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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL
ADRIANA REGINA DE ALMEIDA
A (RE) CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE/ DIVERSIDADE
FEMININA EM MULHERES MASTECTOMIZADAS
FRANCA
2008
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ADRIANA REGINA DE ALMEIDA
A (RE) CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE/ DIVERSIDADE
FEMININA EM MULHERES MASTECTOMIZADAS
Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e
Serviço Social da Universidade Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, para a obtenção do titulo de Mestre em Serviço
Social. Área de concentração: Serviço Social: Trabalho e
Sociedade
Orientadora: Prof.ª Dra. Eliana Amabile Dancini.
FRANCA
2008
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Almeida, Adriana Regina de
A (re)construção da identidade/diversidade feminina em
mulheres mastectomizadas / Adriana Regina de Almeida.
–Franca: UNESP, 2008
Dissertação – Mestrado – Serviço Social – Faculdade de
História, Direito e Serviço Social – UNESP.
1. Serviço Social – Saúde – Câncer de mama. 2. Mulher –
Imaginário – Corpo feminino.
CDD – 362.1994
ADRIANA REGINA DE ALMEIDA
A (RE) CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE/ DIVERSIDADE
FEMININA EM MULHERES MASTECTOMIZADAS
Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para a obtenção do título de Mestre em
Serviço Social
. Área de concentração: Serviço Social: Trabalho e Sociedade.
BANCA EXAMINADORA
Presidente: ___________________________________________________________
Profa. Dra. Eliana Amabile Dancini
1 ª Examinadora: ______________________________________________________
2 ª Examinadora: ______________________________________________________
Franca, ____ de _______________ de 2008.
Dedico este trabalho ao meu eterno amor e incentivador,
Wagner, e à minha filha, Anna Lívia, que acompanhou
bem de perto boa parte desta trajetória como um
verdadeiro anjo da guarda. Vocês são especiais.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Maria Aparecida, que sempre me incentivou e amparou, além
de ser minha referência de mulher batalhadora.
À coordenação da pós-graduação da UNESP Franca e à Gigi, que me
auxiliaram nos momentos mais difíceis.
À Abrapec que, ao abrir as portas da instituição, possibilitou o
desenvolvimento de um projeto de trabalho.
À Unimed Franca e a Dra. Rita Fontes, Coordenadora do Departamento de
Medicina Preventiva, que possibilitaram a realização desta dissertação.
À Tânia Águila pelos conselhos e o aconchego de um ombro amigo nos
momentos mais angustiantes.
À minha orientadora, Prof.ª Dra. Eliana Amábile Dancini.
Em especial a todas as mulheres que ofereceram suas vidas para a
construção deste trabalho.
Oquesabesfazeragora.Veiotudode
nossashoras.Eunãominto,eunãosou
assim.
Ninguémsabiaeninguémviuqueeu
estavaaoteuladoentão.
Soufera,soubicho,souanjoesoumulher.
Souminhamãeeminhafilha,minhairmã,
minhamenina.
Massouminha,
minha.
Enãodequemquiser.
Soudeus,tuadeusa,meuamor.
Algumacoisaaconteceu.
Doventrenasceumnovocoração.
RenatoRusso(partedaletradamúsica:
dejulho)
Fonte: BBC Brasil. Disponível em: <www.cfnavarra.es/.../textos/vol20/imag3/11.jpg>. Acesso em: 15 abr. 2008.
ALMEIDA, A. R. A (re) construção da identidade/ diversidade feminina em mulheres
mastectomizadas. 2008. Dissertação (mestrado em Serviço Social) – Faculdade de Direito,
História e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca.
RESUMO
A historicidade inscrita no corpo, tanto no que diz respeito a sua estrutura orgânica como as
interações com a cultura na qual o ser humano se insere, faz do seio um membro com
princípio organizador de experiências importantes em muitos momentos da vida de uma
mulher, pois o mesmo está permeado por elementos simbólicos em relação à maternidade,
sexualidade e a sensualidade. Neste contexto, quando o desfecho do câncer de mama é a
retirada desse membro, mesmo que não seja total, pode ocorre uma reordenação da
identidade/diversidade feminina com seus atributos. Assim, objetivou-se investigar, através de
uma abordagem qualitativa de pesquisa em saúde, o processo de construção de expectativas e
estratégias propiciadoras de novas formas de ser e de estar no mundo na visão de cinco
mulheres com idade entre 43 e 76 anos, que participavam de um grupo de apoio psicossocial
para mulheres mastectomizadas conveniadas a uma cooperativa médica na cidade de Franca.
Tencionou-se ainda perscrutar sobre a relação saúde/vida e doença/morte; sexualidade/sexo e
a representação e o imaginário do corpo. A partir da análise do conteúdo das falas das
entrevistadas e dos registros no diário de campo foi possível encontrar eixos temáticos que
orientaram nossas discussões. Os resultados indicaram que o fato da possibilidade de “cura”
do câncer, estritamente associado à morte, já representa um ganho numa trajetória de vida
marcada pela dor, sofrimento e angústias pelas incertezas e acasos do hoje. Os prejuízos
emocionais, sociais, biológicos, financeiros e físicos, acarretando insatisfações com a
condição de terem tido câncer, vão além do fato de esteticamente não se sentirem em
consonância com o imaginário por evidenciar a dependência do outro e a deficiência de um
corpo que, por um período da vida, foi percebido com a potencialidade do que era concebido
como normal. Talvez, tentar buscar re-encantamentos, dentro do que é possível, represente
uma importante estratégia quando se vivencia situações limites que ameaçam a própria
existência.
Palavras-chave: saúde; câncer de mama; feminino; corpo imaginário.
ALMEIDA, A. R. THE (re) construction of the identity / feminine diversity in women
mastectomized. 2008. Dissertação (mestrado em Serviço Social) – Faculdade de Direito,
História e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca.
ABSTRACT
The historicity registered in the body, so in what he tells respect his organic structure as the
interactions with the culture in the which the human being is inserted, does of the breast a
member with organizing principle of important experiences in many moments of a woman's
life, because the same is permeated by symbolic elements in relation to the maternity,
sexuality and the sensuality. In this context, when the outcome of the breast cancer is the
removal of that member, even if is not total, it can happens a realignment of the
identity/feminine diversity with their attributes. So, the objective was to investigate, through a
qualitative approach of research in health, the process of construction of propitiating
expectations and strategies of new ways of being and being in the world in the five women's
vision with age among 43 and 76 years, that participated in a group of psychosocial support
for mastectomized women convened to a medical cooperative in the city of Franca. It was still
intended to search about the relationship health/life and disease/death; sexuality/sex and the
representation and the imaginary of the body. Starting from the analysis of the content of the
interviewees' speeches and of the registrations in the field diary was possible to find thematic
axes that guided our discussions. The results indicated that the fact of the possibility of "cure"
of the cancer, strictly associate to the death, already represents a gain in a life trajectory
marked by the pain, suffering and anguishes, for the uncertainties and chances of the today.
The damages emotional, social, biological, financial and physical, resulting in dissatisfactions
with the condition of they have had cancer, are going besides the fact of esthetically they don't
feel in consonance with the imaginary of a feminine body and much less with the patterns
built socially, because the physical and visible limitations of the arm, close to the affected
breast, cause very more suffering, for evidencing the dependence of the other and the
deficiency of a body that, for a period of the life, was perceived with the potentiality of that
conceived as normal. Maybe, to try to look for reenchantments, inside of the possible,
represent an important strategy when it is lived situations limits that threaten the own
existence.
Keywords: health; breast cancer; feminine; imaginary body.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................
09
CAPÍTULO 1 EM TEMPO DE TRANSFORMAÇÃO: uma reflexão sobre
imagens e representações da neoplasia de mama ............................
23
1.1 Sobre o organismo humano e o “ser-máquina” ...................................................
27
1.2 Sobre o câncer de mama ........................................................................................
30
1.3 Sobre o processo saúde/doença ...............................................................................
49
CAPÍTULO 2 AS INTERFACES DO CORPO FEMININO IMAGINADO E
DO CORPO REVELADO .................................................................
58
2.1 Sobre o corpo na constituição do sujeito ..............................................................
60
2.2 Sobre a indispensável imagem estética da forma do corpo feminino ................
70
2.3 Sobre a sexualidade do corpo feminino ................................................................
81
CAPÍTULO 3 IDENTIDADE/DIVERSIDADE DO SER MULHER: uma
história de ambigüidades e sentimentos ...........................................
91
3.1 A identidade/diversidade do ser ............................................................................
94
3.2 O ser mulher e os papéis sociais ............................................................................
109
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................
123
REFERÊNCIAS ............................................................................................................
128
APÊNDICE
APÊNDICE A - ROTEIRO DE ENTREVISTA........................................................ 134
ANEXO
ANEXO A – AUTORIZAÇÃO DO COMITÊ DE ÉTICA DA UNIMED............... 140
INTRODUÇÃO
Introdução 10
Esta é uma pesquisa que tem por centralidade as histórias singulares de mulheres
que se esmeram na arte de usurpar cada sobro de vida, cada etapa a ser vencida na busca pela
sobrevivência. Historiadoras e artífices vitoriosas de cada instante, elas mantém a vida como
conquista individual e coletiva sob a atmosfera da incerteza. Assim, a complexidade da
condição humana assume proporções específicas para quem foi duplamente vitimizada: por
um câncer de mama e por uma mastectomia radical.
Gestar e dar a luz a outros, a novos “traços identidários” ao reorganizar suas
identidades/diversidades, em contextos diferenciados, com outras vigas de sustentação e
continuidade da vida individual e dos laços de pertença, nem sempre garante condições
mínimas à vida, na sua polidimensionalidade, com necessidades de fazer e (re)fazer de si, do
mundo e das perspectivas de cidadania possíveis.
A opção por uma temática de pesquisa, âncora de um trabalho escrito cujo
propósito é a construção de uma “Ciência com Consciência” a ser apresentada na forma de
dissertação, traduz uma etapa importante do processo científico envolvido por conter toda
uma complexidade e as inquietações do pesquisador. Além disso, não representa a etapa mais
mecânica e objetiva a ser realizada, considerando que os termos do tema proposto já apontam
para uma postura teórica que exige uma reordenação do conhecimento, outra práxis para uma
história de vida, para uma leitura de mundo que ultrapasse os valores da modernidade.
O tema apresentado contém uma dimensão que chama para o presente, uma
estrutura de armação que diz das feições específicas de pessoas, coisas, acontecimentos,
emergências que não ignoram o contexto de que estamos vivendo numa sociedade
hipercomplexa, que exige uma intervenção complexa que leva em conta a diversidade, a
polidimensionalidade do vivido/encenado, o uno-múltiplo dos protagonistas, aparentemente
vestindo e incorporando a dualidade de autores/atores, público expectador/testemunha,
incorporando o global, o local, a mundialidade reordenada. Dessa forma, o tema escolhido,
como também suas justificativas, realiza os princípios hologramáticos e dialógicos, quando o
aporte teórico/epistemológico diz respeito ao Estudo da Complexidade, ao expor
acontecimentos de histórias de vida que são parte constituinte de uma história maior quando a
Introdução 11
relacionamos ao tempo e espaço de uma sociedade que, ao mesmo tempo, ajudará compor as
historicidades dessas vidas, sempre numa relação dialógica na qual os elementos
aparentemente antagônicos tornam-se indissociáveis e indispensáveis para a compreensão da
realidade que está sendo analisada.
Assim, as justificativas mencionadas iniciam de um ato totalmente complexo, por
envolver maneira de ser, de pensar e angústias perpassadas por momentos de recusa de uma
existência, enquanto filha que busca no cotidiano, elementos capazes de direcionar a
construção de um eu que nasceu da morte real/simbólica do outro, ou seja, da morte da
imagem paterna que simbolicamente constitui a concepção de família no imaginário social em
uma ordem burguesa. Convivendo com o diferente e não querendo ser eu o diferente, embora
tendo consciência dos inúmeros semelhantes a mim, cresci numa família monoparental
desejando uma patriarcal, tendo em vista que sou parte de uma sociedade culturalmente
masculinizada e cujos resquícios da organização burguesa de família estavam presentes no
processo educacional no qual estava inserida. Esse embate permitiu crescer a afinidade com a
questão do que identifica/diferencia o ser feminino do ser masculino numa ordem societária
que, em diversos momentos históricos, reservou às mulheres o papel simbólico de
coadjuvantes numa relação nutrida por diversos estranhamentos com o homem.
Repensando a questão, percebi que o seio sintetizava para mim a forma de um
corpo feminino, objeto de desejo, representante do dom da potência materna e da sensualidade
de um órgão sexual especialmente sensível a carícias promotoras de prazer. Além disso, como
apontam estudos da psicanálise, o seio representa o primeiro objeto de amor e de relação do
ser humano, no momento em que o bebe ainda se percebe como extensão do corpo da mãe
numa relação simbiótica. A partir desta relação com a mãe, a criança terá muitas
oportunidades e situações para abrir uma gama de outras relações, incluindo aquelas com o
seu próprio corpo e a sua história.
Pensar no valor simbólico do seio, num contexto de sociedade em que o corpo e
suas formas exuberantes tornam-se objeto de consumo, considerando os inúmeros recursos
tecnológicos que a indústria da estética disponibiliza para a satisfação do desejo da bela forma
corporal, representa um desafio, principalmente se associarmos a esta questão a complexidade
da saúde/doença, vida/morte. Assim, a minha vivência profissional com pacientes
convalescentes, muitas vezes em fase terminal, atendidos pelo serviço de assistência
domiciliar de uma cooperativa médica na cidade de Franca, despertou em mim a necessidade
Introdução 12
de refletir sobre a reconstrução da identidade/diversidade da mulher a partir de um dos traços
fundantes da identificação do corpo feminino – o seio ou mama – e que foi acometida pelo
câncer neste órgão que, nas fêmeas das diversas espécies de animais, é mais desenvolvido do
que no macho.
A proposta é refletir sobre o processo de construção de expectativas e de
estratégias das mulheres submetidas à mastectomia radical visando à construção e
reconstrução das suas identidades/diversidade feminina, propiciadora de novas formas de ser
e estar no mundo por talvez enfrentarem, em algum momento, questionamentos em relação a
desfiguração do corpo feminino ao conviver com o diferente, talvez não querendo sê-lo,
embora tendo consciência dos inúmeros semelhantes. Especificamente procurou-se perscrutar
sobre os traços atribuídos ao feminino; a idéia de morte/vida, sexualidade/sexo e a
representação e o imaginário do corpo em virtude da ocorrência do câncer e quais as
influências nas relações estabelecidas com o meio no qual os sujeitos estão inseridos.
Assim, o nosso pressuposto era de que a perspectiva da “cultuação” de uma
determinada estética corporal, que a modernidade introduziu de forma reducionista em nossa
cultura na socialização do corpo, compromete tanto a auto-imagem dos sujeitos como também
suas inter-relações com o meio. Denominamos de conceito reducionista de estética a idéia
única de que a perfeição da forma corporal está estritamente relacionada com padrões de
beleza valorizados pelo contexto social de uma determinada época e, para a pós-modernidade,
a idéia de estética, além de criar belezas diversas, segundo Maffesoli (1996), também ajuda a
tolerar a carga insuportável da realidade e a enfrentar a crueldade do mundo, uma vez que se
refere ao prazer do sentido, ao jogo das formas, com força da natureza, a inclusão do fútil,
tudo isso fruto da complexificação da sociedade.
Morin (2005d) propõe que a estética situa-se na confluência do mítico e do
racional, envolvendo o universo real e o imaginário. Tudo o que é estético confere prazer
(hedonismo) e nos liga aos outros. Ao mesmo tempo em que pode provocar sentimentos de
tristeza, sofrimento e lágrimas pode, tamm, estimular as potências inconscientes de empatia
no ser humano, tornando-o, de maneira provisória, melhores, compreensivos, em
concordância com aqueles que nossa desumanidade despreza. Assim, procuramos traduzir os
aspectos da visão de mundo da mulher que enfrenta uma das doenças mais temidas da
atualidade e que foram submetidas a um tratamento também temido por significar mudanças
profundas em sua auto-imagem e constituição enquanto pessoa.
Introdução 13
O câncer é uma doença sobrecarregada de significados talvez por estar associada à
dor, à morte, à culpa, à incerteza e a medos externados pelas mulheres que pude conviver no
cotidiano profissional. Atualmente, segundo dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA),
são conhecidos cerca de 802 tipos de câncer, o de mama representando o segundo tipo mais
freqüente no mundo e o primeiro entre as mulheres. No Brasil, segundo dados do Ministério
da Saúde, o câncer de mama representa uma das primeiras causas de óbitos em mulheres,
sendo superado, apenas, pelas mortes provocadas por doenças cardiovasculares e causas
externas (acidentes de trânsito e violência urbana). Este fato situa o câncer de mama como a
terceira causa responsável pelo índice de grande mortalidade em mulheres no país, o que
indica uma mudança no perfil de mortalidade, em que as doenças crônico-degenerativas,
comparadas às doenças infecto-contagiosas que causavam muitas mortes até a década de 80,
apresentam uma alta prevalência entre a população brasileira.
O Instituto Nacional do Câncer (INCA), órgão do Ministério da Saúde
responsável, entre outras ações, pela prevenção dos mais variados tipos de câncer, desenvolve
trabalhos voltados para a detecção precoce da doença que, no caso do câncer de mama,
concentram-se em três ações de saúde consideradas fundamentais: a) auto-exame das mamas,
AEM, realizado de forma adequada; b) exame clínico das mamas, ECM, feito por um
profissional especializado e; c) mamografia. Essas ações podem contribuir para que, no
surgimento de um tumor maligno, o tratamento apropriado não requeira uma intervenção
cirúrgica agressiva para o corpo feminino.
Metáforas construídas e partilhadas socialmente, ao longo da história, a respeito
do câncer contribuem para que essa doença ainda hoje seja vista como uma sentença de
morte. As representações do câncer remetem a uma doença cruel, corrosiva, contagiosa,
estigmatizada e degradante, que consome o indivíduo aos poucos. O diagnóstico do câncer é
visto como uma ameaça para a paciente e sua família em todas as etapas da vida, podendo
ocasionar alteração na dinâmica familiar por ocasião da doença, tendo em vista que vários
medos começam a fazer parte do cotidiano. Talvez a primeira preocupação dos sujeitos
envolvidos após receber o diagnóstico é com a sobrevivência, em seguida surgem as
preocupações com o tratamento e condições econômicas para realizá-lo e por fim há a
preocupação com a mutilação, a desfiguração e a recorrência da doença. Neste universo de
incertezas, procurar compreender como se processa todo esse sentimento, que representa um
importante elemento para o entendimento da reformulação da “visão de vida”, tornar-se um
Introdução 14
importante passo para a percepção das estratégias cognitivas, afetivas e comportamentais para
enfrentar as exigências impostas pela doença, tendo em vista que a incerteza provoca uma
auto-organização e uma re-organização do individuo/sujeito num mundo de múltiplas
possibilidades, que são vistas como resultados de várias respostas a um mesmo fenômeno.
Importante ressaltar, que a presente pesquisa não tem o propósito de discutir e
refletir os efeitos e as causas do câncer, mas dar “corporiedade” às percepções da realidade
por meio do olhar dos sujeitos de pesquisa, a experiência sensível que ocorre na vivência,
reconhecendo, além dos elementos objetivos, os subjetivos como parte integrante das histórias
humanas.
Maffesoli (1998, p. 182) diz que: “Para perceber a especificidade e a novidade de
um fenômeno social convém mais referir-se a vivência daqueles que são seus protagonistas de
base, do que as teorias codificadas que indicam, a priori, o que esse fenômeno é ou deve ser”.
O nosso trabalho, de natureza qualitativa, procura trazer como alicerce o
desenvolvimento de uma ciência com consciência, no dizer de Morin (2002), de uma
racionalidade sensível, como pensa Maffesoli (1998), de uma reforma do pensamento, do
conhecimento, do ensino em direção à articulação, à dialógica entre as várias áreas do
conhecimento moderno e entre a ciência moderna, as tecnociências, saberes não acadêmicos,
crenças, mitos, religiosidade e alquimias, tendo como pensador, de estatuto maior dos Estudos
da Complexidade, Edgar Morin, um dos grandes intelectuais do século XX e inicio do século
XXI, reconhecido internacionalmente.
A Complexidade representa um desafio, uma vez que coloca em cheque um
modelo de racionalidade baseado na simplificação e no reducionismo de uma realidade que é
complexa e traz em seu interior a idéia de acaso, de incertezas, de ruído como elementos
significativos que fazem parte do curso da história de toda humanidade. Reconhece que o
sujeito humano é parte integrante de uma totalidade, mas traz essa totalidade dentro de si,
atendendo às diversidades individuais e sociais. Esse pensamento concebe ainda a relação de
interdependência e de complementaridade das dimensões físicas, químicas, biológicas,
psicológicas, sociais, mitológicas, econômica, históricas de um homo que não é apenas faber,
sapiens, economicus, mas também demens, ludens, daimon, consumans (Morin, 2005a), ou
seja, um homem racionalmente inteligente capaz de produzir produtos e criar meios para
satisfazer suas necessidades biológicas, sociais e culturais atribuindo valor de troca a tudo que
Introdução 15
está sob o seu domínio ou que acredita que esteja. Por outro lado, de forma complementar,
esse mesmo homem vive não apenas para sobreviver, mas também para viver irracionalmente
uma plenitude que se realiza a uma temperatura de autodestruição, dilapidadora e dissipativa,
norteada pela máxima de que “os fins justificam os meios”, desconsiderando, muitas vezes,
que as necessidades e as relações são interdependentes e retroativas quando visualizamos a
idéia de um ecossistema. Assim, a racionalidade, a afetividade, o imaginário, a mitologia, a
neurose, a loucura e a criatividade humana transitam num circuito bipolarizado, em que
sapiens-demens dialogicamente é força criadora, mesmo sendo destruidora, pois está
alimentando-se do princípio de regeneração.
Com este aporte teórico, temos a necessidade de apresentar sucintamente o que
alguns pensadores da complexidade, como Morin, Pena-Veja, Carvalho, entendem por teoria,
método, epistemologia e metodologia, considerando que estamos vivendo uma realidade
hipercomplexa, que não comporta uma leitura fundada no paradigma cartesiano e mecanicista.
A teoria permite o conhecimento, não representa o ponto de chegada, mas a
possibilidade de uma partida, a possibilidade de tratar um problema. Teoria e método mantêm
uma relação de recíproca inseparabilidade, ou seja, o método gerado por uma teoria reagirá
sobre a mesma para regenerá-la.
Na perspectiva complexa, o método, para ser estabelecido, precisa de estratégia,
iniciativa, invenção, arte, e seu elemento identificador é uma prática de natureza subjetiva e
objetiva, concreta que leva em conta a presença do caos como um momento que pode ter uma
característica de generatividade paradigmática teoria que, por sua vez, regenera a sua
capacidade de reconstruir, de reordenar a realidade estudada. Deste ponto de vista, a teoria
não representa o fim do conhecimento, mas um meio/fim inscrito numa recorrência
permanente, enquanto isso, o método é considerado como caminho, ensaio e estratégia que
leva em conta alguns princípios que não estão fechados e que não são os únicos existentes na
realidade, ou seja, o método no pensamento complexo não surge como um instrumental
cognitivo invariável, posto inicialmente no projeto de pesquisa e que, obrigatoriamente, tem
que percorrer toda ela.
Segundo Morin e Moigne (2000), complexus, de origem latina, significa aquilo
que é tecido em conjunto. Neste sentido, o propósito do pensamento complexo é reunir
(contextualizar e globalizar), revelar o desafio da incerteza e para isso o autor descreve sete
Introdução 16
princípios guias para pensar a complexidade e que são complementares e interdependentes: a
relação sistêmica por ligar o conhecimento das partes ao conhecimento do todo e vice-versa,
considerando sempre que o sistema é aberto/fechado, mantendo a lógica de uma ordem que
traz consigo a desordem, o caos que a reorganiza, num circuito recorrente (segundo
princípio), em que a causa age sobre o efeito e o efeito age sobre a causa, dando uma
autonomia organizacional ao sistema. Para manter sua autonomia, qualquer organização
necessita da abertura aos ecossistemas nutrindo-se dele ao mesmo tempo em que o
transforma, ou seja, para assegurar autoprodução a organização necessita estar
ininterruptamente em comunicação com outras organizações, que formam um sistema maior,
capazes de garantir a sua regeneração constituindo-se no princípio de autonomia/dependência
(auto-ego organização). Este princípio pode ser exemplificado pelos seres humanos que
desenvolvem sua autonomia dependendo da uma cultura inserida numa sociedade que
depende, por sua vez, do meio ambiente geoecológico. O quarto princípio refere-se à questão
de que não somente a parte está no todo, mas que o todo está na parte de forma hologramática
e numa relação dialógica (quinto princípio), ou seja, mesmo que dois elementos sejam
antagônicos e que, aparentemente, deveriam se repelir acabam sendo complementares para a
compreensão da realidade que é complexa. A relação dialógica permite assumir racionalmente
a associação de ações contraditórias para conceber um universo de fenômenos complexos. O
sexto princípio diz respeito à existência de um círculo gerador no qual os produtos e os efeitos
são eles próprios produtores e causadores daquilo que os produz num sentido recursivo como,
por exemplo, o ser humano que produz a sociedade em e pelas suas interações e a sociedade
produz a humanidade desses seres, trazendo-lhes a linguagem e a cultura. Por fim, o princípio
da reintrodução do conhecimento em que todo o conhecimento é uma reconstrução por um
espírito/cérebro numa cultura e num tempo determinado, portanto, histórico.
Na perspectiva do pensamento complexo, método e metodologia não estão
colocados como sinônimos, pois este último significa um conjunto de procedimentos para o
levantamento de dados empíricos, decorrentes das mais diferentes fontes, além de ser um tipo
de ordenação dos dados obtidos da própria estrutura do corpo da dissertação. Embora a
metodologia tenha um caráter predominantemente programático, isto não significa dizer que,
ao longo do processo de pesquisa de campo, o pesquisador não tenha que recorrer a outros
procedimentos, ou seja, o pesquisador é sempre um sujeito pensante, capaz de produzir
estratégias diante do aleatório, da incerteza e do erro.
Introdução 17
Após a pesquisa bibliográfica, os procedimentos utilizados para levantar os dados
empíricos foram o diário de campo e a entrevista semi-estruturada com mulheres submetidas à
mastectomia e que realizavam drenagem linfática no braço próximo a mama que sofreu
intervenção cirúrgica e agora precisam fazer a prevenção e/ou tratamento de linfedema, uma
das principais complicações decorrente do tratamento desse tipo de câncer. Este serviço,
denominado “Uniama” era oferecido por uma cooperativa médica da cidade de Franca, sendo
reestruturado no segundo semestre do ano de 2006 com o objetivo de ampliar a assistência a
essas pacientes, tendo em vista que, além da drenagem linfática, as mesmas também tinham a
oportunidade de participarem de oficinas de terapia ocupacional; atividade física especifica
para o fortalecimento do membro superior; aulas de Yoga e Tai Chí; apoio psicossocial e
orientações de nutrição, enfermagem e fisioterapia. Mas, antes da escolha desses sujeitos, a
proposta era realizar a pesquisa junto a mulheres atendidas pela Abrapec (Associação
Brasileira de Assistência às Pessoas com Câncer), uma Organização Não Governamental
(ONG), criada em abril de 2002, com unidades em algumas cidades nos estados de São Paulo,
Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Paraná e Distrito Federal. A missão da instituição era dar
apoio às pessoas com câncer para enfrentarem os problemas psico-sócio-econômicos
advindos com a doença, com o objetivo de promover assistência material para famílias de
baixa renda, orientações jurídicas para obtenção de benefícios, além da promoção de
campanhas educativas para a prevenção do câncer e terapias alternativas e complementares
para a melhora da qualidade de vida das pessoas atendidas, que procuravam voluntariamente a
instituição ou eram encaminhadas pelos hospitais onde realizavam o tratamento.
Dependendo das condições de cada unidade, a Abrapec oferecia serviços como
psicologia, assistência jurídica, nutricional, fonoaudiologia, cromoterapia, grupos de apoio,
terapia ocupacional, passeios, entre outros. Para receber esses serviços, a pessoa com câncer
ou familiares passavam pelo atendimento com a Assistente Social que, após a triagem e
cadastramento, fazia os encaminhamentos necessários. Os recursos para manter a instituição
advinham de doações por meio de telemarketing, campanhas, depósitos bancários, incentivos
fiscais oferecidos as empresas doadoras e pela parceria entre o Poder Público e entidades
qualificadas como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), de acordo
com a Lei n°. 9.790/99. A unidade de Franca foi criada em 2005 e oferecia, além da
assistência social, os serviços de assistência jurídica, atendimento grupal e individual de
psicologia, atendimento de Reiki, oficinas de arte, palestras informativas sobre assuntos
relacionados com saúde e qualidade de vida e eventos em datas comemorativas. As diretrizes
Introdução 18
gerenciais da instituição ficavam a cargo da gerente regional da unidade de Ribeirão Preto que
vinha a Franca uma vez por semana para orientar a assistente social que era a responsável pela
unidade.
A opção por esta instituição ocorreu pela existência de um trabalho estruturado de
apoio a mulheres mastectomizadas que, desde o início do ano de 2006, participavam do grupo
de apoio psicológico, coordenado por uma voluntaria da área, além de se reunirem uma vez
por semana com a assistente social da instituição, com o objetivo de refletirem sobre
acontecimentos diversos do cotidiano que podem interferir no processo de tratamento e
recuperação da doença. Todas as pessoas atendidas realizavam tratamento no hospital do
câncer, procurando a Abrapec para obter auxilio material com suprimentos necessários como
medicação, dietas alimentares, fraldas, soros etc. As entrevistas com familiares e/ou pacientes
eram realizadas pela Assistente Social que, além de fazer os encaminhamentos necessários,
apresentava os serviços alternativos oferecidos. Assim, as pacientes com câncer de mama
eram convidadas a participar das reuniões semanais, que ocorriam logo após o almoço, de
maneira informal e acabavam por reproduzir um encontro entre amigos que procuram estar
juntos para dividir as angústias com problemas que, muitas vezes, são semelhantes.
O primeiro contato com a Abrapec ocorreu no mês de julho de 2006 e, após a
permissão da gerente responsável pela unidade de Franca para a realização da pesquisa,
passamos a freqüentar as reuniões coordenadas pela Assistente Social em caráter de
observação, registrando esses momentos em diário de campo. Num período de quatro meses
vivenciamos situações intensas de aprendizado que possibilitaram a elaboração da proposta
para a implementação de um serviço de apoio psicossocial no local de trabalho da
pesquisadora, fato que mais tarde seria de extrema importância para a continuidade da
presente pesquisa.
As primeiras dificuldades encontradas, dizem respeito às normas institucionais
que inviabilizaram o acesso a prontuários dos pacientes com câncer de mama, além de
exigirem que as entrevistas fossem realizadas na própria instituição. Posteriormente, nos
deparamos com a angústia de ver o universo de pesquisa ameaçado de extinção, tendo em
vista que denúncias de desvios de verba promovidas pela diretoria nacional colocaram a
Abrapec sob investigação do Ministério Público. A unidade de Franca foi particularmente
prejudicada, pois ex-funcionários do telemarketing, responsáveis pela arrecadação de
doações, procuraram a imprensa para denunciar desvios de verbas na unidade. Tal fato, que
Introdução 19
ocorreu no final do mês de outubro, depreciou profundamente a credibilidade da instituição na
cidade e teve como desfecho o encerramento das atividades em dezembro do mesmo ano.
O acaso e o caos permitiram à pesquisadora enfrentar um novo desafio, ou seja,
encontrar outros sujeitos de pesquisa, tendo em vista que as entrevistas ainda não haviam sido
realizadas e não tínhamos como encontrá-los, pois a instituição era nosso único vinculo.
Nesse sentido, optou-se por realizar as entrevistas com as mulheres que participavam do
grupo de apoio psicossocial, coordenado pela pesquisadora juntamente com uma psicóloga,
em seu próprio local de trabalho. Considerou-se que os sujeitos até podem ser diferentes, com
condições socioeconômicas diferentes, mas com histórias de vida em relação à
identidade/diversidade feminina semelhantes.
No inicio de março de 2007, solicitamos ao Comitê de Ética da cooperativa
médica permissão para a realização da pesquisa, fato que foi aprovado ao final do mesmo mês
(Anexo A). Este período de espera, mergulhado na ansiedade de encontrar outros sujeitos para
as entrevistas, representou um momento de crescimento profissional em que cada dia que se
passava aumentava o vínculo, a segurança e a necessidade de estudar a temática escolhida.
Além disso, foi possível estruturar o trabalho do grupo de apoio em bases sólidas que nem
mesmo o afastamento, por motivo de saúde, da psicóloga, por um período de 40 dias,
desmotivou as pacientes que permaneceram assíduas nas reuniões semanas. O grupo era
aberto a novas participantes que procuravam o serviço da Uniama e, em média, participavam
nove pacientes das reuniões estruturadas de acordo com as necessidades que elas mesmas
apresentavam. Assim, refletíamos sobre a doença, a morte/vida, as dificuldades de enfrentar
um novo recomeço com perspectivas e necessidades diferentes, conflitos familiares,
redefinição de papéis sociais, dificuldades de relacionamentos interpessoais, limites físicos,
educação, benefícios sociais, meio ambiente, qualidade de vida, enfim assuntos que podem
causar sentimentos de medo, apreensão, incerteza, raiva, dor, angústia, emoções diversas que
a psicóloga procurava ajudar as pacientes entenderem. Com o registro desses momentos em
diário de campo, estruturamos as entrevistas que aconteceram no próprio local de trabalho da
pesquisadora, em horário marcado, mas com a possibilidade de um novo encontro individual,
caso fosse necessário. O critério para a definição dos sujeitos foi à realização da mastectomia
radical, que não tivesse feito a reconstrução da mama e que tivesse participado pelo menos de
dez reuniões do grupo de apoio psicossocial, tendo em vista a criação do vínculo e a
proximidade da pesquisadora com os sujeitos num trabalho que estava sendo realizado há seis
Introdução 20
meses, pois, segundo Minayo (1996), uma pesquisa qualitativa pressupõe uma postura de
abertura, flexibilidade, capacidade de observação e de interação do pesquisador com os atores
sociais envolvidos.
Colocamos para todo o grupo a realização da pesquisa, bem como seus objetivos
esclarecendo os critérios de escolha para as pessoas que seriam entrevistadas, e as mesmas
colocaram-se prontamente dispostas a colaborar. As entrevistas foram realizadas com cinco
mulheres, entre os meses de Maio e início de Junho, com a utilização de gravador,
previamente autorizado pelas pacientes, e as análises foram elaboradas a partir do conteúdo de
suas falas. Na caracterização do grupo de pesquisa omitimos os nomes dos sujeitos a fim de
preservar o sigilo destas pessoas e nos casos de citação de suas falas, usamos nomes de flores
e plantas para identificá-las. As perguntas da entrevista (Apêndice A) estavam subdivididas
em categorias que identificassem os sujeitos, a vida profissional, as formas de lazer, a visão
de mundo, a filosofia de vida, relacionamento interpessoal e a história com o câncer.
A utilização da entrevista, como um dos recursos privilegiados para o
levantamento de dados necessários a pesquisa, ocorreu porque a entrevista representa uma
fonte de informação de dados relativos às “falas, idéias, crenças, maneiras de atuar, conduta
ou comportamento presente ou futuro, razões conscientes inconscientes de determinadas
crenças, sentimentos, maneira de atuar ou comportamentos” (JAHODA apud MINAYO,
2004, p.108).
Importante colocar que esta dissertação teve seu prazo prolongado em virtude da
gravidez da pesquisadora e por outros problemas alheios a seu controle, como a licença
prêmio da orientadora. Destacamos ainda, que o estado gestacional representou um fator
precioso para a concretização deste trabalho, considerando que a sensibilidade a flor da pele
da pesquisadora possibilitou maior envolvimento com o tema escolhido por também significar
uma nova forma de ser no mundo, talvez não tão sofrido, cheio de marcas como para
mulheres vítimas de um câncer de mama, mas repleto de incertezas, medo do desconhecido e
angústias naturais de uma primeira gestação. Assim, pude dividir com os sujeitos da pesquisa,
mulheres que são mães e avós, o encantamento desse momento de transformação do meu
corpo, de transformação da minha própria identidade/diversidade, dando concretude a um
velho ditado popular que diz “ser mãe é padecer no paraíso”. E, como diz Maffesoli (1996),
cada pessoa, para existir, conta uma história para si e para o outro e sua composição, enquanto
sujeito, é contínua, pois identificamos, somos identificados e assim se realiza a metáfora do
Introdução 21
caleidoscópio, um matiz de forma e cores que, sob a ação de um movimento permanente, vai
fazendo, desfazendo e refazendo corporeidades diversas.
Especificamente para o Serviço Social, acreditamos que este estudo dispõe de
elementos capazes de subsidiar a intervenção deste profissional que apresenta no cotidiano de
sua prática o caráter educativo, trabalhando com a conscientização para o favorecimento da
autonomia do sujeito e sua (re)inserção no meio ambiente em que vive. Num contexto de
saúde/doença, vida/morte, esse caráter educativo necessita estar envolto de uma especial
sensibilidade para ser capaz de articular o relacionamento entre o homem e o espaço,
formatando as relações sociais de acordo com a (re)inserção de cada pessoa nos ambientes
que socialmente construídos. Considerando, ainda, que este profissional ao atuar no processo
de reabilitação do paciente numa equipe multiprofissional com Médicos, Psicólogo,
Enfermeiro, Fisioterapeuta, Terapeuta Ocupacional, Educador Físico, entre outros, poderá
contribuir com uma visão mais ampla da história de vida do mesmo, numa perspectiva de
humanização do tratamento.
Para o estudo da temática a que nos propusemos, sob a ótica do pensamento
complexo, houve a necessidade de identificar e traçar um perfil mínimo das categorias
teóricas que deram suporte à análise da realidade empírica. Neste sentido organizamos este
trabalho em três capítulos.
No primeiro capitulo, oferecemos alguns elementos para a construção inicial da
identidade/diversidade dos autores/atores deste trabalho cuja memória da história de vida
pode passar a ter como referencial o câncer e seus vários momentos de dor, sofrimento,
desencantamento, medo, exclusão, atos de rejeição e aceitação pelo outro e por si própria.
Lembranças dos dias, das horas, dos lugares em que a mulher pode ter sido obrigada a olhar
de frente para a doença, para a estrangeridade que seu corpo passa a carregar sob o princípio
da incerteza, sob o estado de alerta constante, sob o que pode e não pode fazer, falar, ter,
enfim, os interditos provocados pelo câncer.
No segundo capítulo, esboçamos os olhares sobre o corpo feminino; sobre a
feminilidade; sobre o seio extirpado por causa de um câncer que carrega uma violência capaz
de inibir, apagar, toda sua complexidade simbólica. Desconstrói a imagem, o imaginário, o
traço figurativo de uma identidade, talvez por ser uma cicatriz que nunca fecha e nem deixará
de doer com a mesma intensidade do início.
Introdução 22
No terceiro capítulo, abordamos o ser mulher que tem e faz escolhas; que encontra
alternativas, outros possíveis; que reage à destruição; que traça o seu próprio destino, enfim,
que (re)constrói a sua identidade/diversidade ao (re)afirmar seu papel no contexto em que
vive.
CAPITULO 1
EM TEMPO DE TRANSFORMAÇÃO: uma reflexão sobre imagens e representações
da neoplasia de mama
Em tempo de transformação 24
O nosso objetivo, neste capítulo, é primeiramente alinhavar um perfil inicial
1
, um
retrato sempre por fazer e refazer, de quem são as mulheres que constroem toda uma
simbólica, isto é, um conjunto de imagens e significados a respeito do câncer e quais são essas
imagens e representações sobre esse tipo de doença. Trabalharemos ainda com o contexto de
comoção que cerca o diagnóstico de doença ruim para a mulher e todas as pessoas que fazem
parte de seu cotidiano de relacionamento, talvez por oferecer o perigo de morte ao se colocar
diante do inesperado/esperado pior. Gostaríamos de chamar atenção que, neste capítulo,
estaremos incluindo algumas informações primárias técnico-científicas sobre o câncer.
Esclarecemos que o não aprofundamento da questão não compromete a qualidade do trabalho
e nem o atendimento dos objetivos geral e especifico, considerando que a proposta do nosso
trabalho é construir uma reflexão sobre o assunto a partir das vozes dos sujeitos atores/
autores da pesquisa.
Nossa primeira entrevistada foi Dona Rosa, uma mulher com 62 anos de idade,
esposa, avó e mãe de três filhos. Pessoa do lar, nunca trabalhou fora. Vive até hoje uma
relação de dependência, de tutela com o marido. Deparou com câncer de mama aos 56 anos
idade. Primeiro caso de uma família que tem, entre seus membros, um médico ginecologista.
Construindo um auto-retrato, Dona Rosa afirma que foi a única filha de uma família de seis
irmãos que não estudou para ter uma profissão. Constrói, com isto, toda uma justificativa para
o seu aprisionamento, em primeiro lugar, a figura do pai e ao ambiente doméstico,
posteriormente, a um simulacro da figura paterna autocrática: o marido. Contraditoriamente,
segundo o seu depoimento, ela, na sua época de moça, foi a primeira, numa cidade pequena, a
romper com uma norma extremamente rígida dentro dos padrões de feminilidade da época
que trazia por veste obrigatória a saia, o vestido. Afrontando os costumes incorpora ao seu
vestuário a calça comprida. Retirou o útero aos 38 anos e explica que foi por problemas de
aderência e pelo fato do ciclo menstrual durar quase o mês todo e, como não podia fazer uso
de hormônios por sofrer de enxaqueca, o médico propôs a retirada dessa identidade do
feminino da espécie. Ela relata que este fato ajudou a enfrentar as conseqüências da retirada

1
A opção por traçar apenas um perfil inicial das pessoas pesquisadas se deve ao fato de que o tempo previsto
para o mestrado não comporta história de vida, uma metodologia privilegiada quando se quer fazer um retrato
mais detalhado dos sujeitos. Esclarecemos que tal opção não compromete a caracterização dos sujeitos de
pesquisa, tendo em vista que traços primários de suas identificações foram contemplados.
Em tempo de transformação 25
da mama em relação à intimidade com seu marido. Falando sobre um trecho de sua história de
vida, dona Rosa destaca que a retirada do útero foi muito mais traumática para o marido do
que para ela, dentre os porquês está o fato de que a visão do feminino para o marido está
ligada à maternidade, ou seja, a funcionalidade da mulher como mulher parideira, enquanto
para Dona Rosa tanto o útero como o seio são traços identificadores do ser mulher. Realizou a
cirurgia e o tratamento na cidade de Franca.
Dona Margarida, outro personagem dessa dissertação, tem 54 anos, é esposa, avó
e mãe de duas filhas. Em maio de 2006 recebe o diagnóstico de câncer. Ao contrário da Dona
Rosa, trabalhou na indústria de calçado até aposentar e, depois disso, permaneceu na empresa
por mais sete anos. Posteriormente, trabalhou numa banca de pesponto até a descoberta da
doença. Vive com o marido, que sofre crises de epilepsia, e com uma das filhas. Advinda de
uma família socialmente humilde, no decorrer da vida, enfrentou a dupla jornada de trabalho
para educar as filhas e prover o lar, haja vista o problema do marido com o alcoolismo.
Segundo ela, quando tinha 13 anos ajudou a cuidar de uma tia (irmã de sua mãe) que teve
câncer de mama. Atribui o desconhecimento maior sobre a doença à sua origem simples de
família criada na zona rural. Realizou a cirurgia e o tratamento com quimioterapia na cidade
de Franca.
Dona Jasmim, mulher com 76 anos de idade, esposa, avó e mãe de dois filhos.
Teve câncer de mama há 11 anos e na ocasião realizou o tratamento na cidade de Barretos,
relatando as dificuldades de viajar diariamente em ambulância ou carro comum para realizar
25 radioterapias. Depois vieram seis sessões com quimioterapia, agora realizada na Santa
Casa de Franca, onde também fez todos os curativos. Dedicou a vida para educar os filhos e
ganhava algum dinheiro fazendo quitanda para vender, embora o marido representasse a
figura provedora do lar. Recentemente comemorou as bodas de ouro e se orgulha muito por
isso. Ela relata que um dos filhos queria levá-la para a cidade de Ribeirão Preto, mas por
aconselhamento do seu médico em Franca, decidiu ir mesmo para Barretos. No inicio deste
ano, começou novas sessões com quimioterapia, por causa de uma metástase, que neste caso
provocou a queda de todos os pelos do corpo. Para conter o inchaço do braço direito, Dona
Jasmim faz uso da faixa compressora em todo o braço há algum tempo. Sua maior esperança
depois de controlar a manifestação da doença é que seu cabelo volte a crescer. Relata que foi
o primeiro caso de câncer de mama na família e que agora uma prima também apresentou o
problema.
Em tempo de transformação 26
Dona Angélica, nossa quarta entrevistada tem 72 anos de idade. Viúva, avó e mãe
de seis filhos. Teve câncer de mama em dezembro de 2001, sendo também o primeiro caso na
família. Dedicou a vida para educar os filhos e cuidar da sogra com quem conviveu por mais
de 25 anos. Relata que sua maior perda foi a morte do marido, pouco tempo depois que
realizou a cirurgia e o tratamento que não precisou de sessões de radioterapia e nem de
quimioterapia. Diz que foram 48 anos de pura felicidade, dedicação e apoio retratado na
forma delicada de designarem um ao outro como sendo “pedacinho do céu”. Coloca, ainda,
que a maior dificuldade da doença foi ter que revelar para a família, principalmente por causa
do marido que demonstrava um grande medo de sua morte. Nunca trabalhou para prover
materialmente a família e hoje vive com uma das filhas e o genro.
A última entrevistada foi Dona Gardênia, mulher com 43 anos de idade, esposa e
mãe de três filhos com idades entre a infância e a adolescência. Teve câncer de mama em
novembro de 2006, no mês seguinte já havia realizado a cirurgia na cidade de Franca, onde
também faz tratamento com quimioterapia. São oito sessões, e a sétima foi realizada no inicio
do mês de junho. Relata que no princípio, seu filho mais velho manifestou o desejo de ir para
a cidade de Ribeirão Preto para realizar o tratamento, mas logo essa idéia foi abortada por
acreditarem não haver necessidade desse deslocamento. Passa a maior parte da semana com
os filhos, pois o marido trabalha em outra cidade. Para ter independência financeira fazia
quitanda para vender, fato que se tornou um pouco difícil por causa das limitações com o
braço, após a cirurgia. Ela relata que este é seu maior medo, pois sem o seio se vive, mas sem
o braço não. Achou mais confortável ser acompanhada por uma sobrinha nos cuidados
necessários do pós- cirúrgico. Segundo ela, também foi o primeiro caso na família.
Importante ressaltar que a maioria das mulheres entrevistadas disse que o seu tipo
de câncer foi único e muito sério, o que nos faz pensar no tão grande sofrimento que a questão
suscita na história de vida de cada pessoa que a enfrenta. Por outro lado, essa constatação
desperta nosso interesse para ver mais de perto a dimensão de interdito que envolve o câncer,
uma doença degenerativa cercada por muitos mitos construídos historicamente.
Em tempo de transformação 27
1.1 Sobre o organismo humano e o “ser-máquina”
A gente tem o organismo uma propensão a ter mais câncer do que uma pessoa que
[silêncio], né. Por que tem pessoas que tem dois tipos de câncer, tem uma colega da
minha filha ela teve o câncer de mama e daí, não sei se dois anos, deu no cérebro
totalmente diferente, não era metástase, ela ficou em vida vegetativa três anos não
sei se já morreu (Rosa).
Pensar a desarmonia, o desarranjo, a desordem no organismo constituído por
trilhões de células responsáveis pela formação, crescimento e regeneração de tecidos e órgãos
do corpo poderia ser o mesmo que pensar num sistema maquinal, com engrenagens que vão
se ajustando para proporcionar o pleno funcionamento das partes e assim manter o todo em
atividade dinâmica talvez por um período que denominamos “vida útil”. Neste sentido,
quando esse organismo apresenta algum arranjo processual diferente do habitual pode ocorrer
à associação de uma pré-disponibilidade para a recorrência de um problema, que tenha
alterado a harmonia de seu funcionamento num contexto em que a concepção de vida/morte
faz-se presente a todo instante, em todo lugar, convidando cada um para que se adentre nas
cavernas até então inexploradas do eu a fim de encarar o desconhecido: “acho assim veio
vamos enfrentar, não é?” (Angélica), e reunir sentidos para sobreviver um momento
carregado de dores e incertezas.
Para Morin (2002), a vida, desde o ser unicelular aos pluricelulares complexos
como o homem, comporta a idéia de máquina quando a definimos como motor térmico e
químico produtor de todos os materiais, todos os órgãos, todos os dispositivos necessários
para manter a organização da unidade de um ser ao mesmo tempo produtor, reprodutor e auto-
reprodutor. Assim, a vida deve ser concebida em termos biológicos, físicos e químicos como
um processo polimaquinal que produz seres-máquinas. Diz ele (2002, p. 449):
O ser humano não é físico por seu corpo. Ele é físico por seu ser. Seu ser biológico
é um sistema físico. Somos supersistemas, quer dizer que produzimos sem parar
emergências. Somos supersistemas abertos, quer dizer que nenhum ser vivo tem
mais necessidades, desejos e expectativas do que nós. Somos sistemas fechados ao
extremo, nenhum é tão cercado em sua singularidade incomunicável. Somos
máquinas físicas. Nosso ser biológico é uma máquina térmica. Este ser-máquina é
ele próprio um momento em uma megamáquina que se chama sociedade e um
instante num ciclo maquinal que se chama espécie humana.
Em tempo de transformação 28
O ser-máquina humano, com sensibilidades e crenças culturais diversas, produz e
acrescenta explicações para a existência do sistema físico do seu ser, tornando mais
encantador o enigma da vida. Esta, por sua vez, apresenta em sua organização, um caráter
dependente, ou seja, a vida é frágil em suas condições de existência por ser solidária com
todos os fenômenos físicos dos quais ela depende.
Segundo Morin (2002), o ambiente em que se dão esses fenômenos é formado, em
permanência, por todos os seres que se alimentam nele, que por sua vez cooperarão com sua
organização. Esses seres só podem construir e manter sua existência, sua autonomia, sua
individualidade e sua originalidade na relação ecológica, ou seja, na e pela dependência com
relação a seu ambiente. A independência de um ser vivo requer sua dependência com relação
a seu ambiente. A organização tecno-científica, econômica e política da sociedade moderna
permitiu o desarranjo voltado para uma degradação do ambiente físico de inserção dos seres
vivos provocando alterações significativas capazes de promover maior adoecimento das
pessoas, principalmente quando a reflexão diz respeito ao câncer:
É eu acho que sempre existiu e tá só aumentando (Rosa)
A eu acho, não sei no meu modo de pensar, eu acho que é muita química, muita
coisa que a gente [...] por que antigamente era tudo natural, né, hoje é tudo sobre
química e a gente acaba adoecendo (Angélica).
Poderíamos dizer que esse “modo de pensar” reflete a consciência da relação
interdependente do homem com os ecossistemas da natureza, em que a qualidade de vida e de
sobrevivência da espécie estão indissociavelmente relacionadas com as atitudes do homem
sapiens no decorrer do processo de transformação do meio ambiente, pois como diz Pena-
Veja (2003, p. 19):
As crises de degradação do meio ambiente e as ameaças da técnica e da indústria nos
fazem tomar consciência de que o meio ambiente é construído por elementos, coisas,
espécies vegetais e animais, manipuláveis e subjugados impunemente pelo gênero
humano, isto porque só o homem é dotado de uma parte de conhecimento e outra de
liberdade, só ele tem a possibilidade de agir desta ou daquela maneira, é o
responsável por sua ação e disto ele não pode se esquivar. O homem, enquanto ser
único, capaz de responsabilidade, é responsável por aquilo que faz.
Em tempo de transformação 29
Morin (2002) define ecossistema como sendo um conjunto sistêmico, ou seja,
composto por vários sistemas cujas inter-relações e interações constituem o ambiente do
sistema que aí está englobado. O sistema, por sua vez, é uma unidade global constituída de
múltiplas formas de ligações entre elementos, ações ou indivíduos. A organização ligará de
maneira inter-relacional os elementos e/ou acontecimentos e/ou indivíduos diversos que,
desde então, se tornam os componentes de um todo. Ela assegurará a solidariedade e solidez
relativa a estas ligações, assegurando ao sistema certa possibilidade de duração apesar das
perturbações aleatórias. Pela organização será possível transformar, produzir, religar e manter.
A organização cria uma ordem para se manter viva, que foi construída,
conquistada sobre uma desordem. No mesmo movimento, a ordem transforma a
improbabilidade da organização em probabilidade para salvar a originalidade do sistema e
constituir uma ilha de resistência contra as desordens do exterior (acasos e agressões) e do
interior (degradações e antagonismos). A organização de um sistema é a organização da
diferença. Assim, a complexidade do sistema está em associar unidade à diversidade, pois um
dos traços mais fundamentais da organização é a aptidão de transformar a diversidade em
unidade, sem anulá-la, uma vez que a diversidade organiza a unidade que organiza a
diversidade.
De acordo com Morin (2002, p. 151): “[...] todo sistema, comporta e produz
antagonismo junto com complementaridade. Toda relação organizacional requer e atualiza um
princípio de complementaridade, requer e mais ou menos virtualiza um princípio de
antagonismo.”
O sujeito intervém na definição de sistema através e por seus interesses, suas
seleções e finalidades, ou seja, ele traz ao conceito de sistema, pela sua determinação
subjetiva, a superdeterminação cultural, social e antropológica. O indivíduo representará o
sistema central e a sociedade o ecossistema organizador dos mesmos.
De acordo com Morin (2002), esse indivíduo, que é parte da sociedade e que
constitui a espécie humana, é ao mesmo tempo sapiens e demens. Sapiens por ser capaz de
transformar acaso em organização, desordem em ordem, barulho em informação e por estar
constituído pelo homo faber, que produz racionalmente seus instrumentos para modificar a
natureza das coisas, e pelo homo economicus, que acrescenta utilidade e interesse no que foi
transformado. Demens no sentido em que ele é existencialmente atravessado por pulsões,
Em tempo de transformação 30
desejos, delírios, adorações, ambições que evidenciam as atrocidades, que o homem é capaz
de fazer com o ambiente no qual se insere e com o qual se assemelha, despertando atitudes
agressivas ou de humilhação que explicariam a prontidão de ressurgimento da barbárie nos
caminhos em que o homem anseia ser sapiens.
As repercussões das interferências do homem sobre a complexidade dos
ecossistemas são cada vez mais degenerativas e destrutivas. Nos tempos do século XXI, as
doenças atacam com maior virulência e variedade o corpo/mente do homem contemporâneo.
Assim como a maioria das doenças já existentes há milênios e outras antes desconhecidas, o
câncer tem vários elementos enigmáticos.
1.2 Sobre o câncer de mama
A unidade, a unicidade e a diversidade são essências de tudo o que existe. Dividir
a unidade em partes faz com que se obtenha a diversidade; esta, porém é o que, em última
análise, se junta para formar uma unidade. Cada organismo complexo tem seu funcionamento
organizado de tal modo que suas partes cheguem, tanto quanto possível, à idéia comum e
trabalhem em benefício da sobrevivência. A célula cancerosa, até determinado momento, é
parte constituinte de um órgão e atende às necessidades do organismo como um todo, lhe
proporcionando a melhor chance de sobrevivência possível. Mas, subitamente, essa célula
passa a colocar, desordenadamente, seu próprio desenvolvimento em primeiro plano,
abandonando sua função especifica e geral dentro do órgão. A autodisseminação promove o
desequilíbrio do organismo que, agora doente por ter em seu sistema algo nocivo a sua
sobrevivência, promoverá uma guerra para manter-se vivo.
Os profissionais da área médica fazem referências ao papel da determinação
genética e dos fatores ambientais: fumo, dietas alimentares, produtos industrializados,
alimentos alterados geneticamente, poluições do ar e da água como possíveis agentes
cancerígenos. A enfermidade do organismo do homem moderno, especialmente em relação às
doenças classificadas como crônico-degenerativas, podem estar associadas às condições e
qualidade de vida dos indivíduos e das sociedades.
Em tempo de transformação 31
O câncer, apesar de todo o avanço alcançado nas pesquisas dos fatores genéticos,
no diagnóstico e tratamento, no século XXI, continua como uma doença de causas obscuras,
“doença ruim” cercada por mitos, por preconceitos e por estigmas, na maioria dos casos o
tratamento pode significar um controle momentâneo da doença.
Tanto para a família como para o paciente a consciência da realidade suscita uma
série de dificuldades, entraves e questionamentos, geralmente, a primeira reação é de negação,
de desespero com atitudes que refletem a gravidade e a importância de cada minuto na batalha
pela sobrevivência:
[...] aí ela não aceitou, ela falou assim a médica deve ter trocado o seu exame [...] ela
tava desse jeito assim sabe aquele desespero, ela não trocou seu exame não mãe?
Não é o meu exame (Margarida).
[...] meu filho também ficou sei lá, ficou muito chocado. Coitado né. Agora ele tá
assim, agora ele tá bom. Até que ele tá muito bom, mas deu uma depressão nele, não
sei se vem também um pouco desse problema meu, um pouco por causa, né
(Jasmim).
A família toda sofreu muito, né, por que eles sofreram muito mais do que eu. [...] um
dia nos estávamos na sala sentados, tava eu, ele e essa filha, Aí eu falei: Não, é
agora, eu vou falar uma coisa pra vocês, eu não quero que vocês fiquem é abalados
não, talvez não seja nada. Fui assim devagarzinho, aí ela: O que foi mãe? A minha
menina falou. E ele também: O que foi bem? Eu percebi um nódulo no meu seio, né,
e vou ter que ir atrás. Minha filha na mesma hora ligou pra médica ginecologista
(Angélica).
Essa foi à pior parte, nossa a pior parte de tudo foi essa de falar. Eu falei que eu ia
ter que tirar, se deixar vai alastrando mais tal e tal. Só que no caso do meu filho mais
velho já achou que eu devia tirar em outro lugar, eu não devia fazer aqui. Ele é mais
assim [...] tem a cabeça mais preparada, por ele eu teria ido fora não teria feito aqui,
por ser uma coisa assim [...] mais séria, né (Gardênia).
Observa-se que, ao compartilhar o problema, o que era alteridade torna-se também
uma questão de individualidade, pois se criou um espaço promotor de incorporações de
sentimentos e imagens que permitem reconhecer no outro temor, ações e expectativas
Em tempo de transformação 32
constituintes da própria identidade, do próprio eu e até mesmo da própria cultura, da própria
sociedade.
A imagem serve de fator de agregação, favorecendo o sentir coletivo. É cultural,
faz cultural, constitui a memória e as raízes necessárias para a percepção antropológica do
humano que vive num ambiente modulado por construções imaginarias como lendas, contos,
mitos, memórias escritas ou faladas que influenciam e determinam os comportamentos em
função de um dado meio, mas que, ao mesmo tempo, modela esse meio em função dos
comportamentos humanos.
Para Maffesoli (1995, p. 116):
A referência ao espaço vivido simbolicamente, [...], permite compreender que são
as representações coletivas que constituem o meio no qual se vive com os outros.
As representações coletivas restauram uma forma de globalidade no lugar em que
prevalecia a separação, a distinção entre as palavras e as coisas, entre os fatos
sociais e os fatos individuais e, evidentemente, os individuais entre si.
O caráter ameaçador do câncer faz com que a experiência vivida simbolicamente
privilegie a consciência da incerteza natural de um devir:
Meu Deus será que eles vão aceitar ou será que eles vão ficar, né (Angélica).
Depressivos, desmotivados, negativos, desanimados, tristes, angustiados enfim
adjetivos que refletem um estado espiritual e emocional dos personagens dessa história.
O câncer de mama – carcinoma mamário – como qualquer outro tipo de câncer, se
inicia a partir de uma duplicação desordenada de células. Fugindo ao controle do organismo
por diversos fatores, ele aparece sob a forma de nódulos. Na maioria das vezes pode ser
identificado pelas próprias mulheres com a prática do auto-exame.
Em tempo de transformação 33
Das cinco mulheres que participaram da pesquisa, três perceberam em casa
alguma alteração em um dos seios, fato que gerou muita apreensão até a confirmação do
diagnóstico:
Foi eu mesma que descobri, veio aquela coceirinha, eu apalpei, fui coçar logo fui
pro espelho mesmo assim, e na hora assim a gente assustou [...] procurei na mesma
hora o doutor. Fui e logo me encontrei com ele, [...] fez o exame dele lá e depois
passou outro pra fazer mamografia. Eu nunca tinha feito mamografia (Jasmim).
Quando eu percebi o caroço eu fiquei assim, aí meu Deus será que é, né, aí no outro
dia eu apalpava de novo e sentia (Angélica).
Eu percebei assim, que eu ia na médica todo ano de rotina, né, mas aí eu falava pra
ela que tinha umas agulhada no seio, mas minha médica falava assim: Não tem
agulhada, né. Então eu falava assim: eu quero fazer mamografia. Ah não, mas não
precisa tá tudo bem, né. Tá tudo bem pra ela. Aí quando foi o ano passado, em maio,
eu mudei de médico e ela pegô e já me pediu: Nunca fez. Nunca fiz não. Mas tem
que fazer, após os quarenta tem que fazer! Mas a minha médica não pedia
(Margarida).
Nota-se pelas falas que, em alguns casos, a percepção tardia de um nódulo ocorre
não somente pela falta de atenção das mulheres em realizar freqüentemente o auto-exame,
mas pela falta de um diagnóstico médico preciso, pois para verificar se o nódulo é invasivo
“cancerígeno”, para saber o grau de comprometimento da área atingida e o tratamento
indicado há a necessidade de realizar exames laboratoriais e de imagem. A postura de alguns
profissionais, que insistem em fundamentar os procedimentos numa cultura curativa,
compromete todo o processo de tratamento da doença por desconsiderar os prenúncios dados
pelas próprias pacientes a fim de promover maior investigação capaz de nortear posturas
preventivas e/ou viabilizar um procedimento de cura que reconheça a complexidade do
processo que envolve a interação entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais
da condição humana.
Segundo Ruiz (2006), o câncer de mama apresenta quatro estágios: no estágio I o
tumor tem até 2 cm, não atingindo os gânglios linfáticos próximos; no estágio II o tumor
Em tempo de transformação 34
apresenta tamanho de 5 cm, mas com ausência de metástases
2
. O tumor está no estágio III
quando seu tamanho é superior a 5 cm e envolveu os gânglios linfáticos da axila do lado da
mama afetada; no estágio IV apresenta todas as características anteriores acrescido da
metástase.
Segundo Ruiz (2006), o câncer de mama atinge 1 cm num período médio de 8 a
10 anos. Como o tamanho do nódulo está relacionado ao risco de metástase, quanto antes
diagnosticado maior a probabilidade de cura. As formas de tratamento - radioterapia,
quimioterapia, hormonioterapia e intervenção cirúrgica – dependem do tamanho do nódulo,
da extensão local e sistêmica, da característica bioquímica, do modo como a paciente lida com
a mama afetada e da idade da pessoa. Nas mulheres mais jovens o tumor tende a ser mais
agressivo. Ruiz (2006) diz, ainda, que o câncer de mama é hormônio dependente e depende
fundamentalmente do estrogênio. Quanto maior for à exposição a este hormônio, maiores
serão os riscos de desenvolvimento da doença. Os especialistas, em função disso, realizam
uma série de avaliações do tumor quando extirpado. A partir dos resultados dos exames será
prescrito o tipo de tratamento mais adequado.
A mastectomia radical, ou seja, a retirada total da mama afetada pelo câncer foi
descrita na literatura médica pelo cirurgião Hasteld, no final do século XIX. Mas por ser
considerado um procedimento cirúrgico extremamente agressivo e traumático para a mulher,
os médicos aprimoraram o procedimento para que fosse possível preservar o máximo da
forma da mama, como a quadranctomia que consiste na cirurgia que retira o quadrante onde
está locado o tumor. Além disso, mesmo que seja realizada a retirada da mama, há a
possibilidade da sua reconstrução com utilização do silicone ou a partir da retirada do tecido
do abdômen. Esse tipo de reconstrução da mama representa uma possibilidade de reabilitação,
mas que dependerá de aspectos como: peso, altura, idade, tratamento prévio ou complementar
com radioterapia, estado clinico e outras cirurgias que a paciente já tenha realizado.
A mastectomia, nesse inicio de século XXI, só é indicada para tumores avançados
e restringe-se à mama afetada. Em muitos casos, os gânglios linfáticos – linfonodos axilares
3
– também são retirados. Os linfonodos são estruturas nodulares, encontradas por todo o corpo
ao longo dos vasos linfáticos, e parte integrante do sistema imunológico por ser um órgão

2
Metástase é quando as células cancerígenas vão para a corrente linfática/sanguínea e se propagam em outras
partes do corpo, sendo que no caso do câncer de mama elas vão principalmente para pulmão, osso e fígado.
3
São gânglios situados na região entre a mama e o braço.
Em tempo de transformação 35
responsável pela barreira entre as bactérias e células que migram pelo sistema linfático. No
caso do câncer de mama a importância dos nódulos linfáticos auxiliares está na proteção das
infecções do braço.
A retirada dos linfonodos facilita o surgimento do linfedema, o acúmulo de
líquidos altamente protéicos nos espaços intersticiais, isto é, nos pequenos intervalos entre as
partes do corpo. O linfedema pode ocasionar complicações como erisipela, fistulas linfáticas
entre outras, e é comum as mulheres com este problema relatarem sintomas como sensação de
aumento de peso e edema no braço, aumento da tensão na pele e diminuição da flexibilidade
na mão, cotovelo ou ombro. A mulher mastectomizada deve, pois, evitar esforços repetitivos,
carregar peso, utilizar o braço afetado para medição de pressão arterial, aplicações de
injeções, cuidados especiais no cortar de cutículas, depilação, picadas de insetos, roupas
apertadas, sustâncias irritantes, ferimentos ou queimaduras. É de extrema importância a
realização de exercícios apropriados para o membro superior, bem como fazer uso de
hidratante neutro e usar luvas para proteção nas atividades domésticas, jardinagem e culinária.
Para o tratamento do linfedema são necessários exercícios específicos que auxiliam as
posturas para elevação do membro superior (acima do coração), enfaixamento compressivo
com luva ou faixa elástica, aparelhos de compressão pneumática, massoterapia, uso de
medicações vasodilatoras e linfoprotetoras, além dos tratamentos para os processos
inflamatórios ou infecciosos.
A objetividade do processo prático do diagnóstico médico pode enrijecer a relação
médico-paciente, ofuscando a afetividade no comportamento do profissional devido a ações
que são embrutecidas pela naturalização de um momento significativo na individualidade de
uma história de vida:
Ele falou assim para mim: ah se tá com câncerzinho aí, né. Aí piorou mais ainda
para mim. É se tá com um câncerzinho aí, né. Ele lida com isso direto, então para
ele não é novidade, então para mim é (Margarida).
Aí quando eu cheguei a primeira coisa que ela perguntou [...] - Não veio ninguém
com você? Falei: Não, desse jeito você me assusta. Nisso o meu marido já chegou.
Se tem que vir alguém junto porque deu alguma coisa. - Agora realmente a notícia
não é boa deu um tumorzinho e você tem que tirar, detesto falar pelos outros.
Em tempo de transformação 36
Eu acho que ela foi, eu achei até que ela falou com uma fisionomia sabe, parece que
ela era uma artista, a fisionomia dela tava assim sei lá ela ficou sem jeito de falar
sabe. Só que eu gosto que fala tudo, ela não deu certo comigo porque eu não gosto
que me esconde nada, do mesmo jeito que eu tô aqui eu falei eu fiquei olhando pra
cara dela, então se me assustou. Ela falou assim: Realmente é um tumorzinho e se
vai ter que tirar (Gardênia).
[...] ele olhou a mamografia, nem pediu mais exame, já olhou falou, falou: Tem que
fazer uma cirurgia talvez a gente vai ter que tirar a mama. E foi assim (Jasmim).
Nos encontros com as pacientes atendidas tanto pela Abrapec, como pela Uniama,
a questão da sensibilidade do profissional no momento do diagnóstico foi colocada como um
fator importante a ser observado, pois a situação comporta um misto de sentimentos e reações
que afetam estruturalmente qualquer pessoa, por trazer à consciência imagens que refletem o
significado daquele instante, ou seja, uma das pacientes atendidas pela Abrapec disse que ao
saber que estava com câncer a primeira coisa que pensou foi na morte do cantor Leandro da
dupla sertaneja Leandro e Leonardo em junho de 1998, que em menos de três meses
descobriu a doença e morreu mesmo tendo condições financeiras para os melhores
tratamentos. Observamos que, neste momento, as limitações sociais, econômicas e
emocionais, os interditos da morte, do sofrimento surgem como dispositivos capazes de
impulsionar a pessoa para vida ou para assumir o papel de quem tenta lutar pela
sobrevivência, considerando que, naquele instante, “parece que a cabeça deu um nó, parece
que na hora eu percebi que me deu assim um nó mesmo no cérebro” (Gardênia). Reação
esperada e compartilhada com as outras pacientes do grupo Uniama que, em uma das
reuniões, relataram os mais variados comportamentos desde aquele cercado por uma fortaleza
capaz de criar uma imagem de pessoa que enfrenta qualquer coisa sozinha, tendo em vista que
o reconhecimento da dependência física e/ou emocional seria mais difícil do que enfrentar
uma cirurgia, até aquele em que a pessoa vê o fim, a morte ou a chance de lutar e provar a
capacidade para superar mais um desafio da vida.
Maffesoli (1996) coloca que o sensível é fonte de riqueza espiritual e
fortalecimento do corpo por ser condição de possibilidade da vida e do conhecimento, haja
vista que todos os sentidos estão presentes numa sinergia que engendra um Eros de múltiplas
faces nos quais se banha a vida cotidiana. Para ele (1996, p. 78) “[...] o sensível é, a partir
Em tempo de transformação 37
daí, um principio de civilização, faz participar de uma realidade supra-individual, integrada a
uma comunidade. E nesse sentido que eu falaria num narcisismo coletivo.”
Quando o homem reconhece que é um ser sensível, acede para a humanidade, para
as relações com os outros promovendo a construção de um corpo com alteridades, um corpo
que alia, ao mesmo tempo, o material e o espiritual, o sensível e o intelectual, o próprio corpo
constituído pela individualidade do eu e o corpo social constituído pela alteridade do outro,
um corpo socialmente animado, segundo Maffesoli (1998). A matriz de toda existência social
está determinada pelo sentido que o ser humano dá para os elementos constitutivos da
sensação do viver, pois o sensível se aloja na base de toda maneira de ser, dilui-se na vida
cotidiana e tem um peso considerável na vida de toda sociedade. O sensível é real e fator de
potenciação de sua estrutura como o imaginário, pois pode ultrapassar a separação abstrata
que, comumente, se estabelece entre o que é vivido e o que é pensado. Além disso, devemos
observar que o pensamento é o que é porque ele é vivido empiricamente.
Assim, torna-se compreensível que algumas pessoas esperem atitudes
profissionais mais solidárias, mais protetoras, que não expressam apenas o individualismo frio
criado pela modernidade, em que cada um vale por si mesmo, mas que se converta em
individualidades construídas no espelho do outro, ou seja, reconhecendo no outro sentimentos
e necessidades que lhe são comuns. Outras pessoas esperam atitudes objetivamente mais
arrojadas, mas nem por isso menos sensíveis, talvez para ajudar a enfrentar a reação de negar
a doença ao nutrir o desejo de erro no diagnóstico, pois, em ambos os casos, o importante é
manter uma postura acolhedora capaz de transmitir segurança e confiabilidade no sucesso em
todas as etapas do tratamento:
Ela falou:- Mas você tem que fazer! Ela só me falou: - Se tem que fazer, tem que
tratar, não pode deixar, não deixa. Eu fui assim, imaginando né (silêncio) a gente
tem que ir, né, ver a opinião de outro médico, né, [...]. Aí quando foi em dia treze de
junho já fiz a biopsia, né (Margarida).
Perguntou se eu queria que retirasse toda ou só quadrante. – Não. Eu falei. - Tira
todinha. Não me arrependo de jeito nenhum de retirar toda sabe, não arrependo
(Rosa).
Em tempo de transformação 38
A vivência empírica reflete um ambiente prolixo em que emoções, situações
correntes, acontecimentos excepcionais, espontaneidade, intuição e empatia ocorrem numa
perpetua encenação, introduzindo o homem numa lógica que, de parte a parte, é relacional por
ser uma experiência do mundo resumido, circundante, que se partilha com outros,
privilegiando a apreensão simbólica, pois o objeto está dado, depositado diante do indivíduo
como matéria visível, reparável que se possa imaginar enquanto lembrança de uma imagem
primordial como, por exemplo, quando tomamos conhecimento que alguém está com câncer e
logo vem ao pensamento imagens de sofrimento, dor, morte, definhamento, perda, fim ou
superação, vida, luta, conquista, recomeço, valorização de outros elementos significativos no
cotidiano, ou seja, vem à memória situações que a própria pessoa vivenciou ou tenha
vivenciado com outros muito próximos. Além disso, este acontecimento está imerso nos
sentimentos de compaixão, tristeza, felicidade, alivio, raiva e amor, entre outros.
Em uma das reuniões do grupo Uniama, houve a colocação que muitas vezes os
médicos não aprofundam o comentário a respeito da doença para não fazer o paciente sofrer,
já que tudo são apenas possibilidades, fato que foi lembrado pela Gardênia:
Acho que para os médicos não é fácil. Pelo jeito, assim, dela me olhar eu percebi
que para os médicos não é fácil dar a notícia, por mais que se tem tratamento, tem
tudo, é uma coisa que é uma caixa de surpresa.
Por ser uma caixa de surpresa talvez se espere que a demonstração de alguma
emoção, de alguma sensibilidade venha acompanhada do choro, expressão que, juntamente
com o riso, representam um importante aspecto para manifestação da afetividade que,
segundo Morin (2005 d), é elemento constituinte do ser humano:
Não sei se foi um pouco o susto, mas só chorei uma vez, foi quando tirou os pontos
[...] ai fui ver o curativo aí eu chorei, eu falei pro meu irmão, e ele falou: - Não isso
aí é normal essa reação aí. Mas quando eu soube, eu não chorei sabe, não fiquei
revoltada de jeito nenhum (Rosa).
Em tempo de transformação 39
Falou assim agora tem que tirar e eu na hora não chorei, não fiz nada. Meu marido,
eu lembro, vi ele me olhou, olhou na médica, ele pirava e me olhava sabe pro meu
lado: Será que ela tá ficando doida. E eu pensei: Agora tem que animar né, se tem
que tirar eu vou ter que tirar [...] eu fui chorar na hora que cheguei em casa, eu fiquei
firme (Gardênia).
Não sei se eles chocaram muito (Jasmim).
No dia que nós chegamos no doutor ele me examinou, falou assim pra mim: - Olha
noventa por cento a senhora está curada, mas eu vou pedir mais uns exames. Quando
nós levamos o resultado pra ele eu falei assim: - Quando eu começo a quimio? Ele
falou assim: A senhora não vai fazer nem quimio, nem radio a senhora está curada.
O meu marido chorou na frente do médico, de emoção entendeu (Angélica).
Eu fiquei meio triste né. Nossa que triste! Só que parece que eles dá tanto calmante
que eu queria chorar e não conseguia sabe (Margarida).
A história social do câncer está constituída por elementos depreciativos que, de
acordo com o momento histórico-cultural, suscita temores capazes de inibir ações que
impulsionam ao conhecimento mais amplo do desconhecido, ações que ao invés de
marginalizar vivessem a diferença, que ao invés de vislumbrar o lucro fossem capazes de
promover a qualidade de vida, que ao invés de manter ilusoriamente uma ordem permitissem
que ecoasse o caos para o surgimento do novo.
Se sabe que naquele tempo sei lá, a gente não pensava muita coisa, quase não ouvia
falar nisso aí, né. Então isso quer dizer que pra mim foi uma coisa assim, eu não tive
muita, não fiquei muito deprimida, não fiquei sei lá. Parece que achava assim que é
uma coisa que passava logo, que não ia ser nada como foi sete anos, foi uma coisa
assim, (Jasmim).
Não conversavam, minha mãe falava assim: - A comadre Maria tá com a doença
ruim. Não falava né e a gente pensa naquilo. Até hoje tem esse preconceito assim, eu
tenho ainda, antes eu tinha medo, eu tinha medo [...] chegava perto sim, mas não
tinha aquele contato de ficar abraçando. Não era de ir muito [...] igual eu te falei, eu
ia ficar com as crianças, ela chegava eu ia embora. Então minha mãe me dava essa
ordem né: - A hora que a tia chegar vem embora né (Margarida).
Em tempo de transformação 40
Segundo Tavares (2005), no início do século XX o câncer, além de ser
considerado contagioso, era associado à falta de limpeza, à sujeira física e moral.
Considerava-se que, principalmente no caso das mulheres, o adoecimento era resultado de
pecados e vícios, em especial nas práticas sexuais. Assim, as orientações sanitárias quanto às
possibilidades de cura do câncer disseminadas pelos órgãos de saúde eram confusas e
divergentes entre si. A atitude moralizadora e higienista, encontrada no Brasil nas primeiras
décadas do século XX, norteavam as ações dos órgãos de saúde pública, que, como estratégia
de intervenção sanitária, aconselhavam o isolamento e desinfecção minuciosa das residências
em caso de morte dos doentes, uma vez que o câncer estava associado à pobreza e a sujeira
física e moral.
O paciente de câncer, neste contexto, era visto como não cumpridor das regras de
saúde individual e pública. O câncer estava relacionado à falta de higiene, ou seja, ao sujo, ao
imundo, ao pestilento. Sob outro ângulo, a imagem do portador de câncer aproxima-se à do
transgressor, do insurgente, do desobediente da ordem estabelecida. Em contrapartida, numa
interpretação benéfica do adoecimento, padecer de câncer era sofrer castigo redentor, que
resultava em libertação, elevação espiritual para o doente e sacralização do seu corpo, fato
que ainda hoje pode ser observado nas falas, quando a reflexão sobre o estado de doença
aparece como uma provação necessária para o crescimento humano:
Ah! Eu acho que a gente tem que passar pelas provações desse mundo então vem,
né, por que pra mim foi a única doença que eu tive [...] eu acredito que nós vamos,
nós vamos pagar tudo que tiver que pagar aqui, depois Deus nos leva, por que ele já
veio nesse mundo, né, ele veio, Nossa Senhora sofreu. Uma jovem daquela época
ficar grávida, né! A gente lê na bíblia, e ele também passar por aquela humilhação
que ele passou ele já deu exemplo pra nós, né. [...] Nós temos que aceitar tudo que
Deus nos dá, né. Não que ele nos dá, por que é uma maneira da gente ser resgatado,
né (Angélica).
Não é a toa que deu isso, alguma coisa eu tenho que cumprir com isso, alguma coisa
eu tenho que fazer com isso (Gardênia).
A eu acredito, eu acredito que tem que ter uma recompensa e tem que ter uma
punição eu acho (Rosa).
Em tempo de transformação 41
Recompensa/punição representam, no imaginário social, situações capazes de
promover a regeneração das desumanidades que Morin (2002) coloca como inerentes ao
homem justamente pelo fato dele ser da espécie homo sapiens-demens. É tênue o liame entre
lucidez/loucura, racionalidade/irracionalidade por que o ser humano possui uma disposição
para uma desmedida demência que, segundo Morin (2002), os gregos denominaram de
hubris, pulsões destrutivas desencadeadas quando o princípio da realidade contrasta com o
principio do desejo, quando a racionalidade degenera-se em racionalização delirante que
transforma idéias em bandeira destoante do contexto e quando as regulações contra a
agressividade e a violência instituídas pelo social e pelo cultural são rompidas.
Morin (2002, p. 127) diz que:
[...] Na ruptura dos controles racionais, culturais, materiais, quando há confusão
entre o objetivo e o subjetivo, entre o real e o imaginário, hegemonia de ilusões,
insensatez, o homo demens submete o homo sapiens e subordina a inteligência
racional a serviço dos seus monstros.
No pensamento complexo, o demens representa um salto qualitativo da espécie
humana por significar que o homem é capaz de gerar uma potência mortal de um
aniquilamento ambíguo, paradoxal e complementar, ou seja, um aniquilamento que representa
desconstrução, caos, insubordinação em relação à ordem estabelecida, para que a potência de
criação trabalhe no sentido de recriar outro homem, uma nova ordem, em contrapartida, esse
aniquilamento também pode levar a morte absoluta, que ocorre quando o ser humano vivência
condições históricas que propiciam o desenvolvimento do caráter destrutivo da demência,
chegando a um nível de racionalidade pela irracionalidade. Para Morin (2002), não se pode
eliminar a loucura, mas podem-se eliminar os aspectos horríveis da demência, pois a loucura é
um problema central do homem, não apenas seu detrito ou a sua doença.
Dessa forma, o homo demens e o homo sapiens coexistem dialogicamente na
vivência das relações interdependentes e retroativas do ser humano, ou seja, relações que
nutrem a racionalidade, a afetividade, o imaginário, a mitologia, a loucura e a criatividade
conduzindo o homo a uma complexidade que lhe é nata permitindo-o ser faber, ludens,
Em tempo de transformação 42
imaginarius, economicus, consumans, estheticus, prosaicus, poeticus com afetividade e
sensibilidade.
Esta realidade permite a projeção da expectativa de uma mudança de
comportamento, sentidos e ressignificações de mundo por parte da pessoa que vivencia o
estado de doença:
A gente valoriza mais as coisas, as pessoas, só que eu achei que com a doença eu me
tornaria uma pessoa assim melhor e isso aí eu acho que mudei muito pouco. Eu falei
para uma lá: -Tudo vira um detalhe, depois de uma coisa dessa sabe, a gente deixa
de muita coisinha (Rosa).
Ah! Eu já era assim mais generosa, agora eu sou muito mais, agora eu começo a dar
valor em geral pra todo mundo. Coisinha à toa você dá um valorzão enorme naquilo
(Jasmim).
A mudança pode ocorrer também no comportamento dos familiares:
Dentro de casa a família é muito [...], nossa, eu tô muito apoiada muito, nossa. Um
aparece aqui, o outro liga sabe, por causa da quimio. Quando descobriu que eu tava
passando mal tudo, minha sobrinha ligou. Eu tenho apoio total (Gardênia).
Ah mudou, mudou pra melhor, as meninas assim têm mais carinho sabe, preocupa
mais. O meu marido, às vezes coisas que eu posso fazer, que eu posso fazer com
essa mão. - Não, não vai fazer não, não vai pegar peso. Eu sei que eu posso com essa
mão, né. Eu não posso pegar com essa (Margarida).
Observa-se que o impacto da desordem da doença promove, muitas vezes, um
novo arranjo nas relações sociais, pelo menos por algum tempo, suficiente para as pessoas
reavaliarem os sentidos que são atribuídos aos elementos do mundo circundante. Assim,
torna-se comum ouvirmos frases do tipo “tornei-me mais humana”, “passei a dar mais valor à
vida, às pessoas”, “hoje o que é importante são as coisas simples” enfim, frases capazes de
tornarem visíveis a sensibilidade e o aconchego do humano e camuflarem as atrocidades do
desumano. Em um dos encontros na Abrapec, uma paciente relatou que a vida dela era muito
Em tempo de transformação 43
corrida e difícil, pois se separou do marido que a maltratava e passou a morar sozinha na casa
construída no mesmo terreno de um dos irmãos com quem, por sua vez, não mantinha um
bom relacionamento. Sua rotina era levantar cedo para ir ao trabalho, retornar no fim da tarde
e passar as noites sozinhas, não se incomodando com a situação, tendo em vista que objetivou
isto há muito tempo. Era de poucos amigos, mas com a doença, segundo ela, pessoas que
nunca imaginava manter vínculos de amizade passaram a fazer parte da sua história, uma vez
que atitudes de solidariedade por parte dessas pessoas a motivaram a enfrentar a dificuldade
de fazer amigos e a se permitir vivenciar emoções que só são possíveis quando existe a
invasão da afetividade, ou seja, quando a pessoa experimenta com intensidade toda a vivência
do eu. No universo do caos surgem interações que remodelam aquilo que denominamos de eu,
justamente para possibilitar sua adaptação no meio ambiente modulado por uma cultura, por
uma sociedade.
Até a década de 40 do século XX, segundo Tavares (2005), a atitude dos médicos
era informar apenas a família sobre o diagnóstico e os efeitos dos medicamentos utilizados no
paciente, uma vez que informar ao mesmo sobre seu estado de saúde era considerado
crueldade. No caso do câncer de mama, as mulheres tinham acesso a pouca ou nenhuma
informação especializada sobre seu estado de saúde e sobre os tipos de câncer que se
manifestam nessa região do corpo. O pudor, a vergonha, o isolamento e o silêncio faziam
parte da história do enfrentamento do câncer, afetando particularmente essas mulheres que,
além de conviver com a ameaça da mutilação de um dos principais símbolos de sua
feminilidade, contavam com pouco suporte social. A partir dos anos 50, ocorreram mudanças
consideráveis nos significados e formas de enfrentamento do câncer, ocasionadas pelos
movimentos sociais em defesa dos direitos das mulheres e pelas descobertas dos métodos de
diagnóstico e tratamento, possibilitando um aumento do tempo de sobrevida do paciente.
O acompanhamento desses pacientes indicou a necessidade de lhes proporcionar
boa qualidade de vida e a importância do estudo das repercussões e adaptações psicossociais
de todos os sujeitos envolvidos no processo, ou seja, paciente, família e profissionais de
saúde. Enfrentar o câncer passou a implicar uma luta constante, em conhecer o próprio corpo
e a própria subjetividade. Mas, mesmo assim, a doença ainda configurava-se um interdito no
imaginário quando percebemos que, ainda hoje, mesmo com a facilidade de acesso a
informação, mesmo com campanhas publicitárias para prevenção, muitas vezes não se
procura falar sobre o assunto ou superar alguns preconceitos quando o problema acontece
Em tempo de transformação 44
com pessoas próximas ou com a própria pessoa.
Às vezes quando eu converso com os outros eu falo, também não procuro assim
ficar só falando nisso não. Por que eu acho vamos deixar isso de lado, né. Mais
numa hora que você está numa reunião, numa hora que você está é conversando com
uma pessoa e ela te pergunta eu explicava (Angélica).
Isso aqui eu nem mostrei pra uma cunhada minha que teve. Ela é bem mais jovem
que eu, dentista, não tenho coragem de falar isso pra uma outra colega sabe. Então,
por exemplo, tem umas informações que eu sei e eu não passo pra ninguém de dó,
eu não tenho coragem [...] é uma desesperança, eu não tenho coragem de passar pra
alguém sabe. Eu vejo muitas, quantas eu já vi que depois de sete, dez anos voltou,
doze, né. Então é, eu nunca passei isso pra ninguém (Rosa).
Eu não lembro bem o tratamento dela pela minha idade a gente não envolvia muito,
né. Só que o tratamento dela foi muito como eu posso falar [...] difícil. Mais que
difícil até, o tratamento mesmo foi muito doloroso, doloroso é (Margarida).
A dificuldade da reflexão, da conversa que fortalece o interdito talvez seja a
maneira mais simples de se evitar que venha a consciência liame da doença com a simbologia
da morte, com o definhamento do corpo vivo, fato que pode ser observado quando Dona
Margarida descreve que, no momento em que o médico confirma o diagnóstico de câncer de
mama, seu primeiro pensamento foi a lembrança de que, quando tinha treze anos, ajudou
cuidar de uma tia que faleceu com a doença:
Na época eu tinha treze anos e eu acompanhei um pouco assim que ela ia fazer
tratamento, e minha mãe me deixava tomando conta das crianças né, tinha quatro. Aí
eu ficava assim de companhia até ela voltar. Ela voltava e era aquela tristeza o
tratamento dela. Ela chegava e já ia deitar e punha uma fralda, era exposta a cirurgia,
não é igual hoje. Até me marcou muito que quando eu fui fazer a cirurgia, que o
médico falou que eu tinha que fazer, eu lembrei daquilo que eu vi, né. Eu ficava
ela pediu a fraldinha e a fraldinha tava toda molhada, né, e ela me pedia outra e
falava assim: põe na Qboa, não põe a mão não. Aí eu enrolava, eu punha na Qboa
para ela. Eu não entendia, eu punha, aí eu punha lá no baldinho, já punha água, né.
Depois, ela mesmo, ela melhorava, ela ia lá lavava. Então era muito difícil para
família era muito triste e quando eu descobri o problema voltou aquele filme na
minha cabeça eu pensei será? Eu sofri mais por isso, porque eu não tinha contato
com ninguém que tinha feito cirurgia recente, da época de hoje, então eu achava
assim que eu ia passar tudo que ela passou, entendeu, ficar com a cirurgia exposta
Em tempo de transformação 45
aquele trem, medicamento azul que eu não sei o que, uma coisa muito assim triste de
ver (Margarida).
Esta fala sintetiza o significado e a vitalidade do imaginário e do simbólico na
constituição do ser humano, isto é, o imaginário corresponde ao aspecto insondável do
homem, que produz, além de todos os condicionamentos psíquicos e sociais, o elemento
criativo, o elemento que possibilita a imaginação e a racionalidade como dimensões próprias
desse ser. A imaginação e a racionalidade são criações do imaginário e ambas coexistem
necessariamente, co-referidas na dimensão simbólica inerente ao ser humano.
Imaginário e imaginação, embora sejam conceitos interdependentes, articulados,
existem algumas especificações que os particularizam. Enquanto a imaginação compreende a
doação do sentido e o funcionamento do processo de simbolização, por onde o pensamento do
homem é levado à perversão e aos desejos que são tomados por realidade; o imaginário, como
a imagem, tem como alicerce a sensorialidade por supor o encontro com o outro, mas para
isso, é preciso que esse outro seja significante ao olhar. O imaginário precisa ser percebido de
forma corporal e espiritual, assim como é necessário destacá-lo, contextualizá-lo e alterá-lo
primeiro de forma emocional e depois concretamente.
Dona Margarida suscita em sua fala a corporeidade do imaginário sobre a morte,
ou seja, o sentimento de presença concreta daquilo que, a maior parte do tempo, vive-se
subjetivamente como uma realidade distante, embora sempre próxima por configurar-se uma
certeza de que só é possível existir morte quando existe vida. Assim, ao tomar conhecimento
de que alguém tem câncer torna-se inevitável a imagem da morte, enquanto fim da concepção
de um eu físico, adquire proporções que pode nos conduzir a acreditar que esta doença é “o
começo do fim mesmo, dói” (Rosa).
O imaginário adquire uma realidade particular na medida em que a imaginação é
geradora não apenas de formas, mas de valores e qualidades perceptíveis por meio da
sensibilidade. Ao ser narrada, a imaginação é apresentada como uma sensibilidade intelectual
que participa da diversidade dos sentidos. A imagem imaginada é proporcional ao elemento
que se impõe à percepção. O elemento é um sistema de virtualidade múltipla do qual a
imaginação em ato retém o que quer, a imaginação vai aparecer como uma força e como um
Em tempo de transformação 46
movimento da consciência que vai ao mundo, provocando-o, para nomeá-lo e recriá-lo, pois o
trabalho da imaginação é transcender o real imediato.
Segundo Felício (1994), a imaginação está em constante movimento, dando
dinamicidade à consciência que vai ao real com potência de transformação e/ou de recusa,
pois no universo do imaginário, a imaginação produz o pensamento. O dinamismo do objeto
imaginado depende do dinamismo da imaginação que o anima, ou seja, há a imaginação das
formas e das matérias e a imaginação das forças e do movimento inerente a qualquer objeto.
Assim, o objeto real é designado após o movimento imaginado, num processo dialógico entre
os fenômenos reais e imaginários para dar vida e realidade ao que a princípio pode parecer
irreal.
Dessa forma, a imaginação representa uma atitude de disponibilidade para uma
realidade estranha à realidade comum, uma atenção à realidade em que o desconhecido e o
subjetivo dominam, mas que a objetividade está presente/ausente, pois imaginando essa
realidade não se faz senão reconhecer sua existência.
Numa abordagem antropológica, Durand (1993) coloca que a imaginação revela-
se como um fator genérico do equilíbrio psicossocial, ou seja, pelo dinamismo equilibrante do
imaginário, as imagens em contato com os acontecimentos, organizam-se no tempo para
compor-se numa história de representação do mundo. A possibilidade da imagem depende,
sobretudo, do imaginário e das forças de coesão nele existentes para ligar e religar imagens
que a princípio possam parecer antagônicas.
Durand (1993, p. 76) diz que:
E, sobretudo, este dinamismo antagônico das imagens permite assinalar grandes
manifestações psicossociais da imaginação simbólica e da sua variação no tempo.
O desenvolvimento das artes, a evolução das religiões, dos sistemas de
conhecimento e dos valores, os próprios estilos científicos, manifestam-se com uma
regularidade alternante que foi assinalada há muito tempo por todos os sociólogos
da historia e da cultura.
No entrelaçamento das representações coletivas observa-se que o simbólico torna-
se o caminho para se expressar um objeto relativamente desconhecido, que não se saberia de
Em tempo de transformação 47
início designar, de uma maneira mais clara ou mais característica, sua forma, sua matéria,
suas forças e movimento, ou seja, o símbolo aparece como indizível pelo e no significante. O
símbolo define-se como pertencente à categoria do signo. Para Durand (1993), podem-se
distinguir dois tipos de signos: os arbitrários que remetem para uma realidade significada, se
não presente pelo menos sempre apresentável e os signos alegóricos que remetem para uma
realidade significada e dificilmente é apresentável e, por isso, figura concretamente apenas
uma parte da realidade que significa. Quando o significado não é de modo algum
apresentável, o signo só pode referir-se a um sentido e não a uma coisa sensível, pois o
simbólico apresenta uma parte visível, o significante, o concreto. A metade visível do
símbolo, o significante, estará sempre carregada da máxima concreção.
Segundo o mesmo autor, qualquer símbolo autêntico possui três dimensões
concretas que se manifestam simultaneamente: cósmica, ou seja, sua figuração está no mundo
bem visível que nos rodeia; onírica, pois se enraíza nas recordações, nos gestos que emergem
nos sonhos e constituem a massa muito concreta da biografia mais íntima e, por fim, apresenta
a dimensão poética pelo fato do símbolo apelar igualmente à linguagem que lhe dá
expressividade e concretude. É através do poder de repetição que o símbolo preenche
indefinidamente a sua adequação fundamental. Durand (1993, p. 11-12) diz que “[...] a
imagem simbólica é transfiguração de uma representação concreta através de um sentido para
sempre abstrato. O símbolo é, pois, uma representação que faz aparecer um sentido secreto, é
a epifânia de um mistério.”
A função simbólica no homem seria, então, o lugar de passagem de reunião dos
contrários: o símbolo na sua essência é unificador de pares opostos; seria a faculdade de
manter em conjunto o sentido consciente que percebe e recorta precisamente objetos, e a
matéria prima que emana do fundo do inconsciente.
Neste sentido, poderíamos dizer que a idéia de arquétipos desenvolvida por Jung
seria os símbolos presentes no inconsciente de todos os homens, ou seja, um inconsciente
coletivo que compreende as conexões mitológicas, motivos e imagens que se renovam em
toda a parte sem cessar. Ao lado do inconsciente individual, feito de lembranças que diferem
de uma pessoa para outra, existem elementos anteriores a toda consciência e comuns ao
conjunto de indivíduos, constituindo um inconsciente geral, coletivo, que apresenta as
tendências ancestrais e inatas que dirigem os comportamentos. Assim, o arquétipo em si
poderia ser visto como um sistema de virtualidades, um centro de força invisível, vazio em si
Em tempo de transformação 48
mesmo, que para se tornar sensível à consciência é preenchido de imediato pelo consciente
com a ajuda de elementos de representação, conexos ou análogos. O arquétipo é, pois uma
forma dinâmica, uma estrutura organizadora das imagens, mas que transvaza sempre as
concreções individuais, biográficas, regionais e sociais, da formação das imagens.
Segundo Durand (1993), a imaginação simbólica é dinamicamente negação vital,
negação do nada, da morte e do tempo, e a sua função é, acima de tudo, eufemizadora, ou
seja, tem a função de melhorar a situação do homem no mundo embelezando-o a fim de
alcançar um equilíbrio mesmo que provisório. O equilíbrio sócio-histórico de uma dada
sociedade seria uma constante realização da imaginação simbólica que exige dinamismo na
medida em que é um sistema de tendências antagônicas, porém com principio de unidade feita
pela imaginação por meio da coleção de imagens, metáfora e temas poéticos que auxiliam na
afirmação e reconhecimento da espécie humana. A imaginação em contato com o universo
material extrai deste uma matéria para a imagem. A materialidade não impede a polivalência
da substância, pois a matéria é apenas um meio para a imaginação se realizar.
Para Maffesoli (1995), o mundo imaginal funda-se em um substrato arquetípico
para repetir-se de maneira cíclica. O objeto, enquanto elemento da matéria, seria uma
modulação da realidade pré- individual, considerando que sua imagem imemorial atormenta o
espírito individual e coletivo. Em uma relação de reversibilidade, o objeto bem poderia ser
estereótipo que esgota, temporariamente, a força que absorveu no arquétipo intemporal.
Portanto, não seria paradoxal ver, no objeto, a anamnese constante de uma realidade coletiva a
qual, de uma maneira não consciente, continua a se aspirar. Assim, o corpo coletivo é
dinamizado pela própria força da imagem celebrada, pela força desse objeto que é venerado,
pois a partir do que é visível, imanente, há algo que leva ao invisível, ao transcendente,
possibilitando, a cada dia, o reencantamento do que se acreditava estar ultrapassado. O
reencantamento direciona o olhar do homem para dimensões do objeto que ainda não foram
percebidas e, conseqüentemente, o mesmo é representado com novos sentidos.
A possibilidade desse processo está no fato de as representações que são sociais
estarem submetidas ao fluxo criador do imaginário que permite produzir novos sentidos e
redimensionar significativamente qualquer realidade, além do significado já conhecido,
inovando a práxis e transformando a realidade instituída. Para os teóricos do pensamento
complexo, a representação está marcada pela ambigüidade da ausência/presença, ou seja, a
Em tempo de transformação 49
representação faz as vezes da realidade representada, evocando, assim, a sua ausência; por
outro lado, torna visível a realidade representada, portanto, sugere a presença.
1.3 Sobre o processo saúde/doença
Partindo do princípio de que o corpo serve de referência para compreensão da
existência material do ser humano, o conceito de saúde/doença tem sido objeto de interesse ao
longo da história, pois saúde/vida estão relacionados como também doença/morte por serem
faces de uma mesma moeda, ou seja, uma pessoa saudável exala vitalidade, energia, ao
contrário da doença que representaria um indicador de risco para a morte, para a falência do
sistema orgânico que orquestra a vida. O que se entende por saúde dependerá da concepção
que se possua do organismo vivo e de sua relação com o meio ambiente, que mudará de uma
cultura para outra e de uma era para outra.
Capra (1982) coloca que, ao longo do tempo, incluindo as culturas sem escritas no
mundo inteiro, a superstição, a magia e o ato de curar eram associados a forças pertencentes
ao mundo dos espíritos, e os curandeiros populares (xamã), guiados pela sabedoria
tradicional, tinham a capacidade de ingressar nesse mundo por meio de um estado incomum
de consciência a fim de beneficiar os membros da comunidade, uma vez que a doença era
concebida como um distúrbio da pessoa no todo, envolvendo não só seu corpo como também
sua mente, a imagem que tem de si mesma, sua dependência do meio ambiente físico e social,
assim como sua relação com o cosmo e as divindades. Dessa forma, as terapias enfocavam a
recuperação da harmonia e do equilíbrio dentro da natureza, nas relações humanas e nas
relações com o mundo dos espíritos.
Na mitologia grega o processo de cura era considerado essencialmente um
fenômeno espiritual e várias divindades estão vinculados à saúde como é o caso da deusa
Higéia que velava pela manutenção da saúde, personificando a sabedoria, segundo a qual as
pessoas seriam saudáveis se vivessem sabiamente, e da deusa Panakeia que detinha o
conhecimento dos remédios derivados das plantas ou da terra. Já, ainda na Grécia, em um
período posterior, Hipócrates, Platão e Aristóteles já consideravam a unidade indivisível do
ser humano. Platão descrevia a alma como pré-existente ao corpo e a ele sobrevivente,
Em tempo de transformação 50
enquanto Aristóteles postulava que todo o organismo é a síntese de dois princípios: matéria e
forma. Hipócrates (460 a.C.), em uma tentativa de explicar os estados de enfermidade e saúde,
deu à medicina o espírito científico.
Segundo Capra (1982), no âmago da medicina hipocrática está a convicção de que
as doenças não são causadas por demônios ou forças sobrenaturais, mas são fenômenos
naturais que podem ser cientificamente estudados e influenciados por procedimentos
terapêuticos e pela judiciosa conduta de vida de cada indivíduo. Observa-se que a saúde
requer um estado de equilíbrio entre influências ambientais, modos de vida e os vários
componentes da natureza humana, descritos como humores e paixões que tem de estar em
equilíbrio químico e hormonal, tendo em vista que existe uma interdependência entre mente,
corpo e meio ambiente, a doença era entendida como uma desorganização desta
interdependência. Galeno (129-199 d.c) revisa a teoria hipocrática sobre saúde e doença e
ressalta que a causa da doença é endógena, ou seja, estaria dentro do próprio homem, em sua
constituição física ou em hábitos de vida que levassem ao desequilíbrio. O conceito de Galeno
a respeito de saúde e doença prevaleceu por vários séculos, até o suíço Paracelsus (1493-
1541) afirmar que as doenças eram provocadas por agentes externos ao organismo. Ele propôs
a cura pelos semelhantes, baseada no princípio de que, se os processos que ocorrem no corpo
humano são químicos, os melhores remédios para expulsar a doença seriam também
químicos, e passou, então, a administrar aos doentes pequenas doses de minerais e metais.
Durante a Idade Média, a doença era atribuída ao pecado, sendo o corpo o locus
dos defeitos e pecados, e a alma o dos valores supremos, como espiritualidade e
racionalidade. Santo Agostinho referia que o homem era constituído por substâncias racionais,
resultantes de alma e corpo, ambos criados por Deus. Já na modernidade observa-se um
interesse crescente pelas ciências naturais e Descartes, imerso neste contexto, postula a
separação total da mente e corpo, sendo o estudo da mente atribuído à religião e à filosofia, e
o estudo do corpo, visto simplesmente como uma máquina, era objeto de estudo da medicina.
Capra (1982) diz que quando o modelo biomédico considerou o corpo humano
como uma máquina descartou o fenômeno da cura como um processo que envolve uma
complexa interação entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais da condição
humana, reduzindo a saúde a um funcionamento mecânico-biológico em que a doença apenas
representa o mau funcionamento desse sistema. O processo de cura seria uma resposta
coordenada do organismo, que sofreu uma intervenção médica de ordem física ou química,
Em tempo de transformação 51
com o fim de reintegrá-lo às influências ambientais que podem causar tensão ao bom
funcionamento dos mecanismos biológicos.
Aí eu posso falar que eu tô bem, né. Não tem que falar que não tá bem, por que né,
se eu tivesse ruim assim, né. Pra viver bem eu tendo paz tá bom. Eu vivendo assim
com saúde né tá bom, né. É uma sensação assim de alívio de não ter, de não ter
mesmo o problema sabe (Margarida).
Aí eu só queria ter uma velhice tranqüila, né. Mas também já não tenho muita
esperança não por tanta complicação que eu tô. Essa enxaqueca, né [...] eu tenho
prolaxo mitral né, eu tô com alteração no colesterol, triglicérides e tenho problema
circulatório então eu tenho e tive essa urticária e eu tenho medo de complicar
(Rosa).
Neste sentido, ter saúde significa não ter doença, significa o pleno funcionamento
biológico do organismo e a busca por um médico seria apenas para tratar alguma disfunção,
que impede o bom desempenho desse organismo, considerando que a cultura da sociedade
ocidental é curativa.
Segundo Capra (1982), o avanço da biologia molecular reduz os problemas
médicos, em relação ao corpo, a fenômenos moleculares com o objetivo de se encontrar um
mecanismo central para a resolução da doença que, uma vez entendida, é contra-atacada por
um medicamento que, com freqüência, foi criado a partir do isolamento de outro processo
orgânico para abstrair o princípio ativo capaz de agir eficazmente na doença que está em
evidência para a intervenção médica.
Ao reduzir as funções biológicas a mecanismos moleculares e princípios ativos, os
pesquisadores biomédicos ficam inevitavelmente limitados a aspectos parciais dos fenômenos
que estudam, pois ao invés de perguntarem por que uma doença ocorre e tentarem modificar
as condições que levaram a ela, os pesquisadores concentram a atenção nos mecanismos pelos
quais a doença opera, com o intuito de neles interferirem. Por conseguinte, eles só podem
obter uma visão estreita dos distúrbios que investigam e dos remédios que desenvolvem.
Todos os aspectos que vão além dessa visão limitada são considerados irrelevantes, no que se
refere aos distúrbios e são enumerados como efeitos colaterais.
Em tempo de transformação 52
A partir do início do século XX, com o desenvolvimento da teoria psicanalítica, os
estudos de Freud conduzirão à idéia de psicossomático, compreendido como a
inseparabilidade e interdependência dos aspectos psicológicos e biológicos, ao resgatar a
importância dos aspectos internos do homem. Classicamente, psicossomático é definido como
todo distúrbio somático que comporta em seu contexto um fator psicológico interveniente o
qual contribuirá para a gênese da doença, tendo em vista que a mente humana é capaz de criar
um mundo interior espelho da realidade exterior, mas possui uma existência própria e pode
levar um indivíduo a agir sobre esta realidade por meio de experiência passada, expectativa,
propósitos e interpretações simbólicas individual da vivência percebida, pois, segundo Capra
(1982), o mundo interior envolve fenômenos característicos da natureza humana que são a
autoconsciência, a experiência consciente, o pensamento conceitual, a linguagem simbólica,
os sonhos, a arte, a criação de cultura, o senso de valores, o interesse no passado remoto e a
preocupação com o futuro distante.
Ao considerar, efetivamente, a existência de um mundo interior e sua influência no
processo saúde/doença, a ciência médica poderá realizar uma mudança de paradigma, ou seja,
promoverá a passagem de uma concepção mecanicista e reducionista da natureza humana
para uma concepção que pondera a interligação mente/corpo e sua dependência com os
aspectos sociais e ambientais na definição de saúde, uma vez que a enfermidade física seria
considerada como uma das numerosas manifestações do estado de desequilíbrio interno do
organismo vivo. Qualquer estímulo que venha a perturbar o organismo, inclusive o
psicossocial, o perturbará em sua totalidade, pois a saúde dos seres humanos é
predominantemente determinada, não por intervenção médica, mas pelo comportamento, pela
alimentação e pela natureza de seu meio ambiente. À medida que se alteram esses três fatores
mudam também os tipos de doenças.
Capra (1988, p.124) diz que:
[...] no futuro a assistência à saúde terá que ir muito além da medicina
convencional, passando a lidar com toda a enorme rede de fenômenos que
influenciam a saúde. Não terá de abandonar o estudo dos aspectos biológicos das
doenças, em que a ciência médica se sobressai, mas será necessário relacionar esses
aspectos às condições físicas e psicológicas gerais dos seres humanos em seu
ambiente natural e social.
Em tempo de transformação 53
Enquanto reinar, no imaginário social, a concepção ocidental moderna de saúde,
tornará difícil ampliar e exercitar o conceito de saúde não como ausência de doença, mas
como estado de relações e interações que consideram o bem estar físico, mental, emocional,
espiritual e social do ser humano, como ocorre nas culturas orientais. Capra (1982) coloca que
na cultura chinesa, saúde é um estado de bem-estar que se estabelece quando o organismo
funciona em consonância com as múltiplas relações entre ambiente natural e social. Para os
chineses, o universo encontra-se num estado de equilíbrio dinâmico entre os opostos Yin
(escuro, contrai, reage, conserva etc.) e Yang (claro, expansivo, agressivo, exige etc.) que
representam a ordem natural do equilíbrio. Assim, a doença só se manifestará quando o corpo
sai do equilíbrio. Pode ter causa externa, mas o que sobrepõem é que toda enfermidade se
deve a um conjunto de causas que levam à desarmonia e ao desequilíbrio. Segundo a cultura
chinesa, a natureza de todas as coisas é a homeostase
4
e saúde/doença são vistas como
naturais por serem partes de uma seqüência contínua, por serem aspectos de um mesmo
processo de flutuação em que cada organismo se modifica de maneira contínua em relação ao
meio ambiente inconstante.
Na concepção chinesa, o organismo humano é sempre visto como parte da
natureza e sujeito a influências da mesma, por isso o indivíduo é responsável pela manutenção
de sua própria saúde e até, em grande parte, pela recuperação da saúde quando o organismo se
desequilibra. Capra (1988, p. 130) diz que “[...] é nossa responsabilidade pessoal buscar a
saúde cuidando de nosso corpo, respeitando as normas sociais e vivendo de acordo com as
leis do universo. A doença é vista como um sinal de falta de cuidado da parte do indivíduo.”
Enquanto na medicina ocidental o médico é aquele que tem um conhecimento
detalhado de uma parte específica do corpo. Na medicina oriental, o médico é um sábio que
conhece a maneira como todos os padrões do universo trabalham juntos, que trata
individualmente de cada paciente e que registra da forma mais complexa possível o estado
global da mente e do corpo e sua relação com o ambiente natural e social. Ao definirmos o
mundo em termos de relações e de integrações de diversos sistemas, torna-se possível
aproximar o conceito de saúde da medicina ocidental ao da oriental. A atividade dos sistemas
envolve o processo de interação simultânea e mutuamente interdependente entre componentes
múltiplos por dizer respeito a um pensamento de processo, ou seja, a forma torna-se associada
ao processo, à inter-relação, à interação e aos opostos são unificados através da oscilação.

4
Palavra criada pelo neurologista Walter Cannon em 1929 para designar a tendência dos organismos vivos a
manterem um estado de equilíbrio interno.
Em tempo de transformação 54
Para Capra (1988), o organismo saudável se encontra num estado de homeostase,
isto é, em equilíbrio dinâmico, em que a saúde está associada à flexibilidade e a doença ao
desequilíbrio e a perda da flexibilidade. Para ele, toda atividade auto-organizadora é mental,
os processos de adoecer e sarar são essencialmente processos mentais, a maioria ocorre no
domínio do inconsciente e nem sempre estamos cientes de como entramos e saímos da
doença. Assim, a doença é em sua própria essência, um fenômeno mental (psicossomático),
pois sua origem, desenvolvimento e cura envolvem interações contínuas de mente e corpo.
Para ele (1988, p.145), “A nossa saúde é determinada, sobretudo, pelo nosso comportamento,
a origem das doenças deve ser procurada numa composição de diversos fatores causais; a total
ausência de enfermidade é incompatível com o processo vital.”
As doenças crônicas e degenerativas, como o câncer, ilustram com veemência
diversos aspectos chaves da concepção de saúde/doença, ora discutida, por estarem
intimamente relacionadas a fenômenos físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais
quando consideramos as atitudes estressantes, poluição ambiental, abuso de drogas, vida
sedentária, alimentos modificados geneticamente, entre outros, como fatores que influenciam
no surgimento da doença. O câncer representa o colapso da resistência do organismo e, em
grande parte, a recuperação consiste em reconstruir essa resistência básica, reconstruir a
realidade com novas maneiras de viver, mudando crenças e convicções e transformando
insights em ações.
A realidade de enfrentar um organismo em colapso, em desequilíbrio, que deixa
de estar saudável para estar enfermo, pode deixar a pessoa mais sensível para a reflexão de
outra mudança de estado, que também causa dor, sofrimento, terror, obsessão, repúdio, talvez
por representar a perda da individualidade que está materializada no eu envolta por um corpo
físico, dando forma e expressão à imagem de uma pessoa que no decorrer da vida construiu
uma história, vínculos que, muitas vezes, sustentarão sua presença, mesmo na ausência desse
corpo que nada mais é do que um organismo térmico, químico, orgânico, físico e por isso está
sujeito a um principio de degradação, de desintegração por sua própria estrutura.
Morin (1970, p. 39) diz que:
[...] O horror da morte é, portanto, a emoção, o sentimento ou a consciência da
perda da individualidade. Emoção – choque, de dor, de terror ou de horror.
Em tempo de transformação 55
Sentimento que é de ruptura, de um mal, de uma catástrofe, isto é, sentimento
traumático. Consciência, enfim, de um vazio, de um vácuo, que se cava onde havia
plenitude individual.
Segundo Morin (1970), a morte representa uma mudança de estado, um
acontecimento, uma metáfora da complexa vida, que acentua e amplia a desordem, para nela
encontrar a renovação da sua ordem, ou seja, a todo instante vivemos de morte para
possibilitar o crescimento e o desenvolvimento do ser. Neste sentido, fazermos um paralelo
com o processo saúde/doença torna-se totalmente oportuno, principalmente se parafrasearmos
Capra (1988, p. 145) ao dizer que “a total ausência de enfermidade é incompatível com o
processo vital”, como a ausência de morte é incompatível com a presença da vida.
O acontecimento da morte é traumático na própria essência e a consciência
traumática da morte nos faz aprofundar no significado da perda irreparável da
individualidade, o que torna mais real o apelo à imortalidade, ou seja, o prolongamento da
vida por período indefinido.
Sabe assim, eu sempre quis deixar de viver, não é que eu quero morrer não, não
queria estar vivendo e eu tenho muito medo da dor (Rosa).
Eu não tenho medo da morte não. Para mim, pela minha fé eu penso assim que
depois que morre a gente vai viver uma vida. Eu para mim é assim, eu creio na
ressurreição de Cristo então [...] o espírito, se a gente fez o bem, vai viver bem pra
mim é assim (Margarida).
Os mitos, os medos e os sofrimentos em torno da morte auxiliam as pessoas a
desenvolverem mecanismos capazes de sustentar a vivacidade necessária para enfrentar uma
situação cerceada por crenças que podem conter uma verdade oculta, ou mesmo vários níveis
de verdade. Embora a doença insista em evidenciar a eminência da morte, como expõe
Gardênia:
Em tempo de transformação 56
O que eu achei mais estranho de toda essa trajetória foi um dia que eu fui num
velório que todo mundo me olhava, eu não consegui ficar lá dentro. Eu estava boa,
foi no fim de dezembro, eu estava totalmente bem: Aí né logo é a vez dela. A eu saí
de dentro, eu não vou mexer de ficar aqui dentro não, nossa foi um negócio muito
estranho o jeito que as pessoas me olhavam e eu fui sem pensar nisso, pensei isso na
hora lá, mas eu nem temia isso que pudesse acontecer isso, mas todo mundo ficava
me olhando de uma maneira, dava a impressão que a próxima era eu.
A pessoa espera atitudes que provem a existência de vida e por isso, muitas vezes,
a retirada da mama pode significar uma vitória, mesmo que parcial, frente à morte:
Eu li o resultado né, que era maligno, aí, ainda falei pra ele: - Tira os dois. Eu tinha
feito mamografia um ano atrás e não acusou. Então foi um tipo assim bem violento
esse meu, já estava com dois centímetros (Rosa).
Eu falo que eu tinha. Um dia ainda eu brinquei com uma mocinha: - he aí como você
ta? Eu tô bem! Ela começou a especular o que tive. - Eu tirei. - Arrancou. -
Arranquei joguei pro cachorro. Ainda brinquei assim, sabe (Margarida).
Interessante colocar que pode ocorrer a comparação da gravidade do problema
com o tipo de cirurgia recomendada e que esta significa a possibilidade de não conviver com
algo que ameace a plenitude da felicidade de simplesmente viver. Esta situação foi relatada
por uma das pacientes atendidas pela Abrapec que usou a seguinte expressão “quando algo
não nos serve mais, a gente joga fora. Foi isso que eu fiz, joguei no lixo”. Observa-se, assim,
a criação de justificativas compensatórias que auxiliam no processo de reconhecimento do eu
num corpo que foi transformado, mas que conservou a essência para dar sentido à identidade
que faz sermos nós e não o outro.
Eu acho que não tem uma perda dessa, eu acho que é muito pouco, a gente tem que
pensar que tem umas perdas muito maiores (Rosa).
Assim, damos foco naquilo que consideramos emergencial na construção das
referências e significados dos objetos, pessoas, acontecimentos do momento em que se vive,
transformando tudo em experiências a serem transmitidas com um grau de conhecimento de
Em tempo de transformação 57
quem viveu sensivelmente o fato. Dona Angélica aborda essa questão ao falar da vida com
uma vivacidade extremamente envolvente, encantadora, que nos faz pensar que o colorido da
arte de viver esta compactado no olhar de seu autor.
Uai é bom estar vivo, levar a vida o que você fala não é igual a vida que vai
empurrando com a barriga não, vamos viver a vida, viver o hoje né. Pra mim é
importante eu levanto é feliz agradecendo a Deus pela noite que eu tive, e
oferecendo o dia que eu vou passar e trabalhar. Ouço o rádio né, gosto às vezes de
ouvir música e é assim. Então vivendo o hoje você, por exemplo, é começou o dia se
você tem idéias, vamos fazer isso pra melhorar, vamos fazer aquilo, não é! Que se
morrer no dia de ontem, não está vindo o dia de amanhã, mas é que você tem que ter
um pensamento positivo, vamos viver o hoje né. Pro futuro vamos pensar né. Pois
nos vamos viver o dia de amanhã? Nos não sabemos (Angélica).
Por esta fala observamos o que Heráclito quis dizer com viver de morte, morrer de
vida, pois a energia buscada nos elementos do presente possibilita acreditar na execução dos
planos do amanhã, que só existirão mediante a morte do presente, que por ter dado o máximo
de si tornará uma lembrança doce do ontem que não retornará da mesma forma que foi.
Através do corpo, expressamos nossos sentimentos, valores, atitudes, sensações,
percepções que nos colocam em comunicação com elementos que não ocupam a mesma
espacialidade, ou seja, estão concretamente na mesma dimensão física. A corporeidade
possibilita ao ser humano realizar o processo de identificação e até imaginar-se no lugar do
outro, prevendo ações que lhe são peculiares por serem individuais.
Eu vejo muito caso triste, aí fico me imaginando no lugar delas de passar por essas
coisas. Então é isso aí que eu tenho medo (Rosa).
A corporeidade do corpo feminino e a cicatriz deixada pela doença configurarão o
fio condutor para a reflexão do próximo capítulo.
CAPITULO 2
AS INTERFACES DO CORPO FEMININO IMAGINADO E DO CORPO
REVELADO
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 59
O nosso objetivo, neste capítulo, é alinhavar, ao contexto sobre o câncer de mama,
uma reflexão sobre corpo e sua imagem que, numa relação dialógica, é modelado,
remodelado, deformado, transfigurado e embelezado por elementos internos, externos
fisiológicos, neurais, emocionais e sociais que permitam acompanhar as transformações e
evoluções inerentes aos instantes e situações vivenciadas pelas pessoas desde o nascimento
até a morte do corpo físico, o qual dá forma e expressividade a um eu que ocupa determinado
espaço e tempo na lógica cósmica da existência. O corpo e a sua imagem são elementos
simbólicos e materiais acessíveis ao conhecimento, que é sempre renovável e translúcido para
que se possa promover, além da construção cognitiva, uma reflexão sobre os desejos, as
atitudes emocionais e a interação com o outro, pois, como diz Lima (1995, p. 376), “O corpo
é a casa do desejo. Ele se dá qual uma efusão luminosa num transbordamento que o configura
como fascinante, como excessivo.” Sendo assim, sua imagem vai condensando a vivência de
si mesmo com o mundo circundante, resgatando o passado para fundi-lo com o presente e
transcender para o futuro. É uma experiência vivida na diversidade de seus aspectos,
transformando as relações externas com o mundo e sendo transformada por elas, a partir do
instante em que nos reconhecemos como um “ser” que reage às diversas inter-relações
estabelecidas pelos mesmos corpos, que tentam realizar a busca pela compreensão da
existência de imagens – a busca por sua própria existência.
A construção da imagem do corpo refere-se às percepções, às sensações, aos
pensamentos e aos sentimentos sobre ele e suas experiências subjetivas/objetivas,
abstratas/concretas que relatam como a pessoa se percebe e como as influências sociais
participam desse processo, como são construídos os discursos e as significações de elementos
que são valorizados e/ou desvalorizados pelo ambiente.
[...] sabe quando eu operei, eu já percebi isso em muitas, a gente não tem vergonha
nenhuma de estar sem o seio quando você acaba de fazer a cirurgia e está fazendo os
curativos. Depois vai voltando a vergonha. Hoje eu tenho vergonha de mostrar para
o médico, eu tenho vergonha até da violenta
5
. Não me preocupou a falta do seio no
início, por dois anos, não me preocupou de jeito nenhum, depois já começou a
mudar (Rosa).

5
Nome fictício da Fisioterapeuta que realiza drenagem linfática nas mulheres do grupo Uniama.
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 60
Observa-se que a imagem está em constante movimento e estabelece uma
interface de relacionamentos que se moldam pela imagem de si e a do outro, ou seja, no
contexto do extirpamento do seio para resguardar a vida sua falta torna-se superável, mas no
decorrer do processo de restabelecimento da saúde o mesmo pode retomar sua importância de
traço identificatório. Assim, a imagem que se constrói pode sugestionar a pessoa a ver o que
se espera ver, pois a maneira como sente e pensa o próprio corpo influencia seu
comportamento, as relações interpessoais, os hábitos e o modo como percebe o mundo;
porque o corpo pode ser visto como um palco de imagens corporais construídas, local de
descobertas que vão se revelando a partir do instante que a pessoa se reconhece como um ser
que reage às diversas inter-relações estabelecidas pelo mesmo corpo, que tenta realizar a
busca pela compreensão da existência de imagens, a busca por sua própria existência.
É importante ressaltar que não se pretende discutir as teorias sobre a imagem
corporal, mas introduzir uma reflexão das imagens e significados do corpo feminino
construído pelas mulheres acometidas pelo câncer de mama.
2.1 Sobre o corpo na constituição do sujeito
Nosso corpo é, antes de tudo, nosso primeiro e maior mistério. Para estarmos
realmente presentes no mundo, é preciso reconhecer que somos um corpo em sua imensidão
de processos complexos que nos fazem ricos em sua consciência e inconsciência e em suas
atitudes, que são sempre corporais.
Para a mitologia grega, o corpo humano vem da terra, pois Prometeu, filho de
Jápeto, um dos 12 titãs e irmão de Zeus, querendo povoar a terra com criaturas dotadas de
espírito, apanha a argila, molha com água de um rio, e a modela à imagem e semelhança dos
deuses do Olímpio. A esse boneco acrescenta a alma dos animais, com suas características
boas e más que irão se alojar no peito do ser humano. Atena, deusa da sabedoria, admirando a
obra de Prometeu, empresta-lhe o sopro divino, animando o espírito no interior desse novo
ser. Essa gênese humana é semelhante àquela indicada na tradição judaico-cristã,
completamente integrada e integrante da natureza e da essência divina, predominante durante
milênios na história das mais diversas civilizações.
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 61
O conceito de natureza já possui, em sua etimologia, o sentido da ação de "fazer
nascer", proveniente do latim natura, substantivado em nascimento e vinculado ao verbo
nasci, nascer, ser nato. A natureza seria, então, responsável por gerar, fazer nascer, o ser
humano do interior de si própria, dando-lhe um corpo visível para manifestar sua
materialidade por meio de um sistema de interações e conexões com a própria natureza que o
criou. Nesse sentido, o corpo poderia ser entendido como “morada” de um ser vivo dando-lhe
formas, percepções e espacialidade múltiplas e cada nascimento continuaria recriando o
milagre de algo visível emergindo de um mistério vasto e invisível. Pollack (1998, p. 48) diz
que: “[...] O visível é qualquer coisa física e substancial. O invisível surge como qualquer
coisa real, mas que não pode ser tocada.”
Nesta questão do visível/invisível, no contexto do câncer, é interessante observar
sua quase natural associação a representação da queda do cabelo no decorrer do tratamento e
todo o sofrimento pela convivência diária com a imagem identificatória de uma
individualidade no meio da multidão, pois, segundo Lima (1995, p. 423), “A imagem é uma
revelação. A imagem é a ‘percepção’ de um descobrimento onde o sujeito e o objeto se
interpenetram, numa afinidade, é a percepção/sensação de uma unidade, de uma revelação”,
dada pelo imaginário que consiste em dar forma e até mesmo concretude à mesma.
O meu tratamento, graças a Deus, não foi tão forte, né. Assim, por que eu não tive
queda de cabelo, né. Eu não tive enjôo. Só que dava muito sono, né. Então, sei lá, eu
tenho mais que agradecer (Margarida).
A eu vejo meu corpo, não como era antes que eu tinha [...] Agora eu vejo que eu
sem cabelo. Eu vejo, parece que eu fico com uma pressa que acabe essas
quimioterapia pra ver se o meu cabelo volta. Eu tenho esperança que vai voltar, né
(Jasmim).
A perspectiva compensatória da vitalidade do novo, de uma volta do cabelo com
aspecto mais formoso, belo, forte representando talvez a permanência do esplendor da saúde,
permite a percepção da continuidade do mesmo corpo, ou seja, não terá o registro do eterno,
deixado pela retirada do seio, que promoveu a transformação desse corpo e o desvio
permanente do olhar para uma parte que estará à mostra, isto é, a pessoa sente que o próprio
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 62
colo está mais visível como se a marca deixada pela doença em seu corpo fosse a referência
para a construção de sua imagem.
Hoje a cicatriz é muito perfeita né. Não é bonito, é triste (Margarida).
Você lembra disso quase toda hora sabe, se você vê um colo bonito né, um decote
bonito. Quem que não acha bonito? Você vê que você não tem, né. Outro dia nos
estávamos em uma festa eu quase morri de dó de uma lá, ela pôs um decotinho, até
de alcinha, é difícil pra você por uma alcinha, né, por que deixa ver aqui oh (a
paciente mostrou o vão entre os dois seios), quando agacha. Qualquer decotinho, né,
e geralmente a gente esquece quando vê tá a mostra (Rosa).
Perfeito/imperfeito; bonito/feio; alegre/triste são adjetivos que recorrentemente
ouvimos das mulheres do grupo Uniama, e também da Abrapec, quando se referem ao próprio
corpo. Nota-se que a perfeição nem sempre está ligada ao belo, quando nem a cicatriz perfeita
foi capaz de disfarçar o feio envolvido pelo sentimento de tristeza, quando uma roupa linda,
perfeita, não foi capaz de ocultar a impressão de que falta uma parte do envoltório daquele eu.
Este envoltório, assim como a natureza, está em constante transformação por ser
parte de uma totalidade complexa, com caráter interdependente das partes que o constitui. A
ciência clássica, segundo Santaella (2004), desnaturalizará este corpo ao concebê-lo apenas
como idéia de matéria, reduzida a uma unidade última e indivisível que é o átomo. Está
matéria é inanimada e controlada por meio de leis mecânicas exteriores embasadas na
matemática e na física clássica, responsáveis por moldar o corpo humano, para que este fosse
reconhecido. Enquanto isso, o ser humano é entendido como indivíduo moral, independente
e autônomo. Esse entendimento vai se constituir entre os séculos XVIII e XIX, e será
interiorizado no século XX. A Modernidade é o momento de culminância de um processo em
que não só se encontra a separação entre ser humano e natureza, mas também a transformação
de todos os seres humanos em indivíduos.
Santaella (2004) entende o indivíduo na modernidade como aquele que cumpre
duas funções distintas para a teoria social: universalização e individualização. Na
universalização, o indivíduo é uma figura que representaria o grau zero da humanidade, o
lugar ao qual, de forma inicial, todas as características humanas se referem, por meio dos
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 63
corpos e faces individuais, para um sujeito que é universal – o ser humano que independe das
diferentes faces e corpos por considerá-lo único. Pela individualização, o corpo é um
mecanismo para o indivíduo se expressar e assim tornar-se existente, pois sem esse corpo o
sujeito não pode cumprir a função universalizante. Nesta lógica ocorre um paradoxo entre
universalização e individualização que dificilmente será objeto de estudo na modernidade: o
sujeito exige a individualização a fim de expressar a universalização, mas existe sempre o
risco de que o olhar e o reconhecimento se apeguem ao corpo e frustrem a passagem em
direção ao lugar do sujeito universal e abstrato que é parte de uma das diversas espécies de
seres vivos – o humano.
Segundo Silva (1999), a Modernidade, coroada pelas Revoluções Burguesa e
Industrial, transformará o ser humano em objeto de conhecimento, com um incremento do
interesse pelo corpo, com base nas diferentes perspectivas postas na sociedade e nos conflitos
de interesses que estão em jogo. A preocupação essencial não está vinculada à natureza
humana, mas sim ao conhecimento: o mundo não tem mais unidade e se transforma num
conjunto de objetos oferecidos ao conhecimento humano por intermédio da pesquisa
científica, no qual até mesmo Deus só pode ser compreendido pela razão.
A autonomia do sujeito cognoscente configura-se uma das primícias que conduzirá
o indivíduo moderno, separado de tudo e de todos, a utilizar da racionalidade como meio para
se tornar senhor e possuidor da natureza. Para que isso ocorra é preciso ser cada vez menos
contemplativo, tendo em vista que a contemplação passa a ser identificada com descanso
diferente da conduta de um trabalhador se sujeitando, no decorrer da história, às leis civis e
temporais, negligenciando tudo que estiver relacionado com o encantamento, magia ou
superstição do mundo. A história natural vai se organizar, inclusive relativa ao próprio ser
humano, com uma linguagem eminentemente descritiva e com demonstrações infalíveis que
buscam excluir todos os componentes não-objetivos ao reforçar a individualidade humana,
percebendo de forma mecânica o funcionamento corporal e cortando os vínculos com a
percepção da alma como fonte energética, e leva, por fim, a enfatizar o individualismo das
partes do corpo e das partes constituintes da sociedade. A perda com a vinculação à alma é
compensada pela dinamicidade proveniente da força mecânica que é atribuída ao próprio
corpo capaz de consolidar uma imagem corporal presa à materialidade.
Nessa civilização material, na qual convém libertar o ser humano da tirania da
natureza, o corpo entra em cena com toda a sua dualidade, com a força da sua materialidade
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 64
que é respeitada como nova instância de reconhecimento do humano e com o obscurantismo
de sua natureza que não se deixa apreender facilmente. A materialidade do corpo configura-se
num elemento capaz de evocar sentimentos de rejeição, de estranhamento, quando a imagem
deste foi transfigurada pelo câncer.
Ah é de uma, como é que eu falo, um aleijo entendeu. Eu me considero deficiente
físico (Rosa).
[...] a sogra dela também teve esse problema igualzinho, foi igual ao meu, danificou
o braço dela a mesma coisa do meu. Aí eu falei pra ela assim: - a gente tem
possibilidade de voltar de ficar normal como a gente era? - Não, dona Jasmim, pode
voltar um pouco sim, a senhora vai melhorar, ficar boa, mas voltar ao que a senhora
era antes acho que é meio difícil. Com certeza a sogra dela está curada há mais
tempo tudo, né (Jasmim).
As falas nos convidam a reflexão de como a percepção e os conceitos construídos
socialmente contribuem para a edificação da auto-imagem experimentada abstrata e
concretamente nas interações com o meio ambiente, ou seja, existe um padrão de normalidade
natural para a forma do corpo físico e qualquer elemento, fora deste padrão, configura uma
deficiência, uma deformidade, uma anormalidade reconhecida como diferente, mas vivida,
algumas vezes, com indiferença. Da mesma forma que a falta do cabelo, por estar à mostra,
possibilita a criação de estereótipos, a falta do seio ou as limitações do braço, em
conseqüência da retirada da mama, possibilitam a criação de imagens que, por transcenderem
ao real imediato, podem promover redefinições na identidade pessoal e social, pois como foi
abordada, a imagem tem como alicerce a sensorialidade, por supor o encontro com o outro
desde que este seja significante ao olhar de quem define.
Neste contexto, observa-se que, ao longo do século XX, ocorreram
transformações epistêmicas que viabilizaram a reaproximação das ciências naturais, biológica
e humanas para a compreensão da dimensão complexa do ser humano ao reincorporá-lo à
natureza, apontando possibilidade de problematizar a concepção de corpo simplesmente como
máquina produtora de individualidades e superioridades.
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 65
O corpo humano possui a mesma organização dos outros seres vivos do reino
animal, ou seja, uma organização particular da matéria físico-química que se constituirá na
célula, a unidade fundamental da vida, porém, com estrutura especifica que irá adquirindo
originalidade à medida que vai interagindo com o entorno. O homem, segundo Morin (2005
a), ao descobrir que os animais se comunicam, que possuem rito e símbolo e um território,
reconhece que essas características não são exclusividades humanas.
Assim, o homem surge a partir da natureza, devendo ser considerado, além de
inerente a ela, inerente ao mundo e à animalidade. A distinção entre o homem e os outros
animais ocorre pela diferença existente entre os corpos. Cada animal possui um mundo que
lhe é específico e a vida é compreendida através da abertura de um campo de ações em que
cada animal, ao mesmo tempo em que é criado por ele, é capaz de criá-lo de acordo com
temporalidade e espacialidade próprias. Mundo de seres vivos diferenciados, percepções
diversas.
A distinção entre o homem e os outros animais ocorre, também, pelo processo de
hominização que foi longo e complexo. Segundo Morin (2005d), a hominização representa
um ponto de mutação que produz humanidade, gera cognição, acumula e transmite saberes
culturais. Inicia-se a mais ou menos a sete milhões de anos atrás e não configura um processo
contínuo, pois se observa a aparição de novas espécies (habilis, erectus, neandertal, sapiens)
e o desaparecimento das anteriores, bem como pela domesticação do fogo, pela dialógica
entre desenvolvimento da bipedização, da manualização, da verticalização, da cerebralização,
da juvenilização e da complexificação social, processos ao longo dos quais aparece a
linguagem propriamente humana, ao mesmo em tempo que se constitui a cultura com crenças,
costumes, mitos e saberes que são transmitidos de geração em geração.
O processo de cerebralização exige do animal mutante um conhecimento cada vez
mais extenso e preciso do mundo exterior e do seu próprio mundo interior, para que seja
possível o desenvolvimento de aptidões para tomar decisões e encontrar soluções num grande
número de situações diversas e imprevistas. Neste momento, o hominídeo se depara com um
ambiente (floresta transformando-se em savana) que o torna um animal simultaneamente
presa e predador, que terá que criar mecanismos defensivos e ofensivos, além construir
abrigos para se proteger. A caça estimula habilidades e aptidões estratégicas para o animal
presa e animal predador, considerando que ambos se dissimulam, esquivam, enganam. Além
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 66
disso, a caça intensifica e complexifica a interação entre pé, mão, cérebro e utensílio, que, por
sua vez, intensifica e complexifica a caça.
Associado aos progressos da cerebralização, o processo de juvenização da espécie
favorecerá o aprendizado e o desenvolvimento intelectual e afetivo por estar relacionado com
o prolongamento do período biológico da infância e da adolescência, em que ocorrerá a
continuação do desenvolvimento organizacional do cérebro em relação estreita e
complementar com os estímulos do mundo exterior e da cultura imprescindíveis para o
desenvolvimento da complexidade social.
A hominização biológica foi necessária para a elaboração da cultura e esta foi
necessária à continuação da hominização, pois, segundo Morin (2005d), a cultura é conjunto
de hábitos, costumes, práticas, saberes, normas, interditos, estratégias, crenças, mitos, que
deve ser transmitida, ensinada, aprendida e reproduzida em cada novo indivíduo no período
de aprendizagem (juvenização) para se poder autoperpetuar e perpetuar a alta complexidade
social. Pelo progresso da juvenização, percebe-se a regressão dos comportamentos instintivos,
programados de maneira inata quando estimulados pelo ambiente, ao mesmo tempo em que o
progresso da cerebralização permitirá o desenvolvimento das possibilidades associativas do
cérebro, capazes de criar novas habilidades e competências para o enfrentamento das
situações dadas por esse ambiente. Assim, a cultura pode ser vista como um capital
organizacional capaz de nutrir, orientar e programar os comportamentos sociais.
Carvalho (2003) coloca que a cultura tem sentidos polifônicos, plural por se tratar
de uma práxis cognitiva que contempla ações, pulsões, corporeidades, castrações e desatinos
do homo que se tornará sapiens-demens no futuro. Assim, a cultura passa a ser um agente da
evolução hominizante por acolher favoravelmente toda a mutação biológica que vise à alta
complexidade social, núcleo gerador da alta complexidade hominídea e humana, que tem
como produto a linguagem discursiva e escrita.
A linguagem constitui o primeiro sistema discursivo que inter-relaciona o
biológico, o humano, o cultural e o social. Ela é parte integrante da totalidade humana, mas a
totalidade humana também está contida nela por referir-se a multiplicações das relações
internas e externas, coletivas e individuais.
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 67
De acordo com Morin (2005d, p. 36-37),
A linguagem é uma máquina [...] Funciona fazendo funcionar outras máquinas que
a fazem funcionar. Assim, está vinculada à engrenagem da maquinaria cerebral dos
indivíduos e da maquinaria cultural da sociedade. É uma máquina autônomo-
dependente numa polimáquina. Depende de uma sociedade, de uma cultura, de
seres humanos que, para se realizar, dependem da linguagem.
A linguagem, como sistema de dupla articulação em que o pensamento só pode ser
expresso pela combinação de palavras com definições precisas e imprecisas, para que possam
ser extraídas palavras do sentido usual e fazê-las rumar para novos sentidos, representa a
originalidade humana e sua diferença em relação à linguagem dos outros animais. Com o
advento do Homo sapiens, a linguagem dá um salto qualitativo-quantitativo, por via da
intensificação das micro-comunicações (relações no seio da família e entre os indivíduos) e
das macro-comunicações na sociedade e entre sociedades.
A hominização norteará o processo de separação do homem dos demais animais,
quando possibilitará o surgimento do hominídeo rumo à espécie humana. Porém, é importante
salientar que sem animalidade não há humanidade por se tratar da essência de um animal que
se tornou homem psico-sociocultural. Em relação ao corpo, a espécie humana possui a
mesma organização de outros seres vivos do reino animal, porém, com estrutura diferente, vai
adquirindo originalidade à medida que vai interagindo com o entorno, à medida que o cérebro
possibilita a emergência do que Morin (2005d, p. 38) chama de espírito (mente): “[...] Quando
escrevo espírito, quero dizer mind, com todas as diversas qualidades que surgem com ela,
entre as quais o ingegno de Vico (aptidão combinatória, inventiva).”
Ao referir-se ao espírito como mente, Morin (2005d) coloca que a mesma
amplifica as formas de inteligência existentes no mundo animal, uma vez que a inteligência, à
qual nos referimos, está associada ao pensamento que questiona e problematiza, encontra
soluções, inventa e cria, inclusive, uma consciência, atividade reflexiva do espírito sobre si
mesmo, sobre suas idéias, sobre seus pensamentos. A consciência pode atuar sobre o ser
humano refletindo sobre si mesmo, ou atuar sobre o próprio conhecimento, tornando-se
conhecimento do conhecimento.
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 68
O corpo possui historicidade tanto na estrutura orgânica quanto nas interações com
a cultura em que o ser humano vai convivendo. A historicidade do corpo faz com que haja
modificações e os gestos adquiram significados novos mediante as experiências que vão
ocorrendo. Esses gestos podem ser considerados campo de visibilidade da articulação entre
natureza e cultura. Portanto, apesar de todos os seres humanos serem capazes de gesticular, os
gestos expressam as singularidades individuais e culturais apresentando linguagens
específicas. Essa articulação, ao mesmo tempo em que contribui para refutar o reducionismo
referente à naturalização do corpo e do movimento humano, revelando os aspectos culturais e
sociais, expõe algo que é comum a todos os seres humanos, ou seja, a linguagem do corpo que
está sempre se reorganizando. E, por possuir espacialidade e temporalidade próprias, cada
corpo vai adquirindo percepções de acordo com o mundo que lhe é específico. Cada corpo
mantém relações com o espaço em que está inserido, com os outros animais, seja da mesma
espécie ou de espécies diferentes.
Meu irmão ficou curioso. No outro dia eu chamei ele: - Você tem vontade de ver?
Ah! eu tenho, você não importa de mostrar. – Não! Vem cá que eu vou te mostrar
agora. Eu já tirei o negócio no hospital mesmo ele já viu (Gardenia).
As dimensões históricas dessas relações mostram que a intencionalidade dos
gestos expressa a maneira única de existir no ato do momento vivido, uma vez que o corpo
humano, por estar atado ao mundo através de uma relação dinâmica, atribui à consciência
sentidos que se renovam conforme a situação. Para Durand (1993), a consciência dispõe de
duas maneiras para representar o mundo: uma direta como na percepção ou na simples
sensação e outra indireta quando o elemento não pode apresentar-se em carne e osso a
sensibilidade, ou seja, o objeto ausente é representado na consciência por uma imagem repleta
sentidos e significados. O sentido faz que para a consciência humana, nada é simplesmente
apresentado, mas tudo é representado. Os objetos só existem pela figura que o pensamento
objetificante lhes dá, são eminentemente símbolos, dado que só se agüentam na coerência da
percepção, da concepção, do juízo ou do raciocínio, pelo sentido que os impregna.
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 69
Em casa eu esqueço e chega gente eu tô sem sutiã. Eu quase morro de vergonha. É
por que, né, percebem mesmo. Eu acho bonito o colo é mais bonito que [silêncio].
Falar que não fica diferente não tem jeito, né (Rosa).
Hoje eu olho, olho e falo assim: - Nossa que seio bonito daquela. Porque agora eu
não tenho mais aquela perfeição. Mesmo com a prótese tem que estar arrumando
entorta tudo (Margarida).
Agora me olhavam parece que ficou um negócio meio estranho. Você escutar uma
coisa a vida inteira e depois você se vê sem um pedaço, pra mim é difícil essa parte
também. Parece, como diz: - Cai do galho. Você sente assim, parece que agora [...]
eu fiquei assim meio órfã. Sem amigos. Estranho sabe, mas ninguém comenta nada,
né. [...] Tá estranho (Gardênia).
A inevitável convivência concorrencional de opostos acaba por despertar o olhar
para situações nunca antes percebidas, mas que agora são valorizadas no processo de
edificação de uma nova forma de estar no mundo ao tentar buscar outras referências para a
construção da imagem do eu, haja vista que a identidade é uma questão chave na
representação de qualquer objeto por configurar-se no predito da visão de mundo.
Portanto o ser humano é um ser vivo complexo, uno e múltiplo simultaneamente,
que faz parte de um tempo considerado uno e múltiplo também, do qual, além de ser o
produto, é o produtor. Corpo multidimensional, que além de ser técnico e racional, é mítico,
festivo, dançante, capaz de sentir e provocar êxtase, amor e guerra, segundo Morin (2005d).
Na multidimensionalidade do corpo a subjetividade, inscrita na superfície do
mesmo e produzida pela linguagem, representa mais uma faceta a ser considerada neste
imenso sistema de inter-relações e conexões. Santaella (2004) coloca que os estudos
moranianos apontam a subjetividade como complexa e incerta, uma vez que a incerteza
existencial é a marca do propriamente humano, do que decorre a necessidade de fundar o
pensamento na ausência de fundamento e de reinventar o sujeito a partir da lógica do ser
biológico.
Observa-se, por esta lógica, que o corpo impõe permanentemente ao psíquico o
trabalho de ser representado, esse mesmo processo vai devolver ao corpo biológico sua
dimensão de pertencente a uma realidade exterior ao eu. Tal fato demonstra uma qualidade
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 70
essencial do ser humano, segundo Morin (2005b), que é a aptidão de objetivar, ou seja,
refletir-se e reconhecer-se objetivamente como objeto sem deixar de ser sujeito subjetivo, pois
o conhecimento objetivo do mundo deve avançar juntamente com o conhecimento entre a
subjetividade e a objetividade, pois o ser humano apresenta a capacidade de receber o sentido,
fazer algo com ele e a partir disso produzir outro, para que cada vez seja um sentido novo. A
apreensão do corpo pelo sujeito exige que ele seja subjetivado pelo imaginário na medida em
que depende do investimento de uma imagem – a imagem do corpo advinda da interação entre
os fatores fisiológico, neural, emocional e social. Quando unimos esses fatores, o corpo e sua
imagem vão condensando a vivência que o homem tem de si mesmo e do mundo.
Eu acho que o seio na mulher representa tudo, né (Margarida).
O seio, por constituir um traço identificador visível da forma feminina do corpo,
ao ser retratado por desenhos, pinturas, esculturas e artes apresenta, no delineamento das suas
curvas, a evidência do desenvolvimento mamário em relação à forma de um corpo masculino.
2.2 Sobre a indispensável imagem estética da forma do corpo feminino
A corporeidade da matéria ocupa vários espaços e se submete insistentemente às
imagens, às medidas e a toda expressão destinada a representá-la. Sua forma é apenas uma
referência elaborada a partir de dados observáveis, feitos a base de descrições, sem criticar o
que é observado ou descrito para que seja possível conceituar o objeto a partir de própria
lógica. Cada parte desse corpo material é em si significante e contém o mundo na sua
totalidade.
O ser humano está intrinsecamente ligado a um suporte material – o corpo, que
para se por em cena na teatralidade da vida, como diz Maffesoli (1996), gera imagens
contínuas servindo para diferenciar um individuo do outro, ao mesmo tempo em que funda e
fortalece o estar junto, pois, é o contato com a corporeidade e com o fenômeno aparecer que a
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 71
vida torna-se visível, ou seja, a existência social e individual é uma seqüência de figuras,
posturas, gestos, configurações e formas múltiplas. Nesse sentido, o corpo em espetáculo
conduz a compreensão da aparência que se inscreve num vasto sistema simbólico, cujos
efeitos sociais não podem ser descartados. A aparência está intrinsecamente constituída na
modulação do corpo em que o belo, por exemplo, é um elemento de importância e promotor
de prazer que se pode até desconsiderá-lo por um tempo, mas dificilmente ocultá-lo
totalmente.
Nos espelhar numa coisa bonita sempre é bom, né. E quando você olha numa coisa
feia se fala assim: - Uai o feio também é gente, o feio também vive, o feio também
tem sentimentos, né. Então eu acho que eu assim não descrimino não (Angélica).
A sensibilidade no olhar do outro, capaz de construir encantamento no que está
feio por estar em deformidade, em desarmonia, será a responsável por tornar a diferença um
detalhe que não prejudicará a apreciação de cada coisa a partir de sua própria lógica, de cada
corpo com seu instante de beleza e descoberta de outros prazeres.
Segundo Chevalier e Cheerbrant (2006, p. 328),
Toda deformidade é sinal de mistério, seja maléfico, seja benéfico. Como qualquer
anomalia, ela comporta uma primeira reação de repulsa; mas é o lugar ou o signo de
predileção para esconder coisas muito preciosas, que exigem um esforço para serem
conquistadas.
Para Dona Angélica,
A gente deixa o que está estragado pra trás e vai seguir em frente. Quando eu vou
me arrumar eu me olho no espelho, depois que eu já estou arrumadinha também, né.
Olho às vezes, que nem às vezes eu vou trocar de roupa tem um espelho ali eu me
vejo, né. Sem culpa, né. Sem sutiã, então, mas eu não me apavoro por isso não
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 72
Enfrentar a situação com naturalidade é a melhor forma de conviver com a
imagem do corpo revelado. Em uma das reuniões do grupo Uniama, Dona Jasmim relatou a
experiência de ter que compartilhar o uso de um vestiário com outras alunas da aula de
hidroginástica. Com pavor de água, ela não teve coragem de entrar na piscina na primeira
aula, mas depois de uma conversa com a instrutora decidiu enfrentar o medo e participar com
outras senhoras da segunda aula. Ressaltou que o acolhimento do grupo promoveu um clima
tão bom que nos primeiros instantes sentiu uma sintonia de amizade e que ao ir para o
vestiário após a aula tomou banho e trocou de roupa juntamente com as outras, sem nenhum
constrangimento por não ter um dos seios.
O belo associado ao corpo físico pode nos conduzir à idéia de estética, tendo em
vista que ao ligar-se aos jogos das formas e da aparência, segundo Maffesoli (1996), ocorre o
reconhecimento que a estética se inscreve na globalidade do dado natural e social, e é um
elemento de destaque para compreender essa mesma globalidade, pois é só enquanto
fenômeno estético que a existência e o mundo eternamente justificam-se, considerando o
homem como produto da estética.
Para Maffesoli (1996, p. 151),
[...] o fenômeno estético enraíza-se profundamente no imaginário de nossa
existência coletiva, em duas direções principais: de um lado, a força da forma
extrai-se da indeterminação, do indiferenciado; do outro, a forma é uma força
relacional, exatamente dando a sua qualidade material, ou seja, porque ela tem
necessidade de exprimi-se no espaço.
A forma basta-se a si mesma, sendo inúmeros os domínios onde isso é observável
como, por exemplo, a preocupação com a aparência que permite falarmos num paradigma do
culto exorbitante ao corpo, quando campanhas publicitárias exacerbam o cuidado com o
mesmo para satisfazer pretensões comerciais e industriais. Mais que uma simples
superficialidade sem conseqüências, exprime um modo de fazer sociedade.
Eu sou contra esse, colocar silicone pra ficar mais bonita tanto no seio como no
bumbum, igual elas estão fazendo. Eu sou contra, eu acho que não havia necessidade
disso (Angélica).
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 73
Eu tenho a mama muito grande. Era pequena, mas eu engordei demais, né. Agora se
fosse por fazer a cirurgia, eu queria diminuir essa o mais possível, né, e fazer uma
bem pequenininha (Rosa).
Olha se sente meio, dá um vazio muito grande na gente. Sabe por quê? Parece que
você não consegue pensar que você não tem um seio. Você tem que ser muito forte.
Porque não é fácil de enfrentar não. Quando se lê essa parte de estética aí, tá ficando
muito alto, tão ao auge, né. Agora tudo é estética, né, tudo é estética e tem outro
agravante, eu já fui sempre assim, isso é confidencial: A Gardênia é a mais bonita
das irmãs! A Gardênia isso, a Gardênia aquilo, olha que corpão. Sabe quando é
assim. E agora chega num ponto de se tirar, parece que você fica meio assim, falta
mais ainda. Olha o tanto que eu já escutei isso, né, agora a primeira coisa que elas
olham é ali (Gardênia).
Neste contexto, valores e sentimentos emblemáticos para a definição de si mesmo,
sob o aspecto da moda criada pela sociedade, faz com que a perda do seio/mama, forma
naturalmente mais desenvolvida de um corpo feminino nas diversas espécies de mamíferos,
torne tal situação sobrecarregada de dor, sofrimento e luto, além da questão do desafio de
enfrentar uma doença que ainda está relacionada à morte imanente no imaginário social. Esta
realidade pode configurar-se num fator complicador para quem está tentando conviver com a
falta deste importante membro para a construção da imagem do feminino.
Uai é uma estética, né, da mulher o seio, né. Mais assim, como eu tenho um e não
tenho o outro, a gente põe o sutiã. Você se apresenta do mesmo jeito (Angélica).
É triste assim, por ausência do membro, do órgão que tirou, né, mas só que em vista
de antes que eu vi, né, não é aquela coisa horrível (Margarida).
Eu penso: - mas esse gosto eu não vou ter mais. Por que isso tá direto na televisão.
Você liga a televisão tá passando aqueles peitão, pra quem tirou [...] Eu já sabia que
eu não tinha esse gosto de ter peitão bonito, mas tinha os dois, né, Agora depois que
tirou [...] Então falei: - Nem quero ouvir falar em peito por que já acabou a minha
chance, essa parte de peito pra mim me anulou parece que eu nem compro roupa.
Sabe quando parece que você esqueceu aquela parte do corpo, parece que
anestesiou, parece que contém aquele negócio diferente, é bem diferente (Gardênia).
O seio é permeado por elementos simbólicos, sensíveis, marcado por
características singulares na vida da mulher adulta em relação a sua sexualidade,
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 74
sensualidade, maternidade, no todo da identidade feminina e no objeto de desejo da menina
em busca de um suporte identificador do ser mulher. Os aspectos mais importantes associados
ao seio são: seu caráter sexual, quando uma zona especialmente sensível as carícias amorosas;
o prazer da amamentação, com valor simbólico que representa o dom da potência materna,
pois o leite, segundo Chevalier e Cheerbrant (2006), está associado à fertilidade, à iniciação,
por ser o primeiro alimento e, porque não, a imortalidade. Eles dizem que (2006, p. 543) “A
vida primordial, e, portanto eterna, e o conhecimento supremo, e, portanto potencial, são
sempre aspectos simbólicos associados, ainda que não misturados. É bem o que sobressai das
inúmeras citações ou referencias que se poderiam reunir a respeito do leite.”
Em relação à amamentação Margarida acredita que a pessoa que retirou a mama
dificilmente terá a oportunidade de vivenciar a fonte de prazer desse ato, considerando a
estranheza do corpo modificado.
[...] uma mãe jovem tem que ter o seio para amamentar. Apesar que tem umas que
amamentam só com um, mas já [...] sei lá.
Em muitos momentos da vida da mulher, o seio tem, além de alto valor
simbólico, um lugar organizador de experiências importantes, tanto da maternidade, quanto
dos atributos do feminino, pensados através do acesso ao mundo adulto feminino. Assim,
pode-se dizer que os seios são instrumentos específicos de exercício do desejo feminino. O
seio não deixa de ter um sentido emblemático de todo o corpo feminino. Dessa forma, sua
perda, a perda de uma parte do corpo pode gerar dor e angústia em reação ao perigo que essa
perda acarreta.
Igual teve um dia que uma visita minha, uma pessoa que fazia muito tempo que eu
não via, ela ficou sabendo e foi me visitar. Aí virou assim: - Mas você tirou só um
seio, eu ouvi falar que você tinha tirado os dois! Aquilo pra mim me machucou, aí
eu fiquei tão triste. Eu custei tirar um, tirar dois, né (Margarida).
No hospital, a doutora chegou no outro dia, aí ela falou: - Você vai querer ver? Eu
não nem pensar, eu não tenho coragem. Se eu ver me dá um piripaque. Eu não dou
conta de ver. Ela falou: - Por quê? Por causa da mama ou por causa do corte? Aí o
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 75
Leandro falou: - É por causa do machucado. - Então eu vou te mostrar isso agora.
Ela falou: Vem cá, eu vou tirar isso agora se você sentir alguma coisa já tá aqui pra
acudir. Desse jeito! Ela é doida e tirou e eu vi, aí eu comecei ver, normal, mas eu
tinha uma cisma de ver aquilo e a pressão baixar e eu apagar (Gardênia).
O câncer dá uma complexidade particular ao problema: uma parte do corpo deve
morrer – as células cancerosas –, para que outra parte possa prosseguir e, para que isto ocorra,
é necessário, muitas vezes, experimentar sensivelmente o dissabor da mutilação que
transtorna, obrigando a pessoa a reconstruir-se física e psiquicamente, como pessoa e com
suas relações.
A dor física que provém nesse momento refere-se a uma parte do corpo que a
emite, enquanto a ansiedade promovida pela parte que está ausente pode conduzir a pessoa a
uma dor muito mais profunda advindas das estruturas internas do eu, capaz de promover “uma
cisma de ver aquilo [...]”. O luto é uma tarefa finita de celebração de uma perda, fazendo-se
necessário um forte e permanente investimento no processo de (re)ordenação de si, dos
fazeres cotidianos, das imagens identitárias, das relações intersubjetivas e das perspectivas de
mundo. A ausência do seio natural faz com que, muitas vezes, a pessoa não se reconheça com
a mesma capacidade de despertar a admiração do outro pelo fato de não fazer parte do que se
considera perfeição por ser belo, ou seja, por mais recursos existentes para ocultar uma
suposta deformação do corpo, a pessoa sempre irá perceber “sem um pedaço”, segundo
Gardênia, mesmo que não esteja visível para o todo, pois este pedaço irá simbolicamente
representar um corpo feminino capaz de desperta desejo.
Muitas vezes pra sentir um pouco da minha ilusão do meu corpo, por que eu sinto
assim, sabe, meio constrangida de ficar no meio de muita gente, assim numa
prainha. Não que eu não vou. Eu vou sabe. Eu tô comendo com a mão esquerda, eu
adorava comer de faca, agora eu não tô usando faca por que não tem jeito, então eu
sinto assim [...] sei lá parece que o meu corpo tá meio, não tá como eu queria que
fosse (Jasmim).
O seio é um órgão externo e sua perda, sem reconstrução, pode ser vivida como
motivo de vergonha e humilhação; constrangimento ao se comparar com outras mulheres,
constrangimento diante do parceiro sexual. Dona Jasmim relata o inevitável constrangimento
de estar diferente dos demais ao vivenciar socialmente situações possíveis de limitações ou
maior exposição da ausência do membro, mesmo que coletivamente não se tenha grandes
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 76
problemas em comer com mão esquerda, não usar faca ou usar um traje de banho mais
discreto e não entrar na água. A adaptação ao corpo modificado faz lembrar a necessidade de
um (re)conhecimento do eu neste corpo, pois a marca que fica poderá dificultar o
esquecimento e muito menos a sua re-apropriação. O corpo é soberano para a vida, uma vez
que o começo e o fim da vida acontecem no e através do corpo, há, portanto, uma história da
pessoa no corpo. A dor do luto não é dor de separação, mas dor de ligação. Pensar que o que
dói não é separar-se, mas se apegar mais do que nunca a parte perdida, por representar um
símbolo de proteção.
Segundo Chevalier e Cheerbrant (2006, p. 809),
O seio é, sobretudo, símbolo da maternidade, de suavidade, de segurança, de
recursos. Ligado a fecundidade e ao leite – o primeiro alimento -, é associado às
imagens de intimidade, de oferenda, de dádiva e de refugio. Qual taça inclinada,
dele, como do Céu, flui a vida. Mas ele é também receptáculo, como todo símbolo
maternal, e promessa de regenerescência. A volta ao seio da terra marca, como toda
morte, o prelúdio de um novo nascimento.
As mulheres que enfrentam a mastectomia se deparam com uma situação de
contraste entre a forma do corpo representado como sendo do feminino e a forma do corpo
revelado pela transformação que pode vir carregada de sentimentos como o medo de viver
com outro corpo, a princípio estranho, e que necessita de uma (re)organização diante das
limitações físicas impostas pela cirurgia, além de muitos outros sofrimentos emergentes da
historia deste corpo/sujeito que é uno/múltiplo, igual/diferente de si.
[...] é triste se olhar, mas não é toda hora que você está vendo. Você vai [...] ver que
tá faltando é triste, é realmente muito doloroso. Ficar sem a mama é muito ruim
mesmo, mas só que eu acho que o braço é pior porque você fica delimitado. Eu sem
a mama eu tô podendo fazer tudo, agora o braço não (Gardênia).
A imobilidade do braço, geralmente enfaixado, ou as limitações de seu
movimento, por causa da retirada dos gânglios linfáticos na cirurgia, representa um elemento
capaz de despertar o estranhamento e olhares constrangedores em direção a pessoa que está
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 77
expondo o diferente, e não raras vezes a curiosidade reafirma toda dor e sofrimento inerentes
da situação por ser, segundo Chevalier e Cheerbrant (2006, p. 140), “[...] o símbolo da força,
do poder, do socorro concedido, da proteção. É também o instrumento da justiça: o braço
secular inflige aos condenados seu castigo.”
Outra questão a ser considerada é que, enquanto o problema não tiver a mostra,
não tiver facilidade para a percepção do outro, consegue-se ver outras faces do momento
vivido:
Falta que eu acho, assim, o seio não aparece tanto dependendo da roupa que a gente
usa, né. Agora o cabelo!? Você já viu! Se tem que usar esses coisas igual o lenço. Eu
tenho uns lenços muito bonito que a Violeta me deu. Lá no hospital eles me deram
se eu não precisar muito eu vou devolver, mas eu quase não uso por que o meu
marido que amarra. Coitado, na hora que ele vai amarrar esse lenço eu fico nervosa
(Jasmim).
A experiência da transformação das formas do corpo ocorre em diversas
situações: um acidente, má formação, alterações cronológicas, hormonais, estilo de vida,
moda, entre outras, em que podemos observar que a imagem do que venha ser belo/feio,
normal/anormal dependerá do olhar que se tem para a forma que está dada pela superfície, ou
seja, a forma capaz de criar valores e sentimentos que inclui ou rejeita, absorve ou expulsa o
que a imagem revela. Assim, o belo/feio acaba sendo interface da mesma moeda que terá seu
valor determinado dependendo do olhar encantador/desencantador da pessoa que observa a
forma expressa pela aparência.
Por que é uma coisa feia de se ver. É assim uma coisa assim desagradável de se ver
né. Eu acho é feio, não é bonito [...]. Eu acho assim: que o bonito né, é uma normal
sei lá [...] pôr que se não tivesse o seio não era feio. né, o corpo, né (Margarida).
Eu não vejo nada de belo, é feio demais. Não consigo ver nada belo. Antes eu
chorava na frente do espelho, eu olhava gente eu não acredito. Aí eu não quis me
olhar mais, tira o espelho. Não choro, não faço mais nada. Fui me acostumando com
aquilo, mas no começo é muito complicado. A pessoa tem que tentar dar a volta por
cima, que é fácil não é, mas você não pode deixar a peteca cair (Gardênia).
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 78
O espelho pode refletir a verdade, ou não, considerando o princípio do reflexo
invertido. Segundo Chevalier e Cheerbrant (2006, p. 396),
O espelho não tem como única função refletir uma imagem; tornando-se a alma um
espelho perfeito, ela participa da imagem e, através dessa participação, passa por
uma transformação. Existe, portanto, uma configuração entre o sujeito contemplado
e o espelho que o contempla. A alma termina por participar da própria beleza a qual
ela se abre.
Para Maffesoli (1996, p. 166),
[...] A beleza física, o cuidado que lhe atribuímos desempenham um papel de
importância na estruturação social. Ainda ai, o invólucro tem (é) valor erótico, ele
cimenta um dado conjunto, atinge seu ponto culminante na kula (troca cerimonial),
que é o momento paroxístico onde a comunidade fortalece seu estar junto.
O corpo, apresentado às percepções táteis e, principalmente, visuais, cria e renova
valores do sujeito empírico que está situado num lugar, num lugar com outros e em relação a
outros. É comum o ser humano sujeitar-se às mudanças freqüentes da moda, por exemplo,
considerando que a aparência inscreve-se no sentido de valores globais que uma sociedade dá
de si mesma. A moda, neste caso, não se refere apenas a práticas de vestuários, mas tudo que
é capaz de referenciar um tempo social, feito de momentos que se ligam e se sucedem num
ritmo rápido que inviabiliza a permanência em qualquer um deles. Segundo Maffesoli (1996),
a moda é multiforme e só as suas diferentes superfícies é que fazem o contínuo da sua
existência, capaz de diluir o corpo no corpo coletivo.
Assim, o olhar que cria valores pode promover sensações de beleza ou não com
atitudes que procuram embelezar o corpo. A mudança no estilo do vestuário, nos adereços,
nos sapatos reforça a dor da mudança da imagem a ser apresentada, não só pelo fato de deixar
algo que goste muito de usar para trás, mas pelo fato de a mudança permitir um apego maior a
objetos que podem expor com mais facilidade a parte perdida do corpo. Nos encontros da
Uniama, as mulheres relatavam saudades do salto alto, das blusas de alça, dos anéis, pulseiras,
correntes que, geralmente, pela sensibilidade do braço ou o uso da faixa compressora ou a
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 79
cicatriz ou a artificialidade dos sutiãs com próteses dificultavam o sentimento de estar bela,
que, por sua vez, era afrontado todas as vezes que refletia no espelho o corpo concretamente
feio por estar “mutilado”.
Mulher feminina é igual eu te falei: - é ela se arrumar, procurar sentir bem, olhar no
espelho e falar: - Não, eu tô bem. Não importa o que os outros falam, você se sentir
bem (Angélica).
Neste sentido, o eu e o outro, que interagem um sobre o outro, um com o outro
favorecendo o sensível, o estado de sentir que, segundo Morin (2005d), é um estado estético,
representam um fator de coesão tendo em vista que todas as pessoas participam do mesmo
ambiente, experimentam juntas emoções, empatias, comungam dos mesmos valores perdem-
se, enfim, na superfície das coisas e das pessoas imersas de sentido.
Segundo Maffesoli (1996, p. 134-135), “[...] Tratava-se mesmo de fazer
compreender que a estética, enquanto sentimento comum, é um elemento da physis, da força
espontânea e irreprimível que dá origem regularmente a vida das sociedades.”
Dessa forma, estética refere-se a emoção, gozo, felicidade, admiração,
encantamento para apreciar a exuberância da vida, ou seja, admirar a beleza das formas e das
cores no mundo vivo, que torna a estética um fato de transe passível de sobrepor a tudo por
representar sua própria finalidade. Para Morin (2005d), pela estética o homem torna a viver
num estado de graça em que o ser e o mundo são mutuamente transfigurados pelo
encantamento.
A estética, para Maffesoli (1999), desponta como novo paradigma no decorrer da
segunda metade do século XX e início do terceiro milênio. Sob o contexto especifico desses
tempos, a estética apresenta novos traços, outras significações, ao mesmo tempo, traz consigo,
incorpora, traduz a (re)constituição das faces identitárias da moderna ordem societária. O
sensível, a imagem, o corpo, o doméstico, a comunicação, o emocional podem ser vistos
como elementos componentes da estética nos primeiros momentos do século XXI. Nesse
sentido, ela contempla uma convergência de ações, de vontades, permitindo um equilíbrio
conflitual da realidade social. O cotidiano tem uma função estética, isto é, de atração de
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 80
sensibilidades. A estética, o embelezamento do corpo e o misticismo surgem, sob outro
aspecto, como parte de um movimento, de uma tendência atual de romper com a
racionalização da modernidade. Deixar valer as forças da emoção e da natureza são elementos
dessa tendência.
As mulheres desta pesquisa nos sugerem que, na maioria das vezes, rejeitamos a
imagem revelada por causa da discrepância com a imagem imaginada, tanto por uma moda
multiforme, feita de momentos que se sucedem num ritmo rápido, como por um ideário da
normalidade, do comum. Por isso o mais importante, talvez, seja redescobrir a concepção de
estética, uma vez que Maffesoli (1996) coloca que o homem é produto da estética cuja função
é de atração de sensibilidade, ou seja, não é apenas o jogo das formas atribuído socialmente
como belo, mas também um estado de sentimento comum que permite reconhecer o que une
uma pessoa a outra. Esse religamento pode ser expresso através de uma vestimenta, um
hábito, um gosto, uma forma de ser ou estar, pois tudo o que é representado, segundo Morin
(2005d), permite uma transfiguração estética, um êxtase propriamente estético, tendo em vista
que o estado estético é um transe de felicidade, de graça, de emoção e de gozo comungado por
pessoas que experimentam juntas situações imersas de sentido. Dona Angélica exemplifica
este transe de gozo ao dizer que:
Eu me olho no espelho às vezes eu vejo que tá essa falta, mas eu não me decepciono
não. Ainda eu passo às vezes a mão nesse seio que eu ainda tenho e falo que
gracinha, né. Eu falo (Angélica).
Assim, a função da estética seria atrair sensibilidade para encantar-se com a forma
de ser ou estar. Como arte cotidiana, segundo Maffesoli (1996), tem importância os detalhes,
os fragmentos, as pequenas coisas, os diversos acontecimentos. A estética, como sentir, trata-
se de uma emoção, uma sensação de beleza, de admiração, de verdade, de sublime e aparece
nos objetos e acontecimentos mais familiares.
A estética contemporânea, diz Morin (2005d), alimenta-se, entre outros, de
imaginário, lendas, epopéias, romances, filmes. A estética, como lúdico, retira-nos do estado
prosaico, racional/utilitário, para nos colocar em transe.
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 81
2.3 Sobre a sexualidade do corpo feminino
A imagem que fazemos do nosso corpo é construída e (des)construída ao longo de
nossa vivência, a partir de experiências com o mundo externo e interno. Os seios além de
desempenharem um importante papel fisiológico em todas as fases do desenvolvimento
feminino que vão desde a puberdade à idade adulta, também representam, em nossa cultura,
um símbolo de identificação da mulher e sua feminilidade expressas pelo erotismo,
sensualidade e sexualidade.
Eu tô querendo mais é por os dois, sabe quando você põe na cabeça assim. Que
agora pra mim enfrentar bem a cirurgia eu tenho que arrumar um jeitinho de alterar
alguma coisa. Eu acho que é o normal da pessoa. Eu penso assim, que eu vou ter os
dois de novo, mesmo que vai ter um negócio, um trem que não é os meus, mas eu
vou ter (Gardenia).
“Eu vou ter”, de novo a potencialidade de expressar o erotismo, a sensualidade e a
sexualidade envolvida no órgão especialmente sensível a carícias e fetiches amorosos. A
tênue diferença entre sexo e sexualidade não aparece no cotidiano das mulheres do grupo
como fator a ser pensado, pois quando o assunto é prazer na intimidade logo vem à memória a
imagem da relação sexual com o companheiro. Em uma das reuniões da Abrapec, houve o
relato de uma das participantes que, embora tenha feito a reconstrução da mama, não sentiu
desejo de manter relação sexual com o marido num determinado dia, mas mesmo assim
aceitou. O marido ao perceber, segundo ela, uma frieza sugeriu a ida ao Ginecologista para
questionar se o problema era ele porque se fosse era só trocar. Observa-se, então, que a falta
do seio pode inibir a libido.
Mas claro que trava, trava a mulher e mesmo pro marido eu acho que muda sim, não
é a mesma coisa, não é (Rosa).
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 82
A marca deixada pela situação pode recorrer em momentos que a falta ou a
reconstrução desse importante órgão sexual não está diretamente relacionada com a ausência
do desejo sexual. Além disso, o comportamento relatado pela participante da Abrapec
expressou a insensibilidade do companheiro de perceber que sexo é muito mais que o simples
ato, muitas vezes, fundamentado em valores culturais em que a satisfação sexual da mulher
vem depois da satisfação masculina.
Para Highwater (1992), a sexualidade é, antes de tudo, um produto de forças
sociais e históricas, uma unidade imaginária, enquanto o sexo é o veiculo para uma ampla
variedade de sentimentos e de necessidades biológicas, fisiológicas e morfológicas do ser
humano, que procura se expressar apesar das regras inventadas para controlá-lo por meio da
cultura e da civilização, além de representar o mecanismo para a reprodução da espécie.
Highwater (1992, p. 15) diz:
O que dá forma à sexualidade são as forças sociais. Longe de ser a força mais
natural da nossa vida, é de fato a mais suscetível as influencias culturais. Claro que
este ponto de vista não pretende negar a importância da biologia, pois a fisiologia e
a morfologia do organismo é que estabelecem, evidentemente, as precondições da
sexualidade humana. A biologia, no entanto, não cria os padrões da nossa vida
sexual; simplesmente condiciona e limita aquilo que é provável e aquilo que é
possível.
O sexo é objeto de intensa sociabilização e toda cultura define várias práticas
como próprias e impróprias, morais e imorais, sadias e patológicas. Ao pensarmos nele, quase
toda a atenção vai para a operação mecânica dos genitais, expressando uma tendência
resultante da masculinização das atitudes sexuais, que podem ser observadas tanto no decorrer
da história ocidental, na constituição das sociedades com seus sistemas patriarcais, como na
mitologia que, segundo Highwater (1992), constitui o meio pelo qual toda e qualquer
sociedade reage às questões fundamentais acerca de sua origem, vida e destino. Highwater
(1992, p. 18) coloca que,
Regra geral, a cultura ocidental assenta na velha suposição de que a terra é
feminina, a mãe-terra, enquanto o céu é masculino, o pai celestial; esta concepção
mitológica, profundamente enraizada, tem servido de norma para as relações
sexuais com o homem por cima e a mulher por baixo. Algumas culturas
consideravam a terra masculina e o céu feminino, aceitando a posição superior da
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 83
mulher como natural, ao passo que outras procuraram símbolos de masculinidade e
feminilidade em outros lugares.
A história da mãe-terra inicia-se com a origem de Gaia, fonte da vida e da morte,
do alimento e do conhecimento, aquela que sustentava todos os seres, a mãe de largos seios de
todos os mortais, segundo a mitologia. No princípio era nada. O nada existia sem tempo nem
espaço, pois ele não conhecia o nascimento nem a destruição. Era a perfeição que existia antes
da existência. Uma impossibilidade perfeita. Desse vácuo impensável surgiu Gaia, o grande
mistério do ser, a fonte de todas as coisas. Tomou forma de súbito, proveniente do nada,
dançando cada vez mais depressa até que se transmutou num redemoinho de luz. Assim o
mundo começou. Gaia significa terra e existiu muito antes dos deuses masculinos do Olimpo
que acabaram por bani-la.
Gaia tirou do seu corpo a terra e o mar. Ao mexer-se, a espinha dorsal arqueou,
formando as altas montanhas. Nas profundezas misteriosas de sua carne, fez os vales e as
grutas onde a sua voz ainda ecoa, suspirou e fez a chuva e assim o mundo foi surgindo. De
todos os seus filhos, Urano, o céu estrelado, foi o primeiro a sair de seu corpo, sem pai.
Deitou-se com o próprio filho para prover a primeira dinastia dos deuses, entre eles, Rea e
Crono que castra o próprio pai para usurpar o lugar no céu. Rea e Crono fundaram a segunda
dinastia das divindades, os deuses do Olimpo, sendo Zeus um de seus filhos e que derrubaria
o pai da mesma forma que este fez. Até aqui as mulheres retinham a posição como provedoras
da vida e do sustento, sendo o elemento formativo da sociedade que evidenciava o poder de
gerar a vida.
O poder de gerar a vida associa-se ao simbolismo do útero, um órgão identificador
do ser feminino, porém não está aparentemente visível. As falas, a seguir, refletem a
complementaridade entre os dois elementos identificatórios do ser mulher – o seio e o útero:
Aí por que no fundo, por exemplo, eu tirei o útero pra mim foi o maior alívio do
mundo não ligo. Atrapalhou foi à cabeça do meu marido. Pra mim foi um alívio, que
eu ficava menstruada quase que o mês inteirinho, pouquinho sabe, foi nove anos de
tratamento não podia tomar hormônio por causa da enxaqueca. Mas eu soube isso
faz um ano que ele me falou, ele achava que, que pra eu ser era o útero ele disse que
sempre pensou isso (Rosa).
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 84
Ele ficou assim bem diferente sabe coitado. [...] nos tivemos dois filhos, então ele
falava pra mim que quando ele via uma mulher igual a você, uma mulher grávida ele
ficava preocupado. Eu não sei, depois que eu fiz essa cirurgia ele ficou mais assim
ainda mais preocupado (Jasmim).
Se eu for analisar é o útero, né. Mas hoje em dia tá tanta estética na cabeça que
parece que fica o seio, né. É duas partes tão importantes que eu acho que as duas,
não tem como ficar separadas se pode ver tudo, depois a hora que você for dar mama
o outro dói é incrível, é uma ligação que tem o útero com o seio que é mágica. Você
vai ver nos primeiros dias, se vai sentir dor na barriga quando o leite sair, se vai ter
dor lá. Então é duas coisas tão juntas que eu acho que não dá vontade de separar é as
duas coisas principal da mulher porque o seio e o útero é tudo, né (Gardenia).
Essas preciosas falas nos mostram a força do imaginário que por meio da imagem
imaginada corporifica elementos para a percepção, ou seja, o útero se faz a mostra num estado
de gravidez que também torna ainda mais evidente a existência do seio, considerando que este
altera o seu tamanho natural. Outra questão a ser analisada é a identificação com o corpo
feminino, quando a imagem de outra mulher suscita lembranças de experiências vividas e que
agora, talvez por ter um corpo modificado, terão outros sentidos e significados que darão
dinamicidade a consciência que vai ao real com potência de transformação e/ou recusa, pois
no universo do imaginário, a imaginação produz o pensamento. Importante colocar ainda que,
em uma das reuniões da Abrapec, uma participante que havia retirado o útero relatou situação
semelhante ao de Dona Rosa, embora essa questão a tenha deixado muito angustiada por
acreditar que seu companheiro não a amava mais por não considerá-la mulher. Na ocasião o
grupo tentou trabalhar a questão da sexualidade e qual o lugar do sexo numa relação.
Retomando a mitologia, de acordo com Highwater (1992), a figura de Zeus foi
trazida para a Grécia pelos invasores patriarcais. Zeus foi incluído na mitologia grega como se
tivesse sido sempre uma das divindades principais. Isto permitiu que Zeus reinasse sobre
todos os deuses, desde seus luminosos irmãos do Olimpo até seus obscuros ancestrais
terrenos, os titãs.
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 85
Segundo Highwater (1992, p. 59),
A guerra entre a antiga mentalidade matricêntrica e a nova mentalidade
patricêntrica travou-se no mundo dos mitos. Os novos deuses haviam arrebatado,
nos céus, o poder das mulheres. Porém na própria terra não havia criatura em que
residisse o espírito dos deuses. Quando nasceu Prometeu, um dos titãs, foi o
primeiro ser de forma humana e desceu a terra. Filho da deusa-mãe, possuía um
segredo que Zeus desconhecia: sabia que a semente dos céus jazia dormindo na
terra, sob o manto de Gaia. Por isso, tomou um pouco de barro nas mãos e o
amassou com água do rio, até que lhe deu a imagem dos deuses. A deusa o animou
com o divino sopro da vida a figura feita de terra, a qual se levantou e deu origem a
humanidade.
O autor coloca que os deuses tomaram conhecimento dessa criação de ser
masculino e decidiram protegê-lo, desde que lhes prestasse homenagem. A fim de proteger o
homem das exigências dos deuses, Prometeu veio servir-lhes de conselheiro, o que fez com
sabedoria e bom senso, até a devoção a deusa-mãe tornar-se mais forte e, então, ficou
obcecado com a idéia de pregar uma peça em Zeus que ficou furioso e como castigo retirou o
dom do fogo dos mortais, concedido por Prometeu, e ordenou ao deus do fogo, Apolo, que
forjasse a figura de uma bela jovem. Zeus castigou o homem criando a mulher e acorrentou
Prometeu a um rochedo, onde uma água lhe devorava dia-a-dia o fígado pelo fato de ter sido
cúmplice na perpetuação do reino da deusa mãe e por proteger os filhos da terra feitos de
barro. Assim o heróico deus do Olimpo deformou e degradou o poder da grande deusa,
passando a governar os céus e a terra. A derrota da deusa-mãe deu origem à concepção
ocidental do mundo com foco na subordinação e na dependência da mulher em relação ao
arquétipo do homem forte, justo por ser racionalmente inteligente e provedor da sociedade,
permitindo observar que, enquanto a mulher personificava a natureza bruta que representa o
caos e a desordem, o homem personificava os valores da sabedoria e da ordem.
Diante da desordem ocorre a necessidade de organizar uma ordem, firmada pela
visão daquele que a promove, ou seja, em culturas diferentes um conceito comum e simples
como a virgindade adquire conotações diversas. De acordo com Highwater (1992), na maioria
das culturas a virgindade é um preceito masculino, em que no sistema patriarcal representava
um mecanismo capaz de garantir o domínio do homem sobre o corpo feminino. Já em culturas
matriarcais o termo diz respeito a uma mulher disponível, solteira e que tem pleno domínio
sobre sua intimidade por pertencer a si mesma, não podendo ser forçada a manter a castidade,
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 86
isto é, tinha em seu poder a primitiva liberdade no domínio sobre o seu próprio corpo.
Chevalier e Cheerbrant (2006, p. 961, destaque do autor) diz que: “O estado virginal significa
o não manifestado, o não – revelado.”
Para Highwater (1992, p. 45),
[...] A virgindade é um desses símbolos, denotando o autodomínio da mulher numa
sociedade matricêntrica ou sua escravidão ao marido, como ‘bem sem uso e puro’,
no sistema patriarcal. Os símbolos são elaborações de cada sociedade e, por
conseqüência, o significado deles cambia e muda radicalmente de um lugar para
outro e de uma época para outra.
Os elementos para a compreensão da história do imaginário sobre a sexualidade
do corpo feminino e das formas, de sua descrição como os lugares de prazer e de dor,
encontram-se tanto na filosofia cristã quanto no saber médico, ou seja, enquanto a igreja
norteava a sexualidade e o uso dos prazeres rumo a uma doutrina de castidade, contemplação
de Deus, domesticação do desejo e obediência a figura masculina, a medicina redefinia os
códigos da sexualidade feminina, ao buscar na própria anatomia do corpo da mulher
especificidade em relação ao corpo masculino: o fluxo menstrual, os odores, o líquido
amniótico, as expulsões do parto, as secreções, o clitóris, o ponto G, entre outras.
Os conhecimentos médicos procuraram normatizar as funções do corpo da
mulher, mas mesmo assim a magia da natureza feminina alimentava inúmeras fantasias,
lendas em torno do aparelho reprodutivo, tanto em relação ao apetite sexual quanto às
substâncias que são excretadas pelo corpo, que chegaram a ser consideradas degenerativas. As
funções mágicas dos excretos femininos pareciam tão verossímeis, foram capazes de
perpetuar-se através das gerações, como por exemplo, as especulações em torno do sangue
menstrual em que o seu tempo era, pois, um tempo perigoso, um tempo de morte simbólica no
qual a mulher deveria afastar-se de tudo que era produzido para não contaminar ou do que se
reproduzia. O útero também gerava desconfiança, medo e apreensão pela possibilidade de
vinganças mágicas.
Observa-se que o sexo, a condição genital, sexual e biológica da mulher, definia
sua condição no mundo masculinizado: ser menor e infecto, biológica e moralmente, tendo a
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 87
necessidade que a orientação sexual enveredasse para o constrangimento, para contenção da
libido. Esta situação acaba sendo acentuada quando ocorre a perda do seio:
Só que depois daquilo a gente não tem, não tem mais (deixa subentendido que é
libido) [...] Até hoje ele não cobrou por que eu acho assim, por que (Teve risos), às
vezes não. Por que eu agüento ele muito, né, ele, né. Sei lá eu penso assim ele não
fala nada não (Margarida).
Eu sempre fui meia contida é e ele já, né. Coitado ele já é mais, nem tanto também.
Ele virou também um homem muito compreensivo [...]. Eu vou te falar uma
verdade, faz um ano ou mais que a gente não tem mais nem relação tanto da minha
parte, como da dele sabe (Jasmim).
Outra questão a ser observada diz respeito à relação marital quando a convivência
está alicerçada no companheirismo e respeito, segundo as mulheres do grupo Uniama, as
dificuldades em expor o corpo para o outro é amenizada.
Eu demorei um pouco sabe, mas se via no espelho, mas sei lá eu sentia assim, parece
que uma coisa normal sabe. Não fiquei assim pensando naquilo, né. Preocupada, né.
Não escondi do meu marido nada. Eu sempre troco roupa perto dele sabe (Jasmim).
Olha eu não sei, eu acho que eu sou uma pessoa muito abençoada por que eu não
tinha receio nem de trocar perto do meu marido certo. Eu achei como que fosse uma
coisa normal. Um dia eu troquei na frente dele e ele falou assim pra mim: você não
precisa de ficar com receio por que eu te amo do mesmo jeito (Angélica).
Assim perto do marido como é que eu vou fazer. Eu vou ter que tirar né. Eu vou ter
que acostumar a tirar quando ele entra no quarto eu tiro tudo como era de
antigamente (Gardênia).
Nota-se que a sexualidade feminina não é apenas uma qualidade inerente à carne,
celebrada ou reprimida de acordo com a sociedade na qual estava inscrita, mas uma
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 88
possibilidade de liberdade política, econômica, social, sexual, ou seja, o exercício da livre
escolha do ser humano.
Neste universo, a dupla representação do seio no corpo feminino insere-se na
tradicional oposição antropológica entre natureza e cultura. Considerado em termos da
natureza, o ser humano é classificado como um animal mamífero e, portanto, as mamas das
fêmeas humanas têm uma função específica, ligada à alimentação da sua cria. Mas o homo
sapiens é um animal cultural, e no mundo da cultura o seio feminino pode perder a
preeminência biológica de sua função e tornar-se a base de diferentes representações, como o
erotismo. O seio pode ser ou não erótico, e ligado à sexualidade, segundo diferentes culturas
como um aspecto físico de importância para a atração sexual masculina e sendo sua
estimulação uma parte do ato sexual.
Então é tão complicado menina, não hoje, voltou ao normal, né. Normal entre aspas,
porque parece que sem peito isso não anda muito normal, é muito estranho porque o
peito faz parte em tudo. Você é mulher se sabe, não precisa falar. Aí eu acho muito,
sei lá morno muito sem graça. Ele não fala nada sabe, ele também dá volta. Isso aí
não é nada sabe, ele não cobra, não faz nada, a única coisa que ele não gosta é de
mulher gorda. Isso ele sempre reclama que não gosta que engorda e o pior que eu
engordei. Gorda toda vida ele tem a maior birra, ele e os meninos lá em casa
ninguém gosta de gente gorda. A mais gordinha lá de casa sou e assim mesmo eu
não estou gorda. Então, mas assim do peito ele nunca falou nada sabe, ele não
deixou passar nada assim (Gardenia).
Eu acho que tem jeito sim, né. Faz a reconstituição e se cuida mais. Agora falar que
a vida sexual melhorou depois de uma cirurgia dessa eu não acredito nisso de jeito
nenhum. Já ouvi muitas falarem, não acredito não, outras já falam só que tem
relação no escuro (Rosa).
Na cultura ocidental o seio foi inscrito durante muito tempo em uma percepção
funcional alimentar, sendo muito recente a erotização dessa parte do corpo feminino. Apenas
no final da Idade Média é que a nudez feminina e a visão do nu passaram a ser identificadas
com o desejo e a ter a conotação erótica que conhecemos hoje. Na sociedade ocidental
moderna, a função estética do corpo, e do seio, em particular, tornou-se foco da moda. Sua
forma, seu volume, sua consistência devem se alinhar ou se aproximar do que está sendo
valorizado enquanto modelo de beleza. Nesse contexto, o seio é percebido primeiro e antes de
tudo como um órgão sexual, de grande apelo erótico que se associado ao fato de sua perda
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 89
gera a necessidade de uma reconstrução. Ato por vaidade ou a possibilidade de resgatar a
percepção naturalizada normal de um corpo feminino atenuando o sofrimento e dor em torno
da ausência do seio. Mas o que foi observado, tanto nos encontros nos grupos Uniama como
na Abrapec, foi que a reconstrução está associada à utilidade desse membro, ou seja, para
pessoas que supostamente tenham uma longa vida sexual por serem mais jovens ou estão em
idade reprodutiva, a reconstrução acaba sendo vista como uma necessidade, ao contrário uma
vaidade que, se comparada com outros fatos inerentes da situação, não vale tanto assim.
Desde a primeira vez o médico queria que fizesse a reconstituição. Eu nunca quis
não. Agora de um ano pra cá que eu tô mudando de idéia, mas meu irmão, eu
perguntei a ele o que ele achava ele ficou assim, que a decisão tinha que ser só
minha, se eu estava disposta a enfrentar dor de cirurgia essas coisas. O meu filho me
dá força e a minha filha também dá, mas já estou desistindo (Rosa).
Já tive oferta por duas vezes. Eu já tive oferta, mas não tive vontade não. Eu acho
assim pelo o que eu passei, do jeito que eu estou, eu acho que eu estou bem, isso aí
pra mim, eu acho que não tá fazendo falta (Jasmim).
O doutor fala pra mim fazer, né, a reconstituição. Eu acho que não tem necessidade.
Pra mim não tem, por que também já tenho uma idade assim, né. Talvez se eu fosse
bem jovem, como igual tem muitas aí, eu faria, né. Mas não é que isso me
decepciona [...] que nem essa mais jovens, elas tem que, se pode fazer recuperação
faz, né. Só que pra mim eu acho que não há necessidade (Angélica).
Eu não pensava não. Até meu marido acha que é bobagem correr atrás disso, sentir
de novo essa dor, se vai sofrer tanto com esse negócio, sabe lá depois se dá certo, ele
mesmo não apóia. Só que eu acho que ele viu que eu quero fazer. Eu acho que eu tô
muito nova para parar desse jeito, eu acho que eu tenho muito pra frente ainda sabe.
Você voltar a usar as roupas que você usava, sabe. Que tem roupa que não dá pra
você usar mais. Apesar que agora eu tô usando de qualquer jeito, eu tô tentando sabe
encaixar tudo na mão. Não tô assim, né, com aquela coisa de ficar sem usar roupa,
vai usar eu tô usando, numa boa até na rua blusinha coladinha tal e tal e não fiz nada
ainda, não comprei o meu sutiã de silicone, ponho alguma coisa dentro e vou
normal. Eu penso assim quem não ficou sabendo imagina que eu estou normal
(Gardênia).
Mas a utilização dos seios na sua função biológica da amamentação não está
completamente desligada da possibilidade de uma experiência sensual. O seio maternal e/ou
As interfaces do corpo feminino imaginado e do corpo revelado 90
erótico pode ou não ocupar o mesmo espaço físico, engendrando diferentes possibilidades de
experiências de acordo com a maneira como cada indivíduo interpreta para si esse complexo
sistema simbólico e lida com ele, ou seja, a aparente dicotomia nos remete a uma das
características da tradição judaico-cristã: a idéia da maternidade sagrada e de que o seio
maternal torna-se intocável, perdendo simbolicamente seu valor erótico; e a idéia de que o
sexo seria “não-sagrado”, impuro, desrespeitoso. A representação da maternidade como sendo
sagrada permanece no imaginário social, por outro lado, o erotismo atribuído aos seios, zonas
erógenas e por isso capaz de promover sensações sexuais bastante prazerosas, tende a ser cada
vez mais valorizados nas sociedades ocidentais.
Nesse sentido, o câncer de mama representa uma ameaça em vários níveis. Os
efeitos dessa doença (o medo da morte, da rejeição, de ser estigmatizada, da mutilação, da
reincidência, dos efeitos da quimioterapia, incerteza quanto ao futuro e outros) têm
preocupado os profissionais de saúde envolvidos com a qualidade de vida das pacientes. Um
acometimento como o câncer de mama pode provocar uma série de transformações na vida,
tanto da mulher quanto de seus familiares, pois além do medo da morte que a doença suscita,
há, também, a ameaça da mutilação da mama, que é um símbolo importante de feminilidade,
sexualidade, erotismo, maternidade e outros.
CAPITULO 3
IDENTIDADE/DIVERSIDADE DO SER MULHER: uma história de ambigüidades e
sentimentos
Identidade/diversidade do ser mulher 92
Por fim, este capítulo objetiva descrever a leitura das nossas personagens sobre o
ser mulher e as implicações deixadas pelo câncer ao tentar esboçar a identidade/diversidade
referente à pessoa, tendo como conseqüência a emergência de sua (re)ordenação.
Trabalharemos, ainda, com a questão dos papéis sociais por representar um importante
elemento na relação entre cada ser humano e a sociedade em que se escrevem essas histórias
de vida. Os papéis sociais são construídos e vivenciados no cotidiano, envoltos por interações
heterogêneas e, por isso, eles podem ser trocados, eliminados ou sucedidos na cultura que os
criou.
A seu modo, podemos dizer que cada época influencia retroativamente e
recursivamente o ser humano, como indivíduo, como coletivo histórico na forma de pensar e
de agir. Ao passarmos os olhos pela história da humanidade, percebemos que alguns períodos
marcaram profundamente a forma de ser e estar no mundo, como é o caso da excessiva
valorização espiritual na Idade Média, da descoberta dos valores humanos no Renascimento,
ou, ainda, da exacerbada atenção à atividade intelectual no Iluminismo. São momentos
históricos que proporcionaram alterações significativas na cultura ocidental. Lembrando que a
concepção de cultura diz respeito a um macro-conceito, cuja idéia mais comum e universal
refere-se a um conjunto de hábitos, costumes, práticas, saberes, normas, crenças, idéias,
valores, mitos, atravessando gerações, retroagindo sobre o indivíduo para religá-lo aos seus
ancestrais e às suas tradições e, assim, garantir a regeneração permanente daquilo que Morin
(2005d) chama de complexidade social que comporta liberdade, inventividade, solidariedade,
amor, comunidade, criatividade, coalizão, interesses “sociocêntricos”, ordem, mas também
opressão, exploração, perda da solidariedade, ódio, rivalidade, competição, explosão de
egoísmo, destruição, desordem. Este universo mutante, incerto, modificável é que assegurará
a formação, a orientação e o desenvolvimento do ser social/individual.
Para Morin (2005d, p. 166), “A cultura é, no seu princípio, a fonte
geradora/regeneradora da complexidade das sociedades humanas. Integra os indivíduos na
complexidade social e condiciona o desenvolvimento da complexidade individual.”
Identidade/diversidade do ser mulher 93
Neste sentido, a cultura precisa ser fechada em si, para garantir sua identidade
coletiva e mitológica em uma sociedade e, ao mesmo tempo, só pode complexificar-se pela
sua abertura, precisa (re)ordenar-se, precisa de criatividade que o trânsito com outras culturas
permite. Segundo Morin (2005d), a relação entre o indivíduo e a sociedade é hologramática,
recorrente, recursiva, dialógica, ou seja, as alterações no plano dos indivíduos repercutem na
sociedade e retroativam no sistema organizador que incorporará esse individuo para controlar,
regular e normatizar as interações por ele estabelecidas. É possível haver uma relação de
antagonismo, simultaneidade e complementaridade, ao mesmo tempo. O egoísmo é próprio da
espécie/indivíduo/sociedade ao mesmo tempo em que o altruísmo é inerente à pessoa e ao
coletivo. Ser sujeito da própria história é o que torna a unicidade singular, a característica
humana mais universalmente partilhada.
O ser humano é naturalmente fechado pelo seu egoísmo tornando o outro um
estranho e, ao mesmo tempo, é aberto pelo seu altruísmo, sofre mortes homeopáticas,
garantindo a sobrevivência dos outros. O estrangeiro, o estranho tende a ser expulso das
cavernas do eu, ou seja, tende a possuir aqueles que o possuem.
A questão da ambivalência também está presente quando pensamos na relação
espécie/indivíduo/sociedade, tendo em vista que interesses individuais podem estar em
rivalidade, competição e conflito com o interesse coletivo até o momento em que a
solidariedade tende a manifestar-se. O ser individual precisa do outro para constituir seu Eu e
só se realizará, como indivíduo, dentro de uma sociedade definida por uma cultura que
imponha a reprodução biológica à sua organização e estabeleça as regras de vida em comum.
Nessas condições, os indivíduos permanecem inacabados, pois não podem realizar todas as
possibilidades dos seus desejos, mas eles têm a oportunidade de encontrar no outro a
complementaridade que lhe falta.
Na relação indivíduo/espécie a complementaridade pode ser observada, por
exemplo, entre o ser feminino e o ser masculino, dentro e fora do si mesmo. Todo ser humano
contém a presença mais ou menos forte do outro sexo por carregar seu duplo na sua unidade,
mas com o monopólio masculino do poder político e econômico, na formação e no
desenvolvimento das civilizações, o homem passou a exercer o papel de dominador para
manter viva a organização social que se formava, sendo a mulher coadjuvante dessa história.
Direcionamos esta reflexão para a questão da diferença sexual entre o feminino e
Identidade/diversidade do ser mulher 94
o masculino diante da multiplicidade dos papéis experimentados por cada um no espetáculo
da vida. Morin (2005d) coloca que a cultura estabelece, mantém e amplifica as diferenças
entre homens e mulheres por meio dos papéis sociais vivenciados nas tarefas cotidianas e,
para a compreensão do espaço ocupado pelo ser feminino na sociedade ocidental do século
XXI, é interessante buscarmos em alguns mitos de nossa cultura a construção de algumas
características fundamentais do sujeito feminino. O mito, enraizamento no imaginário
coletivo, uma expressão de vida, é revelador, é uma constante que conhecerá modulações
específicas de acordo com as diversas épocas.
3.1 A identidade/diversidade do ser
Na sua origem biológica, o ser humano possui uma singularidade oriunda da
combinação de dois patrimônios genéticos diversos, ou seja, somos únicos gerados dentro de
uma diversidade que está inscrita nas mais variadas esferas da natureza e da vida. Somos fruto
de uma unidade múltipla, que é importante ser compreendida quando propomos uma reflexão
sobre a questão da identidade.
A impressão digital pode ser vista como a maior expressão da diversidade no
âmbito da espécie humana, pois cada pessoa é única em todo o mundo com traços anatômicos,
fisiológicos, afetivos e psicológicos singulares. Em contrapartida, possuem uma identidade
humana comum, com um mesmo patrimônio hereditário anatômico, morfológico e cerebral,
que, por sua vez, é um dos aspectos distintivos mais extraordinários dessa identidade por
possibilitar o pensamento e a inteligência ao homem.
Morin (2005d, p. 59) diz que:
Assim, todos os seres humanos têm em comum os traços que fazem a humanidade
da humanidade: uma individualidade e uma inteligência de novo tipo, uma qualidade
cerebral que permite o surgimento do espírito, o qual permite o surgimento da
consciência.
Identidade/diversidade do ser mulher 95
O autor propõe a idéia de espírito (mente) como um elemento que organiza o
pensamento ou conhecimento e com o vigor da vontade das ações humanas, pois este
elemento advém da relação entre atividade cerebral, uma máquina bio-químico-elétrica, e
cultura. Assim, a consciência surge como um fenômeno principal do espírito por ser um
“circuito” reflexivo que comporta ação a retroação das atividades cognitivas, ao mesmo
tempo em que mantém uma postura enigmática, misteriosa do que é e do que faz o ser
humano. A consciência produz a consciência de si, dos objetos do conhecimento, do
pensamento e dela própria num lócus de certezas e incertezas por dizer respeito à
finitude/infinitude humana. Para Morin (2005d, p. 111),
A consciência só pode ser subjetiva, mas a duplicação operada por ela permite ao
sujeito considerar objetivamente seu próprio pensamento, seus próprios atos, sua
pessoa; a consciência exprime a forte necessidade humana de objetividade. Une o
Máximo da subjetividade e de objetividade.
A consciência, a linguagem e, até, a afetividade apresentam um grau de
multiplicidade pelo fato de mudar segundo as formas de pensar e as condições sócio-culturais.
Um exemplo da diversidade afetiva está na manifestação do choro e do sorriso que são inatos
no ser humano e serão mais ou menos inibidas ou exibidas segundo as diferenças culturais
para expressar os sentimentos universais de amor/ódio, respeito/desprezo, alegria/tristeza,
felicidade/sofrimento, afeição/desgosto, medo e prazer. Algumas pessoas serão sensíveis às
relações de amizade, outras serão devoradas pela raiva e pela inveja, tendo em vista que todos
carregam, em potencial, o pior e o melhor do humano, a desumanidade que é parte da
humanidade.
A dificuldade em compreender a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno,
talvez esteja relacionada com o momento histórico que gerou a ilusão da individualização,
que embora reconheça a multiplicidade entre os homens e a liberdade de ser diferente,
também cria mecanismos que impedem contarmos verdadeiramente com o outro,
transformando a individualidade em individualismo, o que significa lutar por si mesmo,
desconsiderando que a individualidade possibilitaria a compreensão de que nada aparece
como coletivo sem que antes tenha sido vivido subjetivamente, enquanto necessidade e
sentimento do Eu, que se constrói no espelho do outro, igualando e diferenciando-se dele.
Identidade/diversidade do ser mulher 96
Morin (2005d) coloca que a extrema diversidade não deve mascarar a unidade,
nem a unidade básica mascarar a diversidade, pois a riqueza da humanidade está nesta relação
dialógica em que a diversidade criadora encontra sua fonte de inspiração na sua unidade
geradora de uma realidade que tem um ritmo multidimensional, por conectar elementos que
são complementares, concorrentes e antagônicos ao mesmo tempo. Este movimento permite a
compreensão do princípio hologramático do pensamento complexo em que cada indivíduo é
parte do mundo, do universo, do cosmo, assim como os mesmos estão cada vez mais
presentes em cada um de nós.
A identidade humana distinguirá o homem tanto da natureza quanto da
animalidade, mesmo que ele venha dessa natureza e permaneça um animal, o único dotado de
racionalidade, portanto responsável consciente pelas mutações do habitat que nos é
consubstancial – planeta terra. O desenvolvimento da ciência e da técnica que se emaranha
aos processos econômicos, políticos, sociais, étnicos, religiosos e mitológicos propiciam um
devir comum para toda a humanidade e que, por muito tempo, foi conduzido pela crença do
desenvolvimento e progresso a qualquer custo.
De acordo com Morin (2005d, p. 85),
O avesso do desenvolvimento reside no fato de que a corrida pelo crescimento se
processa a custas da degradação da qualidade de vida, e esse sacrifício obedece
apenas à lógica da competitividade. O desenvolvimento suscitou e favoreceu a
formação de enormes estruturas tecnoburocráticas que, por um lado, dominam e
depreciam todos os problemas individuais, singulares e concretos e, por outro,
produzem a irresponsabilidade, o desapego.
O desapego levou a sociedade humana a viver uma ilusória emancipação em
relação à natureza, promovendo ações de caráter destrutivo do meio ambiente. O ocultamento
do processo interativo da vida – natureza – homem – sociedade, indispensável para explicar
os procedimentos complexos da adaptação, sobrevivência e desaparecimento que governam a
evolução dos ecossistemas, nos mostra que o desenvolvimento da tecnociência associado a
comportamentos civilizatórios degradativos ameaça destruir a vida, na biosfera, inclusive a
vida humana, considerando que o surgimento de um número considerável de doenças nocivas
a ela está estritamente relacionado com o equilíbrio ecológico do planeta. Diante dessa
Identidade/diversidade do ser mulher 97
realidade surge a necessidade de desenvolver um comportamento fundamentado no que Pena-
Veja e Almeida (1999) chamam de consciência ecológica, ou seja, a consciência de que a
ameaça mortífera é de natureza planetária e que, por isso, supõe uma reforma das estruturas
da própria consciência a fim de ampliar a compreensão de que o conhecimento é um
fenômeno multidimensional, no sentido de que, de maneira inseparável, é simultaneamente
físico, biológico, cerebral, mental, psicológico, cultural e social e qualquer ação reflete em
todos esses elementos, com maior ou menor intensidade, pois o sujeito constrói a realidade
que pretende conhecer por meio da organização e reorganização da informação e do
conhecimento já acumulado.
Esta questão é tratada pelo pensamento complexo através do princípio de
reintrodução do sujeito cognoscente em todo conhecimento, ou seja, o homem sujeito
observador, conceituador e estrategista é parte do objeto em estudo por pertencer à construção
de uma mesma realidade.
Um exemplo de reintrodução pode ser pensado a partir da experiência cotidiana
da Margarida que, por conviver com os problemas familiares gerados pelo marido alcoólatra,
construiu estratégias facilitadoras de sobrevivência de uma suposta hostilidade do meio, a fim
de proporcionar a satisfação de uma intenção que poderia não ser concretizada pela própria
circunstância em que os fatos tenham ocorrido.
Lá em casa é assim: a gente, eu as meninas, qualquer problema que tem nós não
passa para ele não. A gente procura resolver por que qualquer coisinha que bota na
cabeça dele, ele já fica agitado ali, sabe, fica remoendo, remoendo começa as crises.
E quando eu internei, as meninas deixou para contar para ele, no dia que eu ia
internar que eu ia fazer a cirurgia (Margarida).
No instante da vivência, a incerteza representa um caminho a ser considerado no
decorrer do processo de conhecimento, pois dá movimento a este e também por ser um dos
elementos-base da complexidade humana assim como a relação de independência/
dependência.
Quanto mais um sistema vivo é autônomo, como o ser humano, mais é
dependente do ecossistema, pois a autonomia supõe a complexidade, a qual por sua vez supõe
Identidade/diversidade do ser mulher 98
uma grande riqueza de relações de toda espécie com o meio ambiente, isto é, depende de
inter-relações, as quais constituem exatamente as dependências que são as condições da
relativa independência. A autonomia humana não só depende da energia que é captada
biologicamente do ecossistema, mas tamm da informação cultural. Sendo assim são
múltiplas as dependências que permitirão ao homem construir sua organização autônoma.
Segundo Carvalho (1999, p. 108),
[...] Qualquer indivíduo é ‘sujeito’ na medida em que faz referência a si, e a não-si,
reorganiza o ecossistema que o rodeia, produz autopoiesis, num movimento
organizatório recursivo, no qual causas e efeitos interagem mutuamente,
impulsionando o sistema para direções indeterminadas, porque o jogo entre
individuo/espécie e espécie/natureza não é nunca linear e definitivo, mas sempre
aleatório, inintencional.
A complexidade ecossistêmica não é nada sem a diversidade, pois as interações
entre os seres vivos juntamente com as coações organizam precisamente o meio ambiente em
sistema que sofre, comporta e produz a desordem e a ordem por associar em si a idéia de
unidade/diversidade, unidade múltipla que nos dias atuais chama a atenção para um
desenvolvimento que seja sustentável.
De acordo com Pena-Veja (2003, p. 25),
É, portanto, a consciência de uma degradação crescente do meio ambiente que nos
leva a pensar sobre a emergência de uma ‘nova ecologia’, particularmente por meio
de uma visão paradigmática que associa num todo único e sob a forma de múltiplas
curvas os elementos organização viva/natureza/homem/sociedade/consciência ética.
Para este autor, a consciência ética representa um dos primeiros imperativos para
ações ecológicas capazes de comportar a complexidade biológica, social, cultural e ideológica
para assim compreender a condição humana e a condição do mundo humano integrado a
natureza, pois o homem é elemento, fragmento e totalidade de um ecossistema complexo.
Carvalho (1999) completa esta idéia colocando que é imprescindível praticar a auto-ética para
Identidade/diversidade do ser mulher 99
acirrar uma responsabilidade coletiva generalizada, capaz de influenciar o comportamento
humano a assumir atitudes que respeite ele próprio, a vida e a liberdade na macrovida
planetária, ambiente em que o indivíduo construirá e reconstruirá sua identidade, modelada
pelo seu modo de ser, pensar, agir e sentir.
A pessoa, como sujeito, resulta de experiências pessoais em diferentes momentos
com processos contínuos de mudanças que possibilitarão uma seletividade capaz de apontar o
que deve ser retido e o que deve ser desconsiderado, o que pode ser objetivado, conservado e
acumulado para constituir o acervo do conhecimento, interferirá na constituição da identidade
social, vista como uma totalidade complexa que envolve a sociedade, a cultura, a economia e
a política e da identidade individual constituída pela subjetividade e ação do sujeito. Diante da
proposta do presente estudo, ateremos a reflexão nesses dois elementos da identidade vista
como um fenômeno construído de forma dinâmica e dialógica, um processo identitário,
sempre mutável e provisório, por se tratar de uma construção em que o sentimento de
identidade se inscreve numa tensão e numa homologia entre o homem e o grupo, entre as
necessidades internas e as influências sociais, entre a singularidade e a multiplicidade.
Partindo do principio de que o homem é um ser fechado em si para o
desenvolvimento e a manifestação da subjetividade que é singular, Castoriades (1999) coloca
que, por possuir um self (autofinalidade), o mesmo constrói o seu próprio mundo para dar um
signo de valor às coisas, ou seja, inserir representativamente um objeto na singularidade da
sua visão de mundo. Essa atividade representativa faz parte da luta no nível do imaginário e
do simbólico pelo poder de atribuição de determinados sentidos às coisas, aos fatos sociais, ao
mundo. O que confere seu sentido à representação não é tanto seu conteúdo, os elementos que
a formam, mas as relações entre estes elementos. A atividade representativa é um processo de
construção social da realidade em que a identidade de cada um será projetada no objeto que
representa. Assim, a representação que um sujeito faz de um objeto é um bom indício do
perfil de sua identidade, assim como o conhecimento da identidade de um sujeito é um bom
predito de sua visão de mundo.
Para Andrade (2000, p. 144), “[...] a identidade é uma questão chave na
representação de qualquer objeto, ou seja, na estruturação de seu campo de representação.
Mais precisamente, a identidade é uma representação chave que está presente no campo de
representação de qualquer objeto.”
Identidade/diversidade do ser mulher 100
A representação não é fruto da reflexão, capacidade de receber sentido, questionar
o sentido e criar um novo sentido, que juntamente com a vontade, segundo Castoriades
(1999), constitui traços essenciais da subjetividade humana. A reflexividade é o saber que
sabemos, e interrogar-se sobre tal saber é transformar uma atividade em objeto e explicitar o
si sob a forma estranha de um objeto não objetivo, do qual sabemos que ele é objeto por
posição e não por natureza, enquanto a vontade é a dimensão reflexiva do que somos como
seres inventores, ou seja, a dimensão reflexiva e prática da imaginação, fonte de criatividade.
A verdadeira vontade não se refere apenas a escolhas de possibilidade pré-determinadas, mas
ao ato no e pelo qual surgem múltiplos possíveis, lócus que potencializa a expressão de um
dos patrimônios do ser humano – a liberdade – esculpida pela consciência, cultura, idéias,
sociedade, política e economia, ou seja, forças que criam situações capazes de comportar, ao
mesmo tempo, a ordem para promover o equilíbrio para as decisões e escolhas e a desordem
que viabilizará a elaboração de estratégias diante das incertezas e riscos inerentes a vida.
Morin (2005d, p. 267-268) coloca que:
Uma liberdade aparece quando o ser humano dispõe das possibilidades mentais de
fazer uma escolha e de tomar uma decisão e quando dispõe das possibilidades físicas
ou materiais de agir segundo a sua escolha e a sua decisão. Quanto mais apto a usar
a estratégia na ação, ou seja, a modificar, no meio do caminho, um roteiro inicial,
maior é a sua liberdade.
Para escrever o roteiro inicial da vida, cada pessoa, segundo Maffesoli (1996),
conta uma história mítica para si e para o outro e sua composição, enquanto sujeito, é
contínua, pois a pessoa só pode ser definida na multiplicidade de interferências que estabelece
com o mundo circundante, onde se percebe a participação de todas as potencialidades
humanas que são a imaginação, os sentidos, o afeto e a razão. A imaginação e a razão
coexistem dentro de uma concepção maior – o imaginário que se manifesta como fluir criador
que constrói e reconstrói permanentemente imagens com sentido de um mundo. Imaginar é
entregar-se aos poderes do imaginário, é dar atenção a uma realidade superior, domínio do
desconhecido, mas perfeitamente real, pois ao imaginá-la reconhece sua existência. Ao
contrário da razão cuja essência está em classificar, explicar, totalizar e verificar
empiricamente os elementos presentes no real mediato inviabilizando a apreensão simbólica
da experiência vivida que, em qualquer tempo e lugar, representa uma das principais
Identidade/diversidade do ser mulher 101
manifestações do ser. Para Morin (2005d, p. 122), “A vida humana necessita da verificação
empírica, da correção lógica, do exercício racional da argumentação. Mas precisa ser nutrida
de sensibilidade e de imaginário.”
A imagem simbólica é a transfiguração de uma representação concreta em um
sentido não abstrato. O símbolo apresenta uma parte visível, significante, concreta dos objetos
que estão impregnadas de sentidos atribuídos pelo ser humano para transformar o
insignificante em objeto carregado de significado. Desse modo, o sentido reflete o mundo
como se fosse uma rede de significados culturais por meio dos quais se compreende e se
transforma a realidade. Os sentidos simbólicos que a pessoa cria para as coisas, para as
experiências de vida, assim como para o mundo em geral, entrelaçam-se formando redes de
significados por onde ela se religa ao mundo na construção de sua identidade.
Cada situação da vida é carregada de importância, formulada ou não formulada, e,
muitas vezes, os bons momentos, as belas situações, os belos discursos são concorrentes com
momentos que despertam a angústia, o medo e a ameaça de não poder vivenciar outras
situações boas e prazerosas. Neste instante, tem-se a oportunidade de exercitar um saber que
Maffesoli (1998) chama de dionisíaco, ou seja, ser capaz de integrar o caos ou pelo menos
conceder-lhe um lugar próprio, a fim de estabelecer a topografia da incerteza e do
imprevisível, da desordem e da efervescência, do trágico e do não-racional, coisas que em
grau diverso atravessam as histórias individuais e também coletivas. Neste sentido, observa-
se que todos os atos da vida cotidiana, aos quais não se presta atenção por serem mais vividos
do que conscientizados, raramente verbalizados, são eles, de fato, que constituem a verdadeira
densidade da existência individual e social, pois o espaço vivenciado e imaginado favorece a
temática do sentir com. Num contexto de tantas perdas e transformações, as limitações físicas,
possíveis de não evidenciar a suposta auto-suficiência do ser humano e sua liberdade,
configuram-se num sofrimento.
É aquele sofrimento de ficar ali, sabe, sofrendo, dependendo das pessoas
(Margarida).
O braço que atrapalha e sem a mama se passa, agora o negócio do braço esse não
esquece dele. Eu não esqueço, eu tô dormindo ele dá umas crises de dormência
aquelas coisas (Gardênia).
Identidade/diversidade do ser mulher 102
É importante observar que todos os instantes da vida cotidiana são profundamente
marcados pela noção de limite, o que se pode chamar de gestão da morte, segundo Maffesoli
(1998). O limite é uma arma na guerra de trincheiras que cada indivíduo trava contra o devir e
as diversas espacializações. Assim, o sentido dos limites, como também o sentido do trágico
são apenas um, reproduzindo, a sua maneira, a organicidade da vida e da morte que está
impregnada em todo sistema vivo. A morte, o fim, representa uma realidade vivida e gerida
todos os dias, individual ou socialmente, por ser parte recebedora de todas as situações
cotidianas, sendo o limite o fator que une a morte à vida real.
A então eu gostaria de ser uma pessoa assim mais disposta, né. Eu gosto demais de
cuidar de casa e depois da cirurgia a gente fica bem tolhida, né. Não faço um terço
do que eu fazia. Agora o meu prazer é cuidar de casa. Aí eu gosto, eu sempre gostei.
Me incomoda muito não ver a casa em dia do jeito que eu tinha (Rosa).
Pra mim foi difícil, mas agora eu tô acostumando, né. A gente acostuma a trazer,
manter a casa sempre em ordem, né, mas eu faço o que eu posso, né. Agora eu estou
acostumando. No começo foi difícil, por que eu trabalhei trinta e seis anos, né
(Margarida).
Eu sinto muita dificuldade em quase que tudo, né. Na minha casa chega uma pessoa
assim, que eu gosto muito de fazer as coisas, de trabalhar e agora eu não tô fazendo
quase que nada. Nem meu crochê que eu gosto, já fiz até poucos dias, ainda faço,
mas com muita dificuldade, não tá dando. Me chateia, eu fico assim pensativa, né.
Pensativa (Jasmim).
Então a gente deixa de, por exemplo: eu que de primeiro quando tinha uma cadeira
de roupa eu passava tudo, hoje eu não faço isso. Eu passo duas ou três peçinhas por
que eu sei que vai prejudicar o meu braço, né. Forno também, eu às vezes um bolo
que eu faço que eu vou lá e tiro do forno do contrário eu não fico tomando muito
calor (Angélica).
Antes eu não consegui fazer nada. O que tô conseguindo fazer eu tô rindo a toa. Eu
tô felicíssima que eu já tô conseguindo fazer. De primeiro eu não consegui fazer
nada, sofria tanto, nossa coisa mais triste que é. O bom é você poder fazer. As
pessoas reclamam tanto de tanta coisa boba, que depois que vem a doença é a coisa
boba, mas que acaba sendo muito importante (Gardênia).
Identidade/diversidade do ser mulher 103
Os sujeitos de pesquisa nos mostram que, mesmo vivendo situações semelhantes,
ou seja, as restrições na execução de atividades de rotinas, cada pessoa vive a circunstância de
acordo com o seu momento, segundo o seu olhar para o re-encantamento e descobertas de
outras possibilidades e formas para conviver com algo que, recorrentemente, faz lembrar
momentos de profunda mudança, momentos que deixaram marcas num corpo que, ou pela
limitação física do braço ou pela falta do seio, precisa lançar mão da afetividade para
reescrever a própria historia.
Viver com afetividade significa experimentar com intensidade toda vivência do
eu, ou seja, viver a identidade individual compreendida como um conjunto de representações,
sentimentos e opiniões sobre si mesmo que é, antes de tudo, uma experiência do mundo
circundante e do mundo que partilho com o outro. Experimentar juntos emoções comuns faz
com que o ser individual incorpore o mundo, e se incorpore ao mundo criando relações do que
são relacionáveis em si, no universo da existência de tempo e espaço, elementos da
socialidade visto como um misto de sentimentos, imagens, diferenças, que incita a relativizar
as certezas estabelecidas e remete a uma multiplicidade de experiências coletivas por se tratar
de um ambiente onde ocorre a troca, o comércio com os outros, com a alteridade para
promover o engajamento, a superação de limites do ser humano, infinitamente limitado e
incompleto. Segundo Maffesoli (1996), a paixão e o desejo do outro são os indícios mais
claros da incompletude fundamental do individuo que é submetido a um confronto
ininterrupto entre o princípio do desejo e o princípio da realidade, entre a sua necessidade de
respeitar a realidade e a sua tendência a negá-la, para assim tecer uma realidade suportável
dentro de um tempo e espaço em que a pessoa constrói o conhecimento de si por meio da
interpretação do texto da própria ação que acederá sua história, modelada e remodelada por
diversos adjetivos, pronomes, verbos, predicados, conjunções e advérbios.
Neste contexto, o conceito de tempo parece ser uma instância de repetição e de
circularidade que promove uma espécie de proteção contra a angústia do devir. Repetir
significa negar o tempo, é o signo de um não-tempo que caracteriza o concreto da vida
cotidiana, o instante vivido que provoca incessantemente o movimento de construção,
superação, demolição e reconstrução de sentidos e significados numa espacialidade
compreendida como o lugar em que transitam as representações, os sonhos e as práticas
cotidianas.
Identidade/diversidade do ser mulher 104
Abordando a identidade, sob o ângulo da dimensão temporal e da relação com o
outro, é que o limite surge como uma arma na guerra de trincheiras que cada pessoa trava
contra o devir e as diversas espacializações. Assim, o sentido do limite traduz a organicidade
da vida e o conhecimento de si que está associado à relação ao outro e ao reconhecimento da
alteridade. É no contexto da linguagem, da interlocução e da troca que ocorre o processo de
constituição do si mesmo e da alteridade. É a interpelação do outro que permite à pessoa
tornar-se um si mesmo e contrabalançar a tendência de fechamento do eu, numa dinâmica de
reciprocidade, a reversibilidade entre o si mesmo e o outro. Na medida em que o ser humano
está aberto para aprender, está disposto ao conhecimento para a expansão do si por meio do
processo de identificação. Neste sentido, ocorre a possibilidade de modificações estruturais,
emocionais e subjetivas para que a pessoa possa estabelecer sua identidade sob o ângulo de
identificar-se com o meio, ao mesmo tempo em que se distingue dele.
Eu olho nossa! Que felicidade, que bom ela não ter tido tirado sabe. Muitas vezes eu
pensei isso. Quando passa aquelas mulheres com aqueles baita peitão de silicone,
gente que colo! Eu falei pra menina, quando eu tava vendo televisão:
-Olha que colo mais bonito.
Eu penso: Isso eu nunca mais vou ver, né. Sabe eu sofro de pensar. Por isso que eu
te falo dar a volta por cima se vai tentando, dar a volta, mas se vai devagar
(Gardênia).
Eu falei assim:
- Duas senhoras, até idosas, estavam olhando para mim.
- Aí mãe, mas olhou aqui? Não tinha que olhar.
Nós estava numa casa e eu tava atrás, assim o sofá no meio da sala e eu bem atrás.
Olhou aonde? Em mim né. - Não é nada é coisa da cabeça da senhora é coisa da
cabeça. Mas é as duas olhou, olhou uma aí depois a outra olhou em mim, quer dizer
é ela que tem câncer (Margarida).
Os conceitos de identidade e identificação como processos de formação do eu, se
encontram intimamente relacionados, de modo que um só se torna significativo no contexto
do outro, pois, segundo Maffesoli (1996), a identificação traz em si o princípio do
relacionável, do pensar em si a partir do outro, ou seja, reconhecer as diversas facetas capazes
de constituir o eu e reuni-las, com certo grau de coerência, que identifique a singularidade
desse mesmo eu.
Identidade/diversidade do ser mulher 105
Aí ser mulher [...], olha é complicado, né. Eu acho que mulher tem uma carga muito
grande, mas é uma coisa tão bonita também que eu acho que só tinha que sobrar pras
mulheres mesmo, né. Tudo de bonito é a mulher que passa, apesar der ser um ser
que mais sofre. Se tá carregando isso aí, é a coisa mais linda do mundo, pelo menos
quando você olha essa carinha. É um negócio mágico se vai conseguir falar isso
depois que você passa. Gente é uma coisa super diferente sentir um filho mexer na
barriga, eu acho assim que as mulheres é uma situação que as mulheres passa eu
acho que elas tem umas regalia muito grande (Gardênia).
Para Maffesoli (1996, p. 305-306),
[...] lógica da identificação [...] parte do primum relationis, desses casos de
experiência que, antes de todo o conceito preestabelecido, constatam que o ‘eu’ é
feito pelo outro, em todas as modulações que se pode dar a essa alteridade. Esse
outro poderá ser Deus, a família, a tribo, o grupo de amigos, e, é claro, como já
disse, esses ‘outros’ que pulam em mim.
Segundo o autor, a existência de um eu só é possível via relações e representações
que são sociais e que repousam sobre uma série de identificações nas quais, segundo a
oportunidade, cada pessoa expressaria uma parte de si própria num sistema constante de
comunicação verbal e principalmente não verbal que é causa e efeito desse pluralismo
pessoal. A identificação ressalta que a pessoa é composta de sucessivos estratos que são
vividos de um modo seqüencial e/ou concorrencial na teatralidade da vida, ou seja, as
encenações dos diversos momentos de existência permitem as identificações e isto constitui
um dos elementos importantes da socialidade.
Maffesoli (1984, p. 137) diz que: “A sociedade enquanto interação de elementos
heterogêneos, que negociam sua presença mútua, nada mais é do que uma vasta e complexa
representação, onde os papéis se trocam, se sucedem, se opõem, se eliminam, etc.”
O espetáculo, parte integrante da vida social, é organizado em função dos outros,
mas igualmente em função do próprio ator que experimenta sensivelmente sua existência no
cotidiano que reúne a rotina, os hábitos, os fatos, as coisas e os comportamentos, ou seja, a
maneira que a pessoa vive e realiza suas atividades. O cotidiano é o lugar do espontâneo, do
desempenho automático dos papéis, mas também um lugar em que o homem coloca em
evidência a articulação de todos os seus sentimentos, paixões, idéias e ideais. Lugar em que se
Identidade/diversidade do ser mulher 106
apreende o mundo e nele se objetiva de forma única, dentro das possibilidades oferecidas
como também das não oferecidas, considerando que o homem é um ser capaz de criar
estratégia de sobrevivência, contrabalanceando que é próprio da condição de permanência
social. Cada posicionamento do eu o determina, pois sua existência concreta é unidade na
multiplicidade. O uno é o aspecto representacional da identidade e o múltiplo o seu
constitutivo. Represento um personagem, quando na verdade sou multiplicidade de
personagens em relação, de diferentes maneiras, travestida com máscaras, segundo Maffesoli
(1984), que oferecem um refugio bastante seguro, permitindo existir, fazendo como todo o
mundo.
Maffesoli (1984, p. 146) coloca que:
O que chamamos de vida cotidiana é constituída de micro atitudes, de
criações minúsculas, de situações pontuais e totalmente efêmeras. É strito
sensu, uma trama feita de minúsculos fios estritamente tecidos, onde cada
um, em particular, é totalmente insignificante.
Na vida cotidiana, a pessoa é condicionada por instância como família (unidade
básica que referencia e sedimenta a identidade individual), educação, meio, economia,
política, entre outras, que promovem a participação da mesma na sociedade dando sentido de
continuidade e de reconhecibilidade, que também possibilitará a transcendência das
especificidades e, conseqüentemente, a transformação desse condicionamento. A vivência
cotidiana deposita toda a importância num presente, expressão da mobilidade existencial no
seio da rotina diária, que a princípio pode apresentar-se caótica diante dos ganhos e perdas,
das vidas e mortes que a todo instante circundam o ser humano, tendo em vista que todos os
rituais da vida cotidiana são profundamente marcados pela noção de limite, de fim para dar
inicio a outro instante, a outro ciclo. A rotina diária se consolida num vaivém de brilhos e
tristezas, de efervescência e dores, cujo objetivo consiste em lembrar que nossa vida
consciente ou afetiva é regulada pelo limite capaz de provocar uma desordem, de promover
uma incerteza própria do devir desconhecido.
Identidade/diversidade do ser mulher 107
Outro dia eu falei para minha menina assim:
- Óh parece que depois que eu fiz cirurgia, parece que não é eu mais, é outro, né.
-Mãe que bobeira é essa?
Ela briga comigo. Não, parece que aquela Margarida acabou, não é aquela, parece
que morreu. Porque eu tinha cabelo comprido, né, hoje eu tenho curtinho. Eu não
vejo mais a minha imagem de antes. Eu fui sempre assim, de garra, de luta mesmo.
Hoje mudou tudo, né, a vida (Margarida).
Analisar a aparência como elemento do cotidiano significa concretizar para si as
estruturas antropológicas do imaginário, pois ela está inteiramente impregnada nos fenômenos
que exprimem aquilo que é vivido ou que permite que cada um e a sociedade como um todo
viva. Maffesoli (1996, p. 126-127) diz que: “[...] as diversas modulações da aparência (moda,
espetáculo político, teatralidade, publicidade, televisões) formam um conjunto significativo,
um conjunto que, enquanto tal, exprime bem uma dada sociedade.”
A aparência como envoltório do corpo individual poderá nos permitir dar forma,
traços e concretude ao eu que é apresentado para a pessoa por meio da imagem refletida no
espelho e para os outros por meio da imagem construída que a identifique. O corpo produz
comunicação porque ocupa espaço, está presente, pode ser visto e/ou tocado. A corporeidade
poderia ser definida como o ambiente geral no qual os corpos se situam uns em relação aos
outros, sejam os corpos pessoais, os corpos institucionais, os corpos naturais ou os corpos
místicos. Dessa forma, a comunicação serviria de pano de fundo para a exacerbação da
aparência, ou seja, da imagem envoltória de um eu.
A imagem é uma expressão de vitalismo e enraíza-se num substrato que é natural
e social permitindo a correspondência entre eles e favorecendo as interações numa vida,
definida por Maffesoli (1996) como obra de arte que não cria o visível, mas torna visível o
fluxo vital oriundo da proximidade nata entre os objetos materiais (mundo natural) e os
objetos imateriais (mundo das representações) que utilizam a expressividade da forma como
mediação entre o eu e o mundo natural e social.
A existência cotidiana, como forma de arte, consiste em emblematizar todo o
imprevisto que contém o que é habitual com seu aspecto repetitivo, seus costumes, seus
rituais. Assim, a vida cotidiana organiza-se em torno de imagens a partilhar; sejam as imagens
macroscópicas, ou as que modelam a intimidade das pessoas e de seus micro-agrupamentos.
O mundo imaginal seria, de certo modo, a condição de possibilidade das imagens sociais, um
reconhecimento social que funda a sociedade, pois, enquanto sistema simbólico, o imaginário
Identidade/diversidade do ser mulher 108
social reflete práticas sociais com produção de sentidos que se consolidam na sociedade,
permitindo a regulação de comportamentos, de identificação e de distribuição de papéis
sociais. O imaginário, constituído de uma série de elementos disponíveis na cultura de uma
sociedade: idéias, imagens, crenças, mitos, entre outros, é o lócus no qual se ancoram as
representações sociais, instituindo histórica e culturalmente o conjunto das interpretações, das
experiências individuais, vividas e construídas coletivamente.
De acordo com Castoriades (1999, p. 43),
[...] O processo de socialização começa com o nascimento e termina com a
morte do individuo. Ele faz do ser humano uma entidade que fala, tem uma
identidade social, um estado social, é habitado e determinado por regras,
valores, fins e possui mecanismos de motivação que são sempre mais ou
menos adequados à manutenção da sociedade existente.
A motivação impulsiona o ser humano a identificar as situações sociais a fim de
enfrentá-las e promover a interação necessária para a avaliação do self (auto-finalidade) e dos
outros na relação homem/sociedade que é de convivência, ou seja, um jogo das interações
reais e imaginárias, pois o estabelecimento da própria identidade reconhecida por si mesmo é
tão importante quanto estabelecê-la para o outro, numa determinada situação carregada de
intenções e motivos. As avaliações da situação, das pessoas e do self entram na organização
de um ato ou de uma ação individual com reflexo no coletivo, pois para poder explicar
alguma coisa, e agir sobre ela, é necessário que a compreenda, mas ao se compreender já se é
outro com outras motivações e intenções. A construção do conhecimento, a compreensão que
dele resulta, altera, modifica aquele que conhece.
Assim, torna-se imprescindível descobrir outras possibilidades e formas para
conviver com algo que, recorrentemente, faz lembrar momentos de profunda mudança,
momentos que deixaram marcas no corpo, ou pela limitação física do braço ou pela falta do
seio ou sua reconstrução, a fim de continuar escrevendo, com encantamento, uma história de
vida.
Identidade/diversidade do ser mulher 109
Pra mim, eu não era, eu sou hoje. Eu sou a mesma coisa. Tô do mesmo jeito, brinco
do mesmo jeito, é a mesma coisa, não tem diferença, certo. Diferença existe, mas eu
faço com que ela não exista. Embeleza aquilo que você tem e pronto. Aceita ser
aquilo (Angélica).
Se sabe que agora eu tento lidar de uma forma assim, mais tranqüila. Eu olho e vejo
tanta gente pior do que eu, que eu animo. Tem dias [...] deixa eu contar da cirurgia,
que pode rescindir, uma coisa assim. A semana passada eu perguntei quando eu
posso fazer a reconstrução, por que eu fiquei de esvaziar a outra. Tem esse grande
problema, né, que é um grande problema se ter que enfrentar tudo de novo e esvaziar
essa, aí é difícil essa fase que eu estou agora. É difícil por isso de ter que esvaziar o
outro, o outro se tem que esvaziar pra evitar de dar por que ameaça de novo. Mas ai
se fica, se imagina, esperando um tanto de tempo pra você fazer de novo. Parece que
deu um pouquinho mais de medo da doença porque agora que eu tirei, mas na
intenção de cura pelos exames todos, né. Então eu tava assim tranqüilinha
(Gardênia).
Tentar buscar re-encantamentos na beleza do que é possível representa uma
importante estratégia quando se vivencia situações limites que ameaçam a própria existência.
Atribuir outros significados ao que existe faz parte da imaginação que tira do real, muitas
vezes insuportável, elementos capazes de recriá-lo, considerando que, imaginando uma
determinada situação, estamos também a tornando real pelo simples fato de reconhecer sua
existência.
3.2 O ser mulher e os papéis sociais
Tanto na sua estrutura profunda como em seu conteúdo superficial, o mito tem a
ver com uma reação composta entre corpo/espírito e palavra/mundo. É metafórico, não no
sentido do emprego das chamadas figuras de estilo, artifícios de mera retórica, mas no sentido
etimológico da palavra: o de transpor as fronteiras de conveniência que o homem estabelece
entre os sexos, a natureza, as espécies e o cosmo. Assim, a capacidade metafórica do mito
acaba moldando as formas intelectuais e sociais do pensamento e do comportamento,
transcendendo as sagradas cosmogonias religiosas para adquirir formas seculares, as quais
emprestam valor a tudo que realizamos em termos de arte, ciência, comunicações e todas as
demais experiências da vida.
Identidade/diversidade do ser mulher 110
Para Morin (2005d, p. 42),
Os mitos são narrativas recebidas como verdadeiras que comportam infinitas
metamorfoses (como a passagem de um estado humano a um estado animal, vegetal
ou mineral e vice-versa), assim como a presença e poder dos duplos, espíritos,
deuses. Enquanto a lógica comanda o universo racional, a analogia comanda o
universo mitológico. A formidável onipresença do mito nas sociedades arcaicas
levou os antropólogos simplistas, do começo do século XX, a acreditar que os
primitivos viviam num mundo puramente mitológico, quando, na verdade, as
estratégias de caça e a aquisição de conhecimentos demonstram a inteligência e as
práticas racionais deles.
Pode-se observar que os mitos se associam ao imaginário para transpor a
materialidade do mundo exterior, friamente objetivado pela lógica racional. De acordo com
Morin (2005d), a importância do imaginário humano depende, em parte, da importância da
realidade psíquica, por ser o lócus de fermentação das necessidades, sonhos, desejos, idéias,
imagens e fantasias que permitiram a proliferação do mundo imaginário que transgredirá os
limites de espaço e de tempo. Morin (2005d p. 132) diz que “[...] A importância do imaginário
abre caminho aos delírios do homo demens, mas também a fantástica inventividade e
criatividade do espírito humano [...]. Assim, este sonhou tanto em voar que surgiram os
aviões.”
Schmitt-Pantel (2003), ao tentar discorrer sobre a construção da diferença dos
sexos, própria de cada cultura e da sociedade ocidental, recorre a dois mitos sobre a criação da
mulher advindos da tradição grega e da judaico-cristã. Segundo ela (2003, p. 130),
Ambos são variantes de um mito muito disseminado, que cria a mulher como uma
categoria secundária, posterior à criação ou à existência primeira dos homens.
Associa a criação da mulher à origem daquilo que se pode denominar ‘condição
humana’, ou seja, à introdução da morte e do mal no mundo. E a ela atribui uma
responsabilidade maior pela obrigação do trabalho árduo a que está sujeita a
existência humana.
Na tradição grega, segundo a autora, Pandora não é criada como companheira que
serve para atenuar a solidão do homem, e sim representa um ato de vingança de Zeus (rei dos
Identidade/diversidade do ser mulher 111
deuses) contra Prometeu que roubou o fogo divino para ser entregue aos mortais como um
presente que significasse a sua própria perdição. Pandora, semelhante a uma deusa, tem toda a
aparência da sedução, mas oculta um coração ardiloso, além de numerosos outros defeitos,
que a princípio o mortal Epimeteu não perceberá. Importante ressaltar que, na tradição grega,
Pandora não representa a criação do gênesis feminino que está relacionado com a deusa Gaia
(Terra), mas sim um ancestral feminino que compartilha com o ser masculino toda a
degradação moral (injustiça, impiedade, cobiça, cegueira, preguiça etc.) inerente à
humanidade.
Na tradição judaico-cristã, mesmo considerando os dois relatos apontados por
historiadores sobre a criação da mulher: Deus criou o homem a sua imagem e semelhança
com duplo caráter masculino e feminino (ser andrógino) e, após este ter adormecido, tomou-
lhe uma de suas costelas e modelou a mulher, Eva, que é descrita, nas escrituras bíblicas,
como a figura do ancestral feminino da humanidade.
De acordo com certas interpretações da criação humana em Gênesis, no antigo
testamento da tradição judaica, Deus teria criado Adão e Lilith, que por ter se rebelado e
recusado a ficar sempre em baixo durante as suas relações sexuais, teria abandonado Adão no
Jardim do Éden e ido para o Mar Vermelho. Adão queixou-se ao Criador, que enviou três
anjos para buscá-la, mas não obtiveram êxito. Então, o Criador a transformou em um demônio
feminino, caracterizado pela sensualidade e sedução, e criou outra mulher da costela de Adão,
Eva, para viverem juntos no paraíso. Porém, Eva, a sua maneira, repetiria o gesto de rebeldia
de sua antecessora ao experimentar e oferecer o fruto proibido a Adão, após ter sido tentada
por uma serpente, forma tomada pelo demônio. Como conseqüência deste ato de
desobediência, ambos foram expulsos do paraíso, perdendo a imortalidade.
Segundo Schmitt-Pantel (2003), o ser feminino, aparece como a causadora da
perdição humana ao seduzir o homem para comer o fruto proibido. Mal magnífico com prazer
funesto, venenosa e traiçoeira a mulher era acusada pelo outro sexo de ter introduzido sobre a
terra o pecado, a infelicidade e a morte, considerando que o mesmo procurava uma
responsável pelo sofrimento, o fracasso e o desaparecimento do paraíso terrestre. Além disso,
na tradição judaico-cristã, ela é duplamente representada, dependente do ser masculino:
materialmente por ter sido criada a partir do homem e existencialmente por ter sido criada
para ser companheira dele. Estes pontos podem ser encontrados nestas falas, embora a
Identidade/diversidade do ser mulher 112
dependência material aqui expressa esteja relacionada à questão econômica, porém, na
essência, a figura do masculino representa o poder, a autoridade.
Ele me domina por causa do dinheiro, né. Eu não tenho renda nenhuma então tem
que tá pedindo pra ele e é um meio dele me dominar. Tirando essa parte financeira
ele não tem domínio sobre mim [...]. Ele também não deixava, meu marido não
deixava eu trabalhar e eu hoje eu vejo, eu me sinto assim uma pessoa inútil (Rosa).
Ser mulher, eu acho que tem que ser compreensiva. Muitas coisas que não, que ela
não pode conseguir. Tem hora que tem que se desapegar por que, não sei, a gente já
casou assim. Na época não era tudo fácil, né. Então eu naquela época não tinha uma
geladeira, eu não tinha fogão a gás, tinha fogão de lenha, né. Então eu comecei
naquela vida, mais, como é que fala, restrita, né. Daí pra frente foi melhorando então
as coisas [...] Eu deixaria uma mensagem assim: as mulheres se espelhem em Nossa
Senhora e o que Jesus deixou pra nós, o sofrimento dele, né, e um dia ele cumpriu a
missão dele aqui na terra e nós também temos a nossa missão e seguir em frente,
sentir feliz [...], não deixar a tristeza abalar (Angélica).
Para reparar o ato falho da desobediência, as escrituras bíblicas destacam o
importante papel da nova Eva, Maria, figura representativa da maternidade, nulidade,
continência, domesticação do desejo e submissa ao sistema patriarcal cujo principal papel do
ser feminino está relacionado com os cuidados e a proteção da família para assegurar o bem-
estar e relações sadias dentro do lar. Atributos como compreensão, obediência e aceitação,
associados à figura da virgem Maria, talvez ajudasse a mulher encarar com mais serenidade as
mutações físicas, orgânicas e emocionais que a circunstância da retirado do seio ocasiona.
Depois da cirurgia, eu acho que eu tenho mais aceitação com as coisas, né. Eu sei
mais o que eu quero, não posso mudar, mas eu, eu tenho consciência do que eu
quero muita coisa eu não posso mudar (Rosa).
No sistema patriarcal, encontra-se uma tendência comum na maior parte das
sociedades no que diz respeito à distribuição dos papéis sociais segundo a divisão sexual: os
homens devem estar ligados a atividades exteriores ao lar, considerando que são esperadas
características e atitudes relacionadas ao ser firme, competitivo e duro, enquanto as mulheres
Identidade/diversidade do ser mulher 113
devem ser modestas, ternas e preocupadas com a educação e a qualidade de vida de toda a
família, considerando que era a responsável pela manutenção da moral e pela realização do
culto privado. Ela deveria ser a rainha do lar, ou seja, procriar e criar seus filhos, cuidar do
marido respeitando sempre suas exigências e administrar a casa além de ser o anjo tutelar para
cuidar da educação das crianças e servir de musa para inspirar o marido e os filhos a serem
homens honrados e, assim, manter presente as idéias positivistas.
Acho que eu já cumpri a minha missão aqui, eu criei os meus filhos, formei meus
filhos, né, Tenho a alegria de conviver com as netinhas (Rosa).
Depois que eu voltei aí ele começou a ter convulsão que o médico não entendeu
nada. Levei ele no Nogueira, ele tava tomando o remédio certinho, porque eu falei
para minhas meninas: - Lembra ele do remédio, dá o remédio na mão dele se não ele
vai entrar em convulsão. Mas aí graças a Deus essa fase passou (Margarida).
Eu podia ter criado mais filhos porque a minha intenção era essa, mas quando esse
mais novo fez cinco anos meu marido ficou muito doente (Jasmim).
Ismerio (1995) coloca que o casamento era considerado o alicerce neste tipo de
organização social que tem como fundamento os seguintes princípios: monogamia
indissolúvel completada pela viuvez eterna; sustento da mulher pelo homem; livre desistência
da herança por parte da mulher; superintendência materna na educação.
Segundo Ismerio (1995, p. 23),
A mulher deveria ser sustentada primeiramente pelo pai, com o casamento esta
responsabilidade passava para o marido e com a morte deste, para os filhos. Caso a
viúva não tivesse filhos, seu sustento caberia aos irmãos e, na ausência de familiares,
o Estado assumiria o encargo evitando que ela ficasse desprotegida.
A imagem da mulher descrita pela sociedade patriarcal era de um ser fraco,
submisso, passivo e considerado inferir ao homem no que diz respeito à inteligência e ao
Identidade/diversidade do ser mulher 114
raciocínio e, por isso, inapto para exercer o trabalho externo ao lar e muito menos para se
envolver em questões políticas e econômicas, considerando que não possuía aptidão para isso,
devido a sua emoção exagerada que a impossibilitava de pensar antes de agir, era de grande
impulsividade. Muitas vezes ela usava desta característica para conseguir o que queria através
da chantagem emocional. Por ser a sua natureza frágil, seria educada de forma bem rígida
para que não fosse corrompida pelos males da sociedade e somente aprenderia os trabalhos
destinados ao seu sexo, ou seja, as prendas domésticas e tudo aquilo que a preparasse para ser
filha, esposa e mãe.
Além de ser frágil, irresponsável e irracional, a mulher tornou-se assexuada, pois
enquanto guardiã da moral teria que manter uma conduta acima dos padrões permitidos ao
homem, pois o sexo existia somente para a procriação e a mulher deveria ser destituída de
todo e qualquer desejo sexual para cumprir o papel de progenitora. Deveria ser
constantemente vigiada, pois era fácil corromper sua integridade por ser de natureza leviana, o
que implicaria em sua desmoralização perante a sociedade, perdendo seu estado de pureza e
ternura, atributos de divinização e de semelhança ao arquétipo maternal de Maria, a virgem
católica, afirmando que ser mãe era o maior compromisso que a mulher tinha para com a
sociedade e só assim cumpriria seu verdadeiro papel. Tinha que ser uma criatura sem vontade
própria, desprovida do desejo sexual e submissa ao marido.
Ismerio (1995, p. 30) diz que:
[...] por isso os positivistas a consideravam a expressão máxima do amor, e amar
estava relacionado com o ato de obedecer. Obedecia ao pai e após o casamento ao
marido, do qual passava a depender. Amar significava anular-se em favor de seus
entes queridos, exercendo o seu dever de guardiã da moral e cumprindo as
exigências que lhe eram feitas.
A naturalização das funções de esposa e mãe como sendo feminina, no ambiente
privado da família, contemplaria o propósito de domesticação dos impulsos, desejos e
sentidos do ser feminino quando nos deparamos com a definição que Dona Jasmim faz de
uma mulher sedutora e sensual:
Identidade/diversidade do ser mulher 115
Acho que é uma mulher que dá conta das coisas tudo na hora, tudo certinho. Uma
boa mãe que nem a gente procura ser. Eu principalmente quero ser uma boa mãe,
uma boa vó, bisavó e tudo, né.
Uma educação voltada para o desenvolvimento das “prendas domésticas” talvez
tenha dificultado o reconhecimento de outro sentido para os adjetivos mencionados, pois a
associação desses atributos a sexualidade poderia representar uma ameaça ao autodomínio
que define a racionalidade masculina e, segundo Highwater (1992, p. 91), “[...] Se lhes fosse
dada a oportunidade, talvez os homens tivessem erradicado por completo o desejo sexual, se
não fosse à necessidade de ter filhos que perpetuem a identidade masculina e alimentem o
sonho da imortalidade do homem.”
Frágil, sentimental, obediente e pura, representando a imagem da perfeição
feminina, caberia a mulher a importante missão de educar os filhos, preparando as meninas
para serem futuras mães e os meninos para se tornarem grandes homens e futuros gênios.
Sendo considerada uma educadora por natureza, a mulher poderia exercer a profissão de
professora, orientando os alunos como se fossem seus próprios filhos. A professora trabalhava
em escolas, casas particulares ou em sua própria casa, ou seja, sempre em ambientes fechados
que a protegessem.
Ismerio (1995) coloca que os filhos concebidos eram considerados uma benção de
Deus e, caso a mulher não concebesse, era comparada à árvore seca, incapaz de dar frutos e
continuar o ciclo da vida. Neste caso, era discriminada e somente se tornava digna na função
de professora, na qual os alunos tornavam-se seus filhos, pois a transformavam, por
transposição, num símbolo materno que é representado nas religiões, segundo a autora, pela
árvore, terra e água.
O casamento era estimulado por ser o alicerce da organização social e por
prescrever o controle e a submissão da mulher retratada também na bíblia, na qual Deus pune
Eva, por ter persuadido Adão a comer o fruto da árvore proibida, e um dos castigos que
recebeu foi o de ser eternamente submissa ao homem. A igreja diz que essa atitude não a
inferioriza, pois ela tem como papel pré-determinado, dentro da organização familiar, a nobre
missão de ser esposa, mãe e educadora.
Identidade/diversidade do ser mulher 116
Ismerio (1995, p. 47) diz que:
[...] o maior exemplo de que a mulher deveria ser protegida e sustentada pelo
homem está no evangelho, quando, por ocasião da morte de Jesus Cristo, ele
entregou sua mãe aos cuidados do apóstolo João para ser protegida. Não cabia, pois
a ela continuar divulgando os ensinamentos pregados pelo filho, mas sim aos
homens que o seguiram.
Dona Rosa exemplifica esta realidade ao expor o conflito em manter os princípios
do sistema patriarcal ou desbravar outros caminhos e, conseqüentemente, assumir outros
papéis.
Eu acho que eu não sou, assim uma boa referência de mulher. Por que eu nunca
reagi, né. Meu pai me deu duas alternativas: ou para de estudar e casa ou então vai
terminar os estudos, formar e ajudar a formar os outros irmãos. Nós éramos em
onze. Então eu não tive escolha, eu tive só essas alternativas aí, parei de estudar, fui
casar, nunca trabalhei fora, acomodei e fui ser dona de casa, às vezes eu fico
revoltada (Rosa).
Maffesoli (1984) relaciona os papéis sociais a máscaras, que cada pessoa traveste
no grande espetáculo da vida, pois elas fazem parte da estruturação individual frente a
angústia da alienação, da morte, cuja manifestação usual é a coerção social em todas as suas
formas.
Para Chevalier e Cheerbrant (2006, p. 596-597),
As máscaras reanimam, a intervalos regulares, os mitos que pretendem explicar as
origens dos costumes cotidianos. [...] preenchem uma função social: as cerimônias
mascaradas são cosmogonias representadas que regeneram o tempo e o espaço; elas
tentam, por esse meio, subtrair o homem e todos os valores dos quais ele é
depositário da degradação que atinge todas as coisas no tempo histórico. Mas são,
também, verdadeiros espetáculos catárticos, no curso dos quais o homem toma
consciência de seu lugar dentro do universo, vê a sua vida e a sua morte inscritas em
um drama coletivo que lhes dá sentido.
Identidade/diversidade do ser mulher 117
As máscaras oferecem um refúgio bastante seguro, permitindo existir, fazendo
como todo o mundo. Segundo Maffesoli (1984, p. 123),
O que chamamos de impressão dos papéis sociais remete a vida que aparece como
um baile de mascaras durante o qual nos mascaramos talvez, dez, doze, cem vezes.
De fato, a fantasia pode se modificar, pode variar ligeiramente, mas adere à pele de
quem a veste. A fantasia não é acrescentada, é parte integrante do personagem e é
unicamente por comodidade de linguagem que pode ser desdobrada.
A máscara ou a pele, das quais nos servimos, tentam esconder e/ou encantar os
papéis que compõem a identidade social exposta na vida cotidiana constituída de micro
atitudes, de criações minúsculas, de situações pontuais e totalmente efêmeras de uma trama
feita de minúsculos fios, estreitamente tecidos, onde cada um, em particular, é totalmente
insignificante, pois é o conjunto que dá sentido à coletividade, mas que sem a particularidade
é impossível de existir.
Eu casei muito cedo, muito cedo eu casei, né. Casei com dezessete anos e ele
envolveu na bebida, apesar que ele não bebia antes. Envolveu com bebida, bebida,
bebida sabe virou alcoólatra. Aí depois ele não deu conta de mais nada, ele tinha um
emprego, aí mandou embora. Aí foi muito difícil para mim, né (Margarida).
Ao mencionar a dificuldade vivenciada no espaço doméstico com um marido
alcoólatra e sem trabalho, Dona Margarida chama nossa atenção para a realidade atual, em
que muitas organizações familiares, com ou sem a presença masculina, são chefiada por
mulheres, refletindo dinamicidade em administrar, atributos que a sociedade chegou a
associar ao ser masculino como fortaleza, racionalidade e inteligência. Assim, com o
acometimento da doença, que também representa uma dificuldade a ser controlada,
administrada e se possível vencida, observamos que os sujeitos de pesquisa revelam um misto
de comportamentos e sentimentos refletindo a diversidade e a complementaridade entre o que
a sociedade um dia definiu como atributos femininos e masculinos em relação ao ser humano.
Identidade/diversidade do ser mulher 118
Chegou a minha vez de passar por isso. Se todo mundo passa por que eu não, né.
Nunca perguntei por que eu até hoje, e reagi muito bem (Rosa).
Não falei para ninguém, não falei por que a gente ia viajar para Aparecida, né. Ia a
família toda. Só ia ficar a minha filha, uma filha que não podia deixar a casa, né. A
gente nunca tinha viajado todo mundo: eu e o meu marido, meu genro a outra minha
filha. A gente foi, aí eu falei:
- Não vou falar por que eu vou estragar para eles, para mim já não está bom, eu não
quero estragar a viagem, né.
Não comentei, mas aquilo foi uma agonia tão grande para mim. Eu nem falei nem na
firma sabe, mas eu já não tive rendimento não conseguia mais trabalhar (Margarida).
Eu me sinto tão mais animada, eu me sinto forte, eu consigo dar a volta por cima
(Gardênia).
Durante a primeira guerra, a mulher sai do casulo doméstico, gerador de um
trabalho considerado não produtivo pelo fato do seu resultado ser constituído por valores
imediato de uso, e vai trabalhar nas indústrias a partir de 1915 na Inglaterra, na França e na
Alemanha, devido à escassez de mão de obra e dos baixos salários masculinos. O trabalho
feminino passou a ser necessário para a sociedade. A imagem da heroína a ser valorizada é a
mulher independente economicamente, que consome e torna-se capaz de ditar as leis no
mercado, inclusive nas relações com o sexo masculino. Não aceita mais ser a escolhida,
deseja também ter o direito de escolha com as exigências de quem também detêm o poder,
principalmente o financeiro, em suas mãos.
Ele me domina por causa do dinheiro, né. Eu não tenho renda nenhuma então tem
que tá pedindo pra ele e é um meio dele me dominar, tirando essa parte financeira
ele não tem domínio sobre mim [...]. Ele também não deixava, meu marido não
deixava eu trabalhar e eu hoje eu vejo eu me sinto assim uma pessoa inútil (Rosa).
Esse sentimento e a projeção de uma imagem depreciativa são intensificados
quando Dona Rosa se depara com a onerosidade que o acometimento da doença trouxe em
sua vida, levando-a a repensar sua história com as possibilidades de diferentes desfechos,
tendo em vista que para existir cada pessoa conta uma historia para si e para os outros, como
diz Maffesoli (1996).
Identidade/diversidade do ser mulher 119
Então eu me sinto assim, um peso essa parte aí de, né. Está tendo esse gasto aí. È
muito alto só de medicamento, eu tomo cinco, muito caro então essas coisas mexe
muito com a minha cabeça (Rosa).
Vale destacar que a divisão do trabalho nas sociedades humanas depende mais das
condições culturais do que das condições sexuais. A mulher, na modernidade, trabalha fora do
espaço doméstico, possui salário próprio, sustenta-se e não depende exclusivamente do
homem para sobreviver. Agrega aos papéis sociais, já desempenhados, uma autêntica
identidade profissional, valorizada pela competitiva sociedade capitalista, cuja palavra de
ordem é obter êxito.
Dessa forma, os acontecimentos históricos, que tornaram o trabalho feminino fora
do ambiente doméstico uma necessidade, contribuirão para a construção e solidificação da
identidade profissional cuja imagem da heroína a ser valorizada é a mulher independente
economicamente, que deseja exercitar o direito de escolha, com as exigências de quem
também detêm o poder, principalmente o financeiro, em suas mãos e, conseqüentemente, não
depende exclusivamente do homem para sobreviver. Ao agregar à sua identidade mais esse
papel na sociedade, a mulher incorpora o fato de ter que obter êxito no que faz e, enquanto o
corpo físico permitir externar sua força e determinação, ela permanecerá realizando todas as
atividades que ajudam a compor sua identidade.
Eu tava bem, tava até trabalhando apesar que eu sou aposentada há sete anos. Então
ainda eu tava trabalhando depois da aposentadoria eu continuei. Depois eu não tava,
assim, com aquele pique mais, né. Eles estavam precisando de funcionários com
aquele pique e eu percebi que eu não tinha, né [...]. Eu saí fui trabalhar numa banca
ainda, né. Porque um moço foi atrás de mim que estava precisando de funcionário.
Não tava igual hoje, tava bom mesmo, é pertin da minha casa eu falei:
- Eu vou, né, vou ficar em casa fazendo o que?
Aí fui, trabalhei mais dois anos pra ele, né. Aí quando foi no ano passado, quando eu
descobri já tava fazendo dois anos que eu tava lá, aí eu descobri o problema aí para
mim foi difícil (Margarida).
Dentro do limite consigo fazer tudo que eu fazia, que eu tinha vontade. Eu achando
que eu não fosse fazer mais. Eu tinha medo de fazer por causa do meu braço. Ficava
assim, quando eu operei, meu Deus tô ferrada não vou fazer mais nada. [...] Agora
se vai adaptando, vai adaptando, vai adaptando. Eu consegui adaptar tudo, eu
cheguei a vender umas coisas depois que eu operei e boa (Gardênia).
Identidade/diversidade do ser mulher 120
Nota-se que a mulher se reconheça como um sujeito capaz de escrever a própria
história, contribuindo para a (re)construção de valores, normas e pensamentos culturalmente
comuns a uma sociedade. Talvez por isso ela própria tenha incorporado em sua identidade
pessoal o fato de ter de ser bem-sucedida nas suas atividades profissionais, considerando que
no disputado mercado de trabalho, a mulher tem de vencer mais obstáculos que o homem,
desde a obtenção de emprego, equiparação salarial quando desempenha a mesma função, até
galgar posições hierárquicas superiores que dão destaque profissional. Essas dificuldades,
muitas vezes, podem levar as mulheres a masculinizarem suas atitudes, ou seja, ocorre a
evidência de comportamentos que a sociedade atribui como inerentes ao homem: ser dura
com relação aos sentimentos, enaltecer a violência nas palavras e nas ações, afirmar-se por
meio de ações claras de liderança impositivas, entre outras. De igual modo, o crescimento do
número de mulheres em lugares anteriormente ocupados apenas por homens deverá contribuir
para que haja mais valores femininos no campo profissional, o que provoca na sociedade o
aumento considerável de valores como compreensão e solidariedade.
Com a conquista feminina do mercado de trabalho foi possível introduzir a
transformação de um discurso masculino, de pura opressão, naquele de respeito à mulher
determinada, forte e que adota um projeto reflexivo de vida. Mas no espaço doméstico a
redistribuição dos papéis entre homens e mulheres não ocorreu com tanta veemência,
considerando que a mulher duplicou sensivelmente a sua jornada de trabalho ao conciliar as
atividades da sua profissão com o trabalho doméstico.
Segundo Coelho (2002, p. 67),
A participação masculina no mundo do trabalho se dá de acordo com as
oportunidades oferecidas e sua inserção vai estar relacionada às qualificações
pessoais, com pouca ou nenhuma interferência de fatores familiares e domésticos.
No caso das mulheres, a situação é absolutamente diferente, pois além dos fatores
que envolvem sua qualificação e a oferta de trabalho, existe a continuidade de um
modelo de família no qual são tidas como as principais responsáveis tanto no que se
refere à socialização dos filhos como em relação às tarefas domésticas.
Por representar um espaço construído individualmente, a atividade profissional
surge como uma condição estruturante da imagem feminina, levando a mulher a não
Identidade/diversidade do ser mulher 121
permanecer apenas no espaço doméstico mesmo que, para a sociedade, ela continue sendo a
responsável maior pelo cuidado da família.
Frente às questões sexuais do passado, a repressão e a anulação da mulher foram
substituídas pela liberação e pela independência dos dias atuais. A escolha pela maternidade, a
excitação, a provocação, a atração, o desejo sexual, enfim todos os elementos presentes no
jogo da sedução tornaram-se aceitáveis de serem manifestados pelo ser feminino na cultura
ocidental, pois tudo passou a ser objeto de interrogação e de arbítrio, portanto escolhas
individuais que, mesmo sob influência de regras e valores constituídos, conseguem trilhar
outros caminhos na ordem social.
Segundo Morin, (2005d, p. 40),
[...] A atração erótica torna-se fonte de complexidade humana [...]. O Eros irriga mil
redes subterrâneas presentes e invisíveis em qualquer sociedade, suscita miríades de
fantasias em cada espírito. Opera a simbiose entre o clamor do sexo que vem das
profundezas da espécie e o chamado da alma que busca adorar. Essa simbiose
chama-se amor.
O ato amoroso não é um simples meio de reprodução, mas um aspecto de cultura.
Os seres humanos têm uma consciência de si mesmos que dá ênfase à sexualidade, talvez
porque as origens da consciência humana estejam, de certa forma, relacionadas com as
origens da sexualidade. Somos muito mais libidinosos do que os animais. Não obedecemos a
necessidades biológicas; pelo contrário, a sexualidade é algo concebido e (re)modelado
culturalmente, o que a torna o elemento mais humano e menos animalesco do nosso caráter.
Segundo Highwater (1992), a sexualidade humana originou-se a partir do corpo
feminino no decorrer do processo de hominização, tendo em vista que os mistérios, em torno
desse corpo que sangra sem produzir dor, que faz gente seja homem ou mulher, além de ser
fonte de alimento, potencializam o seu poder enigmático. Assim, o surgimento da concepção
patriarcal e ocidental do mundo só seria possível com a derrota da deusa-mãe, tornando o ser
masculino o símbolo maior de poder, ou seja, num deus. Ao colocar os homens numa posição
superior, capaz de relacionar a masculinidade ao espírito racional e a feminilidade a
sensibilidade e percepção dos sentidos, teve-se a intenção de rejeitar politicamente as
Identidade/diversidade do ser mulher 122
mulheres, pois, em toda e qualquer sociedade, o que desejamos e o que fazemos depende, em
larga medida, daquilo que fomos criados para querer e do que nos permitiram fazer.
Neste sentido, a imagem, geralmente utilizada como emblema da função privada,
do poder doméstico da mulher em sociedades, cuja autoridade e poder são masculinizados,
recai sobre o arquétipo
6
da Virgem Maria como uma possibilidade de anular o poder de
sedução, sensualidade, erotismo e extravagância de arquétipos como de Lilith, Pandora e Eva,
consideradas as constantes tentadoras dos homens, fora dos limites da razão e da moralidade
por serem responsáveis pelo despertar da sexualidade, tendo em vista que o sexo ameaça o
próprio senso de autodomínio que define a racionalidade masculina, segundo Highwater
(1992).
Neste contexto, o corpo, como instrumento para sedução ou acolhimento
maternal, pode representar uma metáfora da sociedade que, envolta por mitos, busca a
essência do que uma cultura concebe como realidade. Ter um olhar voltado para o próprio
corpo, a fim de notar possibilidades para deixá-lo mais atraente, mais belo, passa a ser visto
também como uma necessidade.
Eu acho que a mulher ela não deve ser assim, como se diz a maneira mais clara, ser
uma mulher desmazelada, desdeixada. Eu acho que ela tem que cuidar dela, né. Não
com tanto é, mas tem que se cuidar, tem que fazer uma unha, arrumar o cabelo,
passa um batonzinho, perfume, em primeiro lugar o banho, né (Angélica).
O corpo, que era para os gregos uma concepção idealizada da beleza tornada
visível, representa o meio pelo qual os indivíduos se integram em diferentes grupos sociais,
assumindo diferentes identidades coletivas. A identidade se forma no jogo das relações
sociais, na medida em que o sujeito se apropria das regras, valores, normas e formas de pensar
de sua cultura.

6
Para Jung configuram complexos inatos, estruturas pré-formadas do psiquismo humano e que virão mobilizar e
animar os elementos da experiência individual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações finais 124
Na linguagem das mulheres que tiveram ou têm câncer no seio/na mama, na
linguagem médica e de outros profissionais da saúde preventiva ou não, o seio/a mama,
geralmente, assume o singular do que nomeia, ou seja, enquanto mama a referência pode estar
situada num órgão/membro identificador de uma espécie de ser vivo e cuja retirada teve de ser
feita para a sobrevivência do mesmo; enquanto seio/seios evoca múltiplos e diversos
simbolismos para referenciar a forma de um corpo feminino e que ao ser retirado pode
obscurecer o sentido deste no que diz respeito a suas potencialidades. A complexidade
expressa, articula, integra qualquer dos denominadores. Cada palavra indica o que/do que se
fala e do feixe de significados atribuídos, assumidos.
Nossa intenção, ao desenvolver esta pesquisa, foi pensar a questão da falta do seio
com o pressuposto de que a cultuação de uma forma considerada bela e, conseqüentemente,
promotora de desejo e prazer configura-se em mais um fator complicador para a definição da
identidade/diversidade da pessoa e suas inter-relações sociais. Logo no início, percebemos
que a discussão do problema era muito mais ampla e profunda por envolver valores,
sentimentos e percepções maiores, por causa do assombramento do fantasma da morte, das
representações e todo um imaginário sobre a vida/morte, sobre as dores, os medos, as
desesperanças cotidianas capazes de consumir o eu. Neste sentido, a exposição dos limites
físicos na realização de tarefas de rotina ou a dependência de outras pessoas configura um
agravante que merece mais atenção, talvez por estar mais visível ao olhar do outro.
As entrevistadas revelaram, esconderam, atribuíram sonoridades aos interditos,
deixaram pistas nos escondidos dos silêncios sonoros, nas falas da recusa em contar dos
escondidos para os conhecimentos dos outros, por ser interditos até para os labirintos da
intimidade do “eu só”, do “si mesmo”, pois o câncer de mama carrega uma violência
simbólica que chega a machucar cotidianamente o corpo ao reviver as situações, os contextos,
os detalhes, as circunstâncias, o cenário da revelação e da primeira vez que tiveram coragem
de se olhar e, conseqüentemente, refletir sobre a imagem de antes em relação a que está sendo
projetada. Imagem esta que poderá conservar a essência do eu belo, dependendo da
redescoberta de outros encantamentos perceptíveis aos olhos do corpo e até mesmo da alma.
Considerações finais 125
O estigma, o silêncio pesado, os olhares que desnudam para mostrar a ausência de
um símbolo do feminino; as histórias imaginadas sobre o cotidiano vivido que traz consigo
um mundo de sombras, do indesejável, em poucos instantes ganha o espaço definitivo nas
identidades das cinco mulheres, mostrando a força inerente ao processo de identificação capaz
de auxiliar a superação da convivência sofrida com o encontro de alternativas para ser e estar
no mundo de antes, considerando que essas histórias de vida incorporaram o câncer de mama
como um marco. Talvez por isso, as limitações com o braço, próximo ao seio retirado,
incomodem mais por relacionar-se a imagens da cicatriz que fica aberta, ou seja, perceptível
por todos e a todo instante.
As falas das flores desse jardim de dor, sofrimento e angústia, em certos pontos
clivados pelo anárquico, acaba por construir versões plurais, um todo marcado pelo múltiplo
das suas partes constituinte, pelo movimento articulador/desarticulador/(re)articulador entre as
partes e das partes com a mundialidade. Assim, a fé religiosa ou qualquer outro tipo de fé,
pode ser vista como uma força profunda que faz suportar e combater a crueldade do mundo.
Confere confiança, esperança e segurança ao espírito humano; preenchendo-o de certeza de
uma verdade salvadora que recalca a corrosão da dúvida. Além disso, o calor coletivo de uma
comunidade, de um grupo, alivia as aflições individuais por expor mais facilmente atitudes de
amor, cuidado, solidariedade, entre outros, que nos faz suportar o destino e re-encantar pela
vida.
No contexto estudado, o fluir das narrativas tende a contrariar o determinado, o
institucionalizado, o reducionismos das leituras, a simplificação da complexidade inerente ao
assunto. Exercitam a recusa ao claustro expresso pela invariância da significação única
atribuída ao corpo de imagens, de representações, do imaginário, dos fazeres e saberes
normatizados por instituições direta ou indiretamente em relação ao câncer em mulheres
obrigadas a mastectomia total ou parcial. Dessa forma, elas procuram estar abertas em relação
aos erros, aos ruídos, as incertezas, a complexidade da questão da identidade/diversidade
feminina.
Esperamos, com este trabalho, despertar nos profissionais da área da saúde maior
comprometimento e cuidado com a pessoa que enfrenta o câncer, especialmente o do seio,
reforçando a necessidade do trabalho interdisciplinar como ferramenta eficaz para a obtenção
de uma atuação voltada para a visão de saúde integral da pessoa, considerando que a
realização deste trabalho só foi possível por ter sido escrito em muitas mãos, ou seja, uma
Considerações finais 126
relação interdependente entre pesquisados, pesquisadora, orientadora e pensadores que
nortearam as reflexões ora realizadas.
Ressaltamos, ainda, que diante da complexidade da identidade/diversidade, a
questão torna-se inesgotável para reflexões cada vez mais profundas.
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Garamond, 2003.
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ZWEIG, C.; ABRAMS, J. (Org). Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro
da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1991.
APÊNDICE
Apêndice 134
APÊNDICE A - ROTEIRO DE ENTREVISTA
I – Identificação
- Idade:
- Estado Civil:
- Filhos:
- Escolaridade:
- Co-habitação: (número de pessoas e quem são – grau de parentesco)
II – Profissão
- Você trabalha atualmente?
- Você trabalhava em que antes da cirurgia?
- Quais os planos para o seu futuro profissional?
- Atualmente o que mais de incomoda quando pensa sobre sua vida profissional?
III – Lazer
- O que você costuma fazer nas horas que tem livre?
- Quais as atividades de recreação e de lazer que você gosta de fazer e tem feito?
- Quais as atividades de recreação e de lazer que você gosta de fazer e não tem feito? Por que
não faz?
IV – Visão de Mundo
- Você considera que veio ao mundo com uma missão? Por quê? Quem determina isso?
Apêndice 135
- Você acredita em destino? Tudo que a pessoa vai passar na vida já está escrito, determinado
desde que ela nasce?
- Se isso é verdade, o que as pessoas deveriam fazer? É preciso que cada um saiba do seu
destino, da sua missão na terra?
- O que é a morte para você? Como a gente deve lidar com ela? É possível a pessoa enganar a
morte? Tem, vida no mundo dos mortos?
- Tem coisas, objetos, palavras, gestos, pensamentos, ações que chamam coisa ruim? Quais?
- Você acredita em pensamento positivo? Já aconteceu algum fato em que o pensamento
positivo ajudou? O que é fazer pensamento positivo? Isto vale só para coisas espirituais, de
crença, de religião ou serve também para vida do dia a dia, para o trabalho, por exemplo?
- O que é ser mulher? Mudou alguma coisa depois da cirurgia realizada?
- Quem é você? Quem é Você que ninguém conhece? Que lado os outros conhecem,veem de
você?
- Como você vê as pessoas hoje, como você vê o mundo hoje?
- Como você se vê e como gostaria de ser vista?
V – Filosofia de vida
- A sua casa, o que ela significa pra você? Tem muito valor (sentimental, material, espiritual)?
Quando você pensa em sua casa, sente o que? Do que mais se lembra? De quem mais se
lembra?
- Você tem sonhos na vida?
- Que tipo de sonhos? No sonho como você pensa a sua vida? No sonho como deveria ser o
mundo? Esse sonho tem cores, tem som, tem imagens, tem pessoas? Que pessoas você
colocaria nele?
- Como é seu relacionamento com seus familiares. Viveu algum momento que marcou
significativamente sua vida?
- Ë possível dizer que somos, ao mesmo tempo, uma obra de perfeição e um poço de
imperfeição? Como? Em que?
- Toda pessoa é bonita e feia ao mesmo tempo, tem seu lado ruim e seu lado bom, é feito de
lama e de alma. O que você pensa disso?
Apêndice 136
- O que você mais preza no mundo, a amizade ou dinheiro; as coisas materiais, espirituais ou
as coisas de sentimentos. A gente tem que ter paixão na vida e pela vida? - O que é paixão,
amor, sentimento, emoção para você?
- Qual a pessoa que você mais admira nesse mundo? Porque admira, o que ela tem para ser
admirado? Gostaria de ser como ela em que.
- Dizem que a beleza pode ser monstruosa e a monstruosidade pode ser ou ter beleza? O que
você acha disso?
- Para levar a vida o melhor possível o que se deve fazer? A gente na vida tem que levar tudo
a sério? Toda a pessoa para viver tem que ter um pouco de ilusão? Ilusão atrapalha? Quem
não sonha, não viver? A fantasia faz parte da vida? Quais são as suas fantasias, os seus
sonhos?
- Hoje em dia é preciso saber levar a vida para viver? O que é saber levar a vida? É bom
viver, estar vivo?
VI - Relacionamento Interpessoal
- Atualmente o que dificulta ter bom relacionamento com as outras pessoas?
- Quando uma pessoa ou família está passando um mau momento, você acha que as pessoas
se importam? Dão um jeito de ajudar nem que for só para confortar?
VII – História pessoal com o câncer
- Tem alguém na família que teve algum tipo de câncer, especificamente câncer de mama?
- Quando e como você percebeu algo diferente em sua mama. O que pensou?
- Como foi a primeira vez que procurou o médico?
-Como lhe foi dado o diagnóstico? Quem a acompanhou? Qual a sua reação diante do
diagnóstico?
- Como seus familiares receberam a notícia do diagnóstico? Qual o evento que mais de
marcou nesse momento?
- Como você percebia seu corpo diante do diagnostico e da proposta da realização da
mastectomia?
Apêndice 137
- Depois da cirurgia, qual o evento/ momento que mais de marcou?
- Como foi o processo de recuperação cirúrgica? Quais seus medos e quais as maiores
dificuldades?
- Para você, o que faz uma mulher ser atraente e sensual?
- Se você pudesse tirar um retrato por dentro de você, de dentro dos seus sentimentos, do que
você é por dentro, como seria esse retrato?
- Comparando com o retrato de você por fora, tem diferença? O que as pessoas olham e não
conseguem ver, perceber em você?
- Quais foram os momentos mais felizes da sua vida? E os mais tristes? Que imagens você
tem dessas épocas?
- O que há de mais bonito na sua vida e o que há de mais feio e triste na sua vida?
- Se você pudesse tirar um retrato da sua dor mais profunda, do que é mais gostoso em sua
vida, do que tem mais vontade de fazer, dos lugares, das pessoas como seria essa fotografia?
- Se você pudesse tirar um retrato do futuro como será e como você gostaria que fosse?
- Você acredita em vida após a morte do corpo físico? Acredita que os mortos estão no meio
dos vivos?
- Pode-se brincar com a morte? Por quê? O que é e quais as conseqüências de se brincar com
a morte?
- É possível enrolar a morte por certo tempo? É possível fazer acordo com a morte?
- Qual a cor da vida, o símbolo da vida?
- Se você pudesse mudar ou fazer uma história de sua vida como seria essa história? O que
teria mais valor, mais importância, mais beleza.
- A vida é uma obra de arte, cada dia vivido pelas pessoas é como se fosse uma obra de arte
que elas têm que construir, criar, colorir, todos os dias. O que você acha disso?
- Para existir vida, tem que ter morte e vice-versa. Se não houver morte não há nascimento. O
que você acha disso?
- O que pode fazer com que as pessoas fiquem num estado de encantamento?
- A gente precisa ter encantamento na vida, pela vida, nas coisas, no que fazermos? O que é
encantamento?
- O que mais marcou a sua vida? O que foi aprendendo como lição da vida? Que tipo de vida
foi construindo nestes últimos tempos?Se você pudesse imaginar uma viagem para o futuro
Apêndice 138
qual seria o caminho? Como seria essa viagem? O que você levaria nessa viagem? O que você
acha que iria encontrar nesse futuro, como seria a vida, os lugares?
- Dizem que de vez enquanto a gente tem que dar uma desligada de cabeça, senão a vida fica
muito dura. Isso é verdade? Acontecesse com você também? Você leva tudo a sério?
- A passagem para a adolescência supõe a morte da criança. O que você pensa disso? A gente
está sempre, todos os dias, morrendo e vivendo, morrendo para viver?
- Na sua opinião qual a relação entre morte e nascimento? Entre morte e liberdade.
- As pessoas pensam muito na morte? Pensam muito ou no dia a dia procuram não pensar,
fazer de conta que ela não existe? A gente não engana e nem foge da morte, mas de vez
enquanto a gente precisa fazer de conta que ela não existe?
- Você gosta da vida, tem alegria, energia para viver? De onde você tira, vem essa energia e
alegria?
- Se você pudesse mudar alguma coisa em sua vida o que mudaria?
- O que significou para você ter vencido ou estar vencendo a luta contra o câncer?
- O que você esperava que mudasse em sua vida quando optou usar a prótese? Caso tenha
feito a reconstrução o que esperava resgatar com isto?
ANEXO
Anexo 140
ANEXO A – AUTORIZAÇÃO DO COMITÊ DE ÉTICA DA UNIMED
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