Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
ESCUTA / ESCRITURA:
ENTRE OLHO E OUVIDO,
A COMPOSIÇÃO
ROGÉRIO VASCONCELOS BARBOSA
Porto Alegre
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
ESCUTA / ESCRITURA:
ENTRE OLHO E OUVIDO
A COMPOSIÇÃO
ROGÉRIO VASCONCELOS BARBOSA
Tese de Doutorado submetida como requisito
parcial para obtenção do título de Doutor em
Música, Área de Concentração Composição, no
Programa de Pós-Graduação em Música do
Instituto de Artes da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
Orientador: Dr. Antônio Carlos Borges Cunha
Co-orientadora: Dr
a
. Luciana del Ben
Porto Alegre, julho de 2008
ads:
ii
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho à memória de H. J. Koellreutter, que
me ensinou a acreditar na imp ortância do pensamento.
iii
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meus pais, que sempre me apoiaram em minhas buscas e que per-
mitiram que eu alcançasse esse momento atual. Agradeço a Helena, que me incentivou
nos momentos de crise e soube lidar com minhas múltiplas ausências, exigidas por esse
trabalho. Agradeço a Ana Laura, ao Beto e a Fran, por me trazerem tantas alegrias
com sua presença cotidiana, nesses últimos anos. Agradeço a minhas irmãs e sobrinhos
pelo carinho, pela confiança e por projetarem sobre mim um valor afetivo tão importante
quando se está distante.
Agradeço a meu orientador, Dr. Antônio Carlos Borges Cunha, pela amizade, pelo
apoio e pelas discussões valiosas que tivemos durante nossos encontros. Agradeço à co-
orientadora, Dr
a
. Luciana del Ben que me ajudou, desde os primeiros textos, a buscar
minhas questões centrais e a organizar meu pensamento teórico. Agradeço aos membros
da banca de qualificação e de defesa - Dr. Celso Loureiro Chaves (UFRGS), Dr. Flo
Menezes (UNESP) e Dr
a
. Roseane Yampols chi (UFPR) - por suas contribuições funda-
mentais e por exigirem de mim aclarar minhas referências. Agradeço ao professor Dr. Ney
Fialkov, por seu apoio na obtenção de uma bolsa CNPQ e também por sua confiança em
recomendar minha passagem direta ao doutorado. Agradeço aos professores e colegas da
Pós-Graduação em Música da UFRGS por compartilhar comigo suas idéias e amizade.
Agradeço a Magda Scotta e a Mirna Züge pela revisão do texto em português e tradução
do Abstract.
iv
Agradeço a todos os músicos que interpretaram minhas peças compostas durante
o doutorado - tanto em Porto Alegre quanto em Belo Horizonte - e que permitiram
que, através da escuta, eu pudesse voltar atrás, corrigir algumas passagens e alcançar
uma versão mais aperfeiçoada. Agradeço também pelos momentos felizes em que pude
compartilhar minha música com um público. Agradeço a Berenice Menegale e ao maes-
tro Fábio Mechetti pelo apoio em incluir minha peça oscuro lume na programação da
Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.
Agradeço a meus colegas da Escola de Música da UFMG que, generosamente, se
sobrecarregaram durante os quatro anos do meu afastamento, o que me possibilitou um
mergulho prolongado na pesquisa.
v
RESUMO
Esse trabalho busca desvelar alguns aspectos da complexa relação entre escuta e es-
critura, no processo de composição. O compositor lida com esses dois pólos, ajustando a
imaginação sonora à sua representação escrita. Mas não se trata apenas de representar,
de codificar, pois a representação envolve de tal modo a imaginação, que direciona seus
percursos e delineia seus limites. Todavia, a sensação sonora pode conduzir a imaginação
musical a regiões que requerem novas formas de representação, ainda não codificadas.
um constante jogo de forças entre escuta e escritura. Esse conflito exige ajustes periódi-
cos nas categorias culturais utilizadas para mediar os dois pólos. Após uma investigação
teórica sobre as condições em que se estabelecem a escuta e a escritura, proponho um
conjunto de categorias que considero úteis na organização de um pensamento composi-
cional contemporâneo: mapa temporal, tipos texturais, gesto e envelope. Em seguida
ao estudo do quadro de categorias, analiso duas peças minhas - iri (2004), para piano
solo e oscuro lume (2006/2007), para orquestra - incluídas no portfolio de composições
que integra meu trabalho de doutorado. A análise confirma a pertinência das categorias
propostas e busca a organização da composição entre os pólos da escuta e da escritura,
considerando os traços formais de organização em sua emergência e ambigüidade.
Palavras-chave: composição; escritura; escuta; estética
vi
ABSTRACT
This work is an attempt to unveil some aspects of the complex relation between
hearing and writing in the process of composition. The composer deals with both poles,
adjusting sound imagination to its written representation. This implies not only repre-
senting or codifying, but it also involves imagination to such level that it serves as a guide
throughout the path and outlines its boundaries. However, the hearing sensation may
lead the musical imagination to realms that require new forms of representation, not yet
codified. There is a permanent exercise of power between hearing and writing. Such con-
flict demands periodical adjustments in the cultural categories used for mediating both
poles. After a theoretical investigation of the conditions under which the hearing and the
writing are established, I propose a set of categories that I consider very useful in the
organization of a contemporary way of compositional thinking: temporal map; textural
types; gesture and envelope. Following the study of the categories, I analyzed two of my
compositions - iri (2004), for piano solo, and oscuro lume (2006/2007), for orchestra -
which have been included in the portfolio of compositions that are part of my
doctorate research. The analysis has confirmed the pertinence of the proposed categories
and searches the organization of the composition between the poles of hearing and writing,
taking into consideration the formal features within its emergence and ambiguity.
Key words: composition; writing; hearing; aesthetic.
vii
Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento
é cheio de esquecimento. Nós guardamos as palavras dos nos-
sos antepassados dentro de nós muito tempo e continu-
amos passando-as para os nossos filhos. As crianças, que
não sabem nada dos espíritos, escutam os cantos do pajés
e depois querem ver os espíritos por sua vez. É assim que,
apesar de muito antigas, as palavras dos xapiripë s empre
voltam a ser novas . São elas que aumentam nossos pensa-
mentos. São elas que nos fazem ver e conhecer as coisas
de longe, as coisas dos antigos. É o noss o estudo, o que
nos ensina a sonhar. Deste modo, quem não bebe o sopro
dos espíritos tem o pensamento curto e enfumaçado; quem
não é olhado pelos xapiripë não sonha, dorme como um
machado no chão.
Davi Kopenawa Yanomami
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
1 DA SENSAÇÃO SONORA À REPRESENTAÇÃO MUSICAL . . . . . . . . . . . . . . . 5
1.1 Sensação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
1.2 Conceito de representação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
1.3 O “corpo tecnológico” e suas mutações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1.4 Modos de representação musical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
2 DO PLANO DO MATERIAL AO PLANO DA COMPOSIÇÃO . . . . . . . . . . . . 21
2.1 Modelo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
2.2 Modelo e material . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
2.3 Escritura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
2.4 Extensões tecnológicas da escritura musical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
2.5 Formalização computacional das técnicas de composição . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
3 MODELOS TEMPORAIS NA COMPOSIÇÃO MUSICAL . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
3.1 A representação do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
3.2 Mapa temporal da forma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
3.3 Tipos texturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
3.4 Gesto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
3.5 Envelope . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
3.6 Gestos e envelopes em pê . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
4 ESCUTA E ESCRITURA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
4.1 Segmentação e fusão na escuta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
4.2 As quatro escutas de Schaeer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
4.3 As três escutas de Nicolas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
4.4 Escuta e escritura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72
5 MULTIPLICIDADE E CONSISTÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
5.1 Observações preliminares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
5.1.1 Plano de organização e plano de consistência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
5.1.2 O que pode revelar uma análise? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
5.2 iri . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
5.2.1 Partitura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
5.2.2 Análise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
5.3 oscuro lume . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
5.3.1 Partitura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
5.3.2 Análise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160
REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
ANEXO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
ix
LISTA DE FIGURAS
1 Beethoven, VI Sinfonia Op 68, 4
o
mov. [21]
(Os colchetes indicam o número do compasso; nesse caso, compasso 21.) . . . 18
2 exemplo de programa (patch) com objetos musicais (software PWGL). . . . . . 36
3 representações do tempo (a) seqüência simples e (b) seqüência
hierarquizada (BRESSON, 2007, p.195). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
4 quatro níveis temporais distintos: compasso, tempo, parte e subparte
de tempo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
5 diferentes tipos de relações temporais entre dois eventos (LITTLE, 1993.) . . 40
6 Concerto de Câmara (BERG, 1925), parte final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
7 mapa temporal - Bartók . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
8 Reynolds (2002), Part II, p.2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
9 mapa temporal de Unity capsule, de B. Ferneyhough (1995b) . . . . . . . . . . . . . 46
10 exemplo de sonograma. As linhas superpostas indicam sons parciais
ou harmônicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
11 mapa temporal de pê (durações em segundos) (Obs: as letras do
gráfico não correspondem às letras de ensaio da partitura) . . . . . . . . . . . . . . . . 50
12 tipos texturais (REYNOLDS, 2002, Part II, p. 49) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
13 primeira página de Variation, de Roger Reynolds - segundo sistema . . . . . . . 53
14 sucessão de gestos claramente diferenciados, no início de Anthèmes I,
para violino solo (BOULEZ, 1992). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
15 envelope gerado pela polarização sobre a nota D
4
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
16 início de pê . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
17 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
18 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
19 evolução do registro para o agudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
20 gesto em arco - “onda” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
21 fragmentos ondulantes extraídos da primeira seção de . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
22 as quatro escutas (SCHAEFFER, 1976, p.190) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
23 plano temporal da peça iri . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
24 exemplo do primeiro tipo textural: [1] - [4] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
25 exemplo do segundo tipo textural: [5]- A [1] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
26 gestos ascendentes em B [1] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
27 exemplo do terceiro tipo textural: B [4] - [5] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
28 [1]; [3]; B [2] - [3]; G [1] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
29 [5] - A [1]; B [10] - [11]; B [11] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
30 [5] - B [2]; B [9]; F [1] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
31 D [1] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
x
32 C - arpejo stacc. rápido;
arpejo stacc. mais lento;
arpejo legato + acordes/blocos + polirritmo;
baixo + acorde + nota repetida p . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
33 E - baixo + acorde stacc.;
nota repetida p + acorde/bloco + baixo grave + arpejo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
34 E - seqüência stacc. + intervalos/blocos;
acordes/blocos + baixo;
nota repetida p + acorde/bloco + seqüência stacc. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
35 Início de iri com análise rítmica das entradas dos gestos da textura I . . . 100
36 formação de acorde a partir da nota A e de α . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
37 acordes/blocos utilizados na textura I, nas três primeiras seções de iri
(as alterações valem apenas para as notas imediatas) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
38 repetição de acordes com filtragens: [1] - [4] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
39 seqüência das notas fundamentais dos acordes da textura I na ordem
original e reordenadas de modo a revelar a estrutura intervalar de β . . . . . . 103
40 tela do programa MAX mostrando um algoritmo empregado em iri . . . . . . . 104
41 quadro de perfis selecionados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
42 perfis L1 e L2 originais e invertidos - os números indicam os intervalos . . . 105
43 Fragmentos melódicos descendentes da textura I. Os números indicam
os intervalos selecionadas dos perfis correspondentes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
44 fragmentos melódicos descendentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
45 G [1] - os segundo e terceiro blocos são obtidos por transposições e
filtragens do primeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
46 observar a substituição da terceira nota . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
47 Z8 é utilizado incompleto, da segunda à penúltima notas . . . . . . . . . . . . . . . . 107
48 as notas brancas são as notas superiores dos blocos da textura I. As
notas pretas são as notas superiores dos acordes da textura I I . . . . . . . . . . . 108
49 perfis L6 e L1 encadeados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
50 as notas brancas são as notas superiores dos blocos da textura I. As
notas pretas são as notas superiores dos acordes da textura I I . . . . . . . . . . . 108
51 exemplo de “orquestração” do original de flauta por percussões -
a versão final encontra-se em [13] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
52 grade temporal polimétrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
53 rascunho mostrando a inserção de figuras rítmicas na grade temporal
polimétrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
54 rascunho com a rítmica resultante da grade polimétrica . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
55 identificação dos tipos texturais no mapa temporal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
56 acorde da peça xapiripê que serve como modelo para o tipo textural
acordes sustentados em oscuro lume ,2
o
mov. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
57 exemplo de gestos espacializados nas cordas - [11] oscuro lume ,2
o
mov. . . 148
58 ondulações dinâmicas - [1] a [6] oscuro lume ,2
o
mov. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148
59 seqüência de grupos rítmicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
60 polifonização do ritmo - [13] a [14] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
61 versão final - [13] a [14] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
62 exemplo do tipo textural “comentários graves”: [35] - 2
o
mov. oscuro lume 151
63 mapa temporal - oscuro lume ,2
o
mov. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
64 patch no programa PWGL com os oito tipos diferentes de acordes α
(o quadro central com “1” e “0” inidica presença ou ausência de altura
nas doze posições cromáticas) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
65 patch com acordes do plano dos metais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
66 lista dos acordes presentes no plano das cordas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
67 notas presentes nos sete gestos do clarone . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158
xi
LISTA DE TABELAS
1 níveis articulatórios de um compasso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
2 relações temporais entre subblocos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
3 durações em colcheias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
4 seqüências do tipo a b c . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
5 forma global da peça iri . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
6 séries geométricas utilizadas no 2
o
mov. de oscuro lume . . . . . . . . . . . . . . . . 143
7 análise intervalar dos gestos do clarone
(os intervalos negativos indicam movimento descendente) . . . . . . . . . . . . . . . 158
INTRODUÇÃO
Embora muitas vezes o senso comum nos apresente o processo de composição como
uma transcrição, em notação musical, de um fluxo imaginativo delirante, a relação entre a
escuta interior do compositor e a escritura de uma peça requer um processo de elaboração
complexo. toda uma dimensão construtiva onde se revela a techné: os rascunhos
deixados por Beethoven ilustram a história das metamorfoses de suas idéias harmônicas
e de seus temas. A imaginação encontra seu objeto lentamente, tateando através dos
traços deixados nas anotações; os esboços se elaboram progressivamente até que uma
versão é considerada rica em desenvolvimentos potenciais. Por sua vez, a técnica de um
artista ultrapassa a dimensão meramente operativa - como fazer - pois participa de um
contexto cultural: o criador está sempre envolvido por uma rede de relações sociais e
a técnica reflete uma compreensão particular do mundo. As elaborações sofridas pelos
temas de Beethoven no decorrer de diversas sonatas revelam uma concepção de discurso
sem retornos literais, o que é diferente das práticas de compositores da geração anterior,
onde as recapitulações literais (ou quase) são empregadas com maior frequência. Esse
discurso movido por uma flecha do tempo se entrelaça à visão romântica de história, com
suas evoluções dramáticas e o rumo inexorável do futuro. De modo diferente, os modelos
discursivos das formas clássicas utilizam simetrias no tempo que podem ser consideradas
de natureza espacial: as recapitulações literais de seções aproximam as formas musicais do
classicismo das estruturas simétricas presentes na arquitetura dos palácios ou dos jardins.
2
Ao contrário da flecha temporal romântica, que impulsiona o momento presente para
diante, no mundo clássico, a circularidade do tempo reflete uma topologia autocentrada e
estável. O microcosmo artístico está sempre envolvido por outras dimensões da cultura.
No campo da música, a emergência de uma imagem musical no processo de com-
posição pode ser observada através do estudo das formas culturalmente estabelecidas de
representação do pensamento musical. Entretanto, “representar” não significa apenas
referir-se a uma origem. Isso pressuporia a idealização de uma imagem musical “original”
que estaria sempre transcrita de modo imperfeito. A representação deve ser considerada
como uma projeção fecunda da dimensão da memória ou da herança cultural no presente
do ato criativo. “modelos” presentes nas tradições culturais que se renovam, em maior
ou menor grau, em cada realização artística e fazem surgir novas relações expressivas.
Esses modelos são múltiplos - por exemplo, esquemas formais, escalas, fórmulas rítmicas,
seqüências harmônicas ou combinações instrumentais típicas - e revelam as faces possíveis
de um material a ser organizado pelo pensamento artístico. O processo de criação pode ser
visto como uma combinação criativa de modelos incessantemente renovados. mesmo
uma superposição complexa de diferentes modelos em cada trabalho artístico, revelando
na multiplicidade de traços coexistentes uma polifonia de vozes que compõem com o autor
uma forma ressonante na concha acústica da história. O compositor resgata, incessan-
temente, parceiros de outras eras que vêm somar sua expressão ao momento presente,
depositando seus sedimentos nas camadas geológicas do processo de criação. É através
desse movimento recorrente de projeção de modelos que a imaginação consolida, progres-
sivamente, seu objeto e inscreve os traços materiais de seu percurso na face objetiva da
obra. A escritura é a dimensão técnica onde o pensamento composicional é representado
e elaborado. Na tradição da música de concerto, a escritura permitiu o desenvolvimento
de uma memória tecnológica, conjunção de um código musical a certas práticas de inter-
pretação por meio de uma representação gráfica. Entretanto, diferentemente de “escrita”,
que remete de forma direta à notação musical, o termo “escritura” ultrapassa essa signifi-
cação imediata e supõe um pensamento musical, um modo de representar e organizar os
3
sons. A escrita é apenas a face visível desse pensamento, o conjunto de marcas materiais
que remete a uma arquitetura imaterial de formações sonoras instáveis. A escritura tem
como função estruturar um “texto” musical que será posteriormente transformado em
fenômeno sensível pela interpretação, para dar nascimento a um “mundo” no tempo da
escuta.
Todavia, o fascínio exercido pela imagem do compositor-Orfeu, medium encantado
pela música que o atravessa, nos adverte sobre a presença fundamental de uma dimensão
não racional no processo criativo. Para além da complexidade da dimensão técnica, o
compositor lida com afetos e perceptos não codificados. traços expressivos sutis que
se insinuam no material musical e que requerem uma escuta sensível, bem como decisões
e escolhas não inteiramente explicáveis de modo racional. Na civilização das luzes e da
tecnologia a música ainda retém uma dimensão demiúrgica: Orfeu necessita descer à
noite infernal para tentar, em vão, resgatar sua amada. Os mistérios que cercam a obra
de arte estão ligados à potência infinita a que a imaginação é convocada: o objeto artístico
limitado e circunscrito se abre a dimensões insondáveis na interioridade do sujeito. Tornar
sensível esse “mundo” interior é o desafio do compositor.
Esse trabalho busca desvelar alguns aspectos da complexa relação entre escuta e es-
critura no processo de comp osição. Por um lado, analisar algumas estratégias recorrentes
no processo de escritura; por outro, assinalar a necessidade de conjunção da técnica, que
cria redes de relações definidas de modo global, com uma escuta intuitiva, que faz escolhas
locais e toma decisões em cada etapa do processo de composição. Seria um equívoco re-
duzir a multiplicidade dos processos criativos a uma fórmula única. Por isso, as questões
abordadas neste texto referem-se a uma experiência pessoal de composição - um portfolio
de peças compostas no período do doutorado. Entretanto, acredito que algumas questões
tenham uma abrangência maior e possam interessar a outros compositores.
O texto foi organizado de modo a partir de questões mais gerais e, progressivamente,
dirigir-se a problemas específicos da área de composição. O Capítulo 1 (p.5) discute
4
os conceitos de “sensação” e “representação”, para definir um posicionamento episte-
mológico. São também investigados o conceito de “corpo tecnológico” e os modos de
representação do pensamento musical.
O Capítulo 2 (p.21) investiga a noção de “material musical” a partir do conceito
de “modelo”. É questionada a concepção hilemórfica - onde forma e material são pólos
separados - e, em seu lugar, é proposta uma concepção em que “material” e “modelo”
são tornados indescerníveis. A partir dessa proposição, é abordada a “escritura”, tanto
em sua forma tradicional como na atual, incorporando extensões tecnológicas.
O Capítulo 3 (p.37) investiga a representação do tempo e alguns modelos de orga-
nização musical para os diferentes níveis temporais: “mapa temporal”, “tipos texturais”,
“gesto” e “envelope”.
O Capítulo 4 (p.66) discute o conceito de “escuta”, assim como as relações entre
“escuta” e “escritura” na composição.
Para finalizar, o Capítulo 5 (p.76) analisa duas peças de minha autoria - iri, para
piano solo (2004) e oscuro lume , para orquestra (2006-2007) - a partir dos modelos
de organização discutidos anteriormente - “mapa temporal”, “tipos texturais”, “gesto”
e “envelope”. Essas duas peças foram selecionadas entre as demais do portfolio pelos
seguintes motivos:
a. refletem o contraste sonoro entre instrumento solo e orquestra;
b. foram, respectivamente, a primeira e a última peças compostas do portfolio;
c. são as peças onde a utilização de recursos tecnológicos de auxílio à composição se fez
mais presente.
5
1 DA SENSAÇÃO SONORA À REPRESENTAÇÃO MUSICAL
1.1 Sensação
O impacto direto do som sobre nosso corpo libera uma combinação de sensações
auditivas, visuais e táteis. Se a escuta do perfil de uma melodia sugere algum tipo de
visualização, a percepção do ritmo, do timbre ou da textura sonora pode remeter a uma
fusão complexa de audição e tato. Deleuze (2002) denomina esse espaço sinestésico de
háptico, embora se refira especificamente à combinação de sensações visuais e táteis na
pintura, e remete o termo “háptico” a Aloïs Riegl, em uma citação a respeito da arte
egípcia:
O baixo-relevo opera a conexão mais rigorosa do olho e da mão porque tem por
elemento a superfície plana. Ela permite ao olho proceder como o toque; mais do que
isso, ela lhe atribui uma função tátil ou melhor háptica. Ela lhe assegura, então, na
‘vontade artística’ egípcia, a reunião dos dois sentidos, o toque e a vista, como o solo e
o horizonte (RIEGL apud DELEUZE, 2002, p.115).
Deleuze desenvolve uma reflexão sobre a dimensão háptica na pintura de Francis
Bacon e destaca a combinação de um espaço ótico, presente na organização das formas
visuais, com um espaço tátil, criado pelos gestos manuais do pintor. Essa conjunção de
dimensões resulta em um espaço propriamente háptico: a mão introduz traços expressivos
não-previsíveis através de gestos aparentemente arbitrários que se chocam com o espaço
codificado do olho e criam novas relações.
O aspecto tátil do sonoro faz parte do cotidiano dos intérpretes; por exemplo, a
relação entre o toque e a sonoridade. O gesto de produção sonora em um instrumento
musical está associado a uma apreensão do som por todo o corpo, não apenas com os
ouvidos, mas tamb ém com as mãos, os braços e o tronco. O intérprete está sempre
ajustando o som produzido em função de uma intenção expressiva. Em uma performance,
inclusive gestos que não têm relação direta com o som; por exemplo, uma ligação de
natureza expressiva entre a respiração de um pianista e sua imagem mental da peça
6
interpretada. Uma performance se constrói na troca dinâmica de fluxos energéticos entre
corpo, mente e som.
A natureza complexa desse espaço sensorial háptico está acentuada pelo fato de o
sonoro nunca se deixar apreender em todos os detalhes. “Uma infinidade de percepções
obscuras compõe o bramido do mar, mas nós percebemos claramente apenas alguns
barulhos de onda” (LEIBNIZ, 1989, p.64). As modulações da sonoridade são percebidas,
mas sempre algo que nos escapa na escuta, uma vez que a natureza temporal da música
supõe aproximações e afastamentos, reconhecimentos e esquecimentos progressivos. Cada
instante é atravessado por múltiplas linhas que vêm e vão para outros instantes. Essas
linhas não se apreendem completamente, mas tornam sensíveis blocos de tempo.
Enquanto experiência estrutural, a escuta não se orienta unicamente de maneira
positiva seguindo as características (Beschaenheit) do objeto sonoro, mas se precisa na
relação desse objeto com seu entorno. A percepção do sonoro se es treita e se alarga ao
mesmo tempo pelas relações que se des dobram entre o que ressoa e seu entorno próximo
ou distante, no tempo e no espaço; dito de outra forma, a escuta - conscientemente ou
inconscientemente - percebe ao mesmo tempo, além de seu objeto, relações - de onde
ele provém, onde ele se insere no momento presente - que esclarecem de maneira nova
cada momento sonoro de uma obra (LACHENMANN, 2000, p.120).
No mesmo sentido, a tradição fenomenológica acredita que a mente utiliza processos
de retenção (memória) e protenção (antecipações) para encadear o fluxo da consciência.
É no encadeamento de instantes que a percepção do tempo ultrapassa o puro “agora”
e estende raízes em direção ao passado e ao futuro. Entretanto, esse movimento de
integração de passado, presente e futuro é instável. Por isso, as formas temporais estão
em contínua metamorfose. O próprio passado se transforma na medida em que se relaciona
ao agora, pois diferentes elementos são buscados pela memória, para depois se perderem
novamente: para que haja memória, é necessário esquecer.
A memória individual não é infinita. Por esta razão mesma, memorizar é esque-
cer, como nos mostra Borges em Funes, o memorioso. Assim como o mapa não pode
coincidir com o território “ponto a ponto”, tornando-se equivalente a ele, “este mapa
dilatado seria inútil”, não oferecendo nenhuma ajuda à orientação, a memória deve re-
duzir o memorizável - quer dizer esquecer - para que possa tornar-se memorável. [...]
Uma memória que não esquecesse, como a de Funes, não poderia sair do presente, ela
não poderia fazê-lo passar, ela não poderia então memorizar e não conseguiria que esse
presente se diferenciasse de algum passado e tivesse algum futuro: uma memória que
7
não esquecesse seria obrigada a reviver inteiramente o tempo da lembrança: lembrar-se
de ontem seria reviver tudo ontem, seria então permanecer no presente deste ontem sem
futuro (STIEGLER, 1994).
Devido à finitude retencional
1
, a complexidade da sensação é necessariamente re-
duzida através de uma seleção de pontos privilegiados no fluxo sensorial, entre os quais se
estabelecem conexões. Entretanto, essa codificação do contínuo da sensação em elementos
discretos e inter-relacionados - também chamada representação - não se estabelece de
modo completo e estável. Ao contrário, pode ser descrita como um horizonte móvel, que
se reconfigura continuamente e sempre apresenta ambigüidades. O processo dinâmico e
instável de representação não apenas nos informa sobre um mundo externo preexistente
mas também o constitui, na medida em que uma mudança na organização dos estímulos
sensoriais varia tanto a forma quanto o sentido dos perceptos.
Simultaneamente ao impacto direto da sensação sonora, inicia-se, portanto, uma
construção simbólica que integra sensação e pensamento. Essa construção gera novas
sensações secundárias e interfere no impacto da sensação inicial. A psicologia cognitiva
da audição parte do pressuposto
que a informação sensorial deve ser interpretada para dar nascimento a uma per-
cepção coerente. Essa interpretação é necessária pois a informação contida nos estímulos
que atingem os órgãos sensoriais se revela freqüentemente incompleta ou ambígua. Nesse
caso, o sistema perceptivo deve representar e depois comparar as informações que não
estão mais diretamente disponíveis no nível sensorial. Isso é ainda mais marcante no
caso da audição, pois os eventos sonoros se sucedem no tempo: a elaboração de uma
representação mental se mostra indispensável para perceber sua estrutura, quer dizer,
para estabelecer relações entre eventos separados por minutos ou mesmo horas (BIGAND;
McADAMS, 1993).
Para Bigand e McAdams (1993), podem-se distinguir seis etapas entre a recepção
dos estímulos auditivos e uma representação mental da estrutura sonora:
a. a transdução das vibrações sonoras em impulsos nervosos;
b. os processos de agrupamento auditivo, que fundem ou separam os elementos simultâ-
neos em eventos e organizam os eventos sucessivos em fluxos;
“Finitude retencional” é um expressão de B. Stiegler (1994) que se refere às limitações da memória
1
durante a percepção.
8
c. a extração dos traços expressivos - atributos perceptivos - dos eventos sonoros;
d. a interpretação dos traços expressivos em estruturas de conhecimentos abstratos;
e. a criação de redes de relações entre eventos e
f. uma representação mental da estrutura dos sons.
Apesar de a seqüência de passos mencionadas acima reduzir as operações da mente
aos aspectos lógicos da percepção, esclarece dimensões fundamentais presentes em uma
escuta. Entretanto, a sensação não se explica apenas pela psicofísica da escuta:
O sistema nervoso central e periférico responde ao estímulo físico por limiares quan-
titativos e por construção de modelos (padrões) agrupando os sinais acústicos em tipos
de relações mais ou menos definidas, chamadas qualidades sensoriais; o cérebro agrega à
interpretação das percepções suas “estruturas cognitivas” e, capaz de aprender, faz inter-
vir a experiência memorizada e a educação: à atividade do mecanismo neural, se agrega
assim a contribuição do condicionamento cultural e nossa percepção da música “funciona
segundo as dobras, marcas e aquisições de noss a experiência das formas”(DUCHEZ, 1991.
p.50).
A representação das sensações é direcionada por modelos culturais, pois os conhe-
cimentos adquiridos do mundo sonoro interagem com os dados sensoriais imediatos na
interpretação dos estímulos auditivos. diferentes modos de representação do sonoro
para cada cultura. Um exemplo interessante é a metáfora da verticalidade associada ao
espaço das alturas (notas) na tradição musical européia. Alguns estudos etnomusicológi-
cos (SEEGER, 1987) distinguem outras metáforas associadas ao espaço das alturas como
a dos Suyá da Bacia Amazônica, que diferenciam sons como “jovem” e “velho” e não
como “alto” e “baixo”
2
. Análises desse tipo explicitam a dep endência de atos individuais
de classificação e julgamento das representações compartilhadas que constituem o mundo
social.
1.2 Conceito de representação
No nível mais básico da mente, a consciência pode ser vista como combinação de
Segundo SEEGER (1987), dois gêneros contrastantes de cantos Suyá. O primeiro compreende cantos
2
solistas em um registro agudo, executados por meninos ou homens jovens. O segundo, cantos em coro
uníssono em um registro grave, executados por homens mais velhos. uma associação es treita do
registro vocal com a idade do cantor e o tipo de canto.
9
imagens formadas a partir dos dados dos sentidos. As imagens mentais não se restringem
a percepções do ambiente, podendo ser buscadas na memória, imaginadas ou criadas
e associadas em combinações complexas. Essas imagens se entrelaçam com enunciados
verbais em sistemas ditos de representação. Entretanto, a representação não assegura
uma correspondência estrita, ou seja, sempre um conflito no contato dos dois lados
heteromorfos - imagens e palavras -, com suas formas insinuando-se umas dentro das
outras.
Deleuze e Guattari (2002a, p.26) recusam o termo representação por reconhecer uma
independência nas formas da expressão e do conteúdo:
É precisamente porque o conteúdo tem sua forma assim como a expressão, que não
se pode jamais atribuir à forma de expressão a simples função de representar, de descrever
ou de atestar um conteúdo correspondente: não correspondência nem conformidade.
As duas formalizações não são da mesma natureza, e são independentes, heterogêneas.
Entretanto, uma interação entre as duas formas - de expressão e de conteúdo -,
mas para Deleuze e Guattari
não representamos, não referimos, intervimos de algum modo, e isto é um ato de
linguagem. A independência das duas formas, a de expressão e a de conteúdo, não é
contradita, mas ao contrário confirmada, pelo fato de que as expressões ou os expressos
vão se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para
antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-
los de um outro modo (p.27).
Desde o século XVII, o conceito de representação recebeu diferentes elaborações que
se criticaram mutuamente. Se Descartes partiu do pressuposto que a representação era
como um olhar neutro que permitia revelar o mundo preexistente a nós, Pascal descreveu
a operação de conhecimento como uma intervenção no seio da natureza, em nossa escala
particular, ou seja, a neutralidade é ilusória. Para alcançar uma forma de conhecimento
que pudesse agir sobre as diversas dimensões da realidade - seja na matemática, na física
ou na teologia -, Descartes associou a noção de representação a uma racionalidade de
natureza construtiva na qual o conhecimento é construído, passo a passo, a partir de regras
claras. O sujeito descreve adequadamente o mundo, “quando representa as características
10
essenciais contidas intrinsecamente nos objetos através da abstração matemática, que
permite fazer isto da maneira mais neutra possível” (LASSÈGUE; VISETTI, 2002).
Com o surgimento da informática no século XX, as ciências cognitivas resgataram
posições cartesianas na medida em que partiram de representações lógico-simbólicas in-
diferentes tanto à complexidade biofísica do cérebro quanto à exterioridade física, psíquica
ou social a que as representações se referiam: buscava-se apenas a estrutura representa-
cional da mente. Assim, por exemplo, “surge uma teoria do cálculo que se acompanha de
uma redução da mente à estrutura formal dos cálculos” (LASSÈGUE; VISETTI, 2002),
em que se partia do pressuposto que as regras de escrita dos programas (software) eram
isomorfas às operações mentais.
Em completa oposição à IA (inteligência artificial) e suas pretensões de reduzir a
mente a uma estrutura lógico-simbólica, situou-se a tradição fenomenológica:
O estar-no-mundo é antes de tudo corpo, percepção e ação, atitude e projeto,
situação e contexto e não categorização por inferências lógicas. [...] Os traços essenciais
da percepção, dos raciocínios e das ações humanos supõem a abertura permanente de
um campo contínuo, estruturado em formas (Gestalt), fundos e horizontes, e que é, ao
mesmo tempo, um campo prático onde o corpo - que é por sua vez “carne” e “corpo
ideal” - es tá sempre subentendido e presente, mesmo quando não está tematizado, ou
quando se trata de tarefas abstratas (LASSÈGUE; VISETTI, 2002).
A partir das contribuições da fenomenologia - particularmente com a enação (VARELA
1989) -, o problema das representações se dilui diante daquele das percepções e das medi-
ações ativas no decorrer de um processo. O foco torna-se a “presentação” - tornar presente
- e a individuação de formas e de atitudes. Entretanto, o presente é ilusório, pois a sín-
tese temporal realizada pela mente utiliza processos de retenção (memória) e protenção
(antecipações) para encadear o fluxo da consciência. A representação, em um sentido que
poderia ser aproximado da acepção clássica, corresponderia, então, a uma explicitação
particular das percepções no seio de um campo que elas teriam a função de cartografar,
para torná-lo mais ordenado. Tal problemática introduz uma diferença considerável entre
as maneiras de considerar as percepções, enquanto condições dinâmicas, e as maneiras de
descrever a estrutura das representações, enquanto formas transitoriamente estabilizadas.
11
No cognitivismo clássico, a cognição é identificada a um sistema de tratamento linear
da informação, em que os dados dos sentidos entram em uma caixa preta à qual se
sucedem a percepção e o raciocínio, e resultam enfim na ação, considerada a saída.
na perspectiva da enação, essa seqüência linear se transforma em um círculo sensório-
motor, considerando que as ações produzem efeitos retroativos sobre as sensações: a ação
não é uma simples saída, ela é constitutiva da percepção mesma. Assim, o que é tornado
presente é menos um objeto isolado do que um “mundo” revelado por um círculo sensório-
motor. O termo “mundo”, nesta concepção, refere-se à complexa interação estabelecida no
círculo dinâmico de percepção-ação. Para a enação, a cognição não é uma representação
de um mundo objetivo preexistente, tampouco a projeção de uma ordem interna subjetiva:
o “mundo” surge da ação de um organismo em um meio, ou seja, estruturas cognitivas
emergem à medida que a percepção explora as “flutuações de energia do meio” (LÓPEZ
CANO, 2004). Corpo, mente e meio tornam-se completamente interligados.
1.3 O “corpo tecnológico” e suas mutações
Nos animais, os dispositivos de acoplamento sensório-motor fazem parte do corpo
orgânico: eles são, de um lado, os órgãos sensoriais e, de outro, os órgãos motores que
permitem as ações do sujeito e que, retroativamente, modificam suas sensações. Uma das
especificidades dos seres humanos reside no fato de que eles inventam ferramentas que
são, precisamente, dispositivos de acoplamento sensório-motor. À medida que um novo
objeto técnico é integrado ao círculo de percepção-ação, torna-se uma extensão do corpo,
uma prótese: “conduzindo um carro, percebo a superfície da estrada com ‘minhas rodas’,
como se elas fizessem parte de meu corpo” (HAVELANGE et al., 2003). MacLuhan (1994)
tratara a tecnologia como extensão do corpo humano: a roda poderia ser vista como
uma extensão do pé; as lentes de aumento, como uma extensão dos olhos, e, mesmo a ele-
tricidade, poderia ser considerada uma extensão do sistema nervoso. MacLuhan também
discutiu as transformações do corpo social pela tecnologia; por exemplo, o rádio substi-
12
tuía o antigo tambor tribal na nova aldeia globalizada. Novas tecnologias sempre incor-
poram tecnologias anteriores, transformando-as. Assim, na história do desenvolvimento
tecnológico humano, o domínio dos movimentos da mão foi estendido às ferramentas de
pedra que, no fogo, transmutaram-se no metal da lança e, mais tarde, em míssil.
A natureza histórico-social da evolução tecnológica invalida a concepção de objeto
técnico como de uma simples matéria mo delada do exterior pela vontade criadora de um
sujeito. Os objetos técnicos sempre ultrapassam as finalidades para que foram concebidos,
em virtude dos desvios e das apropriações exercidos pelos atores sociais. Os indivíduos
que os fabricam e aqueles que os utilizam não são, necessariamente, os mesmos, podendo
estar distantes no espaço e no tempo. Como conseqüência, os objetos técnicos tanto
constituem uma memória do mundo que nos antecede quanto antecipam gestos futuros,
tornando-se lugar de articulação entre o individual e o social. O comportamento técnico
do homem é, então, fundamentalmente coletivo e depende dos meios de conservação e
de transmissão de que dispõem os grupos humanos. Por isso, o desenvolvimento técnico
está intimamente relacionado ao desenvolvimento da linguagem. A relação entre técnica
e linguagem se exprime ao longo da evolução das sociedades humanas pela associação
estreita entre o florescimento das técnicas e o desenvolvimento da linguagem falada e,
posteriormente, da escrita.
Na história do desenvolvimento da linguagem, após a separação entre “as palavras
e as coisas”, ocorre uma nova cisão: o enunciável bifurca-se em fala e escrita.Aes-
crita comporta-se como uma tecnologia, como uma ferramenta que projeta a dimensão
temporal da fala em outro meio de representação: o sonoro-temporal converte-se em
gráfico-espacial. Com a projeção, um ganho de controle no domínio dos detalhes,
na memorização dos dados: escrita-alavanca. Há, também, perdas, pois a projeção de
uma prática essencialmente temporal no espaço modifica fundamentalmente o esquema
das representações mentais: a discretização dos signos gráficos atenua a expressão do
contínuo temporal da fala e a modulação musical da entonação. Acentos e sinais de pon-
13
tuação são meios rudimentares de remeter o texto escrito de volta à temporalidade da
fala. A linguagem escrita resgata a continuidade do movimento na medida em que
“faz ver”, quando a combinação de signos verbais se entrelaça ao movimento de imagens
mentais.
1.4 Modos de representação musical
É intrigante observar como o conhecimento musical é mantido e transmitido nas
culturas orais. Na ausência da escrita, essas culturas necessitam desenvolver um conjunto
de técnicas mnemônicas para assegurar a preservação de sua poesia, narrativas e cantos.
Para desenvolver sua pesquisa sobre as melodias de aborígenes australianos, Will (2004)
apropria-se de um conceito originalmente criado por estudiosos da tradição da poesia oral:
“fórmulas” são modelos mentais que permitem aos poetas orais repetições sempre variadas
das mesmas idéias básicas. Ao invés da “fórmula” ser considerada como um conjunto
fechado de frases, ela é definida como uma Gestalt central que age como modelo mental
subjacente à produção de tais frases. As fórmulas são estruturas claras que organizam
de modo flexível a poesia e parecem reforçar a estabilidade na transmissão do corpus de
poemas e de narrativas. Para Will (2004), as melodias dos aborígenes australianos Dyirbal
e Pitjantjatjara são criadas pela recombinação de alguns perfis básicos - fórmulas - que
atuam independentemente dos textos cantados. A curva melódica pode ser observada em
dois níveis, local e global:
O nível local - a microestrutura da melodia - é largamente determinado por as-
pectos articulatórios e prosódicos das sílabas cantadas, enquanto o nível global - o perfil
propriamente dito - parece ser independente das propriedades das sílabas e palavras com
que é combinado. (WILL, 2004)
As fórmulas são modelos - conjuntos de traços expressivos inter-relacionados - que
se tornam referência na interpretação dos cantos. Além dos perfis melódicos, outros
tipos de fórmulas presentes nas performances orais: por exemplo, padrões de durações
curtas e longas funcionam como fórmulas rítmicas - facilmente memorizáveis - que aco-
modam uma variedade de textos e, mesmo o acompanhamento de palmas, funciona como
14
reforço mnemônico da voz de um cantor, preservando a métrica. Há, então, diversos tipos
de estruturas musicais - como fórmulas melódicas, padrões rítmicos associados a gestos
corporais, textos com número de sílabas fixo, dentre outras estruturas musicais - que se
transmitem nas práticas musicais das culturas orais.
A presença da notação musical em uma cultura supõe um modo bastante abstrato de
representação do som. Para isso é necessária uma teoria. A representação de sons musicais
por letras, herdada dos gregos, ilustra uma instância histórica da notação musical. A
ordenação das letras no alfabeto tornou-se referência para a seqüência dos sons na escala:
as notas são simbolizadas por letras que ocupam a posição correspondente no alfabeto.
A geometria também forneceu elementos para a teoria musical grega. Os pitagóricos de-
monstraram relações entre números inteiros e intervalos musicais, observadas na divisão
de uma corda vibrante em partes iguais
3
:
O progresso da razão consiste em tal conquista que, projetando a ordem auditiva dos
intervalos sobre o dispositivo espacial do monocórdio, associa os intervalos a segmentos
de reta e permite sua identificação às unidades e frações numéricas. Com os pitagóricos,
o pensamento grego fundava a ciência musical como uma aritmética. [...] A descoberta
da isomorfia do som e do número faz dos pitagóricos os fundadores da acústica e da teoria
musical européias. (DUFOURT, 1991b, p.246-247)
Os gregos empregaram modelos originados da matemática na construção de sua teoria
musical. Por “modelo”, entenda-se a utilização de conjuntos de relações importadas de um
campo e utilizadas em outro. Para os pitagóricos, tanto o microcosmo da música quanto
o macrocosmo do mundo eram organizados pela harmonia do número. A harmonia grega
- entendida como métrica das proporções - descobriu o princípio da analogia entre ordens
de realidade heterogêneas:
Pela primeira vez, os dados da experiência física e as determinações da geometria
eram postos em correspondência. A articulação do empírico ao abstrato define a ordem
da teoria. Ela mostra em que o pitagorismo constitui a primeira visão científica do mundo
no momento mesmo onde ele identifica a música e o cosmos, a inteligibilidade numérica
e a ordem do sonoro (DUFOURT, 1991b, p.252).
2/1 = oitava, 3/2 = quinta, 4/3 = quarta.
3
15
A representação das alturas na teoria musical grega se restringia às letras do alfabeto
e às divisões do monocórdio. A partir do ano mil, verificou-se um grande desenvolvimento
no sistema de notação musical, na Europa. Tratava-se da intro dução da representação
gráfica de gestos musicais. O espaço gráfico abriu uma nova ordem de possibilidades.
Segundo Dufourt (1991a, p.177), “o olho intro duz o ouvido no espaço das operações e
das funções”. A projeção do som sobre uma superfície plana permitiu uma detenção do
movimento temporal: o tempo musical deixava de ser apenas escoamento e passagem.
Com isso, ao lado das práticas musicais tradicionais, baseadas na memória e na impro-
visação, começaram a surgir novas formas de criação musical. A escrita conduziu a uma
organização diferenciada do texto sonoro, o que possibilitaria o surgimento da polifonia.
A notação neumática da Idade Média européia utilizou curvas padronizadas (neumas)
para representar o movimento de células melódicas e auxiliar a memorização das melodias.
Tratava-se da representação do movimento melódico por curvas no espaço gráfico.
Os neumas, esboços de inflexões da voz, se limitavam a sugerir globalmente um
perfil; algumas marcas, alguns traços bastavam à rememoração. Tratava-se de restituir
a plenitude de um movimento interior. Os neumas buscavam imitar, de dentro, o movi-
mento da forma vocal em sua gênese, com sua complexidade latente, seu tempo próprio,
sua continuidade necessária (DUFOURT, 1991a, p.180).
O desenvolvimento da notação na Idade Média digitalizou, progressivamente, as cur-
vas analógicas dos neumas. Os neumas traduziram-se em seqüências definidas de pon-
tos/notas. Permaneceram as metáforas espaciais (agudo/alto x grave/baixo), sendo que
o novo espaço passou a ser medido por um sistema de coordenadas (pauta e claves).
Perdeu-se uma gama infinita de inflexões sutis, transições imprecisas entre alturas, em
benefício de uma definição e fixação das notas:
A pauta desloca o sistema da figuração gestual. Não são mais as formas que contam,
nem sua significação intrínseca, mas a posição que ocupa cada unidade dis creta no seio
do sistema de referência. A notação diastemática repousa, como seu nome indica, sobre
a fragmentação do melisma, condição preliminar à determinação rigorosa e precisa dos
graus de elevação (DUFOURT, 1991a, p.181).
Em cada etapa histórica de uma cultura, diferentes modos de representação da música
determinaram o campo de possibilidades do sonoro, os tipos de materiais musicais e suas
16
formas de organização. Determinados materiais são recusados quando não podem ser
adequadamente representados ou organizados. Por outro lado, a incorporação de novos
recursos ao sistema de representação abre portas inusitadas à experimentação criadora, o
que será elucidado com alguns exemplos:
a. o desenvolvimento da notação rítmica no século XIV permitiu o florescimento da Ars
Nova
4
;
b. o surgimento da tecnologia de gravação de som no século XX permitiu o desenvolvi-
mento da eletroacústica - a representação aqui está associada, por um lado, à fixação
de sons a um suporte (fita, CD ou HD) e, por outro, a uma teoria de classificação do
objeto sonoro (SCHAEFFER, 1966).
Os sistemas de representação organizam o espaço musical, definem seus planos ou
regiões potenciais. Ao mesmo tempo, a representação interage com a sensação direta e
a modifica, pois projeta sobre ela as linhas de força do espaço teórico. Por outro lado,
também transformações nas sensações - geradas por mudanças no comportamento de
alguns elementos do campo musical - que não se representam imediatamente. É necessário
um tempo para que sua consciência se acentue a ponto de exigir uma renovação do
sistema teórico e dos modos de representação associados. São os conflitos entre sensação
e representação que abrem as portas dos sistemas musicais para o novo e que provocam
deslocamentos nas fronteiras do campo musical. A seguir, um exemplo para esclarecer
essa afirmação.
No decorrer do século XIX, a exploração de um caráter expressivo dramático requi-
sitou sonoridades novas, possivelmente consideradas ásperas pelas gerações anteriores.
Na Sexta Sinfonia, Beethoven compôs uma passagem típica (fig.1, p.18). O efeito sonoro
“A o século XIV, a escritura musical apresenta um caráter híbrido. Ela se situa a meio caminho entre
4
um espaço concreto e um espaço formal. Os s ignos gráficos conservam e m sua forma a significação de
um gesto interior; os motivos rítmicos, em particular, permanecem tributários de giros idiomáticos dos
quais procuram identificar a justeza da acentuação, o balanço e o tempo internos, segundo os hábitos da
cultura oral. Apenas no século XIV, os ritmos serão inscritos em um espaço funcional e submetidos ao
controle da operação métrica” (DUFOURT, 1991a, p.181).
17
ruidoso se justificava em função de um programa descritivo - trovões na tempestade - e de
razões dramáticas. Um modelo sonoro da natureza serviu de referência para a construção
de um material musical novo. Aqui, material novo significa alargamento do campo de
possibilidades do “musical”. O exemplo de Beethoven ilustra um conflito entre sensação e
convenções que delimitam o campo musical: a necessidade expressiva abre uma brecha no
sistema teórico para alargar seu campo de possibilidades. Neste exemplo, o componente
tímbrico do som se sobrepõe ao harmônico: a notação representa um contraponto - um
polirritmo - entre as partes de violoncelos e os contrabaixos, mas o efeito resultante é um
ruído complexo. Contribui para isso a dificuldade técnica de execução da passagem, que
cria pequenas defasagens temporais entre os violoncelos e contrabaixos da orquestra
5
.O
tímpano tamb ém se mescla à sonoridade grave. Nesse caso, a notação age como tablatura
para os gestos instrumentais e não como representação harmônica.
Todo o desenvolvimento da orquestração, no século XIX, estava atrelado à in-
corporação de um componente tímbrico do som que não é redutível à dimensão da altura.
A prática da orquestração nos séculos XVII e XVIII buscava uma disposição adequada
dos instrumentos - cores, registros e dinâmicas equilibrados - para permitir clareza har-
mônica: a instrumentação era subordinada à harmonia. No século XIX, iniciou-se uma
valorização do timbre que exigiu mudanças nos modos de utilização dos instrumentos
tradicionais assim como incorporação de novos instrumentos. Isso conduziu a uma pro-
gressiva emancipação da instrumentação com relação à harmonia. No século XX, surgiu
uma música em que todos os elementos - harmonia, textura, cor instrumental - se subor-
dinavam ao efeito global do timbre. Nesse sentido, houve uma linha de evolução que
passou por Debussy, Varèse, Ligeti, Scelsi e chegou aos compositores espectrais (COR-
NICELLO, 2000, p.31). Na segunda metade do século XX, a música espectral foi buscar
Ligeti (2001, p.199) refere-se ao timbre de fusão que existe em algumas peças orquestrais do século XIX,
5
como em “O encantamento do fogo”, da “Walkyrie” de Wagner. um efeito de cintilamento no timbre
que é decorrente das pequenas defasagens temporais entre os violinos (inferiores a 50 milisegundos, que é
o limiar temporal de separação auditiva entre eventos sucessivos), resultantes de imprecisões na execução.
“Esse brilho particular da orquestra, que não é a soma dos timbres instrumentais individuais mas uma
nova qualidade, repousa sobre a fusão de sucessividade”.
18
Figura 1 Beethoven,
VI Sinfonia Op 68, 4
o
mov. [21]
(Os colchetes indicam o número do
compasso; nesse caso, compasso 21.)
a reintegração da instrumentação com a harmonia, graças a uma nova compreensão da
microestrutura do timbre: os espectros começaram a ser pensados como acordes com um
grau de fusão acústica elevado; harmonia e timbre foram tratados como pólos opostos no
eixo separão acústica x fusão sonora (McADAMS; SAARIAHO, 1991). Nas relações
entre práticas artísticas e teorias científicas pode haver defasagens de desenvolvimento.
A prática orquestral no século XIX supunha uma escuta que não podia ser teorizada de
maneira satisfatória por seus contemporâneos. Para um avanço na concepção teórica do
19
timbre, foram necessárias ferramentas que surgiram no século XX. Com as técnicas de
gravação do som e, especialmente, com o desenvolvimento da informática, surgiram novas
teorias acústicas e novos modelos interpretativos para o timbre.
Os modos de representação traduzem o sonoro em digos simbólicos. A manipulação
dos digos permite modificar o sonoro e introduz uma competência operacional nos
processos de criação musical de cada época. A manipulação dos digos simbólicos utiliza
modelos, referências internas ou externas surgidas no decorrer da história. Chamo de
modelos internos aos digos, fragmentos ou aspectos parciais de composições anteriores
que se atualizam em novas versõ es/variações; por exemplo, esquemas formais, seqüências
harmônicas padronizadas - como nas cadências - ou, ainda, combinações instrumentais
típicas. Há, também, modelos externos que vão sendo assimilados, traduzidos, codificados,
como por exemplo, os cantos de pássaros que, em diferentes períodos da história, foram
submetidos a traduções ao sistema musical corrente: mudança tímbrica, transposição
para um registro menos agudo, acomodação a uma escala e metrificação do ritmo. A
natureza dos digos simbólicos é de permanente abertura para incorporação de novos
modelos externos que transformam, em maior ou menor grau, o modo de operação dos
digos.
Embora os digos simbólicos sejam modos de representação musical construídos
a partir do sonoro, a natureza temporal/dinâmica da música recusa qualquer fixação
definitiva em um digo. A lógica do sonoro supõe a sensação. Por isso, é imprescindível
ir e vir da sensação aos digos numa alternância permanente, em um movimento de
criação e dissolução de relações
6
. A noção de digo implica em existência de relações
sistemáticas entre os elementos que compõem a teoria musical. Entretanto, a mente
não é um mecanismo lógico que segue regras claras e diretas. Por isso, ao invés de
regras ou leis, o campo da escuta pode ser mais bem compreendido a partir da noção de
“A composição musical não se reduz a um có digo de uso, nem à elucidação teórica de suas operações
6
técnicas. Ela consiste, ao contrário, em operar em um mundo onde por princípio tudo é sem sentido.
Domínios qualitativamente distintos se interpenetram, ordens de representações heterogêneas se super-
põ em, tipos de operações irredutíveis se condicionam mutuamente” (DUFOURT, 1991a, p.179-180).
20
restrições (constraints): nossa experiência musical nos conduz a desenvolver um repertório
de categorias e esquemas cognitivos - modelos - que agem como fronteiras imprecisas e
restringem nossos modos de interação com a música, direcionando a experiência da escuta.
21
2 DO PLANO DO MATERIAL AO PLANO DA COMPOSIÇÃO
2.1 Modelo
“Modelo” é habitualmente definido como uma representação simplificada de algum
objeto, comportamento ou sistema que se deseja compreender (KOPERSKI, 2006). Den-
tre os diversos tipos de modelos, os mais familiares são os chamados modelos físicos, como
as réplicas em miniatura de aviões. Esses modelos apresentam similaridade estrutural
com os aviões a que se referem, o que permite aos engenheiros estudar suas propriedades
dinâmicas a partir de experiências com as réplicas em túneis de vento. Modelos da física
teórica costumam utilizar representações abstratas, como planos sem atrito ou massas
puntuais. Há, também, modelos matemáticos, constituídos por conjuntos de equações
inter-relacionadas.
Na literatura musical, o conceito de modelo tornou-se recorrente nos últimos anos.
Segundo Lallite (2002, p.60-61),
a noção de modelo é ambígua, pois remete ao domínio artístico (o modelo do pintor
e do escultor) e ao domínio científico. Desse último ponto de vista, o modelo pode
se definir como uma estrutura formalizada, utilizada para dar conta de um conjunto
de fenômenos que possuem entre si certas relações. É, essencialmente, um mo delo de
ordem descritiva, que reduz os componentes do objeto para melhor apreendê-lo. Os
modelos científicos apresentam três propriedades - simplificação, unificação e previsão -
que permitem apreender, de maneira racional, a constituição e a evolução dos fenômenos
estudados. No domínio musical, a noção de modelo se compreende em uma acepção muito
mais livre. O modelo musical p ode se conceber tanto como representação esquemática de
um processo, quanto como transcrição pura e simples de sonoridades naturais ou mesmo
de uma obra preexistente.
Para os pesquisadores envolvidos na área de CAC (composição assistida por com-
putador
7
:
há, então, na música, cálculo, digo, linguagem, informação e estruturas temporais
que podem ser descritos por formalismos informáticos, em um duplo jogo de análise e sín-
tese. O termo “modelo” pode então se aplicar e se declinar segundo diversos paradigmas
científicos. (ASSAYAG, 2004).
Também chamada CAO: composition assistée par ordinateur.)
7
22
Partindo-se de uma concepção ampla, o modelo pode ser visto na projeção de uma
forma sobre outra, como no caso do carimbo, da fotografia ou da gravação de som -
que traduz os impulsos sonoros em eletromagnéticos e os codifica no reposicionamento
de microelementos metálicos de uma fita (gravação analógica) ou converte os mesmos
impulsos sonoros em digos numéricos (gravação digital); de outro modo, como molde
que recebe uma matéria maleável ou, ainda, de um modo mais dinâmico, como um jogo
de forças que constrange uma matéria a uma forma definida - como no caso do vaso de
barro que é moldado segundo uma forma presente na mente do artesão. Neste trabalho,
“modelo” é definido de maneira ampla, como um conjunto de relações abstraídas de
um contexto e reproduzidas em outro: o vaso de agora é modelado segundo os traços
deixados na memória por um outro vaso anterior. O modelo funda um espaço analógico,
cria pontes entre heterogêneos, instaura correspondências e simetrias entre ordens de
realidade diferentes. O modelo é ordenação, na medida em que submete um material a
uma forma.
Um modelo pode surgir através de ligações que se estabelecem entre os traços salientes
de um material e formam figuras, constelações. Se essas figuras são consistentes para
a percepção, podem se abstrair enquanto configurações e modelar um novo material,
submetendo-o às linhas de força de sua estrutura. A capacidade de um modelo ser extraído
de um material está relacionada à consistência de suas figuras. Por outro lado, quando
um modelo é projetado sobre um novo material, pode haver transformações nas figuras
originais: algumas relações são ignoradas; outras, criadas. Uma estrutura reduzida, feita
a partir de uma seleção de traços salientes do objeto, permite um controle planejado das
transformações possíveis que esse objeto possa sofrer. Nesse sentido, o termo modelo não
deve sugerir um original que é reproduzido com mais ou menos exatidão, mas um processo
criativo de derivação contínua de novas formas a partir de referências anteriores.
Mesmo quando se refere a formas que se constituam no tempo, a consistência de
um modelo permite sua integração, pois conversão de um processo temporal em uma
23
forma que se apreende globalmente. Para que o tempo possa alcançar uma forma, para
que não seja pura fluidez, os modelos temporais necessitam da memória. Mas não se
trata de uma simples acumulação de traços expressivos. Esses traços devem ser postos
em relação, comparados com outros anteriores e posteriores, formando uma cauda de
retenções e um horizonte de antecipações:
O fluxo temporal se torna forma e objeto no seio de nosso aparelho psíquico. Não
é apenas uma questão de traço mnésico. O esforço fundador da cogitatio é, verdadeira-
mente, essa mutação do instante em duração, do caos do fluxo auditivo originário em
objeto inteligível, de impulsão em gesto e em figura (CHOUVEL, 2005).
2.2 Modelo e material
O conceito de material musical supõe uma materialidade sonora bem como um com-
ponente mental, um modo de “ouvir” essa mesma materialidade
8
. A escuta realiza um
recorte do sonoro direcionada por um corpus limitado de modelos, presente em cada
contexto histórico-cultural, ou seja, modos de ouvir codificados nos diferentes contex-
tos culturais. O campo musical está sempre recortado, organizado ou hierarquizado por
modelos que definem uma interpenetração do “natural”/sonoro e do “cultural”/musical
em certas categorias de pensamento e em certas práticas. Categorias como melodia,
harmonia, tema, desenvolvimento, são exemplos de princípios globais de organização -
modelos - encontrados em alguns processos de criação musical.
Os modelos presentes na tradição da música de concerto se transformaram continua-
mente no decorrer da história. É assim, por exemplo, que o desenvolvimento da harmonia
tonal deslocou o foco da escuta de linhas melódicas independentes para blocos sonoros -
acordes - e seus encadeamentos privilegiados - cadências; por sua vez, com o atonalismo,
as cadências foram diluídas, os blocos harmônicos perderam sua codificação - acordes não
“O aspecto essencial da significação da noção de material musical é, eu disse e torno a dizer, essa
8
relação material-compositor. Não somente o relacionamento entre os caracteres pregnantes do material
(por exemplo, o intervalo) e a combinação dessas relações (por exemplo, o acorde) são o resultado da
ação do compos itor, mas é a recepção do compositor, sua escuta estética e poética, que faz do som físico
(natureza exterior) um som percebido (relação homem-natureza) e é sua escolha que faz desse último um
som musical [...]” (DUCHEZ, 1991. p.53).
24
classificados - e houve uma revalorização do contraponto linear. Modelos são justamente
os princípios de organização que se transmitem - e se transformam - nas tradições: o
material sonoro deve ser elaborado para se tornar expressivo. Modelos são as “palavras”
e as “frases” de um pensamento musical e atuam tanto na técnica composicional quanto
na escuta. Em sua ação, o modelo pode elaborar diferentes níveis estruturais do material
musical. Do ponto de vista do tempo, existem tanto modelos locais - como as cadências
- quanto modelos globais - como a forma de uma peça -, ou, ainda, modelos que orga-
nizam os blocos temporais intermediários; do ponto de vista da simultaneidade, tanto
modelos organizando planos globais - como as texturas - quanto detalhes locais - como
a ornamentação de linhas melódicas
9
.
Existe ainda, uma relação de pressuposição recíproca entre material musical e modelo.
O processo de composição supõe um contínuo entrelaçar dessas categorias. Próprio de
um modelo é se projetar sobre um material, produzindo resultados sempre diferentes,
pois sua natureza reduzida requer uma adaptação ao material a ser organizado. Por sua
vez, o material não pode ser considerado como um suporte inteiramente neutro e amorfo,
pois sempre apresenta um certo nível de elaboração. Não existe material não elaborado;
o que existe é um certo nível de elaboração básico, de onde habitualmente se parte para
compor. Mesmo em um estado dito primitivo, bruto, o material apresenta aspectos regidos
por modelos compartilhados culturalmente. Há, por exemplo, modelos que estriam o
espaço harmônico segundo certas regras, formando escalas
10
. Modelos primitivos, como
as escalas, definem um domínio potencial do material, excluem certas possibilidades e
disponibilizam outras. Sobre esse material relativamente amorfo, em estado primitivo,
são projetados modelos mais diferenciados - por exemplo, frases melódicas - visando
“Essas estruturas cnicas composicionais pré-formadas, intermediárias entre, de uma parte, as restrições
9
que as propriedades físicas e psicológicas do material fazem pesar sobre sua utilização e, de outra parte,
as exigências do projeto estético, entre a resistência do real concreto do som e as intenções do compo-
sitor (oposição pertencente ao velho dualismo matéria-forma), tem uma enorme importância na música
ocidental; elas evoluíram historicamente da Idade Média ao século XX: modos gregorianos, consonâncias
polifônicas, cadências tonais, etc” (DUCHEZ, 1991. p.61).
Sobre espaços harmônicos lisos e estriados, ver BOULEZ (1972, p.82-87).
10
25
esculpir o material, articulá-lo internamente. Como pode ser visto, mesmo a noção de um
material bruto pressupõe modelos primitivos. Por outro lado, qualquer trecho musical,
mais ou menos elaborado, pode ser tomado como um material sobre o qual venham a
se projetar modelos. O processo de composição elabora o material em múltiplas etapas,
sendo que cada etapa sucessiva parte de um material mais elaborado e projeta sobre
ele novos modelos. Entretanto, não se trata de um caminho em direção à complexidade
absoluta, dado que o objetivo da elaboração é acentuar a expressão. Para Deleuze e
Guattari (1992. p.213), “a obra de arte é um bloco de sensações”, e a relação do plano
de organização com o plano de expressão deve ser tal que
o plano do material sobe irresistivelmente e invade o plano de composição das
sensações mesmas, até fazer parte dele ou ser dele indiscernível. (...) A sensação não se
realiza no material, sem que o material entre inteiramente na sensação, no percepto ou
no afecto. Toda a matéria se torna expressiva. (p.217)
O objetivo da elaboração do material é permitir que as sensações se sustentem no
tempo, que prolonguem suas intensidades nos diversos planos formais. O trabalho sobre
o material permite relacionar a multiplicidade de traços expressivos - vindos de diferentes
níveis do material, desde os detalhes até o grande plano global - em um entrelaçamento
complexo, convergindo ou separando as forças expressivas.
Um exemplo interessante que ilustra a relatividade do conceito de elaboração, é o
terceiro movimento da Sinfonia, de Luciano Berio (1970), que utiliza citações de outras
obras do repertório sinfônico ocidental - portanto materiais previamente elaborados -
como ponto de partida para um contraponto de estilos diferentes, onde o cantus firmus é
o scherzo da segunda Sinfonia, de Mahler. Nesse caso, a elaboração consiste no encadea-
mento e na superposição dos fragmentos citados. O compositor, em diversas entrevistas,
recusou o termo “colagem” e insistiu no trabalho de adequação harmônica dos object
trouvée.
A tecnologia de construção de instrumentos sempre partiu de uma concepção de
material elaborado. Se isso é evidente diante de modelos elementares, como as escalas,
26
pode também ser verificado com relação a modelos mais complexos. Há, por exemplo,
uma relação entre o aumento do número de planos sonoros na música orquestral do século
XIX e o desenvolvimento paralelo da luteria, buscando máxima homogeneidade tímbrica
em todo o registro de uma mesma família instrumental
11
: a identidade de colorido dos
diferentes naipes distingue os planos sonoros com maior clareza. Nesse caso, um material
musical complexo - texturas com vários planos sonoros - requisitou uma orquestra com
uma paleta tímbrica bastante diferenciada.
No contexto da música concreta, Schaeer, apesar de distinguir os conceitos de obje-
to sonoro e estrutura musical
12
, reconheceu que, mesmo no nível do objeto isolado, “uma
escuta atenta descobre variações de valores que aprecia musicalmente (p.185)”. A mor-
fologia sonora desenvolvida no Traité des Objets Musicaux (SCHAEFFER, 1966) pode ser
vista como um quadro de modelos primitivos que visa auxiliar a escuta na organização
do objeto sonoro, na descoberta de seus traços formais elementares. Para Schaeer, o
material bruto da música concreta - gravações de quaisquer sons - requer, primeiro, uma
passagem à condição de objeto sonoro e, posteriormente, uma estruturação musical - de
la musique concrète a la musique même”. A primeira transformação é realizada pela es-
cuta por um recorte do objeto e pela identificação de seus traços formais característicos.
O objeto sonoro da música concreta é material “modelado” pela escuta.
A elaboração do material é resultado de uma combinação complexa de modelos, al-
guns conscientes e outros ocorrendo intuitivamente. A própria natureza múltipla dos mo-
delos torna sua identificação relativa e problemática: o palimpsesto
13
de modelos dissolve
a nitidez das etapas no produto final. Entretanto, mesmo com uma presença desfigurada,
a importância do modelo é permitir a criação de novas formas a partir de referências que
As cordas haviam alcançado um grande desenvolvimento técnico desde o século XVII. No século XIX,
11
madeiras e metais foram os naipes instrumentais mais desenvolvidos.
“O par objeto/estrutura é então indissociável, uma vez que designa sempre uma relação entre componentes
12
e compostos” (SCHAEFFER, 1977, p.186). ) Objeto e estrutura são diferentes enfoques - local e global
- de uma mesma situação formal.
“Um palimpsesto é uma página manuscrita, pergaminho ou livro cujo conteúdo foi apagado (mediante
13
lavagem ou raspagem) e escrito novamente, normalmente nas linhas intermediárias ao primeiro texto ou
em sentido transversal” (PALIMPSEST).
27
se imprimiram na sensibilidade do compositor: memórias que se atualizam sob metamor-
fose, fusão de diferentes imagens em um novo comportamento musical. Apesar disso, a
utilização de modelos padronizados pode levar ao enrijecimento da capacidade expressiva.
Com relação a esse ponto, Deleuze e Guattari diferenciam mapas e decalques:
Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma ex-
perimentação ancorada no real [...] O mapa é ab erto, é conectável em todas as suas
dimensões, desmontável, reversível, s us cetível de receber modificações constantemente
(2004, p.22-23).
Por outro lado, o que o decalque reproduz são apenas os pontos de estruturação. Para
Deleuze e Guattari, é preciso resistir ao aprisionamento característico dos decalques. Os
decalques são modelos padronizados (clichês) que se tornaram esvaziados da vitalidade
interna das formas. A utilização de decalques na composição conduz ao academismo,
caracterizado por uma repetição excessiva ou mecânica de procedimentos.
2.3 Escritura
O processo de composição pode ser visto como um trabalho de superposição e interpene-
tração de modelos. A escritura, na medida em que detém o fluxo do tempo e põe a dis-
tância o fenômeno sonoro é um trabalho não somente sobre o som, para organizá-lo, mas
também sobre a sensação, para desenvolver um pensamento do sensível. Graças a esse dis-
tanciamento, a escritura ultrapassa a mera função de simbolização do fenômeno sonoro
e possibilita a não-redução do pensamento do sensível ao imediato da sensação. Com
a fixação dos sons no espaço gráfico, a imaginação pode tratar a composição temporal
como uma organização de proporções e forças, uma repartição de espaços, um contraste
de materiais expressivos, enfim, um jogo de intensidades cuidadosamente conjugadas.
Ao contrário do som, que é contínuo e infinito em sua diversidade, a escritura musical
é baseada sobre um número finito de signos discretos que, combinados de diferentes modos,
permitem a expressão de um pensamento. Emb ora a escritura esteja voltada para o
28
sonoro, seus signos elementares não estão diretamente associados à percepção: eles são
apenas “traços diferenciais em um espaço abstratamente estruturado” (NICOLAS, 2007).
Assim, por exemplo, não o equivalente sensível a uma pausa escrita: seu sentido é
organizar a dimensão temporal. A escritura separa as características do fenômeno sonoro
em parâmetros e, enquanto dissociados, os signos elementares dos parâmetros musicais
mantêm-se independentes do sonoro. É preciso que se articulem em grupos, para que se
estabeleçam contextos conectados ao sensível. O contexto mais simples da escritura que
se relaciona à dimensão sonora é o “ponto”, uma única nota integrando simbolizações dos
vários parâmetros - altura, duração, intensidade e timbre.
A simbolização dos parâmetros sonoros apresenta ajustes em função das necessidades
expressivas. A escrita de alturas, por exemplo, é diferente quando se trata de instrumentos
com alturas definidas ou não. No caso de instrumentos de percussão com altura indeter-
minada, pode-se utilizar uma escala de alturas relativas (mais ou menos agudo) ou mesmo
prescindir desse parâmetro, limitando-se à indicação de duração, dinâmica e timbre. A
duração cronométrica (em segundos) requer a combinação de dois diferentes signos na
escrita: a figura de nota (semínima, mínima, etc) - que determina as proporções entre
durações - e o andamento (semínima = 60MM, por exemplo). As indicações de dinâmica
combinam signos que indicam planos globais (piano, forte, etc), acentos locais (>, sfz,
etc) e modulações de amplitude (crescendo e decrescendo). Por sua vez, as indicações de
timbre são as mais imprecisas, estando freqüentemente associadas a modos particulares de
execução em algum instrumento (arco sul ponticello, frullato, etc). Como se vê, a escrita
isola os diferentes traços expressivos do fenômeno sonoro em signos independentes.
Apesar de abstratos, os espaços paramétricos permitem a organização do sonoro
através da graduação do contraste entre os pólos expressivos grave/agudo, forte/piano,
breve/longo, contínuo/descontínuo... É justamente a abstração do conceito de parâmetro
que permite à imaginação encontrar variantes sonoras pela recombinação dos índices ex-
pressivos. O espaço-tempo sonoro é esculpido ou modelado quando se transformam os
29
graus de contraste nas seqüências de parâmetros. Por exemplo, o modelo “linha” - ou
“voz” - supõe o encadeamento de notas ou de blocos sonoros; seqüências com relativa esta-
bilidade nos parâmetros registro, duração e intensidade formam linhas contínuas; quando
um grande contraste nesses campos paramétricos - saltos de registros, precipitações
de durações, acentos - a continuidade da linha tende a romper-se. O modelo “linha” se
define, então, como organização da sucessividade pelos princípios contínuo/descontínuo,
ligado/separado, figura/fundo. Por sua vez, a natureza expressiva de uma “linha” - seus
afetos - é inseparável de suas curvas, ângulos, precipitações e detenções. Assim, do ponto
de vista expressivo, linhas com ondulações suaves, construídas a partir de graus conjuntos
- como em Palestrina - diferenciam-se completamente de linhas com ângulos abruptos,
construídas a partir de acordes arpejados - como em diversas peças de Bach. Por outro
lado, embora a escrita represente a “linha” como uma seqüência de “pontos”, ao mesmo
tempo pressupõe uma dimensão sonora contínua e flexível, que deve ser recriada pelo
intérprete na performance. A notação é apenas a armadura do gesto instrumental/vocal,
uma vez que a expressão musical habita as nuances do sonoro.
Os signos básicos da escritura aglomeram-se em unidades compostas em vários níveis
estruturais. Assim, podemos passar de “ponto” - nota - a “linha” - frase ou gesto -,
“plano” - seqüência de acordes ou p olifonia - ou “volume” - orquestração de um “plano”.
Esses modelos presentes na escritura são percebidos tanto visualmente quanto auditiva-
mente. Observa-se, portanto, um relativo recobrimento dessas duas dimensões. Há, entre-
tanto, momentos de independência entre estruturas escritas e estruturas ouvidas. Assim,
por exemplo, em situações complexas com grande instabilidade paramétrica, embora a
escrita apresente muitos detalhes, a escuta tende a envolver o contexto e apreendê-lo de
modo global. A escritura tem como função estruturar um “texto” musical que será pos-
teriormente transformado em fenômeno sensível pela interpretação, para dar nascimento
a um “mundo” no tempo da escuta.
Deleuze, cuidadosamente, analisa a inseparabilidade de sensação, construção e ex-
30
pressão no processo de criação artística:
A carne não é a sensação, mesmo se ela participa de sua revelação. [...] A carne
é apenas o termômetro de um devir. A carne é tenra demais. O segundo elemento é
menos o osso ou a ossatura que a casa, a armadura. O corpo desabrocha na casa (ou
num equivalente, numa fonte, num bosque). Ora, o que define a casa são as extensões,
isto é, os pedaços de planos diversamente orientados que dão à carne sua armadura:
primeiro-plano e plano-de-fundo, paredes horizontais, verticais, esquerda, direita, retos
e oblíquos, retilíneos ou curvos... Essas extensões são muros, mas também solos, portas,
janelas, portas-janelas, espelhos, que dão precisamente à sensação o p oder de manter-se
sozinha em molduras autônomas. São as faces do bloco de sensação. [...] O terceiro
elemento é o universo, o cosmos. Não é somente a casa aberta que se comunica com a
paisagem, por uma janela ou um espelho, mas a casa mais fechada está aberta sobre um
universo. A casa de Monet se sempre aspirada pelas forças vegetais de um jardim
incontrolável, cosmo de rosas. Um universo-cosmos não é carne. Nem mesmo plano,
pedaços de planos que se juntam, planos diversamente orientados, embora a junção de
todos os planos até o infinito possa constituí-lo. Mas o universo se apresenta, no limite,
como o fundo da tela, o único grande plano, o vazio colorido, o infinito monocromático
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.230 a 234).
Se a arte é “linguagem de sensações”, não se trata de reduzir a sensação à efemeridade
do instante: “A carne é somente o revelador que desaparece no que revela: o composto
de sensações” (DELEUZE; GUATTARI, 1992. p.236). Daí, a necessidade da construção,
de coordenar e encaixar os múltiplos planos da “casa” ou da “armadura”, para que a
percepção se sustente no tempo. E, para além da construção, ainda é necessário um
poderoso movimento de desenquadramento, que abra a “casa” para a “paisagem” e lib erte
a expressão de forças cósmicas. No caso da música, a “sensação” surge com a exposição do
sonoro no fio de um tempo frágil e, simultaneamente, sustentado; a “construção” requer a
articulação desse contínuo em elementos que são manipulados na escritura e organizados
por modelos; por sua vez, a “expressão” indica um movimento, uma flecha, um desejo ou
uma vontade que projeta a obra para além de si, em direção a uma exterioridade.
2.4 Extensões tecnológicas da escritura musical
Em 1948, Pierre Schaeer começou a utilizar meios técnicos de gravação e difusão,
presentes na indústria do rádio, como uma ferramenta composicional. Com isso, provocou
um deslocamento na fronteira do campo musical tradicional, até então limitado a sons
instrumentais e vocais. Graças à tecnologia de gravação, pela primeira vez na história,
31
o som, que é um fenômeno dissipativo e transitório, pôde ter seu traço temporal fixado
sobre um suporte físico. A fixação do sonoro intro duziu uma nova dimensão no processo
de composição: ao invés da abordagem abstrata do som através da escrita, tratava-se
de trabalhar a partir de um som singular, concreto, passível de uma elaboração detalha-
da através da reescuta. Na prática da música concreta, sons de origens quaisquer eram
gravados e, graças a diversas manipulações eletroacústicas, eram transformados e combi-
nados. Schaeer defendia a necessidade de se abandonarem as referências habituais da
música instrumental e se buscarem, na escuta, novos princípios de organização baseados
nas qualidades internas do som. Os estudos de Schaeer sobre morfologias e tipologias
sonoras estão na origem de um novo eixo de pesquisa científica: a psicoacústica
14
.
Menezes (1998) destacou a importante mudança trazida pela eletroacústica ao processo
de composição. Na música eletroacústica, é possível trabalhar na constituição mesma dos
espectros sonoros. O compositor busca, inicialmente, criar seus próprios sons, para, a
seguir, relacioná-los formalmente no tempo, sem o apoio da notação musical. O novo
material apresenta uma extraordinária diversidade, uma ampliação quase inesgotável do
real sonoro, graças às possibilidades de manipulação em nível de microestruturas, de
microdeslocamentos interválicos e temporais: a eletroacústica permitiu um mergulho no
interior do som e a descoberta de um mundo expressivo marcado por limiares sutis de
intensidades.
Por outro lado, como o trabalho de relacionar os objetos sonoros da música eletroacús-
tica é, em vários aspectos, semelhante ao realizado pela escritura na música instrumental,
o autor fala em uma escritura latente ou subjacente:
Tal elaboração composicional no estúdio - elaboração que renuncia ao processo de
decodificação da notação musical tradicional sem renunciar aos aspectos relacionais do
material musical - eu chamo escritura latente ou subjacente (MENEZES, 1998)
Ciência que estuda a percepção subjetiva das características do som, relacionando os estímulos sonoros e
14
seus corre latos na escuta. A psicoacústica investiga os limiares perceptivos e as proporções entre variações
de grandezas físicas e p erceptivas (scaling).
32
Se os objetos da escritura instrumental são construídos a partir de “pontos”, a escri-
tura latente implícita na composição eletroacústica parte de um material sonoro complexo,
irredutível a uma concepção atomista do som. Em contraste à concepção paramétrica da
escritura musical tradicional, a abordagem eletroacústica privilegia o trabalho sobre mor-
fologias: parte-se da noção de objetos compostos de múltiplas facetas - multiplicidades -
e caracterizados por traços distintivos - saliências perceptivas (VAGGIONE, 1991). Esses
objetos são transformados por fragmentação, variação e aglutinação, visando elaborar suas
partes e criar novas multiplicidades. Por sua vez, essas variações podem ser recombinadas
em conjuntos que são novamente fragmentados, variados e aglutinados, obtendo-se seg-
mentos temporais progressivamente maiores. A fixação do som sobre um suporte físico
permitiu um trabalho de montagem, de modo similar ao que se fazia no cinema. Entre-
tanto, havia limites práticos na montagem, pois as recópias sucessivas traziam perda de
qualidade no sinal sonoro gravado. Esses limites técnicos de edição foram superados
com a digitalização do som.
Com a introdução da informática no trabalho eletroacústico, surgiram novos modos
de representar os sons gravados, como o gráfico de intensidades, o sonograma, as repre-
sentações gráficas e alfanuméricas das linguagens de programação, etc. O traço energético
do material sonoro é captado sob a forma de um “esqueleto numérico” e, graças a isso,
torna-se possível convertê-lo em diferentes representações. A extração de saliências dos
objetos passou a ser realizada tanto de modo manual sobre as representações gráficas
quanto através de algoritmos especiais que processam as seqüências numéricas associadas
ao som. Esses diferentes modos de representação do som traduzem a linguagem de baixo
nível da máquina a um nível acessível ao compositor.
Para trabalhar no novo ambiente tecnológico, o compositor necessita formalizar seu
pensamento em uma dimensão mais abstrata - independente do gesto instrumental - o
que implica dificuldades de adaptação. O domínio expressivo do novo material musical
tecnológico depende de um equilíbrio sutil entre intuição e cálculo; daí a busca cons-
33
tante de adaptação das novas representações à imaginação dos compositores. toda
uma pesquisa buscando explorar diferentes modos de representar o pensamento musical e
elaborá-lo com as novas tecnologias. Mesmo a ruptura inicial estabelecida com a música
concreta pôde ser transformada: a numerização do sonoro permitiu que os mesmos proces-
sos de elaboração fossem aplicados - com adaptações - tanto aos sons gravados quanto
às partituras instrumentais. A informática introduziu uma nova escritura com pretensões
absolutas, no sentido em que se propõe a grafar qualquer dimensão do real p or meios
numéricos.
“O digo numérico permite descrever - e inscrever, pois se trata de um suporte de
escritura - operações relacionadas à estrutura interna do objeto” (VAGGIONE, 1991).
Para Vaggione, a digitalização transformou o estatuto do objeto sonoro eletroacústico,
que passou a apresentar uma transparência estrutural. O objeto torna-se manipulável,
não apenas “do exterior”, através de transformações sobre sua morfologia, mas também
“de dentro”, a partir de sua codificação. A digitalização do material sonoro permitiu rein-
tegrar diversos procedimentos de natureza abstrata, típicos das operações simbólicas da
escritura musical tradicional, nas estratégias de composição eletroacústicas. Há, contudo,
diferenças importantes entre as duas abordagens. Ao contrário dos processos baseados
na escritura tradicional, que utilizam representações com alto nível de abstração, a sín-
tese digital do som requer descrições muito mais detalhadas, com um grande número de
informações para indicar a variação do som no tempo. Para que esse enorme conjunto de
dados seja manipulável pelo compositor, tornam-se necessários modelos com descrições
globais do som. Assim, o compositor trabalha sobre os modelos globais, que são, poste-
riormente, convertidos em som por algoritmos de síntese. A formalização do pensamento
musical na escritura numérica se em múltiplos níveis, diferentes e complementares. Se
na prática tradicional da composição instrumental podiam ser distinguidos os níveis
do planejamento - com gráficos e textos - e da escritura propriamente dita, com as novas
tecnologias surgem novos níveis de elaboração que requerem a atenção do compositor.
34
A teoria da informação (VINET, 2003) procura classificar os diversos níveis de repre-
sentação das informações musicais pela faixa de freqüência, ou seja, pela quantidade de
informações transmitidas por segundo, conforme descrito a seguir:
a. semântico (0 - 1Hz), com descrições qualitativas em formato gráfico ou textual;
b. simbólico (0 - 25 Hz), com representação do som através de eventos discretos, como
notas, acordes ou ritmos;
c. controle (10Hz - 1kHz), com curvas globais de controle do som, por exemplo, regendo
a intensidade ou a espacialização do som eletrônico;
d. sinal (10 - 100 kHz), com o som propriamente dito, seja gravado ou sintetizado;
e. físico (n * 10 - 100 kHz), com descrições físico-matemáticas das vibrações sonoras.
Na classificação acima, uma relação inversamente proporcional entre a quantidade
de informações por segundo e os conhecimentos musicais implícitos. Assim, as descriçõ es
do sinal são muito detalhadas, o que reduz a necessidade de conhecimentos implícitos.
Ao contrário, para o nível semântico e simbólico, é necessário um conhecimento prévio
- a teoria musical - por parte de quem interpreta a informação, para decodificá-la cor-
retamente. A formalização numérica do sonoro permite a passagem entre os diferentes
níveis de informação por operações de análise e síntese: na análise, uma redução de
informações, com seleção e hierarquização dos dados; na síntese, uma transformação
das descrições globais em informações detalhadas. O interesse dessa classificação é jus-
tamente orientar a pesquisa no sentido de preencher os espaços intermediários, criando
níveis híbridos ou, então, conversões entre estruturas de níveis diferentes. A fase inicial
de desenvolvimento da tecnologia informática separou muito claramente a síntese sonora
- nível do sinal - da modelização de aspectos formais da composição - nível simbólico.
Isso se deu, provavelmente, como reflexo de uma distinção consolidada entre instrumento
e partitura. Um dos objetivos atuais é ultrapassar essa concepção inicial e construir am-
bientes de trabalho onde os domínios do som e da composição possam se comunicar e
interagir.
35
As novas tecnologias permitem descrever, de forma detalhada e formalizada, o som,
sua evolução e as interações entre esse som e o contexto em que se insere. Elas instauram
um novo domínio de racionalidade e teorização do material musical. Em particular, a
simulação computacional abriu uma nova via de conhecimento e aprendizagem, tornando-
se uma ferramenta valiosa de apoio à imaginação. Na nova escritura digital, os modelos são
dinâmicos e sua visualização em telas interativas permite explorar variações controladas
em seu comportamento a partir de conjuntos estruturados de dados numéricos. Como
nos diz Lévy:
O modelo numérico (digital), o qual projeta sobre a tela sua imagem dinâmica,
releva uma forma de escritura, mas certamente não da notação da palavra. Não se ouve
o som, mas o modelo mental. E como modelo mental, ele é interativo, explorável, vel,
modificável, fortemente articulado sobre mil reservas de dados (LÉVY, s/d).
2.5 Formalização computacional das técnicas de composição
A idéia de uma concepção formalizada dos processos musicais - através de procedi-
mentos lógicos ou algorítmicos - existe muito tempo na prática da composição. Como
exemplos, podemos citar a isoritmia medieval, a técnica do cânone - com os recursos de
inversão e retrogradação - e o famoso jogo de dados usado na composição de minuetos,
atribuído a Mozart. Entretanto, com o desenvolvimento da informática no século XX,
surgiram ferramentas de representação e cálculo cada vez mais poderosas, o que possibi-
litou um desenvolvimento acentuado da formalização. Como toda atividade artística, a
composição musical supõe processos criativos que não são completamente formalizáveis.
Em conseqüência, o sentido da CAC (composição assistida por computador) é propor aos
compositores ambientes de ajuda à composição, permitindo utilizar o computador para
experimentar e formalizar aspectos parciais do processo de composição.
O modelo computacional é um conjunto de instruções voltado à realização de uma
idéia musical. O compositor elabora seus materiais musicais através de programas que
definem regras ou restrições para a combinação dos elementos utilizados. Com a simulação
36
dinâmica, tornada possível pela CAC, os modelos são criados, testados e refinados pelo
compositor durante a exploração do material musical na composição. Nesse sentido, os
programas são um tipo de escritura, pois representam a evolução de um pensamento
formal.
Os ambientes de programação visual tornaram a formalização mais acessível, uma
vez que introduziram interfaces mais amigáveis e intuitivas. Fala-se de programação vi-
sual quando se trata de utilizar indicações visuais em duas dimensões e não um texto
linear na programação (BRESSON, 2007, p.88). A utilização de objetos gráficos inter-
conectados permite a representação clara e intuitiva de um processo. Entre os programas
mais conhecidos da área de CAC que utilizam a programação visual, estão Patchwork
(LAURSON, 1993), OpenMusic (AGON, 1998) e PWGL (LAURSON; KUUSKANKARE,
2002). Nesses programas, os gráficos correspondem a expressões funcionais programadas
em LISP, que são avaliadas segundo o fluxo de controle definido pelas conexões entre os
objetos.
Figura 2 exemplo de programa (patch) com objetos musicais (software PWGL).
37
3 MODELOS TEMPORAIS NA COMPOSIÇÃO MUSICAL
3.1 A representação do tempo
A atividade de composição é estreitamente ligada à manipulação e à estruturação do
tempo. Para a formalização computacional do processo de composição, torna-se necessário
desenvolver um modo de representação do tempo que permita descrever e construir estru-
turas temporais complexas. Uma das representações mais simples do tempo consiste em
associar cada evento a uma marcação temporal, indicando seu momento de aparição em
uma seqüência e sua duração (BRESSON, 2007, p.178). Essa indicação temporal requer
uma unidade de referência - por exemplo, o segundo - e supõe, subjacente à estrutura
descrita, um ciclo regular de repetições dessa unidade, uma espécie de “régua temporal”.
É justamente essa “régua” que permitirá a contagem ou a medida do tempo, ou seja, a
marcação de posição temporal e a duração dos eventos. Embora esse formato seja sufi-
ciente para representar e editar uma seqüência sonora - é a forma utilizada pela maioria
dos softwares seqüenciadores - não é adequado para a representação de relações privile-
giadas entre grupos de eventos. Por exemplo, para descrever um grupo de eventos que
se desloca no eixo do tempo, é necessário somar um valor temp oral constante às posições
temporais de cada evento do grupo, p ois, nesse formato, os eventos se relacionam à
régua temporal, não havendo relações diretas entre eles. Por isso, não é possível definir
um grupo e movê-lo com apenas uma informação global de posição. Outras relações tem-
porais tornam-se ainda mais complexas de representar como, por exemplo, a aumentação
rítmica, com os eventos tornando-se proporcionalmente mais espaçados no tempo.
Essas limitações podem ser ultrapassadas, introduzindo-se a noção de hierarquia.
Nas representações hierárquicas, algumas estruturas podem englobar outras, em vários
níveis. Isso quer dizer que eventos temporais complexos, isto é, eventos definidos
globalmente como blocos - com sua posição temporal e duração determinadas - e, ao
mesmo tempo, organizados internamente como subseqüências de eventos simples. Nesse
38
caso, tornam-se necessárias duas indicações temporais independentes: por um lado, o
evento complexo é representado como um único elemento, com sua posição temporal e
duração definidas em relação ao nível global da estrutura; por outro, sua organização
interna é representada como uma seqüência independente, com as indicações temporais
de posição e a duração dos eventos definidas em nível local, ou seja, o início do bloco é
considerado tempo zero (fig.3).
Figura 3 representações do temp o (a) seqüência simples
e (b) seqüência hierarquizada (BRESSON, 2007, p.195).
A notação musical tradicional é um exemplo de representação hierarquizada do
tempo, onde os compassos representam um nível global - blocos de tempo - que é organi-
zado internamente como uma seqüência de tempos - nível médio - que são, por sua vez,
organizados internamente como uma seqüência de subdivisões dos tempos - nível local.
um nítido encapsulamento dos três níveis temporais: compassos tempos sub-
divisões. Em uma representação hierarquizada do tempo, os eventos são representados
em múltiplas linhas de tempo, definidas em relação aos diferentes níveis estruturais. O
que distingue essas linhas de tempo é a escala temporal e sua unidade de medida, por
exemplo, compasso, tempo e parte de tempo.
A figura 4 ilustra os diferentes níveis temporais presentes em um ritmo. O ritmo
original está na linha inferior; as demais linhas ilustram níveis temporais de hierarquia
superior. Podem ser distinguidos quatro níveis temporais:
39
Figura 4 quatro níveis temp orais distintos:
compasso, tempo, parte e subparte de tempo.
Tabela 1 níveis articulatórios de um compasso
nível unidade eventos posição duração
compasso mínima pontuada 1 0 1
tempos semínima 2 0, 1 1, 2
partes de tempo
colcheia de tercina 3 0, 1, 2 1,1,1
colcheia de quintina 4 0, 1, 3, 4 1, 2, 1, 1
subpartes de tempo colcheia de quiáltera encapsulada(3 dentro de 5) 3 0, 1, 2 1, 1, 1
a. nível do compasso, com unidade temporal = mínima pontuada
temos um único evento global com posição temporal = 0 e duração = 1 unidade;
b. nível dos tempos; com unidade temporal igual à semínima
temos dois eventos com posições temporais = 0 e 1 e durações = 1 e 2 unidades;
c. nível das subdivisões dos tempos ou partes de tempo
temos dois eventos complexos cuja organização interna é
40
1. posições = 0, 1 e 2; durações = 1, 1 e 1 (unidade = colcheia de tercina)
2. posições = 0, 1, 3 e 4; durações = 1, 2, 1 e 1 (unidade = colcheia de quintina);
d. nível das subdivisões das partes de tempo
temos vários eventos simples e um único evento complexo, cuja unidade de refe-
rência temporal é a colcheia da quiáltera encapsulada (3 dentro de 5)
1. posições = 0, 1 e 2; durações = 1, 1 e 1.
Além das formas seqüenciais, ilustradas pelo exemplo anterior - onde os eventos de
cada nível se articulam por justaposição, o que resulta em uma representação linear do
ritmo - é possível conceber representações polifônicas do ritmo, em que os eventos de um
mesmo nível temporal se relacionem por superposição ou por imbricação temporal. Para
uma melhor compreensão dessas diferentes possibilidades, é necessário analisar os tipos
elementares de relações temporais. Existem sete casos fundamentais de relações temporais
entre dois eventos: separação, justaposição, superposição, inclusão, início simultâneo,
fim simultâneo, início e fim simultâneos (fig.5). As combinaçõ es dessas relações básicas
permitem a formação de blocos temporais variados.
Figura 5 diferentes tipos de relações temporais entre dois eventos (LITTLE, 1993.)
As relações “separação” e “justaposição” são lineares, isto é, os blocos são sucessivos.
As demais relações são polifônicas, pois os blocos se superpõem em algum momento. Um
exemplo concreto pode elucidar a utilização desses modos de organização temporal. A
figura 6 (p.41) analisa o final do Concerto de Câmara, de Alban Berg (1925), sob o ponto
de vista das relações temporais entre blocos sonoros.
41
Figura 6 Concerto de Câmara (BERG, 1925), parte final
42
Nesse exemplo, Berg superpõe à ressonância do piano - bloco A - uma seqüência
de cinco blocos - B1 a B5 - executados pelos demais instrumentos. As relações entre os
blocos temporais B1, B2, B3, B4 e B5 é de separação. Por outro lado, esses blocos estão
incluídos temporalmente no bloco A. Observando internamente os blocos B1, B2, B3, B4
e B5, constatamos que eles se subdividem em dois subblocos, distintos quanto ao material
musical: os blocos Bx.1 apresentam um fluxo regular de semicolcheias, enquanto os Bx.2
apresentam gestos ritmicamente irregulares. Eles se relacionam temporalmente conforme
a tabela 2.
Tabela 2 relações temporais entre subblocos
B1.1 início simultâneo B1.2
B2.1 fim simultâneo B2.2
B3.1 fim simultâneo B3.2
B4.1 inclusão B4.2
Seguindo o mesmo raciocínio anterior, podemos novamente subdividir os blocos B1.1,
B1.2, B2.1 ... e B4.2 internamente, para observar os mo dos de relação temporais entre as
partes instrumentais. Como pode ser visto no exemplo anterior, esse modo de represen-
tação do tempo permite analisar os diversos níveis da estrutura formal segundo o mesmo
quadro de relações temporais.
A estrutura temporal se expande em níveis progressivamente mais amplos, desde o
agrupamento de pequenos blocos temporais às grandes seções formais que vão constituir
a macroforma de uma peça. O processo de composição pode se desenvolver, simultanea-
mente, em vários desses níveis temporais. Entretanto, por razões práticas, é interessante
definir limites, como pontos de referência iniciais do processo compositivo. Em razão disso,
a idéia de se partir de mapas temporais da forma (nível global) e dos tipos texturais (nível
43
local). Por um lado, segmentar uma duração determinada em seções e subseções; por
outro, aglomerar tipos texturais em seqüências, submeter essas seqüências a processos de
transformação e ocupar as durações definidas pelo planejamento temporal do mapa. Esse
procedimento composicional é descrito por Reynolds (2002). O autor define dois níveis
temporais extremos forma e material - que são interligados por níveis intermediários; o
método conduz do material à forma.
3.2 Mapa temporal da forma
No processo de composição, a imaginação pode ser dirigida por um planejamento
temporal prévio, por um mapa onde estão definidas as durações de seções e subseções.
O mapa temporal funciona como um espaço de possibilidades. À medida que vai sendo
ocupado, que suas seções vão sendo compostas, ocorre um conflito de forças entre o
material composto e o plano temporal. Por vezes, o conflito exige ajustes no plano, por
exemplo, aumentar todas as durações proporcionalmente. Todavia a presença do mapa
temporal pode ajudar na obtenção de um equilíbrio nas durações das diferentes partes
de uma composição. Por equilíbrio, entenda-se um jogo dinâmico de forças; por exemplo,
um mapa temporal com durações irregulares - seções curtas intercalando seções mais
longas - pode sugerir ao compositor valorizar as seções curtas com contrastes acentuados.
O mapa é uma representação espacial da articulação temporal da peça e sua seqüência
de blocos temporais pode orientar certas escolhas do compositor: como iniciar, como
terminar, como dosar o contraste entre seções seguidas, como retornar a idéias anteriores.
Um mapa temporal pode ser detalhado em vários níveis, definindo seções, subseções
e mesmo partes menores. Certas peças podem ser mais facilmente compostas com mapas
menos definidos, pois um grande detalhamento do mapa pode tornar-se obstáculo, trava.
Em outras peças, o detalhamento do mapa pode ser um estímulo à imaginação. De qual-
quer forma, diante do mapa, um conflito entre duração e forma sonora se estabelece para
o compositor. A necessidade expressiva age como um fluxo que atravessa os obstáculos
44
do plano temporal. O mapa constrange e estimula a imaginação que força seus limites
e, ocasionalmente, deforma o plano original. Esse jogo de forças enriquece a dimensão
expressiva da composição.
Uma das estratégias utilizadas na elaboração de um mapa temporal está na utiliza-
ção de uma ou mais séries numéricas para definir proporções entre as durações das seções
e subseções. A utilização musical da série de Fib onacci tornou-se recorrente no século
XX, principalmente a partir da difusão da obra de Bartók. Trata-se de uma alterna-
tiva às proporções regulares da quadratura clássica. Enquanto os compositores clássicos
utilizaram predominantemente divisões simétricas das seções, com a série de Fibonacci
pode-se alcançar uma grande irregularidade na segmentação formal. Essa série costuma
ser descrita como uma representação matemática dos processos de crescimento orgânico,
associada às formas espirais. Isso porque, nela, dois números consecutivos são somados
para determinar o próximo na seqüência: 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, etc. A série de
Fibonacci aproxima-se da proporção áurea
15
à medida que seus números crescem. Um
exemplo de utilização da seção áurea na música é a fuga da peça Música para percussão,
cordas e celesta (mov. I), de Bartók. A análise seguinte tratará as durações das seções a
partir do número de colcheias (pulsos), uma vez que os compassos variam de tamanho.
Figura 7 mapa temporal - Bartók
As articulações formais dessa peça estão definidas pelos seguintes eventos:
A proporção áurea divide um valor em duas partes desiguais que seguem a seguinte relação:
15
a/b =(a + b)/a. Se (a + b)=1 a =0.618 e b =0.382.
45
a. o ponto culminante [56]
16
marca a entrada de II;
b. em B [34], o tímpano é introduzido com um rulo pp;
c. em C1 [56], após o ponto culminante, iniciam-se as apresentações do tema invertido;
d. em C2 [65], strettos com o tema invertido;
e. em D1 [78], a celesta é introduzida, com um ostinato;
f. em D2 [81], interrompe-se a celesta.
A proporção áurea está presente (com aproximações) na articulação geral da forma.
A tabela 3 compara os valores da proporção áurea com os valores presentes na partitura.
(a) e (b) indicam as duas partes desiguais da relação áurea.
Tabela 3 durações em colcheias
seção seção áurea (a) seção áurea (b) partitura (a) partitura (b)
705 436 269 I(448) II(257)
I(448) 277 171 A(273) B(175)
II(257) 159 98 C(160) D(97)
C(160) 99 61 C2(98) C1(62)
D(97) 60 37 D2(63) D1(34)
Entretanto, a proporção áurea é apenas uma entre as inúmeras possíveis. Reynolds
(2002) utiliza, habitualmente, diferentes séries geométricas
17
ou logarítmicas, para deter-
minar as proporções temporais de suas formas. No exemplo seguinte (fig.8, p.46), pode-se
observar a articulação de um bloco temporal em proporções 23 : 10 : 4 : 1 : 2. O fator
[56] = compasso 56.
16
Séries geométricas são caracterizadas pela existência de um fator multiplicador k que separa os termos
17
consecutivos a: a
(2)
= a
(1)
k; a
(3)
= a
(2)
k; a
(n+1)
= a
(n)
k. A série é dita logarítmica quando
0 < k < 1.
46
multiplicador é um pouco maior que 2: 1 2 4 10 23 (o arredondamento elimina
as partes decimais dos valores). A seção maior é novamente subdividida pelas mesmas
proporções, mas com arredondamento para uma casa decimal: 23.5 : 10 : 5 : 1 : 2.
Figura 8 Reynolds (2002), Part II, p.2
Um modo diferente de organizar um mapa temporal a partir de proporções numéricas
pode ser ilustrado na figura 9.
Figura 9 mapa temporal de Unity capsule, de B. Ferneyhough (1995b)
O mapa está dividido em cinco níveis temporais:
a. o nível da grande forma apresenta três seções, marcadas por algarismos romanos (I,
II e III);
47
b. o segundo nível temporal apresenta nove seções, marcadas por algarismos arábicos
dentro de quadrados (1 a 9);
c. cada uma dessas seções é subdividida em um número de partes variável - de 2 a 7 -
que são marcadas por letras (a, b, c ...);
d. as três seções finais (7, 8 e 9) são subdivididas novamente e marcadas por algarismos
romanos minúsculos (i, ii, iii e iv);
e. as menores seções da forma são constituídas por agrupamentos de compassos variáveis,
tanto em número quanto em duração (1.a {4 3 2 6}, 1.b {75}, etc).
Nesse mapa, os números regem tanto as extensões temporais - duração dos compassos
nas menores seções - quanto os modos de agrupamento na forma. Por exemplo, as seções
1 a 4 são subdividas em 4, 3, 2 e 6 partes; as seções I a III são subdividas em 4, 3
e 2 partes. As mesmas proporções regem, portanto, diferentes aspectos da organização
formal. Para Ferneyhough, o objetivo da organização é estimular o mecanismo criativo
interno do compositor. Além disso, uma vez que o plano pré-ordena a forma, o material
local pode ser tratado com grande liberdade (FERNEYHOUGH, 1995b, p.101).
É importante observar que alguns compositores criticaram a utilização de processos
matemáticos no planejamento da forma musical. Para Lindberg:
trabalhei muito com proporções, mas, atualmente, é raro que eu defina relações
entre durações. Vou empregar voluntariamente uma metáfora termodinâmica: tenho
líquidos que misturo e que criam todos os tipos de turbulências e de interações. Não
concebo mais a composição como um agenciamento de blocos de durações proporcionais
e penso que a escritura tem mais a ver com fenômenos fluidos (apud SZENDY, 1993,
p.23).
Grisey também criticou a concepção geométrica do tempo e propôs uma abordagem
fenomenológica da dimensão temporal:
A revolução nos sons complexos ofereceu a Grisey uma base científica para discor-
dar do que ele chama de utopia da visão estática do tempo e sustentar um ponto de
vista teórico substancialmente difere nte do defendido por muitos músicos do século XX,
ligados a uma concepção geométrica da organização da forma. Sua crítica visou não ape-
nas às classificações abstratas de Boulez, relativas à técnica musical (tempo liso, tempo
estriado, etc.), mas, em um sentido maior, a qualquer forma de aplicação de proporções
matemáticas (seção áurea, série de Fibonaci, procedimentos estocás tic os, etc) - que são
48
irrelevantes fenomenologicamente, uma vez que a percepção do tempo não é absoluta
nem cronométrica - à estrutura temporal da composição (ORCALLI, 1990).
De acordo com Orcalli (1990), os elementos centrais da concepção temporal de Grisey
são os seguintes:
a. é inaceitável especular sobre o tempo musical sem se referir à sua relação com o
material sonoro. A ordem temporal é buscada no material sonoro, em sua natureza
evolutiva e flutuante;
b. o som é tomado como modelo para a música. As representações sonográficas (fig.10)
da evolução dos espectros sonoros no tempo tornam-se referências fundamentais para
a composição. Entretanto, para tornar audível a estrutura microscópica dos sons,
é necessário expandir o tempo, ou seja, prolongar as durações infinitesimais do som
tomado como modelo em durações muito mais longas;
Figura 10 exemplo de sonograma.
As linhas superp ostas indicam
sons parciais ou harmônicos
c. diferentes escalas (níveis) temporais: por um lado, os objetos sonoros resultam de
contrações temporais de processos; por outro, a expansão temporal dissolve os objetos
em processos contínuos. Objeto e forma são um mesmo fenômeno, observado em
49
diferentes escalas: daí a idéia de utilizar a microforma do som como modelo para a
macroforma de uma composição;
d. processos contínuos de transformação demonstram a natureza essencialmente tran-
sitória do som. uma valorização dos limiares sutis de variação.
Apesar das contribuições de Grisey à reflexão sobre o tempo musical, permanecem
resíduos de espacialização em seu tratamento do tempo: o ponto de partida da composição
são os sonogramas, representações visuais da evolução de espectros no tempo, realizadas
com auxílio de computadores; p or outro lado, a concepção de escalas temporais variáveis
está associada aos recursos de zoom sobre representações gráficas do som, nos softwares.
Ainda que o processo de organização temporal seja realizado de modo diferente, por
Grisey, não como abandonar completamente as conversões de tempo em espaço na
escritura
18
.
Um outro ponto que merece ser discutido é o fato de o discurso espectral buscar
legitimação na “natureza” sonora. O mergulho da escuta na dimensão microestrutural
do som foi possível graças à tecnologia digital que:
a. discretizou o contínuo tímbrico em amostras (samples)e
b. possibilitou a interpolação entre amostras, permitindo um alargamento temporal
19
.
Acessar a dimensão microscópica do som é, necessariamente, intervir nessa dimensão,
criá-la mesmo. O discurso espectral, por vezes, opõe uma “artificialidade” das técnicas
seriais - combinatória de parâmetros - a uma “naturalidade” dos processos espectrais,
que partem da “natureza” do som. Porém a natureza microestrutural do som é também
criada por um modo de pensar que elabora ferramentas e age sobre o real, constituindo-o.
mesmo um “resgate” das relações entre espaço e tempo em uma peça composta em uma fase posterior
18
da produção musical de Grisey - LIcône paradoxale (1994). Segundo o compositor, foram utilizadas as
proporções 3 : 5 : 8 : 12, presentes em um quadro de Piero della Francesca, na determinação do material
temporal (GRISEY, 1996).
basicamente duas técnicas digitais de expansão temporal: a síntese granular e a Phase Vocoder.
19
Todas as duas supõem uma fragmentação do som em unidades mínimas - o grão ou a janela FFT - que
permitem a expansão temporal por repetição temporal ou interpolação.
50
A criação artística sempre supõe uma indiscernibilidade entre o natural e o artificial. O
movimento espectral apoiou-se na crítica dos princípios seriais - com suas permutações de
natureza abstrata - e buscou uma reaproximação com o aspecto sensorial. Entretanto, a
relação com a sensorialidade está presente - de diferentes modos - em qualquer abordagem
composicional. O processo de composição sempre requer a interação de modelos abstratos
com a materialidade sonora: o concreto sonoro é abstrato, à medida que se organiza
em categorias perceptivas; por sua vez, o modelo abstrato reenvia à concretude, quando
se projeta sobre o material e o articula.
A seguir, apresento o mapa temporal da peça , para clarinete solo, de minha
autoria, organizada segundo as proporções da série de Fibonacci.
Figura 11 mapa temporal de pê (durações em segundos) (Obs: as
letras do gráfico não corresp ondem às letras de ensaio da partitura)
a. As seções I, II e III seguiam inicialmente as proporções 8 : 5 : 13. Foi necessário
estender o final por razões musicais, o que modificou - ligeiramente - as proporções
originais;
b. a seção I foi novamente subdividida pelas proporções 5 : 8, o que gerou A e B. C e D
permanecem idênticas à II e à III;
c. as subseções B, C e D foram novamente subdivididas pelas proporções 5 : 8, o que
gerou B1, B2, C1, C2, D1 e D2;
d. B1 e B2 foram subdivididos em duas partes que se entrelaçaram: B1 = B1.2 + B1.1;
B2 = B2.1 + B2.2. Enquanto B1.1 e B1.2 seguem as proporções 5 : 8, B2.1 e B2.2
51
são aproximadamente do mesmo tamanho. Essa foi uma decisão local, não planejada
anteriormente, mas definida no detalhamento da escritura. Um processo semelhante
se repetiu para C1 e C2 e para D1 e D2, que, entretanto, foram subdivididas em três
partes (D1.1, D1.2 e D1.3 // D2.1, D2.2 e D2.3), seguindo as proporções 5 : 8 : 13 ;
e. as maiores articulações (início de II e III) estão claramente marcadas por uma grande
respiração (letra E da partitura) e pelo ponto culminante (letra I da partitura);
f. as menores articulações estão realizadas por contrastes de andamento: a pulsação da
colcheia varia entre 88, 96, 108, 120 e 152. A continuidade de material e o andamento
asseguram a semelhança entre B1.1 e B1.2, B2.1 e B2.2, C1.1 e C1.2, etc. O entre-
laçamento dos materiais assegura, também, um contraste que impulsiona o discurso
musical.
3.3 Tipos texturais
Em nível local, o material musical se diferencia pela presença de traços expressivos
heterogêneos: figuração rítmica, organização harmônico-intervalar, perfil melódico, regis-
tro, dinâmica, modos de articulação, densidade, timbre e, eventualmente, outras caracte-
rísticas do comportamento sonoro. Os tipos texturais se caracterizam pelos modos de
interação desses traços formais elementares: como se dispõem os sons no tempo - simul-
taneidade ou sucessão -, como se relacionam no espaço harmônico, como se organizam
em perfis dinâmicos, como se configuram ao redor de acentos, como se agrupam em sub-
conjuntos - em blocos ou como uma superposição de fluxos parcialmente independentes.
Os tipos texturais são multiplicidades, conjuntos de traços expressivos.
O exemplo seguinte (fig.12, p.52) revela características gerais de diferentes tipos
texturais. O compositor combinou gráficos a descrições textuais para definir seus tipos
sonoros, que sofrem variações e retornam em diferentes momentos da peça. Nesse caso
específico, os tipos texturais foram definidos por regras gerais que definem seu comporta-
mento rítmico, melódico, articulatório e dinâmico. uma indefinição das alturas abso-
52
lutas e das durações exatas, o que permite uma adaptação flexível a diferentes contextos
locais.
Figura 12 tipos texturais (REYNOLDS, 2002, Part II, p. 49)
A figura 13 (p.53) ilustra a presença de alguns dos tipos texturais acima ilustrados na
partitura de Variation, de Roger Reynolds (1993).
Boulez (1972, p.116) classifica os tipos texturais segundo a dimensão temp oral -
horizontal, vertical e diagonal - e segundo o modo de emprego das estruturas - individual,
coletivo. A partir de combinações dessas categorias chega a uma classificação dos tipos
texturais fundamentais. Por exemplo, a monodia pertence à ordem horizontal-individual;
a polifonia requer uma distribuição diagonal, podendo agir sobre figuras - individual - ou
sobre conjuntos de estruturas - coletivo. Essa classificação de Boulez prioriza, claramente,
os parâmetros altura e duração, estando apoiada na noção - ampliada - de “voz”. Para
Boulez,
53
Figura 13 primeira página de Variation, de Roger Reynolds - segundo sistema
54
uma voz se considerará daqui em diante como uma constelação de acontecimentos
que obedece a um certo número de critérios comuns, uma distribuição num tempo móvel
e descontínuo, que segue uma densidade variável, por um timbre não homogêneo, de
famílias de estruturas em evolução. Estas constelações, estas distribuições serão respon-
sáveis umas pelas outras, especialmente no que diz respeito a suas alturas e durações;
[...] A dinâmica e o timbre introduzirão as tolerâncias necessárias (p.131-132).
Xenakis (1963, p.18) havia criticado a noção de “voz” em algumas texturas da
música contemporânea e prop osto outros modos de organização estatísticos - como as
nuvens ou massas estocásticas:
A polifonia linear destrói a si mesma por sua complexidade atual. O que se ouve
realmente é uma dispersão de notas em registros variados. A complexidade enorme im-
pede a escuta de seguir o encadeamento das linhas e tem como conseqüência macroscópica
uma dispersão irracional e fortuita dos sons sobre toda a extensão do espectro sonoro.
Há, portanto, contradição entre o sistema polifônico linear e o resultado, ouvido como
superfície ou massa. Essa contradição, inerente à polifonia, desaparecerá quando a inde-
pendência dos sons seja completada. Com efeito, uma vez que as combinações lineares e
suas superposições polifônicas não sejam mais operantes, o que contará será a média es-
tatística dos estados isolados e das transformações dos componentes em um estado dado.
O resultado macroscópico poderá ser, então, controlado pela média dos movimentos dos
objetos escolhidos por nós. Disso resulta a introdução da noção de probalidade, que,
por sua vez, implica o cálculo combinatório. Eis, em poucas palavras, a ultrapassagem
possível da “categoria linear” do pensamento musical.
Entretanto, Boulez insiste na importância da categoria de “voz”, considerando que
sua prematura eliminação havia conduzido a um empobrecimento, a uma “sucessão de
estados dos quais toda dialética fundamental está excluída”(1972, p.131). Por isso,
constrói sua classificação textural sobre a noção de “vozes”: “dois ou vários fenômenos
evoluindo independentemente um do outro, sem deixar de manter entre si uma respons-
abilidade”(p.131).
A classificação de Boulez é abrangente, mas se aplica apenas às estruturas com-
plexas, aos níveis hierárquicos onde os elementos estão organizados em fluxos lineares
ou “vozes”. Para analisar a textura local - as regras de organização formal dos elementos
básicos - é necessário adotar um diferente enfoque sobre a questão e analisar os tipos
texturais a partir das forças que operam sobre o material em nível local, o que implica
seleção dos traços expressivos mais relevantes. Os tipos texturais se definiriam, então,
enquanto combinação de quaisquer traços expressivos. Assim, por exemplo, Ferneyhough
55
(TOOP, 1994 p.163) caracteriza seus tipos texturais por vários fatores como figuração,
densidade, timbre, articulação e nível de atividade. Na peça Carceri dInvenzione II,
cada grupo de instrumentos tem seus próprios tipos texturais:
a. polifonia ornamentada, altamente microtonal;
b. glissandi;
c. glissandi cordas duplas;
d. seqüências rápidas com múltiplas interrupções;
e. figuras angulosas com múltiplas interrupções;
f. legato, linhas serpeantes, som recolhido;
g. ostinato ou repetição de figura com variações (“perturbações”);
h. figuras que “reagem” umas às outras - súbita troca de figuras.
Os tipos texturais apresentam-se como combinação de múltiplos traços expressivos.
São modelos, pois definem tipos de comportamentos sonoros que sofrem variações nos
diferentes momentos em que retornam. Devido à sua natureza múltipla, nos tipos textu-
rais, podem ser distinguidas uma dimensão onde se diferenciam seus traços expressivos e
formais - seu nível local - e uma dimensão envolvente, que abrange uma janela temporal
mais larga - seu nível global. Isso nos conduz à distinção entre gesto e envelope.
3.4 Gesto
Devido à natureza heterogênea dos tipos texturais, alguns de seus traços expressivos
podem convergir e se destacar, diferenciar-se. Nesse caso, refiro-me a gestos: os gestos
apresentam linhas de força delineadas com clareza e se recortam do contexto sonoro.
Caracterizam-se, freqüentemente, por uma expressividade mais codificada, por uma espé-
cie de carga semântica trazida da história. Semântica aqui se refere fundamentalmente a
afetos, à evocação de estados emocionais. Nesse sentido, pode ser interessante qualificar
os gestos com adjetivos como enérgico, impetuoso, frágil, indeciso, delicado, etc. Os gestos
56
criam tensões locais, impõem direcionalidades e estriam a superfície sonora com linhas
de força expressivas.
Figura 14 sucessão de gestos claramente diferenciados, no
início de Anthèmes I, para violino solo (BOULEZ, 1992).
Para Delalande (2003), uma continuidade entre a experiência sensório-motora e
a expressão musical. Na música ocidental, a representação do movimento pode ser con-
siderada uma das bases do sentido musical, especialmente dos afetos. Esse autor propõe
diferenciar alguns aspectos do gesto musical:
a. o gesto físico de produção do som;
b. o gesto “que segue”;
c. o gesto “sugerido”.
O gesto de produção sonora se estabelece sobre uma base sensório-motora. O intér-
prete está sempre acomodando seu gesto ao som que ele percebe com seu corpo - não
apenas com os ouvidos, mas também com as mãos, os braços, o tronco, etc. O gesto
que “segue” acompanha o gesto de pro dução sonora emb ora não entre diretamente na
produção. Esses gestos têm uma função expressiva e contribuem para modificar o es-
tado mental do intérprete; por exemplo, a respiração é muito importante durante o gesto
instrumental de pianistas ou violinistas, mesmo que estes não necessitem de ar para pro-
duzir o som. O gesto “sugerido” reconstrói um movimento imaginário; por exemplo, um
som que “sobe”, ou que se torna “mais leve”. Por vezes, o gesto de execução se dissocia do
gesto sugerido, ainda que a caracterização do sentido musical esteja baseada na experiên-
cia sensório-motora. Neste texto, o termo gesto será utilizado de acordo com a definição
57
de gesto sugerido de Delalande. Gesto é um movimento no espaço musical sugerido pela
escuta e que está associado a uma expressividade particular.
Alguns compositores estabeleceram relações entre as categorias gesto e figura. Fer-
neyhough refere-se à figura como o potencial de desdobramento do gesto. O autor critica
uma concepção “holística” do gesto - que trata o gesto sempre de maneira integral, em
função de seus afetos codificados - e propõe uma exploração de seus subcomponentes:
Um gesto cujas características definidoras - timbre, perfil melódico, nível dinâmico,
etc - exibem uma tendência para escapar do contexto específico e se tornar radicais
significativos independentes, livres para recombinar, para “solidificar” em novas formas
gestuais pode, por falta de outra nomenclatura, ser chamado figura (FERNEYHOUGH,
1995a, p.26).
O texto acima está centrado em uma crítica à abordagem composicional neo-romântica,
que se detém na expressividade intrínseca ao gesto. Para Ferneyhough, é necessário ul-
trapassar a superfície imediata do gesto através de sua dissolução em processos musicais
que conduzem a novas configurações gestuais. Por isso, recorre à distinção entre gesto e
figura.
Para Nicolas (1995),
gesto é o momento musical concreto, com sua diversidade própria de estruturas.
Figura é a estrutura topológica subjacente e geral, que pode ser comum a muitos gestos
concretos diferentes.
A figura definiria uma dimensão abstrata - caracterizada por um conjunto de traços
determinados - que possibilita a criação de um conjunto variado de gestos. Por exemplo, a
figura “em cruz”, caracterizada pela superposição de um accelerando e um rallentando rít-
micos, permite criar gestos com movimentos fluidos. O gesto seria, então, a manifestação
local de uma figura, que poderia assumir diferentes aparências.
Apesar das considerações acima, considero desnecessário distinguir gesto e figura no
contexto deste trabalho. Por um lado, o gesto será sempre tratado como multiplicidade,
como coesão de traços expressivos que podem se separar e se recombinar de modos dife-
rentes. Nesse sentido, minha utilização do termo gesto abarca as significações de gesto
58
e figura em Ferneyhough. Por outro lado, o termo gesto estará sempre supondo uma
caracterização genérica - sua estrutura topológica, chamada de figura, por Nicolas -
que permite o agrupamento de gestos particulares em classes. O que Nicolas define
como figura aproxima-se de minha definição de modelo: uma estrutura genérica que se
singulariza quando se projeta em um contexto específico. A figura “em cruz”, de Nicolas,
é um modelo abstrato que se projeta sobre um determinado material musical e cria uma
variedade de gestos “fluidos”.
A importância do conceito de gesto na literatura musical recente está associada à
crise da idéia de construção integral do material musical, defendida por alguns composi-
tores serialistas nas décadas de 1950 e de 1960. A idéia de se organizar o material desde
o nível mínimo - no caso da música instrumental, o “ponto”, menor conjunção física dos
parâmetros elementares; no caso da música eletrônica, o próprio espectro tímbrico - en-
trou em crise, pois as permutações automáticas dos parâmetros não conduziam à riqueza
pretendida, mas a situações muito semelhantes e inexpressivas. O choque inicial das tex-
turas pontilhistas foi aos poucos assimilado e tornou-se clichê. A reintrodução do gesto
na técnica composicional oferecia uma saída ao impasse, pois era uma oportunidade de
compor a partir de elementos formais dotados de carga expressiva. O gesto reúne com-
binações paramétricas que o organizam enquanto conjunto expressivo. Um exemplo dessa
mudança de enfoque é descrito por TOOP (1994): enquanto na fase inicial do serialismo
os parâmetros eram freqüentemente tratados como variáveis independentes, no trabalho
de Ferneyhough “os parâmetros quase sempre agem e interagem como partes de uma
unidade orgânica, com nítida intenção processual” (p.164). O gesto, graças às suas linhas
de força expressivas, assegura uma organização básica do material, agrupando e direcio-
nando seus parâmetros. Quanto aos afetos associados aos gestos, além da relação direta
com a dimensão sensório-motora, é importante reconhecer que uma carga expressiva
que vem da história do material, do modo como determinadas constelações sonoras foram
ouvidas em outros contextos musicais. O material sempre retém um “resíduo” expressivo
de seu passado que é fundamental para sua escuta. Por isso, na composição de gestos não
59
se pode restringir à dimensão paramétrica do material, sendo necessário considerar sua
carga expressiva latente, que é trazida pela história de sua escuta.
Enquanto elemento que se destaca de um contexto sonoro, o gesto se apresenta
superposto a outros elementos menos diferenciados: uma relação de figura-fundo entre
o gesto e seu entorno textural. Esse fundo pode ser constituído tanto por sonoridades
mais homogêneas, quanto pela ressonância dos sons recém-ouvidos ou mesmo do silêncio
que cerca o gesto sonoro. Ligeti (2001, p.140) diferencia os planos de figura e fundo
recorrendo a outros termos, respectivamente “estrutura” e “textura”:
Enquanto deve-se compreender por estrutura um conjunto mais diferenciado, onde
é possível distinguir os componentes e que pode ser considerado produto da interação
desses componentes, entende-se por textura um complexo mais homogêneo e menos ar-
ticulado, no qual os elementos constitutivos fundem-se quase totalmente. Uma estrutura
se analisa em função de seus componentes; uma textura se descreve melhor com auxílio
de características globais e estatísticas.
Neste texto, utilizo o termo gesto para as estruturas claramente diferenciadas que se
destacam de um contexto textural. Para o estudo dos “planos de fundo”, é preciso recorrer
à evolução das características globais dos tipos texturais, ou seja, a seus envelopes.
3.5 Envelope
O desdobramento do material musical no tempo expande o nível temporal da micro-
forma em direção à macroforma. Em seu percurso expressivo, o material ora cresce como
um cristal, ora prolifera como a erva daninha
20
: a associação de segmentos de tipos tex-
turais conduz à organização de trechos musicais mais ou menos extensos; na hierarquia
temporal, esse é o nível das seções formais.
A consistência de uma seção é assegurada pela manutenção de certas características
globais como:
[...] a forma musical, até em suas rupturas e proliferações, é comparável à erva daninha, um rizoma”
20
(DELEUZE, 1995, p.21)
60
a. repetição de um conjunto particular de gestos e de tipos texturais;
b. presença de determinados traços expressivos envolvendo todo o conjunto de gestos e
tipos texturais - por exemplo, um andamento ou uma região delimitada do registro;
c. presença de um processo musical de transformação que conduz a diversidade hete-
rogênea de elementos a uma direção clara de desenvolvimento.
Boulez (1986) utiliza o termo envelope para designar a presença de características
globais que asseguram a continuidade de uma seção: “o envelope é o que individualiza um
desenvolvimento e permite dar a ele um perfil particular no desenrolar da obra” (1986,
p.101). O envelope pode ser “um registro, um timbre único ou uma combinação de timbres
constante, uma dinâmica privilegiada, um andamento, um filtro aplicado às alturas, uma
constante rítmica”. Essa definição de envelope é uma expansão do significado habitual
que esse termo recebe na acústica: curva que descreve a variação da intensidade de um
som no temp o. O envelope “envolve” globalmente o som no tempo e lhe um perfil
dinâmico; daí a idéia bouleziana de estender o sentido original do termo envelope ao
conjunto de aspectos que definem - “envolvem” - o comportamento global de uma seção
formal. O envelope resgata a noção deuleuziana de linha e a expressão do contínuo em
contraposição a uma concepção formal baseada na justaposição de blocos desligados.
Retornando ao exemplo (fig.15) extraído do início de Anthèmes I, para violino solo
(BOULEZ, 1992), podemos observar a presença de um envelop e agrupando os gestos
contrastantes: a nota D
4
está polarizada - por repetição - e estabelece um eixo harmônico
comum aos diferentes gestos.
Figura 15 envelope gerado pela polarização sobre a nota D
4
.
61
Com relação à sucessão de envelopes no tempo, Boulez (1986) diferencia duas situações
típicas:
a. o contraste entre envelopes sucessivos cria uma relativa descontinuidade formal entre
as seções;
b. uma “modulação” do envelope - modificação progressiva de suas características globais
- conecta seções sucessivas em um processo contínuo de transformação. Uma grande
diversidade de situações formais e expressivas - alcançada por um deslocamento no
eixo continuidade/descontinuidade - pode ser obtida através de uma graduação no
contraste entre envelopes sucessivos.
Outra característica importante do envelope é a sua presença em múltiplos níveis
temporais. Assim, envelopes que dão consistência a seções formais ou a grupos de
seções e, eventualmente, pode haver um envelope que envolva toda a macroforma da
peça: o envelope descreve a globalidade do movimento.
3.6 Gestos e envelopes em pê
A seguir, procuro ilustrar - e esclarecer - os conceitos gesto e envelope através da
análise do início de minha peça , para clarinete solo.
Os gestos básicos da primeira seção de estão marcados na figura acima. Podem
ser agrupados em três tipos principais: notas longas, de natureza estática; movimentos
rápidos com perfil ondulante, de natureza dinâmica; pausas de durações variáveis, com
dupla função de separação de gestos e criação de tensões/expectativas
21
.
Por sua vez, os gestos marcados se diferenciam em subcategorias que criam variações
no material:
Considero as pausas como gestos, pois a imobilidade se destaca - ou s e recorta - em um contexto dinâmico.
21
62
Figura 16 início de
a. a1 apenas uma nota longa;
b. a1.2 duas notas longas seguidas;
c. a2 ataque sfz com repetição de notas, sempre precedendo a1 ou a1.2;
d. a2.2 seqüência de vários ataques sfz;
e. b1 perfil ondulante com dinâmica predominantemente pp;
f. b2 variação de b1 com frullato e dinâmica mais forte.
Observando a seqüência de gestos apresentados na primeira seção de , é possível
identificar traços de regularidade e agrupá-los segundo um modelo de tipo seqüencial:
a b c. Essa mesma seqüência se repete, seguidamente, em seis variações. Na tabela
4, as colunas indicam as três etapas do modelo, enquanto as linhas indicam as seqüências
de gestos da partitura.
Algumas observações gerais sobre a tabela acima:
a. as pausas foram diferenciadas em c1 e c2 indicando, respectivamente, pausas internas
ao gesto b e pausas de finalização da seqüência a b c;
b. na terceira seqüência, c2 foi omitido;
63
Tabela 4 seqüências do tipo a b c
a b c
1 a1 b1 c1 b1 c2
2 a1 b1 c1 b2 c2
3 a2 a1 b1 -
4 a1 b1 b2 c1 c2 c2
5 a2 a1.2 b1 b2 c2
6 a2.2 a1 b1 c1 b1 c1 b2 c1 b2 c2
c. as colunas relativas ao elementos a e b mostram as diversas variações que eles recebem;
d. na coluna b pode ser observado que b2 sempre vem depois de b1;
e. pode-se observar um aumento geral de complexidade das variações no decorrer da
seção.
Outro aspecto importante nesta primeira seção é o perfil melódico dos gestos do tipo
b. dois tipos básicos de perfis, zig-zag e linear. Os perfis zig-zag são caracterizados
pela alternância de intervalos ascendentes e descendentes. É o caso da primeira aparição
de b1 (fig.17).
Figura 17
os últimos gestos do tipo b, desta seção, apresentam vários intervalos na mesma
direção (fig.18).
64
Figura 18
uma evolução dos perfis do tipo zig-zag para o linear no decorrer da seção,
através do aumento do número de intervalos na mesma direção. Essa evolução é reforçada
por outra no registro melódico. Observando as notas mais agudas de cada trecho da seção
inicial (fig.19, p.64), pode ser detectada uma evolução ascendente do registro:
Figura 19 evolução do registro para o agudo
As notas marcadas na figura 19 - Bb
2
/B
2
/C
3
/B
2
/Db
3
/D
3
/D#
3
/G
3
/A
3
/B
3
/D#
4
-
indicam a evolução do registro para o agudo. Esses processos globais de evolução dos
perfis e do registro são envelopes que reforçam a consistência da seção e direcionam o
fluxo musical.
65
um detalhe que esclarece, ainda mais, a coesão das duas seções iniciais de .
Trata-se do gesto em arco (fig.20) que é apresentado na segunda seção de (letra A da
partitura):
Figura 20 gesto em arco - “onda”
Esse gesto é preparado desde a primeira seção, por expansões locais do perfil melódico,
o que pode ser visto na figura 21:
Figura 21 fragmentos ondulantes extraídos da primeira seção de
Como pode ser observado na análise anterior, na composição de , a sucessão dos
gestos musicais é organizada - ou modelada - por alguns envelopes particulares que fa-
vorecem a consistência formal através do direcionamento do fluxo musical no tempo.
66
4 ESCUTA E ESCRITURA
4.1 Segmentação e fusão na escuta
Como decompor uma representação musical nas partes apropriadas? Quais são os blo-
cos de construção, os elementos primitivos de tal representação? [...] Parece haver um
consenso geral sobre a noção de elementos singulares (por exemplo, eventos sonoros ou
objetos) como os primitivos da música. [...] A questão essencial de quais são esses ele-
mentos ou “fonemas” ainda não foi respondida. [...] Passando-se de um sinal contínuo
a um sinal discreto perde-se informação. [..] ambos tipos de informação, a contínua e a
discreta, são necessárias e provavelmente interagem entre si. Assim, em seguida à decom-
posição, é muito importante a questão da caracterização dos primitivos da representação
como contínuos, discretos ou uma combinação dos dois tipos (HONING, 1993).
No texto acima, Honing destaca a importância de se incluir, na fragmentação do
texto musical, tanto unidades discretas quanto processos contínuos. Além disso, observa
que a definição dos “primitivos” da segmentação não p ode ser feita de um modo unívoco.
A busca das unidades elementares da composição musical levanta diversos problemas.
Não como segmentar além de um limiar sem perder justamente o fator de consistência
que caracteriza expressivamente o material. Por outro lado, não um limite absoluto
no processo de segmentação. Ainda que considerássemos a nota como o menor elemento,
isso se daria apenas no nível da partitura, pois a própria nota é, em si, um corpo
sonoro com um perfil de ataque, ressonância e queda na intensidade sonora, ou seja, uma
nota contém um processo temporal microscópico. As técnicas de orquestração visam,
justamente, criar combinaç˜ees sutis de instrumentos que possibilitem variações nesses
processos microtemporais: por exemplo, o emascaramento de ataques ou a transformação
progressiva no timbre de sons sustentados. Não se trata de atomizar o material musical
- mesmo porque sua natureza temporal sempre lhe asseguraria um limiar de variação
mínima - mas de observar como o material adquire consistência.
No fluxo musical, sempre dois movimentos opostos: um de articulação e dife-
renciação de objetos; outro de dissolução dos limites dos mesmos objetos em um fundo
67
amorfo contínuo.
22
É um jogo que se estabelece entre um tempo que p ermanece e sustenta
o momento - a duração do objeto percebido - e outro tempo incessante que flui, flecha
instantânea entre um passado fugidio e um futuro incerto. A escuta apreende blocos de
tempo como objetos, mas, ao mesmo tempo, dissolve esses objetos em múltiplas linhas
temporais. Embora o gesto apresente forças centrípetas que o organizam internamente
e que o recortam de seu contexto, também forças centrífugas que o explodem, que o
difratam em subcomponentes ou em traços expressivos de um material não inteiramente
formado. Nesse estágio molecularizado, o material se apresenta como um campo de forças
instáveis que, por alguns momentos, se coagulam em formas temporárias.
Essa “coagulação” formal instável é determinada por um processo de redução na
escuta, denominado “finitude retencional” pela tradição fenomenológica (STIEGLER,
1994). Diante da multiplicidade inabarcável de traços expressivos, a escuta codifica o
fluxo musical dando consistência a um conjunto restrito de elementos: forma-se uma
imagem mental do momento sonoro, uma espécie de “mapa” orientador que territorializa
o sonoro. Um mapa nunca se identifica com o território que ele mapeia. Ele apenas
organiza o território através de uma redução, determinando pontos de referência e rotas de
conexão. No caso da escuta musical, o “mapa perceptivo” configura gestos, tipos texturais
e envelopes - pontos de referência e modos dinâmicos de conexão. Basta uma modificação
sutil das referências que o mapa se transforma; em conseqüência, a instabilidade da escuta.
A natureza do tempo musical é complexa, não se adaptando à clássica representação
de uma seta dirigida do passado ao futuro, onde o presente se reduz a um ponto no con-
tínuo temporal. Para que haja escuta, é preciso sustentar o tempo e relacionar passado,
presente e futuro; é preciso construir um sentido a partir dos dados da memória, da sen-
sação imediata e da expectativa. A escuta abre “janelas” temporais - contextos musicais
“Em seu ser mais profundo, o mundo é caos, ou melhor, uma mistura extraordinariamente complexa
22
de elementos dispersos e de relações ordenadoras em que, ora é a tendência sintética à composição que
prevalece, ora, ao contrário, é a pressão centrífuga de desagregação que se afirma, ora, enfim, são esses
movimentos diferentes que se combinam criando equilíbrios frágeis” (DELCÒ, 1998, p.41).
68
com durações variáveis - integradas por algum tipo de envelope e, nelas, recorta alguns
elementos privilegiados - os gestos - assim como qualifica os planos de “fundo” textu-
rais. Por sua vez, a partir das relações encontradas entre os elementos selecionados nas
“janelas” sucessivas, a escuta constrói, progressivamente, um mapa do território sonoro.
4.2 As quatro escutas de Schaeer
A reflexão de Schaeer (1966) sobre a escuta tornou-se referência para a literatura mu-
sical contemporânea. O autor apoiou-se na fenomenologia de Husserl e criticou as posições
estruturalistas dominantes no meio musical de então. Os estruturalistas voltavam-se às
estruturas objetivas do material musical através da análise das relações formais entre os
elementos da partitura, esquecendo-se da escuta. Para Schaeer, era imprescindível res-
gatar a escuta; daí a necessidade de uma crítica fundamental às posições dos que tomavam
a partitura como referência primeira para o estudo da música. Buscando reintegrar o “su-
jeito” na escuta, Schaeer elaborou as noções de “objeto sonoro” e “escuta reduzida”. O
“objeto sonoro” é sempre objeto de uma escuta. a “escuta reduzida”:
consiste em exercitar a escuta dos objetos sonoros desligando qualquer referência
que não seja exclusivamente pertinente às características “internas” do objeto escutado:
seus critérios de percepção. Schaeer estabeleceu dois tipos de critérios em interseção:
os de forma, descrevendo evoluções temporais sobre o fundo dos critérios de matéria,
que, por sua vez, descrevem as qualidades imediatas, espaciais, dos sons. Os critérios de
forma são descritos como perfis: melódico (para referir modificações na altura), dinâmico
(para a intensidade) e de massa. Os de matéria examinam as qualidades desta massa:
sua densidade, espessura e complexidade (o lado oposto à “tonicidade” dos sons tônicos
de altura definida dos instrumentos musicais); avaliando ainda sua “aura”: o timbre
harmônico emanado em determinadas massas. Na região limiar entre forma e matéria
encontram-se dois outros critérios: o grão, que descreve a experiência limítrofe entre
pulso espaçado (temporal) e diferentes rugosidades ou outras qualidades quase táteis
(espaciais) da massa; e a allure, o modo de “andar”, a “andadura” (do verbo aller) do
objeto sonoro, isto é, modos ondulatórios de se locomover, tais como o vibrato (allure de
altura), o tremolo (allure dinâmica) e uma allure de massa (CAESAR, 2000).
Para que a percepção pudesse voltar-se às características “internas” do som - para
que fossem afastadas as noções de causalidade/origem sonora e para que os sons fossem
libertados das associações habituais com os códigos musicais correntes - Schaeer apoiou-
69
se na teoria das quatro escutas. diferentes atividades da consciência na escuta que
podem ser representadas, esquematicamente, segundo a figura 22.
4. COMPRENDRE
para mim: signos
diante de mim: valores
(sentido, linguagem)
emergência de um conteúdo do som,
referência a noções extra-sonoras
1. ÉCOUTER
para mim: índices
diante de mim: eventos exteriores
(causa, instrumento)
emissão do som
*
plano
objetivo
*
3. ENTENDRE
para mim: percepções qualificadas
diante de mim: objeto
sonoro qualificado
seleção de aspectos
particulares do som
2. OUÏR
para mim: percepções brutas,
esboço do objeto
diante de mim: objeto sonoro bruto
recepção do som
*
plano
subjetivo
*
cultura natureza
Figura 22 as quatro escutas (SCHAEFFER, 1976, p.190)
As quatro escutas são contituídas a partir de duas oposições estruturais: cultura -
natureza e objetividade - subjetividade. A escuta reduzida supõe um movimento contrana-
tureza e contracultura, buscando o objeto sonoro “em si” (contemplação desinteressada
e descondicionamento dos hábitos culturais da escuta). A noção do “em si”, presente
na “escuta reduzida”, remete à idéia husserliana de “essência”. Para Schaeer, a escuta
reduzida desvelaria as “essências” dos objetos sonoros, ou o “conjunto de característi-
cas universais dos múltiplos objetos possíveis à escuta” (OLIVEIRA, 2008). Com isso,
Schaeffer esperava descobrir um sistema de categorização absoluto ou “uma descrição
para a percepção de todo o possível acústico em meios fenomenológicos, que pudessem
ser estendidos a qualquer indivíduo” (OLIVEIRA, 2008). Entretanto, o que obteve foi
uma forma especializada de escuta - a tipomorfologia - que necessita ser aprendida e
70
exercitada. A tipomorfologia schaeeriana pode ser vista como um quadro de modelos
microformais voltados à categorização dos objetos sonoros.
Apesar de Schaeer tratar a noção de objeto sonoro enquanto “objeto de uma es-
cuta”, ou seja, reforçar a conjunção sujeito/objeto no ato de percepção, ao utilizar o
quadro das quatro escutas, pressupôs um mundo objetivo e um sujeito trancendental
anteriores ao ato perceptivo. A separação estrutural entre cultura/natureza e objetivi-
dade/subjetividade reflete uma concepção dualista-cartesiana incompatível com as con-
cepções atuacionistas (enação) de percepção, em que é valorizada a indiscernibilidade
entre os pólos corpo/mente, sujeito/objeto, natureza/cultura. Não se trata, portanto, de
buscar o “em si” do objeto sonoro, mas de abrir a escuta para características sonoras não
representadas pela escritura tradicional. A “reescuta” - possibilitada pelas novas tecnolo-
gias de gravação do som - trouxe à superfície da percepção novos elementos e novas forças
microformais que requisitaram novos modos de representação musical. As investigações
de Schaeer contribuíram para uma nova racionalidade no campo da teoria musical.
4.3 As três escutas de Nicolas
Nicolas (2000) procurou ultrapassar a concepção estruturalista da escuta, diferen-
ciando percepção, audição e escuta. A percepção é uma atividade de discernimento de
entidades e separação de objetos do contexto. A audição é uma atividade de compreensão
da forma global, integração de inumeráveis percepções elementares. Seria uma apreensão
estrutural, pela qual o ouvinte busca compreender a obra em sua totalidade, à medida que
ela transcorre. Percep ção e audição têm traços comuns. São operaç˜ees de objetivação:
trata-se de se situar em face de um material sonoro para dotá-lo de uma consistência. Es-
sas operações colocam em jogo alguns saberes. Enfim, tanto a percepção como a audição
são operaç˜ees repetíveis ad libitum.
A escuta não compartilha essas características. Em primeiro lugar, a escuta não
é uma objetivação. Trata-se com efeito, não de um objeto mas de um sujeito, não
71
de saberes mas de uma verdade e se poderia acrescentar: não da essência objetiva de
uma obra mas de sua existência subjetiva. Musicalmente se diria: na escuta, trata-se de
relação de aderência à obra que anula o face a face da apreensão competente e objetivante.
Escutar uma obra não é examiná-la, pesá-la, julgá-la, avaliá-la. É muito mais aderir a
ela, incorporá-la, assumi-la e sustentá-la no tempo de sua exposição (NICOLAS, 2000,
p.150-151).
A escuta não é um entendimento ou uma compreensão. Não se trata de utilizar
saberes em uma escuta. Um saber se recebe, se compreende, se transmite. Mas a escuta
não tem nada a ver com a comunicação, nem com a emissão, nem com a recepção. Não
também um sab er da escuta que permitiria dominá-la. A escuta é irrepetível, singular
e sem garantias. Seria melhor considerá-la uma experiência.
Chama-se moment favori
23
o momento da obra em que alguma coisa que abre a
experiência de uma escuta se passa. Esse momento não é uma objetivação, não consiste em
perceber alguma coisa até então desapercebida. Nele, a obra revela uma nova capacidade
até então, não-exposta. A escuta nasce de um modo inesperado. Diferentemente da
percepção e da audição, a escuta supõe uma atenção flutuante, adequada à apreensão
dessa “alguma coisa que passa”: muita atenção impede a observação da pequena diferença
que surge à margem do discurso; pouca atenção deixa tudo passar ao lado.
O ouvinte não escuta a obra; ele se adere a ela, empresta seu corpo à intensidade
musical trazida pela obra. Seria melhor dizer que a obra escuta. Isso porque a escuta
se abre a partir da potencialidade da obra que se desvela - ou não - em um moment
favori. Esses momentos não podem ser controlados pelo compositor, mas também não
são completamente arbitrários. São pontos especiais da obra que têm essa potência de
abrir a escuta a partir de uma atenção flutuante. “O moment favori é uma brecha da
obra em direção ao que a excede, mais do que uma apropriação momentânea, pela obra,
do que ela visa” (NICOLAS, 2003/2004, p.47).
Ou moment-faveur.
23
72
Nicolas concebeu a escuta como um suplemento, algo que se agrega à apreensão
da estruturação sonora. Ela é um desvelamento temporal do que ele chama de “idéia
musical”: “a obra visa à idéia musical, mais do que ao efeito sonoro; a obra atravessa a
matéria sonora para atingir algo além do som” (NICOLAS, 2003/2004, p.51). Voltamos,
assim, a uma questão antiga: música de formas puras ou música como expressão de
emoções e pensamentos? Construtivismo ou expressionismo? O problema é que, se nos
afastamos do sonoro, entramos em um mundo subjetivo. Entretanto, se não caminho
de volta dos meandros da experiência interior às formas sonoras, é grande a força musical
de irradiação que nos conduz do sonoro para além dele. Deleuze insiste na importância
de não nos determos nas formas:
Em arte, na pintura como na música, não se trata de reproduzir ou de inventar
formas, mas de captar forças. [...] A tarefa da pintura é definida como a tentativa de
tornar visíveis as forças que não o são. Do mesmo modo a música se esforça para tornar
sonoras as forças que não o são. [...] A força es tá em relação estreita com a sensação: é
necessário que uma força se exerça sobre um corpo [...] para que haja s ens ação. Mas se
a força é a condição da sensação, não é ela que é s entida, pois a sensação “indica” outra
coisa a partir das forças que a condicionam. Como a sensação poderia voltar-se sobre
si mesma, deter-se ou se contrair, para captar no que ela nos as forças não dadas,
para fazer sentir as forças insensíveis e se elevar a suas próprias condições ? É assim
que a música dever tornar sonoras as forças não-sonoras, e a pintura, visíveis, as forças
invisíveis. (DELEUZE, 2002, p.57-58).
4.4 Escuta e escritura
Num primeiro momento, pode-se dizer que o ouvido é cego, e o olho, surdo. Escuta
e escritura são duas atividades complementares, mas divergentes. O objeto que a escuta
apreende é de natureza diferente do que a escritura planeja, arquiteta. O ouvido também
vê, mas o visto é sombra, reflexo ou fantasma que se delineia impreciso a partir de uma
ressonância: o som desperta analogias táteis e visuais extremamente fugazes. Por outro
lado, o que a escritura ouve situa-se em um tempo espacializado, portanto submetido
à visão: trajetórias convertem-se em perfis, gestos em figuras, processos em estruturas.
Esse ouvir suspende à vontade o fluxo do tempo, inverte-o mesmo, converte-o em blocos
permutáveis no processo de composição.
73
Num segundo momento, olho e ouvido se confundem e não se pode mais dizer onde
terminam seus limites. Seus espaços se interpenetram de tal modo que o ouvido apreende
o que o olho lhe induziu a ver, o olho vê intensidades a partir de uma memória da escuta.
Existe um “pensar” musical subjacente que integra as duas atividades - escuta e escritura.
Talvez seja melhor dizer que um “sentir” musical que requer diferentes representaç˜ees
para seu desvelamento.
Num terceiro momento, compreende-se que o “sentir” abre o “pensar” para um “lado
de fora”. Existe sempre uma linha de fuga do território conhecido do “pensar” para um
“fora” que o renova. A intensidade do “sentir” faz a linha circular, iluminando o território;
se um limiar é ultrapassado, o território abre-se para um “fora”. O recircular contínuo
da linha assegura uma consistência no “pensar” - um território - que o protege do caos.
Por isso, trata-se de, inicialmente, traçar um território para depois expandi-lo ou deslocar
suas fronteiras, cuidadosamente
24
.
A escuta está para o “sentir” como a escritura para o “pensar”. Não correspondên-
cia estrita entre esses pares, mas convergência. O olho da escritura está mais próximo
do “pensar”. Ele arquiteta formas “pensando” nas sensações associadas. A escuta tem
suas referências e balizas geradas pelo “pensar”, mas é ela que recebe o impacto vital da
sensação que movimenta e faz circular sua linha.
um lado de “fora” da escuta. Se a escuta parte da sensação sonora, ao mesmo
tempo dela se afasta em desdobramentos sutis, por analogias, por associações ou por
divagações. uma potência expressiva e afetiva que impulsiona a escuta para seu
“fora”. Segundo Deleuze e Guattari (2002b, p.100), por vezes, um devir-pássaro ou
um devir-infância na música. É como se a música se transformasse em pássaro, mas esse
pássaro, ao mesmo tempo, entra em devir-música: os pássaros de Messiaen são motivos
que voam e, ao mesmo tempo, pássaros tornados instrumentos. Do mesmo modo, em
Sobre os movimentos de criação e de abertura de territórios ver o texto Ritornelo (DELEUZE; GUAT-
24
TARI, 2002b, p.115-170).
74
Schumann, a música entra em relação com afetos da infância. Para além da escuta do
som, da estrutura formal, do fluxo de construção e de dissolução dos gestos musicais, a
escuta desdobra-se para um “fora” e cria um bloco de infância. Ao mesmo tempo, essa
infância torna-se sonora: a melodia perde o caráter grandiloqüente e se aproxima de uma
cantiga de criança - brincadeira de roda ou canção de ninar.
também um “fora” da escritura. É ele que permite pensar a criação musical a
partir de modos de representação codificados. A escritura supõe um poder de imaginação
que se constrói a partir da exp eriência da escuta. Quanto mais rica é essa experiência, mais
a imaginação adquire capacidade de extrapolar as referências assimiladas e “inventar”
novos objetos:
Quanto mais cerrada for a rede de conhecimentos, mais facilmente será poss ível
deduzir conseqüências que manterão a ligação entre real e imaginário. [...] A extrapolação
é, então, privilégio do compositor, que estende assim a rede que encontrou, posta à sua
disposição pela história. (BOULEZ, 1988).
Entre escuta e escritura um jogo dinâmico de forças. A escritura potencializa
a escuta; a escuta ressignifica a escritura. A escritura, graças à projeção espacial do
som, permite um estabelecimento complexo de relações entre objetos elementares, seções
e forma global. Isso enriquece a experiência da escuta, pois, se numa primeira audição de
uma peça musical é provável que se percebam apenas relações locais, a partir da reescuta,
será possível construir progressivamente modelos mais diferenciados, relacionando trechos
distantes. Todavia, muitas vezes, relações planejadas pela escritura não são as que se es-
tabelecem como referências centrais na escuta. Se um risco nessas situações - uma
disjunção muito grande deve levantar questões sobre o sentido da escritura - ao mesmo
tempo pode-se reconhecer que uma “certa” disjunção faz parte do poder de invenção da
escritura. Quando, em uma comp osição, alguns elementos se deslocam no plano das hier-
arquias habituais - por ênfase ou por retraimento -, processos complexos de acomodação
transformam os modos de escuta anteriores. É assim, por exemplo, que o prolongamento
temporal das dissonâncias em Trisão e Isolda
25
(WAGNER, 1859) - seguidas de resoluções
Por exemplo, no segundo ato, cena do jardim, dueto de Tristão e Isolda.
25
75
breves - modificou a sensibilidade harmônica e tornou os ouvidos cada vez mais receptivos
ao colorido dos acordes e, simultaneamente, mais livre dos encadeamentos funcionais. Em-
bora estejam respeitadas as prescrições tradicionais de resolução das dissonâncias, suas
durações expandidas criam uma nova forma de escuta, não-,funcional. É assim também,
que, apesar da escritura de Webern no primeiro movimento da Sinfonia op.21 (1929)
seguir uma linearidade clara, com cânones estritos, devido ao cruzamento contínuo das
“vozes” em um registro amplo, escutam-se apenas espelhamentos localizados de figuras
dispersas no espaço. A geração de Darmstadt desenvolveu esses traços expressivos que
eram ap enas incipientes em Webern. A respeito disso, Boulez fala de uma dimensão dia-
gonal, inspirada por Webern, que viria relativizar a oposição horizontal-vertical
26
. Assim,
uma “certa” disjunção entre o planejamento da escritura e o modo de escuta pode abrir
novos espaços expressivos.
Existe um excesso na escritura com relação à escuta. Não se pode pretender justificar
todos os procedimentos da escritura unicamente com referência à escuta. Assim, por
exemplo, a complexidade do contraponto flamengo do século XV extrapola a possibilidade
de que todas as relações da escritura sejam ouvidas. Da mesma forma, não se trata de
ouvir as permutações simétricas que Messiaen emprega em Chronochromie (1960).
uma riqueza na escuta que não se limita à apreensão clara de formas bem definidas. Pode-
se dizer que uma região de “sombra” na escuta que é caracterizada pela dúvida, por
uma compreensão incompleta, por uma relativa indefinição. Essa indefinição constitui
uma dimensão fundamental na expressão musical. Como disse Boulez (1988): “é entre a
ordem e o caos que se coloca a zona mais instável, mais volátil e mais rica da imaginação
e da percepção”.
“Ele criou uma nova dimensão, que poderíamos chamar dimensão diagonal, uma espécie de distribuição
26
dos pontos, dos blocos ou das figuras, não mais no plano, mas no espaço” (1966, p.372).
76
5 MULTIPLICIDADE E CONSISTÊNCIA
5.1 Observações preliminares
5.1.1 Plano de organização e plano de consistência
[...] tomar as coisas pelo meio; não tentar achar primeiro uma das pontas, para depois ir
até a outra. Não. Agarrar o meio, porque o sentido do percurso não é fixado segundo um
princípio de ordem, ou de sucessão; ele é fixado pela metamorfose movente que atualiza
uma das extremidades na que é aparentemente a mais disjunta (BADIOU, 2000, p.159).
Com essa insistência em se tomar as coisas “pelo meio”, Deleuze e Guattari subor-
dinaram o ponto à linha, ao mesmo tempo que a estrutura ao rizoma. Se a estrutura
supõe um diagrama de pontos que estabelecem relações fixas e estáveis em um plano, o
rizoma se constrói como uma topografia de linhas que conectam as diferentes regiões de
um plano de modo não-hierarquizado. Se a estrutura constitui-se de pontos ou de linhas
“duras” - formada de segmentos - que articulam formas de modo claro, no rizoma
apenas linhas flexíveis, fluxos que configuram formas instáveis e provisórias, seguindo as
alterações de intensidades.
A intensidade é a matéria-forma infinitamente fluente, carregada de potenciais ener-
géticos, de tensões e de dinamismos que ameaçam constantemente precipitar o sistema
metaestável em uma nova fase de devir (GUALANDI, 2003, p.69).
As duas espécies de linhas - duras ou flexíveis - constroem dois diferentes tipos de
planos, chamados por Deleuze e Guattari de plano de organização e plano de consistência
(ou de imanência).
Seria preciso distinguir dois planos, dois tipos de planos. Por um lado um plano que
po de ríamos chamar de organização. Ele concerne, a um tempo, ao desenvolvimento
das formas e à formação dos sujeitos e é também, se se quer, estrutural e genético. [...]
Tal plano é o da Lei, enquanto ele organiza e desenvolve formas, gêneros, temas, motivos
e que as s inala e faz evoluir sujeitos, personagens, caracteres e sentimentos: harmonia das
formas, educação dos sujeitos. E depois outro plano bem diferente que não se ocupa
com essas coisas. Plano de consistência. Ess e plano não conhece senão relações de movi-
mento e de repouso, de velocidade e de lentidão, entre elementos não-formados, relativa-
mente não-formados, moléculas ou partículas levadas por fluxos (DELEUZE; PARNET,
1998, p.107-108).
77
O plano de consistência é o plano do devir. O conceito deleuziano de devir está
relacionado ao movimento imperceptível entre os pontos, entre as categorias culturais
definidas por relações de poder. Devir é resgatar o contínuo e os estados sutis não definidos
pelas oposições binárias das estruturas; devir é liberar a linha. Porém não se trata de
suprimir a estrutura. Deleuze e Guattari nos advertem que estamos sempre passando de
um plano ao outro. Por um lado, o movimento de estratificação - as formas e os sujeitos,
os órgãos e as funções são estratos - nos conduz ao plano de organização; por outro, a
desestratificação nos conduz ao plano de consistência:
[...] o plano de consistência não pára de se extrair do plano de organização, de levar
partículas a fugirem para fora dos estratos, de embaralhar as formas a golpe de velocidade
ou lentidão, de quebrar as funções à força de agenciamentos, de microagenciamentos
(DELEUZE; GUATTARI, 2002b, p.60).
O conceito deleuziano de “desestratificação” foi forjado contra as posições estrutura-
listas dominantes, que enfatizavam demasiadamente os aspectos estáticos das estruturas.
Com isso, em um contexto histórico perpassado por utopias revolucionárias, Deleuze
buscou resgatar o dinamismo e a possibilidade de transformação das relações de poder
que se estabelecem em diversos registros sociais, dos espaços públicos da máquina do
estado ao microcosmos das práticas artísticas.
Os conceitos de Deleuze e Guattari aproximam-se de teorias contemporâneas de
diversos autores, como a Teoria das Catástrofes, de René Thom (EKELAND, 1977),
a Individuação, de Simondon (1989), e a física dos fluxos, cuja origem Michel Serres
descobre nos textos de Lucrécio (SERRES, 1997). No campo musical, uma nítida
presença de suas idéias subjacentes aos escritos de compositores tão diversos quanto Brian
Ferneyhough
27
e Gérard Grisey
28
. Há, inclusive, diversos conceitos de Deleuze e Guattari
que foram “inspirados” por idéias desenvolvidas por compositores como Messiaen - os
personagens rítmicos - e Boulez - o liso e o estriado.
O artigo Form - Figure - Style (FERNEYHOUGH, 1995) inicia-se com uma citação de Deleuze a respeito
27
da importância das forças na expressão artística.
O artigo de Manfrin (2004) desenvolve a influência de Deleuze sobre a concepção temporal de Grisey.
28
78
5.1.2 O que pode revelar uma análise?
Neste trabalho, proponho a apropriação, pela análise musical, dos conceitos de Deleuze
e Guattari sobre os planos de organização e de consistência. Habitualmente, a análise
musical dedica-se apenas ao plano de organização; elementos do plano de consistência
podem estar presentes, embora nem sempre estejam adequadamente destacados. Acredito
que o conflito entre os dois planos esclareça uma dimensão importante do pro cess o de
composição, tanto no pólo da escritura como no da escuta. O plano de organização define
formas e funções; o plano de consistência dissolve essas formas e funções e estabelece
um processo complexo de relações no nível molecular do material musical. Isso esclarece
por que a busca radical de coerência, por muitos compositores, ultrapassa uma escuta
imediata. Não é suficiente estabelecer um plano de organização. É preciso alcançar
uma região expressiva onde as formas surjam e desapareçam carregadas de tensões e
dinamismos. As categorias temporais discutidas - mapa, tipos texturais, gesto e envelope
- atuam no plano de organização, recortam esse plano, definem suas regiões e interações.
O plano de consistência se instala nos interstícios das formas recortadas no plano de
organização: a consistência se estabelece em uma dimensão molecular do material onde
todas as articulações se tornam ambíguas, porque conflito de forças infinitesimais se
exercendo sobre a multiplicidade de traços expressivos do material musical.
Entretanto, mesmo considerado o plano de consistência, esbarramos em outro obs-
táculo: como descrever ou apresentar aquilo que é, por natureza, ilimitado e indefinível?
Para além das inumeráveis relações emergentes na escuta de um material musical molecu-
lar, é importante lembrar que a experiência da arte passa por um contato com o mistério.
Não se pode reduzir os sentidos possíveis de uma obra a um grupo de significados restritos.
A significação deve ser considerada como uma potência da obra em produzir significados
sempre renováveis. Partindo-se da metáfora de um “texto” musical, podemos esperar
que a cada “lance de dados” - a cada novo contato com a obra - um inesperado “texto”
possível seja escrito na mente do “leitor”. seleção e hierarquização variáveis de ele-
79
mentos, dependendo do momento. Há, tamb ém, relacionamento desses mesmos elementos
com experiências passadas, lembranças de outras “leituras” anteriores.
Assim sendo, o que pode revelar uma análise? Meu objetivo, nas análises que se
seguem, é tornar perceptíveis alguns aspectos do processo de composição de duas obras,
iri e oscuro lume, selecionadas do portfolio de composições realizado durante o doutorado.
Evidentemente, dessa descrição foram eliminadas muitas dobras do processo - momentos
em que uma solução particular foi iniciada de um modo e completada de outro - por
motivos de clareza. Não se trata de restituir os detalhes da gênese das obras, mas de
demonstrar um percurso geral, como a reta que liga os pontos inicial e final de uma curva
tortuosa. O que ficará demonstrado - esp ero - é uma busca de consistência: como manter
unidas as diferentes partes do texto musical, para que “um mundo” possível possa surgir.
E aqui retorno a um ponto anterior: a experiência da arte passa por um contato com o
mistério nesse mundo que se cria a partir da obra. Se a análise pode esclarecer alguns
aspectos relacionados ao processo de composição, é inútil para circusncrever os limites
dos sentidos possíveis que a experiência da arte encontra em nós.
5.2 iri
5.2.1 Partitura
80
81
82
83
84
85
86
87
88
89
5.2.2 Análise
5.2.2.1 urihi
O ciclo urihi foi composto em 2004/2005 como parte do trabalho realizado no doutorado
em composição. É formado por quatro peças: , para clarinete solo; iriê, para clarone,
percussão e trio de cordas; iri, para piano solo e xapiripê, para clarinete, clarone, piano e
quinteto de cordas.
O ciclo urihi está relacionado a alguns elementos da cosmologia dos índios Yanomami.
Os Yanomami são uma sociedade de caçadores-agricultores que vivem na região da fron-
teira entre Brasil e Venezuela. Seu relativo isolamento até meados do século XX permitiu
a manutenção de uma cultura onde o xamanismo ocupa uma posição central.
A palavra Yanomami urihi designa a floresta e seu chão. Significa também território
[...] urihi pode ser, também, o nome do mundo: urihi a pree, “a grande terra-floresta”.
Uma geografia cosmológica (ALBERT, 1988).
Cada uma das peças do ciclo explora uma região diferente de seu “território”. Ins-
trumentação, forma e materiais diferenciam as peças. Entretanto o retorno de certos
elementos cria percursos dentro do território que reconduzem a pontos anteriores.
xapiripê é o nome da última peça. Os espíritos xapiripê são imagens de entes da flo-
resta que acompanham os xamãs em seus trabalhos espirituais. O contato do xamã
Yanomami com uma dimensão invisível - com os espíritos xapiripê - é aproximado
metaforicamente do processo composicional: o compositor também agencia um invisível.
Ao compositor cabe tornar visível esse invisível, criar um bloco de sensações que nos
atravesse, que nos conduza além do restrito território a que nos deixamos confinar.
Os nomes das outras peças do ciclo não são termos Yanomami: foram extraídos da
palavra xapiripê. Os nomes criados apresentam um número de letras proporcional ao
90
tamanho das forças sonoras de cada peça. No decorrer do ciclo urihi, os instrumentos e
as sílabas dispersas dos primeiros nomes se reúnem na peça final e na palavra xapiripê.
No processo de composição do ciclo urihi, as metáforas não sonoras cedem, progres-
sivamente, espaço para o mundo mais abstrato do sonoro, para as articulações de suas
formas em diferentes níveis temporais. A composição segue seu próprio devir sonoro, que
dialoga com uma tradição da música de concerto contemporânea.
5.2.2.2 Mapa temporal
Na elaboração do mapa temporal da peça iri foi utilizado, como referência, um modelo
não sonoro. A peça iri utiliza proporções presentes em um galho de árvore: o tamanho das
ramificações ao redor de um eixo central. Essas proporções são traduzidas em geometria:
redução da infinita diversidade do galho a uma seqüência numérica simples de oito valores.
Por sua vez, esses valores são ajustados a proporções interessantes de um ponto de vista
musical e definem as durações das oito seções da peça: arborescência geometria musical.
Ocasionalmente, utilizo um conjunto de mo delos extraídos da natureza como alternativa
aos modelos geométricos simples. De qualquer forma, entre o modelo natural e sua
utilização musical se interpõe um modelo geométrico que atua como “tradutor” (fig.23,
p.91).
O mapa temporal da peça iri apresenta oito seções de tamanhos diferentes. A pro-
porção entre as seções extremas é de 1 : 3. As demais seguem valores intermediários -
série geométrica com fator multiplicador 1,17
29
. Defini 20 segundos para a duração da
seção menor, após improvisar com os tipos texturais que utilizaria na peça. As durações
das oito seções constituem uma escala de durações: 20s, 23s, 27s, 32s, 37s, 43s, 51s e 60s.
A duração total é de 292s (aproximadamente 5 minutos).
n
2
= n
1
1, 17; n
3
= n
2
1, 17; ... ; n
8
= n
7
1, 17.
29
91
Figura 23 plano temporal da peça iri
A escala de durações não é apresentada de modo linear, mas com ordem permutada.
Definindo os graus da escala como letras de a a g, a seqüência escolhida foi (c d h e b g a f).
Qualquer outra seqüência teria sido possível. Entretanto cada escolha teria conseqüências
decisivas no desenrolar da composição.
Por sua vez, o ajuste da música escrita à duração das seções é feito a partir do
andamento (metrônomo). As indicações metronômicas presentes em cada seção da peça
permitem calcular quantos tempos serão necessários para preencher a duração prevista
pelo mapa temporal. Nesse cálculo, habitualmente não considero as variações de agógica
(rallentandos e accelerandos) nem as fermatas e respirações. O cálculo pode ser feito
da seguinte maneira: número de tempos = duração da seção / duração de cada tempo.
Como a duração da cada tempo (em segundos) é igual a 60 / MM (andamento), temos:
n = D MM/60; o número de tempos n é igual à duração D (em segundos) multiplicada
pelo andamento metronômico MM e dividida por 60. Por exemplo, a duração da primeira
seção é de 27s; como o andamento é 44MM, temos: n = 27 44/60 = 19, 8 (arredondando,
92
20 unidades de tempo).
É preciso insistir no fato que o mapa temporal é apenas uma ferramenta de organi-
zação da forma. O planejamento do mapa permite direcionar o processo de composção,
determinando a duração de cada parte. Seu objetivo é conduzir a imaginação a partir
de restrições gerais. Como a percepção do tempo musical é muito complexa, não se deve
pensar que o mapa será ouvido, que suas durações serão percebidas com exatidão. A
escuta apenas apreende proporções gerais entre durações, diferenciando seções curtas de
longas e aproximando durações semelhantes. Devido à natureza imprecisa da escuta,
são possíveis inúmeras liberdades no tratamento do mapa. Um exemplo: a seção F foi
composta, inicialmente, com o andamento 44MM. Como sua duração prevista no mapa
era de 20s, o cálculo do número de tempos foi: n = 20 44/60 = 14.6 (arredondando,
15 tempos). Após finalizar a peça, percebi que o caráter expressivo do material presente
na seção F requeria um andamento mais lento - o metrônomo foi então reduzido de
44MM para 38MM. Esse tipo de ajuste é comum no processo de composição. Por isso,
o mapa deve ser considerado apenas como uma ferramenta de organização do tempo na
macroestrutura da peça. A partir do momento em que um material específico é composto,
as proporções temporais são percebidas de um modo particular e podem, eventualmente,
exigir alterações no plano inicial.
5.2.2.3 Tipos texturais e gestos
Os tipos texturais presentes em iri incorporam transformações de gestos pianísticos
de Debussy, Messiaen e Berio. cinco tipos texturais diferentes, em iri. O primeiro
(I) constitui-se de acordes fortíssimo e staccato que disparam ressonâncias a partir de
um conjunto de teclas abaixadas no grave. Para isso, emprego dois pesos (ver partitura,
p.81) que permitem uma variação no conjunto das teclas abaixadas, no decorrer da peça.
Eles constituem uma “preparação” do teclado para criar um ressonador, que varia de
características nas diferentes seções da peça.
93
Figura 24 exemplo do primeiro tipo textural: [1] - [4]
Essa textura (fig. 24, p. 93) foi sugerida pelo início da Sequenza IV para piano solo,
de Luciano Berio (1967). na primeira página dessa peça, Berio utiliza acordes staccato
em diferentes dinâmicas e timbrados com ressonâncias de diferentes pedais (una corda,
pedal sostenuto e pedal comum). Um segundo traço expressivo retido da Sequenza IV
consiste na semelhança entre alguns acordes devido à presença de notas comuns. Isso é
especialmente acentuado quando a nota mais aguda é comum. Em iri, os acordes também
sofrem variação de densidade - número de notas - e, aos poucos, surge um esboço de linha
melódica na parte grave do acorde.
O segundo tipo textural (II) empregado em iri contrasta fortemente com o primeiro
(I) na dinâmica pp, na rítmica rubato, no legato e na continuidade imediata de vários
acordes. Esse material evoca livremente o piano do primeiro movimento do Quatuor pour
la Fin du Temps (1941), de Olivier Messiaen (fig. 25, p. 94). A partir da letra B, surgem
alguns gestos ascendentes - arpejos - que se combinam aos acordes em bloco (fig. 26,
p. 94).
Compasso 5 a compasso 1 da letra A.
30
94
Figura 25 exemplo do segundo tipo textural: [5]- A [1]
30
Figura 26 gestos ascendentes em B [1]
O terceiro tipo textural de iri (III) consiste de uma linha melódica em dinâmica
piano, no registro extremo grave. Essa linha é timbrada por acordes ppp no registo grave.
A diferença de dinâmica é fundamental para que os acordes soem apenas como uma
ressonância da linha (fig. 27, p. 94).
Figura 27 exemplo do terceiro tipo textural: B [4] - [5]
Os dois primeiros tipos texturais (I e II) alternam-se na letra A da partitura. Seus
gestos são intercalados, realçando o contraste expressivo. Apesar da alternância, percebe-
se uma relativa continuidade em cada plano textural. Devido a isso, a sonoridade resul-
tante pode ser considerada uma polifonia de planos texturais. O terceiro tipo textural
(III) junta-se aos dois primeiros na letra B da partitura. A textura resultante é uma
superposição de três diferentes “personagens”, cada um marcado por um comportamento
95
expressivo próprio. Nesse sentido, tem como modelo a textura inicial do Prelúdio Voiles
31
,
de Debussy. No início desse prelúdio, três diferentes “personagens” se superpõem, se in-
tercalam. Cada personagem é diferenciado no registro e no comportamento rítmico
32
. Em
iri, a textura da letra B é heterogênea, formada pela combinação dos três tipos descritos
anteriormente. As texturas I e II desenvolvem-se no registro médio, porém contrastam
em dinâmicas, modos de ataque e timbres. também uma certa fusão sonora entre a
ressonância de I e o início de cada gesto de II. Por sua vez, III confere uma profundidade
acústica à textura global - com a presença do registro extremo grave - e também maior
continuidade sonora. I e II I retornam combinados na letra G da partitura.
Os três tipos texturais descritos apresentam uma grande homogeneidade interna,
devido à recorrência dos mesmos gestos, ainda que continuamente variados. A textura I
apresenta gestos compostos por ataques e ressonância. Nos ataques, podemos reconhecer
dois traços expressivos diferentes: o acorde/bloco e o fragmento melódico. Esses gestos
se repetem com variações no registro, densidade, direção do gesto melódico, andamento
e tipo de ressonância (12, 8 e 5 teclas liberando harmônicos). A figura 28 (p.95) ilustra
alguns desses gestos.
Figura 28 [1]; [3]; B [2] - [3]; G [1]
Os gestos da textura II também apresentam dois traços expressivos contrastantes,
acordes/blocos e arpejos (fig.29, p.96).
Primeiro volume de Prelúdios para piano (1910).
31
Ferraz (2004, p.39) analisa o início desse prelúdio como um contraponto de três personagens, “cada um
32
com um curso distinto”.
96
Figura 29 [5] - A [1]; B [10] - [11]; B [11]
A textura III também apresenta gestos com configurações variáveis, combinando os
traços formais de acordes/blocos e linha melódica (fig.30, p.96).
Figura 30 [5] - B [2]; B [9]; F [1]
À medida que os gestos pertencentes aos três diferentes tipos texturais descritos acima
são analisados, seus traços formais elementares se revelam semelhantes: recorrência de
acordes/blocos e fragmentos lineares. O contraste principal se nos registros, modos de
ataques e timbres.
ainda dois tipos texturais novos. A letra D da partitura apresenta um deles (IV),
formado por três gestos semelhantes, em seqüência. Cada gesto consiste de um polirritmo
que desacelera progressivamente, expondo um acorde quebrado (fig.31, p.96).
Figura 31 D [1]
97
As letras C e E apresentam uma nova textura (V), bastante heterogênea, formada
de vários gestos contrastantes. gestos presentes nos tipos texturais descritos ante-
riormente. também alguns gestos novos, que recombinam de modo diferentes as
características dos tipos texturais anteriores. Alguns exemplos nas figuras 32 (p.97), 33
(p.97) e 34 (p.98).
Figura 32 C - arpejo stacc. rápido;
arpejo stacc. mais lento;
arpejo legato + acordes/blocos + polirritmo;
baixo + acorde + nota rep etida p
Figura 33 E - baixo + acorde stacc.;
nota repetida p + acorde/bloco + baixo grave + arpejo
5.2.2.4 envelope macroformal
A consistência macroformal da peça iri é assegurada por diversos fatores. O mais
imediato à escuta resulta da organização das texturas: a sucessão e superposição de
98
Figura 34 E - seqüência stacc. + intervalos/blocos;
acordes/blocos + baixo;
nota repetida p + acorde/bloco + seqüência stacc.
planos texturais nas diferentes seções de iri definem globalmente a forma da peça. Na
tabela 5, os números romanos indicam tipos texturais. Seções seguidas tendem a se
agrupar, devido à acumulação ou simetria de texturas.
Tabela 5 forma global da peça iri
A B C D E F G
I I + II I + I I + III V IV V III I + II I
acumulação simetria acumulação
um segundo elemento que contribui para a coesão das três primeiras seções de iri:
um processo rítmico envolve essas três seções formais. Um envelope rítmico de rallentando
está presente na organização temporal que define a entrada dos gestos da textura I. Foi
utilizado um conjunto de quatorze durações crescentes - 8, 9, 10 ... e 21 semicolcheias
- que foram permutadas de modo a obter um rallentando irregular. Essas durações
definiram temporalmente os pontos de entrada dos gestos da textura I.
Elaboração temporal da textura I:
99
escala original dividida em três partes
(8 9 10 11 12) (13 14 15 16) (17 18 19 20 21)
permutação interna dos grupos; subdivisão do grupo central
(10 12 8 11 9) (15 14) (16 13) (19 17 21 18 20)
entrelaçamento dos dois grupos iniciais e dos dois finais
(10 12 (15) 8 11 (14) 9) (19 (16) 17 21 (13) 18 20)
uma segunda seqüência, formada de três grupos de três durações:
cada grupo tem um rallentando interno
(11 13 19) (8 12 17)(10 20 21)
Seqüência final:
(10 12 15 8 11 14 9 19 16 17 21 13 18 20) (11 13 19 8 12 17 10 20 21)
Por motivos de ajuste expressivo, dois desses valores foram filtrados - seus pontos
de entrada foram deslocados para a textura II. O objetivo dessa organização temporal foi
obter, simultaneamente, uma flutuação rítmica nas entradas temporais dos gestos e uma
curva geral de rallentando nesse plano textural. Assim, a textura I abre, progressivamente,
janelas temporais mais amplas que permitem o aparecimento dos gestos das texturas II e
III. A figura 35 (p.100) mostra a presença da seqüência rítmica acima, na primeira página
de iri.
Embora os tipos texturais possam ser rapidamente apreendidos pela escuta,
quando observados de um modo mais detalhado - e isso pressupõe a re-escuta -, diferenciam-
se em novos traços expressivos. Surgem forças articulatórias que se sobrepõem às primeiras
- de natureza global - e que geram ambigüidades. Entretanto, para uma observação de-
talhada é necessário analisar a organização harmônica das diferentes texturas. Assim,
será p ossível observar como se alcança uma consistência no material musical, como se
100
Figura 35 Início de iri com análise rítmica das entradas dos gestos da textura I
conectam os diferentes tipos texturais e como se geram ambigüidades no plano de orga-
nização global. Voltamos à distinção entre os planos de organização e de consistência,
de Deleuze, descritos no início deste capítulo (p.76). O plano de organização define ar-
ticulações entre elementos; o plano de consistência dissolve essas articulações em regiões
onde o contraste entre os elementos se reduz e seus limites se tornam indiscerníveis. A
consistência se estabelece no amorfo, onde é possível a manifestação de forças sutis sobre
um material musical “molecularizado”.
5.2.2.5 organização harmônica
33
dois conjuntos intervalares fundamentais na elaboração harmônica da peça iri.
A análise da organização harmônica de iri vai se restringir às três primeiras seçõ es . Os procedimentos
33
utilizados nas demais seçõ es são similares.
101
Representando os intervalos por números de semitons, temos:
α (1 1 3 1 2 1) presença de segundas e terças; predomínio de segundas menores
β (1 1 3 1 2 1) presença de todos os intervalos entre segunda menor e trítono
A estrutura α é utilizada para construir os acordes/blocos do tipo textural I
34
. Os
passos seguidos na construção dos acordes foram:
a. definição da nota fundamental (nota inicial);
b. soma dos intervalos de α a partir da nota fundamental;
c. definição dos registros, assegurando-se que a nota fundamental seja a mais aguda.
Exemplo: A + 1 = Bb + 1 = B + 3 = D + 1 = Eb + 2 = F + 1 = Gb.
Figura 36 formação de acorde a partir da nota A e de α
alguns procedimentos adicionais na elaboração de acordes/blocos:
a. a estrutura intervalar de α (1 1 3 1 2 1) pode sofrer rotações. Assim temos os novos
conjuntos (1 3 1 2 1 1), (3 1 2 1 1 1), (1 2 1 1 1 3), (2 1 1 1 3 1) e (1 1 1 3 1 2);
b. os blocos podem sofrer filtragens (supressão de notas), variando sua densidade vertical.
O emprego dos filtros p ode ser observado através da sucessão dos acordes/blocos da
textura I, no decorrer das três primeiras seções da peça (fig.37). Foram utilizados dez
O fato de α te r seis intervalos está relacionado à formação de acordes de sete notas no piano. Esse é
34
um tamanho de acorde confortável tecnicamente e, por isso, aceita melhor um planejamento abstrato da
harmonia. Acordes com mais de sete notas revelam-se limitados tecnicamente, devido à ab ertura dos
dedos das mãos.
102
acordes diferentes. Alguns deles foram repetidos para variar o ritmo harmônico. Devido
às repetições crescentes de acordes, o ritmo harmônico se reduz, progressivamente. Os
filtros se exercem nas repetições, buscando variar o colorido dos blocos.
Figura 37 acordes/blocos utilizados na textura I, nas três primeiras
seções de iri (as alterações valem apenas para as notas imediatas)
O segundo acorde da seqüência acima se repete. Na primeira vez é apresentado
completo; na segunda é filtrado. O terceiro acorde da seqüência também se repete;
aparece inicialmente filtrado - de duas formas diferentes - e depois completo:
Figura 38 repetição de acordes com filtragens: [1] - [4]
A estrutura beta está configurando a sucessão das notas fundamentais dos acordes -
nota mais aguda - da textura I, no decorrer das três primeiras seções da peça. As notas
fundamentais dos dez acordes utilizados pela textura I são:
103
Figura 39 seqüência das notas fundamentais dos acordes da textura I na
ordem original e reordenadas de modo a revelar a estrutura intervalar de β
As repetições de notas visam estabelecer distinções sutis de colorido entre os acordes.
A cada repetição da nota fundamental, seu acorde varia.
Antes de analisar a construção dos fragmentos melódicos descendentes que partem
da nota grave de alguns blocos da textura I, é preciso comentar sobre um algoritmo
desenvolvido para variação do material melódico. Esse algoritmo gerou um conjunto de
fragmentos melódicos que foram utilizados nos três tip os texturais I, II e III. O algoritmo
foi implementado no programa MAX-MSP
35
(fig.40, p.104). Seu objetivo foi encadear
diferentes acordes descritos linearmente, como seqüências de notas. A ordem das notas
de cada acorde foi permutada segundo algumas regras e o resultado afixado em uma
pauta eletrônica. A partir desse material bruto, recortei livremente alguns trechos que
me pareceram interessantes. Os passos fundamentais do algoritmo foram os seguintes:
a. dois objetos
36
selecionam de modo aleatório algumas funções - um deles define qual
rotação de a será usada para gerar cada acorde; o outro define a seqüência das notas
de cada acorde;
b. a nota final de um acorde torna-se a primeira do seguinte;
c. todas as notas são “rebaixadas” a uma única oitava.
MAX-MSP é um software utilizado para apoio à composição e processamento de áudio digital em tempo
35
real. É comercializado pela empresa norte-americana Cycling 74.
O termo objeto é utilizado no programa MAX-MSP para se referir a um subprograma - parte relativa-
36
mente independente - do programa principal.
104
Figura 40 tela do programa MAX mostrando um algoritmo empregado em iri
A permutação das notas dos acordes seguiu dois tipos distintos de regras
37
, que ger-
aram dois grupos claramente diferenciados de perfis melódicos: zig-zag ou linear. Na
figura 41 (p.105) estão listados os fragmentos selecionados
38
.
oito perfis zig-zag (Z1 a Z8) e seis perfis lineares (L1 a L6). Os perfis Z de numer-
ação menor (Z1 e Z2) são bem caracterizados. Os maiores (Z7 e Z8) apresentam alguns
traços lineares. Com isso, a oposição dos dois tipos básicos de perfis fica relativizada,
surgindo uma continuidade entre as formas zig-zag e linear. Um dos procedimentos recor-
rentes em iri é o estabelecimento de um domínio de variação para um grupo de elementos,
Os sete sons de cada acorde são numerados - do mais grave para o mais agudo - e divididos em dois
37
grupos - (1 2 3 4) e (5 6 7). A seguir, cada grupo é embaralhado internamente e, finalmente, os elementos
dos grupos resultantes são intercalados de diferentes formas.
Como foi citado anteriormente, os fragmentos selecionados foram recortados livremente de uma grande
38
seqüência de acordes gerados automaticamente pelo algoritmo. Nesse recorte, surgiram alguns conjuntos
intervalares diferentes de α, formados pelo final de um acorde e início de outro. Apesar disso, uma
homogeneidade intervalar global que garante a afinidade harmônica.
105
Figura 41 quadro de perfis selecionados
que deve permitir a exploração de contrastes, mas também uma continuidade relativa en-
tre os elementos. Os perfis foram tratados como reservatórios de seqüências intervalares,
fornecendo diversas opções ao ouvido, que selecionava fragmentos dos perfis em função
dos contextos harmônicos.
Os fragmentos melódicos que surgem na textura I foram extraídos de inversões in-
tervalares dos perfis L1 e L2, descritos acima (fig.42).
Figura 42 perfis L1 e L2 originais e invertidos - os números indicam os intervalos
Os fragmentos melódicos descendentes da textura I partem da nota mais grave dos blocos
e utilizam intervalos de L1 e L2 (figuras 43, p.106 e 44, p.106).
106
Figura 43 Fragmentos melódicos descendentes da textura I. Os
números indicam os intervalos selecionadas dos perfis correspondentes.
Figura 44 fragmentos melódicos descendentes
Em alguns locais, como em A [3], a nota final do fragmento melódico descendente
é acentuada por um bloco vertical. Esses blocos não estão relacionados à organização
inicial da textura I. São derivações secundárias, de natureza local. Os novos blocos são
obtidos por transposições do bloco imediatamente anterior, seguidas de filtragens. Esse
procedimento foi sistematicamente utilizado na letra G da partitura (fig.45).
O fragmento melódico do tipo textural III também foi derivado do perfil L2
invertido. Há, entretanto, uma substituição da terceira nota, por razões harmônicas
(fig.46, p.107). Em meu processo de composição sempre um jogo entre um conjunto
geral de restrições e uma possibilidade de transgressão, quando o ouvido assim requer.
A textura II recorre a intervalos dos perfis Z8, L6 e L1 na organização linear
das fundamentais de seus acordes. O entrelaçamento das texturas I e II, porém, cria
107
Figura 45 G [1] - os segundo
e terceiro blocos são obtidos p or
transposições e filtragens do primeiro
Figura 46 observar a substituição da terceira nota
conexões entre elas que contrariam as organizações de cada uma, isoladamente. Meu
objetivo foi, justamente, criar forças de conexão harmônica entre planos distintos do
ponto de vista da dinâmica, dos modos de ataque e do timbre. Algo similar acontece no
hoquetus da música de Guillaume de Machaut: vozes independentes se confundem devido
à rápida alternância rítmica e aos uníssonos entre elas
39
. Usando os termos de Deleuze,
conexões rizomáticas que conectam regiões separadas do plano de organização e fazem
passar fluxos moleculares entre elas.
Na letra A foi utilizado o perfil Z8:
Figura 47 Z8 é utilizado incompleto, da segunda à penúltima notas
Isso pode ser observado, por exemplo, no Hoquetus David.
39
108
Pode-se observar a presença de Z8 na seqüência linear da letra A:
Figura 48 as notas brancas são as notas superiores dos blocos da
textura I. As notas pretas são as notas superiores dos acordes da textura II
Na fig.48, as ligaduras contínuas indicam notas de Z8; as ligaduras pontilhadas indicam
repetições livres de notas anteriores. A repetição foi um recurso constante, por razões de
colorido: variações de acordes com a mesma nota no agudo. As texturas I e II compartil-
ham, inicialmente, notas de Z8 - D4 e F4; depois se encaminham independentes. Apesar
disso, conexões melódicas entre I e II, pois suas notas se dispõem em um mesmo
registro.
Na letra B foram utilizados os perfis L6 e L1 encadeados - a última nota de L6
tornase a primeira de L1:
Figura 49 perfis L6 e L1 encadeados
Figura 50 as notas brancas são as notas superiores dos blocos da
textura I. As notas pretas são as notas superiores dos acordes da textura II
As ligaduras contínuas indicam notas de L6 / L1; as ligaduras pontilhadas indicam
repetições livres de notas anteriores. As duas últimas notas - terça menor A# C# -
109
são livres; sua função é reduzir a tensão anterior resultante da insistência cromática (D
Eb E), e cadenciar a seção. Os arpejos, devido à sua natureza rítmica não acentuada,
não foram incluídos nessa análise.
Como observado na análise harmônica, elementos de continuidade linear entre as
texturas I e II. tamb ém semelhanças entre os blocos, pois os acordes das duas texturas
são derivados a partir dos mesmos intervalos de α . Considero fundamental encontrar um
equilíbrio entre diferenciação e conexão dos elementos formais. Pouca diferenciação torna
o material muito homogêneo; muita diferenciação torna a expressão grosseira, pois tira a
consistência molecular do material. Voltamos ao antigo princípio estético de unidade e
variedade. Usando termos de Deleuze diríamos multiplicidade e consistência. Consistência
é um termo mais adequado que unidade, pois o consistente permanece múltiplo. O uno
encerra, o múltiplo consistente tem sempre uma porta aberta para o fora, por onde pode
partir uma linha de fuga na escuta. A consistência não visa à totalização, mas, sim, à
criação de uma dimensão global, ao traçado de um plano que permita conexões complexas
entre suas diferentes regiões locais.
5.3 oscuro lume
5.3.1 Partitura
110
111
112
113
114
115
116
117
118
119
120
121
122
123
124
125
126
127
128
129
130
131
132
133
134
5.3.2 Análise
5.3.2.1 1
o
mov. - sonoridade
Um dos aspectos que mais me fascina na composição é partir do “som”. Com isso quero
dizer uma combinação complexa de timbre, textura, atmosfera expressiva e ritualidade
dos gestos instrumentais. Por isso, nos últimos anos todas as minhas composições se
iniciaram pela escolha da instrumentação. Quando as fontes sonoras se definiam, se
faziam acompanhar das primeiras idéias de texturas e de gestos, com sua expressividade
particular.
A peça oscuro lume se iniciou pelo movimento percussivo. Minha idéia original era
uma peça para contrabaixo e percussão. Escrevi alguns trechos para o contrabaixo e ao
testar, percebi que a dificuldade técnica era muito grande e o resultado insatisfatório.
Decidi, então, por um grupo de percussões centrado na sonoridade de peles - tímpanos,
tomtoms e bongôs. Posteriormente outros instrumentos foram acrescentados - bumbo,
blocos de madeira, pandeiro e tamtam - buscando expandir o registro geral para o grave
e para o agudo.
Em 2002, durante os ensaios para estréia de uma peça para flauta e meios eletroacús-
ticos, resolvi suprimir toda uma seção. Embora gostasse daquele trecho, percebi que
tornava a peça um pouco redundante. Ao iniciar a composição de oscuro lume decidi
reutilizar a seção suprimida, “orquestrando” a parte do solo de flauta para tambores
(fig.51,p.135). O modelo - a partitura da flauta - foi traduzido no novo contexto sonoro
com adaptações:
135
Figura 51 exemplo de “orquestração” do original de flauta por percussões -
a versão final encontra-se em [13]
a. as notas sustentadas da flauta foram substituídas por rulos;
Um dos princípios que determinaram a organização rítmica do 1
o
mov. foi a
busca de continuidade entre duas regiões do ritmo: o rulo, cuja velocidade é não
medida, e os gestos rítmicos rápidos, determinados com precisão na escrita. A
passagem entre ritmos não-medidos e medidos foi deliberadamente tornada sutil,
indiscernível; daí, os gestos emergirem do rulo e depois retornarem a ele.
b. os gestos em glissando da flauta tinham âmbitos estreitos - por vezes 1/4 de tom - e
precisaram ser ampliados;
Na dinâmica f, para que os glissandos dos tímpanos sejam claramente perceptíveis,
é necessário um âmbito de 3
a
menor. Em intervalos menores, o glissando fica
ambíguo e não é ouvido com nitidez. Daí, veio a afinação dos tímpanos:
um intervalo de 7
a
maior entre os sons extremos (
F
1
E
2
);
a partir de cada um dos extremos é construído um acorde diminuto
(
F
1
G#
1
B
1
//
A
1
C#
2
E
2
).
Os quatro tímpanos sofrem alterações de afinação durante a execução, mas limitam-
136
se às notas definidas anteriormente. O objetivo não é harmônico, pois a escuta das
alturas tende a ser relativa na presença de outros instrumentos de percussão de
altura indefinida.
c. os intervalos definidos da flauta foram ajustados a um espaço de alturas relativas,
onde apenas os perfis importavam;
A afinação do grupo de peles - quatro tímpanos, três tomtoms e dois bongôs - visa
obter uma escala com os graus claramente diferenciados entre si, para acomodar
os perfis melódicos da flauta.
d. a monodia original foi transformada em polifonia a dois planos - de um lado, os
tímpanos; do outro, os tomtoms e bongôs, afinados do grave ao agudo.
5.3.2.2 1
o
mov. - estratégias de organização da forma
A seção A utiliza “frases” com tamanhos progressivamente ampliados. A primeira versão
foi organizada a partir das durações de 8, 9, 10, 11, 12 e 13 semínimas. A última seção
foi extendida para 15 semínimas, para finalizar com mais naturalidade. Apesar desse
planejamento, é possível articular as frases de outros modos, na escuta. acentos
intermediários que criam ambiguidades.
Os principais gestos presentes nas peles, em A, são:
a. anacruse rápida (uma ou duas notas) com acento, seguida de nota sustentada em rulo,
ocasionalmente glissando;
b. trêmolo com glissando em um dos tímpanos. A passagem de uníssono a trítono tem
um objetivo tímbrico - modificação do espectro;
c. trêmolo acelerando ou ralentando;
d. diálogos de gestos rápidos entre instrumentistas.
Os gestos mais contínuos (items a, b e c, na lista acima) são explorados na seção
inicial - [1] a [12]. Os diálogos (item d) são desenvolvidos em B. Com isto, uma
137
evolução textural - aumento de movimentação - no decorrer das três primeiras seções.
Após uma breve interrupção em C, a movimentação atinge seu climax em - D. Essa
evolução textural global age como um envelope que integra todo o primeiro movimento.
A rítmica da seção B é derivada de uma grade temporal polimétrica. A grade é
construída pela sup erposição de diferentes pulsos temporais: 5, 13/3, 4 e 7/2 semínimas.
Os pontos de ataques da grade tornam-se momentos de entrada de gestos rítmicos da
percussão: woodblocks, castanholas, tambores e pandeiro. Nos momentos onde coincidem
ataques, uma combinação de instrumentos diferentes no mesmo gesto.
Figura 52 grade temporal polimétrica
138
Figura 53 rascunho mostrando a inserção de figuras rítmicas na grade temporal polimétrica
139
Figura 54 rascunho com a rítmica resultante da grade polimétrica
O tamtam é utilizado de diferentes modos no primeiro movimento:
a. na seção inicial, após a primeira “frase” dos tímpanos, o tamtam pontua de um modo
ritualístico e depois silencia;
140
b. na letra A, o tamtam - precedido de gesto rítmico do pandeiro - pontua, sistemati-
camente, cada “frase” das peles (apenas a quinta das seis frases não é pontuada);
c. na letra B, o tamtam é utilizado de modo a criar um pedal contínuo que envolve o
contraponto de gestos rápidos dos outros instrumentos. Esse pedal contínuo é apenas
perturbado por dois crescendos - em [33] e [36];
d. o tamtam é também responsável pela conexão dos dois movimentos de oscuro lume.
Por um lado, o segundo movimento é pontuado regularmente por ataques do tamtam;
por outro, os acordes sustentados pelas cordas podem ser vistos como uma trans-
posição, para o espaço harmônico, do espectro complexo da ressonância do tamtam:
o espectro metálico é um modelo tímbrico que é “traduzido” livremente no espaço
temperado das cordas.
141
5.3.2.3 2
o
mov. - sonoridade
O segundo movimento de oscuro lume opõe-se ao primeiro como a luz à obscuridade:
o espectro grave e inarmônico das peles é seguido por um timbre orquestral transparente
e distribuído em todo o registro. O espectro ressonante do tamtam é um modelo para a
sonoridade; daí o estatismo harmônico observável, por exemplo, na polarização da nota
aguda D#
5
durante todo o movimento. Se partimos da idéia de que a música busca
criar um “mundo”, nesse caso, trata-se de imergir a escuta na sonoridade, “entrar” dentro
do som e deixar-se levar pelas variações delicadas da textura. Se o primeiro movimento
utiliza uma discursividade linear - com um envelope definindo aumento de movimentação
a nível global - no segundo, o tempo da escuta é imersivo e não-direcional: busca-se a
crista ondulante do instante que mergulha em suas próprias dobras para ressurgir em
uma paisagem sensorial sempre diferente nos detalhes, mas ao mesmo tempo idêntica e
estática.
Uma escritura em camadas de sonoridades:
a. plano do tamtam e das cordas;
fundo sonoro amalgamador, principal responsável pela fusão acústica e pela con-
tinuidade sonora.
b. plano dos metais;
plano melódico e tímbrico, que sugere uma perspectiva em profundidade através
da variação da intensidade.
c. plano de madeiras agudas, violino solo e glockenspiel;
extensão harmônica dos acordes das cordas no agudo e ornamentação melódica do
pólo D#
5
.
d. plano do tímpano e clarone.
comentários melódicos no registro médio-grave.
142
Para uma superposição transparente e diversificada dos planos sonoros citados acima,
utilizei um mapa temporal detalhado (fig.63, p.152), que será analisado na próxima seção.
5.3.2.4 2
o
mov. - mapa temporal
Inicialmente, é preciso rever algumas definições:
a. divisão proporcional
divisão matemática de um valor em partes diferentes que respeitam entre si certas
proporções.
exemplo dividir o valor 8 nas proporções 2 : 3.
8
(2+3)
=
x
1
2
x
1
=
82
(2+3)
x
1
=
16
5
=3.2
8
(2+3)
=
x
2
3
x
2
=
83
(2+3)
x
2
=
24
5
=4.8
b. série geométrica
sequência numérica gerada a partir da multiplicação de um valor inicial (x
1
) por um
fator constante (k); o resultado é novamente multiplicado pelo mesmo fator e esse
processo segue.
exemplo série geométrica com x
1
=4e k =1.5
4 1.5 = 6 1.5 = 9 1.5 = 13.5... 4 6 9 13.5 ...
c. grade temporal
estrutura formada por uma linha de tempo (timeline) marcada com pontos privilegia-
dos, que se tornam referências para inserção de eventos sonoros. Entretanto, por um
lado podem ocorrer ataques fora das grades e, por outro, pontos nas grades não
ocupados na partitura composta. As grades são uma rede de possibilidades, definem
pontos privilegiados, não obrigatórios.
O mapa temporal de oscuro lume é resultante do contraponto de duas grades tem-
porais: uma principal - usada por tamtam, cordas e metais - e outra secundária - usada
pelas madeira agudas, violino solo e glockenspiel. Clarone e tímpano não seguem nenhum
143
plano temporal pré-estabelecido: suas entradas foram livremente definidas, visando a
pontuação de certos ataques ou a condução de forças em direção a alguns pontos especí-
ficos.
As grades temporais são construídas atavés da subdivisão de uma duração global em
dois níveis hierárquicos. O primeiro nível divide a duração global em partes seguindo
proporções extraídas da série geométrica SG
1
. Por sua vez, cada uma dessas partes
é novamente subdividida seguindo proporções de uma outra série geométrica, SG
2
.O
objetivo é uma articulação temporal assimétrica, mas guiada por um jogo de proporções
determinado. A grade temporal principal é seguida com rigor por tamtam, cordas e
metais. A grade secundária, utilizada por madeiras agudas, violino solo e glockenspiel, é
seguida com mais liberdade. O interesse da superposição de grades diferentes é obter uma
independência métrica entre os planos. A “métrica” é considerada aqui como uma relação
entre pontos temporais acentuados, mas não equidistantes. Considerando os múltiplos
níveis estruturais do ritmo - pulsos, compassos, blocos temporais - “métrica” refere-se,
especificamente, ao nível dos compassos. Entretanto, uma vez que é possível deslocar os
acentos de uma seqüência com relação aos compassos escritos, as duas grades temporais
utilizadas no 2
o
mov. de oscuro lume criam um contraponto de métricas diferentes que,
na notação, são subordinadas a uma seqüência única de compassos, por motivos práticos
de performance.
Tabela 6 séries geométricas utilizadas no 2
o
mov. de oscuro lume
x
1
k série geométrica arredondamento
SG
1
4 1.31 4 5.24 6.86 8.99 11.77 15.43 20.21 4 : 5 : 7 : 9 : 12 : 15 : 20
SG
2
3 1.76 3 5.27 9.29 16.35 28.78 3 : 5 : 9 : 16 : 29
Através da combinação de proporções extraídas das séries SG
1
e SG
2
foram definidas as
144
articulações das grades temporais utilizadas no 2
o
mov. de oscuro lume :
a. grade temporal principal
nível I - SG
1
proporções: (20 20 20 15 15 12 12)
durações (em semínimas): (30 30 30 22.5 22.5 18 18)
timeline: 0 30 60 90 112.5 135 153 171
nível II - SG
2
proporções: ((9 5 5)(9 3 5 3)(3 29 16 9 5)(5 5 16 9)(5 5 9)(5 9 7
40
)(9 9 3 16))
durações (em semínimas): ((14 8 8) (13.5 4.5 7.5 4.5) (1.5 13.5 7.5 4.5 3) (3 3
10.5 6.0) (6.0 6.0 10.5) (4.5 7.5 6) (4 4.5 1.5 8))
timeline: 0 14 22 30 43.5 48 55.5 60 61.5 75 82.5 87 90 96 106.5 112.5 118.5
124.5 135 139.5 147 153 157 161.5 163 171
b. grade temporal secundária
nível I - SG
1
proporções: (12 12 9 9 7 7 7 5 5 5 4)
durações (em semínimas): (18 18 13.5 13.5 10.5 10.5 10.5 7.5 7.5 7.5 6)
timeline
41
: 0 48 66 84 97.5 111 121.5 132 142.5 150 157 165 171
nível II - SG
2
proporções: ((5 5 9)(16 9 5 3 9)(16 9 3 5)(5 4
42
5 4)(3 3 5)(3 9 3 5)(9 16 9 5)(9
5 5)(3 9 9)(3 3))
durações (em semínimas): ((5 4.5 8.5) (7 4 2 1 4) (6 3.5 1.5 2.5) (3.5 3 4 3)
(2.5 3.0 5.0) (2.0 4.5 1.5 2.5) (2.5 4.0 3.0 1.0) (3.5 2 2) (3.5 2.0 3.0) (1.0 2.5 3)
(3 3))
timeline
43
: 0 48 53 57.5 66 73 77 79 80 84 90 93.5 95 97.5 101 104 108 111 113.5
116.5 121.5 123.5 128 129.5 132 134.5 138 141.5 142.5 146 148 150 153.5 158.5
Nesse momento foram utiliz adas proporções ausentes das séries geométricas, por necessidade local de
40
acomodação dos gestos musicais.
A grade temporal secundária foi iniciada após 48 semínimas .
41
Ver nota 40.
42
Ver nota 41.
43
145
159.5 162 165 168 171
A partir das duas grades temporais analisadas anteriormente, os tipos texturais uti-
lizados nesse movimento foram inseridos no tempo. O mapa temporal (figura 63, p.152)
ilustra uma visão global do movimento. Na parte inferior da figura está a grade se-
cundária; seus eventos foram projetados sobre a grade principal - parte superior da figura
- para visualização do resultado global. É importante notar que os tipos texturais ul-
trapassam (em 5 semínimas) a duração originalmente prevista no mapa (171 semínimas).
Isto foi necessário para obter uma finalização mais natural. Observar também a presença
de várias fermatas nos dois últimos compassos da partitura, com função de reter o fluxo
musical.
5.3.2.5 2
o
mov. - tipos texturais
Figura 55 identificação dos tip os texturais no mapa temporal
Os tipos texturais presentes nesse movimento são:
a. pontuações - tamtam+baixo
as pontuações marcam o primeiro nível articulatório da grade principal, correspon-
dente às letras de ensaio.
b. acordes sustentados - cordas
146
os acordes marcam o segundo nível articulatório da grade principal e sempre ap-
resentam o D#
5
no agudo, com exceção da última seção (letra F) cuja nota mais
aguda é o G
5
. A intenção é polarizar o D#
5
. As harmonias estáticas - com muita
repetição de alturas entre acordes seguidos favorecem uma escuta das diferenças
mínimas e valorizam o timbre. Esses acordes pp mesclam-se com a ressonância do
tamtam, criando um timbre híbrido. Esses acordes tem como modelo um trecho
- [58] a [67] - do 1
o
mov. de xapiripê, p/ clarinete, clarone, piano e quinteto de
cordas, uma peça de minha autoria pertencente ao ciclo urihi (fig.56, p.147). Entre-
tanto, em oscuro lume os acordes são mais densos - cordas divisi - e sua sequência
difere do modelo. A distribuição de suas notas no registro geral aproxima-se, por
vezes, da série harmônica do baixo.
c. gestos espacializados - cordas
esses breves gestos - de duas a seis notas - são imitados entre as cordas divisi,
criando direções no registro geral. Estão associados aos acordes sustentados, pois
iniciam-se simultaneamente ou conduzem a eles (fig.57, p.148).
d. ondulações dinâmicas - metais+oboé II+clarinete
as ondulações seguem o segundo nível articulatório da grade principal, mas abrangem
durações correspondentes a um, dois, três ou quatro acordes seguidos. Sua duração
é articulada em três planos independentes que realizam um contraponto de modu-
lações
44
dinâmicas (e tímbricas), sendo que os valores rítmicos são marcados pelas
inflexões - pontos máximo e mínimo - dos crescendo e decrescendo (fig.58, p.148).
e. staccato - metais
Esses tipos são formados por uma combinação de ataques rápidos nos trompetes
e trombone e ressonâncias nas trompas, clarinete e oboé II. A linha rítmica inicial
é formada a partir de três campos duracionais:
a 1 semicolcheia
b 2 ou 3 semicolcheias
O termo “mo dulação” é empregado, aqui, no sentido genérico de transformação progressiva.
44
147
Figura 56 acorde da peça xapiripê que
serve como modelo para o tipo textural
acordes sustentados em oscuro lume ,2
o
mov.
c 5 ou 6 semicolcheias
São formados grupos rítmicos a partir das sequências ab, ac, abc, acb. Os grupos
se constituem a partir de uma impulsão (a) seguida de uma extensão e relaxamento
(b e c). Dentro dos grupos, o número de notas de cada campo pode ser 1, 2 ou 3.
Por exemplo:
seq ac n notas 1 1 grupo rit. 16
seq ac n notas 2 1 grupo rit. 1 1 5
seq abc n notas 2 2 1 grupo rit. 1 1 3 2 5
148
Figura 57 exemplo de gestos espacializados
nas cordas - [11] oscuro lume ,2
o
mov.
Figura 58 ondulações dinâmicas - [1] a [6] oscuro lume ,2
o
mov.
Os grupos são formados algoritmicamente, seguindo a duração da seção. uma
149
regra sobre a sequência dos campos a em grupos seguidos: evitar repetições do
número de notas. Assim, a sequência acb-ac-ac poderá ser: 1 5 3 - 1 1 6 5 - 1 5.
No primeiro e no terceiro grupos, o campo a tem uma nota; no segundo, duas. A
busca de variedade em a deve-se ao fato de esse ser o ponto que mais chama a
atenção nos grupos. Exemplo de ritmo utilizado nos compassos [13] a [14]:
Figura 59 seqüência de grupos rítmicos
A polifonização do ritmo é feita a três partes: duas partes com predomínio de
staccato, uma em legato (fig.60, p.149). Cada ataque do ritmo original é dis-
tribuído entre instrumentos diferentes, havendo dobramentos. A orquestração visa
uma superposição de planos dinâmicos contrastantes (, mf e p) com ressonâncias
sustentando os ataques staccato. Os staccato são distribuídos entre trombone e
trompetes; as ressonâncias entre trompas, oboé II e clarinete.
Figura 60 polifonização do ritmo - [13] a [14]
150
Figura 61 versão final - [13] a [14]
f. linha colorida - piccolo+violino solo+glockenspiel
Piccolo, violino solo e glockenspiel formam uma única linha heterofônica. Foi
buscada uma variação de timbres no registro extremo agudo da orquestra. A
rítmica dessa linha deriva da grade temporal secundária. Entretanto, alguns
ataques independentes da grade temporal; tamb ém alguns pontos da grade que
não são preenchidos pela linha rítmica. A grade é um conjunto de possibilidades
que determina a rítmica da linha, ainda que não seja de um modo absoluto. Dos 32
principais ataques da linha rítmica do picc+vl+glock, apenas 8 ataques acontecem
em pontos ausentes da grade.
A nível local, gestos anacruse-acento - pequenas precipitações de movimentos
rápidos em notas mais longas, com variação do número de notas da anacruse: 1, 2,
3 ou 4 semicolcheias de sextinas precipitam-se em notas de duração maior. Esses
gestos também estão presentes em outros tipos texturais - comentários agudos,
151
comentários graves, gestos espacializados e staccato - criando um jogo de imitações
livres entre os diversos planos sonoros da orquestra.
g. comentários agudos - flauta+oboé I
flauta e oboé I realizam comentários à linha colorida, seja pontuando alguns
ataques, imitando alguns gestos ornamentais ou criando acordes que vem timbrar
a linha com certos intervalos característicos.
h. comentários graves - tímpano+clarone
esses tipos texturais foram inseridos na textura visando preencher alguns momentos
de baixa movimentação global. São variações de um mesmo gesto no tímpano e
clarone.
Figura 62 exemplo do tipo textural
“comentários graves”: [35] - 2
o
mov. oscuro lume
152
Figura 63 mapa temporal - oscuro lume ,2
o
mov.
153
5.3.2.6 2
o
mov. - harmonia (princípios gerais)
Para observar como os tipos texturais presentes neste movimento se fundem, sem
perder a individualidade, é necessário compreender os principais procedimentos harmôni-
cos empregados. Inicialmente, vamos rever alguns conceitos básicos:
a. representação das classes de alturas
As alturas podem ser representadas segundo uma conjunção de dois fatores diferentes:
pitchclass e registro. O pitchclass diz respeito à posição da altura dentro da oitava; o
registro diz respeito à oitava ocupada pela altura dentro do registro geral. O interesse
dessa separação de fatores é verificar semelhanças entre acordes diferentes, a partir
do pitchclass: essas semelhanças seriam difíceis de detectar caso se considerassem as
alturas absolutas.
O pitchclass pode ser representado numérica ou gráficamente. Por exemplo, o
acorde C E G pode ser representado por (0 4 7) ou então por
45
. A re-
presentação gráfica facilita a visualização de simetrias e transposições. Por exemplo,
o acorde F A C é facilmente reconhecido como uma rotação (= transposição) do C E G,
no relógio cromático: .
b. representação MIDI das alturas
O protocolo MIDI representa as alturas por números que vão de 0 a 127. Nessa re-
presentação, o C central corresponde ao número 60. O interesse na representação
numérica é permitir operações algorítmicas sobre as alturas. Por exemplo, a trans-
posição consiste em somar à altura ou grupo de alturas um número (de semitons)
correspondente ao intervalo da transposição. Assim, 60 (C central) + 7 = 67 (G, uma
quinta acima do C). Outro tipo de operação matemática muito útil é a extração das
classes de alturas (pitchclass). Isso é realizado com o resto da divisão do número da
nota MIDI por 12. Assim,
60
12
=5e resto = 0 o C corresponde ao pitchclass 0.
As doze p os iç ões do relógio cromático indicam as classes de alturas 0 a 11 C, C#, D ... B.)
45
154
c. família de acordes α
Uma estratégia composicional utilizada no 2
o
mov. de oscuro lume consiste na deri-
vação de materiais harmônicos a partir de um grupo de acordes semelhantes, chamados
α (alpha). Esses acordes são obtidos através de algumas operações algorítmicas: cons-
trução do acorde a partir de uma sequência intervalar, rotação da sequência intervalar,
conversão em pitchclass, transposição, inversão e posicionamento no registro geral:
Construção de acorde a partir de uma sequência intervalar
A sequência original de intervalos é (3 1 2 1 1 1). Assim, começando pelo A central
temos 69 + (3 1 2 1 1 1) = (69 72 73 75 76 77 78) que corresponde às classes de
alturas (9 0 1 3 4 5 6).
Rotação da sequência intervalar
Uma rotação na sequência original de intervalos gera (1 2 1 1 1 1 3) - o segundo
número torna-se o primeiro, o terceiro torna-se o segundo, etc. Pode haver 6
rotações na lista original, que conduzem a novos acordes.
Inversão de acordes
A inversão é obtida multiplicando-se a sequência intervalar por (-1): os intervalos
ascendentes tornam-se descendentes. Assim, 6 rotações possíveis da sequência
original de intervalos, cada uma com sua inversão.
Desconsiderando-se as transposições, apenas oito tipos de acordes diferentes
(fig.64, p.155) gerados pelos processos anteriormente descritos. É que algumas
operações diferentes reincidem sobre os mesmos acordes.
5.3.2.7 2
o
mov. - harmonia (interação entre planos sonoros)
Os planos de cordas, metais e madeiras agudas são construídos a partir de subcon-
juntos de α. notas comuns entre eles, favorecendo a fusão sonora.
155
Figura 64 patch no programa PWGL
com os oito tipos diferentes de acordes α
(o quadro central com “1” e “0” inidica presença ou
ausência de altura nas doze posiçõ es cromáticas )
156
a. plano dos metais
Figura 65 patch com acordes do plano dos metais
Os conjuntos harmonicos dos metais em cada seção (início A B C D E F) são
subconjuntos de alpha (fig.65, p.156), com presença obrigatória de intervalos de
terças (3 ou 4) e semitons (1, 11 ou 13). Os conjuntos integram os dois tipos tex-
turais presentes em cada seção da p eça (ondulações dinâmicas e metais staccato):
a mesma harmonia cria continuidade entre tipologias sonoras contrastantes.
b. plano das cordas
As cordas sempre formam α, completa ou parcialmente (fig.66, p.157). apenas
duas excessões: notas agregadas nos acordes 15 (F) e 24 (Bb).
O baixo mantém uma única nota por seção. A linha do baixo evolui cromatica-
mente - mas de modo não-linear - em direção ao E
1
: sua nota mais grave sustenta
o último acorde do movimento.
As cordas sempre tem notas comuns com os metais (a única exceção é em D). Isso
favorece a fusão harmônica dos dois planos .
c. plano de madeiras agudas, violino solo e glockenspiel
157
Figura 66 lista dos acordes presentes no plano das cordas
Piccolo, glockenspiel e violino solo formam uma linha. Seus conjuntos harmônicos
em cada seção (A B C D E F) são partes de α.OD#
5
é uma nota comum com
as cordas e é polarizada, estando presente em todas as seções.
Flauta e Oboé 1 formam um plano secundário.
Em A, B e D, os conjuntos harmônicos da flauta complementam os do piccolo
em relação a α.
Em C e E os conjuntos da flauta são independentes, mas tem muitas notas
comuns com o piccolo.
Em F, os conjuntos da flauta são bastante diferentes do piccolo, mas per-
manecem sempre subconjuntos de α.
O oboé segue a flauta em movimento paralelo, com intervalos verticais pre-
dominantes de 11 e 13. Por vezes, a nota do oboé é ajustada em função da
harmonia dos metais: a nota aguda dos metais torna-se uma referência para o
158
oboé.
d. comentários graves
O clarone apresenta 7 variações de um mesmo gesto melódico:
Tabela 7 análise intervalar dos gestos do clarone
(os intervalos negativos indicam movimento descendente)
subida descida subida descida
5 3 2 -5 2 -1 -6
1 4 3 2 -6 3 -1 -5 -1
1 4 3 2 -6 12 -1 -6
-2 -3 -4 -1 2 1 2 -1 -6
1 3 4 4 3 -11 12 -1 -6
3 1 5 4 -8 2 -1 -6
11 -1 -4 -1 -5
Figura 67 notas presentes nos sete gestos do clarone
A tabela 7 (p.158) permite observar a recorrência de seqüências intervalares, espe-
cialmente na primeira e na quarta etapas de cada gesto.
Uma característica importante desses gestos é o retorno à nota inicial.
159
As notas longas do gesto são definidas a partir da harmonia das cordas: seguem o
baixo ou o tenor. De modo geral, o clarone atua como ornamentação do baixo.
O tímpano trabalha o mesmo gesto - diversas vezes em imitação com o clarone -
com variações mais livres.
A presença dos rulos de tímpano conecta o 2
o
mov. de oscuro lume com o início
do 1
o
mov..
A harmonia do 2
o
mov. de oscuro lume busca integrar os diferentes tipos texturais
através da presença de um grupo de acordes semelhantes (α). Podemos localizar α
internamente em cada tipo, assim como na combinação de dois ou mais tipos diferentes.
Outro fator importante está na exploração de notas comuns entre os planos sonoros,
assim como na polarização do D#
5
durante todo o movimento.
160
CONCLUSÃO
As idéias discutidas neste texto foram amadurecendo aos poucos, paralelamente
à composição de um portfolio de peças
46
. Há, portanto, conflitos e estímulos entre
a prática composicional e a reflexão teórica. Uma das dificuldades encontradas na
elaboração dos conceitos principais residiu no fato de, sob a luz da reflexão, é comum as
formas se apresentarem estranhamente indefinidas e vagas. Com isso, quero dizer que
os conceitos se mostram pouco confiáveis, seu sentido não alcança a fixidez necessária
a uma sistematização. Apesar disso, aos poucos, aprende-se a se situar nessa paisagem
vel e a perceber fluxos e direções. É assim que o sentido passa a ser considerado em
função dos contextos em que as questões se apresentam: o “sentido” é um “dirigir-se
para” e não um ponto fixo e imutável. Por isso, é sempre possível encontrar situações
onde as idéias pareçam funcionar de um modo diferente. Entretanto, permanece a
urgência de se buscar uma orientação para o pensamento, guiar certas escolhas e
possibilitar um vôo mais ousado à imaginação. É a partir dessa necessidade crucial
de conhecimento e de busca de sentido que os conceitos se forjam.
Na prática da composição encontramos dificuldades semelhantes. A passagem das
forças interiores que nos mobilizam a uma forma musical concreta encontra todo tipo
de obstáculos, desde os clichês que ocupam nossos depósitos de lixo mental às joias
oscuro lume, para orquestra, e o ciclo urihi, formado por quatro peças: , para clarinete solo; iriê,
46
para trio de cordas, clarone e percussão; iri, para piano solo; e xapiripê, para quinteto de cordas, piano,
clarinete e clarone.
161
ilusórias que encontramos ou saqueamos e que se recusam a integrar um projeto que
ainda não nasceu e que, por isso mesmo, não tem um rosto fixo. É preciso aprender
a deixar as coisas surgirem, desaparecerem e, eventualmente, retornarem transfor-
madas. O processo de composição exige ciclos de distanciamento para se apreender
o material sob outros enfoques. É necessário encontrar uma linha de consistência na
multiplicidade de traços expressivos do material. As dobras do material se desvelam
progressivamente, em um processo de diferenciação que às vezes nos surpreende. Por
isso, na composição de uma peça, nunca se explicam completamente todas as decisões
necessárias. Trata-se de um processo que é ao mesmo tempo lúcido e cego, que age
simultaneamente por decisões precisas e por tateamentos frágeis.
Os conceitos centrais deste texto - escuta, escritura, modelo, material, mapa
temporal, tipos texturais, gesto e envelope - devem ser entendidos em função dessa
dupla exigência de compreensão teórica e prática da composição. O par principal -
escuta-escritura - , que nome ao texto, sempre esteve presente em minha prática
de composição. Por isso, o hábito antigo de reescrever as mesmas peças. oscuro lume,
por exemplo, passou por duas versões diferentes. Após a primeira apresentação dessa
peça, pude rever diversos aspectos e alterá-los. Entretanto, apesar de lidar mais
tempo com a interação escuta-escritura, a reflexão realizada durante o doutorado me
permitiu alcançar um embasamento teórico maior e mais consistente. Por outro lado,
as peças do porfolio me permitiram experimentar e deixar surgir novas questões.
Penso na composição como exploração de um território desconhecido. Cada nova
peça é uma incursão nesse território. Para não permanecer aprisionado em uma região
demasiado restrita desse território, procuro traçar mapas de viagem que permitam
seguir em direções diferentes e relacionar as diferentes trajetórias entre si: multiplici-
dade de caminhos, de técnicas, de instrumentações e busca de consistência dentro do
percurso. É assim que me sinto hoje motivado a enveredar por novas trilhas, criar no-
vas peças, dar forma concreta a outros sonhos e divagações. Sinto, também, que essa
162
experiência do doutorado será muito útil no ensino da composição. Acredito poder
levantar importantes questõ es a meus alunos e auxiliá-los em suas buscas pessoais.
163
REFERÊNCIAS
AGON, Carlos. OpenMusic. Paris: IRCAM, 1998. Software.
AGON, Carlos Augusto Amado. OpenMusic: un langage visuel pour la composi-
tion musicale assistée par ordinateur. Paris: Paris 6, 1998. These de Doctorat de
l’Université Paris 6, 18 dez 1998. Disponível em
<http://recherche.ircam.fr/equipes/repmus/Rapports/CarlosAgon98/>
Acesso em 19 jun 2005.
ALBERT, Bruce. Temps du sang, temps des cendres, représentation de la mal-
adie, espace politique et systéme rituel chez lês Yanomami du sud-est (Amazonie
Brésilienne). Paris: Orston-IRD, 1988.
ASSAYAG, Gérard. Computer. Cahier de médiologie, n.18, nov 2004. Disponível
em: <http://mediatheque.ircam.fr/articles/textes/Assayag04b/> Acesso
em 07 mai 2005.
BADIOU, Alain. Da vida como nome do ser. In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles
Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000. p.159-167.
BEETHOVEN, Ludwig van. Symphonies nos. 5, 6 e 7 in full score. New York:
Dover, 1980.
BENT, Ian D.; HUGHES, David W.; PROVINE, Robert C.; RASTALL Richard.
Notation, §I: General. In: SADIE, Stanley. New Grove dictionary of music and
musicians. London: Macmillan, 2001. v.18.
BENT, Ian D.; POPLE, Anthony. Analysis, §II: History. In: SADIE, Stanley.
New Grove dictionary of music and musicians. London: Macmillan, 2001. v.1.
BERG, Alban. Concerto de Câmara. Viena: Universal, 1925.
BERIO, Luciano. Sequenza IV, para piano solo. London: Universal, 1967.
BIGAND, Emmanuel; McADAMS, Stephen. Introduction a la cognition auditive.
Disponível em <http://www.zainea.com/applications.htm>. Acesso em 13 ago
2005.
BOULEZ, Pierre. Relevé dapprentis. Paris: Seuil, 1966.
BOULEZ, Pierre. A música hoje. São Paulo: Perspectiva, 1972.
164
BOULEZ, Pierre. Le système et lidée. inHarmoniques, v.1. Paris: Ircam, 1986.
BOULEZ, Pierre. Entre ordre et chaos. inHarmoniques, v.3. Paris: Ircam, 1988.
BOULEZ, Pierre. Anthèmes I, para violino solo. Wien: Universal, 1992
BRESSON, Jean. La synthèse sonore en composition musicale assisté par ordina-
teur: Modélisation et écriteture du son. Paris: Paris VI, 2007. Tese de doutorado
em Informática, Université Paris VI. Disponível em
<http://recherche.ircam.fr/equipes/repmus/bresson/these/
these-jean-bresson.pdf>. Acesso em 20 jan 2008.
CAESAR, Rodolfo. A escuta como objeto da pesquisa. 2000. Disponível em
<http://acd.ufrj.br/lamut/lamutpgs/rcesqs/10escup.htm>. Acesso em 20
jan 2007.
CHOUVEL, Jean-Marc. Analyse Musicale: sémiologie et cognition des formes
temporelles. Paris: LHarmattan, 2005.
CORNICELLO, Anthony. Timbral organization in Tristan MurailÕs Désintégra-
tions and Rituals by Anthony Cornicello. Waltham: Brandeis University Music
Program, 2000. A dissertation presented to The Faculty of the Graduate School
of Arts and Sciences, Brandeis University Music Program, 2000.
DEBUSSY, Claude. Complete preludes, books 1 and 2. New York: Dover, 1990.
DELALANDE, François. Sense and intersensoriality. Leonardo, v. 36, n. 4. USA:
MitPress, p.313-316, 2003.
DELCÒ, Alessandro. Morphologies: a partir du premier Serres. Paris: Kimé,
1998.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia?. São Paulo: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon - Logique de la sensation. Paris: Éditions du
Seuil, 2002
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. São Paulo: Ed. 34, 2004. v.1.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. São Paulo: Ed. 34, 2002a. v.2.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. São Paulo: Ed. 34, 2002b. v.4.
DRAKE, Carolyn; PARNCUTT, Richard. Psychology of music, §II, 2: Perception
& cognition of rhythm. In: SADIE, Stanley. New Grove dictionary of music and
musicians. London: Macmillan, 2001. v.20.
DUCHEZ, M.-E. Lévolution scientifique de la notion de matériau musical. In:
BARRIÈRE, Jean-Baptiste (ed.). Le timbre, métaphore pour la composition.
Paris: Christian Bourgois, 1991. pp. 47-81.
DUFOURT, Hugues. L’artifice d’écriture dans la musique ocidentale. In:
.
Musique, pouvoir, écriture. Paris: Christian Bourgois, 1991a, p.177-185.
165
DUFOURT, Hugues. Hauteur et timbre.In:
. Musique, pouvoir,
écriture. Paris: Christian Bourgois, 1991b. p. 243-274.
EKELAND, Ivar. La théorie des catastrophes, La Recherche, Paris, n. 81, v. 8,
p.745-754, set 1977. Disponível em: <http://pst.chez-alice.fr/TCIvarEk.html>
Acesso em 23 jun, 2006.
FERNEYHOUGH, Brian. Form Ð Figure Ð Style: an intermediate assessment.
In: BOROS, James (ed.); TOOP, Richard (ed.). Collected writings. Amsterdam:
Harwood Academic Publishers, 1995a. p.21-28.
FERNEYHOUGH, Brian. Unity capsule: an instant diary. In: BOROS, James
(ed.); TOOP, Richard (ed.). Collected writings. Amsterdam: Harwood, 1995b. p.
98-106.
FERRAZ, Silvio. Música e repetição: a diferença na composição contemporânea.
São Paulo: Educ, 1998.
FERRAZ, Silvio. Composição por personagens: a escrita de Casa Tomada e Casa
Vazia. Em Pauta, v.15, n.24, jan-jun 2004.
GRISEY, Gérard. Notes de programme du Festival Musica 96. Disponível em
<http://brahms.ircam.fr/textes/c00000037/n00003519/index.html> Acesso
em 13 ago 2005.
GUALANDI, Alberto. Deleuze. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
HAVELANGE, V.; LENAY, C.; STEWART, J. Les représentations: mémoire ex-
terne et objets techniques. in: Intellectica. 2003, 35, pp. 115-131. Disponível em:
<http://liris.cnrs.fr/enaction/docs/documents2006/HLS_280502.doc>.
Acesso em 20 jan 2008.
HONING, Henkjan. Issues in the representation of time and structure in music.
Contemporary Music Review, v.9, p.221-239, 1993.
KLEE, Paul; Filosofia de la Creacion. In:
. Teoria del arte mo derno.
Buenos Aires: Caldén,1979.
KOPERSKI, Jerey. Models. In: Internet Encyclopedia of Philosophy. Disponível
em <http://www.iep.utm.edu/m/models.htm>. Acesso em 14 abr 2006.
KRAMER, Jonathan. The time of music: new meanings, new temporalities, new
listening strategies. New York: Schirmer, 1998.
LACHENMANN, Helmut. L’écoute est désarmée - sans l’écoute. In: SZENDY,
Peter (org.). L’écoute. Paris: L’Harmattan, 2000. p.115-145.
LALLITE, Phillippe. Le spectre d’une voix: Une analyse de L’Esprit des Dunes.
In: SZENDY, Peter. Tristan Murail. Paris: L’Harmattan, 2002. p.59-102.
LASSÈGUE, Jean; VISETTI, Yves-Marie. Que reste-t-il de la représentation ? in:
Intellectica. 2002/2, 35, pp. 7-35. Disponível em: <http://www.lassegue.net/>.
Acesso em 20 jan 2008.
LAURSON, M. Patchwork. Paris: IRCAM, 1993. Software
166
LAURSON, KUUSKANKARE. PWGL. 2002. Software. Disponível em
<http://www2.siba.fi/PWGL/>. Acesso em 20 jan 2008.
LEIBNIZ, G. Philosophical essays. ARIEW, R.; GARBER, D. (eds.). Indianapo-
lis: Hacket, 1989.
LEVY, Pierre. Tecnologias intelectuais e modos de conhecer: nós somos o texto.
Cândido, Celso (trad.). Disponível em
<http://www.caosmose.net/pierrelevy/nossomos.html>. Acesso em 20 jan
2008.
LIGETI, György. Evolution de la forme musicale. In: . Neuf essays
sur la musique. Genebra: Contrechamps, 2001.
LIGETI, György. Musique et technique. In: . Neuf essais sur la
musique. Genève: Contrechamps, 2001. p.181-206.
LITTLE, T.D.C. Time-based media representation and delivery. 1993. Disponível
em <http://hulk.bu.edu/pubs/papers/1992/TR-08-15-93.pdf>. Acesso em
20 jan 2008.
LÓPEZ CANO, Rubén. 2004. From Pragmatics to Enactive Cognition: A new
paradigm for the development of musical semiotics. 2004. Disponível em
<http://www.geocities.com/lopezcano/>. Acesso em 20 jan 2008.
MANFRIN, Luigi. L.immagine spettrale del suono e l’incarnazione del tempo allo
stato puro: la teoria della forma musicale negli scritti di Gérard Grisey. 2004.
Disponível em: <http://users.unimi.it/~gpiana/dm8idxrd.htm> Acesso em
21 jul, 2006.
McADAMS, Stephen; SAARIAHO, Kaija. Qualités et fonctions du timbre musical.
In: BARRIÈRE, Jean-Baptiste (org.). Le timbre, métaphore pour la composition.
Paris: Christian Bourgois Ed., 1991. p.164-181.
MACLUHAN, Marshall. Understanding Media: The Extensions of Man. Cam-
bridge: MIT, 1994.
MENEZES, Flo. To be and not to b e: Aspects of the Interaction Between In-
strumental and Electronic Compositional Methods. Leonardo, v. 31, n. 4. USA:
MitPress, 1998.
MESSIAEN, Olivier. Quatuor pour la fin du Temps. Paris: Leduc,1941.
MESSIAEN, Olivier. Chronochromie. Paris: Durand,1960.
NICOLAS, François. Le sérialisme. 1989. Disponível em
<http://entretemps.asso.fr/Nicolas/BibNic.html> Acesso em 19 jun 2005.
NICOLAS, François. Pour la beauté du geste. Conferência na Université eu-
ropéenne de la recherche (Paris), 12 jun 1995. Disponível em
<http://entretemps.asso.fr/Nicolas/BibNic.html> Acesso em 19 jun 2005.
NICOLAS, François. Quand l’ouvre écoute la musique. In: SZENDY, Peter (org.).
L’écoute. Paris: L’Harmattan, 2000. p.147-175.
167
NICOLAS, François. Théorie de l’écoute musicale. 2003/2004. Disponível em
<http://entretemps.asso.fr/Nicolas/BibNic.html> Acesso em 19 jun 2005.
NICOLAS, François. Les enjeux logiques des mutations en cours dans lécriture
musicale. 2007. Diponível em
<http://www.entretemps.asso.fr/Nicolas/2007.2008/mutations.htm>. Acesso
em 20 jan 2008.
OLIVEIRA, André Gonçalves. Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologia
de Pierre Schaeer. 2008. Disponível em: <http://????>
ORCALLI, Angelo. “Duree reelle” and expansion of tempo in music: the experi-
ence of Gerard Grisey. 1990. Disponível em
<http://www.sonus-online.org/pdf/orcalli.pdf > Acesso em 19 jun 2005.
PALIMPSEST. Diponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Palimpsest>. Acesso
em 14 abr 2006.
REYNOLDS, Roger. Form and method: composing music. New York: Routledge,
2002.
SCHAEFFER, Pierre. Traité des objets musicaux. Paris: Éditions du Seuil,1966.
SCHAEFFER, Pierre. De la musique concrète a la musique même. Paris: La
revue musicale, 1976
SERRES, Michel. O nascimento da física no texto de Lucrécio. São Carlos: Unesp,
1997.
SIMONDON, Gilbert. L’individuation psychique et collective. Paris: Aubier,
1989.
STIEGLER, B. Machines a ecrire et matieres a penser. Genesis. [s.l.]: Jean-Michel
Place, 1994. Disponível em: <http://www.iri.centrepompidou.fr/documents>.
Acesso em 20 jan 2008.
SZENDY, Peter. Entretien avec Magnus Lindberg. In: Magnus Lindberg. Les
Cahiers de L’Ircam, n.3. Paris: Ircam, 1993. p. 9-27.
TOOP, Richard. “Prima le parole...” (On the Sketches for Carceri D’Invenzioni
I-III). Perspectives of New Music, v.32, n.1, p.154-175, 1994.
VAGGIONE, Horacio. Objets, représentations, opérations. 1991. Disponível
em <http://homestudio.thing.net/revue/content/asrp30.html> Acesso em
19 jun 2006.
VARELA, Francisco J.; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor. The Embodied
Mind. Cambridge: MIT, 1991.
VINET, Hugues. The Representation Levels of Music Information. Paris: Ircam,
2003. Disponível em <http://mediatheque.ircam.fr/articles/textes/Vinet03a/>.
Acesso em 20 jan 2008.
WAGNER, Richard. Tristan und Isolde in full score. New York: Dover, 1986.
168
WEBERN, Anton. Sinfonia op.21. Wien: Universal, 1929.
WILL, Udo. Oral Memory in Australian Song Performance and the Parry-Kirk
Debate. In: HICKMANN, E. et EICHMANN, R.(eds): Proceedings of the Inter-
national Study Group on Music Archaeology. vol.X. 2004. Disponível em
<http://ethnomusicology.osu.edu/EMW/Will/will.htm>. Acesso em 20 jan
2008.
XENAKIS, Iannis. Musiques formelles. Paris: Richard-Masse, 1963.
ZBIKOWSKI, Lawrence M. Metaphor and music theory; reflections from cognitive
science. Music Theory Online, v.4.1, 1998. Disponível em
<http://societymusictheory.org/mto/issues.mto98.4.1/
mto98.4.1abikowisky.html> Acesso em 10 jun 2005.
169
ANEXO
Acompanha o texto um DVD com gravações das peças:
a. oscuro lume Orquestra Filarmônica de Minas Gerais (regente: Fábio Mechetti)
b. Diego Grendene (clarinete)
c. iri Ana Cáudia de Assis (piano)
As imagens Yanomami utilizadas - e manipuladas - foram extraídas do site:
<http://www.proyanomami.org.br/v0904/
index.asp?pag=htm&url=http://www.proyanomami.org.br/base_ini.htm>.
170
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo