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Programa de Pós-Graduação em Geografia
Área de Concentração: Produção do Espaço Geográfico
Linha de Pesquisa: Produção do Espaço Urbano
ESPAÇOS DE SIMULAÇÃO: Aspectos Materiais e Simbólicos da
Produção e Apropriação dos Loteamentos Fechados Ribeirinhos em
Buritama, Zacarias e Penápolis - SP
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Geografia da FCT/UNESP (Área de
Concentração: Produção do Espaço Geográfico), sob
orientação da Profª Dra. Maria Encarnação Beltrão
Sposito, como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Geografia.
Maria Angélica de Oliveira
Dezembro de 2008
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II
Ficha catalográfica elaborada pela Seção Técnica de Aquisição e Tratamento da
Informação – Serviço Técnico de Biblioteca e Documentação - UNESP, Câmpus de
Presidente Prudente.
Oliveira, Maria Angélica de.
O49e Espaços de simulação : aspectos materiais e simbólicos da
produção e apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos em
Buritama, Zacarias e Penápolis, SP / Maria Angélica de Oliveira. -
Presidente Prudente : [s.n], 2009
xii, 262 f. : il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista,
Faculdade de Ciências e Tecnologia
Orientador: Maria Encarnação Beltrão Sposito
Banca: Eda Maria Góes, Oscar Sobarzo Miño
Inclui bibliografia
1. Loteamentos fechados. 2. Natureza. 3. (In)Segurança urbana.
I. Autor. II. Título. III. Presidente Prudente - Faculdade de Ciências e
Tecnologia.
CDD(18.ed.)910
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Para Vagner, meu marido, que ao longo desses anos vem
compartilhando sua vida comigo e tem tornado minha
existência mais feliz: “gosto quando olho com você o mundo e
gosto mais do mundo quando posso olhar pra ele com você!”
Para minha mãe, Ivanete (in memorian), por ter sido a minha
melhor amiga e minha maior incentivadora. Obrigada pelos
mimos e pelas broncas e obrigada por ter sempre buscado o
melhor pra mim (mesmo que na época eu não entendesse isso!):
“tua palavra, tua história, tua verdade fazendo escola e tua
ausência fazendo silêncio em todo lugar”.
Para Zé coisa mais linda desse mundo - (in memorian), por
ter sido a pessoa com o coração mais puro que existiu, por sua
extrema generosidade, que fez com que até em seus momentos
mais difíceis, arrancasse sorrisos inesperados de todos nós: “e o
fim é belo, incerto, depende de como você vê!”
“SÓ ENQUANTO EU RESPIRAR, VOU ME LEMBRAR
DE VOCÊS”
IV
AGRADECIMENTOS
É difícil enumerar no momento todas as pessoas que fizeram parte dessa caminhada. Existem
pessoas que apenas passaram por minha vida e que mesmo assim, tiveram importância, mesmo
que elas o saibam, em minha jornada pessoal e acadêmica. Destaco a seguir o nome daquelas
que mais diretamente marcaram minha existência.
Gostaria de começar agradecendo à Carminha, pela dedicação, pela confiança, por ter
respeitado minhas características e meus momentos. Mas antes de tudo, gostaria de agradecê-la,
por ainda na graduação, ter “resgatado” em meio a um momento de crise com a Geografia -
meu interesse pela ciência geográfica, com suas aulas impecáveis e com sua postura que sempre
me passou a sensação de extrema eficiência. Foi com o coração cheio de admiração que fui pedir
sua orientação e acho que por isso minha barriga gelava toda vez que ia falar com ela - e essa
admiração aumentou ao longo do tempo que trabalhamos juntas. Obrigada por me fazer
acreditar na Geografia e por ser um exemplo de pessoa e de profissional.
Agradeço ao meu marido, Vagner, pela paciência, pela força, pela confiança e pela
compreensão, porque mesmo que o meu estudo tenha significado que em alguns momentos nós
tínhamos que estar distantes, sempre me incentivou e me fez ver que não era a presença física que
nos une e sim o amor que a gente tem. Agradeço pela disposição que teve nas inúmeras vezes que
teve que me levar aos loteamentos para que eu fizesse as entrevistas. Agradeço por ter aceitado o
fato de que eu às vezes precisei deixar nossa casa de lado para conseguir terminar meu trabalho.
Agradeço pelos “puxões de orelha” que me dava nos bilhetes que deixava quando saía pra
trabalhar: “vê se vai estudar hein! Nada de dormir no sofá!”. Enfim, te agradeço por tudo, por
estar sempre do meu lado, tentando me mostrar o lado bom das coisas. É muito bom dividir a
vida com você!
Essa dissertação não seria possível sem o incomensurável apoio de toda a minha família, que
esteve do meu lado nos momentos mais difíceis e que me acolheram carinhosamente para que eu
não me sentisse sozinha. Em especial agradeço à minha avó Dona Maria por ter cuidado de
mim quando criança, por sua força em suportar as adversidades da vida e por ter deixado que sua
casa se tornasse o ponto de encontro de nossa família. Aos meus queridos tios e tias que, das mais
diferentes formas, contribuíram para que minha vida fosse mais feliz e para que eu pudesse
estudar: Tio Carlos nunca negou um pedido meu para me levar aos trabalhos de campo Tia
Claudete – que sempre está ajudando todo mundo Tia Lisinha que tem um enorme coração
Tio Cláudio sempre capaz de me fazer sorrir, Tio Claumir que apesar de seu jeito quieto,
sempre demonstrou seu carinho por mim Tio Donizete que mesmo longe, sempre se
V
preocupou comigo. Agradeço também às minhas primas Hérika e Juliana, pelo tempo que
dividimos nossas vidas em Prudente, pela paciência que tiveram com minhas chatices e com
minhas ausências mesmo estando presente. Sei que não adianta muito, mas gostaria de dizer
que gostaria que tivesse sido diferente, gostaria de ter dado mais valor na época! Enfim, gostaria
de dizer que amo toda minha família e é por causa deles que posso considerar Buritama como o
melhor lugar do mundo!
Agradeço à Paula por ter alegrado minha vida em Prudente. Foi muito bom o tempo que
moramos juntas aprendi muitas coisas com você viu, mesmo não tendo aprendido a limpar a
casa! Fia, obrigada por ter sabido respeitar nossas diferenças, pelas horas e horas de conversa e
como não podia deixar de agradecer: obrigada pela ajuda com os mapas e pelos melhores
cachorros-quentes da minha vida. Você é uma grande amiga!
Outra pessoa que marcou meus dias em Prudente foi o Reginaldo Régis. Te agradeço por
escutar minhas ansiedades, pelas risadas, pelo carinho, por entender minhas inconstâncias, por
saber você sabe, né? - que, mesmo que a gente não esteja sempre próximos, gosto muito de
você. Sempre me lembro de você quando escuto: “eu ando pelo mundo prestando atenção em
cores que eu não sei o nome...”
Agradeço imensamente ao Igor, por sua generosidade, por sua disposição em sempre me
ajudar, pelo seu incentivo. Pessoas como você não se encontram todos os dias e estou feliz por
termos nos encontrado. Obrigado pelas inúmeras vezes que você “quebrou meus galhos”. Não é
exagero dizer que sem você essa dissertação não teria “saído”.
Agradeço ainda ao Oséias Ozi por ter sido companheiro, mesmo estando sempre tão
atarefado e ao Márcio, por ter tornado o caminho mais alegre.
Agradeço também à Eda e ao Arthur, que no exame de qualificação deram contribuições
importantes para o desenvolvimento dessa dissertação.
Pelo apoio financeiro, agradeço à FAPESP, que possibilitou a realização da pesquisa.
Por fim, agradeço àquelas pessoas que indiretamente fizeram parte da minha vida e que
ajudaram a me colocar no ponto em que estou hoje.
VI
SUMÁRIO
ÍNDICE VII
ÍNDICE DE TABELAS VIII
ÍNDICE DE QUADROS VIII
ÍNDICE DE GRÁFICOS IX
ÍNDICE DE MAPAS IX
ÍNDICE DE FIGURAS IX
ÍNDICE DE FOTOS X
RESUMO XII
RESUMEN XIII
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO I 11
CAPÍTULO II 37
CAPÍTULO III
102
CAPÍTULO IV 161
CAPÍTULO V 198
CONSIDERAÇÕES FINAIS 235
REFERÊNCIAS 240
APÊNDICE METODOLÓGICO 248
VII
ÍNDICE
RESUMO XI
RESUMEN XII
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO I: Empreendimentos residenciais fechados: entendendo as lógicas de
produção e apropriação dos novos habitats 11
1.1. Urbanização Contemporânea: produção dos empreendimentos residenciais
fechados 12
1.1.1 - Empreendimentos residenciais fechados: alguns fatores estruturais que
justificam sua produção 17
1.1.2. - Empreendimentos residenciais fechados: entendendo sua lógica de idealização 21
1.1.3. - Empreendimentos residenciais fechados: entendendo as decorrências
socioespaciais a partir de sua produção e apropriação 30
CAPÍTULO II: Loteamentos fechados ribeirinhos: principais características
e especificidades 37
2.1. – Caracterização dos loteamentos fechados ribeirinhos 39
2.2. – Diferenciação entre os loteamentos fechados ribeirinhos: espaços para
a elite e espaços para os segmentos médios 53
2.3. – Loteamentos fechados ribeirinhos: singularidades em sua apropriação
espacial e nas decorrências socioespaciais 64
2.3.1 – Loteamentos fechados ribeirinhos: paraísos para o lazer 65
2.3.2 – Loteamentos ribeirinhos: redefinições das relações entre rural e urbano 81
CAPÍTULO III: A Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos: dissociação
entre apropriação simbólica e apropriação material 102
3.1. A Natureza e seus conteúdos: reflexões sobre algumas formas de se conceber
os elementos naturais durante o desenrolar histórico 104
3.2. - A Natureza vendida e a Natureza apropriada: dissociação entre os
símbolos e os conteúdos da Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos 122
3.2.1 – O consumo da Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos: Natureza
selvagem x Natureza ajardinada 124
3.2.2. A simulação da Natureza: elementos naturais na produção e na
VIII
apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos 148
CAPÍTULO IV: Insegurança urbana e produção do espaço 161
4.1. A insegurança total: disseminação do discurso da insegurança em cidades
médias e pequenas 172
4.2. – A simulação da segurança: aspectos materiais e simbólicos do oferecimento
de segurança nos loteamentos fechados ribeirinhos 184
CAPÍTULO V: Erguendo barreiras e construindo identidades: relações entre
fechamento urbano e a busca por “comunidades” 198
5.1. - O que se revela por trás dos muros: loteamentos fechados ribeirinhos e a
constituição de uma “comunidade de iguais” 205
5.2. – A simulação da comunidade de iguais e da identidade: atitudes
segregacionistas e de distinção social nos loteamentos fechados ribeirinhos 221
CONSIDERAÇÕES FINAIS 235
REFERÊNCIAS 240
APÊNCIDE METODOLÓGICO 248
A - Visitas e levantamento de dados 248
B – Pesquisa qualitativa 249
C– Entrevistas 249
D - Observações em campo 257
E– Levantamento e análise de material publicitário 258
F– Levantamento e tratamento dos dados estatísticos 258
ÍNDICE DE TABELAS
Tabela 1 – Número de ocorrências registradas nos municípios estudados 260
ÍNDICE DE QUADROS
Quadro 1 – Loteamentos fechados ribeirinhos Estudados – 2008 43
Quadro 2 – Esquema da periodização das idéias e conceitos de Natureza para o
mundo ocidental 110
Quadro 3 – Diversos municípios. Total de ocorrências criminosas: números
IX
absolutos e por mil habitantes 177
Quadro 4 – Perfil dos entrevistados – proprietários de lotes nos loteamentos
fechados ribeirinhos 252
Quadro 5 – Perfil dos entrevistados – residentes nas cidades em que
estão implantados os loteamentos fechados ribeirinhos 253
Quadro 6 – Perfil dos entrevistados residentes na zona rural das
cidades em que estão implantados os loteamentos fechados ribeirinhos 257
Quadro 7 – Projeções da População nos municípios estudados 206
ÍNDICE DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Diversos municípios. Total de ocorrências por mil habitantes – 1997/2005 176
Gráfico 2 – Diversos municípios. Total de ocorrências registradas por mil
habitantes - Roubo – 2005 179
Gráfico 3 – Diversos municípios. Total de ocorrências registradas, tipo furto,
por mil habitantes – 2005 180
Gráfico 4 – Diversos municípios. Total de ocorrências registradas por mil habitantes
(sem furtos)- 1997/2005 181
ÍNDICE DE MAPAS
Mapa 1 – Localização dos municípios estudados 2
Mapa 2 – Localização dos municípios estudados em relação às principais vias de
acesso e ao rio Tietê 40
ÍNDICE DE FIGURAS
Figuras 1 e 2: Utilização dos termos loteamento e condomínio
para designar o mesmo empreendimento localizado no município de Zacarias 41
Figuras: 3, 4, 5 e 6 – Recortes dos mapas utilizados em propagandas: destaque
para a externalidade, aos municípios em que se localizam, da demanda
pelos loteamentos fechados ribeirinhos 47
Figura 7: Localização dos loteamentos fechados ribeirinhos em relação à
malha urbana consolidada de Buritama, SP 49
Figura 8: Localização do loteamento fechado ribeirinho Recanto Belvedere
em relação à malha urbana consolidada de Penápolis, SP 50
X
Figura 9 - Localização do loteamento fechado ribeirinho Marina Bonita em
relação à malha urbana consolidada de Zacarias, SP 51
Figura 10 – Buritama. Loteamento Riviera Santa Bárbara I e II e
seu entorno rural. 2008 91
Figura 11 - Buritama. Loteamento Jardim Itaparica e seu entorno rural. 2008 92
Figura 12 - Buritama. Loteamentos Orla Um, Marbella e Vale do Sol I e II e
seu entorno rural. 2008 92
Figura 13 - Buritama. Loteamentos Lago Azul I e II, Praia Bella, Portal da
Praia e Paraíso das Águas e seu entorno rural. 2008 93
Figura 14 - Zacarias. Loteamento Marina Bonita e seu entorno rural. 2008 93
Figura 15 - Penápolis. Loteamento Recanto Belvedere e seu entorno rural. 2008 94
Figura 16 - Logotipos de alguns loteamentos ribeirinhos estudados, evidenciando
os elementos naturais 126
Figura 17 - Buritama. Folders de divulgação dos loteamentos fechados
ribeirinhos – Jardim Itaparica, Lago Azul e Praia Bella 127
Figura 18 – Zacarias. Página do site de divulgação do loteamento Marina Bonita 129
Figura 19 – Buritama. Folder do loteamento fechado ribeirinho
Marbella: Natureza artificializada inserida em um arranjo paisagístico. 134
Figura 20 – Buritama. Verso do Folder do loteamento fechado ribeirinho
Marbella em Buritama: a intervenção humana na Natureza “natural”. 135
Figura 21 – Zacarias. Imagens de divulgação do Loteamento Marina Bonita,
mostrando a valorização da Natureza tida como “natural” 138
Figura 22 – Zacarias. Loteamento Marina Bonita 185
Figura 23 – Penápolis. Loteamento Recanto Belvedere 185
Figura 24 – Buritama. Loteamento Jardim Itaparica 186
Figura 25 - Buritama. Loteamento Riviera Santa Bárbara 186
Figura 26 - Buritama. Loteamento Portal da Praia 186
Figura 27 – Buritama. Loteamento Orla Um 187
ÍNDICE DE FOTOS
Fotos 1, 2, 3 e 4 – Zacarias. Exemplos de casas em empreendimento de alto padrão:
loteamento ribeirinho Marina Bonita, 2008 54
Fotos 5, 6, 7 e 8 – Buritama. Exemplos de casas em empreendimentos de
médio padrão: loteamento ribeirinho Portal da Praia, 2008 55
Fotos 9, 10, 11 e 12 - Buritama. Portal da Praia. Exemplos das “construções
XI
indesejadas”. 2008 60
Fotos 13 e 14 – Zacarias. Fotos do loteamento Marina Bonita, mostrando
elementos da Natureza tida como “natural”. 2007 139
Fotos 15 e 16 – Zacarias e Buritama. Fotos dos loteamentos Marina Bonita e Portal
da Praia, mostrando elementos da Natureza organizados pela ação
humana. 2008 139
Fotos 17 e 18 – Penápolis e Buritama. Fotos dos loteamentos
Recanto Belvedere e Jardim Itaparica, mostrando elementos da Natureza
organizada pela ação humana. 2008 139
Fotos 19 e 20 – Buritama. Fotos dos loteamentos Riviera Santa Bárbara
e Portal da Praia, mostrando elementos da Natureza organizados pela ação
humana. 2008 140
Fotos 21 e 22 – Buritama. Fotos do loteamento Riviera Santa Bárbara, mostrando
elementos da Natureza organizados pela ação humana. 2008 140
Fotos 23 e 24 – Buritama. Fotos do loteamento Portal da Praia, mostrando
a Natureza não desejada. 2008 142
Fotos 25 e 26 – Zacarias e Buritama. Fotos do loteamento Marina Bonita
e Riviera Santa Bárbara, mostrando a Natureza não desejada. 2008 143
Fotos 27 e 28 – Buritama. Fotos do loteamento Jardim Itaparica, mostrando
a Natureza não desejada. 2008 144
Foto 29 – Portaria do loteamento Marina Bonita. 2008 185
Foto 30 – Portaria do loteamento Recanto Belvedere. 2008 185
Foto 31 – Portaria do loteamento Jardim Itaparica. 2008 186
Foto 32 - Portaria do loteamento Riviera Santa Bárbara. 2008 186
Foto 33 - Portaria do loteamento Portal da Praia. 2008 186
Foto 34 – Portaria do loteamento Orla Um. 2008 187
Fotos 35, 36, 37 e 38 - Exemplos de ranchos, nos loteamentos ribeirinhos
que utilizam muros e grades para aumentar a segurança. 2008 188
Foto 39 – Buritama. Exemplo de pista de mini-golfe presente no loteamento Jardim
Itaparica. 2008 233
XII
Resumo
Na presente dissertação desenvolvemos uma análise sobre os aspectos materiais e simbólicos que
perpassam a produção e a apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos espaços fechados e
de acesso controlado, destinados ao lazer dos segmentos de maior poder aquisitivo. Consideramos a
produção e a apropriação desses espaços sob o ponto de vista da constituição da sociedade de
consumo, analisando os loteamentos fechados ribeirinhos como mercadorias produzidas no âmbito
da estandardização do consumo, que não é baseado atualmente no consumo dos objetos em si,
mas no consumo das imagens e símbolos associados aos produtos, capazes de oferecer inúmeras
sensações e valores distintivos.
Sendo assim, para o estudo dos loteamentos fechados ribeirinhos realizamos, além de
observações em campo e da análise dos materiais publicitários, entrevistas com diferentes agentes
sociais, no intuito de identificar os principais símbolos associados a esses empreendimentos. Dessa
maneira, identificamos como símbolos importantes para a compreensão dos loteamentos fechados
ribeirinhos, porém, não os únicos, a busca por um contato mais direto com a Natureza, a busca por
uma segurança total e a busca por uma identificação social e a inserção em uma “comunidade de
iguais”.
Além da identificação desses mbolos, empreendemos uma análise das formas pelas quais esses
símbolos comparecem no discurso de nossos entrevistados, bem como das formas pelas quais esses
símbolos são apropriados nas práticas realizadas nos loteamentos fechados ribeirinhos, verificando a
hipótese de que a produção e a apropriação desses espaços são feitas mediante a constituição de
simulacros.
Palavras-chave: Loteamentos fechados ribeirinhos. Aspectos materiais e simbólicos da
produção/ apropriação do espaço. Simulacros. Natureza. Segurança. Comunidade de iguais.
XIII
Resumen
En esta disertación, hacemos un análisis sobre los aspectos materiales y simbólicos que atraviesan
la producción y la apropiación de los asentamientos urbanos cerrados cercanos a ríos espacios
cerrados y de acceso controlado destinados al entretenimiento de los segmentos de más alto poder
adquisitivo. Consideramos la producción y apropiación de esos espacios desde el punto de vista de la
constitución de la sociedad de consumo y analizamos los asentamientos urbanos cerrados como
mercancías producidas en el ámbito del establecimiento de patrones de consumo que no están
basados actualmente en la consumación de objetos, sino en la consumación de imágenes y símbolos
asociados a los productos que son capaces de ofrecer innúmeras sensaciones y valores distintivos.
De esa manera, para el estudio de los asentamientos urbanos cerrados, entrevistamos diferentes
actores sociales, además de hacer observaciones en campo y análisis de materiales publicitarios, con
el objetivo de identificar los principales símbolos asociados a esos emprendimientos. Por ende,
identificamos como mbolos importantes para la comprensión de los asentamientos urbanos
cerrados – aunque no sean los únicos – la búsqueda por un contacto más directo con la Naturaleza,
la búsqueda por completa seguridad y también por una identificación social y la inserción en una
“comunidad de iguales”.
Aparte de la identificación de esos símbolos, hicimos un análisis sobre las formas como esos
símbolos aparecen en el discurso de los entrevistados y son apropiados en las prácticas realizadas en
los asentamientos urbanos cerrados, comprobando la hipótesis de que la producción y la
apropiación de esos espacios se hacen mediante la constitución de simulacros.
Palabras clave: Asentamientos urbanos cerrados. Aspectos materiales y simbólicos de la
producción/ apropiación del espacio. Simulacros. Naturaleza. Seguridad. Comunidad de iguales.
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1
-
Introdução
No âmbito da urbanização contemporânea, os loteamentos fechados constituem um dos
empreendimentos que mais m alterado as formas da sociedade habitar e se relacionar com os
diferentes espaços da cidade. Um tipo de loteamento fechado que vem sendo produzido nesse
contexto, são os loteamentos fechados ribeirinhos, destinados à segunda residência, localizados nas
margens de alguns rios, com a finalidade de oferecer atividades de lazer pautadas no contato com
a Natureza.
Para a realização da presente pesquisa, foram escolhidos os loteamentos fechados ribeirinhos
situados nos municípios de Buritama, Zacarias e Penápolis, localizados a noroeste do Estado de São
Paulo, como podemos observar no mapa 1. Esses municípios possuem respectivamente, 14.735
habitantes, 2.229 habitantes e 56.681 habitantes (Contagem da população, IBGE, 2008), fato que
nos pareceu relevante para a escolha desse recorte espacial, visto o interesse de compreender o
modo como ocorrem dinâmicas de produção e apropriação do espaço em cidades consideradas
pequenas, mas que possuem dimensões demográficas diferentes.
Os empreendimentos fechados materializam o processo de segregação socioespacial, ao
concentrarem, nas mesmas áreas, pessoas com um padrão aquisitivo mais alto, negando, assim, a
possibilidade de contato direto com diferentes segmentos sociais. A segregação socioespacial,
freqüentemente atinente aos espaços residenciais de primeira moradia, com a implantação dos
loteamentos fechados ribeirinhos, está se ampliando, na medida em que ocorre também a partir
dos espaços destinados ao lazer. As camadas com um padrão aquisitivo maior compram o direito
de desfrutarem desses espaços longe das camadas mais pobres, produzindo, portanto, espaços
relativamente “homogêneos”.
A procura por esses empreendimentos decorre do fato de que as pessoas buscam, em seus
momentos de lazer, realidades diferentes das que vivenciam em seu cotidiano. A Natureza, ao
longo do processo histórico de consolidação e desenvolvimento das cidades, foi sendo colocada em
segundo plano, aparecendo nos espaços urbanos apenas como recurso a ser explorado ou como
algo metrificado e enquadrado nos arranjos paisagísticos. Dessa forma, as pessoas buscam nos
loteamentos fechados ribeirinhos, novas formas de se relacionarem com ela, a partir da prática de
esportes náuticos, pesca, realização de trilhas nas áreas de preservação, entre outras atividades
possibilitadas por esses espaços.
- 2 -
-
3
-
A produção dos loteamentos fechados ribeirinhos estudados gera uma redefinição das relações
entre o urbano e o rural, nos municípios em que estão implantados, visto que esses
empreendimentos encontram-se em espaços tradicionalmente rurais, embora os governos
municipais tenham transformado essas áreas, nas margens dos rios, em Zonas de Urbanização de
Interesse Turístico. O fato é que os usos realizados, nos entornos desses loteamentos, ainda são
predominantemente rurais e a partir da implantação desses empreendimentos – destinados para as
pessoas que habitam as cidades e produzidos a partir de lógicas urbanas - temos a introdução de
processos urbanos, nessas áreas, fazendo com que o rural e o urbano coexistam e se relacionem mais
intensamente. Temos, portanto, a geração de espaços mistos, onde as lógicas se entrelaçam, mesmo
que, no caso dos loteamentos fechados ribeirinhos, essa proximidade entre ruralidades e
urbanidades não tenham gerado um estreitamento e uma troca efetiva de experiências entre
pessoas que vivem essas duas espacialidades.
Os loteamentos fechados ribeirinhos representam também, a presença de processos de
segregação, segmentação e fragmentação socioespacial em cidades pequenas. Assim, esses processos
que caracterizam a urbanização contemporânea estão ocorrendo também em outras realidades
socioespaciais, além das metrópoles e das cidades de maior porte. Considerando-se as
especificidades que esses processos adquirem nessas cidades menores, tanto na justificação, quanto
em seu desenrolar, ressaltamos a importância de se considerar também as cidades de menor porte
como realidades socioespaciais integradas aos processos mais gerais da urbanização.
Sendo assim, partindo da idéia apresentada por Carlos (2001, p.63), de que o espaço é
produzido em função do processo produtivo geral da sociedade, nos seus diferentes momentos
históricos, este trabalho pretende analisar como estão se desenvolvendo, atualmente, essas novas
práticas socioespaciais de fechamento de parcelas da cidade, também em cidades pequenas.
Para realizar essa análise, poderíamos ter escolhido diferentes caminhos teóricos e metodológicos
e também diferentes recortes analíticos, ao passo que o tema escolhido, para nossa pesquisa, abre
uma possibilidade considerável de desdobramentos, razão pela qual faz-se necessário, portanto,
esclarecer qual o enfoque que daremos no estudo da produção e da apropriação dos loteamentos
fechados ribeirinhos em questão.
Consideramos que esses empreendimentos são mercadorias imobiliárias produzidas material e
simbolicamente para atender a demandas criadas no âmbito da sociedade capitalista. Dessa
forma, os loteamentos fechados ribeirinhos são espaços que oferecem concepções específicas de
lazer, de Natureza, de segurança e de comunidade de iguais, produzidas pelos empreendedores
imobiliários e identificadas pelos setores de maior padrão aquisitivo, a quem se destinam esses
empreendimentos, como espaços ideais.
Segundo Castoriadis (1991, p. 150), os aspectos simbólicos dão substrato para a constituição do
imaginário social. É a partir da matriz simbólica, que permeia todos os demais níveis de constituição
da sociedade, que a “dimensão inventada” pode existir e ser investida na produção da realidade.
-
4
-
Para o autor, não é possível delimitar precisamente a fronteira entre o real e o imaginado, ou o
momento que o simbólico invade o funcional, mas percebemos que, em algumas ocasiões, o
imaginário pode estar muito mais investido de “realidade” do que o próprio real. Dessa forma,
consideramos que as relações de consumo na sociedade contemporânea são carregadas de valores
simbólicos.
O consumo, para Baudrillard (1995, p. 59), é estruturado como uma linguagem, na qual não se
trata mais da apropriação individual do valor de uso dos bens e dos serviços, mas da lógica da
produção e manipulação dos significantes sociais. Segundo ele
(...) nunca se consome o objeto em si (no seu valor de uso) os objetos (no sentido
lato) manipulam-se sempre como signos que distinguem o indivíduo, quer filiando-
o no próprio grupo tomado como referência ideal, quer demarcando-o do
respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior. (BAUDRILLARD,
1995, p. 60)
Dessa forma, o consumo das mercadorias, incluídos aí, os loteamentos fechados ribeirinhos, dá-se
por meio do consumo das imagens associadas a elas, capazes de diferenciar seus consumidores das
demais pessoas, comunicando aos outros que entre eles existe uma distinção. O consumo serve
assim, para que as pessoas possam exibir seus gostos e seus estilos de vida.
Para Baudrillard (1995), a preponderância dos processos de consumo na vida social faz com que
os sujeitos sejam levados, cada vez mais, a se identificarem com objetos-signos que os diferenciem
dos demais, hierarquizando e discriminando os grupos sociais. As diferenças individuais não são
organizadas diretamente pelo consumo, mas essas diferenças, assumindo a forma de
personalização, é que se organizam em torno de modelos comunicados pelo sistema de consumo. O
processo de construção da identidade na cultura do consumo dá-se de forma cambiante, fluida,
fragmentada e parcial. Dessa maneira, as mercadorias, através das imagens associadas a elas, são
utilizadas para demarcar as relações sociais e determinar os estilos de vida, alterando as formas das
pessoas interagirem socioespacialmente.
Devemos analisar assim, como se dão as relações entre o consumo do emaranhado simbólico
associado aos loteamentos fechados ribeirinhos e os usos que vêm se desenvolvendo, no plano
material, nesses espaços. Nossa hipótese é que, ao escolherem seus espaços de lazer dentro dos
loteamentos fechados, as pessoas consomem também uma carga simbólica e, nem sempre, realizam
usos que coincidam e sustentem esses símbolos, a não ser a partir da concepção de simulacro.
De acordo com Baudrillard (1996, p. 70), no simulacro “o signo (ou a imagem) absorve e reifica
o referente, tornando-se mais real que o próprio real: o hiperreal”. Dessa maneira, consideramos
que os símbolos associados aos loteamentos fechados ribeirinhos são apropriados nessa perspectiva,
produzindo uma nova realidade constituída pelas imagens e suas representações. Nesse processo de
simulação, não existe a questão do que é falso e do que é verdadeiro, visto que símbolos produzidos
e manipulados pela sociedade são internalizados e vivenciados como reais. Dessa maneira, simular
-
5
-
não significa fingir e sim, viver os símbolos e as imagens como reais, criando assim, novas concepções
de realidade.
Outra concepção que nos ajuda a entender a manipulação das imagens e do consumo na
sociedade contemporânea é a de sociedade do espetáculo, cunhada por Debord. Para o autor
(2002, p. 13), “toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se
anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo que era diretamente vivido se
afastou numa representação.
As imagens que se desligaram de cada aspecto da vida fundem-se num curso
comum, onde a unidade desta vida não pode ser restabelecida. A realidade
considerada parcialmente desdobra-se na sua própria unidade geral enquanto
pseudomundo à parte, objeto de exclusa contemplação. A especialização das
imagens do mundo encontra-se realizada no mundo da imagem autonomizada,
onde o mentiroso mentiu a si próprio. O espetáculo em geral, como inversão
concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo. (DEBORD, 2002, p. 13)
Sendo assim, a produção dos loteamentos fechados ribeirinhos como espaços-símbolos que
atendem às “necessidades” dos segmentos sociais mais privilegiados insere-se no contexto da
sociedade do espetáculo, na qual as mercadorias e os mbolos associados a elas passam a definir as
relações socioespaciais.
Para empreendermos a análise dos aspectos materiais e simbólicos que perpassam a produção e
a apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos, identificamos, diante do emaranhado simbólico
que constitui esses espaços, três símbolos principais, nos quais nosso estudo será pautado. Esses
símbolos referem-se à Natureza, à segurança e à constituição de uma comunidade de iguais.
Verificamos que há um trabalho, por parte de alguns setores da sociedade, no sentido de ressaltar o
caráter de raridade desses elementos, para que eles possam ser vendidos em objetos, espaços e
serviços, valorizando esses elementos e fazendo com que haja uma elitização e uma privatização da
apropriação desses valores e/ou de seus símbolos, restringindo-os, apenas, aos setores de maior
poder aquisitivo.
A Natureza, ao longo do processo histórico, veio adquirindo diferentes conteúdos que pautaram
diferentes tipos de relacionamentos entre a Sociedade e os elementos naturais. De uma maneira
geral, podemos afirmar que a Sociedade foi realizando um processo de dominação da Natureza,
passando a vê-la como recurso com amplas e ilimitadas possibilidades de exploração. Esse processo
de dominação dos elementos naturais pela Sociedade culminou, de acordo com Smith (1998), no
processo de produção da Natureza. Atualmente, concepções idealizadas de uma Natureza
ajardinada, que serve como elemento de decoração passam a ser difundidas e vendidas para
aqueles que têm condições financeiras para pagar.
Nas cidades atuais, ambientes cada vez mais tecnificados e artificializados, a Natureza “natural”
torna-se distante, sendo necessária, de acordo com Henrique (2004, p. 5) a produção de um sistema
de idéias e símbolos que tragam a imagem dessa Natureza natural para a cidade e, até mesmo,
que se produza uma Natureza padronizada e adequada aos padrões urbanos. Além disso, a
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Natureza material, efetivamente incorporada e produzida, enclausurada nas propriedades
imobiliárias privadas, terá seu acesso definido, de maneira desigual, entre, por exemplo, os
empreendimentos de alto padrão e os conjuntos habitacionais de baixa renda.
Nos loteamentos fechados ribeirinhos, temos a produção e a valorização de uma Natureza
específica, que possibilita atividades de lazer ao ar livre, em contato com alguns elementos naturais,
selecionados como os adequados para formarem o cenário agradável buscado nesses espaços. Esse
contato com a Natureza é realizado a partir de toda uma infra-estrutura urbana, que faz com que
a Natureza idealizada, nesses empreendimentos, seja inserida numa situação de ordenamento e
controle, a fim de que os consumidores desses espaços possam desfrutar dos elementos naturais com
o conforto e a comodidade que possuem nas cidades.
A análise da busca pela segurança faz-se presente, em nosso trabalho, visto que passamos por
um processo de banalização e amplificação do discurso sobre a insegurança, que acaba justificando
a necessidade de proteção, legitimando a opção pelo enclausuramento em espaços fechados e
supostamente homogêneos. A segurança torna-se, assim, um símbolo, vendido como atributo
valorativo dos empreendimentos imobiliários.
A iniciativa de separação territorial dos diferentes segmentos da sociedade, a partir do
fechamento dos espaços residenciais por barreiras físicas, é nova. Antes havia tendências para a
segregação socioespacial, mas sem a prática de se erguerem barreiras tangíveis.
Atualmente, diante da impossibilidade ou da falta de interesse, em resolver os problemas
advindos das desigualdades sociais, as pessoas negligenciam os espaços públicos e se escondem atrás
de muros, erguendo barreiras para não terem que ver e conviver com as diferenças. A necessidade
de enclausuramento dentro de enclaves fortificados surge, então, de um desejo de distanciamento
dos segmentos sociais de menor poder aquisitivo, percebidos como sendo perigosos.
O discurso do medo é promovido pelos empreendedores imobiliários e sustentado pela mídia
que acentua a idéia de insegurança nos espaços públicos urbanos. Nesse sentido, esse discurso
possibilita a oposição entre o perigo, associado ao espaço público, e os enclaves fortificados, onde
“toda” a segurança é oferecida. Dessa forma, a segurança além de constituir uma necessidade
social, passa a integrar a esfera das mercadorias, transformando-se em símbolo de status social.
Para entendermos a produção dos espaços fechados nas cidades, incluindo-se os loteamentos
ribeirinhos, devemos ressaltar o papel dos empreendedores imobiliários. O discurso de tornar os
espaços seguros é apropriado por esses empreendedores e vendido como forma de valorização
imobiliária. Trabalhamos, assim, com a hipótese de que uma construção simbólica que associa o
desejo e a possibilidade de se obter segurança, ao
status
e à distinção social.
As pessoas poderiam “fechar” e dotar suas casas individualmente de sistemas de segurança, se
isso fosse objetivamente necessário, mas escolhem se “unir” com outras pessoas, de mesmo nível
social, em empreendimentos fechados. Assim, novos elementos devem ser inseridos na análise dos
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empreendimentos fechados, associados ao valor simbólico presente na produção e apropriação
desses espaços.
Fatores como distinção social, separação dos segmentos mais pobres (possíveis agressores),
status
,
busca de respaldo para ações individuais, busca de identidades, forjadas no âmbito de uma
“comunidade” homogênea, são trabalhados simbolicamente, associados ao ideal de segurança e
vendidos como mercadorias, agregando valor de troca aos empreendimentos
Segundo Bauman (2003, p. 108), a “comunidade” é, atualmente, a última relíquia das utopias
da boa sociedade de outrora, é o que sobra dos sonhos de uma vida melhor, compartilhada com
vizinhos melhores, todos seguindo melhores regras de convívio. Dessa forma, um dos sentimentos
que estão por trás da produção dos espaços fechados é a idéia de comunidade, baseada na
ausência de diferenças, em que a alteridade do outro não oferece ameaça, pois dentro dos muros,
são todos “iguais”.
Essa tendência de fechamento da sociedade em espaços de iguais constitui-se num processo que
se retroalimenta. Bauman (2003, p.123) ressalta que, quanto mais eficazes as tendências
homogeneizantes e o esforço para eliminar as diferenças, mais difícil é sentir-se à vontade na
presença de estranhos, a diferença fica mais aterrorizante e mais intensa é a ansiedade que ela
gera. Assim, a estratégia de fechamento em “comunidades de iguaisreforça e reafirma a ameaça
representada pelos estranhos e pelos diferentes.
Assim, consideramos que a produção de espaços fechados e de acesso controlado nas cidades
seja resultado de novas estratégias socioespaciais de segregação. Esses novos tipos de assentamentos
alteram as possibilidades de apropriação da cidade pelos diferentes sujeitos sociais, segmentando os
usos das diferentes parcelas do espaço urbano.
Nesse sentido, constatamos que, nos loteamentos fechados ribeirinhos, mesmo que não sejam
valores difundidos nos materiais publicitários, existe uma percepção de que a apropriação desses
empreendimentos gera um ambiente que possibilita a identificação social e a inserção em uma
comunidade de iguais. Mesmo que não haja o estabelecimento de uma efetiva sociabilidade entre
os consumidores desses espaços, a percepção da identificação e da comunidade de iguais está
presente no imaginário dos proprietários de ranchos nesses empreendimentos.
Nesses loteamentos fechados ribeirinhos, a idéia de comunidade mostra-se presente na
diferenciação, implícita nos discursos dos entrevistados, quando se referem aos de fora”, pois são
sempre os de fora que causam problemas relacionados às perturbações da ordem dentro dos
loteamentos. Assim, a “comunidade de iguais” estabelece-se para que, juntos, exerçam o controle
social sobre seus espaços, deixando de fora os diferentes. Não estamos dizendo, com isso, que todos
os habitantes desses espaços sejam iguais, em suas condições de vida e em seus valores e visões de
mundo, mas é certo que há certo grau de homogeneidade socioeconômica e de interesses na
apropriação desses espaços, mesmo que eles se reduzam ao desejo de manterem distantes os outros
segmentos sociais.
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Segundo Giddens (2002, p. 120), um dos elementos centrais para entendermos a questão da
segurança existencial da sociedade é a noção de casulo protetor. O casulo protetor está baseado
psicologicamente na confiança básica, sendo uma estrutura que filtra muitos perigos que, em
princípio, podem ameaçar a integridade do “eu”. Esse casulo atua criando um espaço social no qual
a pessoa pode estabelecer relações de confiança, sendo que os perigos ficam do lado de fora.
Dessa forma, temos, atualmente, estratégias dos produtores imobiliários, no sentido de tentar
criar simulacros desse casulo protetor, ao produzirem, cada vez mais, espaços de convivência
segmentada e espaços exclusivos, criando uma “comunidade de iguais”, onde as pessoas não
precisam se preocupar em conviver com a alteridade.
Com a produção dos loteamentos fechados, as relações pessoais tendem a se tornar cada vez
mais segmentadas. A idéia de “comunidade” é criada assim, a partir da contraposição aos outros,
aos que não podem fazer parte, aos que estão fora dos muros.
Nos espaços residenciais fechados, segundo Billard et al (2005), o estar entre iguais pode se dar
de diversas formas, de acordo com as modalidades de tempo em que as pessoas permanecem
nesses espaços. Temos também diferenciações no que se refere às formas de estar entre iguais, a
partir da destinação do produto imobiliário, marcada por uma tendência à segmentação do
mercado, cada vez mais forte. Nesse sentido, temos diversas formas de estar entre iguais, que se
baseiam, além do critério social, em aspectos como cultura, escolhas sexuais, idade etc. Assim,
colocam-se à disposição dos segmentos mais privilegiados, várias possibilidades de identificação que
podem ser adquiridas a partir do consumo.
Dessa forma, na atualidade, uma das formas de se alcançar essa “comunidade” ideal e
homogênea é escolhendo empreendimentos como os loteamentos fechados ribeirinhos como forma
de
habitat
. Um dos objetivos imobiliários desses espaços fechados é reunir pessoas de mesmos grupos
sócio-culturais, criando um ideal de pertencimento a uma comunidade ou a um lugar. Dessa forma,
a partir da relação interior/exterior, as pessoas definem-se perante as outras.
O fechamento dos loteamentos ribeirinhos proporciona uma esfera, um lugar em que podem ser
estabelecidas relações intra-grupos, mesmo que essas relações não se efetivem. Assim, o interesse de
fechamento perpassa pelo ideal de se criar um universo privativo, a partir de duas dimensões de
familiaridade: com o lugar e com as pessoas que podem conviver e se relacionar. Isso porque com o
fechamento e a restrição do acesso aos espaços, temos um processo de pré-seleção das pessoas,
dando uma idéia de tranqüilidade ao ato de se relacionar, visto que as pessoas não precisam ter
medo do outro, pois estão “entre iguais”.
Sendo assim, os loteamentos fechados ribeirinhos constituem um simulacro de um mundo
maravilhoso, homogêneo, separado do mundo exterior, tão heterogêneo e desigual. Esses espaços
de sonho têm que ser protegidos por barreiras tangíveis para que sua pureza” não seja maculada.
Com o fechamento desses espaços de lazer, as pessoas podem, mesmo que temporariamente, ficar
longe dos “perigos” e dos “riscos” que permanecem fora de seus muros. Criam-se assim, como
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pretendemos desenvolver nessa dissertação, simulacros de uma cidade homogênea, saudável, sem
os perigos presentes no restante da cidade.
Mas até que ponto essa comunidade” de iguais pode ser mantida? Até quando os segmentos
de maior poder aquisitivo podem tentar negar a existência das mazelas sociais?
É certo que, por mais que as pessoas possam vivenciar a cidade de forma segmentada,
escolhendo os espaços onde irão consumir, habitar e trabalhar, por mais que possam se enclausurar
em seus espaços fechados, ainda terão que estabelecer relações com os segmentos menos
privilegiados. Sendo assim, a separação e a segmentação socioespacial almejadas pelos segmentos
de maior poder aquisitivo não podem ser alcançadas completamente.
Desse modo, as comunidades de iguais empreendidas nos loteamentos fechados ribeirinhos são
exemplos da concepção que os segmentos dominantes possuem de comunidade. Nas comunidades
de fato, teríamos que ter o estabelecimento de relações à longo prazo, no sentido da
responsabilidade social, a partir da qual os diferentes segmentos sociais pudessem resolver
coletivamente, os problemas produzidos socialmente.
Sendo assim, para analisarmos os aspectos materiais e simbólicos que perpassam a produção e a
apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos, dividimos essa dissertação em cinco capítulos,
além dessa introdução, das considerações finais e do apêndice metodológico. Os capítulos seguem a
ordenação seguinte.
No capítulo I, intitulado
Empreendimentos residenciais fechados: entendendo as lógicas de
produção e apropriação dos novos habitats
, apresentamos uma discussão sobre a disseminação dos
empreendimentos residenciais fechados, em geral, analisando as possíveis causas e as estratégias
imobiliárias que perpassam a produção e a idealização desses empreendimentos. Realizamos,
também, uma apresentação de algumas decorrências socioespaciais advindas da implantação e da
apropriação dos empreendimentos residenciais fechados, que alteram as formas de estruturação
urbana e, também, as formas dos diferentes segmentos sociais se relacionarem no interior das
cidades.
O capítulo II, denominado
Loteamentos fechados ribeirinhos: principais características e
especificidades
, tratamos de uma forma específica de loteamento fechado: os ribeirinhos.
Realizamos uma caracterização dos empreendimentos estudados, analisando os discursos que
sustentam a produção e a apropriação desses espaços, apontando algumas especificidades desses
empreendimentos por constituírem espaços para lazer, na modalidade de segunda residência.
Apresentamos, também, a indicação de alguns processos socioespaciais que vêm se desenrolando a
partir da produção e da apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos.
No capítulo III, denominado
A Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos: dissociação entre
apropriação simbólica e apropriação material,
apresentamos algumas reflexões sobre os diferentes
conteúdos que a Natureza vem adquirindo, ao longo do desenvolvimento histórico, bem como,
sobre a venda de uma concepção específica de Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos,
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produzida como símbolo de qualidade de vida e bem-estar. Analisamos, também, as diferenças
entre o discurso dos entrevistados que apontam para um desejo de um contato mais direto com a
Natureza e as formas de apropriação que, efetivamente, realizam nesses espaços.
No capítulo IV,
intitulado Insegurança urbana e produção do espaço
, realizamos uma reflexão
sobre a influência que o sentimento de insegurança, real ou imaginada, tem na produção do
espaço urbano e na definição das formas das pessoas se relacionarem, entre si, e com os diferentes
espaços da cidade. Apresentamos, também, uma reflexão sobre a atuação do sentimento de
insegurança na produção dos loteamentos fechados ribeirinhos, identificados como espaços
portadores de uma “segurança total”, analisando as reais condições de oferecimento de segurança
nesses empreendimentos.
No capítulo V, intitulado
Erguendo barreiras e construindo identidades: relações entre o
fechamento urbano e a busca por “comunidades”
, apresentamos uma análise sobre as relações
existentes entre o fechamento físico dos loteamentos ribeirinhos e a construção de laços de
identificação entre os proprietários de casas nesses empreendimentos, questionando a busca pela
constituição de um círculo comunitário, que nesse caso está muito mais ligado ao desejo de
segregar, de deixar de fora dos muros os segmentos indesejáveis, do que ao estabelecimento de
relações diretas entre os membros dessa suposta comunidade de iguais.
Apresentamos ainda, no apêndice metodológico, uma descrição dos procedimentos
metodológicos que utilizamos para conduzir a pesquisa e chegar aos resultados que passamos a
expor, na presente dissertação.
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CAPÍTULO I
EMPREENDIMENTOS RESIDENCIAIS FECHADOS: ENTENDENDO AS
LÓGICAS DE PRODUÇÃO E APROPRIAÇÃO DOS NOVOS
HABITATS
Muros e grades
Humberto Gessinger – Engenheiros do Havaí
Nas grandes cidades, no pequeno dia-a-dia
O medo nos leva tudo, sobretudo a fantasia
Então erguemos muros que nos dão a garantia
De que morreremos cheios de uma vida tão
vazia
Nas grandes cidades, de um país tão violento
Os muros e as grades nos protegem de quase
tudo
Mas o quase tudo, quase sempre é quase nada
E nada nos protege de uma vida sem sentido
Um dia super, uma noite super, uma vida
superficial
Entre as sombras, entre as sobras da nossa
escassez
Um dia super, uma noite super, uma vida
superficial
Entre cobras, entre escombros da nossa solidez
Nas grandes cidades de um país tão irreal
Os muros e as grades nos protegem de nosso
próprio mal
Levamos uma vida que não nos leva a nada
Levamos muito tempo, pra descobrir
Que não é por aí... não é por nada não
Não, não pode ser... é claro que não é, será?
Meninos de rua, delírios de ruínas
Violência nua e crua, verdade clandestina
Delírios de ruína, delitos e delícias
A violência travestida faz seu trottoir
Em armas de brinquedo, medo de brincar
Em anúncios luminosos, lâminas de barbear
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Para analisarmos os aspectos relativos à produção e à apropriação dos espaços dos loteamentos
fechados ribeirinhos, iniciaremos esse capítulo destacando, na primeira parte, os aspectos que se
relacionam à produção dos empreendimentos residenciais fechados, de uma forma geral,
abordando as justificativas de sua difusão e as decorrências socioespaciais a partir de seu uso, com o
objetivo de oferecer bases para contextualizar a análise específica de nosso objeto de estudo, sem,
contudo, esgotar a análise do tema.
1.1 Urbanização Contemporânea: produção dos empreendimentos residenciais
fechados
De acordo com Lefebvre (1999, p. 16), a sociedade que surge a partir do processo de
industrialização pode ser caracterizada como uma sociedade urbana. O autor destaca que, mais
que um fato consumado, a sociedade urbana é uma tendência, uma orientação, uma virtualidade,
que caminha para a concretização por meio de um processo que ele conceitua como Revolução
Urbana. Para o autor, essa revolução consiste num:
(...) conjunto de transformações que a sociedade contemporânea atravessa para
passar do período em que predominam as questões de crescimento e de
industrialização (modelo, planificação, programação) ao período no qual a
problemática urbana prevalecerá decisivamente, em que a busca das soluções e
das modalidades próprias à
sociedade urbana
passará ao primeiro plano.
(LEFEBVRE, 1999, p. 19, grifos do autor)
Sendo assim, nossa sociedade é marcada pela lógica urbana, que se evidencia em nossas
maneiras de produzir e de nos apropriarmos do espaço, mesmo fora das cidades. Isso porque a
cidade deixa de ser o lugar por excelência do urbano, visto que seu conteúdo extrapola o tecido
urbano e influencia práticas realizadas também no campo.
Segundo Sposito (1999, p. 81), as relações entre cidade-campo não são expressões simétricas das
que se estabelecem entre o urbano e o rural, visto que “as relações que se estabelecem a partir das
cidades, os mbolos e signos que nelas e através delas expressam o que é urbano estão além das
cidades”. Assim, o processo de urbanização da sociedade gera uma ampliação dos espaços que
possuem suas práticas pautadas na perspectiva urbana. Portanto, quando tratamos da
urbanização, não nos referimos apenas à constituição material das cidades, mas a um processo mais
amplo, que surge da interação de um conjunto de valores, hábitos e símbolos urbanos, com as
práticas socioespaciais.
Um dos conteúdos da urbanização contemporânea, que merece destaque, é a proliferação de
espaços fechados, de acesso controlado, denominados por Caldeira (2000, p. 258) como enclaves
fortificados. Segundo a autora, esses enclaves alteram a maneira como pessoas de segmentos mais
privilegiados da sociedade vivem, trabalham, consomem e gastam seu tempo de lazer. Esses
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espaços são delimitados por muros e grades, que marcam fisicamente a separação socioespacial
desse tipo de empreendimento, que são voltados para o interior e não para seu entorno, negando,
portanto, a vida nos espaços abertos da cidade.
No que diz respeito às modalidades residenciais desses enclaves fortificados, temos os
condomínios e os loteamentos fechados. Muitas vezes esses empreendimentos são tratados como se
fossem a mesma coisa, mas apresentam algumas diferenças básicas entre si. A lei federal que
regulamenta a produção dos loteamentos, sem diferenciar loteamentos abertos de fechados, é a Lei
Federal 6.766 de 19/12/1979. Segundo essa lei, fica estabelecido que um loteamento é constituído por
uma subdivisão do terreno original em lotes destinados a edificações, com a abertura de novas vias
de circulação e áreas públicas. Os loteadores devem destinar uma porcentagem da superfície
loteada para o estabelecimento de áreas públicas, como praças e ruas. (SOBARZO e SPOSITO,
2003, p.40)
os condomínios são regulamentados pela Lei Federal 4.591 de 16/12/1964, que estabelece que
quando, num terreno que não apresente construções, se pretenda construir mais de uma edificação,
deverá ser discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação e sua área de utilização
exclusiva, assim como a fração ideal de todo terreno e das áreas comuns que corresponderão a
cada unidade ou edificação. (SOBARZO e SPOSITO , 2003, p.40)
Sobre essa questão, Zandonadi (2005, p. 91) aponta que as principais diferenças entre os
loteamentos fechados e os condomínios horizontais estabelecem-se da seguinte forma:
- O condomínio horizontal não implica na subdivisão da área original, comercializam-se as casas
e um terreno destinado ao jardim individual; nos loteamentos fechados, a área original é
dividida em lotes individuais, os quais são comercializados individualmente.
- No condomínio horizontal, o direito de propriedade constitui-se por uma fração ideal de todo
o terreno, uma fração ideal das áreas comuns e da unidade autônoma (casa) e de parte do
terreno ocupado por ela (jardim); enquanto no loteamento fechado, o objeto da propriedade é
um lote do terreno, o qual deve ser numerado, individualizado e caracterizado com seus limites.
- No condomínio horizontal, as ruas, praças e espaços livres são propriedades dos condôminos, os
quais têm direito de propriedade de uma fração ideal destas áreas comuns; nos loteamentos
fechados, as ruas, praças e espaços livres são de domínio público, exercido pela municipalidade
local. (ZANDONADI, 2005, p. 91)
Observamos, assim, que os condomínios e loteamentos fechados são tipos de espaços diferentes,
mas que se assemelham e, por isso, muitas vezes, são tratados como sinônimos. O fato é que tanto
os loteamentos como os condomínios horizontais não possuem dispositivos legais específicos que
regulamentem seus fechamentos, uma vez que a Lei Federal 4.591 foi elaborada para os
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condomínios verticais
1
. Dessa forma, no âmbito da produção imobiliária, o fechamento é
empreendido sem que haja regulamentações específicas previstas na legislação urbanística.
Sobarzo e Sposito (2003, p.40) destacam que, no caso dos loteamentos fechados, as áreas de
destinação pública encontram-se dentro dos muros, sendo que as legislações dos diferentes
municípios é que devem prever e regulamentar a concessão de uso exclusivo aos moradores do
loteamento, por período determinado. no caso da implantação dos condomínios fechados, as
áreas de uso coletivo dentro do condomínio são de propriedade privada de seus condôminos.
Assim, no processo de produção dos loteamentos fechados a privatização dos espaços públicos é
mais evidente, visto que as áreas de domínio blico municipal dentro dos muros dos
empreendimentos são utilizadas apenas pelos proprietários de lotes, muitas vezes, sem nem mesmo,
a obtenção da concessão de uso especial. Sendo assim, para evitar confusões na utilização dos
termos condomínios e loteamentos fechados, optamos por, nessa primeira parte do capítulo, onde
estamos tratando de aspectos mais gerais sobre o fechamento residencial, utilizar expressões mais
gerais, que englobem esses dois tipos de espaços.
Os empreendimentos residenciais fechados constituem novos
habitats
urbanos, que segundo
Sposito (2006, p. 176-177) “rompem com os princípios de unidade e de integração socioespaciais que
sempre marcaram a cidade”. De acordo com a autora, a origem desse novo tipo de
habitat
urbano
não é um fato recente na América Latina, visto que, como ela destaca, autores como Svampa
(2001), Icks (2002), Borsdorf (2002), Carlos (1994) e Caldeira (2000) apontam a presença de
espaços residenciais fechados, que deram origem aos empreendimentos fechados contemporâneos,
em países como Venezuela, Argentina, México, Chile e Brasil, desde 1920.
nos Estados Unidos, Rybczynski (1996, p. 163-165) descrevendo o empreendimento Llewllyn
Pard, em West Orange, iniciado em 1853, oferece elementos para se reconhecer o que terá sido,
provavelmente, a primeira área residencial tipo condominial naquele país, que faz referência ao
fato de que era uma propriedade particular, cujo acesso era proibido aos não moradores, havendo
uma cerca e um portão de entrada. Para os contextos europeu, africano e asiático, Billard,
Chevalier e Madoré (2005) apresentam uma descrição das pesquisas realizadas sobre esse tipo de
habitat urbano, sem precisar os anos de aparecimento desses empreendimentos, mas oferecendo
referências bem completas sobre o que está publicado a esse respeito.
No entanto, o que faz com que possamos denominar esses espaços como novos, é o fato de que
atualmente, vem ocorrendo um processo de generalização da implantação desses
empreendimentos, que passaram a constituir a forma ideal de se morar, dos segmentos de maior
poder aquisitivo, sendo que as pesquisas apontam que os espaços residenciais fechados não são mais
exclusividade das grandes cidades (Sposito, 2003, Sobarzo, 1999). Atualmente, a produção desses
1
Atualmente, está em discussão no Congresso Nacional, o projeto de lei 20/2007 que trata da implantação de
condomínios, de modo a contemplar os condomínios horizontais.
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espaços vem sendo verificada, ainda que numa escala menor, em cidades médias, de porte médio
2
e até mesmo em cidades pequenas. Dessa maneira, o que consideramos como “novo” no processo
de fechamento de parcelas da cidade é sua difusão em diferentes contextos socioespaciais e sua
crescente influência na reestruturação dos espaços urbanos, assim como na redefinição das relações
sociais cotidianas nas cidades.
Analisando a produção desses empreendimentos residenciais fechados na América Latina, mais
especificamente na Argentina, Roitman (2003) identifica alguns elementos como sendo os fatores
distintivos mais importantes entre os novos
habitats
urbanos e os demais empreendimentos
residenciais. A primeira característica destacada pela autora é o fato de que os novos
habitats
encontram-se cercados por muros, portas e cercas, que constituem barreiras físicas entre os
empreendimentos e o restante da cidade. Uma segunda característica diz respeito ao controle do
acesso a esses espaços, cujas práticas podem gerar veto à entrada dos indesejados. Uma terceira
refere-se à localização dos novos
habitats
, geralmente muito próxima a bairros pobres, fato que faz
com que as desigualdades sociais tornem-se mais evidentes.
Caldeira (2000, p. 258/259), ao analisar os enclaves fortificados, aponta algumas características
básicas que fazem parte da constituição de todos os tipos de enclaves, inclusive dos condomínios e
loteamentos fechados.
Todos os tipos de enclaves fortificados partilham algumas características básicas. São
propriedade privada para uso coletivo e enfatizam o valor do que é privado e
restrito ao mesmo tempo que desvalorizam o que é público e aberto na cidade. São
fisicamente demarcados e isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes
arquitetônicos. São voltados para o interior e não em direção à rua, cuja vida
pública rejeitam explicitamente. São controlados por guardas armados e sistemas
de segurança, que impõem as regras de inclusão e exclusão. São flexíveis: devido ao
seu tamanho, às novas tecnologias de comunicação, organização do trabalho e aos
sistemas de segurança, eles são espaços autônomos, independentes do seu entorno,
que podem ser situados praticamente em qualquer lugar. Em outras palavras, em
contraste com formas anteriores de empreendimentos comerciais e residenciais, eles
pertencem não aos seus arredores imediatos, mas a redes invisíveis (Cenzatti e
Crawford, 1998). Em conseqüência, embora tendam a ser espaços para as classes
altas, podem ser situados em áreas rurais ou na periferia, ao lado de favelas ou
casas autoconstruídas. Finalmente, os enclaves tendem a ser ambientes socialmente
homogêneos. Aqueles que escolhem habitar esses espaços valorizam viver entre
pessoas seletas (ou seja, do mesmo grupo social) e longe das interações indesejadas,
movimento, heterogeneidade, perigo e imprevisibilidade das ruas. Os enclaves
privados e fortificados cultivam um relacionamento de negação e ruptura com o
resto da cidade e com o que pode ser chamado de um estilo moderno de espaço
público aberto à livre circulação. Eles estão transformando a natureza do espaço
público e a qualidade das interações públicas na cidade, que estão se tornando
cada vez mais marcadas por suspeita e restrição.
Os enclaves fortificados conferem status. A construção de símbolos de status é um
processo que elabora diferenças sociais e cria meios para a afirmação de distância e
desigualdade sociais. Os enclaves são literais na sua criação de separação. (...)
(CALDEIRA, 2000, p. 258/259)
2
Para uma análise das diferenças entre cidades médias e cidades de porte médio, assim como dos processos que vêm
ocorrendo nessas cidades, ver Savério Sposito et. al., 2006.
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Dessa maneira, entendemos os espaços residenciais fechados como ambientes socialmente
homogêneos, fisicamente fechados, que não se integram diretamente com seu entorno e negam a
cidade aberta, bem como os contatos entre pessoas diferentes e com os imprevistos deles
decorrentes. São espaços com conteúdo social associado a status e qualidade de vida, destinados,
principalmente, mas não exclusivamente, aos segmentos de médio e alto poder aquisitivo.
Considerando a disseminação desse tipo de empreendimento em diversas partes do mundo e
em cidades de diferentes tamanhos e papéis na rede urbana, é importante destacar que apesar de
apresentarem características comuns, esses espaços apresentam variações tanto no plano das formas
de produção e de apropriação, quanto nas causas que geram seus surgimentos. Assim, um fator
característico da produção atual desses espaços fechados é a diversidade de formas de produção e
uso que vem se verificando, juntamente com o aumento do número desses empreendimentos. Em
cada contexto socioespacial, os
habitats
residenciais fechados apresentam lógicas de produção e
apropriação diferenciadas, mas que, de maneira geral, interferem no processo de reestruturação
das cidades contemporâneas e nas práticas socioespaciais de seus moradores e dos que ficam fora
dos seus muros, como destaca Sposito (2006, p. 176).
Diante dessa diversidade de tipos, processos e contextos socioespaciais envolvidos na produção
dos empreendimentos residenciais fechados, estabelecer uma causa, ou um conjunto de causas que
explicassem de forma definitiva e geral o surgimento desses espaços, seria um exercício difícil e
fadado ao reducionismo. Isso porque não podemos homogeneizar os processos que vêm ocorrendo
em espaços com tantas características diferenciadas como é caso dos países ditos desenvolvidos,
subdesenvolvidos e emergentes. Não podemos tomar como iguais, nem mesmo, os processos que
ocorrem em cidades de dimensões e papéis diferenciados, dentro de um mesmo país. Sendo assim,
cada contexto socioespacial, no qual os empreendimentos residenciais fechados vêm se
desenvolvendo, apresenta fatores específicos que justificam a produção desses espaços, embora em
alguns casos, certos aspectos comuns compareçam em realidades diferenciadas.
De uma maneira geral, podemos dizer que os empreendimentos residenciais fechados nas
diversas partes do mundo, utilizam, em seus discursos de justificativa, alguns elementos similares,
que adquirem nuances e significados diferenciados para cada formação socioespacial em que se
apresentam. Fatores como a busca por segurança, qualidade de vida, tranqüilidade, estar entre
iguais, entre outros, comparecem como os objetivos ou razões de se morar em um empreendimento
fechado em quase todas as partes do mundo. No entanto, para cada espaço, esses elementos serão
buscados por razões diferenciadas.
Consideramos que, para entendermos os processos que permeiam o aumento e a diversificação
desses novos
habitats
em contextos socioespaciais tão diversos, devemos considerar dois tipos de
fatores: a) estruturais, ligados a mudanças sociais; e b) simbólicos, ligados à idealização desse tipo de
empreendimento. Sendo assim, traremos a seguir, algumas considerações, a titulo de
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17
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exemplificação, para que possamos refletir sobre os significados dos empreendimentos residenciais
fechados contemporâneos.
1.1.1 - Empreendimentos residenciais fechados: alguns fatores estruturais que justificam
sua produção
Os
habitats
residenciais fechados e sua crescente aceitação e consumo entre os segmentos de
maior poder aquisitivo refletem e condicionam novas práticas socioespaciais. A difusão dos
empreendimentos fechados e de acesso controlado nos espaços urbanos altera as formas pelas quais
a cidade é apropriada e apreendida, indicando a presença de novos anseios da sociedade atual.
Os empreendimentos residenciais fechados representam a condensação de várias aspirações da
sociedade urbana contemporânea, advindas de mudanças na estrutura social, política, econômica e
cultural, pelas quais temos passado. Essas mudanças colocam em pauta a exigência de novas
respostas socioespaciais nas cidades. Assim, a sociedade, ao sofrer transformações, faz com que as
formas de produção e apropriação do espaço sejam modificadas, ao passo que, por sua vez, essas
modificações baseiam novas transformações na estrutura social, política, econômica e cultural das
sociedades contemporâneas.
Como ressaltamos, não é possível traçar um perfil único para a explicação das causas
estruturais que justificam a produção dos
habitas
fechados, visto que cada país apresenta um
contexto socioespacial e histórico diferenciado. No entanto, apresentaremos, a seguir, as reflexões de
alguns autores sobre as mudanças estruturais, em diferentes países, que podem ser utilizadas para
justificar a produção dos empreendimentos residenciais fechados, não no sentido da generalização,
mas no intuito de exemplificar e ressaltar algumas similitudes e especificidades desse processo.
Ao tratar do caso da América Latina, Roitman (2004) destaca que as causas estruturais do
surgimento dos
habitats
fechados estão ligadas ao aumento da insegurança, ao fracasso do Estado
como provedor de serviços básicos, ao aumento da diferenciação social entre ricos e pobres e ao
desenvolvimento de uma moda internacional, influenciada pelo
“American way of life”,
impulsionada pelos agentes imobiliários urbanos.
Conforme a autora (2003), a desigualdade social e a iniqüidade têm sido características de
quase todas as sociedades atuais. No entanto, destaca que, nos últimos anos, elas têm aumentado
drasticamente, tornando-se mais evidentes, devido à implementação de políticas neoliberais, que
resultam na retirada do Estado de suas antigas funções, atinentes a educação, moradia, emprego e
segurança. Nesse contexto, o tecido social não se apresenta apenas, dividido, mas sim, polarizado. A
distância entre os rendimentos dos mais ricos e os dos mais pobres aumenta, progressivamente,
fazendo com que os mais privilegiados busquem evitar o contato com a pobreza, freqüentemente,
optando por morar em empreendimentos fechados.
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O paradigma do neoliberalismo, segundo a autora, além de tornar mais extremas as condições
de pobreza dos segmentos menos privilegiados, também influencia na difusão dos
empreendimentos residenciais fechados devido ao afrouxamento da regulamentação do mercado
do solo urbano e às ações tendenciosas do Estado, no sentido de privilegiar alguns espaços e alguns
segmentos sociais na distribuição dos serviços e infra-estruturas urbanas, não garantindo assim, a
qualidade de vida na cidade como um todo.
A redução do papel do Estado e seu comprometimento com certos setores privados fazem com
que o processo de produção dos espaços urbanos seja orientado segundo a lógica do capital,
pautada em práticas que acentuam as desigualdades e provocam a segregação socioespacial, uma
vez que se trata de um processo que é orientado pela maximização dos lucros e vantagens
econômicas. Dessa maneira, os segmentos de maior poder aquisitivo são responsáveis por influenciar
a estruturação espacial, ao passo que influenciam as ações do poder blico, que, dependendo do
seu grau de comprometimento, dirige para um local ou para outro, a implantação de benfeitorias
e infra-estruturas que valorizam determinadas áreas, colocando-as como alvos propícios à
especulação imobiliária. A distribuição de investimentos ocorre, assim, de forma desigual pelo
espaço, privilegiando, na maioria das vezes, as áreas residenciais de maior padrão de renda.
Pode-se caracterizar, então, a segregação socioespacial advinda da produção dos
empreendimentos residenciais fechados como sendo um processo de escolha espacial, realizada
pelos segmentos de maior poder aquisitivo, que acaba resultando num processo de diferenciação
espacial, em que certas parcelas da cidade são dotadas com melhores infra-estruturas, serviços
urbanos e amenidades ambientais, em detrimento de outras áreas da cidade, que acabam
destinadas aos segmentos menos privilegiados, ficando sem investimentos em infra-estrutura e
serviços básicos. Essa configuração socioespacial caracterizada pela segregação decorre, assim, das
práticas e ações especulativas do mercado imobiliário, possibilitadas pelo recuo da esfera pública no
contexto neoliberal e suscitadas pelo enfraquecimento do Estado no provimento de serviços básicos
a toda população, atestando a negação, pelos segmentos mais privilegiados, dos problemas sociais
resultantes das desigualdades econômicas.
Sendo assim, as iniciativas e decisões tomadas com base no paradigma neoliberal podem ser
consideradas como fatores que incidem sobre a proliferação dos espaços residenciais fechados, visto
que esses empreendimentos são possibilitados pela especulação imobiliária que se acentua nessa
fase do desenvolvimento do capitalismo, ao mesmo tempo em que surgem para negar ou
escamotear situações socioeconômicas derivadas das próprias práticas neoliberais. Dessa maneira,
dialeticamente, os espaços residenciais fechados utilizam e reforçam alguns valores intrínsecos ao
neoliberalismo.
No entanto, não podemos explicar a difusão dos empreendimentos residenciais fechados apenas
como uma conseqüência dos problemas sociais acentuados no bojo do neoliberalismo. Outras
questões estão associadas à escolha dos espaços fechados como os
habitats
ideais na atualidade.
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Analisando o caso da implantação de empreendimentos residenciais fechados em Santiago do
Chile, Hidalgo et al (2006, p. 65/66) estabelecem relações entre o processo de globalização e a
materialização dos postulados da economia de livre mercado como sendo as principais causas da
difusão desses espaços. Para o autor, a globalização tem como motor a implantação do
neoliberalismo, que promove a liberalização das fronteiras alfandegárias, o retrocesso do Estado
intervencionista e a flexibilização da mão-de-obra. Sendo assim, a globalização e o neoliberalismo
interagem, num processo de retro-alimentação, que tem como expressão territorial, nas cidades, o
afrouxamento da regulamentação do mercado do solo e a especulação imobiliária. Dessa forma, as
transformações urbanas passam a ser comandadas por agentes privados, que geram um aumento
da segregação social e da fragmentação espacial, ao levar certos grupos sociais ao isolamento físico.
Assim, esses autores colocam em discussão, além do neoliberalismo, a globalização como um fator
importante para a compreensão da implantação dos empreendimentos residenciais fechados.
O processo de globalização, tido como uma das causas da proliferação dos
habitats
fechados é
pautado, de acordo com Santos (2008, p. 24), na unicidade da técnica, na convergência dos
momentos, na cognoscibilidade do planeta e na existência de um motor único na história a mais
valia globalizada. Esse processo produz alterações nas formas de produção dos espaços urbanos
mundiais e nos estilos de vida das pessoas em diferentes partes do planeta. Assim, os processos
engendrados pela globalização possibilitam que modelos de produção espacial surgidos em um país
específico sejam difundidos pelo mundo todo.
Segundo Hidalgo et al (2006, p. 67), a propagação dos empreendimentos residenciais fechados
na América Latina, tomando como referência o caso do Chile, seria resultado da difusão mundial
de um produto de consumo que teve êxito no mercado habitacional norte-americano as
gated
communities.
O autor destaca que essa difusão dos
habitats
fechados deve ser analisada em função
das manifestações locais, visto que em cada contexto socioespacial, a implantação dos
empreendimentos residenciais fechados adquire nuances diferenciadas. Os “artefatos da
globalização” mostram manifestações locais que, muitas vezes, pouco tem a ver com os originais.
Dessa forma, a propagação de modelos universais e modas arquitetônicas pelos espaços urbanos
mundiais é resultado de uma globalização da cultura. Hidalgo et al (2006, p.70) apontam que a
imagem da cultura globalizada é transmitida pelos sistemas de telecomunicações para o mundo
todo, fato que vai determinando, não só as atitudes de consumo, mas também a atividade
espacial, possibilitando novos estilos de vida, às vezes, muito mais ligados a padrões mundiais do
que às conjunturas locais.
Sendo assim, os estilos de vida considerados modernos unem-se às características locais, dando
origem a novos conjuntos de práticas socioespaciais. Dentro desse contexto, os empreendimentos
residenciais fechados vão se propagando por várias partes do mundo, a partir de um processo que
resulta da relação entre a imitação de modelos estrangeiros e as particularidades locais. Dessa
maneira, em cada realidade socioespacial em que são produzidos os
habitats
fechados, novas
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variações, combinações e, conseqüentemente, diferentes formas de influência na reestruturação
urbana e da cidade são gerados.
Esse processo de imitação de modelos exteriores à realidade local, possibilitado pela
globalização, não ocorre somente com a importação/exportação de padrões socioespaciais entre
diferentes países. Como aponta Sposito (2004, p.380), está em curso um processo de
homogeneização das paisagens citadinas, visto que cada vez mais, as cidades médias e pequenas
adotam práticas que imitam as lógicas socioespaciais metropolitanas.
Sendo assim, diante da possibilidade, oriunda do desenvolvimento dos sistemas de
telecomunicações, de conhecer práticas urbanas diferentes, de diversas partes do mundo e em
diversas escalas espaciais, temos um processo de transposição de algumas dessas práticas, que juntas
com as especificidades locais, geram novas formas de produção e apropriação dos espaços das
cidades. Ou seja, contextos internacionais podem influenciar a produção do espaço em diferentes
países, mas, mesmo dentro de um mesmo território nacional, as práticas desenvolvidas em
determinados espaços, essencialmente nas metrópoles, vão influenciar as lógicas de produção e
apropriação de outras parcelas do território, principalmente nas cidades médias e pequenas.
Portanto, a transposição de padrões culturais e de práticas socioespaciais de diferentes partes do
mundo, tem o poder de gerar novas lógicas socioespaciais, em diferentes níveis escalares.
Para o caso da manifestação dos empreendimentos residenciais fechados na América Latina,
Svampa (2001, p. 11/14) destaca que uma relação direta desse processo com o aumento das
desigualdades sociais e com a incapacidade do Estado de garantir segurança a todos os cidadãos. A
autora aponta para a produção de um novo tipo de sociedade, a partir da globalização da
economia, visto que esse processo potencializou a polarização social, criando uma lacuna que
separa os setores sociais mais favorecidos dos mais pobres. No contexto argentino, a autora aponta
que a redução das funções do Estado por meio da privatização de seus setores mais importantes,
gerou um enfraquecimento dos laços sociais e culturais existentes no interior da antiga classe média,
visto que ocorreu uma secessão dentro desse segmento social, em que as pessoas de maior poder
aquisitivo tornaram-se os ganhadores” e os de menor, os “perdedores”, constituindo um novo
segmento de pobreza. Assim, as novas formas de segregação espacial protagonizadas pela elite e
pelos segmentos médios “superiores”, ganham impulso diante da dificuldade e da incapacidade de
gestão das distâncias sociais entre os “ganhadores e os perdedores” do processo.
Analisando a produção dos enclaves fortificados na cidade de São Paulo, Caldeira (2000, p.
302) destaca que o processo de fortificação coincide, dialeticamente, com a organização dos
movimentos sociais urbanos, com a expansão dos direitos de cidadania da classe trabalhadora e
com a democratização política.
Foi exatamente no momento em que os movimentos sociais eclodiam na periferia,
quando sindicatos paralisavam fábricas e lotavam estádios para suas assembléias,
quando as pessoas votavam para os cargos executivos pela primeira vez em vinte
anos, que os residentes da cidade começaram a erguer muros e a se mudar para
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enclaves fortificados. Quando o sistema político se abriu, as ruas foram fechadas e o
medo do crime se tornou a fala da cidade. (CALDEIRA, 2000, p. 314)
Dessa maneira, a autora aponta que, além das diferenças nas condições econômicas e sociais dos
diferentes grupos que habitam a cidade de São Paulo, as questões políticas também podem ter
relação com a opção pelo fechamento urbano.
Diante desses exemplos, constatamos que existem alguns processos que, pelo menos no caso da
América Latina, devem ser levados em consideração para que possamos compreender a
proliferação dos empreendimentos residenciais fechados, considerando que a aumento da
polarização social, resultante da diminuição dos papéis do Estado, é um fator importante para a
análise do desejo de separação socioespacial observado nos segmentos de maior padrão econômico
nesses países. No entanto, as especificidades desse processo devem ser levadas em conta, visto que,
tanto a implantação da política neoliberal, quanto a influência do processo de globalização,
manifestam-se de forma diferenciada em cada formação socioespacial.
Vemos, assim, que a lógica de produção dos empreendimentos residenciais fechados é baseada
em um conjunto de fatores estruturais interligados, que não podem ser generalizados, visto que
cada país possui um sistema político, econômico, cultural e social específico, que vai ser atingido de
forma diferenciada pelas alterações estruturais globais.
No entanto, não basta analisarmos as questões objetivas que levam à produção dos
empreendimentos residenciais fechados. A produção dos novos
habitats
deve ser entendida no
âmbito da manipulação dos desejos, das construções simbólicas e da produção de novas
“necessidades”, justamente pela impossibilidade de encontrar aspectos objetivos que justifiquem, de
forma ampla, a disseminação dos empreendimentos residenciais fechados em contextos
socioespaciais tão diferenciados, visto que esses podem ser observados tanto nos países
desenvolvidos, quanto nos subdesenvolvidos, nas grandes cidades e também nas médias e
pequenas. Nesse sentido, um aspecto que nos parece comum em todos os casos, embora com
significações diferentes, é a valorização simbólica desses espaços, transformados na forma moderna
de se morar, associados sempre a elementos como status e qualidade de vida.
1.1.2. - Empreendimentos residenciais fechados: entendendo sua lógica de idealização
A produção dos espaços residenciais fechados não pode ser isolada do processo de idealização
que os promotores imobiliários realizam acerca desses empreendimentos, com o objetivo de
aumentar a aceitação desses espaços e, conseqüentemente, ampliar o mercado consumidor para
esse tipo de produto imobiliário.
Essa idealização é feita mediante a associação, aos novos
habitats
fechados, de mbolos como
status, exclusividade, estilo e qualidade de vida. Ao escolher comprar uma residência num
empreendimento fechado, a pessoa não está comprando apenas uma casa, está comprando um
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conjunto simbólico produzido para distinguir esse tipo de espaço dos demais. Ao selecionar o
empreendimento que se mostrou objetiva e subjetivamente mais atraente, as pessoas estão
escolhendo um conjunto de símbolos, que irá representá-las e diferenciá-las das demais, indicando
seus gostos, suas posições sociais e seus estilos de vida.
Na produção do espaço, temos sempre e de forma indissociável, uma construção material e
uma construção simbólica. sempre um estabelecimento de relações entre os espaços e as
imagens, sendo que ora os símbolos servem para valorizar, ora para desvalorizar certos espaços.
Assim, de acordo com cada contexto, os agentes produtores do espaço constroem uma identidade
particular para seus empreendimentos. Para isso, associam a eles, símbolos que possam estimular o
consumo desses espaços. Dessa forma, quando analisamos os processos de produção do espaço,
precisamos observar as construções simbólicas que são realizadas juntamente com a materialização
dos empreendimentos.
De acordo com Castoriadis (1982, p. 164), não podemos compreender o conjunto da vida social
como sendo um sistema simplesmente funcional, como sendo uma rie de arranjos integrados e
destinados à satisfação das necessidades da sociedade. Isso porque o entendimento das necessidades
é relativo, visto que seu conteúdo é completamente diferente, conforme a sociedade que
consideramos. Nas sociedades do capitalismo moderno, por exemplo, temos a criação, num ato
contínuo, de novas “necessidades”. Na nossa sociedade, portanto, a própria definição de necessidade
passa por uma construção simbólica.
A unidade entre a imagem que fazemos do mundo e a que fazemos de nós mesmos é, segundo
Castoriadis (1982, p. 180), trazida pela definição que cada sociedade dá acerca de suas necessidades,
tal como elas se inscrevem na atividade, no fazer social efetivo. As sociedades formam imagens de si
mesmas, que são refletidas nas escolhas que realizam, acerca dos objetos e das ações que
consideram como importantes e emblemáticas de seus modos de vida. Sabemos que a necessidade,
seja ela alimentar, sexual ou outra, se torna necessidade social em função de uma elaboração
cultural. Isso faz com que não possamos analisar as produções sociais apenas pelo caráter
funcionalista ou com base na razão.
Sendo assim, não podemos compreender as dinâmicas referentes à produção e à apropriação
dos espaços residenciais fechados, sem considerar os aspectos simbólicos que estão associados a esses
empreendimentos, visto que são resultado de uma produção simbólica que perpassa sua
idealização, sua implantação, sua comercialização e sua apropriação. O mercado para esses
empreendimentos é um mercado, ao mesmo tempo, material e simbólico, visto que o se vende
apenas um pedaço de terra, mas também, todos os símbolos que se associam a esses espaços, visto
que além de serem produzidos para atender a uma necessidade “natural” de espaços de moradia,
os empreendimentos residenciais fechados são produzidos para suprir necessidades “artificiais”,
produzidas no plano simbólico.
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É importante destacar que, no âmbito da discussão sobre o imaginário social e as relações
simbólicas, surge a questão das construções individuais dos sujeitos. Castoriadis (1982, p. 175) aponta
que toda tentativa de derivação exaustiva das significações sociais a partir da psiquê individual
parece fadada ao fracasso, por desconhecer a impossibilidade de isolar essa psiquê de um contínuo
social, o qual não pode existir se não está sempre instituído. Para que uma significação social
imaginária exista, são necessários significantes coletivamente disponíveis, mas, sobretudo,
significados que não existem sob a forma segundo a qual existem os significados individuais. Assim,
para analisarmos a apropriação simbólica dos sujeitos, não podemos descolar suas escolhas do
contexto geral das redes simbólicas de sua sociedade, pois somente nesse contexto as ações sociais
individuais podem ser entendidas.
Como aponta Castoriadis (1982, p. 142), tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico,
está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico, embora não se resuma a ele. Os atos reais,
individuais e coletivos e os inumeráveis produtos materiais sem os quais nenhuma sociedade
poderia viver um momento, não são sempre e de forma direta, mbolos; mas são impossíveis,
fora de uma rede simbólica.
O autor destaca, também, que a economia em seu sentido mais amplo, ou seja, no âmbito da
produção e do consumo, passa pela expressão, por excelência, da racionalidade do capitalismo e
das sociedades modernas. Mas é a economia que exibe da maneira mais surpreendente
precisamente porque se pretende integral e exaustivamente racional – a supremacia do imaginário
em todos os níveis. Mais do que em qualquer outra sociedade, o caráter arbitrário, não natural, não
funcional, da definição social das necessidades aparece na sociedade moderna, precisamente devido
ao seu desenvolvimento produtivo, a sua riqueza que lhe permite ir muito além da satisfação das
“necessidades elementares”. Mais do que nenhuma outra sociedade, também, a sociedade moderna
permite ver a fabricação histórica das necessidades que são manufaturadas todos os dias sob nossos
olhos. (CASTORIADIS, 1982, p.188)
As determinações do simbolismo contemplam o componente imaginário que todo mbolo e
todo simbolismo contém. O imaginário utiliza o simbólico para se exprimir e para existir, para poder
passar do virtual a qualquer coisa a mais. As imagens utilizadas na construção do imaginário são
revestidas de valor simbólico e o simbolismo, por sua vez, pressupõe uma capacidade imaginária,
ou seja, a capacidade de ver em uma coisa aquilo que ela não é, de vê-la diferente do que é. Isso
porque o simbolismo supõe a capacidade de estabelecer um nculo permanente entre dois termos,
de maneira que um “representa” o outro. Mas é nas etapas muito desenvolvidas do pensamento
racional lúcido que esses três elementos - o significante, o significado e o vínculo são mantidos
como simultaneamente unidos e distintos, numa relação ao mesmo tempo firme e flexível.
(CASTORIADIS, 1982, p. 155)
De acordo com Bourdieu (1989, p. 10), os símbolos são os instrumentos por excelência da
integração social, porque enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tornam
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possível o consenso acerca do sentido do mundo social, contribuindo para a reprodução dessa
ordem. Sendo assim, cada sociedade possui seu conjunto de mbolos e significados, que podem
ser entendidos dentro de cada contexto histórico-cultural. O mesmo símbolo pode ter significados
diferentes para pessoas que pertencem a períodos históricos e realidades socioespaciais distintos. Isso
porque para a percepção do significado de cada símbolo, precisamos de um conjunto de elementos
cognitivos pré-existentes.
Dentro de cada sociedade temos diferentes campos em que podem ser exercidas as ações sociais,
por exemplo, o campo econômico, científico, artístico, entre outros. Para cada campo, de acordo
com Bourdieu (1996, p. 144), temos um
habitus
específico
.
O
habitus,
segundo o autor, é um corpo
estruturado, um corpo que incorporou as estruturas imanentes de um mundo ou de um setor
particular desse mundo, de um campo, e que estrutura tanto a percepção desse mundo quanto a
ação nesse mundo. Sendo assim, os agentes sociais, dentro de seu
habitus,
agem de acordo com um
conjunto de estruturas específicas, sendo que, muitas vezes nem se dão conta conscientemente que
estão sendo “regidos” por elas.
De acordo com a análise de Bourdieu (1989, p.14), o poder simbólico aparece como sendo
superior aos demais, visto que é ele que sentido ao mundo e orienta condutas em todos os
campos. O poder simbólico, segundo o autor, pelo seu poder de constituir o dado pela enunciação,
de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, assim, a ação sobre
esse mundo, pode ser exercido se for reconhecido como uma relação determinada entre os que
exercem o poder e os que lhe estão sujeitos. O poder simbólico é uma forma transformada,
transfigurada e legitimada, das outras formas de poder, sendo que as diferentes formas de capital
são transformadas em capital simbólico perante um processo de dissimulação e transfiguração. Tal
processo garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo “ignorar-
reconhecer a violência que elas encerram objetivamente e transformando-as assim em poder
simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia”.
Os símbolos são, portanto, instrumentos que servem para a realização do conhecimento e da
construção do mundo objetivo. A escolha desses símbolos, conforme Castoriadis (1982, p. 144/7), não
é nunca nem absolutamente inevitável, nem puramente aleatória. Todo o simbolismo edifica-se
sobre “as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes” e o significante sempre ultrapassa a ligação
rígida a um significado preciso. Na constituição do simbolismo não existem definições fechadas e
transparentes dos símbolos.
Cada sociedade constitui seu simbolismo, mas não dentro de uma liberdade total. O simbolismo
crava-se no natural e se crava no histórico, participando assim, do racional. Tudo isso faz com que
surjam encadeamentos de significantes, relações entre significantes e significados, conexões e
conseqüências, que não eram visadas nem previstas. O simbolismo,
nem livremente escolhido, nem imposto à sociedade, nem simples instrumento
neutro e
medium
transparente, nem opacidade impenetrável e adversidade
irredutível, nem senhor da sociedade, nem escravo flexível da funcionalidade, nem
meio de participação direta e completa em uma ordem racional, determina
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aspectos da vida da sociedade, estando ao mesmo tempo, cheio de interstícios e de
graus de liberdade. (CASTORIADIS, 1982, p.152)
O simbolismo, de acordo com o autor, pode ser apropriado de duas maneiras. Existe uma
utilização imediata do simbólico, em que o sujeito pode se deixar minar por este, mas existe
também, uma utilização lúcida ou refletida. Mesmo se esta última nunca puder ser garantida a
priori, ela se realiza, mostrando assim, a via e a possibilidade de outra relação na qual o simbólico
não é mais autonomizado e pode se adequar ao conteúdo. Assim, não podemos ter a idéia de que
somos fatalmente dominados pelas redes simbólicas, visto que nada que pertence propriamente ao
simbólico impõe de maneira inevitável o domínio de um simbolismo autonomizado na vida social,
nada nesse simbolismo impede seu uso lúcido pela sociedade e uma gama de combinações que
permite certa maleabilidade nas escolhas. (CASTORIADIS, 1982, p. 153)
As relações dos símbolos com seus significantes não é unívoca. Podemos observar segundo
Castoriadis (1982, p. 168) a sobre-determinação dos símbolos, quando vários significados ligam-se ao
mesmo significante e o processo inverso, da sobre-simbolização do sentido, quando o mesmo
significado é carregado por vários significantes, mostrando que a constituição e o consumo das redes
simbólicas é um processo complexo.
Na análise das ações sociais, nada permite, a priori, determinar o lugar por onde passará a
fronteira do simbólico, o ponto a partir do qual o simbólico invade o funcional. Não podemos
também, fixar nem o grau geral de simbolização, que é variável segundo as culturas, nem os fatores
que fazem com que a simbolização se exerça com uma intensidade particular sobre cada aspecto
da sociedade considerada. (CASTORIADIS, 1982, p.150)
Para Bourdieu (1996, p. 19/21), o espaço social é construído, essencialmente, a partir da
distribuição estatística de dois princípios de diferenciação – o capital econômico e o capital cultural.
Os agentes têm mais em comum, quanto mais próximos estejam nessas duas dimensões e, têm
menos em comum, quanto mais distantes estejam nelas. A cada classe de posições sociais,
corresponde uma classe de gostos (
habitus
) e um conjunto sistemático de bens e propriedades,
vinculadas entre si por uma afinidade de estilo. Dessa maneira,
(...) o
habitus
é o princípio gerador e unificador que retraduz as características
intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um
conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas.
Assim como as posições das quais são o produto, os
habitus
são diferenciados; mas
são também diferenciadores. Distintos, distinguidos, eles são também operadores de
distinções: põem em prática princípios de diferenciação de diferentes ou utilizam
diferenciadamente os princípios de diferenciação comuns. (BOURDIEU, 1996, p.22)
Assim, Bourdieu (1989, p. 144) aponta que o espaço social e as diferenças que nele se desenham,
“espontaneamente”, tendem a funcionar simbolicamente como espaço dos estilos de vida, isto é, de
grupos caracterizados por estilos de vida diferentes.
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O consumo é uma forma de estabelecimento da distinção, é através dele que as pessoas
delimitam e sustentam sua posição no espaço social. Bourdieu (1996, p.22) afirma que os
habitus
são diferenciadores. São princípios geradores de práticas distintas e distintivas, mas também servem
como esquemas classificatórios de visões e gostos diferentes. Essas diferenças nas práticas, nos bens
possuídos, nas opiniões expressas, tornam-se diferenças simbólicas que expressam estilos de vida
diferenciados.
Dessa forma o consumo está condenado, segundo Bourdieu (1989, p.145) a funcionar como sinal
distintivo/de distinção. Os agentes sociais são capazes de perceber como sinal distintivo as diferenças
“espontâneas”, assim, são capazes de aumentar intencionalmente essas diferenças de estilo de vida
por meio daquilo que Weber chama de “estilização da vida”.
Mas o caráter distintivo não implica necessariamente a procura da distinção. Todo o consumo e,
mais geralmente, toda a prática, é visível, quer tenha sido ou não realizado a fim de ser visto, ele é
distintivo, quer tenha sido ou não inspirado pela intenção de dar nas vistas, de se singularizar, de
distinguir ou de agir com distinção. (BOURDIEU, 1989, p. 144)
Bourdieu (1996, p. 138) destaca que a Sociologia postula que há sempre uma razão para os
agentes fazerem o que fazem, razão que deve ser descoberta para transformar uma série de
condutas aparentemente incoerentes e arbitrárias, em uma série coerente, em algo que se possa
compreender a partir de um princípio único ou de um conjunto coerente de princípios. Nesse
sentido, a Sociologia defende que os agentes sociais o realizam atos gratuitos, desinteressados.
Essa visão é perigosa e pode nos levar a reduções no sentido do utilitarismo e do economicismo,
porque, segundo o autor, os agentes são tratados como se fossem movidos apenas por ações
conscientes, como se colocassem para si mesmos, os objetos de sua ação e agissem de maneira a
obter o máximo de eficácia com o menor custo. Outro problema é reduzir os aspectos que podem
motivar as ações dos agentes sociais apenas ao interesse econômico, ou seja, a um lucro em dinheiro.
(BOURDIEU, 1996, p. 142)
Para refutar essas duas reduções, Bourdieu destaca a relação de cumplicidade ontológica entre
o
habitus
e o campo. Entre os agentes e o mundo social uma relação de cumplicidade infra-
consciente, sendo que os agentes utilizam constantemente em sua prática, teses que não são
colocadas como tais. Os agentes sociais que têm o sentido do jogo”, que incorporaram uma cadeia
de esquemas práticos de percepção e de apreciação que funcionam, seja como instrumentos de
construção da realidade, seja como princípios de visão e de divisão do universo no qual eles se
movem, não têm necessidade de colocar como fins, os objetivos de suas práticas. (BOURDIEU, 1996,
p. 143)
No que diz respeito à redução das ações aos interesses econômicos, Bourdieu (1996, p. 147/149)
destaca que o erro consiste em considerar que as leis de funcionamento do campo econômico valem
para todos os campos. Na teoria dos campos, temos a constatação de que o mundo social é lugar
de um processo de diferenciação progressiva. A evolução das sociedades tende a fazer com que
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surjam campos com leis próprias, autônomas. Assim, não se pode utilizar as leis do campo
econômico para compreender as ações engendradas em outros campos, que apresentam princípios
e critérios diferentes. Cada campo, ao se produzir, produz uma forma de interesse que, do ponto de
vista de outro campo, pode até parecer desinteresse. Dessa maneira, as ações da sociedade nem
sempre tem objetivos conscientemente definidos e relacionados com o campo econômico. Existe
uma gama de aspectos subjetivos que influenciam as práticas socioespaciais.
O processo de associação de empreendimentos imobiliários a mbolos que denotam estilos de
vida diferenciados e diferenciadores é feito por meio dos anúncios publicitários. De acordo com
Caldeira (2000, p. 264), o objetivo das propagandas é seduzir por meio de um repertório de
imagens e valores que falam à sensibilidade e à fantasia das pessoas, a fim de atingir seus desejos.
Para isso, os anúncios precisam articular imagens que as pessoas possam entender e reconhecer
como suas. Portanto, as propagandas imobiliárias não agem somente no sentido de responder a
uma demanda dos consumidores, elas elaboram e ajudam a moldar os desejos e valores das
pessoas, o que resulta na produção de novas “necessidades”.
Segundo Baudrillard (1969, p. 186/187/202), no âmbito da sociedade de consumo, a
funcionalidade dos objetos passa a ser, quase que completamente, secundária e os discursos e
imagens que eles possuem são, em grande medida, alegóricos, construídos pela publicidade que
produzira o objeto ideal. É a publicidade que nos dirá o que estamos consumindo por meio dos
objetos. Além das informações sobre os produtos, a publicidade é responsável pela persuasão, pelo
convencimento de que precisamos” de determinados produtos. A publicidade age por uma gica
própria, que não é a do enunciado e da prova, mas sim, a da fábula e a da adesão. Os publicitários
não se interessam em falar dos processos objetivos de produção e de mercado e omitem suas
contradições. Como num sonho, a publicidade fixa e desvia um potencial imaginário, sendo uma
prática subjetiva individual.
No se cree em lo que se dice, pero se obra como si se creyese. La “demonstración”
del producto no convence em el fondo a nadie: sirve para racionalizar la compra,
que de todas maneras precede o desborda los motivos racionales. Sin embargo, sin
“creer” em este producto, creo em la publicidad que me quiere hacer creer.
(BAUDRILLARD, 1969, p. 188)
No caso dos empreendimentos residenciais fechados, há um processo de produção simbólica que
associa esses espaços com a forma ideal de se morar. Caldeira (2000, p. 265) aponta que os
anúncios publicitários vêm elaborando um novo conceito de moradia, cuja versão ideal são os
loteamentos fechados. Esse novo conceito de moradia surge da articulação de cinco elementos
básicos: segurança, isolamento, homogeneidade social, equipamentos e serviços. Segundo a autora,
os loteamentos fechados são mostrados nos anúncios como sendo mundos separados da cidade
deteriorada, que oferecem um “estilo de vida total”. Dessa forma, os loteamentos fechados não
constituem apenas empreendimentos residenciais com uma organização espacial diferenciada. São
espaços capazes de oferecer uma qualidade de vida melhor em comparação à cidade aberta.
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Para Mendez e Chumillas (2004), as lógicas de mercado são impostas às novas formas
residenciais fechadas, considerando as comunidades cercadas como produtos, essencialmente,
resultantes da promoção imobiliária. Apontam que o amplo repertório de empreendimentos
residenciais fechados em Cidade Juarez, no México, exibe em seus anúncios publicitários imagens,
símbolos e palavras que remetem e explicitam a identidade pré-fabricada dos estilos de vida que
vendem.
Analisando anúncios publicitários de empreendimentos fechados de São Paulo, a partir da
década de 1970, Caldeira (2000, p. 266-267) destaca a importância da publicidade na criação de
imagens que exaltavam a qualidade desses espaços, criando novas demandas na sociedade, que
passou a “precisar” morar em locais mais seguros, com mais vegetação, mais equipamentos de lazer,
enfim, em espaços que garantam além da exclusividade, a “felicidade”, a “harmonia” e a
“liberdade”. A autora mostra essa relação entre os anúncios publicitários e a criação de novas
necessidades ao analisar uma propaganda que apresentava, pelo menos dez anos antes de crimes
tidos como violentos terem aumentado e se tornado uma preocupação dos moradores de São
Paulo, a insegurança como um valor importante na compra de um empreendimento imobiliário.
A partir do estudo dos bairros privados e dos countries na Argentina, Svampa (2001, p. 86)
aponta que os especialistas em
marketing
realizaram um processo de síntese e estandardização de
alguns valores da classe média, transformando-os em fórmulas e categorias associadas a
determinados estilos de vida. Duas imagens associadas aos empreendimentos fechados argentinos,
destacadas pela autora, são o estilo de vida verde e as referências ao ruralismo idílico.
Nos anúncios publicitários de espaços destinados ao estilo de vida verde, são comuns as imagens
de crianças correndo por gramados e famílias felizes com seus animais de estimação. As campanhas
publicitárias repetem os slogans que anunciam “o melhor de uma cidade”, “viver com estilo”,
“cidade verde: uma casa ao alcance de suas mãos”. Os anúncios que se referem ao ruralismo idílico
remetem ao passado ligado ao campo e destacam a exclusividade, a tranqüilidade, a natureza e a
imagem das antigas estâncias como valores qualitativos desses empreendimentos. (SVAMPA, 2001,
p. 87)
Assim, os anúncios publicitários são responsáveis por agregar imagens e valores aos
empreendimentos residenciais, que se tornam, além de espaços de moradia, espaços onde se podem
exercer estilos de vida específicos e diferenciados. Por exemplo, quando as pessoas identificam nas
imagens associadas aos espaços verdes, valores e símbolos que expressam o estilo de vida que
consideram ideal para elas e optam por viver em um desses espaços, acabam consumindo um
conjunto de imagens reunidas de forma complexa, que servem para identificá-las, tanto no nível
pessoal, quanto distingui-las perante as outras pessoas.
Svampa (2001, p. 88/94) constata que os agentes diretamente envolvidos no processo de
apropriação desses espaços fechados apresentam um discurso literal, que repete os tópicos
divulgados pelas campanhas publicitárias. Isso é uma constatação de que as pessoas introjetam as
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imagens vendidas pelas campanhas publicitárias, fazendo com que elas façam parte de seus
discursos e, em alguns casos, de suas práticas cotidianas. As vantagens de se morar em
empreendimentos residenciais fechados são exaltadas pelos moradores, que exibem
constantemente, por meio da repetição dos slogans das campanhas publicitárias, os símbolos que
distinguem seus novos estilos de vida.
Para Barajas (2006, p. 125), o modelo de urbanização pautado no fechamento nutre-se mais a
partir da oferta do que pela real demanda, visto que os empreendimentos residenciais fechados são
os produtos imobiliários de maior sucesso nos últimos tempos, justamente porque as estratégias de
venda desenvolvem-se no sentido de prometer elementos atrativos, como segurança, exclusividade
social e qualidades ambientais superiores às encontradas no restante da cidade. Sendo assim,
destaca que a fórmula para o êxito das ações imobiliárias baseadas no urbanismo defensivo consiste
em: demarcar o empreendimento com muros, agregar valor por meio da dotação de espaços
comuns e fazer uso de uma boa campanha publicitária.
De acordo com Sposito (2003), os incorporadores imobiliários apresentam, continuamente,
novos produtos aos quais associam novos valores, visto que o principal alvo dos produtores do
espaço urbano passou a ser aqueles que possuíam imóveis residenciais e “só se disporiam a uma
nova aquisição se a ela se associassem qualidades objetivas e/ou subjetivas que justificassem a troca
de um local de moradia por outro ou, em outras palavras, de um produto imobiliário por outro”.
Para a autora, os loteamentos fechados são mercadorias imobiliárias, que se apresentam com um
invólucro de vários atributos modernos, sendo o poder de consumo desses espaços, o que designa a
distinção social dos moradores desses enclaves.
Na análise de Sobarzo (2006, p. 204/205), as estratégias de reprodução de capital estão sempre
criando novos produtos para vender novas formas, deixando obsoletas as antigas, apresentando o
novo e o moderno como desejo e aspiração para o segmento que possui a capacidade financeira
para consumi-los. Para o autor, os loteamentos fechados tendem a se consolidar, especialmente no
plano simbólico, como a forma moderna de morar, própria dos grupos de maior poder aquisitivo.
Dessa forma, a necessidade básica de dispor de um local para morar reveste-se de
outras dimensões, especialmente no plano simbólico, que conferem aos loteamentos
fechados uma característica especial e os colocam como “a forma de morar”
quase única para os segmentos de maior poder aquisitivo. Novamente, devemos
destacar como nas estratégias de comercialização são explorados elementos de uma
modernidade superficial, que promete vida moderna, arte de viver com estilo,
primeiro mundo, etc. Essas construções simbólicas alimentam o desejo e a aspiração
da população para alcançar esse “primeiro mundo”, fato que pode ser relacionado
às altas vendas que cada novo loteamento fechado provoca ao ser lançado no
mercado, como se existisse uma fila de ávidos e ansiosos compradores esperando
pelo seu ticket para a modernidade prometida atrás dos muros. (SOBARZO, 2006,
p. 207, grifo do autor)
Sendo assim, para o entendimento da proliferação dos empreendimentos residenciais fechados
na atualidade, precisamos analisar, além das causas estruturais que influenciam o comportamento
da sociedade, as produções simlicas que são associadas a esses empreendimentos, visto que os
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promotores imobiliários desenvolvem ações que tendem a manipular os desejos e aspirações das
pessoas, vendendo os espaços residenciais fechados como a solução para se viver longe dos
problemas urbanos. Os espaços fechados são idealizados como verdadeiros paraísos, onde é possível
se isolar do restante da cidade e das pessoas indesejadas e, além disso, viver com estilo e
modernidade, estabelecendo um processo de distinção social.
1.1.3. - Empreendimentos residenciais fechados: entendendo as decorrências
socioespaciais a partir de sua produção e apropriação
De acordo com Sposito (2004, p. 135), novas formas de produção do espaço urbano contribuem
para a instauração de novas práticas socioespaciais e propiciam a transformação do próprio sentido
da cidade, no âmbito da historicidade e no da práxis, tomando como referência a propositura de
Lefebvre. Dessa forma, a produção dos novos
habitats
fechados, sejam eles condomínios ou
loteamentos, implica em mudanças na estruturação das cidades e nas formas pelas quais os espaços
urbanos são apreendidos e apropriados pelos seus habitantes. Nessa parte do texto, destacaremos
algumas alterações que vêm ocorrendo nas cidades, em geral, a partir da implantação dos
empreendimentos residenciais fechados.
Para o reconhecimento da complexidade do processo de urbanização e da multiplicidade de
formas urbanas que são engendradas por ele e lhes dão sustentação, Sposito (2004, p.124) ressalta
que é preciso, guardadas as diferenças, realizar um esforço de apreensão do que é comum e
essencial para se compreender o conjunto das cidades contemporâneas.
Apresentamos, a seguir, algumas considerações que, segundo a autora, podem ser generalizadas
para a maior parte das grandes cidades brasileiras, visto que denotam uma lógica geral do processo
de urbanização, mas que devem ser analisadas, considerando-se as especificidades desses processos,
no caso do entendimento das dinâmicas que vêm ocorrendo nas cidades médias, pois essas
dinâmicas se realizam diferentemente, segundo diversos níveis de determinação, como o tamanho e
a natureza dos papéis desempenhados pelas cidades. (2004, p.135)
O processo de produção dos novos
habitats
fechados modifica a morfologia urbana, mas
segundo Sposito (2006, p.181) uma defasagem temporal entre a origem da ocorrência de novas
dinâmicas que reorientam o contínuo processo de estruturação das cidades e a efetiva redefinição
das morfologias urbanas. Para a autora,
Duas ordens de fatores explicam esse descompasso temporal. Primeiramente, é
preciso considerar que a redefinição da morfologia ocorre quando a intensidade do
fenômeno e sua freqüência se tornam prevalentes nas lógicas que orientam o
movimento das determinações socioespaciais urbanas, não necessariamente em
número, mas em importância.
(...) Em segundo lugar, há que se considerar que uma nova dinâmica que se
instaura no processo de produção do espaço urbano não é, necessariamente, capaz
de redefinir, sozinha, a morfologia urbana. Ao contrário, é a articulação entre
diferentes dinâmicas que possibilita a reorientação das lógicas, segundo as quais a
estrutura urbana vai se reorganizar. Desse ponto de vista, o reconhecimento de
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uma nova morfologia urbana é indicativo de que se vive um processo de ruptura
no movimento de estruturação e que, portanto, há reestruturação dos espaços
urbanos. (SPOSITO, 26, p. 182)
Considerando esses aspectos, Sposito (2004, p. 135/136) aponta que a produção dos
empreendimentos residenciais fechados faz parte de uma dinâmica que reorienta a estruturação
urbana, podendo-se reconhecer sua redefinição, ou seja, a instauração de uma reestruturação
urbana, que se expressa, basicamente, por dois processos: a) a complexificação da estrutura
urbana, gerando o aparecimento de “periferias” no centro e “centralidades” na periferia; b)
fragmentação socioespacial das cidades, já que a segregação se acentua e, conseqüentemente, a
possibilidade de convivência entre as diferenças se atenua”.
A autora (2004, p.131/133) destaca que os conteúdos sociais e econômicos da periferia urbana
começam a se alterar, nas cidades médias, em meados da década de 1980, com as primeiras
iniciativas de implantação de loteamentos fechados nessas cidades, que vão se instaurar, de forma
mais plena, no decorrer dos anos de 1990, quando aumenta o número desses loteamentos. Essa
agregação de novos conteúdos à periferia urbana acontece porque a localização escolhida para a
implantação desses empreendimentos é, geralmente, periférica. Dessa forma, a periferia urbana
que sempre esteve associada, nas cidades brasileiras, à pobreza e à precariedade de meios de
consumo coletivo – infra-estruturas, equipamentos e serviços urbanos – passa a receber novos
conteúdos a partir da produção de empreendimentos residenciais fechados, destinados aos
segmentos de maior poder aquisitivo, nessas áreas.
Em muitos casos, além da implantação dos espaços residenciais fechados, as periferias urbanas
vêm recebendo também, um conjunto de infra-estruturas e serviços produzidos para sustentar as
práticas socioespaciais de consumo das pessoas de maior poder aquisitivo, como
shopping centers,
centros de eventos, supermercados, hotéis, universidades, entre outros. Esses equipamentos
comerciais e de serviços, juntamente com os novos
habitats
, ao serem implantados em novas
localizações dentro das cidades, acabam gerando alterações das relações de centralidade entre os
espaços urbanos.
Silva (2006, p. 217) aponta que a produção dos empreendimentos residenciais fechados
contribui para criar homogeneidades internas às áreas em que estão implantados. Os fluxos em
direção a essas áreas se estabelecem a partir do poder aquisitivo das pessoas, fato que:
(...) complexifica e dialetiza a estruturação do espaço urbano e redefine a
centralidade, de maneira que as lógicas de localização são alteradas, havendo a
tendência à policentralidade, ou seja, à constituição de áreas centrais que se
diferenciam, se dispersam e/ou contribuem para a segregação. Tal tendência se
amplia na medida em que as facilidades de transporte possibilitam que a
seletividade de acesso às áreas se amplie para a escala da rede urbana, o que
redefine também, a centralidade interurbana. (SILVA, 2006, p. 218)
Portanto, a incorporação de novos conteúdos às periferias, às áreas que anteriormente
constituíam vazios urbanos ou que eram pouco valorizadas e até mesmo estigmatizadas, por meio
da implantação de novos empreendimentos residenciais, comerciais e de serviços, faz com que as
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centralidades se alterem, visto que os segmentos de maior poder aquisitivo, diante de suas
possibilidades maiores de acessibilidade, possuem mais capacidade de selecionar os espaços em que
vão consumir, trabalhar, morar e desfrutar seus momentos de lazer. Sposito (2004, p. 134) destaca
que essas novas centralidades resultam de estratégias locacionais de proprietários fundiários e
incorporadores imobiliários, que têm como objetivo, ao criá-las, “agregar valor ao solo e aos imóveis
que foram produzidos em áreas cujo preço fundiário e imobiliário era, anteriormente muito
menor”.
Dessa maneira, de acordo com Sposito (2004, p. 135), surgem “periferias” no centro e
“centralidades” nas periferias. Isso porque, muitas vezes, o centro tradicional tem seus papéis e sua
centralidade diminuídos diante da constituição de novas áreas que oferecem os produtos e serviços
que anteriormente podiam ser encontrados nesse espaço. Essas novas áreas, ao atraírem
determinados setores da sociedade, em especial os de alta renda, constituem novas centralidades,
em lugares que antes constituíam espaços periféricos.
Além da alteração das relações de centralidade nas cidades e a agregação de novos conteúdos
às áreas periféricas, a implantação dos empreendimentos residenciais fechados contribui no processo
denominado por Dematteis (1998) como cidade difusa ou urbanização reticular. Esse processo é
caracterizado pelo autor como sendo resultado da desconcentração funcional, sendo que a cidade
difusa difere da simples difusão do tecido urbano porque esdotada de uma estrutura funcional
urbana autônoma, que lhe é própria. Assim, a difusão reticular é caracterizada pela existência de
tecidos mistos, residenciais e produtivos (industriais, atividades terciárias, agroindustriais, turísticos).
Sendo assim, a produção de novos
habitats
fechados, assim como a implantação de novos
equipamentos e serviços urbanos, em áreas cada vez mais descontínuas em relação ao tecido
urbano constituído, gerando dispersão da vida urbana, colabora com o desenvolvimento do
processo de urbanização difusa que constitui um dos conteúdos da urbanização contemporânea.
Outra alteração urbana propiciada pelo novo padrão de produção do espaço representado
pelos empreendimentos residenciais fechados é o que Caldeira (2000, p. 255) denomina de
paisagens da coexistência de pobreza e riqueza. “Diferentes classes sociais vivem mais próximas
umas das outras em algumas áreas, mas são mantidas separadas por barreiras físicas e sistemas de
identificação e controle”. Assim, as distâncias físicas que separavam os diferentes segmentos sociais,
características do padrão centro-periferia, vão se encolhendo, mas a distância social é mantida e
reforçada pelos muros e pelos sistemas de vigilância mais ostensivos. Assim, ficam mais evidentes na
paisagem urbana as marcas dos processos de segregação socioespacial.
Roitman (2003) destaca que um dos efeitos sociais mais negativos da produção dos espaços
residenciais fechados é a segregação social que eles geram, ao se constituírem como enclaves
exclusivos que se separam do restante da cidade, transformando barreiras sociais em barreiras
físicas. A autora destaca que a segregação não é um fenômeno novo no processo de
desenvolvimento das cidades. O que diferencia o processo de segregação atual, pautado na
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produção dos empreendimentos residenciais fechados, é o fato de ele ser mais extremo, mais
intenso, mais visível e mais explícito.
De acordo com Lefebvre (1991, p. 95) “as segregações que destroem morfologicamente a cidade
e que ameaçam a vida urbana não podem ser tomadas por efeito nem de acasos, nem de
conjunturas locais”. Para o autor, a segregação é revestida de três aspectos: espontâneo,
proveniente das rendas e das ideologias; – voluntário, estabelecendo espaços separados; e
programado, sob o pretexto de arrumação e de plano.
Bitoun (2003) discute o caráter da segregação gerada a partir dos loteamentos fechados,
considerando que o isolamento dos segmentos mais privilegiados nesses espaços não se trata de um
processo segregativo, visto que a iniciativa da separação parte da escolha daqueles que se isolam.
Assim, para o autor, os outros segmentos, menos privilegiados, é que são segregados a partir da
produção e apropriação dos novos
habitats
e não os que escolhem morar nesse tipo de
empreendimento.
Considerando que o processo de segregação socioespacial, conforme Lefebvre (2004, p. 124),
consiste em separação, em rompimento de relações, na inserção de uma ordem totalitária, que tem
por objetivo estratégico quebrar a totalidade concreta e espedaçar o urbano, analisamos o processo
que resulta da implantação e da apropriação dos espaços residenciais fechados como sendo um
processo que relaciona segregados e segregadores. Isso porque consideramos que as pessoas que
escolhem habitar em empreendimentos residenciais fechados estão isoladas e separadas, do restante
da cidade e das pessoas, por meio de uma opção pela auto-segregação. Ao mesmo tempo, os
espaços residenciais fechados são elementos segregadores, no conjunto da estrutura urbana, visto
que impõem a separação e o distanciamento entre os segmentos sociais.
Dessa forma, a produção dos empreendimentos residenciais fechados e dos enclaves fortificados,
em geral, ao possibilitar a circunscrição das práticas cotidianas a setores determinados da cidade,
faz com que, além da segregação, surjam processos de fragmentação socioespacial. Para Roitman
(2003), a fragmentação urbana consiste no processo de divisão das cidades em parcelas isoladas dos
seus arredores, que possuem a capacidade de possibilitar a satisfação das necessidades cotidianas
dentro de seus próprios limites.
Para Silva e Sposito (2007, p. 112) com o processo de redefinição das centralidades urbanas, há
uma modificação na estrutura urbana que altera a convivência entre as pessoas que nela habitam
ou freqüentam.
uma separação considerável decorrente dos diferentes padrões de poder
aquisitivo, o que se mostra decisivo nas escolhas das áreas a serem freqüentadas e
evidencia a segmentação existente no espaço urbano. A mudança de lógica da
produção do espaço urbano e os interesses que a engendram provocam um
processo de fragmentação do espaço urbano, decorrente da emergência de áreas
que podem ser diferenciadas claramente pelo padrão de rendimento. (SILVA e
SPOSITO, 2007, p. 112)
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De acordo com Janoschka e Glasze (2003, p. 16), o aumento da produção de estruturas
denominadas como enclaves centros comerciais e espaços residenciais fechados traz um
incremento para a fragmentação física da cidade, ou seja, contribuem para a desintegração
espacial do tecido urbano consolidado. Esses empreendimentos também, segundo os autores,
promovem a fragmentação social da cidade, que significa a retirada de certos segmentos dos
espaços públicos e uma organização da vida que é orientada para dentro”, evitando o contato
direto com pessoas que se distinguem de seus estilos de vida.
Segundo Salgueiro (1997, p. 189), a cidade fragmenta-se e perde sua unidade funcional. A
fragmentação corresponde à existência de enclaves distintos e sem continuidade com a estrutura
socioespacial que os cerca. Esse processo traduz o aumento intenso da diferenciação e a existência
de rupturas entre os vários grupos urbanos, que substituem a continuidade anterior, sendo visível,
particularmente, no domínio da estrutura social e no território.
Os loteamentos fechados e os
shopping centers
constituem, conforme Sobarzo (2004, p. 173 -
177), espaços de uso coletivo orientados a extratos sociais que procuram e valorizam as relações de
sociabilidade entre iguais e, por isso, contribuem para a segmentação socioespacial e também para
a segregação. A partir disso, o autor entende que a apropriação possível de ser realizada nesses
espaços seja uma apropriação limitada, porque não é realizada no espaço público e, nesse sentido,
não conta da diversidade da cidade, visto que limita o convívio entre as diferenças. A
apropriação desses espaços pode ser considerada limitada também, pelo fato de que as práticas
cotidianas nos loteamentos fechados e no uso de
shopping centers
são práticas regulamentadas e
normatizadas, que limitam a apropriação como uma instância de superação e subversão da
dominação.
Dessa forma, Sobarzo (2006, p. 203) destaca que esses novos produtos imobiliários alimentam,
reforçam e respondem ao desejo de um segmento da população – o de maior poder aquisitivo – de
se diferenciar, dispondo na cidade de seus espaços próprios. Para o autor,
A dinâmica de produção dos enclaves fortificados pode ser lida, seguindo os termos
cunhados por Lefebvre (1992), como a tendência de criar um espaço global e
homogêneo, que esses empreendimentos podem ser encontrados nas diversas
cidades, embora sejam menos freqüentes em cidades pequenas. Também, a mesma
dinâmica fragmenta os espaços, pois os enclaves têm poucas ou nulas relações
com as suas adjacências, e hierarquiza os lugares, uma vez que essas iniciativas
potenciam os espaços que dispõem dessas novas formas de moradia, consumo, lazer
e produção (...). (SOBARZO, 2006, p. 203, grifos do autor)
Sendo assim, podemos considerar que a produção dos espaços residenciais fechados gera um
processo de fragmentação socioespacial, expresso no âmbito da morfologia urbana e na
segmentação da apropriação dos espaços. De acordo com Silva e Sposito (2007, p. 112), essa
segmentação reduz as possibilidades de convívio entre as diferenças sociais, ou seja, é uma forma de
ampliar a diferenciação interna nos espaços urbanos.
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Outro aspecto que se modifica a partir da emergência dessas novas formas de se produzir e de
se vivenciar os espaços urbanos, diz respeito às relações entre espaço público e espaço privado.
uma tendência, principalmente dos segmentos de maior poder aquisitivo, de se privilegiar os
espaços privados, em detrimento dos espaços públicos para a realização de suas atividades
cotidianas.
No entanto, como demonstra Sobarzo (2004, p. 16), o que se verifica não é uma morte do
espaço público e sim uma alteração de seu conteúdo. Nesse sentido, o autor (2004, p.189) mostra-
nos que o espaço público continua sendo uma dimensão importante de convívio e sociabilidade,
mesmo em se tratando de uma sociabilidade segmentada.
O ideal moderno de vida pública, segundo Caldeira (2000, p. 302-3), tem como elementos
básicos: a primazia e a abertura de ruas, a circulação livre, o uso público e espontâneo de ruas e
praças e a presença de pessoas de diferentes grupos sociais passeando e observando os outros que
passam. A autora destaca que, no centro dessa concepção ideal de vida pública, temos duas noções
relacionadas: o espaço da cidade é um espaço aberto para ser usado e aproveitado por todos, e a
sociedade de consumo que ela abriga é acessível a todos.
Dessa maneira, a percepção de espaço público que vem sendo contraposta atualmente pelas
novas formas de
habitas
urbanos é a oriunda do ideal moderno, que define o espaço público como
sendo aberto e acessível a todos, onde há o encontro e a convivência entre os diferentes.
Devemos ressaltar, no entanto, conforme Sobarzo (2004, p.22), que o espaço público não pode
e nem deve ser idealizado como um local de convívio próximo e profundo entre a diversidade, visto
que sua concepção moderna colocava-o como um possibilitador de encontros impessoais e
civilizados, que obedeciam e respeitavam a lógica do próprio sistema, assumidamente desigual.
Dessa maneira, a simples presença de segmentos diferentes num mesmo espaço não indica que
esteja havendo trocas e formas de relacionamento profundas, visto que muitas vezes, as pessoas
não apresentam disposição e interesse para prestar atenção ao que os outros têm para oferecer,
não havendo assim, uma possibilidade de interlocução entre a alteridade.
Portanto, a idéia de espaço público como sendo um espaço sem fronteiras, acessível a todos, faz
parte de uma construção idealizada do espaço público. Segundo Caldeira (2000, p. 303), as
cidades modernas sempre foram marcadas por desigualdades sociais e segregação espacial, sendo
que a apropriação de seus espaços é feita de maneira diferenciada por diversos grupos, de acordo
com sua posição social e poder. Sendo assim, as alterações que vêm sendo realizadas em relação aos
espaços públicos contemporâneos, não significam a superação de um modelo perfeito e acabado de
espaço de convívio social, visto que o ideal moderno nunca foi completamente realizado. Nesse
sentido, o que vem sendo superada é a noção ideal do espaço público.
Segundo Sobarzo (2006, p. 95), a realidade atual impõe-nos grandes questionamentos para a
abordagem do espaço público. A consolidação dos novos produtos imobiliários representados pelos
loteamentos fechados,
shopping centers
, centros empresariais, parques temáticos, centros turísticos,
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entre outros, questionam a significação do espaço público. “Os novos espaços “públicos”, realmente
semipúblicos ou pseudopúblicos, são muitas vezes, caricaturas da vida social, negando ou ocultando
as diferenças e os conflitos, tornando a sociabilidade mais
“clean”
e, em último termo, negando-a”.
O autor (2006, p. 98) destaca, assim, que o surgimento dos espaços próprios das elites está quase
sempre associado ao questionamento da relação público-privado.
Em primeiro lugar, porque os espaços da elite são fundamentalmente espaços
privados ou de acesso restrito. Em segundo lugar, porque na produção desses
espaços quase sempre está envolvido o poder público, seja por ação – aplicação de
recursos, implementação de obras, criação de leis ou por omissão deixando as
coisas acontecerem à margem da legalidade. (SOBARZO, 2006, p. 98)
Dessa maneira, concluímos que a produção e a apropriação dos empreendimentos residenciais
fechados alteram as relações entre os espaços públicos e privados, pois revelam uma tendência a
não se valorizarem mais os elementos ligados à vida pública, ou seja, ao encontro entre as
diferenças. O que alguns segmentos da sociedade, principalmente os mais privilegiados, desejam
atualmente, é a produção de espaços exclusivos, com acesso controlado, na tentativa de deixar de
fora de seus muros os indesejáveis, no caso, os diferentes deles, promovendo um processo de
esvaziamento dos espaços públicos. Esse desejo é contraditório, visto que as pessoas que escolhem
viver dentro dos muros não conseguem realizar esse intuito completamente, pois continuam
precisando dos serviços prestados pelos segmentos de menor poder aquisitivo empregadas
domésticas, jardineiros e os próprios porteiros e vigias – dentro dos empreendimentos fechados.
Constatamos que a produção e a apropriação dos empreendimentos residenciais fechados
atuam num processo de reconfiguração dos espaços e das relações estabelecidas no âmbito da vida
urbana. Assim, a morfologia e as formas de sociabilidade nas cidades são alteradas, evidenciando
tendências em direção à urbanização difusa, à segmentação da apropriação dos espaços urbanos, à
segregação socioespacial, à fragmentação socioespacial, à constituição de novas centralidades, à
agregação de novos conteúdos às periferias, e à redefinição das relações entre espaços públicos e
espaços privados. Dessa forma, as dinâmicas urbanas precisam ser analisadas segundo novos
referenciais, que contemplem os novos conteúdos associados à urbanização contemporânea.
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37
-
CAPÍTULO II
LOTEAMENTOS FECHADOS RIBEIRINHOS: PRINCIPAIS
CARACTERÍSTICAS E ESPECIFICIDADES
O descanso do guerreiro
Carlos Lyra
Um caminho de coqueiro
Que num ranchinho
Do interior
Um pomar e um canteiro
Donde vem um cheiro
Bom de fruta e de flor
E sendo passarinheiro
Ouvir sem cativeiro
O pássaro cantor
E almoçar feijão tropeiro
Feito por mineiro
Que é de bom sabor
É o descanso do guerreiro
Que merece ter todo trabalhador
À sombra do abacateiro
A prosa com o caseiro
Que é conversador
A cigarra no terreiro
O galo no poleiro
A noite já chegou
E quando a luz do candeeiro
Com meu filho herdeiro
Dorme o meu amor
Meu violão seresteiro
Pelo mundo inteiro
Roga do Senhor
O descanso do guerreiro
Que merece ter todo trabalhador
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38
-
Como destacamos, o objetivo central do presente trabalho é analisar os processos objetivos e
simbólicos que permeiam a produção e a apropriação de empreendimentos residenciais fechados, a
partir da análise de uma modalidade específica, que denominamos loteamentos fechados
ribeirinhos.
A partir das entrevistas realizadas tanto com proprietários de casas nesses empreendimentos,
quanto com aqueles que ficam fora de seus muros
3
, coletamos depoimentos como os apresentados
a seguir:
“O meu rancho aqui no condomínio é meu paraíso. É o único lugar onde eu posso
vir e ter sossego. Aqui é uma delícia, tem o rio, as quadras, o barulho dos
passarinhos quando a gente acorda. Além disso, é um lugar super seguro, a gente
pode dormir com a porta aberta. A preocupação que a gente tem na cidade, não
precisamos ter aqui”.
(52 anos, comerciante, proprietário de lote no loteamento
Belvedere, em Penápolis)
“Olha só a paisagem desse lugar! Quer coisa melhor! É muito bom passar os fins de
semana aqui, pescar, nadar, jogar bola, beber uma cerveja. É um lugar de
descontração, festa, mesmo. Não é exagero se eu falar que minha vida mudou
depois que eu comprei esse rancho aqui”.
(38 anos, escrevente judiciário,
proprietário de lote no loteamento Portal da Praia, Buritama)
“Eu considero que atualmente, é muito necessário ter um lugar como esse para a
gente descansar, passar nossos momentos de lazer. Aqui a gente tem um contato
mais direto com a Natureza, coisa que foi ficando meio esquecida, a gente pode
compartilhar nosso dia com nossos filhos, nossos amigos. (...) Um diferencial que nós
encontramos aqui foi a segurança, porque do jeito que as coisas estão hoje, a
segurança é fundamental. Aqui nós encontramos tudo isso”.
(48 anos, empresária,
proprietária de lote no loteamento Orla Um, Buritama)
“Ah! Deve ser muito bom ter uma casa lá, né? Quem que não vai querer ter um
rancho para descansar? Num condomínio então! (...) Eu considero que , as
melhores coisas devem ser a Natureza, porque ali você pode aproveitar o rio, os
peixes, a paisagem; também a segurança, porque não pode entrar qualquer
pessoa e tudo, ? É só olhar para aquelas casas bonitas dentro, jet ski e tudo!”
(56 anos, comerciante, residente na cidade de Buritama)
É uma forma de vida diferente, para quem tem dinheiro. Não é para pobre não.
Mas deve ser bom, para quem pode pagar. (...) Deve ser bom passar os fins de
semana lá, nadar no rio, andar de barco, fazer churrasco, caminhar de tardinha.
Deve ser bom também, ter vizinho rico, olha que beleza! Parece que você se
sente até melhor, é chic!”
(51 anos, frentista, residente na cidade de Penápolis)
“Sem dúvida são lugares bons, agradáveis, que oferecem um contato com a
Natureza, tranqüilidade, vigilância, controle. Então é para quem gosta de sossego
mesmo. Ir para e fazer um jardim, tratar dos passarinhos, sei, lá! Desestressar
mesmo. Pode ser considerado como o cantinho do sossego”.
(41 anos, contador,
residente na cidade de Buritama)
A partir desses depoimentos e dos expressados pelos demais entrevistados, juntamente com as
observações que realizamos em campo, identificamos algumas características que consideramos
como centrais para o entendimento dos conteúdos dos loteamentos fechados ribeirinhos.
Primeiramente, são espaços destinados à segunda residência, ao lazer e ao descanso, estando
3
Ver apêndice metodológico em anexo.
-
39
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voltados à tranqüilidade e à descontração, possibilitando um contato mais direto com a Natureza,
ao passo que se localizam nas margens de rios e estão próximos de algumas áreas de preservação
ambiental, que apresentam matas nativas ou reflorestadas. São espaços associados ao
compartilhamento do tempo com a família e com os amigos. Outra característica destacada pelos
entrevistados é a segurança que esses espaços oferecem, visto que são empreendimentos fechados
por muros e cercas, que possuem acesso controlado e vigilância “24 horas”. São espaços cujo público
alvo são os segmentos de médio a alto poder aquisitivo, que buscam exclusividade e
homogeneidade social também em seus espaços de lazer. Outro fator observado é a grande
idealização que se faz desses empreendimentos, tidos como
“paraísos”, “refúgios”, “cantinhos de
sossego”, “tudo de bom”, “chic!”
. É interessante ressaltar que essa idealização é feita tanto por parte
dos proprietários de casas nesses empreendimentos, quanto pelas pessoas de diferentes segmentos
sociais entrevistadas, que residem nos municípios em que esses espaços estão implantados e que não
possuem casa nesses empreendimentos, sendo, portanto, os que estão fora dos muros.
Dessa forma, os loteamentos fechados ribeirinhos possuem elementos que nos permitem
identificá-los com os novos produtos imobiliários denominados por Caldeira (2000, p. 258) por
enclaves fortificados. Uma análise mais pormenorizada, no entanto, revela que as lógicas que
perpassam a produção e a apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos apresentam
singularidades, se considerarmos a destinação desses espaços e a área em que se localizam os
empreendimentos analisados. Para iniciarmos a análise desses empreendimentos, realizamos a
seguir uma caracterização dos loteamentos fechados ribeirinhos em estudo.
2.1. – Caracterização dos loteamentos fechados ribeirinhos
Para o estudo dos fenômenos relacionados à implantação e à apropriação dos loteamentos
fechados ribeirinhos, delimitamos um recorte territorial que abrange três municípios onde se verifica
a ocorrência da produção desses espaços fechados. São os municípios de Penápolis, Buritama e
Zacarias. Esses municípios possuem respectivamente, 56.681 habitantes, 14.735 habitantes e 2.229
habitantes (Contagem da população 2008, IBGE). Apesar dos empreendimentos estudados
estarem localizados nesses três municípios de pequeno porte, os processos decorrentes da produção e
da apropriação desses espaços devem ser analisados a partir de um ponto de vista mais amplo,
visto que tanto a produção quanto a apropriação desses loteamentos fechados ribeirinhos estão
intimamente ligadas às dinâmicas das cidades médias (São José do Rio Peto e Araçatuba) e de
porte médio (Birigui) da região, pelo fato de que a maior parte das empresas incorporadoras
responsáveis pela implantação desses empreendimentos e dos consumidores desses espaços são
provenientes destas cidades. Dessa forma, o estudo dos loteamentos fechados ribeirinhos possibilita
uma análise integrada de processos que vêm ocorrendo a partir de cidades médias e de porte
médio e que vêm se estabelecendo também, em cidades pequenas, possibilitando estudos de
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40
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cidades de diferentes tamanhos populacionais, articuladas entre si, como podemos observar no
mapa 2.
Mapa 2 – Localização dos municípios estudados em relação às principais vias de acesso e ao rio
Tietê
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Assim, ao ter escolhido os empreendimentos ribeirinhos localizados naqueles municípios,
considerando conjuntamente suas interações com cidades médias, pretendemos verificar se as
lógicas que norteiam os processos socioespaciais nos grandes centros apresentam-se também, nessas
outras dimensões urbanas, constatando quais são as especificidades desse processo. É importante
destacar que a presença de loteamentos fechados ribeirinhos pode ser detectada em outras cidades
da região, como Araçatuba, Birigui, Brejo Alegre, São José do Rio Preto, entre outras, mostrando
que a produção desses espaços é uma tendência que não se restringe aos casos estudados.
Antes de prosseguirmos com a análise, precisamos fazer um esclarecimento sobre os termos
utilizados para designar os empreendimentos estudados. Nos levantamentos iniciais, em entrevistas
com os engenheiros responsáveis pelo setor de obras dos municípios em que se localizam esses novos
habitats
, tivemos a informação de que se tratavam todos de condomínios fechados. As entrevistas
com os proprietários de lotes nesses empreendimentos ratificaram essa informação, pois eles se
consideram donos das áreas comuns e do que é chamado de fração ideal do todo. Nos materiais
publicitários também é passada essa idéia. Portanto, passamos a denominar esses
empreendimentos, em outras fases da pesquisa, como condomínios fechados ribeirinhos. No entanto,
posteriormente, ao verificar a forma como esses espaços haviam sido registrados no cartório de
imóveis, constatamos que a maior parte deles se tratava, na verdade, de loteamentos fechados.
Para ilustrar essa confusão na utilização dos termos loteamentos e condomínios fechados,
apresentamos as figuras 1 e 2, retiradas do site do empreendimento Marina Bonita, localizado em
Zacarias. Na mesma página da internet, encontramos, em lugares diferentes, a denominação
loteamento e condomínio para identificar o empreendimento. Esse fato decorre da utilização desses
dois termos como se fossem sinônimos.
Figuras 1 e 2:
Utilização dos termos loteamento e condomínio para designar o mesmo empreendimento
localizado no município de Zacarias
Fonte:
www.marinabonita.com.br
Fig. 1 Fig. 2
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Essa utilização equivocada dos termos é reflexo, também, da falta de leis específicas, nesses
municípios, que regulamentem a implantação tanto de condomínios como de loteamentos
fechados. Podemos perceber que há uma aquiescência dos poderes públicos municipais em questão,
com as irregularidades verificadas na implantação desses empreendimentos, por ignorância ou por
comprometimento com os interesses dos incorporadores imobiliários.
Isso ocorre porque, ao serem aprovados como loteamentos, os incorporadores teriam obrigação
de destinar áreas internas ao empreendimento para o uso público, visto que as novas vias que
foram abertas, assim como as praças e outros equipamentos de uso comum, são consideradas, de
acordo com a lei federal 6.766 de 19/12/1979, como áreas públicas, portanto, passíveis de serem
utilizadas por toda a população. Um dispositivo que tem sido utilizado para que os proprietários de
lotes nesse tipo de empreendimento fechado tenham direito de uso exclusivo dessas áreas, é a
concessão de uso especial, que deve ser regulamentada em âmbito municipal
4
.
O que verificamos, no município de Buritama, é que o fechamento dos loteamentos ocorreu sem
que os incorporadores desses espaços tenham solicitado essa concessão de uso especial. Assim, o
poder público municipal, aproveitando-se do desconhecimento das pessoas, passa por cima dos
direitos da população, ao permitir uma apropriação irregular das áreas comuns e das vias,
presentes nesses empreendimentos, privilegiando certos segmentos da sociedade.
No município de Zacarias não existe, ainda, nenhuma lei municipal que institua a concessão de
uso especial, portanto, no loteamento implantado nesse município, a apropriação exclusiva por
parte dos proprietários, também é irregular. Os responsáveis informaram, em entrevista, que esse
dispositivo já está sendo providenciado e que será realizada uma adequação da situação do
empreendimento. No município de Penápolis, ao contrário, os proprietários de lotes no loteamento
fechado possuem concessão de uso especial.
Dessa maneira, observamos que o interesse do poder público, dos incorporadores e até dos
próprios proprietários de lotes, de passar a idéia de que esses empreendimentos fechados são
condomínios e o loteamentos, relaciona-se à tentativa de corroborar e reforçar a opinião de que
as áreas internas a esses empreendimentos são de propriedade exclusiva daqueles que compraram
lotes nesses espaços, caso que acontece nos condomínios.
Sendo assim, percebemos que existe, nos casos estudados, uma confusão no que diz respeito à
definição e à diferenciação entre condomínios e loteamentos fechados. As leis municipais não são
eficientes no objetivo de regulamentar esses dois tipos de empreendimentos, fato que faz com que
os interesses privados prevaleçam sobre os públicos, de maneira mais fácil.
4
Os loteamentos fechados ribeirinhos em questão são empreendimentos localizados fora do perímetro urbano instituído
pelos municípios. Mesmo assim, consideramos que a lei 6766/79, que trata do parcelamento do solo urbano, pode ser
aplicada ao caso dos loteamentos fechados ribeirinhos estudados porque, mesmo que o perímetro urbano não tenha
sido estendido para incorporar as áreas em que estão implantados esses empreendimentos, existem, nesses casos
específicos, leis municipais que as definem como Zonas de Urbanização de Interesse Turístico.
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Diante disso, passamos a utilizar o termo loteamento fechado ribeirinho para denominar os
empreendimentos estudados, visto que, mesmo os que são, de fato, condomínios, tiveram que
passar, primeiramente, por um processo de loteamento.
Voltando à análise da implantação dos loteamentos fechados ribeirinhos, constatamos que no
município de Buritama, a produção deles é verificada com mais intensidade, visto que são lá
encontrados, como podemos observar no quadro 1, nove loteamentos aprovados e implantados,
sendo que mais dois estão em fase de aprovação, sendo eles os empreendimentos Paraíso das Águas
e Residencial Praia Bella. No município de Penápolis, temos um loteamento implantado e mais um
em processo de regulamentação, o empreendimento Recreio Recanto do Bonito. No município de
Zacarias, temos um loteamento implantado.
Quadro 1 – Loteamentos fechados ribeirinhos Estudados – 2008
Nome do
Empreendimento
Ano de
implantação
Número de
lotes
Área média
dos lotes
(m²)
Número de
lotes com
edificações
(%)
Área
média das
edificações
(m2)
Incorporadora
responsável pelo
empreendimento
Cidade de origem da
incorporadora ou do
responsável pela
incorporação
Orla Um
(Buritama)
1996 71 1.200 100 300
ORLA Um
Empreendimentos
Birigui
Riviera Santa Bárbara
I (Buritama)
1998
464 450 40 200
Proprietário –
Monte Aprazível
Lago Azul
(Buritama)
2000 305 450 40 450
Empreendimentos
Imobiliários
Três Irmãos LTDA.
São José do Rio Preto
Portal da Praia
(Buritama)
2002 548 720 75 250
Fermiano de Almeida
Empreendimentos
Imobiliários
Buritama
Riviera Santa Bárbara
II (Buritama)
2002 32 500 0,4 ----
Proprietário
Monte Aprazível
Vale do Sol I
(Buritama)
2002
102 400 40 150
Proprietário
Buritama
Vale do Sol II
(Buritama)
2004
87 400 40 150
Proprietário
Buritama
Marbella
(Buritama)
2004
223 360 0,3 ----
Orla Um
Empreendimentos
Imobiliários
Birigui
Jardim Itaparica
(Buritama)
2004
692 600 25 200
L.E.
Empreendimentos
Imobiliários –
Birigui
Marina Bonita
(Zacarias)
1995 170 1.000 18 400
Marina Bonita
Empreendimentos
Imobiliários
São José do Rio Preto
-
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-
Recanto Belvedere
(Penápolis)
2000 284 1.000 45 300
Polizel Comércio de
Glebas Rurais LTDA
Penápolis
Organização: OLIVEIRA, M. A.
Fonte: Prefeituras Municipais de Buritama, Zacarias e Penápolis.
Podemos observar, a partir da análise do quadro 1, que no conjunto dos loteamentos fechados
ribeirinhos estudados, o primeiro empreendimento implantado foi o Marina Bonita, em 1995, no
município de Zacarias, nas margens do Ribeirão Santa rbara, afluente do rio Tietê. A
incorporação foi realizada por uma empresa de São José do Rio Preto, tendo sido demarcados 170
lotes, com área média de 1.000 . Esse loteamento, o mais antigo, possui uma taxa de edificação
baixa, quando a comparamos com as taxas encontradas em outros empreendimentos mais
recentes, fator ligado às exigências praticadas, em termos de normas para edificação. Apesar de ter
um número considerável de lotes vendidos, grande parte deles ainda não foi edificada, porque as
casas devem ter um padrão arquitetônico mínimo, o que demanda altos investimentos.
O primeiro loteamento fechado ribeirinho implantado no município de Buritama foi o Orla Um,
nas margens do rio Tietê, em 1996, pela incorporadora Orla Um Empreendimentos Imobiliários, cuja
sede se localiza em Birigui. Esse empreendimento implantou 71 lotes, com área aproximada de 1.200
m² cada. Esse loteamento é o único, entre os estudados, em que todos os lotes estão edificados.
Em 1998, iniciou-se a implantação do loteamento Riviera Santa Bárbara I, nas margens do
Ribeirão Santa Bárbara, com a demarcação de 464 lotes, com área média de 450 cada um. A
implantação desse loteamento foi realizada pelo proprietário da gleba que reside em Monte
Aprazível.
No município de Penápolis, o loteamento fechado ribeirinho Recanto Belvedere começou a ser
implantado em 2000, nas margens do rio Bonito, afluente do Rio Tietê. A incorporação foi
realizada por uma empresa originária do próprio município. Foram demarcados 248 lotes, com
área média de 1.000 m² cada um.
As informações contidas no quadro 1, levam à constatação de que, a partir do ano 2000, a
produção desse tipo de empreendimento imobiliário tornou-se mais evidente. É nesse ano que se
verifica a implantação do condomínio Lago Azul no município de Buritama, nas margens do rio
Tietê, pela empresa Três Irmãos Empreendimentos Imobiliários Ltda., de São José do Rio Preto.
Foram demarcados, nesse loteamento, 305 lotes, com área aproximada de 450 m² cada um.
Em 2002, foram implantados três loteamentos fechados ribeirinhos em Buritama. O loteamento
Portal da Praia, nas margens do rio Tietê, foi realizado pela incorporadora Fermiano
Empreendimentos Imobiliários, empresa formada por empreendedores do próprio município de
Buritama. Essa incorporadora está realizando a implantação de outro loteamento fechado
ribeirinho ao lado do Portal da Praia, que se chamará Paraíso das Águas. No loteamento Portal da
Praia, foram demarcados 548 lotes, com área média de 720 m².
-
45
-
O outro empreendimento implantado em Buritama, em 2002, nas margens do Ribeirão Santa
Bárbara, foi o Riviera Santa Bárbara II, segunda fase da incorporação iniciada com a implantação
do loteamento Riviera Santa Bárbara I, em 1998. Essa segunda etapa também foi empreendida
pelo proprietário da gleba, proveniente de Monte Aprazível. Foram demarcados, nesse loteamento,
32 lotes, com 500 m² de área média.
Também houve, em 2002, a implantação do loteamento Vale do Sol I, nas margens do rio
Tietê, constituído por 102 lotes, com área aproximada de 400 cada um. Em 2004, houve a
implantação do loteamento fechado ribeirinho Vale do Sol II, também nas margens do rio Tietê,
disponibilizando 87 lotes, com 400 em média. Esses dois loteamentos foram realizados pelo
próprio proprietário da gleba, residente em Buritama.
Ainda em 2004, foi implantado em Buritama o loteamento fechado ribeirinho Marbella, onde
foram disponibilizados 223 lotes, com área média de 360 m². Esse loteamento foi realizado pela
incorporadora Orla Um Empreendimentos Imobiliários, mesma empreendedora do loteamento
fechado ribeirinho Orla Um. Uma especificidade desse loteamento é que ele não tem acesso direto
às águas do rio Tietê, os proprietários de lotes desse empreendimento terão que desfrutar da
mesma praia do loteamento Orla Um. No que diz respeito à incorporadora, apuramos que um dos
sócios dessa empresa, cuja sede encontra-se em Birigui, atua em parceria com outros
empreendedores, realizando loteamentos fechados em outras cidades como Birigui e Araçatuba.
Outro loteamento fechado ribeirinho implantado, em 2004, em Buritama, foi o Jardim
Itaparica, nas margens do ribeirão Santa Bárbara, composto por 692 lotes, com área aproximada
de 600 cada. A implantação foi realizada pela empresa L.E. Empreendimentos Imobiliários,
cuja sede se encontra em Birigui. Essa incorporadora está realizando, também, outro loteamento
fechado ribeirinho em Buritama, nas margens do rio Tietê, que se chamará Residencial Praia Bella.
Essa empresa participa, além disso, da produção de outros loteamentos fechados em outras cidades
como Birigui, Valparaíso e General Salgado.
Observando, assim, o conjunto de loteamentos fechados ribeirinhos estudados, podemos
constatar que a lógica de produção desses empreendimentos está muito mais ligada a
determinações externas do que inerentes aos próprios municípios em que se localizam. Isso porque a
maior parte das iniciativas de implantação desses espaços fechados foi engendrada por empresas de
outros municípios. Apenas os loteamentos Portal da Praia, Vale do Sol I e Vale do Sol II, em
Buritama e o Loteamento recanto Belvedere, em Penápolis, decorrem de iniciativas locais. Os
outros sete loteamentos fechados ribeirinhos estudados resultam de ações externas aos municípios
em que foram implantados.
Associada a esse fato, temos a demanda por esses empreendimentos. Considerando que os
loteamentos fechados ribeirinhos m como principal finalidade servir de segunda residência, ou
seja, não constituem a residência principal de seus proprietários, que utilizam suas casas nos
loteamentos, nos finais de semana, férias ou períodos determinados, podemos verificar uma
-
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dissociação dos locais de moradia dessas pessoas com os municípios em que estão implantados os
loteamentos fechados ribeirinhos.
Verificamos, a partir de entrevistas realizadas com pessoas ligadas à gestão interna desses
empreendimentos (síndicos, presidentes de associações de proprietários) e com os proprietários de
lotes, e de visitas a campo realizadas, que em todos os loteamentos fechados ribeirinhos existe um
número maior de proprietários provenientes de outros municípios da região, do que dos próprios
municípios onde se encontram esses empreendimentos. No loteamento Marina Bonita, não temos
nenhum proprietário que seja morador de Zacarias, município em que se localiza o loteamento. A
maior parte das pessoas que possuem lotes e casas nesse empreendimento é oriunda do município
de São José do Rio Preto.
O mesmo fato pode ser verificado no loteamento Lago Azul I, onde nenhum dos lotes vendidos é
de propriedade de alguém que resida em Buritama. Nesse empreendimento, a maior parte dos
proprietários é de São José do Rio Preto, Birigui e Araçatuba. O loteamento Orla Um é outro
empreendimento que não apresenta nenhum proprietário residente no município de Buritama.
Nesse loteamento fechado ribeirinho, a maior parte dos proprietários de lotes é de Birigui,
Araçatuba e São José do Rio Preto.
Nos outros loteamentos fechados ribeirinhos do município, a tendência da maior parte dos
proprietários serem provenientes de outros municípios, também é verificada. De forma geral,
grande parte dos proprietários de lotes nesses empreendimentos vem de municípios como Birigui,
Araçatuba e São José do Rio Preto, mas encontramos, além desses e em menor número, pessoas
provenientes de outros municípios como Lins, Monte Aprazível, Mirassol e, até mesmo, proprietários
que residem em Campinas e São Paulo. No entanto, nesses outros empreendimentos localizados em
Buritama, a presença de proprietários de lotes que residem no próprio município, também pode ser
verificada.
No loteamento Recanto Belvedere, localizado em Penápolis, temos uma situação um pouco
diferente. Nesse empreendimento, o número de proprietários que residem no próprio município em
que o loteamento está implantado é, significativamente, maior que nos outros loteamentos
estudados. Mesmo assim, o número de proprietários de outros municípios é expressivo,
principalmente, moradores de Birigui, Lins e Araçatuba. No Recanto Belvedere, o número de
pessoas que optou por morar no próprio loteamento também é maior que em todos os outros
empreendimentos estudados, onde os casos de pessoas que utilizam o loteamento fechado
ribeirinho como primeira residência são mais pontuais.
Dessa maneira, podemos concluir que a demanda por esse novo tipo de
habitat
é gerada,
principalmente, externamente aos municípios em que estão implantados esses empreendimentos.
Essa questão é refletida nas estratégias de venda realizadas pelos incorporadores desses
loteamentos fechados ribeirinhos.
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A divulgação dos empreendimentos ribeirinhos é feita, com mais ênfase, nas cidades da região
do que nos próprios municípios escolhidos para a implantação dos loteamentos. No material de
propaganda dos loteamentos fechados ribeirinhos, temos sempre um mapa com a localização do
empreendimento, a distância entre eles e algumas cidades e as principais vias de acesso aos
empreendimentos. Assim, os materiais publicitários demonstram a externalidade da demanda por
esses loteamentos, cuja produção está voltada para atender mercados consumidores de outros
municípios da região.
Como podemos ver nas figuras 3, 4, 5 e 6, retiradas de folders e de site de divulgação dos
loteamentos fechados ribeirinhos, os empreendedores sempre localizam os empreendimentos em
relação a outras cidades, colocando as principais vias de acesso para chegar até eles.
Figuras: 3, 4, 5 e 6 – Recortes dos mapas utilizados em propagandas: destaque para a externalidade,
aos municípios em que se localizam, da demanda pelos loteamentos fechados ribeirinhos
Fonte: Folder Marbella
Fonte:
Folder Jd.
Itaparica
Fonte: www.marinabonita.com.br
Fig. 3 Fig. 4
Fig. 5
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48
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No site de divulgação do loteamento fechado ribeirinho Marina Bonita, em Zacarias,
encontramos dois esquemas que mostram a localização do empreendimento. No primeiro, figura 5,
são utilizados vários outros municípios como referência, bem como o detalhamento das
informações relativas à forma de se chegar ao empreendimento, a partir de São José do Rio Preto,
com a indicação até das ruas em que as pessoas terão que virar, mostra que o objetivo desse
empreendimento é atrair consumidores, principalmente, desse município.
No segundo esquema, figura 6, podemos observar que o loteamento foi localizado ao centro e
três cidades foram destacadas em seu entorno: Araçatuba, Zacarias e São José do Rio Preto. O
interessante, é que tanto de Araçatuba, quanto de São José do Rio Preto, partem linhas tracejadas
que indicam a ligação dessas cidades com o empreendimento. A cidade de Zacarias não apresenta
essa linha ligando-a ao loteamento. Esse fato nos mostra que o objetivo dos empreendedores não é
o consumo do loteamento por parte dos habitantes de Zacarias, e sim de outras cidades. Assim,
Zacarias serve apenas, para localizar o empreendimento.
É interessante destacar que, na figura 5, as distâncias das cidades de São José do Rio Preto e de
Araçatuba em relação ao loteamento fechado ribeirinho são dadas em tempo, mostrando, como
destaca Sposito (2003), a intrínseca relação que se estabelece, com base nos ideais modernos, entre
o espaço e o tempo. Uma das características, de acordo com Harvey (1993), do período que
denomina de pós-modernidade
5
, é a de que as novas velocidades advindas do desenvolvimento dos
transportes e dos sistemas de comunicação propiciam a supressão dos entraves espaciais, gerando
um processo de compressão tempo-espaço. Assim, o tempo ganha nova importância na definição
das atividades cotidianas.
Dessa forma, considerando que o blico alvo dos loteamentos fechados ribeirinhos são,
essencialmente, pessoas que moram em outros municípios e que dependem, assim, de suas
5
Para um aprofundamento no debate sobre a conceituação da modernidade e da pós-modernidade, ver Giddens
(1991), Harvey (1993), Soja (1993), e Bauman (2001)
Fonte: www.marinabonita.com.br
Fig. 6
-
49
-
possibilidades de deslocamento, ressaltamos que o desenvolvimento dos meios de transportes e o
aumento potencial da mobilidade, que privilegiou, principalmente, os segmentos de maior poder
aquisitivo, são fatores importantes para o entendimento da produção dos loteamentos fechados
ribeirinhos, visto que, além da externalidade da demanda, temos o fato desses espaços estarem
localizados a certa distância dos tecidos urbanos consolidados, como podemos ver nas figuras 7, 8 e
9. Portanto, se as condições de transporte e de acesso fossem precárias, a viabilização de tais
empreendimentos ficaria prejudicada.
Figura 7: Localização dos loteamentos fechados ribeirinhos em relação à malha urbana
consolidada de Buritama, SP
6
6
As imagens de satélite utilizadas no trabalho foram retiradas do Google Earth, num momento em que a ferramenta
estava passando por uma atualização da data da captação das imagens. Assim, a qualidade das imagens ficou
prejudicada, visto que em alguns casos, as faixas espectrais utilizadas para a formação da imagem são de datas
diferentes.
Buritama
Jd. Itaparica
Riviera Sta Bárbara I e II
Lago Azul
Praia Bella
Orla I
Marbella
Vale do Sol I e II
P
ortal da Praia
Paraíso das Águas
Fonte: Google Earth, 16 jun 2006.
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50
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Figura 8: Localização do loteamento fechado ribeirinho Recanto Belvedere em relação à malha
urbana consolidada de Penápolis, SP
Penápolis
Recanto Belvedere
Fonte:
Google Earth, 16 jun 2006.
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51
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Figura 9 - Localização do loteamento fechado ribeirinho Marina Bonita em relação à malha
urbana consolidada de Zacarias, SP.
Outro aspecto que pode ser destacado, a partir da consideração da necessidade de
acessibilidade para a apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos, é a segmentação
socioeconômica. Pode-se fazer essa afirmação pois, nesses casos, a segmentação fica evidente, uma
vez que o blico alvo, para esses empreendimentos, deve possuir certo nível socioeconômico, visto
que para que se efetive a apropriação desses espaços, as pessoas precisam possuir níveis de
mobilidade espacial que os segmentos de menor renda não possuem. Dessa maneira, os padrões de
mobilidade diferenciados, segundo os diferentes segmentos socioeconômicos, entram na composição
dos conjuntos de possibilidades de apropriação dos espaços urbanos.
O público alvo dos loteamentos fechados ribeirinhos tem que ser analisada, também,
considerando-se o local de implantação desses empreendimentos. Os loteamentos fechados
ribeirinhos estudados estão localizados em três cidades consideradas pequenas. Como esses espaços
fechados são destinados para segunda residência, as pessoas necessitam de certo vel econômico
para poderem consumir esses loteamentos. Por serem cidades pequenas, o número de pessoas
Zacarias
Marina Bonita
Fonte:
Google Earth, 16 jun 2006.
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52
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pertencentes aos segmentos a que são destinados esses empreendimentos, encontrados nesses
municípios, não é suficiente para justificar a implantação deles.
Em outras palavras, pode-se afirmar que não existe uma quantidade de pessoas pertencentes
aos segmentos de médio e alto poder aquisitivo, nesses municípios, capaz de consumir totalmente, a
oferta de lotes disponibilizados nesses empreendimentos. Constatamos então, que desde o início dos
projetos de implantação desses loteamentos fechados ribeirinhos, eles foram pensados para
atenderem a uma demanda externa. Essa questão pode ser explicada pelo fato de que, como os
dados levantados mostram, a maior parte dos loteamentos ribeirinhos foi idealizada por
empreendedores de outras cidades.
Essa relação entre os municípios onde estão implantados os loteamentos fechados ribeirinhos e
as cidades de onde partem a maior parte dos incorporadores e dos consumidores desses espaços, nos
leva a pensar na exterioridade revelada por esses empreendimentos, que juridicamente pertencem
aos municípios em que se localizam, mas, do ponto de vista da produção e da apropriação, estão
muito mais ligados a outras realidades espaciais, nesse caso, as cidades médias e de porte médio.
Esse fato indica que podemos verificar nesses empreendimentos, a seguinte característica
destacada por Caldeira (2000, p. 259), para os enclaves fortificados: “eles pertencem não aos seus
arredores imediatos, mas a redes invisíveis”. Nesse sentido, as ligações estabelecidas entre os
empreendimentos fechados ribeirinhos e os seus arredores são reduzidas, ficando limitadas ao
suporte territorial e ao oferecimento de alguns postos de empregos. A apropriação desses espaços
por moradores dos municípios onde estão implantados pode ser considerada, na maior parte dos
casos estudados, como residual, visto que eles não constituem o público alvo central desses
empreendimentos, sobretudo naqueles loteamentos ribeirinhos mais exclusivos, destinados aos
setores da elite.
Esse fato coloca-nos como questionamento a existência de uma tendência de estabelecimento
de uma fragmentação socioespacial na escala interurbana, visto que podemos considerar os
loteamentos fechados ribeirinhos como espaços fragmentados, tanto do ponto de vista da
morfologia urbana, quanto das práticas socioespaciais neles estabelecidas. No entanto, essa
fragmentação não ocorre pelo fato desses espaços serem destinados apenas aos segmentos de maior
padrão aquisitivo das cidades em que estão implantados. Sua destinação maior é para os
segmentos mais privilegiados de outras cidades.
De acordo com Salgueiro (1998) a fragmentação urbana traduz o aumento interno da
diferenciação e a existência de rupturas entre os vários grupos sociais, organizações e territórios,
representada por espaços descontínuos do ponto de vista da estrutura socioespacial que os cerca.
Para Souza (2008, p. 56), a fragmentação é representada por espaços que não se conectam mais,
ou quase não se conectam mais uns com os outros, indo além, tanto da diferenciação, quanto da
segregação espacial.
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Consideramos que a tendência de fragmentação observada a partir da produção e apropriação
dos loteamentos fechados ribeirinhos pode ser identificada com os processos destacados acima. São
espaços fragmentados, do ponto de vista social, visto que as ações neles estabelecidas são realizadas
por segmentos econômicos determinados e são fragmentados espacialmente, ao passo que
estabelecem poucas relações com seus entornos e com as cidades em que se localizam, sendo
apropriados por pessoas pertencentes a outras cidades. Sendo assim, afirmamos que os fragmentos
urbanos representados pelos loteamentos fechados ribeirinhos pertencem, no plano das ações e dos
usos, ou seja, da apropriação, a outras configurações espaciais, externas aos municípios em que se
localizam.
2.2. Diferenciação entre os loteamentos fechados ribeirinhos: espaços para a elite e
espaços para os segmentos médios
A partir da análise das informações disponíveis sobre os loteamentos fechados ribeirinhos,
constatamos que eles não são homogêneos, visto que apresentam tanto diferenciações espaciais,
quanto sociais entre eles. Todos os empreendimentos analisados apresentam características comuns,
mas possuem destinações socioeconômicas diferentes, fato que gera formas de produção e
apropriação diferenciadas. Destacamos a existência de dois padrões de loteamentos fechados
ribeirinhos. O primeiro deles, diz respeito aos empreendimentos destinados aos segmentos de alto
poder aquisitivo e o outro aos empreendimentos destinados aos segmentos de médio poder
aquisitivo.
Nos loteamentos fechados ribeirinhos, para pessoas de alto poder aquisitivo, classificamos os
seguintes empreendimentos: Marina Bonita, em Zacarias e Orla Um e Lago Azul, em Buritama. Os
outros empreendimentos fazem parte do grupo de loteamentos destinados aos segmentos de médio
poder aquisitivo.
O primeiro elemento a partir do qual podemos estabelecer essa diferenciação entre os
loteamentos fechados ribeirinhos diz respeito ao preço dos lotes e às facilidades oferecidas para
aquisição dos lotes. No caso dos loteamentos considerados como destinados para pessoas de alto
poder aquisitivo, verificamos, nas entrevistas e em pesquisas em sites de empresas imobiliárias
7
, que
o preço dos lotes pode chegar a mais de R$ 150.000,00 se o lote estiver localizado de frente para a
água e os prazos oferecidos para o pagamento ficam em torno de 36 meses, o preço das casas
nesses loteamentos podem ultrapassar os R$ 400.000,00. No caso dos loteamentos fechados
ribeirinhos que consideramos como destinados para os setores de médio poder aquisitivo, os preços
dos lotes variam de R$20.000,00 a R$75.000,00, dependendo de sua localização dentro do
loteamento e os prazos para aquisição dos lotes estendem-se até por 82 meses. Alguns
7
As pesquisas referentes aos preços de lotes e casas nos loteamentos fechados foram realizadas nos seguintes sites:
www.fattoacessoria.com.br, www.imoveisdocampo.com.br, www.vendefazendas.com.br,
-
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empreendimentos, como o Jardim Itaparica, implantado em Buritama, vendem os lotes com
parcelas mensais a partir de R$99,00. Quanto ao valor das casas nesses loteamentos, temos uma
situação mais heterogênea, com casas valendo R$60.000,00 e outras valendo em torno de
R$250.000,00.
Outro elemento a partir do qual podemos diferenciar esses dois grupos de empreendimentos
refere-se ao padrão arquitetônico das casas construídas nesses empreendimentos. As do primeiro
grupo são maiores, apresentam um tratamento arquitetônico mais detalhado, enfim, demonstram,
material e simbolicamente, o poder aquisitivo de seus proprietários. Grande parte das casas desses
empreendimentos contém suítes, algumas com banheiras de hidromassagem, piscinas e jardins bem
cuidados. De uma maneira geral, o padrão das construções não se diferencia muito entre os imóveis
edificados, como podemos observar nas fotos 1, 2, 3 e 4, visto a regulamentação exercida pelos
administradores e pela similaridade do poder aquisitivo dos proprietários.
No outro grupo de loteamentos fechados ribeirinhos, temos situações extremas, com algumas
casas com padrão arquitetônico mais elaborado, maiores e com piscina e outras menores, com
padrões arquitetônicos mais modestos, com menos detalhes, sendo que algumas não apresentam
acabamento. Assim, nesse grupo de loteamentos fechados ribeirinhos, temos uma heterogeneidade
maior dos padrões de construção, como podemos ver nas fotos 5, 6, 7 e 8, visto que o poder
aquisitivo de seus proprietários varia de médio a médio baixo e, em alguns casos, temos
proprietários com pequeno poder aquisitivo, que compram lotes nesses empreendimentos em
sociedade com outros amigos. Dessa maneira, a diferenciação de destinação socioeconômica dos
diferentes loteamentos fechados ribeirinhos pode ser constatada, no nível da paisagem.
Fotos 1, 2, 3 e 4 Zacarias.
Exemplos de casas em empreendimento de alto padrão: loteamento ribeirinho
Marina Bonita, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Fonte: www.marinabonita.com.br, 2008
Foto 1
Foto 2
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Fotos 5, 6, 7 e 8 Buritama.
loteamento ribeirinho Portal da Praia, 2008
Fonte: www.marinabonita.com.br, 2008
Fonte: www.marinabonita.com.br, 2008
Foto 3
Foto 4
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Foto 5
Foto
6
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Foto
7
Foto
8
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Outro aspecto que evidencia a diferença entre esses dois tipos de loteamentos fechados
ribeirinhos está ligado ao controle do acesso a esses empreendimentos. Nos loteamentos destinados
aos segmentos de alto poder aquisitivo, esse controle é muito mais gido. Neles, foi muito mais
difícil, durante a realização da pesquisa, conseguir a autorização para realizar as entrevistas, sendo
que, no loteamento Lago Azul, não houve concessão dessa autorização.
Nos loteamentos destinados aos segmentos de médio poder aquisitivo, o controle é menor, e as
entradas para as entrevistas foram obtidas com mais facilidade, sendo que no loteamento Riviera
Santa Bárbara, não encontramos, em nenhum dia em que o visitamos, alguém fazendo o controle
da entrada das pessoas na portaria.
A confirmação dessa diferenciação de padrões socioeconômicos entre os loteamentos fechados
ribeirinhos veio a partir das entrevistas realizadas. Nos loteamentos que classificamos como de alto
poder aquisitivo, os entrevistados apresentavam rendimentos que giravam em torno de R$
15.000,00 a R$20.000,00 mensais. Já, nos loteamentos classificados como de médio poder
aquisitivo, as rendas dos entrevistados variaram de R$3.000,00 a R$ 6.000,00, sendo que em
alguns desses empreendimentos, houve a ocorrência de pessoas com rendimentos mensais em torno
de R$ 1.800 e outras com rendimentos mensais em torno de R$12.000.
Na ocasião das entrevistas, foi possível observar, também, que os próprios objetos e produtos
presentes nas casas denotam a diferenciação social que existe entre os loteamentos. Por exemplo,
nos loteamentos fechados ribeirinhos considerados de alto padrão, foi mais freqüente encontrarmos
carros importados, jet skis, lanchas e outros bens que denotam o poder aquisitivo de seus
proprietários e/ou usuários. Nos loteamentos fechados ribeirinhos considerados de médio poder
aquisitivo, a maior parte dos veículos são carros populares e os produtos encontrados nas casas são
mais simples.
Dessa maneira, por meio da observação da paisagem e das entrevistas realizadas, constatamos
que nos loteamentos fechados ribeirinhos para pessoas de alto padrão aquisitivo uma
homogeneidade maior, tanto nas construções, quanto no próprio nível econômico das pessoas. Os
loteamentos para os segmentos de médio poder aquisitivo, apresentam-se mais heterogêneos, com
pessoas com rendimentos que variam mais, quando comparados entre si.
Outro aspecto no qual comparecem as diferenciações entre os loteamentos fechados ribeirinhos,
é a percepção que as pessoas possuem acerca desses espaços. Tanto os entrevistados do grupo de
pessoas que possuem casas nos loteamentos fechados ribeirinhos, quanto os do grupo de pessoas que
residem nos municípios em que os empreendimentos estão localizados, ou seja os que estão fora de
seus muros, percebem que alguns empreendimentos são mais exclusivos e destinados às pessoas de
maior padrão econômico e que outros são mais acessíveis também para os segmentos de médio
poder aquisitivo. É o que podemos verificar nos depoimentos que se seguem:
Quando a gente foi comprar o rancho aqui, nós fizemos muita pesquisa, visitamos
outros condomínios, aqui mesmo em Buritama e também em outras cidades. Nós
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decidimos por esse, porque a gente percebeu que aqui, o controle das pessoas que
compram os lotes é maior, as construções são mais homogêneas. Na verdade, o que
a gente encontra aqui são pessoas com um poder aquisitivo melhor e isso mantém o
nível do empreendimento. A gente visitou alguns condomínios que eram muito
desiguais, com nível mais baixo”.
(48 anos, empresária, proprietária de casa no
loteamento ribeirinho Orla Um, em Buritama.)
“A gente não pode falar que os loteamentos são todos iguais. Têm aqueles que são
mais para os ricos, como o Orla Um e o Lago Azul. Ali quem tem dinheiro é que
pode construir. Os terrenos são mais caros, as casas são verdadeiras mansões. Aqui
não, até eu pude comprar um lote e fazer meu ranchinho aqui! E a gente sabe que
tem muita gente aqui que compra um lote em sociedade, junta com uns amigos e
compra, constrói um quiosque e pronto. Nesses outros, não. As pessoas constroem
mansões mesmo.”
(50 anos, comerciante, proprietário de lote no loteamento Portal
da Praia)
“Quando a gente passa ali pela estrada, a gente percebe as diferenças. O Portal
[da Praia]
vamos dizer que é mais democrático, mais para o povo. Agora é que
começou a ter umas ‘casonas’ lá. Mas tem casas mais simples também. No Orla
[Um]
não, lá a coisa é mais chique, a gente percebe pelas casas. Os donos de
devem ser mais ricos” (
64 anos, aposentado, residente na cidade de Buritama)
“Olha, condomínio bom mesmo eu considero o Marina Bonita aqui em Zacarias. Um
dia eu fui lá ajudar um amigo meu que é eletricista e foi fazer um serviço lá. Aquilo
nem parece que é em Zacarias, uma cidadezinha tão pequena, que não tem nada!
é coisa fina. Agora o Itaparica, por exemplo, eu tenho um amigo meu que tem
um rancho lá. É bonito também, gostoso. Num domingo a gente foi almoçar lá. Mas
não é igual, imagina se ele ia poder comprar um lote no Marina!”
(43 anos,
tratorista, residente na cidade de Zacarias)
Percebemos, dessa maneira, que alguns loteamentos fechados ribeirinhos possuem mais
prestígio, pois são considerados como sendo exclusivos para pessoas com alto rendimento. Os outros
são considerados mais “normais”, porque pessoas com rendimentos mais baixos também conseguem
ter acesso à compra de lotes neles.
É interessante destacar que essa exclusividade presente nos loteamentos fechados para pessoas
de alto poder aquisitivo é muito valorizada pelos proprietários e também pelos incorporadores,
responsáveis pela venda de lotes nesses empreendimentos. Eles consideram que a presença de
segmentos de menor nível de renda dentro dos loteamentos acaba
estragando
o
empreendimento, visto que mesmo que consigam pagar o lote, não terão capacidade financeira
para construir casas bonitas e nos padrões arquitetônicos definidos pelo loteamento. Sobre isso, é
relevante analisar os depoimentos a seguir:
“Eu sei de um caso que aconteceu no loteamento Lago Azul. alguns anos atrás,
um policial de Araçatuba que trabalhava aqui em Buritama e tinha um lote lá, foi
meio que expulso do loteamento. Ele tinha feito uma casinha pequena, com
quarto, banheiro e cozinha e os outros donos do loteamento acharam que a casa
dele estava destoando das outras. eles começaram a pressionar o cara, para ele
construir uma casa melhor, nos padrões do condomínio, para não desvalorizar o
investimento deles. Isso foi parar até na justiça. Mas no final, o que aconteceu é que
os dois vizinhos do lote dele começaram a oferecer um preço muito alto pela casa
dele, e ele acabou vendendo. Depois as pessoas que compraram derrubaram a
casinha e colocaram o lote à venda de novo. Eles queriam que o cara saísse do
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condomínio”.
(36 anos, comerciante, proprietário de lote no loteamento Riviera
Santa Bárbara, Buritama)
“Para comprar lote aqui não pode ser qualquer um não. Porque o dono daqui, o
homem que loteou, marca em cima. Ele até tirou os lotes da imobiliária de
Buritama, para ele poder ter mais controle. Então a imobiliária lá de Rio Preto
avisa ele, quando tem alguém interessado e ele vem com a pessoa para mostrar.
Ele olha até o carro da pessoa, porque ele já teve prejuízo aqui com um moço que
comprou o lote e não aquentou pagar. Não pagava as prestações, não pagava a
taxa de condomínio, não conseguiu construir casa. Então, atualmente é mais
seletivo, eles tem que perceber que a pessoa tem dinheiro, senão, não vende
mesmo. Eles não aceitam que a pessoa venha construir qualquer coisa aqui no
condomínio. Eles falam que se tiver uma casa feia, com aspecto de pobre, vai
desvalorizar o condomínio.” (depoimento coletado com o porteiro do Loteamento
Marina Bonita, na ocasião de uma das visitas realizadas ao empreendimento)
Podemos perceber assim, que a estética arquitetônica do empreendimento é de extrema
importância, visto que a aparência das casas vai denotar o poder aquisitivo de seus consumidores e,
conseqüentemente, o status daqueles espaços, fato que serve para valorizar o loteamento. De
acordo com Bourdieu (1996, 22), o consumo é uma forma de estabelecimento de distinção. Nesse
sentido, ao consumirem espaços ligados a símbolos de
status
, bom gosto, exclusividade,
homogeneidade social, as pessoas estão demarcando seu lugar no espaço social, distinguindo-se das
outras. O consumo desses espaços pode ser considerado como um consumo que, na maior parte das
vezes, objetiva ser visível, ao passo que procura tornar evidentes as diferenças entre as pessoas,
transformando-as em distinção. Conforme Bourdieu,
(...) as diferenças propriamente econômicas são duplicadas pelas distinções
simbólicas na maneira de usufruir esses bens, ou melhor, através do consumo, e
mais, através do consumo simbólico (ou ostentatório) que transmuta os bens em
signos,
as diferenças de fato em distinções significantes
, ou, para falar como os
lingüistas, em “valores”, privilegiando a
maneira
, a forma da ação ou do objeto em
detrimento de sua função. Em conseqüência, os traços distintivos mais prestigiosos
são aqueles que simbolizam mais claramente a posição diferencial dos agentes na
estrutura social por exemplo, a roupa, a linguagem ou a pronúncia, e sobretudo
“as maneiras”, o bom gosto e a cultura pois aparecem como propriedades
essenciais da pessoa, como um ser irredutível ao ter, enfim como uma
natureza
, mas
que é paradoxalmente uma natureza cultivada, uma cultura tornada natureza,
uma graça e um dom. (BOURDIEU, 1974, p.16)
Dessa maneira, os proprietários de lotes nos empreendimentos fechados ribeirinhos de alto
padrão, desejam manter e ressaltar, material e simbolicamente, as diferenças que distinguem seus
espaços de lazer e eles próprios, das pessoas e dos espaços dos demais segmentos sociais. O consumo
desses empreendimentos torna visível, espacialmente, as marcas de distinção concebidas no plano
simbólico.
O que se procura com o consumo desses espaços diferenciados não é somente demarcar as
diferenciações econômicas. O simbolismo desses espaços ribeirinhos fechados vai além desse aspecto,
visto que serve para demarcar o “bom gosto e o estilo de vida dessas pessoas”. Dessa maneira, esses
empreendimentos m uma função simbólica que extrapola as funções materiais e objetivas dos
possíveis usos que podem ser realizados nesses espaços. É, nesse sentido, que a imagem desses
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loteamentos é valorizada. Não basta consumir objetos e espaços destinados a pessoas mais ricas.
Esses espaços e objetos devem exprimir as “qualidades” de seus consumidores. Sendo assim, qualquer
quebra da estética, considerada como ideal, nesses loteamentos fechados ribeirinhos, significa uma
ruptura na função distintiva que lhes é simbolicamente atribuída.
Essa valorização da homogeneidade paisagística e social, como fator de distinção e exposição de
status e bom gosto, não é exclusiva das pessoas que possuem casas nos loteamentos de mais alto
padrão. Alguns entrevistados dos loteamentos que consideramos como sendo destinados a pessoas
de médio poder aquisitivo também se ressentem da presença de pessoas com menor poder
aquisitivo dentro dos empreendimentos e, também, consideram que as construções mais modestas
desvalorizam o empreendimento, num processo de degradação simbólica.
Nas fotos 9, 10, 11 e 12, temos alguns exemplos das construções consideradas pelos entrevistados
como fatores de desvalorização do empreendimento e que, na opinião deles, deveriam ser
proibidas.
Essa questão da padronização das construções está sendo motivo de divergências entre
proprietários de lotes e os administradores do loteamento Portal da Praia, visto que esses estão
sendo pressionados para multar ou para mandar demolir algumas casas que, no entender dos
outros proprietários, não deveriam estar construídas ali, por não condizerem com a imagem que
eles objetivam passar a partir do consumo desses espaços. Sobre esse ponto, os depoimentos a seguir
são emblemáticos.
Nós aqui temos problemas com alguns proprietários, porque eles compraram o lote
e vieram construir uns barracos aqui. Isso não pode, estraga o condomínio. Quem é
que vai querer um lote, ou construir sua casa do lado de um barraco, como têm
alguns aqui dentro. O loteamento tem no regimento a previsão dos padrões
mínimos de construção. Mas isso não está sendo respeitado. Na minha opinião, não
deveriam permitir que qualquer pessoa comprasse lote aqui. Não sei, talvez eles
poderiam subir um pouco o preço dos lotes, ou diminuir um pouco o mero de
prestações. Porque realmente isso estraga o condomínio. Não é preconceito. Mas é
que acaba desmerecendo o investimento que algumas pessoas fizeram”.
(46 anos,
professora, proprietária de lote no loteamento Portal da Praia, Buritama)
“Às vezes eu me arrependo de ter comprado meu rancho aqui. Eles
(os
administradores do loteamento)
não têm um controle muito rígido e acabam
permitindo algumas barbaridades. fica parecendo que aqui é o loteamento do
povão. Qualquer um pode ter uma casa aqui. E como ficam as pessoas que
construíram suas casas com cuidado, gastaram dinheiro? É difícil, porque depois
vêm as pessoas que não se importam e acabam desmerecendo a imagem do nosso
condomínio. Alguém pergunta: onde é seu rancho? você responde e a pessoa vai
saber que é naquele condomínio mais normal. (...) Fica tudo perdido, porque essas
construções mal feitas acabam manchando a imagem do condomínio. Eu preferia
ter comprado meu rancho em outro condomínio, mais homogêneo”.
(41 anos,
funcionária pública, proprietária de lote no loteamento Portal da Praia, Buritama)
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A busca pela distinção social por meio do consumo dos loteamentos fechados ribeirinhos, espaços
produzidos material e simbolicamente para serem diferenciados e diferenciadores, está presente,
como constatamos a partir das entrevistas, tanto nos segmentos de alto poder aquisitivo, quanto
naqueles de poder aquisitivo médio e baixo. Não são apenas as pessoas com maiores rendimentos
que desejam se diferenciar e marcar, física e simbolicamente, suas posições no espaço social. As
pessoas dos segmentos médios também procuram a distinção, por meio da apropriação desses
espaços exclusivos. A partir das entrevistas que realizamos com as pessoas que residem nos
municípios em que estão implantados os empreendimentos fechados ribeirinhos e que estão fora de
seus muros, pudemos verificar que existe uma vontade, também dos setores de menor poder
aquisitivo de adquirir lotes e construir casas nesses loteamentos ribeirinhos, fato que não é
consumado devido aos limites de poder aquisitivo. Para ilustrar essa questão, destacamos o
depoimento do seguinte entrevistado:
Se eu tivesse condições financeiras, dinheiro sobrando, é lógico que eu ia querer ter
um rancho dentro de um condomínio na beira do rio. Parece que é diferente, não
sei. Quando você fala condomínio, já dá um ar diferente, parece que é coisa
importante. mais destaque do que se você falar que tem um rancho comum.
Fotos 9, 10, 11 e 12 - Buritama. Portal da Praia. Exemplos das “construções indesejadas”. 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Foto 9
Foto
10
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Foto
11
Foto
12
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Então se eu pudesse escolher, é claro que eu ia preferir ter um rancho dentro de um
condomínio.”
(56 anos, comerciante, residente na cidade de Buritama, rendimento
médio mensal R$1.500)
Nas palavras desse entrevistado, existe diferenças entre a posse de um rancho dentro de um
loteamento fechado e fora dele, sendo que a propriedade dentro dos muros
parece coisa
importante”.
Assim, considera que o loteamento agrega valor ao rancho, dando
mais destaque”
que um rancho comum. Esse
destaque
propiciado pelo fechamento pode ser entendido como o
fator diferencial que atua tanto no nível espacial, no que se refere à diferenciação nas condições
objetivas do empreendimento, quanto no nível simbólico, “destacando” também o proprietário do
rancho no loteamento. Dessa maneira, não podemos afirmar que apenas os segmentos de maior
poder aquisitivo é que buscam se diferenciar socioespacialmente, visto que, muitas vezes, os mais
pobres não empreendem estratégias de diferenciação porque seus recursos são limitados.
Essa ubiqüidade do sentimento de demarcação social nos diferentes segmentos sociais nos
possibilita entender a produção de empreendimentos fechados para setores diferenciados da
sociedade, visto que como apontamos, para a realidade estudada, existem loteamentos fechados
para as elites e também para os segmentos de renda média e média baixa. Dessa maneira,
podemos afirmar que vem ocorrendo uma tendência à “massificação” do consumo desses espaços,
ao passo que os segmentos de menor rendimento vêm adotando, guardadas as especificidades, as
estratégias socioespaciais dos segmentos de alta renda. Sendo assim, o que surge num intuito de
personalização, passa a ser incorporado nas práticas daqueles de quem se desejava separar.
É importante ressaltar que essa busca de distinção social não é desejada apenas em relação à
segmentos de poder aquisitivo diferentes. No interior dos mesmos segmentos também existe essa
necessidade de mostrar a superioridade de gostos e de poder econômico. É nesse sentido, que
constatamos, em algumas entrevistas, o desejo dos entrevistados de se diferenciarem dos demais
proprietários, por meio das casas, dos jardins, das piscinas, enfim, a partir da ostentação de seus
poderes aquisitivos e também de seus gostos.
Para exemplificar esse aspecto, os depoimentos a seguir são emblemáticos:
Aqui dentro parece uma competição. Se um faz uma coisa, o outro vai e copia,
ai o outro não quer mais aquilo, porque o outro tem igual, faz outra coisa,
modifica. É assim. Tem um homem aqui que pintou a casa dele uma três vezes
esse ano. Parece que ele quer ter sempre a casa mais bonita, o jardim mais
arrumado, melhor. Ano passado ele mudou todo o jardim, plantou tudo de novo.
Então, eu sinto isso. Às vezes, as pessoas nem fazem as coisas para elas mesmas, é
mais para se mostrar para os outros. Mostrar que pode mais”
. (48 anos, empresária,
residente na cidade de São José do Rio Preto, proprietária de casa no loteamento
Orla Um, em Buritama)
“Existem mesmo pessoas que exageram. A gente ficou sabendo que teve uma
mulher aqui no condomínio que contratou uma decoradora para decorar a casa,
dizem que ela gastou muito dinheiro. Eu acho exagero, fazer isso em um rancho.
Mas tem gente que não sabe onde gastar o dinheiro não é? Eu não gosto de
muita ostentação, não. Você pode perceber que a minha casa é mais simples, sem
muita frescura. Justamente porque eu acho que a gente vem para cá para ficar
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sossegado, tranqüilo. Não precisa ficar mostrando, se tem dinheiro ou não tem. Mas
a maior parte das pessoas daqui não pensa assim, um quer ter a piscina melhor que
o outro, um coloca aquecimento, o outro coloca tobogã, um coloca cascata e assim
vai”. (43 anos, dentista, residente na cidade de Birigui, proprietário de casa no
loteamento Marina Bonita, em Zacarias)
Constatamos, dessa forma, que os loteamentos fechados ribeirinhos são como vitrines, onde as
pessoas demonstram seu poder aquisitivo, seus gostos e estilos de vida, perante seus diferentes, mas
também em relação a seus iguais. A estética da paisagem, com casas bonitas, bem decoradas, com
jardins bem cuidados, serve para diferenciar e valorizar o empreendimento, visto que ao conter
esses atributos, podem ser considerados como espaços exclusivos, considerando o fato de que quanto
mais o empreendimento reunir elementos diferenciadores, mais status proporcionará aos seus
consumidores.
Voltando à questão da diferenciação dos loteamentos fechados ribeirinhos quanto à sua
destinação socioeconômica para segmentos de alto padrão e segmentos de médio padrão
aquisitivo destacamos que uma decorrência dessa diferenciação socioespacial é a diferenciação
entre os usos estabelecidos nesses espaços. Ao observar as práticas dos proprietários de casas nesses
dois grupos de loteamentos e ao analisar as entrevistas realizadas, podemos perceber que existe
algumas diferenças nas práticas estabelecidas nos loteamentos de alto padrão e nos loteamentos
para os segmentos médios. Alguns exemplos dessas diferenças estão sistematizados a seguir:
- Nos loteamentos para pessoas de maior padrão aquisitivo, os intervalos de tempo que as
pessoas passam sem ir ao loteamento são relativamente maiores e elas costumam levar, mais
freqüentemente, pessoas apenas da família. nos loteamentos para as pessoas de padrão
aquisitivo médio, as pessoas costumam ir para os loteamentos em quase todos os finais de semana e
é mais comum que elas levem junto com suas famílias, alguns amigos. É mais comum também, que
elas emprestem o rancho para outras pessoas.
- Nos loteamentos para pessoas de maior poder aquisitivo, a maior parte das atividades é
realizada no âmbito da casa, ou seja, as pessoas utilizam mais a piscina, a churrasqueira, a varanda
e o gramado de suas próprias casas, não utilizando com tanta freqüência os rios e as demais áreas
comuns dos empreendimentos. Nos loteamentos para pessoas com padrão aquisitivo médio, as
pessoas costumam utilizar, mais freqüentemente, as áreas comuns do loteamento, como os rios, a
areia de suas margens, os campos para futebol, as ruas para as caminhadas.
- Nos loteamentos destinados às pessoas de maior poder aquisitivo, é mais comum a prática de
construir uma pequena casa para abrigar os caseiros, funcionários pagos para morarem no
loteamento e cuidarem do rancho, fazendo serviços de jardinagem, limpeza, manutenção e
também a vigilância. Nos loteamentos para pessoas com médio poder aquisitivo, essa prática de
contratar caseiros não foi encontrada, sendo que os serviços são feitos, geralmente, por pessoas
contratadas pelo próprio loteamento.
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- Nos loteamentos para pessoas com maior poder aquisitivo, foram relatados menos
desentendimentos internos em relação à governança do loteamento, principalmente no que se
refere ao gasto das verbas provenientes do pagamento do condomínio. Nos loteamentos para
pessoas com médio poder aquisitivo, foram relatados mais desentendimentos desse tipo,
principalmente quanto ao uso das verbas provenientes do pagamento do condomínio e no que se
refere ao cumprimento do regimento interno.
- Os loteamentos para pessoas de maior poder aquisitivo são mais homogêneos espacial e
socialmente e os controles exercidos tanto no que se refere ao acesso a esses espaços, nas portarias,
quanto no cumprimento das regras estabelecidas pelo regimento interno, são mais efetivos. Os
loteamentos destinados a pessoas de médio padrão aquisitivo são mais heterogêneos espacial e
socialmente e os controles ao acesso e ao cumprimento das regras internas são exercidos com mais
dificuldade.
- Nos loteamentos para os segmentos de maior poder aquisitivo as práticas realizadas para a
obtenção de uma segurança suplementar nos espaços internos ao empreendimento são mais
elaboradas, sendo comum, além dos vigias e seguranças que o loteamento oferece, a adoção de
sistemas de alarme, muros, câmeras de vigilância e cercas elétricas nas casas. Nos loteamentos para
os segmentos de médio poder aquisitivo as estratégias para se buscar segurança, o menos
elaboradas, sendo que as principais formas suplementares de se buscar segurança nos espaços
internos desses empreendimentos é a construção de muros nas casas e a colocação de cadeados nas
janelas e portões.
Apesar dessas diferenças apontadas, existem também, semelhanças na apropriação desses
espaços, visto que são espaços com a mesma destinação. Os diferentes segmentos sociais apropriam-
se desse tipo de empreendimento ribeirinho com a intenção de se divertirem, descansarem, estarem
mais próximos da Natureza, longe do cotidiano que levam nas cidades. Dessa maneira,
consideramos que os dois tipos de loteamentos fechados ribeirinhos identificados, partem do mesmo
pressuposto para sua criação: serem espaços para que os citadinos distanciem-se de suas rotinas
cotidianas, em espaços que oferecem um contato maior com a Natureza e uma sensação de
segurança, apresentando todas as infra-estruturas básicas que eles têm nas cidades.
De uma maneira geral, os loteamentos fechados ribeirinhos são espaços destinados ao lazer, nos
quais se expressam as diferenciações sociais, verificadas na segmentação do consumo presente nesses
empreendimentos. Os desejos de exclusividade e de distanciamento, que levam os segmentos de
maior poder aquisitivo, incluídos os segmentos médios, a buscarem espaços fechados para a
prática de suas ões cotidianas, são revelados também, quanto aos espaços de lazer. Assim, nesses
loteamentos fechados, as pessoas com maior poder aquisitivo pagam para poderem desfrutar de
seus momentos de lazer longe dos segmentos mais pobres. Portanto, esses espaços constituem áreas
elitizadas e fechadas, nas quais os que possuem mais recursos apropriam-se do direito de usufruírem
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a Natureza, no caso os rios e as áreas de preservação florestal, restringindo o aceso ao interior deles,
para aqueles que puderem pagar.
Consideramos esses loteamentos fechados ribeirinhos, mesmo aqueles que classificamos como
destinados para os segmentos de médio poder aquisitivo, como espaços para as elites, pois de
acordo com Sposito (2004, p. 374), nas cidades de porte médio, a classe média se inclui na
demanda solvável que é capaz de adquirir novos produtos imobiliários, como os novos
habitats
urbanos. Para a autora:
(...) o consumo e a apropriação dos espaços urbanos produzidos pelo setor
imobiliário, vão se realizar, em cidades de porte médio, segundo uma segmentação
que difere da observada nas metrópoles, gerando uma separação socioespacial
entre os mais “pobres” e os mais “ricos”, que inclui a classe média neste último grupo.
(SPOSITO, 2004, 374)
Sobarzo (2006, p. 205) destaca que essa dinâmica não é explicada somente pelos custos
menores de aceder às novas formas de moradia, mas também porque uma fração dos segmentos
médios, tenta, por meio do consumo, imitar as elites e, por sua vez, é imitada por segmentos de
menor poder aquisitivo numa espécie de efeito cascata, “que explica, em parte, o grande prestígio
simbólico que essas novas formas de morar possuem em amplos setores da sociedade”.
Como os loteamentos fechados ribeirinhos estudados estão situados em cidades pequenas, onde
os preços das terras também são menores que os encontrados nas metrópoles e os principais
consumidores desses empreendimentos são provenientes de cidades de porte médio, consideramos
que as afirmações acima são válidas também para a análise dos loteamentos fechados ribeirinhos.
Por estarem localizados em cidades pequenas, associados às dinâmicas que ocorrem nas cidades
médias e por uma destinação voltada para o lazer, na forma de segunda residência, esses
empreendimentos fechados possuem algumas especificidades nas formas de apropriação de seus
espaços. Por serem apropriados em momentos de descontração e descanso, e não diariamente
como nos outros tipos de empreendimentos, nos loteamentos fechados ribeirinhos temos
características diferenciadas quanto às práticas ali estabelecidas.
2.3. Loteamentos fechados ribeirinhos: singularidades em sua apropriação espacial e
nas decorrências socioespaciais
Os loteamentos fechados ribeirinhos são espaços diferenciados dos outros tipos de loteamentos
fechados, porque o são destinados à primeira residência, ou seja, não constituem a residência
principal de seus proprietários. Isso faz com que tanto a apropriação, quanto as decorrências
socioespaciais advindas do uso desses espaços sejam diferenciadas. Assim, nessa parte do capítulo
realizamos uma breve discussão sobre algumas singularidades encontradas nesses loteamentos
fechados ribeirinhos, como a questão do lazer, segunda residência e redefinição das relações entre
urbano e rural.
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2.3.1 – Loteamentos fechados ribeirinhos: paraísos para o lazer
Antes de realizarmos algumas reflexões sobre os significados e as singularidades da apropriação
dos loteamentos fechados ribeirinhos, apresentamos a seguir alguns depoimentos colhidos durante
as entrevistas realizadas, que mostram as percepções sobre esses empreendimentos, a partir dos
discursos dos proprietários de casas nesses espaços e, também, daqueles que ficam fora de seus
muros.
Quando questionados quanto às motivações que os levaram a escolher comprar um lote nos
loteamentos fechados ribeirinhos, os entrevistados deram respostas que podem ter seu conteúdo
resumido pelos seguintes depoimentos:
Olha, em primeiro lugar, nós escolhemos comprar um lote aqui porque queríamos
um lugar tranqüilo e bonito para que pudéssemos descansar, passar um final de
semana agradável, trazer a família e os amigos. (...) E a gente escolheu dentro de
um condomínio fechado porque aqui é mais seguro, a gente pode ter mais
confiança, não precisamos nos preocupar durante a semana se a casa vai ser
invadida, se vão roubar nossas coisas. Então a gente considera que aqui a gente
tem uma tranqüilidade dupla. Uma porque a gente es longe da agitação da
cidade, mais perto da Natureza e a outra porque a gente não precisa ficar se
preocupando com a segurança da nossa casa e da nossa família.
(42 anos, dentista,
proprietário de lote no loteamento Orla Um, Buritama)
Nós consideramos aqui como um verdadeiro refúgio. É nosso cantinho para a gente
ficar escondido, esquecer dos problemas, das pessoas chatas. Então, foi para isso. Nós
queríamos um lugar assim, mais tranqüilo, com o rio, os passarinhos, para poder
pescar, poder nadar, fazer nosso churrasco. O meu marido estava ficando muito
estressado, muito nervoso, daí a gente decidiu fazer uma casa aqui, porque quando
as coisas começam a apertar, nós corremos para cá. É muito bom.
(41 anos,
empresária, proprietária de lote no loteamento Belvedere, Penápolis)
Nossa, isso aqui é minha vida! não consigo nem pensar na minha vida sem ter o
meu rancho aqui. Não vejo a hora de dar sexta a tarde para eu poder vir pra cá. A
motivação foi essa, ter um lugar gostoso para descansar, para o lazer mesmo, não
é? Eu tinha um rancho antes, mais individual. A gente decidiu comprar um aqui no
condomínio por causa da segurança, para não ter dor de cabeça. Aqui a gente
pode deixar as coisas na varanda, o carro aberto, colocar um colchão aqui fora e
dormir, que não tem perigo. A paranóia fica fora, aqui a gente pode se divertir
em segurança. (
35 anos, representante comercial, proprietário de lote no
loteamento Jardim Itaparica, Buritama)
Quando perguntamos para os residentes nos municípios em que estão implantados os
loteamentos fechados ribeirinhos e que não possuem casas nesses empreendimentos, qual era a
opinião que eles tinham sobre esses espaços, eles deram respostas como as que se seguem:
Esses loteamentos são mais para as pessoas descansarem, não é? Passar um final de
semana agradável, com a família. Porque a maior parte das pessoas não mora
neles. Vem no final de semana, nas férias. São lugares agradáveis, mais pras
pessoas descansarem a cabeça. E, além disso, tem o fato de que as pessoas são
selecionadas. Porque, você querendo ou não, só pessoas com uma renda razoável é
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que vão poder ter um rancho dentro de um loteamento desses.
(64 anos,
aposentado, residente na cidade de Buritama)
Eu fui ao Belvedere com uma amiga, num aniversário. Eu gostei de lá. Parece
que é muito seguro, as crianças se divertem muito. Não as crianças, é claro. Mas
é que lá elas podem ficar mais soltas, que não tem perigo. É o lugar ideal pra
reunir os amigos, a família e aproveitar o sol, a água. É um lugar muito gostoso
para recarregar as pilhas, podemos dizer.
(44 anos, professora, residente na cidade
de Penápolis)
Aqui no condomínio de Zacarias eu nunca fui não. Ele fica mais afastado, não fica
no campo de visão. Eu conheço mais os de Buritama. Não que eu freqüente, mais
alguns são mais visíveis. Ficam no caminho quando a gente vai para Birigui e
Araçatuba. Então a gente conhece mais um pouco. Eu acho que esses condomínios
foram, vamos dizer, investimentos que deram certo. Basta ver a quantidade de
carros que vão pra eles. A maioria é gente de fora. O povo gosta de ter um lazer
mais em contato com a natureza, em espaços mais tranqüilos. E nas cidades um
pouco maiores não se muito isso. Então elas vêm para os condomínios pra
aproveitar um pouco dessa natureza. E tem também o fato da segurança. Esses
espaços controlam a entrada das pessoas. os proprietários e os visitantes é que
podem entrar. Então, você pode ter uma confiança maior. (
34 anos, dona de
supermercado, residente na cidade de Zacarias)
A partir dos depoimentos desses dois grupos de pessoas os de dentro e os de fora podemos
perceber que a principal motivação que faz as pessoas buscarem esses espaços é o lazer, associado
ao descanso e à tranqüilidade, ao encontro de familiares e amigos e a um contato maior com a
Natureza. Esses loteamentos fechados ribeirinhos são tidos como espaços aonde se vai para
desacelerar”, recarregar as pilhas”, desestressar”.
Dessa maneira, simbolizam a quebra com a
rotina, representando espaços que permitem o contato com outra realidade, mais agradável que a
presente no cotidiano urbano.
Assim, uma breve reflexão sobre os conteúdos do lazer na sociedade contemporânea, apesar de
não ser o foco de análise do presente trabalho, é importante para entendermos a significação dos
loteamentos fechados ribeirinhos e suas formas de apropriação. Consideramos que as formas atuais
de percepção sobre o lazer e as maneiras como o lazer é realizado são resultado do
desenvolvimento histórico desse conceito, no sentido do processo de dissociação do tempo de
trabalho e do tempo de não-trabalho.
A ocorrência histórica do lazer é bastante discutida, existindo correntes divergentes sobre a
questão, sendo que Marcellino (2002) destaca que:
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Alguns autores consideram que, se os homens sempre trabalharam, também
paravam de trabalhar, existindo assim um tempo de não-trabalho, e que esse
tempo seria ocupado por atividades de lazer, mesmo nas sociedades chamadas
tradicionais. Para outros, o lazer é fruto da sociedade moderna - urbano -
industrial.
Não há, a rigor, um caráter de rejeição entre as duas correntes, mas sim enfoques
diferentes: a primeira aborda a necessidade de lazer, sempre presente, e a segunda
se detém nas características que essa necessidade assume na sociedade moderna.
Em outros tipos de organização social, o que se verifica é o não isolamento das
atividades obrigatórias, das lúdicas, o que de modo algum significa a não-existência
do lúdico. (MARCELLINO, 2002, p. 54)
Sendo assim, nas sociedades pré-industriais, trabalho e lazer não eram excludentes, sendo os
dois, marcados pela ludicidade. Isso porque, não havia uma separação rígida entre as várias esferas
da vida do homem. O binômio trabalho/lazer não era caracterizado, ocorrendo de forma
entrelaçada. A dissociação entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho passou a ser
realizada a partir da Primeira Revolução Industrial. Nesse período, o trabalho adquiriu uma
posição central, organizando as práticas cotidianas. A alienação dos trabalhadores em relação às
atividades produtivas aumenta e os tempos de não-trabalho são organizados em função da
reprodução do próprio trabalho, ou seja, é destinado à realização de atividades que possibilitem a
manutenção do trabalho, visto que as jornadas diárias dos trabalhadores giravam em torno de 16
horas. Assim, nos momentos de não-trabalho, as pessoas alimentavam-se e dormiam, com vistas a
começar um novo dia de trabalho. Nesse período, as possibilidades de lazer são separadas das
atividades de trabalho, que passam a ser caracterizadas por aspectos mecânicos e impessoais. O
lazer, assim, passa a ser praticado muito precariamente, visto que a maior parte do tempo era
dedicada, direta e indiretamente, às atividades produtivas. (MARCELLINO, 2002, p. 54/55)
De acordo com Marcellino (2002, p. 3), a importância do lazer foi ganhando terreno com o
advento da sociedade industrial, sendo que foi, na Europa, motivado pelas condições do trabalho
industrial, que desrespeitavam o mínimo de dignidade para o ser humano, que surgiu o primeiro
manifesto a favor do direito ao lazer dos trabalhadores, o clássico O Direito à Preguiça, do militante
socialista Lafargue, publicado em 1880.
As graduais conquistas dos trabalhadores que, através de uma história de lutas e reivindicações,
asseguraram seus direitos por meio da aprovação de leis, que regulamentam, por exemplo, a
diminuição da jornada de trabalho para oito horas diárias, um dia de descanso semanal, férias
remuneradas e também a aposentadoria, foram aumentando o tempo livre dos trabalhadores e,
conseqüentemente, ampliando as possibilidades de lazer.
Segundo Dumazedier:
Lazer é o conjunto de ocupações as quais o indivíduo pode entregar-se de livre
vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se, ou ainda,
para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação
social voluntária ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se das obrigações
profissionais, familiares e sociais. (DUMAZEDIER, 2001, p. 15)
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Para o autor, o lazer não se reduz ao tempo liberado pelo progresso econômico e pelas
reivindicações sociais. Ele é uma criação histórica, resultado de alterações nos controles institucionais
e nas exigências individuais. Sendo assim, o lazer é influenciado pelo consumo de massa e pela
estrutura de classe e vem se tornando centro da elaboração de novos valores para a sociedade.
(DUMAZEDIER, 2001, p. 18)
Segundo Dumazedier (1975, p. 23/25) temos que entender o surgimento do tempo do lazer a
partir de alterações na sociedade, referentes a quatro aspectos: a) dinâmica técnico-econômica, b)
dinâmica social, c) dinâmica da transformação do tempo liberado em lazer e d) dinâmica cultural.
A alteração na dinâmica técnico-econômica é resultado das transformações ocorridas a partir
dos avanços tecnológicos e gerenciais de produção, que permitiram a produção de um volume
maior de riqueza, assim como a existência de um tempo liberado – o tempo do não- trabalho. Essa
liberação de um tempo aos trabalhadores, que não seria utilizado para a produção, foi, segundo
Dumazedier (1975, p. 25), a primeira condição histórica que tornou possível a produção do lazer na
sociedade contemporânea.
Outro fator histórico fundamental para o entendimento do lazer contemporâneo diz respeito à
dinâmica social, mais especificamente às forças sociais que agiram a favor da regressão do tempo
de trabalho. Identificadas nos movimentos sindicais, essas forças sociais foram importantes para a
obtenção da redução das jornadas de trabalho e das melhorias das condições de vida dentro e fora
deste. Nessa etapa, temos a configuração de um tempo livre, desobrigado do trabalho, mas que
não constitui, ainda, um tempo de lazer. (DUMAZEDIER, 1975)
Temos assim, a dinâmica da transformação do tempo liberado em lazer, em que se constitui
efetivamente a produção do lazer na sociedade industrial. A partir da regressão dos controles
institucionais sobre a vida dos indivíduos, e, sobretudo, sobre o tempo liberado das pessoas, é que foi
possível que o tempo liberado do trabalho fosse utilizado para a prática de atividades de lazer. Essa
regressão dos controles institucionais estaria baseada, segundo o autor, nas resistências populares às
concepções autoritárias de política, na diminuição do controle religioso sobre a vida das pessoas e
na diminuição do papel da família na orientação das atividades de seus membros. (DUMAZEDIER,
1975)
Para consolidar a produção do tempo de lazer, temos ainda a dinâmica cultural, que
representa a passagem de uma moral de repressão, para uma moral de expressão, marcada pelo
desenvolvimento de novas iniciativas e atividades que significavam novas possibilidades de uso do
tempo liberado para os indivíduos. Assim, o tempo livre adquiriu novos conteúdos, além do
descanso, que representam as manifestações de desejos e tendências anteriormente reprimidos.
Dessa maneira, o lazer é uma construção social que vai representar os anseios e os modos de pensar
de cada sociedade. (DUMAZEDIER, 1975)
Daí, decorre, de acordo com Dumazedier (1975, p. 30), a necessidade de diferenciação entre
tempo livre e tempo de lazer, visto que o tempo livre está, quase que preponderantemente,
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disponível a todos, enquanto o tempo de lazer é elaborado socialmente e essujeito a uma série
de cerceamentos, sejam eles econômicos, sociais, políticos ou culturais.
Para Elias e Dunning (1992, p. 45), o lazer serve como uma válvula de escape, como um
processo que serve para a exteriorização de todas as pulsões reprimidas e todo o peso do processo
civilizador. Dessa forma, os momentos de lazer, ou de explosão das pulsões, não podem abalar o
processo civilizador das sociedades complexas, porque essa exteriorização das repressões é uma
parte constitutiva desse mesmo processo. Os autores consideram, de maneira geral, que a busca da
excitação por meio das atividades de lazer é uma necessidade social, pois facilita a incorporação
das normas requeridas pelo processo civilizador, ao passo que se não houvesse momentos de
aliviamento das repressões, as pessoas estariam sujeitas a uma implosão interna ou a uma neurose
coletiva que levaria a uma instabilidade social. Assim, o lazer serve como um fator possibilitador da
continuidade do processo civilizador.
Consideramos que o lazer dever ser entendido em relação às outras esferas da vida social. Não
serve apenas para repor as energias para o início de uma nova jornada de trabalho. O lazer
possibilita a reflexão, o contato com novas realidades, o crescimento pessoal, ou seja, é uma
dimensão muito mais ampla do que a concepção que encara o lazer apenas como parte necessária
da reprodução do trabalho.
De acordo com Bruhns (2004, p. 96), podemos aproximar o lazer de um estado de
tranqüilidade e serenidade, o qual permearia a vida como um todo, não sendo realizado apenas
em um tempo determinado. Realizar atividades de lazer implica em “fazer poucas coisas, procurar
não se meter em coisas desagradáveis e não ir além dos próprios limites”. Para a autora, o tempo
de lazer está associado com valores como sossego, paz e tranqüilidade.
Segundo De Grazia (apud Bruhns, 2004, p. 96) o lazer é um estado no qual vivenciamos a
ausência da necessidade de estarmos ocupados, portanto, corresponde a um estado de
desobrigação, no qual seria possível exercitar as idéias e a imaginação. Dessa maneira, o lazer pode
ser uma atividade reflexiva, onde estaria presente um ideal de liberdade relacionado a um
compromisso político (no sentido de propor alternativas de vida) e a uma conexão profunda com o
mundo, no qual o sujeito se situaria numa revisão constante de valores e concepções.
Marcellino (2002, p. 13) reconhece que o lazer pode ter vários conteúdos, ligados basicamente,
ao descanso, ao divertimento e ao desenvolvimento pessoal. O lazer seria, assim, o momento da
criatividade, da liberdade das pessoas na escolha de seus atos, visto que representa um tempo,
pretensamente, livre de obrigações e que possibilita a fuga do cotidiano. Mas essa liberdade de
escolha associada aos momentos de lazer é relativa, se considerarmos a introdução do lazer na
esfera da produção capitalista. Assim, o autor destaca que a possibilidade de escolha das atividades
e o caráter desinteressado de sua prática o características básicas do lazer. No entanto, o que
temos observado atualmente é, cada vez mais, o estabelecimento de práticas compulsivas, ditadas
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por modismos, ou denotadoras de status, realizadas em espaços pré-determinados e carregados de
significados sociais distintivos.
O que vem ocorrendo, na atualidade, é que o lazer, ao ser valorizado e percebido como uma
atividade “necessária” para a vida das pessoas, entra no circuito das trocas e passa a ser vendido a
partir de modelos pré-concebidos. Criam-se conceitos padronizados para definir os tipos ideais de
atividades de lazer. Assim, as escolhas das pessoas, quanto aos espaços e quanto ao tipo de
atividade que se realizará, passam a ser influenciadas pelas tendências do mercado.
Símbolos de lazer passam a ser vendidos, sempre associando determinadas atividades de lazer
com determinados estilos de vida e segmentos sociais. O lazer, no âmbito do consumo, passa a ser
um fator de distinção social, visto que pessoas de diferentes segmentos terão possibilidades de se
apropriar de diferentes atividades de lazer. Assim, o lazer passa a ser uma atividade que denota a
segmentação socioespacial, ao serem produzidos diferentes espaços, destinados à prática de lazer de
diferentes segmentos sociais, que não compartilham mais os mesmos territórios.
Devemos ressaltar que não consideramos que as atividades de lazer, marcadas pela produção
capitalista, são realizadas, apenas, de forma passiva. O fato é que as escolhas pessoais, nessa
conjuntura, possuem a tendência a serem mais comprometidas com os padrões de consumo
dominantes, mas, dentro do contexto da manipulação das escolhas, ainda existe opções e
resistências que podem ser empreendidas.
Para Gutierrez (2001, p. 38), o lazer possui uma natureza particularmente complexa, visto que
se constitui como uma busca pessoal pela realização do prazer, fato que coloca o sujeito social no
campo das ações determinadas racionalmente. No entanto, o prazer em si, com sua interface
psicológica/fisiológica/cultural não pode ser reduzido à dimensão racional. Assim, as atividades
ligadas ao lazer são dotadas de aspectos racionais e subjetivos que se entrelaçam na constituição de
formas ideais de se gastar o tempo de não trabalho, impregnadas por conteúdos construídos
socialmente.
De acordo com Lucas (2007, p.27), o tipo de lazer que vem sendo disseminado de forma mais
preponderante no espaço urbano atual, representa muito mais algo funcional do que um lazer que
promova a auto-reflexão e o bem estar do indivíduo. “Trata-se de um lazer cada vez mais
comprometido com o mundo do consumo e também com a função de levantar ‘tipos’ ou marcas a
serem seguidas, em contrapartida a um lazer que vise qualidade de vida e a livre ação e criação
das pessoas”.
Consideramos que essa mercantilização do lazer participa da produção da concepção dos
loteamentos fechados ribeirinhos estudados. Observamos que há uma idealização das atividades de
lazer como possibilitadoras de bem-estar, tranqüilidade, convívio em família e fuga do cotidiano.
No caso dos loteamentos fechados ribeirinhos, a idealização do lazer une-se com a idealização do
contato com a Natureza, vendendo-se a imagem de que esses espaços são verdadeiros paraísos,
destinados ao relaxamento e ao divertimento. Dessa forma, a busca por lazer nesses espaços resulta
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da busca da satisfação da “necessidade”, criada pelo mercado, de se gastar o tempo livre de uma
maneira considerada como ideal. Além disso, os loteamentos fechados ribeirinhos oferecem
exclusividade e status, por serem espaços de lazer que não estão disponíveis para todos. Sendo
assim, as práticas de lazer empreendidas nesses espaços servem para demarcar a posição social de
seus realizadores.
Sobre essa questão da estandardização das atividades de lazer, pudemos constatar a partir das
entrevistas realizadas, que o consumo dos loteamentos fechados ribeirinhos faz parte de uma lógica
de consumo mais ampla, marcada pela procura da distinção e homogeneidade social, também nos
momentos de lazer. Fazemos essa afirmação porque quando perguntados sobre suas atividades de
lazer nas cidades em que residem, os entrevistados que possuem casas nos loteamentos fechados
ribeirinhos mostraram que suas práticas de lazer estão restritas, basicamente, a espaços privados
como restaurantes, bares e, também,
shopping centers
. Alguns entrevistados declararam que os
shopping centers
são espaços ideais para o lazer nas cidades, visto que dentro deles as pessoas têm
acesso a um conjunto de atividades, como cinemas, boliche, restaurantes e as próprias lojas,
podendo contar ainda, com a sensação de segurança que esses espaços oferecem, por serem
vigiados e monitorados. Segundo os entrevistados:
As únicas coisas que a gente faz como lazer em Rio Preto é ir jantar na casa de
amigos e ir ao shopping de vez em quando. Eu acho mais prático ir ao shopping,
porque a gente pode almoçar, depois ir ao cinema, dar uma olhada nas lojas.
Além disso, tem estacionamento e podemos considerar que é um lugar seguro.
Mesmo assim, a gente não vai com tanta freqüência, não. Nossos filhos vão muito
mais. (40 anos, arquiteta, residente na cidade de São José do Rio Preto, proprietária
de casa no loteamento Marina Bonita)
A gente costuma ir ao shopping com certa freqüência. Eu gosto de andar nas lojas,
levar as crianças nos brinquedos que tem lá dentro, comer alguma coisa. Tem muita
opção, você pode fazer de tudo, até pagar contas. Além disso, é um ambiente
agradável, climatizado. Então, fora o rancho, a gente costuma ir para o shopping.
Ou então, ficar em casa, alugar um filme, fazer uma comida diferente. isso. (45
anos, dentista, residente na cidade de Araçatuba, proprietário de casa no
loteamento Belvedere)
As falas dos entrevistados, que possuem casa nos loteamentos fechados ribeirinhos, indicam que
as atividades de lazer que realizam em suas cidades estão ligadas ao consumo. Quando saem de
casa com o objetivo de se divertirem, os entrevistados buscam espaços em que possam consumir
produtos e serviços. Assim, realizam um lazer de consumo, em espaços de consumo. Nenhum desses
entrevistados apontou a utilização de algum espaço público, como praças e parques para a
realização de suas atividades de lazer. Estão sempre em espaços privados, que pressupõem uma
homogeneidade no que se refere aos gostos e ao padrão social.
Nesse aspecto, o consumo dos loteamentos fechados ribeirinhos constitui uma continuação do
tipo de prática de lazer que empreendem nas cidades em que residem. São espaços privados, onde
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as pessoas consomem a Natureza, o bem-estar e a tranqüilidade, em espaços tidos como seguros.
Além do lazer nos espaços de consumo, podemos destacar que muitos entrevistados apontaram o
lazer dentro de suas próprias residências, como reunião entre amigos, assistir a filmes, churrasco em
família, etc. Nesses casos, o lazer também é estabelecido dentro de um parâmetro determinado de
sociabilidade, visto que ocorre entre pessoas pré-definidas e selecionadas. Estão excluídas, dessa
forma, ou pelo menos se tenta excluir, as possibilidades de encontros eventuais com pessoas
diferentes, como os espaços públicos podem propiciar.
Constatamos, a partir dos depoimentos dos entrevistados que residem nas cidades em que estão
implantados os loteamentos fechados ribeirinhos e que não possuem casas nesses empreendimentos,
que os espaços de lazer que eles utilizam diferem um pouco dos utilizados pelo outro grupo de
entrevistados. As cidades em questão, Buritama, Penápolis e Zacarias, não possuem
shopping
centers
, nem muitas opções diferenciadas de bares, restaurantes e outros equipamentos de lazer. O
lazer nessas cidades, segundo os depoimentos levantados, ainda está muito ligado a ir à missa aos
domingos, dar uma volta na praça, comer um lanche, tomar um sorvete. Assim, foi constatada com
maior freqüência a utilização de alguns espaços públicos como a praça, a avenida, as ruas do
centro, as calçadas onde as pessoas ficam vendo o movimento. No entanto, o lazer que ocorre nesses
espaços não é valorizado, sendo percebido como a única opção que as pessoas m. Os moradores
dessas cidades que possuem um nível de renda mais favorável, procuram outras cidades, para ir ao
shopping
, cinemas, bares e boates, pois consideram que as atividades de lazer que suas cidades
oferecem não são suficientes, ou não são adequadas para seus gostos. Sobre essa questão,
destacamos os depoimentos a seguir:
As opções de lazer aqui na cidade são muito restritas. Ou você vai para a ”avenida”
[Avenida Leandro Ratisbona de Medeiros que concentra alguns bares e
lanchonetes, para onde as pessoas costumam se dirigir nos finais de semana, no final
da tarde e também à noite]
ou não tem mais nada. Você acaba ficando cansado
de fazer as mesmas coisas. Então, eu sei que muitas pessoas daqui vão pra
Araçatuba, para Birigui, procurando os shows, as boates, os barzinhos e até o
shopping, pra ir ao cinema, comer alguma coisa. É o que acaba acontecendo, temos
que procurar opções de lazer em outras cidades
. (33 anos, dentista, residente na
cidade de Penápolis)
O único lazer que eu encontro aqui e acho que a maioria das pessoas também, é ir
para a praça, ficar dando voltas lá no centro, comer um lanche, uma pizza. Ir a um
baile quando tem. isso. Tomar um sorvete no domingo à tarde, ficar vendo o
movimento. Eu vejo pelos meus alunos. Eles vivem reclamando que Buritama é o
fim do mundo, não tem nada para fazer, nem de dia, nem de noite. Muitos vão pra
outras cidades.
(44 anos, professora, residente na cidade de Buritama)
Olha, lazer, lazer mesmo, para diversão, aqui em Zacarias não tem muita coisa não.
A gente costuma ir pra Buritama, para comer uma pizza, beber uma cerveja, mas
também é isso. De vez em quando tem um baile e a gente vai. Aqui é mais
dar uma volta na praça depois da missa e só. Tem que ir pra outro lugar. Os jovens
então, eles sofrem mais, porque não tem nada para eles fazerem, para sair,
paquerar, essas coisas da idade deles.
(37 anos, advogada, residente na cidade de
Zacarias)
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Gostaríamos de ressaltar, antes de prosseguirmos nossa reflexão sobre as atividades de lazer, que
estamos, apenas, levantando algumas questões para serem pensadas e desenvolvidas em outro
momento, visto que o foco de nossa pesquisa não consiste em analisar mais profundamente os
espaços e as práticas de lazer das cidades estudadas. Nesse sentido, estamos apresentando, mesmo
que, sucintamente, algumas reflexões que consideramos interessantes e importantes para a
compreensão da produção e apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos, não no sentido de
esgotá-las e sim, de fornecer um panorama interpretativo que facilite o entendimento do
significado dos espaços de lazer ribeirinhos que estamos analisando.
Nessa linha de análise, pudemos constatar que as percepções dos entrevistados que estão fora
dos loteamentos, sobre os espaços de lazer que suas cidades oferecem não contemplam os
loteamentos fechados ribeirinhos como opções, mostrando a tendência que esses espaços possuem
de serem destinados a grupos sociais específicos, não fazendo parte do imaginário dos entrevistados
como espaços integrantes da lista de espaços de lazer de suas cidades.
É interessante ressaltar, também, que a maior parte das referências ao lazer, tanto dos
entrevistados que possuem casas nos loteamentos, quanto daqueles que estão fora de seus muros,
dizem respeito ao lazer noturno. Para eles, as atividades que consideram como sendo de lazer
referem se a jantar fora, ir ao cinema, boates e bares, durante a noite. Na maioria das entrevistas,
não tivemos nenhuma alusão aos espaços ligados à Natureza como possibilidades de lazer. Nem
mesmo nas cidades que possuem as chamadas “prainhas municipais”, espaços públicos nas margens
dos rios, como Buritama e Zacarias, esses espaços foram citados. Para os entrevistados que possuem
casas nos loteamentos fechados ribeirinhos, o lazer em contato com a Natureza só é possível em seus
ranchos nesses empreendimentos. Essas questões podem nos dar pistas sobre a concepção de lazer e
de Natureza que nossos entrevistados possuem.
Ainda sobre a questão das atividades de lazer, é importante destacar que precisamos considerar
a faixa etária a que se destinam. No caso dos loteamentos fechados ribeirinhos, sua apropriação é
feita basicamente pelas pessoas mais velhas, acima de 30 anos, e pelas crianças. Alguns
entrevistados relatam que conforme seus filhos vão crescendo, deixam de se interessar pelo rancho
nos loteamentos e preferem passar seus finais de semana na cidade, fazendo outras atividades,
sendo que uma bastante destacada foi a ida aos
shopping centers
. Os jovens
concordam
em ir
para os loteamentos fechados quando levam seus amigos ou na ocasião de alguma festa. Para
ilustrar essa situação, destacamos os depoimentos a seguir:
É interessante você me perguntar isso, porque nós notamos muito essa diferença.
Nós temos dois filhos, um de 9 anos e outro de 15 anos. O mais novo adora vir pra
cá. Não vê a hora de chegar o final de semana pra ele poder vir pra cá e se divertir.
Aqui ele pode fazer muitas atividades, joga bola, nada no rio, nada na piscina,
anda de bicicleta. Tudo isso com a vantagem de que a gente não precisa ficar o
tempo todo em cima dele. A gente observa, mas pode deixar ele andar pelas ruas
sozinho, pode deixar ele ir jogar bola no campinho, que não tem perigo. Então ele
gosta. Agora, o outro! É sempre uma luta fazer que ele venha para cá com a gente.
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Ele acha chato, monótono, fala que aqui não tem nada para fazer, os amigos dele
não estão aqui. Então, às vezes a gente traz os amigos também, é uma condição
para ele vir com a gente. Ele gosta é de ficar na cidade, ir para o shopping, ficar
com a turminha dele. (
48 anos, empresária, residente na cidade de São José do Rio
Preto, proprietária de casa no loteamento Orla Um, em Buritama)
Meu filho acha que isso aqui é a morte. Fala que ele não é velho para se enfiar no
meio do mato, que aqui é muito quieto, só tem gente velha. Essas coisas. Mas de vez
em quando ele pede para o meu marido deixar ele vir para cá com os amigos dele,
para eles passarem o final de semana sozinhos. Ai a gente deixa, porque aqui
dentro eles estão seguros. Então a gente compra as coisas, traz eles no sábado de
manhã e vem buscar no domingo à noite. Eles querem ficar sozinhos. A nossa
presença inibe um pouco a diversão deles. A gente pede para os guardas darem
uma olhada e no resto eles se viram. É assim para ele vir para cá. com os
amigos. Para passar o final de semana aqui com a gente ele vem mesmo, assim,
no Natal e no Ano Novo e, mesmo assim, reclamando. teve dia que ele veio e
meu marido teve que levá-lo embora à noite porque ele não dava sossego, porque
queria ir a uma festa com os amigos.
(41 anos, funcionária pública municipal,
residente na cidade de Buritama, proprietária de casa no loteamento Portal da
Praia, em Buritama)
O meu filho diz que ele gosta de atividades mais ‘urbanas’. Ele não gosta muito
daqui, acha muito parado, sem diversão. O que ele gosta é de ficar na internet, que
aqui não tem, ir ao shopping com os amigos. Se deixar, ele passa o dia inteiro lá. Vai
na hora do almoço e sai na hora de fechar. Não sei como eles agüentam ficar lá
tanto tempo. Ele me fala que aqui é muito sossegado e que ele gosta é de agitação,
de ver o movimento, pessoas. Eu me lembro que ele só gostava de vir pra na
época do vestibular, porque ai ele precisava de tranqüilidade para estudar. (40
anos, arquiteta, residente na cidade de São José do Rio Preto, proprietária de casa
no loteamento Marina Bonita.)
Dessa maneira, constatamos que o lazer proposto a partir dos loteamentos fechados ribeirinhos
é destinado a um público específico, tanto socioeconomicamente, quanto etariamente. Esses espaços
são representados como se estivessem em contraposição à cidade e suas práticas, embora tenhamos
verificado que as ações ali desenvolvidas não negam a cidade, somente oferecem um descanso, ou
uma mudança de ares, para que as rotinas urbanas possam ser continuadas.
Assim, destacamos que uma especificidade dos loteamentos fechados ribeirinhos é sua
destinação para o lazer. Esse fato faz com que a apropriação desses empreendimentos seja singular,
visto que são tidos como espaços de descontração, descanso, refúgio e prazer, em contraposição ao
compromisso, à rotina e às obrigações cotidianas nas cidades.
Outro fator que é específico desse tipo de empreendimento é o fato de que eles não são
voltados para a apropriação cotidiana, como nos demais tipos de loteamentos fechados residenciais,
visto que são espaços destinados para segunda residência, o que faz com que esses espaços sejam
apropriados, efetivamente, somente em períodos específicos, como finais de semana, feriados e
férias. Nesses períodos, as pessoas dirigem-se para os loteamentos fechados ribeirinhos com uma
predisposição para o divertimento e para o relaxamento. No entanto, esses espaços não ficam
privados de utilização durante a semana. Esse período é destinado aos reparos, cuidados com os
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jardins, limpeza das piscinas, faxinas nas casas, enfim, um conjunto de atividades que preparam o
cenário dos loteamentos fechados ribeirinhos para seus consumidores periódicos.
De acordo com Tulik (2001, p. 11), a segunda residência pode ser definida como uma casa de
temporada, de praia, de campo, como um chalé, cabana, rancho, sítio ou chácara de lazer,
utilizados por pessoas que têm residência permanente em outro lugar.
De acordo com Becker (1995, p. 10), o aparecimento do fenômeno das segundas residências
ocorre, no Brasil, a partir da década de 1950, sob a égide do ‘nacional desenvolvimentismo’,
responsável pela implantação da indústria automobilística e da ascensão do transporte rodoviário
como a principal matriz de transportes do país, assim como do surgimento de novos estratos sociais
médios e urbanos que começaram a incorporar entre seus valores sócio-culturais a idéia de turismo
e de lazer. “(...) O veraneio ou o descanso dos fins de semana se transformaram em valor social cuja
satisfação levaria o turismo, de um modo muitas vezes predatório e desordenado, a regiões
acessíveis a grandes centros urbanos do Centro-Sul, e com atributos ambientais valorizados (zonas
costeiras e/ou serranas)”.
Tratando da existência de segundas residências na Europa, Dematteis (1998) destaca que esse
costume de possuir uma casa destinada ao lazer, além da residência principal, é muito antigo.
(…) aquella costumbre de dividir el tiempo entre la
domus
(urbana) y la
vila
(rural)
que en la Antigüedad romana era propia de las familias patricias o muy ricas, se
convierte, en el medioevo, en una costumbre difundida también entre los estratos
sociales medios. Censos del siglo XIV muestran que en ciudades como Génova,
Florencia y Perugia casi todos los propietarios de casas urbanas tenían también una
casa y un predio rural. Datos análogos aparecen para ciudades como Marsella,
Montpellier y Toulouse. Giovanni Villani escribía que, en 1350, Florencia estaba
rodeada por «seis mil habitáculos (
abituri
) ricos y nobles que, de juntarlos, hubieran
hecho dos Florencias» y, además, siempre en la campiña suburbana, «tienen
quintas de recreo los comerciantes, y los artesanos más viles y vulgares». Villani y
otros tras él, como Leon Battista Alberti, explican también el fenómeno, no tanto en
términos de amor hacia la naturaleza (como sucederá después con el romanticismo)
sino como evasión frente a los condicionamientos sociales de las ciudades, como
búsqueda de la libertad en un ambiente agradable.
Segundo Assis (2003, p. 112), a residência secundária pressupõe a disponibilidade de uma renda
excedente, visto que implica em custos com a compra do terreno, construção do imóvel, impostos,
manutenção e meio de transporte para o deslocamento pendular, geralmente, o automóvel
particular. Esses fatores fazem com que a segunda residência seja uma modalidade elitista, símbolo
de
status
social, para as camadas sociais mais altas e também para as médias. O autor (2003, p.
114) destaca ainda que as segundas residências convertem o fim de semana num fato sociocultural
característico da sociedade contemporânea ao associá-lo com um tempo de liberdade, em que a
pessoa pode gastar seu tempo livre em atividades que a levem a se encontrar consigo mesma,
permitindo que ela se restabeleça das condições adversas do meio social.
Por serem destinados à segunda residência, os espaços dos loteamentos fechados ribeirinhos não
são apropriados diariamente por seus proprietários. Isso faz com que a paisagem desses
empreendimentos seja diferenciada durante o período da semana e nos finais de semana. Pudemos
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constatar, nas observações em campo, que durante a semana, o que prevalece são os serviços
dentro dos loteamentos. Assim, notamos pedreiros trabalhando, jardineiros cuidando do jardim,
trabalhadores cortando a grama dos terrenos sem edificações, faxineiras arrumando as casas,
trabalhadores recolhendo lixo espalhado nas áreas comuns dos loteamentos, enfim, nesses
momentos, os espaços dos loteamentos estão sendo preparados para o “espetáculo” que ocorrerá no
final de semana.
Já, nos finais de semana, o cenário modifica-se completamente. Vemos carros estacionados nas
frentes das casas, temos as mais diferentes músicas tocando, escutamos conversas e risadas, temos
pessoas fazendo caminhada pelas ruas, crianças brincando, as churrasqueiras acessas para o
churrasco, ou seja, é nesses momentos que a apropriação efetiva desses espaços é realizada.
Podemos dizer que é nos finais de semana, que os espaços dos loteamentos ribeirinhos exercem sua
real função: garantir o lazer e o descanso de seus proprietários, que encontram o palco todo
preparado para que possam desfrutar esses espaços.
Apoiamos-nos em Debord (2002, p. 125-140) para fazermos a afirmação de que a produção e a
apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos fazem parte do espetáculo encenado pela
sociedade contemporânea. De acordo com o autor, o espetáculo está em todas as instâncias da
vida social, servindo para comunicar o incomunicável, a partir da representação dos papéis que
consideramos que nos caiba. No espetáculo, concebemos o mundo como representação e não como
atividade. O espetáculo se impõe em cada momento de nossa vida cotidiana e gera a desinserção
da práxis e a falsa consciência antidialética que a acompanha. No espetáculo, temos a presença
real da falsidade garantida pela organização da aparência.
Dessa maneira, consideramos que o consumo feito a partir dos loteamentos fechados ribeirinhos
é um consumo idealizado, no qual um conjunto de símbolos é criado e depois organizado
materialmente, para que os espectadores contemplem essa representação como realidade. Assim,
durante a semana, é realizado um trabalho de organização dos elementos espaciais dos
loteamentos fechados ribeirinhos, para que, quando seus consumidores cheguem, nos finais de
semana, encontrem tudo da forma como esperam: suas casas limpas, as plantas podadas, a grama
aparada, a água da piscina limpa, enfim, um ambiente harmônico e esteticamente organizado,
com a finalidade de lhes darem sensações agradáveis que remetam a conforto e bem-estar.
Todo o trabalho realizado para harmonizar a paisagem dos loteamentos fechados ribeirinhos é
ignorado pelos proprietários de casas nesses empreendimentos, no sentido de que eles não
acompanham sua realização. É claro que eles têm consciência de que esse trabalho é feito, pois
pagam por esses serviços, mas, muitas vezes, as relações de trabalho não são nem estabelecidas
diretamente entre os empregadores e os empregados, visto que é comum a prática de deixar à
cargo da própria gestão condominial do loteamento a contratação dos trabalhadores para
realizarem essas tarefas, sendo o pagamento feito também por intermédio dos responsáveis por essa
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gestão, que possuem pessoas determinadas para fazerem esses serviços internos, os quais,
geralmente, acabam trabalhando na maior parte das casas do loteamento.
Assim, o espetáculo é garantido por trabalhadores invisíveis, que organizam as peças do cenário
para que os proprietários possam dar continuidade ao espetáculo. Sobre essa questão do trabalho
realizado durante a semana para deixar o loteamento fechado ribeirinho pronto para seu consumo
nos finais de semana, é emblemático o depoimento a seguir:
Nós não temos empregados diretos aqui. Têm as pessoas que fazem os serviços de
limpeza, manutenção, mas se eu disser que vi a cara deles eu vou estar
mentindo. As próprias pessoas que tomam conta aqui do condomínio têm as
pessoas específicas para fazer esses trabalhos, então a gente paga no final do
mês. E isso é uma tranqüilidade, porque não trabalho. Quando a gente chega,
estudo feitinho, tudo bonitinho e a gente não têm que ficar se preocupando
em contratar, se a pessoa vai vir ou não, em combinar o preço do serviço. Até
porque ficaria um pouco difícil a gente tratar com os próprios empregados, nós não
somos daqui e, durante o final de semana
, é proibido fazer qualquer tipo de serviço
no condomínio, para manter a tranqüilidade. Imagina você vir para o rancho
descansar e ficar escutando barulho de pedreiro batendo martelo! Então, nós não
teríamos oportunidade para encontrar com essas pessoas e contratá-las
pessoalmente. Assim, é uma comodidade para a gente, chegar e encontrar tudo
do nosso gosto.
(48 anos, empresária, residente na cidade de São José do Rio Preto,
proprietária de casa no loteamento Orla Um, em Buritama)
Observamos que a entrevistada apresenta certo alívio por não ter que tratar com os próprios
empregados sobre as questões trabalhistas. Considera, também, um absurdo a idéia de ir para seu
rancho e
ficar escutando barulho de pedreiro batendo martelo”
. O ideal para essa entrevistada é
chegar ao loteamento e encontrar
tudo feitinho, tudo bonitinho
”, como se os trabalhadores não
existissem. Como se a condição normal dos espaços do loteamento fosse estar tudo arrumado e
organizado e que ninguém precisasse realizar as tarefas responsáveis por essa arrumação.
Essa questão da apropriação não cotidiana dos loteamentos fechados ribeirinhos propicia a
invisibilidade de alguns processos e problemas presentes nos demais tipos de loteamentos fechados.
Uma das questões que alguns pesquisadores (Goes, Sposito e Sobarzo, 2008, p. 26,) têm apontado é
a questão dos conflitos entre os proprietários de casas nos loteamentos fechados e seus empregados,
representantes do segmento social que querem deixar fora de seus muros. Os empregados, muitas
vezes são vistos com desconfiança e têm que passar por revistas e controles. Em alguns casos, são
tidos como os causadores de problemas dentro do loteamento.
No caso dos loteamentos fechados ribeirinhos, essa questão é um pouco amenizada, visto que os
proprietários de casas, nesses empreendimentos, não têm contato direto com os trabalhadores e eles
não são visíveis nos momentos em que os proprietários estão consumindo os espaços dos
loteamentos. Isso faz com que a desconfiança nos trabalhadores não seja tão enfatizada.
Podemos perceber assim, que a apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos é
diferenciada da que ocorre nos demais tipos de loteamentos fechados, pois, seu caráter de não
constituir a residência principal de seu proprietário associa um conjunto de valores específicos a esses
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espaços. A questão da elitização das segundas residências e de sua associação com
status
social é
ampliada no caso dos loteamentos fechados ribeirinhos, pois, as residências secundárias encontram-
se, nesse caso, em espaços fechados e exclusivos, fatores que agregam valor material e simbólico a
esses empreendimentos.
A partir das entrevistas e das observações em campo realizadas, pudemos constatar que as
pessoas consideram seus ranchos nos loteamentos fechados ribeirinhos como espaços para fugir da
rotina e das normas presentes na vida cotidiana, contrapondo suas casas nesses empreendimentos
com suas primeiras residências. Assim, os ranchos nos loteamentos fechados ribeirinhos são
carregados de simbologias que remetem à liberdade, tranqüilidade, divertimento, entre outras
características. Dessa maneira, a apropriação que os proprietários de casas nesses espaços
pretendem realizar é permeada por esses valores simbólicos, que os fazem considerar que, quando
estão nos loteamentos, podem relaxar e fazer coisas que não seriam adequadas ou não seriam
aceitas na cidade. A destinação para o lazer de segunda residência faz, também, com que alguns
proprietários relevem algumas atitudes de vizinhos, que talvez não deixassem passar em outros
espaços. Para ilustrar essas questões, trazemos abaixo alguns depoimentos colhidos durante as
entrevistas.
Quando eu atravesso a portaria, deixo todos os meus problemas para fora, porque
aqui não é lugar para ficar se preocupando, se estressando por qualquer coisa. Se
não, não adiantaria vir pra cá. Eu quero mais é ficar descansando, tranqüilo,
tomando um sol, bebendo uma cerveja, batendo papo. Durante a semana a gente
não tem tempo. Então, não pode gastar o tempo aqui para se preocupar com as
coisas do trabalho, isso é típico da minha mulher. Ela tem dificuldade para desligar.
Eu não, quando eu estou aqui, não quero nem saber. Aqui eu me esqueço do mau
humor. (
43 anos, vendedor, residente na cidade de Birigui, proprietário de casa no
loteamento Jardim Itaparica)
Eu acho que é tão agradável vir para cá justamente por isso. Aqui a gente pode
fazer coisas que não tempo ou que não pode fazer na cidade. Esse descanso do
corpo e da mente é fundamental. Você tem que ter uma atividade diferente
daquela que você tem no seu cotidiano, porque se não, você acaba pirando’. Aqui
a gente acaba até relaxando mais em relação às outras pessoas também. Não fica
perdendo o tempo procurando intriga com vizinho, por exemplo. aconteceu de
nosso vizinho colocar som alto à noite aqui e a gente dizer: deixa, ele também tem
o direito de se divertir. Se fosse na cidade, esse comportamento iria irritar a gente,
porque no outro dia a gente teria que acordar cedo pra trabalhar. Aqui não, até
incomoda, mas você releva, porque é um lugar mais descontraído. As pessoas vêm
para para fazer festa mesmo. (
49 anos, empresária, residente na cidade de
Andradina, proprietária de casa no loteamento Jardim Itaparica)
A questão é que não adianta nada a gente vir para o rancho no final de semana e
continuar a agir como se estivesse na cidade e tivéssemos que seguir as mesmas
regras. Aqui é um espaço mais desencanado, mais livre. A gente pode andar de
short, de chinelo. A gente pode beber um pouco além da conta. A gente pode
abusar no videoquê, por exemplo. Lá na cidade já não dá, tem que manter a pose,
você não pode sair de casa dessarumado, porque a gente trabalha com a nossa
imagem. A questão do videoquê também, se a gente começasse a cantar na
nossa casa, como a gente canta aqui, certamente chamariam a polícia, pelo
barulho e pela qualidade das vozes! Nesse sentido é que aqui a gente pode agir
diferente. Se existe um momento e um lugar para você ser ‘mais você’, podemos
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dizer assim, é aqui, justamente por ser um espaço destinado para isso, para a gente
descansar e se divertir. (46 anos, empresário, residente na cidade de Birigui,
proprietário de casa no loteamento Jardim Itaparica)
Bom, eu não posso falar que aqui não existem problemas. Acontece que não é
nada comparado com o que acontece na cidade, no sentido de que aqui nós
estamos mais relaxados. Na cidade não, tem as obrigações do dia-a-dia, o trabalho,
então a gente fica com o ‘pavio mais curto’. É mais fácil da gente explodir. Aqui
não, às vezes o cachorro de outro condômino faz as ‘necessidades’ na frente da sua
casa, ou alguém passa ‘cantando pneu’ e você acaba deixando para lá. teve
uma vez que algumas crianças arrancaram algumas rosas que minha esposa tinha
plantado. Essas pequenas coisas o mais bem recebidas aqui. É claro que não é
nada rio. Acho que os problemas sérios afetam a gente em qualquer lugar. Mas
aqui é muito tranqüilo.
(45 anos, bancário, residente na cidade de Birigui,
proprietário de casa no loteamento Belvedere)
Podemos observar, a partir desses depoimentos que os loteamentos fechados ribeirinhos são
considerados como espaços opostos à cidade, onde as pessoas podem exercer uma cotidianidade
diferenciada. Nos loteamentos em questão, não é necessário
manter a pose
”, você deve deixar o
mau humor do lado de fora
”. As pessoas tendem a ficar mais relaxadas, relevando pequenos fatos
corriqueiros que, se acontecessem nas cidades, serviriam para aumentar o estresse das pessoas. Os
proprietários consideram que, nos loteamentos fechados ribeirinhos, eles podem ser
mais eles
mesmos
”, no sentido de que podem relaxar tanto física e mentalmente, quanto em relação às
convenções sociais presentes em suas vidas nas cidades. Ali, eles consideram que podem utilizar
roupas que os deixem mais à vontade, podem exagerar um pouco mais na bebida e podem ase
arriscar a cantarem alto no videoquê. Os entrevistados sentem-se mais livres nesses espaços e, assim,
utilizam seu tempo nos loteamentos de forma mais relaxada e menos rigorosa.
Quanto às regras existentes nos loteamentos fechados ribeirinhos, alguns entrevistados
demonstraram o desejo de que elas fossem mais brandas, afinal, estão ali para momentos de
descontração e diversão em que a obediência às regras não condiz com a liberdade esperada. Nos
depoimentos a seguir podemos observar alguns indícios dessa questão:
Estamos em um espaço de lazer, de descontração. Não para ficar seguindo
regras o tempo todo aqui dentro, como na cidade. Aqui tem velocidade máxima
para andar nas ruas, menor que nas cidades. Não pode deixar os cachorros soltos,
não pode isso, não pode aquilo. É meio chato, porque já tem regras na cidade, aqui
dentro o outras, mas tem.
(38 anos, residente na cidade de Araçatuba,
proprietário de casa no loteamento Portal da Praia)
Essa questão das regras é complicada. A gente sabe que precisa delas, porque se
não, isso aqui seria uma desordem. Ao mesmo tempo, acho que a gente tem na
nossa cabeça, que aqui a gente não deveria ter que seguir tantas regras. Deveria
ser diferente. Aqui pode ser considerado como um momento de libertação. Mas essa
libertação é relativa, porque continuamos tendo que seguir as tais regras. Acontece
que muita gente acha que aqui dentro, eles têm o direito de fazer o que quiserem,
porque é uma propriedade privada. É como se todo o condomínio fosse deles e eles
pudessem fazer o que quisessem. Só que assim não funciona. As regras existem aqui
dentro para isso, porque tem as pessoas que abusam. Se não, não haveria
necessidade.
(36 anos, promotor de eventos, residente na cidade de Lins,
proprietário de casa no loteamento Belvedere)
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Aqui no condomínio as pessoas não costumam seguir muito à risca as regras não.
Tem muitas pessoas que nunca leram o regimento interno, pra saber o que pode e o
que não pode. E o loteamento, pela sua parte, também não cobra muito nesse
sentido, porque no final das contas, essas pessoas são proprietárias do condomínio.
Então, o que acontece não é que aqui dentro não existam as regras. Elas existem e
são parecidas com as da cidade. O que aumenta aqui é o descumprimento dessas
regras, por causa da questão da propriedade e também porque as pessoas
consideram que aqui as coisas devem correr mais soltas, sem o rigor da cidade,
porque são espaços para a recreação.
(56 anos, médico, residente na cidade de São
José do Rio Preto, proprietário de casa no loteamento Marina Bonita)
Percebemos, assim, que nos loteamentos fechados ribeirinhos a destinação para o lazer ligado à
fuga do cotidiano urbano, associado à “posse” das áreas comuns desses empreendimentos, faz com
que alguns entrevistados esperem não terem que cumprir regras dentro desses espaços, que
são
deles
e que não são destinados para os mesmos fins que os outros espaços urbanos. A partir daí,
ressaltamos a contradição existente nesse processo, visto que as pessoas que consomem esses
empreendimentos desejam passar seus momentos de lazer em espaços menos repressores, mas
acabam buscando esse aspecto em espaços controlados e normatizados.
Dessa maneira, o que conseguem é apenas mudar um pouco o conteúdo das regras que irão
seguir, ou seja, durante a semana são regidos por um conjunto de normas. Já, nos finais de semana,
suas ações são normatizadas por outro conjunto de regras formais e informais, muito parecidas com
as que seguem nas cidades. É importante ressaltar que todas as relações socioespaciais são
mediadas por regras estabelecidas formalmente ou constituídas no plano informal. Dessa maneira,
cada espaço e cada situação exigem que sigamos determinadas normas e comportamentos.
O que queremos dizer ao afirmar que alguns entrevistados desejam realizar suas práticas
socioespaciais nos loteamentos fechados ribeirinhos sem a observância de regras é que, por terem o
objetivo de se separar das atividades empreendidas nas cidades, ligadas ao trabalho e à rotina, as
pessoas esperam que seus momentos de lazer sejam menos cerceados por normas. Ou pelo menos,
que essas normas sejam mais brandas que as encontradas nas cidades. Mas os loteamentos fechados
ribeirinhos acabam apresentando regras muito parecidas com as encontradas nas cidades. Isso
porque mesmo que esses espaços sejam construídos simbolicamente como representantes de uma
negação da cidade e de suas práticas, esses empreendimentos são apenas espaços que possibilitam
uma fuga momentânea e incompleta do cotidiano urbano. Assim, podem ser considerados como
espaços que permitem um distanciamento da cidade, sem deixarem de ser urbanos. Fazem parte
de um processo de “retroalimentação” das cidades e de suas práticas, visto que permitem um
relaxamento momentâneo para que as pessoas possam passar mais uma semana na cidade.
Durante a realização das entrevistas e das observações em campo, observamos que, em alguns
casos, a rotina urbana não é deixada de lado quando as pessoas vão para os loteamentos fechados
ribeirinhos. Muitas delas levam trabalho para esses espaços, não conseguem deixar de acordar cedo,
as crianças levam suas tarefas e seus trabalhos escolares. Assim, vemos a incompletude do
distanciado possibilitado pela apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos.
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Outro fator que evidencia que os loteamentos fechados ribeirinhos, ao invés de se oporem à
cidade, estão totalmente inseridos na lógica urbana, apesar de estarem cercados por entornos
rurais, é a questão das infra-estruturas que esses empreendimentos apresentam, possibilitando um
contato com a Natureza com um alto grau de conforto. As pessoas não querem entrar em contato
com a Natureza “selvagem”, querem consumir um tipo específico de Natureza, controlada e
arranjada paisagisticamente, não abrindo mão das comodidades que possuem em suas vidas
cotidianas. O lazer é buscado assim, em espaços que associam as amenidades naturais, com as
infra-estruturas urbanas. Isso porque, apesar da idealização da proximidade com a Natureza, os
segmentos de maior padrão aquisitivo, o desejam retornar a uma situação considerada como
“primitiva”. O que querem, na verdade, são cenários bonitos e confortáveis, que possibilitem o
estabelecimento de simulações que os distanciem, momentaneamente, de suas rotinas.
Assim, os loteamentos fechados ribeirinhos, apesar de estarem cercados por espaços rurais,
constituem espaços urbanos, que inicialmente parecem denotar sua negação, mas que na verdade
são apenas espaços onde encontramos práticas e temporalidades diferenciadas, mas inseridas na
lógica da reprodução urbana. A partir disso, podemos perceber que outra especificidade da
produção e apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos é a redefinição das relações entre
cidade e campo, urbano e rural, visto que a inserção desses empreendimentos em entornos rurais
leva conteúdos de urbanidade para esses espaços.
2.3.2 – Loteamentos ribeirinhos: redefinições das relações entre rural e urbano
De acordo com Viñas (2008), as residências secundárias podem ser consideradas como
instrumentos de difusão e dispersão da cidade sobre o campo, por meio de processos diversos como
suburbanização, periurbanização e rururbanização. Dessa maneira, os espaços rurais são
modificados pelo estabelecimento das residências secundárias, que podem ser consideradas como
espaços “ecológicamente especializados de la ciudad”.
De maneira geral, a relação entre o urbano e o rural vem sendo tratada basicamente segundo
duas perspectivas. Uma delas defende o caráter dicotômico entre essas duas dimensões,
reafirmando a diferença e a separação entre elas, enquanto a outra se baseia na idéia de que o
rural e o urbano seriam um “continuum”, fazendo parte de um mesmo processo. A posição
dicotômica vem sendo construída historicamente e é resultado de uma estratégia que tentou
relacionar o campo e seu modo de vida rural ao atraso com o intuito de que o novo modo de vida,
o das cidades, fosse solidificado. A ruralidade deveria ser substituída pela urbanidade e assim, a
urbanização expandiria as condições do novo modo de produção, estendendo a “civilidade” a
todos. (BAGLI, 2006, p. 54)
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Conforme Castells (1999, p. 24), a noção de urbano oposta ao rural pertence à dicotomia
ideológica entre sociedade tradicional/sociedade moderna, e refere-se a certa heterogeneidade
social e funcional , existente entre essas duas realidades. Essa distinção rural/urbano aparece então
como expressão da divergência entre uma realidade moderna, a urbana, identificada com o
capitalismo, com o progresso da cnica e com novos padrões de relações sociais e estilos de vida e
uma realidade tradicional, a rural, refratária a esses elementos. É também que identificamos a
oposição entre aquilo relativo à urbanidade (ilustrada, civilizada) e a rusticidade (ingênua, rústica).
Consideramos que as atuais dinâmicas socioespaciais presentes no meio rural e no meio urbano
vêm exigindo uma superação dessa visão dicotômica, que considera essas duas dimensões como
opostas. Esse enfoque polarizador que trata o urbano e o rural como sendo realidades descoladas,
desconectadas, não consegue mais explicar os processos que vêm ocorrendo nesses espaços. Aliás,
essa visão nunca refletiu a realidade das relações entre o urbano e o rural, visto que elas sempre
demonstraram o caráter integrado e complementar dessas dimensões socioespaciais.
Dessa maneira, opor urbano ao rural e cidade ao campo, é negar a complementaridade entre
esses espaços, que se apresenta desde a origem das primeiras cidades. O campo e a cidade se
originam de um mesmo processo e um é responsável pela manutenção do outro.
Sendo assim, consideramos que qualquer discussão sobre as relações entre o urbano e o rural
deve ser realizada partindo-se do princípio da integração dessas duas dimensões, em que as
dinâmicas de uma influenciam diretamente na outra e vice-versa. A visão dicotômica, assim como
os enfoques que tentam valorizar mais uma dimensão que a outra, devem ser superados, diante da
crescente interpenetração desses espaços.
É certo que o campo e a cidade possuem diferenças, mas não cabem juízos de valores,
priorizando a importância de uma ou de outra dessas dimensões da realidade ou as
hierarquizando. No que diz respeito às dinâmicas encontradas nas cidades, podemos constatar que,
nesses espaços, a rapidez e a intensidade com que ocorrem são muito mais acentuadas do que no
campo. Esse fato não significa que o campo seja imutável e homogêneo, visto que, apesar de mais
lentas, as transformações não deixam de ocorrer.
Dessa maneira, destacamos que apesar dessa característica de complementaridade e
integração, o meio rural e o meio urbano possuem elementos e dinâmicas que os diferenciam. A
tendência é que, cada vez mais, essas dinâmicas se mesclem, fazendo com que elementos urbanos e
rurais coexistam em espaços muito próximos ou nos mesmos espaços. No entanto, isso não significa
que ao se mesclarem, urbano e rural, diluam-se e se percam um no outro, transformando-se em
uma realidade homogênea. O que acontece é a criação de novos espaços em que urbano e rural
adquirem novas características, mas mantém singularidades.
Sendo assim, consideramos que o rural e o urbano devem ser entendidos a partir de suas
articulações, ou seja, um em sua relação com o outro. A estratégia de opor o rural ao urbano e o
campo à cidade, não se justifica, pois não poderia haver cidades sem campo. O campo e a cidade
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originam-se de um mesmo processo e as práticas que se estabelecem nesses e entre esses espaços são
complementares. Assim, a idéia de “continuum” urbano-rural se apóia no fato de que podemos
identificar uma continuidade e uma complementaridade socioespacial entre o meio urbano e o
rural, a partir das relações estabelecidas entre essas duas dimensões.
Segundo Le Goff (1997, p. 32), a “desruralização” das cidades é um fenômeno que se desenvolve
no século XIX, visto que até esse culo persistia, de forma mais intensa, uma certa atividade rural
nas cidades. O autor destaca que, apesar desse fato, a cidade pode ser penetrada pelo campo
sempre que se fizer necessário, assim, não seria pertinente definir uma separação absoluta entre os
dois. Le Goff (1997, p. 124) ressalta, também, que é na Roma Antiga que se cria, do ponto de vista
cultural, uma oposição muito forte entre cidade e campo. Os termos relacionados com a cidade
denotam a educação, a cultura, os bons costumes, a elegância, sendo que a palavra urbanidade
vem do latim urbs; polidez, da polis grega. O campo é tido assim, como sede do bárbaro, do rústico,
do atrasado.
Segundo Lefebvre (2002, p. 17), caminhamos para a constituição da “sociedade urbana”, a
partir de um conjunto de transformações que a sociedade contemporânea atravessa, para passar
do período em que predominam as questões de crescimento e de industrialização, ao período no
qual a problemática urbana prevalecerá decisivamente, ou seja, passaremos de uma realidade em
que a busca das soluções e das modalidades próprias à sociedade urbana passará ao primeiro
plano. Assim, o autor compreende a urbanização completa da sociedade como uma tendência,
entendendo que a sociedade urbana ainda é uma virtualidade, uma possibilidade.
O tecido urbano expande-se, estendendo-se sobre o campo. Devemos entender o tecido urbano
não de uma maneira restrita, como se ele fosse apenas o domínio edificado das cidades, mas sim,
como sendo um conjunto de manifestações do predomínio dos elementos urbanos sobre os rurais.
Assim, segundo Lefebvre (2002, p.17), uma segunda residência, uma rodovia ou um supermercado
em pleno campo, fazem parte do tecido urbano.
Assim, a relação cidade-campo transforma-se. A vida urbana penetra na vida camponesa
despojando-a de seus elementos tradicionais. O tecido urbano irá, assim, prender em suas redes a
maior parte dos territórios, caminhando para uma superação da oposição campo-cidade. Porém,
esse fato não ocorrerá em meio a uma confusão generalizada, com o campo se perdendo no seio da
cidade, com a cidade absorvendo o campo e perdendo-se nele. O que temos é a criação de novos
espaços que absorveram certas características desses dois tipos de espaços. (LEFEBVRE, 1969, p.67)
É relevante destacar que Lefebvre trata da urbanização da sociedade juntamente com o
processo de territorialização do modo de vida urbano e não necessariamente da territorialização da
cidade em si. A simples implantação de infra-estruturas sociais, como eletrificação rural, escolas e
transportes no campo não é indicativo do processo de urbanização da sociedade, visto que as
pessoas do campo também necessitam desses serviços, apesar deles estarem, em grande parte do
território brasileiro, concentrados quase que exclusivamente nas cidades.
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O processo de urbanização da sociedade diz respeito às práticas socioespaciais que se
desenvolvem no espaço rural e no espaço urbano. O modo de vida urbano tende a submeter e a
influenciar cada vez mais o modo de vida rural, não no sentido da eleição do urbano como
dimensão privilegiada ou mais importante, e sim no contexto do estabelecimento de práticas cada
vez mais complementares, levando à necessidade de superação do pensamento dicotômico.
O campo não deixará de existir e a cidade não “reinará” como espaço único, o que temos é a
tendência de uma interpenetração de práticas socioespaciais ligadas ao urbano e ao rural,
produzindo espaços mistos. A cidade e o campo, como materialidades que expressam práticas
socioespaciais definidas, restritas e exclusivas a cada um desses dois tipos de espaço, não poderão
mais ser observadas deste modo, visto que o urbano transcende o espaço da cidade, caminhando
para o campo e o rural também pode transcender do campo para a cidade.
Assim, vemos que o meio urbano, a partir de suas relações socioespaciais e dos comandos e
interesses de parte de seus sujeitos sociais, subordina o meio rural, gerando novos tipos de relações.
Mas esse pensamento não pode adotar um sentido único, pois o rural também influencia o urbano.
Nesse contexto, defender o fim ou a decadência do campo ou de práticas e valores rurais não seria
uma abordagem restrita ou inadequada.
Conforme Côrrea, (2001, p. 48), o rural hoje pode ser entendido como um continuum do
urbano, do ponto de vista espacial e do ponto de vista da organização da atividade econômica. As
cidades não podem mais ser identificadas apenas como o lugar da atividade industrial nem os
campos com o da agricultura e da pecuária. Logo, não podemos caracterizar o meio rural brasileiro
como sendo somente agrário, visto que devemos considerar a presença de outras atividades não-
agrícolas que estão sendo desenvolvidas nesses espaços, como, por exemplo, o turismo.
Nesse sentido, Teixeira (1998, p. 56) assevera que o espaço rural o é mais o que ele era, daí a
pertinência de nos referirmos a espaços rurais, no plural, pois existe uma gama de estruturas
agrárias e veis tecnológicos, evocando formas de agricultura das mais primitivas ou tradicionais
até outras ligadas às técnicas mais modernas do mundo contemporâneo. Existem espaços rurais
diversificados, dinâmicos e em permanente mutação, enquanto outros em que as tradições têm
peso fundamental na definição das práticas, da paisagem e dos usos de solo. O fato é que nesses
espaços temos, ao mesmo tempo, transformações e permanências, com o rural tornando-se plural,
complexo e polifuncional.
Graziano (2001, p. 43) aponta que, no “novo rural” brasileiro, podemos encontrar as velhas
dinâmicas de geração de emprego e renda, associadas aos complexos agroindustriais. Mas elas não
representam mais as únicas e, em muitos casos, nem mesmo as principais fontes geradoras de
rendas. Sendo assim, os espaços rurais não se definem apenas pelas atividades agrícolas, mas
também por atividades não agrícolas. É também importante ressaltar o aumento cada vez mais
evidente do número de famílias que combinam a agricultura com outras fontes de renda como
empregos urbanos ou em propriedades vizinhas.
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Segundo Graziano (2001, p. 136), o espaço rural tem sido atingido pelas conseqüências das
políticas atuais para o setor (dificuldades de financiamento para custeio e investimento,
expropriação do homem do campo, mobilidade populacional, desemprego urbano, aumento da
exclusão e violência social), e esses são os motivos que têm levado a população rural a buscar,
através de estratégias, alternativas para se reproduzir e/ou mesmo acumular proporcionando uma
nova configuração desse meio rural brasileiro. Essas atividades não-agrícolas, na maior parte das
vezes, modificam o cotidiano e a paisagem, que vão perdendo gradativamente suas características
rurais, visto que incorporam, cada vez mais, elementos ligados à lógica urbana.
A constituição da sociedade urbana caminha, assim, para uma redefinição das relações
estabelecidas entre cidade e campo, não no sentido de transformar o campo em cidade e sim no
que diz respeito às novas formas de articulação entre o urbano e o rural, dando um novo caráter
para a dicotomia cidade x campo (Carlos, 2003, p.180).
Trazidas pelo tecido urbano, a sociedade e a vida urbana penetram nos campos, levando
consigo, segundo Lefebvre (1969, p. 17), os sistemas de objetos e sistemas de valores componentes do
modo de vida urbano. Como sistema de objetos podemos citar a infra-estrutura, a rede elétrica, o
sistema de esgoto, os encanamentos de água, etc. Entre os elementos do sistema de valores temos os
lazeres, os costumes e também as preocupações com a segurança e a exigência de uma
racionalidade mais característica da cidade.
Nesse processo, a relação entre urbanidade e ruralidade não desaparece, pelo contrário,
intensifica-se e acaba interferindo em outras representações e em outras relações sociais. Nos
loteamentos fechados ribeirinhos, podemos observar as inter-relações contraditórias entre a
dimensão urbana e a rural, que estão no cerne da produção desses espaços.
A partir da implantação dos loteamentos fechados ribeirinhos, podemos constatar que o
urbano não está mais restrito à cidade e nem o rural ao campo, visto que os modos de vida, os
hábitos e costumes urbanos extravasam as fronteiras materiais a que estavam tradicionalmente
atrelados e “invadem” o campo.
Essa crescente complexidade das relações entre o urbano e o rural faz com que o seja mais
possível, em alguns casos, identificar imediatamente os limites do que é espaço urbano e do que é
espaço rural. Essas unidades espaciais e seus valores correlatos passam a se relacionar mais
intensamente, coexistindo numa mesma área, trazendo novos significados para esses espaços.
Sendo assim, diante da crescente interpenetração entre espaços rurais e urbanos, o enfoque
central não deve ser dado para o estabelecimento do que seja urbano ou do que seja rural, na
perspectiva de se estabelecer fronteiras entre essas dimensões, o importante é estudar, cada vez
mais, as dinâmicas que envolvem esses espaços e as formas pelas quais são estabelecidas essas novas
relações.
Dessa maneira, o entendimento desses espaços deve passar pela análise dos objetos e ações que
fazem parte de suas composições, levando-se em consideração que o urbano e o rural possuem
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diferentes densidades técnicas, informacionais, sociais, diferentes dinâmicas e elementos e, sendo
assim, mesmo quando se interpenetram, não perdem totalmente suas características, apesar de
adquirirem novos conteúdos.
Conforme Sposito (2006, p, 124), a unidade espacial urbana, como marca das cidades, no
decorrer do longo processo de urbanização, “cedeu lugar ao binômio urbano/rural resultado,
também da incapacidade, no período atual, de distinguir onde acaba a cidade e começa o campo.
As formas confundem-se porque as relações se intensificam, e os limites entre esses dois espaços
tornam-se imprecisos”.
Entendemos que a produção e o consumo dos loteamentos fechados ribeirinhos, inseridos em
áreas com características rurais, pelos citadinos, revela um processo de ressignificação simbólica do
meio rural, que deixa de ser apenas o lugar privilegiado da produção agropecuária e passa a ser
valorizado por suas características paisagísticas associadas a um ideal de qualidade de vida.
Consideramos que essa nova forma de apropriação do espaço rural, pelas pessoas advindas do
espaço urbano, surge da necessidade de se recriar e restaurar, mesmo que simbolicamente, modos
de vida considerados anteriormente, por esses mesmos agentes sociais, como atrasados e
decadentes. Viver o diferente passa a ser uma questão de status e qualidade de vida.
Essa nova forma de relação entre o rural e o urbano pode ser entendida, segundo Bagli (2006,
p.65), a partir da análise das territorialidades rurais e urbanas. A forma como as pessoas
relacionam-se com o território, construindo territorialidades, está fundamentada em um conjunto
de valores, hábitos e costumes que compõem esse modo de vida. Assim, existem diferenças entre as
territorialidades rurais e urbanas, visto que as relações em que se fundamentam são edificadas
sobre realidades distintas. Mas nem sempre os territórios e territorialidades são edificados
respeitando os limites tradicionais das respectivas configurações espaciais. Atualmente, temos
territorialidades urbanas no interior de espaços tidos como rurais e territorialidades rurais em
espaços tidos como urbanos.
Dessa maneira, Bagli (2006, p. 68) aponta que são construídas estratégias com o objetivo de
aproveitar momentaneamente as urbanidades e ruralidades existentes nos espaços. Assim, a
produção dos loteamentos fechados ribeirinhos insere-se nesta lógica, visto que os moradores das
cidades buscam os loteamentos como forma de se libertar” da cidade, objetivo que, entretanto,
não se realiza completamente. O que as pessoas buscam é aproveitar as ruralidades sem
destituírem-se de seus hábitos, do modo de vida urbano, ainda que não desejem que o campo se
torne cidade. Assim, os loteamentos fechados ribeirinhos constituem espaços em que as relações
entre as territorialidades urbanas e rurais devem ser analisadas.
Essa revalorização simbólica do rural presente na produção e na apropriação dos loteamentos
fechados ribeirinhos pode ser entendida porque a vida cotidiana moderna, marcada por ritmos
acelerados e práticas que reproduzem, cada vez mais, a cisão entre a Sociedade e a Natureza, faz
com que surjam sensações de nostalgia, de saudade de uma Natureza e de um passado perdidos, os
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quais podem ser representados pelo campo. Neste sentido, o campo ou a residência no campo
significa a Natureza, o sol, o verde, a saúde e a liberdade e, numa visão oposta, a cidade representa
a “servidão”. Assim, o rural, a vida no campo, seus costumes, seus ritmos e dinâmicas, são
considerados naturais e bons, em oposição à cidade, que é vista como antinatural, impondo ritmos
de vida e costumes contrários ao homem. (LEFEBVRE, 1991, p.46)
Essa nostalgia de um passado rural, que representa a qualidade de vida, a tranqüilidade e o
sossego, é trabalhada pelos empreendedores imobiliários que oferecem um produto mercadológico
ideal, para que as pessoas possam buscar, em seus momentos de lazer, um rompimento com sua
rotina e com o entorno que as cerca, por meio de espaços diferenciados que trazem outros
elementos e valores para suas vidas.
A partir das entrevistas realizadas, pudemos constatar que, em muitos casos, embora não todos,
a motivação de escolher um empreendimento como os loteamentos fechados ribeirinhos para
desfrutar os momentos de lazer, está ligada a um contato rural que os entrevistados tiveram, em
alguma fase de suas vidas, seja por meio de visitas a sítios e chácaras de parentes e amigos, ou até
mesmo, por terem morado no campo. Sobre essa questão, destacamos os depoimentos abaixo,
que mostram o desejo de um retorno a um contato com o mundo rural.
Eu posso falar que eu tenho origem do campo. Meu pai tinha um sítio e eu morei lá
quando eu era criança. Então minha infância eu passei na roça e a gente tinha
bastante contato com as coisas do campo, com os animais, a plantação. Nossas
brincadeiras eram feitas nesse ambiente. Quando eu estava entrando na
adolescência é que meu pai vendeu o sítio e nós fomos morar na cidade. Mas acho
que esse gosto pela Natureza, pelas coisas do campo, continuou. Então, eu acho que
esse contato teve influência
[na motivação de comprar uma casa no loteamento
fechado]
sim, porque hoje, quando a gente vem pra cá, é como se estivéssemos
voltando um pouco ao passado.
(50 anos, comerciante, residente na cidade de São
José do Rio Preto, proprietário de casa no loteamento Portal da Praia)
Mesmo eu sempre tendo morado na cidade, a vida inteira eu tenho intimidade com
o campo. Eu gosto desse sossego, dessa calma, dessa simplicidade que a gente pode
encontrar na roça. Eu acho que por morar em cidade pequena, a gente acaba
tendo mais contato com o campo. Tanto pela visibilidade, porque você está vendo
sempre animais, a roça, tem também o queijo que você compra o leite, as verduras.
Então isso vai criando um gosto pelo rural. Quando eu venho para o meu rancho, é
justamente por isso, porque aqui eu tenho a possibilidade de ter minha horta,
cuidar das plantas, pescar, ter uma vida mais rural, mesmo. (
41 anos, funcionária
pública municipal, residente na cidade de Buritama, proprietária de casa no
loteamento Portal da Praia)
Olha, eu acho que o fato de eu gostar desse tipo de lazer, mais sossegado, mais
perto da Natureza, tem relação sim, com o fato de eu sempre ter tido contato com
o campo. Tenho parentes que têm chácaras, costumo visitar o sítio de alguns
amigos. Mas nunca morei no campo. Mas eu gosto da tranqüilidade, de ouvir o
barulho dos passarinhos, admirar o pôr-do-sol. Então minha casa aqui no
loteamento significa isso, meu cantinho de campo. É onde eu posso ter um ritmo de
vida diferente do meu dia-a-dia. (
48 anos, dona-de-casa, residente na cidade de
Penápolis, proprietária de casa no loteamento Belvedere)
Eu já morei no sítio, já trabalhei com roça. Tenho esse passado. Mas hoje eu não
acostumo mais. me adaptei ao ritmo da cidade, ao tipo de trabalho da cidade,
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que é mais leve. Mas eu sinto sim, essa necessidade de voltar às minhas origens, de
ter contato com a terra. Eu ter comprado o rancho aqui no loteamento tem essa
motivação, é uma forma prática de você descansar um pouco da cidade, sem ter
que mudar e morar no campo.
(61 anos, empresário, residente na cidade de Monte
Aprazível, proprietário de casa no loteamento Riviera Santa Bárbara)
No entanto, alguns entrevistados apontaram que nunca haviam tido contato com a realidade
rural, a não ser pela observação das paisagens rurais ao longo das estradas. Esses entrevistados
explicam essa busca pelos espaços tidos como rurais, justamente pelo desejo de conhecer outra
realidade socioespacial, além da que encontram nas cidades. Sobre esse aspecto, os depoimentos a
seguir são emblemáticos.
Eu nunca tive um contato direto com as coisas do campo. Assim, eu já fui em sítios,
mas não que eu entenda da rotina do campo, das atividades típicas da roça. Eu
fui para passear, mas nunca prestei muita atenção. Acho que é justamente por esse
desconhecimento que eu me interessei em comprar um rancho. Para conhecer mais
outra realidade, tomar contato com outros tipos de atividade.
(43 anos, dentista,
residente na cidade de São José do Rio Preto, proprietário de casa no loteamento
Marina Bonita)
Conhecer um pouco das coisas rurais eu conheço, por exemplo, sei olhar uma
plantação e dizer do que é, conheço galinha, porco, vaca, essas coisas. Mas é um
conhecimento muito raso, de observar as paisagens, as coisas que acontecem,
porque, por exemplo, se você pega uma estrada para ir pra outra cidade, você
pode ver as coisas rurais. Então, eu conheço, assim, de observar. Mas sempre tive
interesse e o rancho aqui possibilita isso, a gente pode ficar mais perto dessa outra
parte da vida, que é diferente da cidade.
(43 anos, vendedor, residente na cidade
de Birigui, proprietário de casa no loteamento Jardim Itaparica)
Percebemos, assim, que nos casos em que os entrevistados destacam não terem tido um contato
mais aprofundado com a realidade rural, sempre, mesmo que residualmente, algum elemento
rural perfazendo suas trajetórias de vida. Acreditamos que isso ocorra devido ao fato de que, por
morarem em cidades médias e pequenas, os entrevistados têm mais condições de apreender
elementos rurais, visto que o campo e a cidade são materialmente mais próximos em municípios
menos populosos. Assim, a compra de um rancho no loteamento fechado ribeirinho possibilita
resgatar ou criar um novo contato com uma dimensão específica do rural.
Dessa maneira, nos loteamentos fechados ribeirinhos estudados, podemos constatar uma intensa
relação entre o rural e o urbano. As pessoas residentes nas cidades buscam, nesses espaços, saciar
suas “necessidades”, muitas vezes manipuladas pelos empreendedores imobiliários, oriundas da falta
de aspectos ligados à ruralidade (paisagem, temporalidade lenta, contato direto com a Natureza)
no seu cotidiano e, nesse movimento, carregam consigo elementos da realidade urbana em que
vivem, produzindo espaços mistos que comportam o rural e o urbano numa relação contraditória
de afirmação e negação.
A forma como os loteamentos fechados ribeirinhos estão sendo produzidos, ou seja, o modo de
parcelamento das glebas, tipos de construção e disposição das casas, arruamentos e implantação de
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infra-estruturas, entre outros aspectos, obedece aos padrões dos loteamentos horizontais urbanos.
Mas, embora parcelados e edificados como se fossem urbanos, a lógica de uso desses espaços não é a
mesma, visto que sua função não é servir de primeira moradia.
O aspecto rural é um elemento central para a compreensão da produção desses
empreendimentos, visto que a paisagem em que estão inseridos é rural, diferentemente da
paisagem em que se inserem outros tipos de loteamentos fechados. Esse fator consiste num
diferencial desses espaços, produzidos e apropriados a partir do movimento de negação/afirmação
das características urbanas e rurais, materializadas na venda da paisagem.
O que se busca é reproduzir, nesses espaços, uma territorialidade rural, alcançada de forma
temporária e incompleta. Ao realizarem esse movimento de busca de elementos ligados ao mundo
rural, as pessoas não abandonam seus hábitos urbanos. Assim, podemos observar que os
loteamentos fechados ribeirinhos apresentam, ao mesmo tempo, formas e conteúdos ligados ao
urbano e ao rural, ou seja, representam espaços diferenciados que não podem ser entendidos a
partir de um pensamento dicotômico, visto que no âmbito das dimensões do rural e do urbano, os
elementos que as opõem, também as unem. Esses espaços reafirmam, assim, o fato de que não
podemos mais associar o rural apenas com o campo e o urbano apenas com a cidade.
O que podemos observar, então, a partir da análise dos loteamentos fechados ribeirinhos, é que
eles representam tentativas de se produzirem simulacros do rural. Os traços que permanecem no
rural são apropriados e inseridos na lógica urbana. Temos assim, meras encenações do rural. Nesse
contexto, constatamos a inserção da lógica urbana em um espaço paisagisticamente organizado
como rural. As práticas que se estabelecem nesses espaços estão muito mais relacionadas ao urbano
do que ao rural propriamente dito.
Dessa maneira, procuramos entender os loteamentos fechados ribeirinhos como espaços de
simulacro. De acordo com Baudrillard (1995, p. 148), simulacros são representações dos objetos e dos
acontecimentos. Na sociedade contemporânea, os simulacros passam a dominar a vida das pessoas,
na medida em que não mais, apenas representam a realidade, eles são a hiper-realidade. O triunfo
da cultura da representação resulta num mundo simulacional, no qual a proliferação dos signos e
imagens tende a abolir a distinção entre o real e o imaginado. Isso significa dizer que, por toda
parte, vivemos numa “alucinação estética da realidade”.
Dessa forma, vivemos em uma realidade além da realidade, que apreendida por todos no
cotidiano, transfoma tudo, do mais próximo ao mais distante, em uma noção de verdade vivida. Os
simulacros são representados por signos ou por imagens que apresentam sentidos próprios, gerando
realidades autônomas, além da realidade de fato. Assim, o consumo dos símbolos proporciona uma
apropriação simulada, que não é falsa, nem irreal – é uma representação vivida como verdade.
Sendo assim, ao se apropriarem de forma simulacional de um mbolo, produzido pelos
incorporadores imobiliários, de um contato idealizado com o rural, as pessoas estão transformando
esse conteúdo simbólico em realidade. Cria-se, assim, um novo conteúdo para a rural, que não é
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uma mentira, e sim, uma realidade criada e vivida como verdade. Dessa maneira, tanto do ponto
de vista material, quanto simbólico, os loteamentos fechados ribeirinhos representam uma
intensificação das relações contraditórias entre rural e urbano.
Analisando o significado da palavra rancho’, utilizada para denominar as casas nos
loteamentos fechados ribeirinhos, podemos perceber que ela pode ter rios significados, mas no
que se refere ao tema de nossa pesquisa, de acordo com o dicionário de língua portuguesa Aurélio,
rancho significa: casa ou cabana no campo, nas roças, em canteiro de obras, etc., para abrigo
provisório ou descanso de trabalhadores; casa pobre, da roça, choça, ranchinho. Assim, a palavra
remete à realidade rural, mas o que vemos, nos loteamentos fechados ribeirinhos, em sua grande
maioria, é a produção de casas bem equipadas, seguindo padrões arquitetônicos, que se distanciam
da definição de casa pobre ou de cabana. Essa resignificação da palavra rancho, nesse caso, faz
parte da introdução de valores e hábitos urbanos em uma realidade tradicionalmente rural.
Sobre as dificuldades de se definir, diante da imbricação de seus processos característicos, o que é
urbano e o que é rural, ou ainda, onde começa o urbano e termina o rural, ressaltamos um aspecto
interessante referente à implantação dos loteamentos fechados ribeirinhos nos municípios estudados.
As leis municipais de Buritama, Zacarias e Penápolis definem as áreas onde estão implantados os
loteamentos fechados ribeirinhos como Zonas de Urbanização de Interesse Turístico. As leis que
definem o zoneamento urbano em relação a essa área de urbanização de interesse turístico, nos três
municípios em questão, apresentam disposições semelhantes. À titulo de exemplificação,
analisaremos o disposto na lei municipal 1443/2007 do município de Penápolis. Segundo essa lei,
contida no plano diretor urbanístico do município:
Art. 16. Zona de Urbanização de Interesse Turístico (ZUIT) é um trecho
contínuo do território municipal, incluindo suas águas territoriais, a ser
preservado no sentido cultural e natural, e destinado à realização de
projetos de desenvolvimento turístico, cultural e de lazer.
Art. 17. A ocupação da Zona de Urbanização de Interesse Turístico deve se
dar de forma a:
I - garantir o potencial para o turismo sustentável;
II - evitar o excessivo adensamento populacional;
III - evitar a degradação dos recursos naturais;
IV - evitar a poluição dos recursos hídricos;
V - criar condições para a recuperação de áreas degradadas;
VI - propiciar o desenvolvimento do turismo como setor econômico.
Art. 19. À Zona de Urbanização de Interesse Turístico:
I - é passível, mediante autorização do Executivo Municipal, para uso de
moradia, lazer, turismo, atividades culturais e outros de interesse público ou
social;
II - é passível, mediante autorização do Executivo Municipal, de
parcelamento para fins urbanos, excluindo as áreas da APP que o
poderão ser parceladas;
III - o parcelamento de solo será permitido para empreendimento
constituído, preliminarmente, como Condomínio ou Associação, em
conformidade com a legislação pertinente;
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Sendo assim, podemos perceber que as Zonas de Urbanização de Interesse Turístico são faixas de
aproximadamente 600 m a partir da margem dos rios, em que podem ser construídos hotéis,
pousadas, parques temáticos, clubes e outros empreendimentos, sendo que seu parcelamento pode
ser realizado para fins de moradia, lazer e turismo. São áreas em que os empreendimentos
implantados devem evitar a degradação das condições naturais, garantindo seu potencial de
“turismo sustentável”. São áreas tradicionalmente rurais, que podem ter seu conteúdo alterado
para a realização de atividades urbanas específicas, ligadas ao lazer e ao turismo.
Dessa forma, vemos que os espaços em que estão implantados os loteamentos fechados
ribeirinhos são juridicamente identificados como urbanos, devendo seguir as regras do parcelamento
urbano do solo e pagar o Imposto Predial Territorial Urbano - IPTU. Mas quando observamos mais
atentamente esses espaços, vemos que essa delimitação e essa classificação como área urbana não
são assim tão claras. Ainda existem muitos usos rurais nessas áreas, fazendo com que a definição
delas como urbanas não demonstre e não explique todos os seus processos e conteúdos.
Como podemos observar nas imagens 10, 11, 12, 13, 14 e 15, que mostram os loteamentos fechados
ribeirinhos e seus entornos, destinados para atividades rurais, esses empreendimentos podem ser
considerados como enclaves urbanos em meio a uma realidade rural. Dessa maneira, nas Zonas de
Urbanização de Interesse Turístico, temos uma mistura de usos, urbanos e rurais, que revela a
intensificação das relações entre essas duas dimensões socioespaciais.
Figura 10 – Buritama. Loteamento Riviera Santa Bárbara I e II e seu entorno rural. 2008
Fonte: Google Earth, 3 jun 2006
Riviera Santa
Bárbara I e II
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Figura 11: Buritama. Loteamento Jardim Itaparica e seu entorno rural. 2008
Figura 12: Buritama. Loteamentos Orla Um, Marbella e Vale do Sol I e II e seu entorno rural. 2008
Fonte:
Google Earth, 3 jun 2006
Jardim Itaparica
Orla Um
Marbella
Vale do Sol I e II
Fonte: Google Earth, 21 de maio de 2008
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Figura 13: Buritama. Loteamentos Lago Azul I e II, Praia Bella, Portal da Praia e Paraíso das
Águas e seu entorno rural. 2008
Figura 14: Zacarias. Loteamento Marina Bonita e seu entorno rural. 2008
Lago Azul I e II
Paraíso
das
Águas
Portal da Praia
Praia Bella
Fonte: Google Earth, 21 de maio de 2008
Fonte: Google Earth, 3 jun, 2006
M
arina Bonita
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Figura 15: Penápolis. Loteamento Recanto Belvedere e seu entorno rural. 2008
A coexistência de usos urbanos e rurais, nesses espaços, faz com que possamos vislumbrar o início
de uma tendência à periurbanização. Segundo Schneider (1999), as áreas periurbanas podem ser
caracterizadas como: espaços que não são tipicamente rurais tampouco urbanos”. As áreas
periurbanas seriam, então, zonas de transição entre cidade e campo, onde se mesclam atividades
rurais e urbanas. Nos espaços periurbanos, a mistura entre atividades urbanas e rurais é intensa,
sendo que os processos que se desenrolam nessas áreas passam a ter características próprias.
De acordo com Vallete (2004), os espaços periurbanos o territórios metropolizados com baixa
densidade demográfica, plenamente inseridos nas dinâmicas dos novos territórios urbanos, mesmo
que ainda conservem o essencial de suas características rurais e locais. Esses espaços encontram-se
integrados a um conjunto regional urbano mais amplo: área metropolitana fragmentada.
Vemos a partir das análises realizadas nos loteamentos fechados ribeirinhos que a tendência à
formação de espaços periurbanos não é exclusiva das metrópoles. A implantação dos loteamentos
fechados ribeirinhos em espaços tradicionalmente rurais dos municípios estudados aponta para a
possibilidade de instauração de um processo de periurbanização, ou seja, as atividades rurais e
urbanas nesses municípios estão começando a ocorrer, nos mesmos espaços.
Destacamos que, nesses municípios, não são apenas os loteamentos ribeirinhos que indicam essa
tendência de periurbanização, mas, também, a presença de outros empreendimentos como pesque
- pagues, restaurantes, hotéis, clubes e algumas empresas agroindustriais como frigoríficos de peixes
e usinas de açúcar e álcool.
Fonte: Google Earth, 21 de maio de 2008
Recanto Belvedere
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De acordo com Dematteis (1998), da combinação de dinâmicas de periurbanização e de cidade
difusa derivam três tipos morfológicos: a periurbanização, a difusão reticular e a superposição de
ambas.
La mera periurbanización puede interpretarse como la situación de desarrollo más
débil, en la cual el crecimiento depende sólo de las funciones de servicio (y
eventualmente industriales) de un polo urbano dentro de un contexto regional
relativamente pobre tanto en servicios como en actividad productiva. La difusión
reticular («ciudad difusa») es característica de los tejidos mixtos residenciales y
productivos (industriales, terciario-productivos, agro-industriales, turísticos)
derivados ya sea de dinámicas endógenas del tipo «distrito industrial» ya sea de la
descentralización metropolitana de amplio radio.
Dessa maneira, podemos afirmar que, embrionariamente, temos nas cidades estudadas,
aspectos que apontam para uma tendência de constituição do processo de difusão reticular,
caracterizado pela cidade difusa, ainda que em fase muito embrionária, isso porque os espaços
desse municípios caminham para a constituição de tecidos mistos, com atividades residenciais e
produtivas.
Segundo Vale (2004), as áreas periurbanas são uma reserva de espaço próprio para a
instalação de equipamentos de lazer. Conforme a autora, esses empreendimentos de lazer
periurbanos não decorrem apenas em detrimento da expansão urbana, mas da necessidade dos
moradores rurais em busca de uma forma de complementação de renda.
No processo de produção dos loteamentos fechados ribeirinhos, constatamos que essa dimensão,
da complementação da renda dos moradores rurais não é contemplada, visto que a população
rural não é diretamente inserida na lógica de funcionamento desses empreendimentos, sendo que o
número de pessoas empregadas nesses espaços é relativamente pequeno e é constituído,
primordialmente, de moradores oriundos das cidade.
Sabemos que a implantação de elementos urbanos, como os loteamentos fechados ribeirinhos,
em espaços antes rurais, muda sua dinâmica de funcionamento e lhe novos conteúdos. Sendo
assim, no âmbito das percepções e dos usos empreendidos nesses espaços, temos diferenciações entre
os grupos de moradores rurais e as pessoas que consomem esporadicamente os loteamentos
fechados ribeirinhos. Os antigos moradores desses espaços possuem um tipo de relacionamento e
percepção dessas áreas, enquanto os novos consumidores, oriundos de lógicas diferentes, percebem e
utilizam esses espaços de maneira diferente.
A partir das entrevistas realizadas com os moradores de áreas rurais próximas aos loteamentos
fechados ribeirinhos, pudemos constatar que a relação e a percepção que eles possuem com a terra
e com o meio rural é bem diferente das apresentadas pelos consumidores dos loteamentos fechados
ribeirinhos. Para ilustrar essa diferença, apresentamos a seguir, depoimentos desses dois grupos de
entrevistados.
Eu considero a vida aqui no campo muito boa, a lida é dura, mas no fundo é bom.
Foi assim que eu aprendi a viver. Sempre lidando com a terra, com os bichos. Eu
não tenho a mínima vontade de morar na cidade. Para mim, numa cidade grande,
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por exemplo, a gente não vive direito, as coisas são mais difíceis. Aqui a gente vai
levando as coisas no nosso ritmo, vai fazendo as coisas com mais calma. Parece que
nosso sítio é o nosso mundo. A gente vai na cidade para comprar algumas coisas,
mas a gente se sente bem mesmo é aqui. Até o ar é mais puro, mais fresco. Então as
vantagens
(de morar no campo)
são essas, esse é o nosso modo de vida. O campo
para nós é a nossa essência. (
45 anos, residente em Buritama, em próxima ao
loteamento Lago Azul)
A vida no campo é ótima. Tem seus problemas, suas dificuldades, é uma vida dura.
Mas é o que a gente sabe fazer. Cuidar da terra, tratar dos bichos. sempre uma
alegria na gente, quando a gente a roça verdinha, os leitõezinhos pequenos, as
vacas dando cria. Eu acho que aqui na roça a gente está mais próximo das coisas
da criação de Deus. A gente tem a oportunidade de ver as coisas brotando,
nascendo. Isso é o que eu acho melhor aqui na vida no campo.
(51 anos, residente
em Buritama, próximo ao loteamento Riviera Santa Bárbara)
Eu acho que viver no campo deve ser difícil. As coisas não são tão organizadas. Não
tem tanta infra-estrutura, o trabalho é mais pesado. Então, eu não gostaria de
morar na roça não. Agora, aqui no rancho é diferente. A gente conta com
uma estrutura que nos mais conforto. Então aqui é bom, a gente tem contato
com um campo domesticado, se é que eu posso dizer assim. Então, pra relaxar, pra
ver paisagens bonitas, eu acho bom.
(42 anos, dentista, residente na cidade de São
José do Rio Preto, proprietário de casa no loteamento Orla Um)
O que tem de melhor no campo, eu acho que é o contato com a Natureza. É lógico
que a produção dos nossos alimentos é importante. Mas, na minha opinião pessoal,
eu gosto da tranqüilidade, dos bichos, do verde, do sossego mesmo, que a gente tem
aqui no rancho. Serve para gente fugir um pouco do ritmo da cidade. Então, do
campo eu privilegio o descanso que ele possibilita.
(56 anos, aposentada, residente
na cidade de Araçatuba, proprietária de casa no loteamento Jardim Itaparica)
Podemos perceber, a partir da comparação das entrevistas, que os moradores tradicionais das
áreas rurais consideram o campo como seu modo de vida, como sua essência. Trabalhar com a
terra e dela tirar seu sustento é a forma como aprenderam a viver e é o que lhes alegria.
Reconhecem as dificuldades da vida no campo, considerada, também, como uma vida dura, de
trabalho pesado. Para esses entrevistados, o rural está impregnado em seus hábitos, em suas
atividades e em sua forma de conceber a vida. Já, para os entrevistados que consomem o rural a
partir dos loteamentos fechados ribeirinhos, vemos que eles não desejam se apropriar do campo em
si, considerado por eles como não tendo as infra-estruturas necessárias para um mínimo de conforto.
Desejam um
campo domesticado
”, em que a paisagem rural prevaleça, mas que apresente as
infra-estruturas a que estão acostumados nas cidades. Privilegiam, no campo, o contato com a
Natureza, mas não se interessam pela produção, pelos processos naturais ou pelos hábitos das
pessoas do campo. Para eles, o rural ideal é aquele que encontram dentro dos loteamentos
fechados ribeirinhos, que lhes oferece sossego e tranqüilidade, por meio das paisagens bonitas.
Querem, assim, consumir um conteúdo específico do rural, diferente do conteúdo que o rural
representa para seus antigos moradores. Dessa maneira, a partir da introdução dos loteamentos
fechados ribeirinhos no campo, temos a inserção da dimensão urbana nesses espaços, mas também,
de um novo conteúdo rural constituído por meio de uma lógica urbana.
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Portanto, temos, nesses espaços, a coexistência de duas formas distintas de percepção, uma
ligada à apropriação tradicional, pautada nos laços rurais e outra baseada na idealização do rural
como fonte de uma maior qualidade de vida, que trata a Natureza como uma mercadoria,
vendida para a obtenção de lazer, ponto de vista esse, oriundo dos laços urbanos.
Dessa forma, esses espaços produzem uma realidade complexa, devido à presença de grupos
sociais distintos que produzem material e simbolicamente esses espaços, de forma paralela. Temos a
constituição, dessa forma, de distintas territorialidades num mesmo espaço.
No caso da heterogeneidade produzida pela implantação dos loteamentos fechados ribeirinhos
em áreas tradicionalmente rurais, vemos, a partir das entrevistas e das observações em campo, que
o contato com a realidade urbana não é suficiente para desconfigurar as antigas práticas
socioespaciais da área. Isso porque, ao surgirem de uma lógica segregacionista e se constituírem em
verdadeiros enclaves, os loteamentos fechados ribeirinhos não propiciam contatos diretos das
pessoas que os consomem com os espaços e com as pessoas do entorno. Sobre esse aspecto,
apresentamos os depoimentos a seguir.
Em relação às pessoas que moram aqui no campo, a gente não conheceu ninguém
não. Mas é que a gente vem específico mesmo para o rancho. Uma vez a gente
chegou a comprar queijo em um sítio que fica aqui no caminho. Mas foi só. Do resto,
a gente fica aqui no condomínio mesmo.
(55 anos, aposentada, residente na cidade
de Birigui, proprietária de casa no loteamento Portal da Praia)
A gente tem tudo que precisa aqui dentro do loteamento. Tem o rio, a piscina, o
campinho, o parquinho. Então eu acho que aqui é um espaço auto-suficiente. Não
teria como a gente ter um contato mais aprofundado, porque eles (
as pessoas do
campo)
são diferentes da gente. Têm suas rotinas, ficam mais na deles. E a gente
também não sai do loteamento, porque o que a gente procura, já temos aqui.
(49
anos, empresária, residente na cidade de Andradina, proprietária de casa no
loteamento Jardim Itaparica)
Olha, quando começaram a construir esses condomínios na beira do rio, eu achei
que as coisas fossem mudar mais. Mas não, é tranqüilo. Eles ficam lá, a gente só vê o
movimento dos carros, de vez em quando escuta algum barulho, mas é só. Não
chega a misturar as pessoas de lá com a gente não.
(62 anos, residente em Zacarias,
em área próxima ao loteamento Marina Bonita)
Eu acho que eles [
proprietários de casas nos loteamentos ribeirinhos] a partir de
não estão muito interessados na gente não. Eles vêm mais é para lazer, não é? Por
causa da água, do ar puro, dos bichos. Mas com a gente eles nunca mexeram não.
Então, não mudou muita coisa não.
(42 anos, residente em Penápolis, próximo ao
loteamento Belvedere)
Percebemos assim, que esses dois grupos de entrevistados não mantêm contatos diretos. Apesar
de dividirem uma mesma área, os muros impõem limites à troca de experiências entre os antigos
moradores e os proprietários de lotes nos loteamentos fechados ribeirinhos. Até porque o objetivo de
sua apropriação do campo não é estabelecer um contato com o rural em si, com seus hábitos e seus
ritmos. O que os consumidores dos loteamentos fechados ribeirinhos realizam é uma apropriação
urbana de um conteúdo rural simulado.
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Dessa maneira, constatamos que esses empreendimentos são áreas isoladas dos espaços que as
cercam, apesar de sua lógica de produção estar ligada a eles. As pessoas que adquirem lotes, nesses
empreendimentos, consomem a paisagem desses espaços e de seu entorno, mas no plano da
apropriação objetiva, não estabelecem relações diretas com a comunidade rural, não havendo
assim, um processo de trocas de experiências e valores.
O rural é consumido então, na perspectiva de um simulacro, como sendo um lugar que se vai
aos fins de semana para fugir da agitação das cidades. Os loteamentos fechados ribeirinhos são
espaços que estão associados com valores como tranqüilidade e contato com a Natureza, mas onde
as relações se dão nas mesmas bases das que ocorrem nas áreas urbanas. As pessoas não se
interessam em conhecer e ter contato com uma realidade sociocultural diferente, buscam, apenas,
espaços com qualidades diferenciadas das encontradas nas cidades. Dessa maneira, os contatos das
pessoas que vão para os loteamentos fechados ribeirinhos nos finais de semana com os antigos
moradores rurais do entorno são muito esporádicos e superficiais, quando acontecem, e não são
suficientes para alterar a identidade desses espaços, não transformando de forma significativa o
ritmo de vida das pessoas que já habitavam ali, embora em alguns relatos, os antigos moradores
dessas áreas rurais tenham destacado certo incômodo com essas novas formas urbanas inseridas em
seus espaços de moradia, visto que o fluxo de automóveis em direção aos loteamentos às vezes
quebra a tranqüilidade do local, assustando os animais e “
tirando o sossego
” deles.
Dessa maneira, apontamos alguns exemplos das especificidades encontradas na apropriação dos
loteamentos fechados ribeirinhos por eles serem espaços destinados ao lazer de segunda residência.
Essas especificidades comparecem, também, quando analisamos as decorrências socioespaciais a
partir da implantação e da apropriação desses empreendimentos. Mesmo não sendo o objetivo de
nosso trabalho discutir essas decorrências, fazemos uma breve apresentação de alguns aspectos que
consideramos interessantes para a compreensão dos loteamentos fechados ribeirinhos.
Consideramos que algumas decorrências socioespaciais oriundas da implantação dos
loteamentos fechados ribeirinhos, por seu caráter de enclave fechado e de sua destinação para o
lazer, são diferenciadas. Tanto os outros tipos de loteamentos fechados, quanto os outros tipos de
segundas residências são responsáveis por realizar, em maior, ou menor grau, uma reestruturação
do espaço em que se inserem. Cria-se um conjunto de infra-estruturas e serviços para dar suporte
aos usos realizados nesses espaços. No caso das segundas residências, a geração de empregos e
uma preparação da cidade em que estão implantadas, para atender aos proprietários nas épocas
de temporada, gerando também, um incremento da renda para seus moradores. No caso dos
loteamentos fechados ribeirinhos, esse aspecto é diferente. Os proprietários não vão para suas
segundas residências para consumirem a cidade e seus atrativos. Buscam o consumo específico dos
espaços dentro dos muros dos loteamentos fechados ribeirinhos.
Sendo assim, consideramos que a implantação e o consumo dos loteamentos fechados
ribeirinhos não geram uma integração e um desenvolvimento das infra-estruturas e das relações
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socioespaciais nas áreas em que estão localizados. Não levam ao desenvolvimento de atividades de
comércio e de serviços no local, não favorecem as relações diretas entre os condôminos e os
moradores rurais, não geram um número significativo de postos de emprego, não geram um
aumento considerável na arrecadação municipal, pois, apesar de pagarem o IPTU, essas
propriedades também demandam serviços públicos, como fornecimento de energia e coleta de lixo.
Dessa maneira, as implicações geradas a partir desses empreendimentos são limitadas, visto que
esses espaços não se integram, no plano físico e no plano da apropriação, aos tecidos urbanos das
cidades em que estão implantados ou tampouco, às atividades econômicas dos respectivos
municípios. A produção dos loteamentos fechados ribeirinhos altera a paisagem, mas as novas
formas de relações que acompanham a produção material desses espaços ficam restritas, apenas,
ao interior de seus muros, como destacado por um entrevistado:
Quando a gente vem para o condomínio a gente passa pela cidade, mas nós nunca
paramos para visitar. Nem sei se tem alguma coisa para visitar. Nós sempre viemos
direto para o rancho. Eu acho que aqui a gente tem tudo que precisa, a gente sai
de casa pra aproveitar o rancho e os outros espaços do condomínio. Então, aqui é
completo. A gente costuma trazer os alimentos e as bebidas de casa, nunca
paramos num supermercado de Zacarias para fazer compras. Acho que nem deve
ter muita variedade de produtos, porque é uma cidadezinha muito pequena.
Então a gente não vai parar na cidade não. Aqui a gente tem tudo o que precisa, o
que não tem, a gente traz de casa.
(56 anos, médico, residente na cidade de São
José do Rio Preto e proprietário de casa no loteamento Marina Bonita)
Podemos observar que, apesar de não causarem conseqüências diretas e consideráveis para a
dinâmica urbana em que se inserem, a produção dos loteamentos fechados ribeirinhos revela
alguns processos característicos de outros tipos de empreendimentos fechados. Dessa maneira,
podemos apontar como exemplos, a apropriação privada dos espaços públicos interiores aos
loteamentos e os processos de segregação, segmentação e fragmentação socioespacial.
No que se refere à apropriação privada dos espaços públicos dentro dos loteamentos ribeirinhos,
podemos considerar que esse processo faz parte de um processo que Serpa (2007, p. 36) caracteriza
como sendo uma privatização do espaço público por meio da ereção de barreiras que podem ser
simbólicas e invisíveis. O espaço público transforma-se em uma justaposição de espaços privatizados
que não são compartilhados, mas, sobretudo, divididos entre os diferentes grupos sociais.
Os espaços dentro dos loteamentos fechados ribeirinhos, que deveriam ser integrados ao
domínio da cidade, tendo seu acesso livre a todas as pessoas, visto que passariam a constituir
espaços públicos, são privatizados, por meio de dispositivos legais, as concessões de uso especial, ou
por meio de uma apropriação indevida, ratificada pela complacência das autoridades legais e pelo
desconhecimento que as pessoas, em geral, possuem de seus direitos. Assim, os espaços públicos, que
podem ser considerados como espaços onde a possibilidade de livre circulação, de encontros
impessoais, da presença de diferentes segmentos sociais, são privatizados e apropriados por um
grupo social específico.
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Assim, o que se verifica a partir da produção e da apropriação dos loteamentos ribeirinhos é a
consolidação de espaços pseudopúblicos, como coloca Sobarzo (2004, p. 27). Para o autor, a
consolidação de novos empreendimentos imobiliários - loteamentos fechados,
shopping centers
,
centros empresariais, parques temáticos, centros turísticos questionam o significado do espaço
público, sendo muitas vezes, “caricaturas da vida social, negando ou ocultando as diferenças e os
conflitos, tornando a sociabilidade mais “clean” e, em último termo, negando-a”.
Essa mudança que vem ocorrendo a respeito de uma resignificação dos espaços públicos, pode
ser verificada nos loteamentos ribeirinhos, como podemos observar nos depoimentos dos
entrevistados a seguir:
Olha, eu entendo espaço blico como sendo um espaço que várias pessoas podem
usar. Por exemplo, aqui dento do condomínio nós temos os espaços públicos, que
são a água, a área da areia, o parquinho, o campinho, todas as áreas que todos
nós
podemos utilizar.
(43 anos, farmacêutico, residente na cidade de Birigui,
proprietário de casa no loteamento Riviera Santa Bárbara)
Aqui a gente tem essa divisão entre espaço privado e espaço público. Os espaços
privados, eu acredito que sejam as casas, os ranchos em si. Os espaços públicos são
aqueles de uso comum, os espaços a que todos
os proprietários podem ter acesso
(55
anos, aposentada, residente na cidade de Birigui, proprietária de casa no
loteamento Portal da Praia)
Podemos constatar a partir desses depoimentos, que servem para exemplificar a fala de muitos
outros entrevistados, que a visão que eles possuem de espaço público coincide com a visão de
espaço de uso comum. Dessa maneira, as áreas de uso comum dos loteamentos ribeirinhos são
consideradas como públicas, visto que permitem a apropriação por parte de
todos
”. A questão é
que esse
todos”
está restrito,
apenas, àqueles que possuem casas nesses empreendimentos, ficando
de fora da possibilidade de sua apropriação por grupos sociais diferentes.
De acordo com Serpa (2007, p. 87), a soma de apropriações de um coletivo de indivíduos não é
suficiente para legitimar a noção de espaço público. Isso porque o espaço público supõe o encontro
entre a alteridade e entre grupos sociais diferentes. Quando a apropriação é realizada por apenas
um grupo de pessoas e o acesso a esse espaço é restrito, temos a instituição de um espaço
pseudopúblico, como no caso dos loteamentos fechados ribeirinhos. As pessoas têm a impressão de
que os espaços onde todas as pessoas que estão dentro dos muros podem desfrutar são espaços
destinados ao uso público. Assim, sua concepção de público é restrita e deturpada.
Esse processo de apropriação privada dos espaços públicos que acontece nos loteamentos
fechados ribeirinhos é marcado pela contradição. Os espaços que deveriam ser de uso
verdadeiramente públicos, são privatizados e apropriados por grupos sociais determinados, fazendo
que o caráter de blico não seja alcançado. No entanto, os consumidores desses empreendimentos
percebem essas áreas privatizadas como públicas, mostrando a redefinição da utilização e da
percepção acerca das relações entre as dimensões de espaço público e espaço privado que está em
curso.
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Outros elementos que podem ser entendidos em conjunto, mesmo tratando-se de processos
diferentes, e que estão presentes na produção e na apropriação dos loteamentos fechados
ribeirinhos é a questão da segregação, da segmentação e da fragmentação socioespacial. A
segregação socioespacial a partir dos loteamentos ribeirinhos decorre do fato de que os grupos de
maior poder aquisitivo escolhem áreas determinadas, separadas por barreiras físicas e também
simbólicas, para desfrutarem de seus momentos de lazer. Assim, auto-segregam-se nesses enclaves e
segregam os demais grupos sociais, que são obrigados a ficar fora de seus muros.
Esse processo de separação física e simbólica entre os diferentes grupos sociais em seus locais de
moradia e, como podemos ver nos loteamentos fechados ribeirinhos, também em seus momentos de
lazer, está ligado a um processo de segmentação socioespacial, decorrente da tendência crescente
de que os diferentes segmentos sociais realizem suas diferentes atividades cotidianas em parcelas
espaciais diferenciadas. Os espaços urbanos são marcados, assim, pela segmentação dos usos, com a
produção de espaços próprios para cada segmento social. Podemos constatar que a apropriação
realizada nos loteamentos fechados ribeirinhos é uma apropriação segmentada, específica para um
grupo social. Assim, são espaços que não pressupõem a convergência de usos para os diferentes
grupos sociais.
A fragmentação urbana pode ser considerada como um processo de agudização da segregação
e da segmentação socioespacial, quando a cidade se esfacela em parcelas territorialmente
desarticuladas entre si. No caso dos loteamentos fechados ribeirinhos podemos observar que há uma
tendência para a fragmentação urbana tanto na escala intra-urbana, quanto na escala
interurbana.
Sendo assim, pudemos constatar que os loteamentos fechados ribeirinhos são espaços singulares,
que apresentam elementos que os distinguem e que os ligam aos demais tipos de loteamentos
fechados. Apresentamos, nesse capítulo, uma caracterização desses empreendimentos, seguida da
exposição de algumas questões que podem ser analisadas a partir da produção e da apropriação
dos loteamentos fechados ribeirinhos. Nossa intenção foi realizar uma introdução de vários aspectos
para que as dinâmicas que serão estudadas mais detidamente nos próximos capítulos sejam
contextualizadas. Dessa forma, reconhecemos que nosso recorte analítico, diante da amplitude das
possibilidades de análise que nosso objeto suscita, deixa de fora muitas questões interessantes e que
mereciam um melhor desenvolvimento.
No entanto, seria impossível, no espaço dessa dissertação, abordar aprofundadamente todas as
temáticas decorrentes da produção e da apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos. Nesse
sentido, elegemos como dimensões estruturadoras de nossa análise, três que serão trabalhadas na
perspectiva das relações entre os aspectos materiais e simbólicos: apropriação idealizada da
Natureza, construção de identidades e busca por “comunidades de iguais” e relação entre a
insegurança real e imaginada na produção dos loteamentos fechados ribeirinhos.
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CAPÍTULO III
A NATUREZA NOS LOTEAMENTOS FECHADOS RIBEIRINHOS:
DISSOCIAÇÃO ENTRE APROPRIAÇÃO SIMBÓLICA E APROPRIAÇÃO
MATERIAL
Absurdo
Vanessa da Mata
Havia tanto pra lhe contar / A natureza
Mudava a forma, o estado e o lugar
Era absurdo
Havia tanto pra lhe mostrar / Era tão belo
Mas olhe agora o estrago em que está
Tapetes fartos de folhas e flores
O chão do mundo se varre aqui
Essa idéia do natural ser sujo
Do inorgânico não se faz
Destruição é reflexo do humano
Se a ambição desumana o Ser
Essa imagem infértil deserto
Nunca pensei que chegasse aqui
Auto-destrutivos
Falsas vítimas nocivas?
Havia tanto pra aproveitar / Sem poderio
Tantas histórias, tantos sabores
Capins dourados
Havia tanto pra respirar / Era tão fino
Naqueles rios a gente banhava
Desmatam tudo e reclamam do tempo
Que ironia conflitante ser
Desequilíbrio que alimenta as pragas
Alterado grão, alterado pão
Sujamos rios, dependemos das águas
Tanto faz os meios violentos
Luxúria é ética do perverso vivo
Morto por dinheiro
Cores, tantas cores
Tais belezas
Foram-se
Versos e estrelas
Tantas fadas que eu não vi
Falsos bens, progresso?
Com a mãe ingratidão
Deram o galinheiro
Pra raposa vigiar
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Uma das inquietações que mais preocupam a sociedade atual, dentre o rol das várias que
afligem a sociedade contemporânea, diz respeito à forma como as pessoas percebem e se
apropriam da Natureza. Ao longo da História, os grupos humanos e as sociedades foram alterando
suas maneiras de se relacionarem com a Natureza, caminhando no sentido de uma separação cada
vez maior entre ela e os homens.
Segundo Smith (1988, p. 27), assim como uma árvore em crescimento recebe um novo anel a
cada ano, a concepção social de Natureza tem acumulado inumeráveis camadas de significado no
decorrer do tempo histórico. Dessa forma, a concepção de Natureza é extremamente complexa e
muitas vezes contraditória.
A natureza é material e espiritual, ela é dada e feita, pura e imaculada; a natureza
é ordem e desordem, sublime e secular, dominada e vitoriosa, ela é uma totalidade
e uma série de partes, mulher e objeto, organismo e máquina. A natureza é um
dom de Deus e é um produto de sua própria evolução; é uma história universal à
parte, e é também o produto da história, acidental e planejada, é selvagem e
jardim. Em nosso elenco de concepções da natureza, todos esses significados
sobrevivem hoje, mas mesmo em sua complexidade eles são organizados em um
dualismo essencial que domina a concepção da natureza. (SMITH, 1988, p. 28)
Para o autor, o dualismo da concepção atual de Natureza é baseado na externalidade e na
universalidade. Por um lado, a Natureza é externa, uma coisa, o reino dos objetos e dos processos
que existem fora da sociedade. Por outro, é concebida como universal. Ao lado da Natureza
exterior, temos a Natureza humana, na qual está implícito que os seres humanos e seu
comportamento social são absolutamente tão naturais quanto os aspectos ditos “externos” da
Natureza. A Natureza exterior e a Natureza universal não são inteiramente conciliáveis, “pois ao
mesmo tempo em que a natureza é considerada exterior à existência humana, ela é
simultaneamente tanto exterior quanto interior”. (SMITH, 1988, p. 28)
De acordo com Gonçalves (1998, p.23), o conceito de Natureza não é natural, visto que é
resultado de uma construção social, ou seja, é um conceito criado pelo homem. Segundo ele, toda
sociedade e toda cultura cria e institui uma determinada idéia de Natureza que vai influenciar na
sua forma de agir sobre ela. Para o autor,
A Natureza se define, em nossa sociedade, por aquilo que se opõe à cultura. A
cultura é tomada como algo superior e que conseguiu controlar e dominar a
Natureza. Daí se tomar a revolução neolítica, a agricultura, como um marco da
História, posto que com ela o homem passou da coleta daquilo que a Natureza
“naturalmente” dá, para a coleta daquilo que se planta, que se cultiva
.
(
GONÇALVES, 1998, p. 26-27).
Dessa forma, podemos concluir que toda sociedade e toda cultura criam um determinado
conceito de Natureza, ao mesmo tempo em que criam e instituem suas relações sociais, sendo assim,
no interior das relações sociais sempre esembutida uma determinada concepção de Natureza.
No caso da Sociedade Ocidental, a Natureza define-se por aquilo que se opõe à cultura, que é tida
como algo superior, capaz de dominar e controlar os elementos naturais.
Para Smith (1988, p. 29), o dualismo existente entre a Natureza exterior e a Natureza interior ao
Homem não é absoluto, visto que essas concepções são freqüentemente confundidas na prática, por
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não poderem ser facilmente separadas. As raízes históricas desse dualismo remontam mais
diretamente a Kant, embora elas apareçam em fragmentos na tradição judaico-cristã, que
distinguiu a Natureza interior, suas paixões cruas, da Natureza exterior, o ambiente social e físico no
qual os seres humanos viviam. Esse dualismo inicial implica outros que nos soam familiares,
atualmente: a mente e a Natureza, a cultura e a Natureza.
Para atender aos objetivos do presente capítulo, realizaremos uma breve apresentação de
alguns diferentes conteúdos e de algumas formas de apropriação da Natureza que foram se
desenvolvendo ao longo do tempo histórico. Tendo em vista o caráter sucinto dessa análise, à vista
dos objetivos dessa dissertação que não tem foco nela, não serão tratadas várias nuances relativas
ao conceito de Natureza, presente no trabalho de diferentes pensadores, em diferentes períodos
históricos. O que pretendemos é compor um quadro de reflexões sobre os diferentes conteúdos que
o conceito de Natureza veio adquirindo, para que possamos contextualizar a Natureza vendida nos
loteamentos fechados ribeirinhos que estamos analisando.
3.1. A Natureza e seus conteúdos: reflexões sobre algumas formas de se conceber os
elementos naturais durante o desenrolar histórico
Consideramos que no princípio da Humanidade, o Homem e a Natureza relacionavam-se de
forma mais orgânica, compondo uma unidade mais articulada. O ritmo de vida das pessoas, no
que se incluía a extração do que o ambiente lhes oferecia, estava muito mais ligado aos ritmos da
Natureza que atualmente. Esse vínculo, Homem e Natureza, foi sendo rompido ao longo do
processo histórico, à medida que os grupos humanos passaram a se organizar em Sociedades de
Classes, gerando a passagem de uma relação mais harmônica e menos nociva com a Natureza,
para uma relação estabelecida com base em práticas de transformação dos meios ambientes,
muito mais causadoras de impactos. Dessa forma, a separação entre o Homem e a Natureza é
histórica e não “natural”.
Verificando-se as diferentes maneiras de se perceber a Natureza e as conseqüentes formas de
sua apropriação, observamos que elas se encontram reveladas e materializadas na história do
desenvolvimento e consolidação das cidades. À medida que a urbanização vai tomando força, os
processos de degradação e artificialização dos ecossistemas naturais vão se acentuando.
As origens da vida urbana remontam ao Paleolítico, quando o homem passou a domesticar
espécies vegetais e animais, necessitando, assim, ocupar permanentemente uma área, para que
pudesse acompanhar todo o ciclo de desenvolvimento das culturas. Esse fato fez com que os homens
primitivos passassem a se fixar em um território, deixando a vida nômade. Nesse contexto, os
homens tiveram uma primeira visão dos processos naturais, passando a reproduzi-los
sistematicamente. Assim, surgem as primeiras aldeias, nas quais existia “uma associação
permanente de famílias e vizinhos, de aves e animais, de casas, silos e celeiros, tudo isso bem preso
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ao solo ancestral no qual cada geração formava o humo para a próxima”. Dessa maneira, muitas
estruturas e símbolos urbanos encontravam-se, embrionariamente, nas aldeias agrícolas, por
exemplo, a casa, o oratório, as vias públicas, etc. Esses elementos presentes nas aldeias primitivas
foram se desenvolvendo, até constituírem uma estrutura mais complexa nas cidades. (MUMFORD.
1998, p. 19)
Portanto, as primeiras manifestações do caráter urbano surgiram a partir da domesticação de
animais e cultivo de espécies vegetais nas aldeias paleolíticas, ou seja, tiveram sua gênese a partir
do início do processo de dominação da natureza.
A transformação das aldeias primitivas nas primeiras cidades foi ocorrendo gradativamente, a
partir de um aperfeiçoamento das técnicas de controle dos elementos naturais e de transformações
na organização social, sobretudo no que diz respeito ao surgimento da divisão social e territorial do
trabalho. As cidades foram desenvolvendo uma configuração que potencializava o incremento de
suas capacidades e potencialidades, que não poderiam ser exploradas se seus elementos não
estivessem articulados. Segundo Mumford, as pequenas aldeias juntaram-se e tornaram-se mais
complexas, formando as cidades, com uma área mais ampla e com um aglomerado humano
maior, que oferecia uma capacidade maior de transformação dos elementos naturais, visto que:
Onde os esforços locais podiam construir apenas valas e represas menores, as
cooperações em larga escala podiam transformar todo o vale de um rio numa
organização unificada de canais e obras de irrigação para a produção de alimentos
e transporte. Essa mudança deixou marcas na paisagem e nas relações humanas
dentro da comunidade. (1998, p. 35)
Assim, vemos que juntamente com o desenvolvimento das primeiras cidades, tivemos, também,
um incremento nos processos de dominação e transformação da Natureza. Esse fato deu-se, pois, na
primeira grande expansão urbana, os muitos elementos da comunidade, até então dispersos, foram
mobilizados e unidos, fazendo com que:
Até mesmo as gigantescas forças da natureza fossem postas sob consciente direção
humana: dezenas de milhares de homens a se mover para a ação como uma
máquina sob comando centralizado, construindo valas de irrigação, canais, montes
urbanos, zigurates, templos, palácios, pirâmides, numa escala até então
inconcebível. (MUMFORD. 1998, p. 42)
Estudar a origem das cidades é uma atividade difícil, visto que existem muitas lacunas nos
registros históricos, não sendo possível, assim, montar um quadro geral que explique e defina as
origens das cidades. Conforme Mumford (1998, p. 67), a cidade parece ter brotado em alguns
poucos vales de rios: o Nilo, o Tigre-Eufrates, o Indo, o Huang-Ho, constituindo o produto de uma
enorme mobilização de vitalidade, poder e riqueza, estando necessariamente confinada a uns
poucos grandes vales de rios, em regiões especialmente favoráveis, devido à grande fertilidade dos
solos, que permitiam grandes colheitas. Esses rios constituíram, também, o primeiro meio de
transporte eficiente nas cidades, possibilitando o crescimento de sua área e o aumento da
produtividade, sendo a navegação realizada por meio de feixes flutuantes de junco ou de troncos
ou até mesmo em barcos impelidos por remos ou velas.
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Sobre a origem das primeiras cidades na antigüidade, Sposito (1989, p. 18), afirma que vários
autores são unânimes em apontar que terá sido provavelmente perto de 3.500 a.C., na
Mesopotâmia, tendo surgido posteriormente no vale do rio Nilo (3.100 a.C), no vale do rio Indo
(2.500 a.C.) e no rio Amarelo (1.550 a.C.). Diante disso, a autora levanta uma explicação de ordem
“geográfica”, natural, para o surgimento dessas cidades primitivas.
Essas cidades surgiram em regiões com predomínio de climas semi-áridos, daí a
necessidade de se fixarem perto dos rios, repartir a água, repartir os escassos pastos,
e proceder ao aproveitamento das planícies inundáveis, ricas de mus e propícias
ao desenvolvimento da agricultura.
Assim, embora fossem resultado do social e do político enquanto processo, as
primeiras cidades tiveram suas localizações determinadas pelas condições naturais,
de um momento histórico, em que o desenvolvimento técnico da humanidade
ainda não permitia a superação dessas imposições. (SPOSITO, 1989, p. 18)
Dessa forma, as cidades surgem a partir de mudanças nas formas das pessoas se relacionarem
com a Natureza, num processo embrionário de transformação e subjugação de seus elementos. De
acordo com Mumford (1998, p. 45), as pequenas aldeias achavam-se à mercê dos elementos da
Natureza, pois, poderiam ser varridas numa tempestade ou seus habitantes poderiam morrer de
fome numa seca. Essas condições alteraram-se, quando a cidade pôde mobilizar uma força de
trabalho maior e exercer um controle centralizado sobre os elementos naturais.
Assim, de acordo com Santos (1992, p. 96-97), a história do Homem sobre a Terra é a história de
uma ruptura progressiva entre o Homem e o entorno. Esse processo acelera-se quando,
praticamente ao mesmo tempo, o homem descobre-se como indivíduo e inicia a mecanização do
planeta, armando-se de novos instrumentos para tentar dominá-lo. “A Natureza artificializada
marca uma grande mudança na história humana da Natureza”. Para esse autor (1997, p. 11), a
técnica, intermediária entre a Natureza e o Homem desde os tempos mais inocentes da História,
converteu-se no objeto de uma elaboração científica sofisticada que acabou por subverter as
relações da sociedade com o meio, do homem com o homem, do homem com as coisas. Dessa
maneira, produz-se uma configuração espacial ou territorial que nega com mais força a Natureza
primitiva dos meios naturais e se torna, claramente, fruto de uma ão histórica e intencional dos
homens.
Nos estágios iniciais da vida humana em sociedade, quando as técnicas eram mais
rudimentares, o Homem era mais suscetível à Natureza. Segundo Henrique (2004, p. 31), nesse
período, o homem dependia exclusivamente dos animais e vegetais para sua alimentação e
vestuário, e neste sentido, sua vida era uma repetição de formas organizacionais ainda muito
similares à Natureza.
De acordo com Férnandez-Armesto (2001), as sociedades nos seus momentos iniciais
aprenderam a fazer suas vidas com aquilo que a natureza providenciava. Elas
viviam com os produtos e habitavam os espaços que a natureza dava para eles ou,
em algumas vezes, eles construíam suas moradias numa imitação muito próxima
daqueles espaços, com os materiais que a natureza providenciava. A sociedade
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humana ainda começa a busca para minimizar este grau de dependência tão
grande perante a natureza. (HENRIQUE, 2004, p. 31)
Com o desenvolvimento do capitalismo, essa tendência à elaboração de uma visão dicotômica
da relação Sociedade Natureza ampliou-se ao extremo, sendo o século XIX o ápice desse mundo
pragmático, com a ciência e a técnica adquirindo um significado central na vida dos homens. A
idéia de uma Natureza objetiva e exterior ao Homem, o que pressupõe uma idéia de Homem não-
natural e fora da Natureza, cristaliza-se com a civilização industrial inaugurada pelo capitalismo.
De acordo com Smith (1988, p. 27), mais que qualquer outro acontecimento conhecido, a
emergência do capitalismo industrial é responsável pelo surgimento das concepções e visões
contemporâneas sobre a Natureza. A transformação global da Natureza realizada pelo capitalismo
industrial domina tanto o consumo físico da Natureza quanto o intelectual.
Com o processo de desenvolvimento das cidades, a Natureza, controlada, cada vez mais e
melhor, vai aparecendo nos desenhos urbanos de forma residual ou idealizada, como sendo
portadora de uma qualidade de vida que as cidades foram perdendo ao longo de seu crescimento.
Em muitos casos, a Natureza que esteve presente nos ideais urbanos foi a de uma Natureza
metrificada e trabalhada esteticamente.
De acordo com Mumford (1998, p. 427), esse tipo de utilização da Natureza estava presente
no planejamento de jardins e parques do século XVII, que apresentavam uma composição simétrica
no espaço,
(...) na qual os crescimentos e inflorescências naturais tornam-se simplesmente
padrões subordinados de um desenho geométrico: determinada quantidade de
tapete, de papel pintado, e de decorações de teto, engenhosamente reunidos a
partir dos materiais estranhos da natureza. A alameda podada, na qual as árvores
são transformadas numa uniforme parede verde: a sebe podada, a deformação da
vida no interesse de um modelo externo de ordem tinha-se algo a um tempo
imponente e infamante”. (MUMFORD, 1998, p. 427, grifos nossos)
A partir do século XVIII, a idéia de Natureza faz-se presente na forma das utopias antiurbanas.
Essas propostas, muitas vezes, apresentaram um caráter conservador, integrando um movimento
nostálgico em contraposição à angústia da alienação metropolitana, visto que, a partir do
Iluminismo, predominou a noção, presente até os dias atuais, do naturalismo urbano associado à
restauração de uma Natureza perdida. (MARCONDES, 1999, p.20)
no culo XIX, a proposta mais contundente de integração entre cidade e Natureza é o
modelo de cidade-jardim idealizado por Ebenezer Howard (1898). Essa formulação constitui uma
reação à aglomeração urbana do período vitoriano, caracterizada por uma exacerbada
admiração pelo campo e pela natureza em face das condições de vida nas cidades. Em sua
proposta, cada cidade-jardim deveria fazer parte de uma constelação de cidades-jardins
circundadas pelo campo, em que haveria uma combinação perfeita entre todas as vantagens de
uma vida urbana repleta de oportunidades e entretenimento, juntamente com a beleza e os
prazeres do campo. (MARCONDES, 1999, p.21)
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De acordo com Marcondes (1999, p. 22), ao lado dessas implantações concretas do ideário das
cidades-jardins e das utopias antiurbanas, o pensamento urbanístico retoma e potencializa o
projeto racionalista da cidade industrial, como nos trabalhos de Le Corbusier (1922) e Gropius (1926),
que idealizam o projeto de uma cidade-máquina com a ausência do conceito de espaço e de lugar
e as expressões da idéia de Natureza associadas ao antinaturalismo. Na cidade-modelo de Le
Corbusier,
A forma assume a função de tornar autêntico e natural o universo não-natural da
precisão tecnológica e, na medida em que esse universo tende a subjugar
integralmente a natureza, num processo contínuo e co-envolvente de
transformação, é a própria estrutura antropogeográfica o sujeito sobre o qual irá
incidir o ciclo reorganizado da construção de imóveis. (MARCONDES, 1999 p.22)
Dessa forma, vemos que a idéia de Natureza presente no projeto da cidade-máquina é a de
Natureza racionalizada e artificializada e esse ideário é reiterado no zoneamento funcional
proposto pela Carta de Atenas, que domina o pensamento urbanístico até os anos sessenta do
século XX, com vários desdobramentos nas intervenções urbanísticas nas cidades neste século.
A partir desses fatos podemos constatar que o desenvolvimento das cidades e o processo de
dominação e/ou manipulação dos elementos da Natureza estavam intimamente ligados, visto que
os primeiros agrupamentos humanos puderam se expandir e ampliar com o aperfeiçoamento
das cnicas de controle dos elementos naturais. Assim, tanto do ponto de vista do pensamento,
quanto das ações, observamos que a humanidade foi gradativamente subjugando a Natureza,
num processo de dissociação crescente dos elementos naturais dos elementos culturais, resultando na
presença nos espaços urbanos de uma “Natureza” idealizada, racionalizada, planejada e
metrificada.
A Natureza, antes concebida como resultado das ações divinas, passa a ser percebida como
uma dimensão a ser controlada pelo homem, sendo considerada como um recurso duplamente
utilizável: como matéria-prima e como atributo de valorização estética. A Natureza vista como
fonte de matérias-primas é transformada constantemente pelo homem, que tira dela os elementos
utilizados na produção dos objetos necessários para sua sobrevivência. Essa utilização tem como
característica ser realizada de forma, no mínimo, imprudente. Por muito tempo, os recursos naturais
foram explorados sem que se pensasse nas conseqüências de seu uso irracional. Os resultados estão
aparecendo, atualmente, na vasta gama de problemas ambientais que a Sociedade
Contemporânea vem enfrentando.
A Natureza como atributo de valorização estética vem sendo utilizada pelos empreendedores
imobiliários que oferecem para os consumidores de seus produtos uma “Natureza perdida”. Assim,
elementos como jardins e parques, são utilizados para aquilatar empreendimentos imobiliários e
para valorizar certas parcelas da cidade.
Nesse caso, o ideal de Natureza presente não é mais o de uma Natureza “natural” e sim o da
reprodução de situações que imitam as condições naturais, por meio de arranjos paisagísticos que
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surgem para recriar uma união entre o espontâneo e o artificial, ou seja, como destaca Lefebvre
(1970), a Natureza em si se distancia, mas seus símbolos se multiplicam, substituindo e suplantando
a Natureza “real”. A partir daí, o ideal de contato com a Natureza é vendido em massa,
aparecendo constantemente ligado à idéia de bem estar e harmonia. Dessa maneira, vemos que a
Natureza faz parte do cotidiano urbano apenas quando é encarada como recurso ou quando
aparece como fruto do fetichismo criado em torno de tal idéia. Assim, a visão que os citadinos
apresentam de Natureza é parcial, visto que não vivenciam e não apreendem a Natureza em sua
totalidade.
A Natureza, vendida como símbolo de qualidade de vida e de bem-estar, é resultado de uma
prática que incorpora alguns elementos naturais ao projeto urbano, como forma de valorização de
áreas e não como fruto de um projeto integrador que pense os elementos naturais em conjunto com
os espaços urbanos, no sentido de superar a idéia de que a cidade, como resultado da produção
humana, é um espaço intrinsecamente não-natural.
Segundo Mumford (1998, p.58), a reocupação e o reavivamento da paisagem, como fonte de
valores essenciais a uma vida equilibrada, é uma das mais importantes condições da renovação
urbana, sendo vital a preservação da matriz verde em que as comunidades urbanas, grandes e
pequenas, estão situadas: “acima de tudo, a necessidade de deter o descontrolado crescimento do
tecido urbano, para que não aplaque essa matriz e não perturbe toda a relação ecológica entre
campo e cidade”.
Pode se dizer que, de uma maneira geral, os projetos que nortearam o desenvolvimento
urbano, a partir do século XVIII, consideravam a Natureza como um fator secundário, ligado ao
campo, um espaço “atrasado e rústico”. No entanto, alguns grupos apresentavam impulsos no
sentido de fugir do ambiente industrial, procurando as áreas ao redor das cidades, os subúrbios,
para construírem suas habitações. A vida perto da Natureza era valorizada, como símbolo de
liberdade, saúde, independência e status econômico. (MUMFORD. 1998, p.521)
Assim, ao analisarmos as cidades contemporâneas, podemos perceber claramente a cisão entre
o natural e o social (urbano), sendo a cidade uma das expressões materiais mais contundentes da
capacidade da sociedade de se apropriar da Natureza e transformá-la, ou seja, a cidade é
considerada, por excelência, como não-natureza. Portanto, a busca pela produção de
habitats
associados à vida bucólica do campo, vista como natural, e o interesse de consumo desses
habitats
por parte daqueles que vivem e trabalham no mundo urbano, indicam essa visão de Natureza em
oposição à cidade”. (SPOSITO. 2003, p. 297).
Todas essas visões dicotômicas que existem em torno do conceito de Natureza, seja em relação à
cisão entre Natureza e Sociedade, seja em relação à divisão do campo como sendo espaço de
Natureza e a cidade como lugar de Cultura, o construídas no plano das idéias. É a percepção de
que essas dimensões estão separadas que faz com que as ações ocorram no sentido de reiterar essas
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divisões. Do mesmo modo, tais ações reiteram e aprofundam essas visões, de modo que se está
diante de um processo de dupla determinação.
Para uma visão mais completa sobre os diferentes conteúdos da Natureza e as diferentes
formas da sociedade se relacionar com os elementos naturais, baseamo-nos no trabalho de
Henrique (2004) que apresenta um resgate histórico das diferentes concepções de Natureza que,
ao longo da História, foram sendo modificadas, superadas e agregadas, até culminar em nossa
concepção atual de Natureza. Para ilustrar os diferentes períodos correspondentes a cada padrão
de relacionamento do Homem com a Natureza, reproduziremos no quadro 2, um quadro
organizado por Henrique (2004, p. 25).
Quadro 2 – Esquema da periodização das idéias e conceitos de Natureza para o mundo ocidental
Momento
História
Período
Concepção de
Natureza
Recursos
Técnicos
Cultura
Aspecto
dominante da
Relação
Homem-
Natureza
Economia
Idade Antiga Clássico Mito Irrigação Helênica Contemplação Valor de
uso
A
Natureza
e o
Homem
Idade Média Teológico Divina Arado Teológica Temor Valor de
uso
Idade Moderna Descobrimentos Fisicoteológica
Mecânica
Caravela -
Balão
Marítima –
Comercial
- Rural
Dominação Valor de
troca
O Homem
e a
Natureza
Idade
Contemporânea
Incorporação Recurso Automóvel -
Avião
Industrial Incorporação Valor de
troca
O Homem
e o
Território
Idade
Contemporânea
Produção Artifício Satélites Urbana Produção Valor de
troca
Fonte e Organização: Henrique, 2004, p. 25.
O autor destaca que no período clássico o conhecimento sobre a Natureza era fruto da
imaginação e contemplação, principalmente pelos relatos heróicos dos ‘aventureiros’, que
atrelavam a idéia de Natureza à concepção de mito. Nesse período, as cidades ainda eram
incipientes em mero e importância, podendo ser representadas pela cidade grega. A principal
ação do homem sobre a Natureza é dada pela invenção e propagação das técnicas da irrigação
que permitiram o maior desenvolvimento da agricultura, levando a um incremento da produção
de alimentos. (HENRIQUE, 2004, p. 25)
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De acordo com Henrique (2004, p.33), as primeiras formas de interpretação da Natureza estão
nos tratados romanos, gregos e até persas sobre as formas e técnicas de melhoramento do solo, cujo
principal objetivo era a produção de alimentos. Ainda que rudimentares, as técnicas de irrigação,
controle de insetos e fertilização se constituíram em importantes fontes de conhecimento para o
entendimento da ordem e propósito da Natureza. No primeiro estágio de relacionamento do
Homem com a Natureza, ainda não eram feitas as grandes distinções entre esses dois elementos,
assim, o Homem era visto como um ser dentro da Natureza, composto dos mesmos elementos que
ela.
Enquanto o Homem ainda não havia desenvolvido suas técnicas de dominação da Natureza,
ele tinha uma relação mais estreita com ela. Muitas vezes, tinha que se adaptar aos seus preceitos e
essa Natureza, ainda incontrolável, era geradora de medos e ansiedades. Conforme Reclus,
(...) durante a infância das sociedades, isolados ou agrupados em tribos frágeis, os
homens tinham de lutar contra obstáculos tão numerosos, que não podiam sonhar
em se apropriar da superfície da Terra como seu domínio: viviam, escondidos e
temerosos, como os animais selvagens das florestas; sua vida era uma luta
ininterrupta: sob constante ameaça da fome ou do massacre, não podiam dedicar-
se à exploração da região e ainda desconheciam as leis que lhes teriam permitido
utilizar as forças da natureza. (1985, p. 41)
O processo de dominação da Natureza pelo Homem foi lento e progressivo, sendo desenvolvido
paralelamente à complexificação das técnicas e das concepções de Natureza. Ainda nesse período,
em que a Natureza prevalecia sobre o Homem, visto que seus processos não eram completamente
conhecidos e controláveis, começaram a surgir as primeiras manifestações de uma preocupação de
organização estética da Natureza para a contemplação.
De acordo com Henrique (2004, p. 35), no período clássico, temos uma grande influência da
produção dos jardins no pensamento e no entendimento da Natureza. A presença de jardins e ruas
arborizadas indica um desejo de se constituir um pequeno reino da Natureza dentro das cidades.
Isso significa uma crescente preocupação estética, onde a Natureza passa a ser fonte
de grande contemplação e a matéria original para as futuras imitações e
aproximações. Também destacamos que com isto inicia um processo maior de
destaque da interpretação antropocêntrica da natureza. Platão (Dialogues
Timaeus) considera que o homem é um ser capaz de criar ordem e beleza a partir
da matéria bruta [natureza], ou, mais amplamente, de controlar os fenômenos
naturais com uma combinação de inteligência e perícia. (HENRIQUE, 2004, p.
35)
Marcus Tullius Cícero (106–43 a.C.) foi um filósofo romano, filiado ao estoicismo, que em seu livro
De Natura Deorum, tratou sobre alguns aspectos relacionados com a transformação da Natureza
pelos seres humanos. Henrique destaca que para o filósofo,
(...) é belo contemplar a natureza, e sua beleza deve ser conservada; é útil porque
possui os materiais para o exercício da mente do homem, cujas criações,
instrumentos e máquinas a mudam e a melhoram, para que satisfaça as sempre
presentes e crescentes necessidades humanas. O homem é, num sentido muito
integral, parte da natureza; desenvolve-se em seu meio e é afetado pelo mesmo.
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Salienta-se nesta fala de Cícero a idéia de que o homem é um agente na melhora e
no embelezamento da natureza.
Cícero escreve que os logros tecnológicos do homem, seus inventos, as mudanças na
natureza resultam de combinações entre a destreza da mão, dos descobrimentos da
mente e das observações dos sentidos; o homem, com sua presença criadora,
participa de uma razão universal, que o penetra todo, e em particular a terra,
como testemunham as adequações da natureza exterior - como encontramos no
Nilo, o Eufrates e o Indo - que existem para a preservação do homem. (2004, p. 38)
Percebemos, assim, que a concepção de Natureza como um elemento passível de ser mudado,
moldado e embelezado para o bem-estar humano vem se desenvolvendo desde a Antigüidade
Clássica. É daí que vai surgir a noção de segunda Natureza, visto que Cícero, citado por Henrique
(2004, p. 37), afirma que “os seres humanos buscam criar com suas mãos uma segunda natureza
dentro do mundo natural”.
(...) a mudança do meio pelo homem, a criação de uma segunda natureza dentro
do mundo natural, se explica por uma diferença qualitativa entre o humano e o
animal. O homem é uma criatura que pensa, cuja experiência acumulada através
do tempo permite inovação e invenção; o homem participa da vida criativa e do
espírito que penetra o mundo inteiro.
De acordo com Cícero (De Natura Deorum) pelo trabalho do homem, ou melhor,
por suas mãos, ele encontrou alimentos e sua variedade. Com efeito, a mão
humana fez surgir nos campos frutas que são consumidas imediatamente ou
preparadas para consumo futuro. Na variedade de alimentação, os homens comem
carne de animais terrestres, aquáticos e de aves. Também foram domesticados
animais quadrúpedes para transporte e uso de sua força. Extraí-se o ferro da terra
utilizando-o para cultivar os campos; o mesmo se com o cobre e o ouro,
descobertos em veios sob a terra, utilizados tanto para as necessidades cotidianas
como para demonstrar luxo. Cortam-se árvores e tudo o que pode ser queimado;
quer seja produto do cultivo do homem ou que esteja em estado selvagem;
dispõem-se destes materiais para a produção de fogo, usado para o aquecimento
das casas e no cozimento de comidas; Constrói-se casas para abrigo contra o frio e
contra o calor. O corte destas árvores assegura a vantagem da construção das
próprias moradias onde se desenrola a vida. O que a natureza tem de mais
impetuoso – o mar e os ventos – são utilizados pelos homens na arte da navegação;
O homem torna-se senhor das obras da natureza sobre a terra, aproveitando-se das
planícies, das montanhas; os rios e lagos são dos homens; são os homens quem
semeiam o trigo, que plantam árvores; são os homens que conduzem a água sobre
as terras para lhes dar fertilidade; controla-se e desviam-se fluxos d’água; as mãos
humanas fazem dentro da natureza uma natureza nova, uma segunda natureza.
(HENRIQUE, 2004, p. 37, grifos nossos)
Assim, a concepção de Natureza como recurso, como um bem a ser dominado pela
inventividade humana não é exclusividade do período contemporâneo, embora tenha adquirido,
ao longo do desenvolvimento histórico, novos conteúdos. A Natureza, desde o período clássico, foi
encarada como uma possibilitadora da vida humana, enquanto fornecedora de seus alimentos,
sendo que até seus elementos mais “impetuosos” podem ser controlados pelo homem para seu
próprio proveito. Dessa maneira, a “emancipação” humana da Natureza inicia-se na Antigüidade,
com as primeiras transformações do meio pelo Homem, no sentido da busca pela sobrevivência e
pela contemplação estética.
O segundo período é caracterizado pela interpretação da Bíblia como fonte do entendimento
da época sobre a Natureza, denotando o forte fator teológico atribuído a esse conceito. No âmbito
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das técnicas, o arado foi a grande revolução desenvolvida e juntamente com a irrigação aumentou
a produção agrícola do período. Mesmo com o início do desenvolvimento técnico, o temor à
vontade de Deus prevaleceu e a Natureza, entendida como sua obra, foi dotada de valor divino. O
mundo urbano começa a se desenvolver nas cidades feudais, protegidas pelas muralhas, que as
separam fisicamente da Natureza, por deixarem de fora os bosques, as florestas, etc.. (HENRIQUE,
2004, p. 25)
Quando temos uma mudança do período clássico para o período teológico, tivemos uma
mudança de eixo no pensamento sobre a Natureza, visto que há um abandono da idéia do
homem como criador da Natureza em detrimento da idéia de que a Natureza era uma obra da
criação divina. Henrique (2004, p. 41) destaca que o período teológico compreende o intervalo de
tempo que abrange desde os finais do período Romano até o ano de 1500, ou seja, a Idade Média
Cristã. Nesse período, a concepção de Natureza vigente é a que ela resulta da criação de Deus e seu
estudo será marcado pela busca de provas da existência e da bondade do Criador. O homem,
encarado como o auge da criação divina é visto como o possuidor de um direito teológico para o
domínio dos elementos naturais. Dessa forma, diferentemente do período clássico, a dominação da
Natureza presente no período teológico é marcada por ser uma vontade divina e não um desígnio
da ciência, da arte e das técnicas.
Segundo Lenoble (1969, p. 187), o homem inserido no cristianismo não é considerado como um
elemento situado no conjunto da Natureza, visto que é transcendente ao mundo físico, pois não
pertence à Natureza e sim à Graça divina, que é sobrenatural. Assim, nesse período, o Homem é
colocado como separado e superior à Natureza porque é considerado como uma criação maior,
criado a imagem e semelhança de Deus, que tem o direito de dominar e de transformar a
Natureza.
Mas o entendimento dessa plenitude do Homem em relação à Natureza, no período teológico, é
mediado pelos relatos bíblicos da expulsão de Adão e Eva do Paraíso. De acordo com Glacken
(1996,
apud
Henrique, 2004, p. 45) a concepção cristã de Natureza deve ser entendida a partir do
relato da Queda, visto que segundo essa concepção, o pecado causou uma desordem na Natureza,
trazendo as catástrofes, os insetos e plantas venenosas, para que o Homem se lembrasse de seu
orgulho e de seu pecado. Assim, a Natureza, apesar de bela, fica deteriorada pela expulsão de
Adão e Eva do paraíso. Dessa forma, nesse período, os processos naturais não são concebidos como
resultado de causas físicas ou biológicas e sim, por desígnios morais e religiosos.
É no terceiro período que a superação dos obstáculos sicos e intelectuais ao entendimento da
Natureza começa a se delinear. As constantes viagens marítimas e comerciais ao longo do mundo
conhecido e a descoberta de novas terras, possibilitados pelo desenvolvimento das técnicas de
transporte como as caravelas e os balões, irão ampliar o horizonte da ação humana, visto que as
caravelas possibilitaram uma expansão horizontal do conhecimento humano e o balão permitiu
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que pela primeira vez o homem saísse das prisões que a superfície da terra lhe impunha.
(HENRIQUE, 2004, p. 26)
As cidades, principalmente as comerciais começam a se desenvolver em função das rotas de
comércio que se estabelecem. As saídas das muralhas da cidade feudal possibilitam também um
contato maior entre a cidade e a Natureza. As ações humanas concentraram-se na dissecação da
Natureza, na redução de suas partes a pedaços cada vez menores, para seu entendimento,
atrelados às idéias mecanicistas e da Natureza enquanto obra fisicoteológica um corpo físico
criado pela vontade divina, ainda em consonância com as idéias do período anterior. No período
dos descobrimentos, a ação do Homem sobre a Natureza revelou uma preocupação com sua
ordenação estética grandes jardins românticos, parques florestais, atribuindo valores estéticos e
paisagísticos à Natureza. (HENRIQUE, 2004, p. 26)
Dessa maneira, no período dos descobrimentos, uma mudança brusca em relação aos outros
dois períodos, visto que se antes, a Natureza se relacionava com os Homens, agora os Homens é que
se relacionam com a Natureza. De acordo com Henrique (2004, p. 51), o período dos
descobrimentos não se resume apenas pelo descobrimento de novas terras a América e
posteriormente a Oceania mas também pelos descobrimentos da ciência e da técnica que
trouxeram importantes contribuições para o entendimento que os homens fazem da Natureza.
Segundo Lenoble (1969, p. 260-261), nesse período, os Homens deixam de temer a cólera divina
pela violação da Natureza e crêem que Deus nos deu a missão de trabalhar a sua imagem, de
construir o mundo no nosso pensamento como ele o criou no seu, fornecendo suas leis. Nesse
período, os cientistas mecanicistas abandonaram os antigos preceitos de Natureza e começaram a
considerar seus elementos como partes de uma máquina. A ciência torna-se assim, a técnica para a
exploração e entendimento da máquina, do seu funcionamento e de sua reprodução.
De acordo com Henrique (2004, p. 56), o Homem toma consciência de sua força
modificadora da Natureza, bem como dissocia dessa ação o pecado ou a audácia de imitar o
Criador, porque termina o período em que, enquanto obra criada e designada por um ser superior,
a Natureza não tinha muito propósito em sua existência. O Homem como inventor,
experimentador, curioso, inquieto, ativo e portador de habilidades manuais, encontrou as formas
para dar um sentido à Natureza.
Para Lenoble (1969, p. 192), no século XVII, Bacon e Descartes ousam se tornar donos e senhores
da Natureza, proclamando sobre essa, seu domínio e sua posse. Segundo Bacon (
apud
Henrique,
2004, p. 57), o império do homem sobre as coisas se apóia unicamente nas artes e nas ciências. A
Natureza não se domina, senão obedecendo-lhe”. Henrique destaca que
Francis Bacon, na conclusão de Novum Organum (1999:218), ainda faz um elogio à
nova posição do homem sobre a natureza, uma retomada de seu lugar de
destaque dentro da criação divina, a retomada do direito e domínio da natureza,
direito esse que havia perdido pela Queda do paraíso e que agora pela ciência
resgatava o desejo de Deus. “Pelo pecado o homem perdeu a inocência e o domínio
das criaturas. Ambas as perdas podem ser reparadas, mesmo que em parte, ainda
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nesta vida; a primeira com a religião e com a fé; a segunda com as artes as
ciências.” (2004, p. 57)
De acordo com Smith (1988, p. 30), Bacon defende que o domínio da Natureza era uma tarefa
divina, sancionada por ele e necessária pela Queda do Jardim do Éden. Se a inocência foi perdida,
algo do harmonioso equilíbrio ente o Homem e a Natureza poderia ser reconquistado através do
benefício do domínio do Homem sobre a Natureza, realizado através da aplicação das artes
mecânicas, que por sua vez são desenvolvidas a partir da “perquirição da Natureza”. Assim, a
concepção de Natureza trazida por Bacon é explicitamente exterior à sociedade humana,
constituindo um conjunto de objetos a serem dominados e manipulados.
Essa questão da exterioridade da Natureza é relativizada por Smith (1988, p. 32) quando ele
destaca que, por mais que separasse a Natureza exterior do mundo social, Bacon insistia que os
objetos “naturais” e “artificiais” possuíam o mesmo tipo de forma e essência, diferindo somente em
suas causas imediatas. “Por ‘natureza’ de algum objeto ou evento queremos dizer sua essência, o
que existe por baixo de sua aparência. Sejam naturais ou sociais, todos os fenômenos têm uma
essência; a natureza é universal nesse sentido”.
Para Smith (1988, p. 33-34), baseado nos estudos de Bacon, Newton, Darwin e Weizsäcker os
conceitos de Natureza que foram se desenvolvendo sempre englobaram a contradição entre
exterioridade e universalidade. No caso de Bacon e Newton a universalidade era dada por
preceitos religiosos e em Darwin e em Weizsäcker, temos uma universalidade dada pela ciência, no
primeiro caso pela Biologia, sendo a Natureza humana simplesmente um subconjunto da Natureza
biológica e no segundo, pela Física, sendo que a Natureza, composta pela matéria, “é de alguma
forma tanto exterior ao homem, aquilo que não é o homem, quanto ela é o homem e também
natureza. Para Weizsäcker também então, duas naturezas: a que está fora dos seres humanos e
a que os inclui”.
Sendo assim, dentro dessa dualidade, a Natureza exterior ao Homem teve seu domínio
resgatado pela utilização da ciência. De acordo com Gonçalves (1989, p. 33), é com Descartes que a
oposição entre Sociedade e Natureza torna-se mais completa, sobretudo se levarmos em
consideração dois aspectos de sua filosofia: o caráter pragmático e o antropocentrismo. O
pragmatismo que o conhecimento adquire concebe a Natureza como um recurso, como um meio
pra se atingir um fim. O antropocentrismo é caracterizado pela consideração do Homem como
centro do mundo, o sujeito em oposição ao objeto, à Natureza. “O homem, instrumentalizado pelo
método científico, pode penetrar os mistérios da Natureza e, assim, torna-se senhor possuidor da
Natureza”.
A Natureza deixa, desse modo, de ser entendida como elemento divinizado. Os seus processos
passam a ser analisados pela ótica científica e deixam, assim, de ser considerados como simples
vontade de Deus. Ao ser alvo do escrutínio científico, a idéia de Natureza como uma dimensão
exterior ao homem é reforçada. A Natureza vista como estando fora do Homem, torna-se passível
de ser estudada, conhecida e, a partir desse conhecimento, de ser dominada.
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Henrique (2004, p.60) destaca que, além da Natureza mecanicista, no período dos
descobrimentos, tivemos também a visão organicista, baseada na idéia do naturalismo. Segundo
essa concepção, o homem valoriza mais, em si mesmo e nos outros, aqueles processos que são
intencionais e com propósito e quer buscar também, intenções e propósitos na Natureza, porque
seu conceito desta não pode ir mais além do que o conceito que ele tem formado sobre si mesmo.
“O homem ao enquadrar todas as coisas, inclusive a natureza, num sistema de referência a si
próprio, obriga-se a supor que todas as formas externas a ele estão determinadas desde dentro, e
este pressuposto é mais fácil para o homem porque o se concebe nenhuma coisa singular vivente
sem uma complexa organização”.
Dessa maneira, Henrique (2004, p. 60) destaca que as concepções naturalistas colocam o
Homem como um ser “inserido” na Natureza e que necessita dela pra viver. O Homem é um intruso
na Natureza, mas suas habilidades o fazem assumir uma posição confortável num mundo natural,
sua inteligência deveria ser utilizada na busca por uma vida harmônica com a Natureza, uma vez
que essa é o teatro da história do Homem. O autor destaca, também, que as idéias naturalistas irão
influenciar, muito, o nascimento da Geografia enquanto uma disciplina sistematizada, pelas mãos
de Alexander Von Humboltd, visto que seus estudos nos remetem a uma forma ou procedimento
de estudo da Natureza baseado na observação, que nos lembra uma retomada do ideal de
contemplação do pensamento clássico. “Na obra Kosmos, Humboltd nos revela todo seu interesse
pela estética da natureza e beleza da paisagem, como fonte de prazer intelectual e moral oriundo
de sua observação. Ressalta ainda o papel dos poetas e pintores que trazem as paisagens exóticas
aos olhos e ouvidos europeus”.
Sendo assim, tanto na concepção de Natureza mecanicista, quanto na de Natureza organicista,
ambas desenvolvidas no período dos descobrimentos, temos uma inversão do foco de compreensão
da relação entre os elementos naturais e os sociais. Agora, o elemento central volta-se para o
Homem na Natureza. Nesse sentido, Henrique destaca que
Se durante milhões de anos a natureza reinou absoluta no controle da vida na
Terra, a contribuição dos pensadores clássicos, renegada ou retrabalhada durante o
período teológico, e resgatada no período dos descobrimentos, foram decisivas para
colocar em xeque esta influência da natureza na vida humana e na passagem para
um momento de um certo equilíbrio entre o homem e natureza, com uma
vantagem humana, no que concerne ao controle dos processos que movem este
mundo. (2004, 62)
Para o entendimento desse período, Henrique (2004, p. 62) aponta que é muito importante
considerarmos o pensamento de Conde de Buffon, principalmente no que se refere a duas obras:
Histoire Naturelle e Des Époques de la Nature.
O autor destaca que Buffon, influenciado pelas
idéias de Cícero, concebia o Homem como superior à Natureza, possuindo um imenso poder para
transformar os elementos naturais, tendo uma grande crença nas tecnologias e nas possibilidades de
melhora para o indivíduo e para a sociedade. O homem, para Buffon, está na ordem dos animais,
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mas é completamente diferente deles, está na Natureza, de outra forma. “Enquanto os animais
vivem da repetição de seus instintos, vivendo uma sucessão dos mesmos padrões, o homem, pela
sua inteligência, razão e capacidade de falar, criar e julgar, diferencia-se muito dos outros animais.
O homem é o ser superior entre os seres viventes”.
De acordo com Lenoble (1969, p. 316), o final do período dos descobrimentos é marcado pelo
rompimento entre a natureza e Deus, sendo ela objeto unicamente da ciência. “A ciência torna-se o
novo ídolo. Ela penetra os segredos da Natureza, como a psicologia positiva penetra os segredos da
consciência”.
O quarto período, denominado de período de incorporação, significou uma mudança na
relação dos Homens com a Natureza, passando a incorporar uma forte cultura industrial. Este
período foi marcado pela incorporação da Natureza à vida social, tanto em função das técnicas
desenvolvidas e aperfeiçoadas, como da cultura vigente, que entende a Natureza como um
recurso. As cidades passaram a concentrar uma crescente produção industrial, concentrando
também a poluição decorrente dessa atividade. (HENRIQUE, 2004, p. 26)
As mudanças no plano das idéias, referentes à dominação da Natureza externa ao Homem
pela ciência foram acompanhadas pela Revolução Industrial e pela transformação de um mundo
mercantilista agrícola num mundo capitalista industrial. Dessa maneira, Henrique destaca que,
O final do século XVIII representa o fim de um período das relações do Homem com
a Natureza, em que se observa uma gradual mudança na posição de ambos no
sistema de idéias, com a incipiente sobreposição do homem sobre a natureza. O
período seguinte iaumentar esta diferença entre o homem e a natureza, e no
âmbito das idéias, assistiremos uma dissociação mais acelerada com a teoria da
evolução, a especialização das ciências e as grandes transformações da natureza.
(2004, p. 65)
Essas mudanças nas concepções de Natureza são para Lenoble como um imenso movimento de
pêndulo, em que:
(...) no Renascimento, o homem tem consciência da sua alma e projeta-a na
Natureza, a quem concede também uma alma. No século XVII, em pleno dualismo,
reivindica a alma para si mesmo e mecaniza a Natureza. Agora deixa-se de novo
penetrar pelas coisas, mas pelas coisas mecanizadas, e é a Natureza que vai
projetar no homem o seu mecanismo e esvaziá-lo da sua alma. (1969, p. 286)
Dessa maneira, o autor coloca que, no século XVIII, há uma grande mudança quanto à visão do
homem sobre a Natureza. O ser humano não é mais pensante, e sim uma mecânica de sensações. A
Natureza não existe mais por si, como uma totalidade, transformou-se em fenômenos
independentes, separados por leis e estas estudadas diferentemente através do pensar. O Homem,
agora, é parte mecânica da Natureza. (LENOBLE, 1969, p. 283)
Segundo Henrique (2004, p. 66), o período da incorporação da Natureza será influenciado por
dois processos: o higienismo e o esteticismo. O higienismo pode ser definido como o saneamento e a
limpeza das cidades e da Natureza, por meio de um grande número de técnicas e tecnologias que
foram criadas para dar suporte ao novo conceito de Natureza limpa e padronizada. O autor
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destaca que as medidas higienistas foram marcadas por serem classistas, pois sua utilização
dependia dos padrões socioeconômicos, assim, “todo um aparato técnico surge com esta finalidade,
entretanto seu uso é determinado pelo poder econômico e conseqüentemente político, pois somente
a nobreza e a burguesia têm acesso a estas técnicas; as classes mais pobres continuam vivendo em
meio a uma Natureza hostil e insalubre”. Assim, temos uma Natureza saneada e controlada para
os mais ricos e uma Natureza insalubre e hostil para os mais pobres.
O outro sistema de idéias que influenciou na concepção de Natureza, no período da
incorporação, foi o esteticismo. Nesse sistema, a Natureza é tida como sinônimo de paisagem,
passível de julgamento estético de beleza, que também irá seguir um padrão civilizado”,
previamente definido. A Natureza, cortada, delimitada em linhas retas, torna-se um jardim, um
signo da administração humana. A Natureza, como um padrão estético de beleza requintada e
sofisticada, é cada vez mais valorizada e decorativa, sendo acrescida de objetos humanos e
intervenções para torná-la cada vez mais grandiosa – a riqueza natural não basta é preciso
demarcar o território humano, sua conquista, sua incorporação e sua produção. (HENRIQUE, 2004,
p. 66)
Assim, nesse período temos a introdução da idéia de trabalho na instituição do movimento da
Natureza, assim, o Homem constitui o agente produtor da Natureza, visto que é o executor do
trabalho por meio do desenvolvimento de suas técnicas e ferramentas. Engels (1991, p. 25), citado
por Henrique (2004, p. 69), escreve que a especialização da mão significa a ferramenta e esta
significa a reação transformadora do homem sobre a Natureza, sobre a produção.
(...) unicamente o homem conseguiu imprimir seu selo sobre a Natureza, não
transladando plantas e animais, mas também modificando o aspecto, o clima de
seu lugar de habitação; e até transformando plantas e animais em tão elevado
grau que as conseqüências de sua atividade poderão desaparecer com a morte
da esfera terrestre. E tudo isso ele conseguiu, em primeiro lugar e principalmente,
por intermédio da mão. Até mesmo a máquina a vapor, por enquanto sua mais
poderosa ferramenta para transformar a Natureza, em última análise e pelo fato
de ser uma ferramenta, repousa sobre a mão”. (HENRIQUE, 2004, p. 66)
Smith (1988, p. 71) aponta que o trabalho é um processo entre o Homem e a Natureza, um
processo em que o Homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a
Natureza. Ele próprio se defronta com a matéria natural como uma força natural, visto que põe
em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporalidade, a fim de apropriar-se da
matéria natural numa forma útil para sua vida. O metabolismo dos seres humanos com a
Natureza é o processo pelo qual os seres humanos apropriam os meios para preencher suas
necessidades e devolver outros valores de uso para a Natureza.
De acordo com Marx e Engels (
apud
Henrique, 2004, p. 69), a Natureza sem a mediação do
trabalho, sem a presença humana, torna-se um mero substrato material.
É evidente que o ser humano, por sua atividade, modifica do modo que lhe é útil a
forma dos elementos naturais. Modifica, por exemplo, a forma da madeira, quando
dela faz uma mesa. Não obstante a mesa ainda é madeira, coisa prosaica,
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material. Mas, logo que se revela mercadoria, transforma-se em algo ao mesmo
tempo perceptível e impalpável. (MARX, 1980, p. 79
apud
Henrique, 2004, 69)
Conforme Henrique (2004, p. 84), no período considerado como de incorporação da Natureza
pela Sociedade, a questão do melhoramento da Natureza deve ser tomada como finalidade da
vida humana, trazendo conseqüências para os próprios Homens, sendo que muita energia deve ser
investida para ampliar e eternizar as fontes de riqueza e beleza natural. Assim, a influência do
Homem sobre a Natureza não é apenas associada à melhoria da sua produtividade, mas também
é composta com uma forte componente estética, e isto vem caminhando com a história das idéias e
conceitos de Natureza desde o período clássico.
O Homem age sobre a Natureza para atender a suas necessidades mais elementares, como
habitação, alimentação, segurança e para isso o desenvolvimento das técnicas é imprescindível. No
entanto, outras necessidades são colocadas para o Homem, no que se refere a sua relação com a
Natureza. Surge a necessidade de embelezamento da Natureza, de ordenamento de seus
elementos, controle de seus processos, visto que, conforme aponta Henrique (2004, p. 74), citando
Reclus, o Homem processa a beleza da Natureza quando a mesma encontra-se filtrada,
civilizada, enquadrada.
A natureza muito selvagem é incompreensível para o homem, ele prefere trechos
da natureza que foram digeridos pela vida social, possibilitando assim, que sua
imaginação envolva todo esse trecho humanizado mais facilmente. Símbolos da
natureza, como uma charmosa avenida salpicada de árvores ou um lago rodeado
por estátuas como um santuário, são mais valorizados pelo homem do que a
natureza mantida em seu estado bruto. (RECLUS
apud
HENRIQUE, 2004, p. 74)
No quinto período, o período da produção da Natureza, observou-se uma mudança radical na
perspectiva do entendimento da relação do Homem com a Natureza, ao passo que essa será
totalmente incorporada ao território social. A sociedade urbana que se constituiu e as técnicas que
permitiram ir da escala planetária até a escala da célula, como os satélites e a genética, levam os
Homens a cada vez mais se encontrarem na qualidade de produtores da Natureza, tornando-a um
articio, entendido não no sentido de uma mentira ou de algo falso, mas sim como resultado da
produção humana. As cidades passam a concentrar a maior parte da população e a Natureza
passa a ser produzida nas cidades com o intuito de melhorar a qualidade de vida e também no
sentido da valorização imobiliária. (HENRIQUE, 2004, p. 26)
Segundo Henrique (2004, p. 87), os séculos XIX e XX marcam, definitivamente, através da
produção, das técnicas, das indústrias e mesmo da cultura, a incorporação da natureza à vida
social. Os objetos, as ações, as crenças e os desejos dos homens passam a incluir a Natureza. No
período da produção da Natureza, a transformação de uma primeira Natureza para uma segunda
Natureza, se pelo uso das técnicas e ferramentas como prolongamento do corpo humano, que
assim coloca sua marca sobre a Natureza. A partir desta transformação o homem passa não a
modificar a Natureza, como também a produzir espaço.
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Para Santos, temos uma mudança marcada pela crescente artificialização da Natureza, sendo
que,
No início, as ações se instalavam nos interstícios das forças naturais, enquanto hoje é
o natural que ocupa tais interstícios. Antes, a sociedade se instalava sobre lugares
naturais, pouco modificados pelo homem, hoje, os eventos naturais se dão em
lugares cada vez mais artificiais, que alteram o valor, a significação dos
acontecimentos naturais. (1997, p. 117)
Segundo Smith (1988, p. 65-67), baseado na análise dos trabalhos de Marx, ao invés de
dominação da Natureza, no âmbito do capitalismo, devemos considerar o processo muito mais
complexo de produção da Natureza. A Natureza geralmente é vista como sendo precisamente
aquilo que não pode ser produzido, é a antítese da atividade produtiva humana. Em sua
aparência mais imediata, a paisagem natural apresenta-se como o substrato material da vida
diária, o domínio dos valores de uso sobre os valores de troca. No entanto, com o progresso da
acumulação de capital e a expansão do desenvolvimento econômico, esse substrato torna-se cada
vez mais o produto social. Quando a aparência imediata da Natureza é colocada no contexto
histórico, o desenvolvimento da paisagem material apresenta-se como um processo de produção da
Natureza. Os resultados diferenciados dessa produção da Natureza são os sintomas materiais do
desenvolvimento desigual.
Para o autor (1988, 82), com a produção objetivando a troca, a produção da Natureza ocorre
em uma escala ampliada. Os seres humanos não produzem somente a Natureza imediata de sua
existência, mas produzem toda a textura social de sua existência. “Desenvolvem uma diferenciação
complexa na relação com a Natureza, uma natureza social diferenciada, obedecendo ao gênero e
classe de atividade manual e mental, atividades de produção e distribuição e assim por diante”.
Dessa maneira, a intervenção do Homem criou uma ruptura entre Natureza e Sociedade, entre a
primeira e a segunda Natureza. A produção de uma segunda Natureza apressou a emancipação
da Sociedade da primeira Natureza.
Segundo Henrique (2004, p. 70), dentre as transformações que o Homem opera na Natureza, a
produção de uma segunda Natureza é um processo dialético onde a Natureza transformada
também pode retornar ao seu estado primitivo. Citando Marx, afirma que
Uma máquina que não serve no processo de trabalho é inútil. Além disto, deteriora-
se sob a poderosa ação destruidora da natureza. O ferro enferruja, a madeira
apodrece. Fio que não se emprega na produção de tecido ou malha, é algodão que
se perde. O trabalho vivo tem que se apoderar dessas coisas, de arrancá-la de sua
inércia, de transformá-las de valores de uso possíveis em valores de uso reais e
efetivos.
Assim, a Natureza deve ser concebida como resultado do trabalho humano, uma segunda
Natureza, que não é simplesmente dominada, mas sim produzida, com a finalidade de atender as
“necessidades” sociais.
Animais e plantas, que estamos acostumados a considerar como produtos da
natureza são, em sua forma presente, não somente produtos do trabalho do último
ano, mas o resultado de uma transformação gradual, continuada através de
muitas gerações sob a direção do homem e por meio do seu trabalho... Na grande
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maioria dos casos, os instrumentos de trabalho mostram ao mais superficial
observador, a marca do trabalho das épocas passadas. (MARX,
apud
SMITH, 1988,
p. 93)
Para Henrique (2004, p. 92), a Natureza, como parte do espaço geográfico, como território
usado, é incorporada e produzida, enquanto objeto e idéia, transformada em recurso pela
valorização do espaço e por um intenso uso do território. Citando Lukáks, afirma que o Homem
que vive num mundo fetichizado ignora que a riqueza, o valor e o conteúdo verdadeiro de sua
existência encontram-se em ramificações numerosas e profundas que o ligam à existência de seus
semelhantes, de seu meio e à da sociedade. “O indivíduo isolado e egocêntrico que vive para si,
vive num mundo empobrecido”.
Assim, o homem contemporâneo, está descolado da Natureza “natural”, visto que sua relação
com os elementos naturais dá-se a partir de elementos elaborados e organizados esteticamente,
mediada por técnicas e objetos. Assim, os processos naturais em seus mais diferentes processos, não
são apreendidos pelos consumidores da Natureza, que se relacionam apenas com um tipo específico
de Natureza – a Natureza artificializada, ajardinada.
Henrique (2004, p. 99), destaca que no período atual, para se conceber a Natureza,
preservam-se e valorizam-se aqueles elementos que moral, estética ou monetariamente são
considerados como relevantes. Se em algum momento da história estes julgamentos foram feitos
com um caráter subjetivo,
(...) nos dias atuais a definição de valores estéticos e monetários da natureza se
num projeto e, portanto, extremamente objetivo e intencional, mesmo que de
alguns grupos, como o caso das incorporadoras e construtoras de condomínios de
alto padrão em São Paulo, ou da escolha das embalagens de produtos
industrializados com apelos à natureza. (HENRIQUE, 2004, p. 99)
O autor (2004, p. 101), destaca que diante da crescente produção da Natureza, torna-se
impossível para grande parcela dos homens definirem os limites entre as obras naturais e as dos
homens, entre o natural e o técnico/social. Encontrar o grau de naturalidade de um objeto requer a
compreensão de sua história e não apenas a observação de sua aparência, ao passo que todas as
sociedades por mais simples que sejam seu modo de vida comparado com as civilizações
ocidentais – desenvolveram processos de alteração, controle e domínio da natureza.
Para Santos (2000, p. 18), todas as transformações empreendidas pela sociedade atual na
Natureza, fazem com que possa se afirmar que
(...) de certo modo, acabou a natureza. Bem, dizer que a natureza acabou é uma
forma de provocar uma discussão mais acesa. Na realidade, a natureza, hoje é um
valor, ela não é natural no processo histórico. Ela pode ser natural na sua existência
isolada, mas no processo histórico, ela é social. Quer dizer, eu valorizo em função de
sua história. Isso já ocorria antes, mas hoje é muito mais evidente. O valor da
natureza está relacionado com a escala de valores estabelecida pela sociedade
para aqueles bens que antes eram chamados de naturais.
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O autor (1994, p. 23), destaca ainda que se antes a Natureza podia ser geradora de medos,
atualmente, o medo é que cria uma Natureza mediática e falsa, sendo que uma parte dela é
apresentada como se fosse sua totalidade.
(...) quando o meio ambiente, como Natureza-espetáculo, substitui a Natureza
Histórica, lugar de trabalho de todos os homens, e quando a Natureza ‘cibernética’
ou ‘sintética’ substitui a Natureza analítica do passado, o processo de ocultação do
significado da História atinge o seu auge. É também desse modo que se estabelece
uma dolorosa confusão entre sistemas técnicos, natureza, sociedade, cultura e
moral. (SANTOS, 1994, p. 24)
Na atualidade, portanto, a Natureza constitui-se, de acordo com a proposta de Lenoble (1969),
citada por Henrique (2004, p. 101) numa “coisa-imagem, muito mais imagem do que coisa”. Nesta
relação, os homens não são capazes de enxergar os fenômenos sociais, políticos ou econômicos que
penetram no conceito de Natureza. Eles continuam a ver apenas uma imagem romântica da
Natureza, que é captada e apropriada pelos empreendimentos imobiliários. Na organizada feira
de consumo da natureza, esta transforma-se em mercadoria vendida como autêntica ou mesmo
como natureza ‘caricaturizada’, ‘disneyficada’”. (HENRIQUE, 2004, p.102/104)
É nesse sentido que consideramos a Natureza vendida nos loteamentos fechados ribeirinhos.
Uma Natureza produzida com finalidade de ser um cenário organizado esteticamente para
emoldurar as práticas de lazer dos segmentos de maior padrão aquisitivo. Trazemos na próxima
parte, uma análise sobre os símbolos e a apropriação da Natureza nesses empreendimentos.
3.2. - A Natureza vendida e a Natureza apropriada: dissociação entre os símbolos e os
conteúdos da Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos
O conceito de Natureza sofreu várias alterações ao longo do desenvolvimento da sociedade. Isso
faz com que as pessoas, inseridas em contextos socioespaciais e históricos definidos, percebam e se
relacionem de formas diferentes com os elementos naturais.
De acordo com Henrique (2004, p. 3), a cidade, grande realização humana, artefato por
excelência, construída a partir de uma aparente negação da Natureza, torna-se o local principal
para a observação de uma nova relação do Homem com a Natureza uma relação mitológica,
midiática e capitalizada. “A natureza, metáfora ou metonímia, que já havia sido reificada e
incorporada à vida social, ao longo da história do homem, é apropriada e até mesmo produzida,
com o objetivo de valorização monetária de objetos/mercadorias nos mais variados segmentos da
produção e dos serviços”.
Sendo assim, a concepção vigente de Natureza é baseada em sua matematização e
artificialização sendo, cada vez mais, percebida como mero recurso para sustentar o
desenvolvimento da Sociedade, sobretudo com as possibilidades geradas pelo desenvolvimento
tecnológico. Esse fato fez com que a Natureza fosse sendo renegada a segundo plano na
constituição dos espaços urbanos. Quando o processo de urbanização tomou impulso, a partir da
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industrialização da sociedade, houve um esforço no intuito de associar as lógicas urbanas à
modernidade e ao progresso. Conseqüentemente, a Natureza, tida como elemento constitutivo dos
espaços rurais, foi sendo deixada de lado nos projetos urbanos, como se fosse uma dimensão a ser
superada. Dessa forma, podemos constatar que a dicotomia que foi sendo construída entre
Sociedade e Natureza, nos espaços urbanos, é fruto da concepção geral que a sociedade vem tendo
desses conceitos, considerando a cidade, fruto da realização humana, como sendo uma dimensão
externa e dissociada da Natureza.
Dessa forma, a presença da Natureza nos espaços urbanos, dá-se de forma residual, fruto do
fetichismo criado em torno de tal conceito. A Natureza é vista apenas pelo seu potencial como
recurso e como elemento de valorização estética. Assim, a Natureza “natural” se distancia e
lugar à segunda Natureza, como destaca Lefebvre (1969). Nas cidades, os elementos naturais são
arranjados paisagisticamente, no intuito de criar um cenário mais agradável para as práticas
cotidianas, valorizando os empreendimentos imobiliários.
Segundo Santos (1982, p. 25), toda Natureza, congelada no senso comum como paisagem, tende
a ser transformada em cartões postais e em fetiche. Esta Natureza artificial, enquanto produto da
ação humana e de mentira, no sentindo de não possuir uma identidade local e sim ser um padrão,
encontra-se hoje compromissada com uma felicidade capitalista.
A Natureza, dessa maneira, entra para o circuito das raridades (Lefebvre, 1969). Como
raridade, passa, no âmbito do sistema capitalista de produção, a ter um valor de troca maior. Os
elementos naturais tornam-se assim, mercadorias e o acesso a eles fica restrito àqueles que tiverem
condições financeiras que possibilitem sua apropriação.
Para Bertrand (2007, p. 83), estamos passando por uma fase de reencontro com a Natureza. O
autor destaca que, atualmente, estamos em um processo de reconstrução de nossa percepção
acerca da natureza, visto que:
Alguns recursos essenciais se degradam ou se esgotam; os grandes ciclos naturais
estão ou parecem perturbados; as paisagens familiares desaparecem para sempre.
A natureza natural não é mais um dado certo. Está emergindo outra natureza,
forte, mas finita; um universo natural, coberto de crises, catástrofes e de
irreversibilidades; um conjunto frágil que apreendemos com um olhar novo, cheio
de admiração e de temor, e um pensamento novo, original e audacioso. A ecologia
acaba de reinventar a natureza e de redesenhar uma economia política do
planeta. (BERTRAND, 2007, p. 93)
Sendo assim, percebemos que as maneiras pelas quais a Natureza vem sendo percebida e
apropriada pela sociedade, ao longo de seu desenvolvimento histórico, refletindo nas formas de
inserção dos elementos naturais nos espaços urbanos, vêm mostrando a insustentabilidade desse tipo
de relação entre a Sociedade e a Natureza. Com a colocação dos problemas ambientais em pauta,
os símbolos associados à Natureza passaram por uma revalorização. Podemos dizer que se criou
uma verdadeira moda, baseada no consumo de produtos considerados “verdes”, ou seja,
ecologicamente corretos.
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De acordo com Henrique (2006, p.66), a reaproximação ou o reencanto do mundo urbano
ocidental pela Natureza, ou melhor, por uma idéia de Natureza, dá-se num padrão moldado pelos
interesses capitalistas.
Sob a dinâmica atual do capitalismo, os grandes agentes do mercado global, nos
mais diversos ramos da economia, das indústrias aos serviços, oferecem produtos e
serviços para as classes com maior poder de consumo, que as colocam muito
próximos da natureza. Uma natureza retrabalhada, sob a forma de uma segunda
natureza, reificada, incorporada, mercantilizada, produzida e vendida de acordo
com as leis e os objetivos do modo de produção atual o lucro, a propriedade
privada, os fetiches e a sensibilidade do mercado. (HENRIQUE, 2006, p. 66)
Portanto, a Natureza, ou uma concepção específica de Natureza, passa a ser vendida, por meio
de sua associação com diferentes produtos, inclusive os imobiliários, como os loteamentos fechados
ribeirinhos. Cria-se uma necessidade das pessoas estabelecerem um contato mais direto com os
elementos naturais, tidos atualmente, como capazes de aumentar a qualidade de vida e o bem-
estar.
Os loteamentos fechados ribeirinhos podem ser vistos, portanto, como espaços que possibilitam
um reencontro da Sociedade com a Natureza, elemento não evidenciado em suas práticas
cotidianas. O conteúdo dessa Natureza, vendida nos loteamentos fechados ribeirinhos, está
intimamente ligado ao processo de mercantilização dos elementos naturais, não significando uma
mudança de paradigma, no sentido de superar a dicotomia Sociedade/Natureza.
A Natureza vendida nesses empreendimentos é uma Natureza produzida pelos
empreendedores imobiliários diante do crescente distanciamento dos elementos naturais e os
espaços urbanos. De acordo com Henrique (2004, p. 5) nas cidades, espaços altamente tecnificados
e artificializados, a presença da Natureza natural torna-se muito distante, gerando a necessidade
da “produção de um sistema de idéias e símbolos que tragam a imagem dessa natureza natural
para a cidade, e até mesmo, que se produza uma natureza padronizada e adequada aos padrões
urbanos”. A Natureza material, efetivamente incorporada e produzida, passa a ser enclausurada
nas propriedades imobiliárias privadas, tendo seu acesso definido de maneira desigual, de acordo
com os diferentes segmentos sociais.
3.2.1 O consumo da Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos: Natureza
selvagem x Natureza ajardinada
Como ponto de partida para analisar a venda da Natureza nos loteamentos fechados
ribeirinhos, consideramos alguns elementos associados a esses empreendimentos nos materiais de
publicidade. Assim, analisando as mensagens que são vendidas juntamente com esses loteamentos,
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temos indicações que servirão de base para o entendimento da produção da demanda por esses
espaços.
Nos materiais de publicidade analisados, encontramos mensagens que, por meio das imagens e
dos textos, tentam passar a idéia de um contato mais direto com a Natureza, a partir da
apropriação dos espaços dos loteamentos fechados ribeirinhos. Assim, encontramos slogans como:
“Deixe a natureza fazer parte do seu dia-a-dia”,
“Lago Azul e você, a natureza completa”,
“A harmonia entre homem e natureza”,
“Venha para esse verdadeiro paraíso natural”.
Essas frases publicitárias dão a idéia de que, nesses espaços, a Natureza pode ser encontrada,
reforçando a impressão de que os espaços urbanos não são espaços próprios para a apropriação dos
elementos naturais. A imagem da relação entre Sociedade e Natureza, nesses loteamentos, é
vendida como se ocorresse de maneira harmoniosa. Dessa forma, os empreendedores imobiliários
tentam vender a idéia de que os loteamentos fechados ribeirinhos são espaços específicos onde se
pode encontrar a Natureza, verdadeiros redutos, valorizados pela raridade de elementos naturais
presente no cotidiano urbano das pessoas.
Quando questionados pelos motivos que os levaram a comprar um lote e construir uma casa no
loteamento fechado ribeirinho, os entrevistados ressaltaram o interesse de se relacionarem de forma
mais direta com a Natureza, ou com algum valor associado a ela. Assim, os loteamentos fechados
ribeirinhos foram eleitos pelos entrevistados como a forma ideal de se desfrutar dos momentos de
lazer, visto que, como apontam, esses espaços oferecem a tranqüilidade, a Natureza, o bem-estar, a
paz e o sossego para seus momentos de descanso. Esse desejo de ter um espaço onde possam estar
em contato com a Natureza resulta do tipo de percepção que têm da Natureza, representativo da
percepção dominante na sociedade contemporânea, que concebe a Natureza “natural” como um
conteúdo externo à cidade, tendo que ser buscado em lugares específicos.
Consideramos assim, que um ideal de Natureza é vendido material e simbolicamente nos
loteamentos fechados ribeirinhos. O primeiro contato entre o possível consumidor e esses espaços é
realizado através da publicidade que é feita com o intuito de divulgar o empreendimento. É por
meio da publicidade que as mensagens simbólicas são passadas para os consumidores. Segundo
Baudrillard (1995, p. 175), a publicidade tem um grande poder de condicionamento do consumo,
visto que funciona pela lógica da fábula e da adesão. Assim, a publicidade tem o poder de fazer
com que os consumidores confiem nas qualidades das mercadorias e na felicidade que elas podem
trazer.
No que se refere à centralidade da questão da apropriação da Natureza para o entendimento
da produção e da apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos, percebemos que ela pode ser
verificada, tanto nos discursos dos entrevistados, quanto nos materiais de divulgação dos
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empreendimentos estudados. Na figura 16, podemos observar os logotipos de alguns dos
loteamentos fechados ribeirinhos estudados. Todos eles contêm representações de elementos
naturais, como o sol, o rio, os coqueiros e os pássaros, evidenciando que esses espaços são destinados
para se estabelecer um contato com a Natureza. Temos também a representação dos barcos,
mostrando a destinação para o lazer.
Figura 16 - Logotipos de alguns loteamentos ribeirinhos estudados, evidenciando os elementos naturais
Outro aspecto que podemos ressaltar nos materiais publicitários dos loteamentos fechados
ribeirinhos é o da escolha das cores para a confecção dos folders e também do site do
empreendimento Marina Bonita. Como podemos observar nos exemplos, apresentados na figura 17,
as principais cores escolhidas são o azul e verde. O verde é a cor predominante nas representações
contemporâneas dos elementos ligados à Natureza. o azul, presente nos folders dos loteamentos
ribeirinhos representam o diferencial desses empreendimentos, ou seja, os rios.
A escolha de cores específicas para representar a Natureza mostra que a concepção atual
referente aos elementos naturais, é mediada por uma produção simbólica que valoriza certos
aspectos específicos da Natureza. Essa representação monocromática da Natureza, segundo
Henrique (2004, p. 103), não tem nada a ver com a variedade de cores que a Natureza, em
qualquer período, tem. Assim, essa definição imposta de que a Natureza é verde,
(...) é observada em vários produtos que quando querem mencionar algo natural
sempre colocam a cor verde como representação da natureza. Nota-se que esta
escolha pela natureza verde pode estar relacionada ao fato de que as plantas
foram os elementos da natureza que mais se tornaram conhecidos, controlados e
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manipulados pelos homens ao longo de sua história, tanto de maneira empírica
(primeiros cultivos) quanto através da ciência (botânica). Ou seja, a natureza
representada pelas árvores e pelo verde é uma natureza já amplamente
tecnificada que não apresenta riscos ao homem. (HENRIQUE, 2004, p. 103)
Figura 17 - Buritama. Folders de divulgação dos loteamentos fechados ribeirinhos Jardim
Itaparica, Lago Azul e Praia Bella
Dessa forma, a Natureza verde é o símbolo da Natureza contemporânea controlada,
tecnificada, organizada, submetida, produzida.
Nos loteamentos fechados ribeirinhos temos a eleição da cor azul para representar a maior
parte desses empreendimentos. Isso nos indica que nesses espaços, a Natureza não está sendo
valorizada como uma totalidade, com seu conjunto de cores variadas, que remetem à diversidade
e à amplitude de seus processos.
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O verde da vegetação e o azul dos rios e do céu são as cores escolhidas para formar a
identidade simbólica desses empreendimentos. Dessa maneira, podemos constatar a partir da
escolha dessas cores, uma produção simbólica da Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos: a
produção de uma Natureza mediada pelo símbolo da cor, no sentido de gerar uma identificação
visual que ateste que nos loteamentos fechados ribeirinhos, a Natureza é azul e verde.
A Natureza apresenta uma gama muito maior de cores que as indicadas nas mensagens
publicitárias desses empreendimentos. No entanto, a idéia é vender uma Natureza específica,
“recortada” da Natureza selvagem e arranjada nos moldes de uma Natureza ajardinada,
controlada. Assim, a escolha dessas cores específicas para representar os loteamentos fechados
ribeirinhos nos indica que os incorporadores imobiliários não estão tentando vender espaços em
que se pode encontrar uma Natureza, digamos, total, e sim, uma nuance específica da Natureza.
Dessa forma, nos loteamentos fechados ribeirinhos, a Natureza oferecida não é qualquer
Natureza. É uma Natureza peculiar, mediada pela produção social. Para ilustrar a idealização da
Natureza nesses empreendimentos, analisamos na figura 18 uma página do
site
de divulgação do
loteamento fechado ribeirinho Marina Bonita, localizado em Zacarias.
O
site,
como um todo, é interessante porque oferece um grande número de fotos de pessoas
praticando esportes, de elementos naturais, de pessoas sorridentes e, também, ao acessá-lo, você
começa a ouvir um som representando o canto de pássaros. A intenção é que ao acessar o
site
, você
seja transportado para a Natureza, através das imagens e dos sons.
Na figura 18, podemos observar que a mensagem publicitária que se quer passar é de harmonia
do contato das pessoas com a Natureza no loteamento ribeirinho. Contato harmônico que é capaz
de oferecer aos consumidores desse espaço a boa vida”. A mensagem central da página é escrita
em verde, cor padrão para representar a Natureza. Nessa página do
site
de divulgação do
empreendimento, podemos perceber que a colocação de fotos do local que mostram a
“exuberância” da Natureza nesse espaço e algumas figuras gráficas representando a Natureza,
como o tucano, o pássaro ao fundo e o trançado de folhas de coqueiro. Assim, temos nessa figura a
criação de uma imagem de Natureza que associa os elementos naturais, tanto os materiais quanto
os simbólicos, a sensações de bem-estar. Esse loteamento ribeirinho é idealizado como um reduto de
Natureza capaz de oferecer para seus consumidores, a boa vida. Essa representação da Natureza
ressalta a idéia de que a Natureza é uma dimensão fora da cidade, visto que a boa vida associada
aos elementos naturais está esperando pelos citadinos fora das cidades.
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Figura 18 – Zacarias. Página do
site
de divulgação do loteamento Marina Bonita
De acordo com Rodrigues (2001, p. 212), o cotidiano da grande cidade faz com que a Natureza
seja vista como fonte de ‘recuperação das energias’. Assim, a presença da Natureza é uma forma de
renovação da vida estressante e rápida da cidade. Contraditoriamente,
(...) na cidade, a ‘natureza’ precisa ser abolida para o porvir humano. Enterram-se
os rios e córregos (canalização); impermeabilizam-se as ruas, avenidas e fundos de
vale para possibilitar o deslocamento dos veículos, cada vez em maior número,
derrubam-se matas para edificar lugares de ‘convivência’, de produção e de
consumo. (RODRIGUES, 2001, p. 212)
Elementos da Natureza
associados ao lazer e à
“boa-vida”
Figuras que
representam
elementos da
Natureza
Frase que indica que a “boa
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vida” é alcançada em contato
com a Natureza oferecida
pelo loteamento fechado
ribeirinho Marina Bonita
Org.: Maria Angélica de Oliveira
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Assim, embora a Natureza seja considerada como um elemento essencial para a reprodução da
vida humana, as práticas empreendidas na produção das cidades vão cada vez mais reduzindo
essa Natureza, que tem que ser buscada em locais específicos.
Henrique (2004, p. 114), destaca que, infelizmente, a Natureza na cidade, cujo elemento
caracterizador será a vegetação, está confinada no desenho urbano numa espécie de metonímia
da Natureza, uma Natureza racionalizada (em diferentes gradações), uma Natureza produzida,
não uma representação direta da Natureza, mas sim um modelo de Natureza historicamente
construído pela técnica e pela ciência. A Natureza insere-se na cidade, através dos jardins e
praças, que eram lugares para reis e nobres, e para a aristocracia e a burguesia, e só, recentemente,
para a população em geral através dos jardins e parques públicos, ainda que pouco acessíveis para
todos.
Para o autor (2004, p. 127), no século XIX, inicia-se um movimento mais intenso de associação
entre a Natureza presente na cidade e a especulação imobiliária, a partir da produção de jardins e
parques pelos agentes imobiliários, com o objetivo de valorização dos loteamentos construídos no
entorno. A Natureza na cidade passa a ser uma ‘isca’ ou uma imagem/símbolo que valoriza os
empreendimentos imobiliários, tanto pela apreciação de seus conteúdos estéticos, quanto dos
elementos ligados ao melhoramento das condições ambientais, diante da crescente poluição dos
espaços urbanos.
A partir das entrevistas que realizamos, pudemos constatar que tanto os proprietários de lotes
nos loteamentos fechados ribeirinhos, quanto os moradores dos municípios em que estão
implantados esses empreendimentos, partilham a concepção de que a Natureza é uma dimensão
externa à cidade, ou de que a Natureza presente nas cidades é residual, diferente quantitativa e
qualitativamente da Natureza existente no campo. Assim, alguns entrevistados reconheceram a
presença de alguns elementos naturais nas cidades, como as árvores e as flores, mas destacam
que
a Natureza mesmo
”, só pode ser encontrada no campo.
Assim, as concepções apresentadas pelos entrevistados na pesquisa vão ao encontro com as
afirmações de Le Corbusier (2000), que percebe a cidade como a grande obra humana, uma
criação que revela o domínio do Homem sobre os elementos naturais.
Uma cidade! É o domínio do homem sobre a natureza. É uma ação humana
contra a natureza, um organismo humano de proteção e de trabalho. É uma
criação. A poesia é ato humano relações harmoniosas entre imagens perceptíveis.
A poesia da natureza é, exatamente, apenas uma construção do espírito. A cidade
é uma imagem poderosa que aciona nosso espírito. Le Corbusier (2000)
A seguir, destacamos alguns depoimentos relevantes sobre essa visão:
Natureza, eu penso assim, que são as coisas que não foram construídas pelo
homem. Então, as árvores, as plantas, os bichos, tudo isso é Natureza.(...) Na cidade
a gente tem um pouco de Natureza, mais é diferente do campo. Aqui a gente tem
a Natureza mesmo, é uma Natureza mais espontânea, mais do jeito que ela é
mesmo.
(46 anos, professora, residente na cidade de Birigui, proprietária de casa no
condomínio Portal da Praia, em Buritama)
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Olha, Natureza é bicho, planta, rio, terra, tudo isso é coisa da Natureza. (...) ah, na
cidade eu acho que tem pouca Natureza. É mais difícil de encontrar. Por exemplo,
aqui em Penápolis tem o córrego Maria Chica. Mas é feio, está canalizado, cai
esgoto. Então que prazer que olhar aquilo? Nenhum. Então Natureza é mais
bonita, mais... livre, eu acho
.
(...) no rancho é diferente, aqui é a própria Natureza.
A gente comprou o lote aqui por causa disso, na cidade não tem Natureza e a
gente gosta de ter contato com essas coisas, relaxa a gente. tem passarinho,
peixe, rio, ar puro, árvores, é muito bonito, sossegado.
(48 anos, dona de casa,
residente na cidade de Penápolis e proprietária de casa no Condomínio Belvedere,
na mesma cidade)
Eu entendo como Natureza, as florestas, os animais, os rios, tudo isso que
atualmente é difícil encontrar na cidade. Eu nasci na roça, então isso faz muita falta
pra mim. Essa coisa de viver na Natureza, estar perto das criações, das plantas. Eu
acho que é uma vida mais saudável, você tem mais ar puro, mais sossego. Agora na
cidade não, você quase não Natureza, é uma judiação. O pouco que tem as
pessoas parecem que querem acabar, não vêem que a gente precisa de ter a
Natureza para gente viver. Olha, se eu já não estivesse de idade, se meus filhos
ainda morassem comigo, eu ia querer morar na roça, eu gosto mais, me sinto
melhor. Aqui na cidade se você quer criar uma galinha não pode, quer plantar
milho pra fazer pamonha, não tem espaço, então na roça tem mais fartura, é mais
fácil aproveitar as coisas que a Natureza dá.
(64 anos, aposentado, residente na
cidade de Buritama)
A Natureza é tudo aquilo que serve de base pra gente viver, pra gente comer, é a
parte física do mundo. Na cidade existe Natureza, mas é uma Natureza diferente,
mais artificial, mais adaptada. No campo é diferente, a Natureza tem mais a ver
com sua essência, porque mais espaço para que os elementos naturais se
desenvolvam livremente. Por exemplo, não para existir uma mata dentro da
cidade. O que pode existir o árvores isoladas, plantadas. no campo, as árvores
podem aparecer nas matas, nos pomares, numa forma mais natural
. (48 anos,
médico, residente na cidade de Penápolis)
As entrevistas realizadas com moradores das áreas rurais próximas aos loteamentos fechados
ribeirinhos permitem-nos constatar que eles também apresentam uma visão dicotomizada da
relação entre Sociedade e Natureza nos espaços da cidade e no campo. Para eles, a Natureza se
manifesta de forma mais acentuada no campo, visto que nas cidades, a Natureza foi perdendo
espaço, porque os processos que ocorrem são mais ligados com as
criações humanas
”. Para os
entrevistados que residem no campo, próximos aos loteamentos fechados ribeirinhos, a Natureza
presente em seus espaços de moradia é encarada como fonte de seu sustento. Os depoimentos a
seguir nos ajudam a entender essa questão.
Quem mora na roça não se acostuma na cidade justamente por isso. Aqui a gente
pode pegar uma fruta no , matar uma galinha no final de semana. No final de
ano a gente mata vaca, porco. A Natureza para gente é isso, nossa forma de viver.
Eu acho que na cidade as pessoas têm menos contato com a Natureza, porque lá as
criações humanas são mais presentes que a Natureza. você não tem plantação,
você não tem criação, o tipo de vida é outro. (42 anos, residente em Buritama,
próximo ao loteamento ribeirinho Jardim Itaparica)
Tem uma diferença grande entre a cidade e o campo. Na cidade tem muito pouca
coisa da Natureza. no campo você vê mais os bichos, as plantas, os rios. Então as
pessoas que moram nas cidades ás vezes não estão acostumadas com a Natureza.
Têm medo de bicho, não sabem como funciona a plantação do arroz, do milho.
Nem sabe como a comida deles chega no prato. É por isso que as pessoas da cidade
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vêm para esses condomínios nas beiras dos rios. È porque eles vêm procurar o que
eles não encontram na cidade. (53 anos, residente em Zacarias, próximo ao
loteamento ribeirinho Marina Bonita)
Assim, a percepção dos entrevistados é a de que a cidade não é o espaço ideal para a Natureza.
Os elementos naturais aparecem nos espaços urbanos apenas de forma residual. É, no campo, onde
os loteamentos fechados ribeirinhos estão localizados, que a Natureza pode ser contemplada e
vivenciada em sua forma mais pura e completa. Lá, de acordo com a fala dos entrevistados, a
Natureza é mais
livre
”, mais
bonita
”,
mais do jeito que ela é mesmo
”. Dessa forma, diante da
impossibilidade de encontrar a Natureza natural nas cidades, as pessoas acabam recorrendo a
empreendimentos localizados fora delas para satisfazerem essa “necessidade” de contato com os
elementos naturais.
Utilizamos o termo necessidade” entre aspas, pois consideramos que o desejo de um contato
maior com a Natureza é fruto mais de uma produção simbólica do que de, sempre, uma real
necessidade vislumbrada pelos proprietários de casas nesses empreendimentos. Nesses termos, pode
se falar de uma suposta ou idealizada necessidade de Natureza. As pessoas desejam passar seus
momentos de lazer em espaços diferenciados, que as transportem para uma realidade distinta
daquela em que vivem nos seus cotidianos. Por isso, vêem nos loteamentos fechados ribeirinhos uma
possibilidade de estar em contato com uma dimensão diferente da que estão acostumadas.
Por meio das análises dos discursos dos entrevistados, das observações em campo e da análise
das campanhas publicitárias utilizadas para divulgar os loteamentos fechados ribeirinhos,
constatamos que a Natureza é o principal símbolo associado a esses empreendimentos. O contato
harmonioso e direto com a Natureza é vendido como gerador de outras sensações, como
tranqüilidade, qualidade de vida, união familiar. Assim, nesses empreendimentos temos a venda de
elementos que são cotidianamente negados nas práticas dos citadinos, elementos esses que são
trabalhados pelos empreendedores como sendo possíveis de serem encontrados, apenas, quando as
pessoas se distanciam das cidades, cuja apropriação é marcada por outras lógicas.
Podemos observar essa questão quando lemos o texto da propaganda do loteamento Marina
Bonita, localizado no município de Zacarias:
No Marina, os esportes são praticados em família e em contato com a natureza.
Seus filhos nunca vão esquecer aquele peixe que vocês pescaram juntos, a manobra
radical no jet ski, a primeira vez que conseguiu ficar em esquiando, o castelo de
areia que vocês fizeram juntos, ou o jogo de vôlei em que correram lado a lado, o
gol que você marcou no futebol soçaite, o pic-nic na mata, as garças chegando no
pôr do sol e tomando seu lugar na mata... ah, e todas aquelas estrelas no céu... É
muito fácil fazer parte desse paraíso, a segunda e última fase do condomínio acaba
de ser lançada, são 75 lotes a sua disposição, para pagar em até 36 meses. Entre em
contato com o Marina Bonita e ofereça esse paraíso também para sua família. (Site
de divulgação do empreendimento, grifos nossos)
A partir desse texto, percebemos que os idealizadores do loteamento tentam associar sua
imagem a um símbolo de paraíso. Lá, a vida em família é privilegiada e o contato com a Natureza
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é mais direto. Cria-se uma idéia de que, estando no loteamento, as pessoas podem desfrutar de
sensações que não podem sentir nos espaços urbanos. Para fazer parte desse paraíso, é comprar
um lote no loteamento destacado.
A Natureza vendida nos loteamentos fechados ribeirinhos é representada como uma
contraposição da Natureza residual que existe nas cidades. A lógica de produção simbólica e
material, desses espaços está ligada a um reencontro com a Natureza perdida ao longo do processo
de desenvolvimento histórico da sociedade. A Natureza, como elemento raro, é passível de ser
encontrada e apropriada nos refúgios produzidos para esse intuito, nos quais se insere os
loteamentos fechados ribeirinhos.
Dessa maneira, a Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos seria a representação dos
elementos naturais em seu estado mais “natural” – representando a Natureza selvagem, em estado
bruto - diferentemente da Natureza humanizada ajardinada - que pode ser encontrada nas
cidades. No entanto, o que podemos perceber a partir das observações realizadas, das entrevistas e
da análise dos materiais publicitários é que na realidade, a Natureza vendida nos loteamentos
ribeirinhos não deixa de ser uma Natureza artificializada e humanizada, muito mais ligada ao
ideal de Natureza ajardinada, do que a uma Natureza selvagem. Assim, o contato com a
Natureza possibilitado pelos loteamentos fechados ribeirinhos parte da mesma lógica da produção
da Natureza nas cidades.
Segundo Henrique (2004, p. 115), se no senso comum a Natureza se opõe à cultura e à história, o
que se nas cidades hoje é exatamente o contrário, é a Natureza como produto desta mesma
história – da evolução das idéias e conceitos que foram sendo criados, da história das técnicas – e da
cultura consumista que se estabelece. Assim, devemos considerar os aspectos contraditórios da
venda da Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos, visto que ao mesmo tempo em que os
incorporadores imobiliários fazem um trabalho de valorização e contraposição da Natureza em
relação à cidade, a Natureza que oferecem em seus empreendimentos é produto dessa sociedade
urbana e sua apropriação é feita perante as mesmas lógicas pelas quais são apropriados os espaços
urbanos.
Para tentar exemplificar essa contradição presente na produção e na apropriação dos
loteamentos fechados ribeirinhos, analisaremos nas figuras 19 e 20 as mensagens presentes no folder
de divulgação do loteamento fechado ribeirinho Marbella, localizado em Buritama.
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Figura 19 – Buritama. Folder do loteamento fechado ribeirinho Marbella: Natureza artificializada
inserida em um arranjo paisagístico.
Como podemos observar na figura 19, na parte frontal do folder de divulgação do loteamento
fechado ribeirinho em questão, temos a imagem de uma Natureza idealizada, capaz de oferecer
felicidade para toda a família, a partir do oferecimento da possibilidade de lazer em contato com
os elementos naturais. Os elementos utilizados para representar a Natureza nessa imagem são os
coqueiros organizados paisagisticamente dentro dos muros do loteamento, o jardim sobre o qual se
encontra a placa do empreendimento e a água em que a família esse divertindo, que aparenta
ser a água de uma piscina e não de um rio. A portaria construída nos mesmos padrões das
encontradas nos empreendimentos urbanos, ajuda-nos a perceber a presença da lógica urbana
nesse empreendimento. Dessa maneira, o que nos é apresentado, nessa imagem, é uma Natureza
humanizada, organizada paisagisticamente no intuito de servir de cenário para as práticas de lazer
dos futuros proprietários.
Na figura 20, que mostra o verso do folder de divulgação do loteamento, podemos observar
que a Natureza representada contém alguns aspectos diferentes dos aspectos ressaltados em sua
parte frontal. Temos a imagem do rio formando a linha do horizonte com o céu na parte de cima e,
na parte de baixo, temos a imagem do pôr-do-sol sobre o rio, com a figura de um homem
pescando. Nesse sentido, tenta-se ressaltar a grandiosidade e a beleza da Natureza “natural”. Os
elementos naturais são mostrados de uma forma valorizada, como se, no loteamento fechado
ribeirinho em questão, tivéssemos a possibilidade de um contato com a Natureza original.
Org.:
Maria Angélica de Oliveira e Paula Lindo
Símbolo que remete
a um lazer específico
(relacionado ao sol e
à água) em contato
com a Natureza
Elementos da Natureza
organizados
paisagisticamente
Uso do arquétipo
da família feliz
Estrutura típica de
um espaço urbano
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No entanto, mesmo com a valorização do retorno à Natureza natural, podemos perceber que a
Natureza que os incorporadores imobiliários querem vender não é a Natureza em seu estado
primitivo. Na parte superior do folder, é destacado um conjunto de infra-estruturas mais
características do meio urbano, quando se trata de Brasil, mostrando que a Natureza presente
nesse empreendimento é uma Natureza saneada, mediada por elementos técnicos. Na parte
central do folder, temos em destaque a área do loteamento, que apresenta arruamentos e lotes
cobertos por grama, mostrando que a ação humana agiu organizando esse espaço. O traçado
retilíneo das ruas mostra a introdução da lógica humana nesse espaço, no qual as sinuosidades da
Natureza foram quebradas e controladas. ainda, no folder, a indicação de outros
empreendimentos ribeirinhos que ficam próximos ao loteamento Marbella, mostrando que, além da
Natureza, esse empreendimento é valorizado pela proximidade com outros espaços caracterizados
pela lógica urbana.
Figura 20 – Buritama. Verso do Folder do loteamento fechado ribeirinho Marbella em Buritama: a
intervenção humana na Natureza “natural”.
Podemos constatar, assim, que a produção simbólica desse empreendimento traz elementos de
uma Natureza tida como natural e de uma Natureza humanizada, unidas numa aliança
contraditória que traduz o ideal de Natureza vendido nos loteamentos fechados ribeirinhos
estudados. Um retorno à Natureza é anunciado, evidenciando-se todas as vantagens de deixar o
Venda de infra-
estrutura urbana
Venda da Natureza
Representação da
apropriação da Natureza
“natural” pelo Homem
Intervenção do Homem na
organização da Natureza:
formação de uma
paisagem humanizada
Org.:
Maria Angélica de Oliveira e Paula Lindo
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cotidiano das cidades em nome da apreciação de outra realidade, ligada à presença dos elementos
naturais, portadores de felicidade, bem-estar, tranqüilidade.
No entanto, esses empreendimentos oferecem uma Natureza humanizada e ajardinada, cujo
consumo é feito com a utilização de infra-estruturas parecidas com as encontradas nas cidades.
Nesse sentido, a Natureza vendida nos loteamentos fechados ribeirinhos não é uma Natureza
natural, e sim de uma Natureza produzida para agradar aos olhos de seus consumidores. Uma
Natureza entremeada com objetos urbanos, capazes de garantir, mesmo fora das cidades, o
conforto e a comodidade aos seus proprietários.
Segundo Henrique (2004, p. 63), Buffon em seu livro Histoire Naturelle, considera a Natureza
selvagem como algo horrível e letal, sendo a função do Homem realizar sua conversão em algo
“grato ou habitável, através de obras possíveis de transformação. Uma nova Natureza salta de
nossas mãos. Quão bela é esta Natureza cultivada! Que brilhante és e quão esplêndida, adornada
pelos cuidados do homem!”.
Assim, consideramos que a Natureza presente, nos loteamentos fechados ribeirinhos, está
associada a esse princípio. É uma Natureza melhorada, controlada e organizada, para que os
homens possam tirar o máximo proveito de suas qualidades cênicas. Portanto, é uma Natureza
tecnificada e humanizada, que não é tão “natural” quanto querem lhe representar.
Conforme Henrique (2004, p. 99), as técnicas inserem uma constante dissociação entre o
Homem e a Natureza, sendo que a cultura propicia algumas aproximações, mesmo que
metaforicamente. Para ele,
sempre uma observação constante que é a necessidade que os homens têm de
se aproximar da natureza e isto pode ser dado tanto pela sua contemplação,
controle ou transformação; o homem imita a natureza e ao mesmo tempo a
desnaturaliza. Pode-se exemplificar esta relação dialética com um jardim onde
algo natural - plantas e flores - mas ao mesmo tempo social, cultural e técnico. A
paixão pela geometria regular e a necessidade de enquadrar a natureza num
padrão uniformizado e compreensível pela mente humana. A natureza
apreendida, aprisionada, em objetos e ações com finalidades bem definidas. A
comunicação do homem com a natureza passa a ser mediada por técnicas e objetos
– jardins, reflorestamentos, etc.
Dessa maneira, nos loteamentos fechados ribeirinhos, a oferta dos elementos naturais tidos
como símbolo de uma Natureza selvagem, diferente da Natureza ajardinada das cidades, no
entanto, a Natureza que podemos verificar nesses empreendimentos também é uma Natureza
artificializada e ajardinada, como a Natureza produzida nas cidades. Nesses espaços, os elementos
oferecidos pela Natureza, como os rios e as árvores, são utilizados na composição de um ambiente
modificado. Sendo assim, os símbolos de Natureza selvagem e de Natureza ajardinada integram-se
nos loteamentos fechados ribeirinhos, a partir de uma lógica que valoriza seus aspectos estéticos
para a venda de paisagens naturais.
Para Henrique (2004, p. 98), a ação humana transmuta a Natureza, transformando-a em
social. No processo de produção da Natureza, a sociedade realiza uma mudança na qualidade
daquilo que é natural para algo humanizado.
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Primeiramente esta transmutação se deu na superfície da Natureza, na sua
aparência, acreditando que mudando a aparência mudar-se-ia a qualidade. Hoje
as possibilidades técnicas aperfeiçoam cada vez mais esta metáfora alquimista, com
o homem chegando mais perto de mudanças nas qualidades essenciais da
Natureza, através da genética. Uma materialidade racionalista preenche a
natureza em profundidade, e cada vez mais que esta substituição do natural pelo
social acontece, aliada à ampliação das esferas do conhecimento humano, mais
distante a natureza primitiva se encontra. (HENRIQUE, 2004, p. 98)
De acordo com Smith (1988, p. 37), o movimento de volta à Natureza, com a valorização dos
elementos naturais começou nas cidades. “Domesticada, higienizada e estendida sobre mesas de
café, a natureza era um pertence, da mesma forma como o gato da família”. A Natureza, depois
de dominada pelas técnicas humanas, começou a ser produzida para atender aos desejos de
contemplação dos citadinos.
Assim, a Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos é fruto de uma produção que a
transforma em uma mercadoria valorizada pelo seu valor de troca. Em seus depoimentos, os
entrevistados na pesquisa destacaram que consideram como Natureza os elementos naturais
livres
”, apresentados
como eles são na realidade
”, principalmente quando se encontram no
campo, embora considerem que uma árvore na cidade também faz parte da Natureza, mas não
de uma Natureza livre. Dessa maneira, buscam a Natureza onde consideram que ela seja mais
natural, no entanto, nessa busca, acabam levando a artificialização e a organização paisagística,
características da Natureza presente atualmente nas cidades, para as áreas rurais em que foram
implantados os loteamentos fechados ribeirinhos.
Na figura 21, apresentamos imagens retiradas do
site
de divulgação do loteamento fechado
ribeirinho Marina Bonita, à titulo de exemplificação da forma pela qual a Natureza “natural” é
oferecida nesse empreendimento, mostrando sua grandiosidade, sua beleza e as possibilidades de
prazer contidas na realização de atividades de lazer em contato com os elementos naturais nesse
“paraíso”.
Dessa maneira, nessas figuras, temos a mensagem de que temos, nesse loteamento fechado
ribeirinho, um reduto de Natureza que, após a compra, pode ser apropriado por seus proprietários,
trazendo possibilidades de práticas de esportes náuticos e de trilhas em meio à mata nativa, que
transformarão o final de semana dessas pessoas. Podemos constatar a partir dessa questão, que o
caráter de descolamento com as atividades cotidianas realizadas nas cidades é reforçado nessa
mensagem. uma contraposição do período da semana, destinado para o trabalho e as rotinas
urbanas e o do final de semana, destinado à apropriação do “paraíso”.
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Nas fotos 13 e 14, também retiradas do
site
de divulgação do empreendimento fechado
ribeirinho Marina Bonita, podemos observar uma idéia de Natureza idealizada, “natural”, capaz de
gerar a sensação de tranqüilidade e de bem-estar.
Nas fotos de 15 a 22, apresentamos algumas evidências de que a Natureza oferecida nos
loteamentos fechados ribeirinhos não é tão “natural” como expõem os empreendedores imobiliários
e como querem acreditar os proprietários desses espaços. Nesses empreendimentos, os elementos
naturais são organizados socialmente, para tornar a paisagem mais agradável à percepção
humana.
F
Figura 21 Zacarias.
Imagens de divulgação do Loteamento Marina Bonita, mostrando a
valorização da Natureza tida como “natural”
Fonte: www.marinabonita.com.br , 2007
Fonte: www.marinabonita.com.br , 2007
Fonte: www.marinabonita.com.br , 2007
Fonte: www.marinabonita.com.br , 2007
Fonte: www.marinabonita.com.br , 2007
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Fotos 15 e 16 Zacarias e Buritama.
Fotos dos loteamentos Marina Bonita e Portal da Praia,
mostrando elementos da Natureza organizados pela ação humana. 2008
Fotos 17 e 18
Penápolis e Buritama.
Fotos dos lote
amentos Recanto Belvedere e Jardim
Itaparica, mostrando elementos da Natureza organizada pela ação humana. 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Fotos 13 e 14 Zacarias.
Fotos do loteamento Marina Bonita, mostrando elementos da Natureza
tida como “natural”
. 2007
Fonte: www.marinabonita.com.br,
2007
Fonte: www.marinabonita.com.br,
2007
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A partir da observação desse conjunto de fotos, podemos constatar vários elementos naturais
sendo modificados pela ação humana. Assim, temos a introdução de espécies ornamentais em meio
às árvores nativas do local, temos os coqueiros plantados em linha reta, contrariando os
movimentos sinuosos e assimétricos da Natureza, temos plantas podadas em formas geométricas,
temos a colocação de areia na margem do rio, enfim, temos uma Natureza humanizada, em que
os elementos naturais são entremeados com elementos técnicos, culturais, com o intuito de servir
como elementos de decoração para os empreendimentos fechados ribeirinhos.
Essa Natureza presente nos loteamentos fechados ribeirinhos vai ao encontro dos dizeres de
Calvino (1994), que afirma que a Natureza é cada vez mais falsificada e comprometida com os
interesses do capital. A Natureza - capitalizada e mercantilizada - tem seus consumidores, seus
clientes, aqueles que a percorrem, compram e a consomem, literal e metaforicamente, símbolo,
imagem, ícone, poder, qualidade de vida. (HENRIQUE, 2004, p. 107)
Fotos 19 e 20
Buritama.
Fotos dos loteamentos Riviera Santa rbara e Portal da Praia,
mostrando elementos da Natureza organizados pela ação humana. 2008
Fotos 21 e 22
Buritama.
Fotos do loteamento Riviera Santa Bárbara, mostrando elementos da
Natureza organizados pela ação humana. 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
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Podemos constatar assim que, nos loteamentos fechados ribeirinhos estudados, temos a
produção de uma Natureza análoga à que Henrique destaca estar presente na idealização dos
jardins ingleses.
A natureza do jardim inglês é uma natureza idealizada a partir da eleição de
elementos do seu conjunto que irão representar o todo. Serão operadas correções
em aspectos ‘feios’ dos elementos desta natureza idealizada. Nos parques urbanos
serão construídos lagos e grutas com linhas curvas, num simulacro da natureza
primeira, que muito deixou de existir. O jardim inglês é a materialização de um
conceito de beleza estética e uma representação cultural estética e ideologicamente
definida. Como todo jardim, trata-se de um espaço modelado pela ação humana,
mas vinculado à idéia romântica da natureza intocada. (2004, p. 125)
Assim, temos a vinculação dos loteamentos fechados ribeirinhos com espaços de Natureza
intocada, de uma Natureza mais livre e mais “natural”, quando na verdade o que é oferecido são
espaços produzidos, a partir de modelos estéticos, que modelam os elementos naturais, “corrigindo”
alguns de seus aspectos, para que ela possa ser apreciada pelo olhar social.
A partir dos depoimentos obtidos nas entrevistas realizadas, percebemos que, na realidade, os
consumidores desses empreendimentos fechados ribeirinhos não desejam ter um contato com a
Natureza selvagem e descontrolada. Buscam a Natureza mediada e domada. De acordo com
Henrique (2004, p. 142), a Natureza selvagem não é a apreciada pelos citadinos. “A Natureza na
cidade, sem controle e sem manutenção, retoma a sua imagem de perigo e o seu aspecto hostil. O
jardim bem cuidado acaba por se transformar em mato”. Assim, ao buscarem a Natureza nos
loteamentos fechados ribeirinhos, as pessoas estão negando sua totalidade e consumindo apenas o
seu aspecto moldado e estetizado.
Os entrevistados fizeram referências constantes aos espaços mal cuidados, que acabam
deixando os loteamentos fechados ribeirinhos feios, gerando uma desvalorização do
empreendimento. A preocupação com a estética dentro desses espaços fechados não se refere
apenas às construções, mas também ao controle da Natureza, para que sua face mais selvagem
não apareça e “
estrague a paisagem do loteamento
”.
A partir da observação das fotos 25 e 26, podemos perceber que, em alguns espaços dos
loteamentos fechados ribeirinhos, os elementos naturais acabam incomodando os proprietários de
casas nesses empreendimentos. O mato que toma conta de alguns terrenos é visto como fator de
desvalorização dos empreendimentos, como causa da proliferação demasiada de insetos e cobras,
como elemento que quebra a estética paisagística dos loteamentos. Assim, para muitos
entrevistados, os dispositivos internos que regulamentam as multas para quem não cuidar de seu
terreno deveriam ser mais altas, para coibir essa prática indesejada.
A seguir, destacamos alguns depoimentos acerca desse incômodo causado pelo mato que
encobre alguns terrenos dentro dos loteamentos fechados ribeirinhos:
Eu não acho que porque a gente escolheu ter um pouco mais de contato com a
Natureza, nós temos que passar nossos finais de semana no meio do mato
. Acho
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que todos saem ganhando quando as pessoas cuidam de seus jardins, carpem o
mato de seus terrenos. É tudo uma questão de qualidade de vida. Todos sabem que
o mato gera insetos, que podem causar doenças para as pessoas. Além disso, não é
agradável você ficar vendo do lado do seu rancho, um lote com mato alto, dá uma
impressão de descuido, de sujeira. (...) Então eu acho que o loteamento deveria
aumentar o valor da multa pra quem não deixar seu rancho ou seu terreno em
ordem. (
55 anos, aposentada, residente na cidade de Birigui, proprietária de casa
no loteamento Portal da Praia)
Com certeza, quando a gente fala de Natureza, não estamos falando desse
matagal que algumas pessoas deixam nos seus terrenos. Tem gente que não está
nem . Mas eu acho que isso deveria ser mais controlado. Se a pessoa não tem
dinheiro para construir sua casa, que plantem pelo menos grama no terreno.
Porque grama é melhor que o mato
. É tão mais bonito ver tudo certinho. (36 anos,
comerciante, residente na cidade de Araçatuba, proprietário de casa no loteamento
Riviera Santa Bárbara)
Nossa, aqui a Natureza é mais bonita. É tudo harmonioso, tudo arrumadinho. A
grama está sempre podada, a areia essempre limpa, os jardins das casas sempre
estão em ordem. Cada um cuida da sua casa para que o condomínio todo possa
ficar sempre bonito. Não adianta nada você comprar uma casa para ficar mais
perto da Natureza, se as pessoas não cuidarem, deixarem o mato tomar conta
.
Aqui não, é tudo muito organizado para que o condomínio esteja sempre
agradável, os jardins sempre cuidados.
(43 anos, dentista, residente na cidade de
São José do Rio Preto, proprietária de casa no condomínio Marina Bonita em
Zacarias)
Outro aspecto pelo qual podemos constatar o desejo de nossos entrevistados por uma Natureza
artificializada e controlada, é, como podemos observar na foto 25, a proibição de que os animais de
estimação circulem soltos e sozinhos pelos loteamentos fechados ribeirinhos. Numa Natureza mais
“natural”, supõe-se que não haveria impedimentos à presença dos animais, que fazem parte da
própria Natureza.
Fotos 23 e 24 Buritama.
Fotos do loteamento Portal da Praia, mostrando a Natureza não
desejada. 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
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Em entrevista realizada no loteamento fechado ribeirinho Riviera Santa Bárbara, tivemos um
depoimento que evidencia a insatisfação do entrevistado com determinada parte do loteamento,
mostrada na foto 26, que ele considerava que deveria ser “arrumada”. O entrevistado não
concorda e não consegue aceitar que as pessoas responsáveis pela organização do loteamento não
tenham feito nenhuma ação para melhorar o local, como podemos observar no depoimento a
seguir:
Aqui no loteamento, é evidente que temos um contato mais próximo com a
Natureza do que na cidade. Acontece que a Natureza tem seu lado bom e seu lado
ruim. Pode parecer meio incorreto, falando assim, mais eu acho que a gente paga
aqui, para ter o melhor da Natureza. Isso porque a gente pode melhorar, arrumar
a Natureza. Por exemplo, uma coisa que eu ainda não entendi aqui no
loteamento, é porque eles ainda não arrumaram aquela parte da margem do rio,
perto do girau. Ali deveria ser feita uma praia com areia, para as pessoas poderem
ficar tomando sol, sentarem na beira do rio. Daquele jeito que está fica meio ruim,
por causa da grama, não dá pra você colocar uma cadeira lá e ficar olhando o rio,
curtindo a paisagem, porque te “piniqueira” nos pés. Acho que aquilo ali tinha
que ser melhorado.
(61 anos, empresário, residente na cidade de Monte Aprazível,
proprietário de casa no loteamento Riviera Santa Bárbara)
Outro fato interessante, que ilustra essa visão de que a Natureza precisa ser melhorada e
adequada para que se possa efetivar a apropriação humana, diz respeito ao incômodo gerado
pela falta de asfaltamento de algumas ruas dos loteamentos, como podemos observar nas fotos 27
e 28.
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Fotos 25 e 26 Zacarias e Buritama.
Fotos do loteamento Marina Bonita e Riviera Santa Bárbara,
mostrando a Natureza não desejada. 2008
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A seguir, destacamos dois depoimentos que revelam a insatisfação de alguns entrevistados com
as ruas sem asfaltamento, devido à poeira e ao barro, presentes nelas.
Olha, isso
[a falta de asfaltamento]
incomoda muito a gente. É um terror. Quando
chove então, suja tudo o carro, isso aqui fica um barro só. Quando não chove
também incomoda porque a poeira levanta, a gente tem que fechar as janelas,
ficar limpando a varanda o tempo todo, então não dá. Eu acho que tem que
asfaltar todas as ruas do condomínio sim, a gente tem que ter mais comodidade,
não pra continuar assim não.
(43 anos, dentista, residente na cidade de São José
do Rio Preto, proprietária de casa no condomínio Marina Bonita em Zacarias)
A questão do asfaltamento das ruas no loteamento é uma coisa que gera conflito
nas reuniões da associação. Porque todo mundo quer que o loteamento asfalte
primeiro a rua onde fica a sua casa. Isso é normal, porque ninguém gosta muito de
andar pelas ruas de terra, é mais desconfortável, às vezes pode chover, formar
lama. Então ninguém gosta. A gente não pode cimentar o nosso lote todo, por
causa que tem um certo limite para garantir a infiltração da água. Mas pelo menos
as ruas eu acho que deveriam ser todas asfaltadas.
(49 anos, empresária, residente
na cidade de Andradina, proprietária de casa no loteamento Jardim Itaparica)
Que tipo de contato é esse com a Natureza que os proprietário de casas nos loteamentos
fechados ribeirinhos desejam, que não resiste nem a uma rua sem asfaltamento? Como as pessoas
podem querer estar mais ligadas com a Natureza se não suportam a interação com a terra que
entra em suas casas? Isso é possível porque o conteúdo dessa Natureza vendida nos loteamentos
fechados ribeirinhos não é o de uma Natureza “natural”, espontânea. Procura-se uma Natureza
comportada, controlada artificialmente, que possibilite, ao mesmo tempo, as sensações boas que a
Natureza pode proporcionar – tranqüilidade, bem-estar – e as comodidades que são características
da vida urbana – asfaltamento, iluminação, água encanada.
Dessa forma, esses depoimentos ratificam a idéia de que a Natureza que as pessoas estão
buscando nos loteamentos fechados ribeirinhos é uma Natureza” organizada paisagisticamente.
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Fotos 27 e 28 Buritama. Fotos do loteamento Jardim Itaparica, mostran
do a Natureza não
desejada. 2008
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Deseja-se uma Natureza idealizada, harmônica e, para isso, seus elementos devem ser controlados.
A grama deve estar sempre podada. Não é admissível que “
o mato tome conta
”. Para a “
Natureza
ser mais bonita
”, tudo precisa estar arrumadinho, os jardins bens cuidados. Fica evidente que o que
se quer não é um relacionamento mais direto com a Natureza e, sim, desfrutar os mbolos que o
contato com a Natureza carrega: harmonia, tranqüilidade, bem-estar, qualidade de vida.
Outro aspecto que pode ser observado, na apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos,
que reflete o conteúdo da Natureza buscada, a partir do consumo desses empreendimentos, é a
falta de uma consciência de preservação ambiental. As pessoas querem ficar em contato com a
Natureza, mas apenas para aproveitar as qualidades nicas que ela proporciona. Não um
interesse de cuidar e proteger a Natureza. Assim, os proprietários de casas nesses empreendimentos
não respeitam algumas regras básicas para a preservação ambiental. Podemos citar duas, que
observamos serem burladas nos loteamentos fechados ribeirinhos estudados. Uma delas refere-se ao
não cumprimento da norma de limite mínimo para as construções, que devem ser feitas a partir de
30 metros da margem do rio e a outra se relaciona com o descumprimento dos padrões de
construção das fossas sépticas, que devem apresentar um tipo de revestimento adequado para
evitar a contaminação do lençol freático. Pelos depoimentos que obtivemos, a fiscalização sobre as
questões de preservação ambiental nesses espaços é praticamente nula, o que incentiva os abusos.
Nas entrevistas que realizamos, percebemos uma grande aceitação por parte dos proprietários
de casas nesses estabelecimentos, da falta de fiscalização desses loteamentos por parte das agências
ambientais responsáveis. Consideram que não devem seguir leis externas porque estão dentro de
uma propriedade privada. Dessa forma, a apropriação desses espaços, na percepção dos
entrevistados, não deve se sujeitar a nenhum tipo de regra ou limitação imposta por qualquer
órgão ambiental, porque a Natureza de que desfrutam, pertence-lhes. Ao serem os donos da
Natureza, os entrevistados sentem-se no direito de fazer o que bem entenderem com ela.
A fala de um entrevistado ilustra bem essa questão:
Olha, aqui a gente não segue muitas coisas que deveriam ser respeitadas. A gente
não segue à risca porque não tem fiscalização. E eu acho que não deve ter mesmo.
A gente comprou isso aqui, essa terra, esse rio é nosso. Então, o que adiante
comprar se a gente não pode fazer o uso que a gente quiser? É lógico que a gente
quer que o loteamento continue bonito, continue um lugar saudável, mas a gente
quer ter o direito de fazer isso do nosso jeito. É por isso que a gente acaba não
fazendo algumas coisas. Mas tem o problema de que algumas pessoas extrapolam.
Esse pedaço de Natureza aqui é nosso, mas a gente tem que ter um mínimo de
controle também, porque se não, acaba desvalorizando até o condomínio.
(61 anos,
empresário, residente na cidade de Monte Aprazível, proprietário de casa no
condomínio Riviera Santa Bárbara)
Esse nosso condomínio até que tem algumas preocupações com a preservação da
natureza sim. Tem a questão do lixo que você não pode jogar nas áreas públicas,
não pode cortar as árvores, não pode ficar jogando sujeira no rio, essas coisas. Mas
tem gente que não respeita. Coloca fogo no mato de seu lote e não percebe que
está diminuindo a qualidade do ar do loteamento. Sobre a questão da fiscalização,
eu nunca vi nada acontecer, nem quando eu estava construindo, nem depois. Tem
algumas construções irregulares aqui, que não respeitam o limite de 30 metros do
rio. As pessoas não constroem as casas, mas fazem quiosques, fazem uma cozinha e
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um banheiro, tudo pra ficar mais perto do rio. Mas é irregular. Se a fiscalização
passar, pode querer fazer as pessoas derrubarem as construções. Mas acho que não
vem fiscalização aqui porque é uma propriedade privada, fica difícil de eles
falarem alguma coisa.
(52 anos, residente na cidade de Birigui, proprietário de casa
no loteamento Recanto Belvedere)
Aqui funciona assim: as pessoas acham, às vezes, que têm que cuidar da parte
delas. Da casa, do quintal e do jardim do seu próprio rancho. Esquecem de manter
limpas as áreas comuns, de não jogar lixo nas ruas, porque se chove, vai tudo pro
rio. Se a qualidade da Natureza for prejudicada, acaba desvalorizando o
loteamento como um todo. É muito comum a gente ver as pessoas arrancando
flores, principalmente as crianças, e os pais não fazerem nada. Então, eu acho que
precisava ter mais cuidado com a Natureza sim, porque se não, nosso loteamento
não vai ter mais razão de ser. Porque a gente comprou aqui pra ter mais Natureza.
(35 anos, representante comercial, residente na cidade de Birigui, proprietário de
casa no loteamento Jardim Itaparica)
Percebemos, nesses depoimentos, que alguns proprietários de casas nos loteamentos fechados
ribeirinhos, consideram-se como donos da Natureza presente no interior desses empreendimentos e,
assim, passam a ter a idéia de que têm o direito de fazer o uso que quiserem desses espaços, sem ter
que respeitar nenhuma norma ambiental. Há a percepção de que algumas pessoas extrapolam, ao
desrespeitarem alguns preceitos básicos para a preservação ambiental, mas na maior parte das
entrevistas, o incômodo causado pelas ações dessas pessoas o é reflexo de uma preocupação com
a preservação ambiental e, sim, com a possível desvalorização do loteamento.
Como pudemos observar, a produção dos loteamentos fechados ribeirinhos es intimamente
ligada à idealização e à venda da Natureza. A Natureza produzida nesse contexto tem seus
elementos organizados sob formas que dão a idéia de que são naturais mas, na realidade, apenas
simulacros.
De acordo com Henrique (2004, p. 189), na cidade sitiada pelo consumo, o lugar de encontro, o
lugar da troca de experiências é reduzido ao mercado. Na cidade comandada pelos preceitos
capitalistas, a Natureza pode ser aproximada a alguns segmentos sociais pela venda. “Os signos da
natureza e da cidade se convertem em signos de satisfação e alegria (individual), e as necessidades
individuais são motivadas pelo consumo. A água, o ar puro ou menos poluído –, as árvores, os
animais, os parques tornam-se objetos de consumo e o que ainda se torna mais grave: devido a
sua raridade, em alguns lugares, passam a ser considerados artigos de luxo”. Assim, conforme Santos
(2000, p. 48) quem não pode pagar pelo estádio, pela piscina, pela montanha e o ar puro, pela
água, fica excluído desses bens, que deveriam ser públicos, porque essenciais”
Portanto a Natureza passa a ser mercantilizada, vendida por seu valor de troca e
conseqüentemente, vira artigo de
status,
visto que não pode ser apropriada por todos os segmentos
sociais. Nos loteamentos fechados ribeirinhos temos um processo de enclausuramento da Natureza,
que fica guardada pelos muros dos empreendimentos. Para desfrutar desses pedaços do “paraíso”, é
preciso ter uma condição econômica favorável, que permita a compra dessa Natureza cercada e
loteada.
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De acordo com Lefebvre (1969, p. 107-108), a mercantilização dos elementos naturais faz com
que o direito à Natureza ao campo e à Natureza pura entre para a prática social a favor dos
lazeres. A Natureza entra na esfera do valor de troca e da mercadoria, e assim é comprada e
vendida. “Os lazeres comercializados, industrializados, organizados institucionalmente destroem essa
‘naturalidade’ da qual as pessoas se ocupam a fim de traficá-la e trafegar por ela. A ‘natureza’, ou
aquilo que é tido como tal, aquilo que dela sobrevive, torna-se o gueto dos lazeres, o lugar
separado do gozo, da aposentadoria da ‘criatividade’”.
Segundo Smith (1988, p. 78), com o aparecimento das classes sociais, o acesso à Natureza não é
distribuído de forma equânime qualitativa e quantitativamente entre essas classes. A classe
dominante, responsável por controlar, direta ou indiretamente, os meios de produção sociais,
controla o excedente apropriado da Natureza pelo trabalho humano de terceiros, enquanto a
classe trabalhadora opera os meios de produção e não tem acesso a esses bens.
No contexto da produção da Natureza para a apropriação de seus valores simbólicos e estéticos,
como no caso dos loteamentos fechados ribeirinhos, o acesso também não é dado a todos os
segmentos sociais. Cada vez mais, a Natureza vem sendo fechada em clubes, resorts, loteamentos
fechados e outros espaços de contemplação, nos quais os segmentos menos privilegiados não têm
acesso.
Dessa forma, a apropriação baseada na apreciação estética da Natureza, gera uma
valorização dos elementos naturais como fator de agregação de valor a empreendimentos
imobiliários. Segundo Henrique (2006, p. 129), cria-se uma diferenciação espacial da Natureza na
cidade, de acordo com a estratificação social. Enquanto nos centros urbanos e nos bairros nobres o
que se via era uma natureza trabalhada e bem cuidada tanto no jardim inglês quanto no
francês, um lugar para passeio e exibição, um lugar de prestígio –, nas periferias a natureza bruta e
ainda ‘não controlada’ fazia-se presente, trazendo enchentes, inundações, doenças e frio”.
Sendo assim, o acesso à Natureza não é reservado a todos e sim, somente, àqueles que puderem
pagar. Portanto, a contemplação dos elementos naturais é baseada atualmente numa relação de
compra e venda. De acordo com Henrique (2004, p. 5), “hoje, a natureza, idéia e objeto,
capitalizada e mercantilizada, tem seus consumidores e clientes, pessoas que por ela transitam,
passam, viajam, comprando-a e consumindo-a, literal ou metaforicamente falando, como símbolo,
imagem, ícone, poder ou status”. A mercantilização da Natureza faz com que ela se torne um
elemento de diferenciação social. Seu consumo, por parte dos segmentos de maior poder aquisitivo,
faz com que a Natureza seja vista como fator de
status
, visto que não é possível que seja consumida
por todos.
Nesse sentido, Henrique (2004, p. 165) aponta que a atual produção da Natureza, nas cidades,
reforça uma mudança de perspectiva na relação do Homem com a Natureza, que passa de uma
ação coletiva, para um consumo individualista e segregatório.
Os empreendimentos aqui mostrados (...) reforçam a questão da mudança de
perspectiva na relação do homem com a natureza, passando, (...) de uma ação na
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natureza visando os aspectos de vida coletivos, a sobrevivência do grupo, para um
padrão individualista, segregatório e egoísta de consumo da natureza,
enclausurada nestes condomínios e de usufruto apenas de seus moradores, ou
melhor, consumidores. Assim, a natureza na cidade não é um bem coletivo, não é
um objeto socialmente compartilhado, é uma mercadoria exclusiva que ‘o dinheiro’
pode comprar.
Assim, a Natureza é transformada em um elemento que evidencia a segmentação das práticas
sociais, visto que vem se desenvolvendo uma elitização do consumo material e simbólico dos
elementos naturais. A partir da privatização da Natureza, ela passa a ser uma mercadoria rara,
disponível apenas para alguns segmentos sociais. No entanto, como pudemos perceber, amesmo
nesses espaços onde se privilegia a presença dos elementos naturais, a Natureza apresentada é uma
simulação, organizada paisagisticamente, que se distancia da Natureza “natural”.
Como afirma Rodrigues (2001, p. 213), mesmo com todas as utopias do urbanismo moderno, a
cidade e a Natureza passam a ser medidas e mediadas pelo valor de troca e a volta da Natureza
na cidade é baseada em uma forma de apropriação da Natureza como propriedade privada.
3.2.2. A simulação da Natureza: elementos naturais na produção e na apropriação dos
loteamentos fechados ribeirinhos
De acordo com Santos (2000, p. 51), o quadro da vida - a Natureza e o entorno humano - está
carregado de significações sobrepostas, cheio de artifícios, que constituem uma verdadeira tela de
enganos. “A natureza artificializada, instrumentalizada ao extremo, recusa-se a se deixar entender
diretamente. Os homens não vêem o que enxergam”.
Assim, nossas práticas cotidianas estão sempre mediadas por símbolos, cujos significados não são
sempre diretos e únicos. Tudo que nos cerca passa-nos uma mensagem, intencional ou não, que
pode ser lida de diferentes formas. Os objetos e ações não podem ser reduzidos meramente à sua
aparência e funcionalidade, visto que possuem significados que nem sempre podem ser
decodificados à primeira vista. Nesse sentido, consideramos que a produção e a apropriação dos
loteamentos fechados ribeirinhos devem ser entendidas, além de seus conteúdos materiais,
considerando-se seus aspectos simbólicos.
Considerando que o consumo dos loteamentos fechados ribeirinhos é permeado por aspectos
simbólicos, devemos considerar que os símbolos são imagens criadas no intuito de passar uma
mensagem e, assim, realizar um processo de comunicação. Para Debord (2002, p. 125), no âmbito
da sociedade contemporânea, cujas ações são baseadas no consumo espetacular, as imagens
servem para comunicar o incomunicável. O autor destaca que, na sociedade do espetáculo, “é
evidente que a imagem será a sustentação de tudo, pois dentro de uma imagem é possível justapor
sem contradição qualquer coisa”. (DEBORD, 2002, p. 188)
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Assim, nos loteamentos fechados ribeirinhos, o estabelecimento de um consumo que
apresenta, explicita ou implicitamente, uma mensagem. Para Hall (2006, p. 365) o processo
comunicativo é uma estrutura produzida e sustentada por meio da articulação de momentos
distintos, mas interligados produção, circulação, distribuição, consumo, reprodução. Assim, a
comunicação dá-se a partir de uma “complexa estrutura em dominância”, sustentada através da
articulação de práticas conectadas, em que cada qual, no entanto, mantém sua distinção e tem sua
modalidade específica, suas próprias formas e condições de existência.
Analisando a comunicação de massa, Hall (2006, p. 366) destaca que os aparatos, relações e
práticas de produção, aparecem sob a forma de veículos simbólicos constituídos dentro das regras
da linguagem, sendo na forma discursiva que a circulação do “produto” é realizada.
O processo, desta maneira, requer, do lado da produção, seus instrumentos
materiais – seus “meios” bem como seus próprios conjuntos de relações sociais (de
produção) – a organização e combinação de práticas dentro dos aparatos da
comunicação. Mas é sob a forma discursiva que a circulação do produto se realiza,
bem como sua distribuição para diferentes audiências. Uma vez concluído, o
discurso deve então ser traduzido transformado de novo em práticas sociais,
para que o circuito ao mesmo tempo se complete e produza efeitos. Se nenhum
“sentido” é apreendido, não pode haver “consumo”. Se o sentido não é articulado
em prática, ele não tem efeito. (HALL, 2006, p. 366)
Assim, a comunicação é feita objetivando a apreensão de um sentido. Então, os símbolos
utilizados para a constituição da mensagem devem ser traduzidos, decodificados e empreendidos
nas práticas sociais. Assim, em todas as formas de consumo mediadas pela troca comunicativa,
como o caso dos loteamentos fechados ribeirinhos, para que se efetive o sentido da comunicação
baseada nos símbolos, esses têm que ser interpretados, têm que ter seus significados decodificados e
articulados depois nas práticas sociais.
Antes que essa mensagem possa ter um “efeito” (qualquer que seja sua definição),
satisfaça uma “necessidadeou tenha um “uso”, deve primeiro ser apropriada como
um discurso significativo e ser significativamente decodificada. É esse conjunto de
significados decodificados que “tem um efeito”, influencia, entretém, instrui ou
persuade, com conseqüências perceptivas, cognitivas, emocionais, ideológicas ou
comportamentais muito complexas. Em um momento “determinado”, a estrutura
emprega um código e produz uma mensagem”; em outro momento determinado,
a “mensagem” desemboca na estrutura das práticas sociais pela via de sua
decodificação. (HALL, 2006, p. 368)
Dessa maneira, percebemos que os mbolos só começam a agir e a ter influência nas práticas
sociais, a partir do momento em que se tornam significantes para as pessoas que participam do
processo comunicativo. Assim, as relações estabelecidas nos loteamentos fechados ribeirinhos entre os
aspectos materiais e simbólicos fazem parte do processo de codificação/decodificação de que trata
Hall (2006).
O estabelecimento dos significados dos símbolos, no âmbito do processo comunicativo, não é
sempre unilateral. Conforme Hall (2006, p. 369), não há uma identidade imediata entre as
estruturas de sentido presentes na codificação e as estruturas de sentido presentes na decodificação.
Sendo assim, os códigos de codificação e decodificação podem não ser perfeitamente simétricos.
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Os graus de simetria ou seja, os graus de “compreensão” e “má-compreensãona
troca comunicativa dependem dos graus de simetria/assimetria (relações de
equivalência) estabelecidos entre as posições das “personificações” – codificador-
produtor e decodificador-receptor. Mas isso, por sua vez, depende dos graus de
identidade/não identidade entre os códigos que perfeitamente ou imperfeitamente
transmitem, interrompem ou sistematicamente distorcem o que está sendo
transmitido. (HALL, 2006, p. 369)
Sendo assim, não há uma garantia de que o sentido pretendido pelo codificador/produtor será o
mesmo sentido apreendido pelo receptor/decodificador. Deste modo, as interpretações que são
feitas dos símbolos não são engessadas, no sentido de permitirem apenas uma decodificação. Hall
(2006, p. 372) destaca que uma relação entre os sentidos literais e conotativos dos símbolos.
Muito poucas vezes os signos organizados em um discurso significarão somente seus sentidos literais,
isto é, um sentido quase universalmente consensual, isso porque os símbolos são polissêmicos. O autor
(2006, p. 373) destaca que, na publicidade, “todo signo visual conota uma qualidade, situação,
valor ou inferência que está presente como uma implicação ou sentido implícito, dependendo do
posicionamento conotativo”.
No exemplo de Barthes, o suéter sempre significa “uma vestimenta quente”
(denotação) e, portanto, a atividade/valor de “manter-se aquecido”. Mas é
também possível, em níveis mais conotativos, significar a “chegada do inverno” ou
um “dia fio”. E, nos subcódigos especializados da moda, o suéter pode conotar
também um estilo em voga na
haute couture
ou, alternativamente, um estilo
informal de se vestir. Mas, colocado contra o fundo visual correto e posicionado pelo
subcódigo romântico, pode conotar “longa caminhada de outono no bosque”.
Códigos dessa odem claramente estabelecem relações para o signo com o universo
mais amplo das ideologias em uma sociedade. Esses códigos são os meios pelos quais
o poder e a ideologia são levados a significar em discursos específicos. (Hall, 2006, p.
373)
Assim, existem redes de significações que podem ser derivadas de cada símbolo. Além disso, cada
elemento simbólico deve ser entendido sempre no contexto das relações que estabelece consigo e
com os outros símbolos. Dessa forma, não é possível realizar uma leitura única das determinações
simbólicas que perpassam a produção dos loteamentos fechados ribeirinhos. O que estamos
apresentando, nessa dissertação, é uma possibilidade de interpretação dos significados simbólicos
desses espaços, baseada nas apreensões dos discursos dos entrevistados, nas propagandas
publicitárias e nas observações realizadas em campo.
Longe de ser uma interpretação definitiva e única, nossa análise sobre as relações simbólicas e
materiais nos loteamentos fechados ribeirinhos é uma leitura, uma decodificação, feita à luz de
nossos referenciais teóricos e metodológicos e de nossos objetivos. Outro pesquisador, imbuído de
outros objetivos e baseado em outros referenciais, certamente realizaria uma interpretação
diferenciada da que apresentamos. É válido ressaltar também, que nossa leitura, enquanto
cientistas difere da leitura realizada pelos consumidores e idealizadores desses espaços – leituras que
tentamos apreender mas que, de todo modo, são diferentes porque o estabelecimento dos
significados se dá em outras bases.
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Dessa forma, consideramos que a Natureza, como elemento valorizado e evidenciado nos
loteamentos fechados ribeirinhos está carregada de valores simbólicos polissêmicos, que podem ser
interpretados de diferentes maneiras, dependendo do interlocutor. Os símbolos associados à
Natureza não estão presentes, apenas, nas propagandas publicitárias que, por meio de suas
imagens e textos, passam a idéia dos incorporadores sobre a Natureza que se pretende vender. A
dimensão simbólica está presente também na concepção que os consumidores desses espaços
possuem e na apropriação que realizam. Os símbolos perpassam seus discursos, suas ões e suas
formas de entender e estabelecer sua relação com a Natureza, tanto dentro dos muros dos
loteamentos fechados, quanto fora deles, em seu cotidiano urbano.
A Natureza, nos loteamentos fechados ribeirinhos, pode ser considerada como resultado de um
processo produtivo, que atua tanto no sentido material, quanto simbólico. Assim, ao lado da
produção da materialidade da Segunda Natureza, com seus elementos sendo organizados e
controlados paisagisticamente, temos uma produção simbólica no sentido da idealização dessa
Natureza, como se ela tivesse efetivamente um conteúdo natural, fosse Primeira Natureza,
revestido da capacidade de gerar sensações como bem-estar, tranqüilidade, paz e outras
percepções que fazem com que esses espaços sejam associados à qualidade de vida. Essas sensações
geradas a partir do símbolo de Natureza produzido nos loteamentos fechados ribeirinhos são, elas
mesmas, símbolos, que podem ter significações diferentes para cada pessoa que os decodifique.
Assim, a produção e o consumo da Natureza, nos loteamentos fechados ribeirinhos estudados,
são tanto materiais, quanto simbólicos. Sobre o consumo simbólico, Baudrillard (1995, p. 60) destaca
que vivemos numa fase caracterizada pelo fim da produção como princípio organizador da
sociedade, substituída pelas preocupações com as motivações e com a promoção do consumo. A
alienação social, na atualidade, é resultado da naturalização do consumo, não o consumo de
objetos, mas sim de signos que obedecem a uma lógica própria, não necessariamente funcional. A
mercadoria apresenta-se envolta por características geradoras de conforto e bem-estar, passando a
dominar o homem, retirando-lhe as questões existenciais, passando a transformá-las em relações
associativas e opressivas de signos-objetos.
Segundo Feartherstone (1995, p.137), no âmbito da cultura do consumo, a aquisição de bens e
mercadorias, atos supostamente materiais, é cada vez mais mediada por imagens culturais difusas
(mediante a publicidade, exposição e promoção), nas quais o consumo de signos ou o aspecto
simbólico dos bens torna-se uma fonte importante da satisfação deles derivada.
Para Baudrillard (1995, p. 47), o sujeito, alvo da publicidade, acaba sendo reduzido à condição
primordial de consumidor. Como o que se quer vender não é apenas o produto, mas sim a imagem
ou maneira de ser vinculada a essa compra, as estratégias de propagá-lo extrapolam o plano
puramente material. O discurso que se cria em torno da necessidade da compra de determinadas
mercadorias atua no desejo de obtenção da felicidade. Dessa forma, para o autor, a felicidade, ou
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a venda da felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo, revelando-se como
equivalente autêntico da salvação.
Se o consumo teve seu conteúdo alterado, passando a ser focalizado como consumo de símbolos
e imagens, a apropriação que se faz dos elementos consumidos também foi modificada.
Considerando que a venda dos loteamentos fechados ribeirinhos é perpassada pela venda de um
emaranhado simbólico, como podemos interpretar as formas de apropriação, material e subjetiva,
que são realizadas nesses espaços?
Avaliamos que a proposição de Baudrillard (1991) da cultura simulacional ajuda-nos a avançar
na análise da apropriação desses empreendimentos. Para o autor, simulacros são representações
dos objetos e dos acontecimentos. Na sociedade contemporânea, os simulacros passam a dominar a
vida das pessoas, na medida em que não mais, apenas, representam a realidade, eles são a
realidade, ou melhor, a hiper-realidade.
O triunfo da cultura da representação resulta num mundo simulacional, no qual a proliferação
dos signos e imagens tende a abolir a distinção entre o real e o imaginado. Isso significa dizer que,
por toda parte, vivemos numa “alucinação estética da realidade”. (BAUDRILLARD, 1995, p. 148)
Dessa forma, vivemos em uma realidade além da realidade, que apreendida por todos no
cotidiano, transfoma tudo, do mais próximo ao mais distante, em uma noção de verdade vivida. Os
simulacros são representados por signos ou por imagens que apresentam sentidos próprios, gerando
realidades autônomas, além da realidade de fato. Assim, o consumo dos símbolos proporciona uma
apropriação simulada, que não é falsa, nem irreal – é uma representação vivida como verdade.
Baudrillard (1991, p. 13) organizou a história da imagem em quatro estágios sucessivos: a) signo
como reflexo da realidade profunda, b) signo como deformador e mascarador da realidade
profunda, c) signo como dissimulador da ausência de uma realidade profunda e, d) signo sem
nenhuma relação com a realidade, sendo ele seu próprio simulacro, pois tem significado autônomo.
Sendo assim, na socieadde contemporânea, conceber simulacros é imaginar a substituição do real
pelos signos do real, isto é, o real não é mais referência para a produção do sentido, mas os sentidos
já estão dados e se constituem no padrão ao qual os acontecimentos deverão se enquadrar.
A simulação contemporânea pode ser entendida, portanto, como um sistema de produção
obsessiva do real na medida em que se estabelece a precessão dos simulacros, emancipando-se o
signo de uma lógica equivalente de significados ainda capaz de enredar dois sujeitos num ciclo de
reciprocidades para que, enquanto significante, possa ele reenviar “a um universo desencantado do
significado, denominador comum do mundo real, com relação ao qual ninguém mais tem
compromisso.” (BAUDRILLARD, 1996, p. 78)
Dessa maneira, Baudrillard (1996, p. 112) aponta que, operando a fusão entre real e imaginário,
o simulacro absorve e substitui o primeiro, de forma a fazer coincidir em si mesmo o real e sua
representação. “A irrealidade não é mais a do sonho ou da fantasia, de um além ou de um aquém,
é a de uma alucinante semelhança do real consigo mesmo”. E eliminando-se qualquer referente, a
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duplicação do original corresponde à sua morte. Na sociedade contemporânea, um
descolamento entre os conteúdos simbólicos e o real. A simulação é uma recriação do real, que não
precisa necessariamente estar atrelada a nenhuma condição real. No momento em que a
simulação se generaliza e se aperfeiçoa, o simulacro passa a deter o mesmo status ontológico do
real. Ou seja, o simulacro pode ser tão verdadeiro ou tão falso como aquilo que inicialmente
pretendia simular.
Outra concepção que nos ajuda a analisar a apropriação dos loteametnos ribeirinhos no
contexto da cultura do consumo simbólico é a de Debord. Segundo ele (2002, p. 13/14), toda a vida
das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção, apresenta-se como uma
imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma
representação. O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
mediadas por imagens. Considerado em sua totalidade, o espetáculo é, ao mesmo tempo, o
resultado e o projeto do mundo de produção existente.
Para o autor (2002, p. 15), o espetáculo que inverte o real é, efetivamente, um produto. Ao
mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e
retorna em si mesma a ordem espetacular à qual adere de forma positiva. Assim, espetáculo e
atividade social efetiva, se fundamentam em sua passagem para o oposto: a realidade surge no
espetáculo e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade
existente. Dessa forma, no mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso.
O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. O
espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana isto é, social – como
simples aparência. O espetáculo se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e
inacessível. Não diz nada além de “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. No espetáculo,
imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenrolar é tudo. O espetáculo não deseja
chegar a nada que não seja ele mesmo. O espetáculo molda uma multidão crescente de imagens-
objetos. (DEBORD, 2002, p. 16/17)
Debord (2002, p. 18) considera que a atual situação de nossa sociedade como sendo uma
sociedade do espetáculo resulta de um processo histórico de dominação da economia na vida
cotidiana. Para ele, a primeira fase da dominação da economia sobre a vida social acarretou, no
modo de definir toda realização humana, uma evidente degradação do ser para o ter. A fase
atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia,
leva a um deslizamento generalizado do ter para o parecer, do qual todo “ter” efetivo deve extrair
seu prestígio imediato e sua função última.
Dessa maneira, o princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas
supra-sensíveis embora sensíveis” realiza-se completamente no espetáculo, no qual o mundo
sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele e que, ao mesmo tempo,
fez-se reconhecer como o sensível por excelência. O consumidor real torna-se consumidor de ilusões.
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A mercadoria é essa ilusão efetivamente real e o espetáculo é sua manifestação geral. (DEBORD,
2002, p. 28/33)
Sendo assim, é nessas bases que consideramos o consumo da Natureza nos loteamentos fechados
ribeirinhos. A apropriação dos elementos naturais é feita a partir da simulação, na qual a
apropriação dos elementos simbólicos que representam o real faz com que seja criada uma nova
realidade, hiper-real. A mensagem que simula o real, a partir de seus símbolos, passa a ser a própria
realidade, quando esses símbolos são consumidos.
Dessa maneira, a partir da encenação da Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos, temos
a constituição de uma nova Natureza, que o é falsa, visto que seu consumo simulado faz com
que essa Natureza organizada paisagisticamente exista efetivamente.
Analisando as concepções de Natureza na cidade contemporânea, Henrique (2004, p. 105)
destaca que, atualmente, passamos por um período marcado pela “disneyficação” da Natureza.
Apoiado nos escritos de Harvey (2000), Henrique destaca que um reencantamento da
Natureza no âmbito do consumo, que passa pela mercantilização e “disneyficação” das experiências
de Natureza. Para o autor, baseado em Harvey, esse processo de “disneyficação” consiste na
produção de uma Natureza, sob os seguintes aspectos: a) criação de espaços de felicidade,
harmoniosos e sem conflitos, que possibilitem a fuga do mundo real, b) espaços feitos para entreter,
c) espaços que carreguem uma história inventada, d) um cultivo de uma nostalgia de um passado
mítico, e) uma perpetuação do fetiche pela cultura da mercadoria, f) um lugar limpo, sanitarizado
e mitologizado, esteticamente perfeito.
Podemos perceber, assim, que essa “disneyficação” da Natureza consiste na criação de um
simulacro de Natureza, que a partir de sua representação, passa a ser real, visto que passa a fazer
parte do espetáculo das práticas cotidianas. Nos loteamentos fechados ribeirinhos estudados, a
Natureza apresentada aos consumidores desses espaços é produzida seguindo esses preceitos. São
espaços a que são associadas sensações de bem-estar, tranqüilidade, qualidade de vida e felicidade,
que possibilitam uma fuga da vida real, nesse caso, o cotidiano urbano.
São espaços feitos para que as pessoas desfrutem de seus momentos de lazer e, portanto, são
espaços para o entretenimento, para a diversão. A história contada a partir desses
empreendimentos é a história da volta de um contato mais próximo e harmonioso com a Natureza,
que inclui a nostalgia e a romantização dos períodos em que o Homem relaciona-se mais
diretamente com os elementos naturais. Os loteamentos fechados ribeirinhos são mercadorias que se
justificam pelo fetichismo realizado em torno de seus símbolos e são também, espaços organizados,
sanitarizados, controlados, produzidos com um conceito estético definido.
Assim, são espaços onde uma mensagem simbólica de Natureza é passada, sendo que,
concomitantemente, a imaginação transforma-se em realidade, pelas práticas que são ali
estabelecidas. As pessoas vivenciam os espaços dos loteamentos fechados ribeirinhos como se eles
fossem refúgios de uma Natureza natural. Assim, criam um novo conteúdo para a naturalidade.
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Esse novo conteúdo, produzido socialmente, é resultante de uma imitação mediada por símbolos
que não tem nenhuma necessidade de se parecer com a realidade. A própria simulação cria uma
nova realidade, uma nova concepção de Natureza “natural”.
A produção dos loteamentos fechados ribeirinhos revela assim, uma tendência atual que é
caracterizada pela criação da “necessidade” de retorno à Natureza. Esse contato é possível por
meio do pagamento. Como a Natureza não é um elemento que esteja de forma efetiva, na cidade,
quem quiser desfrutá-la deverá recorrer aos redutos criados pelos empreendedores imobiliários
para essa finalidade. O acesso à Natureza, dessa forma, passa a ser mediado pelo poder de compra.
Cria-se assim, uma nova dinâmica, em razão da qual, os segmentos menos privilegiados são
deixados de fora. Como eles conseguirão atender suas necessidades de Natureza se não possuem um
poder aquisitivo que os permita adquirir um espaço “paradisíaco” como os loteamentos fechados
ribeirinhos?
Dessa forma, a Natureza passa a ser mais um fator a compor o quadro de exclusão ou inserção
precária, dos segmentos mais pobres perante o conjunto de práticas socioespaciais do restante da
sociedade. O direito à Natureza é negado aos mais pobres, revelando-se como possibilidade apenas
para aqueles que puderem pagar.
Constatamos que a concepção e a produção dos loteamentos fechados ribeirinhos são
permeadas por um processo de idealização desses espaços, com a veiculação da imagem desses
empreendimentos como um paraíso, um reduto onde se pode encontrar a Natureza perdida,
ausente nos espaços urbanos. Verifica-se, assim, que a Natureza é um símbolo buscado e desejado
no consumo dos loteamentos fechados ribeirinhos.
A partir da análise das entrevistas e das observações em campo, pudemos verificar que há uma
dissociação visível entre o desejo de um contato mais direto e harmônico com a Natureza expresso
na construção simbólica desses empreendimentos e as ações de apropriação que ali se realizam.
Sendo assim, ao observar as atividades que as pessoas realizam, nos loteamentos fechados
ribeirinhos, constatamos que, muitas vezes, os entrevistados que revelaram o desejo de ter um
contato mais próximo com a Natureza, na verdade, não costumam desfrutar dos elementos
naturais desses empreendimentos. Assim, tivemos depoimentos de entrevistados que nunca tinham
ido caminhar nas trilhas ecológicas e que não gostavam muito de nadar no rio, visto que preferiam
as piscinas construídas em seus ranchos. Dessa forma, podemos observar que o “contato” que os
consumidores dos loteamentos fechados ribeirinhos buscam nesses espaços, muitas vezes é baseado
apenas na utilização dos elementos naturais como cenário para práticas de lazer que prescindem
da presença da Natureza, poderiam ser realizadas em qualquer outro ambiente que não tivesse a
presença dos elementos naturais. A seguir, destacamos alguns depoimentos que revelam as
principais atividades que os entrevistados realizam quando estão nos loteamentos fechados
ribeirinhos.
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Quando a gente vem pra cá, nossa rotina muda. A gente tenta acordar mais tarde,
tomar um café da manhã gostoso, ficar conversando, escutando música. a gente
acende a churrasqueira, começa a fazer um churrasco, fica bebendo uma cerveja,
uma nadada na piscina, toma sol. Então é isso, não tem muita regra, a gente
vai fazendo as coisas conforme vai dando vontade. Jogamos baralho, jogamos bola.
Então a gente vem para sem muito compromisso, sem planejar o que vai fazer.
Agora churrasco e cerveja são de praxe. (38 anos, escrevente judiciário, residente na
cidade de Araçatuba, proprietário de casa no loteamento Portal da Praia)
Aqui no condomínio a gente se sente mais livre pra fazer o que a gente quiser,
porque a gente vem pra cá para se divertir, conversar com os amigos, com a
família... Tudo num ritmo parece que mais lento. Aqui a gente fica mais preguiçoso.
Mas basicamente, o que a gente costuma fazer é o churrasco, jogar baralho, escutar
música e jogar conversa fora. A gente dá uma voltinha pelo condomínio para ver as
casas, para ver se está tudo certo, toma um ar, descansa, dá para ler um livro, esse
tipo de coisa. (52 anos, comerciante, residente na cidade de Birigui, proprietário de
casa no loteamento Recanto Belvedere, em Penápolis)
Dentre aqueles que disseram apreciar a pesca, somente uma parcela admitiu que a realizava
freqüentemente. Em um dos feriados em que as entrevistas foram realizadas, constatamos que
apenas uma pequena parcela de pessoas, na sua maioria crianças, estava utilizando o rio e as
areias que recobrem suas margens. As outras pessoas, que estavam no loteamento, encontravam-se
em suas casas, jogando bola nos seus jardins, jogando baralho, nadando nas piscinas e realizando
uma atividade que se evidenciou uma constante em todos os loteamentos fechados ribeirinhos: o
churrasco.
Sendo assim, consideramos que, nesses casos, o que as pessoas buscam é a Natureza como
cenário. Desejam passar seus finais de semana em espaços bonitos, agradáveis, que os remeta a
sensações de tranqüilidade e bem-estar. Querem uma paisagem esteticamente organizada para
servir de moldura para a realização das atividades que mais os agradam dentro dos loteamentos
fechados ribeirinhos, sendo elas: fazer churrasco, beber cerveja, jogar baralho, jogar bola, cantar no
vídeokê, nadar na piscina e bater papo. Vale ressaltar o fato de que essas atividades elencadas
pelos entrevistados como suas preferidas, quando estão nos loteamentos fechados ribeirinhos, não
pressupõem, necessariamente, um contato com a Natureza que eles dizem buscar nesses espaços.
É evidente que alguns entrevistados também apontaram que gostam de utilizar a água dos rios
para nadar ou andar de Jet-ski ou barco, que gostam de passear pelo loteamento para observar os
macacos e os pássaros, que gostam de cuidar do jardim, gostam de pescar, enfim, gostam de
realizar algumas atividades que as aproximem dos elementos naturais presentes nos loteamentos
fechados ribeirinhos. No entanto, o que nos chama a atenção é que, diante da ênfase dada, tanto
nos materiais publicitários, quanto nos discursos dos entrevistados, à busca pela Natureza, as
atividades realizadas em contato com os elementos naturais tenham aparecido em segundo plano,
quando os entrevistados descreveram suas rotinas nesses empreendimentos. A centralidade do lazer
empreendido nos loteamentos fechados ribeirinhos não é representada pelos esportes ou atividades
que utilizam diretamente a Natureza e que assim realizam uma reaproximação, mesmo que
incompleta e mediada por símbolos, com os elementos naturais. O foco das atividades de lazer
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desenvolvidas nos loteamentos fechados ribeirinhos recai em atividades que poderiam ser realizadas
nas cidades. A escolha dos loteamentos fechados ribeirinhos como espaço ideal para a realização
dessas atividades, dá-se a partir da construção simbólica realizada em torno do conceito de
Natureza, como se a simples presença dos elementos naturais fosse capaz de gerar a tranqüilidade,
o sossego e o bem estar que as pessoas buscam em seus momentos de lazer.
Dessa maneira, consideramos que parte desse desejo de estabelecer um contato mais direto com
a Natureza, nos loteamentos fechados ribeirinhos, advenha do fetichismo criado em torno dessa
idéia. Diante dos problemas ambientais que nossa sociedade vem enfrentando e da crescente
raridade que a Natureza natural vai adquirindo nos espaços urbanos, os símbolos ligados à
Natureza, ao verde e ao ecológico, viraram moda e símbolo de
status
para quem pode consumi-la.
A partir daí, a associação de quaisquer produtos ou serviços ao símbolo Natureza serve como
fator de valorização. Nesse sentido, empreendimentos que possibilitem um contato maior com a
Natureza passam a ser valorizados e considerados como “necessidades”, no âmbito da sociedade de
consumo. A Natureza passa a ser uma mercadoria, passível de ser vendida, consumida e,
conseqüentemente, é transformada em um produto de acesso restrito àqueles que podem pagar
por ela.
Outro aspecto significativo é que os loteamentos fechados ribeirinhos por serem espaços de lazer,
ou seja, espaços destinados para o desenvolvimento de atividades no “tempo livre”, no tempo
liberado do trabalho, têm como função transportar as pessoas para um ambiente diferenciado
daquele em que desenvolvem suas ações cotidianas. Assim, é mais prazeroso reunir os amigos e a
família em espaços com características diferentes das encontradas nas cidades. Os loteamentos
fechados ribeirinhos servem bem a esse propósito. Oferecem um cenário “natural” para aqueles que
querem se distanciar dos elementos das cidades, percebidos como não-naturais e ligados às rotinas,
muitas vezes estressantes, que levam em seu cotidiano.
Utilizamos “natural” entre aspas, porque a partir das observações que realizamos nos
loteamentos fechados ribeirinhos constatamos que essa Natureza oferecida não é tão natural assim.
Como a principal necessidade de Natureza ligada aos loteamentos fechados ribeirinhos diz respeito
à busca de uma paisagem bonita e diferenciada para a realização das atividades de lazer, é
compreensível que a Natureza” oferecida seja esteticamente organizada e, muitas vezes,
esvaziada de seus valores.
Dessa forma, nos loteamentos fechados ribeirinhos, o que temos não é uma Natureza
mais
pura
”, “
mais livre
” ou “
mais do jeito que ela é mesmo
”, como dizem alguns entrevistados. A
Natureza que se encontra, nesses espaços, é tão arranjada e planejada quanto os resquícios naturais
que encontramos nas cidades. Nesse sentido, as margens dos rios são cobertas por areias
branquinhas, dando a impressão de que constituem a orla de uma praia. Na maior parte dos
loteamentos ribeirinhos estudados, não constatamos a presença de uma mata ciliar nativa. Em
alguns casos, a vegetação natural havia sido retirada antes da implantação dos loteamentos e,
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em outros, o processo de desmatamento das margens foi concluído no momento da implantação do
loteamento. A vegetação natural desses espaços foi, em muitos casos, substituída por coqueiros e
outras plantas ornamentais, todas plantadas de forma alinhada ou simétrica.
Em muitos dos loteamentos fechados ribeirinhos estudados, as áreas de preservação
permanente, anunciadas como reduto de espécies vegetais e animais nativas, não passam de áreas
de reflorestamento, muitas vezes realizado com espécies que não são naturais da área, como o
eucalipto. As espécies de animais anunciadas como existentes nesses espaços restringem-se,
principalmente, a alguns macacos, peixes e pássaros, acostumados com a presença humana, visto
que as pessoas estão constantemente alimentando esses animais. Dessa forma, ao oferecerem
alimentos para esses animais, os consumidores dos loteamentos fechados ribeirinhos, que dizem
buscar uma relação mais harmônica com a Natureza, estão alterando o ciclo de vida deles,
modificando suas relações instintivas de obtenção de seus próprios alimentos. A relação das pessoas
com a Natureza, nesse caso, não é tão harmônica quanto se pretende.
Até os peixes, valorizados no discurso de alguns entrevistados, não estão presentes nos
loteamentos fechados ribeirinhos de uma maneira tão natural. Em determinados loteamentos
fechados ribeirinhos estudados, algumas espécies de peixes foram soltas no rio. Essa ação altera todo
o ecossistema desses rios, visto que modifica a relação natural entre a quantidade e o tipo de
espécies naturais daquele ambiente. Outro fato que colabora para a alteração da dinâmica
natural dos rios é o costume de cevar os peixes, ou seja, jogar alimentos, principalmente, milho e
mandioca, nos rios, para atrair os peixes, deixando-os mais “mansos” no momento da pesca.
Assim, o conteúdo dessa Natureza encontrada nos loteamentos fechados ribeirinhos é ligado a
uma simulação dos elementos naturais como se estivessem presentes nesses espaços da mesma
maneira que estariam na Natureza “natural”. Mas o que temos, na verdade, são composições
realizadas com alguns elementos da Natureza, feitas com o intuito de gerarem sensações estéticas
agradáveis. A Natureza trabalhada como símbolo desses empreendimentos começa, assim, a se
distanciar dos momentos de efetiva apropriação desses espaços.
Portanto, podemos concluir que a presença e a valorização da Natureza na produção e na
apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos são evidenciadas na constituição de um
simulacro. O que existe nesses espaços é a produção de uma representação de uma Natureza ideal,
portadora de elementos estéticos geradores de bem-estar. Quando a simulação é efetivada, por
meio do consumo dos símbolos, nas práticas desenvolvidas nesses espaços, temos a construção de
uma situação supra-real, ou seja, os próprios símbolos servem de base para a construção da
realidade.
Portanto, podemos concluir que não justaposição entre o que o símbolo de Natureza quer
representar e a apropriação que se faz deles. Ao buscarem um retorno à Natureza que,
supostamente, serviria para superar a dicotomia entre Sociedade e Natureza, as pessoas acabam
reafirmando e intensificando essa cisão. Não desejam ter um contato harmônico e respeitoso com a
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Natureza. Querem apenas aproveitar as qualidades estéticas e sensoriais que a proximidade com a
Natureza lhes proporciona, apropriando-se, assim, de outros mbolos vinculados ao contato com os
elementos naturais – bem-estar, tranqüilidade e qualidade de vida.
A apropriação desses espaços sendo realizada nas mesmas bases da dicotomia que
simbolicamente tenta superar é reforçadora do fato de que a Natureza é vista como um recurso,
capaz de propiciar momentos agradáveis para aqueles que a compraram. Não uma mudança
de consciência no sentido das pessoas tentarem se integrar à Natureza, considerando-se como
partes integrantes dela. Querem um contato maior apenas para satisfazer, por meio do consumo,
uma “necessidade” de Natureza estimulada por vários determinantes ideológicos e econômicos, que
atendem aos interesses dos empreendedores imobiliários.
Na forma como se realiza a apropriação dos espaços dos loteamentos fechados ribeirinhos, não
é superada, também, a dicotomia “campo natural” x “cidade não natural”. Nos usos realizados,
nesses espaços, é ratificada a posição da cidade como espaço intrinsecamente não natural. Quando
querem apreciar a Natureza, devem se afastar do meio urbano e ir até o campo, onde a Natureza
pode ser encontrada. chegando, desejam desfrutar as mesmas infra-estruturas e comodidades
que estão acostumados na cidade. Ao fazerem isso, exigem uma mudança do conteúdo da
Natureza que é oferecida nesses espaços. A Natureza selvagem e imprevisível é deixada de lado
para dar lugar a uma Natureza urbanizada, controlada e organizada esteticamente.
Ao buscarem a Natureza nos loteamentos fechados ribeirinhos, o que seus consumidores querem
não é, realmente, a Natureza com seu conteúdo tradicional. Desejam uma Natureza encenada,
organizada e controlada para servir de moldura para as atividades de lazer que gostam de
realizar.
Assim, não podemos desconsiderar, na análise dos loteamentos fechados ribeirinhos, a
união/dissociação entre os elementos materiais e simbólicos, visto que o mercado desses
empreendimentos é um mercado, ao mesmo tempo, material e simbólico. Nesses empreendimentos,
não se vende apenas um pedaço de terra, mas, também, todos os símbolos que se associam a esses
espaços, visto que além de serem produzidos para atender a uma “necessidade natural” de espaços
de lazer, os loteamentos fechados ribeirinhos são produzidos para suprir um conjunto de
“necessidades artificiais”, produzido no plano simbólico. Assim, o consumo desses espaços significa o
consumo de um complexo emaranhado simbólico.
Dessa forma, o primeiro passo para tentarmos melhorar nossas formas de relacionamento com
os elementos naturais tem que estar pautado em uma mudança de percepção, na nossa forma de
conceber e representar a Natureza. A Natureza não pode ser vista apenas como recurso, que pode
ser utilizado ininterruptamente de maneira irracional, não respeitando seus processos e limites.
Diante dos problemas ambientais urbanos, a idéia de que as cidades são espaços de não-natureza
deve ser superada e os elementos naturais devem ser considerados, de forma integrada, junto aos
outros processos socioespaciais urbanos. A Natureza não pode ser utilizada apenas como fator de
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organização estética ou de valorização de empreendimentos imobiliários, tendo o acesso a ela
restrito aos segmentos sociais mais privilegiados. Temos que pensar as maneiras pelas quais iremos
recuperar a Natureza, nas cidades, para que esses espaços possam ser vivenciados em sua
totalidade.
Para que essa mudança na forma de conceber a Natureza possa ser superada, o pensamento
científico deve se esforçar para analisar os processos resultantes da relação Sociedade-Natureza de
forma integrada, sem a prevalência, dominação ou, até mesmo, desconsideração, de uma
dimensão em relação à outra. Na própria Geografia, essa questão veio tradicionalmente sendo
tratada de forma dicotômica, haja vista a separação entre Geografia Física e Geografia Humana.
Mas, atualmente, encontramos esforços, no plano científico, para estudar a relação entre
Sociedade e Natureza de forma integrada.
No plano da produção do espaço, essa superação parece ser mais difícil. Mesmo que muitos
incorporadores, perante a crescente exposição dos problemas ambientais e da raridade que os
elementos naturais vêm adquirindo, venham adotando o discurso ecológico e acrescentando
elementos naturais em seus empreendimentos, fazem-no de uma maneira que reforça a cisão
criada em torno da relação Sociedade-Natureza.
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CAPÍTULO IV
INSEGURANÇA URBANA E PRODUÇÃO DO ESPAÇO
Miedo
Lenine e Pedro Guerra
Tienen miedo del amor y no saber amar
Tienen miedo de la sombra y miedo de la luz
Tienen miedo de pedir y miedo de callar
Miedo, que da miedo do miedo que da
Tienen miedo de subir y miedo de bajar
Tienen miedo de la noche y miedo del azul
Tienen miedo de escupir y miedo de aguantar
Miedo, que da miedo do miedo que da
El miedo es una sombra que el temor no esquiva
El miedo es uma trampa que atrapó al amor
El miedo es la palanca que apagó la vida
El miedo es uma grieta que agrandó el dolor
Têm medo de gente e de solidão
Têm medo da vida e medo de morrer
Têm medo de ficar e medo de escapulir
Medo, que dá medo do medo que dá
Têm medo de acender e medo de apagar
Têm medo de espera e medo de partir
Têm medo de correr e medo de cair
Medo, que dá medo do medo que dá
O medo é uma linha que separa o mundo
O medo uma casa aonde ninguém vai
O medo é como um laço que se aperta em nós
O medo é uma força que não me deixa andar
Tienen miedo de reir y miedo de llorar
Tienen miedo de encontrarse y miedo de no ser
Tienen miedo de decir y miedo de escuchar
Miedo, que da miedo del miedo que da
Têm medo de parar e medo de avançar
Têm medo de amarrar e medo de quebrar
Têm medo de exigir e medo de deixar
Medo, que dá medo do medo que dá
Medo de olhar no fundo
Medo de dobrar a esquina
Medo de ficar no escuro
De passar em branco
De cruzar a linha
Medo de se achar sozinho
De perder a rédea, a pose e o prumo
Medo de pedir arrego, medo de vagar sem rumo
Medo estampado na cara
Ou escondido no porão
Medo circulando nas veias
Ou em rota de colisão
O medo é de Deus ou do demo?
É ordem ou é confusão?
O medo é medonho
O medo domina
O medo é a medida da indecisão
Medo de fechar a cara medo de encarar
Medo de calar a boca medo de escutar
Medo de passar a perna medo de cair
Medo de fazer de conta medo de iludir
Medo de se arrepender
Medo de deixar por fazer
Medo de amargurar pelo que não se fez
Medo de perder a vez
Medo de fugir da raia na hora H
Medo de morrer na praia depois de beber o mar
Medo, que dá medo do medo que dá
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As mudanças que vêm ocorrendo nas cidades contemporâneas referentes ao fechamento de
espaços por barreiras físicas ou simbólicas, levando à produção de espaços de sociabilidade
segmentada, que negam o ideal moderno de espaço público, trazem para a discussão a questão da
(in)segurança urbana. As análises já realizadas sobre essa problemática indicam que, para justificar
as práticas segregacionistas, é utilizado o argumento de que as cidades estão mais inseguras,
necessitando assim, de novas estratégias socioespaciais que garantam a segurança das pessoas que
nelas habitam.
Assim, uma das características mais marcantes da sociedade atual é sua preocupação com a
segurança. Não que as sociedades anteriores não tivessem suas inquietações acerca da segurança
mas, na sociedade atual, ela se tornou um elemento central, passando a ser um quesito norteador
das escolhas que influenciam as relações entre os diferentes tipos de pessoas e, também, as relações
das pessoas com os diversos tipos de espaços.
De acordo com Bauman (2007, p. 16), os sismos existenciais têm acompanhado os seres humanos
ao longo de toda sua história, visto que nenhum dos ambientes sociais em que as realizações da
vida humana foram conduzidas, jamais ofereceu um seguro infalível contra os golpes do “destino”.
Nesse sentido, Billard et al (2005, p.7) destacam que a questão da
sécurisation
dos espaços
residenciais em meio urbano não é nova, sendo contemporânea à aparição e ao desenvolvimento
das cidades. Observamos, assim, que a preocupação com a segurança esteve presente desde o
surgimento dos primeiros aglomerados urbanos, mas seu conteúdo foi se alterando de acordo com o
desenvolvimento das cidades. Dessa maneira, cada período histórico é marcado por um dado tipo
de preocupação, no que diz respeito à manutenção da segurança nos espaços urbanos, fato que
acarreta a geração de configurações diferenciadas de estratégias e ações.
Le Goff (1998, p.72) mostra, em seu livro, que as cidades da Idade Média eram espaços em que
a preocupação com a segurança era constante. Ressalta que seus habitantes fechavam suas casas à
chave e reprimiam severamente o roubo, com muito mais rigor do que atualmente. A segurança
nessas cidades constituía “uma obsessão urbana, muito consciente e muito viva”.
Na atualidade, o que temos de diferente é a dimensão que a insegurança adquiriu na vida
social. A produção do espaço, sobretudo do espaço urbano, está em profunda ligação com os
aspectos que perpassam a segurança. Os espaços passam a ser classificados e hierarquizados de
acordo com suas possibilidades de oferecer uma sensação de segurança, seja ela objetiva ou
subjetiva.
A partir desse critério é que as pessoas dos segmentos mais privilegiados da sociedade realizam
suas escolhas espaciais, ou seja, é a partir da percepção da maior ou da menor sensação de
segurança oferecidas pelos espaços, que as pessoas vão decidir os locais em que realizam suas
atividades cotidianas, mesmo que essa sensação não corresponda às possibilidades concretas de
segurança que esses espaços podem oferecer. Os segmentos de menor poder aquisitivo também
possuem suas preocupações e estratégias a partir da sensação de insegurança, mas estabelecem um
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tipo de relação diferenciada com esse sentimento. Suas práticas socioespaciais são diferentes das
empreendidas pelas pessoas de maior poder aquisitivo, ao passo que suas condições materiais não
permitem estratégias tão elaboradas para evitar os espaços das cidades tidos como inseguros e, na
maior parte das vezes, esses espaços percebidos como inseguros pelos segmentos de maior poder
aquisitivo são os espaços de moradia das pessoas menos privilegiadas, que apreendem esses espaços
de outras formas, visto que suas práticas cotidianas e suas relações pessoais estão inseridas nesses
espaços. Outro ponto que diferencia a ação dos segmentos menos privilegiados em relação à
insegurança urbana está no fato de que, para os segmentos de menor poder aquisitivo, a
insegurança é apenas mais uma das preocupações que compõem seu cotidiano, sendo que
necessidades como emprego, alimentação e saúde para algumas pessoas, são mais imediatas do
que a busca por segurança.
Dessa forma, consideramos que os diferentes segmentos sociais possuem percepções e estratégias
socioespaciais que se distiguem entre si em relação à insegurança urbana e que cada segmento vai
desenvolvendo suas práticas espaciais e estabelecendo suas relações sociais a partir do tipo de
concepção que fazem da insegurança. De qualquer maneira, embora existam diferenças entre a
percepção dos segmentos mais privilegiados e a dos segmentos menos privilegiados, a insegurança é
um fator importante na produção e na apropriação das cidades contemporâneas.
Para entendermos as razões pelas quais a segurança se tornou um aspecto tão importante no
processo de produção do espaço urbano temos que analisar a questão da violência, estreitamente
ligada à sensação de (in)segurança.
A violência urbana é resultado de um conjunto de elementos interligados. Segundo Pedrazzini
(2006, p. 73), a violência urbana é complexa e o termo é, por isso mesmo, polissêmico. É difícil
identificar o momento em que um ato violento singular passa a ser um fenômeno reconhecido por
todos como violento. Isso porque,
O problema não é somente relativizar as formas de violência, mas identificar o tipo
e a intensidade de um fato que possa ser julgado unanimemente violento e não
apenas brutal, indisciplinar, movido pela revolta ou por uma simples mudança de
humor. (PEDRAZZINI, 2006, p. 74)
Assim como a preocupação com a segurança, a violência não é uma questão exclusiva da
sociedade atual. A violência adquiriu diversos conteúdos de acordo com os diferentes contextos
históricos em que vem existindo. Em alguns momentos, foi mais aceita, em outros, mais escondida,
mas sempre esteve presente na história da humanidade.
Segundo Elias (1997), a nossa sociedade foi aos poucos domesticando sua violência durante o
processo civilizador, até se tornar uma sociedade contra a violência. Dessa forma, os resquícios de
violência que ainda encontramos estariam destinados a desaparecer com o desenvolvimento moral
da humanidade. Mas o que notamos é que a violência não parece estar em um estágio de extinção.
Pelo contrário, cada vez mais, temos notícias sobre o aumento da violência em suas mais distintas
modalidades.
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De acordo com Souza (2008, p. 8), nossa época é caracterizada pela presença do medo como
fator condicionante e estruturante das relações sociais e da organização espacial, culminando na
produção das “fobópoles” que constituem
(...) cidades nas quais o medo e a percepção do crescente risco, do ângulo da
segurança pública, assumem uma posição cada vez mais proeminente nas
conversas, nos noticiários da grande imprensa etc, o que se relaciona,
complexamente, com vários fenômenos de tipo defensivo, preventivo ou repressor,
levados a efeito pelo Estado ou pela sociedade civil o que tem claras implicações
em matéria de desenvolvimento e democracia (
lato sensu
). (SOUZA, 2008, p. 9)
Segundo Souza (2008, p. 10), precisamos de cuidado ao utilizar o conceito de violência urbana,
visto que ele apresenta um alto nível de abstração, sendo que violências e crimes específicos
possuem, muitas vezes, agentes e circunstâncias típicos e muito distintos, “não devendo o cenário
urbano ser utilizado como um álibi para se lançar mão de uma espécie de ‘expressão-valise’, onde
tudo possa ser acomodado sem maiores cuidados. Muito menos é desculpável dar a entender que é
o espaço urbano, em si, o responsável pela geração da violência.”
Conforme Misse (2001), a palavra violência vem do latim
violentia”,
que significa “a força que
se usa contra o direito e a lei”. Violento (
violentus
) é quem age com força impetuosa, excessiva,
exagerada. O emprego retórico da palavra passou a lhe conferir significados cada vez mais amplos:
violência dos ventos, violência das paixões... Assim, a utilização do termo passou a significar
qualquer ruptura da ordem ou qualquer emprego de meios para impor uma ordem. Na época
moderna, a palavra violência adquiriu muitos significados novos, mas resistem em seu emprego,
duas características que se mantiveram no seu uso cotidiano, atravessando muitas épocas e
mudanças históricas. De acordo com o autor, essas características dizem respeito a como se usa e
contra quem se usa essa expressão. Uma pessoa violenta é sempre o Outro, aquele a quem
aplicamos a designação. O emprego da palavra é assim performativo, ou seja, ao empregá-la
estamos agindo socialmente sobre outrem. Dessa forma, violência não é uma expressão apenas
descritiva ou neutra, visto que seu uso evidencia uma tomada de partido, envolvendo
necessariamente relações de poder.
Sendo assim, Misse (2006, p. 19) destaca que temos que começar a desmembrar o tema da
violência urbana, ao passo que não é mais possível essa unificação imaginária de tantos fatos
diversos num único conceito.
Nós estamos, por angústia e por uma série de ansiedades, tratando como um sujeito
difuso o que na verdade é uma miríade de eventos, circunstâncias e fatores. Esse
sujeito difuso, tal como um espectro, é nomeado: nós o chamamos: “A Violência”. E
procuramos encontrar esse sujeito difuso em todas as partes. Curiosamente, não é
difícil encontrá-lo, que inúmeros eventos, inúmeros fatos, caem, ou podem cair,
razoavelmente, dentro dessa unificação imaginária. Uma palavra para situações
tão diversas, por um lado simplifica o problema e, por outro facilita um certo tipo
de uso, inteiramente reificado, pois em lugar de descrever, age socialmente, produz
uma performance e um resultado. (MISSE, 2006, p. 19-20)
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Dessa maneira, não podemos tratar a violência como se ela fosse uma coisa só, como se todos os
atos violentos tivessem o mesmo impacto na vida das pessoas, como se ela fosse gerada a partir de
apenas uma fonte. Existem diversos tipos de violência, realizados por distintos agentes, em
diferentes instâncias. Nesse sentido, fica difícil chegar a um conceito único de violência urbana. Por
ser difusa, a violência deve ser sempre contextualizada, visto que em formações socioespaciais e em
períodos históricos diferentes, temos percepções diferentes do que seja violência.
De acordo com Sodré (2006, p. 35), além das violências estandardizadas pela mídia, existem as
violências invisíveis, as violências constantemente ignoradas: violências do poder instituído, violências
dos órgãos burocráticos, violências do Estado, violências do serviço público. Esses tipos de violência
são resultantes de um “efeito de inércia que é ao mesmo tempo social e psicológico sobre os
indivíduos e é imposto por uma ordem cosmopolita, que é a ordem do Estado, com seus aparelhos e
as suas articulações políticas”. Essas violências institucionalizadas geralmente não são percebidas
pelo senso comum como violências. A concepção dominante de violência diz respeito às violências
anômicas, tidas como delinqüência, marginalidade, ilegalismos, que são combatidos pelo poder do
Estado.
Assim, a violência pode ocorrer em diferentes instâncias e ser deflagrada por diferentes agentes
socais. No entanto, por intermédio da mídia, temos a divulgação de apenas um tipo de violência.
Segundo Sodré (2006, p. 36), a violência social ocorre em todos os planos: no plano econômico, no
plano político, no plano psicológico. Não um plano da existência que não seja estruturado pela
violência social. “Só que nas narrativas de jornal, na mídia, no que a mídia diz, a violência é o
ato, a violência nunca é o estado de violência. Quer dizer, o que nós apreendemos da violência
pelos jornais, pela mídia, é a violência visível, é a violência que pode ser encenada ou que pode ser
dramatizada”.
Dessa maneira, percebemos que a mídia é um agente importante na divulgação, na ampliação
e na geração de uma concepção dominante de violência. Nesse sentido, as cidades estão sendo,
cada vez mais, associadas com imagens de medo e de insegurança, isso porque vem ocorrendo, por
intermédio da mídia, um processo de banalização e uma conseqüente amplificação da violência,
que acaba gerando uma sensação de insegurança geral. Não queremos dizer que a violência não
exista nas cidades ou que elas sejam seguras. Mas é fato que, ao dar maior visibilidade à
determinados atos tidos hegemonicamente como violentos, a mídia contribui para gerar uma
idealização do passado como tendo sido mais seguro e, também, contribui para propagar a idéia
de que a violência está em toda parte.
Desse modo, cria-se uma sensação de insegurança que nem sempre corresponde às condições
específicas de cada local. A percepção de insegurança acaba sendo generalizada e sentida em
contextos em que os dados objetivos não a justificam. Assim, podemos dizer que existe um processo
de transposição e generalização da insegurança, que tem que ser tratada, portanto, em suas duas
formas ou de modo articulado, a real e/ou a imaginada.
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Assim, devemos considerar que a insegurança gerada pela crescente divulgação dos atos que
compõem a concepção dominante de violência, é fruto de uma construção simbólica empreendida
pela mídia, cujos interesses estão intimamente ligados com os interesses do mercado, que não se
resumem mais às atividades de compra e venda de mercadorias, sua ação age na constituição das
relações sociais. Conforme Sodré,
Nós tendemos a encarar a mídia como o aparelho de televisão nos dizendo alguma
coisa, como o jornal lhe falando, e não percebemos que é toda uma nova existência
que se constitui. E uma existência que se afasta, cada vez mais, das condições reais e
concretas de existência. É o tipo de vida que se move numa esfera cada vez mais
abstrata com relação ao mundo do trabalho, cada vez mais abstrata com relação
às formas concretas de existência. A mídia é hoje, aqui, uma espécie de “boca de
deus”, só que esse deus se chama mercado. A mídia é a boca desse deus que não
pode mais ser entendido como um lugar técnico, para compra e venda de
mercadorias, circulação de dinheiro, mas um lugar que está vetorizando as relações
sociais no instante histórico em que se enfraquecem, ou que fenecem, a sociedade
política e a sociedade civil. (SODRÉ, 2006, p. 38)
Sobre o papel da mídia na disseminação do sentimento de insegurança, es e André (2006, p.
54) destacam que o tratamento dado ao tema da violência pela mídia garante que nós nos
reportemos, freqüentemente, mais a uma violência representada que a uma violência real. Não
que o real e o representado não tenham relações, embora elas sejam variáveis, dependendo do
grau de sensacionalismo empregado, por exemplo.
Dessa maneira, a percepção de insegurança que passa a ser atrelada aos espaços urbanos por
intermédio da mídia, que divulga uma concepção dominante de violência, contribui para a criação
de movimentos de reação contra essa insegurança. Ao buscar espaços urbanos seguros, as pessoas,
principalmente dos segmentos mais privilegiados da sociedade, acabam alterando suas formas de
vivenciar a cidade e de se relacionar com as outras pessoas. Diante da verdadeira paranóia que se
criou em torno da procura por segurança nos espaços urbanos, as pessoas com maior poder
aquisitivo passaram a ser, rigorosamente, seletivas. A liberdade de escolha que alguns setores da
sociedade possuem para decidirem quem fará parte do seu círculo de relações e quais os espaços
que servirão de base para suas atividades cotidianas tem que estar ligada, atualmente, à análise
das maiores ou menores possibilidades de segurança que oferecem.
Constatamos assim, que a insegurança, real ou imaginada, está alterando o processo de
produção e apropriação do espaço. As diferentes estratégias e táticas encontradas pela sociedade
para se protegerem, para acabarem com suas inseguranças, que m conteúdos diferentes, de
acordo com os segmentos sociais a que pertencem quem as enuncia, deixam marcas no espaço.
Uma tendência urbana contemporânea engendrada pelos empreendedores imobiliários no
âmbito dessa sensação generalizada de insegurança, tendo como alvo os segmentos de maior poder
aquisitivo, diz respeito ao fechamento residencial. Os condomínios e loteamentos fechados passaram
a ser considerados como a forma ideal de se habitar e suas qualidades passaram a ser exaltadas.
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De acordo com Caldeira (2000, p. 265), os loteamentos fechados propõem um estilo de vida
total”, superior ao da cidade, mesmo quando são construídos dentro dela. Oferecem um nível de
segurança que o restante da cidade não pode oferecer.
Juntamente com o fechamento físico de algumas parcelas da cidade, temos também, a
instituição de novas modalidades de controle social e de vigilância, com destaque para a
disseminação da utilização da segurança privada. Assim, o processo de renovação do ato de tornar
seguros os espaços contém as formas, segundo as quais ele está sendo produzido atualmente.
Nesse contexto, podemos citar as novas formas de controle social associadas à televigilância. Ficou
comum, em quase todos os tipos de espaços, depararmos-nos com a frase: “Sorria, você está sendo
filmado”. Dessa forma, a tentativa de se obter espaços seguros parte da prerrogativa da coerção
individual.
Anteriormente, o controle social era estabelecido pelas instituições como a Igreja e a Escola.
Segundo Billard et al (2005), a tradição e o costume eram responsáveis por estabelecer a ordem e a
maneira pela qual as práticas eram realizadas. Assim, os indivíduos iam interiorizando, aos poucos,
as formas de controle social, por meio das regras tradicionais de disciplina. O que temos,
atualmente, são novas maneiras de se estabelecer o controle social, baseadas em normas externas a
nós. Uma dessas novas formas de controle social, citadas pelos autores, diz respeito à organização
espacial. As concepções urbanísticas dos espaços fechados favorecem o controle dos deslocamentos,
como forma de evitar ou de prevenir qualquer tipo de problema. Essa organização da arquitetura
ligada aos sistemas de segurança e à arquitetura do medo, como ressalta Caldeira (2000, p. 294),
pode se dar, além do estabelecimento dos muros, de diversas formas, desde a monumentalidade
das entradas, até os sistemas de iluminação, planejados para não deixar espaços escuros.
Dessa maneira, a disseminação do discurso da insegurança urbana é um elemento que,
juntamente com outros fatores, influencia na produção de novos tipos de espaços e de práticas
sociais. Os índices de ocorrência de atos objetivos que compõem a concepção de violência vigente
em nossa sociedade são maximizados pela mídia e pelos incorporadores imobiliários, bem como são
transpostos para realidades socioespaciais distintas. Essa propagação do discurso do medo é
trabalhada no intuito de gerar novas demandas, para novos tipos de espaços, idealizados como
sendo a solução para a insegurança urbana, solução essa disponível apenas para os segmentos de
maior poder aquisitivo. Esse processo faz com que o discurso sobre a insegurança urbana gere novas
práticas socioespaciais em contextos em que os indicadores de criminalidade não são capazes de,
sozinhos, justificarem as ações em direção ao fechamento.
A partir da análise do processo de produção simbólica e material dos loteamentos fechados
como espaços ideais e seguros, trazemos para a discussão a importância dos empreendedores
imobiliários na disseminação dessa sensação de insegurança. Para o caso da produção dos
loteamentos fechados na cidade de São Paulo, Caldeira (2000, p. 266) ressalta que pelo menos dez
anos antes de o crime violento aumentar e se tornar uma das principais preocupações dos
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moradores, a insegurança estava sendo construída nas imagens elaboradas pelos incorporadores
e corretores imobiliários para justificar e vender esse novo tipo de empreendimento urbano.
A ação dos empreendedores imobiliários em direção ao fechamento residencial utilizando como
mote a insegurança urbana é importante, pois acaba moldando uma demanda por novos espaços
urbanos. Para colocarem seus novos produtos no mercado, os agentes imobiliários agem construindo
a demanda, aguçando os desejos, criando novas necessidades. Nesse sentido, contribuem,
juntamente com a mídia, para a ampliação da percepção de insegurança nos espaços urbanos.
Segundo Bauman (2007, p. 15), o medo, uma vez investido sobre o mundo humano, adquire
um ímpeto e uma lógica de desenvolvimento próprios. As próprias atitudes surgidas para aplacar a
insegurança, reafirmam e retroalimentam o processo de disseminação da insegurança. Assim, cria-se
um ciclo que contribui para a perpetuação e para o aumento da sensação de insegurança dos
espaços urbanos. Ao realizarem o fechamento em busca da segurança, as pessoas acabam
agregando mais elementos que podem ser interpretados como uma certificação de que a situação
de insegurança das cidades aumentou. E isso acaba gerando novas ações em busca de segurança,
que, por sua vez, servirão para justificar outras.
Dessa forma, devemos considerar os discursos, as ações e os espaços criados no âmbito da busca
por segurança como símbolos utilizados na reprodução do capital. A segurança passa a ser uma
mercadoria, disponível a quem puder pagar. Por não ser acessível a todos, a segurança entra para
a esfera das raridades e, como tal, seu consumo adquire a aura de
status
e diferenciação.
Sendo assim, a busca pela segurança nos espaços urbanos vai muito além do desejo de se
conseguir a segurança em si. Formou-se um verdadeiro mercado a partir da manipulação dos
medos das pessoas. De acordo com Caldeira (2000, p. 294), todos os elementos associados à
segurança tornaram-se parte de um novo código que expressa distinção, que poderia ser traduzido
pela “estética da segurança”. São agregados novos valores à segurança, que passa a representar
símbolos de status e posição social.
Assim, para se protegerem dos perigos da cidade, os segmentos de maior poder aquisitivo não
buscam apenas espaços mais seguros. Eles transformam esses mecanismos de segurança em fatores
que expressam visivelmente o status que possuem. Dessa forma, muros altos, cercas elétricas,
câmeras sofisticadas, interfones, são utilizados não para garantirem a segurança, mas também
para demarcarem a posição social daqueles que os utilizam. Os elementos ligados à segurança
entram, portanto, na composição da imagem que as pessoas querem passar para as outras.
Dessa forma, ao escolherem um loteamento fechado para viverem, as pessoas não buscam
apenas lugares mais seguros para residirem. Buscam também, consciente ou inconscientemente,
adquirir toda a carga simbólica que esses empreendimentos trazem consigo. Esse tipo de
habitat
,
considerado como ideal, é muito mais valorizado que os oferecidos pela cidade aberta. Muitas vezes
essa valorização dá-se por atributos que os loteamentos fechados não possuem. Ou seja, é
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produzida e vendida uma imagem desses empreendimentos que, muitas vezes, não correspondem
às reais qualidades desses espaços.
Diversos agentes vislumbraram na (in)segurança urbana uma oportunidade de auferir grandes
vantagens financeiras. Nas palavras de Bauman (2007, p. 18), “(...) tal como dinheiro vivo pronto
para qualquer tipo de investimento, o capital do medo pode ser usado para se obter qualquer
espécie de lucro, comercial ou político. E é”. Segundo o autor, os aspectos ligados à segurança são
utilizados cada vez mais, como bandeira nos manifestos políticos e nas campanhas eleitorais, além
de terem se tornado um grande trunfo na guerra de audiência dos meios de comunicação de
massa, que reabastecem constantemente o capital do medo.
Constatamos, assim, que a manutenção e a ampliação do sentimento de insegurança é um
negócio lucrativo que beneficia diferentes agentes como: - a mídia, que vende a violência; - os
empreendedores imobiliários, que criam novos produtos, vendidos como mais seguros; - as empresas
de segurança privada, que oferecem seus serviços para conter o avanço da violência; - os políticos,
que acabam utilizando o discurso da segurança como moeda de troca. Enfim, existe uma
verdadeira plêiade de agentes e de interesses que se alimenta da propagação do sentimento de
insegurança urbana.
Diante dessa generalização e amplificação do sentimento de insegurança, constatamos
estratégias de seleção socioespacial, realizadas principalmente pelos segmentos sociais de maior
poder aquisitivo. Mas os segmentos menos privilegiados também vêm incorporando ações contra a
insegurança de seus espaços. Essas dinâmicas diferem, em seus conteúdos e dimensões, mas revelam
uma tendência – a de se buscar individualmente a segurança, ou seja, a segurança deixa de ser um
ideal coletivo e passa a ser condicionada à posição social das pessoas.
É fato que as ações referentes à segurança urbana oferecidas pelo Estado não têm mais
credibilidade na sociedade brasileira, mesmo que sejam as únicas opções dos segmentos menos
privilegiados. A sensação de impunidade, a lentidão da justiça, a falta de qualificação e a
corrupção de alguns profissionais foram aos poucos minando as bases da confiança que se tinha nos
meios oficiais de segurança. Dessa forma, a sociedade foi obrigada a buscar, por si mesma, soluções
individuais para obter segurança.
De acordo com Bauman (2007, p. 20),
(...) passa a ser tarefa do indivíduo procurar, encontrar e praticar soluções
individuais para problemas socialmente produzidos, assim, como tentar tudo isso
por meio de ações individuais, solitárias, estando munido de ferramentas e recursos
flagrantemente inadequados para essa tarefa.
Nesse sentido, Bauman (2007, p. 20), aponta que as mensagens dirigidas dos centros de poder
político, tanto para os ricos, como para os menos privilegiados, apresentam que a solução para a
situação insustentável da insegurança seja “mais flexibilidade”. Dessa forma, retratam uma
perspectiva de mais incerteza, mais privatização dos problemas, mais solidão e impotência e, na
verdade, mais incerteza ainda.
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Elas excluem a possibilidade de uma segurança existencial que se baseie em
alicerces coletivos e assim não oferecem incentivo a ações solidárias; em lugar disso,
encorajam seus ouvinte a se concentarem na sua sobrevivência individual ao estilo
de “cada um por si e Deus por todos” – num mundo incuravelmente fragmentado e
atomizado, e portanto cada vez mais incerto e imprevisível. (BAUMAN, 2007, p.
20)
O fato de que a busca pela segurança nos espaços urbanos é cada vez mais individualizada,
evidencia ainda mais as diferenças socioespaciais, ao passo que os segmentos de maior poder
aquisitivo possuem mais possibilidades de estabelecer estratégias para combater a insegurança,
tanto a causada por fatores objetivos, quanto a baseada em aspectos imaginários. Dessa forma,
recorrem ao fechamento residencial, passam a consumir em espaços socialmente segmentados,
como os
shopping centers
, e realizam suas atividades de lazer em lugares privados. Além disso,
podem pagar seguranças particulares, instalar sistemas de televigilância e outros aparatos que
prometem lhes devolver a sensação de segurança.
E os segmentos de menor poder aquisitivo? Como podem desenvolver suas estratégias para a
obtenção de segurança, se vários outros problemas sociais perpassam suas vidas? A possível resposta
a essas questões torna-se mais perversa se considerarmos que os segmentos de menor poder
aquisitivo são os principais alvos de atos tidos como violentos. Por exemplo, destacamos a afirmação
de Cano e Santos (2001, p. 73), de que uma tendência maior para a ocorrência de homicídios
nos bairros pobres. Assim, podemos dizer, que sobre esse aspecto, os segmentos de menor poder
aquisitivo estão mais vulneráveis.
Outro elemento que deve ser considerado na análise da relação entre os segmentos menos
privilegiados e a concepção dominante de violência urbana é a estreita relação que existe no
imaginário social entre as situações de pobreza e a geração de atos considerados violentos. De
acordo com Misse (1995 e 2006), a associação da pobreza, da miséria e da pauperização com a
ocorrência da violência é antiga, mas permanece como um debate inacabado e muitas vezes
contraditório, uma vez que, a despeito da tentativa de alguns estudiosos de relativizar essa
questão, ela continua a influenciar, por exemplo, práticas policiais e coberturas jornalísticas, não
podendo, portanto, ser desconsiderada.
Ainda que concordemos (e não porque discordar) que a pobreza e a privação
relativa podem investir estratégias que incorporam a opção criminal, é evidente
que essa incorporação não é feita pela maioria dos que sofrem a pobreza e a
exclusão, ou mesmo a privação relativa. (MISSE, 2006, p.128)
No mesmo sentido, segundo Pedrazzini (2006, p. 100), os bairros pobres são estigmatizados e
seus habitantes considerados como grupos de bárbaros equipados para atacar o cidadão honesto,
sendo que essas representações negativas são constantemente reconstruídas através da mídia, do
cinema e dos pesquisadores. Dessa forma, permanece na percepção dominante o estereótipo do
pobre como “classe perigosa”, gerando no âmbito do espaço urbano, cada vez mais, práticas
(auto)segregativas empreendidas pelos segmentos de maior poder aquisitivo, no intuito de afastar
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os mais pobres de seus espaços de realização da vida cotidiana. Esse fato vai se refletindo em uma
tendência de fragmentação urbana, segunda a qual cada segmento socioeconômico ou
sociocultural ocupa e se apropria de parcelas específicas do território da cidade.
De acordo com Zaluar (2004, p. 23-24), a correlação entre pobreza e criminalidade, ou entre
pobreza e violência deve ser problematizada. Isso porque,
Atribuir apenas à pobreza - que sempre existiu no país e que teve vários
indicadores melhores nas décadas de 1970 e 80 o incrível aumento da
criminalidade e da violência, observado nas últimas décadas, especialmente na
última, é alimentar preconceitos e discriminações contra os pobres. Além de
constituir um erro diagnóstico, que pode tornar ineficazes as políticas públicas
adotadas a partir dele, tal postura tem efeitos políticos desastrosos. (ZALUAR, 2004,
p. 24)
De acordo com Bauman (2007, p. 74), nossa sociedade é marcada pela competição e não pela
solidariedade, havendo assim, uma dilapidação dos laços coletivos. O autor destaca que uma
contraposição entre a concepção, que havia no passado, dos pobres como classes perigosas e a
situação das classes perigosas que se configura atualmente. Nesse sentido, destaca que as classes
perigosas originais eram constituídas do excedente populacional temporariamente excluído e ainda
não reintegrado que o progresso econômico acelerado havia privado de alguma função útil. Sendo
assim, existia a perspectiva de as pessoas rotuladas como perigosas fossem reintegradas e seus
interesses na ordem social seriam restaurados. Por outro lado, as pessoas estigmatizadas com o
símbolo de classe perigosa, na atualidade, são aquelas reconhecidas como inadequadas à
reintegração e proclamadas inassimiláveis, ao passo que não m perspectiva de conceber alguma
função útil. Assim, as pessoas tidas como perigosas atualmente não são apenas excessivas, mas
excedentes”.
Dessa forma, na sociedade contemporânea, as pessoas não integradas ao sistema, ou melhor,
integradas precariamente, são tidas como as causadoras dos problemas relacionados com o
aumento da violência e da insegurança urbana. Essa percepção acaba funcionando como uma
cortina de fumaça, que não permite a visualização dos efetivos problemas atuais. Assim, na
atualidade, conforme destaca Adorno (2002, p. 111/112), a questão da insegurança urbana tem
profundas relações com a questão da desigualdade social, visto que as sociedades vêm, ao longo do
desenvolvimento histórico, estabelecendo relações mecânicas entre pobreza e violência, num
processo que se expressa da seguinte forma: quanto maior a pobreza, maior a violência. Essa idéia
influencia a produção dos empreendimentos residenciais fechados, porque a criminalização da
pobreza, ao criar estereótipos preconceituosos, faz com que se torne desejável manter a maior
distância possível dos segmentos mais pobres, potenciais causadores de situações de perigo.
Dessa maneira, ao aumentarem as desigualdades sociais, tem-se a percepção de que,
conseqüentemente, a insegurança aumentará. Quanto maior o número de pessoas vivendo em
situações de pobreza, maiores os riscos de se viver nos espaços urbanos. Além dos riscos potenciais
vislumbrados a partir dos segmentos mais pobres, temos a questão do incômodo que as condições
-
172
-
precárias em que essas pessoas vivem causam nos indivíduos que compõem os segmentos mais
privilegiados, despertando o desejo destes de viverem e consumirem em espaços, separados social e
fisicamente do restante dos espaços da cidade, considerados deteriorados pela presença das pessoas
mais pobres.
Sendo assim, nesse processo engendrado pelo crescimento e espalhamento da sensação de
insegurança, as formas das pessoas se relacionarem com os espaços e com as outras pessoas se
alteram. Para Bauman (2007, p. 15), o principal não é o medo do perigo, mas aquilo no qual esse
medo pode se desdobrar, ou seja, o que ele se torna. A vida social altera-se quando as pessoas
vivem atrás de muros, contratam seguranças, buscam estratégias individuais para conter a
insegurança. O problema é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir o senso de
desordem que essas ações buscam evitar. “São nossas respostas que reclassificam as premonições
sombrias como realidade diária, dando corpo à palavra”, conferindo proximidade e tangibilidade
ao medo.
4.1. A insegurança total: disseminação do discurso da insegurança em cidades médias e
pequenas
Esse sentimento de insegurança propagado e reforçado por diferentes agentes acaba sendo
internalizado pela sociedade, levando a um processo de limitação da liberdade de apropriação dos
espaços urbanos. Devido ao sentimento generalizado de insegurança, que vem sendo atrelado aos
espaços urbanos, as pessoas alteram suas atividades cotidianas, buscando, de acordo com suas
condições sociais, cada vez mais, espaços tidos como seguros em detrimento daqueles em que a
sensação de insegurança é maior.
A partir das entrevistas realizadas no âmbito da pesquisa sobre os loteamentos fechados
ribeirinhos, implantados em cidades pequenas e destinados à segunda residência de pessoas
provenientes, na maior parte dos casos, de cidades médias, pudemos constatar que esse caráter de
insegurança urbana não é uma exclusividade apenas das grandes cidades. O sentimento de
insegurança está generalizado e se encontra também nas pequenas e médias cidades, mesmo
naquelas em que os índices de criminalidade não o justificam.
Assim, os entrevistados alegaram ter percebido um aumento da insegurança nas cidades em
que habitam e nas cidades em geral, mesmo não sendo considerável o número de pessoas
entrevistadas que tiveram alguma experiência pessoal de violência. uma percepção comum de
que as cidades, como um todo, estão mais inseguras. De acordo com uma entrevistada:
A situação das cidades piorou muito. Hoje em dia ninguém pode mais ficar
tranqüilo. Não é mais como antigamente, que a gente podia levar uma vida mais
calma, sem preocupação. Hoje a gente tem que estar sempre prestando atenção,
não pode bobear, porque senão pode acontecer alguma coisa. A gente acaba
vivendo sempre com medo. Eu, por exemplo, não tenho mais coragem de sair
sozinha à noite. Antigamente não era assim, dava pra confiar mais.
(aposentada,
-
173
-
55 anos, proprietária de casa no Loteamento Portal da Praia, residente na cidade
de Birigui)
Podemos observar na fala dessa entrevistada que ela faz uma contraposição do período atual,
em que não podemos mais confiar, ao passado, em que se podia levar uma vida calma, sem
preocupações. Ao ser questionada se ela ou alguém da família tinha vivido alguma experiência
de violência, a resposta foi negativa. Segundo ela,
Hoje a gente não precisa viver a violência para saber que ela está presente. A gente
em todo lugar, todo mundo comenta. As coisas chegaram numa situação que
todo mundo já sabe que ficou perigoso. Não dá para esperar acontecer, para
depois ter medo. A gente sabe, não vai arriscar.
A partir dessa declaração, observamos que o sentimento de insegurança faz com que as pessoas
ajam por antecipação. Elas não vão esperar a violência se aproximar objetivamente delas para se
defenderem. Dessa forma, suas ações contra situações de insegurança, muitas vezes imaginadas,
vão servir para engrossar o discurso do aumento da insegurança e as práticas socioespaciais dele
decorrentes.
Outros entrevistados destacam o fato de que a insegurança chegou às cidades médias e
pequenas:
A segurança não é mais uma preocupação de quem mora em cidade grande.
Não tem mais essa divisão. A violência está em toda parte. É claro que em menor
grau, mas ela existe também nas cidades menores. Não tem mais essa coisa de falar
que cidade pequena é melhor pra morar porque é mais segura. A gente tá cansado
de ver que a violência chegou aqui também. Pode ser melhor
(viver em cidades
menores)
por outros motivos, mas por causa da segurança não. Tá complicado. Não
tem mais para onde correr.
(42 anos, dentista, proprietária de casa no loteamento
Orla Um, residente na cidade de São José do Rio Preto)
Eu acho que a situação hoje está difícil em todo lugar. A gente liga a televisão e
coisa ruim acontecendo. É gente matando, roubando, parece que as pessoas
perderam um pouco da sua humanidade. E pelo que a gente percebe, essa é uma
situação generalizada. A gente vê casos acontecendo aqui no interior também. Não
é só em São Paulo que as coisas estão perigosas, não. As coisas começaram a mudar
também por aqui. (41 anos, funcionária pública, proprietária de casa no loteamento
Portal da Praia)
A insegurança aumentou muito sim. Hoje por todo lado as pessoas perderam a
confiança umas nas outras. Antes você não tinha tanta preocupação porque as
coisas eram mais calmas. Hoje parece que a gente vive constantemente numa
situação de descontrole. Não conseguimos mais controlar as coisas. É por isso que a
gente vive com mais medo e acaba tomando mais cuidado. (51 anos, frentista,
residente na cidade Penápolis)
Parece até mentira, mas é verdade sim. A violência aumentou aqui também. É
uma situação generalizada. A bandidagem atualmente circula de um lugar para o
outro. Aí, vai espalhando a insegurança em todas as partes. A gente não se sente
mais seguro, fica sempre desconfiado, achando que pode acontecer alguma coisa.
Então, a insegurança aumentou aqui também. (52 anos, aposentada, residente na
cidade de Zacarias)
Percebemos, assim, que tanto os entrevistados, residentes em cidades médias e que possuem
ranchos nos loteamentos fechados ribeirinhos, quanto os moradores das cidades em que estão
-
174
-
implantados esses empreendimentos, os quais foram entrevistados, apresentam a concepção de que
a insegurança aumentou.
Os entrevistados que residem nas áreas rurais próximas aos loteamentos fechados ribeirinhos
também relataram a percepção de que a insegurança havia aumentado e atingido atualmente
todas as cidades, independentemente de seus tamanhos, e que a insegurança está começando a
atingir também as áreas rurais. Para ilustrar essa visão, destacamos alguns depoimentos obtidos nas
entrevistas.
É uma coisa preocupante, porque a maldade humana está em todos os lugares.
Tanto nas cidades grandes como nas pequenas. Então, a gente percebe que, hoje
em dia, as cidades estão mais perigosas. Antigamente a gente não ouvia falar em
tanta maldade como a gente hoje. Tá ficando cada vez mais perigoso. Até aqui
no sítio a gente anda ficando com mais medo das coisas. A gente não deixa mais
o sítio sozinho, quando a gente vai pra cidade fazer compras. (...) Então, eu acho
sim, que houve um aumento da insegurança, mas não é nas cidades, é em todos
os lugares. (
51 anos, residente em Buritama, próximo ao loteamento ribeirinho
Riviera Santa Bárbara)
Com certeza, as coisas estão diferentes. Acho que é em geral. A gente no Rio de
Janeiro, as balas perdidas, a gente as coisas nas cidades grandes. Mas não é
que a cidade está ficando mais perigosa. Aqui também, a gente assiste no jornal da
região, e todo dia tem algum crime que aconteceu, algum roubo. Então as pessoas
acabam ficando com mais medo, nas cidades pequenas igual às cidades grandes. E
posso falar até que não é só nas cidades, na roça também. Porque ninguém tá livre
de que alguma coisa ruim acontecer. (
53 anos, residente na cidade de Zacarias,
próximo ao loteamento ribeirinho Marina Bonita)
Dessa forma, as cidades menores, antes consideradas como redutos de tranqüilidade e
segurança, passam a perder, mesmo que simbolicamente, essa qualidade, sendo “contaminadas”
também pela idéia de que a insegurança generalizou-se nos espaços urbanos. É indiscutível que o
sentimento de insegurança está presente nessas cidades e começa a alterar as formas de vivenciá-
las. No entanto, precisamos nos perguntar se esse sentimento de insegurança, nas cidades médias e
pequenas, origina-se de fatos reais ou se é fruto do processo de amplificação e generalização do
sentimento e da midiatização da insegurança.
Os escritos de Pedrazzini (2006, p.99) nos ajudam a pensar essa questão ao ressaltar que:
Os fenômenos da violência das grandes cidades e o sentimento de insegurança dos
seus habitantes são indicadores e fatores de uma transformação radical do espaço
urbano. A ‘reconquista’ da segurança individual e coletiva nas cidades do Norte e
do Sul realiza-se por meio de uma luta contra os atores da violência urbana e os
responsáveis pela ‘insegurança’, favorecendo a criação de um mercado atrativo. O
problema não se restringe às grandes cidades e o parece fundado em
situações reais, pois observamos o sentimento de insegurança invadir
igualmente cidades médias e pequenas, inclusive aquelas onde não
foram constatados incidentes violentos recentes, mas que se encontram
expostas à globalização desse sentimento urbano, hoje também perceptível em
meio rural. (grifos nossos)
-
175
-
O autor coloca-nos a possibilidade de que o sentimento de insegurança nas cidades não esteja
baseado apenas em fatos de violência urbana concreta. Segundo Bauman (2008, p. 9), os seres
humanos conhecem um tipo de medo diferente do encontrado nos animais:
(...) uma espécie de medo de segundo grau”, um medo, por assim dizer, social e
culturalmente “reciclado”, ou (como o chama Hughes Lagrange em seu
fundamental estudo do medo) um “medo derivado” que orienta seu
comportamento (tendo primeiramente reformado sua percepção do mundo e as
expectativas que guiam suas escolhas comportamentais), quer haja ou não uma
ameaça imediatamente presente.
Para Bauman (2008, p. 9/10), o “medo derivado” é uma estrutura mental estável que consiste
em um sentimento de estar suscetível ao perigo, uma sensação de insegurança e vulnerabilidade.
Esses sentimentos estão mais ligados à falta de confiança nas defesas disponíveis do que no volume
ou na natureza das ameaças reais. Dessa forma, uma pessoa que tenha interiorizado uma visão de
mundo que inclua a insegurança e a vulnerabilidade, recorrerá rotineiramente, mesmo na ausência
de uma ameaça genuína, à situações que busquem lhe dar proteção. Assim, o “medo derivado”
pode ser facilmente dissociado dos perigos que o causam.
Para tentar elucidar esse ponto na realidade estudada, fomos buscar os dados disponíveis sobre
a criminalidade, nas cidades em que estão implantados os loteamentos ribeirinhos estudados e
também nas principais cidades onde residem os proprietários dos imóveis localizados nos
loteamentos fechados ribeirinhos: Araçatuba, São José do Rio Preto e Birigui. Para estabelecer um
referencial de comparação, buscamos os índices de criminalidade em São Paulo, capital do estado,
e em Campinas, tida como uma das cidades mais violentas do Estado de São Paulo.
Para chegar a um número que nos desse indicações da situação da criminalidade nessas
cidades, elegemos alguns tipos de crimes contra o patrimônio e contra a pessoa, que consideramos
os mais relevantes e presentes no cotidiano urbano, de forma geral e que fazem parte da
construção da idéia dominante de violência urbana.
É importante ressaltar, para se contextualizar a análise dos dados, que existe uma gama de
ações que podem ser consideradas como violência, das mais corriqueiras como um xingamento, às
mais complexas como um homicídio. Dessa forma, seria praticamente impossível analisar a presença
de todas as manifestações violentas presentes nessas cidades, diante da própria dificuldade de
definir o que seja essa violência. Diante disso, selecionamos algumas infrações criminais que nos
permitem realizar um quadro que, se não completo, mostra-se ilustrativo da situação dessas
cidades, no que diz respeito ao que vem se denominando como violência.
Dessa forma, analisamos o número total, no período de 1997 a 2005, de ocorrências registradas
dos crimes a seguir: homicídio doloso, roubo consumado, roubo de veículos consumado, roubo
seguido de morte, extorsões, furto consumado, furto de veículos consumado, estupro consumado e
tráfico de entorpecentes
8
.
8
Ver tabelas com os dados levantados, no apêndice metodológico em anexo.
-
176
-
Para obter números mais elucidativos em relação à presença de atos tidos como violentos nessas
cidades, somamos o número de ocorrências registradas em cada um desses crimes e chegamos ao
número de ocorrências totais, por ano. Depois, dividimos esse número pelas projeções populacionais
(IBGE) para cada município, para cada ano respectivo e multiplicamos o resultado por mil,
chegando ao número total de ocorrências por mil habitantes
9
. A partir disso, elaboramos o gráfico 1,
que apresenta a variação do total das ocorrências consideradas somadas, divididas por mil
habitantes.
Gráfico 1 – Diversos municípios. Total de ocorrências por mil habitantes – 1997/2005
A partir do gráfico, vemos as variações do total de ocorrências em cada cidade estudada,
durante o período selecionado. Podemos observar que a cidade de Campinas apresenta os maiores
índices de ocorrência dos crimes selecionados, por mil habitantes, superiores, inclusive, aos
encontrados na cidade de São Paulo. Esse fato coloca-nos a necessidade de refletirmos sobre a
relação entre o tamanho populacional da cidade e a ocorrência de atos violentos. Nem sempre,
como esse caso mostra, as cidades maiores são as mais violentas, precisamos tomar cuidado para
não estabelecer generalizações incorretas. Para facilitar a compreensão do gráfico, apresentamos
no quadro 3 as informações que basearam sua organização.
9
Para um melhor detalhamento dos procedimentos metodológicos, ver apêndice metodológico em anexo.
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
Zacarias
Buritama
Penápolis
Birigui
Araçatuba
São José do Rio
Preto
São Paulo
Campinas
Fonte: Acervo de dados em segurança pública – ADeSP – SEADE –
Organização: Maria Angélica de Oliveira
-
177
-
Quadro 3 Diversos municípios. Total de ocorrências criminosas: números absolutos e por mil
habitantes
Ano
Zacarias Buritama
Penápolis Birigui Araçatuba
São
José do
Rio
Preto
São
Paulo
Campinas
Ocorrências
Totais
6 94 689 1.233 1.431 3.425 241.606
24.085
1997
Ocorrências
por mil
habitantes
3,4 6,8 1,3 13,8 8,6 10,2 24,4 26,0
Ocorrências
Totais
12 97 742 1.241 2.255 4.660 291.329 27.453
1998
Ocorrências
por mil
habitantes
6,9 6,9 13,9 13,5 13,4 13,5 29,34 29,2
Ocorrências
Totais
12 137 638 1.036 2.115 6.283 326.710 32.546
1999
Ocorrências
por mil
habitantes
7,0 9,6 11,7 10,9 12,4 17,8 32,7 34,2
Ocorrências
Totais
9 122 688 1.185 3.247 6.618 326.723
38.003
2000
Ocorrências
por mil
habitantes
5,3 8,4 12,5 12,1 18,9 18,3 32,6 39,4
Ocorrências
Totais
13 300 1.248 1.638 3.570 7.400 321.879 36.587
2001
Ocorrências
por mil
habitantes
6,6 21,4 22,5 16,9 20,8 20,1 30,6 37,2
Ocorrências
Totais
18 187 729 1.782 3.849 7.279 319.202 30.874
2002
Ocorrências
por mil
habitantes
9,2 13,2 13 18,1 22,2 19,4 30,1 31,0
Ocorrências
Totais
22 243 837 1.995 4.432 8.229 336.296
33.592
2003
Ocorrências
por mil
habitantes
11,3 17,1 14,7 19,9 25,4 21,5 31,4 33,3
Ocorrências
Totais
28 276 1.028 1.763 4.268 8.996 333.903
34.274
2004
Ocorrências
por mil
habitantes
14,4 19,1 17,7 16,9 24,0 22,5 30,8 33,2
Ocorrências
Totais
13 291 1.004 1.914 3.758 8.498 326.380
34.611
2005
Ocorrências
por mil
habitantes
6,7 20,0 17,12 18,0 20,9 20,8 29,8 33,3
Fonte: Acervo de dados em segurança pública – ADeSP – SEADE
Organização: Maria Angélica de Oliveira
Podemos observar que, de maneira geral, os índices de ocorrências aumentaram em todas essas
cidades, no período selecionado. Em Zacarias, o número de ocorrências por mil habitantes subiu de
3,4 para 6,7, sendo os anos de 2003 (11,3) e 2004 (14,4) os que apresentaram o maior número de
ocorrências. Buscando os números brutos, vemos que em 2003 foram registrados na cidade, um
-
178
-
roubo e 21 furtos e, em 2004, dois roubos, 25 furtos e uma ocorrência por tráfico de entorpecentes.
(ADeSP – SEADE)
10
Em Buritama, tivemos uma variação, com a passagem de 6,8 ocorrências por mil habitantes,
em 1997, para 20 ocorrências por mil habitantes em 2005, sendo que o ano que apresentou maior
número de ocorrências registradas foi o de 2001, com 21,4 ocorrências por mil habitantes.
Em Penápolis, o mero de ocorrências passou de 1,3 para 17,12, sendo o ano de 2001 o que
apresentou o maior número de ocorrências por mil habitantes – 22,5.
Birigui teve um aumento de 13,8 ocorrências para 18,0 apresentando em 2003 o maior número
– 19,9.
Em Araçatuba o aumento é representado por uma passagem de 8,6 ocorrências registradas por
mil habitantes, em 1997, para 20,9 ocorrências, em 2005, sendo 2003 o ano em que foram
registradas mais ocorrências – 25,4.
Em São José do Rio Preto, o número total de ocorrências registradas por mil habitantes passou
de 10,2 para 20,8, sendo 2004 o ano em que foram registradas mais ocorrências – 22,5.
A cidade de São Paulo teve uma passagem de 24,4 ocorrências registradas para 29,8, sendo
1999 a ano que apresentou mais ocorrências registradas – 32,7.
Em Campinas, observa-se evolução de 26,0 ocorrências registradas, em 1997, para 33,3, em
2005, sendo 2000 o ano que apresentou mais ocorrências registradas – 39,4
11
.
Então, diante do crescimento do mero total de ocorrências, no período estudado, também
nas cidades médias e pequenas, deveríamos considerar procedente essa generalização do
sentimento de insegurança nessas cidades, afirmando que ele encontra respaldo nos índices
apresentados?
Tentando aprofundar um pouco a análise, consideramos necessário qualificar esse número de
ocorrências registradas por mil habitantes, com o qual estamos trabalhando, visto que percebemos
que os tipos de ocorrência que predominam, nas cidades analisadas, são diferentes entre si.
No decorrer do período analisado, observamos que nas cidades pequenas - Buritama, Penápolis
e Zacarias - a maior parte das ocorrências registradas diz respeito a furtos, definidos no artigo 155 do
Código Penal como sendo a subtração, para si ou para outrem, de coisa alheia móvel. Nesse caso,
não o exercício direto de violência. É praticamente irrelevante o mero de homicídios, roubos,
latrocínios (roubos seguidos de morte), estupros, extorsão e tráfico de drogas nessas cidades.
Nas cidades médias e de porte médio - Birigui, Araçatuba e São José do Rio Preto - de onde
provêm a maior parte dos proprietários de casas nos loteamentos fechados ribeirinhos estudados,
que são, portanto, os espaços a partir dos quais os consumidores desses empreendimentos constroem
10
Ver dados brutos no apêndice metodológico, em anexo.
11
Sabemos das limitações dessa análise, visto que estamos trabalhando somente com as ocorrências
registradas, não levando em consideração aqueles atos que aconteceram e que, por diversas razões, não
foram registrados nas delegacias de polícia.Outro fator importante na constituição desses indicadores é a
própria posição da polícia, que pode dar mais ênfase a alguns crimes e mostrar desinteresse no registro de
outros.
-
179
-
suas percepções sobre a segurança, os furtos continuam a representar o maior número das
ocorrências registradas. Começam, no entanto, a aparecer os roubos, definidos pelo artigo 157 do
Código Penal, como sendo a subtração de coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante
grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência. Crimes como homicídio, tráfico e estupro começam a aparecer
também nessas cidades, embora em números pequenos. Dessa forma, percebemos que a
complexidade dos crimes começa a aumentar nessas cidades, ainda que não atinja veis
predominantes.
Em São Paulo e Campinas, observamos a presença significativa de todos os tipos de crimes
selecionados para a análise, sendo a maior parte das ocorrências registradas constituídas por roubos.
Sendo assim, podemos considerar que o número de tipos de atos tidos como violentos a que uma
pessoa que mora em uma cidade grande pode estar exposta, é muito maior do que o que ameaça,
efetivamente, as pessoas que residem nas cidades menores. Para ilustrar essa afirmação,
apresentamos o gráfico 2, que mostra o número de ocorrências registradas por mil habitantes, por
roubo, nas cidades estudadas, em 2005.
Gráfico 2 Diversos municípios. Total de ocorrências registradas por mil habitantes - Roubo
2005
*O município de Zacarias não apresentou nenhum registro de roubo no ano de 2005.
Fonte: Acervo de dados em segurança pública – ADeSP – SEADE
Organização: Maria Angélica de Oliveira
Como podemos observar a ocorrência de roubos, que pressupõem violência, é muito menor nas
cidades em que estão implantados os loteamentos fechados ribeirinhos. O perigo efetivo que as
pessoas residentes nessas cidades correm, é representado, principalmente, pelos furtos. Os dados
mostram que, nas cidades pequenas e médias, a variedade de crimes a que uma pessoa está
0
2
4
6
8
10
12
2005
Buritama
Penápolis
Birigui
Araçatuba
São Jo do Rio
Preto
São Paulo
Campinas
-
180
-
sujeita, é reduzida, mas os níveis de insegurança demonstrados pelas pessoas entrevistadas revelam
que elas não têm medo apenas de serem furtadas, mas têm medo de todas as potenciais ameaças.
Nesse sentido, consideram-se tão vulneráveis quanto as pessoas que residem nas cidades maiores,
que estão expostas efetivamente um leque maior de atos considerados violentos. Sendo assim, a
criação do sentimento de insegurança não pode ser considerada, simplesmente, como resultado dos
índices objetivos de criminalidade.
Voltando à alise dos dados levantados, verificamos um fato interessante. Quando
observamos, individualmente, os furtos, o mero de ocorrências por mil habitantes das cidades
menores é semelhante ou superior ao das cidades maiores, como podemos ver no gráfico 3:
Gráfico 3 Diversos municípios. Total de ocorrências registradas, tipo furto, por mil habitantes
2005
Fonte: Acervo de dados em segurança pública – ADeSP – SEADE
Organização: Maria Angélica de Oliveira
Consideramos que esses altos índices de ocorrências encontradas para furtos, nessas cidades
menores, são resultado da facilidade de registrar esse tipo de acontecimento em cidades desse
porte. Fatores como, maior acessibilidade aos distritos policiais, visto que as distâncias são menores
nas cidades de menor dimensão, disponibilidade de tempo, possibilidade maior de acompanhar o
andamento das investigações, possibilidade maior de reaver o objeto furtado e até mesmo a
postura das autoridades policiais dessas cidades, podem levar as pessoas residentes em cidades
menores a registrarem mais as ocorrências de furtos.
Nessas cidades, se a pessoa tem uma galinha ou as roupas do varal furtadas, provavelmente ela
registrará a ocorrência na delegacia, fato que dificilmente ocorrerá em uma cidade grande. No que
diz respeito aos crimes mais graves, como homicídios e roubos, acreditamos que o número de
ocorrências registradas seja mais fiel à realidade. Se formos analisar a evolução das taxas de registro
de ocorrências por mil habitantes, sem a consideração dos furtos, que parecem mascarar um pouco
0
2
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2005
Zacarias
Buritama
Penápolis
Birigui
Araçatuba
São José do Rio Preto
São Paulo
Campinas
-
181
-
a situação real, veremos que a disparidade entre os números encontrados nas cidades menores e os
encontrados nas cidades grandes é mais acentuada, como demonstrado no gráfico 4:
Gráfico 4 Diversos municípios. Total de ocorrências registradas por mil habitantes (sem furtos)-
1997/2005
Fonte: Acervo de dados em segurança pública – ADeSP – SEADE
Organização: Maria Angélica de Oliveira
Campinas e São Paulo distanciam-se do restante do grupo de cidades estudadas, sendo que, no
início do período analisado, Campinas apresenta números mais elevados que São Paulo. Esses
números vão diminuindo e São Paulo passa a apresentar números maiores, sendo que, no final do
período, as duas cidades apresentam praticamente os mesmos índices. As outras cidades ficam bem
abaixo dessas, não ultrapassando cinco ocorrências por mil habitantes.
A análise que apresentamos aqui é parcial, visto que existem muitos outros aspectos a serem
analisados para estabelecermos um quadro completo que revele a situação dessas cidades
estudadas quanto à presença da chamada violência urbana e a influência desta na composição do
sentimento de insegurança.
Precisaríamos analisar a distribuição dessas ocorrências pelos bairros dessas cidades, para ver se
existe uma concentração ou se elas ocorrem de forma generalizada ou homogêna pelo tecido
urbano; precisaríamos analisar a diferença entre registros de ocorrências e instauração de inquéritos;
seria interessante qualificar melhor os tipos de ocorrências e observar quais delas têm mais impacto
na percepção das pessoas e, também, precisaríamos considerar o fato de que os atos violentos têm
alcances diferentes nas cidades grandes e nas cidades pequenas.
Isso porque, por exemplo, numa cidade como Buritama, a ocorrência de apenas um homicídio
pode gerar uma sensação de insegurança na cidade inteira, visto que o fato terá visibilidade e será
0
5
10
15
20
25
30
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
Zacarias
Buritama
Penápolis
Birigui
Araçatuba
São Jodo Rio
Preto
São Paulo
Campinas
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182
-
de conhecimento da maior parte de seus habitantes. Já, em uma cidade com as dimensões de São
Paulo, podemos ter múltiplas situações de acordo com as características sociais do bairro em que o
homicídio ocorrer. Nos bairros onde os índices de criminalidade são maiores, a ocorrência de um
homicídio terá um impacto individual muito menor, podendo ser identificado apenas como mais
um crime, entre os que estão constantemente acostumados a presenciar. No entanto, se o homicídio
acontecer em um bairro considerado como mais calmo, o impacto desse homicídio será maior.
Mesmo assim, diante da diluição que um acontecimento como esse tem nas grandes cidades, diante
da grande extensão territorial desses espaços e, também, do grande número de pessoas que ali
residem, consideramos que o impacto simbólico que um homicídio pode causar em uma cidade
grande é bem menor do que nas cidades pequenas, respeitando, é claro, as singularidades de cada
bairro das cidades maiores.
Em uma cidade pequena, têm-se a impressão de que todos são, de uma forma ou de outra,
conhecidos. Quando um crime acontece com alguém da cidade, têm-se a percepção de que a
violência está mais próxima. Esse fato não tem o mesmo impacto em uma cidade maior, onde as
pessoas, diante de seu grande número, não conhecem umas às outras.
Precisamos avançar na análise da constituição do sentimento de insegurança nas cidades de
diferentes dimensões, vista a complexidade de fatores que se unem para compor esse sentimento. O
que pretendemos com a apresentação desses dados e desses gráficos, é mostrar que não podemos
entender o sentimento de insegurança das cidades estudadas apenas relacionando-o com os índices
registrados de criminalidade. Precisamos estar atentos para as múltiplas determinações que
perpassam a percepção que as pessoas associam aos espaços urbanos.
Dessa forma, concluímos que a proliferação de loteamentos fechados ribeirinhos, nas cidades
estudadas, não pode ser entendida, apenas, como uma reação ao aumento da insegurança real ou
objetiva. Existem questões subjetivas e ideológicas que entram na composição desse sentimento de
insegurança e na constituição da demanda por esses empreendimentos, sendo que esse sentimento
deve ser qualificado e tratado de forma diferente nos diversos contextos socioespaciais em que
aparece.
A partir dos dados levantados e pelos relatos das pessoas entrevistadas, concluímos que a
disseminação do sentimento de insegurança, nas cidades estudadas, está ligada à manipulação de
certos elementos subjetivos, mais do que aos fatos concretos. Os índices de criminalidade não
sofreram aumentos tão consideráveis que justificassem essa percepção generalizada do aumento da
insegurança. A maior parte dos entrevistados não sofreu nenhum tipo de violência, nem conhecia
pessoas que houvessem tido algum contato com ocorrências tidas como violentas, como
afirmaram em suas respostas à questão relativa a esse ponto, constante em nosso roteiro de
entrevista.
Sendo assim, as pessoas parecem não formar sua concepção sobre a insegurança a partir apenas
do contexto em que vivem, ou seja, de sua realidade imediata. A percepção de insegurança é
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183
-
formada a partir da internalização e transposição dos discursos gerais sobre a insegurança urbana,
divulgados pela mídia e por outros agentes sociais, como os empreendedores imobiliários, as
agências de seguros, os políticos, entre outros.
Por essa razão, fatos ocorridos em outros contextos são apontados como evidências do aumento
da insegurança local. Por exemplo, um entrevistado residente na cidade de Buritama apontou a
facção conhecida como PCC como uma das causadoras do aumento da violência. No entanto, não
há registros da ação efetiva desse grupo na cidade.
Todo mundo pôde acompanhar pela televisão o caso daqueles ataques cometidos
pelo PCC. Eles mostraram que são um grupo organizado, estão espalhados por
várias cidades. São mais organizados que a própria polícia. Então, como a gente
pode ficar seguro? Se os bandidos estão tomando conta? A polícia não consegue dar
jeito neles não. A gente é que tem que tentar se proteger. Tem que tentar evitar
certas situações, porque o perigo é grande.
(56 anos, comerciante)
Sobre essa visibilidade dos fatos ocorridos em lugares distantes, Bauman (2007, p. 11), aponta
que
A miséria humana de lugares distantes e estilos de vida longínquos, assim como a
corrupção de outros lugares distantes e estilos de vida longínquos, são apresentadas
por imagens eletrônicas e trazidas para casa de modo tão nítido e pungente,
vergonhoso e humilhante como o sofrimento ou a prodigalidade ostensiva dos seres
humanos próximos de casa, durante passeios diários pelas ruas das cidades.
Reforçando as idéias transcritas, destacamos que Bauman afirma que elementos distantes e
longínquos são trazidos para dentro da casa das pessoas, sendo percebidos por elas como se fizessem
parte de sua realidade cotidiana.
Portanto, um dos fatores que vêm contribuindo para a generalização da sensação de
insegurança nas cidades médias e pequenas está ligado a esse fato. Diante da facilidade de se
conseguir informações sobre diversas partes do mundo e da grande visibilidade que os atos violentos
adquiriram na mídia, os residentes de cidades médias e pequenas acabam internalizando e
transpondo essas situações objetivas de violência para suas realidades. Dessa maneira, vivenciam as
inseguranças de espaços longínquos como se fossem peculiares aos seus espaços próximos.
Assim, a veiculação na mídia do aumento da insegurança de alguns espaços específicos contribui
para a formação de uma percepção generalizada de insegurança, mesmo nos espaços em que essa
insegurança não se justifica objetivamente.
Outro fator que contribui para esse aumento da sensação de insegurança nas cidades estudadas
é a própria produção de empreendimentos como os loteamentos fechados ribeirinhos. Por serem
espaços fechados, com acesso controlado e, desse modo, alcançarem maiores preços no mercado
imobiliário, esses empreendimentos ratificam a presença da insegurança e a necessidade de
proteção nas cidades em que estão implantados. Ou seja, por estarem materializados no espaço
dessas cidades, os loteamentos fechados ribeirinhos indicam uma mudança, visto que demonstram
espacialmente que existe uma necessidade maior de preocupação com a segurança, por meio do
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184
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fechamento e da utilização de dispositivos de segurança. Acabam assim, aumentando as
possibilidades de generalização da sensação de insegurança.
Esse fato ganha peso ao considerarmos que os loteamentos fechados ribeirinhos, assim como os
outros tipos de loteamentos fechados, são espaços produzidos simbolicamente como ideais, como
modernos, como sendo portadores de qualidades superiores às encontradas nos outros espaços das
cidades. Ao serem associados com essas imagens, os loteamentos fechados passam a se constituir em
modelos ou exemplos a serem seguidos. Assim, quem não pode comprar uma casa dentro de um
loteamento fechado passa a adotar outras medidas de segurança fora dos muros para não
deixarem de participar dessa verdadeira “estética de segurança”, como definida por Caldeira
(2000). Observa-se um ciclo constante de alimentação e amplificação da sensação de insegurança,
em que uma atitude de defesa gera mais insegurança, que vai gerar mais atitudes de defesa, que
irão gerar mais insegurança e assim por diante.
Concluímos, desse modo, que as cidades médias e pequenas, que ao longo da urbanização,
foram sendo associadas a imagens de espaços tranqüilos e pacatos, lugares seguros para se viver,
longe da agitação e dos perigos encontrados nas cidades grandes, não podem mais ser
consideradas a partir dessa perspectiva.
Por meio da transposição, objetiva ou subjetiva, da sensação de insegurança para esses espaços,
criou-se uma imagem genérica e automática de que todos os espaços urbanos, sejam eles de maior
ou menor dimensão demográfica, são inseguros e, neles, é preciso adotar-se medidas para conter
essa insegurança. Assim, a análise do sentimento de insegurança urbana deve ser levada em
consideração também para a compreensão dos processos de produção do espaço em cidades
médias e pequenas.
4.2. A simulação da segurança: aspectos materiais e simbólicos do oferecimento de
segurança nos loteamentos fechados ribeirinhos
Destacamos, nos capítulos anteriores, que a principal motivação que levou os entrevistados a
comprarem lotes nos loteamentos fechados ribeirinhos diz respeito à busca por espaços de lazer em
contato com a Natureza. No entanto, os consumidores desses espaços escolherem desfrutar desses
momentos de contato, em espaços fechados e de acesso controlado. Esse fato justifica as discussões
que realizamos neste capítulo acerca da insegurança urbana.
Vários autores que analisam a produção de loteamentos fechados em diferentes contextos
socioespaciais indicam que a busca por segurança é um dos motivos chave para a compreensão
desse fenômeno. A partir das entrevistas realizadas, das observações em campo e da análise dos
materiais de divulgação dos loteamentos fechados ribeirinhos, constatamos que a escolha desses
espaços específicos de lazer, foi feita considerando-se a segurança que esses empreendimentos
oferecem. Assim, depois de decidirem buscar um espaço de lazer que oferecesse um relacionamento
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185
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mais direto com a Natureza, as pessoas levaram em consideração a questão da segurança. Desse
modo, poderiam ter comprado ranchos fora dos loteamentos fechados ribeirinhos, mas preferiram
estar em espaços mais seguros.
A partir disso, surge a necessidade de que analisemos o conteúdo dessa segurança buscada pelas
pessoas e a segurança efetivamente oferecida por esses espaços. Como podemos observar nas
figuras de 22 a 27 e nas fotos de 29 a 34, os loteamentos fechados ribeirinhos são espaços de acesso
controlado, nos quais todos que adentram seus muros são obrigados a se identificar nas portarias.
Fonte: Google Earth, 16 jun 2006
.
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Figura 23 – Penápolis. Loteamento Recanto
Belvedere
Foto 30 – Portaria do loteamento Recanto
Belvedere. 2008
Fonte: Google Earth, 16 jun 2006
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Foto 29
– Portaria do loteamento Marina
Bonita. 2008
Figura 22 – Zacarias. Loteamento Marina Bonita
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Fonte: Google Earth, 16 jun 2006.
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Foto 31
Portaria do loteamento
Jardim
Itaparica. 2008
Figura 24 – Buritama. Loteamento Jardim
Itaparica
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Fonte: Google Earth, 16 jun 2006.
Figura 25 - Buritama. Loteamento
Riviera Santa Bárbara
Foto 32 - Portaria do loteamento
Riviera Santa Bárbara. 2008
Fonte: Google Earth, 21 de maio de 2008
Figura 26 - Buritama. Loteamento
Portal da Praia
Foto 33 - Portaria do loteamento
Portal da Praia. 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
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187
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Sendo assim, os loteamentos fechados ribeirinhos são identificados, como os outros tipos de
loteamentos fechados e empreendimentos de acesso controlado, como ambientes providos de uma
segurança total. Coerentemente com essa visão, os entrevistados demonstraram a partir de seus
discursos, que nos loteamentos fechados ribeirinhos, sentiam-se mais seguros e podiam ficar mais
tranqüilos dentro de seus muros, ou seja, identificaram os loteamentos fechados ribeirinhos como
espaços notadamente mais seguros que a cidade aberta.
Dessa maneira, os entrevistados revelaram que a questão da segurança foi um fator de atração
para a compra de lotes nesses empreendimentos fechados ribeirinhos, como podemos observar nos
depoimentos a seguir.
O fato de que o rancho fica em um loteamento fechado foi importante para que
nós escolhêssemos esse aqui. Nós fomos ver outros ranchos, mas escolhemos aqui
justamente porque consideramos que aqui é mais seguro, podemos ficar mais
tranqüilos. A portaria e os guardas cuidam de tudo, então a gente pode considerar
que aqui é um espaço mais seguro, porque é mais vigiado, tem mais controle. (56
anos, médico, residente na cidade de São José do Rio Preto, proprietário de casa no
loteamento Marina Bonita)
Do jeito que as coisas estão hoje em dia, com a violência crescendo sempre mais, nós
preferimos um rancho em um condomínio fechado justamente para temos mais
segurança. Para que o rancho não se tornasse mais um motivo de preocupação pra
gente. No nosso dia-a-dia, estamos sempre alerta, prestando atenção nas pessoas,
nos lugares que a gente vai. Imagina se a gente fosse ficar a semana inteira
preocupado se as coisas estariam correndo bem aqui no rancho, se ninguém teria
invadido, roubado. Então, o fato de que aqui a gente tem o oferecimento da
segurança é muito importante sim. (48 anos, empresária, residente na cidade de
São José do Rio Preto, proprietária de casa no loteamento Orla Um)
Quando a gente chega aqui no condomínio parece que a gente vira outras pessoas.
Porque aqui não é um ambiente de tensão, de desconfiança como na cidade. Aqui
a gente tem a certeza de que podemos nos sentir em todos espaços, como se fosse
estivéssemos protegidos, separados do perigo. É como se todos os problemas ficassem
lá fora. Aqui dentro a gente está menos vulnerável. É muito mais seguro. Pena que
Fonte:
Google Earth, 21 de maio de 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Figura 27 – Buritama.
Loteamento Orla Um
Foto 34 – Portaria do loteamento
Orla Um. 2008
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a gente não pode conviver sempre em espaços que nos dão essa sensação. (49 anos,
empresária, residente na cidade de Andradina, proprietária de casa no loteamento
Jardim Itaparica)
Assim, na concepção de nossos entrevistados, os loteamentos fechados ribeirinhos são espaços
seguros, capazes de oferecer tranqüilidade e a sensação de que neles estão menos vulneráveis do
que na cidade aberta. Mas será que esses espaços são mesmo capazes de oferecer toda essa
segurança pretendida?
A partir da análise das formas de apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos e pela
análise das informações coletadas, comparando-as às respostas formuladas, pudemos constatar que
essa segurança oferecida, por meio do controle do acesso e pela vigilância, é relativa.
A segurança nunca foi e nunca poderá ser total, como aponta Bauman (2007, p. 16), quando
ressalta que nenhum dos ambientes sociais em que as realizações da vida humana têm sido
conduzidas, jamais ofereceram um seguro infalível contra os golpes do destino. Essa segurança total
existe no plano das idealizações e construções simbólicas, pois quando nos voltamos para as reais
condições de segurança oferecidas pelos loteamentos fechados ribeirinhos, observamos a existência
de algumas lacunas.
Primeiramente, um fator observado é que, em alguns loteamentos fechados ribeirinhos, as
pessoas equipam suas casas com sistemas adicionais de segurança. Por exemplo, encontramos várias
casas com portões altos, muros, cadeados nos portões, grades nas janelas, alarmes e até meras de
segurança, como podemos observar nas fotos 35, 36, 37 e 38. Essa busca de uma segurança
suplementar é por si indicadora de que, apesar do discurso de confiança na segurança oferecida
pelo loteamento, os proprietários não estão tão satisfeitos ou seguros assim.
Fotos 35, 36, 37 e 38 - Exemplos de ranchos, nos loteamentos ribeirinhos que utilizam muros e
grades para aumentar a segurança. 2008
Fonte: Maria Angélica de Oliveira, 2008
Fonte: Maria Angélica de Oliveira, 2008
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oto 35
F
oto 36
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Uma entrevistada que possui casa no loteamento Belvedere em Penápolis, quando indagada
sobre a razão da utilização de outros sistemas de segurança, além dos oferecidos pelo loteamento,
respondeu:
Bom, com segurança não se pode brincar. O condomínio é seguro, a gente confia.
Mas a gente investiu dinheiro nessa casa, ela é completa, tem todos os
eletrodomésticos, os móveis, tem tudo. Então, a gente não pode se dar ao luxo de
não tomar cuidado. Os guardas podem falhar, não é possível vigiar o condomínio
inteiro ao mesmo tempo. Nunca é demais estar prevenido, é por isso que a gente
fez os muros e colocou as câmeras, para ter mais segurança, caso alguma coisa
aconteça, estamos preparados.
(41 anos, empresária, residente no município de
Penápolis)
Outro entrevistado que possui casa no loteamento Marina Bonita em Zacarias, alega que:
Atualmente, para podermos ficar seguros, temos que fazer tudo que está ao nosso
alcance. Nós sabemos que o condomínio aqui é bem seguro, tem os guardas, não
pode entrar qualquer pessoa, é afastado da cidade. Essas coisas dificultam a ação
dos ladrões. Mas a gente tem a necessidade de complementar essa segurança.
Porque cada vez mais, os bandidos encontram meios de burlar a segurança. Nós
também temos que fazer nossa parte, dificultar a ação deles, não confiar somente
nas atitudes do condomínio.
(56 anos, médico, residente no município de São José do
Rio Preto)
A partir dessas falas, podemos perceber que mesmo considerando os loteamentos fechados
ribeirinhos como espaços seguros, por terem o acesso controlado por meio das portarias e pela
presença dos guardas, a preocupação com a segurança é tão grande que, mesmo dentro desses
espaços, as pessoas sentem a necessidade de uma complementação que possa garantir uma
segurança maior.
Uma hipótese que pode explicar essa busca suplementar por segurança nos loteamentos
fechados ribeirinhos es ligada ao fato de que, apesar do discurso e de toda a construção
ideológica para identificar os loteamentos fechados ribeirinhos como seguros, as pessoas não se
Maria Angélica de Oliveira, 2008
Maria Angélica de Oliveira, 2008
F
oto
37
F
oto 3
8
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sentem realmente seguras dentro de seus muros. Seus níveis de confiança nos sistemas oferecidos
não são tão altos como querem deixar transparecer em suas falas.
Nesse sentido, os entrevistados enaltecem a segurança desses espaços, muitas vezes
desconsiderando alguns eventos ocorridos dentro dos muros, encarando-os como eventualidades,
que não constituem a realidade rotineira dos loteamentos. Sobre essa questão, um entrevistado que
possui casa no loteamento Recanto Belvedere em Penápolis, destaca que:
Olha, eu fiquei sabendo de algumas coisas que aconteceram aqui dentro sim.
Mas já faz um tempo, é muito difícil de acontecer. Foram dois assaltos. No primeiro,
levaram bastante coisa, televisão, DVD, aparelho de som, ventilador, até bebidas e
carnes que estavam no freezer eles levaram. No outro caso roubaram só algumas
“tralhas” de pesca, varas, iscas. Mas foi isso. Todos os casos aconteceram à noite,
quando não tinha ninguém nas casas. Mas veja bem, as pessoas abusam. Não é
porque estamos num condomínio fechado que podemos deixar as coisas de
qualquer jeito, tem que guardar tudo direitinho, trancar, colocar cadeado. Por que
se não, acontece mesmo. Não acho que foi culpa do condomínio não, aqui é bem
seguro.
(52 anos, comerciante, residente na cidade de Birigui)
Observamos, assim, que esses casos havidos dentro do loteamento são percebidos pelo
entrevistado como fatos isolados, tendo ocorrido por causa do descuido das vítimas, que não
tomaram o devido cuidado. A ocorrência de crimes dentro dos muros não é considerada como uma
falha do loteamento e sim como uma negligência individual das vítimas.
A partir daí podemos começar a perceber as contradições presentes entre os discursos carregados
de simbologias dos entrevistados e as reais condições de segurança oferecidas por esses loteamentos
fechados. Se os loteamentos fechados ribeirinhos fossem tão seguros como os entrevistados deixam
transparecer em suas falas, não haveria a menor necessidade de se adotar medidas
complementares de segurança nas casas. Somente as medidas de segurança adotadas pelos
loteamentos seriam suficientes para garantir a tranqüilidade dos proprietários.
Ao dizer que é preciso
não abusar
”,
guardar bem as coisas
”,
trancar tudo
”,
“colocar
cadeados”
, porque se não, pode acontecer mesmo algum crime, o entrevistado se contradiz, que
havia considerado o loteamento bem seguro. Se o loteamento é seguro, não haveria motivos para
ter mais preocupações.
Esses depoimentos contraditórios estão presentes nos discursos de vários entrevistados, que,
mesmo considerando os loteamentos fechados ribeirinhos seguros, utilizam em suas casas,
dispositivos adicionais de segurança. Ou essas pessoas não acreditam em seus próprios discursos,
quando afirmam confiarem plenamente nos loteamentos, ou, numa segunda hipótese, estão de tal
forma “impregnadas” pelo sentimento de insegurança, que perderam o limite de percepção do que
seja seguro ou não.
A preocupação com a segurança adquire tamanha proporção na vida das pessoas que elas,
mesmo em espaços tidos como seguros, sentem a necessidade de se protegerem mais, de buscar
mais elementos que garantam sua segurança. Assim, somente lançando mão de inúmeros
dispositivos de segurança, é que podem chegar o mais perto possível de se sentirem seguras. Porque
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191
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mesmo buscando incessantemente essa segurança, cada vez com mais instrumentos e ações
preventivas, nunca atingirão um patamar em que se sentirão, ou estarão de fato, totalmente
seguras.
Esse sentimento de frustração, de nunca ver satisfeita, de forma plena, sua necessidade de
segurança, advém do fato de que as pessoas não estão, nesse caso, em busca da segurança real,
oriunda de situações materiais de insegurança. Elas estão estruturando suas necessidades a partir de
um processo de transposição, generalização e manipulação do sentimento de insegurança, que faz
com que as pessoas se sintam inseguras em todos os espaços urbanos, mesmo naqueles em que não
há evidências concretas de insegurança. Assim, abre-se um vasto mercado para a venda de
equipamentos e serviços de segurança, que se alimenta da reprodução e da amplificação constante
do sentimento de insegurança das pessoas.
Portanto, podemos considerar que essa busca adicional de segurança apontada pelos
entrevistados surge da diferença entre as situações reais de segurança, oferecidas pelos loteamentos
fechados e os discursos e símbolos que se elaboram sobre esses espaços. Ao buscarem os loteamentos
fechados ribeirinhos, no que diz respeito à segurança, as pessoas não desejam apenas a segurança
real, querem atender ao seu anseio de se sentirem incondicionalmente seguras.
Percebemos, nesse fato, duas situações contraditórias. Se, por um lado, não realizam uma
análise crítica e realista da segurança dos loteamentos fechados ribeirinhos, que ajude a desconstruir
a imagem de segurança total associada a esses empreendimentos, por outro, não se sentem
satisfeitos com essa “totalidade” de segurança oferecida por eles. Reiterando: ou não acreditam em
seus próprios discursos, ou, não conseguem mais perceber o limite entre o que seja seguro e o que
seja inseguro, entrando num processo de busca constante, que não é satisfeita nem com a segurança
considerada por eles como “total”.
A partir das observações realizadas em campo e da análise das falas dos entrevistados,
identificamos alguns problemas que se contrapõem à imagem de segurança total associada aos
loteamentos fechados ribeirinhos. Por exemplo, esses empreendimentos possuem áreas extensas e na
maior parte dos casos, apenas dois guardas para fazer a ronda noturna. Consideramos esse número
insuficiente, visto que possibilita muitos pontos cegos, sem vigilância, que podem ser alvo de algum
delito. Assim, a ronda noturna, apesar de ser importante, não é suficiente para garantir um nível
confiável de segurança efetiva.
É interessante destacar também, que na maior parte dos loteamentos não são efetuadas rondas
durante o dia, sobretudo nos dias de semana, em que os loteamentos fechados ribeirinhos ficam
praticamente vazios. Esse fato pode nos oferecer indícios para que consideremos os aspectos
simbólicos e simulacionais presentes no oferecimento de segurança pelos loteamentos fechados
ribeirinhos, ao passo que, justamente nos períodos em que a vigilância seria mais necessária, visto
que as casas ficam vazias durante a semana, são os períodos em que as rondas são menos
freqüentes. Assim, a questão da visibilidade tem que ser inserida na análise da segurança presente
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nesses empreendimentos. Durante os finais de semana, períodos em que os loteamentos fechados
ribeirinhos estão repletos de seus freqüentadores, as rondas pelo empreendimento são realizadas
mais vezes, para dar a sensação aos proprietários de que os espaços do loteamento estão seguros. Já
durante a semana, como os proprietários não estão presentes, a simulação da segurança total pode
ser afrouxada. Dessa forma, alguém que quiser praticar um delito, e procurar conhecer a rotina
desses empreendimentos, pode utilizar esses dias, em que as rondas são mais esparsas, para realizar
roubos, visto que muitas casas ficam bem afastadas da portaria.
Identificamos por meio das entrevistas que a principal preocupação dos proprietários é com a
segurança de seus bens materiais. Por serem propriedades destinadas à segunda residência, sem uso
diário, as pessoas temem que seus bens sejam roubados, principalmente durante a semana, período,
aliás, em que a vigilância é menos rigorosa. Outra preocupação relatada pelos entrevistados diz
respeito à segurança de sua família enquanto estiverem no loteamento. Consideram que, por serem
empreendimentos com acesso controlado, terão um nível maior de segurança, não precisando se
preocupar com as outras pessoas que estão no loteamento, pois consideram que elas passaram
por uma seleção socioeconômica e não oferecem nenhum tipo de perigo.
Essa idéia contém elementos idealizados e até preconceituosos, ao considerar que as pessoas que
possuem um vel de renda suficiente para adquirir, locar ou frequentar uma casa dentro de um
loteamento fechado, o oferecem perigo, reproduzindo a imagem do pobre como classe perigosa,
como se somente eles fossem capazes de cometer crimes.
A partir desse fato, percebemos que a sensação de segurança gerada por meio do controle do
acesso é relativa. Não garantias efetivas de que um proprietário não possa realizar algum tipo
de ato criminoso somente porque possui uma renda considerável, pois não informações sobre a
vida pregressa da pessoa, se ela já teve algum tipo de problema com a polícia, de onde provém sua
renda, etc. Aliado a esse fato, destacamos que por ter uma destinação para segunda residência,
voltada para o lazer, os loteamentos fechados ribeirinhos apresentam a prática do empréstimo e,
em alguns empreendimentos em que é permitido, o aluguel dos ranchos. Dessa forma, a segurança
oferecida pelo controle do acesso revela-se ainda mais relativa. Fica ainda mais difícil garantir que
as pessoas que entrarão nos loteamentos não oferecerão nenhum tipo de risco para a propriedade e
para a vida dos outros proprietários.
A entrada é feita mediante uma autorização assinada pelo proprietário do rancho, com o
número da placa do carro e o número do R.G. das pessoas autorizadas a entrarem no loteamento.
A reclamação de alguns entrevistados é que, muitas vezes, os proprietários de casas nos loteamentos
fechados ribeirinhos,
“(...)
não escolhem direito as pessoas que vão deixar entrar no condomínio.
Emprestam para um amigo ou pra alguém da família, que convida outro amigo,
que traz outro e viu, perde-se o controle. A pessoa tem que pensar bem em
quem vai colocar aqui dentro. Tem que pensar nos outros também.”
(45 anos,
dentista, proprietário de casa no condomínio Belvedere em Penápolis e residente na
cidade de Araçatuba)
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Assim, a possibilidade de segurança oferecida pelo controle de acesso fica reduzida, pois o
acesso pode ser expandido para pessoas que nem o próprio proprietário que está emprestando a
casa conhece. Sem contarmos o fato de que as autorizações podem ser falsificadas. No caso do
aluguel das casas, também há uma diminuição da segurança, pois as pessoas não conhecem a
fundo as pessoas para quem estão alugando sua propriedade.
O controle do acesso realizado nas portarias falha também porque não considera a
possibilidade de entrada de pessoas pelos rios. Dessa forma, os loteamentos fechados ribeirinhos
apresentam uma fronteira livre de controle, permeável a qualquer pessoa. Assim, percebemos que
o controle de acesso pelas portarias não propicia necessariamente uma segurança efetiva e,
tampouco, o desejo de segurança justificaria esses tipos de controle preventivos.
Consideramos merecedor de destaque o fato de que os entrevistados sempre associam os
problemas ocorridos no interior dos loteamentos fechados ribeirinhos com pessoas consideradas de
fora dos loteamentos. Alguns defendem que deveria ser proibida a prática de empréstimos e de
aluguéis nesses empreendimentos com o intuito de preservar o bem estar coletivo. Mas os dirigentes
encontram resistências em implantar essa proibição, visto que não podem interferir no direito de uso
das propriedades.
Ao vincular todos os problemas que ocorrem no interior dos loteamentos com os visitantes ou
com pessoas que vêm de fora desses espaços, os entrevistados estabelecem uma separação simbólica
qualitativa entre os de dentro e os que deveriam estar fora, sendo esses os que efetivamente
constituem ameaças.
Outro aspecto que denota a parcialidade da segurança oferecida pelos loteamentos fechados
ribeirinhos advém da pouca qualificação dos empregados responsáveis por manter a segurança
nesses espaços. Os guardas, em grande parte dos loteamentos estudados, não possuem nenhum tipo
de capacitação profissional no que se refere aos quesitos básicos de segurança, como defesa pessoal,
técnicas de imobilização, entre outros conhecimentos. Eles simplesmente andam pelas ruas dos
loteamentos observando se não há nenhum tipo de movimentação fora do comum. Quando
identificam algo estranho, não estabelecem uma abordagem direta, chamam a polícia que, muitas
vezes, demora pra chegar ao local, dando possibilidade de fuga para os infratores.
Dessa maneira, a presença dos guardas serve mais para inibir, do que para refrear uma ação
em curso. Outro aspecto preocupante, constatado durante as visitas aos empreendimentos, é o fato
de que em alguns loteamentos os guardas andam armados, sem ter porte de arma, e nenhum
curso que os habilite a utilizar as armas, como foi citado em entrevistas realizadas. Assim, oferecem
riscos para os próprios proprietários de imóveis no loteamento que podem ser vítimas da
inabilidade de um desses guardas. A insegurança pode ser gerada por aqueles que se considera que
sejam responsáveis por manter a segurança. A ação dos guardas e da ronda noturna, nos casos
estudados, é muito mais simbólica do que efetiva.
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Em um dos loteamentos fechados ribeirinhos localizados no município de Buritama, o Riviera
Santa Bárbara, não encontramos, nas duas visitas que fizemos ao empreendimento, ninguém na
portaria, bem como ninguém que se responsabilizasse pelo loteamento no local, apesar de os
anúncios publicitários informarem que uma portaria que controla o acesso 24 horas por dia.
Nossa entrada não foi verificada, tanto que realizamos as entrevistas sem pedir qualquer
autorização. Assim, o controle nesse empreendimento é inexistente, diferentemente do que é
divulgado.
Podemos concluir, assim, que de uma forma geral, os loteamentos fechados ribeirinhos
apresentam muitas falhas no oferecimento de segurança para os proprietários, seja pelo número
insuficiente e pela baixa qualificação dos funcionários, seja pela ineficácia do controle de acesso
nesses empreendimentos. A imagem de espaço provedor de uma segurança total é muito mais
simbólica do que correspondente às condições reais de segurança, nos loteamentos fechados
ribeirinhos.
No momento da produção e da venda desses espaços, os empreendedores imobiliários divulgam
a imagem de espaços seguros, superiores à cidade aberta. Os proprietários de casas nos loteamentos
adotam e disseminam essa imagem. Mas, no plano das condições efetivas de segurança,
demonstramos que existem muitas lacunas, desconsideradas pela maior parte dos entrevistados.
O que os loteamentos fechados ribeirinhos oferecem é a propagação de uma sensação de
segurança; é a satisfação, no plano simbólico, de uma necessidade, muitas vezes simbólica, de
segurança. Portanto, para entendermos a produção e a apropriação dos loteamentos fechados
ribeirinhos, é extremamente importante contrapormos as imagens simbólicas e as reais dinâmicas
que ocorrem nesses empreendimentos.
Um dos fatores da propagação desses empreendimentos, mesmo não sendo tão efetivamente
seguros, como o difundido, baseia-se no fato de que esses empreendimentos surgem para satisfazer
anseios imaginados, gerados a partir da manipulação do sentimento de insegurança. A demanda
por empreendimentos fechados, nos casos estudados, não surge, primordialmente, a partir de dados
materiais, concretos, respaldados pelos índices de aumento da criminalidade e, sim, por uma
construção simbólica de uma insegurança total, que está em toda parte.
Dessa forma, a oferta de segurança representada como presente nesses empreendimentos é
também simbólica, muito mais idealizada do que real. Assim, estamos tratando de soluções
simbólicas para problemas simbólicos, sendo que os loteamentos atendem aos objetivos a que se
propõem, visto que oferecem uma segurança idealizada, para uma insegurança idealizada. Se a
insegurança urbana fosse, nessas áreas, tão aguda como se tenta passar a idéia, os problemas
advindos das lacunas reais na segurança oferecida por esses empreendimentos seriam muito mais
evidentes.
Há, portanto, um descolamento entre o que esses loteamentos produzem como imagem
segurança total e as condições efetivas de segurança oferecidas pelo empreendimento
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segurança real. Avançando na análise, podemos trabalhar com a tese de que as barreiras físicas
erguidas por esses empreendimentos com o intuito de manter a segurança nesses espaços, escondem
outras intenções, como o distanciamento dos mais pobres, num processo de auto-segregação
socioespacial, que visa à constituição de espaços exclusivos.
É nesse sentido que entendemos que a busca por segurança nos loteamentos fechados ribeirinhos
insere-se no contexto das simulações que caracterizam o nosso tempo. Os símbolos de segurança
total são apropriados pelos consumidores desses espaços, que a partir desse consumo simbólico,
apropriam-se objetivamente dos espaços dos loteamentos como se eles fossem efetivamente
seguros. Assim, temos a constituição de uma situação real, a partir da manipulação de aspectos
simbólicos.
Consideramos que a simulação nos loteamentos fechados ribeirinhos acontece em dois
momentos. Primeiro, há a simulação da necessidade de segurança e, depois, a simulação de que os
loteamentos fechados ribeirinhos são espaços incontestavelmente seguros.
Dessa forma, a sensação de insegurança que, na atualidade, é transposta, principalmente por
meio da mídia, para contextos socioespaciais tão diferenciados, é, nos casos estudados, uma
insegurança muito mais ligada a aspectos simbólicos do que objetivos. Portanto, a crescente
sensação de insegurança, utilizada para justificar o fechamento de parcelas de cidades de
tamanhos e papéis diferenciados, é no que se refere, aos loteamentos fechados ribeirinhos, resultado
de uma encenação e amplificação dos mbolos associados à concepção dominante de violência
urbana.
Assim, a crescente divulgação de atos tidos hegemonicamente como violentos, vai criando uma
percepção de que todos os espaços estão passando por um aumento da insegurança. Essa
encenação da insegurança total não é gratuita. Existem diversos atores sociais que lucram com o
medo das pessoas. Consideramos, assim, que uma manipulação e uma simulação de que todos
os espaços urbanos estão se tornando mais inseguros e que, dessa forma, ficam justificadas as ações
socioespaciais de fechamento e segmentação que, na verdade, escondem outros conteúdos.
A partir da simulação de uma sensação de insegurança total, temos a simulação do consumo de
espaços totalmente seguros. Apesar de todas as lacunas que apontamos no oferecimento de uma
segurança efetiva pelos loteamentos fechados ribeirinhos, seus consumidores apropriam-se desses
espaços a partir da simulação de que neles uma segurança total. A constatação de que a
segurança nos loteamentos fechados ribeirinhos possui aspectos simulados, pode ser feita ao
observamos as práticas que os entrevistados empreendem nesses espaços.
Enquanto dizem acreditar que os loteamentos fechados ribeirinhos possuem uma segurança
total, nas suas ações constatamos que alguns entrevistados buscam uma segurança suplementar
que evidencia o fato de que a segurança nesses empreendimentos não é tão total assim como
querem transparecer, ou que a base na qual a segurança é buscada não corresponde às condições
efetivas de insegurança.
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De acordo com Baudrillard (1996), o simulacro não é uma simulação que imita a realidade e
sim um processo que nega as diferenças entre a realidade e sua representação, anulando a oposição
entre verdade e falsidade. Assim, temos a produção de representações de insegurança total e de
segurança total, que acabam configurando uma situação vivida como real.
Sendo assim, consideramos que o consumo da segurança nos loteamentos fechados ribeirinhos é
o que Debord (2002) denomina como consumo espetacular. Através de imagens, criadas no âmbito
da publicidade, nos discursos e nas ações dos empreendedores e dos proprietários, cria-se uma
encenação de segurança percebida como realidade. Como Debord (2002, p. 15) destaca, o se
pode opor abstratamente o espetáculo e a atividade social efetiva. O espetáculo que inverte o real
é efetivamente produzido. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela
contemplação do espetáculo e retoma em si própria a ordem espetacular, dando-lhe uma adesão
positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. “Cada noção assim fixada não tem por
fundamento senão a sua passagem ao oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é
real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente”.
Na constituição do simulacro de segurança nos loteamentos fechados ribeirinhos, temos a
criação de um cenário e de um contexto simbólico para que os atores do espetáculo possam
representar seus papéis e alcançar, por meio do consumo, a felicidade que essas mercadorias
idealizadas podem oferecer.
Isso porque numa sociedade onde a insegurança real e imaginada é cada vez mais presente no
cotidiano das pessoas, ter a possibilidade de se apropriar de um espaço produzido simbolicamente
como seguro, é uma fonte de satisfação e, além disso, de diferenciação social. Assim, a produção do
simulacro de segurança nos loteamentos fechados ribeirinhos serve para valorizar esses
empreendimentos, ao passo que são idealizados como espaços portadores de qualidades superiores
às da cidade, vista de uma forma geral. A partir da criação, ou amplificação simbólica da raridade
de certos elementos, como a Natureza e a segurança, os empreendedores imobiliários surgem com a
solução para esses problemas. Aqueles que tiverem condições econômicas favoráveis podem
comprar sua Natureza e sua segurança, e seguir na vivência simulada que reproduz o espetáculo.
A simulação existente nesses espaços não é feita de forma gratuita. os agentes que cuidam
da organização do espetáculo, que criam as condições para que o espetáculo prossiga. No que se
refere ao simulacro de segurança nos loteamentos fechados ribeirinhos, temos a influência da mídia
de uma forma geral, que dissemina a idéia de agudização generalizada da insegurança e a ação
dos incorporadores imobiliários que materializaram e comercializam esses espaços. Assim, o
espetáculo serve aos interesses do capital, embora não seja determinado apenas por ele.
De acordo com Caldeira (2000, p. 294), todos os elementos associados à segurança tornaram-se
parte de um novo código para a expressão da distinção a estética da segurança. Esse código
incorpora a segurança num discurso sobre gosto, transformando-a em símbolo de status. Assim, a
busca por segurança deixa de ser realizada apenas pelo desejo da segurança em si. A segurança
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carrega um conjunto de valores que é capaz de distinguir as pessoas, afirmando suas posições
sociais. Dessa maneira, o consumo da segurança, nos espaços fechados, realizado pelos segmentos de
maior poder aquisitivo não decorre apenas de suas intenções de diminuir sua vulnerabilidade
perante os atos considerados como violentos. A simulação da insegurança e a busca pela segurança
em espaços elitizados servem como código de distinção.
Consideramos dessa forma, que a simulação nos loteamentos ribeirinhos tem por trás de si uma
intencionalidade, pretendida ou derivada, que leva os consumidores desses espaços a se
diferenciarem e se distanciarem dos segmentos de menor poder aquisitivo. Sendo assim, é por meio
do consumo da carga simbólica produzida nesses empreendimentos idealizados, que as pessoas
criam explicações e justificações para manter longe de si os segmentos indesejados. Nesse sentido, as
imagens criadas no âmbito da sociedade de consumo são responsáveis por alterar e definir as
relações sociais, visto que, como Debord (2002, p. 14) ressalta, “o espetáculo não é um conjunto de
imagens, mas sim, uma relação social mediada por imagens”.
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CAPÍTULO V
ERGUENDO BARREIRAS E CONSTRUINDO IDENTIDADES: RELAÇÕES
ENTRE FECHAMENTO URBANO E A BUSCA POR “COMUNIDADES”
Ninguém é igual a ninguém
Humberto Gessinger – Engenheiros do Havaí
Há tantos quadros na parede
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro
Há tanta gente pelas ruas
Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra
Ninguém é igual a ninguém
Me encanta que tanta gente sinta
Se é que sente, a mesma indiferença
Há tantos quadros na parede
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro
Há palavras que nunca são ditas
Há muitas vozes repetindo a mesma frase:
Ninguém é igual a ninguém
Me espanta que tanta gente minta
Descaradamente, a mesma mentira
São todos iguais e tão desiguais
Uns mais iguais que os outros
Há pouca água e muita sede
Uma represa, um apartheid
A vida seca, os olhos úmidos
Entre duas pessoas
Entre quatro paredes
Tudo fica claro
Ninguém fica indiferente
Ninguém é igual a ninguém
Me assusta que justamente agora
Todo mundo, tanta gente, tenha ido embora
São todos iguais e tão desiguais
Uns mais iguais que os outros
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O fechamento de unidades espaciais com o objetivo de se obter segurança é uma das
características mais marcantes da urbanização contemporânea, como destacamos. Diante do
sentimento generalizado e amplificado de insegurança que vem sendo associado aos espaços
urbanos, sejam cidades grandes, médias ou pequenas, as pessoas de maior poder aquisitivo
escolhem realizar suas atividades cotidianas em espaços fechados e/ou de acesso controlado.
Esse fechamento e esse controle fazem com que as possibilidades de diversidade nos contatos
entre as pessoas fiquem reduzidas, visto que, nesses espaços, os filtros do acesso acabam
selecionando o tipo de pessoa que será possível encontrar em seus limites. Um dos requisitos básicos
para se freqüentar tais espaços fechados é o poder aquisitivo, pois sua produção está direcionada,
predominantemente, para atender às demandas dos segmentos de médio e alto poder aquisitivo.
Dessa forma, o fechamento de certas parcelas do espaço urbano representa uma estratégia que
visa dotar as relações pessoais de certa previsibilidade. Ao entrarem em um espaço fechado, seja ele
destinado para a habitação, trabalho ou lazer, as pessoas esperam encontrar seus semelhantes.
Desejam excluir de suas atividades cotidianas a possibilidade de se confrontarem e de se
relacionarem com o que consideram diferente. Nesse caso, a diferença que procuram evitar não se
refere, apenas, à distinção de gostos ou de perfis culturais, mas, sobretudo, às diferenças
socioeconômicas.
Esse distanciamento que o fechamento promove decorre do fato de que as pessoas de menor
padrão aquisitivo são consideradas como potencialmente perigosas. Assim, se desejam segurança, os
segmentos de maior poder aquisitivo devem ficar o mais longe possível das pessoas de menor renda,
evitando o convívio e até a proximidade.
Outra questão que o fechamento ameniza ao promover espaços marcados pela
“homogeneidade” é o incômodo que certas mazelas sociais causam ao estarem ao alcance dos olhos
das pessoas. Dessa forma, ao optarem por espaços fechados, os segmentos mais privilegiados,
conseguem afastar o mal estar que sentiriam ao ver uma pessoa morando na rua, pedindo esmola
ou passando fome. As evidências das desigualdades sociais, por não estarem visíveis nesses espaços
fechados e controlados, deixam de sensibilizar ou incomodar as pessoas das esferas mais altas da
sociedade.
As estratégias de fechamento urbano contêm, assim, no ato de erigir barreiras, um mecanismo
de demarcação de limites sociais. O controle ao acesso exercido, nesses espaços, funciona como uma
membrana semipermeável que deixa passar somente aqueles que possuem uma situação
socioeconômica favorável, deixando de fora os menos privilegiados.
Essa demarcação física de barreiras é uma forma de materialização das fronteiras sociais. Ao
se fecharem materialmente em determinados espaços, as pessoas concretizam as distâncias
subjetivas que existem entre os estratos sociais. Os muros servem para sinalizar onde começa o
espaço de um grupo o dos mais ricos e conseqüentemente, onde termina o de outro o dos
mais pobres.
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Diante desse processo de acentuação da diferenciação socioespacial decorrente das estratégias
de fechamento, trazemos para a discussão sobre os loteamentos fechados ribeirinhos, a questão da
identificação e da criação de comunidades. Analisamos esses dois elementos conjuntamente, pois
consideramos que a identidade é a base para o surgimento das comunidades, visto que é por meio
dela que se justificam as solidariedades sociais.
De acordo com Bauman (2005, p. 19), na sociedade “líquido-moderna” as “identidades”
flutuam no ar e temos que escolher aquelas que, verdadeiramente, correspondem às nossas
características, no meio de várias outras, infladas e lançadas pelas pessoas à nossa volta, sendo
preciso estar sempre atentos para defendermos as primeiras em relação às últimas.
Segundo Hall (2003, p. 38), a identidade é algo formado ao longo do tempo, por meio de
processos inconscientes, e o algo inato, existente em nossa consciência no momento do
nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre a sua unidade. Ela permanece
sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada””.
Para Bauman (2005, p. 21), a identidade nos é revelada como uma invenção,
(...) como alvo de um esforço, “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa
construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por elas e
protegê-la lutando ainda mais mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a
verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva
ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta. (BAUMAN, 2005, p. 21)
Dessa maneira, a identidade não é um elemento acabado e intrínseco às pessoas. Ela é fruto de
uma construção e é constantemente posta a prova, sendo reafirmada ou modificada. Assim, a
identidade é uma ficção, que precisa ser buscada e trabalhada.
De acordo com Hall (2003, p.12-13), no mundo pós-moderno, a identidade torna-se uma
“celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.
A importância que a identidade adquire na sociedade atual advém do fato de que as noções
que faziam com que as identidades sociais parecessem naturais como raça, país ou local de
nascimento, família tornaram-se menos importantes, menos presentes ou mais diluídas. Ao
perderem suas identidades pré-determinadas, as pessoas passam a buscar desesperadamente,
novos grupos com os quais possam dividir a idéia de pertencimento. “Quando a identidade perde as
âncoras sociais que a faziam parecer “natural”, pré-determinada e inegociável, a “identificação” se
torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós” a que
possam pedir acesso”. (BAUMAN, 2005, p. 30)
Nas sociedades contemporâneas, esse processo de constituição das identificações sociais é feito
segundo a escolha de certas variáveis consideradas como ideais. Segundo Bauman (2003, p. 19), nas
sociedades líquido-modernas, toda homogeneidade deve se “pinçada” de uma massa confusa e
variada, por via da seleção, separação e exclusão; toda unidade precisa ser construída, o acordo
“artificialmente produzido” é a única forma disponível de unidade. Por mais firme que o acordo de
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unidade seja, ele nunca parecerá tão natural e evidente quanto nas comunidades tradicionais, nem
serão imunes à reflexão, contestação e à discussão.
Assim, Bauman (2005, p. 32/34) destaca que atualmente buscamos, construímos e mantemos as
referências comunais de nossas identidades
em movimento
, lutando para nos juntarmos aos grupos
igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um
momento, mas não por muito tempo. “No admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das
seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não
funcionam”.
Nesse sentido, Hall (2003, p. 13), aponta que a identidade plenamente unificada, completa,
segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, “à medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao
menos temporariamente”.
Assim, na atualidade, as identidades, de acordo com Bauman (2005, p. 35), “ganharam livre
curso, e agora cabe a cada indivíduo, homem ou mulher, capturá-las em pleno vôo, usando os seus
próprios recursos e ferramentas”. Para o autor, na modernidade líquida, o desejo de identificação
vem do desejo de segurança, ele próprio um sentimento ambíguo.
Nesse sentido, as pessoas desejam reunir-se em grupos para dar consistência a suas identidades e
fazem isso, por meio da busca de uma integração em pretensas comunidades, que também não
estão disponíveis de forma acabada e, por isso, têm que ser buscadas e construídas.
Bauman (2003, p. 7/8) destaca que comunidade é uma palavra que guarda sensações. O que
quer que comunidade signifique, sabemos que sugere uma coisa boa - é bom ter uma comunidade,
estar numa comunidade. Comunidade, no plano das idealizações, é um lugar confortável e
aconchegante. É onde podemos relaxar, visto que não perigos. “Numa comunidade, todos nos
entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e
raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós”.
Dessa maneira, as fragilidades das relações e das instituições responsáveis pela manutenção das
sensações de segurança e de bem-estar das pessoas, que se sentem cada vez mais sozinhas perante
o mundo, são as razões pelas quais surge o desejo de se unirem a outras pessoas e, com elas,
compartilharem as angústias, anseios e, sobretudo, aprovação social.
Precisamos nos sentir amparados e seguros e isso ocorre quando podemos conviver com pessoas
que são capazes de nos entender e apoiar. Como Bauman (2003, p. 9) destaca, idealizamos a vida
comunitária, considerando-a como um paraíso, porque não se trata de uma realidade em que
vivemos e que conhecemos a partir de nossas experiências. Dessa maneira, soltamos nossa
imaginação e glorificamos as vantagens de estarmos inseridos em uma comunidade, tida como
aconchegante.
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Mas há grandes diferenças entre essa comunidade de nossos sonhos e a comunidade que
potencialmente poderemos alcançar. Atualmente, para tentarmos fazer parte de uma
comunidade, precisamos fazer uma escolha que envolve a liberdade e a segurança. De acordo com
o autor,
Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto
ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade. A segurança e a liberdade
são dois valores igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal
equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. (BAUMAN, 2003,
p.10)
Assim, na sociedade contemporânea, temos que lidar com situações de liberdade sem segurança
ou de segurança sem liberdade. A possibilidade da sociedade de realizar escolhas individuais foi
sendo conquistada ao longo do processo histórico, trazendo nela a contradição entre liberdade e
segurança. A liberdade era oferecida em detrimento da segurança, mesmo que, no início, essa troca
não fosse percebida. Os indivíduos tornaram-se capazes de fazer suas próprias escolhas, de
tomarem suas próprias decisões, ficando em suas mãos o poder de dar diferentes rumos às suas
vidas. (BAUMAN, 2003)
De acordo com Bauman (2001, p. 47), o processo de individualização característico da sociedade
moderna traz para um número sempre crescente de pessoas uma liberdade sem precedentes de
poder experimentar, mas, traz junto a tarefa sem precedentes de enfrentar as conseqüências. Assim,
essa liberdade de fazer escolhas é portadora da insegurança que advém da possibilidade de errar,
de tomar decisões equivocadas, isso porque não se tem mais a “confortável” sensação de ter o
futuro pré-determinado externamente. As pessoas passaram a ser responsáveis por proporcionar a
sua própria segurança e de sua família, não tendo mais um amparo tão forte de agentes externos.
Atualmente, as estratégias de fechamento revelam um desejo de retomar a segurança perdida,
mesmo que isso signifique diminuir a liberdade. Vemos assim, que a comunidade, idealizada como
um paraíso aconchegante, não é possível de ser alcançada, visto que só poderá se concretizar a
partir de uma rigorosa e consciente obediência aos preceitos tidos como comuns.
Dessa forma, Bauman (2003, p. 19) destaca que a comunidade idealizada, como um círculo de
entendimento comum, mesmo que seja alcançada, permanecerá frágil e vulnerável, necessitando
para sempre de vigilância, reforço e defesa. Assim, o autor aponta que serão desapontadas as
pessoas que sonham com a comunidade na esperança de encontrar uma segurança de longo prazo,
que tanta falta lhes faz em suas atividades cotidianas, e de libertarem-se da enfadonha tarefa de
estar sempre realizando novas escolhas.
Nesse sentido, Bauman coloca que,
(...) mais do que com uma ilha de “entendimento natural”, ou um círculo
aconchegante” onde se pode depor as armas e parar de lutar, a comunidade
realmente existente se parece com uma fortaleza sitiada, continuamente
bombardeada por inimigos (muitas vezes invisíveis) de fora e freqüentemente
assolada pela discórdia interna; trincheiras e baluartes são os lugares onde os que
procuram o aconchego e a tranqüilidade comunitárias terão que passar a maior
parte de seu tempo. (BAUMAN, 2003, p. 19)
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Sendo assim, as possibilidades de identificação social e inserção comunitária que temos, na
atualidade, são possibilidades forjadas, produzidas, e que por serem intrinsecamente voláteis,
devem ser sempre defendidas, reconstruídas ou até mesmo trocadas. Dessa forma, as estratégias
socioespaciais em direção ao fechamento de certas parcelas das cidades, visando o estabelecimento
de identificações e a criação de um ambiente comunitário, terão resultados sempre parciais e
transitórios.
As comunidades são buscadas, atualmente, de acordo com Bauman (2005, p. 68), porque são
uma alternativa tentadora para as pessoas inseguras, desorientadas, confusas e assustadas pela
instabilidade e pela transitoriedade do mundo em que habitam. “É um sonho agradável, uma
visão do paraíso: de tranqüilidade, segurança física e paz espiritual”. No entanto,
Para as pessoas que lutam numa estreita rede de limitações, preceitos e
condenações, pelejando pela liberdade de escolha e auto-afirmação, a
mesmíssima comunidade que exige lealdade absoluta e que guarda
estritamente as suas entradas e saídas é, pelo contrário, um pesadelo: uma
visão do inferno ou da prisão. A questão é que todos nós estamos,
intermitente ou simultaneamente, sobrecarregados com “responsabilidades
demais” e ansiosos por “mais liberdade”, o que pode aumentar nossas
responsabilidades. (BAUMAN, 2005, p. 68)
Assim, o autor afirma que a comunidade é um fenômeno de duas faces, completamente
ambíguo amado ou odiado, amado e odiado, atraente ou repulsivo, atraente e repulsivo. Dessa
forma, consideramos que a busca por uma inserção comunitária via fechamento é uma contradição
entre os interesses individuais e os interesses coletivos. As pessoas conquistaram o direito de
realizarem suas próprias escolhas, exercendo assim, suas individualidades e suas liberdades. No
entanto, não se desfizeram da necessidade de estabelecer identificações e de pertencerem a algum
grupo, e seguirem as regras necessárias para que permaneçam nele.
Para a consolidação dessa busca por identidade empreendida na sociedade contemporânea, as
pessoas desejam fazer parte de uma comunidade, que as abrigue e lhes uma sensação de
aprovação social. Como destacamos, de acordo com Bauman (2003, p. 20), nem a identidade, nem
a comunidade estão à disposição em nosso mundo privatizado e individualizado. A sociedade
contemporânea vive, assim, num incessante processo de busca.
Bauman (2003, p.21) aponta que identidade significa “aparecer: ser diferente e, por essa
diferença, ser singular”. Dessa forma, a busca por identidade não pode deixar de dividir e de
separar. O autor ressalta também, que a busca por identidades individuais apresenta muitas
vulnerabilidades.
Sendo assim, diante da precariedade da construção solitária da identidade, Bauman (2003,
p.21) aponta que “os construtores da identidade procuram cabides em que possam, em conjunto,
pendurar seus medos e ansiedades individualmente experimentados e, depois disso, realizar os ritos
de exorcismo em companhia de outros indivíduos também assustados e ansiosos”.
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Assim, as pessoas acabam buscando um respaldo coletivo para suas ações individuais, partindo
do princípio de que, se mais pessoas m as mesmas opiniões ou tomam as mesmas atitudes, elas
devem estar corretas. São geradas, assim, de acordo com o autor, “comunidades-cabide”, capazes
de oferecer um seguro coletivo contra incertezas individualmente enfrentadas.
Dessa forma, a busca por comunidades na sociedade atual surge da insegurança gerada no
processo de individualização e diluição das identidades pré-determinadas. A conquista da
emancipação dos indivíduos traz consigo um sentimento de insegurança crescente, visto que as
pessoas passam a ser responsáveis pelo seu próprio futuro, não tendo mais que obedecer a princípios
determinados externamente. Nessa relação contraditória, as soluções para as inseguranças são
buscadas individualmente, mas, diante da necessidade das pessoas de estabelecerem uma
identidade, de respaldarem suas ações, unem-se com outras pessoas para criarem um novo tipo de
“comunidade”.
São as “comunidades de iguais”, que se materializam em espaços cercados e guardados por
sistemas de segurança, que deixam fora de seus muros os intrusos, os diferentes. Assim, para se
sentirem seguros, os segmentos de maior poder aquisitivo isolam-se em enclaves fortificados,
conforme destaca Caldeira (2000), com vigilância constante, revelando a contradição entre
segurança e liberdade.
Para buscarem a segurança perdida, abrem mão da liberdade conquistada. Passam a viver, a
consumir, a trabalhar, em espaços fechados, guardados e vigiados constantemente. Somente dessa
forma, terão a sensação de estarem seguros, pois as diferenças mais agudas estarão longe de seus
olhos e do convívio cotidiano.
Sendo assim, o novo tipo de “comunidade” almejada, aquela composta de iguais e
materializada em espaços fechados, torna a contradição entre segurança e liberdade mais concreta
e mais difícil de ser superada.
Utilizamos o termo comunidade entre aspas porque, segundo Bauman (2003, p.16),
comunidade significa entendimento compartilhado do tipo natural e tácito, não sobrevivendo ao
momento em que o entendimento torna-se autoconsciente, objeto de contemplação e exame.
Dessa maneira, o que temos atualmente é a produção intencional de “pseudocomunidades”,
construídas artificialmente, com a unidade sendo dada a partir de acordos pré-estabelecidos.
Não devemos considerar, nesse caso, que a busca pelas “comunidades de iguais” seja realizada a
partir da necessidade de sociabilidade e de intimidade. Ela é feita, antes de qualquer coisa, para
respaldar o direito de permanecerem separados dos segmentos sociais mais pobres, vistos como
ameaças.
Nesse sentido, Bauman (2003, p. 67) destaca que a característica mais marcante das
comunidades-cabide é a natureza superficial, perfunctória e transitória dos laços que surgem entre
seus participantes. Assim, nesses espaços os laços sociais são descartáveis. Nesses espaços, fica
acertado de antemão que os laços podem ser desmanchados, visto que são transitórios, e, portanto,
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provocam poucas inconveniências e não são fonte de temor. Dessa forma, não nas comunidades
artificiais da contemporaneidade a produção entre seus membros de compromissos de longo prazo,
nem de responsabilidades éticas.
O fechamento de parcelas da cidade por meio de barreiras tangíveis é realizado, portanto, com
o intuito de tentar manter a unidade das “comunidades de iguais”, para que parcelas da sociedade,
consideradas como qualitativamente diferentes, não se “misturem” ameaçando a integridade e a
homogeneidade dessas “comunidades”.
Para Bauman (2003, p. 104), a nova concepção de comunidade significa mesmice e a mesmice
significa a ausência do Outro, especialmente um Outro que teima em ser diferente e, precisamente
por isso, capaz de causar surpresas desagradáveis e prejuízos. “Na figura do estranho, o medo da
incerteza, fundado na experiência da vida, encontra a largamente procurada, e bem-vinda,
corporificação”.
Vemos assim, que a construção das “comunidades de iguais” é realizada à força, a partir do
estabelecimento de fronteiras físicas e simbólicas entre o dentro e o fora, entre o homogêneo e a
desordem. Dessa forma, apresenta-se a fragilidade dessas “comunidades”, visto que, por mais
possibilidades que os segmentos de maior poder aquisitivo tenham de se apropriar
segmentadamente dos espaços da cidade, não é possível extinguir completamente o convívio com
os diferentes. Sendo assim, a unidade dessas “comunidades” é buscada por meio da separação física
dos segmentos mais favorecidos da sociedade do caldeirão de misturas que constitui a cidade
aberta.
5.1. - O que se revela por trás dos muros: loteamentos fechados ribeirinhos e a
constituição de uma “comunidade de iguais”
A busca pela segurança, estimulada pela mídia e pelos empreendedores imobiliários, na
sociedade atual, legitima a opção residencial de se fechar entre iguais, como defesa dos estranhos,
percebidos como ameaça. Esse enclausuramento é resultado de buscas individuais para resolver a
insegurança urbana, numa sociedade que se fragmenta e que tem suas práticas de solidariedade
enfraquecidas.
Diante dos problemas enfrentados, no cotidiano urbano, advindos das grandes desigualdades
sociais existentes, as pessoas preferem se afastar, ao invés de buscar soluções reais para os problemas
da cidade como um todo. Dessa forma, tentam negar a presença das diferenças, afastando de si,
responsabilidades sociais.
A sociedade atual é balizada, portanto, pelo individualismo, ou seja, pelas buscas individuais,
que suplantam o bem-estar coletivo. As pessoas não querem mais resolver os problemas da
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sociedade como um todo, buscam, individualmente, soluções para seus problemas dando as costas,
muitas vezes, para as mazelas sociais.
De acordo com Hall (2003, p. 24), é lugar-comum, na atualidade, dizer que a época moderna
fez surgir uma forma nova e decisiva de individualismo, no centro da qual se erigiu uma nova
concepção do sujeito individual e sua identidade. No entanto, “isso não significa que nos tempos
pré-modernos as pessoas não eram indivíduos, mas que a individualidade era tanto “vivida”
quanto conceituada de forma diferente”.
Segundo Bauman (2001, p. 39), a apresentação dos membros da sociedade como indivíduos é a
marca registrada da sociedade moderna. Essa apresentação, no entanto, não foi “uma peça de um
ato: é uma atividade reencenada diariamente. A sociedade moderna existe em sua atividade
incessante de ‘individualização’, assim, como as atividades dos indivíduos consistem na reformulação
e renegociação diárias da rede de entrelaçamentos chamada ‘sociedade’”.
Bauman (2001, p. 40/43) aponta, ainda, que a individualização consiste em transformar a
“identidade” humana de um “dado” em uma “tarefa” e encarregar os agentes da responsabilidade
de realizar essa tarefa e das conseqüências de sua realização. “Na sociedade individualizada, os
riscos e contradições continuam a ser socialmente produzidos; são apenas o dever e a necessidade de
enfrentá-los que estão sendo individualizados”.
Uma das conseqüências da individualização é que ela altera as bases da cidadania. Bauman
(2001, p. 45), apoiado em Tocqueville, afirma que libertar as pessoas pode torná-las indiferentes,
sendo o indivíduo o pior inimigo do cidadão.
O “cidadão” é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar
através do bem-estar da cidade enquanto o indivíduo tende a ser morno,
cético ou prudente em relação à causa comum”, ao “bem comum”, à boa
sociedade ou à “sociedade justa”. Qual é o sentido de interesses comuns”
senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus próprios interesses?
Assim, consideramos que o processo de identificação e de inserção comunitária buscado pelos
segmentos de maior poder aquisitivo por meio do fechamento é baseado numa estratégia de
separar, muito mais que de unir. De acordo com Bauman (2005, p. 85), os diferentes significados
associados ao uso do termo ‘identidade’ contribuem para minar as bases do pensamento
universalista. “As batalhas de identidade não podem realizar a sua tarefa de identificação sem
dividir tanto quanto, ou mais do que, unir. Suas intenções incluentes se misturam com (ou melhor,
são complementadas por) suas intenções de segregar, isentar e excluir”.
Dessa forma, a intenção daqueles que buscam esses refúgios comunitários em espaços físico e
simbolicamente fechados, como o caso dos loteamentos fechados ribeirinhos, está muito mais ligada
ao desejo de manter os indesejáveis fora, do que conviver mais estreitamente com seus iguais. Para
Bauman (2005, p. 65),
O objetivo mais ampla e intensamente cobiçado é a escavação de trincheiras
profundas, possivelmente instransponíveis, entre o “dentro” e o “fora” de
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uma localidade territorial ou categórica. Fora: tempestades, furacões, ventos
congelantes, emboscadas na estrada e perigos por toda parte. Dentro:
aconchego, cordialidade,
chez soi
, segurança, proteção. que, para manter
o planeta inteiro seguro (de modo que não precisemos mais separar-nos do
inóspito lado de fora) nos faltam (ou pelo menos acreditamos que nos
faltem) ferramentas e matérias-primas adequadas, vamos construir, cercar e
fortificar um espaço indubitavelmente nosso e de mais ninguém, um espaço
em cujo interior possamos nos sentir como se fôssemos os únicos e
incontestáveis mestres.
Assim, de acordo com Bauman (2003, p. 52), as “comunidades cercadas”, pesadamente
guardadas e eletronicamente controladas que as pessoas que possuem dinheiro ou crédito
compram para manter distância da “confusa intimidade” da vida comum da cidade são
“comunidades” no nome. “O que seus moradores estão dispostos a comprar pelo preço de um
braço e de uma perna é o direito de manter-se à distância e viver livre dos intrusos”.
Embora, como aponta Caldeira (2000, p. 262), a idéia de comunidade não seja um elemento
evidenciado na justificação ideológica da produção dos loteamentos fechados no Brasil, o que
acontece sempre nos empreendimentos americanos, não consideramos que os moradores brasileiros
desprezem a idéia de comunidade, como afirma a autora.
Diante das entrevistas realizadas nos loteamentos fechados ribeirinhos, constatamos que, mesmo
que não haja uma evidenciação da idéia da comunidade como um atributo positivo, a ser
agregado aos imóveis, nos discursos que elaboram os empreendedores imobiliários, o ideal de
identidade e de pertencimento a uma comunidade de iguais” faz parte da percepção que os
entrevistados deixaram transparecer em suas opiniões sobre esses
habitats.
Dessa forma, podemos
dizer que os aspectos ligados à formação de uma “comunidade de iguais”, base para um processo
de identificação social, está presente na construção simbólica dos loteamentos fechados ribeirinhos,
ainda que não sejam “vendidos”
a priori
, como os demais mbolos associados a esses espaços, entre
eles a segurança e o contato harmonioso com a Natureza.
Não ser um símbolo destacado nos materiais de propaganda como importante e como
diferenciador desses espaços não significa que ele não entre na composição simbólica que
fundamenta a percepção acerca dos loteamentos fechados ribeirinhos e que oriente as opções por
um ou outro tipo de
habitat
que realizam seus proprietários. No caso estudado, observamos que
embora não digam, de forma explícita, que se consideram fazendo parte de uma comunidade
formada “por iguais”, os entrevistados constantemente se esforçam para se diferenciar das demais
pessoas, das pessoas de fora”, que em suas opiniões, são as causadoras de todos os problemas que
ocorrem nos loteamentos.
A partir das entrevistas realizadas, constatamos que os entrevistados, quando perguntados não
afirmam, explicitamente, que consideram a identificação social e a comunidade como fatores
determinantes para a escolha dos loteamentos fechados ribeirinhos. No entanto, em vários
comentários efetuados por eles, percebe-se essa identificação. Para um entrevistado residente na
cidade de Birigui:
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Aqui dentro do loteamento a gente pode ficar tranqüilo quanto a isso
(quanto às
“qualidades” dos outros proprietários)
. As pessoas aqui são boas, o de confiança.
Eu nunca soube de nenhum problema que alguém daqui tenha causado. Para
você ver, todos os desentendimentos, os problemas que às vezes acontecem aqui
dentro são causados por gente de fora
, gente pra quem o rancho foi emprestado,
ou algum convidado que não conhece as regras do loteamento. Mas do resto, todo
mundo se bem, então eu considero que as pessoas daqui são todas gente de
bem.
(45 anos, bancário, proprietário de uma casa no loteamento Belvedere em
Penápolis)
Eu não vejo problemas com as pessoas aqui de dentro não. Acho que a maior
dificuldade é manter a privacidade, porque estamos tomos compartilhando os
mesmos espaços. Mas isso é feito de uma forma tranqüila, sem muitos problemas. A
gente aqui pode se considerar como privilegiados de podermos ter um lugar como
esses. Não vou dizer que todos aqui se amem, mas nós temos as bases para uma
convivência tranqüila. Às vezes, acontece alguma coisa que nos desagrada, mas são
fatos passageiros, pequenos mesmo, que na maior parte das vezes não é culpa dos
proprietários e sim dos visitantes. Os proprietários conhecem as regras aqui e
sabem respeitá-las para que a gente continue se dando bem.
(56 anos, médico,
residente na cidade São José do Rio Preto, proprietário de casa no loteamento
Marina Bonita)
Assim, esses depoimentos são exemplos que nos mostram a separação que é feita pelos
entrevistados entre o “nós” proprietários de ranchos nos loteamentos e os de fora, os outros
pessoas que deveriam ficar fora dos muros. No primeiro exemplo, o entrevistado, ao afirmar que,
dentro do loteamento, pode ficar tranqüilo quanto à boa índole dos demais proprietários, acaba
realizando um processo de qualificação e diferenciação das pessoas que possuem casas nesse
loteamento e os de fora, ou que deveriam estar fora – os convidados e pessoas pra quem os ranchos
são emprestados. Dessa maneira, considera o loteamento como um reduto de pessoas boas, de
“gente de bem”, em quem se pode confiar.
Essa diferenciação entre os de dentro e os de fora fica evidenciada, quando aponta que todos os
problemas do loteamento são resultantes das ações de pessoas que não possuem casas nesse
empreendimento. No segundo exemplo, o entrevistado não encontra problemas em dividir os
mesmos espaços com os demais proprietários, pois considera que eles têm uma base para a
“convivência tranqüila”. Todos os de dentro, conhecem e respeitam as regras de sociabilidade
dentro do loteamento, assim, possíveis problemas que ocorrem dentro do loteamento são causados
pelos visitantes, que não compartilham das mesmas regras.
Outro entrevistado ao falar da segurança do loteamento fechado ribeirinho aponta que “aqui,
você p
ode curtir a família, a tranqüilidade, à vontade, sem preocupação, que não vai chegar qualquer um
aqui e tentar te roubar, te seqüestrar. É muito melhor”.
(50 anos, proprietário de casa no loteamento Portal
da Praia em Buritama e residente na cidade de São José do Rio Preto)
Na fala desse entrevistado, podemos perceber que considera as pessoas que possuem casas no
mesmo loteamento que ele como diferentes das que não possuem. Ao dizer que, no loteamento
não vai “chegar qualquer um”, que poderá roubar e seqüestrar, o entrevistado qualifica os demais
proprietários, como não sendo pessoas que oferecem perigo, elas são “alguém” e não se tratam de
qualquer um.
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Em outro momento da entrevista, ao comentar um furto que ocorreu no loteamento fechado
ribeirinho em que possui sua casa, esse mesmo entrevistado afirmou:
Eu tenho certeza de que não foi ninguém daqui não. As pessoas daqui de dentro do
loteamento não precisam disso. Por que alguém daqui ia roubar? Isso foi coisa de
gente de fora
, de gente que entrou aqui no loteamento, não foi gente daqui. Aqui
todo mundo é do bem.
Verificamos, assim, que o entrevistado reforça a idéia de que as pessoas de dentro do
loteamento não precisam roubar, pois são todas
gente de bem
”, diferentemente das pessoas de
fora do loteamento, que podem oferecer perigo.
Para uma entrevistada residente em Araçatuba,
É bom estar entre
pessoas em que podemos confiar. Aqui dentro a gente não
precisa ficar se preocupando, se um vizinho vai fazer alguma coisa, ou outra pessoa.
É diferente, a gente sente mais segurança, não precisa ficar com medo de conhecer
outra pessoa, porque a gente vem pra cá com os mesmos interesses. A gente
compartilha o gosto pela natureza, pelo barulho dos passarinhos, mexer na terra, os
peixes, é muito gostoso. E, você saber que está perto de outras pessoas que também
gostam disso, é muito bom. A gente gosta muito daqui e das outras pessoas, não
temos problemas com elas não. Aqui todo mundo sabe o seu lugar
, ninguém invade
o espaço de ninguém, ninguém incomoda ninguém, é uma maravilha.
(56 anos,
aposentada, proprietária de casa no loteamento Jardim Itaparica em Buritama)
Para essa entrevistada, estar entre pessoas em que se pode confiar traz uma sensação de
segurança, visto que não precisa temer o relacionamento com as outras pessoas do loteamento. Os
outros proprietários são percebidos como pessoas civilizadas, que sabem o seu lugar e que não
incomodam ninguém. Considera, assim, que uma homogeneidade entre eles que permite uma
segurança nos relacionamentos, que não acontece na cidade aberta, em que a heterogeneidade é
predominante, o que faz com que os relacionamentos sejam marcados pela imprevisibilidade. Sem
ter o controle do acesso, as outras parcelas das cidades podem reservar surpresas” desagradáveis
para as pessoas, que podem conhecer e se relacionar com pessoas que se mostrarão inconvenientes.
De acordo com Bauman (2001, p. 116), os espaços auto-cercados são ambientes purificados.
Nesses espaços, é oferecido o reconfortante sentimento de pertencer, de fazer parte de uma
comunidade. A ausência de diferença, o sentimento de que “somos todos semelhantes”, o suposto de
que não é preciso negociar, pois temos a mesma intenção, é o significado mais profundo da idéia de
comunidade e a causa última de sua atração.
Podemos dizer que “comunidade” é uma versão compacta de estar junto, e de um
tipo de estar junto que quase nunca ocorre na “vida real”: um estar junto de pura
semelhança, do tipo “nós que somos todos o mesmo”; um estar junto que por essa
razão é não-problemático e não exige esforço ou vigilância, e está na verdade pré-
determinado; um estar junto que não é uma tarefa, mas o dado” e
dado
muito
antes que o esforço de fazê-lo. (BAUMAN, 2001, p. 116-118, grifo do autor)
Essa questão da identificação entre os de dentro e a contraposição com os de fora, é recorrente
nas entrevistas realizadas. Os entrevistados identificam os outros proprietários como pessoas boas e
de confiança, associando todos os problemas, desde roubos até desentendimentos e brigas, com
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pessoas de fora dos loteamentos fechados ribeirinhos, que não possuem casa nesses espaços. Assim,
acabam emitindo um juízo de valor que qualifica as pessoas de dentro e desqualifica as de fora. A
identificação das pessoas nesses loteamentos dá-se, portanto, pela constatação de que todas elas
possuem o atributo de terem uma boa índole, de serem respeitáveis, de não oferecerem perigo,
gerado apenas por aquelas pessoas que não deveriam adentrar os muros, por não possuírem as
“qualidades” necessárias.
Assim, os loteamentos fechados ribeirinhos são exemplos de espaços onde é produzida uma
identificação comunitária para que as pessoas possam separar os de fora e ficar dentro dos muros
com as pessoas que, supostamente, não lhes oferecem perigo. De acordo com Sennett,
Imagens de solidariedade comunitária são forjadas para que os homens possam
evitar lidar com outros homens... Por um ato de vontade, uma mentira se quiserem,
o mito da solidariedade comunitária deu a essas pessoas modernas a possibilidade
de ser covardes e esconder-se dos outros... A imagem da comunidade purificada de
tudo o que pode implicar um sentimento de diferença, ou o conflito, a respeito de o
que “nós” somos. Desse modo, o mito da solidariedade comunitária é um ritual de
purificação. (SENNETT,
apud
Bauman, 2001, p. 117),
Outro fator levantado pelos entrevistados como elemento de identificação entre eles e os
demais proprietários diz respeito à apreciação da pesca e da Natureza. Para os entrevistados, a
união nesses espaços ocorre porque todos possuem gostos comuns, visto que todos desejam estar em
contato mais direto com a Natureza ou realizar a pesca. Para eles, estar entre pessoas que
apreciam os mesmos tipos de coisas gera uma sensação agradável, um sentimento de
pertencimento, vindo do fato de que as outras pessoas do loteamento compartilham os mesmos
interesses que elas. Destacamos sobre essa questão, os depoimentos de alguns entrevistados:
“Aqui dentro é tudo gente como a gente, que gosta de água, de tranqüilidade, de
estar em um lugar bonito, calmo. Que gosta de descansar com a família e os amigos
longe da agitação da cidade, que tem muito barulho, muita gente. Então, a gente
se identifica”.
(45 anos, professora, residente na cidade de Birigui proprietária de
casa no loteamento Portal da Praia em Buritama)
É claro que nós aqui dentro possuímos alguns gostos em comum. Isso facilita a
sociabilidade, parece que a sensação de que somos parecidos, de que nos
entendemos. Então, você fica à vontade para comentar alguma coisa de pesca com
alguém que encontra no rio, de fazer um comentário sobre um passarinho, sobre
uma planta. Aqui dentro a gente corre menos risco
de dar uma “bola fora”, porque
sabemos onde pisamos
. (
43 anos, vendedor, residente na cidade de Birigui,
proprietário de casa no loteamento Jardim Itaparica)
Dessa forma, apontamos a presença de uma identificação no plano simbólico entre os
proprietários, que se percebem como diferentes dos de fora - causadores de problemas - e iguais aos
de dentro gente de bem, que gosta da Natureza. Essa unidade, essa purificação das relações
interpessoais buscada nas comunidades de iguais não é completa. Nesse sentido, Bauman (2001, p.
202) destaca que o “nós” significa pessoas como nós e “eles” significa pessoas que são diferentes de
nós, no entanto, isso não significa que as pessoas consideradas como “nós” sejam idênticas entre si e
que as pessoas consideradas como “eles” sejam totalmente diferentes de quem se inclui no “nós”.
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Não que “nóssejamos idênticos em tudo; diferenças entre nós”, ao lado das
características comuns, mas as semelhanças diminuem, tornam difuso e neutralizam
seu impacto. O aspecto em que somos semelhantes é decididamente mais
significativo que o que nos separa; significativo bastante para superar o impacto
das diferenças quando se trata de tomar posição. E não que eles” sejam diferentes
em tudo, mas eles diferem em um aspecto que é mais importante que todos os
outros, importante o bastante para impedir uma posição comum e tornar
improvável a solidariedade genuína, independente das semelhanças que existam. É
uma situação tipicamente ou/ou: as fronteiras que nos separam “deles” estão
claramente traçadas e são fáceis de ver, uma vez que o certificado de “pertencer”
tem uma rubrica, e o formulário que aqueles que requerem uma carteira de
identidade devem preencher contém uma pergunta, que deve ser respondida
“sim ou não”.
Assim, nas comunidades de iguais contemporâneas, a identificação de diferenças e semelhanças,
dos de “dentro” e dos de fora” é feita mediante a seleção de variáveis que os segmentos de maior
poder aquisitivo consideram como importantes. Diante das contradições existentes nas relações
sociais, fazendo com que segmentos sociais distintos possuam, ao mesmo tempo, características
iguais e diferentes, faz com que aqueles que estão no poder de escolher, definam sua identificação a
partir do privilegiamento de características que os distinga dos segmentos mais pobres. Onde
poderia haver solidariedades, se fossem consideradas as características comuns, são criadas barreiras,
materiais e simbólicas, para ressaltar as diferenças.
Segundo Bauman (2005, p. 19), no processo de busca pela identificação na sociedade
contemporânea, diferenças a serem atenuadas ou desculpadas ou, pelo contrário, ressaltadas e
tornadas mais claras. Nos loteamentos fechados ribeirinhos, a construção da identificação entre os
de dentro, serve para ressaltar as diferenças em relação aos de fora e, portanto, mostrar material e
simbolicamente que esses empreendimentos são espaços para pessoas com qualidades específicas.
Identificamos dessa maneira, que os entrevistados consideram-se fazendo parte de um grupo
que compartilha identidades e que pode ser considerado como uma comunidade de iguais”, em
que todos os membros possuem características semelhantes, visto que pertencem a veis
socioeconômicos equivalentes e tem gostos em comum. Sendo assim, mesmo que o haja uma
construção ideológica por parte dos empreendedores imobiliários no sentido de valorizar o ideal de
comunidade; e que os entrevistados não tenham dito explicitamente que buscavam fazer parte de
uma comunidade, ao buscarem os loteamentos fechados ribeirinhos, percebemos que eles dão
importância para estar entre pessoas consideradas como iguais: pela confiança que sentem em
relação aos seus iguais”, porque os consideram civilizados” e porque todos eles gostam da
Natureza.
Não estamos considerando aqui comunidade como sendo o círculo aconchegante, em que
um entendimento compartilhado e natural. Segundo Bauman (2003, p. 9/17), as comunidades
contemporâneas são comunidades buscadas, construídas, visto que constituem um “mundo que não
está, lamentavelmente, a nosso alcance mas que gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir”.
Comunidade, atualmente, é o mesmo que o paraíso perdido, para o qual esperamos intensamente
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retornar. Dessa maneira, consideramos comunidade no sentido contemporâneo, como uma
produção intencional, com a unidade sendo dada a partir de acordos pré-estabelecidos.
Dessa forma, observamos nos loteamentos fechados ribeirinhos uma tentativa de construção de
uma comunidade constituída por iguais – em que, supostamente, ninguém é estranho e ninguém
oferece perigo. Nesse tipo de comunidade, o que é buscado é a homogeneidade e a previsibilidade.
Todos que são considerados como diferentes como não tendo os atributos para merecerem estar
dentro dos muros – são deixados de fora e associados com a geração de problemas e perigo.
Sendo assim, o que os muros construídos em torno dos loteamentos fechados ribeirinhos nos
revelam é que, nesses espaços, busca-se o conforto gerado pelas relações previsíveis, que negam o
convívio entre a alteridade. Segundo Bauman (2003, p. 61), as novas comunidades dos sonhos”,
empreendidas pelas elites, para que sintam que pertencem a alguma coisa, é uma extrapolação
das lutas pela identidade que povoam suas vidas.
É uma “comunidade” de semelhantes na mente e no comportamento; uma
comunidade do mesmo que, quando projetada na tela da conduta amplamente
replicada/copiada, parece dotar a identidade individualmente escolhida de
fundamentos sólidos que as pessoas que escolhem de outra maneira não
acreditariam que possuíssem. Quando monotonamente reiteradas pelas pessoas
que estão em volta, as escolhas perdem muito de suas idiossincrasias e deixam de
parecer aleatórias, duvidosas ou arriscadas: a tranqüilizadora solidez de que
sentiriam falta se fossem os únicos a escolher é fornecida pelo peso impositivo da
massa. (BAUMAN, 2003, p. 61)
Desse modo, consideramos que o que os consumidores dos loteamentos fechados ribeirinhos
querem respaldar coletivamente, é a possibilidade de desfrutarem de seus momentos de lazer em
espaços homogêneos, longe dos segmentos sociais indesejados. Assim, percebemos que nesse caso, o
fechamento refere-se muito mais a uma necessidade produzida simbolicamente para tentar
amenizar as práticas de segregação que essa prática contém.
Assim, a comunidade e a identificação social oferecidas pelos loteamentos fechados ribeirinhos
são realizadas mediante o consumo desses espaços e dos símbolos associados a esses espaços. De
acordo com Bauman (2003, p. 98), atualmente somos consumidores numa sociedade de consumo.
A sociedade de consumo é a sociedade do mercado. Todos estamos dentro e no
mercado, ao mesmo tempo clientes e mercadorias. Não admira que o uso/consumo
das relações humanas, e assim, por procuração, também de nossas identidades (nós
nos identificamos em referência a pessoas com as quais nos relacionamos), se
emparelhe, e rapidamente, com o padrão de uso/consumo de carros, imitando o
ciclo que se inicia na aquisição e termina no depósito de supérfluos.
Assim, diante do crescente papel que o consumo adquire nas nossas vidas, influenciando em
nossas escolhas espaciais e nas nossas relações pessoais, as identidades e a inserção comunitária
podem ser adquiridas mediante a compra de mercadorias e seus mbolos embutidos, e trocadas
constantemente, de acordo com o surgimento de padrões mais sedutores. Dessa forma, como a
aquisição de um carro, as identidades e a comunidade são mercadorias compradas, descartadas,
valorizadas, seguindo a “moda” ditada pelo consumo. Portanto, como destaca Bauman (2003, p.
68), os laços e as identidades produzidas nas comunidades-cabide são transitórias e, nelas, está
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sempre implícito o fato de que podem ser trocadas a qualquer momento, por outras mais
atraentes.
Segundo Baudrillard (1995, p. 22), vivemos em uma sociedade em que o consumo invade a vida
das pessoas, num processo em que as relações sociais, juntamente com as satisfações pessoais passam
a ser definidas por meio dele. Para o autor, o consumo é estruturado como uma linguagem, na
qual não se trata mais da apropriação individual do valor de uso dos bens e dos serviços, mas da
lógica da produção e manipulação dos significantes sociais. Segundo ele,
(...) nunca se consome o objeto em si (no seu valor de uso) os objetos (no sentido
lato) manipulam-se sempre como signos que distinguem o indivíduo, quer filiando-
o no próprio grupo tomado como referência ideal, quer demarcando-o do
respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior. (BAUDRILLARD,
1995, p. 60)
Nesse sentido, Gorender, destaca que,
A sociedade capitalista se apresenta como sociedade do espetáculo, tal qual definiu
Debord. Importa mais do que tudo a imagem, a aparência, a exibição. A
ostentação do consumo vale mais que o próprio consumo. O reino do capital fictício
atinge o máximo de amplitude ao exigir que a vida se torne ficção de vida. A
alienação do ser toma o lugar do próprio ser. A aparência se impõe por cima da
existência. Parecer é mais importante do que ser. (GORENDER, 1999, p. 125)
Dessa forma, por meio do consumo, que em nossa sociedade é baseado na ostentação e nas
aparências, podemos ter a constituição de identidades e da sensação de pertencimento à
comunidades, que são antes de mais nada, fruto de construções simbólicas e do fechamento
material no intuito de ressaltar a diferenciação das pessoas por seus gostos e seu poder aquisitivo.
Sendo assim, o consumo material e simbólico das mercadorias, incluídas aí, os loteamentos fechados
ribeirinhos, se por meio do consumo das imagens associadas a elas, capazes de diferenciar seus
consumidores das demais pessoas, comunicando aos “outros” que, entre eles, existe uma distinção.
Como as identidades são produzidas a partir das pessoas com as quais nos relacionamos e das
mercadorias que consumimos, os loteamentos fechados ribeirinhos são espaços propícios para a
conotação de
status
e diferenciação social aos seus consumidores. São empreendimentos que além
de serem distintivos por serem exclusivos, não acessíveis a todos, oferecem a possibilidade de
relacionamento entre pessoas que simbolicamente possuem o mesmo nível, as mesmas qualidades,
fato que reforça o
status
das identidades criadas nesses ambientes, visto que reforçam o capital
social de seus consumidores.
De acordo com Bourdieu (1998, p. 67), o capital social refere-se à vinculação a um grupo, como
conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns passíveis de serem
percebidas pelo observador mas também, unidos por ligações permanentes e úteis. No caso dos
loteamentos fechados ribeirinhos, constatamos que eles não são espaços que oferecem redes de
relacionamento fortes e duradouras, mas consideramos que as vinculações das pessoas, mesmo que
frágeis e simbólicas, nesses espaços, são capazes de contribuir com o aumento do capital social, ao
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passo que esses espaços e a potencialidade das relações homogêneas que possibilitam, atestam e
tornam visíveis as posições sociais de seus freqüentadores e deixam explícita a concepção de estilo de
vida que querem passar.
Assim, mesmo que o capital social gerado a partir da vinculação de pessoas a um mesmo grupo,
nos loteamentos fechados ribeirinhos, não seja advindo dos contatos, das trocas e das influências
objetivas que as pessoas do grupo podem se oferecer, o fato de compartilharem o mesmo espaço, os
conecta no plano simbólico, dando às pessoas do grupo a capacidade de reverterem em vantagens
pessoais, a distinção e o
status
que esses espaços e que as pessoas que os consomem oferecem. Nesse
sentido, destacamos o depoimento de uma entrevistada que aponta a valorização do
empreendimento em que possui um rancho, em razão de que pessoas consideradas como
importantes
”, adquiriram lotes nesse loteamento.
“Olha, para mim, eu vejo vantagens sim, nas pessoas daqui terem um certo nível. O
condomínio valoriza, a impressão de ser mais bem freqüentado, então, o preço
dos lotes aumenta e o condomínio passa a ser visto como melhor. Então, aqui no
nosso condomínio a gente tem médicos, advogados, até um juiz veio olhar uma
casa aqui, mas não sei se ele comprou. Então, a presença de pessoas importantes
uma valorizada, passa a impressão de um ambiente mais requintado.
Essa entrevistada percebe a presença de pessoas com profissões consideradas como portadoras
de
status
no loteamento fechado ribeirinho como um fator de valorização material dos preços dos
lotes e de uma valorização simbólica no sentido de que o loteamento passa a ser visto como um
ambiente
mais requintado
”. Temos assim, um exemplo de que mesmo as pessoas não
estabelecendo laços efetivos dentro dos loteamentos fechados ribeirinhos, elas podem fazer uso do
capital social gerado a partir do compartilhamento desses espaços por pessoas de nível social
considerável.
De acordo com Bourdieu (1998, 166),
O bairro chique, como um clube baseado na exclusão ativa de pessoas indesejáveis,
consagra simbolicamente cada um de seus habitantes, permitindo-lhe participar do
capital acumulado pelo conjunto dos residentes: ao contrário, o bairro
estigmatizado degrada simbolicamente os que o habitam, e que, em troca, o
degradam simbolicamente, porquanto, estando privados de todos os trunfos
(capitais) necessários para participar dos diferentes jogos sociais, eles não têm em
comum senão sua comum excomunhão.
O consumo dos loteamentos fechados ribeirinhos agrega valor ao capital social de seus
consumidores, servindo para que as pessoas possam exibir seus gostos e seus estilos de vida,
identificando-se com pessoas e com espaços carregados de prestígio. Dessa maneira, numa
sociedade que privilegia o consumo de símbolos, a identidade e a comunidade passam a ser
produzidas e apropriadas num simulacro. Na busca pela identificação, as pessoas produzem suas
identidades por meio do consumo material e simbólico aproximando-se de pessoas que podem
comprar os mesmos bens que elas, dessa forma, separam-se dos outros aqueles que não
compartilham das mesmas mercadorias e símbolos.
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As comunidades e as identidades produzidas a partir do consumo possuem como característica a
fragilidade. Como o sistema capitalista reproduz-se, a partir da criação incessante de novas
“necessidades” e novas mercadorias, os produtos e as imagens valorizadas pelo mercado estão em
constante transformação. Assim, as identidades e as comunidades de iguais são altamente
cambiáveis, visto que são produzidas sobre bases frágeis.
No caso do consumo dos loteamentos fechados ribeirinhos e a aquisição de uma percepção de
comunidade de iguais, baseada num processo de identificação social entre os proprietários de casas
nesses espaços, constatamos que a fragilidade dos laços estabelecidos é mais intensa. Além da
fragilidade advinda do fato de que esses elementos são adquiridos pelo consumo, temos a questão
de que os loteamentos fechados ribeirinhos não são espaços de apropriação cotidiana, o que reduz
ainda mais, a possibilidade do estabelecimento de vínculos sociais mais duradouros.
Constatamos que a apropriação desses espaços que unem, mesmo que incompletamente, os
proprietários de casas nesses empreendimentos, num círculo simulacional de comunidade, é feita
não no sentido do estabelecimento de relações entre os iguais e sim, na negação do relacionamento
com os diferentes.
Nesse processo de simulação que resulta na produção das frágeis comunidades de iguais em
empreendimentos fechados, temos também, a simulação das justificativas que atestam a
necessidade do fechamento desses espaços. Sendo assim, de acordo com Bauman (2003, p. 106), as
pessoas que buscam o confinamento espacial e o fechamento social, são zelosos na justificação de
seus investimentos, “pintando a selva do lado de fora dos portões com cores mais carregadas”. No
entanto, as pessoas descobrem que quanto mais seguras se sentem dentro dos muros, menos
familiar e mais ameaçadora parece a selva fora, e mais coragem se faz necessária para
aventurar-se, além dos guardas armados e além do alcance da rede eletrônica de segurança.
Como constatamos, as comunidades de iguais estabelecidas nos loteamentos fechados ribeirinhos
são constituídas a partir da produção de barreiras físicas e materiais que ressaltam algumas
diferenças, escolhidas e manipuladas, entre os que ficam dentro e os que ficam fora dos muros
desses empreendimentos. Dessa maneira, essa prática vai ao encontro do que destaca Hall (2003, p.
92), ao afirmar que, na atualidade, existem fortes tentativas de se construírem identidades
purificadas, para se restaurar a coesão, o “fechamento”, frente ao hibridismo e à diversidade. Nesse
sentido, quanto mais as diferenças se acirram, mais a inabilidade de lidar com elas faz com que
atitudes como o fechamento sejam tomadas, para que certos segmentos não tenham que conviver,
nem mesmo dividir, os mesmos espaços com os segmentos sociais considerados como diferentes, nesse
caso, os mais pobres.
Dessa diferenciação entre os segmentos mais ricos, os que estão dentro, e os mais pobres, os de
fora, decorrem algumas questões que mostram que essas atitudes individualistas, como o
fechamento, somente contornam e escondem os problemas sociais, bem como, em muitos casos,
agudizam as diferenças, transformando-as em desigualdades.
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216
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Sobre essa questão, destacamos a afirmação de Bauman (2005, p. 44), para quem,
(...) a identificação é também um fator poderoso na estratificação, uma de suas
dimensões mais divisivas e fortemente diferenciadoras. Num dos pólos da hierarquia
global emergente estão aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades
mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as no leque de ofertas
extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro pólo se
abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não
têm o direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem oprimidos
por identidades aplicadas e impostas por outros identidades de que eles próprios
se ressentem, mas não têm permissão de abandonar nem das quais conseguem se
livrar. Identidades que estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam...
Dessa forma, concebemos que precisamos atentar para a outra face do processo de
fechamento. Enquanto que, para os segmentos de maior poder aquisitivo, aos de dentro, são
oferecidas, por meio do consumo, todas as comodidades, as facilidades, possibilidades de felicidade e
os bens considerados raros na atualidade, como a segurança e a Natureza, os de fora ficam
excluídos desse processo e suas necessidades nem sempre são atendidas.
Assim, a possibilidade de constituição das identidades sociais na modernidade líquida é variada,
com a apresentação constante de diferentes modelos, disponíveis, no modo como se constituem no
período atual, para as pessoas totalmente incluídas nas atividades de consumo. Aos segmentos de
menor poder aquisitivo, não é dado o direito de possuir ou de transitar, pelas várias identidades
disponíveis para os setores mais privilegiados. Fazemos essa afirmação, não porque acreditamos que
os segmentos de menor poder aquisitivo não tenham suas próprias identidades, mas porque na
maior parte das vezes, essas identidades não correspondem àquelas reconhecidas pelos setores
dominantes, decorrentes dos valores estabelecidos no âmbito do consumo.
De acordo com Bourdieu (1996, p. 144), cada campo econômico, social, cultural, artístico
possui conjuntos específicos de símbolos responsáveis por formar os
habitus
correspondentes. Cada
campo possui também, uma estrutura de percepção e de ação próprias. Assim, pessoas dos
segmentos de maior poder aquisitivo possuem esquemas classificatórios e perceptivos próprios. Ao
olharem o mundo e as pessoas desse mundo, a partir de seus próprios pontos de vista, não
reconhecem, ou o compreendem, os sistemas de identificação e de ação dos segmentos menos
privilegiados. Assim, utilizam seus próprios parâmetros para identificar, estigmatizando, os setores
de menor poder aquisitivo.
De acordo com Bauman (2005, p. 45), pessoas a quem é negado o direito de reivindicar
uma identidade distinta da classificação que lhes é atribuída e imposta. Dessa maneira, certos
segmentos ficam exilados do direito de pleitearem e de verem respeitadas suas próprias
identidades.
Se você foi destinado à subclasse (porque abandou a escola, é mão solteira vivendo
da previdência social, viciado ou ex-viciado em drogas, sem-teto, mendigo ou
membro de outras categorias arbitrariamente excluídas da lista oficial dos que são
considerados adequados e admissíveis), qualquer outra identidade que você possa
ambicionar ou lutar para obter, lhe é negada
a priori.
O significado da “identidade
da subclasse” é a
ausência de identidade
, a abolição ou negação da
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individualidade, do “rosto” esse objeto do dever ético e da preocupação moral.
Você é excluído do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas,
construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas. (BAUMAN, 2005, p. 46)
Dessa maneira, consideramos que a diferenciação simbólica empreendida nos loteamentos
fechados ribeirinhos não pode ser entendida como a materialização das diferenças sociais existentes
“naturalmente” na sociedade contemporânea. A identificação social e a inserção em um círculo
comunitário formado por iguais, negados aos segmentos menos privilegiados, são resultado de
construções e de escolhas simbólicas realizadas pelos setores dominantes.
De acordo com Debord (2002), o espetáculo que perpassa a vida das sociedades
contemporâneas, ou melhor, que constitui suas relações socioespaciais, é fruto de sua própria
construção, pois ele mesmo cria suas próprias regras. Para o espetáculo, a separação, é segundo o
autor, “o alfa e o ômega”. Tanto a separação entre os segmentos sociais, a separação do
trabalhador em relação àquilo que produz e a institucionalização da divisão do trabalho são
exemplos das separações empreendidas no âmbito da sociedade do espetáculo. Essas separações
vão resultar na perda da unidade do mundo.
O sistema econômico baseado no isolamento é uma
produção circular de
isolamento
. O isolamento fundamenta a técnica e, em retorno, o processo técnico
isola. Do automóvel à televisão, todos os
bens selecionados
pelo sistema espetacular
são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento
das “multidões solitárias”. O espetáculo reencontra cada vez mais concretamente os
seus próprios pressupostos. (DEBORD, 2002, p. 35)
Assim, podemos considerar que as separações sociais que se instauram em empreendimentos
como os loteamentos fechados ribeirinhos são separações produzidas no âmbito do espetáculo.
Segundo Debord (2002, p. 35), no espetáculo, “uma parte do mundo
representa-se perante
o
mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum dessa separação. O
que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que
mantém seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o
enquanto separado
”.
Dessa forma, as pessoas dos diferentes segmentos sociais são unidas, pois todas participam do
espetáculo, mas essa união é feita ressaltando as separações que existem entre eles. Podemos dizer
que os papéis que lhes são destinados no espetáculo são diferentes, e que os símbolos selecionados
como os hegemônicos na sociedade espetacular são símbolos que reforçam o conteúdo segmentado
da sociedade.
Dessa forma, a estratégia de fechamento, realizada no âmbito da sociedade de consumo
espetacular, evidencia a necessidade que os segmentos de maior poder aquisitivo possuem de
ressaltar suas distinções. No entanto, consideramos que temos na atualidade uma estandardização
do consumo, num processo em que os símbolos estão disponíveis para todos, mas sua apropriação
está restrita àqueles que tiverem condições financeiras para pagar. Sendo assim, muitas vezes, os
padrões de consumo incutidos no imaginário dos diferentes segmentos sociais são os mesmos, o que
se diferenciam são os meios materiais para que esse consumo se realize.
De acordo com Bauman,
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Numa sociedade sinóptica de viciados em comprar/assistir, os pobres não podem
desviar os olhos; não mais para onde olhar. Quanto maior a liberdade na tela e
quanto mais sedutoras as tentações que emanam das vitrines, e mais profundo o
sentimento da realidade empobrecida, tanto mais irresistível se torna o desejo de
experimentar, ainda que por um momento fugaz, o êxtase da escolha. Quanto mais
escolha parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolhas parece insuportável
para todos. (BAUMAN, 2001, p. 104)
Nesse sentido, não é somente aos segmentos de maior poder aquisitivo que são oferecidos os
símbolos tentadores da sociedade de consumo. Não são os segmentos mais privilegiados que
desejam o carro mais moderno, a roupa da moda, o celular mais tecnológico, habitar em lugares
fechados e de
status
.
Dessa forma, ao entrevistar pessoas dos segmentos com menor poder aquisitivo das cidades em
que estão implantados os loteamentos fechados ribeirinhos e que não possuem casas nesses
empreendimentos, constatamos que eles aprovam o fechamento desses espaços e que desejariam,
se tivessem as condições financeiras, consumir esses loteamentos. Assim, esses entrevistados
mostraram uma imagem positiva desses empreendimentos, com o fechamento sendo considerado
como uma prática legítima e invejável. Os entrevistados mostraram, também, que aprovam outras
estratégias de manutenção da exclusividade e da homogeneidade social estabelecidas pelos
segmentos de maior renda, como os shopping centers.
Ao idealizarem esses tipos de atitudes adotadas pelos segmentos de maior poder aquisitivo, os
entrevistados revelam não perceberem o caráter intrínseco de segregação socioespacial presente
nessas atitudes, apesar de notarem diferenças no que diz respeito ao poder aquisitivo dos diferentes
extratos sociais, visto que o consideram que esses espaços fechados sejam para eles. Por exemplo,
uma entrevistada residente na cidade de Buritama afirmou:
Eu fui poucas vezes em shopping. Só lá em Araçatuba porque fica perto da
rodoviária e quando a gente precisa ir fazer alguma coisa lá, compras, pagar
alguma conta, ir na Santa Casa, a gente aproveita e uma passada lá pra ver as
lojas, as pessoas. É tudo muito bonito, arrumadinho, a gente se sente bem, se sente
até rico. não dá pra comprar nada, é tudo caro, a única coisa que eu já comprei
foi sorvete. Mais nada. (...) eu gostaria de ir mais vezes sim, passear, mas é difícil,
precisava ter um pouco mais de dinheiro, se não passa vontade. Nossa, minha
filha fica querendo um monte de coisas. Então, é melhor não ir. Mas é gostoso, é
bom sim.
(56 anos, comerciante)
Pela fala da entrevistada, vemos que ela considera o
shopping
como uma coisa boa, gostosa de
passear. Não tem nenhum sentimento negativo em relação a esse tipo de empreendimento,
embora perceba que não é um espaço voltado para pessoas de seu poder aquisitivo, visto que lá as
coisas são caras e ela precisaria ter mais dinheiro para freqüentá-lo mais vezes. Esses espaços
acabam gerando um sentimento de projeção simbólica, no sentido de que, nas vezes em que as
pessoas de menor poder aquisitivo entram em contato com eles, sentem-se mais próximos das
pessoas de maior poder aquisitivo. Dessa forma, nossos entrevistados não demonstraram um
posicionamento crítico em relação a esses tipos de espaços, encarando-os como espaços
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diferenciados, destinados a pessoas de outro nível social, mas desejam poder também se apropriar
deles.
Outra entrevistada, pertencente ao segmento de menor poder aquisitivo, residente na cidade
de Penápolis diz:
Bom, eu não conheço muito bem o Belvedere [
nome do loteamento implantado na
cidade],
não. de passagem, a gente na estrada. Mas eu nunca entrei não.
Só gente rica
tem casa , né. Porque para a gente é difícil ter uma casa na cidade,
já pensou ter outra na beira do rio? Eu não tenho casa, moro de aluguel, precisaria
ter muito dinheiro para ter duas casas. Não tenho condições não. Nem conheço
ninguém que tem esse dinheiro não. Mas seria muito bom, eu gostaria
. pensou,
eu todo fim de semana indo para o rancho, descansando. No final de semana, eu
tenho é que trabalhar. Mas deve ser muito gostoso.
(51 anos, frentista)
Quando questionados quanto ao caráter fechado desses empreendimentos, os entrevistados
deram respostas como:
É bom, não é? É mais seguro para eles. Seria bom se todo mundo pudesse morar em
condomínio fechado. a gente podia ficar mais tranqüilo, porque é mais seguro, é
melhor.
(44 anos, professora, residente na cidade de Penápolis)
Eu não acho que tenha alguma coisa ruim, não. É o direito deles. Se eles têm
dinheiro para contratar segurança, para ter portaria, é melhor para eles. Quem, se
tivesse dinheiro, não ia querer proteger sua família, suas coisas? Eu queria.
(46 anos,
tratorista, residente na cidade de Zacarias)
Podemos observar, assim, que a prática do fechamento e do acesso controlado aos espaços é
tida como positiva, como uma vantagem que os mais ricos possuem em relação aos mais pobres,
que não dispõem de dinheiro para gastar com a segurança, motivo ao qual associaram o
fechamento os segmentos de menor poder aquisitivo quando entrevistados. Todos os entrevistados
pertencentes aos segmentos menos privilegiados demonstraram desejo de poder viver ou ter uma
segunda residência em um loteamento fechado se possuíssem situação financeira favorável.
Nenhum deles demonstrou alguma percepção negativa em relação aos loteamentos ribeirinhos,
mas reconheceram que esses espaços não são destinados a eles.
Dessa maneira, podemos concluir que os loteamentos fechados ribeirinhos cumprem sua função
de distinguir os diferentes segmentos sociais no sentido de que criam no imaginário da sociedade a
idéia de que esses espaços são destinados a segmentos exclusivos. Assim, os segmentos de menor
poder aquisitivo reconhecem a separação entre os de “dentro” e os de “fora”, ao reforçarem a idéia
de que esses espaços não são produzidos para serem apropriados por eles. No entanto, como a
difusão dos padrões de consumo não atinge apenas àqueles que podem efetivamente consumir, os
segmentos menos privilegiados mostram que aprovam e que também desejam os mesmos produtos
que os mais ricos.
Nesse sentido, não podemos realizar uma leitura maniqueísta da tendência à busca por
fechamento e diferenciação social, considerando que os setores mais privilegiados são os “ruins” ou
os únicos que valorizam a distinção social, porque desejam se diferenciar e consumir produtos
portadores de status. Os segmentos menos privilegiados também mostram o desejo de se
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diferenciarem e de consumirem produtos exclusivos, sendo que os entrevistados que estão fora dos
muros dos loteamentos fechados ribeirinhos demonstraram que se tivessem condições favoráveis,
também iriam querer ter um rancho no loteamento fechado.
Consideramos, assim, que os loteamentos fechados ribeirinhos são espaços que possibilitam a
produção de identificações sociais e de um sentimento de inserção comunitária baseados na
separação física e simbólica dos segmentos de menor poder aquisitivo. Esses espaços correspondem,
assim, ao sentido contemporâneo que a palavra comunidade possui para os segmentos de maior
padrão aquisitivo.
Bauman (2003, p. 60), destaca que os segmentos de maior poder aquisitivo realizam atitudes
que eliminam a comunidade, “entendida como um lugar de compartilhamento do bem-estar
conjuntamente conseguido; como uma espécie de união que supõe a responsabilidade dos ricos e dá
substância às esperanças dos pobres de que essa responsabilidade será assumida”. Mas,
Isso não quer dizer que a “comunidade” esteja ausente do vocabulário da elite
global, nem que, se mencionada, seja negada e censurada. É que a
“comunidade” da
Lebenswelt
da elite global é muito diferente daquela outra
“comunidade” dos fracos e despossuídos. Em cada uma das duas linguagens em que
aparece, a das elites globais e a dos deixados para trás, a noção de “comunidade”
corresponde à experiências inteiramente diferentes e a aspirações contrastantes.
(BAUMAN, 2003, p. 60)
Dessa forma, não queremos afirmar em nosso trabalho, que as comunidades de iguais
estabelecidas no interior dos espaços fechados, destinadas para as elites sejam a única concepção de
comunidade que temos na atualidade. Mas que esse tipo de comunidade que pressupõe a
homogeneidade tem sido muito valorizado pelos segmentos sociais com maior padrão de vida.
No caso dos segmentos sociais de menor poder aquisitivo, também existem processos de
diferenciação, identificação e construções comunitárias, mas esses processos possuem conteúdos
diferentes e, muitas vezes, têm objetivos antagônicos dos processos empreendidos pelas elites. Não
nos cabe, no âmbito dos objetivos desse trabalho, discutir aprofundadamente as formas e os
conteúdos das comunidades produzidas pelos segmentos de menor poder aquisitivo, mas faremos
uma breve exemplificação para que não corramos o risco de idealizar as comunidades dos
segmentos mais pobres em relação às comunidades dos mais ricos.
De acordo com Zaluar (1998, p. 211), as comunidades integradas pelos segmentos menos
privilegiados também podem gerar segmentações. Analisando o caso da construção de uma noção
específica de comunidade nas favelas cariocas, implementada sob a influência da Igreja Católica, a
autora destaca que, “em conseqüência da prioridade dada às identidades locais e grupais, ela
reforçou a segmentação da população e diminuiu os compromissos com os interesses, demandas e
estratégias gerais e públicos”. A autora destaca que essa comunidade integrada pelos segmentos
mais pobres com o objetivo de conjuntamente resolverem os problemas locais, tem o significado de:
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(...) grupos locais e circunscritos, com a referência geral aos pobres como aqueles que
deveriam congregar-se para resolver seus problemas por si mesmos, enquanto
esperam pela justiça final na Terra. Como pobres, são aqueles a quem falta
habitação, saúde, educação, emprego, bons salários, ou seja, serviços e políticas
públicas do Estado, os primeiros serviços atendidos localmente. De fato, embora
explicitamente oposta ao clientelismo, e ao egoísmo de grupos particulares, essa
ideologia comunitária acabou reforçando o localismo, sem romper, pelo menos
como possibilidade de solução para os problemas locais, totalmente com o
clientelismo. (ZALUAR, 2004, p. 52)
Dessa maneira, esse tipo de comunidade dos segmentos menos privilegiados também é baseado
em ideais segmentários, segundo o qual cada grupo deve ser responsável por atender suas próprias
demandas, sem a construção de algum tipo de ideal coletivo. Assim, a união, nessas comunidades,
apesar de ter motivações diferenciadas daquelas que são produzidas pelos segmentos de maior
renda, também estão baseadas na separação e no individualismo.
Depois de termos identificado que os loteamentos fechados ribeirinhos oferecem aos seus
consumidores um processo de identificação e de inserção em uma comunidade de iguais, mesmo
que esses valores não estejam vinculados explicitamente,
a priori
, nesses empreendimentos,
realizaremos uma análise mais aprofundada sobre os conteúdos dessa identificação e desse
relacionamento comunitário, que os entrevistados deixam transparecer em seus discursos, como se
fossem harmônicos e portadores apenas de qualidades positivas.
5.2. – A simulação da comunidade de iguais e da identidade: atitudes segregacionistas
e de distinção social nos loteamentos fechados ribeirinhos
De acordo com Bauman (2003, p. 9), temos, em contraposição à comunidade imaginada que
produz uma sensação de aconchego, a comunidade que poderá potencialmente ser colocada em
prática: “uma coletividade que pretende ser a comunidade encarnada, o sonho realizado, e (em
nome de todo bem que se supõe que essa comunidade oferece) exige lealdade incondicional e trata
tudo que ficar aquém de tal lealdade como um ato imperdoável de traição”.
Dessa forma, a comunidade, na atualidade, só poderá ser alcançada por meio de acordos e de
uma rigorosa obediência, o que já afasta dessa comunidade real a idéia de aconchego presente na
comunidade idealizada. Assim, para se obter as vantagens que estar em comunidade pode trazer,
temos que nos sujeitar a certas regras, como destaca o autor:
Você quer segurança? Abra mão de sua liberdade, ou pelo menos de boa parte
dela. Você quer poder confiar? Não confie em ninguém de fora da comunidade.
Você quer entendimento mútuo? Não fale com estranhos, nem fale em línguas
estrangeiras. Você quer essa sensação aconchegante de lar? Ponha alarmes em sua
porta e câmeras de tevê no acesso. Você quer proteção? Não acolha estranhos e
abstenha-se de agir de modo esquisito ou de ter pensamentos bizarros. Você quer
aconchego? Não chegue perto da janela, e jamais a abra. O nó da questão é que se
você seguir esse conselho e mantiver as janelas fechadas, o ambiente logo ficará
abafado e, no limite, opressivo. (BAUMAN, 2003, p. 10)
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Sendo assim, fazer parte de uma comunidade, atualmente, não tem nada de natural ou
espontâneo. É uma busca que só poderá ser alcançada a partir do cumprimento de várias regras e
acordos. A partir da realização das entrevistas e das observações em campo, verificamos que,
embora a dimensão da identificação e da “comunidade de iguais” esteja presente na percepção das
pessoas entrevistadas, essa comunidade não se realiza efetivamente, a não ser como simulação.
As pessoas dentro dos loteamentos fechados ribeirinhos não convivem como em uma
comunidade, porque não estabelecem relações estreitas entre si. A sensação de tranqüilidade
advinda do fato de estarem entre semelhantes é garantida com a constatação do pertencimento a
um mesmo nível socioeconômico e do compartilhamento de certos interesses. Mas essa tranqüilidade
gerada pela homogeneidade das pessoas não vem acompanhada de um número significativo de
relacionamentos entre elas. Elas se sentem bem por saberem que podem se relacionar sem
preocupações com as outras pessoas do loteamento, porém, não sentem a necessidade de se
relacionarem efetivamente com elas. A segurança e a tranqüilidade ficam, assim, ligadas à
potencialidade do convívio.
Retomando a fala da entrevistada a qual afirma que, dentro do loteamento,
“é tudo gente
como a gente”
e que
“a gente se identifica”
, podemos observar essa visão. Ao ser perguntada sobre
as pessoas com quem mantinha relacionamentos dentro do loteamento ela respondeu:
Olha, eu conheço os meus vizinhos aqui do lado. Conheço assim, a gente se
cumprimenta, fala da pescaria, só isso. A gente não tem amigos aqui dentro, só fala
bom dia, boa tarde, agora, fazer alguma coisa juntos a gente não faz não. É
porque a gente sempre vem em família ou traz os nossos amigos de fora. Acho que
é isso que dificulta a gente conhecer as outras pessoas daqui. Mas o todos gente
boa.
(45 anos, professora, residente na cidade de Birigui, proprietária de casa no
loteamento Portal da Praia em Buritama)
A partir dessa fala, podemos constatar que a identificação não implica em relacionamento. A
entrevistada reitera que as pessoas de dentro do loteamento são “
todos gente boa
”, mas revela que
não estabelece contatos estreitos com nenhuma delas. As relações são apenas de cordialidade.
Sendo assim, que tipo de comunidade é essa, em que seus membros desejam apenas a proximidade
e não a convivência?
Destacamos a seguir, mais alguns depoimentos que apontam nesse sentido:
A gente se conhece, às vezes nos encontramos na cidade, nos cumprimentamos,
perguntamos do rancho, se está tudo bem. Então temos um ambiente que permite
que a gente quando encontra a pessoa, reconheça que ela é do loteamento. Isso
uma sensação agradável. Mas tudo fica por aí. s não saímos juntos, quando não
estamos no rancho e quando a gente está lá, temos algumas conversas casuais, mas
não posso dizer que tenhamos amigos lá. As relações são mais superficiais, mas
quem sabe se com o tempo a gente não melhora isso.
(45 anos, dentista, residente
na cidade de Araçatuba, proprietário de casa no loteamento Recanto Belvedere)
Eu sei que as pessoas aqui se dão bem, mas não é uma relação de amizade, de você
ir na casa do outro, de almoçar junto, essas coisas. A gente conversa quando a gente
se encontra, troca algumas palavras e só. Mas por exemplo, eu tenho amigos aqui
dentro, que eu já os conhecia antes, então são amizades lá de fora. A gente não
virou amigo de ninguém aqui dentro. Mas não sei se isso é geral, ou se é um caso
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específico da minha família.
(43 anos, farmacêutico, residente na cidade de Birigui,
proprietário de casa no loteamento Riviera Santa Bárbara)
Nós somos conhecidos, pessoas que sabem quem as outras são e só. Mas quando a
gente vem pra , a gente já vem preparado, vamos dizer assim. Ninguém vai
passar um final de semana no rancho sozinho. Até tem as pessoas que querem
descansar a cabeça e vem. Mas geralmente as pessoas vêm com os amigos, com a
família, forma uma turma. Assim, você não procura outros relacionamentos. Mas
temos boas relações.
(48 anos, empresária, residente na cidade de São José do Rio
Preto, proprietária de casa no loteamento Orla Um)
Podemos inferir, assim, que os proprietários de casas nos loteamentos fechados ribeirinhos
entrevistados, não desejam adquirir com essa comunidade um círculo de amizades, de
compartilhamento de atividades, mesmo possuindo gostos comuns. Não procuram trocar
experiências uns com outros. Sentem-se satisfeitos apenas de saber que podem confiar nas outras
pessoas que se encontram dentro do loteamento.
Esse fato faz com que tenhamos ratificada a idéia de que o tipo de comunidade buscada nos
loteamentos fechados ribeirinhos seja a definida por Bauman (2003, p. 21) como “comunidade-
cabide”, em que as pessoas buscam exorcizar coletivamente suas ansiedades experimentadas
individualmente.
Essa técnica de construção pode criar “comunidades” tão frágeis e transitórias
como emoções esparsas e fugidias, saltando erraticamente de um objetivo a outro
na busca sempre inconclusiva de um porto seguro: comunidade de temores,
ansiedades e ódios compartilhados mas em cada caso comunidades cabide”,
reuniões momentâneas em que muitos indivíduos solitários penduram seus solitários
medos individuais. (BAUMAN, 2001, p. 47)
Nesse sentido, o símbolo de “comunidade de iguais”, que é percebido pelos entrevistados como
atributo dos loteamentos fechados ribeirinhos, esconde o que na verdade buscam. Não querem,
como afirmamos, relacionar-se com pessoas que consideram iguais, querem, antes de tudo, ficar
longe das que consideram diferentes. Assim, os muros e o controle do acesso não servem para
demarcar um território em que os relacionamentos podem ocorrer tranquilamente. Demarcam
espacialmente a fronteira que existe entre os diferentes estratos sociais, ou seja, delimitam
fisicamente o espaço dos mais ricos – dentro – e o espaço dos mais pobres – fora.
Nesse caso, observamos que a construção dessa “comunidade de iguais” é resultado de uma
ação segregacionista, que pretende deixar de fora o diferente que, nessa situação, são os segmentos
mais pobres da sociedade. A homogeneidade da comunidade é dada, principalmente, pelo fator
econômico, visto que os proprietários se consideram iguais por possuírem o mesmo poder aquisitivo
e se separam dos outros por meio de barreiras físicas, com grande componente simbólico.
Sua identificação serve, assim, como uma justificativa para segregarem os outros. Ao se unirem
coletivamente, os iguais” respaldam suas intenções de deixar de fora os “outros”, visto que não
desejam com sua união criar um espaço de proximidade, de convívio entre pessoas com interesses
comuns, e sim um espaço em que não precisem se preocupar com a presença dos mais pobres. O
símbolo de comunidade e de identidade é utilizado, assim, não com a intenção de impor uma
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fronteira que ofereça relações confortáveis para os de dentro, mas, sobretudo, que deixe os
diferentes de fora. É uma comunidade baseada na proteção de interesses comuns, sendo o principal
deles, a demarcação da posição social dos proprietários.
Esse caráter dos loteamentos fechados ribeirinhos fica claro, quando analisamos a fala da
secretária da associação de proprietários do loteamento Lago Azul localizado no município de
Buritama, quando justificou a negação de nossa entrada no loteamento para a realização das
entrevistas:
Olha, eu não vou poder deixar você entrar porque as pessoas pagam justamente para
não serem incomodadas. Está no regimento. Elas querem tranqüilidade, não querem ninguém
indesejado batendo nas suas portas. É um direito delas.
Vemos, assim, que o fechamento permite que as pessoas não sejam incomodadas por pessoas
indesejadas. No grupo dessas pessoas indesejadas, podemos incluir os vendedores, os mendicantes, os
pesquisadores tentando realizar suas entrevistas, enfim, todas aquelas pessoas que não possuem as
“qualidades” consideradas como válidas para se adentrar os muros.
Essa garantia contra o incômodo causado por pessoas indesejadas está baseada em critérios
socioeconômicos. Aqueles que não possuem condições materiais de construir uma casa nos
loteamentos fechados são considerados como não aptos para entrar neles. Assim, as pessoas pagam
para ficar longe dos mais pobres, para não precisarem ficar próximos deles, muito menos se
relacionar com eles, como se as próprias pessoas de dentro do loteamento não pudessem causar
transtornos.
Em nome da busca por segurança, o fechamento revela ser um processo que minimiza os
impactos decorrentes do confronto entre realidades sociais diferentes, entre alteridades. Isso ocorre,
por dois motivos complementares - os mais pobres são alvo de um mecanismo que os associa com a
imagem de perigo ou classe perigosa, e também porque as pessoas desejam ficar longe do
incômodo de constatarem que existem pessoas que vivem em condições muito precárias, o que
poderia gerar algum tipo de peso em suas consciências. As barreiras servem assim, para criar um
ambiente em que essas diferenças não apareçam, podendo ser esquecidas. Ao simular espaços
homogêneos quanto à situação socioeconômica, as pessoas acirram o abismo que existe entre os
diferentes segmentos sociais.
Uma das entrevistadas relata que, dentro dos loteamentos, ela se sente como num mundo ideal
e que valoriza não estar em contato o tempo todo com os problemas sociais.
É uma coisa assim, estranha, mais eu moro em um loteamento e tenho um rancho
dentro de um loteamento. Então, para mim, nos espaços que eu convivo mais, as
coisas estão boas. Eu não preciso ver os problemas das outras pessoas, como é
comum no restante da cidade. Pessoas pedindo dinheiro, dormindo na rua, aquelas
criancinhas doentes, todas sujas. Não é que eu não saiba que isso existe, mas eu não
fico em contato com isso todo o tempo. Porque é difícil, às vezes a gente não pode
fazer nada. Para que vai ficar se sensibilizando. Se eu pudesse fazer alguma coisa,
mas eu não vou conseguir mudar o mundo. Então, para mim, eu considero melhor
assim, não tem para que ficar se chocando a todo momento. Por exemplo, meus
filhos se sentem mal de ver as pessoas pobres passando necessidade, mas não é
culpa deles. Então, é melhor que eles não fiquem vendo essas coisas. É estranho,
mais é melhor.
(48 anos, empresária, residente em um loteamento fechado na
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cidade de São José do Rio Preto e proprietária de casa no loteamento Orla Um em
Buritama)
Esse depoimento é revelador de como algumas pessoas dos segmentos de maior poder aquisitivo
evitam os problemas decorrentes das desigualdades sociais. Como consideram não serem
responsáveis pelas adversidades vividas pelos mais pobres e não se sentem capazes de fazer alguma
coisa para melhorar essa situação, preferem freqüentar espaços em que esses problemas não
estejam visíveis. As pessoas sabem que o problema existe, mas preferem não
“ficar se sensibilizando”,
“se chocando a todo o momento”.
De acordo com Bauman (2003. p. 59), no mundo acolchoado, maleável e informe da elite
global dos negócios e da indústria cultural, em que tudo pode ser feito e refeito e nada vira
sólido,
(...) não lugar para realidades obstinadas e duras como a pobreza, nem para a
humilhação que representa a incapacidade de participar do jogo do consumo. A
nova elite, com carros próprios em quantidade suficiente para não se preocupar
com o estado lamentável do transporte público, de fato destruiu as pontes que seus
pais tinham atravessado à medida que as deixava pra trás, esquecendo que essas
pontes eram construídas e usadas socialmente.
Para Elias (1994, p. 17), uma das questões centrais da sociedade contemporânea é como criar
uma ordem social que permita uma melhor harmonização entre as necessidades e inclinações
pessoais dos indivíduos, de um lado, e as exigências feitas a cada indivíduo para a manutenção e
eficiência do todo social, de outro. O que vemos é que entre as necessidades e inclinações pessoais e
as exigências da vida em sociedade um abismo intransponível. Isso cria uma contradição, visto
que só pode haver uma vida comunitária mais livre de perturbações e tensões se todos os indivíduos
dentro dela gozarem de satisfação suficiente; e só pode haver uma existência individual mais
satisfatória se a estrutura social pertinente for mais livre de tensão, perturbação, conflito.
Dessa maneira, por vivermos em sociedade, nossa existência está conectada a das outras
pessoas, somos indivíduos que dependem uns dos outros e juntos formamos um todo social. Então,
não se sustenta a afirmação de que não temos responsabilidade sobre o destino das outras pessoas.
Essa responsabilidade pode não advir diretamente de nossas ações concretas, mas de nossa omissão
com o objetivo maior de coesão e de equiparação social.
O que temos observado, atualmente, é que diante da impossibilidade – estrutural e intrínseca –
ao modo capitalista de produção de fazer com que toda a sociedade goze de satisfação individual
suficiente, as pessoas buscam se isolar e se fechar em comunidades em que todos os membros
tenham alcançado certo nível socioeconômico. Assim, não precisam conviver com os problemas
daqueles que ainda não atingiram níveis aceitáveis de satisfação individual.
As pessoas conseguem tomar essa atitude de omissão e de separação, porque estão inseridas em
uma sociedade que legitima essas ações. Até mesmo os segmentos mais desfavorecidos, muitas
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vezes, mostram a vontade de ascender socialmente para praticar as mesmas ações que os mais
privilegiados realizam em busca da homogeneidade social querem morar em um loteamento
fechado, querem fazer compras no
shopping
etc.
Utilizando a metáfora empregada por Bauman (2005, p. 12), observamos que a produção de
“refugo humano” é uma característica inevitável da Modernidade. Na sociedade capitalista, muitos
precisam perder para que alguns possam ganhar. Assim, a produção de pessoas que estão fadadas
ao fracasso, ou seja, pessoas refugadas, rejeitadas, postas de lado como inúteis ou desinteressantes, é
um fato inquestionável.
Para o autor, um dos problemas da sociedade líquido-moderna” consiste em uma crise aguda
da indústria de remoção do refugo humano. “Enquanto a produção de refugo humano prossegue
inquebrantável e atinge novos ápices, o planeta passa a precisar de locais de despejo e de
ferramentas para a reciclagem do lixo”. (Bauman, 2005, p. 13)
Diante da crescente produção de pessoas inseridas precariamente na sociedade, uma estratégia
encontrada é tentar colocar esse refugo longe das vistas dos mais favorecidos para que eles possam
desfrutar de suas condições mais confortavelmente. Assim, o fechamento serve bem a esse propósito
criam espaços que simulam a impressão de que não existem diferenças entre as pessoas. Mas o
fato de não quererem ver e ter contato com essas pessoas diferentes, que lhes causam incômodo e
medo, não faz com que os laços invisíveis que as unem desapareçam, ao passo que elas fazem parte
de uma mesma Sociedade sob um mesmo modo de produção.
O enclausuramento de parcelas da cidade com o objetivo de manter uma unidade social
homogênea representa, portanto, uma das maneiras mais radicais e eficientes de remoção dos
“dejetos humanos”, que segundo Bauman (2005, p. 38/39), consiste em torná-los invisíveis, para que
não precisemos olhá-los e nem pensar neles. Eles nos preocupam quando as defesas elementares
da rotina se rompem. A fronteira entre o admitido e o rejeitado, o incluído e o excluído, precisa ser
constantemente vigiada, porque não é uma fronteira natural. “A sobrevivência moderna - a
sobrevivência da forma de vida moderna depende da destreza e da proficiência na remoção do
lixo”.
Podemos constatar que, mesmo não sendo difundido como caráter inerente aos loteamentos
fechados ribeirinhos nas propagandas publicitárias, o ideal de comunidade, em sua concepção
moderna, está implícito na apropriação desses empreendimentos, visto que a união das pessoas
nesses espaços, mesmo que sem uma efetiva sociabilidade, faz-se para justificar e ratificar os
símbolos tangentes a esse simulacro.
A idéia de comunidade mostra-se presente, de forma implícita, nos discursos dos proprietários,
na diferenciação que realizam quando utilizam o termo “os de fora”, para representar aqueles que,
em seu entendimento, deveriam ficar do lado de fora dos muros, por não possuírem as
características necessárias para garantir um convívio pacífico. São sempre os de fora que causam
problemas dentro dos loteamentos, relacionados a delitos ou perturbação da ordem. Assim, a
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“comunidade de iguais” estabelece-se para que, juntos, exerçam o controle social sobre seus espaços,
deixando de fora os diferentes, representados nesse caso, pelos mais pobres. Sabemos que essas
pessoas que tentam fazer parte desse tipo de comunidade de iguais” não são de fato idênticas,
mas compartilham de certo grau de homogeneidade socioeconômica e de interesses na apropriação
dos espaços dos loteamentos, que as fazem se identificarem como iguais e se diferenciarem dos de
fora.
Assim, os loteamentos fechados ribeirinhos representam comunidades-cabide, em que a união se
com o objetivo de segregar o outro e não de criar um espaço de sociabilidade. A união dessas
pessoas em nome desse mesmo objetivo serve para que, juntas, possam respaldar suas atitudes e,
assim, ganharem aprovação social. Esse tipo de comunidade é constituído por bases frágeis, com
objetivos frágeis, por isso não se realiza objetivamente.
A comunidade não é tida como um espaço de entendimento e compartilhamento. As pessoas
nos loteamentos fechados ribeirinhos não estão preocupadas com o bem-estar comum. Não
conseguem nem mesmo entrar em acordo sobre questões corriqueiras relativas ao funcionamento
do loteamento, pois consideram, como na fala de um entrevistado, que
“loteamento é conflito”.
Mesmo em espaços em que as outras pessoas são consideradas como iguais é difícil equalizar os
interesses individuais. Os proprietários não estão interessados nem em comparecer nas assembléias
promovidas pelos loteamentos. Assim, não estão se unindo em busca de ideais comuns, de criar um
espaço em que possam compartilhar conjuntamente um convívio tranqüilo. Unem-se,
principalmente, para deixar os “outros” de fora.
Sobre esse aspecto, destacamos alguns depoimentos que mostram que a comunidade de iguais
formada dentro dos loteamentos fechados ribeirinhos, além de não ser baseada na busca por
relacionamentos efetivos entre seus membros, também não garante uma identificação total entre
os de dentro e nem garante, mesmo que se considerem como boas pessoas, uma visão homogênea e
sem conflitos sobre os problemas e decisões relativas ao loteamento.
Você tocou numa questão delicada. As assembléias aqui são pouco freqüentadas,
mas quando tem alguma coisa importante para decidir, geralmente quando
envolve a destinação do dinheiro do condomínio, as pessoas comparecem. Aí, é
aquela história, um quer uma coisa, outro quer outra. Geralmente, as pessoas
querem aquilo que vai beneficiar a elas mesmas. Então, querem que o asfalto seja
feito primeiro na frente do rancho delas, ou que o condomínio construa a pracinha
perto do rancho dela, ou que construa a quadra longe do seu rancho para evitar o
barulho das crianças. É difícil chegar em um acordo comum. Tem gente que acha
que não tem que fazer mais nada no condomínio, porque já está bom assim. Tudo
para não gastar mais dinheiro. É por isso que eu digo que condomínio é conflito. (45
anos, bancário, residente na cidade de Birigui, proprietário de casa no loteamento
Recanto Belvedere)
Às vezes é complicado chegar em um entendimento comum. A gente tem
divergências aqui dentro também. Na maior parte das vezes, a gente discorda
sobre assuntos ligados às regras do condomínio e sobre as formas de fazer cumprir
essas regras. Tem gente que sabe que não vai cumprir e então não aceita a
cobrança de multa. Então, nesse sentido, as pessoas às vezes não têm as mesmas
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opiniões. (61 anos, empresário, residente em Monte Aprazível, proprietário de casa
no loteamento ribeirinho Riviera Santa Bárbara)
Sempre tem aqueles que são diferentes, que não compartilham das mesmas idéias
que a maioria, que não sabem respeitar as coisas e as pessoas. Ainda bem que isso é
exceção aqui, mas acontece. (40 anos, arquiteta, residente na cidade de São José do
Rio Preto, proprietária de casa no loteamento Marina Bonita)
Dessa forma, esses depoimentos mostram que o entendimento entre os proprietários de ranchos
nesses empreendimentos não é tácito. Existem divergências entre eles, sobretudo no que se refere às
formas de se gastar o dinheiro e às benfeitorias que vão ser realizadas pelo empreendimento. Cada
proprietário deseja atender a seus interesses individuais, mostrando que nem entre os iguais existe
uma homogeneidade de idéias e interesses, além de não haver o desejo de bem-estar coletivo.
Dentro do próprio grupo de iguais, mesmo considerados como exceção, existem
aqueles que são
diferentes
”, que não possuem as mesmas idéias e não compartilham da aceitação das mesmas
regras.
Outro fator que evidencia que a homogeneidade buscada nesses espaços não se efetiva
completamente, é a questão da diferenciação que os proprietários fazem entre as pessoas que
possuem casas na beira do rio e outras que possuem casas mais afastadas, e por isso, apresentam
status
diferenciado.
A partir das entrevistas realizadas com os proprietários de lotes e com pessoas que participam
da gestão dos loteamentos fechados ribeirinhos, percebemos que, na maior parte dos
empreendimentos analisados, há uma diferença de preços entre os lotes mais próximos da água e os
mais distantes, sendo mais valorizados os primeiros. Dessa forma, além da venda do lote em si, há a
venda da facilidade e da comodidade de se ter acesso mais fácil aos rios. Esse fato acaba criando
certa hierarquia dentro dos loteamentos, visto que adquirir um lote mais próximo ao rio oferece
mais status do que comprar um lote mais afastado. Dessa forma, é possível constatar, pelas
entrevistas realizadas que, de forma geral, as pessoas com padrão econômico um pouco mais
elevado compram lotes mais perto dos rios e as que possuem menor poder aquisitivo, compram
lotes mais distantes. Esse fato expressa a percepção que as pessoas fazem dos loteamentos fechados
ribeirinhos, que não são vistos como espaços totalmente homogêneos. Sobre esse fato, uma
entrevistada, proprietária de casa no loteamento Jardim Itaparica, diz:
Nós compramos o nosso lote no melhor lugar do condomínio. Aqui fica pertinho da
água, pra olhar as crianças brincando, daqui da varanda. A gente fica olhando
o pôr-do-sol sem nenhuma casa na frente... Então, a gente escolheu bem, porque
não adianta nada você construir uma casa num condomínio, lá no final dele,
porque até desânimo de descer para a água. Tem que carregar as coisas, ah,
não. Nós costumamos até brincar, que as pessoas que tem casa muito longe da
água são meio que os excluídos do condomínio. Eles não aproveitam tanto como
nós. Então, eu acho que quanto mais perto da água, melhor. A gente não vem aqui
para isso? Desse ponto de vista, nós (os proprietários de lotes nas margens do rio)
somos mais privilegiados.
(49 anos, empresária, residente na cidade de Birigui)
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Podemos constatar, assim, a partir da fala dessa entrevistada, que ela estabelece uma
diferenciação entre aqueles que possuem casas às margens dos rios, como ela os privilegiados - e
aqueles que possuem casas longe do rio
os excluídos do loteamento
”. Assim, existe uma lógica de
hierarquização dos lotes nos loteamentos fechados ribeirinhos, de acordo com o valor e a posição
geográfica deles, bem como, uma diferenciação entre as pessoas, proprietárias dos lotes mais
valorizados ou menos valorizados. Cabe ressaltar que não são, apenas, as pessoas com padrão
aquisitivo um pouco menor que compram lotes longe da água. pessoas que escolhem essas
áreas por as considerarem mais tranqüilas e por acharem que ali terão mais privacidade. Mesmo
assim, existe nesses empreendimentos essa percepção de que os diferentes espaços do loteamento
possuem conteúdos diferenciados.
A partir desse fato, podemos constatar que a diferenciação buscada nesses loteamentos
fechados ribeirinhos não diz respeito apenas à separação e/ou à demarcação da distinção social em
relação aos segmentos de menor poder aquisitivo, uma vez que, no âmbito do mesmo segmento
socioeconômico, tentam se diferenciar, mostrando mais estilo, melhor bom gosto e mais
status
.
Considerando, portanto, que mesmo que não haja, explicitamente, a venda da comunidade de
iguais como um valor dos loteamentos fechados ribeirinhos, a identificação social e a inserção numa
comunidade de iguais fazem parte do desejo e da percepção que os entrevistados possuem acerca
desses espaços. No entanto, as comunidades e as identificações sociais produzidas nesses ambientes
são frágeis e instáveis, e prescindem da efetivação de laços sociais fortes e duradouros. Os
entrevistados consideram que todos do loteamento são pessoas boas”, ainda que tenham
destacado que não possuíam relações estreitas com os outros proprietários de lotes e que, às vezes,
existem divergências de interesses, prevalecendo, geralmente, os interesses individuais em
detrimento dos coletivos ou de alguma solução mais consensual para a solução de problemas ou
opção de propostas que são apresentadas em reuniões.
Pelas entrevistas que realizamos com as pessoas residentes nos municípios em que estão
implantados os loteamentos ribeirinhos, mas que não possuem ranchos nesses empreendimentos,
constatamos que o podemos idealizar as relações de vizinhança e de contato entre as pessoas
que residem em um mesmo bairro da cidade aberta. Mesmo considerando que os instrumentos
dessa pesquisa não sejam suficientes para analisar as relações de vizinhança que acontecem fora
dos loteamentos fechados ribeirinhos, destacamos dois depoimentos que apontam que não
podemos generalizar nem idealizar a realidade, no sentido de achar que o convívio nos
loteamentos fechados é de distanciamento e que os contatos realizados ente vizinhos nos bairros
abertos da cidade são próximos.
Nós conhecemos os nossos vizinhos sim, sabemos quem é, sabemos onde eles
trabalham. (...) mas a gente não costuma fazer nenhuma atividade juntos não,
cada um tem sua vida. A gente tem uma boa relação, conversamos no portão, a
gente chama as crianças da rua para o aniversário dos nossos filhos, mas é só. A
gente não tem conflitos não, podemos dizer que a convivência é pacífica.
(56 anos,
comerciante, residente na cidade de Buritama)
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A gente não é muito de ficar freqüentando a casa dos vizinhos não. A gente se
de vez em quando, quando estamos guardando o carro, saindo para trabalhar. Às
vezes, nós trocamos algumas palavras, mas nós não temos uma relação de amizade
com os nossos vizinhos não. As nossas relações de amizade não têm nada a ver com
o lugar que a gente mora. (37 anos, advogada, residente na cidade de Zacarias)
Sendo assim, não estamos afirmando que somente nos loteamentos fechados ribeirinhos as
relações entre os vizinhos são distantes. Não temos elementos para analisar essa questão,
aprofundadamente, e os indicadores colhidos mostram que não podemos estabelecer relações
apressadas, visto que cada situação possui determinantes diferentes. Nesse sentido, não estamos
afirmando que diferenças substanciais entre os tipos de relacionamentos existentes dentro e fora
dos muros, visto que temos exemplos de vizinhança na cidade aberta que também não são
marcadas por serem estreitas.
O que constatamos é que, nos loteamentos fechados ribeirinhos, a sociabilidade entre os iguais
não é tão privilegiada como o desejo de compartilhamento de um espaço socialmente homogêneo.
Nesse sentido, os loteamentos estudados criam um simulacro de vida em comunidade e de
identidade constituída a partir dela. Os consumidores desses empreendimentos percebem esses
espaços como homogêneos e a partir dessa percepção, vivenciam e compartilham os espaços dos
loteamentos ribeirinhos como se houvesse um laço de identificação que os unisse entre si e os
distinguisse dos de fora. Ao efetivar essa apropriação, produzem novos sentidos para a noção de
comunidade e de identidade, baseados em sua simulação. Não uma simulação significando simples
imitação do real, e sim, como destaca Baudrillard (1979, p. 5/8), aquela que se constitui por meio de
um processo que gera novos modelos de algo real, que não possuem origem na realidade o
hiperreal. “Simular es fingir tener lo que no se tiene”.
Assim, constatamos que todos os símbolos associados a esses empreendimentos, analisados por
nós Natureza, segurança e comunidade de iguais são produzidos artificialmente e através de
sua reunião em um mesmo espaço, são gerados empreendimentos idealizados, cuja apropriação
não se dá, necessariamente, de forma fingida, visto que as pessoas ao consumirem e introjetarem
esses símbolos, fazem-no como se estivessem apropriando-se de elementos presentes e gerados, de
fato, em situações reais. Assim, nesses espaços de simulação, a distinção entre real e simulacro vai
tornando-se mais difícil.
Considerando então, que os loteamentos fechados ribeirinhos são consumidos e apropriados
simuladamente, a partir da manipulação de símbolos e discursos, o que justifica que se escolham
esses símbolos específicos Natureza, comunidade de iguais e segurança - para definir o consumo
desses espaços? Qual é o sentido do discurso produzido a partir desse tipo de consumo?
De acordo com Baudrillard (1995, p. 59), a lógica social do consumo é estruturada como uma
linguagem. Atualmente, a importância não é dada para a “apropriação individual do valor de uso
dos bens e dos serviços, (...) também não é a lógica da satisfação (a que prevalece), mas a lógica da
produção e da manipulação dos significantes sociais”. Assim, o consumo serve para comunicar. Por
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meio de um conjunto de códigos, o consumo é uma linguagem que exerce uma função de
classificação e de diferenciação social.
Segundo Bauman (2001, p. 88), o consumismo hoje não diz respeito à satisfação das
necessidades. O
spiritus movens
da atividade consumista não é mais o conjunto mensurável de
necessidades articuladas, e sim, o desejo:
(...) entidade muito mais volátil e efêmera, evasiva e caprichosa, e essencialmente
não-referencial que as necessidades”, um motivo autogerado e autopropelido que
não precisa de outra justificação ou “causa”. A despeito de suas sucessivas e sempre
pouco duráveis reificações, o desejo tem a si mesmo como objeto constante, e por
essa razão está fadado a permanecer insaciável qualquer que seja a altura
atingida pela pilha dos outros objetos (físicos ou psíquicos) que marcam seu
passado. (BAUMAN, 2001, p. 88)
A criação do desejo nos consumidores é resultado de uma produção, sempre em renovação e
sob altos custos. “De fato, a própria produção de consumidores devora uma fração
intoleravelmente grande dos custos totais de produção fração que a competição tende a ampliar
ainda mais”.
De acordo com Fergunson, o desejo,
(...) liga o consumo à auto- expressão, e a noções de gosto e discriminação. O
indivíduo expressa a si mesmo através de suas posses, mas, para a sociedade
capitalista avançada, comprometida com a expansão continuada da produção,
esse é um quadro psicológico muito limitado, que em última análise, lugar a
uma economia psíquica muito diferente. (FERGUNSON apud BAUMAN, 2001, p.
89)
De acordo com Feartherstone (1995, p.119), estamos passando por um processo de estilização da
vida, no qual esses estilos são entendidos como modos distintivos de grupos com status específicos.
Através da estilização de suas vidas, as pessoas entendem sua individualidade e sua auto-expressão,
a partir de uma consciência estilizada de si. Nesse sentido, as escolhas feitas por meio do consumo
são representantes da individualidade do gosto e do senso de estilo de seu proprietário/consumidor.
O mesmo autor (1995, p. 123) destaca que a preocupação com o estilo de vida, com a estilização
da vida, sugere que as práticas de consumo, o planejamento, a compra e a exibição dos bens e
experiências de consumo na vida cotidiana não podem ser compreendidas simplesmente mediante
concepções de valor de troca e lculo racional instrumental. As pessoas, no âmbito da cultura do
consumo transformam o estilo num projeto de vida e manifestam sua individualidade e senso de
estilo na especificidade do conjunto de bens, roupas, práticas, experiências, aparências e disposições
corporais destinados a compor um estilo de vida. O indivíduo moderno tem a consciência de que se
comunica não apenas por meio de suas roupas, mas também através de sua casa, mobiliários,
decoração, carro e outras atividades, que serão interpretadas e classificadas em termos de presença
ou falta de gosto. Essa tendência da cultura de consumo para diferenciar, para estimular o jogo das
diferenças, precisa ser matizada pela observação de que as diferenças precisam ser reconhecidas,
legitimadas socialmente: a alteridade total, assim como a individualidade total, corre o risco de ser
irreconhecível.
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Percebemos, dessa forma, que enquanto uma mercadoria, produzida material e
simbolicamente, os loteamentos fechados ribeirinhos são consumidos conspicuamente, ou seja, é um
tipo de consumo feito para ser ostentado e exibido, no intuito de mostrar por meio da aquisição e
da apropriação desses espaços, que existe uma distinção entre aqueles que possuem condições
financeiras para comprá-los e aqueles que não m. Dessa maneira, o consumo dos loteamentos
fechados ribeirinhos não é feito puramente por determinantes objetivas de natureza econômica. Há
uma determinante simbólica que faz com que o consumo desses espaços ressalte e torne visíveis as
diferenças que existem entre as pessoas, tanto as diferenças entre os diversos segmentos sociais, como
também, aquelas que se estabalecem entre os que compõem um mesmo segmento.
Nesse sentido, o consumo desses loteamentos fechados ribeirinhos, feito material e
simbolicamente, tomando-se como referência as idéias de Featherstone (1995, 35), aponta para os
modos socialmente estruturados de usar bens para demarcar relações sociais.
Nesse sentido, no consumo desses espaços, há, conforme Bourdieu (1989), a produção de um
capital simbólico, que atua como um delimitador entre os segmentos sociais, fazendo com que o
consumo desses espaços seja utilizado, voluntária ou involuntariamente, como meio de distinção
simbólica e de afastamento material dos segmentos menos privilegiados.
Consideramos, assim, que as dinâmicas de processo de produção e apropriação dos loteamentos
fechados ribeirinhos são realizadas com o objetivo de promover a distinção social. No entanto, de
acordo com Featherstone (1995, p. 38), existe, na atualidade, a usurpação dos bens marcadores de
status
por grupos de menor renda, provocando, nesse sentido, uma banalização do conjunto de
bens utilizados para distinguir os segmentos. Assim, cria-se um processo de busca infinita por
diferenciação, segundo a qual, “os de cima serão obrigados a investir em novos bens a fim de
restabelecer a distância social original”. Dessa forma, o consumo de bens materiais e simbólicos serve
para produção de distinções sociais não em função do atendimento de certas necessidades, mas
pelo caráter de escassez desses elementos e da impossibilidade de que outros segmentos os possuam.
Dessa maneira, os produtos que surgem, inicialmente, como artigos de luxo, marcadores de
status
, destinados a segmentos de maior poder aquisitivo, vão sendo apropriados por outros
segmentos, num processo de massificação dessas mercadorias, visto que não são apenas os
segmentos de maior padrão de renda que desejam se diferenciar e marcar sua posição no espaço
social. Assim, vão sendo produzidos, para os segmentos de menor padrão de renda, mercadorias
semelhantes àquelas utilizadas pelos segmentos de maior padrão, considerando-se suas
possibilidades de consumo. Isso explica o fato de que os loteamentos fechados estão sendo
produzidos também para segmentos de menor renda.
Nesse sentido, uma necessidade de que os produtores dessas mercadorias consumidas pelos
segmentos de maior renda criem novos mecanismos para diferenciar seus produtos e fazer com que
eles mantenham esse objetivo de diferenciação.
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É, nesse contexto, que surgem práticas como a que verificamos no loteamento fechado
ribeirinho Jardim Itaparica, localizado no município de Buritama. Ele contém dez pistas de mini-
golfe, como podemos ver um exemplo, na foto 39, e as apresenta como um fator de diferenciação
do empreendimento e, portanto, de seus consumidores. De acordo com alguns entrevistados, a
presença das pistas de mini-golfe é percebida por eles como um fator de
status
, visto que
consideram que a prática desse esporte é uma marca da elite. Dessa forma, a presença dessas pistas
de mini-golfe serve para valorizar e diferenciar esse empreendimento, mesmo que os proprietários
de imóveis ali localizados não saibam e não tenham os instrumentos necessários para jogar golfe.
Destacamos a seguir, alguns depoimentos que evidenciam essa leitura.
Isso é uma coisa que o nosso condomínio é que tem. Nós temos esse privilégio. Eu
acho bom, porque valoriza o nosso investimento, porque golfe é um esporte de elite.
Os outros condomínios têm quadras, parquinho, mas pista de golfe é o nosso. (...)
Olha, eu não sei jogar não, nem sei onde comprar os tacos e as bolinhas. Nem sei o
preço que isso custa, mas acho que deve ser caro, porque se não, o golfe tinha se
espalhado mais. Mas é uma questão de interesse, as pistas estão aí. (49 anos,
empresária, residente na cidade de Andradina, proprietária de casa no loteamento
Jardim Itaparica)
Eu acho que um ar mais chique para o nosso condomínio não é? porque é uma
exclusividade. Eu nunca vi ninguém jogando a sério naquelas pistas não, só as
crianças, às vezes, é que brincam, mas elas não jogam certinho, porque precisa dos
instrumentos. Mas é uma coisa boa, uma novidade, pode ser que, com o tempo, o
uso das pistas “pegue”. (56 anos, aposentada, residente na cidade Araçatuba,
proprietária de casa no loteamento Jardim Itaparica)
Foto 39 Buritama. Exemplo de pista de mini-golfe presente no loteamento Jardim Itaparica.
2008
Concluímos que o consumo dos símbolos associados aos loteamentos fechados ribeirinhos, além
de trazerem sensações de bem-estar, tranqüilidade e segurança, servem para demarcar a
separação entre os segmentos mais privilegiados e os mais pobres. Nesse sentido, são criadas
imagens e discursos que justificam a busca por Natureza, por segurança e por um convívio, nesses
espaços, que não ofereça imprevistos. Esses desejos, atendidos por meio do consumo dos loteamentos
Maria Angélica de Oliveira, 2008
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fechados ribeirinhos, justificam a criação das barreiras físicas e ratificam a existência simbólica entre
as pessoas e os espaços dos segmentos mais privilegiados e as pessoas e os espaços dos segmentos de
menor poder aquisitivo. Conforme Bourdieu (1989, p. 34), as escolhas e preferências dos indivíduos
são construídas simbolicamente como sinais de posição social, status e distinção.
Sobre esse aspecto, Featherstone (1995, p. 120), destaca uma visão que avança no sentido de
não considerar que os estilos de vida e o consumo sejam totalmente manipulados, nem que o
consumo e os estilos de vida sejam elementos resultantes de atividades lúdicas e autônomas, além
das determinações econômicas. Nesse sentido, o autor destaca que as práticas de consumo, seu
planejamento, sua compra e a exibição dos bens, ou seja, todas as experiências que perpassam o
consumo cotidiano não podem ser entendidas mediante, apenas, concepções de valor de troca e de
cálculo instrumental relacionado ao pólo do capital. Isso porque as pessoas, no âmbito da cultura do
consumo, não adotam um estilo de vida de maneira absolutamente irrefletida ou manipulada pela
propaganda, ao passo que existe uma participação ativa do consumidor na composição desse estilo,
manifestada nos bens, práticas, experiências e aparências que exibe. Desse modo, Featherstone
(1995, p. 123) destaca que “as dimensões instrumental e expressiva não deveriam ser vistas como
polaridades excludentes: antes, é possível imaginar que a cultura de consumo põe ambas em
confronto numa balança” (p. 123).
Ainda sobre essa questão, Featherstone (1995, p. 124), aponta para a insuficiência no
mapeamento dos estilos e gostos com base apenas, na renda, visto que isso deixa de fora outros
princípios concernentes ao funcionamento e ordenamento das práticas de consumo. Assim, além dos
interesses econômicos, devem ser considerados outros aspectos, por exemplo, a cultura. Segundo o
autor, o capital cultural pode ser convertido em poder social, independentemente da renda ou do
dinheiro.
Portanto, os loteamentos fechados ribeirinhos proporcionam um lugar para que as pessoas
possam consumir elementos simbólica e/ou materialmente escassos na sociedade e nas cidades
atuais. O consumo dessas raridades implica em uma demarcação dos estilos de vida e dos símbolos
escolhidos pelos segmentos de maior poder aquisitivo no intuito de se diferenciarem dos segmentos
de menor poder aquisitivo e de menor
status
. Consideramos, desse modo, que o consumo dos
loteamentos fechados ribeirinhos e dos símbolos associados a eles, escondem intenções de segregação
em relação a grupos diferentes sócio-culturalmente, reforçando a segmentação e apontando para
um processo de fragmentação das relações socioespaciais.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fábrica do poema
Adriana Calcanhoto, Waly Salomão
Sonho o poema de arquitetura ideal
Cuja própria nata de cimento
Encaixa palavra por palavra
Tornei-me perito em extrair
Faíscas das britas e leite das pedras.
Acordo!
E o poema todo se esfarrapa
Fiapo por fiapo
Acordo!
O prédio, pedra e cal, esvoaça
Como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se,
Cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido
Acordo, e o poema-miragem se desfaz
Desconstruído como se nunca houvera sido
Acordo! Os olhos chumbados pelo mingau das almas
E os ouvidos moucos
Assim é que saio dos sucessivos sonos:
Vão-se os anéis de fumo de ópio
E ficam-me os dedos estarrecidos
Metonímias, aliterações, metáforas, oximoros
Sumidos no sorvedouro
Não deve adiantar grande coisa permanecer à espreita
No topo fantasma da torre de vigia
Nem a simulação de se afundar no sono
Nem dormir deveras
Pois a questão-chave é:
Sob que máscara retornará o recalcado?
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Um dos conteúdos mais marcantes da urbanização contemporânea é a prática do fechamento,
material e simbólico, de partes da cidade, para a apropriação específica de alguns segmentos mais
privilegiados da sociedade que fazem a escolha de realizarem suas atividades cotidianas em lugares
exclusivos e de acesso controlado.
Dessa maneira, surgem, no âmbito residencial, os loteamentos e condomínios fechados,
idealizados como se fossem o
habitat
ideal pra a elite. Esses espaços fechados alteram as formas
pelas quais as pessoas se relacionam com os diferentes espaços da cidade e também com as outras
pessoas, revelando práticas que resultam em segregação, segmentação e fragmentação
socioespacial.
Para justificar o fechamento residencial e o controle do acesso, esses empreendimentos utilizam
o discurso da insegurança, destacando que diante da crescente insegurança que vem atingido
cidades de diferentes tamanhos e papéis, há a necessidade de se buscar espaços seguros, que
tenham a capacidade de oferecer uma segurança maior do que a que é possível na cidade aberta.
A partir da análise dos loteamentos fechados ribeirinhos, pudemos constatar que outros fatores
devem ser analisados para a compreensão do fechamento, além da busca por segurança. Os
loteamentos fechados ribeirinhos são espaços destinados para segunda residência, com o objetivo do
estabelecimento de um tipo de lazer em contato com a Natureza. Esses empreendimentos estão
localizados em municípios de pequeno porte e são consumidos primordialmente por pessoas que
residem em cidades médias da região. Como demonstramos na pesquisa, os índices de
criminalidade efetiva presentes nos municípios em que se implantam os loteamentos fechados
ribeirinhos estudados não são suficientes para explicarem, sozinhos, a necessidade da construção de
barreiras físicas, que também atuam no plano simbólico, para manter a segurança nesses espaços
de lazer, apesar de todos os entrevistados terem mencionado que perceberam um aumento da
insegurança em suas cidades de moradia e nas cidades, de uma forma geral.
Diante disso, consideramos que o discurso e a sensação de insegurança não são baseados apenas
nos índices concretos de criminalidade, sendo produzidos e manipulados por uma série de agentes
que convertem o mbolo de insegurança em lucros financeiros e também, em lucros imateriais,
como poder e influência. Entre esses agentes, destacamos que a mídia e os próprios incorporadores
imobiliários o fontes importantes da geração do medo generalizado e estandardizado. Assim,
cria-se um ambiente simbólico, nos mais diferentes contextos socioespaciais, propício para a venda
de uma série de mercadorias, espaços e serviços ligados à busca pela segurança.
A produção e a apropriação desses espaços fechados, como os loteamentos fechados ribeirinhos,
revela uma tendência da sociedade contemporânea de buscar soluções individuais para problemas
que são coletivos. Não intenção de se resolver as questões referentes à geração da insegurança,
nem de tornar a cidade segura para todas as pessoas, dos mais diferentes estratos sociais. Os que
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pertencem aos segmentos mais privilegiados, com condições financeiras melhores, buscam soluções
individualizadas no intuito de conseguirem sua segurança e de sua família, deixando o ideal
coletivo de lado.
A individualização da sociedade aparece, também, nos loteamentos fechados ribeirinhos,
quando analisamos a questão do acesso à Natureza. Diante da crescente dominação dos elementos
naturais pelos Homens, a Natureza passa a ser produzida nas cidades para atender a interesses
estéticos e paisagísticos, no intuito de valorizar e diferenciar os empreendimentos imobiliários. A
Natureza, entendida como a concepção idealizada de Natureza produzida pelos setores
dominantes, fica restrita desse modo, àqueles que puderem pagar por ela. Dessa maneira,
elementos necessários para toda a sociedade, são mercantilizados, organizados e vendidos para os
segmentos de maior poder aquisitivo, sendo restringido, portanto, o direito dos segmentos menos
privilegiados de terem um contato com a Natureza, mesmo que seja a Natureza produzida pelos
Homens.
Dessa maneira, constatamos a partir da pesquisa, que o fechamento de parcelas urbanas está
presente também em cidades pequenas. Sendo assim, um processo de transposição e difusão de
padrões de consumo e de práticas socioespaciais para cidades de diferentes portes, criando-se
necessidades estandardizadas, que, muitas vezes, justificam-se apenas no plano simbólico. Portanto,
consideramos que os loteamentos fechados ribeirinhos são produtos imobiliários produzidos no
intuito de atenderem uma demanda, material e simbólica, por espaços de lazer diferenciados e
diferenciadores.
A análise dos aspectos simbólicos que perpassam a produção e a apropriação dos loteamentos
fechados ribeirinhos é importante visto que esses espaços não oferecem a Natureza, a segurança e
uma comunidade de iguais, apenas, no plano material, ou seja, como demanda gerada a partir
somente de necessidades concretas. Quando analisamos os discursos de nossos entrevistados,
constatamos que há uma dissociação entre o que desejam simbolicamente e as formas pelas quais
se apropriam dos loteamentos fechados ribeirinhos. Buscam um contato harmônico com a
Natureza, mas não desejam os elementos naturais em sua forma selvagem, e sim, ordenada
paisagisticamente, como um cenário para a realização de suas atividades de lazer. Buscam a
segurança e dizem acreditar que os espaços dos loteamentos fechados ribeirinhos são seguros, mas a
segurança oferecida de fato por esses empreendimentos pode ser relativizada, tanto pelas lacunas
que verificamos, quanto pelas próprias atitudes adicionais que alguns proprietários de ranchos
nesses espaços demonstram no sentido de adquirirem uma segurança adicional. Buscam espaços
homogêneos, que lhes possibilitem uma identificação social e uma inserção de uma comunidade de
iguais, para que as relações sociais possam ser realizadas sem imprevistos e sem terem que
confrontar a alteridade, nesse caso simbolizada pelos segmentos de menor poder aquisitivo.
Paradoxalmente, não desejam estreitar os laços de relacionamentos entre si.
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É, nesse sentido, que consideramos que os loteamentos fechados ribeirinhos são espaços de
simulação. A produção desses espaços passa por uma manipulação simbólica, no intuito de associar
símbolos, valorizados pelos segmentos de maior poder aquisitivo na sociedade atual, com esses
empreendimentos, que passam a ter, além de sua funcionalidade material, uma dimensão
simbólica. Dessa maneira, vendem-se a partir desses espaços, simulacros de Natureza, simulacros de
segurança e simulacros de uma comunidade de iguais, ou seja, de uma parcela da cidade,
portadora de qualidade de vida, felicidade, conforto, segurança, espaços nos quais os problemas
advindos das profundas desigualdades sociais fiquem de fora.
Acreditamos que essas práticas de consumo material e simbólico de espaços fechados, que
oferecem uma sensação, mesmo que momentânea, de felicidade, que passam a idéia de que os
problemas sociais estão apenas fora dos muros, servem para marcar e ressaltar as diferenças sociais
existentes entre os diversos segmentos da sociedade. Esses empreendimentos associam símbolos de
elementos que são valorizados socialmente pelo fato de terem se tornados raros. Nesse sentido,
aqueles que possuem condições financeiras para comprá-los, adquirem também, distinção social e
status
. Portanto, as raridades, efetivas ou criadas simbolicamente, como a Natureza, a segurança e
a inserção comunitária, são atreladas aos loteamentos fechados ribeirinhos, valorizando esses
espaços de lazer, diferenciando tais empreendimentos de outros, bem como seus consumidores.
Um fator interessante na produção e na apropriação desses loteamentos fechados ribeirinhos é
que podemos considerar que são resultado de uma simulação dupla: surgem de necessidades
criadas e simuladas e são apropriados de forma simulada. Ao internalizarem as imagens e discursos
associados aos loteamentos fechados ribeirinhos como “realmente” necessários, as pessoas passam a
consumir esses espaços de forma simulada, criando uma nova situação de realidade.
A simulação presente, nesses espaços, faz com que sejam destacadas as diferenças existentes
entre as pessoas e os espaços que estão dentro dos muros e aquelas pessoas e espaços que ficam fora
dos muros, fazendo que sejam ampliadas as lacunas socioespaciais existentes. Nesse sentido,
constatamos que os loteamentos fechados ribeirinhos não são apenas simples espaços de lazer. São
espaços idealizados e carregados de símbolos distintivos.
Não acreditamos que essas práticas de fechamento de parcelas da cidade sejam uma negação
da cidade ou das práticas urbanas, e sim um indicativo de que esses elementos estão adquirindo
outros conteúdos na contemporaneidade, diante da ampliação da individualização da sociedade e
da estandardização do consumo. Os rumos que a sociedade atual está tomando, capitaneada pelas
elites capitalistas, estão construindo novas cidades, nas quais são, cada vez mais, valorizados
aspectos como a exclusividade, a segregação, a segmentação e a fragmentação socioespacial.
Dessa maneira, percebemos que os símbolos que estão associados aos loteamentos fechados
ribeirinhos são polissêmicos e podem ser decodificados de modos diferentes. O que apresentamos,
nesse trabalho, foram os símbolos que identificamos a partir dos materiais de publicidade desses
empreendimentos e dos discursos dos proprietários desses espaços. No entanto, esses símbolos podem
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ter significações diferenciadas. Não uma garantia de que a mensagem que se quer passar com
certos símbolos será a mesma mensagem apreendida por todas as pessoas, ainda mais se
considerarmos as diferenças entre os segmentos sociais. Dessa maneira, onde alguns vêem
status
,
prestígio, distinção, outros podem ler proibição, segregação, exclusão, ostentação.
Dessa forma, consideramos que a atual situação das relações entre os diferentes segmentos
sociais caminham para uma situação insustentável, ao passo que por mais que os segmentos mais
privilegiados tentem realizar suas práticas cotidianas em espaços separados dos espaços em que os
segmentos mais pobres realizam as suas, os mais ricos não podem prescindir totalmente das relações
estabelecidas entre eles e os menos privilegiados. Estamos todos numa mesma sociedade,
produzindo, a cada dia, nossos caminhos e nossa história. Nossas ações individualistas refletem-se na
vida da coletividade. Enquanto não entendermos que os benefícios sociais devem ser pensados de
forma universal, contemplando todos os membros da sociedade sem distinções sociais, raciais,
econômicas, culturais, não poderemos vivenciar cidades igualitárias e justas, livres das dualidades
que se tornaram suas marcas.
A análise dos loteamentos fechados ribeirinhos leva-nos a perceber que não é mais aceitável
que somente os segmentos mais ricos tenham acesso a condições que são necessárias a todos. Todos
precisamos da Natureza, todos precisamos de segurança e todos temos o direito de estabelecermos
livremente nossas identidades e é necessário que seja assegurado, a todos os segmentos sociais,
conviver diretamente, compartilhar os mesmos espaços, sem limitações artificiais e preconceituosas.
Só assim, poderemos ter uma cidade mais integral e, quem sabe, pensarmos na constituição de uma
comunidade, de fato, onde seus membros estejam interessados no bem estar dos outros, além do seu
próprio. Precisamos pensar num ideal de cidade e de sociedade, em que o que importe mais não
sejam a ostentação e a distinção, por meio do consumo de mercadorias portadoras de
status
, e sim,
o atendimento das necessidades básicas de todos os cidadãos, para que as diferenças individuais
não sejam transformadas em agudas desigualdades sociais.
Enfim, concordamos com as palavras de Harvey:
Se, como crê a maioria de nós, temos o poder de moldar o mundo de acordo com
nossas concepções e nossos desejos, como então explicar que tenhamos
coletivamente criado tamanho horror? Nosso mundo físico e social pode ser e tem
de ser feito e refeito, e se der errado, refeito de novo. Onde começar e o que fazer
são as interrogações essenciais.
(...) E quando a Idade de Ouro chegar, poderemos finalmente alimentar a
esperança de “dizer adeus ao medo, à tensão, à ansiedade, ao excesso de trabalho
e às noites sem dormir”. (HARVEY, 2006, p. 366)
A análise desses espaços privatizados e elitizados destinados ao lazer, que refletem os padrões
gerais de consumo dos segmentos mais privilegiados, revela que é passada a hora de serem
pensadas e efetivadas alternativas que tornem a vida mais justa para todos.
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248
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Apêndice Metodológico
O desafio inicial proposto para a realização dessa pesquisa de mestrado resultou da
continuidade da análise de uma temática trabalhada durante minha graduação: compreender a
produção de loteamentos fechados ribeirinhos no município de Buritama, local em que ocorreu a
instalação de mero considerável desses empreendimentos. Para o desenvolvimento da
investigação científica desse processo, na fase de pós-graduação, realizamos uma ampliação do
recorte territorial, passando a estudar também, a produção dos loteamentos fechados ribeirinhos
em Penápolis e Zacarias, cidades em que dinâmicas semelhantes se manifestam.
A escolha dessas cidades não foi aleatória. Em função de nosso interesse em compreender as
dinâmicas socioespaciais urbanas nas cidades pequenas, selecionamos Buritama, Penápolis e
Zacarias, por apresentarem, respectivamente, 14.735, 56.681 e 2.229 habitantes, segundo a
contagem de população 2008 do IBGE. A análise dessas cidades permite-nos identificar as
especificidades dos processos que nelas ocorrem, em relação às cidades médias e grandes, mas
também, entre elas próprias, visto que, apesar de serem todas cidades pequenas, apresentam
dimensões populacionais diferentes.
Outro aspecto que foi ampliado, em relação à pesquisa realizada durante a graduação, foi o
da perspectiva de análise. Não pretendemos analisar, apenas, os processos de produção desses
espaços. Objetivamos, no âmbito da pós-graduação, investigar também, as formas pelas quais esses
espaços estão sendo apropriados, a partir da averiguação dos usos e das práticas que se
estabelecem neles, bem como, identificar os impactos socioespaciais advindos da implantação dos
loteamentos fechados ribeirinhos nessas cidades. Com o decorrer das leituras e com o
desenvolvimento da pesquisa, um ponto foi se mostrando importante o da produção simbólica
desses empreendimentos.
Verificamos que os loteamentos fechados ribeirinhos são produtos imobiliários revestidos de
cargas simbólicas que refletem alguns anseios da sociedade contemporânea. Dessa forma, outro
objetivo que nos colocamos foi o de identificar os principais símbolos associados a esses
empreendimentos e verificar se o desejo de consumir esses símbolos se mantém nos usos que são
realizados nos loteamentos fechados ribeirinhos, ou se a busca deles se sustenta apenas no plano
subjetivo.
Os procedimentos metodológicos, que descreveremos a seguir, refletem, assim, nossa
preocupação em atingir os objetivos propostos para a pesquisa.
A – Visitas e levantamento de dados
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249
-
O primeiro passo para a realização da pesquisa foi a visita às Prefeituras dos municípios de
Buritama, Zacarias e Penápolis para a obtenção das seguintes informações:
Número de loteamentos fechados ribeirinhos presentes em cada município
Ano de início de implantação de cada loteamento
Número total de lotes de cada loteamento
Tamanho médio dos lotes
Porcentagem de lotes já edificados
Área média das edificações
Incorporadoras responsáveis pelos loteamentos
12
Realizamos, também, visitas às Câmaras Municipais dessas cidades, para a obtenção das leis
municipais referentes ao zoneamento e ao parcelamento do solo. Posteriormente, realizamos visitas
a alguns dos loteamentos fechados ribeirinhos para identificar, preliminarmente, algumas dinâmicas
socioespaciais que ali ocorriam e, assim, definir as ferramentas metodológicas que seriam utilizadas
para analisar nosso objeto.
B – Pesquisa qualitativa
Diante do nosso objetivo de analisar a apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos, bem
como as percepções que os proprietários têm sobre esses espaços, optamos pela realização de
entrevistas semi-estruturadas, com eles, que contemplassem os temas que consideramos
importantes para a compreensão das dinâmicas estabelecidas nesses espaços. Também realizamos
observações em campo, para verificar as práticas desenvolvidas nesses espaços. De acordo com
nosso interesse de investigação, a aplicação de grande mero de questionários, para fins
estatísticos, não se mostrou relevante.
C– Entrevistas
A partir das leituras realizadas sobre o tema e do conhecimento sobre o objeto, adquirido na
iniciação científica e nas visitas posteriores realizadas para o conhecimento dos loteamentos
fechados ribeirinhos, elaboramos as questões que julgávamos pertinentes ao entendimento dos
processos selecionados em nossos objetivos. Assim, as entrevistas com os proprietários seguiram ao
roteiro abaixo
13
:
Roteiro para as entrevistas com os proprietários de lotes
12
Esses dados podem ser vistos no quadro 1, inserido do capítulo II.
13
Esse roteiro é resultado do melhoramento de um modelo inicial, modificado depois da realização das primeiras
entrevistas, como piloto para averiguação da pertinência das questões, bem como para verificar se, como estavam
estruturadas, eram bem compreendidas pelos entrevistados.
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250
-
Primeiro passo: Apresentação dos objetivos gerais da pesquisa
A. Perfil do entrevistado (esclarecer que não haverá identificação dos mesmos)
14
A.1. Número de componentes da família, idades e profissões respectivas
A.2. Renda familiar aproximada
A.3. Há quanto tempo possuem lote nesse loteamento?quanto tempo construíram a casa?
A.4. Em que cidade moram? (para os que são de fora)
B. Motivação
B.1. Por que escolheram comprar um lote nesse loteamento fechado? Quais aspectos mais
chamaram a atenção de vocês?
C. Insegurança urbana
C.1. Vocês acham que a criminalidade aumentou? Acham que as cidades são perigosas?
C. 2. A que vocês atribuem esse aumento da violência na cidade?
C.3. Houve alguma ocorrência violenta, com alguém da sua família ou alguém próximo, que
influenciasse nessa sensação de insegurança?
C.4. De que tipo de crimes têm mais medo? Contra o patrimônio ou contra a pessoa?
C. 5. Quais são as medidas de segurança adotadas pelo loteamento?
C.6. Vocês consideram adequadas essas medidas de segurança?
C.7. Já tiveram algum problema com relação à segurança dentro dos loteamentos?
C.8. Gostariam de morar em loteamentos fechados nas suas cidades de origem?
C.9. Quais medidas de segurança vocês adotam em sua casa fora do loteamento?
D. Cotidiano nos loteamentos fechados ribeirinhos
D.1. Descreva, um pouco a rotina de vocês quando estão no loteamento.
D.2. Com que freqüência vão para o loteamento? No início, quando compraram o lote,
freqüentavam mais?
D.3. Qual a relação de seus filhos com o loteamento – gostam de ir, o que gostam de fazer lá?
D.4. Qual a relação de vocês com a cidade em que estão implantados os loteamentos? Vão com
freqüência, com que objetivos? (Para os que são de outras cidades)
E. Vizinhança
E.1. Você conhece seus vizinhos, ou outras pessoas do loteamento?
E.2. Em caso de resposta anterior positiva: Costumam realizar atividades conjuntas com essas
pessoas?
E.3. Costumam encontrá-las fora do loteamento?
E.4. Como consideram a questão da privacidade no loteamento?
E.5. Possuem algum tipo de identificação social ou cultural com os outros proprietários?
E.6. Possuem algum tipo de conflito com os outros proprietários?
F. Visitas
14
Neste roteiro, o que se encontra entre parênteses são aspectos a serem observados ou lembrados pelo pesquisador.
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251
-
F.1. Você e sua família costumam receber visitas, ou emprestar sua casa para pessoas de fora do
loteamento?
F.2. Em caso de resposta positiva: As regras desse loteamento interferem nessas visitas? Incomodam
essas pessoas?
F.3. Já tiveram algum tipo de problema com visitantes?
G. Serviços
G.1. Vocês possuem empregados fixos para fazer a manutenção de sua casa no loteamento?
Quantos?
G.2. Com que freqüência esses empregados vão ao loteamento?
G.3. As regras do loteamento interferem no cotidiano de seus empregados?
G.4. Onde mora(m) seu(s) empregado(s)?
H. Governança interna
H.1. O que acham do regimento interno do loteamento? Quais regras consideram importantes e o
que poderia ser mudado?
H.2. Você e sua família participam das assembléias, das reuniões do loteamento?
H.3. Quais regras existem, mas que não costumam ser cumpridas?
I. Contato com a natureza – realidade rural
I.1. Você ou alguém da família já teve algum tipo de contato com a realidade rural?
I.2. Gostariam de morar definitivamente no loteamento?
I.3. O que gostam e o que não gostam na rotina que levam na cidade?
I.4. O que você considera que seja natureza? O que vem à sua cabeça?
I. 5. Você considera que existe natureza na cidade? E no loteamento?
I.6. Que atividades de lazer vocês praticam na cidade onde moram?
J. Avalião
J.1. Vocês estão satisfeitos por terem adquirido um lote nesse loteamento fechado?
Depois da elaboração do roteiro para a realização das entrevistas com os proprietários de lotes
nos empreendimentos ribeirinhos estudados, iniciamos o agendamento dessas entrevistas. Nessa
fase, tivemos algumas dificuldades para estabelecer o contato inicial com os possíveis entrevistados,
considerando o fato de que a maior parte deles é proveniente de outras cidades e não dos próprios
municípios em que estão implantados os loteamentos. Outro fator que dificultou o agendamento
das entrevistas é o fato de que os proprietários de lotes nesses espaços, geralmente, não conhecem
seus vizinhos e, assim, não podiam dar referências de outras pessoas que poderiam ser entrevistadas.
Diante disso, optamos por mudar de estratégia não realizamos mais o agendamento das
entrevistas, conseguimos autorizações para entrar nos empreendimentos e depois íamos tentando
encontrar pessoas dispostas a nos conceder as entrevistas. Dessa outra forma também encontramos
dificuldades, visto que, em alguns desses empreendimentos, nossa entrada não foi permitida, sob a
alegação de que “os proprietários pagavam para não serem incomodados”.
-
252
-
No entanto, consideramos que as entrevistas que conseguimos realizar foram suficientes e
representativas das formas de percepção dos proprietários no tocante aos mbolos associados aos
loteamentos fechados ribeirinhos e das maneiras objetivas de apropriação desses espaços. No total,
foram realizadas 25 entrevistas, distribuídas da seguinte forma: a) 15 no município de Buritama,
sendo, seis no Loteamento Portal da Praia, quatro no Loteamento Jardim Itaparica, três no
Loteamento Riviera Santa Bárbara e duas no Loteamento Orla Um; b) seis no município de
Penápolis, no Loteamento Belvedere; e c) quatro no município de Zacarias, no Loteamento Marina
Bonita. Assim, foram analisados no total, seis loteamentos fechados ribeirinhos
15
, no período de
janeiro a fevereiro de 2008. No quadro 4, temos o perfil dos entrevistados.
Quadro 4 Perfil dos entrevistados proprietários de lotes nos loteamentos fechados
ribeirinhos
Loteamento
Profissão Idade Renda Familiar Cidade onde
reside
Portal da Praia
(Buritama)
1 - Aposentada 55 anos 4.000 reais Birigui
Portal da Praia
(Buritama)
2 - Comerciante 50 anos 3.000 reais São José do Rio
Preto
Portal da Praia
(Buritama)
3 - Professora 45 anos 3.000 reais Birigui
Portal da Praia
(Buritama)
4 - Professora 46 anos 4000 reais Birigui
Portal da Praia
(Buritama)
5 - Escrevente
Judiciário
38 anos 4.500 reais Araçatuba
Portal da Praia
(Buritama)
6 - Funcionária
Pública municipal
41 anos 4.000 reais Buritama
Riviera Santa
Bárbara (Buritama)
7- Empresário 61 anos 6.000 reais Monte Aprazível
Riviera Santa
Bárbara (Buritama)
8- Farmacêutico 43 anos 4.000 reais Birigui
Riviera Santa
Bárbara (Buritama)
9 - Comerciante 36 anos 3.500 reais Araçatuba
Orla Um
(Buritama)
10 - Dentista 42 anos 16.000 reais São José do Rio
Preto
Orla Um
(Buritama)
11 - Empresária 48 anos 15.000 reais São José do Rio
Preto
Jardim Itaparica
(Buritama)
12- Aposentada 56 anos 3.000 reais Araçatuba
Jardim Itaparica
(Buritama)
13- Vendedor 43 anos 1.800 reais Birigui
Jardim Itaparica
(Buritama)
14- Representante
Comercial
35 anos 4.000 reais Birigui
Jardim Itaparica
(Buritama)
15- Empresária 49 anos 5.000 reais Andradina
Belvedere
(Penápolis)
16- Empresária 41 anos 5.000 reais Penápolis
Belvedere
(Penápolis)
17- Comerciante 52 anos 4.000 reais Birigui
Belvedere 18- Dentista 45 anos 4.500 reais Araçatuba
15
No município de Buritama existem outros loteamentos fechados ribeirinhos em que não realizamos entrevistas, porque
nosso acesso foi negado, ou porque ainda estavam em fase inicial de implantação.
-
253
-
(Penápolis)
Belvedere
(Penápolis)
19- Bancário 45 anos 3.500 reais Birigui
Belvedere
(Penápolis)
20- Dona de casa 48 anos 4.000 reais Penápolis
Belvedere
(Penápolis)
21- Promotor de
eventos
36 anos 6.000 reais Lins
Marina Bonita
(Zacarias)
22- Médico 56 anos 13.000 reais São José do Rio
Preto
Marina Bonita
(Zacarias)
23- Dentista 43 anos 14.000 reais São José do Rio
Preto
Marina Bonita
(Zacarias)
24- Empresário 46 anos 17.000 reais Birigui
Marina Bonita
(Zacarias)
25- Arquiteta 40 anos 15.000 reais São José do Rio
Preto
A partir da realização das entrevistas com os proprietários de lotes nos loteamentos fechados
ribeirinhos, consideramos relevante a realização de entrevistas com a população residente nos
municípios em que estão implantados esses empreendimentos, para verificarmos quais as
percepções que as pessoas que se encontram fora dos muros possuem desses espaços e também
para constatar quais o suas percepções e práticas referentes a outros aspectos que permeiam a
pesquisa, como a insegurança urbana, o contato com a Natureza e a noção de comunidade e
identidade. Nessa etapa da pesquisa, consideramos importante entrevistar pessoas de segmentos
sociais diferentes, para apreendermos as diferenças e semelhanças entre suas percepções e práticas.
Dessa forma, para a definição do perfil das pessoas que seriam entrevistadas, utilizamos um critério
baseado na estratificação social, segundo o poder aquisitivo. Assim, foram selecionadas pessoas
representativas dos segmentos de maior poder aquisitivo, definido como o grupo de pessoas que
possuem renda mensal superior a cinco salários, e pessoas que representam os segmentos de menor
poder aquisitivo, definido como o grupo dos que possuem renda mensal até cinco salários. A partir
da definição desses parâmetros, foram escolhidas, em cada município estudado, duas pessoas
representativas de cada segmento, totalizando 12 entrevistas. No quadro 5, encontramos o perfil
desses entrevistados.
Quadro 5 Perfil dos entrevistados residentes nas cidades em que estão implantados
os loteamentos fechados ribeirinhos
Município de
residência
Profissão Idade Renda familiar
Buritama
Comerciante 56 anos 1.500 reais
Buritama
Aposentado 64 anos 800 reais
-
254
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Buritama
Advogada 39 anos 6.000 reais
Buritama
Contador 41 anos 7.000 reais
Penápolis
Professora 44 anos 2.000 reais
Penápolis
Frentista 51 anos 1.200 reais
Penápolis
Dentista 33 anos 5.000 reais
Penápolis
Médico 48 anos 8.000 reais
Zacarias
Aposentada 52 anos 1.000 reais
Zacarias
Tratorista 43 anos 900 reais
Zacarias
Advogada 37 anos 3.000 reais
Zacarias
Dona de supermercado 34 anos 4.000 reais
As questões que serviram de base para as entrevistas realizadas com esses grupos de pessoas,
encontram-se no roteiro que se segue.
Roteiro para as entrevistas com os moradores das cidades em que estão implantados os
loteamentos fechados ribeirinhos – Penápolis, Zacarias e Buritama
Primeiro passo: Apresentar os objetivos gerais da pesquisa
A. Perfil do entrevistado (esclarecer que não haverá identificação dos mesmos)
A.1. Número de componentes da família, idades e profissões respectivas
A.2. Renda familiar aproximada
A.3. Há quanto tempo moram nessa cidade?
A.4. Em que cidade moraram antes? (para os que vieram de outra cidade)
B. Insegurança urbana
B.1. Vocês acham que a criminalidade aumentou? Acham que as cidades são perigosas?
B. 2. A que vocês atribuem esse aumento da violência na cidade?
B.3. Houve alguma ocorrência violenta, com alguém da sua família ou alguém próximo, que
influenciasse nessa sensação de insegurança?
B.4. De que tipo de crimes vocês têm mais medo? Contra o patrimônio ou contra a pessoa?
B. 5. Quais são as medidas de segurança que vocês adotam em suas casas?
B.6. Vocês consideram adequadas essas medidas de segurança?
B.7. Vocês sempre tiveram essa preocupação com a segurança ou ocorreu algum fato que fez com
que vocês tomassem atitudes diferentes em relação à segurança?
B.8. A sensação de insegurança faz com que você tome atitudes diferentes em suas ações cotidianas
na cidade? Quais?
B.9. Quais as vantagens e desvantagens que você considera em morar em uma cidade pequena?
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255
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C. Vizinhança
C.1. Você conhece seus vizinhos ou outras pessoas do bairro onde mora?
C.2. Em caso de resposta anterior positiva: Costumam realizar atividades conjuntas com essas
pessoas?
C.3. Possuem algum tipo de identificação social ou cultural com os seus vizinhos ou outras pessoas do
bairro?
C.4. Possuem algum tipo de conflito com os seus vizinhos ou com os outros moradores do bairro?
D. Contato com a Natureza
D.1. O que você considera que seja Natureza? O que vem à sua cabeça quando se fala em
Natureza?
D.2. Você considera que existe Natureza na cidade?
D.3. Em caso afirmativo: como você avalia essa Natureza? Quais impressões ela te causa?
D.4. Como você avalia a Natureza presente no campo? Quais impressões ela te causa?
D.5. Pra você, a Natureza presente no campo e a Natureza presente na cidade tem alguma coisa
em comum?
D.6. Como você avalia a rotina que tem na cidade? Cite aspectos que considera positivos e aspectos
que considera negativos.
D.7. Como você acha que é a vida no campo?
D.8. Se você pudesse escolher, em qual desses espaços gostaria de morar? Por quê?
D.9. Quais atividades de lazer praticam?
E. Percepção sobre os loteamentos fechados ribeirinhos
E.1. Você conhece algum loteamento fechado ribeirinho aqui do município?
E.2. Qual deles? (No caso de Buritama, que possui mais de um loteamento)
E.3. Você já visitou o loteamento ou apenas viu ou ouviu falar?
E.4. Em caso de já ter visitado o loteamento: Pelo intermédio de quem você realizou essa visita?
(dono do rancho, acompanhando um amigo que foi convidado a visitar, aluguel)
E.5. Qual a impressão que você tem desses loteamentos? Acha bom, ruim, por quê?
E.6. Você gostaria de possuir uma casa dentro de um loteamento desses? Por quê?
E.7. O que você acha do fato de os loteamentos fechados ribeirinhos terem o acesso restrito,
controlado? Por quê?
E.8. Você acha que esses loteamentos são mais seguros do que os outros espaços do município?
Outro grupo de pessoas que consideramos importante entrevistar é o das residentes na área
rural dos municípios em que estão implantados os loteamentos fechados ribeirinhos. Essas entrevistas
tiveram como objetivo, perceber quais são as impressões das pessoas que residem próximas aos
loteamentos fechados ribeirinhos, sobre esses empreendimentos e sobre as possíveis alterações
produzidas na dinâmica socioespacial do meio rural, a partir da implantação deles. A escolha das
pessoas para realizarmos as entrevistas não foi, nesse caso, definida seguindo critérios de poder
aquisitivo e sim, em relação à proximidade de suas propriedades com os loteamentos fechados
ribeirinhos. Foram realizadas no total, seis entrevistas, sendo: três no município de Buritama, duas
no município de Zacarias e uma no município de Penápolis. Essas entrevistas seguiram o roteiro a
seguir.
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256
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Roteiro para as entrevistas com os moradores das áreas rurais próximas aos
loteamentos fechados ribeirinhos
Primeiro passo: Apresentar os objetivos gerais da pesquisa
A. Perfil do entrevistado (esclarecer que não haverá identificação dos mesmos)
A.1. Número de componentes da família, idades e profissões respectivas
A.2. Renda familiar aproximada
A.3. Há quanto tempo moram nessa área rural?
A.4. Sempre moraram no campo? Em caso negativo: onde moraram antes?
B. Percepções sobre a vida no campo e na cidade - insegurança
B.1. Como você avalia a vida no campo? Quais as vantagens e desvantagens?
B.2. Como você acha que é a vida na cidade? Quais as vantagens e desvantagens?
B.3. Se você pudesse escolher em qual desses espaços gostaria de morar? Por quê?
B.4. Como você considera a questão da insegurança atualmente? Houve um aumento, diminuição?
B.5. Você considera que o campo também vem se tornando mais inseguro? Em que fatos você
baseia essa resposta?
B.6. Houve alguma ocorrência violenta, com alguém da sua família ou alguém próximo, que
influenciasse nessa sensação de insegurança?
B.7. Quais são as atitudes de segurança que vocês adotam aqui no sítio?
B.8. Você toma alguma precaução quando vai para a cidade? Qual?
C. Contato com a Natureza
D.1. O que você considera que seja Natureza? O que vem à sua cabeça quando se fala em
Natureza?
D.2. Você considera que existe Natureza na cidade?
D.3. Em caso afirmativo: como você avalia essa Natureza? Quais impressões ela te causa?
D.4. Como você avalia a Natureza presente no campo? Quais impressões ela te causa?
D.5. Pra você, a Natureza presente no campo e a Natureza presente na cidade tem alguma coisa
em comum?
D. Percepções sobre as mudanças no campo a partir dos loteamentos fechados
ribeirinhos
D.1. Você acha que atualmente a vida no campo vem sofrendo algum tipo de modificação? Qual?
D.2. Você conhece algum loteamento fechado ribeirinho aqui do município? Qual deles? (verificar se
só conhecem os que estão próximos – no caso de Buritama que possui mais de um loteamento)
D.3. Você já entrou nesse loteamento ou só conhece de vista?
D.4. Em caso de ter entrado no loteamento: por intermédio de quem você realizou esta visita:
dono do rancho, acompanhando um amigo que foi convidado a visitar.
D.5. Qual a impressão que você tem desses loteamentos?
D.6. O que mudou na vida de vocês com a implantação do loteamento aqui perto?
D.7. Você considera positiva ou negativa essa implantação? Por quê?
D.8. Você tem algum tipo de contato com as pessoas que vêm pra esses loteamentos?
D.9. O que você acha do fato de os loteamentos terem acesso restrito, controlado?
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D.10. Você acha que esses loteamentos são mais seguros do que os outros espaços do município?
D.11. Você gostaria de ter uma casa dentro de um loteamento desses? Por quê?
A seguir, apresentamos o quadro 6, com o perfil desses entrevistados.
Quadro 6 Perfil dos entrevistados residentes na zona rural das cidades em que
estão implantados os loteamentos fechados ribeirinhos
Cidade em que
reside
Proximidade com
qual loteamento
fechado ribeirinho
Há quantos anos
reside no local
Idade
Buritama
Jardim Itaparica 10 anos 42 anos
Buritama
Riviera Santa Bárbara 20 anos 51 anos
Buritama
Lago Azul 15 anos 45 anos
Zacarias
Marina Bonita 30 anos 62 anos
Zacarias
Marina Bonita 25 anos 53 anos
Penápolis
Recanto Belvedere 12 anos 42 anos
A realização dessas entrevistas, no total de 43, possibilitou o levantamento de um material
muito rico em informações sobre as percepções e práticas dos entrevistados, que subsidiará uma
análise qualitativa dos aspectos propostos.
D - Observações em campo
Para complementar as informações obtidas, a partir das entrevistas, realizamos, também,
observações em campo, nos loteamentos fechados ribeirinhos, com a intenção de apreender alguns
aspectos referentes à apropriação desses espaços que tivessem ficado fora dos discursos dos
entrevistados e para confirmar aqueles que foram destacados por eles.
Essas observações em campo foram muito importantes, pois permitiram-nos verificar, no plano
das ações, as formas pelas quais os entrevistados apropriavam-se dos espaços dos loteamentos
fechados ribeirinhos, examinando as atividades que eles mais realizam ali, as partes dos
loteamentos que eles mais utilizam, como são suas relações com as outras pessoas do loteamento,
entre outros aspectos. Todas as nossas percepções foram sendo anotadas em uma caderneta de
campo.
Tais observações campo foram feitas em diferentes épocas do ano (inverno e verão), em
diferentes períodos da semana (meio da semana e finais de semana) e em diferentes horários (noite
-
258
-
e dia), porque partimos do princípio de que os espaços dos loteamentos fechados ribeirinhos são
apropriados de formas diferentes, segundo diversas determinações.
Notamos diferenças nos usos realizados no inverno menos freqüente e com mais atividades no
interior das casas e no verão mais freqüente e com maior utilização dos espaços externos às
residências. No que diz respeito à diferenciação de usos presentes nos loteamentos fechados
ribeirinhos, nos diferentes períodos da semana, observamos que durante a semana, os loteamentos
fechados ribeirinhos são espaços que recebem a ação de trabalhadores: pedreiros, entregadores de
materiais de construção, jardineiros, limpadores de piscinas e outros profissionais, que preparam os
loteamentos para receberem, nos finais de semana, os proprietários de lotes e suas famílias.
Portanto, é nos finais de semana que ocorre uma apropriação mais intensa dos loteamentos
fechados ribeirinhos. As observações em campo possibilitaram, assim, que verificássemos as
alterações ocorridas nas paisagens e nas práticas socioespaciais nos loteamentos fechados estudados.
E– Levantamento e análise de material publicitário
Paralelamente à realização das entrevistas, fomos recolhendo material de propaganda dos
loteamentos fechados ribeirinhos estudados. A análise desses materiais vem se mostrando muito
interessante na identificação dos símbolos/imagens que os incorporadores imobiliários estão
tentando vender a partir dos loteamentos fechados ribeirinhos
16
.
F– Levantamento e tratamento dos dados estatísticos
Depois de identificarmos a insegurança urbana como um fator importante para a
compreensão da produção e apropriação dos loteamentos fechados ribeirinhos, surgiu a necessidade
de avaliar se o sentimento de insegurança nas cidades estudadas partia somente da realidade
objetiva ou se era resultado de um processo de transposição e amplificação desse sentimento. Para
agregar informações àquelas obtidas nas entrevistas, consideramos importante trabalhar com
alguns meros que demonstrassem a realidade objetiva das cidades estudadas, em relação à
insegurança. A definição dos dados com os quais íamos trabalhar foi difícil, visto que consideramos,
a partir das bibliografias analisadas, que a violência é um conceito ltiplo, que pode englobar
diversas ações. As ações que podem gerar e ampliar o sentimento de insegurança são muitas e de
naturezas diferentes. Mesmo assim, consideramos relevante a análise de alguns dados, para
fundamentarmos nossa investigação científica.
Diante disso, decidimos que, além de trabalhar com dados referentes às cidades em que estão
implantados os loteamentos fechados ribeirinhos, iríamos analisar dados referentes às principais
cidades de onde provêm os proprietários de lotes nesses empreendimentos Birigui, Araçatuba e
São José do Rio Preto – e também, para estabelecermos um referencial de comparação, com dados
16
Ver capítulos II e III dessa dissertação.
-
259
-
de São Paulo, capital do estado, e Campinas, tida como uma das cidades mais violentas do Estado
de São Paulo.
Partimos, assim, para a busca desses dados. Primeiramente, encontramos dados no
site
da
Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Esses dados eram referentes ao total de
ocorrências registradas, nos municípios, como homicídio doloso, furto, roubo, e furto e roubo de
veículos. Ao começarmos a trabalhar com esses dados, sentimos a necessidade de ampliar um pouco
o nosso horizonte de análise. Então, buscamos outros dados e encontramos mais informações no
Acervo de Dados em Segurança Pública – AdeSP – no
site
do SEADE.
Nesse acervo, existe uma infinidade de dados acerca de diversas atividades criminais. Nosso
desafio foi, portanto, escolher as variáveis com as quais iríamos trabalhar. Decidimos por analisar o
número de ocorrências registradas com relação a nove tipos de crimes: homicídio doloso, roubo
consumado, roubo de veículos consumado, roubo seguido de morte (latrocínio), extorsões, furto
consumado, furto de veículos consumado, estupro consumado e tráfico de entorpecentes. Sabemos
que, somente a partir da análise desses dados, não é possível estabelecer um quadro exato da
situação das cidades estudadas, quanto à chamada violência urbana. No entanto, consideramos
que a análise dessas informações nos permitiria traçar um panorama geral que ilustre a situação
dessas cidades quanto a ocorrências relevantes, que compusessem o contexto no qual se insere o
sentimento de insegurança. Para estabelecer uma série histórica de comparação dos dados,
selecionamos o período de 1997 a 2005, período sobre o qual os dados estavam disponíveis.
O primeiro passo que realizamos para a análise desses dados foi a soma do total de ocorrências
registradas para cada tipo de crime, em cada ano estudado, para cada município. Obtivemos
assim, o número total de ocorrências registradas, em relação aos crimes selecionados, em cada
município, nos anos compreendidos em nosso período de análise. Se fossemos trabalhar, apenas com
o mero total de ocorrências, poderia haver uma distorção das informações, vistas as diferenças
das dimensões das cidades trabalhadas.
Para resolver esse problema, criamos um índice para cada município, representado pela divisão
do mero total de ocorrências registradas pelo mero total de habitantes, estimado pelo IBGE,
em cada ano. Assim, fomos buscar na base de dados do IBGE, as projeções para a população dos
municípios estudados, em cada ano considerado, e organizamos as informações obtidas, no quadro
7.
-
260
-
Quadro 7 – Projeções da População nos municípios estudados
Anos Zacarias
Buritama
Penápolis
Birigui Araçatuba
São José
do Rio
Preto São Paulo
Campinas
1997
1.751 13.763 52.433 88.867 165.076 334.151 9.887.614 924.194
1998
1.726 13.986 53.284 91.780 167.192 343.059 9.927.868 937.135
1999
1.701 14.209 54.133 94.685 169.303 351.944 9.968.485 950.043
2000
1.675 14.432 54.984 97.600 171.420 360.860 10.009.231
962.996
2001
1.945 13.972 55.346 96.682 171.289 367.247 10.499.133 982.977
2002
1.944 14.083 55.971 98.335 172.768 374.745 10.600.060
995.024
2003
1.943 14.189 56.591 100.207 174.399 382.274 10.677.019 1.006.918
2004
1.940 14.412 57.893 104138 177823 398.079 10.838.581 10.31.887
2005
1.938 14.536 58.613 106.313 179.717 406.826 10.927.985
1.045.706
Fonte: Projeções da População IBGE
Organização: Maria Angélica de Oliveira
Para o trabalharmos com números decimais, multiplicamos o número obtido com a divisão
do total de ocorrências, pelo total de população estimada, por mil. Dessa forma, chegamos ao
índice de total de ocorrências registradas, por mil habitantes. Organizamos as informações obtidas
na tabela 1.
Tabela 1 – Número de ocorrências registradas nos municípios estudados
Z Zacarias
Buritama
Penápolis
Birigui
Araçatuba
São José do Rio
Preto
São
Paulo
Campinas
1997
Homicídio Doloso
0
1
4
2
20
23
4536
362
Roubo Consumado
0
1
62
146
267
394
76837
8949
Roubo de Veículos Consumado
0
0
2
6
22
25
29797
4190
Roubo Seguido de Morte
(Latrocínio)
0
0
0
0
0
1
202
19
Extorsões
0
0
0
0
3
8
196
36
Furto Consumado
5
83
599
930
808
2238
82264
5707
Furto de Veículos Consumado
0
6
13
116
253
615
45788
4425
Estupro Consumado
1
3
6
8
16
16
983
150
Tráfico de Entorpecente
0
0
3
25
42
105
1003
247
Ocorrências Totais
6
94
689
1233
1431
3425
241606
24085
Ocorrências por mil habitantes
3,4
6,8
1,3
13,8
8,6
10,2
24,4
26
1998
Homicídio Doloso
0
0
4
14
35
29
4801
459
Roubo Consumado
0
6
67
99
518
661
96247
8465
Roubo de Veículos Consumado
0
0
8
6
30
36
38099
6136
Roubo Seguido de Morte
(Latrocínio)
0
0
0
0
5
2
260
26
Extorsões
0
0
0
0
4
8
346
32
Furto Consumado
12
86
620
929
1136
3056
96932
6723
Furto de Veículos Consumado
0
4
33
157
468
717
52349
5131
Estupro Consumado
0
0
3
9
16
16
1070
170
Tráfico de Entorpecente
0
1
7
27
43
135
1225
311
Ocorrências Totais
12
97
742
1241
2255
4660
291329
27453
Ocorrências por mil habitantes
6,9
6,9
13,9
13,5
13,4
13,5
29,34
29,2
1999
Homicídio Doloso
0
9
5
14
38
31
5408
499
Roubo Consumado
0
4
80
173
657
847
109866
8503
-
261
-
Roubo de Veículos Consumado
0
1
3
11
30
34
53717
8141
Roubo Seguido de Morte
(Latrocínio)
0
0
0
3
3
0
325
32
Extorsões
0
0
0
2
8
14
393
16
Furto Consumado
11
108
494
633
817
4027
95834
8167
Furto de Veículos Consumado
1
13
36
181
502
1184
59121
6799
Estupro Consumado
0
1
14
5
24
20
1095
199
Tráfico de Entorpecente
0
1
6
14
36
126
951
190
Ocorrências Totais
12
137
638
1036
2115
6283
326710
32546
Ocorrências por mil habitantes
7
9,6
11,7
10,9
12,4
17,8
32,7
34,2
2000
Homicídio Doloso
0
0
6
15
27
30
5320
494
Roubo Consumado
0
4
78
186
718
1062
108227
10983
Roubo de Veículos Consumado
0
2
4
16
35
43
60554
11514
Roubo Seguido de Morte
(Latrocínio)
0
0
1
1
1
2
310
37
Extorsões
0
0
0
0
7
13
262
31
Furto Consumado
9
103
530
813
2076
4181
90266
8358
Furto de Veículos Consumado
0
10
60
146
331
1173
59973
6239
Estupro Consumado
0
2
6
2
17
13
1149
174
Tráfico de Entorpecente
0
1
3
6
35
101
662
173
Ocorrências Totais
9
122
688
1185
3247
6618
326723
38003
Ocorrências por mil habitantes
5,3
8,4
12,5
12,1
18,9
18,3
32,6
39,4
2001
Homicídio Doloso
0
4
1
24
37
50
5185
542
Roubo Consumado
0
8
86
347
588
1311
112134
10984
Roubo de Veículos Consumado
0
4
9
34
65
96
52095
8043
Roubo Seguido de Morte
(Latrocínio)
0
0
0
1
2
0
263
27
Extorsões
0
1
0
8
13
7
311
14
Furto Consumado
13
266
1092
1018
2529
4701
94148
10582
Furto de Veículos Consumado
0
10
43
188
284
1111
55844
6016
Estupro Consumado
0
3
8
10
16
21
1210
137
Tráfico de Entorpecente
0
4
9
8
36
103
689
242
Ocorrências Totais
13
300
1248
1638
3570
7400
321879
36587
Ocorrências por mil habitantes
6,6
21,4
22,5
16,9
20,8
20,1
30,6
37,2
2002
Homicídio Doloso
0
3
6
25
31
45
4697
455
Roubo Consumado
0
3
66
382
720
1194
120424
8634
Roubo de Veículos Consumado
0
0
5
37
36
73
43713
5799
Roubo Seguido de Morte
(Latrocínio)
0
0
1
0
1
3
196
19
Extorsões
0
0
0
5
15
6
299
49
Furto Consumado
18
174
582
1134
2669
4739
96182
10811
Furto de Veículos Consumado
0
5
48
175
296
1028
51543
4671
Estupro Consumado
0
2
5
5
21
20
1219
165
Tráfico de Entorpecente
0
0
16
19
60
171
929
271
Ocorrências Totais
18
187
729
1782
3849
7279
319202
30874
Ocorrências por mil habitantes
9,2
13,2
13
18,1
22,2
19,4
30,1
31
2003
Homicídio Doloso
0
1
5
15
33
37
4373
496
Roubo Consumado
1
8
65
291
536
1328
131080
9730
Roubo de Veículos Consumado
0
2
7
14
17
78
41880
5280
Roubo Seguido de Morte
(Latrocínio)
0
0
0
0
3
2
187
23
Extorsões
0
3
2
2
9
11
401
55
Furto Consumado
21
222
692
1507
3402
5318
104973
12093
Furto de Veículos Consumado
0
6
32
113
319
1285
51110
5491
Estupro Consumado
0
1
5
14
20
26
1135
120
Tráfico de Entorpecente
0
0
29
39
93
144
1157
304
Ocorrências Totais
22
243
837
1995
4432
8229
336296
33592
Ocorrências por mil habitantes
11,3
17,1
14,7
19,9
25,4
21,5
31,4
33,3
2004
Homicídio Doloso
0
2
1
25
48
34
3431
364
Roubo Consumado
2
14
70
295
479
1301
120863
9853
Roubo de Veículos Consumado
0
1
4
22
22
108
42249
3926
Roubo Seguido de Morte
(Latrocínio)
0
0
1
0
0
3
134
33
Extorsões
0
0
0
9
26
19
2174
205
Furto Consumado
0
0
7
7
25
29
1202
146
Furto de Veículos Consumado
25
253
879
1260
3364
5815
109839
13520
Estupro Consumado
0
3
46
116
236
1518
52709
5850
Tráfico de Entorpecente
1
3
20
29
68
169
1302
377
Ocorrências Totais
28
276
1028
1763
4268
8996
333903
34274
Ocorrências por mil habitantes
14,4
19,1
17,7
16,9
24
22,5
30,8
33,2
2005
Homicídio Doloso
0
1
10
28
49
36
2581
226
Roubo Consumado
0
13
93
396
657
1376
114054
9670
Roubo de Veículos Consumado
0
1
11
53
31
96
40835
4969
-
262
-
Roubo Seguido de Morte
(Latrocínio)
0
0
2
0
4
3
107
39
Extorsões
0
0
0
4
38
52
1839
478
Furto Consumado
13
263
775
1217
2646
5469
111515
13685
Furto de Veículos Consumado
0
10
95
173
248
1244
52825
5080
Estupro Consumado
0
1
5
14
20
34
1178
122
Tráfico de Entorpecente
0
2
13
29
65
188
1446
342
Ocorrências Totais
13
291
1004
1914
3758
8498
326380
34611
Ocorrências por mil habitantes
6,7
20
17,12
18
20,9
20,8
29,8
33,3
Fonte: Acervo de dados em segurança pública – ADeSP – SEADE
Organização: Maria Angélica de Oliveira
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