vida coletiva, os mesmo que devem ser assegurados pela exterioridade institucional do Estado
e dos “direitos fundamentais”
124
.
Duas características da noção de “posse de si” me parecem torná-la um meio
privilegiado para uma reflexão acerca do individualismo. Primeiramente, a sua natureza
dinâmica, que possibilita uma abordagem analítica que, ao invés de supor o individualismo
como um dado estrutural prévio aos acontecimentos, fruto de uma ruptura definitiva com uma
configuração histórica anterior, tem nele um movimento constante de defesa de determinados
princípios gramaticais colocados “em jogo” pelo campo do eventual, e, portanto, abertos a
deslocamentos e novas sínteses criativas. Tal característica me parece estar colocada de modo
explícito pelo próprio Dumont (1985), quando este concebe a relação entre individualismo e
holismo como sendo de “englobamento”, e não de superação.
Por outro lado, se a “posse de si” faz do individualismo um movimento, uma força
dinâmica, ao invés de um estado, pode-se dizer que ela também dota de direção este
movimento, que é sempre da confusão para a distinção. Trata-se de uma força analítica, que
reafirma limites, defende classificações e purifica zonas ambíguas. É justamente por ser
analítico que o movimento de “tomada de posse de si” se mostra extremamente útil para se
pensar um caso etnográfico onde a alteridade acontece através de movimentos de fusão e
distinção identitária, ambigüidade e conflito.
Apresento, a seguir, os dois modos distintos de aparecimento da noção de “posse de si”
nesta dissertação, dentre os neopentecostais, mais uma vez representados pela Igreja
Universal, e dentre o candomblé. No que se refere ao primeiro grupo, veremos este
movimento realizar-se como parte da sua narrativa religiosa, principalmente na resolução
particular dada por ela ao problema do mal. No que tange o segundo grupo, este mesmo
movimento aparecerá como parte de uma narrativa “laica”, associado ao problema da
emancipação política. Em ambos os percursos, veremos o individualismo se apresentando
discursivamente em sintonia com a frase de Dumont (1985: 30) utilizada como epígrafe desta
conclusão, ou seja, atualizando-se como um movimento dramático, ou mesmo trágico, de fuga
da perseguição, neste caso, da “assombração”, literal, metafórica ou metonímica do seu outro,
o holismo.
124
O contratualismo e a noção kantiana de “imperativo categórico” parecem ser marcos históricos fundamentais
desta ideologia no que ela toca a política e a ética.
205
I- A Igreja Universal e a ubiqüidade do mal: construindo um cristianismo de/em
risco
Assistindo a uma “Sessão de Libertação”, reunião da IURD comumente realizada nas
sextas-feiras, tive contato com o “martelo da justiça”, o “fetiche” celebrado àquela ocasião
pelo culto. Após os cânticos, as ofertas e as pregações convencionais, um pequeno martelo,
construído à maneira semelhante aos utilizados pelos juízes de direito, era distribuído aos fiéis
presentes, de modo a ser ungido e consagrado, adquirindo assim um poder interventor na vida
dos presentes. No alto do púlpito, com o tom desafiador que o caracteriza, o pastor que
coordenava a sessão gritava alto aquele que seria o seu lema, assim como a postura geral nela
prescrita: “Conquistar para não sermos conquistados. Dominar para que não sejamos
dominados!”. Atitude que dava o tom de todo o ritual, sendo defendida insistentemente frente
aos fiéis através de frases como: “Você nasceu pra vencer irmão, para dominar, não para ser
dominado!”.
Chama a atenção de imediato o exclusivismo das opções ali em jogo: ou dominar ou ser
dominado, anulando-se qualquer possibilidade de uma posição neutra, de imediato absorvida
pelo pólo “fraco” da oposição. Essa mesma configuração se vê explicitada na continuidade da
fala do pastor em questão: “A idéia da reunião de hoje é a gente entender o que é ‘justiça’. Eu
vou falar o que é ‘justiça’, é tomar posse do que é seu. É conseguir aquilo a que você está
destinado, e que você ainda não tem porque não deixam”. Enquadrado por esta lógica
discursiva, o “martelo da justiça” deve ser batido nas carteiras de dinheiro e de trabalho
vazias, nos corpos doentes e fracos, ou mesmo ser levado para casa, de modo a transmitir para
os familiares e amigos dos participantes a força sagrada ativa e reivindicativa que se
manifesta no contexto ritual, uma força que “toma posse”.
Observamos, no ritual acima resumido, mais uma atualização metonímica do macro-
discurso apresentado na primeira parte desta dissertação sob a insígnia de “batalha espiritual”,
uma espécie de contraponto necessário à postulação do neopentecostalismo de que estaríamos
todos destinados à felicidade. Indiferente à administração da presença ou da escassez da
graça, vimos, nos dois capítulos que compõem esta primeira parte, que a IURD opera uma
estratégia discursiva que teria como foco principal a produção, disseminação e capitalização
dos malefícios. A função da Universal seria, portanto, “retirar barreiras”, antes de distinguir
os salvos dos não-salvos, situação que entrona a sua demonologia como o elemento que
justifica a própria existência da igreja enquanto instituição mediadora da relação entre o fiel e
206
o sobrenatural. (A IURD joga, sobretudo, com o “lado esquerdo” do mundo dos espíritos, não
negociando com o mal através de pacto ou sacrifícios, mas negociando contra ele).
Ao longo do primeiro capítulo, pude defender a função explicitamente expiatória
ocupada por essa demonologia “afro-brasileira” nos rituais de cura, deslocando-se a narrativa
cristã do registro internalizante da culpa e da “consciência endividada” (Nietzsche 1976) e
encaminhando-a na direção de uma espécie de hipertrofia ritual do evangelismo. Sob essa
ótica, mais do que “converter” os não-salvos através da moralização e controle do
comportamento, a finalidade central da religião seria “libertar”, de modo pontual e recorrente,
os enfeitiçados e possessos. É supondo a existência de um mal incontornável através do
controle ético de si que a IURD postula o seu papel indispensável de instituição capaz de
“fechar” o fiel para a ação mágica dos seus inimigos
125
.
Traduzindo de forma incessante as dores individuais em conflitos coletivos, a IURD
acaba por postular que o mal é sempre aquilo que vem do outro, é “maldição”,
freqüentemente lançada, como uma espécie de “dádiva-veneno” (Mauss 1999), pela mediação
mágica eficaz das religiões rivais. Constrói-se, nessas batalhas rituais, um discurso focado na
alteridade, e operado através da dramatização das formas de produção de vínculos com o
sobrenatural. Assim, o contrato saudável do dízimo, que mantém as partes distintas, e que é
orientado pela IURD através do intermédio do Espírito Santo, é contrastado com a troca
predatória dos “trabalhos”, que resultam na fusão ontológica, na “tomada de posse” da vida
daqueles que se iludem ao tentar dialogar com os “encostos” (nome genérico dado às
entidades maléficas).
Abordei a “frente de libertação” da ofensiva neopentecostal como mais uma faceta da
sua estratégia de sobrecodificação dualista das religiões rivais, que se realizaria sobre uma
ponte metonímica erguida sobre a tradição espiritual brasileira. Tal ponte, responsável por
articular um vasto repertório de entidades sobrenaturais em um campo de batalha unificado,
incidiria especialmente sobre aqueles “elementos mínimos” da religiosidade popular
destacados por Negrão: “A crença em Deus e nos espíritos, a manipulação destes últimos e
das demais figuras sagradas intermediárias entre Aqueles e os homens, dentro de um contexto
125
Resgatando a centralidade da figura do diabo para a narrativa cristã sobre a alteridade, a IURD parece
entender bem a função dinâmica imprescindível ocupada pelo mal na existência “Se eu pudesse usar a definição
que propus de oposição hierárquica, diria que o bem deve conter o mal inteiro sendo o seu contrário. Em outros
termos, a verdadeira perfeição não é a falta do mal, mas a sua perfeita subordinação. Um mundo sem mal não
seria ‘bom’” (Dumont 1985: 277).
207
moral cristão, constituiriam, pois, os elementos mínimos presentes na religiosidade brasileira
(1997: 72).
Um outro exemplo de abordagem metonímica do universo espiritual é fornecido por
Carvalho (1999), em sua análise da comunidade do Vale do Amanhecer, e serve bem como
contrapartida para uma melhor compreensão do caso neopentecostal. O repertório espiritual
encontrado pelo autor é impressionante, agregando-se, numa infinidade de “falanges” (asteca,
maia, inca, egípcia, tibetana, chinesa, cris), uma cosmologia radicalmente sintética, que
agrega tradições históricas de todo o globo de modo explicitamente “kitsch”, no sentido de
não obedecer a princípios classificatórios associados à coerência de forma ou conteúdo.
Enquanto figura de ligação, destaca-se a idéia do “sétimo raio”, responsável pela costura de
vínculos hierárquicos entre esse amplo corpo de entidades. Referindo-se à sua líder espiritual
maior, afirma Carvalho: “Tia Neiva deixou campo aberto para se acolher todos os espíritos
possíveis, dentro de um grande paradigma imaginário por ela denominado Corrente Indiana
do Espaço” (8). O Vale do Amanhecer fornece, portanto, um sistema de crenças em aberto, ou
“em constante mutação” (9), onde se oferece um “paradigma”, ou seja, um campo de
possibilidades gramaticais, quase irrestrito, com baixo grau de prescrição no que tange as
apropriações sintagmáticas realizadas por seus fiéis. A idéia metonímica de acúmulo é,
portanto, evidente.
É esse mesmo acúmulo metonímico de entidades espirituais que pude observar
assistindo aos rituais de cura da IURD, além de poder discernir aquela que seria a principal
força estimuladora desse movimento “horizontal”: a assunção da eficácia mágico-religiosa
dos sistemas de crença “inimigos”. Por outro lado, foi possível também perceber a ação
conjunta de um segundo movimento discursivo, bastante distinto do caso analisado por
Carvalho: a ação, sobre esse extenso panteão, de uma sobrecodificação dualista rígida e pouco
distributiva entre entidades “do mal” e “do bem”. Através desse deslocamento, observa-se
uma espécie de inflação do “mundo da esquerda” por parte da IURD, instauradora de uma
narrativa sobre a pessoa que textualiza o âmbito da subjetividade como um múltiplo campo de
batalhas, cercado de inimigos por todos os lados, entidades possessivas cuja existência
apontaria para um único porto seguro possível, o Espírito Santo, restando aos indivíduos a
iniciativa de costurar as suas alianças de acordo com os seus anseios.
Contextualizado por esta lógica, “livre arbítrio” significa, sobretudo, liberdade de
vincular-se, ou seja, de dar-se a “terceiros” espirituais de modo a preservar ou não uma
208
configuração interior estabilizada e autônoma. Nesses termos, a “autonomia individual” de
modo algum indicaria uma presença interior, um dado a priori acessado pela superação
política e cognitiva dos véus da tradição, mas o resultado a posteirori de alianças contratuais,
ou seja, não “possessivas” com terceiros que, apesar de espirituais, seriam bastante concretos
e cotidianos em sua capacidade de sustentar ou desestabilizar a subjetividade humana.
De modo estranho, mas sintomático, o neopentecostalismo parece corroborar e se
apropriar estrategicamente de uma concepção de pessoa trágica, ou seja, fadada à
multiplicidade, assim como aquela descrita abaixo por Nietzsche:
O eu não consiste na atitude de um único ser frente a várias entidades (instintos, pensamento,
etc.); pelo contrário, o eu é uma pluralidade de forças quase personificadas das quais ora esta ou
aquela ocupa a frente do palco e toma o aspecto do eu; deste lugar, contempla as outras forças,
como um sujeito contempla um objeto que lhe é exterior, um mundo exterior que o influencia e
determina: o ponto da subjetividade é móvel (1938: 185).
Antes de supor a unicidade do eu, a idéia é colocar essa unicidade como um fim, um
tesouro de guerra, sempre buscado e ameaçado, o individualismo constando como um objeto
de desejo, cujo constante adiamento não pára de alimentar a atitude de “posse de si”. A partir
de então, configura-se uma espécie de “economia política da (des-)graça” que capitaliza esse
“ponto móvel” da subjetividade através de uma lei geral de circulação, que pude acessar
através da análise do drama ritual da pessoa na Igreja Universal: “Dar-se para quem pode
retribuir e, assim, fechar-se para que pode tomá-la”
126
.
Foi esse mesmo discurso, atualizado no ritual enquanto “meta-aprendizado” (Bateson
1958: 293), que pude ver sendo disseminado publicamente através dos meios de comunicação
de massa no segundo capítulo, adentrando o cotidiano dos telespectadores como uma
presença maléfica rumorosa, que circula através de modos fundamentalmente “arcaicos” de
explicação de infortúnios: a feitiçaria e o contágio. Assim, o sagrado contratual permanece
dentro do templo, enquanto o mal possessivo contagia o cotidiano da cidade, conformando-o
como um “território inimigo”. A eficácia maléfica do outro passa, assim, a ser indexada nas
coisas, formando um circuito de transferência de tipo oposto e simétrico àquele constituído
pelos “contra-fetiches” distribuídos nos cultos.
126
É evidente a forma “horizontal” ou “igualitária”, segundo Soares, com que se dá a relação entre a IURD e os
cultos afro-brasileiros. O candomblé e IURD se apresentam, de acordo com a IURD, como dois modos de
mediação das forças mágicas: um ciclo de trocas vicioso, anti-social, irracional, que quer sempre mais oposto a
um ciclo de troca racionalizado, contratual e lógico.
209
É justamente esse mal habitual que empurra os clientes para a prática ritual, operando no
interior de uma oposição onde rito/ purificação individualista :: cotidiano/poluição holista
127
.
Nesse sentido, a economia discursiva da IURD acerca do bem e do mal tende a enfatizar
estrategicamente o segundo pólo, fato esclarecido pelo argumento weberiano acerca da
importância do cotidiano para a questão do dualismo religioso:
Na prática, porém, o que sempre importou e ainda importa é quem mais interfere nos interesses
do indivíduo na vida cotidiana, se o deus teoricamente ‘supremo’ ou os espíritos e demônios
‘inferiores’. Se são os últimos, então a religiosidade cotidiana está determinada sobretudo pela
relação com estes, independentemente de como se apresente o conceito oficial do deus da
religião racionalizada (Weber 2000: 289
).
A tendência expansionista do mal prosaico e ubíquo defendido pela IURD invade
inclusive o universo cotidiano daqueles “eleitos” pelo bem estar material e social, fazendo do
“estar bem” uma posição de risco, como corrobora a fala de um pastor em um programa
televisivo da IURD:
Você que está em casa, tranqüilo, você acha que está bem, tudo certo com você e a sua família:
emprego, saúde, harmonia. Mas você pode ter tido o seu nome enterrado numa encruzilhada,
queimado numa mata por um pai de encosto... e nem sabe. É a inveja, ela nunca deixa a gente
ficar numa paz total. Você sentiu um calafrio quando eu disse isso?
Não há como escapar dessa equação extremamente fechada entre forças anti-sociais e
transmissores materiais de infortúnios, como as comidas, os lugares, o sangue (no caso da
transmissão hereditária dos encostos) e a manipulação de objetos na forma de “trabalhos”.
Entre enfeitiçados atuais e possíveis, não resta nenhum ponto duradouro de segurança
ontológica, ou de perene “posse de si”.
É interessante perceber como essa concepção trágica de individualismo deixa de
comungar com a visão “moderna” de diabo, que poderia ser sintetizada, apropriando-me do
título de um livro de Joyce Salisbury (1994), pela concepção de “the beast within”, ou seja,
um mal vivido enquanto interioridade moral e consciência pecadora, geralmente associado à
atitude fundamental de controle de si. Em seu interessante livro sobre a história do diabo no
Ocidente, Muchembled (2001) destaca uma tendência geral da passagem do contexto
medieval para o moderno: “A imagem do diabo se transforma em profundidade, distanciando-
se inelutavelmente da representação de um ser aterrorizante exterior à pessoa para tornar-se,
127
Há também a possibilidade de se estender o poder libertador do templo para o cotidiano de modo pontual
através dos fetiches.
210
cada vez mais, uma figura do Mal que cada um traz dentro de si” (238). O autor segue,
demonstrando como a idéia de um “demônio interior” seria devedora do avanço da concepção
dualista e hierárquica de pessoa, a mesma que, de acordo com Elias (1994), seria veiculada
pelo “processo civilizador”
128
.
A essa oposição entre a origem exterior ou interior do mal pode ser adicionada uma
outra distinção, esta destacada por Louis Dumont, e que se refere ao tipo de vínculo existente
entre o mal e o seu oposto, o bem: “Para uns, o mal é somente a falta ou a insuficiência do
bem, o vício em seu limite ou o grau zero da virtude; para outros, o mal é um princípio
independente endereçado ao seu oponente, como a vontade de Satã desafia aquela de Deus”
(1985: 277). Ao cruzarmos os dois critérios apresentados, observamos então uma tendência a
se associarem o mal interior e gradativo, assim como o mal exterior e dicotômico, ambos os
eixos colocados em paralelo entre si. Nesses termos, esses eixos distinguiriam,
respectivamente, explicações de malefícios articuladas ao movimento subjetivo de
responsabilização daquelas associadas à expiação (ou à des-responsabilização).
Ao longo da minha análise, percebi que a IURD tenderia a ocupa, e com forte ênfase, o
segundo pólo, as suas especulações sobre os cultos afro-brasileiros baseando-se na gramática
de um cristianismo “sem culpa”, com uma temporalidade agonística e sacrificial, centrada
mais na ruptura e no esquecimento ritual de si do que no cultivo da memória e do “mundo
interior”. A ruptura com as correntes históricas do protestantismo é evidente. Nelas, vemos o
ascetismo ativo voltado tanto para o “si mesmo”, palco do controle ético do comportamento,
quanto para o “mundo”, onde se produzem os sinais da graça através da weberiana ética do
trabalho. Esse movimento de saída das coisas tendo em vista dobrá-las à vontade humana
representaria a “face de Juno” do ascetismo protestante, onde renúncia e domínio do mundo
se equacionariam
129
.
No caso do neopentecostalismo, o que se observa é o englobamento do outro-como-mal,
instaurando-se, assim, uma espécie de monoteísmo guerreiro que, muitas vezes, revela-se
128
De forma sumária, pode-se dizer que a hipótese básica de Elias é a de que a formação do estado na Europa,
realizada, a princípio, enquanto um lento processo de monopolização da violência, teria ocorrido de forma
paralela ao estabelecimento de certo modo de subjetivação, responsável por uma economia pulsional adequada
ao despontar de um novo modo de vida. A partir de tal processo, o corpo passa a existir como um tema para a
moral e como uma realidade material para a ciência. Prescrevendo-se uma atitude vigilante da subjetividade
frente ao seu invólucro material, a modernidade acirra a noção dualista de pessoa do cristianismo, bastante
matizada pelo universo mágico medieval. O homem passa a dividir-se em dois âmbitos distintos e hierárquicos,
o privado e o público, e observa a si mesmo num distanciamento crítico e disciplinador.
129
Uma outra postura possível na renuncia do mundo, de acordo com Weber, seria a fuga contemplativa, que, ao
invés de propiciar o desenvolvimento da ética do trabalho, animaria o universo das técnicas corporais.
211
quase como um dualismo, em estilo zoroastriano, onde o bem e o mal aparecem como forças
distintas em fundamento. Neste caso, não se trata de um sujeito que se resolve no mundo (seja
ele “interior” ou “exterior”), o palco da graça, tendo em vista negá-lo, mas que se resolve no
outro, ou através do outro, contra uma des-graça potencial.
Essa guinada de um mal interiorizado, “civilizador”, para uma narrativa tencionada
acerca da alteridade, tem como correspondência a centralidade da idéia de risco para o
discurso neopentecostal. Nesse sentido, vimos, ao longo do segundo capítulo, a multiplicação
fantasmagórica desse outro maléfico na vida das pessoas através da configuração de um
circuito metonímico de transferência incontornável sob o ponto de vista individual: “Só o fato
de ir lá [em um terreiro], em estar na companhia de alguém de lá, em falar com alguém de lá,
a pessoa já dá autorização para o encosto entrar, fica lançada por aquele mal e impedida de
sair”. Através da organização discursiva do “contato” como transmissor de risco, desvela-se
não somente uma concepção de objeto com traços claramente holistas, articulado à
interioridade subjetiva de modo maléficos (feitiço) e benéfico (contra-feitiço), mas também
uma concepção “aberta” de subjetividade, que polui e subtrai a interioridade do outro através
dos contatos sociais
130
.
O evagelios da IURD, a “boa nova” que a sua existência veicula, é a possibilidade de
haver proteção contra o risco de se habitar o campo do outro, o risco que ela mesma
dissemina. Diante dessa paisagem, e inserido em um universo narrativo cercado por todos os
lados pela eficácia mágica e pelo risco de descentramento que habita a presença ausente do
outro, duas motivações para a ação parecem ser deduzidas: i) a libertação, uma blindagem
ritual temporária, resultante da abertura de um ciclo virtuoso de trocas oposto ao ciclo
possessivo dos “encostos”; ii) e a evangelização do inimigo, vivida enquanto “mudança de
lado”, um modo de fechar o ciclo vicioso dos feitiços impossibilitando a mediação desse
poder possessivo. Sempre ameaçado pelas assombrações da alteridade, restam essas duas
opções de “posse de si” ao fiel da IURD.
130
O acontecimento do mal na narrativa neopentecostal, intimamente associado à idéia de risco, mostra-se
bastante semelhante ao “sinistro”, o “unheilich”, freudiano: “(...) o sinistro é muitas vezes produzido facilmente
pelo apagamento da distinção entre imaginação e realidade, como quando algo que havia sido até então
considerado imaginário aparece diante de nós em realidade ou quando um símbolo adquire a função e o
significado completo daquilo que ele simboliza (...)” (1963: 50). Os dois compartilham a idéia do aparecimento
de algo que sempre esteve lá. No caso neopentecostal, trata-se do aparecimento de um outro maléfico e holista
no cotidiano do individualismo.
212
Na primeira opção, trata-se de “tomar posse de si dando-se para outro”, para um Espírito
Santo contratual e analítico, que se presentifica nos rituais. Já na segunda opção, atualizada
nas invasões de terreiro e na luta pelo apagamento dos traços contagiosos dos cultos afro-
brasileiros da cena pública, trata-se de “tomar posse de si tomando posse do outro”, o outro
que “toma posse” representado pelas religiões de possessão, atacando-se o mal em sua
mediação humana.
II- O candomblé e o controle ét(n)ico de si
Em uma das minhas visitas à FENACAB, a Federação Nacional dos Cultos Afro-
Brasileiros, localizada no bairro do Pelourinho, tive contato com um surpreendente e
sintomático cartaz na sua sala de espera, que reproduzo logo abaixo:
O aviso representa, com extraordinário poder de síntese, um importante campo de
problemas avivado e dinamizado de modo especial no mundo dos candomblés de Salvador
após a instalação da presença demonizadora dos neopentecostais na cidade. Tomando forma
no seu interior estariam as questões suscitadas pelo crescente desejo de regulamentação por
parte da religião, tendo em vista a gestão mais concatenada tanto da sua organização interna
quanto da sua imagem pública. Questões relativas, portanto, ao debate macro acerca da
representatividade, que neste caso se refere, sempre de modo performativo e transformador,
tanto à relação interna entre os diferentes terreiros e nações quanto às pontes postuladas entre
a sua (suposta) unidade (política, cultural, religiosa?) e a esfera pública em geral. Animando
esse movimento, observa-se a disposição de setores do povo de santo a defender cada vez
mais ostensivamente um maior “controle de si” da religião, tradicionalmente plural e pouco
articulada.
A FENACAB comunica: As obrigações sem autorização desta Entidade não serão
reconhecidas, sendo cobrada uma multa para oficializar o seu reconhecimento.
A direção.
213
A frase demonstra, conjuntamente, a série de paradoxos que se revelam ao longo desta
tentativa de produção de canais de mediação embasados em uma autoridade política laica,
como o é a FENACAB, sobre uma organização religiosa fundada em outros critérios de
autoridade e poder, alheios a critérios meritocráticos e democráticos
131
. Tais paradoxos
parecem ser visibilizadas, encarnados, na própria grafia do cartaz, que desvela o estatuto
ainda ambíguo dos agentes “em jogo” neste processo. Quem reconhece as obrigações? Os
Orixás, as “entidades”? Ou a “Entidade”, a instituição, que aparece no documento com um
forte tom molar e “monoteísta”, em sua tarefa de sobrecodificar a teia móvel e complexa de
vínculos existenciais que encerra a relação filho-de-santo/orixá? Observa-se, nessa tentativa
de instalar um “terceiro” formal nas “obrigações” (religiosas, sagradas), de modo a cercá-las
por obrigações (jurídicas), mais uma atualização do processo que defini, ao longo do quarto
capítulo, como o avanço gradual de valores oficiais dentre os terreiros, comunidades
historicamente configuradas em torno de uma linguagem das margens, centrada na oposição
entre real e oficial e nas estratégias de ocultamento.
Contrária a esse movimento tradicional centrípeto, realizado pelo constante adiamento
de si do candomblé, observamos, ao longo da segunda parte, a configuração crescente de um
contexto histórico e político que o aborda demandando a sua real identidade, cobrando a sua
verdade. Questionada por mim sobre qual seria o principal impacto da ofensiva
neopentecostal na vida dos terreiros da cidade, respondeu uma vez uma ekédi, após uma longa
pausa para reflexão:
O candomblé tem que parar de se esconder, sabe? Esses ataques dos pentecostais mostraram que
a gente tem que mudar a ignorância que ainda existe no Brasil sobre os cultos de origem
africana. Temos que ter mais iniciativa, mostrar a nossa cara, dizer que a gente não é e nem
cultua o demônio. Parar de ser usado e mostrar o que a gente é, entendeu? Eu acho que é isso
que a gente tira dos ataques dos evangélicos. Nesse sentido, eles chegaram até em boa hora,
entendeu?
A fala descreve bem os efeitos desestruturadores propiciados pelo espelho deformado
dos evangélicos sobre a economia da alteridade e identidade da religião dos orixás. Ela narra a
entrada em cena do “inimigo que faltava”, essa expressão tão recorrente ao longo da minha
As tensões entre esses diferentes princípios organizacionais frequentemente descambam em conflito, o que se
observa no baixo grau de legitimidade da Federação perante os candomblecistas de Salvador. Uma vez, ao
conversar sobre a FENACAB, tive contato com um desses choques, neste caso, entre a impessoalidade
burocrática e o “tempo de santo”: “Teve uma velha, mãe-de-santo e tudo, de muitos anos. Ela não pagou a
taxa. Acredita que reclamaram e multaram a senhora! Onde está a hierarquia? Eu não entendo aonde essa
FENACAB que chegar...”.
214
estadia em Salvador, uma expressão que, com evidente teor salvacionista, descreve a função
utópica instaurada na gramática afro-brasileira pelas batalhas travadas contra esse outro
intolerante, mas redentor, cujas particularidades, destacadas logo abaixo por Soares,
estimulam de modo inédito o desejo de autonomia da religião:
O catolicismo acusava o afro-brasileiro de blasfemo e se associava ao Estado, que reprimia as
manifestações desta religiosidade popular chocante para a sensibilidade forjada em moldes
europeus. O pentecostalismo não tem poder de polícia, nem interfere no Estado; ameaça o
“povo do santo” com as armas da palavra, das acusações e manifestações públicas. Por isso,
também a estratégia reativa não pode apenas reiterar a velha camuflagem sincrética. Requer
disposição para um enfrentamento horizontal, de igual para igual. Até mesmo as parcas
vantagens indiretas de ser vítima desaparecem (Soares 1993: 212).
Cotejando o que vi em campo com a descrição de Soares, diria que a presença
evangélica de fato acirra o desejo de conquista, em alguns setores do candomblé em Salvador
(deve-se destacar esse caráter parcial), de uma derradeira “libertação” da religião, realizada
através de estratégias ostensivas semelhantes às destacadas por Soares para referir-se aos
pentecostais: “as armas da palavra, das acusações e das manifestações públicas”
132
. Por outro
lado, essa presença também implica em uma reconfiguração “triangular” dos vínculos entre o
candomblé e o Estado, impulsionando assim a infiltração, em uma relação hoje “em aberto”,
graças à desregulamentação do controle policial da religião, do discurso das políticas da
identidade, ou do “reconhecimento” (Taylor 1994). Assim, as particularidades dos novos
inimigos acabam por fazer do velho inimigo oficial, aquele da cidadania e dos direitos, um
possível parceiro e protetor, mas um parceiro que, como vimos, seria regido por critérios
seletivos de visibilidade.
Sem ter a esfera pública como o seu “campo inimigo”, sobre o qual ele teria que habitar,
seja metafórica ou metonimicamente, o candomblé hoje estaria livre para depender de “si
mesmo”, para dissociar-se das margens, como demonstra o debate contemporâneo acerca da
“verdade” do sincretismo. Mas liberado para quê? Por um lado, para se auto-gerir. Por outro,
e como parte inerentemente associada à primeira resposta, para “ser ele mesmo”, evitando as
mistificações e demonizações sem ter que apelar para máscaras identitárias. Nesses termos, os
neopentecostais e o Estado aparecem como duas agências de interpelação da religião dos
132
Neste trecho, onde Soares destaca as armas utilizadas pelos pentecostais na “guerra santa”, observa-se certa
tendência deste autor a ignorar as estratégias macro de ataque, como os meios de comunicação de massa, o que
deixaria clara a assimetria deste conflito, tema pouco discutido por este autor.
215
orixás, que através da guerra e da troca demandam a sua verdade como condição para a sua
libertação.
A ilorixá Jaciara dos Santos, uma das figuras mais públicas deste “novo candomblé”,
que menciono extensamente no último capítulo, uma vez declarou a necessidade desse olhar
regulatório e distintivo sobre o culto ao propor um “selo de qualidade”, que indicaria o grau
de autenticidade das práticas ali realizadas:
A gente do candomblé tá perdendo isso, eu queria até ser presidente da Federação dos Cultos
Afro, porque eu ia criar um selo de qualidade do terreiro, onde teria a história, a nação. O
pessoal só poderia entrar naquele terreiro se existisse aquele selo: “religião de matriz africana”,
autêntica, os babalorixás e ialorixás são sacerdotes realmente, uma linguagem certa pra pessoa
entender. Agora eu vejo em apartamento, uma mulher bota uma saia e diz que é mãe-de-santo!
Não cultua o orixá a altura.
Por sua vez, um outro informante destaca com clareza o modo com que o avanço
neopentecostal desencadeia essa espécie de “busca de si” por parte da religião, que
fundamentaria tal desejo regulatório:
Algumas pessoas saíram de fato do candomblé pra Universal, outros retornaram e outros não
saíram. Eles estão tirando gente de todas as religiões, mostrando que se você for da IURD você
vai ter poder. Saiu adepto do candomblé? Saiu, em uma grande quantidade. Do nosso terreiro
não teve caso nenhum. Todos que passaram por aqui ficaram. Existe um fato hoje em dia, o
fator de uma grande peneira, com um olhar meu, muito particular. Nessa peneira estão todos os
candomblés dentro dela, está sendo peneirado. Aí, na verdade, o que passar nessa peneira são os
que realmente não tinham como continuar e os que ficarem são os que tinham como continuar.
Na verdade também eu sou do candomblé, mas eu noto muita coisa errada dentro das casas.
Algumas casas têm procedimentos extremos, extremos. E isso fez também com que as pessoas
não ficassem dentro da religião, não entendessem o que ela é.
Organizando essa “grande peneira”, a que nos alerta o pai pequeno, pude observar o
trabalho discursivo insistente de dois critérios centrais: a ética e a etnicidade, a última
funcionando enquanto “grau de africanidade”. Mesmo ao longo do terceiro capítulo, onde o
candomblé se relaciona com a IURD de modo francamente horizontal, evidencia-se esse
desejo de distinção, onde o corte entre terreiros de “axé forte” e “axé fraco” se torna visível
através da distribuição desigual de adeptos do candomblé convertidos pelo pentecostalismo.
Axé forte é axé mais africano, mais ético e cuidadoso com a sua relação com o mercado de
bens religiosos e, por isso, mais apto a manter os segredos, o controle sobre o princípio
transbordante em cuja circulação se delimitaria, sempre fluidamente, a comunidade do povo
de santo. Nesse capítulo, observa-se o desejo de controle de si do candomblé vivido enquanto
desejo de regulamentação do seu poder de agência e englobamento, o axé.
216
Já no quarto capítulo, saímos do universo radicalmente agregador e metonímico do axé
para o território metafórico da representação, observado pelo intenso debate em torno da
circulação do candomblé-enquanto-signo na sociedade nacional. Nesse momento, o debate
acerca do autocontrole da religião dá-se enquanto estratégias de auto-representação. Nele,
desenrola-se a luta contra os conceitos alheios, contra as alter-caracterizações, utilizando-se o
demônio evangélico como um caso particular de uma luta semântica ampla, que inclui formas
mais amenas de inserção incorreta do grupo na nacionalidade, como “seita”, “folclore” ou
“cultura popular”. Tal postura crítica e desconstrutiva incide, conjuntamente, e agora de forma
propositiva, sobre o campo da auto-caracterização do grupo, onde o controle ético serve como
meio para uma religião tida como mais “religiosa” do que festiva, enquanto a etnicidade serve
como um meio para o grupo desenhar-se como um outro que dialoga sem se misturar com a
sociedade nacional e com a religião nela hegemônica.
No que se refere ao campo da ética, foi freqüente a associação entre o tema da ofensiva
neopentecostal e a conformação de uma autocrítica a determinados desvios de conduta
praticados pelo povo de santo, que dariam razão aos ataques evangélicos e à saída de filhos de
santo. Essas críticas foram focadas, sobretudo, em duas áreas. A primeira delas refere-se ao
uso do dinheiro na religião, como destaca a fala logo abaixo:
Eu tenho uma menina que veio aqui desesperada e disse que tem um camarada na Barra, que
tem um candomblé lá, e ela chegou lá pra uma consulta com ele, ele botou essa consulta, cobrou
200 reais com trabalho com tudo. Ela pagou 200 reais achando que a vida ia melhorar, quando
ela voltou pra fazer a revisão, o cara disse que o Exú queria um banquete, e aí o que aconteceu.
Ele disse que tava manifestado de Exú, e aí foi em cima dela, e ela com medo perguntou: “Esse
banquete vai custar quanto?”. E ele: “700 reais. Você bota o banquete pra mim na rua!”.
Entendeu? Ela veio chorando, desesperada, porque ele tinha o nome e a foto dela, que ela tinha
dado pra fazer o trabalho, e ficou com medo que ele fizesse alguma coisa com ela. Isso também
não é um lado ruim pro candomblé? É! Dá margem a esse tipo de acusação da igreja. O nosso
povo de santo normalmente não quer falar sobre isso, mas eu falo. Eu falo porque sou do
candomblé, vou no candomblé dos outros e observo coisas por demais.
Outro tema recorrente foram as críticas referentes ao lugar da sexualidade no culto,
desenhando-se uma espécie de olhar moralizador das suas práticas rituais:
Tem um candomblé aqui mesmo, no Beirú, que simplesmente o camarada fazia festa de Exú e
depois ele estava, segundo ele, manifestado e de falo em pé! Então você observa que isso não
seria uma procedência pra uma prática religiosa. Enquanto você vai nas casas tradicionais, com
todo respeito às casas pequenas, não quero dizer que uma casa pequena não possa ser uma casa
de respeito, de bom costumes, ela pode ter tudo isso agregado dentro dela. Mas eu vou no Opó
Afonjá., não somente lá, já fui no Bate-Folha, já fui no Tumba Jussara, já fui no Nubenci, já fui
217
em outros terreiros, que são terreiros que guardam hoje em dia as suas origens, e você não
encontra isso.
Esse mesmo movimento incide inclusive sobre a presença dos homossexuais na religião,
defendida freqüentemente como uma das características mais democráticos da sua
organização:
De você pegar determinado assuntos, determinadas coisas, botar na mão desse povo, e esse
povo sair daí profanando. Como você vê que na Bahia se falava muito “mona”, “a mona”, nada
contra os homossexuais, mas acho também que eles destruíram o candomblé. Seu Joãozinho da
Goméia se vestiu de mulher, botou um colã, subiu num palanque lá no Rio de Janeiro pra
desfilar, uma traveca, eu chamo de traveca logo porque eu perco logo o respeito. Aí você vai ter
o quê? Pessoas que estão dentro do candomblé no decorrer de um tempo que usam o candomblé
pras coisas sexuais deles.
O julgamento negativo do pai de santo Joãozinho da Golméia parece revelar um dos
aspectos desta tendência contemporânea “analítica” de setores do candomblé da cidade, que
aqui se mostra preocupada com a defesa de uma religiosidade “séria”, “limpa”, livre de
ambigüidades e blindada a possíveis leituras equivocadas. Joãozinho foi o grande mestre de
uma estratégia de inserção do candomblé na cultura nacional, realizada entre os anos 40 e 60,
junto à sua mudança de Salvador para o Rio de Janeiro, centrada na exploração da dimensão
estética e festiva do culto, apelando muitas vezes para o diálogo com o fascínio popular sobre
os seus elementos transgressores
133
. No contexto aqui em questão, observa-se uma espécie de
crise no “ethos festivo” (Amaral 2002) do povo de santo, isolando-se a espiritualidade das
dimensões “totais” da religião, o que tenderia a transformar Joãozinho em uma espécie de
produtor e divulgador nacional de equívocos e confusões quanto ao candomblé.
Eu me envergonho hoje não de ser do candomblé, coisa que eu nunca tive vergonha, me sinto
hoje em dia envergonhado de ver certos elementos que se dizem pais e mães de santo, pra poder
chegar e manipular o candomblé de modo a fazer uma coisa completamente diferente do que
nós pudemos ver no passado. Candomblé é um lugar de você entrar religiosamente, sair
religiosamente, a sua vida fica lá fora, aqui dentro só há vida espiritual, não há carnaval, essas
coisas. Isso deu muita razão também pra que o povo de santo, alguns que se sentiram
prejudicados, realmente arrumassem a sua sacola e fossem pra outra religião, porque não
133
De acordo com Lody e Silva: “O candomblé da Goméia vai à rua, aos clubes, às boates, à passarela, ao
carnaval, aos festivais, aos eventos de exaltação afro-brasileira num momento histórico em que o terreiro ainda
não possuía a (relativa) legitimidade que conquistaria somente nas últimas décadas do século XX. Joãozinho dá
visibilidade ao candomblé com ações transgressoras em vários sentidos” (2002: 174). Assim, a crítica a
Joãozinho seria a crítica a uma inserção dos cultos afro na identidade nacional centrada na música popular, nas
danças e nas roupas, estratégias apolíticas que colocariam o candomblé na nação, sem, no entanto, dar a ele lugar
aos olhos do estado, dos direitos.
218
suportou talvez mais a intensidade das coisas negativas que a própria religião lhe ofereceu.
Deixar as coisas lá fora, entrar no barracão com respeito e devoção, é isso que falta.
É dentro desta proposta de defesa crescente do “respeito e devoção” pelos orixás,
através de uma maior regulamentação da religião, que se formula hoje em dia em Salvador
um importante projeto, levado à frente pela FENACAB e já em finalização: o “Código
Nacional de Ética e Disciplina Litúrgica da Religião Afro-Brasileira”. O projeto justifica-se,
logo em seu início, como um modo de não permitir que “o anseio de ganho material sobreleve
à finalidade social e espiritual, aprimorando-se no culto dos princípios éticos e no domínio da
ciência Religiosa, de modo a tornar-se merecedor da confiança da sociedade como um todo”.
Segue, através de artigos e capítulos, formalizando a hierarquia do culto, os seus ritos e as
nomenclaturas, definindo aquilo que faz vínculo ou não com os terreiros (ou seja, a diferença
entre “cliente” e “filho de santo”), definindo deveres do sacerdote e normalizando a prestação
de serviços por parte deste. Alguns pontos que já foram citados estão aqui também
explicitados, como o controle dos segredos, no Art. 5: “É inviolável os segredos do axé tais
como: iniciação, bori, rituais e orikis”; assim como a privatização da sexualidade, no Art. 7:
“A sexualidade dos Sacerdotes e dos cargos do art. 2, ficam restritos a sua particularidade,
devendo a todos o respeito ao lugar sagrado do Templo (...)”.
Outro elemento instituído pelo Código é o próprio lugar da FENACAB enquanto
mediadora e representante dos terreiros. O órgão é definido no art. 20 como a “detentora dos
valores religiosos, tomando atitudes cabíveis quando estes forem: vilipendiados, violados,
profanados, atacados moralmente ou usados de jeito sórdido”. O documento segue, sob esse
aspecto, listando as definições daqueles que seriam os “valores religiosos” do culto, acima
citados, uma infinidade de signos materiais e imateriais que compõem o universo espiritual
dessas religiões, cuja circulação e polissemia passam a ser controladas e fiscalizadas pela
Federação de modo a circunscrevê-las a um universo “religioso”, incluindo-se aí também as
polêmicas peças de vestuários utilizadas pelas baianas de acarajé. O código define, como
seção final, as infrações e sanções disciplinares, além das obrigações implicadas na condição
de sócio.
A aplicação de um código de ética em uma religião antes descrita como “a-ética”, ou
seja, associada preponderantemente à adaptação ao mundo através das narrativas míticas e das
negociações rituais, em detrimento da aplicação de códigos prescritivos de conduta, parece
revelar um paradoxo, que definiria como “o paradoxo da tomada de posse de si de uma
219
religião de possessão”. Assim, no interior do culto, o orixá segue dizendo: o “eu é outro, é
tensão”, “a cabeça é uma guerra”, “‘identidade’ é aquilo que se dá, que se recebe, que se
toma, que se devolve, assim como ‘humanidade’, ‘divindade’ ou ‘natureza’” (os três pontos
do suposto “triângulo”, que é aqui logo dissolvido). Enquanto isso, fora do terreiro, outras
“entidades”, como os neopentecostais, o Estado e o movimento negro, batem na porta, e
interpelam o candomblé com as armas da guerra e da troca, acompanhadas sempre pela
pergunta: quem é você? Enquanto isso, o candomblé especula sobre onde estaria o seu “si
mesmo”, e o faz através de uma caçada conceitual por centros discursivos: Onde está o “axé”?
Onde está a etnia? Onde está a ética? Em suma, em que espelho ancorar uma reflexividade
“verdadeira” para o culto? Dividido entre a “religião” e a “política”, “dentro” e “fora”, “casa”
e “rua”
134
, o candomblé ouve duas vozes, e recebe dois estímulos a partir dos quais revê as
suas estratégias de inserção.
Apoiando-se em um processo ainda em movimento, qualquer conclusão soaria logo
precipitada. Contudo, ao longo do último capítulo, pude ver delinear-se uma resolução
possível dada a este aparente impasse. Nele, vimos o avanço de uma divisão, no corpo da
comunidade do culto, entre sintagmas “políticos” e “religiosos” justapostos, corte resultante
da crise na política personalista e carismática de alianças com o Estado definida como “a
política dos antigos”. Essa tentativa de adequação pôde ser expressa pela divisão entre cargos
rodantes cada vez mais “religiosos”, em sentido estrito, e cargos não-rodantes cada vez mais
“políticos”, também em sentido estrito, ocupados por jovens, muitas vezes associados ao
movimento negro, defensores de uma fala democrática e cidadã. Aqui, e mais uma vez, o
paradoxo é transformado em acordo, o que lembra a necessidade de nunca se descuidar diante
da capacidade de síntese quase ilimitada das estratégias discursivas tradicionais dos cultos
afro-brasileiros, principalmente aquelas articuladas em torno do que Segato define como a
“dupla voz” desses grupos:
Aludo aqui ao fato de que, repetindo o discurso hegemônico e totalizador do dominador, o
subalterno – neste caso o afro-brasileiro -, introduz a marca da sua posição diferenciada na
nomenclatura utilizada, e o faz duplicando sua voz. Em um mesmo enunciado manifesta que
reconhece e se inclina frente à presença do mundo circundante, totalizado e hegemonizado pela
moral dominante, mas uma escuta sensível e atenta revela que esse enunciado esconde e vela
134
Pode-se dizer que o candomblé tradicional é todo “casa”, material e simbolicamente, a “rua” contando como
o mundo do outro. É interessante perceber certa aversão, por parte de mães-de-santo consagradas, de sair às ruas,
mostrando-se geralmente mulheres reclusas, “da casa”.
220
uma voz que, ao acatar esse léxico, introduz nele a sua corrosiva marca de dúvida e de
insubordinação (2003b: 244
).
A aptidão que tem o candomblé de adiar a sua presença, através de operações
discursivas delicadas tendo em vista o ocultamento e o desvelamento de si, insiste em colocar
seus outros, incluindo aí o antropólogo, diante do inevitável da dúvida. Desse modo, no caso
citado, o estímulo duplo (paradoxal?) instalado pela idéia de “reconhecimento” é resolvido
pela invenção de uma “máscara moderna”, devolvendo-se o suposto impasse com intensidade
ainda maior.
Assim, se o antropólogo questiona, do seu lado: Como articular uma concepção trágica
de pessoa com a noção política de “autenticidade”? O candomblé responde, do outro,
lançando uma questão ainda mais complexa: Pode ser a “autenticidade” apenas uma máscara
a mais? A máscara paradoxal da ausência de máscara? Entre modernização e “modernidade-
como-máscara”, ou entre estímulos duplos e duplas vozes, os graus de adesão parecem variar
muito
135
. Diante deste terreno ainda em aberto, creio que ao menos as novas e velhas tensões
associadas à inserção do candomblé nos novos e velhos discursos hegemônicos atualizados na
“Cidade dos Orixás” estejam colocadas.
III- A não-indiferença mútua e as duas vias do englobamento
Introduzindo o seu excelente estudo sobre o fundamentalismo cristão nos Estados
Unidos, Vincent Crapanzano afirma, destacando o problema geral colocado para a
antropologia pelo literalismo bíblico que sustentaria a visão de mundo deste grupo tão
particular:
Qualquer sociedade, mesmo a mais primitiva, pode ser vista como um campo de estilos
interpretativos em competição, as relações entre eles governadas por um conjunto de estratégias
mais ou menos convencionais. Essas estratégias servem, se não para reduzir o conflito, pelo
menos para determinar expectativas sobre como encontros entre interpretações em competição
irão (ou deverão) funcionar. Elas estão, enquanto tais, sempre implicadas em estruturas de poder
(2000: 1).
135
É interessante destacar, como mais um possível indício desses graus variáveis de intensidade de aceitação real
do ethos modernizador no candomblé o fato de quase nenhuma político associado ao Movimento Contra a
Intolerância Religiosa, dentre eles a sua maior liderança, a vereadora Olívia Santana, não terem sido eleitos nas
últimas eleições.
221
A frase indica alguns pontos em comum com a abordagem que tentei defender nesta
dissertação, principalmente a atenção especial dada por ela à função social e política da
interpretação enquanto mecanismo performativo de construção de um mundo compartilhado
(ou tencionado). Ao longo das cenas de troca e de guerra que a compuseram, pude apresentar
a ocorrência de um movimento pendular entre dois desses padrões hermenêuticos, ou “estilos
interpretativos”, nos termos de Crapanzano, que se aproximaram e se distanciaram a partir de
estratégias de vinculação que tiveram em vista fazer do outro uma posição simultaneamente
interna e externa a si.
Assim, diferente do padrão textual analisado pelo antropólogo americano, os inimigos
que se interpelam pela “guerra santa” não intentam afastar semanticamente o encontro com o
outro através de um fechamento radical da semiose. Pelo contrário, demonstram um desejo
de, através de operações metafóricas e metonímicas, englobar o outro em suas próprias
questões, fazendo dele uma posição essencial a elas, mesmo que esse abraço inicial seja
seguido por uma acintosa expulsão. A idéia deste outro interno mostra-se bastante semelhante
àquela defendida por Velho (2002), quanto este declara que “a satanização do outro não é
necessariamente de um outro externo, mas de um outro interno”, ou ainda quando esclarece
que “satanização não só, porém, no sentido de que o outro, afinal, já esteja na praça central,
mas também de que esse outro esteja, efetivamente, no sentido mais íntimo, dentro mesmo de
nós”
136
(168).
Colocada sobre o pano de fundo do individualismo, a “guerra santa” entre os
neopentecostais e os cultos afro-brasileiros parece revelar, como se estivesse sobre um
contraste fotográfico, movimentos contraditórios e “casas vazias” ocupadas pela não-
indiferença mútua que marca a relação entre os dois grupos guerreiros. Essa talvez seja a face
etnográfica daquilo que Soares definiu como um dos resultados paradoxais deste conflito: a
ocorrência de um “igualitarismo sem individualismo” (1993: 211), configuração que, nesta
dissertação, preferi abordar na forma de um individualismo colocado “em jogo” (Gadamer
1997) pelo campo do eventual.
Assim, ao abraçar o “demônio afro-brasileiro” como o seu outro interno, fazendo dele o
objeto de um movimento expiatório perpétuo, a IURD consegue sair discursivamente de
algumas aporias colocadas pelo individualismo, principalmente aquelas associadas aos
136
Com essa distinção, o autor defende a validade da diferença entre “alteridade”, que se refere ao outro externo,
e “outridade”, que se refere a um outro que está dentro de nós (Velho 2002: 169).
222
contrastes existentes entre os seus aspectos ascéticos e hedônicos. Pois se o individualismo
promete, através da “posse de si”, o acesso à liberdade e à derradeira fruição do mundo
enquanto tal, sem o véu da tradição, ele frequentemente condiciona essa mesma liberdade a
um pesado movimento subjetivo de interiorização endividada do átomo social, observada na
idéia de responsabilidade e de vigilância de si como mecanismos de sustentação do todo.
Marshall Sahlins (2004) parece definir adequadamente esta tensão, destacando, contra os
partidários do inexorável “processo de racionalização”, como o capitalismo e o utilitarismo
estariam fadados a um movimento paradoxal de consumo e auto-abnegação: “Qualquer um
que defina a vida como a busca da felicidade é, na realidade, cronicamente infeliz” (165)
137
.
Essa mesma duplicidade é percebida por Gilles Lipovetsky (1994), quando este observa
que “(...) a modernidade inaugural apresenta-se em duas faces: de um lado, a idolatria do
imperativo moral, do outro, a sua deslegtimimação radical; a sacralização laica do dever teve
como contrapartida a dessacralização da consciência virtuosa” (34). O filósofo segue,
destacando que uma análise histórica da modernidade desvelaria as diferentes ênfases
colocadas sobre cada um desses pólos ao longo do tempo. Sob essa ótica, até meados do
século XX, “a cultura do dever canalizou para estreitos limites a cultura dos direitos
subjetivos, a exigência individualista da felicidade foi julgada pelas obrigações da moral
social, familiar e sexual” (49). No entanto, viveríamos, desde então, um “período pós-
moralista das democracias” (55), onde a cultura do dever, do sacrifício individualista de si,
teria sofrido uma guinada na direção do esquecimento de si como virtude, enquadrada por
uma “moral indolor” (55) pouco prescritiva e construída pragmaticamente a partir da correção
dos exageros da ação (um “não-fazer”, ao invés de um “tu-deves”). Os excessos da IURD
parecem exemplificar bem a atualização desse mesmo processo de avanço da dimensão
hedônica do individualismo sobre a sua faceta ascética, que aqui se mostra radicalizado a
ponto de entrar muitas vezes em choque com princípios básicos da matriz democrática e
liberal, como a “liberdade de crença” e a “tolerância”.
Por outro lado, e agora me apoiando nas reflexões de Sanchis (2001), a força do
fenômeno IURD, o sucesso estrondoso de um discurso que democratiza a graça e capitaliza os
malefícios, pode também ser pensado como reflexo da tendência do campo religioso
contemporâneo, observada por este autor, de realizar uma “volta a uma mentalidade
137
Sahlins parece aqui supor um vínculo interno entre o individualismo e o niilismo. Seria a luta por “autonomia
individual” ou “liberdade” apenas um “desejo de nada”?
223
primitiva” (40)
138
. Esse “primitivismo”, pensado aqui em sentido durkheimiano, ou seja,
como “afloramento do fundamental”, e não como “atraso”, poderia ser observado em uma
série de traços do discurso neopentecostal. Primeiramente, a sua ênfase evidente na
efervescência ritual em detrimento do controle ético de si. Consequentemente, e como
condição da primeira, a revalorização da narrativa sacrifical (excessivamente “simbolizada”
pelo catolicismo), atualizada em seus cultos tanto pela via propiciatória, percebida na
elevação do dinheiro a signo ritual, quanto pela via expiatória, percebida nos canais de
transmissão de culpa que são a possessão e a feitiçaria. Por fim, e como deslocamento
discursivo macro subjacente aos dois últimos pontos, o fato desses cultos apontarem uma
crise geral nos modos “simbólicos” de mediação, em sentido peirceano, ou seja, significações
que tocariam o mundo de modo arbitrário e intelectualista, levando-se assim ao paroxismo os
mecanismos indexicais de eficácia significativa, tanto do outro quanto de si mesmo
139
.
Portanto, ao englobar metonimicamente os cultos afro-brasileiros, o neopentecostalismo
parece absorver parte do seu estilo interpretativo, tecendo então uma estranha síntese, uma
“tragédia do individualismo”, ou um “cristianismo de guerra”. Como afirma Birman (1996),
neste caso, estaríamos em pleno campo das “passagens”, ou, nos termos por mim colocados,
nem no individualismo, nem no holismo, mas na capitalização do próprio movimento definido
por Dumont (1985) como “englobamento”. Assim, o outro ameaçador dos cultos de possessão
aparece também como o outro libertador, o lugar onde se expia, com o perdão da ironia, o
“bode” do individualismo. Por fim, resta a pergunta, dada a insistência do tema na fala nativa:
Libertar-se de quê, ou de quem? Dos espíritos maléficos? Talvez, mas não somente. De
acordo coma as minhas observações, a idéia aqui é libertar-se, sobretudo, da faceta do
individualismo que tende a fazer dele uma espécie de “ditadura do si mesmo”
140
.
Do outro lado do espelho evangélico, percebe-se que essa captura textual dos cultos
afro-brasileiros também dinamiza o universo próprio de questões em que se sustenta a
138
Essa mesma idéia de uma “modernidade involutiva” é encontrada em Mafessoli (1998).
139
Por outro lado, é essa mesma relação simbolizada que fundamentaria a atual in-diferença católica pelo
candomblé.
140
De acordo com Françoise Héritier: “A intolerância é sempre, essencialmente, a expressão de uma vontade de
assegurar a coesão daquilo que é considerado como que saído de Si, idêntico a Si, que destrói tudo que se opõe a
essa proeminência absoluta. Não se trata jamais de um mero acidente de percurso: existe uma lógica na
intolerância. Ela serve aos interesses que se julgam ameaçados” (2000: 24). Nesse sentido, e agora tratando do
termo não mais como uma categoria nativa, a relação discursiva do neopentecostalismo para com os cultos afro-
brasileiros dificilmente pode ser definida como sendo de “intolerância”, já que a idéia fundamental aí é
capitalizar a ameaça do outro e não afastá-la definitivamente. Por outro lado, é evidente que essa relação não é
de modo algum “tolerante”, principalmente por não haver nela espaço para a atitude fundamental da tolerância,
definida por Ricoeur (2000) como sendo a de “compreender sem aderir” (21). Mais uma vez temos um impasse.
224
reflexividade dos últimos. E se o neopentecostalismo vê nesse englobamento a possibilidade
de escapar das aporias do individualismo, o candomblé parece encontrar aí a chance de
adentrar nesse campo de tensões de modo mais aprofundado. Os ataques forneceram,
pensados sob a ótica afro-brasileira, também uma possibilidade de fuga, mas, desta vez, de
fuga do universo tautológico e adaptativo da tradição dos orixás, produzindo-se, a partir das
particularidades do seu novo opositor, um telos utópico apto a provocar uma saída de si da
religião na direção de uma inserção política mais ostensiva na esfera pública local.
Tal fenômeno, realizado através de um interessante processo de identificação na
negação, denominado por mim “mimetismo negativo”, mostrou-se de modo mais explícito
quando apontei, em determinados setores do candomblé de Salvador, o desejo de ocupar áreas
de ação típicas dos “board of directors” de igrejas como a IURD: a comunicação de massa e a
política partidária. A crescente e auto-representada exposição pública da religião seria um dos
efeitos do processo contemporâneo de controle “ét(n)ico” de si do candomblé, que visaria
resgatar tudo aquilo que, partindo da matriz histórico-cultural que o sustenta, teria se
disseminado pela sociedade nacional, vindo a perder contato com aqueles que de fato seriam
os detentores dos direitos sobre a sua circulação. Coordenando esse projeto como uma espécie
de equivalente geral, observa-se a estabilização do critério de “autenticidade”, essa, que
segundo Taylor (1991), seria uma espécie de face romântica do individualismo. Com a defesa
da autenticidade, indica-se o anseio, por parte dos setores modernizadores do candomblé, de
apontar para a religião um encontro pleno consigo mesmo, uma identidade menos mítica e
mais ética e política.
A partir desse estado de coisas, observa-se que, se há avanço modernizador ou
individualista ao longo da “guerra santa”, ele existe, no caso de Salvador, de modo mais
evidente no lado dos cultos afro-brasileiros e, assim mesmo, como destaquei logo atrás, não
sem uma série de acordos com a sua tradição de ocultamento de si. Tais acordos, por sua vez,
produzem gradações ainda pouco percebidas por olhos estrangeiros, mostrando-se como um
campo de estudos ainda em aberto.
Desse modo, é bastante provável que Soares esteja certo em aferir, a partir do avanço
evangélico no país, que “quebraram o velho pacto” (212) da nação. Contudo, não consigo ver
claramente, no bojo do chamado neopentecostalismo, o seu setor dominante, a costura de um
pacto alternativo, mas sim a substituição desse modelo molar de alianças por uma “economia
política do sacrifício”, uma micropolítica que dissolve, em dramas cotidianos, qualquer pacto
225
possível. A quebra da hegemonia católica, sempre apoiada em bases estatais, indica de fato a
ruptura com “terceiros” consensuais, que estabilizariam nossos dramas individuais e coletivos
tanto na forma de “nação” quanto na forma de “Deus” ou mesmo “divindades”. A
contemporaneidade da magia e da feitiçaria no Brasil, a felicidade (Austin 1975) desses
discursos em textualizar o campo de fenômenos que compõe o dia a dia de uma grande cidade
brasileira, um dos temas mais recorrentes nos conflitos da “guerra santa”, revela um mundo
de contratos rápidos e revogáveis e não de acordos criteriosos e duradouros. Diante desse
universo de risco eminente, restam as ilhas sociológicas e narrativas fragmentadas que são a
igreja ou o terreiro, cuja adesão interna fornece as âncoras ontológicas para se negociar com
essa nação-como-um-outro.
Por outro lado, convidado somente agora para essa festa, justamente quando ela já
aponta o seu fim, o candomblé parece observar tudo ainda à distância, manifestando em
algumas de suas frentes um crescente desejo de entrar no pacto, o mesmo pacto que, cada vez
mais, é colocado em cheque. Segue então experimentando com o que lhe apresentam, como
sempre o fez, dialogando agora não mais com os santos do catolicismo, mas com os
“projetos”, as “sociedades civis”, as linguagens do direito, da etnicidade e da raça, com a
paciência e a ironia de quem sabe que aquela que sempre foi a sua moeda de troca, a partir da
qual ele se velou e se desvelou várias vezes, foi recentemente instituída como câmbio oficial:
o espelho da identidade.
226
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