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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
ESPAÇOS PÚBLICOS DE SALVADOR: USO E APROPRIAÇÃO
PELOS MORADORES DE RUA – UMA ANÁLISE DO ESPAÇO
CONCEBIDO, VIVIDO E PERCEBIDO
NADJA CONCEIÇÃO DE JESUS MIRANDA
Salvador-Bahia
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
ESPAÇOS PÚBLICOS DE SALVADOR: USO E APROPRIAÇÃO
PELOS MORADORES DE RUA – UMA ANÁLISE DO ESPAÇO
CONCEBIDO, VIVIDO E PERCEBIDO
NADJA CONCEIÇÃO DE JESUS MIRANDA
ORIENTADORA: PROFª. DRª. MARIA AUXILIADORA DA SILVA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Submetida em satisfação parcial dos requisitos ao grau de
MESTRE EM GEOGRAFIA
à
Câmara de Ensino de Pós-Graduação e Pesquisa
da
Universidade Federal da Bahia
Aprovado: Comissão Examinadora
________________________________ Drª.Maria Auxiliadora da Silva
________________________________ Drº Angelo Szaniecki Perret Serpa
________________________________ Dr. Carlos Valter Porto Gonçalves
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Shiguemi Fujimori, Instituto de
Geociências da Universidade Federal da Bahia
M672 Miranda, Nadja Conceição de Jesus,
Espaços públicos de Salvador: uso e apropriação
pelos moradores de rua: uma análise do
espaço concebido, vivido e percebido / Nadja
Conceição de Jesus Miranda . _ Salvador,
2006.
109 f. : il. + Anexos.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Auxiliadora da Silva.
Dissertação (Mestrado) – Pós-Graduação em
Geografia
Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia,
2006.
1. Geografia urbana 2. Espaços públicos – Salvador (BA)
3. Espaços públicos (Ocupação) – Pessoas desabrigadas
I. Título.
CDU 911.9:711 (813.8) (043)
AGRADECIMENTOS
Ao Criador que me permitiu nesta vida desenvolver este trabalho
Aos meus pais que ao me trazer para esse mundo me legaram, dentre tantos
valores, o respeito pelo outro.
Ao meu marido que cotidianamente, pacientemente, escutava as minhas dúvidas e
angústias e me dava força e coragem para realizar a pesquisa.
A minha família em especial, D. Maria José, Nelma, Suiane, Fernanda, Tânia e
Maíra, e as amigas Jaqueline e Eliana pelo apoio operacional.
Aos professores do Mestrado em Geografia, em especial Maria Auxiliadora, pelo
incentivo, por ter abraçado a minha idéia, pelo carinho e pelas orientações; Ângelo
Serpa pelas orientações teóricas proporcionadas em suas disciplinas, por incentivar
e acreditar no meu desempenho na pesquisa e a Pedro Vasconcelos que foi o
primeiro a abrir as portas da Geografia para mim como aluna especial.
A todos os colegas do mestrado pelos momentos de convivência, discussões e
aprendizado, em especial a Denise e Isabela pela ajuda mútua durante toda a
pesquisa.
Aos amigos, Margarete que me incentivou a dialogar com Geografia e encorajou a
minha vinda para o IGEO; José Deusdedete (in memorian) e Adriano por pelos
momentos de reflexões teóricas que serviram para alicerçar minhas idéias.
A Maria Luiza pelas horas de dedicação na correção da gramaticidade e a Ivana
Mara pelas orientações na língua inglesa.
Aos colegas do Colégio Militar que me apoiaram durante o curso.
A Diretoria de Ensino e Pesquisa do Ministério da Defesa e à Direção do Colégio de
Militar que garantiu a minha presença no IGEO para cursar as disciplinas e realizar a
pesquisa de campo com a dispensa de carga pedagógica.
Aos funcionários da SEDES pela presteza com que me atenderam.
E especial agradecimento aos moradores de rua que disponibilizaram seu tempo
para concederem entrevista e por confiarem em fornecer informações da sua
privacidade.
v
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS.......................................................................................... vii
LISTA DE FIGURAS.......................................................................................... viii
LISTA DE GRÁFICOS....................................................................................... ix
APRESENTAÇÃO............................................................................................. x
RESUMO........................................................................................................... xii
INTRODUÇÃO................................................................................................... 1
1. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MORADORES DE RUA EM SALVADOR:
UM PANORAMA HISTÓRICO
17
1.1 O SÉCULO XIX E A INSERÇÃO DO HOMEM POBRE NO MUNDO
DO TRABALHO................................................................................... 17
1.2 A PERCEPÇÃO INDIRETA DA LITERATURA AMADIANA E DA
IMPRENSA SOBRE O SÉCULO XX: "OS CAPITÃES DA AREIA" E
A "OPERAÇÃO CATA –MENDIGOS".................................................
23
1.3 REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE
ATENDIMENTO A MORADORES DE RUA: EMANCIPAÇÃO OU
DESPOLITIZAÇÃO............................................................................. 29
1.4 A ATUAÇÃO DE INSTITUIÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS:
RESGATE À CIDADANIA?.................................................................. 42
1.4.1 A PASTORAL DO POVO DE RUA............................................. 42
1.4.2 O PROJETO AXÉ....................................................................... 43
1.4.3 IGREJA DA SANTÍSSIMA TRINDADE 43
2. PERFIS SÓCIOECONÔMICOS: ROMPENDO MITIFICAÇÕES SOBRE O
MORADOR DE RUA...................................................................................
46
3.
A APROPRIAÇÃO E USO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS DE SALVADOR
PELOS MORADORES DE RUA: LIMITES E POSSIBILIDADES
65
3.1 AS ESTRATÉGIAS DE USO E APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO.......... 66
3.1.1 BARRA................................................................................................. 69
3.1.2 ITAPAGIPE.......................................................................................... 71
3.1.3 CENTRO.............................................................................................. 77
vi
3.2 OS ESPAÇO PÚBLICO APROPRIADO PELOS MORADORES DE
RUA E A CONCEPÇÃO DE TRÍADE DO ESPAÇO.........................
79
3.3 O SENTIDO DA CASA E RUA........................................................... 86
3.4 O SIGNIFICADO DO LUGAR............................................................. 89
3.5 EM BUSCA DO DIREITO À CIDADE................................................. 91
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 97
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 106
ANEXO 111
vii
LISTA DE TABELAS
1 - Distribuição dos entrevistados por região administrativa e sexo............... 16
2 - Circuitos percorridos pelos agentes municipais para a contagem dos
moradores de rua............................................................................................
49
3 - Salvador – quadro de profissões - moradores de rua.............................. 56
4 - Salvador – forma como os moradores de rua conseguem
dinheiro............................................................................................................
58
viii
LISTA DE FIGURAS
1. Família de moradores de rua, Largo dos Mares............................................ 2
2 . Mapa: Localização da área de estudo.......................................................... 3
3 .Moradores de rua catando lixo reciclável na Praça Castro Alves................. 28
4.Casa de Oxum para acolhimento de meninas de rua- Barris......................... 32
5. Casa de Pernoite, Rua J. J. Seabra............................................................. 40
6. Meninos em "situação de rua, atendidos pelo Projeto Axé........................... 45
7. Mapa Salvador – Regiões Administrativas percentual de domicílios
particulares improvisados por setores censitários..........................................
47
8 . Mapa Salvador – Regiões Administrativas distribuição dos moradores de
rua – 2002..........................................................................................................
50
9. Moradores de rua recebendo doação de roupas de Instituição Religiosa..... 65
10 . Barra, Morro do Cristo, Av. Oceânica ....................................................... 69
11 . Av. Oceânica, morador de rua dormindo com o seu carro de material
reciclável ..........................................................................................................
70
12. Largo da Calçada, Estação de trem ........................................................... 71
13 . Domicílio improvisado de Sr. Aloísio, ao lado do Antigo prédio da
Petrobrás...........................................................................................................
73
14 . Comida feita pelo Sr. Aloísio, calçada às margens da maré - lado do
antigo prédio da Petrobrás ...............................................................................
74
15 . Sr. Agnaldo, morador de rua, Largo de Roma ........................................... 75
16 . Mapa Salvador trajeto percorrido pelo sr. Agnaldo na coleta de lixo
reciclável............................................................................................................
76
17. Praça Castro Alves, Centro ........................................................................ 77
18. Praça Castro Alves, Catadores de lixo reciclável e moradores do local..... 79
19. Novo estilo de abrigo de ônibus.................................................................. 80
20. Morador de rua em frente a Fundação Casa de Jorge Amado............... ... 83
21. Salvador – Regiões Administrativas rendimento mensal por responsável
por domicílio por setores censitários...................................................................
84
22. Lorenilson (morador de rua) em frente a casa que recebeu no
Loteamento Moradas da Lagoa ........................................................................
86
23. Fala menino ................................................................................................ 89
24 . Rua das Flores, Centro Histórico é um lugar para os moradores de rua 91
25. Menino de rua demonstrando o que significa a rua..................................... 96
ix
LISTA DE GRÁFICOS
1. Moradores de rua que conhecem os programas sociais da prefeitura... 34
2. Moradores de rua que recebem auxílio do governo................................ 34
3 . Gênero dos moradores de rua ............................................................... 50
4. Gênero dos moradores de rua.- dados oficiais...................................... 51
5 . Moradores de rua por faixa etária........................................................... 52
6 . Tempo na rua dos moradores de rua...................................................... 53
7 . Tempo na rua dos moradores de rua – dados oficiais............................ 54
8 . Origem dos moradores de rua................................................................ 55
9 . Origem dos moradores de rua – campo.................................................. 55
10. Moradores de rua com profissão............................................................ 56
11. Escolaridade dos moradores de rua...................................................... 57
12. Escolaridade dos moradores de rua – dados oficiais............................. 57
13. Renda dos moradores de rua................................................................. 58
14. Moradores de rua que recebem auxílio do governo............................... 60
15. Moradores de rua que tem Família........................................................ 62
16. Motivo que contribuiu para morar na rua............................................... 63
x
APRESENTAÇÃO
Este trabalho é constituído da introdução mais três capítulos e considerações finais:
Introdução – que aborda os passos de realização da pesquisa, as discussões
existentes sobre o tema e o caminho teórico-metodológico para o desenvolvimento
da mesma.
Capítulo 1 - Buscou-se construir uma análise histórica do tema, sob o ponto de vista
das políticas públicas desenvolvidas para moradores de rua ao longo do tempo,
especificamente durante os séculos XIX e XX e o rebatimento destas no espaço da
cidade.
Capítulo 2 – Neste capítulo são apresentados os perfis socioeconômico dos
moradores de rua a partir dos dados obtidos das entrevistas. Busca-se nesse
momento desmistificar alguns aspectos referentes a esses moradores da cidade já
cotidianamente estigmatizados.
Capítulo 3 – Trata-se da análise da relação do morador de rua com o espaço da
cidade. Num primeiro momento é realizada uma descrição das estratégias de uso e
apropriação dos espaços em cada Região Administrativa: Barra, Itapagipe e Centro.
Num segundo momento essas mesmas estratégias são analisadas do ponto de vista
do espaço concebido, vivido e percebido e também a partir das concepções de
lugar.
As considerações finais – São apresentados comentários sobre as conclusões
obtidas na pesquisa, embora estes comentários não estejam fechados e acabados.
São, principalmente, questões que permeiam o cotidiano dos moradores de rua bem
como uma retomada sobre as políticas públicas, o espaço e a questão da cidadania.
xi
"acusados por uma literatura sociológica repetitiva, de orientação ao presente
e de incapacidade prospectiva, são os pobres que, na cidade, mas fixamente
olham para o futuro". (Santos, 2002:325)
Dedico este trabalho a todos àqueles
moradores de rua da cidade de Salvador
que da necessidade tiraram coragem para
ocupar os espaços públicos e publicizarem
a pobreza que o poder público faz questão
de manter escondida na esfera privada.
xii
RESUMO
A presente pesquisa buscou analisar a relação dos moradores de rua com os
espaços públicos de Salvador e observar o conteúdo das políticas públicas
municipais dos séculos XIX a XXI destinada a regular a ação da população pobre no
âmbito espacial da cidade. Partiu-se do pressuposto de que o morador de rua, ou
seja, o pobre, estabelece laços com o espaço público em que vive para reprodução
da vida a partir da forma como usa e se apropria da rua. Todavia o morar na rua é
um processo ambíguo, a medida que a apropriação de espaços públicos se
configura numa transgressão às normas. É nesse sentido ambíguo que se encontra
a relação dialética desse processo. Para tanto, empreendeu-se uma metodologia
de análise baseada na fenomenologia e na dialética para ampliar o entendimento da
problemática. Como referencial teórico incorporou-se as abordagens de produção
espacial de Lefebvre nas quais ele infere que o espaço é produzido na dimensão do
concebido, do vivido e do percebido e as discussões de espaço público e lugar. Tais
procedimentos vislumbraram apreender no cotidiano dos moradores de rua em
Salvador , suas estratégias e códigos para se apropriarem de espaços
normatizados. Além disso, analisou-se os conteúdos racionais das políticas públicas
gestadas para essa população, verificando em que medida essas atendem às reais
necessidades dos moradores de rua ou servem para reproduzir os interesses e
valores burgueses. Nesse sentido, levou-se em consideração as experiências dos
moradores de rua tanto na espaço, quanto como participantes dos programas
sociais oficiais.
Palavras-chave: morador de rua, espaço vivido, percebido e concebido, espaço
público e lugar
xiii
ABSTRACT
This research tried to analize the relation between the living street people and the
public places in Salvador and also to observe the content in the municipal public
politics in the XIX to XXI with the objective to regulate the action of the poor
population in every place of the city. In order to do it we came to the point that the
living street people, a poor individual, establish ties with the public space where they
live to reproduction of life from the way they use and take the street. However, living
in the street is an ambiguous process, in the point that the appropriation of the public
places becomes a law transgression. It is in this ambiguous sense that it is found the
dialectical relation of this process. In order to do it, it was used a methodology of
analysis based on the phenomenalogy and dialectic to broad the understanding of
the problematic. As the theoretical referential it was taken the approaches of spatial
production discussed by Lefebvre in which he infers that the space is produced in the
dimension of the conceived, the lived and the perceived, the discussions of the public
space and place. These procedures were used in order to catch in the routine of the
street living people in Salvador, their strategies and codes with the objective to take
the legal space. Besides that ,it was analyzed the rational contents of public politics
organized to this population, verifying in which sense these politics reach the real
needs of the living street people, or they just serve to reproduce the rich people
interest and values. In this , it was taken in consideration the living street people
experiences not only in the space, but also as participants of the official social
programs.
Keywords; living street people, lived space, perceived and conceived, public space
and place.
1
INTRODUÇÃO
Primícias da pesquisa
Nas ruas de Salvador, observa-se a presença de centenas de pessoas
transformando os espaços públicos em seu espaço de reprodução da vida. Essas
pessoas, muitas vezes, são vistas como ameaça à segurança pública; percebe-se,
portanto, a reação do poder público e da própria sociedade que vai da omissão à
repressão, passando por políticas que não correspondem às demandas reais dessa
população, pois consistem, na sua maioria, no assistencialismo, no confinamento, na
segregação espacial e no tutelamento, promovendo poucas possibilidades de
emancipação econômica e política do indivíduo.
Em função disso surgiram alguns questionamentos sobre a realidade dos moradores
de rua no contexto da cidade que esta pesquisa buscou analisar: Quais políticas
públicas vêm sendo desenvolvidas para inserção dos moradores de rua em
Salvador? Quais são as possibilidades e os limites de uso e apropriação do morador
de rua com relação à cidade? Qual é o ponto ou área referencial do morador de rua
para se projetar no espaço da cidade?
Em que medida as políticas públicas podem
contribuir para a emancipação do morador de rua? Tais questões foram balisadoras
para o processo de desenvolvimento da pesquisa no que se refere à construção dos
objetivos, do referencial teórico e da metodologia.
Desta forma, seguindo as demandas das questões anteriores, objetivou-se, no geral,
entender a lógica de apropriação e uso estabelecida pelo o morador de rua e a
cidade de Salvador e, mais especificamente, desenvolver um panorama histórico
das políticas públicas para morador de rua em Salvador a partir da literatura
2
amadiana e da imprensa escrita no século XX; verificar nas políticas públicas
municipais de 1993 a 2003 como ocorreu a inserção dos moradores de rua;
caracterizar o perfil sócio-econômico dos moradores de rua; identificar e entender o
que consiste a relação do espaço vivido e do espaço percebido pelos moradores de
rua com o espaço concebido e analisar as formas de uso e apropriação do espaço
pelos moradores de rua, verificando em que medida estas ocorrem como relação
de
embricamento ou de conflitos no espaço concebido da cidade. Além disso, busca-se
ainda, com essa pesquisa, contribuir na ampliação das reflexões no âmbito da
Geografia urbana e construir conhecimentos que possam vir a ser úteis aos órgãos
públicos na elaboração de políticas apropriadas para esse segmento da população.
No que se refere ao recorte espacial da pesquisa, como se trata de um fenômeno
que ocorre praticamente em toda cidade, verificou-se a necessidade de delimitar as
áreas em estudo a partir da maior fixação e concentração de moradores de rua.
Assim sendo, optou-se pelas Regiões Administrativas
1
do Centro, Barra e Itapagipe.
Estas áreas podem ser ilustradas e localizadas pelas figuras 1 e 2, respectivamente.
Figura 1 Família de moradores de rua, Largo dos Mares, Itapagipe
1
O Decreto municipal nº 7.791 de 16 de março de 1987 criou e delimitou as 17 Regiões
Administrativas de Salvador com o objetivo de estruturar melhor a gestão municipal. Existe uma
correlação, ainda que não estrita, entre bairros (uma referência histórica e cultural do cidadão) e RA’s,
sendo estas denominadas pelos nomes dos bairros ou localidades de maior expressão e significado
no conjunto da cidade. CMS. Disponível em: <http.//www.cms.ba.gov.br/leis/index.htlm>. Acesso em
10.mai.2005, 17:40:21.
Foto: Nadja Miranda, março de 2005
3
SALVADOR- LOCALIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO
Figura 2
Fonte da base: PMS. Regiões Administrativas. Salvador, 1987.
Concepção: Nadja Miranda: Elaboração: Araori Coelho
4
O tema da pesquisa e as reflexões teóricas
Dos estudos realizados sobre o tema no contexto nacional, pode-se destacar alguns
trabalhos: "População de rua — Quem é, como vive, como é vista" — obra de 1994
organizada a partir de pesquisa desenvolvida por profissionais da Prefeitura
Municipal de São Paulo e de organizações não governamentais (ONGs). Este
trabalho apresentou três pontos básicos: conhecimento das características de quem
vive na rua, suas formas de sobrevivência e avaliação crítica das formas de
atendimento no âmbito do poder público e da iniciativa privada. Tal pesquisa se
constituiu num marco na sistematização de estudos sobre população de rua, bem
como serviu de base para nortear outras pesquisas; "População de Rua: Brasil e
Canadá" — organizado por Cleisa Rosa (1995) assinalou os debates acadêmicos
sobre o tema, registrando os trabalhos desenvolvidos no I Seminário Nacional de
População de Rua. Assim, o livro contém as experiências de várias cidades do país,
as reflexões de pesquisadores do Brasil e do Canadá; "No Meio da Rua” — nesta
publicação de 2000 foram reunidos diversos artigos por pesquisadores que
centraram seus estudos na vida nas ruas, para tanto abordaram aspectos como as
estratégias de sobrevivência, as trajetórias de vida, as relações com o meio urbano
oficial, os impasses das políticas públicas e os desafios teóricos-conceituais para
explicação do fenômeno. Esta obra apresenta realidades de Brasília, Curitiba, Rio de
Janeiro e São Paulo; "Drama Social", de 2002 — constituiu-se numa obra publicada
pela FAPERJ – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro a
partir dos debates realizados no seminário denominado Agenda Pública. A
população de rua foi um dos temas abordados neste seminário, constando, assim,
no trabalho, um capítulo divulgando pesquisa sobre este segmento da população no
Rio de Janeiro, as experiências de instituições não governamentais e as discussões
teóricas sobre reformulação de políticas para a população de rua.
No âmbito local, destaca-se a obra de Fraga Filho (1996), que trata da presença e
da vida de pessoas pobres que perambulavam e moravam nas ruas de Salvador, no
século XIX, e das políticas oficiais de confinamento, condicionamento e de repressão
adotadas naquela época.
5
Em 1937, o escritor Jorge Amado, na obra "Capitães da Areia", desvendou através
de seus personagens o mundo dos meninos (as) de rua daquele período,
denunciando a pobreza urbana e as desigualdades sociais e espaciais em Salvador
na primeira metade do século XX; Ataíde (1996), em "Decifra-me ou Devoro-te" —
história oral dos meninos de rua de Salvador, utilizando os caminhos da História
Oral, abriu espaço para um amplo debate sobre a questão dos meninos de rua na
cidade, revelando, ainda que de forma paternalista em alguns momentos, a visão
crítica que a maioria dos meninos têm sobre muitos aspectos da cidade. Trata-se de
uma análise sociológica que fornece elementos crucias para conhecermos a
trajetória da questão na cidade; Lessa (2002), trabalhando exclusão social em
Salvador, também pesquisou os moradores de rua. Em seu trabalho, o autor
apresentou dados estatísticos importantes e apontou fontes para outras pesquisas
sobre esta população, no entanto, ofuscou a realidade dos pesquisados por falta de
um balisamento teórico-conceitual e pela análise romantizada da situação.
Em 2000, no âmbito da Geografia, este tema foi desenvolvido por Santana. Naquele
estudo, o autor identificou a origem espacial e social de meninos e meninas de rua,
suas áreas de concentração e mobilidade na cidade, produzindo uma análise
histórica e geográfica, o que se constituiu num avanço das discussões sobre a
temática na Geografia Urbana.
Após a análise dos trabalhos citados, especialmente no contexto local, observa-se
que a atenção maior dos mesmos consistiu-se na análise de crianças e
adolescentes que moram nas ruas e, quando trataram da população de rua, em
todas as suas faixas etárias, não buscou-se verificar a relação e a complexidade que
envolve o indivíduo com o espaço em que ele vive. Diante dessa lacuna, esta
pesquisa justifica-se pela necessidade de realizar um estudo que insira e conheça a
realidade das demais faixas etárias (adultos, jovens e idosos) dos moradores de rua
e que entenda e leve em consideração a relação e a experiência com o espaço
citadino.
Diante do exposto, cabe neste momento, apresentar o caminho teórico e conceitual
que serviu como aporte para as discussões e análises dos capítulos seguintes.
Inicialmente, esclarece-se qual é o conceito adotado de morador de rua nesse
6
estudo, pois teoricamente observa-se que existem várias denominações para as
pessoas que vivem nas e das ruas. Com o intuito de delimitar a população alvo
desta pesquisa, emprega-se o conceito utilizado na sociologia, que compreende
moradores de rua como pessoas que:
trabalham, muitas vezes, mas não são empregados, obtêm alguma
renda, mas de forma assistemática, e transformam o espaço público
—- as ruas — em seu universo de vida e sobrevivência privado.
(BURSTYN, 2000 p. 20).
Cabe ressaltar que, o universo dos moradores de rua é complexo e heterogêneo e
que, a denominação morador de rua é utilizada para as pessoas que vivem
quotidianamente na e da rua e dela fazem o seu espaço de trabalho e moradia
diuturnamente, no entanto, em alguns momentos, também será utilizado o termo
população de rua de forma análoga.
Por se tratar de uma pesquisa, cujo objetivo é entender a relação do morador de rua
com o espaço citadino, é pertinente e necessário apresentar o que se pensa sobre o
espaço nesse contexto. A priori considera-se que espaço é socialmente produzido,
envolvendo relações de produção e reprodução, portanto é dinâmico e nessas
condições, conforme defende Lefebvre (1991a), a sua produção se dá em três
dimensões: a percebida, que são as práticas espaciais, estas por sua vez abarcam
as relações sociais de produção; a concebida, que são as representações do espaço
também referentes as relações de produção, a ordem que estas impõem, a serviço
de estratégia hegemônica; e a vivida, que se trata da dimensão simultaneamente
concreta e abstrata, que corporifica o real e o imaginário, formando os espaços de
representação. Essa tríade corresponde a diferentes caminhos de produção do
espaço, atribuindo-lhes qualidades e atributos diferentes, mas são dimensões
imbricadas que interagem entre si. Nesse sentido, a concepção de Carlos (2001),
vem corroborar estas idéias, pois
[...] a existência concreta liga o vivido e percebido àquilo que
permite/impede atos e ações pela existência das normas, como parte
integrante da prática social, povoa o mundo das representações que
7
as pessoas, que habitam o espaço, criam. Todavia, as formas da
cidade têm um código para os habitantes que se estabelece acima
das normas. Aqui, a forma está intimamente ligada ao uso, à
identidade e à memória
(CARLOS, 2001, p. 51).
Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que o uso e a apropriação dos espaços
pelos moradores de rua, principalmente dos espaços públicos, têm uma lógica
originada e originadora de percepções e vivências que, por sua vez, são
materializadas no espaço concebido. Este, quase sempre, não foi construído para
esse fim, obedece à lógica da troca, de interesse da classe dominante, evidenciando
a relação de conflito e embricamento que ocorre nesse processo que envolve o
espaço urbano. Com este sentido, o espaço público vem se reduzindo à mediação
do mercado.
Sobre estes assuntos faz-se necessário considerar sobre as idéias de apropriação e
de espaço público que permeam esta pesquisa: quanto a apropriação do espaço
ressalta-se o pensamento de Lefebvre (1991a). Para este autor a apropriação é
como um trabalho de arte que está associado ao plano do vivido e não obedece uma
única forma de ser, pois varia de acordo com quem, para quem e como o espaço foi
apropriado. Dessa forma, entende-se que a apropriação do espaço pelos moradores
de rua ocorre na dimensão da realização da vida humana, no plano da vida cotidiana
— do vivido — , por isso, entra em conflito com os grupos que atuam no espaço
como forma de reproduzir o capital — o concebido.
Com relação ao espaço público considera-se o pensamento de Arendt (2002),
quando esta afirma que este é o espaço da política. Discutindo sobre a esfera
privada e a esfera pública Arendt (2002) ressalta que na antiguidade grega o espaço
público era a polis e o critério da participação neste espaço estava relacionado à
diversidade absoluta entre os homens, no poder de argumentação de cada
indivíduo; na modernidade, o espaço da política, que antes era baseado na ação e
no discurso, foi corrompido pelas necessidades sociais. Isso significa que o espaço
público perdeu seu conteúdo político como pode ser verificado nas palavras de
Arendt:
8
[...] Embora nos tenhamos tornado excelentes naquilo que elaboramos
em público, a nossa capacidade de ação e de discurso perdeu muito
de sua antiga qualidade desde que a ascendência da esfera social
baniu estes últimos para a esfera do íntimo e do privado. [...].
(ARENDT, 2002, p. 59)
Com base nestas discussões entende-se que o espaço público, no seu sentido de
ser, têm o conteúdo político e este conteúdo é construído a partir da participação
dos homens, ambiguamente, nas suas diversidades e entre os iguais. Assim,
quando Gomes (2002, p.162) se refere ao espaço público, com sendo aquele "onde
não haja obstáculos à possibilidade de acesso e participação de qualquer tipo de
pessoa", acredita-se ser esta participação relacionada à capacidade de ação e de
discurso e não balisada por variáveis como renda, origem social ou étnica. Por esta
perspectiva, considera-se que os espaços públicos apropriados pelos moradores de
rua constituem-se em espaços dominados, de valor de troca, conforme concepção
lefebvriana, por isto mediado pelas intervenções do poder municipal para a
reprodução do capital.
Associados à questão do espaço, se verificou também a necessidade de inserir nas
análises sobre o morador de rua e o espaço público dois conceitos espaciais de
fundamental importância: a casa e a rua, pois são dois universos dicotômicos que,
pelo foco das normas, representam, respectivamente, espaços da esfera privada e
da esfera pública da sociedade, mas que no estudo em questão aparecem como
uma antítese ao que é normatizado. Assim sendo, as idéias defendidas por DaMatta
são bastante elucidativas
Quando digo então que “casa” e “rua” são categorias sociológicas
para os brasileiros, estou afirmando que, entre nós estas palavras não
designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas
comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação
social, províncias éticas dotadas de possibilidade, domínios culturais
institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções,
reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente
emolduradas.
(DAMATTA, 2000, p.15)
9
A casa tem vários significados, no entanto, do ponto de vista de uma sociedade
patrimonialista como a brasileira, esta não é somente o espaço da privacidade, da
harmonia, do acolhimento e do afeto, é também condição de acesso à “cidadania
citadina”. Na abordagem de Bosi (1994, p.435), a “casa é o centro geométrico do
mundo e a cidade cresce a partir dela em todas as direções” e na de Carlos:
[...] é a partir da casa que se constrói o universo da vida na cidade, é
ela que cria o marco pelo qual eu vejo, me desloco e vivo a metrópole.
A relação casa-bairro se liga à presença, por isso é parte integrante
da identidade. A casa, valorizada como tal – é dela que se constituem
as tramas espaciais, e é dela que se tecem os caminhos a partir dos
quais se urdem as relações com o bairro e com a cidade. Isso significa
que ela é mais que um endereço, um lugar no espaço urbano; ela é a
referência e o lugar onde se estabelece a vida, e é daí que o cidadão
se vê na cidade e no mundo (CARLOS, 2001, pp.230-31).
A casa tem significados, que estão além da estrutura física, são lembranças, são
vivências, que só ganham sentido com a casa, “casa não é uma caixa inerte. O
espaço habitado transcende o espaço geométrico", afirma Bachelard (2003, p.62)
Já a rua, segundo Sennet (1998, p. 28) transforma-se em espaço de passagem a
partir do século XVIII, pelo arcabouço conceitual da modernidade, sendo assim, a
concepção da rua enquanto espaço público é a contraposição da casa, é o espaço
do descontrole, do movimento, portanto o universo da rua é do engano, da decepção
e da malandragem é “o espaço hobbesiano, onde todos tendem a estar em luta
contra todos” (DAMATTA, 1997, p. 91), é o local público, controlado pelo Governo ou
pelo destino.
Lefebvre (1999, p.30-31) analisando a problemática urbana da modernidade destaca
o caráter ambíguo da rua com argumentos que este chama de "a favor da rua e
contra a rua": a favor da rua é entender que este espaço não se limita à passagem e
à circulação é o lugar do encontro, do teatro espontâneo, lugar do movimento e da
mistura. "Na rua, um grupo se manifesta, aparece, apropria-se dos lugares, realiza
um tempo-espaço apropriado"; contra a rua – nesta argumentação o autor afirma
10
que neste "espaço se desenvolve o mundo da mercadoria e que ele se converteu
em rede organizada para o consumo".
Um outro conceito que vem somar-se a esse debate é o de lugar, que também
contribui para identificar a relação dos moradores de rua com o espaço urbano do
qual eles se apropriam. Nesse momento, entende-se que o uso e a apropriação do
espaço da cidade pelo indivíduo ocorre intencionalmente a partir da sua
experiência. Relph (1979, p.16) fala sobre a necessidade e dos atributos ligados ao
lugar: “ao tipo de experiência e envolvimento com o mundo, à necessidade de raízes
e segurança”. Para este autor, a pessoas relacionam-se com os lugares de várias
formas: pela identidade, pela harmonia ou por suas particularidades na paisagem.
Para Tuan (1983) o lugar é o espaço significado pela vivência das pessoas; a origem
deles está na relação que essas estabelecem com o espaço a partir de suas
experiências. Tais inferências, semelhantemente, abordam a necessidade da
experiência no espaço para que o espaço se torne lugar. É nesse sentido que a rua
pode ganhar status de lugar para quem nela mora.
O caminho metodológico de abordagem que trilhou a pesquisa conjugou-se à
análise das políticas públicas municipais concebidas para os moradores de rua, já
que estas recaem sobre o espaço e o indivíduo. Nessa perspectiva, reaviva-se as
idéias de Arendt (2002) sobre política e esfera pública: na condição humana existem
três atividades fundamentais desenvolvidas pelo homem: “o labor, o trabalho e a
ação”. Destas atividades, ela destaca a ação como a mais importante, pois esta
“corresponde à condição humana da pluralidade”, é a partir dela que o homem, entre
os homens, mostra a sua capacidade de existir e de existência no mundo, bem
como sua postura política. Considerando assim, entende-se que a ação humana é
política e politizante, pois é a partir dela e com ela que os homens se tornam livres.
É a política que tem o objetivo de garantir a vida do indivíduo, como Arendt (1999, p.
42) afirma, “a política possibilita ao indivíduo buscar seus objetivos em paz e
tranqüilidade”. Logo, acredita-se que as políticas públicas, independente para quem
estejam destinadas, devam ter como princípio a promoção da emancipação do
indivíduo. Esta passa pelo direito à cidade, que
11
se manifesta como forma superior de direitos: direito à liberdade, à
individualização, na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à
obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto
do direito à propriedade) (LEFEBVRE, 1991b: p. 135).
A política nesse sentido é vista como uma ação pública, porque ocorre entre os
homens e para os homens. Ela é o próprio ato de liberdade para garantir a liberdade
do individuo e a sua cidadania. Isso significa que ela deva expressar as demandas
do cidadão multidimensional, inclusive aquelas advindas da sua própria experiência
no espaço — o espaço vivido —. Este que, para Santos (1996, p. 43), “está deixado
ao quase exclusivo jogo do mercado” e, como conseqüência disso, a ação e a
política vêm sendo violadas do seu verdadeiro sentido.
Pólo epistemológico
A análise epistemológica desta pesquisa buscou o desafio de utilizar as abordagens
fenomenológica e dialética. A escolha deste esse caminho deveu-se ao
entendimento de que o foco da pesquisa é mais que um objeto de estudo, é um
sujeito, um “ser-no-mundo” , e sua existência como tal se dá, simultaneamente, nos
planos objetivo e subjetivo; além do mais, é um fenômeno dinâmico, complexo e
heterogêneo, repleto de contradições, exigindo, assim, do pesquisador, um olhar
mais amplo na tentativa de evitar estereótipos e dogmatismos.
È importante reconhecer que há dificuldade de conjugar essas duas abordagens
num único estudo, mas a possibilidade de trabalhar com ambas, de forma articulada,
pode fornecer elementos que superem essas dificuldades. Para isso, a
fenomenologia é inferida a partir das idéias de Merlau-Ponty (1999), pois para este
filósofo a fenomenologia
é o estudo das essências, é uma filosofia que recoloca as essências
na existência é uma filosofia para qual não se pode compreender o
homem e o mundo senão a partir da sua facticidade. [...] (MERLAU-
PONTY, 1999, p.1)
12
Isso significa que a fenomenologia pode ir mais além do que descrever a essência
do fenômeno, ela pode compreendê-lo na sua existência. No caso, o sujeito, o
indivíduo, o morador de rua no mundo, no tempo e no espaço. Dessa forma, verifica-
se na dialética uma possibilidade de complementar esse estudo, sob o ponto de
vista do confronto: o morador de rua em vários aspectos da sua vida cotidiana nega
o que é normatizado pelo poder público, ele recria uma condição de vida, um estilo
próprio, que quase sempre não é aceito pela sociedade. Portanto, compreender o
fenômeno morador de rua no espaço de Salvador, não é só conhecer a essência do
seu estilo de vida, é também entender as relações de inserção e exclusão nesse
mundo urbano, exigindo, assim, um olhar dialético sobre a questão, pois nas
palavras de Demo
A dialética é a convivência dos contrários, ou seja, de elementos
que têm na sua exclusão apenas uma face da polarização. Unidade
de contrários, pois significa convivência numa mesma totalidade,
não exclusão pura e simples (DEMO, 1987, p.89).
Dessa maneira, ratifica-se o pensamento de Lefebvre (1991a) quando concebe a
produção do espaço em três dimensões que interagem entre si: a vivida, a percebida
e a concebida. Dimensões essas que fazem do espaço um complexo dinâmico de
relações distintas, justapostas, interpostas e sobrepostas, reforçando-se a idéia de
que tal escolha busca principalmente não reproduzir o pensamento da Sociologia,
que já contribui em muitos aspectos para a análise da situação do morador de rua,
mas analisar o conteúdo ambíguo da relação morador de rua/espaço público.
Os passos da pesquisa e o "campo"
“Viajar” pelo universo dos meninos de rua descrito por Jorge Amado foi o primeiro
passo para o desenvolvimento dessa pesquisa. A leitura de "Capitães da Areia" foi
um convite para investigar as entrelinhas da cidade com o “olhar da Geografia” e
perceber o quanto se conhece pouco sobre a vida dos moradores de rua na cidade,
que dicotomicamente estão, ao mesmo tempo, tão longe e tão perto do cotidiano de
seus habitantes.
13
A partir de então, o trabalho surge como uma necessidade de conhecer a relação
desses indivíduos com a cidade, já que, no senso comum, moradores de rua são
simplesmente excluídos, desprovidos de valores, sujos, maltrapilhos ou vagabundos
que não querem trabalhar. A dificuldade era encontrar um caminho para
“desvendar” este mundo, caminho que ultrapassasse as fronteiras da literatura já
existente, especialmente da Sociologia, que amplamente abordou as perdas e os
motivos que levaram essas pessoas às ruas, como a questão do desemprego, dos
problemas com drogas, com as famílias, de saúde.
Esse foi o principal desafio desta pesquisa: conhecer o universo do morador de rua
desprovido dos preconceitos e a certeza de que eles tinham muito a contribuir.
Como afirma Petrelli (2001, p.32), “ser fenomenólogo é reconhecer que nas coisas
mais humildes, os gestos mais simples, escondem e refletem esperanças de
“grandeza” imensurável ”. Daí a necessidade de procurar um caminho metodológico
peculiar: a fenomenologia e a dialética. Assim sendo a pesquisa percorreu as
seguintes fases:
1ª fase – pesquisa preliminar
A primeira fase consistiu em levantamentos bibliográficos e documentais, com visitas
às instituições governamentais e não-governamentais de atendimento à população
de rua e seleção de material específico sobre o assunto. Para a realização dessa
etapa optou-se por utilizar-se das técnicas de revisão bibliográfica em livros
técnicos, específicos e literários, bem como jornais de época e atuais, além da
observação direta, que proporcionou verificar (in loco) o cotidiano dos moradores de
rua. Com isso, foi realizada a observação dos locais de presença dos moradores de
rua, seus horários e rotina cotidianos, momento em que foi constatada a
heterogeneidade da população: moradores diuturnamente das ruas (permanentes);
pedintes (moradores eventuais da rua); pessoas com problemas mentais e
trabalhadores sexuais de rua. Com as informações dessa fase foi possível delimitar
a área de estudo e a população a ser pesquisada: moradores permanentes das ruas
das RA’s do Centro, Barra e Itapagipe.
14
2ª fase – pesquisa de campo
A pesquisa de campo consistiu em dois momentos: coleta de informações sobre as
políticas públicas municipais para os moradores de rua ou que envolvessem os
mesmos, e a análise do discurso do Legislativo com relação a esse segmento da
população. Para subsidiar essa fase pesquisou-se as Atas da Câmara de
Vereadores de 1990 a 2003; realizou-se entrevistas com funcionários da SETRADS
– Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social, atual SEDES – Secretaria de
Desenvolvimento Social - órgão responsável pelas ações assistenciais para
população de rua. As entrevistas com os funcionários
2
foram abertas e a entrevista
com os moradores de rua foi composta de duas partes. A primeira, com perguntas
objetivas, para traçar o perfil socioeconômico do entrevistado (gênero, faixa etária,
tempo de rua, origem escolaridade e renda): A segunda parte consistiu em
perguntas abertas, gravadas e transcritas com o objetivo de obter mais detalhes. A
escolha por este modelo de entrevista objetivou, na primeira parte, comparar os
dados quantitativos das pesquisas oficiais e, na segunda parte, ir além das
pesquisas oficias, gerando dados qualitativos que dizem respeito à subjetividade do
morador de rua como o espaço. Nessa etapa da pesquisa, foi utilizado o método
fenomenológico, baseado principalmente nas idéias de Sanders (apud MOREIRA,
2002), que admite, dentre outras técnicas, que a coleta de dados sobre o assunto
pode se dar a partir de entrevistas com os participantes, gravadas em áudio e
transcritas e, posteriormente, registrar as palavras exatas dos entrevistados para
melhor análise, bem como agrupá-los por afinidades, por RA´s, distinguindo as
semelhanças e diferenças bem como as respostas mais recorrentes e menos
recorrentes.
Critérios para a abordagem e a entrevista:
Em se tratando de universo de pessoas bastante heterogêneos, buscou-se abordar
os indivíduos que se encontravam na rua, nos locais indicados pelos dados oficiais e
pelas observações diretas nas regiões administrativas: Barra, Centro e Itapagipe,
2
É pertinente informar que as entrevistas com os funcionários da SEDES ocorreram em momentos
distintos: a primeira em novembro de 2004 e a segunda em agosto de 2005. As mesmas perguntas
foram feitas a funcionários diferentes em gestões municipais também diferentes. O motivo disso é que
buscou-se verificar se houve alguma mudança política de uma gestão para outra com relação aos
mora dores de rua.
15
desde que esses não apresentassem condições adversas de receptividade à
entrevista (alcoolismo, distúrbios mentais e agressividade). Como era difícil saber
quem era morador de rua permanente, sem realizar a entrevista, só foi possível
separar esse universo de pessoas depois de realizadas as entrevistas. Com isso,
foram entrevistadas, ao todo, 70 pessoas, mas somente 45 foram validadas (tabela
1) para fins de amostra da pesquisa, pois foram confirmados como moradores de rua
permanentes.
As entrevistas foram realizadas no período de novembro de 2004 a abril de 2005. É
importante registrar que durante os meses de janeiro e fevereiro de 2005 a pesquisa
foi dificultada pela falta de disponibilidade dos entrevistados. Observou-se que com
a chegada intensa do verão, o aumento do fluxo de turistas e mesmo a ocorrência
de várias festas de largo, essas pessoas não tiveram interesse de parar para
conceder qualquer informação sobre suas vidas, pois, nesse período, estavam
envolvidos em atividades
3
para melhorarem a sua situação financeira
(especificamente na Barra e no Centro). Outro fato observável é que os sujeitos
pesquisados somente se sentiam à vontade em falar quando, dentre outros
aspectos, o pesquisador ficava no mesmo plano que eles estivessem – de pé ou
sentados, evidenciando que em algumas entrevistas, que não se conseguiu finalizar,
a distância física entre o entrevistado e o entrevistador
4
pode ter sido um empecilho.
Além disso, foi verificado que não eram todos os horários e dias em que eles se
dispunham a dar entrevistas. Em função disso, as mesmas foram realizadas em
cada RA em horários e dia diferenciados:
Barra: durante os dias úteis pela manhã;
Centro: no domingo e nos dias úteis pela manhã;
Itapagipe: Sábado à tarde e domingo pela manhã.
Durante essa fase, foi necessário adotar como técnicas: a observação indireta, a
pesquisa documental de atas, relatórios e diagnósticos oficiais, além da entrevista
direta. As fontes foram:
3
Atividades relacionadas com aquisição de renda como: acompanhar turistas em visitas, guardar
carros, prestar serviços aos comerciantes locais.
4
Esse aspecto só foi percebido quando um Senhor ao ser entrevistado no largo dos Mares, no mês
de Janeiro, respondia às questões com certa má vontade. Perguntei-lhe se poderia sentar próximo
dele e ele acenou que sim. Daí ele disse: " agora a Sra. quer saber mesmo minha vida". A partir de
então a entrevista fluiu por quase quarenta minutos.
16
- O Arquivo da Câmara Municipal;
- A Secretaria de Combate a Pobreza e às Desigualdades Sociais do Estado;
- A Secretaria de Desenvolvimento Social do Município
Tabela 1
DISTRIBUIÇÃO DOS ENTREVISTADOS
POR REGIÃO ADMINISTRATIVA E SEXO
Sexo
Regiões
Administrativas
Feminimo Masculino Total
Barra 2 9 11
Centro 1 17 18
Itapagipe 6 10 16
Total 9 36 45
Fonte: Pesquisa de campo, janeiro a março, 2005.
3ª fase: Análise dos dados
Esta etapa consistiu inicialmente em sistematizar as informações das entrevistas
quanto às perguntas, a incidência de respostas comuns e as diferenças das
respostas segundo a região administrativa em que foi realizada a entrevista. Tais
critérios contribuíram para dar maior visibilidade e entendimento às informações
coletadas, bem como analisar melhor o significado das mesmas. A partir de então,
essas mesmas informações foram reinseridas ao seu contexto, à sua facticidade.
Foi realizada também a sistematização e análise das informações obtidas a partir de
jornais, informações verbais, entrevistas e livros de literatura. Foi o momento de
utilizar o método dialético para buscar apreender o fenômeno tanto em sua unidade,
como em suas partes. É pertinente lembrar que o referencial teórico apresentado
anteriormente é operacionalizado nesse momento, pois o objetivo era dialogar
teoria e conceitos com o objeto da pesquisa ao longo de todo o trabalho
,
sendo
estes abordados de forma detalhada nos próximos capítulos.
17
1 Políticas públicas para moradores de rua em Salvador: Um panorama
histórico
“[...] é doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar a minha identidade.[...]“
(Carlos Drummond de Andrade)
1.1- O século XIX e a inserção do homem pobre no mundo do trabalho
À luz das idéias de esfera pública e esfera privada de Arendt (2000) e de cidadania
de Santos (1996) buscou-se nesse momento analisar em que medida o pensamento
burguês alicerçou as políticas públicas para homens livres e pobres e moradores de
rua em Salvador no século XIX e como as mesmas tiveram rebatimento no espaço
público da cidade e no cotidiano desses indivíduos, assim como o significado dos
atuais programas públicos municipais direcionados para este mesmo segmento da
população.
Segundo Habermas (1984), a esfera pública burguesa começa a se constituir no e
com o desmantelamento do Sistema Feudal. Esse fato ocorre com a ascensão
econômica e, posteriormente, política da burguesia na França e na Inglaterra, mais
especificamente. A luta da burguesia para chegar ao poder político tomou por base o
discurso da opinião pública, enquanto idéia de participação, argumentação e de
esfera pública politicamente ativa, pois, naquele momento, existia a necessidade de
derrubar o Estado absolutista que representava interesses privados da nobreza e do
clero, enquanto a sociedade civil – diga-se a burguesia – não participava ativamente
deste. Imbuída das idéias liberais de participação popular, a burguesia vai cooptar a
população (camponeses e operários) para derrubar o Estado Absolutista. Uma vez
no poder político sob o biombo do liberalismo esse grupo vai dar origem e consolidar
o Estado liberal, constitucional, modelo de esfera pública, alicerçado no discurso da
soberania popular, na publicidade, nas leis gerais que garantiam a igualdade e as
liberdades de opinião, da imprensa, parlamentar e individual, bem como a extensão
do direito a voto.
A partir desse advento político, os valores e interesses econômicos da burguesia
tornaram-se hegemônicos na Europa. Nesse contexto, o trabalho produtivo foi cada
18
vez mais valorizado; dele passou a depender a riqueza de uma nação, dele precisou
o homem para ser digno e civilizado, ascendendo, assim, à esfera pública. Essa
noção de importância do trabalho é presente até os dias atuais e pode ser traduzida
pelo fragmento abaixo:
[...] Sem trabalho eu não sou nada
Não tenho dignidade
Não sinto o meu valor
Não tenho identidade
[...].
Sei que existe injustiça
Eu sei o que acontece
Tenho medo da polícia
Eu sei o que acontece
Se você não segue as ordens
Se você não obedece
E não suporta o sofrimento
Está condenado a miséria [...]
(Musica do Trabalho, Renato Russo, 1996)
A ascensão do trabalho à condição de atividade dignificadora e civilizatória é uma
“invenção” burguesa na modernidade. Segundo Arendt (2002), para os gregos
antigos o trabalho manual era desvalorizado, por ser atribuição dos escravos,
enquanto que, para os cidadãos poderem participar da vida pública na polis,
deveriam estar isentos de se ocupar das suas necessidades privadas. O pobre
desabrigado e o mendigo durante a Idade Média eram vistos como pessoas
passíveis de receber caridade. A partir do século XVIII, passam a ser definidos como
ociosos e vagabundos. A ociosidade na antiguidade – para gregos e romanos –
significava ser livre de ser forçado pelas necessidades da vida. Na Idade Moderna,
tanto a ociosidade quanto o trabalho são resignificados, transformando-se este
último em principal fonte geradora de riqueza, e a burguesia, estimulada por essa
concepção, procura inserir, a qualquer medida, os homens pobres no mundo
produtivo. Para isso, conta com políticas públicas, legislações específicas e
19
estratégias de controle social para “enquadrar” aqueles que se desviavam da ordem
estabelecida. Sobre esta questão Weber, (apud ARANHA, 2003, p.342) ao analisar
os princípios e a ideologia da Reforma protestante, inferiu a respeito do ideal de vida
dos puritanos, que passou a ser baseada nas obras, na riqueza e na prosperidade,
para tanto condena-se à ociosidade, nascendo assim, a “moral burguesa”.
No combate ao ócio, para aproveitamento e controle de mão-de-obra nas indústrias,
leis contra a vadiagem são implantadas, desde a Baixa Idade Média até o século
XIX na Europa, contribuindo, paralelamente, para reforçar o imaginário digno do
trabalho e para evitar as agitações sociais nos centros urbanos. Além disso, são
criadas instituições de confinamento de caráter disciplinador e repressivo. Com
relação a isso, Braudel (1989) descreve o processo das mudanças políticas e de
atitudes com relação aos pobres na Europa, conforme se lê abaixo:
Todo esse mundo, até então protegido pela sombra de Deus, vai
tornar-se, no século XVII, inimigo de uma sociedade urbana, já
capitalista apaixonada pela ordem e pelo rendimento e que constrói o
Estado nesse espírito e com esse fim. Em toda a Europa (a
protestante e a católica), os pobres, os doentes, os desempregados,
os loucos, são impiedosamente encerrados (por vezes com sua
família) ao lado dos delinqüentes de todas as origens. É o que Michel
Foucault chama de "o grande confinamento” dos pobres, um
seqüestro legalizado, organizado por uma administração minuciosa,
que aliás permitirá encerrar, por carta régia, o adversário político. [...]
Para isso, cria-se um grande número de estabelecimentos: hospitais,
oficinas de caridade. Worhouses, Zuchhäuser. Quaisquer que sejam
os nomes, são sempre casernas rigorosas, ainda por cima oficinas
de trabalho forçado. [...]. [... Num mundo em que a liberdade já não
existia senão para alguns poucos privilegiados, o século XVII
contribuiu, pois, para restringir seguramente essa liberdade
elementar que é a fuga ou a perambulação, a única até então
permitida aos pobres (BRAUDEL, 1989, p. 304).
O Estado Liberal, - a esfera pública burguesa - continuou usando do mesmo
expediente, no século XIX, para consolidar os seus interesses. Os desdobramentos
20
disso se fizeram perceber, dentre outras áreas, em políticas públicas direcionadas
ao condicionamento do indivíduo, através do controle social e da difusão de valores
estruturados numa nova ética do trabalho, nas noções de tempo útil e de
autodisciplina, crítica à ociosidade, garantidos a partir da montagem de todo um
dispositivo de vigilância e repressão representados pelas autoridades policiais,
jurídicas, sanitárias e escolares. Com isso, o trabalho, a ordem e o progresso, nas
sociedades modernas, passaram a ser palavras de primeira grandeza, na Europa e
fora dos seus limites, a exemplo do Brasil. Schwarz (1973), analisando os valores
que nortearam as práticas políticas do Brasil, a partir de 1822, verifica que as idéias
liberais européias - as mesmas que alicerçaram a esfera pública burguesa - foram
importadas para a realidade brasileira monárquica, escravista e agrária. Esse fato o
autor denomina de “as idéias fora do lugar”.
A liberdade de trabalho, o princípio da universalidade, a igualdade perante à lei eram
idéias que ratificavam o poder político e econômico da burguesia na Europa e
encobriam a exploração e a despolitização do trabalhador. Arendt (2002) tece
críticas com relação a esse processo. Para ela, a supervalorização do trabalho como
atividade de suprema importância na sociedade contribuiu, principalmente, para
suprimir a liberdade do homem. Constata-se isso na citação que segue:
A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e
resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma
classe operária. [...]. A sociedade que está para ser libertada dos
grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma
sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores
e mais importantes das quais valeria apenas conquistar a liberdade
(ARENDT, 2002: p.12).
Qual o sentido delas num país como Brasil, cujas bases políticas, econômicas e
sociais estavam assentadas na manutenção da escravidão, nos privilégios dos
proprietários de terra e grandes comerciantes, na dependência econômica do
mercado externo? Para Schwarz (1973, p. 152), no plano das “convicções a
incompatibilidade é clara e no plano prático ela pode se fazer sentir”, pois a idéia era
manter a política da troca de favores e o do clientelismo, portanto, subordinando o
21
homem livre, haja vista o escravo legalmente, já ser subordinado ao seu senhor,
como propriedade privada, institucionalmente garantida pela esfera pública.
Na ótica de controle do homem livre, já se previa o fim da escravidão, a dificuldade
de obter mão-de-obra e a conseqüente descapitalização das elites. Por isso, era
necessário que o Estado Imperial, a esfera pública, dizendo-se liberal, atuasse no
sentido de condicionar aquela população ao mundo do trabalho. O homem livre,
naquele momento, tornou-se locos das preocupações públicas e privadas. Logo, ele
deveria ser alvo da legislação a ser instituída, para que não se tornasse vadio e
ocioso ou mendigo. O código penal do Império de 1830 garante isso:
O art. 296 – estabelecia pena de um a seis meses de prisão,
podendo ser duplicado em caso de reincidência, para as pessoas
que não tomassem ocupação "honesta e útil de que podessem
subsistir (FRAGA FILHO, 1996, p. 92).
Percebe-se então que, para a manutenção do seu status quo, a esfera pública,
envolvida com as demandas da esfera privada, usa como biombo para reprodução
dos seus interesses, os princípios liberais predominantes na sociedade ocidental
européia, ainda que esses desvirtuassem da realidade brasileira. Naquele contexto,
valia, em primeira instância, assegurar seus interesses políticos e econômicos.
A “moda” de adotar as idéias burguesas no governo nacional também foi adotada
pelo poder público municipal de Salvador, durante o século XIX. Os editais de polícia
reforçavam a legislação nacional.
Ninguém poderá mendigar socorros públicos pelas ruas da cidade
sem um atestado de juiz da respectiva freguesia que recomende à
caridade pública a necessidade de tais socorros, pela reconhecida
incapacidade física do mendigo para qualquer gênero de trabalho
(APEB, Legislativo apud FRAGA FILHO, 1996, p.144).
Para Fraga Filho(1996), as elites brasileiras, durante o século XIX, sob a ótica
burguesa, pretenderam reordenar fisicamente as cidades. Isso significava higienizar
as vias públicas e excluir dos centros urbanos todos os indivíduos que não se
22
adequavam à nova ordem. Nesse contexto, estavam inseridos os menores, jovens e
adultos pobres que ocupavam os espaços públicos da cidade (entendidos como
moradores de rua do século XIX) que alhures eram vistos como carentes da piedade
cristã. Os tempos eram outros. Pobres perambulando pelas ruas da cidade
passaram a ser enquadrados na categoria de vadios e ociosos, quando não
provavam a sua necessidade de depender da caridade pública. A repressão contra
essas pessoas se reproduziu nos moldes do quadro europeu, com a criação de
instituições de recolhimento e confinamento em áreas mais distantes do centro da
cidade, sob o discurso da higienização urbana e através do trabalho forçado nos
navios da marinha e em colônias agrícolas no interior do estado. Assim sendo, as
[...] reformas urbanas empreendidas pelos poderes provincial e
municipal, a partir da década de 1850, que resultaram na canalização
de rios, no aterro de terrenos pantanosos e na abertura de novas
ruas, pareciam incompletos com a manutenção de mendigos no
centro da cidade (FRAGA FILHO, 1996, p. 142).
É possível analisar a partir desse contexto que as intervenções no espaço publico da
cidade visavam, dentre outros objetivos, controlar a vida cotidiana e a vida privada
dos indivíduos, à medida que eram também realizadas diligências policiais nas
casas (dos pobres) da cidade para verificar a existência de pessoas “vadiando”; ao
mesmo tempo as praças começam a ser cercadas para evitar a aglomeração de
“vadios”, evidenciando o caráter vigilante e condicionador dessas ações. A partir de
então, a praça, entendida como espaço público, configurada como área de trocas
entre as pessoas, de socialização e de encontro, de ações espontâneas, passa a ser
um espaço ameaçador à ordem pública para a elite soteropolitana, quando
freqüentada por pobres. A pobreza, então, ganha o significado de vadiagem, aos
olhos do poder público e da elite, algo que precisa ser combatido por vias da
repressão, do confinamento e da punição. A condição de pobreza, sob este olhar,
não tem relação alguma com as crises econômicas do período, com a expulsão de
trabalhadores rurais de suas terras, com a fuga da exploração e das condições de
trabalho vigentes no período ou com a opção das pessoas em não quererem se
submeter àquele padrão homogeneizante de estilo de vida imposto pela sociedade.
23
1.2 - A percepção indireta na literatura amadiana e na imprensa sobre o
século XX : “Os Capitães da Areia” e a “operação” cata-mendigo.
A mídia televisiva e os jornais durante os anos de 2004 e 2005 centraram bastante
suas notícias e reportagens sobre moradores de rua. Em 19 de agosto de 2004,
enquanto dormiam, 15 moradores de rua foram vítimas de atrocidades em São
Paulo: “durante a madrugada, no Centro da cidade, os mesmos foram agredidos na
cabeça, provavelmente, a paulada ou com barra de ferro” provocando a morte de
seis e o internamento de nove com ferimentos graves. Fato semelhante a esse
ocorreu em outras cidades (Recife e Belo Horizonte) do país no mesmo mês. Em
Salvador, um mês antes dos episódios citados anteriormente, a preocupação da
mídia recaiu sobre a família que estava vivendo debaixo do Viaduto dos
Engenheiros, próximo a Fonte Nova, no Centro, e que foi ameaçada para sair do
local por funcionários da SETRADS. Esses acontecimentos fizeram com que os
meios de comunicação trouxessem à tona a vulnerabilidade dessas pessoas com
relação a grupos de criminosos, movidos pelo ódio e que expressam esse ódio no
espaço público, fazendo com que alguns segmentos da sociedade lembrassem da
existência desses indivíduos que sempre foram ignorados.
Dessa forma, aproveitando a oportunidade, o calor das notícias e a consternação da
sociedade com o fato, pouco tempo depois o tema foi objeto de reportagem de dois
programas de televisão. A contribuição dos programas consistiu em mostrar que
quem está morando na rua não é o drogado, o bêbado, o vagabundo, mas pessoas
com capacidade de gerir suas vidas, desde que tenham o direito a terem direitos.
Por outro ângulo a problemática passou a ser debatida como se fosse uma questão
recente na história do país e como se todos estivessem consternados com a
situação desses indivíduos. Na verdade, o tempo todo a própria sociedade e o
Estado em todas as suas esferas os nega e os viram como refugos descartáveis.
Apesar de todo esse noticiário, estudos anteriores mostram que a presença de
pessoas que fazem do espaço público, ou seja, das ruas, praças, largos, viadutos e
marquises, seu espaço de moradia e sobrevivência no Brasil, em especial, em
Salvador, data do período colonial e, em nenhum momento, o poder público
24
vislumbrou qualquer ação que promovesse emancipação política e social dessas
pessoas. É possível verificar esse fato no estudo aqui proposto sobre o século XX.
Para discussão desse ponto na pesquisa, optou-se por analisar a obra "Capitães da
Areia" de Jorge Amado, de 1930 e os jornais disponíveis a partir de 1950, porque os
mesmos apresentam ricas informações sobre as políticas públicas aplicadas aos
moradores de rua, bem como os espaços públicos apropriados por eles e suas
estratégias de uso. Considera-se nesse contexto que a literatura e a imprensa são
fontes importantes para a construção de conhecimento sobre o espaço geográfico.
Del Rio (1996) denomina essas fontes de percepção indireta, pois nelas estão
expressas as idéias e as impressões de pessoas que viveram a cidade naquele
momento e como afirmaram Pinheiro e Silva (2002):
a literatura que trata (e tratou) de temas e personagens urbanos,
pode ser resumida como um magnífico esforço de desvendar os
mistérios do ser, olhando para a cidade (PINHEIRO;SILVA, 2002, p.
8)
Na primeira metade do século XX, verificou-se, a partir da obra do escritor Jorge
Amado, "Capitães da Areia", que a situação pouco se altera com relação ao século
XIX. A preocupação do autor em mostrar, nas suas obras, a realidade da Bahia,
reflete-se na descrição da beleza e das mazelas dos seus personagens, bem como
na configuração espacial e no tempo histórico da cidade. Nesta obra, o autor
denuncia a vida dos meninos e meninas de rua em Salvador; a vivência dos mesmos
na área do Comércio; as estratégias de sobrevivência como, por exemplo, a de
territorializar o trapiche
5
da beira da praia, transformando-o num espaço de relações
de poder entre o líder e os demais membros do grupo delimitando-o como uma área
de segurança onde poderiam reproduzir suas vidas; o autor retrata, também, a forma
como estas crianças perambulavam por várias áreas da cidade, desafiando o poder
das autoridades. Todavia, ao mesmo tempo, a obra permite analisar as formas de
apropriação e uso dos espaços da cidade pelos meninos de rua, como evidencia o
trecho abaixo:
5
Era um tipo de armazém destinado às mercadorias de importação ou exportação, muito utilizado até
o final do século XIX.
25
Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando
palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos
da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a
amavam, os seus poetas (AMADO, 1998, p. 21).
Os meninos de rua da ficção pouco se distinguem dos da realidade presente,
significavam a rua como espaço da liberdade e da sobrevivência e por ela
perambulavam, causando a indignação da sociedade.
Crianças Ladronas: As aventuras sinistras dos “Capitães da Areia” – a
cidade infestada por crianças que vivem do furto – urge uma
providência do Juiz de Menores e do Chefe de Polícia – ontem houve
mais um assalto (AMADO, 1998, p. 3).
O tratamento dispensado às crianças e aos adolescentes de rua reproduzia o
pensamento liberal burguês tratado no item anterior, portanto restava para eles o
confinamento ou o trabalho forçado, como forma de “recuperá-los” e torná-los úteis à
sociedade conforme percepção amadiana:
[...] porque ao juizado de menores não compete perseguir e prender
menores delinqüentes e, sim, nomear curador para acompanhar
qualquer processo contra eles instaurado, etc. [...].
Ainda nesses últimos meses que decorreram mandei para o
reformatório de menores vários menores delinqüentes ou
abandonados. Não tenho culpa, porém que fujam, que não se
impressionem com o exemplo de trabalho que encontram naquele
estabelecimento de educação.[...] (Carta do Doutor Juiz de menores à
redação do Jornal da Tarde apud AMADO, 1998, p. 9).
A transcrição do artigo acima revela o quanto a história dos meninos de rua em
"Capitães da Areia" é de fato um verdadeiro documento histórico e geográfico, assim
como demonstra o quanto era debatida a questão por volta da primeira metade do
século XX na imprensa local, deixando notório que havia preocupação das
autoridades com a situação do ponto de vista da segurança na cidade, pois os
26
meninos eram considerados perigosos. Isso também indica que poderia-se estar
falando de um passado remoto ou de ficção literária, mas durante o século XX não
só crianças e adolescentes, mas a população adulta também se encontrava nas ruas
de Salvador conforme notícias de jornais. A presença de pessoas nas ruas, nesse
momento, está relacionada com as crises econômicas, com o empobrecimento da
população e com a pouca absorção da mão-de-obra livre e liberta, tanto no campo
como na cidade. Nessas condições, os espaços públicos de Salvador serviram de
espaço privado para uma considerável parte da população que vivia, em sua
maioria, da mendicância, da assistência de instituições de caridade ou de trabalhos
esporádicos.
A partir da década de 1950, a presença de moradores de e na rua, denominados,
naquele período, de mendigos, vadios e esmoleres, estavam nas discussões
cotidianas dos Jornais:
Eles dormem, como o Brasil, em berço esplêndido, enquanto a
sociedade brasileira, se dissolve, lenta e progressivamente. Admite-
se, já em nossos dias, a debacle social do país como decorrência de
um propósito dos poderes competentes para a formação de uma
elite nacional, precursora de uma ditadura nefasta. [...]
O resultado desse descaso governamental vê-se em todas as
capitais brasileiras: a queda fatal do homem do povo vitimado pelo
algoz movimento de elite.
Um desse quadros negativos, oriundos desse movimento silencioso
de um grupo dominante, abordamos hoje: - mendicância ou vício? (A
TARDE, 10.11.1959. Enquanto eles dormem os problemas crescem.
Série II)
..........................................................................................................
[...] Segundo informações da própria Secretaria de Saúde todas as
pessoas encontradas praticando a mendicância em locais
freqüentemente visitados pelos turistas foram recolhidos ao
albergue noturno de onde saíram para suas cidades de origem,
hospitais ou para polícia. [...]
[...] Funcionários municipais ligados a “operação cata-mendigos”
fizeram um apelo ao comércio e as pessoas que distribuem esmolas
27
a pedintes para que evitem fazê-lo podendo inclusive enviar as
quantias para as instituições que atendem aos necessitados a fim de
evitar a concentração de mendigos nas ruas principais da cidade.
(JORNAL A TARDE. Operação Cata-Mendigos recolheu 85 na
Capital. 29.07.71) [grifo nosso]
..........................................................................................................
Tradicional local de lazer de moradores do centro de Salvador, a
Praça da Piedade já não é mais tranqüila e calma como antigamente
[...].
Aqui somos agredidos diariamente por todo tipo de passeatas e
concentrações políticas e populares. É raro o dia em que não ocorra
essa manifestações na Piedade, defende inconformado o Frei
Aureliano, administrador do Convento Nossa Senhora da Piedade.
[...] O frei denuncia também o que chama a destruição “física e
moral” da Praça, lembrando que a fonte foi transformada em
lavanderia pelos mendigos [...]. (JORNAL A TARDE. Mendigos e
manifestações políticas tomam a Piedade. 16.09.92) [grifos nossos]
Um dos fatos observados nas notícias de jornais é a intolerância do poder público
para com os moradores de rua, usando o discurso da imagem da cidade para os
turistas, preocupação também da atualidade, além disso, parece uma prática comum
das autoridades a chamada “operação cata mendigos”, retirar das ruas aqueles que
têm a coragem de ao mostrar-se denunciar o descaso do poder público com os
pobres da cidade. Prática comum também hoje. Outro aspecto verificado é a
espacialização dessa população na cidade: a Praça Castro Alves, a Praça da
Piedade - Igreja da Piedade e, principalmente, o Terreiro de Jesus e a Igreja de São
Francisco foram citados com freqüência, evidenciando a preferência dos moradores
de rua pelo Centro Antigo. Com relação a essa preferência espacial, sabe-se que
este espaço se configurou, do período colonial até a segunda metade do século XX,
como área dinâmica e de múltiplas funções, no cotidiano local, regional e mesmo
nacional. Em virtude disso, aí estavam concentrados o poder político, econômico e
religioso do país até 1763 e do Estado até o fim da década de 1950. Levando-se em
consideração que a sociedade baiana era majoritariamente católica e que a questão
da caridade era um pré-requisito para absolvição de pecados, é pertinente inferir que
as pessoas que viviam nas ruas, perambulando, mendigando e esmolando, eram até
28
certa forma tolerados, já que eram considerados necessitados da caridade; por outro
lado, viver nas proximidades das igrejas, das irmandades, era uma estratégia de
sobrevivência; portanto, para esta população marginalizada a melhor área para se
viver, nesse sentido, era o Centro Antigo.
Mesmo com o processo de decadência dessa área a partir da década de 1960, os
moradores de rua aí continuaram presentes. No final do século XX e início deste,
esta população se encontra praticamente disseminada em toda a cidade, embora,
ainda, a presença no Centro Antigo seja predominante. Sabe-se que, hoje ainda,
muitos sobrevivem da caridade das ordens religiosas, das doações, mas que o
Centro, do ponto de vista espacial, oferece outras atrações, como a quantidade de
turistas que para ali afluem e, principalmente, a oferta de lixo reciclável produzido
pelo comércio local, pois a maioria deles sobrevivem economicamente de catar
esses materiais para vender, como pode ser observado na figura 2 abaixo.
Figura 3 - moradores de rua separando lixo reciclável na Praça Castro Alves.
Uma questão que merece ser investigada no contexto atual deste espaço e que
causa preocupação, é que parte do Centro Antigo vem sendo objeto de políticas de
requalificação com o objetivo de dinamizar a área através de reformas dos casarios
para residências, implantação de faculdades e call centers. Negócios que apontam
para a especulação imobiliária e para a tentativa de privilegiar os grupos econômicos
Foto: Nadja Miranda, março de 2005
29
com uma série de vantagens fiscais de acordo com o decreto municipal de nº
14.159/03. Diante do cenário desenhado, alguns questionamentos se fazem
necessários. Qual será o destino dos moradores de rua que vivem e dependem
dessa área para sobreviver? Serão inseridos nesse processo ou removidos para
assentamentos em áreas distantes, sem infra-estrutura, o que em última instância
pode impossibilitar qualquer rendimento ou mobilidade para outras áreas da cidade,
como já aconteceu com a maioria da população do Pelourinho por ocasião da
requalificação da área?
Verifica-se, a partir de então, que a presença de moradores de rua na cidade
perpassou décadas e séculos convivendo com a sociedade de Salvador. Os
Capitães da Areia: os Pedro Bala, Volta Seca, Sem-Pernas e João Grande da ficção
amadiana continuam fazendo parte do cotidiano e da história real da cidade,
buscando o seu espaço apesar do modelo de sociedade injusta e egoísta vigente
não permitir isso.
1.3 - Reflexões sobre as políticas públicas de atendimento a moradores de rua:
emancipação ou despolitização?
O papel do poder público diante da questão, segundo Fraga Fillho (1996), até a
primeira metade do século XIX, era de certa tolerância com os moradores de rua,
porém, a partir de então, o procedimento mudou. Era o momento em que se
desenvolvia, na Europa, a mentalidade de inserção do homem pobre no mundo do
trabalho, idéia esta que teve grande influência sobre a elite brasileira. Embasados
nos valores burgueses de progresso e trabalho, as autoridades baianas logo
trataram de organizar mecanismos para coagir a “mendicância”.
As políticas públicas com relação a essa situação variaram: de leis intoleráveis ao
confinamento. Isso se explica porque em vários momentos do século XIX, a
mendicância era considerada pelos poderes públicos como ato de vadiagem, de
ociosidade, até mesmo responsável pela insalubridade da cidade, chegando-se até
a publicação de editais de polícia proibindo a mendicância para aqueles que não
tinham liberação para pedir esmolas, como no caso dos doentes, dos idosos, das
30
viúvas legítimas e das crianças órfãs. Desobedecendo às determinações o indivíduo
estava sujeito a penalidades tais como: o recrutamento forçado, a deportação para o
local de origem, o trabalho forçado em obras públicas e o confinamento em asilos e
prisões.
Tais medidas visavam, principalmente, inserir essas pessoas no mundo do trabalho,
na ordem burguesa estabelecida na Europa e com ramificações sobre a elite
brasileira, pois já prenunciavam o fim do regime institucionalizado da escravidão e
era necessário evitar a descapitalização e garantir a mão-de-obra.
As sucessivas reportagens entre 1950 e 1992, que denunciavam a situação de
pessoas vivendo nas e das ruas de Salvador e abordavam a atuação do poder
público, perpassavam a visão do confinamento. Em 1950, foi fundado um albergue
noturno municipal para abrigar 73 pessoas, mantido pela Secretaria de Saúde e o
único desta época. Em 1986, esse abrigo se encontrava em péssimas condições:
O albergue noturno municipal localizado na Baixa dos Sapateiros,
está em condições precárias. As paredes sujas, o telhado cheio de
goteiras, os sanitários com caixa de água e torneiras quebradas,
manchas deixam evidentes as infiltrações no teto. O lixo presente em
toda parte, atrai e contribui para a proliferação de ratos e baratas.
[...] O diretor do abrigo, Paulo Wolfovitch afirmou que a instituição é
mantida pela Secretaria de Saúde e que desde 1977, se dedica
exclusivamente ao atendimento de migrantes. [...]. Mas em função
dos desabrigados da chuva desde abril passado abriga os
desalojados da chuva. [...]
(JORNAL DA BAHIA, O abrigo dos que não tem para onde ir.
07.11.86)
Percebe-se a partir de então que a preocupação do poder público municipal não
divergiu muito em relação ao século anterior. Valorizava-se o confinamento, o
assistencialismo e o caráter higienista, na medida em que o albergue era
responsabilidade da Secretaria de Saúde, muito embora as condições do
equipamento, segundo reportagem, dada a situação de higiene e funcionamento,
não garantissem a saúde dos abrigados. A assistência social limitava-se a retirar as
31
pessoas das ruas ou dar-lhes passagens de retorno ao seu local de origem, no caso
dos migrantes. Observa-se, também, que para o poder público a presença dessas
pessoas nas ruas pedindo, catando lixo ou se abrigando em praças, marquises e
viadutos, era incômoda, pois dava visibilidade maior à pobreza da cidade. Já que a
preocupação era a de esconder a mesma, não se criticava a falta de políticas que
inserissem as pessoas de forma digna na sociedade, que combatessem as
desigualdades sociais e a concentração de renda e desenvolvessem um
planejamento de cidade voltado para atender os interesses da maioria.
Atualmente, para atender a população de rua destaca-se o Programa Moradia e
Cidadania, uma parceria do Município com o Governo do Estado. Uma das ações
desse programa é o assentamento desta população com a construção de casas,
com os aluguéis associados ao pagamento de Bolsa-auxílio, Vale-Vida, e a
manutenção dos abrigos. O Albergue Noturno - situado no Bairro de Roma -, na
Cidade Baixa, com capacidade para alojar 140 pessoas, abriga migrantes do interior
e de outros estados e moradores de rua, a serem encaminhados para tratamento de
dependência química; Casa de Pernoite - situada na Rua J. J. Seabra, Baixa dos
Sapateiros -, tem capacidade para atender 120 pessoas por noite com idade acima
dos 18 anos, lá pernoitam e retornam às ruas durante o dia. Além disso, esta
população conta com a ajuda do serviço social, que a encaminha para regularizar
documentação, bem como ajuda de voluntários (médicos e cabeleireiros); Vila
Fraternidade – situada da Rua Fraternidade, Coutos – se trata de uma organização
não-governamental que têm convênio com a Prefeitura de Salvador, pode abrigar
até 40 pessoas, oferecendo alimentação, banho lavanderia e medicamentos; Casa
de Acolhimento Dom Timóteo Amoroso - na Avenida Bonocô - que também funciona
para atendimento a abrigo de pernoite para meninos e a Casa de Oxum - no Vale
dos Barris - Centro, com o mesmo fim para meninas. Estas duas últimas fizeram
parte dos programas do Projeto Cidade Mãe, fundado em 1994, transformado em
Fundação no ano seguinte, cujo objetivo era o de realizar trabalho preventivo com
crianças e adolescentes em situação de risco. As vagas em casas de acolhimento
vêm sendo ampliadas
6
com convênio que o poder público municipal vêm realizando
com instituições religiosas.
6
Em entrevista com o Sr. Adilton Ferreira, da Coordenação de Programas Assistenciais da prefeitura
municipal, no dia 28/08/2005, informou que além dos equipamentos citados existe também a Vila
32
Figura 4 -
Casa de Oxum para acolhimento de meninas de rua,
Barris.
Sobre os programas desenvolvidos pelo poder público municipal os próprios
moradores de rua tecem comentários quando perguntados sobre o que pensam dos
serviços públicos prestados a eles como se vê abaixo:
“[...] o albergue não presta não. Fiquei lá um dia só. É horrível. Tudo
fedendo, a pessoa fica trancada presa parecendo uma cadeia. [...]
(Neguinha, 22 anos, Barra)
[...]A prefeitura me cadastrou. No albergue da Barroquinha fui acertar
o aluguel. Tava grávida. Mandou arranjar uma casa para alugar.
Aluguei uma casa na Liberdade, fique recebendo 95,00 a casa era
100,00. Tinha que vir para sinaleira para batalhar 5,00. Pagava o
aluguel, recebia o vale vida, depois da liberdade passei para Pau da
Lima. O aluguel passou para 140,00. Pagava o aluguel. Depois fui
para casa de Fazenda Coutos. No Centro Comunitário davam comida
a gente, uma quentinha com chuchu cru, cheio de casca, cenoura
cheia de casca, a comida crua, soja, soja direto. E aí dava o vale vida
de 100, reais. Depois o vale vida passou para 75,00. Dava ajuda na
casa, depois cortou. Ficava lá não tinha nem um pão duro para comer.
Fraternidade, situada em Fazenda Coutos, ligada à Igreja Católica e conveniada com a SEDES –
Secretaria de Desenvolvimento Social do Município, para acolhimento de moradores de rua.
Nadja Miranda, novembro de 2004
33
Ai voltei para rua. Ia ficar lá para meus filhos comer parede. Não
posso senhora. Eu aqui no Largo dos Mares é muito melhor que
fazenda Coutos. [...] (D. Ana, 44 anos, Itapagipe)
Os programas do governo é só apenas promessa. Ajudam, mas não
se preocupam. [...] (Senhor, 52 anos, Centro).
Dos 45 entrevistados nas três RAs, mais de 50% conheciam os programas sociais
da Prefeitura, com exceção dos moradores de rua da Barra cuja maioria afirmou
desconhecer. Este fato está associado ao número expressivo de jovens sozinhos
que se encontram na área, pois, a maioria que procura os serviços dos programas
são idosos e/ou famílias; apenas 20% recebiam algum benefício do governo
conforme pode ser verificado nos gráficos 1 e 2. A maioria deles tece críticas aos
programas existentes, especialmente aos albergues, preferindo ficarem nas ruas que
na Casa de Pernoite da Baixa dos Sapateiros. As reclamações se referem à questão
da higiene, da privacidade, da falta de flexibilidade de horário de entrada e saída na
instituição e ao descaso dos funcionários. Além disso, vêem o serviço como forma
de tirá-los da rua a qualquer custo. Quanto ao programa da casa, implantado no
Loteamento Morada da Lagoa em Fazenda Coutos, na fala de D. Ana percebe-se
que não atendeu às expectativas dos que foram contemplados, pois o projeto foi
implantado numa área que não tinha como as famílias se manterem já que não
havia como garantir renda ou mesmo receber donativos,fato agravado pela
dificuldade de locomoção para o Centro Antigo, Mares e Calçada, áreas onde viviam
nas ruas antes de ingressarem no programa. Sem essas possibilidades, alguns
venderam as casas e retornaram às ruas ou continuaram na rua durante os dias
úteis, onde eles conseguiam alguma renda com trabalhos de catação de lixo
reciclável, lavagem de carro, prestação de serviços a comerciantes.
Assim, esse projeto contribuiu apenas para a segregação espacial dessas pessoas e
como afirma Santos (1996), quando aborda o direito de morar: para os especialistas
basta ser proprietário de uma casa e este direito já está garantido, mesmo que a
casa de tão pequena conduza a toda espécie de confinamento. Ou seja, para os
técnicos, a principal necessidade do morador de rua é uma casa, renda para
sobreviver, lazer, tudo isso é secundário, diante do fato de morar na rua. Não é o
34
que pensa o Sr. Lorenilson, quando caracteriza o projeto Moradas da Lagoa, do qual
recebeu um imóvel do projeto. Para ele, a casa era muito pequena, com chão batido,
distante de onde ele garantia renda semanalmente lavando carros. Por isso,
continuou morando num viaduto nas proximidades da Fonte Nova, onde, segundo
ele, garantia uma renda de R$30,00 por semana e visitava a casa quando possível.
Vê-se, então, que o Sr. Lorenilson apesar da casa continuou morador de rua, que o
projeto de assentamento proposto e implantado pelo poder público não atendeu às
suas necessidades reais, evidenciando, assim, a carência de outros projetos que
contemplem os direitos dos moradores de rua.
Gráfico 1
SALVADOR – MORADORES DE RUA QUE CONHECEM
OS PROGRAMAS SOCIAIS DA PREFEITURA
0
3
6
9
12
Centro Itapagipe Barra
Regiões Administrativas
Moradores
Sim
Não
Não respondeu
Fonte dos dados: Diagnóstico de População de rua em Salvador, PMS, SETRADS, 2002.
Gráfico 2
35
SALVADOR – MORADORES DE RUA
QUE RECEBEM AUXÍLIO DO GOVERNO
0
3
6
9
12
15
Centro Itapagipe Barra
Regiões Administrativas
Moradores
Sim
Não
Fonte: Pesquisa de campo, janeiro a março, 2005.
Além dos programas anteriormente apresentados o Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano – PDDU - 2004, preconiza com relação à população de
rua:
- Estabelecer programas específicos para atendimento à chamada
“população de rua”, visando reintegrá-la ao processo social.
- Desenvolvimento de programa específico de implantação de
unidades de atendimento – centros de recuperação – para esse
segmento social, com previsão de permanência por um certo
período, e prestação de assistência (alimentação, saúde,
aconselhamento, higiene, moradia), em parceria com o setor privado
e terceiro setor.
- Implantação de centro de recolocação profissional, cujas
funções sejam reciclagem, treinamento, formação e
recolocação no mercado de trabalho, em parceria com o setor
privado.
36
- Estabelecimento de acordo entre os poderes públicos e o setor
privado, pelo qual, a cada contrato firmado entre as duas partes, no
que fosse pertinente, caberia ao setor privado dispor de um certo
número de vagas para atender a esse segmento, cuja seleção
deverá ser feita pelo centro de realocação profissional a ser
implantado
. (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – PDDU. Anexo
A.49. Município de Salvador. Promoção/ Assistência Social . Art. De ref: 83)
[grifos nossos]
De forma bem sucinta aparece no PDDU algumas proposições direcionadas à
população de rua. Segue algumas considerações sobre estas: primeiro, observa-se
que para o estabelecimento dessas preposições não houve qualquer consulta aos
interessados sobre o que eles querem e quais são as suas necessidades; segundo,
é a noção pré-concebida que os moradores de rua são excluídos do processo social,
como se eles vivessem numa sociedade que não é a nossa. Sobre essa concepção
verifica-se que quando o indivíduo não é consumidor de bens e serviços
normatizados pelo mercado, quando não paga luz, água e telefone, não faz parte do
processo produtivo formal, esta pessoa está fora do circuito de cidadania; tal visão é
estreita, pois a pesquisa revela que a maioria dos moradores de rua sobrevive do
seu trabalho, mesmo que informal. O fato, socialmente imposto, é que o trabalhador
é aquele que está subordinado às condições do mercado. Assim ele é considerado
também cidadão. No entanto, acredita-se que mais que a falta de bens materiais, os
moradores de rua perdem sua cidadania, porque passam à condição de invisíveis na
cidade, porque a eles é negado o direito de falar o que sentem e o que querem os
direitos naturais de que fala Santos:
[...] O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de
direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver,
tornar-se um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança
moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais.
Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o
frio, à chuva, as intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade
e a uma existência digna [...] .(SANTOS, 1996, p.7)
37
Como lhes são negados seus direitos, eles simplesmente reinventam e criam o seu
próprio estilo de vida. Estilo esse que é rejeitado pela sociedade, atribuindo-lhes o
estigma de mendigos, esmoleres e, principalmente, defendendo a idéia de que os
mesmos precisam ser “recuperados” e reintegrados à sociedade. A pesquisa
constata que a maioria deles não aceita a condição de tutelados pelo poder público
e rejeita as condições impostas pelos programas sociais. Além disso, na lista de
dificuldades enfrentadas pelos moradores de rua, ser visto como ser humano é o
desejo número um. Ser humano, no falar deles, é não ser discriminado, não ser visto
como marginal ou como incapaz de gerir sua vida. Concordam que precisam de
ajuda, mas não querem de forma alguma perder o direito à liberdade de escolha em
função da ajuda. Observa-se acerca dessas considerações:
[...] só saio da rua se ganhar na mega-sena. Do contrário fico nela. A
rua é o melhor lugar do que a casa [...] (morador de rua, 65 anos.
Barra).
[...] aqui na rua tenho possibilidade de trabalho: cato reciclado, lavo
carro, pago conta dos comerciantes daqui [...]. (Jovem, 20 anos.
Largo do Mares)
[...] Trabalho ajudando na montagem das barracas. Não tenho
dificuldades. Todos os dias consigo minha alimentação: café,
almoço [...]. ( João, 23 anos. Rua das Flores, Centro).
Além de analisar as políticas já postas em prática buscou-se também verificar em
que medida a situação dos moradores de rua é tratada pela Câmara de Vereadores
do município, sendo constatado que de 1990 a 2005 o poder Legislativo municipal
foi praticamente omisso com relação à criação de qualquer projeto voltado para a
população de rua. Nas atas da Câmara de Vereadores do período citado, não foi
encontrado qualquer projeto de lei que abranja especificamente os moradores de
rua; no máximo, o que se encontra são indicações transferindo a responsabilidade
para instituições religiosas o para o poder Executivo.
[...] o vereador Eliel Santana manifestou preocupação com o
aumento do número de pessoas sem moradia em Salvador. Pediu
38
ao Senhor Prefeito e ao Secretário de Ação Social providências
como o aumento da oferta de albergues. A Ação Social vem
empreendendo esforços para tratar o problema e no sábado serão
realizadas ações para atender à situação.[...] o orador reconheceu o
trabalho das instituições religiosas [...]. (Ata de 16 de novembro de
1998
).
É recorrente a reprodução da política de retirada das pessoas das ruas, através da
doação de passagens para retorno à cidade de origem ou estado e o aumento de
albergues: “O vereador Antonio Lima indica ao governador do Estado a implantação
de galpão para mendigos e fornecimento de passagens” (indicação nº 2.120/93);
Eliel Santana solicita ao Governo do Estado o aumento de albergues noturnos
(indicação nº 2.149/93). São várias as indicações com esse teor, constatando que a
preocupação dos nossos legisladores é mantê-los confinados e mais, transferir a
responsabilidade de qualquer ação para outros setores, principalmente para
instituições religiosas. Por outro lado, verifica-se que no espaço da política na
cidade - a Câmara de Vereadores - pouco ou quase nada se discutiu sobre a
questão do morador de rua e, mais grave, não há qualquer indício que a algum
deles tenha sido dada a oportunidade de falar ou de expressar-se naquele espaço.
Com relação ao poder Executivo, nos relatórios de gestão municipal há um item que
aborda as ações do poder municipal no âmbito social, incluindo-se aí a população de
rua. Averiguou-se, nos anos de 1999, 2000 e 2001, que as políticas desenvolvidas
foram limitadas, contraditórias ao discurso e pouco efetivas conforme descrições
abaixo:
[...] à disposição do município 26 agentes sociais e 2 veículos como
motoristas, para retirada e encaminhamento dos mendigos a
instituições apropriadas. (Relatório 2000, p. 47).
....................................................................................................
[...] abordagens em locais de maiores concentrações, bairros
comerciais, praças e jardins, como também solicitações do
serviço Salvador Atende [...] (Relatório 2001 p. 49). [grifo nosso].
.................................................................................................
Mensagens do prefeito.
39
[...] Salvador é esta singular cidade, que encanta todos que aqui
residem ou a visitam... é a mais humana e hospitaleira [...]
(PMS.Relatório da prefeitura 2000. p.12)
.................................................................................................
[...] Salvador impõe-se hoje, no cenário nacional, como uma cidade
que emergiu das cinzas, de um período negro de sua existência
recente, para alcançar padrões de oferta de qualidade de vida e da
geração de oportunidades, até então inigualáveis em sua história.
[...] ( PMS . Relatório 2001. p. 7).
No entanto, o que existe de fato foi criado pelo poder Executivo com o apoio do
Governo Estadual e os responsáveis pela operacionalização são os funcionários da
COPA – Coordenação de Projetos Assistenciais. Esses funcionários reclamam da
falta de recursos para o desenvolvimento de políticas mais eficazes e afirmam existir
uma contínua pressão sobre essa Coordenação para a retirada dos moradores de
rua, especialmente das áreas mais visitadas por turistas. Atualmente, além dos
programas citados anteriormente, existe um convênio com a ADRA - Agência
Adventista de Desenvolvimento de Recursos Assistenciais, organização não-
governamental responsável pela abordagem e traslado dos moradores de rua. Esta
mesma agência registrou, em agosto de 2005, em pesquisa solicitada pelo poder
municipal, que existem na cidade 3.077
7
moradores de rua ou em "situação de rua"
e mesmo assim não há perspectiva de mudanças nas ações existentes.
Os atuais programas públicos de atendimento a moradores de rua são alicerçados,
primeiramente, na ótica de que morar na rua e ocupar espaços públicos como se
fossem privados é legalmente proibido, pois a ocupação do espaço público só pode
ocorrer mediante concessão do Estado, dentro dos parâmetros de concepção de
uso e ocupação do solo urbano; segundo, ver moradores vivendo cotidianamente
em marquises, viadutos ou calçadas é visivelmente “feio” para a imagem da cidade,
à medida que esta é inserida na lógica do mercado turístico e tal imagem prejudica
essa atividade econômica. Portanto, resolver o problema do morador, sob essa
7
Em janeiro de 2006 essa mesma Agência atualizou esses dados para reportagem da edição do
Jornal à Tarde de 15 de janeiro de 2006, informando que o número correspondia a 3.809 pessoas
vivendo nas ruas de Salvador.
40
perspectiva, significa tirá-los da rua a qualquer custo, recolhê-los em abrigos, ou
segregá-los em áreas afastadas dos centros da cidade, em loteamentos que não
oferecem nenhuma condição de emancipação econômica, muito menos política
desses indivíduos. São políticas de cunho assistencialista que tutelam a pessoa
como se a sua condição de carência de bens materiais lhe tirassem a sua
capacidade de ação, de liberdade e de direito de escolha, ou seja, negando ao
homem qualquer possibilidade de agir politicamente em troca das suas
necessidades privadas
8
. Além do mais, são homogeneizadoras, pois as mesmas
ações para moradores de rua, guardadas algumas especificidades, são constatadas
também em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, segundo estudos
acadêmicos
9
realizados nessas capitais. São políticas que omitem as características
complexas e heterogêneas destas pessoas e, por serem de caráter generalizador,
dificilmente conseguem atender as demandas desse segmento da população pobre
que habita a cidade.
Figura 5 - Casa de Pernoite, Rua J. J. Seabra, Centro
Diante disso, verifica-se que, tanto nas políticas do século XIX, quanto nas atuais,
direcionadas ao homem pobre ou aos moradores de rua, buscou-se, antes de tudo,
8
Sobre esta questão, Arendt (2002 p. 37) explica que as necessidades privadas são inerentes à
esfera privada e não à esfera pública, porém a ascensão da esfera social à esfera pública é um
fenômeno da modernidade.
9
Os estudos de São Paulo encontram-se registrados nos livros organizados por Rosa (1994;1995) ;
do Rio de Janeiro, na Agenda Pública, organizada pela FAPERJ (2002) e o de Brasília, realizado
pela UnB, se encontra na obra organizada por Bursztyn (2000).
Foto: Nadja Miranda, novembro
41
atender os objetivos das classes dominantes. Estas, que no século XIX eram
identificadas como os proprietários de terra e os grandes comerciantes, são hoje, os
empresários que controlam e monopolizam várias atividades da economia,
caracterizando o patrimonialismo que não permite a distinção entre o público e
privado, tão em vigor e de reprodução constante no Estado brasileiro nas três
esferas. Além do mais, fazem do espaço público da cidade o palco dos seus
negócios e de registro de suas marcas, sob a tutoria e legitimação da esfera pública.
Dessa forma, a praça, o ponto de ônibus, o jardim, o viaduto, as marquises não
podem ser abrigo ou morada de homens que vivem na rua. Verifica-se também que
os programas são equivocados, pois não privilegiam critérios que possibilitem
conhecer quais são as reais demandas dessas pessoas, muito menos proporcionar-
lhes a cidadania tão presente nos discursos dos especialistas em gestão pública.
Ao longo deste capítulo, discutiu-se as políticas públicas para os moradores de rua,
no entanto, quando se busca um referencial teórico para analisar o conteúdo de tais
políticas, questiona-se se de fato, elas são "políticas". Tal questionamento encontra-
se embasado nas abordagens do conceito de política de Arendt (1999), que são
atuais e elucidativas quando apontam, a partir da antiguidade e da modernidade
ocidentais, o que é e o que não é prática política, baseando-se no princípio de que o
que é político é resultado da ação e do discurso entre os homens, estes que na sua
pluralidade conseguem persuadir os seus pares, estabelecendo um espaço público-
político. Para Arendt, tudo aquilo que "pode ser visto e ouvido por todos" constitui a
esfera pública e seu papel é garantir a vida do indivíduo no sentido mais amplo,
possibilitando a busca de seus objetivos em paz e tranqüilidade. Além disso, ela
analisa o que não é político, ou mais especificamente, pré-político, também no
contexto da antiguidade e da modernidade: nenhuma esfera pública é política se
seus membros agem sob tortura e/ou violência; as leis, no caso dos gregos, eram
feitas por um legislador que não fazia parte da esfera pública da polis, era alguém
contratado, os interesses de grupos privados, a exemplo de partidos políticos, são
meios que não fazem parte da coisa política. Nessa trajetória, a autora buscou
mostrar o que são os meios políticos, reafirmando a ação e discurso como meios.
Com base nisso, pode-se inferir, que sobre o caráter das "políticas públicas" para os
moradores de rua: primeiro, estas são implementadas sem a participação ou opinião
dos interessados, pois não se ouve essas pessoas, a elas é negado o principal para
42
o exercício da cidadania, a palavra; consistem em privar os indivíduos de estarem
nos espaços públicos da cidade, em nome da ordem e da segurança; dissimulam
suas verdadeiras intenções, que é retirar a todo custo essas pessoas das ruas sob o
discurso de resgate da cidadania; nenhum dos programas vistos anteriormente
estimula a ação e o discurso do indivíduo, mas os conduz ao conformismo. A partir
dessa ótica, verifica-se que é muito mais satisfatório manter os moradores de rua na
condição de sobrevivência que promover a sua emancipação.
1.4 - A atuação de instituições não-governamentais: resgate da dignidade e da
cidadania?
É importante também apresentar os programas e as ações desenvolvidas
para moradores de rua que partem de ações de instituições não-governamentais
10
.
Elas atuam paralelamente ou até mesmo em convênio com o poder público no
desenvolvimento de programas para a população de rua. Aqui em Salvador,
destacam-se: a Pastoral da População de Rua, sediada na Igreja de Santa
Terezinha no Chame-Chame, a Igreja da Santíssima Trindade, na Av. Frederico
Pontes; e o Projeto Axé. A base principal do discurso destas instituições é a
necessidade de resgatar a dignidade e a cidadania dos moradores de rua.
1.4.1 A Pastoral do Povo de Rua
A Pastoral do Povo de Rua é uma instituição de atuação nacional e surgiu com o
Fórum Nacional de Estudos sobre População de Rua, em 1993. As suas ações
tiveram início nas cidades São Paulo e Belo Horizonte. O objetivo principal dos
membros que trabalham na pastoral é romper com as práticas assistencialistas, a
partir da transformação das políticas públicas reconhecendo os direitos civis e
constitucionais do povo de rua e resgatando sua cidadania.
A Pastoral faz uma leitura atualizada do contexto dos moradores de rua, respeitando
sua condição e propondo alternativas de inclusão participativa, nas quais os
10
São consideradas iniciativas não-governamentais os trabalhos desenvolvidos por pessoas ou
organizações particulares que não têm vínculo direto com o poder público.
43
moradores de rua e os catadores de papel assumem o protagonismo das ações.
Tenta levar a essas pessoas uma mensagem libertadora que garanta a multiplicação
da prática evangelizadora. Aqui em Salvador, as atividades da Pastoral são
desenvolvidas na Igreja de Santa Terezinha no Chame-Chame. Os objetivos
específicos desta pastoral consistem em:
a) estabelecer relação de confiança e reciprocidade;
b) incentivar a organização dos mesmos a partir da atividade que já
desenvolvam;
c) promover ações que construam alternativas de produção de bens e cidadania;
d) denunciar as políticas compensatórias e higienistas;
e) desenvolver metodologia participativa que atenda as demandas heterogêneas
do povo de rua;
f) possibilitar a experiência pessoal de fé.
1.4.2 - O Projeto Axé
O Projeto Axé foi fundado em junho de 1990, com o objetivo de defender e amparar
a criança e o adolescente. Suas áreas de atuação são: a educação de rua –
oferecimento de atividades lucrativas aos jovens de Salvador que freqüentam o
programa, visando sua sobrevivência, como também a de sua família; programa Erê
- realização de atividades culturais através de convênios com outras entidades de
Salvador; oficinas de idéias e de alfabetização para crianças de até 12 anos;
empresa pedagógica e mercado de trabalho; defesa dos direitos – acompanhamento
jurídico e judicial de menores envolvidos em questões judiciais. O Projeto conta com
a colaboração e o financiamento de órgãos públicos e privados. Com isso, as ações
do Projeto direcionam-se para a recuperação de crianças de rua ou adolescentes em
situação de risco.
1.4.3 – Igreja da Santíssima Trindade
11
11
As informações sobre as atividades desenvolvidas nessa Igreja foram adquiridas a partir das
entrevistas com um grupo de moradores de rua no entorno do local e confirmadas em Lessa (2002 p.
77)
44
Localizada na Av. Jequitaia, em Água de Meninos, a igreja atualmente é utilizada
para o acolhimento de moradores de rua. A mesma funciona sob a direção de um
peregrino de origem francesa denominado Henrique, que se fixou em Salvador
desde 2000. Com a autorização da Arquidiocese, ele acolhe pessoas em situação
de rua e desenvolve algumas atividades com estas pessoas: oração antes do café
da manhã, plantação de horta. As pessoas acolhidas neste local podem sair para
trabalhar e retornar quando concluem suas atividades. É servida uma sopa
diariamente, que é feita com doações e/ou sobras da Feira de São Joaquim.
Também podem realizar higiene pessoal e cozinhar seus alimentos num fogo a
lenha.
Ao verificar os objetivos e as atividades destas instituições no contexto do trabalho,
percebe-se que cada uma tem uma lógica de funcionamento: a Pastoral busca
inserir o morador de rua num âmbito mais político, a partir do estímulo as suas
ações, reconhecendo que os vínculos que eles criam com a rua não devem ser
rompidos sem que estes permitam. De certa forma, é um trabalho que dá voz aos
moradores de rua, muito embora o retorno seja a catequização de mais um católico;
no caso do Projeto Axé, durante as entrevistas com meninos e meninas de rua,
notou-se que alguns deles fogem dos agentes do Projeto, pois, segundo eles, não
gostam do controle que exercido por estes agentes. Atualmente, o trabalho desta
instituição tem se centrado, especificamente em crianças e adolescentes que estão
em "situação de rua", ou seja, que ainda não deixaram definitivamente suas casas.
Nesses casos as ações projetadas têm sido mais eficazes; no caso da Igreja, tem
servido como ponto de apoio para quem vive na rua naquele entorno. A existência
dessas instituições faz com que o poder público, em especial o poder Legislativo,
sinta-se desobrigado de qualquer atuação no tocante aos moradores de rua. Como
afirmou-se anteriormente neste capítulo: há uma transferência de responsabilidade
para as instituições religiosas ou afins, como se fossem questões meramente da
esfera social. A esfera pública em si nada tem a ver com o morar na rua - no espaço
público. As atuações fragmentadas e desarticuladas, no conceber dos legisladores,
são suficientes. Aos olhos dos moradores de rua, os religiosos têm até mais
credibilidade do que o poder público.
45
Figura 6 – Meninos em "situação de rua" atendidos pelo Projeto Axé.
Foto: Nadfja Miranda, janeiro de 2005
46
2. Perfis socioeconômicos: rompendo algumas mitificações
sobre o morador de rua
A literatura sobre pobreza urbana aponta que foi a partir do último quartel do século
XX, com o ressurgimento da idéias liberais, que a condição da classe trabalhadora
passou por um processo mais intenso de empobrecimento. Tal fato contribuiu para
que os moradores de rua de hoje sejam principalmente os trabalhadores
descartados do mercado formal. Muitos deles, por dificuldades de manter as
exigências básicas de possuir uma casa (maioria alugada), requer como pagar
contas de luz e água, alimentação e transporte para deslocar-se, buscaram a rua
como alternativa e condição para a manutenção da vida. Para Rodrigues & Filho
(2002), as condições de miserabilidade no meio urbano é também produto das
carências e deficiências das estratégias públicas de inclusão próprias do meio
urbano, ou seja, o pobre da cidade não é o trabalhador do mundo rural, como no
século passado. São na verdade, trabalhadores que já passaram pelo mundo da
formalidade das relações de trabalho. Essa situação pôde ser verificada em estudos
acadêmicos realizados em São Paulo e Rio de Janeiro e, por ora, resguardando
algumas especificidades da cidade, esta pesquisa constata que aqui, em Salvador,
são semelhantes os fatores que levaram muitos trabalhadores a procurarem a rua
como alternativa para continuar a reprodução da vida. 60% dos entrevistados
declararam ser de Salvador, ou seja, do meio urbano (ver gráficos 8 e 9 );
declararam também ter profissão (tabela 3). A verdade é que se não fossem as
pesquisas realizadas no meio acadêmico, esse segmento da população seria
praticamente esquecido nas estatísticas oficiais, com exceção da cidade de São
Paulo e Rio de Janeiro em que foram aprovadas legislações específicas. Contudo,
verifica-se que, pelos critérios de pesquisa do IBGE, na categoria de domicílio
improvisado
12
de acordo com os critérios que a definem, existe a possibilidade de
alguns moradores de rua estarem presentes nessas estatísticas (ver figura 7).
12
quando localizado em unidade não-residencial (loja, fábrica, etc.) que não tinha dependências
destinadas exclusivamente à moradia, mas que, na data de referência, estava ocupado por morador.
Os prédios em construção, vagões de trem, carroças, tendas, barracas, grutas, etc. que estavam
servindo de moradia na data de referência, também, foram considerados como domicílios particulares
improvisados. Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000: agregado por setores censitários dos
resultados do universo – documentação do arquivo. 2 ed. Rio de Janeiro, 2003, p. 9-10. Capturado
de: D:\Documentação.doc
47
Figura 7
SALVADOR – REGIÕES ADMINISTRATIVAS
PERCENTUAL DE DOMICÍLIOS PARTICULARES IMPROVISADOS
POR SETORES CENSITÁRIOS
Fonte dos dados: IBGE. Censo Demográfico 2000: agregado por setores censitários dos resultados do universo
[CD-ROM], v. 4, Rio de Janeiro: 2003.
Concepção: Nadja Miranda: Elaboração: Araori Coelho.
48
A observação da espacialidade desses imóveis improvisados e a constatação, em
pesquisa de campo, da existência de tendas de papelão e plástico em pontos das
calçadas, tanto no Centro como em Itapagipe, sugere que, possivelmente, nas
pesquisas oficiais, alguns moradores de rua estejam presentes. Sugere, porque,
segundo alguns moradores de rua, constata-se que os "domicílios" com tais
características não permanecem por muito tempo, uma vez que a prefeitura tomando
conhecimento da sua existência providencia rapidamente a retirada.
Das áreas estudadas nessa pesquisa, a que concentra o maior número de domicílios
improvisados, segundo os dados do IBGE, é a do Centro, especificamente os
Subdistritos de Conceição da Praia e do Pilar
13
. É importante salientar que nesse
espaço existem moradores de rua que improvisam moradias, mas existem muitos
prédios e casarios antigos que foram ocupados pelos integrantes do MSTS –
Movimento dos Sem Teto de Salvador
14
, assim como existem inúmeros barracos de
madeira ao longo da Rua do Pilar, indicando que, pela metodologia do IBGE, quem
se encontra num domicílio improvisado não é morador de rua. Mas a nossa pesquisa
infere que dentro desse universo de moradores existem os que são de fato
moradores de rua, pois todo o seu cotidiano é na rua: banho, trabalho, lazer,
portanto, "o domicílio" que o abriga é temporário, quase não existe a possibilidade
de melhoria ou legalização dessa moradia, porque ela é construída em espaços
públicos (calçadas, praças e largos).
No município, de forma sistemática e com uma metodologia própria, não existem
estatísticas concluídas. O poder municipal só tem dados sistematizados da
população de rua que está abrigada, dos demais somente os dados de um
diagnóstico de maio de 2002, que registrou apenas 818 moradores de rua. Para
esse diagnóstico, os técnicos elegeram algumas ruas que constantemente são
apropriadas à noite pelos moradores de rua. Recentemente (janeiro de 2006), os
13
Esses subdistritos estão inseridos na RA do Centro. São denominações dadas pelo IBGE para fins
de Censo.
14
O MSTS em Salvador surgiu em 1984 com representantes de 13 favelas; em 2004 o movimento
reunia 3.600 famílias acampadas em 18 prédios de e sete terrenos espalhados pela cidade. Jornal
Entrelinhas, nº 14, setembro de 2004: Faculdades Jorge Amado. Entre as vinte cinco entrevistas
descartadas para a amostra desta pesquisa, quinze eram integrantes do MSTS que se misturam aos
moradores de rua, na Cidade Baixa (Centro e Itapagipe).
49
dados registrados pela ADRA – Agência Adventista de Desenvolvimento de
Recursos Assistenciais, prestadora de serviço a SEDES – Secretaria de
Desenvolvimento Social do município -, contabilizou 3.809 vivendo nas ruas.
Segundo informações da SEDES, esses dados estão sendo trabalhados para gerar
o perfil do morador de rua em Salvador a título de desenvolver ações mais efetivas
direcionadas a essa população. Todavia, mesmo com as limitações do diagnóstico
de 2002, foi possível traçar, por região Administrativa, as áreas de maior freqüência
e fixação de moradores de rua, conforme tabela 2 e figura 8 a seguir:
Tabela 2
CIRCUITOS PERCORRIDOS PELOS AGENTES MUNICIPAIS
PARA A CONTAGEM DOS MORADORES DE RUA
RA Circuitos principais
Total
de pessoas
por RA
Barra Av Centenário; Av Oceânica, Av. Sete de Setembro 111
Centro
Av. Sete de Setembro; Rua J. J. Seabra; Rua Carlos
Gomes; Av. Joana Angélica; Ladeira Fonte das
Pedras; Av. Castelo Branco; Av das Naus; Av. da
França; Av. Estados Unidos e Rua Miguel Calmon.
369
Itapagipe
Av. Oscar Pontes; Largo da Calçada; Praça da
Natividade (Mares); Rua Fernandes da Cunha;
Largo de Roma; Av. Caminho de Areia; Av. Porto
dos Tainheiros.
221
Demais RAs
(total de 13
RAs)
Rótula do Abacaxi; Iguatemi; São Cristóvão;
Rodoviária; Abaeté; Orla Marítima (Jardim de Alá,
Piatã e Patamares); Paripe; Periperi.
117
População total 818
Fonte dos dados: Diagnóstico de População de rua em Salvador, PMS, SETRADS, 2002.
Elaboração da Tabela: Nadja C. de J. Miranda, 2004.
50
Figura 8
SALVADOR – REGIÕES ADMINISTRATIVAS
DISTRIBUIÇÃO DOS MORADORES DE RUA – 2002
Fonte da base: PMS. Regiões Administrativas. Salvador, 1987.
Fonte dos dados: PMS. SETRADS. Diagnóstico da População de Rua de Salvador. Salvador. Ago. 2002.
Concepção: Nadja Miranda; Denise Santos. Elaboração: Araori Coelho.
51
A distribuição espacial apresentada na figura 6 demonstra que os moradores de rua
se encontram em diversas áreas da cidade, inclusive pode ser verificada a presença
deles em regiões de pouca atratividade. Nesses casos, a pesquisa de campo
revelou que normalmente eles estão nessas áreas de passagem, pois em curto
espaço de tempo, dois ou três dias, já não se encontravam mais lá. Este foi o caso
de Paripe, Periperi, Águas Claras e ao longo da Av. Luís Viana Filho. No caso
específico da RA Cajazeiras, na época da contagem realizada pelos agentes da
Prefeitura, havia uma Casa de Passagem do Governo do Estado, onde foram
abrigadas as famílias de moradores de rua que aguardavam a entrega das casas no
Loteamento Moradas da Lagoa. Atualmente, não há esse número expressivo de
moradores de rua nessa região. No tocante a maior fixação e concentração,
destacam-se as RAs de Itapagipe, Centro e Barra, que correspondem a mais de
85% da população total.
2.1 – Perfil socioeconômico dos moradores de rua
Gráfico 3
SALVADOR – GÊNERO DOS MORADORES DE RUA
0
3
6
9
12
15
18
Centro Itapagipe Barra
Regiões Administrativas
Moradores
Feminino
Masculino
Pesquisa de Campo, janeiro a março, 2005.
52
Gráfico 4
SALVADOR – GÊNERO
DOS MORADORES DE RUA
23%
77%
Feminino
Masculino
Fonte dos dados: SETRADS. Diagnóstico de População
de rua em Salvador, 2002.
Há um número expressivo de homens morando nas ruas, nas três Regiões
Administrativas, revelando que a rua tem se transformado numa alternativa para
muitos desempregados, continuamente descartados pelo mercado de trabalho
formal, e também para aqueles que por motivos diversos adotam as ruas como
espaço de moradia. A pesquisa indicou (ver gráfico 16, p. 62) que morar nas ruas
está relacionado, em primeiro lugar, a rupturas familiares de ordem afetiva; em
segundo, à necessidade de prover a família; em terceiro, por já terem nascido nas
ruas; em quarto, por opção; quinto, por problemas com a justiça; sexto por questões
de saúde que o impedem de sustentar-se ou por conta de alcoolismo e drogas; e
sétimo, por desabamento da casa. Logo, percebe-se que a maioria desses homens
trabalham com a catação de lixo reciclável, principalmente nas RAs do Centro e de
Itapagipe; já na Barra, eles desenvolvem mais a atividade de guardar e lavar carros.
Quanto ao número menor de mulheres, isso pode ser explicado pelo fato de as
mesmas conseguirem com mais facilidade empregar-se como domésticas e serem
aceitas em casa de parentes. Para Rodrigues e Silva Filho (2002) existe o aspecto
cultural que pode também explicar tal questão, pois a família mobiliza mais esforços
para proteger as filhas, enquanto os homens não aceitam ser providos por parentes
para não perderem a independência. Essa quantidade expressiva do gênero
masculino morando nas ruas também foi constatada pela pesquisa oficial realizada
pela prefeitura, conforme verifica-se no gráfico 4.
53
Gráfico 5
SALVADOR – MORADORES DE RUA POR FAIXAS ETÁRIAS
0
2
4
6
8
9 a 19 20 a 29 30 a 39 40 a 49 50 a 59 60 a 69 Acima de
70
Faixas etárias (anos)
Moradores
Centro
Itapagipe
Barra
Pesquisa de Campo, janeiro a março, 2005.
Um aspecto revelador da pesquisa é quanto ao número reduzido de crianças e
adolescentes de rua nas áreas pesquisadas, nos momentos das abordagens para as
entrevistas, pois na década de noventa do século passado até o ano 2000 a
presença de menores de rua era bastante visível nessas áreas ,e, justamente por
isso, dentre outros elementos, fora objeto de pesquisa de dissertação no mesmo
ano. Esse aspecto pode indicar que as áreas pesquisadas deixaram de ser
atraentes para essa faixa etária, com exceção da Praça da Natividade (Mares), onde
o número é ainda expressivo, contudo muitos deles retornam para casa à noite
(meninos na rua). Porém, outras áreas vêm se constituindo em espaços de
preferência de meninos na/da rua, são as sinaleiras da Manoel Dias da Silva, Av.
Paulo VI, na Pituba, da Rótula do Abacaxi, do Iguatemi, e do Hiperposto na Av.
ACM, que não foram espaços estudados neste trabalho. Também pode-se inferir
que após o Estatuto da Criança e do Adolescente, as ações políticas, mesmo
distantes do que a realidade exige, têm se efetivado no sentido de evitar o aumento
crescente de crianças e adolescentes de rua ou de pelo menos mantê-los um turno
nas escolas, já que isso é um critério para o recebimento da Bolsa-Escola. Além
54
disso, a atuação das ONGs tem se intensificado no trabalho com meninos(as) em
situação de rua, a exemplo do Projeto Axé, que desenvolve atividades educacionais
e artísticas com esse segmento e paralelamente busca reinseri-las no âmbito
familiar. Por outro lado, verifica-se que há um número expressivo de jovens entre 20
e 29 nas ruas, o que pode indicar que as crianças de rua da década de 90 do século
passado são os jovens de rua de hoje, pois esse dados associados aos resultados
apresentados no gráfico 6 de "tempo de rua", revelam um número elevado de
moradores de rua nessa condição há mais de 5 ou 10 anos, principalmente no
Centro e em Itapagipe.
Gráfico 6
SALVADOR – TEMPO NA RUA DOS MORADORES DE RUA
0
2
4
6
8
10
Até 1 1 a 5 5 a 10 Mais de 10
Tempo na rua (anos)
Moradores
Centro
Itapagipe
Barra
Fonte: Pesquisa de Campo, janeiro a março, 2005.
Comparando os dados do gráfico 6 com os do gráfico 7, verifica-se uma
evolução, com relação ao tempo de permanência nas ruas: enquanto nos dados
de 2002 a maioria estava na rua até 1 ano, em 2005 aumentou o número de
pessoas com mais de cinco anos, indicando que quem estava na rua em 2002,
nela continuou, aumentando o percentual de pessoas com mais tempo de rua.
Um aspecto importante disso é que quanto mais tempo o indivíduo fica nas ruas,
mais laços com a mesma vai criando, pois as referências de casa vão sendo
55
esquecidas e as estratégias para sobreviver na rua se diversificam à medida que
ocorre um “distanciamento” valorativo, social e simbólico da vida cotidiana em
uma casa.
Gráfico 7
SALVADOR – TEMPO NA RUA
DOS MORADORES DE RUA
65%
%
7%
11%
Até 1 ano
1 a 5 anos
5 a 10 anos
mais de 10 anos
Fonte dos dados: PMS. SETRADS. Diagnóstico da
População de Rua de Salvador. Agosto, 2002.
Quanto à origem dos moradores de rua, desmistifica-se a idéia de êxodo rural,
sustentada por muito tempo como geradora da pobreza nas capitais do país.
Observa-se que praticamente mais de 50% dos entrevistados são de Salvador,
corroborando com os dados oficiais. Em Salvador, as localidades que mais
aparecem na fala dos moradores de rua como sendo o local de onde saíram são as
áreas do Subúrbio Ferroviário, do Centro, de Cajazeiras e de Pau da Lima, conforme
se observa na tabela . As regiões do interior de onde eles vêm são diversificadas:
Angelim, Camaçari, Candeias, Ilhéus, Jequié, Itapetinga, Gandu, Riachão do
Jacuípe, Pojuca, Juazeiro, Anguera e Tanquinho de Feira (ver gráficos 8 e 9).
Gráfico 8
SALVADOR – ORIGEM
DOS MORADORES DE RUA
44%
30%
26%
Salvador
Interior
56
Fonte dos dados: PMS. SETRADS. Diagnóstico
da População de Rua de Salvador. Agosto, 2002.
Gráfico 9
SALVADOR – ORIGEM DOS MORADORES DE RUA
0
3
6
9
12
Centro Itapagipe Barra
Regiões Administrativas
Moradores
Salvador
Interior
Outros estados
Pesquisa de Campo, janeiro a março, 2005.
Tabela 3
SALVADOR – ÁREAS DE ORIGEM
DOS MORADORES DE RUA
Área
Moradores
de rua
área
Moradores
de rua
Pero Vaz 1 Cajazeiras 3
Pirajá 1 Sete de Abril 1
Pau da Lima 1 Pirajá 1
Fazenda Coutos 3 Baixa do Fiscal 1
São J. Cabrito 2 Mata Escura 2
Lobato 2 Taboão 1
Baixa dos
Sapateiros
1
Fonte: Pesquisa de Campo, janeiro a março, 2005
57
No que se refere à profissionalização, pouco mais de 60% declararam ter profissão,
conforme o gráfico 10. São as mais diversas: A maioria são profissões descartadas
pelo mercado de trabalho formal (ver tabela 4). Desse ponto de vista, pode-se inferir
que os dados revelam a relação dialética entre (des) emprego e desenvolvimento
tecnológico e a relação entre emprego e não-desenvolvimento tecnológico. Uma vez
que o mercado recusa à força de trabalho “não-adaptada” (NASSER, 1999, p.7) o
modelo hegemônico de desenvolvimento das forças produtivas determina tanto a
exclusão de um número cada vez maior de trabalhadores, como também a absorção
de grande e diversificado contingente de mão-de-obra com baixa ou inexistente
qualificação. Segundo Nasser (1999), o desenvolvimento tecnológico do capital tem
convivido, portanto, com o não-desenvolvimento tecnológico da força de trabalho,
tanto no setor industrial de sofisticadas inovações tecnológicas, quanto nos setores
marginais e informais, que também contribuem, ainda que de forma indireta, para a
valorização do capital, indicando que mesmo fora dos padrões hegemônicos de
produção, o morador de rua, ao desenvolver suas atividades, recria os laços, o
vínculo com a sociedade, através do trabalho.
Gráfico 10
SALVADOR – MORADORES DE RUA COM PROFISSÃO
0
3
6
9
12
15
Centro Itapagipe Barra
Regiões Administrativas
Moradores
Sim
Não
Fonte: Pesquisa de Campo, janeiro a março, 2005.
58
Tabela 4
SALVADOR – PROFISSÕES
DOS MORADORES DE RUA
Profissões
Moradores
de rua
Profissões
Moradores
de rua
Cozinheiro 1 Pintor 2
Eletricista 2 Estofador 1
Costureiro 1 Armador 1
Serigrafista 1 Gaioleiro 1
Artesão 1 Coveiro 1
Manicure 1 Marinheiro 1
Marteleteiro 1 Garçom 2
Técnico em
mecânica
1
Fonte: Pesquisa de Campo, janeiro a março, 2005
A baixa escolaridade é bastante presente nas características dos moradores de rua.
Os dados da pesquisa de campo confirmaram a pesquisa oficial: mais de 50% deles
só cursaram até o Ensino Fundamental. O número de analfabetos é reduzido. Esses
dados reforçam o item anterior sobre a absorção do mercado de trabalho que vem
exigindo cada vez mais qualificação da força de trabalho. Contudo, isso não significa
que os mesmos não tenham condições de participar ativamente do seu destino e da
sociedade da qual fazem parte.
Gráfico 3
59
SALVADOR – ESCOLARIDADE DOS MORADORES DE RUA
0
3
6
9
Não
alfabetizado
Alfabetizado
Ensino
fundamental
Ensino
médio
Ensino
superior
Não
respondeu
Escolaridade
Moradores
Centro
Itapagipe
Barra
Pesquisa de Campo, janeiro a março, 2005.
Gráfico 4
SALVADOR – ESCOLARIDADE
DOS MORADORES DE RUA
19%
18%
53%
9%
1%
Não alfabetizado
Alfabetizado
Ensino
fundamental
Ensino médio
Fonte dos dados: PMS. SETRADS. Diagnóstico da População
de Rua de Salvador. Agosto, 2002.
Gráfico 13
60
SALVADOR – RENDA DOS MORADORES DE RUA
0
2
4
6
8
>10,00 11,00 a 99,00 100,00 a
199,00
200,00 a
299,00
Acima de
300,00
Faixas de renda (R$)
Moradores
Centro
Itapagipe
Barra
Fonte: Pesquisa de Campo, janeiro a março, 2005.
A situação de renda dos moradores de rua é um aspecto que merece bastante
atenção. A priori, no senso comum, acredita-se que o morador de rua é destituído de
qualquer renda e que passa fome constantemente. A pesquisa revela que eles
possuem renda e a eles dificilmente falta alimentação. Cerca de 60% dos
entrevistados conseguem uma renda acima de R$100,00 no mês e com o dinheiro
que recebem, catando materiais recicláveis e outras atividades, conseguem, no
mínimo, diariamente, o suficiente para sua alimentação. Quanto ao espaço que
garante maior renda, destaca-se o Centro, e depois a Barra. Essa é uma explicação
para o Centro ser a RA que mais concentra moradores de rua. Outro aspecto é que
eles preferem ser vistos como trabalhadores, mesmo recebendo pouco, de que
como dependentes da ajuda alheia. A fala de Sr. Agnaldo confirma isso, quando
perguntado sobre as possibilidades de quem mora na rua:
o meu suor. Meu trabalho. Tenho vergonha de pedir, não sou
aleijado, tenho força para adquirir umas coisas. Resumindo dependo
do meu suor, se dependesse do governo já tava morto
.
Constata-se que não ficam só esperando solução do governo, mas criam
também alternativas de trabalho ou aquisição de renda: catação de material
reciclável, lavagem de carro, prestação de serviços a moradores e comerciantes
61
locais, como também a prostituição e o roubo, conforme se verifica na tabela 5, na
página 60, das formas como os moradores de rua adquirem renda. A catação de
material reciclável é a mais desenvolvida, refletindo a importância desse segmento
na limpeza urbana. Durante a fase de observação foi possível verificar que, durante
o dia, um número acentuado deles trabalha. Para uns, a satisfação de estarem
trabalhando significa "ser independente", ao mesmo tempo em que é uma estratégia
de serem aceitos, se manterem no local e criarem vínculos com as pessoas da
área. Além do mais, é notório o quanto aquilo que foi abordado anteriormente no
capítulo 2, sobre os valores que foram atribuídos ao trabalho a partir da
modernidade, está presente no pensar da maioria dessas pessoas: o perceber que
só se é bem aceito na sociedade se for visto por ela como trabalhador, bem diferente
do que Arendt (2002) afirmava sobre os gregos, de que estes tinham que estar livres
do trabalho, das necessidades privadas para poderem participar da vida pública.
Tabela 5
SALVADOR – FORMA COMO
OS MORADORES DE RUA CONSEGUEM DINHEIRO
Ocupação
Moradores
de rua
Vendedor ambulante 2
Guardador de carro 3
Lavador de carro 3
Catador 18
Prostituição 1
Biscate 4
Roubo 2
Esmola 3
Benefício do governo 9
Fonte: Pesquisa de campo, janeiro a março, 2005.
No gráfico 14, verifica-se que poucos moradores de rua recebem auxílio do governo,
pois somente aqueles que estão cadastrados no albergue têm direito ao
recebimento de auxílio. No Centro e em Itapagipe estão os maiores números de
pessoas que recebem algum tipo de benefício do governo, confirmando os dados
62
sobre o conhecimento dos programas na Barra: poucos conhecem os programas,
conseqüentemente poucos são beneficiados com os auxílios governamentais.
Gráfico 14
SALVADOR – MORADORES DE RUA
QUE RECEBEM AUXÍLIO DO GOVERNO
0
3
6
9
12
15
Centro Itapagipe Barra
Regiões Administrativas
Moradores
Sim
Não
Fonte: Pesquisa de campo, janeiro a março, 2005.
Com relação ao gráfico 15, quase 100% dos moradores de rua têm família. Desses,
30% declaram não morar com os parentes porque têm problemas de convivência e
de caráter afetivo e 25% informaram que não procuram os familiares por vergonha
da situação em que se encontram. Os demais mantêm contato regularmente com a
família porque muitos deles sustentam mulher e filhos com a renda obtida na rua e,
em alguns casos, moram com suas famílias na rua. Uma questão que pode ser
verificada nesta situação é que o homem publiciza muito mais a sua vida privada
que a mulher e os filhos.
Gráfico 15
63
SALVADOR – MORADORES DE RUA QUE TEM FAMÍLIA
0
3
6
9
12
Centro Itapagipe Barra
Regiões Administrativas
Moradores
Sim
Não
Não respondeu
Fonte: Pesquisa de Campo, janeiro a março , 2005.
O gráfico 16 revela que existem vários motivos para uma pessoa ir morar na rua,
podendo haver, inclusive, a associação dessas razões, no entanto são expressivos
os problemas afetivos e os problemas financeiros, indicando que 36% dos
entrevistados estão vivendo nos espaços públicos da cidade porque as condições
financeiras não permitem que continuem vivendo numa casa. Questão que pode
perpassar pela variável mercado de trabalho, pelas dificuldades que pessoas de
baixa escolaridade têm em se manter no mercado formal da economia. Com relação
aos 31% que saem de casa por problemas afetivos, a maioria são homens,
conforme viu-se anteriormente, raramente procuram a casa de um amigo ou parente
para morar. Destacam-se os que estão na rua por opção, que, independente da
situação financeira e de relacionamento com a família, vão continuar morando na
rua.
Gráfico 5
64
MOTIVO QUE CONTRIBUIU PARA MORAR NA
RUA
31%
36%
4%
7%
7%
2%
13%
problemas afetivos
problemas financeiros
nasceu na rua
por opção
problemas com a justiça
problemas de saude
não respondeu
Fonte: Pesquisa de Campo, janeiro a março de 2005
Nossa pesquisa apresentou em seus resultados aspectos semelhantes aos das
oficias no tocante ao gênero, à faixa etária, ao tempo na rua e à escolaridade. Algo
importante a observar é que não existe "o" perfil do morador de rua, mas perfis, dada
a heterogeneidade das histórias de vida dessas pessoas; além disso, esses dados
nos levam a refletir que, se por um lado, os moradores de rua não pertencem ao
mundo oficial das estatísticas do IBGE; por outro lado, eles fazem parte de um
mundo real, ou seja, se por um lado eles são invisíveis à cidade, por outro lado eles
estão cotidianamente se apropriando do espaço de Salvador. No dizer de
Nascimento (2000, p.123), morador de rua ou catador de papel, mendigo ou
biscateiro, todos estão inseridos, cada qual a sua maneira, no processo de produção
e de consumo, desempenhando suas funções específicas. Nesse sentido pode-se
inferir que são inseridos marginalmente, porque não têm acesso aos bens materiais
e simbólicos modernos ou não têm condições de participar da gestão pública, pelo
simples fato de se encontrarem no patamar mínimo de sobrevivência e porque,
evidentemente, são estigmatizados. Para Martins (2002), essa situação se configura
como inclusão marginal, pois, segundo ele, os processos excludentes não empurram
suas vítimas para fora da sociedade, mas as incluem em espaços sociais residuais
na estrutura social, de tal forma que a integração econômica se dá sem a integração
moral e social. Os dados também desmistificam algumas idéias e informações que
estão enraizados no senso comum acerca dos moradores de rua, que são vistos
como vagabundos, preguiçosos, que querem viver na ociosidade às custas da
sociedade. Não se trata de apologia do morador de rua, mesmo porque alguns deles
65
se encontram nessa situação por opção ou porque, de fato, não quiseram se
submeter ao convívio social imposto, mas de mostrar uma realidade que o “mundo
vê, mas não olha e pouco se conhece”, na afirmação de Sr. João, morador de rua.
Todavia, são informações que os formuladores das políticas públicas não lidar ou
mesmo não querem, pois exigem mudança de pensamento e de atitude, fugindo ao
pensamento meramente racional e técnico. Um exemplo disso foi constatado
durante a entrevista com um morador de rua na Rua das Flores, no Centro Antigo,
quando um funcionário da SESP - Secretaria de Serviços Públicos, mostrando-se
incomodado, inoportunamente ficou ouvindo o conteúdo da conversa, intimidando o
entrevistado. Este fato, associado a relatos de funcionários entrevistados da SEDES,
levou-nos a verificar que, do ponto de vista oficial, os moradores de rua, pelo fato de
ocuparem espaços públicos da cidade, estão também subordinados aos mandos e
desmandos do poder público, devendo, assim, pedir consentimento do que devem e
o que não devem falar.
Figura 9 - Moradores de rua recebendo doação de roupas
de instituição religiosa, Largo dos Mares
3 A apropriação e o uso dos espaços públicos de Salvador pelos moradores de
rua: limites e possibilidades.
[...] Em Raíssa, cidade triste, também corre um fio invisível que, por
um instante, liga um ser vivo ao outro depois volta a se estender
entre pontos em movimento desenhado rapidamente novas figuras
de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade
Nadja Miranda, março 2005
66
feliz que nem mesmo sabe que existe.
(As Cidades Ocultas, Ítalo
Calvino, 1990, p. 135)
3.1- As estratégias de uso e apropriação do espaço.
A cidade, na sua essência, é muito mais do que as formas materializadas em ruas,
calçadas, prédios, avenidas, shopping centers; ela vai além daquilo que o capital
produz, porque ela é, antes de tudo, um espaço onde as relações sociais
acontecem. O trecho da letra de música abaixo revela a multiplicidade de
percepções atribuídas a esse espaço de face heterogênea e complexa, e,
principalmente, de caráter dinâmico:
[...] Cidade grande
Chaminé de gasolina [...]
Teu movimento
Eu comparei a um formigueiro
De tão ligeiro
Comecei a imaginar
Meu Deus do céu
Como é que a felicidade
Nessa cidade
Acha um espaço pra morar
Minha tristeza
Rejeitou tua alegria
Num belo dia
Quando eu pude perceber
Que o progresso
É que faz do teu dinheiro
Um cativeiro
Onde se mata pra viver [...].
Cidade Grande
(Petrúcio Amorim, 2003).
Verifica-se que a cidade tem um caráter multidimensional e multifacetado. As
dimensões e as faces que a compõem interagem entre si, são sobrepostas,
interpostas e justapostas. O movimento da cidade faz dela um espaço constante de
produção e reprodução dos diferentes agentes sociais. É na diversidade e no
movimento da cidade que se encontra a sua essência dialética, pois o seu cotidiano
se processa também por contradições e conflitos. Trata-se do confronto existente no
âmbito do espaço abstrato, espaço este que surgiu das relações produtivas do modo
67
de produção capitalista. No entanto, por mais hegemônico que este espaço tende a
ser, não consegue abarcar todas as particularidades a suprimir as diferenças
inerentes a cada prática sócio-espacial. Dessa forma, verifica-se que o espaço é
construído a partir das diversas maneiras como e por quem ele é apropriado. Nesse
sentido, é que se resgata do primeiro capítulo a tríade conceitual das práticas
espaciais, das representações do espaço e dos espaços de representação, de
Lefebvre. A cidade é um espaço abstrato, um espaço concebido, regido pelas "leis"
capitalistas, pelas relações de produção inerentes a esse modo, portanto um espaço
com valor de troca, todavia, simultaneamente, é também espaço vivido e percebido.
Isto faz da cidade uma teia de relações complexas, sendo difícil identificar os limites
entre o percebido e o vivido frente ao concebido. Por isso, neste espaço emergem
oposições e disposições, negação em alguns aspectos e recriação de laços em
outros momentos e de relações de coexistência e coesão como afirma Lefebvre:
Ao mesmo tempo em que o espaço carrega em si simbolismos de
relações entre gêneros, de idades ou clandestinos próprios do
cotidiano, do particular e do vivido, transmite também as mensagens
hegemônicas do poder e da dominação, expressões do geral e do
concebido. (LEFEBVRE1991a, p.32)
15
[tradução nossa].
Segundo Carlos (2001), o espaço urbano é uma justaposição de realidades distintas
a da acumulação do capital e a da reprodução da vida constituem diferentes
realidades. Cada uma delas produz e se apropria do espaço. É no nível da
reprodução da vida que se identifica o espaço vivido. Aqui se dialoga com Santos
(1996), quando este afirma que o espaço vivido está deixado ao jogo do mercado e
portanto se tornando um espaço sem cidadãos devido às desigualdades e injustiças
que a concepção de espaço enquanto valor de troca impõe. Acredita-se, pois, que
é no plano do vivido que surgem as possibilidades dos pobres na cidade. Com
relação a isso, Santos (2002) defende a idéia de que os pobres (inclui-se aqui, os
15
To make thigs even more complicated, social space also contains specific representations of this
double or triple interation between the social representations of this prodution and reprodution [...].
Representation of the relations of reprodution are sexual symbols, symbols of male and female,
sometimes accopaneid, sometimes not, by symbols of age. [...]. – relations one the other, covert,
clandestine and repressed relations which, precisely because they are repressed, characterize
trangressions related not so much sex per se as to preasure, its preconditions and consequences.
(LEFEBVRE, 1991, p. 32-33)
68
moradores de rua) criam alternativas para a reprodução da vida na cidade,
alternativas essas que criam e recriam espaços. Assim para o autor:
a cidade é o espaço onde todos os fracos podem subsistir. [...] A
presença dos pobres aumenta e enriquece a diversidade
socioespacial, que tanto se manifesta pela produção da materialidade
em bairros e sítios tão contrastantes , quanto pelas formas de vida e
trabalho. [...] (SANTOS, 2002, p. 322-33)
Com base nas concepções acima, infere-se sobre o cotidiano dos moradores de rua
de Salvador. Essas pessoas, em sua maioria, foram descartadas do circuito da
cidadania padronizada pelo modo de produção capitalista, conseqüentemente, pela
cidade enquanto espaço abstrato. Nessa condição, o cotidiano dos moradores de
rua é revelado no âmbito espacial ao mesmo tempo de forma
clandestina/transgressora e pública/oculta. É nesse movimento que eles conseguem
sobreviver na cidade, criar alternativas de apropriação do espaço e, ao mesmo
tempo, recriar os laços com a sociedade que os nega.
Para Escorel (2002), que analisou os moradores de rua na cidade do Rio de Janeiro,
na sua tese de doutoramento, o espaço urbano interfere nas possibilidades de
fixação, nas atividades de sobrevivência e nas relações sociais, no entanto, eles
conseguem circunscrever um tecido urbano, ou seja, há um movimento de interação
na relação dos moradores de rua sobre o espaço da cidade. Ao contrário do que se
pensa no senso comum, o estudo revela que os moradores de rua não são passivos
com relação ao espaço em que vivem e que a partir de estratégias próprias
conseguem traçar sua própria geografia. Nesse contexto, observa-se então, que
existem variadas estratégias de uso e apropriação do espaço de Salvador
desenvolvidas pelos moradores de rua. A diversificação de estratégias ocorre em
função dos diferentes espaços. Assim, a forma como os moradores de rua se
relacionam com o espaço da Barra difere daquela como se relacionam com o Centro
e com Itapagipe em vários aspectos e vice-versa. Para se fixar num determinado
local, o morador de rua apreende o espaço a priori com o objetivo de verificar as
possibilidades de fixação naquela área, estabelecendo seus limites de atuação. A
partir de então, criam estratégias específicas para se apropriarem e usar o espaço.
69
Estas, por sua vez, ocorrem com ou sem permissão dos proprietários e/ou poder
local, por isso, não raro, essas ações acontecem de forma conflituosa.
3.1.1 – Barra
Figura 10 - Barra, Morro do Cristo, Av. Oceânica
A Barra, na situação de Região Administrativa, possui uma área de 584 hectares
(ha) e população de 83.772 habitantes. Constitui-se das localidades da Vitória,
Graça, Ondina, Chame-Chame, Canela, Barra, Rio Vermelho e Federação; grande
parte do seu prolongamento é situado no trecho da Orla Marítima de Salvador. A
função residencial predomina e é a segunda RA em concentração de rendimento
de chefe de família por domicílio (ver figura 22); em alguns logradouros dessa
região (Av Oceânica, Av. Centenário e Av. Sete de Setembro) encontram-se pontos
turísticos, bares, restaurantes, hotéis, pizzarias, lanchonetes e um Shopping Center,
tornando essas localidades bastante freqüentadas. Estas últimas características são
assinaladas pelos moradores de rua como aspectos importantes na obtenção de
renda e para a permanência no local.
Na pesquisa, foram entrevistados os moradores de rua que costumam ficar ao longo
da Av. Oceânica no entorno do Shopping Barra, do Porto e do farol da Barra.
Quando perguntados por que costumam ficar naqueles locais mais tempo, as
Foto: Nadja Miranda, janeiro de 2006
70
repostas se diversificaram, todavia alguns pontos foram semelhantes entre elas: a
presença de turistas, a ajuda das pessoas e a praia. Com relação às formas como
se apropriam e usam o espaço da cidade observou-se que eles ficam atentos aos
horários de funcionamento das casas comerciais. Ao movimento de pessoas pelas
ruas e de à chegada de visitantes aos pontos turísticos. Os horários variam de
acordo com essas dinâmicas. Por conhecerem esses horários, o cotidiano se
desenrola segundo a dinâmica local, inclusive o horário e o local de dormida (ver
figura 12 abaixo).
Figura 11
-
Av. Oceânica, morador de rua dormindo com
o seu carro de material reciclável
Há os que dormem no Largo Visconde de Mauá ou no Largo da Igreja de Santo
Antônio, na passarela do Shopping Barra ou em marquises ao longo da Av.
Oceânica. Costumam dormir sempre em grupo. Nessa área não foi entrevistado
nenhum grupo familiar; são indivíduos sozinhos, todavia percebe-se os laços de
solidariedade quanto à divisão de comida, bebida e a proteção na hora de dormir,
pois procuram se agrupar como forma de proteger-se e sentirem-se seguros. Existe
uma conduta entre eles para permanecer no lugar: evitar brigas, respeito com os
transeuntes e moradores, como também ajuda aos comerciantes como forma de
ganhar sua confiança. A presença do módulo policial e de policiais na área provoca
uma certa intimidação. Segundo eles, são os polícias os principais responsáveis
pelas dificuldades que enfrentam no local. Se queixam também do descaso de
algumas pessoas que fingem não vê-los ou solicitam sua retirada do local. Quanto
às formas como conseguem renda, são bastante diversificadas: guardar
e lavar
Foto: Nadja Miranda, março de 2005
71
carros, pedir aos transeuntes, principalmente aos turistas, aos quais também
prestam serviços de guia e acompanhante e, por último, catar material reciclável. Os
confrontos entre eles mesmos ocorrem mais no final de semana, no período de
verão, pois outros moradores de rua de outras localidades da cidade, do Centro e de
Itapagipe, disputam o espaço para desenvolver atividades que garantam renda. O
verão é para eles a melhor estação, no sentido de adquirir ou aumentar a renda,
pois aumenta o fluxo de pessoas e turistas, havendo maior intensidade nas
atividades comerciais e de serviços. Em função disso, a apropriação do espaço
pelos moradores de rua dessa área ocorre durante todo o dia de forma pulverizada e
com maior visilibilidade da sua presença à noite, enquanto dormem.
3.1.2 - Itapagipe
Figura 12 - Largo da Calçada, Estação de trem
A RA Itapagipe tem 697,02km2 e é composta pela Calçada, Mares, Uruguai,
Alagados, Bairro Machado, Vila Ruy Barbosa, Massaranduba, Baixa do Petróleo,
Roma, Monte Serrat/Boa Viagem, Bomfim, Dendezeiros, Itapagipe e Ribeira
16
. É
uma área heterogênea; uma Região Administrativa com características
diversificadas quanto às suas funções: comercial, residencial e turística; além disso,
o conjunto arquitetônico e sua paisagem natural atraem visitantes especialmente na
16
Para Albuquerque (2006; p. 23) ) Itapagipe é formada por quatorze bairros com características bem
definidas quanto às suas funções.
Foto: Nadja Miranda, janeiro 2006
72
época da Lavagem da Igreja do Senhor do Bomfim e da festa de Bom Jesus dos
Navegantes.
As áreas mais freqüentadas pelos moradores de rua são: Av.Fernandes da Cunha,
principalmente no período da noite, Largo dos Mares e Calçada, pela atividade
comercial, Largo de Roma e Ribeira, pela “tranqüilidade”.
Quando perguntados por que costumam ficar naquele local indicaram,
principalmente, a tranqüilidade do lugar, uma área boa para as crianças brincarem, a
distribuição de comida, a possibilidade de garantir renda com a catação de lixo
reciclável, o auxílio dos comerciantes locais, a solidariedade dos colegas e de alguns
moradores locais. Quanto às formas de apropriação e uso do espaço, verificou-se
que se dá por diversas vias: pela realização do trabalho, pois a maioria deles realiza
a catação de material reciclável descartado nas casas comerciais e na Feira de São
Joaquim, durante todo o dia; pela transformação dos espaços públicos em privados,
a exemplo do Largo de Roma, transformado, literalmente, em local de morada, pois
existe um grupo composto de homens e mulheres, sem vínculo de parentesco, que
se apropriaram de alguns metros quadrados do Largo e lá reproduzem a vida
privada normalmente: dormem, cozinham, descansam, guardam o material de
trabalho e trocam conversa com os moradores locais; na Praça da Natividade
(Mares), alguns permanecem bastante tempo por conta das sinaleiras que ali estão
próximas e áreas de estacionamento onde pedem ajuda ou tomam conta de carros;
paralelamente, garantem renda descansam e se alimentam no local; no entorno da
Feira de São Joaquim, às margens da maré, encontrou-se outro grupo estabelecido
em um domicílio improvisado, feito de latão, papelão e plástico (ver figura 11). Os
indivíduos que se encontravam, na época do censo do IBGE, em moradias nessas
condições, entraram nas estatísticas, porém sabe-se que esses domicílios são
efêmeros, pois em ação rápida o poder municipal se incumbe de tirá-los, como no
caso do Senhor Aloísio, que relatou já ter construído barracos em vários locais da
Av. Jequitaia e viu eles serem derrubados pelos funcionários da Prefeitura. A
pesquisa realmente constatou a veracidade da situação, pois um mês depois da
entrevista a tenda já não fazia parte da paisagem local. Foi constatado também que,
mesmo com a possibilidade de perderem os abrigos que constroem, estas pessoas
desenvolvem normalmente suas atividades cotidianas nestes locais. No caso de Sr.
73
Aloísio, no lugar que se estabeleceu, conseguia criar animais, cozinhar, guardar seu
material de trabalho e, num ato de solidariedade, dividir a comida com os que
precisam. Assim ele vive pelo entorno da Feira de São Joaquim, há mais de 24
anos. (ver figuras 14 e 15).
Figura 13 -
Domicílio improvisado de Sr. Aloísio, ao lado do Antigo prédio da Petrobrás
Foto: Nadja Miranda, março de 2005
74
Figura 14 - Comida feita pelo Sr. Aloísio, calçada às margens da maré ao
lado do antigo prédio da Petrobrás
Nessa área, a presença de grupos familiares é mais freqüente, no entanto verificou-
se um número de homens sozinhos bastante expressivo. Quanto às dificuldades
encontradas por eles na região, relataram o preconceito das pessoas, a dificuldade
de abrigar-se da chuva, a repressão policial para esvaziarem as ruas em época de
festa e a insegurança na hora de dormir, pois algumas pessoas quando passam à
noite costumam jogar objetos como pedras, latas e pedaços de madeira sobre eles.
O cotidiano de trabalho da maioria, nos dias de semana, segue o horário comercial
do local; à tarde eles retornam aos respectivos locais de dormida. Aos sábados eles
normalmente trabalham até 15h; a partir daí, procuram descansar, deitados na
grama ou nos bancos das praças; aos domingos tentam ganhar algum dinheiro com
os transeuntes de carro nas sinaleiras, no caso daqueles que ficam no Largo dos
Mares ou demais locais, “tiram o dia de folga”. Para muitos dos homens que
"residem” nessa área, a atividade de catação de material reciclável não se resume a
RA Itapagipe. A geografia do trabalho é bastante ampla, pois no caso do Senhor
Agnaldo ela se estende para o Centro e para a Barra nos dias de sábado. Ele sai às
4 horas da manhã e retorna por volta das 15 horas (ver figuras 15 e 16), seguindo
um percurso que vai do Largo de Roma a Barra. Com esse percurso, segundo ele, a
renda aumenta, porque tem possibilidade de encontrar uma maior quantidade de
ferro e alumínio, que custavam em janeiro de 2005, R$0,15 o quilo. Na Barra tem
também as "baronas" (como ele denomina as moradoras da Barra), que já o
Foto: Nadja Miranda. Março 2005
75
conhecem e sempre oferecem um lixo de valor maior (no dia da entrevista ele havia
conseguido uma carcaça de geladeira que lhe renderia uns R$30,00). Alguns deles
afirmaram que na Barra existe a possibilidade de conseguir renda maior, mas
alegaram não permanecerem lá, porque a polícia persegue com maior freqüência,
preferindo, assim, retornar para a "paz da Cidade Baixa".
Figura 15 -
Sr. Agnaldo, morador de rua, Largo de Roma
A mobilidade espacial desses moradores de rua foi verificada, não só através do
exemplo do Sr. Agnaldo, mas também com Dona Bernadete, moradora de rua
entrevistada em janeiro de 2005, no Largo dos Mares; em fevereiro, no período
próximo ao carnaval, encontrava-se na Barra, demonstrando que em períodos de
festas a atração dos moradores de rua por essa área aumenta. Esse fato assinala a
questão da mobilidade espacial, a atração que a Barra exerce para alguns deles e
também a possibilidade de verificar o quanto essas pessoas conhecem a cidade, os
caminhos que eles transitam e as escolhas espaciais que fazem.
Foto: Nadja Miranda, janeiro de 2005
76
Figura 16
SALVADOR
TRAJETO PERCORRIDO PELO SR. AGNALDO
NA COLETA DE LIXO RECICLÁVEL – 2005
Fonte: Pesquisa de campo. Jan. 2005.
Concepção: Nadja Miranda. Elaboração: Araori Coelho.
77
3.1.3– Centro
Figura 17 - Praça Castro Alves, Centro
A Região Administrativa do Centro possui 693,11Km2 e é composta pelas
localidades do Centro Histórico, Garcia, Barris, Fonte Nova, Frederico Pontes,
Petrobrás, Pilar, Rua Chile, Baixa dos Sapateiros, Elevador Lacerda, Nazaré, Saúde,
Barbalho e Lapinha
.
17
Esta é uma área bastante antiga na história da cidade, sua
ocupação e formação datam do período colonial, muito embora parte da arquitetura
do período tenha sido destruída pelo processo de modernização imposto à cidade.
Todavia ainda constitui um mosaico de estilos arquitetônicos, aspecto que levou o
poder público a investir e atrair investimentos para essa área no sentido de torná-la
fonte de renda para o do turismo, especialmente, o Centro Antigo. Além disso,
destaca-se a atividade comercial, tanto nos Shoppings Centers, quanto no comércio
de rua. Essas atividades fazem do Centro uma área bastante freqüentada e
movimentada. Um destaque comercial nessa RA é a Feira de São Joaquim, que fica
nos limites com a RA de Itapagipe, que recebe compradores de diversas partes da
cidade, contribuindo para o grande fluxo de pessoas também naquela localidade.
17
Conforme informações constantes em Salvador em dados 2004. SEPLAM .
<http://www.seplam.pms.ba.gov.br/ssadados2004/demografia/demografia_index.htm> acesso em ;
17.01.2006; 17:45
Foto: Nadja Miranda, novembro de 2004
78
As áreas de maior freqüência dos moradores de rua são a Rua J. J. Seabra, a Av.
Sete de Setembro, o entorno da Fonte Nova, a Av. Carlos Gomes, o Comércio e a
Rua Chile. Sobre o porquê de permanecerem mais tempo do seu cotidiano nessas
localidades, as respostas foram diversificadas: a possibilidade de garantir renda, a
partir do trabalho de catação de material reciclável, foi a mais significativa, depois a
assistência de instituições religiosas e por gostarem do local. No dia-a-dia, os
moradores de rua se apropriando do espaço do Centro desenvolvendo diversas
atividades: trabalho de catação e separação de lixo, guardando e lavando carros,
esmolando aos transeuntes e vendendo drogas. Para as crianças e adolescentes, a
presença de turistas para pedir e a existência do mar para se divertir e tomar banho,
na rampa do Mercado Modelo é o principal motivo para se manterem na área. Um
aspecto importante é com relação àqueles que vivem de catar material reciclável.
Eles se apropriam do espaço para dormir e descansar durante o dia e para trabalhar
à noite. O motivo disso é que, segundo eles, as casas comerciais do local despejam
o lixo ao fecharem, por volta das 20 horas, então, enquanto a cidade dorme muitos
deles trabalham. Esse exemplo se aplica aos moradores que ficam na Praça Castro
Alves e aos que ficam na rua Flores; à tarde quase sempre é o horário que eles
param para se alimentar, descansar e tomar banho. As fontes naturais existentes na
cidade é o principal ponto de realização de higiene dos moradores de rua. Para eles
também, uma estratégia de se manter onde estão é respeitar os passantes,
comerciantes e moradores locais. Reclamam da perseguição policial, mas dizem
que esta só ocorre se eles estiverem “bagunçando” (incomodando transeuntes ou
moradores e comerciantes locais). Outro aspecto relevante nessa área é com
relação aos vínculos de trabalho que eles desenvolvem entre eles (pagam a outros
moradores de rua para separar o lixo reciclável), pois não conseguem dar conta da
quantidade e também, segundo eles, é uma forma de ajudar o outro que não tem o
carro de recolher o lixo da rua. Em alguns casos, possuem casa, e morar na rua
deve-se ao fato dos mesmos não poderem se deslocar diariamente para suas casas
(não têm como pagar transporte), e daí passam a visitar os familiares de 15 em 15
dias, aproveitando para levar dinheiro para a manutenção da família. A maioria
dorme em grupo por questão de segurança, pois temem a violência de quem passa.
Além disso, não houve reclamação quanto à falta de comida; relataram não terem
dificuldades com relação a essa questão, pois nas Igrejas de Santana e São
Francisco há sempre distribuição de comida e podem contar com as pessoas que
79
doam freqüentemente pão. Sendo assim, quando não possuem dinheiro se
alimentam por doação. Esse aspecto da distribuição de comida é fator que influencia
na dinâmica espacial dos moradores de rua no Centro, porque no horário que ocorre
essa ação é visível a concentração deles no entorno dos espaços onde acontece a
distribuição de alimentos e é o momento da pausa nas atividades que desenvolvem
para garantir renda. Existem casos em que a mulher e os filhos ficam na Casa de
Pernoite e o pai permanece na rua para no horário da distribuição de comida nas
Igrejas de São Francisco e de Santana poder buscar comida para alimentar-se e aos
filhos. Quando perguntado por que não usava o equipamento de abrigo, o mesmo
informou que lá ele não pode sair para trabalhar durante a noite.
Figura 18 - Praça Castro Alves, moradores de rua separando lixo reciclável
3.2 – O espaço público apropriado pelos moradores de rua e a concepção de
tríade do espaço.
Para Gomes (2002 p. 163), o espaço público tem simultaneamente o caráter
normatizado de "lugar físico que orienta as práticas, que guia os comportamentos e
estes, por sua vez, reafirmam o estatuto de público" e o de "um lugar de conflitos, de
problematização da vida social, mas sobretudo é o terreno onde esses problemas
são assinalados e significados". É desse espaço que os moradores de rua se
apropriam para reproduzirem suas vidas, são praças, largos, ruas e calçadas que
Foto: Nadja Miranda, janeiro de 2005
80
são (re)signifcados. Os moradores de rua têm a percepção que a rua não é um
espaço privado, acreditam no seu caráter de uso coletivo, como afirma o Sr. Luís,
morador de rua, referindo-se ao espaço que ele e alguns colegas se fixaram em
frente ao Antigo Jornal A Tarde, na Praça Castro Alves: "aqui o lugar é público, não
tem dono, é só a gente deixar tudo limpo". Ele percebe a ambigüidade do que
chama de espaço público, quando explica que deixá-lo limpo é norma e condição
para se manterem no espaço. No entanto, porque esse espaço tem para ele um
caráter ambíguo se apropriar dele e usá-lo como privado significa infringir as normas
em vários sentidos: primeiro, porque se tem o status de público e pela lei não pode
ser apropriado como privado; segundo, porque para usá-lo é necessário autorização
do poder público responsável; e terceiro, o que orienta a apropriação do espaço
público na cidade de Salvador é a contemplação e seu valor como mercadoria, para
atender à classe média e aos visitantes e turistas. Constata-se isso, quando verifica-
se em que se transformaram as praças da Piedade e do Campo Grande – jardins
cercados para serem vistos e contemplados pela classe média como extensão do
seu espaço privado. Por uma outra ótica, percebe-se que tais intervenções também
são estratégias para evitar a apropriação desses espaços pelos moradores de rua e
eles não estão alheios a isso: Tá vendo isso ai? (referindo-se às grades da Praça da
Piedade). É por causa da gente. Pra gente não entrar, constata Paulo 22 anos,
Centro. Assim como as praças e jardins, os abrigos de ônibus com o seu novo
estilo
18
se constituíram em "fora mendigos”, pois, hoje, estes só conseguem abrigar
a contento as propagandas de produtos oferecidos no mercado.
Figura 19 – "Novo estilo de abrigo de ônibus
18
são abrigos de vidro temperado que possibilita a pessoa que usa ter visibilidade do entorno, no
entanto não protege nem do sol nem da chuva, além disso nas suas laterais acomodam propagandas
de produtos, de marcas ou de lojas.
Foto: Diego Pugliesi, maio de 2006
81
Apropriar-se de espaços públicos que estão sob a égide do mercado não é tarefa
fácil. Para tanto, os moradores de rua desenvolvem criativamente um modo de vida
que culmina numa rede local de troca, visando seus interesses e impondo
forçosamente a apropriação e uso dos espaços.
Por outro lado, à medida que os moradores de rua se apropriam dos espaços
públicos, eles estão expondo as desigualdades sociais e espaciais existentes na
cidade, o que não deixa de ser uma atitude de publicização da pobreza. Tal atitude
provoca indignação do poder público e de grande parte da sociedade (estes
desejam somente isolar e esconder a pobreza urbana), que, imbuídos dos valores
burgueses do século XIX, re(visitados) nos séculos XX e XXI, só conseguem
enxergar os moradores de rua como vadios e mendigos que não se integram às
regras sociais. É lógico que os espaços públicos concebidos não foram pensados
para moradores de rua. Para eles, o poder público reservou os albergues, espaço
que condicionam o indivíduo e legitimam a prática do recolhimento compulsório. Não
é sem pensar que o pode público municipal instalou as duas unidades de abrigos de
Salvador, nas regiões onde os moradores de rua costumam se fixar por mais tempo
– Itapagipe e Centro. Possivelmente, uma estratégia para facilitar o recolhimento
deles, principalmente na Casa de Pernoite na rua J. J. Seabra, próxima ao Centro
Histórico, bastante visitado por turistas. Quando os abrigos não são suficientes para
o número de recolhidos, utilizam os prestadores de serviços no subúrbio de Fazenda
Coutos, que, distante do Centro Antigo, da Barra e de Itapagipe, dificulta o retorno,
pelo menos rápido, do indivíduo recolhido.
O poder público procura por diversas vias de intervenção no espaço,inibir as práticas
espaciais dos moradores de rua, mas estes conseguem a partir do uso, apropriar-se
dos espaços públicos, fixando-se inclusive em determinados locais. Observa-se
também que os moradores de rua, ao mesmo tempo em que infringem as normas
por ocuparem espaços públicos, se orientam por elas, pois no seu cotidiano buscam
sempre se adequar às normas locais de horário de funcionamento das casas
comerciais e do fluxo de transeuntes, já que conhecer esses aspectos é
imprescindível para nortear o seu cotidiano, para dormir, para trabalhar e para
descansar. Com relação aos horários, os catadores de material reciclável divulgam
que a noite é o melhor período para trabalhar, para isso eles ficam atentos aos
82
horários que as casas comerciais despejam seus lixos; já para os que vivem pedindo
aos passantes, o horário mais viável é durante o dia, daí dormem durante à noite,
mas ficam sabendo que a dormida está condicionada ao horário de abertura das
casas comerciais onde ocupam as marquises. Tais exemplos buscam evidenciar que
os moradores de rua vivenciam os espaços concebidos, resignificando-os, mas não
é de forma homogênea. A Barra, o Centro e Itapagipe, enquanto espaços
concebidos, influenciam no modo de vida de cada morador de rua, assim como suas
práticas espaciais criam novas percepções sobre o espaço de vivência. Enquanto as
praças e jardins do Centro não podem ser ocupados pelos moradores de rua -
porque foram cercados -, em Itapagipe, eles se transformaram em local agradável e
descanso para muitos deles. Na Barra, durante o dia, para não despertar a atuação
repressora policial, a estratégia é ficar pela praia e não formar grandes grupos, nem
ficar dormindo até tarde. A repressão aos moradores de rua é mais presente na
Barra e isso pôde ser verificado na receptividade dos entrevistados: na Barra eles
eram sempre mais arredios e desconfiados, como se estivessem o tempo todo em
estado de alerta, pois a qualquer momento a repressão poderia ocorrer,
principalmente, em se tratando do período do verão. Constatou-se isso por exemplo
com a declaração de uma entrevistada: Em época de festa gosta de espancar o
zoto. Aquele ali (referindo-se a um policial) o nome dele é Bola Sete. Gosta de
espancar a gente. No Centro, esse comportamento foi mais comum entre os jovens
da faixa etária de 18 a 25 anos; em Itapagipe, todos os entrevistados, sem exceção,
mostraram-se solícitos à entrevista. Esses aspectos revelam que, na Barra, e em
algumas áreas do Centro, o morador de rua é mais perseguido que em Itapagipe e
mostrar-se receptivo a um entrevistador, bem ou mal, é uma forma de expressar sua
segurança no local, por conta das repressões que sofre no cotidiano. O nível de
conflitos com o poder público é mais contundente na Barra, seguido do Centro. Na
Barra, sugere-se que isso se dá em função do fluxo de turistas que visitam aquela
área e pela condição de alta renda dos habitantes que certamente não aprovam a
presença de moradores de rua, por isso solicitam constantemente a presença de
força policial. Semelhante situação deve
19
ocorrer na Pituba onde se constatou o
19
a afirmação é porque a Pituba é a Região Administrativa que concentra maior número de chefes de
família com rendimentos acima de R$3.700,01, conforme mostrou o IBGE no Censo Demográfico
2000 (CD-ROM de agregados por setor censitário, planilha Basico_BA.xls, com a variável V03
rendimento médio dos responsáveis por domicílios particulares permanentes), constituindo-se por
essa variável numa RA onde predomina a classe média que consome muito mais produtos com
83
maior nível de renda por chefe de família na cidade (ver figura 21) e onde a fixação
de moradores de rua é bastante efêmera. Todavia, na Barra, tolerados em alguns
momentos e em outros não, eles se fazem presentes e se fixam também naquele
espaço. Existem espaços em que há a concessão do poder público, mas a
concessão só dura enquanto o espaço público apropriado pelo morador de rua não é
reclamado pelos cidadãos – contribuintes fiscais ou pelo próprio poder público,
quando percebe que tal espaço pode ter fins lucrativos, como, por exemplo, a
inserção do espaço no circuito de turismo da cidade. Por isso, a cada espaço que o
morador de rua se fixa, ele atribui uma particularidade, um significado, uma
valorização.
Figura 20 - Morador de rua em frente a
Fundação Casa de Jorge Amado.
A leitura desses aspectos indica que há uma superposição de espaços: a Barra, o
Centro e Itapagipe são espaços dos moradores locais, dos passantes, dos
comerciantes e dos turistas, do ponto de vista legal, mas também os espaços de
fixação dos moradores de rua, que escolhem os lugares onde percebem que podem
embalagens recicláveis, aproveitadas pelos moradores de rua. Essa situação atrai moradores de rua
para o local, no entanto, verificou-se durante a fase de observação da pesquisa (agosto a outubro de
2004) que os mesmos não se fixam ali por muito tempo, diferente que do ocorre nas RA's
pesquisadas
.
Foto: Sérgio Inácio, fevereiro de 2005
84
melhor atender suas demandas. Lugares que, segundo Neves (1995), são
escolhidos segundo o fluxo de pessoas de instituições filantrópicas, de transeuntes
anônimos (sensíveis à situação de pobreza do outro) e de indivíduos melhores
providos (que pagam para tomar conta e lavar carros) bem como a oferta de lixos
recicláveis, mesmo com as imposições contrárias impostas sobre aqueles espaços.
Figura 21
SALVADOR – REGIÕES ADMINISTRATIVAS
RENDIMENTO MENSAL POR RESPONSÁVEL POR DOMICÍLIO
POR SETORES CENSITÁRIOS
Fonte dos dados: IBGE. Censo Demográfico 2000: agregado por setores censitários dos resultados do universo
[CD-ROM], v. 4, Rio de Janeiro: 2003.
85
Observa-se com isso, que a rua não é apenas o espaço de passagem, uma linha
reta entre construções, ela é um complexo reticular de comunicação e de troca entre
indivíduos diferentes, ela é o espaço onde a pluralidade se manifesta e o poder
público, conservador em suas concepções, não consegue compreender que essa
teia de relações não se dissolve por decretos.
Os moradores de rua se apropriam e usam as ruas, as calçadas, as praças e os
jardins como espaços privados. A propósito dessa apropriação, ela não ocorre de
forma aleatória. Tal ação se dá mediante percepção ou apreensão imediata do
espaço, a partir de então, procuram se apropriar deste espaço que abriga várias
atividades desenvolvidas por diversos agentes que convergem e divergem nos
interesses. Por isso, a tensão é sempre presente nessa relação, pois os interesses
se superpõem. Apropriar-se e fixar-se no espaço público não é tarefa fácil para os
moradores de rua em Salvador; nos locais onde eles se fixam, estão por tolerância
de moradores e comerciantes locais e porque os mesmos procuram se inserir neste
espaço recriando, principalmente os vínculos de trabalho. Para Neves (1995 p.
114), os interesses pelo espaço público são expressos hegemonicamente na ordem
jurídica, quase referenciada na prática policial; na ordem social, que se funda no
privilégio do contribuinte fiscal e na ordem mercantil, que está baseada nas
imposições dos comerciantes. Em função disso, quando um morador de rua espera
que uma loja se feche para ocupar sua marquise há um planejamento a priori para
essa apropriação, porque respeitar as regras para uso das calçadas é uma
estratégia para apossamento da mesma. É conhecendo a teia de relações e
interesses desenvolvidos no espaço que o morador de rua transforma o espaço
concebido em espaço vivido. Apropriar-se dos espaços significa antes percebê-los e
apreendê-los de imediato. O Sr. Augusto, 28 anos, foi enfático ao relatar que prefere
a tranqüilidade do Largo dos Mares, onde existe solidariedade, pois esteve na Barra
e mesmo conseguindo aumentar a renda lá, preferiu retornar para Itapagipe. Esse
relato sugere uma mediação entre o espaço percebido, o espaço vivido e o
concebido, à medida que o mesmo fazia uma idéia da Barra, enquanto espaço
concebido, mas ao viver e experenciar este espaço, criaram-se novas percepções, e
ele buscou um outro espaço para realizar suas experiências, um espaço onde elas
fossem possíveis. Verifica-se que o cotidiano do morador conduz a uma rede de
significações que expressam a condição de sua atuação ou não no espaço. Na
86
relação espacial do morador de rua com os espaços analisados parece não haver
uma fronteira clara entre o vivido, o percebido e o concebido. Os moradores de rua
criam espaços de representações, ora negando, ora se integrando às
representações do espaço. Isso significa dizer também que as dimensões do
espaço, nesse sentido, não são estáveis nem simples, suas relações estabelecem
conexões distintas e variáveis.
3.3- O sentido da casa e da rua
Figura 22 - Lorenilson, em frente a casa que recebeu
no Loteamento Moradas da Lagoa
Quando se trata de pensar a questão dos moradores de rua, os planejadores
pensam, de imediato, baseados em suas significações, que estes precisam,
primeiramente, de uma casa. A casa é o referencial para projeção no espaço, como
afirma Bosi (1994), no entanto, verifica-se aqui, que para a maioria dos moradores
de rua, a casa ganha outra concepção, quando estes reorganizam e reinventam o
espaço público. Este passa a ser o primeiro referencial de projeção do indivíduo no
espaço, pois é a partir dele que se garante o trabalho e a renda, necessidades de
primeira instância para quem não tem a casa e se movimenta em todas as direções
na cidade. Poder ser reconhecido como trabalhador é um passaporte para transitar
na cidade. Dona Ana, moradora de rua, relatou sua experiência como proprietária de
uma casa:
O projeto só largou a gente lá. Que projeto é esse que nós tamos,
que temos que pagar casa, pagar água, temos que pagar luz?. Ai eu
Foto Cris Oliveira, Paraleo 12, FTC. p.8-10
87
fico na rua que a marquise é minha casa, não pago nada, como e
cabou. Recebeu casa tá tudo resolvido, mas não é assim não,
senhora. Dá meio dia a barriga quer comer, de manhã quer comer.
A rua é melhor que tá lá em Coutos. Porque aqui eu arranjo comida.
Aqui é a luta do dia-a-dia. Porque a rua não é boa para se ficar, mas
é sobrevivência. A rua é para aventurar trabalho. Botaram a gente
naquele sufoco lá (Dona Ana, 43 anos).
Dona Ana relata a experiência do projeto de assentamento de moradores de rua
desenvolvido numa parceria entre a Prefeitura Municipal e o Governo Estadual,
abordada no capítulo 2, que consistiu na entrega de uma casa com alguns objetos
de primeiras necessidades. Vários dos contemplados, pouco tempo após receber a
casa, retornaram às ruas. A análise dessa situação nos leva a inferir que a casa
neste contexto não é a necessidade principal do morador de rua e que a rua, nesse
momento, tem mais significado, porque na rua são construídas redes de
solidariedade, laços afetivos, possibilidades que eles criativamente exploram e que
superam a perspectiva de estarem numa casa isolados. A leitura dessa questão
evidencia que conceber um projeto de moradia para morador de rua significa
conhecer o cotidiano e as relações que o indivíduo estabelece com a rua. Devido à
heterogeneidade das histórias de vida dessas pessoas, não é possível para elaborar
um projeto sobre uma prancheta acreditando atender a todos de forma homogênea.
As demandas são diversificadas e existem aqueles que não querem mesmo sair das
ruas. Foi possível verificar que quanto mais tempo se vive na rua, menor as
expectativas que se cria para sair dela; daí morar na rua deixa de ser condição e
passa a ser um estilo de vida. Além disso, mesmo aqueles que desejam morar numa
casa, têm critérios para isso. A casa, por si só, não resolve as demandas dessas
pessoas, porque na rua eles desenvolvem complexas relações para adquirir renda
para se prover e para o lazer, que estão associadas à condição de morar neste
espaço. Ir para uma casa significa dissolver todas essas relações e criar novas,
processo que pode ocorrer gradualmente ou não ocorrer. A casa como referencial
geométrico na cidade, espaço de harmonia, afeto e paz perde o sentido, torna-se
somente um meio de esconder a pobreza; já a rua ganha outro status, que difere do
caráter de simples espaço de passagem: "A rua para mim é minha mãe é minha
casa", Neguinha, 25 anos; "A rua é o lugar melhor do que a casa", Francisco, 22
88
anos; "A rua para quem sabe viver é uma boa, não beber, não procurar confusão",
João, 56 anos. Portanto, para esses moradores, o espaço público da rua é
resignificado como espaço acolhedor, de solidariedade e de ensinamento.
A rua, então, passa a ser não só o referencial geométrico, mas também o referencial
de vida e a possibilidade de poder continuar a reproduzi-la. É de onde o morador
olha a cidade com outros olhos. Para quem tem como referencial de vida e de
projeção a casa, a rua é simplesmente o espaço de trânsito, associado à
característica de espaço perigoso e desumano, morar na rua é uma violação da
regra social, é uma subversão aos padrões e valores (burgueses). Para alguns que
moram na rua, ela também tem um sentido ambíguo: é boa e ruim, é perigosa e
acolhedora. Vejamos alguns depoimentos:
[...] A rua é muito ruim na hora de dormir [...] Nonato, 20 anos, Centro.
[...] Preferi a rua. Aqui durante o dia, ninguém me incomoda.O pior é
na hora de dormir porque as pessoas que passam jogam coisa na
gente lá na marquise [...] Sr. Luís, 42 anos, Itapagipe.
[...] A rua, pra mim, é legal. Dá pra viver. Tem dois lados: ruim e bom.
Comigo não acontece nada ruim. Porque minha mãe disse que quem
se junta com porcos farelo come[...] Claúdio, 28 anos, Itapagipe.
Esse caráter ambíguo, que a rua apresenta para os moradores de rua, demonstra
que os significados atribuídos ao espaço são reflexos da experiência vivida de cada
um. Esse aspecto está bastante relacionado à questão do tempo que a pessoa está
vivendo na rua e também à faixa etária. Para as crianças e adolescentes, estar na
rua significa liberdade e distanciamento da pobreza onde viviam, bem como dos
problemas afetivos com parentes ou responsáveis, ou mesmo a rejeição da condição
de infra-estrutura do bairro onde morava:
Lá em Sete de Abril não tem onde brincar, o campo de bola passa um
esgoto a céu aberto. Aqui não, posso nadar a hora que quero, o
marzão para brincar. Fábio, 13 anos, Comércio.
Segundo Carlos (2001), o modo de vida urbano é o próprio gerador dessa situação
quando não cria mais espaços de brincadeiras para as crianças, restringindo os
89
sonhos e imaginação próprios da idade. Às crianças de classe média, reservam-se
os playgrounds e às pobres a condução às "ruas centrais da cidade ou nos
cruzamentos de alta densidade para vender ou roubar coisas". A figura 23, a seguir,
sugere o pensamento em análise, à medida que expressa essa relação de espaço e
sonho na infância.
3.4 - O significado do lugar
Depois de verificar que a rua exprime vários significados para quem faz dela
moradia, buscou-se compreender em que medida a rua tem sentido de lugar para os
que moram nela, levando em consideração o conceito de Tuan:
O lugar, no entanto, tem mais substância que nos sugere a palavra
localização: ele é uma entidade única, um conjunto ‘especial’, que
tem história e significado. O lugar encarna as experiências e
aspirações das pessoas. O lugar não é só um fato a ser explicado
na ampla estrutura do espaço, ele é a realidade a ser esclarecida e
compreendida sob a perspectiva das pessoas que lhe dão
significado” (TUAN, 1979
p. 387).
Compreender em que consiste o conteúdo do lugar para os moradores de rua é dar
eco ao conceito que infere Tuan, quando este afirma que é no cotidiano das pessoas
que se observa os significados que são atribuídos aos espaços. Como afirma Relph
(1976), o lugar está relacionado ao tipo de experiência e envolvimento que o sujeito
estabelece com o mundo e à necessidade de raízes e de segurança. No cotidiano
dos moradores de rua, de maneira geral, verifica-se que o lugar está relacionado ao
Figura 23
AUGUSTO, Luís. Jornal A Tarde, Caderno 2. 12.09.2004
90
momento do bem-estar, do descanso, da tranqüilidade e da segurança. Dessa
forma, alguns lugares específicos expressam para eles esses atributos, mesmo que
momentaneamente. Na Barra, o mar, especialmente nas pedras que ficam atrás do
Farol da Barra, é destacado como lugar, à medida que chama a atenção deles pela
beleza natural e pelo momento de contemplação que podem desfrutar, além disso,
este lugar está relacionado à "convivência tranqüila". No Centro, dois grupos
significaram o espaço como lugar. Um grupo, que se fixou na Praça Castro Alves,
em frente ao Antigo Jornal A Tarde: para poderem descansar naquele local, onde
corre a brisa do mar sem serem incomodados, mesmo no horário de grande fluxo de
passantes, fizeram do espaço um lugar com os atributos inferidos por Relf e Tuan. O
outro grupo se fixou na Rua das Flores, no Centro Antigo, segundo um deles é a sua
casa, pois ali eles se sentiam bem, à vontade, seguros, trabalham também sem
maiores problemas e conversam com os colegas. Em Itapagipe houve destaque
para a praia, mas foram as Praças (Largo dos Mares e Largo de Roma) os lugares
marcantes citados por eles. A esses espaços foram atribuídos significados de lugar
da solidariedade, da tranqüilidade e da segurança. Verifica-se nessas concepções
que o significado de lugar está relacionado com as experiências cotidianas positivas
que essas pessoas têm com o espaço. Ou seja, a rua se transforma em lugar
quando esta oferece segurança, tranqüilidade e bem-estar.
Todavia, pensando o lugar como o contexto das suas experiências significativas,
observa-se uma maior afeição pela rua no caso daqueles que estão com mais de 10
anos vivendo dela e nela. É o caso do Sr. Aloísio, nas imediações da Feira de de
São Joaquim e de dois senhores que vivem na Rua das Flores, no Centro Antigo.
Essas pessoas expressam afeição pelo espaço que usam, inferindo ser ali seu
hábitat. Tais espaços já se tornaram referências na vida dessas pessoas, portanto,
tal envolvimento com o espaço complica e inviabiliza qualquer política de
recolhimento, como as que são propostas pelo poder público.
91
Figura 24 - Rua das Flores, Centro Histórico é um "lugar" para os
moradores de rua.
3.5 – Em busca do direito à cidade?
Desde 2001, com a aprovação do Estatuto da Cidade a temática do direito à cidade
passou a residir os discursos oficias. Com esta lei, foram regulamentadas as
diretrizes da política urbana no Brasil. Este instrumento legal se constituiu num
avanço em termos de políticas urbanas, entretanto, verifica-se um maior controle
sobre o uso e apropriação do solo urbano, em especial os espaços públicos, num
momento em que os movimentos sociais que lutam por direito à moradia se ampliam
e se fortificam nas grandes cidades do Brasil, intensificando a apropriação de
prédios públicos e privados subtilizados ou abandonados. Esse último aspecto é
constatado nas razões do veto dos artigos 15 a 20 do projeto da lei
20
. Para Limonad
(2004), do ponto de vista da produção espacial e da concepção de tríade de
Lefebvre, com o Estatuto, as discussões sobre o direito à cidade ganharam mais
eco, no entanto algumas críticas são tecidas a essa lei quando se analisa o seu
conteúdo. Segundo ela, o Estatuto da Cidade é parte das representações do
espaço, logo contribuiu para a reprodução das relações de produção hegemônicas e
sua legitimação, fazendo com que a cidade se torne cada vez mais o espaço de e
20
Os arts. 15 a 20 do projeto contrariam o interesse público, sobretudo por não ressalvarem do direito
à concessão de uso especial os imóveis públicos afetados ao uso comum do povo, como praças e
ruas, assim como áreas urbanas de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental ou
destinadas a obras públicas. [...].
Foto: Nadja Miranda, janeiro de 2005
92
para o consumo. Sob esse ponto de vista, como pensar nos espaços de
representação que constituem o espaço urbano? É possível ter direito à cidade
morando na rua? Levando-se em consideração que a condição de morar na rua
dificilmente deixará de existir sob a égide do capitalismo, cada vez mais pessoas vão
procurar as ruas como alternativa de sobrevivência, à medida que o mercado de
trabalho se torna mais exigente, com relação à qualificação de mão-de-obra. Os
governos, nas três esferas, pouco
21
fizeram em relação às políticas públicas
urbanas, a fim de equacionar os problemas apontados como principais motivadores
para os indivíduos buscarem morar nas ruas. Além disso, existem questões onde o
poder público não tem qualquer ingerência, como as relacionadas a problemas
afetivos e de opção de vida. Somando-se a isso, pesquisas constatam que a
demografia de moradores de rua no Brasil é ascendente
22
nas principais cidades
brasileiras. Dadas essas questões, o principal desafio consiste em pensar a cidade
com a presença cada vez maior de moradores de rua, fato que condena ainda mais
as políticas públicas de recolhimento ao fracasso. A partir dessa assertiva, infere-se
que pensar hoje no direito à cidade é reconhecer que este se estende a todos os
habitantes citadinos, independente da sua condição de moradia. É colocar em
prática políticas urbanas que insiram os moradores de rua, considerando a sua
condição. Continuar acreditando que o direito à cidade se limita aos que consomem
os bens e serviços por ela oferecidos é um pensamento equivocado e seletivo,
portanto não se pode falar que planejamentos urbanos com este fim possam ter
qualquer caráter de promoção da cidadania de seus moradores. O direito à cidade,
como afirma Lefebvre:
21
No final de 2005, pela primeira vez, o Governo Federal através do Ministro Patrus Ananias, do
Ministério do Desenvolvimento Social, assinou um convênio com a Associação Reciclázaro,
organização não-governamental de São Paulo que dá treinamento para moradores de rua. Acordo
que faz parte do programa de Inclusão produtiva de populações de rua do governo federal. Para esse
projeto, o Ministério destinou a quantia de 2 milhões. A definição dos critérios para que agentes
governamentais e terceiro setor recebam os rapasses das verbas constam na
Portaria nº
566/2005 de 14.11.2005.
22
Em São Paulo, pesquisa de FIPE revela que o número subiu de 8.706 em 2000 para 10.394 em
2003; No Rio de Janeiro, pesquisa do departamento de Sociologia Urbana da UERJ constata um
número próximo a 10.000; em Salvador, eram 818 em 2002, subindo para 3.809 em janeiro de 2006,
de acordo com informações da ADRA (Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos
Assistenciais, prestadora de serviços a Prefeitura Municipal de Salvador), fornecidas para
reportagem do Jornal A Tarde de 15/01/2006; e com base em informações de 76 municípios, o
Ministério do Desenvolvimento apresentou levantamento de 1,8 milhão de pessoas que vivem
permanentemente nas ruas ou de modo provisório.
93
se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à
individualização na socialização, ao habitar e ao habitat. O direito à
obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto
do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade
(LEFEBVRE, 1991b, p. 135).
A análise do conceito de direito à cidade de Lefebvre pressupõe condições
importantes para que este de fato exista, mas o que se percebe é que este não é
realidade para muitos citadinos, principalmente para os moradores de rua. Tal direito
não está relacionado às prerrogativas exigidas pelo mercado, por isso é tão difícil de
colocá-lo em prática. As principais reclamações dos moradores "legais" quanto à
presença de moradores de rua é que os mesmos ocupam os espaços públicos e não
pagam impostos
23
. Cada segmento da sociedade se sente no direito e apresenta um
motivo para solicitar a retirada dos moradores de rua de onde eles se fixam: para os
comerciantes, eles intimidam a clientela e também não consomem; para a polícia
violam a ordem pública; para o poder público, são transgressores que ocupam os
espaços públicos e expõem as mazelas da cidade. Partindo para a análise dessa
concepção, percebe-se que os moradores de rua do ponto de vista desses
segmentos não têm qualquer direito à cidade, pois entendem, equivocadamente,
que eles não pagam impostos, assim, não podem ser considerados cidadãos. Sobre
a idéia de cidadania, Santos ( 1996, p.41) afirma que "o consumidor não é cidadão",
para ele "o cidadão é multidimensional", ou seja, a pessoa não se torna cidadão
pelo simples fato de consumir tudo aquilo que o mercado produz; como o automóvel,
a casa, as viagens, as roupas, mas pelo fato de nascer humano. Ainda, segundo
Santos, "o consumidor não
tem direito ao debate sobre os objetos de suas ações,
públicas ou privadas". Ora, então podemos afirmar que o morador de rua não é
cidadão porque ele não é um consumidor em potencial ou porque a ele é negado o
direito de expressar a sua vontade, a ele é negado o respeito como humano? Para
Santos
23
Segundo Sra Nilzete, Coordenadora dos Projetos Assistenciais, da atual SEDES, na gestão
municipal 2001-2004, , as pessoas quando ligavam exigindo a retirada de moradores de rua sempre
alegavam que eram cidadãos pagadores de impostos e que os mesmos por não pagarem não têm o
direito de ocupar os espaços públicos. Sabe-se que qualquer pessoa que consome, alimentos por
exemplo, que é o caso dos moradores de rua, paga imposto.
94
[...] o respeito ao indivíduo é a consagração da cidadania, pela qual
uma lista de princípios gerais e abstratos se impõe como um corpo
de direitos concretos individualizados [...]. (SANTOS, 1996, p. 7).
Para muitos moradores de rua o descaso, o desrespeito das pessoas, a construção
de estereótipos sobre eles é muito mais agressivo que o viver na rua:
[...] Dentro do Farol eu queria entrar e o pessoal não deixa. Tem uma
vista maravilhosa. Não devia cobrar dos baianos para entrar lá.[...]
Neguinha, 22 anos , Barra.
.................................................................................................................
[...] A pior coisa aqui é a discriminação dos moradores [...]. Jovem de
20 anos, Barra.
.......................................................................................................
[...] O pessoal visa muito a gente pensando que a gente é ladrão[...].
Jovem, 25 anos, Itapagipe.
.................................................................................................................
[...] As pessoas pensam que você tá na rua não presta[...]. Galego, 27
anos, Itapagipe.
.................................................................................................................
[...] È agora que a gente tá conversando. È ruim porque as pessoas
jogam pedra, a violência,[...]. Silvia, 22 anos, Itapagipe.
.................................................................................................................
[...] O pior é na hora de dormir porque as pessoas que passam jogam
coisa na gente lá na marquise[...]. Sr Luis 42 anos, Itapagipe.
.................................................................................................................
[...] As pessoas; que têm olho, olha. Eles falam da gente do mesmo
jeito, se tá bebendo, se tá na mendigagem [...]. Sr João, 56 anos,
Centro.
.................................................................................................................
[...] tem morador que não gosta quando a gente tá tomando banho, diz
que é vagabundo [...].Carlos, 28 anos, Centro.
.................................................................................................................
[...] Os policiais às vezes passam e desfaz da gente[...]. Jovem de 23
anos, Centro.
95
Os trechos acima expressam o que os moradores de rua destacam como
dificuldades para a reprodução da vida. A indiferença, o desrespeito e o preconceito
são apontados, dentre outros aspectos, como o lado ruim de estar vivendo nas ruas,
pois tornam-se invisíveis como cidadãos. A concepção de cidadania fundada na
modernidade esta associada à idéia de direitos, estes ao longo do tempo foram se
ampliando, do direito político, seguiu-se para os direitos civis, sociais e culturais. No
entanto, percebe-se que quando se fala em políticas públicas para o morador de rua,
estas limitam-se, de forma superficial, aos direitos sociais. Tal entendimento leva às
práticas assistencialistas que passam pelo discurso da recuperação, da reabilitação
e da moralização, ignorando e perdendo de foco os direitos civis e políticos a que
estas pessoas anseiam. Este foi o caso da criação da AMORES – Associação dos
Moradores de Rua de Salvador, idealizada por Lorenilson
24
, que, no entanto, não se
sustentou por muito tempo, justamente porque o apoio só aconteceu até a chegada
do período eleitoral, depois disso, como o mesmo afirmou: "quando a política passou
que todo mundo ganhou, todo mundo sumiu e eu fiquei procurando saber o erro".
Tal experiência evidencia que a falta de apoio (e de políticas públicas apropriadas)
aos moradores de rua, para que estes busquem conquistar a sua emancipação
política, se constituiu numa negação dos seus direitos políticos e civis, portanto de
conquista
25
à sua cidadania.
24
Morador de rua que idealizou a criação da Amores. Segundo ele, a Associação começou com o
apoio de três colegas com o objetivo de lutar pelos seus direitos. Chegaram até a ocupar o prédio da
Semal, colocando uma bandeira da associação. Além disso, conseguiram o apoio do Conselho
Regional de Psicologia e de políticos, culminando na participação no primeiro Fórum de população
de rua de Salvador, em dezembro de 1999. Lorenilson morreu assassinado no final de 2004, próximo
à casa que recebeu do programa de assentamento. Segundo, informações de Carlos Pinho,
colaborador da AVSI, ONG, que atua no Loteamento Moradas da Lagoa, em parceria com o governo
do Estado, o assassianto de Lorenilson “é nebuloso”. O mesmo acredita que, nesse caso, existe a “lei
do silêncio” e que há hipótese de Lorenilson está envolvido com traficantes, e que estes, vendo a
vítima, dando outro rumo na vida dele, inclusive, articulando, movimento de conscientização dos
moradores de rua, quanto à necessidade de conquistar a autonomia, não deixaram que ele desse
continuidade, eliminando-o. Para o Sr. Carlos Pinho, Lorenilson era um “cara” de coragem, porque
não era acomodado.
25
Sobre a questão de estimular que pessoas "sem voz" nessa cidade conquistem os seus direitos,
destaca-se aqui o trabalho desenvolvido em 2004 pelo professor Felipe Serpa, no Curso de Pós-
graduação da Faculdade de Educação da UFBA. As atividades realizadas no âmbito da disciplina
Universidade, Nação e Solidariedade levam para o âmbito da universidade representantes de
pessoas que cotidianamente fazem a cidade, mas que são "pessoas sem voz". Dentre esses
representantes esteve presente em uma das atividades Lorenilson, representando os moradores de
rua. A proposta principal é que, com a presença e as palavras proferidas por Lorenilson e demais
representantes, a universidade soubesse e fizesse um esforço para silenciar e compreender o
"idioma" deles. Essa iniciativa permitiu aos participantes conhecerem melhor o universo e as
dificuldades dos moradores de rua, em especial a difícil tarefa, para eles, de estabelecer qualquer
diálogo com o poder público, pois o mesmo "só reconhece o idioma hegemônico" e nega as
96
Figura 25 - Menino de rua "demonstrando" o que significa a rua. Rampa do Mercado
Modelo, Comércio.
diferenças. O principal problema entre o poder público e os moradores de rua consiste em que o
primeiro nunca ouve o que diz o segundo. Essa foi a proposta do Professor Felipe Serpa, ao
conceber tal atividade, a academia aprender com o cotidiano dos diversos moradores da cidade, com
o modo de viver de cada um deles, cada um deles carregava nas suas experiências um aprendizado
diferente e um viver a cidade diferente. A universidade – o professor, os alunos –, franqueou a
palavra a essas pessoas. É o que eles mais reivindicam.
Foto: nadja Miranda, janeiro de 2005
97
4- Considerações finais
As considerações aqui apresentadas não são respostas acabadas às indagações
que nortearam este trabalho, mas sim comentários de um processo de investigação
de um dado período. Ao tempo em que esta pesquisa respondeu à algumas das
questões propostas inicialmente, suscitou, paralelamente, outras que a metodologia
aplicada não conseguiu contemplar, dado o tempo que demandaria uma efetiva
convivência com os moradores de rua. Constatou-se com a presente pesquisa que
analisar o cotidiano do morador de rua e sua relação com o espaço de Salvador não
é uma tarefa fácil, pelo fato do tema perpassar por níveis de análise que vão da
estrutura às questões da amiúde qualitativa. A pesquisa procurou contemplar essas
duas esferas de apreensão, que envolvem o tema, focando, principalmente, no
cotidiano dos moradores de rua e suas ações no espaço.
Com relação à aplicação das duas abordagens focadas no capítulo 1,
aparentemente incompatíveis, verifica-se que estas se complementaram na
efetivação da pesquisa. Há uma ambigüidade espacial com relação ao morador de
rua, que pôde ser identificada a partir do uso das duas abordagens: o morador de
rua, do ponto de vista da cidade legal, transgride as normas quando usa e se
apropria dos espaços públicos para desenvolver suas atividades privadas, porém as
redes de comunicação e solidariedade que estes constroem possibilitam que os
mesmos consigam a concessão para se fixarem temporariamente ou mesmo por
longos períodos em determinados espaços. Uma relação contraditória com o espaço
que é público e normatizado e ao mesmo tempo privatizado. Esta idéia foi
apreendida sob o olhar das abordagens fenomenológica e dialética.
Além disso, para tecer as considerações finais sobre o trabalho acreditou-se ser
pertinente, pensar o morador de rua na sua condição humana e a partir de então
inferir, com base nas análises feitas nos capítulos anteriores, em que medida as
principais atividades inerentes a essa condição são possíveis de se realizar no
cotidiano. Para tanto, foram consideradas as seguintes questões: as políticas
públicas, a relação com o espaço citadino e a construção da cidadania.
98
Quanto às políticas públicas, sabe-se que a pobreza é a marca de um passado
brasileiro historicamente construído em função dos interesses das classes
dominantes e pelo processo de modernização, que anunciou a superação da
pobreza e, no entanto, promoveu o seu crescimento e aceleração, evidenciando
aquilo que muitos autores chamam de modernização conservadora. Esta seria uma
das vias estruturais que poderia explicar a presença de moradores de rua no
cotidiano das cidades. O trabalho limitou-se tratar de um recorte dessa temática
mais ampla — as políticas públicas. Resgatando o pensamento de Arendt (2002),
verifica-se que a política é o meio para os homens exercerem a sua liberdade e
promoverem uma vida em paz e tranqüilidade. Com base, principalmente, nesses
princípios, verificou-se no conteúdo daquilo que se chama de políticas públicas para
moradores de rua que elas não promovem, pelo menos para a maioria deles,
nenhum desses princípios. As afirmações são decorrentes de análises do conteúdo
das mesmas e a partir da avaliação dos próprios moradores de rua. Do século XIX
ao século XXI, o morador de rua é visto como refugo da sociedade – inseridos
marginalmente – melhor dizendo. Como afirma Escorel (2002), nessa situação, os
indivíduos resumem-se à condição de animal laborans. Discorda-se aqui destas
visões. Eles são, de fato, marginalizados, negados, destituídos de bens materiais e
discriminados, mas se olhados apenas por esse ângulo, perde-se de vista que essas
pessoas, em sua condição humana, não perderam sua capacidade de ação. É
desse ponto de vista que as políticas públicas poderiam partir. Por não partirem
desse pressuposto, constituem muito mais em ações para regular a vida da
população de rua, onde eles podem dormir, o que podem fazer, onde podem circular
(de preferência que não estejam nas ruas, mas recolhidos, longe dos cartões postais
da cidade, pois no entendimento dos órgãos públicos são pessoas que precisam de
recuperação, resgate, recondução e reabilitação). No entanto, nenhuma das
políticas prevêem dialogar com essas pessoas, dar-lhes a possibilidade de publicizar
suas demandas. O discurso de que o sistema capitalista é o grande culpado por
estas pessoas estarem nessa situação é esvaziado, quando se reproduz, a partir
do que seria público – a política – e para o bem-comum, a mesma lógica
hegemônica.
Percebeu-se que as políticas públicas gestadas para a população de rua durante
estes períodos se alicerçaram em diversas idéias: inserção no mundo do trabalho,
99
confinamento, saúde pública e higienismo, reabilitação, regeneração, recolhimento e
assistencialismo. Nenhuma delas conseguiu atender às demandas dos moradores
de rua, nem mesmo durante a década de 1990 do século passado, em que vários
debates foram empreendidos no meio acadêmico, porque também nenhuma delas
previu ou investigou os laços de afetividade e solidariedade, que o indivíduo
estabelece com o espaço da rua, evidenciando com isso que deve existir uma
preocupação com a dinâmica da cidade e com o seu cotidiano.
Além disso, deve-se entender que a luta por dignidade dos moradores de rua é uma
luta que envolve outras demandas como aquelas relacionadas aos bairros
periféricos da cidade, de onde saem a maioria dos moradores de rua, conforme foi
apresentado na tabela 4 do capítulo 2, e que o discurso da igualdade burguesa não
dá conta das diferenças dos moradores que habitam a cidade, nem mesmo os
insere.
Tudo isso remete a uma constatação: o poder público precisa mudar o pensamento
quanto aos moradores de rua, o que talvez fosse encarado como uma profanação
dos valores burgueses: deixar que as pessoas tenham a livre escolha de
permanecer na rua ou não, porque mesmo sendo morador de rua a sua condição
humana, como afirma Santos (1996), lhe confere todos os direitos. Inclusive o de
não ser violado nas redes e interações que estes estabelecem na e com a rua.
Quanto ao perfil socioeconômico, não seria o perfil, mas os perfis de moradores de
rua. São inúmeras histórias, são diversas experiências de vida. Alguns têm renda,
outros não; a maioria trabalha licitamente, poucos não; para alguns o consumo se
resume praticamente à alimentação, mas há aqueles que escolhem onde querem
comer e onde a comida é de melhor qualidade dentro das suas possibilidades; os
que compram roupa de vez em quando; os que aguardam a doação de alguém; os
que freqüentaram a escola, os que nunca tiveram oportunidade de sentar nos
bancos de uma sala de aula; os que são jovens; os que são adultos; os que são
idosos; os que chegaram nas ruas recentemente e tudo ainda é assustador; os que
já nasceram nela; os que são de Salvador; os que a adotaram como morador; os
que foram descartados do mercado de trabalho formal, aqueles que nunca tiveram a
carteira assinada; os que se sentem bem morando na rua, os que não vêem a hora
100
de sair. Essa multiplicidade de características dos moradores de rua foi possível de
ser constatada porque a pesquisa se constituiu muito mais num estudo qualitativo,
porém sem abandonar os dados quantitativos. Estes últimos fortaleceram a idéia de
que o crescimento demográfico dos moradores de rua em Salvador e nas demais
capitais do país é ascendente. Além disso, conclui-se, que, diferente do que ocorria
até a década de 1970 do século passado, os fatores que têm levado pessoas a
morar nas ruas, já não se relacionam mais à expulsão do campo, já que a maioria
dessas pessoas são oriundas da própria cidade onde “moram”, de cidades vizinhas
ou de outros estados; isso significa que os centros urbanos são, hoje, os próprios
geradores da pobreza e da marginalização da população de rua.
Quanto ao espaço; a situação de morar na rua é ambígua, pois esta resignifica a
ordem burguesa das coisas; publicizando o que é teoricamente da esfera privada
as necessidades: comer, dormir, trabalhar, descansar e fazer sexo; constata-se aqui
a transgressão de privatizar o que é normatizado como público. É na ação de
transgredir a ordem espacial que se encontram as relações que os moradores de rua
estabelecem com o espaço da cidade. O fato de sair de casa, do espaço privado, e ir
morar na rua é a primeira ruptura que o indivíduo concretiza com relação ao espaço
abstrato. A partir de então, a experiência com o espaço da cidade se amplia, pois
disso depende a sua sobrevivência. Conhecer a cidade e suas possibilidades é a
priori o fato fundamental para continuar a reprodução da vida. É nesse sentido que o
morador de rua, a partir de sua vivência e percepção espacial, investe sobre o
espaço concebido. Isso significa conhecer o cotidiano da cidade: instituições de
caridade, localização de albergues, áreas onde são distribuídas doação, locais onde
há concessão para permanência e onde não há, oferta de lixo reciclável, oferta de
serviços (carro para tomar conta ou lavar e prestação de serviços a comerciantes),
enfim, tudo isso significa conhecer as possibilidades que a rua oferece. No entanto,
para ter acesso a essas possibilidades, o morador de rua precisa criar estratégias,
estabelecer redes de comunicação e códigos muitas vezes clandestinos, como
afirma Lefebvre (1991), para se fixarem e se manterem no espaço escolhido.
Verifica-se, nesse contexto, que tais investidas no espaço se configuram como
espaços de representação, à medida que os moradores de rua, a partir da sua
vivência, buscam mudar ou resignificar esses espaços. É nesse sentido que
101
Lefebvre (1991a) afirma que o espaço abarca uma multidão de intersecções: do
vivido, do particular e do hegemônico.
Quando os moradores de rua aproveitam as oportunidades que a rua oferece, eles
resignificam seu sentido de espaço de passagem, do trânsito, da malandragem para,
como afirma DaMatta (1997), ser instrumento de vida. Tal resignificação quase
sempre transgride as normas. No entanto, a relação do morador de rua não é
somente de transgressão, é também, em alguns aspectos, regulada pelo espaço
concebido. Assim, viver na rua é uma relação de movimento constante com o
espaço, movimento esse que em alguns momentos se dá pela transgressão e em
outros se constitui pela submissão. É nessa ambigüidade que se encontra a relação
dialética do vivido, do percebido e do concebido do morador de rua na cidade.
Além disso, esse movimento se constitui, em alguns casos, na criação de laços
afetivos com o espaço público, o significado transcendendo a questão apenas da
sobrevivência, do instrumento de vida. O fato de viver a cidade de outro modo, que
difere do que a cidade impõe, faz com que o morador de rua, principalmente aquele
que já está vivendo na rua há mais dez ou vinte anos, estabeleça vínculos com o
espaço da rua que sustentam a sua permanência no espaço público: o poder parar a
qualquer hora para contemplar o mar e o vai e vem das pessoas apressadas, o
deitar à sombra de uma árvore sentindo a brisa correr e poder trabalhar apenas para
conseguir o suficiente para continuar reproduzindo a vida, sem necessariamente ter
que seguir um horário rigoroso, são vivências e experiências que transformam a rua
num lugar, no sentido que inferem Tuan (1986) e Relph (1976). Conclui-se, assim,
que esses habitantes vivem uma outra lógica que difere da lógica legal da cidade? É
o caso do Sr. Aloísio no entorno da Feira de São Joaquim, de Sr. João na Rua das
Flores?
Outro aspecto verificado na relação do morador de rua em Salvador, no tocante às
suas possibilidades é que, legalmente, a cidade oferece muito pouco; mas, nas
brechas da "cidade legal", é que nascem essas possibilidades. Entretanto, essas
possibilidades só se transformam em formas concretas na vida do morador pobre
porque este desenvolve criativamente estratégias de aproveitamento dessas
possibilidades. Dessa forma, as críticas que recaem sobre quem mora na rua são
102
infundadas, pois o modo de viver, na rua, é resultado e resultante do que a cidade
oferece e o que ela não oferece ao seu morador. Ratifica-se essas idéias com o
pensamento de Santos (2002) quando o autor afirma que os pobres na cidade são
criativos, conseguem ser móveis e adaptar-se no ao seu meio geográfico, criando
demandas que nem sempre o poder público consegue ou se interessa em atender.
Até então verificou-se que a cidade (a rua especificamente) oferece possibilidades
para quem vive na rua, mas é o momento de falar nos limites que a cidade
estabelece para essas mesmas pessoas. Constata-se aqui que os limites se
constituem propriamente na falta de direito à cidade. Nesse sentido falando como
Lefebvre (1991b), os moradores de rua não têm direito à obra (a atividade
participante), à apropriação (diferente de propriedade) e aos bens e serviços que ela
oferece. Isso significa que os limites que a cidade impõe aos moradores de rua são
muito mais desumanos que o próprio fato de estar morando na rua. Os limites se
expressam das diversas formas na cidade a começar pelos espaços públicos,
estrategicamente requalificados para evitar que os "mendigos" não façam uso nem
se apropriem desses equipamentos, passando pelas ações de violência de
transeuntes, violência física quando jogam objetos que machucam ou mesmo
práticas brutais, como bater, por exemplo, violência simbólica quando desferem
preconceitos e/ou omitem a sua existência, cerceando a liberdade de mobilidade
pela cidade, transformando-os em moradores invisíveis ou descartáveis, e, ainda, a
negação de acesso aos serviços básicos que uma cidade deve oferecer aos seus
moradores, como saúde e educação. Distante, ainda, a possibilidade de essas
pessoas poderem ser ouvidas e terem direito à vida participante na cidade.
As possibilidades e os limites referentes aos moradores de rua no espaço urbano se
configuram num conteúdo complexo, heterogêneo, como foi afirmado no capítulo 4.
Ao mesmo tempo que permite ao habitante que reproduza a sua vida, impõe normas
e contêm símbolos que limitam suas ações e de alguma forma lhe insere no espaço
abstrato, mesmo que de forma marginal. Por outro lado, são os limites que fazem
com que os moradores de rua criem estratégias de uso e apropriação do espaço,
pois são a partir dela que o espaço público é resignificado. A casa é considerada
como espaço privado, também é resignificada para muitos dos que vivem na rua, à
medida que nela ou a partir dela não foi possível garantir a reprodução da vida,
103
subvertendo a idéia de que a casa é o referencial para a projeção na cidade.
Quando o indivíduo sai do espaço da casa é porque já não vê mais no seu interior
sentido para manutenção da sua vida. A casa, considerada nesse contexto, só
esconde a pobreza e a precariedade da vida privada, enquanto a rua expõe aos
olhos do público as demandas do indivíduo.
Quanto à cidadania: para avaliar este ponto resgata-se as idéias de Arendt (2002)
quanto às atividades inerentes à condição humana e que conduzem o homem a uma
atuação política cidadã — na sociedade ou submete-o à condição conformista e
submissa em relação aos valores burgueses. Analisa-se essa condição no âmbito da
cidade. O labor sendo atividade que garante a reprodução da vida, biologicamente
falando, é perfeitamente exercido pelo morador de rua; o trabalho que se constitui na
interação do homem com o mundo artificial, como vimos nos capítulos anteriores
também é exercido pelo morador de rua, no entanto o que difere o trabalho do
morador de rua dos demais é que no espaço da cidade ele é clandestino, é residual,
é o trabalho que o mercado precisa, mas não legaliza. Imagine-se a situação da
limpeza urbana de Salvador, sem os catadores de lixo reciclável (inclui-se aqui os
moradores de rua) por uma semana? A coleta oficial daria conta? O trabalho na
nossa sociedade é o que dignifica o homem, é o que garante a sua sobrevivência
física e moral, portanto também os moradores de rua, em sua maioria, querem ser
vistos como trabalhadores e fazem o possível para não serem vistos como ociosos.
Vive-se numa sociedade de trabalhadores. Nesse sentido, afirma-se novamente que
os moradores de rua vivem na situação de inclusão marginal, defendida por Martins
(2002), quando estes recriam os vínculos de trabalho. Quanto à ação, se
considerarmos que esta ocorre entre os homens e não com o homem, que o
morador de rua, apesar da vida solitária de alguns, e tendo em vista que as
estratégias de uso e ocupação dos espaços da cidade ocorrem a partir de suas
redes de comunicação, então podemos afirmar que o morar na rua não se constitui
numa condição solitária. No entanto, como afirma Arendt (2002), a ação para ser
evidentemente política tem de estar associada ao discurso, pois é a partir dele que
os homens expressam suas individualidades na coletividade, é a partir dele que as
demandas comuns são publicizadas. Com relação a isto, verifica-se que os
moradores de rua são cerceados dessa atividade, porque o poder público e a
sociedade não concedem espaço para que estes possam ser ouvidos. Dessa forma,
104
a construção de uma cidadania para moradores de rua, passa, em primeiro lugar,
pelo direito à voz, porque só eles, somente eles, conhecem o que, de fato, são as
suas necessidades e anseios como moradores clandestinos do espaço urbano.
A partir daí indaga-se: são somente os moradores de rua que não exercem sua
cidadania? Ou toda uma sociedade de trabalhadores urbanos que se escravizam
para manter ou atingir um padrão de consumo que inverte a condição de ser pela
condição de ter, transformando-se, no que define Santos (1996), em consumidores
mais que perfeitos? Para Arendt (2002), a não construção de uma cidadania é a falta
de competência daqueles que se conformaram apenas com as necessidades
privadas. Mas aos moradores de rua garantir a construção dessa cidadania, sem
dúvida, é muito mais complexo, numa sociedade cujos valores estão alicerçados no
valor de troca e o que a cidade oferece, para maioria deles, não ultrapassa a
barreira das necessidades imediatas.
Não se poderia deixar de resgatar, neste contexto, as idéias que marcaram o
princípio deste trabalho: a contribuição da percepção indireta da literatura amadiana
e da imprensa sobre a questão do morador de rua no século XX, sobre o uso e a
apropriação do espaço por moradores de rua e a criação de políticas públicas; a
literatura e a imprensa se constituíram em fontes de percepção indireta importantes.
Pela percepção amadiana, viajou-se pelas estratégias de uso e apropriação do
espaço da cidade pelos meninos e meninas de rua e como estas se fundamentavam
na garantia de mover-se no espaço citadino, criar vínculos com alguns agentes
sociais e usufruir das possibilidades que estes ofereciam; nos jornais, verificou-se o
conteúdo de políticas públicas para moradores de rua e a percepção de alguns
segmentos da sociedade sobre a questão. O fato é que a realidade estudada na
pesquisa ratificou a percepção indireta destas fontes e leva a inferir que no caso da
literatura amadiana, as fronteiras entre o espaço concebido, o espaço vivido e o
espaço percebido também são tênues na relação do morador de rua com a cidade,
assim como os limites entre ficção e realidade também o são.
Por fim, constata-se que, para os moradores de rua conquistarem a sua cidadania,
faz-se necessário algumas providências:
105
reconhecer a sua existência por intermédio das estatísticas oficias, criando
dispositivo legal para a realização de censo contínuo;
criar serviço de atendimento e apoio, específico, com uma equipe
multidisciplinar, nos locais de acessibilidade, que possa estabelecer contatos
contínuos, possibilitar o uso dos serviços de saúde e educação e coletar
informações de caráter qualitativo;
flexibilizar os horários dos abrigos para possibilitar àqueles que trabalham
utilizarem os serviços destes equipamentos;
reestruturar os projetos de assentamentos e moradias, resignificando o
destino dos imóveis em situação de abandono, de deteriorização ou
subutilização, a exemplo, do Centro Antigo, para atender a necessidade de ter
casa dos moradores que vivem no entorno desta área;
desenvolver políticas apropriadas para os bairros de onde saem os
moradores de rua, a exemplo, da criação de áreas de lazer para crianças.
Assim, garantir o direito à cidade à população de rua, passa por atender às
demandas prioritárias apontadas acima, e considerá-los moradores e respeitá-los na
condição humana.
106
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