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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
CRISTIANE JOAZEIRO B. SCARAMUSSA
ESCRITA DOCENTE: A CONSTITUIÇÃO DE UM GÊNERO
DISCURSIVO NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES
Rio de Janeiro
2008
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CRISTIANE JOAZEIRO B. SCARAMUSSA
ESCRITA DOCENTE: A CONSTITUIÇÃO DE UM GÊNERO
DISCURSIVO NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES
Dissertação apresentada à Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientador: Profa. Dra. Ludmila Thomé de
Andrade.
Rio de Janeiro
2008
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Escrita docente: a constituição de um gênero
discursivo na formação continuada de professores /
Cristiane Joazeiro Borralho Scaramussa. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2008.
135f.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Educação, 2008.
Orientador: Ludmila Thomé de Andrade.
1. Escrita. 2. Análise do discurso. 3. Letramento. 4.
Gêneros discursivos. 5. Professores Formação. 6.
Formação continuada.
I. Andrade, Ludmila Thomé de. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação.
CDD: 411
CRISTIANE JOAZEIRO B. SCARAMUSSA
ESCRITA DOCENTE: A CONSTITUIÇÃO DE UM GÊNERO
DISCURSIVO NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES
Dissertação apresentada à Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Educação.
Área de concentração: Educação.
Aprovada em: ____ de ________________ de 2008.
Banca Examinadora
Prof. Dra. Ludmila Thomé de Andrade
Instituição: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Assinatura:_________________
Prof. Dra. Marlene Alves de Oliveira Carvalho
Instituição: Universidade Católica de Petrópolis. Assinatura: ___________________
Prof. Dra. Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro
Instituição: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Assinatura:_________________
Para as professoras brasileiras que têm m uito a dizer;
Para Carlos H enrique, am or e parceiro incondicional;
Para m inha fam ília e am igos, pacientes, compreensivos e incentivadores;
Para G abriel, com panheiro atento e inspirador.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela força e renovação da fé nos momentos difíceis;
À Ludmila Thomé de Andrade, professora e orientadora perspicaz que desde os
tempos da Pedagogia se manifestou disponível e atenta as minhas inquietações.
Mesmo da França, se mostrou “on-line” nos momentos de dúvidas e reflexões
profundas. Sua presença, sua voz e eficiente atuação com certeza me tornaram uma
professora, e porque não dizer pesquisadora, melhor! Nossos caminhos ainda se
constituirão em um gênero discursivo!
Aos meus pais, principais responsáveis pela minha formação, orientando-me pelos
caminhos da ética e dos valores humanos;
A minha segunda família, aquela que eu escolhi: José Antônio, Isa e Elza que se
tornaram responsáveis pela pausa necessária para tomar fôlego em almoços
alegres e dominicais;
Ao meu marido lindo, Carlos Henrique pela compreensão da minha ausência. Sem
seu amor e apoio eu não conseguiria chegar ao final;
Ao meu filho Gabriel, que ainda em meu ventre, ao longo desses últimos oito meses,
se mostrou participativo, atento e paciente as minhas escritas. Meu amor por você já
é tão grande...
Aos meus amigos queridos e mestres Rita e Ricardo, pelo companheirismo,
incentivo e força durante todo o mestrado. Conhecer vocês significou não perder a
coragem de seguir em frente!
Ao LEDUC e seus integrantes que contribuíram gradativamente para o meu
amadurecimento na pesquisa, se tornando parceiros efetivos nas discussões e
reflexões dos encontros do grupo e referências significativas para futuras produções;
Aos professores do programa Pós-Graduação em Educação da UFRJ, em especial:
Libânia Nacif Xavier pela oportunidade e o incentivo de escrever, apresentar e
publicar meu primeiro artigo e Ana Maria Cavaliere pela dedicação à frente da
coordenação do programa e respeito pelos alunos;
Aos funcionários da Secretaria da Pós-Graduação UFRJ, Solange e Henrique, pela
presteza e eficiência no trabalho, pelo carinho, gentileza e dedicação no trato com
nossas “urgências”;
Às alunas-professoras participantes do Curso de Extensão Alfabetização, leitura e
escrita, ano de 2006/2: suas escritas ecoaram suas vozes. Hoje, minha escrita se
constitui das nossas vozes em diálogo.
Às professoras da banca examinadora, Ana Monteiro e Marlene Carvalho pela
gentileza e consideração na disposição da leitura e avaliação deste trabalho.
Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios,
são saberes necessários à prática educativa. V iver a abertura respeitosa aos outros e, de
quando em vez, de acordo com o m om ento, tomar a própria prática de abertura ao outro
com o objeto da reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente. A razão ética da
abertura, seu fundam ento político, sua referência pedagógica; a boniteza que há nela com o
viabilidade do diálogo. A experncia da abertura com o experiência fundante do ser
inacabado que term inou por se saber inacabado. Seria im possível saber-se inacabado e não se
abrir ao m undo e aos outros à procura de explicação, de respostas a m últiplas perguntas. O
fecham ento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao im pulso natural da
incom pletude.
Paulo F reire (1996)
RESUMO
SCARAMUSSA, Cristiane J. B. Escrita docente: a constituição de um gênero
discursivo na formação continuada de professores. Rio de Janeiro, 2008.
Dissertação (Mestrado Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Este estudo tem como objetivo contribuir para as discussões sobre a
formação continuada de professores, a partir da análise discursiva das produções
escritas de alunas-professoras alfabetizadoras de um curso de extensão sobre
alfabetização, leitura e escrita. Consideramos que ao convidá-las a viver a
experiência da escrita na formação continuada contribuímos para que seu texto se
constituísse num espaço dialógico e discursivo em que a meta-reflexão se
estabeleceu como possibilidade delas repensarem suas práticas, sua formação e
sua identidade docente. A partir das concepções de autoria e interlocução,
verificamos que o campo empírico se assentou sobre práticas de letramento
voltadas para a experiência da linguagem escrita como forma do sujeito descobrir o
autor que em si. Nossa intenção com este estudo foi apontar como é possível
produzir uma compreensão do professor em formação pela via de sua escrita, já que
por esta via ele pode tornar-se autor de seus próprios textos, ao construir
enunciados singulares e autênticos de sua trajetória de vida e de profissão, através
da perspectiva sobre o profissional de educação como um sujeito histórico. Optamos
pela análise do discurso de linha francesa como um caminho metodológico para as
produções escritas das alunas-professoras, sob um gênero discursivo que se
constituiu durante a formação: o portifólio. Para esta investigação discursiva,
selecionamos alguns conceitos norteadores, tais como: análise do discurso,
interlocução, polifonia, gêneros discursivos, linguagem e formação de professores,
tratados por autores como: Bakhtin (2004); Lahire (2002); Maingueneau (1997);
Goulart (2005) e Andrade (2005; 2007; 2008); entre outros, que acreditamos serem
os alicerces teóricos que fundamentaram esta pesquisa. Partimos da definição de
categorias que envolviam desde o que as alunas objetivaram dizer, passando pela
análise do formato do texto utilizado, em paralelo com a observação das aulas do
curso. Foram observados nos portifólios entrelaces entre suas histórias de vida e
relatos de seu cotidiano profissional na escola que poderiam tecer a possibilidade de
resignificar suas ações, confrontando sua prática com o que se aprendeu na
extensão, ampliando a sua habilidade para tecer um sentido para a sua história
profissional de maneira criadora, dialógica e reflexiva.
Palavras-chave: Formação continuada; análise do discurso; letramento; gêneros
discursivos.
ABSTRACT
SCARAMUSSA, Cristiane J. B. Escrita docente: a constituição de um gênero
discursivo na formação continuada de professores. Rio de Janeiro, 2008.
Dissertação (Mestrado Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
This study aims at contributing to the discussions towards continuing teacher
education, from the perspective of a discursive analysis of literacy student-teachers
enrolled in an extension course which focused on literacy, reading and writing. As we
invited these teachers to participate in a writing process experience during their
continuing education, we considered that we have contributed for their texts to
constitute a dialogic and discursive space in which meta-reflection is established as a
possibility for them to reexamine their practices, their education, and their teaching
identity. Assuming the concepts of authorship and interaction, we could verify that the
empirical research field was based on literacy practices around their written language
experience as a way for the subject to unveil his/her own authorship. In this study, we
intended to point out how it could be possible to produce a teacher’s understanding
of their education through their own writing, once through this means they could
become author of their own texts, as they construct unique and authentic utterances
of their own lives and professional stories, though a perspective which considered
the education professional as a historical subject. We adopted French Discourse
Analysis as a methodological approach to examine the student-teachers’ written
productions, considering the portfolio as a discourse genre constituted during the
course. In order to investigate the discourse, we selected some key concepts, such
as: discourse analysis, interaction, polyphony, discourse genre, language and
teacher education. In order to do that, we considered Bakhtin (2004) Lahire (2002)
Maingueneau (1997); Goulard (2005), and Andrade (2005; 2007; 2008), among
others, whom we believe are the theoretical tenets that anchor this research. We
considered the definition of categories that involved both what the students wanted to
say, and the analysis of the text format they employed, in parallel with classroom
observations. In the portfolios, we observed that their life stories intertwined with
reports form their every-day professional lives at school, which could weave together
the possibility of resignifying their actions, thus confronting their practices with what
they have learned during the course, and amplifying their abilities to weave together
a new sense for their professional histories in a creative, dialogical, and reflexive
manner.
Keywords: Continuing education; discourse analysis; literacy; discourse genre.
SUMÁRIO
1 Introdução............................................................................................................................9
1.1 Por que estudar a formação continuada de professores? ................................................9
1.2 Como tudo começou: trajetória de pesquisa ...................................................................12
2 Percepções de algum lugar: quando a pesquisadora se encontra com a
professora.............................................................................................................................18
2.1 Formadoras-autoras: os embates da formação .............................................................. 21
2.2 O espelhamento ............................................................................................................. 24
3 Pensando na Formação de Professores ....................................................................... 31
3.1 Paradigmas atuais de formação de professores .............................................................32
3.1.1 Modelos de compreensão da prática docente ........................................................32
3.1.2 Formação de professores para a justiça social ......................................................41
3.1.3 Dez anos da LDB: tensões na formação docente ..................................................43
3.1.4 Formação de professores: desafios para o século XXI ..........................................45
3.1.5 Teoria e prática na formação de professores: qual caminho seguir? .....................47
3.2 Linguagem, produção escrita e formação de professores................................................48
3.2.1 Escrever: autoria e participação social ...................................................................52
3.2.2 Narrativas, memórias e memoriais: contando nossa história através da escrita....55
3.2.3 Escrita de professores: memoriais de formação .....................................................61
4 O Curso de Extensão Alfabetização, leitura e escrita como prática de letramento.......67
4.1 Histórico do curso; ementa, objetivo e planejamento das aulas.......................................68
4.2 O perfil das alunas-professoras de 2006/2.......................................................................74
4.3 Letramento e formação de professores ...........................................................................77
4.3.1 Retextualização e metalinguagem: práticas de letramento ....................................78
5 A produção escrita das alunas-professoras: uma análise discursiva ........................86
5.1 Caminhos metodológicos.................................................................................................86
5.1.1 Análise do discurso francesa .................................................................................90
5.1.2 Gêneros discursivos e interdiscursividade .............................................................92
5.2 Portifólio: Produzindo reflexão ........................................................................................96
5.2.1 A análise discursiva dos portifólios ........................................................................99
6 Considerações finais ......................................................................................................110
6.1 A seleção .......................................................................................................................115
6.2 O memorial ....................................................................................................................117
6.3 Na releitura, singelamente uma contribuição ................................................................118
Referências ........................................................................................................................121
Anexos ................................................................................................................................125
1 - Ficha de inscrição ...........................................................................................................125
2 - Ementa, objetivo e programação de aulas .....................................................................126
3 - Planejamento das aulas 2/7/8 ........................................................................................131
4 - Orientações para elaboração do portifólio ......................................................................135
1 Introdução
1.1 Por que estudar a formação continuada de professores?
Vivemos hoje uma realidade social em que a fragmentação, a multiplicidade e
a grande velocidade das informações que circulam constituem-se como
características marcantes. Impulsionadas pelos avanços tecnológicos, tais
características contribuem decisivamente para novas configurações políticas e éticas
das relações sociais, dos modos de produção e da constituição de conhecimentos
dentro e fora da escola.
Assim, diante desta nova ordem cultural, a linguagem se constitui numa
dimensão renovada na vida dos sujeitos. Seus usos, funções e implicações, bem
como o contexto social do qual emergem e em que se desenvolvem sofrem grandes
transformações causando, muitas vezes, a sensação de caos e descontrole frente a
esta realidade marcada pela rapidez que se pode gerar e fazer circular informações
pelo mundo.
Neste contexto encontramos o professor do Ensino Fundamental I, com uma
debilitada formação inicial, trabalhando diariamente em jornadas duplas para render
o escasso salário que recebe, com poucas oportunidades de formação continuada e
completamente imerso no que ordinariamente chamam de exclusão digital. Ele pode
até ter acesso a computadores e internet, mas estas ferramentas lhe servem pouco
ainda no trabalho ou para pesquisa de dados e informações atualizadas para aula.
Este profissional deve se inserir, então, nesta realidade o apressada, sem ser
atropelado por ela.
Como resultado das recentes políticas públicas de inclusão social na
educação do nosso país, percebemos um grande crescimento da população escolar,
na qual se configura um novo perfil de escola. Essa “nova” escola agora se reafirma
sobre diferentes realidades socioeconômicas e culturais para atender aos direitos
básicos de acesso e inclusão do cidadão brasileiro. Para tentar minimizar a
proporção de outras dificuldades que estariam por vir, modificações na estrutura do
sistema ocorreram. Algumas dessas modificações foram: a ampliação do número de
escolas, do número de professores e do tempo de escolaridade dos alunos, além do
sistema de ciclos de formação e ainda a duração em dias do ano letivo.
As políticas de inclusão, porém, não arquitetaram um dado que esta realidade
nos aponta: a formação do professor. Neste contexto, percebemos como necessária
uma revisão das duas formações que complementarmente preparam esse professor
para essa “nova” escola: a formação inicial e a formação continuada.
A partir das transformações que ocorreram no contexto educacional, a tarefa
dos professores tornou-se complexa. Formar alunos de diferentes classes sociais,
com bagagens culturais muito heterogêneas e distanciadas da representação de
aluno que puderam construir em sua formação inicial, tanto a partir de seus estudos
teóricos, quanto a partir de seus estágios, muitas vezes feitos em um momento que
não corresponde mais à escola de hoje. Dar conta do atendimento a todos, sem
distinção, realizando um trabalho diversificado, geralmente sem embasamento
teórico nem apoio pedagógico para tal, o elementos da realidade e se constituem
no atual trabalho do professor.
Aos poucos, vamos percebendo ações de formação de professores
vinculadas às novas propostas do governo federal, que convergem para
intervenções de atualização profissional e formação continuada de professores
1
.
1
A Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica compõe-se por Universidades
que se constituem Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação. Cada um desses Centros mantém
uma equipe que coordena a elaboração de programas voltados para a formação continuada dos professores de
Educação Básica em exercício nos Sistemas Estaduais e Municipais de Educação. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=203
Acesso em: 23 nov. 2008.
Consideramos fundamental, neste momento político, compreender o teor de tais
propostas e logo, como concebem a formação de professores.
Partindo desta nova ordem cultural e econômica na qual nos organizamos,
emerge o desejo de se pensar em novas diretrizes e princípios para uma formação
continuada de professores que abarque e leve em conta esta realidade. Mais do que
considerar a realidade, uma formação que se fundamente em uma prática
renovadora para a promoção da reflexão, da discussão e da mudança social.
Observamos que a prática do letramento se afina com esta perspectiva, na medida
em que o exercício da escrita na formação pode possibilitar uma meta reflexão do
docente sobre sua prática e sobre seu saber.
Tomando como referência a definição de Soares (2000, p.17) sobre
letramento - “implícita nesse conceito está a idéia de que a escrita traz
conseqüências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, lingüísticas, quer
para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprende a
usá-la.” a concepção de formação de professores como prática de letramento tem
como fio condutor a hipótese de que é possível e se faz necessária, uma prática
diferenciada de formação continuada, voltada para a experiência da linguagem
escrita como forma do sujeito descobrir o autor que nele. Nesta descoberta se
deparar com a mudança: o exercício de ser autor implica em se tornar agente e logo,
“tem conseqüências sobre o indivíduo, e altera seu estado ou condição em aspectos
sociais, psíquicos, culturais, políticos, cognitivos, lingüísticos e até mesmo
econômicos [...]”. (SOARES, 2000, p.18)
Assim, pensando em uma formação continuada voltada para o letramento,
este trabalho tem por objetivo fundamentar alguns princípios que possam nortear
futuras ações de formação, se utilizando da produção escrita de professoras
enquanto atividade metalingüística, ou seja, enquanto objeto de reflexão sobre a
própria linguagem. (OLSON, 1995)
Nesta perspectiva, escolhemos um curso de extensão universitário para
professoras do Ensino Fundamental I como campo empírico, onde práticas de
letramento docente eram planejadas pelas formadoras. As alunas-professoras, ao
produzir escritas, dispuseram de seus conhecimentos prévios (saberes docentes
2
)
para se relacionar com os diferentes (às vezes novos) gêneros discursivos
apresentados e (re)construir significados/discursos/enunciados sobre sua prática e
sobre seus saberes.
Pretendemos com este estudo produzir uma compreensão do professor em
formação pela via de sua escrita, que este pode se tornar autor de seus próprios
textos, construindo enunciados singulares e autênticos de sua trajetória de vida e de
profissão. Através desta perspectiva de compreensão do profissional de educação
como sujeito histórico e atuante no mundo do trabalho, acreditamos que sua escrita
lhe permite resignificar suas ações, possibilitando que o confronto entre sua prática
e o que se aprende na extensão possa dar mais nitidez a sua própria identidade de
professor.
1.2 Como tudo começou: trajetória de pesquisa
A iniciativa de estudar o tema que se refere à escrita na formação de
professores surgiu a partir do momento em que ingressei no Laboratório de Estudos
de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação (LEDUC) e no Grupo de Pesquisa
2
Maurice Tardif, 2002.
Escrita, Leitura e Literatura na Escola: Professores em Formação, coordenado pela
Professora Ludmila Thomé de Andrade
3
.
Ao longo do primeiro semestre do ano de 2006, viemos traçando uma rotina
de leituras, estudos e discussões para fundamentar e sistematizar nosso ponto de
partida enquanto objeto de estudo: a linguagem. Paralelamente a essas discussões,
na disciplina de História da Educação
4
, ministrada pela Professora Libânia Nacif
Xavier
5
, iniciamos os estudos sobre a importância da História e da Memória
enquanto fios condutores para as reflexões sobre o presente. Assim, cursando a
disciplina, a partir dos momentos de leituras e fichamentos propostos, pude
estabelecer relações com o que vinha estudando até aquela ocasião no grupo de
pesquisa. Percebi a relevância de buscar na História e na Memória, registros
escritos de professores que pudessem ser investigados como uma forma de
linguagem, imbuída de significados e representações e como instrumento de coleta
de dados.
Para sistematizar e formalizar todas as discussões elaboradas e suas
contribuições para o tema de estudo de cada um, foi proposto, como trabalho final
desta disciplina, uma pesquisa baseada, primeiramente, na busca por artigos
apresentados nos Congressos Brasileiros de História da Educação (CBHE) e, em
seguida, na realização de uma análise dos mesmos. O objetivo era selecionar
estudos que tratassem ou contribuíssem de alguma forma para o tema de estudo de
cada aluno pesquisador em formação, verificando em que medida ele vinha sendo
discutido ou pesquisado nos CBHE.
3
Doutora em Educação pela Universidade Paris VIII, Professora da Faculdade de Educação da UFRJ e
Coordenadora do LEDUC.
4
Disciplina oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da FE/UFRJ, no primeiro semestre de
2006.
5
Professora da Faculdade de Educação da UFRJ e pertencente ao Proedes (Programa de Estudos e
Documentação Educação e Sociedade).
Percorrendo os três Congressos Brasileiros de História da Educação através
do site www.sbhe.org.br, eixo
6
por eixo, atraíram-me trabalhos que se utilizavam de
histórias de vida de professores para fundamentar as discussões relacionadas à
identidade do professor. Morais e Jesus (2000) justificam:
As narrativas produzidas pelas professoras entrevistadas durante nossas
investigações foram nos revelando não apenas aspectos das múltiplas
experiências vividas por estas mulheres-professoras como também nos
incitando a rever o locus privilegiado de formação do ser-professora,
historicamente apontado como os Cursos de Formação de Professores,
especialmente a antiga Escola Normal e as universidades.
Na maioria desses trabalhos analisados por mim, percebi que os
relatos/registros individuais orais ou escritos dos professores conservavam
elementos importantes e significativos que caracterizavam marcas identitárias do
coletivo da categoria. Assim, fui selecionando os artigos que mais poderiam iluminar
o tema da linguagem articulado com identidade docente e principalmente que
pudessem satisfazer, ao menos em parte, as minhas inquietações acerca do que os
professores falavam ou escreviam nesses documentos de pesquisa. Interessavam-
me os trabalhos que adotavam como seu objeto a voz do professor. Finalmente,
após o momento de “filtragem” de artigos, permaneci com cinco trabalhos para
analisar, todos se utilizando de narrativas de professores, como objeto de estudo e
nelas ressaltando as relações específicas e particulares que os professores
pesquisados estabeleciam com a linguagem no seu percurso profissional.
Após a conclusão deste trabalho
7
, pude observar nos relatos/registros orais e
escritos das professoras nos artigos estudados que as narrativas analisadas
6
De acordo com a terminologia utilizada pela Sociedade Brasileira de História da Educação que enquadra e
classifica os temas apresentados nos Congressos.
7
O trabalho citado foi apresentado sob forma de Comunicação Oral no I Encontro de História da Educação do
Estado do Rio de Janeiro em Junho de 2007, na Universidade Federal Fluminense.
enveredavam por suas histórias de vida e relatos de seu cotidiano profissional na
escola. Naquele momento se confirmou pra mim que suas escritas constituíam um
importante objeto de estudo que estavam imbuídas de histórias e marcas
identitárias relevantes acerca da sua profissão: suas representações de escola, de
formação, seus interlocutores, seu cotidiano e prática docente, entre outros
elementos. Neste momento, minha escolha estava feita: estudaria a escrita do
professor.
Dando continuidade aos estudos sobre linguagem e formação de professores,
em nosso grupo de pesquisa, debruçamo-nos sobre o Curso de Extensão
Alfabetização, leitura e escrita
8
. As atividades propostas neste curso buscavam
convidar as alunas-professoras a se expressarem sobre suas práticas e trajetórias
profissionais a partir das vivências teóricas promovidas pelo curso de extensão
através da escrita e da discussão oral. O objetivo principal
9
do curso era “promover a
reflexão dos professores sobre suas práticas de ensino de alfabetização
implementadas nas escolas, valorizando-se os saberes docentes, a partir do resgate
das suas trajetórias pessoais para a compreensão das práticas pedagógicas.” As
atividades planejadas pelas formadoras do curso e fundamentadas na prática do
letramento, proporcionavam o exercício da escrita das alunas-professoras no intuito
de descobri-las, elas mesmas, autoras e produtoras de textos que refratavam as
suas relações estabelecidas com a aprendizagem e suas reflexões ocasionadas na
extensão. Definem Lima e Andrade (2007, p.3):
8
O Curso de Extensão em Alfabetização havia existido durante 13 anos na Faculdade de Educação da UFRJ,
mas foi retomado durante este semestre de 2006, pelo LEDUC (Laboratório de Estudos de Linguagem,
Leitura, Escrita e Educação), tendo por formadoras do laboratório de pesquisa: Ludmila T. de Andrade, Patrícia
Corsino e Margareth Brainer. Em 2006-2 foi oferecido preferencialmente à professoras do Ensino Fundamental I,
pertencentes à 2ª Coordenadoria Regional de Educação da rede municipal de educação do Rio de Janeiro.
9
A ementa e o objetivo do curso de extensão na íntegra encontram-se em anexo.
O curso de extensão oferecido a professores de escolas públicas no
município do Rio de Janeiro se propôs a ser uma contribuição na formação
do professor alfabetizador, com vistas à melhoria do ensino da língua
portuguesa das escolas públicas. A partir de temas relacionados à
alfabetização, leitura e escrita, buscamos promover a reflexão dos
professores sobre as suas práticas de ensino de alfabetização
implementadas nas escolas, valorizando os saberes docentes, a partir do
resgate das suas trajetórias pessoais para compreensão das práticas
pedagógicas. Portanto, tomamos como princípios fundantes a valorização
da experiência e dos saberes docentes e a reflexão sobre o cotidiano da
sala de aula de alfabetização, à luz dos estudos sobre letramento, os quais
permitem conceber as práticas sociais vivas e dinâmicas e os seus atores
alunos e professores do ensino fundamental- como sujeitos produtores de
história e de cultura. (LIMA E ANDRADE, 2007, p.3)
Assim sendo, surgiu a oportunidade de escolher o curso de extensão como
campo empírico, visto que este nos possibilitaria um infinito leque de opções para as
pesquisas desenvolvidas no grupo, todas com interesse específico sobre formação
docente e especialmente sobre escrita de professores. Diante de tão oportuna
experiência com professoras, o desejo de estudar seus registros/relatos se fundiu
com o desejo de pensar a formação docente, neste caso a formação continuada de
professores. A questão era no que se constituiria essa escrita docente na formação
continuada? E será que elementos constitutivos desse discurso se caracterizariam
em marcas identitárias da profissão de professor?
O objetivo de estudar o curso para o grupo de pesquisa era, se utilizando da
Teoria da Análise do Discurso francesa, examinar os registros escritos das alunas-
professoras observando suas enunciações produzidas sobre a aprendizagem e
sobre as relações discursivas estabelecidas com sua prática a partir dela. A
pesquisa iniciou-se juntamente com o curso, no segundo semestre de 2006, e a
coleta de dados se definiu com a análise do trabalho final solicitado pelas
formadoras sob o gênero de portifólio, tal como registros das observações de cada
encontro do curso, análise documental referente ao curso de extensão e perfil das
alunas-professoras.
Assim, a descoberta da experiência docente através de suas produções
escritas durante o curso de extensão nos fez pensar que o exercício da escrita na
formação continuada pode encaminhar uma tomada de consciência
10
acerca de seu
trabalho docente.
É igualmente intenção deste estudo relatar paralelamente o processo
individual de pesquisa da aluna de mestrado, também professora do Ensino
Fundamental I do Rio de Janeiro como as alunas do curso de extensão, diante do
desafio de um encontro de lugares possíveis na universidade. Neste curso de
extensão em especial, o desafio era falar do lugar de pesquisadora, estando
ocupando também o lugar de professora, vivendo exatamente o que as alunas vivem
diariamente em seu cotidiano docente.
Desta forma, diante da relevância do tema e visto que este pretende suscitar
novas reflexões acerca da formação continuada de professores e de marcas
identitárias presentes na produção escrita docente, o estudo pretendeu refletir sobre
as seguintes questões, a partir das observações feitas das aulas do curso de
extensão e da análise do discurso dos portifólios das alunas-professoras:
Quem eram as professoras participantes do curso de extensão Alfabetização,
leitura e escrita? O que buscavam nesta formação? Qual era sua formação inicial
e que experiências possuíam de formação continuada anterior?
Que enunciações produziram em seus discursos orais e escritos sobre a
escola?
Em que medida esta extensão auxiliou o seu processo de formação
profissional e sua prática docente?
Como utilizaram sua voz docente em suas produções escritas? Enunciaram-
se para alguém? Quem são seus interlocutores?
O que faz a diferença em uma formação continuada voltada para o
letramento?
10
Philippe Perrenoud, 2001.
Penso que as respostas às questões acima aparecerão à medida que os
dados coletados forem se relacionando e se complementando durante a análise. É
importante enfatizar que estamos longe de pretender delinear um modelo de
formação continuada de professores ou tampouco estereotipar a figura do professor
que procura a extensão. A idéia é integrar-se aos estudos realizados que migram
no sentido de promover reflexões para efetivas ações de mudança na formação
continuada de professores do Ensino Fundamental I.
Assim, este estudo estabelece como seu objetivo principal refletir sobre a
idéia de que ouvir o que este professor tem a dizer através de sua produção escrita
é dar vez a sua habilidade para tecer um sentido para a sua história profissional de
maneira criadora, dialógica e reflexiva, buscando a possibilidade de evidenciar
traços de uma identidade docente durante a formação descritos pelo próprio autor
da história – o professor.
2 Percepções de algum lugar: quando a pesquisadora se encontra com a
professora
Neste momento do estudo, focalizamos o processo que constituiu a primeira
experiência desta aprendiz de pesquisadora durante o Mestrado em Educação.
Também professora do Ensino Fundamental I da rede pública carioca, passei a
atuar em paralelo como pesquisadora, observando um curso de extensão destinado
a professoras como eu. Na filosofia da linguagem de Bakhtin (2004), encontrei
alicerces teóricos para discutir este encontro de lugares discursivos na universidade,
em especial na formação continuada de professores.
O movimento pretendido neste contexto de pesquisa e produção de novos
discursos na universidade é de reflexão acerca de identidade, discurso e polifonia,
destacando que em alguns momentos o discurso universitário se mostra muito
distante da prática pedagógica escolar do professor. Para desembaraçar este
novelo, utilizo como fio condutor este encontro de lugares. Segundo Brandão (2004)
podemos definir o conceito de lugar, de acordo com a teoria francesa de Análise do
Discurso, como a representação de uma posição social. Assim, na estrutura de uma
instituição há lugares demarcados socialmente,
[...] cada um marcado por propriedades diferenciais. No discurso, as
relações entre esses lugares, objetivamente definíveis, acham-se
representadas por uma série de formações imaginárias” que designam o
lugar que destinador e destinatário atribuem a si mesmo e ao outro, a
imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.
(BRANDÃO, 2004, p.44)
É importante ressaltar que não tenho pretensões em construir um gênero
autobiográfico, mas em trazer à reflexão as percepções tão marcadas da
experiência de pesquisadora e de professora, para discutir o encontro possível de
discursos universitários pautados na pesquisa e práticas pedagógicas que se
transformam a partir da leitura que as alunas-professoras puderam fazer destes
discursos apresentados didaticamente na formação.
O desafio da pesquisadora, vendo-se espelhada nas alunas-professoras
participantes do curso de extensão, se mostra relevante, que suscita questões
acerca dos lugares ou posições que assumimos na universidade. Diante de tal
desafio, perguntei-me de qual lugar eu falaria? Se do lugar de professora, também
eu estaria em formação, visto que aqueles conhecimentos também seriam úteis à
minha prática docente. Ao mesmo tempo, estaria ali presenciando as aulas,
observando, analisando e registrando todas as etapas da formação, do lugar de
pesquisadora. Falar sobre as alunas-professoras, sendo eu mesma uma delas, foi
uma das muitas inquietações importantes que me conduziram a produzir este
estudo.
No contexto universitário, entre os lugares ocupados por mim como aluna, de
graduação e de pós-graduação, como aprendiz de pesquisadora; de professora que
ali aprende e reflete sobre sua prática; de formadora de meus alunos e outros ainda,
tenho claro que em todos estes espaços estou me constituindo identitariamente.
Percebo que estes lugares se inter-relacionam, se complementam e que nosso
discurso tece-se da interlocução efetiva, a partir de enunciações ocorridas em
interações entre indivíduos que ocupam esses lugares.
O lugar de professora ganha destaque em minha trajetória, pois foi ocupado
por mim, na prática, desde 1999, quando tomei posse na rede pública de educação
para o cargo de PII
11
. A partir de então, me mantive atualizada no que se refere a
cursos de “capacitação” oferecidos pela própria rede de educação, além de cursar a
faculdade de Pedagogia concomitantemente ao trabalho. O lugar de pesquisadora
foi sendo ocupado a partir de 2006, quando ingressei neste Programa de Pós-
Graduação em Educação (Mestrado) e imediatamente no Grupo de Pesquisas do
LEDUC sobre Formação de Professores. Neste espaço, participei de encontros para
estudos, discussões teóricas e vivenciei a prática da pesquisa em campo no curso
de extensão.
Ao longo do primeiro ano do mestrado e desde o ingresso neste grupo,
traçamos uma rotina de leituras, estudos e discussões que fundamentou e
sistematizou nosso ponto de partida, enquanto objeto de estudo. Durante esta etapa
de estudos e discussões teóricas, a coordenadora do grupo esteve juntamente com
11
Nesta rede pública de educação do Rio de Janeiro nomeiam-se “PI” os professores com formação para
lecionar as disciplinas do Ensino Fundamental II (conjunto das antigas 5ª, 6ª, e séries) e Ensino Médio. E
“PII” os professores com formação para lecionar as disciplinas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I
(conjunto das antigas C.A., 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries).
outras duas formadoras à frente da retomada de um curso de extensão para
professoras alfabetizadoras que obteve sua primeira fase com início em 1986,
seguindo com uma grande procura por mais alguns anos e como proposta de
convênio com uma Secretaria de Educação do Rio de Janeiro. Ele teve seguidas
edições desde então, a2002. Durante um pequeno intervalo, após o ano de 2002,
o curso de extensão ficou inativo, devido à aposentadoria da coordenadora da
equipe de trabalho. Em 2006, ele foi retomado por uma das integrantes da equipe de
trabalho anterior, sob uma nova versão, com uma proposta baseada nos mesmos
princípios da primeira, mas com novas atividades e diretrizes. A descrição mais
completa acerca do histórico deste curso será encaminhada na seção 4.1.
As atividades propostas neste período buscavam convidar as alunas-
professoras a se expressarem sobre suas práticas e trajetórias profissionais a partir
das suas vivências teóricas promovidas pelo curso de extensão através da escrita e
da discussão oral. Assim sendo, escolhemos o curso de extensão como campo
empírico, visto que este nos possibilitaria um infinito leque de opções para as
pesquisas desenvolvidas no grupo, todas com interesse específico sobre formação
docente e especialmente sobre escrita de professores.
2.1 Formadoras-autoras: os embates da formação
O início de uma experiência de formação continuada para professores
suscitou no grupo de pesquisa efervescentes discussões, acerca do lugar que
naquele momento ocupávamos e sobre as atividades metalingüísticas (OLSON,
1995) solicitadas pelas formadoras, em que a escrita era utilizada como objeto de
reflexão sobre a própria linguagem. O objetivo de trabalhar com a linguagem para
produzir reflexão sobre a prática docente das alunas-professoras acabou
reverberando fortemente no grupo de pesquisa, nos instigando a produzir também
escritas reflexivas sobre nossos lugares e atuação na formação. Os lugares de
formadoras, pesquisadoras e autoras se entrelaçavam e tinham muito que dizer:
expectativas da formação, realidade das alunas-professoras, escola sica versus
universidade. As enunciações clamavam por respostas. O resultado foi muita
produção.
Neste movimento de elaboração do que ocorria no espaço vivo da formação,
o estudo conceitual de Reis e Andrade (2007) apresentam o momento em que nos
deparamos com as surpresas da formação:
Avaliamos as nossas próprias surpresas buscando sempre devolver nossas
impressões sobre os textos lidos, de modo a permitir aos autores dos textos
que elaborassem intervenções sobre suas produções. A idéia era de se
construir um contexto propício à produção e interlocução verdadeiras, já que
constituídas de um diálogo entre professores e formadores. Assim, num
primeiro momento, vimos professores escrevendo como professores e
decepcionando a expectativa dos formadores. Vimos também, pouco a
pouco, a oportunidade de aprimorarem sua experiência como produtores-
autores de textos. Sendo assim, a explicitação de sua relação com a
linguagem, sua posterior abordagem e resgate tornaram-se ferramentas
práticas de reflexão-formação. Ao mesmo tempo em que falávamos da
linguagem, produzíamos linguagem (escrita). Espelhadamente, ao mesmo
tempo em que falávamos de formação, produzíamos a formação. A fórmula
aqui testada e proposta como eficaz pode se resumir pela equação de que,
usando-se a ferramenta da linguagem, a experiência do uso, como
construção dialógica, permite que se compreenda melhor sobre a linguagem
e, assim, fertiliza-se o campo de compreensão desse objeto de
conhecimento. (REIS e ANDRADE, 2007, p.4-5)
Caracterizei o registro escrito por mim, a partir da observação de cada aula do
curso, como gênero anotações. Ele tinha uma forma bem variada, assim como o seu
conteúdo também variou bastante, de acordo com minha subjetividade interpretativa
e julgamento das situações de enunciações relevantes.
Da produção do grupo de pesquisa como um todo, obtivemos um total de 25
relatos reflexivos de observação das aulas, sendo 14 relatos escritos por mim de um
total de 15 aulas e os outros 10 foram de observadoras esporádicas, também
integrantes do grupo. Os mesmos eram apresentados ao grupo de pesquisa na
mesma semana para discussão sobre suas intenções de estudos vinculadas a esta
formação continuada. Ainda Reis e Andrade (2007) destacam, sobre estes relatos
reflexivos produzidos por nós:
No grupo de pesquisa, além das práticas correntes relacionadas a essa
atividade - estudo, análise de dados e discussões orais conceituais-, todas
passamos a ter a prática da escrita de textos de forma muito livre e
espontânea. Escrevemos muito, a atividade era percebida com prazer. A
produção dos textos era compartilhada através de sua leitura e análise. A
socialização dos textos constituía-se em momentos de encontro do grupo e
de efetiva construção de conhecimento. Além do prazer em nos lermos,
observávamos nossos próprios estilos e encontrávamos ecos internos,
criando metáforas que se tornaram significantes e foram nos permitindo
conversar sobre as questões da formação e escrita docentes. O grupo
consolidou-se como grupo em torno do objeto de pesquisa, que, por sua
vez, refletia a existência real no curso de extensão. (p.6)
Os relatos deveriam se caracterizar como gênero ata, mas não com uma
delimitação rígida de formato. Assim, à medida que se discutiam os relatos no grupo
de pesquisa, percebemos que um novo gênero se constituía a partir de uma mistura
de traços poéticos, descritivos e metafóricos:
A elaboração dessas escritas pelos membros do grupo de pesquisa
suscitou a discussão sobre o gênero registro subjetivo de reflexões de
pesquisa [grifo das autoras], usado pelas pesquisadoras, dentre as quais
estão as próprias formadoras. No âmbito metodológico da pesquisa,
permitiu situar nossa própria produção textual de pesquisadoras como algo
inacabado, ainda a ser apurado, que pode se apurar no fazer e em se
fazendo, apenas diante de elementos próprios à formação que desejamos e
planejamos que aconteça. Ou seja, é no calor da construção de uma
metodologia da formação docente ou de uma didática da formação docente
que consideramos que devemos tratar simultaneamente, com igual
seriedade, o produto e o processo, vistos em articulação, um alimentando o
outro, fazer didático-pedagógico em coerência com conceitos disciplinares
apresentados. Os aspectos formais referem-se a aspectos discursivos e os
aspectos conteudísticos referem-se aos sentidos a serem construídos na
formação. Seria uma enorme contradição tratar de modo monológico de
conteúdos tão dialógicos como a linguagem conforme a concebemos.
Sendo assim, um trabalho de forma, um trabalho metadiscursivo, que
estivemos dispostas a assumir em seu caráter próprio de inacabamento.
Perceber que ainda não sabemos como temos que escrever e nos colocar
na posição de aprendizes, de estudiosos que querem se dispor a saber um
modus faciendi que esteja em sintonia com razões argumentáveis
conceitualmente. Ao assumirmos desta maneira nossa própria produção
escrita, então, estivemos mais aptas a fazer as professoras discentes
pensarem em suas próprias produções escritas desta mesma forma, ou
seja, assumindo que as reflexões metadiscursivas são fundamentais para
que a produção textual seja de qualidade, cumprindo funções comunicativo-
interaciona is eficazmente, constitutivas de sujeitos que têm um projeto de
escrita e não estejam escrevendo para cumprir o que se deve cumprir,
ocupando aquela posição de poder dada, de tarefeiros. (REIS e ANDRADE,
2007, p.6)
Neste sentido, experienciando a escrita como objeto de reflexão sobre a
língua e sobre nossas práticas, compreendemos o quanto este exercício se tornou
um forte aliado na análise das enunciações docentes.
2.2 O Espelhamento
Quando estava no segundo período do primeiro ano do curso de Mestrado em
Educação, fui convidada pela coordenadora do grupo e minha orientadora a assistir
às aulas do curso de extensão para obter dados para minha pesquisa, ainda muito
rudimentar na ocasião. Estava ciente de todo o histórico do curso e de seu blico
alvo, mas, não me imaginava ali em outro lugar senão no de aluna também, visto
que era este o lugar para o qual fui selecionada na universidade.
No primeiro dia de aula, meu comportamento foi o de qualquer aluna: tirei
cópias do texto do dia, cheguei no horário e sentei junto às alunas-professoras.
Enquanto a aula não iniciava, reconheci e pude trocar idéias com velhas
companheiras de trabalho e de faculdade. Estava ambientada e contente no lugar
em que sempre estive: o de professora. Ali, naquele momento, também aluna-
professora, ansiosa pelas novas descobertas, vi-me espelhada muito proximamente
nas alunas do curso, também professoras, buscando a formação continuada na
universidade.
Sobre as impressões deste dia do curso, escrevi o texto Percepções de algum
lugar
12
(texto que acabou dando origem a esta seção) em que descrevo em caráter
informal e com traços de diário, o momento em que percebia claramente os lugares
discursivos que eu ocupava ali apesar de estar confusa com este posicionamento.
No primeiro momento do curso, estava enquanto aluna, como todas as
outras colegas da Rede - algumas conhecidas de outros cursos, reuniões
de pólo e outras escolas. Professoras do XXX sempre se encontram por
aí... Pois é, estava desesperada por ter que dar conta de mais uma
“disciplina” com leituras e trabalhos. Ao mesmo tempo empolgada porque ali
estava o caminho para iniciar a minha dissertação. Estava no lugar de
aluna. De repente, após minha chegada na sala, XXX - professora do curso
e minha orientadora diz que precisa me entregar um papel. Outras
professoras se levantam também achando que se tratava de algo que o
tivessem recebido. E XXX diz que a folha era pra mim, porque eu era
aluna dela, e outras coisas. Peguei então, o que só dizia respeito aos
integrantes da pesquisa: o planejamento da aula daquele dia. De alguma
maneira, voltei para o meu lugar, um tanto quanto confusa. No primeiro
intervalo, corri até XXX. Perguntei sem nenhum pudor, daquele lugar de
quem sempre foi aluna mesmo: Qual é o meu lugar? Qual é a minha
posição? O que tenho que fazer? O que eu sou afinal?” E ela respondeu,
naturalmente, que eu deveria estar no lugar de pesquisadora. Mas, se você
quiser dar sua opinião, falar enquanto professora também... Isso daria uma
outra orientação”. Pronto, estava formado um turbilhão de vidas na
cabeça. (JOAZEIRO, 2008)
Ao longo do texto, naturalmente sigo produzindo reflexões acerca desses
lugares, de como me posicionar, de como escrever e produzir discursos sob
motivações diversas oriundas desses lugares diferentes e polifônicos (BAKHTIN,
2004). Polifônicos por que o discurso enunciado nestes relatos reflexivos é tecido
por muitas vozes que me organizam (ou desorganizam) enquanto sujeito que
interage em lugares distintos. A participação e atuação efetiva em cada lugar me
concedem possibilidades de interagir e de me relacionar dialogicamente com muitos
outros. E é nesta interação dialógica com outros sujeitos que me constituo e me
revelo autora. Assim como me projeto no outro, o outro se projeta em mim:
12
O trabalho citado foi apresentado sob forma de Comunicação Oral no IV Colóquio Franco-Brasileiro de
Filosofia da Educação em agosto de 2008, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Como falar de um lugar só, ocupando vários lugares ao mesmo tempo?
Bom, ainda estou amadurecendo neste sentido. Tentando me organizar
nesses lugares e saber exatamente quando devo falar de tal lugar. Às
vezes, um se sobressai ao outro, como neste desabafo ingênuo de aluna.
Por isso mesmo, não acredito na rigidez desses lugares. Naturalmente eles
estarão presentes em qualquer produção minha, mas ainda tenho que
aprender o que buscar em alguns lugares. Neste curso de extensão em
especial, vai ser difícil falar do lugar soberano de pesquisadora vivendo
exatamente o que as alunas vivem diariamente. Acredito que será um olhar
especial... Quem sabe um olhar que promova alguma mudança mais tarde?
(JOAZEIRO, 2008)
Após o primeiro impacto de definição de lugares, enfim me sentia
pesquisadora. Mas não foi cil, ver-me na posição de observar e produzir reflexões,
passar a esta nova posição é por si um ato importante na experiência de uma
mestranda, mas este ainda se tornava mais difícil por se tratar de professoras como
eu. O movimento foi intenso nas primeiras aulas do curso. As alunas-professoras
queriam falar, demonstrar suas dificuldades no atual sistema de ensino e suas
insatisfações sobre a falta de integração entre os professores. Uma aparentemente
simples pergunta das formadoras acerca de suas expectativas com relação ao curso
de extensão gerou um turbilhão de desafogos. Ficou claro que as alunas-
professoras no seu cotidiano de trabalho não desfrutavam de um espaço de
interação dialógica:
O plano de aula estava super recheado e as alunas ansiosas por falar,
questionar e prontas para se defender (de quê?). Foi perguntado a respeito
de suas expectativas. Ninguém respondeu. Será que não esperavam nada
do curso? Por que estariam ali então? As respostas vinham em forma de
outras perguntas. Queriam respostas pra suas angústias regime de ciclo,
descontinuidade no trabalho pedagógico, enturmação por idade,
incapacidade diante das crianças que não aprendem. São muitas angústias!
Foi preciso interferir, se o... uma aluna (A XXX que foi minha colega
de faculdade) comentou que esperaria um embasamento teórico e um
espaço de troca durante o curso, que o sistema não oferecia este tipo de
espaço para as professoras. Com a explicitação do programa e das tarefas,
foi possível perceber alguns “burburinhos” entre as alunas do tipo: ih,
começou essa história de ler!”; a sua chefe sabe que você vai ler XXX?”;
que horas que eu vou escrever?”. Sem falar no olhares de uma para outra
que foram muito expressivos. É sempre assim, não tem jeito, é um primeiro
momento de resistência e de quem está acostumado a ouvir sempre as
mesmas teorias e não conseguir aplicar na prática de fato. A realidade é
dura! A meu ver, dura porque é inacreditável e exige do professor uma
formação diferenciada, especializada e atual. Os formadores (professores
de cursos de formação de professores) geralmente não vivenciaram de fato
essa realidade. Ninguém ainda pensou, escreveu ou elaborou algo que
funcione e que possa modificar essa situação. Por isso tanta revolta e
desabafo. (JOAZEIRO, 2008)
O lugar tangencial que eu ocupava, frente a essas efervescentes discussões
e burburinhos tão significativos durante a formação, e que eram o escapamento do
que também me incomodava e me angustiava no trabalho, era sacrificante, porém
revelador de minha própria identidade docente e talvez um pouco confortável por
estar no lugar de expectadora. O segundo relato reflexivo que produzi De um lugar
mais confortável
13
descreve essas percepções:
Tendo então, encontrando um lugar mais confortável para me acomodar no
curso de extensão, tudo pareceu - à primeira vista - mais simples. Não foi
bem assim. Tarefas foram definidas e o olhar agora tem que ser
“fotografado” e registrado. A diferença de estar nesse novo lugar e não no
lugar de aluna é que talvez não vivencie, de fato, o calor das discussões.
Onde elas realmente acontecem, no seio dos pequenos grupos, sem a
aprovação ou desaprovação do formador. Ali tudo pode e tudo é possível.
Todos os assuntos surgem e as emoções afloram. Mas eu estava olhando
de longe, tentando ler seus lábios, exercitar a audição (imaginem!). [...]
Fomos então apresentadas a toda turma como pesquisadoras. Acho que
fiquei aliviada. Professor não esacostumado a ficar só olhando, quer logo
se meter no babado!
Os dois primeiros relatos me parecem ainda um ajuste de lugares: aluna,
professora, pesquisadora. As reflexões se basearam nesse ajuste e pretendiam
favorecer, em princípio, a voz da pesquisadora. A partir do terceiro relato, traços da
voz da professora foram aflorando e se mostrando calorosamente. Estava num lugar
privilegiado: poderia questionar a formação em de igualdade com as formadoras
durante nossas discussões no grupo de pesquisa, mas com um traço diferenciado, a
13
Devo mencionar que os trechos transcritos dos relatos escritos por mim, a partir das observações das aulas do
curso, em 2006, estarão destacados em forma de citação, ainda que não tenham sido publicados.
meu favor. Eu sentia que sabia quais eram as necessidades de formação daquelas
alunas-professoras. Aos poucos, em nossos encontros, fui contribuindo para as
reflexões a respeito da formação, sem desdenhar da magnitude do inacabamento da
proposta elaborada pelas formadoras que possibilita a interação dialógica entre
formadores, pesquisadores e professoras. Minha participação no grupo com certeza
ajudou a repensar a formação:
Na apresentação sobre Vygotsky, relacionando pensamento e linguagem,
uma professora trouxe o exemplo da criança surda que possui suas próprias
representações mentais (na língua de sinais) e se relaciona de maneira
única. A apresentação foi tão intensa que o momento 1 durou até o intervalo
(programado para durar até às 19h) que aconteceu meio atrasado, às
19:45. Diante do ocorrido, não foi realizada a atividade com grupos de
trabalho do momento 2 (Por quê????). Partiu-se para a leitura dos poemas
selecionados para o momento 3 e - mais uma vez - transparências com as
concepções de linguagem do texto de Geraldi apresentadas por XXX
(faziam parte do momento 2). As professoras foram participando da
apresentação, questionando e trazendo suas dúvidas da prática escolar. Em
seguida, às 20h35min, partiu-se para o momento 3 (de fato) com a leitura
de um fragmento do livro Por parte de pai, de Bartolomeu C. de Queirós. Foi
sugerida uma tempestade de idéias sobre as definições de letramento e
alfabetização, mas devido ao adiantado da hora, optou-se novamente pelas
transparências com as duas definições. De maneira geral, a apresentação
foi excelente, mas penso que nossas discussões na quinta feira de manhã
estão caminhando para outro tipo de projeto de formação. Novamente não
foi cumprido o planejamento, a interlocução entre as professoras não foi
priorizada e não houve avaliação. A idéia não é ser tecnicista, mas adequar
o planejamento à necessidade de todos os sujeitos envolvidos nessa
proposta de formação. Se não, fica atropelado, corrido e igual a tudo que
elas já vivenciaram. (Relato 3)
Este terceiro relato se chamou Chuva Ácida e gerou um embate no grupo de
pesquisa sobre planejamento. Como grupo, tínhamos o hábito de escrever atas
desses encontros de pesquisa, revezando-nos entre as autoras. Destaquei um
trecho da ata
14
produzida sobre o encontro em que discutimos sobre o meu relato 3:
14
Definimos o gênero ata na seção anterior. Sua autoria era aleatória dentro do grupo de pesquisa. Todos os
integrantes revezaram na escrita de cada ata.
Nosso encontro começou com o comentário do registro de observação feito
pela Cristiane: chuva ácida. E o assunto logo pegou, tomando grande parte
da nossa manhã. Tema importante, mobilizador e polêmico. Fiquei tensa,
ai... Não consegui fazer anotações muito objetivas, por isso vou tentar
recontar um pouco do nosso movimento em torno do assunto. [...] As falas
do grupo de pesquisa partiram da questão do planejamento. O quanto
devemos nos ater a um determinado conteúdo planejado e o quanto este
conteúdo ou o programa pode ou deve ser modificado em função do que vai
surgindo na relação com os alunos. XXX apontou alguns momentos que,
segundo sua percepção, ficaram pouco explorados. De acordo com ela, as
intervenções das professoras/alunas têm levantado possibilidades muito
ricas de caminhos para as discussões em sala que, por vezes, restam
despercebidas em função de um programa já estabelecido. XXX falou do
diálogo, lembrando Paulo freire, e a necessidade de dar voz e ouvir o aluno.
Interlocução e conteúdo: qual o ponto de equilíbrio? Ou qual o ponto de
mutação?
A proposta dos encontros o era obter respostas e sim produzir reflexões. O
movimento de pensar gerava atitude na formação. A multiplicidade de vozes de cada
membro do grupo se projetava no outro e produzia sentido sobre o papel que
exercemos na formação de professores. Ainda na mesma ata:
Sobre estas questões penso que o texto da XXX [formadora] organiza a
discussão e abre caminho para uma compreensão nossa, acerca dos
nossos lugares/papéis na formação. Está no texto: construímos a nossa
identidade no momento mesmo da interlocução, estamos nos construindo
como formadores e estamos construindo professores. Pensei na seguinte
formulação: estamos implicadas enquanto formadoras, pesquisadoras e
professoras, ou seja, nos misturamos, mas não nos confundimos.
Ao longo da escrita dos relatos fui me enveredando pelo emaranhado do
discurso das alunas-professoras (tanto oral como escrito) e tentando desvendar
marcas identitárias da categoria caracterizadas pela formação. Entendendo o
professor que procura a formação continuada na universidade também fui me
imbuindo dessas vozes e me constituindo enquanto sujeito e autora:
Ouvindo-as de fato falar nesta aula, pude perceber o quanto experienciadas
MESMO são suas práticas diárias de sala de aula. Digo isso porque,
mesmo que eu tente olhar de outro lugar – o de pesquisadora não consigo
me desprender do lugar de professora, como essas alunas, que de alguma
forma encontra seus pares num curso de extensão. Então, misturando um
pouco esses lugares, é em nossa prática que aprendemos de fato a lidar
com nosso aluno. Neste dia-a-dia incessante é que descobrimos as falhas,
os acertos, os méritos, as decepções, as perdas, os sucessos. Sozinhas,
quer dizer num grupo de 25, 30, 35 alunos. Eles são nossos outros
fundamentais e que realmente nos ensinam e nos fazem descobrir de um
jeito ou de outro o como fazer. O caminho, método, processo que cada
uma utiliza é o peculiar de cada realidade que fica difícil para nós
pesquisadoras, delimitar esse percurso ou fazer uma análise profunda
dessa prática. (Relato 4: De qual cor [afinal] é o ovo da galinha do vizinho?)
As alunas-professoras ouviam atentamente a fala da formadora e com um
curioso semblante de que algo estava sendo processado, de alguma
maneira, em suas mentes. Às vezes me perguntava se todo aquele
conhecimento estava realmente fazendo algum sentido para elas. Mas,
quem pode saber? O fato é que o conhecimento estava ali, sendo
apresentado para quem quisesse ou pudesse se apropriar. (...) Alguma
coisa está acontecendo... Será que não poderemos, ao final do curso,
extrair dessas narrativas mudanças efetivas na prática dessas professoras
ou mesmo mudanças nos gêneros de seus discursos? (Relato 7: Gêneros
discursivos em ação)
Minha orientadora fala de um espelhamento encontrado por mim desde o
momento em que comecei a observar as professoras. É verdade. Vejo-me
inteira nesse espelho e por isso mesmo compreendo tão completamente
(nossa!) o cotidiano dessas professoras que é muito louco estar ali sem ser
uma delas. Observá-las, analisá-las, categorizá-las será também como me
colocar em “tubo de ensaio”. Afinal de contas, o curso de extensão também
me serve para repensar a minha prática docente. De alguma maneira, os
dois lugares - o de pesquisadora e o de professora - se fundem nos relatos
e nas discussões do grupo de pesquisa. Qual será então, a voz que fala
mais alto no meu discurso? (Relato 13: Ah, esses nossos lugares!)
Os relatos reflexivos, antes de se constituírem um gênero com possíveis
características autobiográficas, se apresentam no intuito de complementar o quadro
argumentativo deste estudo. Trazer enunciados próprios nos pareceu adequado e
pertinente à pretensão de se apresentar o espelhamento possível entre diferentes
lugares na universidade. Contribui Paulino (2007, p.4):
Não se encontra aqui a preocupação de defender uma qualidade de
produção científica que exigiria do pesquisador o tratamento “adequado” do
saber narrativo, posta a serviço da cientificidade discursiva. Não a
preocupação de entronizar um tipo de saber, mas de verificar as
possibilidades de configurarem um procedimento híbrido merecedor de
atenção no contexto da Pós-Graduação brasileira.
O propósito é convidar à reflexão sobre uma formação de professores que se
fundamente na interação dialógica e na produção discursiva. Nossa experiência de
vivenciar a formação e produzir discursos reflexivos sobre ela em encontros de
pesquisa nos fortaleceu nos papéis que desempenhamos na universidade e na vida.
3 Pensando na Formação Continuada de Professores
Frente à nova ordem econômica que se estabelece, nos vemos diante de um
paradigma, se não é absolutamente recente, no momento, toma corpo e abre largas
discussões a respeito dos muitos aspectos que envolvem o tema da formação de
professores. Especialmente no Brasil, percebemos os esforços realizados pelo
Ministério da Educação em garantir a qualidade e permanência da Rede Nacional de
Formação Continuada de Professores de Educação Básica, teoricamente baseada
em princípios que estimulem a reflexão, articulação da teoria e da prática e a
autonomia do profissional docente. Podemos verificar tal informação em dois de
seus objetivos principais
15
:
Desencadear uma dinâmica de interação entre os saberes
pedagógicos produzidos pelos Centros, no desenvolvimento da formação
docente e pelos professores dos sistemas de ensino, em sua prática
docente;
Subsidiar a reflexão permanente sobre a prática docente, com o
exercício da crítica do sentido e da gênese da cultura, da educação e do
conhecimento e subsidiar o aprofundamento da articulação dos
componentes curriculares.
Visto que, aos poucos, nos movimentamos para uma urgência de ações que
promovam de fato uma formação continuada de professores que abarque suas
necessidades reais de trabalho; quealém dos cursos de atualização, treinamento
15
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=203. Acesso em: 24 nov.
2008.
ou capacitação; que tenha como referência a prática docente e o conhecimento
teórico. Entendemos, em concordância com as propostas do Ministério da
Educação, que além de ser exigência da atividade profissional no mundo atual, a
formação continuada é componente essencial da profissionalização docente.
Assim, pretendemos com este capítulo, contextualizar na seção 1 o tema
geral da Formação de Professores a partir de paradigmas que se confrontam neste
campo, no Brasil e no mundo; além de apresentar na seção 2 a Concepção de
Linguagem articulada ao tema da Formação de Professores que fundamenta todo o
nosso estudo.
3. 1 Paradigmas atuais de formação de professores
Nesta seção apresentaremos alguns paradigmas de pesquisa que têm
permitido compreender a formação de professores, em contextos nacionais e
internacionais, em discussões mais recentes. O objeto destes estudos tem sido a
busca de uma compreensão dos processos formativos, abordando suas
características e suas concepções de conceitos disciplinares.
3.1.1 Modelos de compreensão da prática docente
Contreras (2002) traz à tona três “modelos de compreensão da prática
profissional”, a partir do debate entre questões sobre o fazer do professor como
profissional reflexivo em contraposição ao modelo do profissional técnico, baseado
na racionalidade técnica, de fundamentação positivista. São eles: o especialista
técnico, o profissional reflexivo e o intelectual crítico. Visto que nosso objetivo, neste
capítulo e seção, é apenas apresentar algumas discussões que permeiam o campo
da formação docente sem nos aprofundarmos nas teorias ora mencionadas, para
este estudo selecionamos as principais abordagens realizadas pelo autor.
Contreras define o especialista técnico, a partir da racionalidade técnica
demonstrada e criticada por Schön
16
(apud CONTRERAS, 2002, p.90), segundo a
qual a “prática profissional consiste na solução instrumental de problemas mediante
a aplicação de um conhecimento teórico e técnico” proveniente da pesquisa
científica, caímos em uma concepção produtiva ou técnica do ensino em que:
O professor, como profissional técnico, compreende que sua ação consiste
na aplicação de decisões técnicas. Ao reconhecer o problema diante do
qual se encontra, ao ter claramente definidos os resultados que deve
alcançar, ou quando tiver decidido qual é a dificuldade de aprendizagem de
tal aluno ou grupo, seleciona entre o repertório disponível o tratamento que
melhor se adapta à situação e o aplica. O pressuposto que aqui se manipula
é que o conhecimento pedagógico disponível dirige a prática,
proporcionando os meios para reconhecer os problemas e solucioná-los.
(CONTRERAS, 2002, p.96)
A partir desta concepção produtiva ou técnica do ensino de que trata
Contreras, percebemos que os saberes adquiridos pelos professores em formação
inicial ou continuada funcionam como condutores da sua prática docente,
delimitando as possibilidades de ação do professor em sua tomada de decisão ou
resolução de problemas.
Concordamos com Contreras e Schön na crítica que fazem a esse modelo de
professor como especialista técnico quando se referem ao progresso educativo
como um percurso que exige calma e avaliação permanente e não apenas aplicação
de soluções disponíveis a problemas formulados a partir de técnicas e recursos
materiais. A configuração do problema é um trabalho processual, envolve
16
(1983; 1992).
compreender o contexto, a complexidade de fatores coincidentes e sua
singularidade.
Decidir a ação mais apropriada para cada caso não é algo que possa
proporcionar um conhecimento pedagógico de caráter técnico, porque ele
precisamente não resolve os conflitos e dilemas de avaliação sobre o que é
mais conveniente em uma determinada circunstância. [...] A experiência
concreta da educação excede a delimitação oficial de objetivos para que os
docentes possam enfrentar os interesses e as necessidades daqueles com
quem trabalham. E isso os situa inevitavelmente diante de conflitos e
responsabilidades morais, diante da necessidade de encontrar uma
resposta entre as exigências administrativas, os interesses da comunidade
e as necessidades dos alunos. (CONTRERAS, 2002; p. 104)
Pensamos que a ação pedagógica implica relações dialógicas e interpessoais
que irão desencadear dilemas e situações de conflitos que determinarão a tomada
de decisão e resolução do problema.
Outro modelo de compreensão da prática profissional do docente
apresentado e discutido por Contreras (2002) a noção de profissional reflexivo, tem
lugar central:
[...] é necessário resgatar a base reflexiva da atuação profissional, com o
objetivo de entender a forma em que realmente se abordam as situações
problemáticas da prática. Deste modo, será possível recuperar como
elemento legítimo e necessário da prática de ensino aquelas competências
que, a partir da racionalidade técnica, ficavam ou subordinadas ao
conhecimento científico e técnico, ou excluídas de sua análise e
consideração. (Ibid., p.105)
Contreras (2002) discute a premissa de Schön (1983; 1992) de que o
exercício da reflexão se constitui na ação pedagógica para a obtenção de respostas
adequadas na solução de problemas. Segundo esta premissa, o trabalho docente
tem como característica principal a repetição de casos anteriores, em função da sua
semelhança no dia-a-dia da sala de aula. Na medida em que o docente submerge
na rotina e sua prática se torna, inevitavelmente estável e repetitiva, seu
conhecimento se aprimora e se torna espontâneo.
Porém, verificamos no contexto das nossas escolas que nenhum dia é igual
ao outro e algumas situações inéditas podem criar dilemas, dúvidas e divergências
de opiniões. Neste momento o processo de solução de problemas se torna mais
denso e meticuloso: é preciso compreender o contexto para então agir. “O pensar e
o fazer vão-se entrelaçando no diálogo gerado entre a ação e suas conseqüências,
as quais levam a uma nova apreciação do caso.” (CONTRERAS, 2002; p. 111)
Estamos de acordo com Contreras no que diz respeito ao conhecimento prático.
Este não é sempre suficiente e estas situações exigem novas maneiras e
perspectivas para resolver o problema. “Necessita refletir, confrontar seu
conhecimento prático com a situação apara a qual o repertório disponível de casos
não lhe proporciona uma resposta satisfatória.” (Ibid; p. 108)
Segundo Schön (apud. CONTRERAS, 2002, p.106), o conhecimento prático
cotidiano está geralmente assentado em um conhecimento tácito e implícito, sobre o
qual não temos controle; sobre o qual não pensamos, nem verbalizamos, e que
geralmente nem estamos conscientes dos mesmos. O conhecimento não antecede
a ação, mas está na ação. Para Schön
17
, não temos como estabelecer que este
saber como esteja assentado em um conjunto de regras estruturadas previamente à
ação”. (apud. CONTRERAS, 2002, p. 107) Não aplicamos o conhecimento à ação,
mas ela é tácita, ou seja, um conhecimento na ação.
Contreras também traz a contribuição de Stenhouse (1985) do “professor
como pesquisador”, que em muito se assemelha à idéia de Schön do profissional
reflexivo apresentada anteriormente. Stenhouse, segundo Contreras, tem em seu
17
(1983; 1992).
pensamento a idéia básica de que o cotidiano da escola se constitui em situações
educativas muito singulares. “As ações de ensino são ações significativas; portanto,
dependem das intenções e das significações atribuídas por seus protagonistas.”
(apud CONTRERAS, 2002, p. 115) E ainda traz à tona a discussão sobre métodos
de ensino, que segundo ele, são maneiras de uniformizar e padronizar o que possui
características próprias, únicas e singulares como as situações educativas.
(...) é impossível dispor de um conhecimento que nos proporcione métodos
que devam ser seguidos no ensino, porque isso seria como aceitar que
ações cujo significado se estabelece à margem dos que o atribuem ou que
é possível depender de generalizações sobre métodos, quando o
importante na educação é atender as circunstâncias que cada caso
apresenta e não pretender a uniformização dos processos educativos, ou
dos jovens. (CONTRERAS, 2002, p. 115)
Contreras expõe a posição dos dois autores de resistência aos modelos de
racionalidade técnica, que ambos têm uma compreensão do professor como um
artista que procura sempre melhorar sua arte, experimentá-la e examiná-la de forma
crítica e minuciosa.
Da mesma maneira que Schön analisa a prática reflexiva como oposição à
idéia do profissional como especialista técnico, Stenhouse desenvolve sua
perspectiva a partir da crítica ao modelo de objetivos no currículo, que reduz
a capacidade de consciência profissional dos professores e, portanto sua
possibilidade de pretensão educativa. (CONTRERAS, 2002, p. 114)
Desta forma, Contreras discute a influência das instâncias maiores (Estado)
sobre o planejamento das escolas. Segundo seu ponto de vista, a questão da
autonomia dos professores perpassa pela construção dos projetos e planejamentos.
São os próprios profissionais do ensino que deveriam determinar as diretrizes do
seu currículo e planejamento, visto que estes deveriam pretender mudanças e
organizações ambicionadas por seus redatores/idealizadores.
Somente é possível desenvolver práticas que tenham as qualidades do
educativo a partir da decisão e do julgamento autônomo dos que se
responsabilizam realmente por elas, porque, em um sentido plenamente
aristotélico, o que se refere aos valores educativos não pode vir resolvido à
margem da prática na qual estes são buscados. quem pratica e na
prática podem-se realizar os valores educativos enquanto tratam de
perguntar sobre seu significado. (CONTRERAS, 2002, p. 129)
Em concordância com Schön (apud. CONTRERAS, 2002, p.132), ao
estabelecer relações entre a prática reflexiva do ensino e os contextos sociais nos
quais estão inseridos escola e comunidade, os professores reflexivos prolongam sua
capacidade de resolver as situações educativas à colaboração com as situações
sociais presentes no entorno escolar, exercendo sua autonomia profissional e
favorecendo uma relação dialógica social e pública mais reflexiva.
Contreras (2002) chama a atenção em seu texto para as fragilidades do
modelo do profissional reflexivo já que, apesar de vivermos em uma sociedade
plural, ela também é injusta e desigual, o que nos coloca em situações de pressão e
contradições que podem não se resolver apenas com a reflexão.
O que faz pensar que a reflexão do ensino conduza por si mesma à busca
de uma prática educativa mais igualitária e libertadora e não ao contrário, à
realização e ao aperfeiçoamento de exigências institucionais e sociais que
poderiam ser injustas e alienantes? (CONTRERAS, 2002, p. 134)
Segundo o autor, essa insuficiência de argumentação do profissional reflexivo
nos leva à busca por uma concepção que considere a “pretensão reflexiva” atrelada
a uma concepção mais ambiciosa, como o modelo do intelectual crítico, apesar de
ainda assim não estar livre também de contrariedades.
O que o modelo dos professores como intelectuais críticos sugere (diferindo
do que parecia insinuar a visão dos professores como profissionais
reflexivos) é que tanto a compreensão dos fatores sociais e institucionais
que condicionam a prática educativa, como a emancipação das formas de
dominação que afetam nosso pensamento e nossa ação não são processos
espontâneos que se produzem ‘naturalmente’ pelo mero fato de
participarem de experiências que se pretendem educativas. A figura do
intelectual crítico é, portanto, a de um profissional que participa ativamente
do esforço para descobrir o oculto, para desentranhar a origem histórica e
social do que se apresenta como ’natural’, para conseguir captar e mostrar
os processos pelos quais a prática do ensino fica presa em pretensões,
relações e experiências de duvidoso valor educativo. [...] Igualmente, o
intelectual crítico está preocupado com a captação e potencialização dos
aspectos de sua prática profissional, que conservam uma possibilidade de
ação educativamente valiosa, enquanto busca a transformação ou a
recondução daqueles aspectos que não a possuem, sejam eles pessoais,
organizacionais ou sociais. (CONTRERAS, 2002, p. 184)
Entendemos que o modelo do intelectual crítico apontado por Contreras
(2002) melhor se aplica às pretensões que se tem hoje acerca de um programa de
formação de professores, que amplia a idéia do profissional reflexivo levando em
conta a dimensão social da ação educativa. Contreras aponta Giroux (1990) como o
autor que melhor desenvolveu a idéia do professor como intelectual crítico. Este
sugere que a tomada de consciência é um processo pelo qual o professor desvela a
realidade situacional, compreende as circunstâncias em que ocorre o ensino
atitudes fundamentais para a ação, para então criar estratégias em conjunto com
seus alunos de crítica e transformação das práticas constituídas ao redor da escola.
Habermas (1982), a partir da Teoria Crítica, amplia a discussão ressaltando
que não basta a tomada de consciência para a transformação. Primeiramente é
necessário descobrir “as formas de coerção aparentemente naturais às quais se
encontram submetidas em seus processos de auto-reflexão”. (apud. CONTRERAS,
2002, p. 169) Essas formas de coerção são as relações ideológicas presentes em
todo sistema institucional que podem ser capazes de manipular ações, já que muitas
vezes passam despercebidas pelos professores.
A concepção de professor enquanto intelectual crítico compreende que a
reflexão sobre os condicionantes institucionais e sobre as questões ideológicas
integram a ação profissional a ser desenvolvida pelo professor, aliando a reflexão da
prática pedagógica ao desenvolvimento da análise e crítica social, organizando sua
participação na ação transformadora. As práticas educativas do professor enquanto
intelectual crítico orientam-se na defesa de valores para o bem comum, objetivando
a emancipação individual e social.
Nos modelos de compreensão da prática profissional apresentados por
Contreras (2002), percebemos um movimento em sentido contrário às forças
coercitivas, em que os professores lutam para conquistar sua autonomia, em nome
do componente ético de seu trabalho, de sua responsabilidade e de seu
compromisso social. Concordamos com o autor em sua afirmação de que a
autonomia profissional se alcançada, de fato, à medida que se consolidar a
autonomia social, a partir de um processo coletivo em que se desenvolva a
consciência crítica sobre as condições institucionais do ensino.
Como referência brasileira, observamos nos estudos recentes de DINIZ-
PEREIRA (2007) um balanço sobre os três modelos e paradigmas que orientam
práticas e políticas de formação docente no Brasil e no mundo, indo ao encontro das
idéias anteriormente discutidas por Contreras (2002). São eles: racionalidade
técnica, racionalidade prática e racionalidade crítica.
Segundo o autor, em diferentes países do mundo, mesmo considerando
algumas variações, a maioria dos programas de formação de professores é
elaborada com bases no modelo da racionalidade técnica criticado por Schön
(1983). E ainda, principalmente os países em que estão em desenvolvimento,
contam com incentivo da promoção de reformas conservadoras nos programas de
formação docente, realizadas por instituições econômicas internacionais, como o
Banco Mundial. “Certamente, o Banco Mundial tem sido um dos mais importantes
veículos de divulgação da racionalidade técnica e científica em reformas
educacionais e mais especificamente na formação de professores no mundo.”
(DINIZ-PEREIRA, 2007; p. 256)
No início do século XX, com o trabalho de Dewey, se iniciam os estudos
sobre o modelo da racionalidade prática, que:
De acordo com Carr e Kemmis (1986), a visão prática concebe a educação
como um processo complexo ou uma atividade modificada à luz de
circunstâncias, as quais somente podem ser “controladas” por meio de
decisões sábias feitas pelos profissionais, ou seja, por meio de sua
deliberação sobre a prática. De acordo com essa visão, a realidade
educacional é muito fluida e reflexiva para permitir uma sistematização
técnica. (DINIZ-PEREIRA, 2007; p.257)
Assim, percebemos que uma convergência no que diz respeito à
complexidade de tensões existentes no campo da formação docente. Atualmente, os
professores têm sido considerados profissionais que “refletem, questionam e
constantemente examinam sua prática pedagógica cotidiana (DINIZ-PEREIRA,
2007, p. 259), que segundo o autor, não esapenas centrada na escola, mas sim
em todo o processo de conhecimento do qual participa o professor.
O último modelo apresentado pelo autor como um paradigma que orienta a
formação docente atual é o da racionalidade crítica:
No modelo da racionalidade crítica, a educação é historicamente localizada
ela acontece contra um pano de fundo sócio-histórico e projeta uma visão
do tipo de futuro que nós esperamos construir -, uma atividade socialcom
conseqüências sociais, não apenas uma questão de desenvolvimento
individual-, intrinsecamente política – afetando as escolhas de vida daqueles
envolvidos no processo e, finalmente, problemática seu propósito, a
situação social que ela modela ou sugere. (DINIZ-PEREIRA, 2007, p. 260)
Concluímos que nesta concepção crítica da formação, o professor não
executa somente atividades técnicas selecionadas previamente por orientadores
teóricos, ele percebe, examina e levanta o problema sob um foco mais político,
proporcionando a seus alunos um diálogo mais crítico sobre o conhecimento, o
poder, as condições e a realidade. Desta forma, em acordo com Diniz-Pereira
(2007), se estabelece um processo mais democrático de concepção de currículo,
centrado principalmente no aluno.
A seguir apresentaremos um paradigma atual que tem norteado as
discussões no campo da formação de professores ampliando as relações propostas
pelas concepções críticas do campo.
3.1.2 Formação de professores para a justiça social
O recente estudo de Zeichner
18
(2008) propõe uma discussão panorâmica
sobre a temática da formação de professores para a justiça social, visto que, esta
vem ganhando espaço em muitos programas de formação de professores em todo o
mundo. Assim sendo, urge a necessidade de se pensar em novas diretrizes de
formação, inseridas em uma sociedade neoliberal, com políticas voltadas para o
mercado externo:
A formação de professores para a justiça social objetiva preparar
professores a fim de contribuir para uma diminuição das desigualdades
existentes entre as crianças das classes baixa, média e alta nos sistemas
de escola pública de todo o mundo e das injustiças que existem nas
sociedades, fora dos sistemas de ensino: em relação ao acesso à moradia,
alimentação, saúde, transporte, ao trabalho digno que pague um salário
justo e assim por diante. A incerteza que caracteriza o contexto atual está
relacionada ao futuro duvidoso que o planeta tem pela frente se as
injustiças persistirem e nós continuarmos a ver grandes distâncias na
educação e na renda entre ricos e pobres em toda a sociedade.
(ZEICHNER 2008; p.11)
18
Este estudo se originou do texto que subsidiou a palestra “Teacher Development: the key to the 21st century”,
realizada durante o encontro promovido pela Faculdade de Educação da Universidade Simon Fraser, Vancouver,
Canadá, em março de 2006.
O autor descreve ainda como a administração de George W. Bush, nos
Estados Unidos, vem tentado erradicar as discussões e reflexões sobre formação de
professores, criando metas e diretrizes impostas pelo governo para serem aplicadas
nas escolas visando um melhor desempenho de alunos e professores americanos
nas estatísticas mundiais. A idéia é “monitorar firmemente as ações dos professores,
roteirizar o currículo e intensificar os testes padronizados” acreditando-se na
“elevação dos níveis da qualidade educacional e na redução das lacunas de
desempenho entre diferentes grupos de estudantes” (ZEICHNER 2008; p.12).
Em contrapartida a esta política de formação de professores que busca um
profissional técnico e dotado de competência suficiente para executar tarefas com
eficiência em um contexto social e econômico caótico, visualizamos no trabalho de
Zeichner a concepção de formação de professores para a justiça social. Esta
concepção se constitui em práticas “culturalmente sensíveis”, das quais consideram
a diversidade étnica, cultural e social dos alunos; o conhecimento em construção; o
professor como agente de mudança social:
A formação de professores para a justiça social coloca no centro da atenção
o recrutamento de uma força de trabalho mais diversificada para o ensino e
a formação de todos os professores para ensinarem todos os alunos. [...]
Existe um reconhecimento das dimensões sociais e políticas do ensino,
juntamente com suas outras dimensões, e um reconhecimento das
contribuições dos professores para aumentar as oportunidades de vida de
seus alunos. (ZEICHNER 2008; p. 17)
Neste sentido, Zeichner traz uma importante contribuição para se pensar a
formação de professores numa perspectiva política e social que busque parcerias
concretas, efetivas e dialógicas entre universidade – escola – comunidade.
3.1.3 Dez anos da LDB: tensões na formação docente
Tendo em vista apresentar também o que se tem discutido no Brasil sobre
formação de professores, observamos que um marco histórico em nosso contexto
educacional e os novas tensões constituídas a partir dele não poderiam deixar de
ser considerados: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Passados seus dez
anos de implementação, foi possível perceber mudanças e reformas educacionais
em todo país vislumbrando um ensino mais democrático e de melhor qualidade,
como ressalva Santos (2007):
De maneira geral, pode-se dizer que aumentou o número de docentes das
séries iniciais do ensino fundamental com formação em nível superior;
houve certa descentralização da gestão escolar, com eleição direta dos
diretores e com a organização dos conselhos escolares; muitos sistemas de
ensino abandonaram o regime seriado e passaram a se organizar em ciclos;
as formas de avaliação foram também alteradas, abolindo a repetência e
aderindo ao sistema de progressão continuada; os currículos de algumas
escolas foram modificados, procurando trabalhar com os conteúdos de
forma mais integrada e sintonizada com a realidade e a cultura dos alunos.
(p. 235)
Apesar das notáveis mudanças realizadas na educação brasileira, nosso
sistema público de ensino tem sido alvo de críticas severas por conta de um baixo
desempenho dos alunos em avaliações nacionais e regionais apresentado
diariamente nos meios de comunicação de todo país. O problema é mais complexo
do que parece, que envolve outros fatores sociais que interferem diretamente na
escola e ainda, contidas políticas públicas que efetivamente se integrem ao sistema
de ensino. A população e os professores reclamam da baixa qualidade do ensino, da
falta de estrutura das escolas, dos modelos impostos pelas secretarias, do
desinteresse da família pela vida escolar do aluno, da violência na escola e da
chamada “aprovação automática”. O resultado é um grande “empurra-empurra” de
responsabilidades que acaba por não facilitar o diálogo entre os sujeitos envolvidos
no processo educacional.
Assim, percebemos que este atual contexto educacional acaba direcionando
os olhos de cientistas e pesquisadores para a formação docente e para os
paradigmas que estruturam esta formação. Como esperamos ter retratado, o campo
possui tensões e conflitos que variam desde concepções positivistas que destacam
a competência técnica como um forte alicerce na formação docente, até concepções
que buscam um modelo de formação de compromisso político e democrático
(ZEICHNER, 2008).
Santos (2007) afirma que ainda certa insegurança quanto às diretrizes
legais apontadas para os currículos de formação docente que acabam por
determinar certa hierarquização dos saberes no interior do currículo de formação,
tendo segundo a autora, menor prestígio os conteúdos ou disciplinas relacionados a
atividades práticas. E ainda:
Esse baixo prestígio das atividades práticas é comprovado pelo fato de que
não foram os acadêmicos que aumentaram a carga horária dos estágios e
das atividades práticas do currículo dos cursos de licenciatura e de
Pedagogia. Isso ocorreu pela força da legislação. O que é mais intrigante
em relação a este aspecto é que grande mero de acadêmicos
qualificados no exterior podiam ter observado que, várias décadas,
nos países desenvolvidos, as atividades práticas ocupam pelo menos um
terço do currículo dos cursos de formação docente. (p. 250)
De maneira geral, o que percebemos com o estudo de Santos (2007) é que
fundamentados pela legislação, os cursos de formação de professores,
principalmente a formação inicial, têm valorizado o campo teórico em detrimento dos
conhecimentos práticos. sabemos que teoria e prática deveriam caminhar
entrelaçadas nos programas de formação e que a universidade deveria estar mais
com a escola e não somente olhar sobre ela. Mas, sabemos também que apesar
das mudanças e reformas pós-LDB realizadas diretamente no cotidiano da escola, a
universidade e os cursos de formação docente ainda se preocupam muito pouco
com esta interlocução.
3.1.4 A formação de professores: desafios para o século XXI
Em palestra apresentada no Seminário de 40 anos da Faculdade de
Educação da UFRJ, em agosto do presente ano, Antonio Nóvoa traçou um
panorama descrevendo os caminhos que a formação de professores vem tomando
algum tempo. Ele construiu sua fala sobre três pilares poéticos: sonhos que
fomos sonhando (o ontem); ideais que nos alimentam (o hoje) e os desafios para
formação de professores (o amanhã).
Nóvoa discorreu sobre os pilares a partir de três idéias/sonhos que julga
marcarem a discussão sobre formação de professores algum tempo. Estruturou
as proposições primeiramente lançando a idéia/sonho e depois fazendo uma breve
análise atual e os desafios para o futuro. Procuramos transcrever seu discurso,
apresentando suas idéias/sonhos de ontem, sua concepção sobre o hoje e o que
considera o desafio de amanhã:
1. Escola para todos - acabou se efetivando nos dias de hoje, mas não
garantiu a aprendizagem de todos, como mostram as estatísticas atuais de
desempenho escolar fornecidas por avaliações nacionais. O autor mostra-se contra,
o que denomina infantilização da escola, onde esta não deve imitar a vida nem ser
um espelho da sociedade e sim, deve promover outras experiências e
aprendizagens, que, segundo ele: “é preciso substituir o aborrecimento de viver
pela alegria de pensar”. Como desafio, diz que para alcançar a aprendizagem de
todos com qualidade a formação de professores, a escola precisa estar mais
enraizada nas práticas pedagógicas (mundo profissional dos professores), que
enxerga um crescente afastamento das práticas nos programas de formação.
2. Uma escola à medida de cada criança o autor acredita que este é um
sonho que não alcançamos efetivamente. Ressalta a Escola da Ponte (Instituição
escolar portuguesa que baseia seu programa educacional na autonomia e na
participação dos estudantes) como uma experiência bem sucedida, porém exceção
no sistema de ensino. Atualmente percebemos várias discussões a respeito da
inclusão na escola, de se construir uma escola diferente para alunos, recursos e
planejamentos diferentes. O ideal de que se fala hoje é o de construir percursos
escolares diferenciados e inclusivos: “porque tudo igual para todo mundo?”. A
diversidade existe e a formação de professores tem como desafio neste tema voltar
o seu foco para a análise e resolução de casos concretos; análise de práticas (cita
como referência Lee Shulman) de professores, em que este possa trocar suas
reflexões com seus colegas e ter a oportunidade de entrar em contato com as
contribuições teóricas existentes no campo. As instituições de formação de
professores devem estar mais ligadas às escolas. A escola tem muito o que dizer -
além de fornecer estágios e monitorias -, às universidades/faculdades sobre
formação. Assim como a pesquisa na universidade deve inovar com produções
contextualizadas e calcadas nas práticas, dando mais visibilidade ao trabalho
acadêmico nas políticas públicas.
3. Uma escola concebida como comunidade e ligada à comunidade local
hoje temos como ideal construir escolas diferentes como reforço do espaço público
de educação. As atuais políticas públicas de reformas educacionais trabalham com a
idéia da educação como um bem privado. Há a dicotomia entre escola como serviço
(conceito ligado a consumo, qualidade, cliente) e escola como instituição (conceito
ligado ao indivíduo e à sociedade). Esclarece também a discussão sobre escola
como comunidade e como sociedade. Na primeira, a escola reforça o diálogo, a
diversidade e o espaço público. Na segunda, a escola reforça o bem privado,
fechando seus alunos em suas comunidades de origem, impedindo-os de
vivenciarem outros conhecimentos. A formação de professores se apresenta, então,
com o desafio de possibilitar uma dimensão coletiva de trabalho, favorecendo o
compromisso social dos professores e novos modelos de organização e de
comunicação, além de integrar os campos da graduação, pesquisa e pós-
graduação.
3.1.5 Teoria e prática na formação de professores: qual caminho seguir?
Como vimos, após dez anos de LDB, é possível perceber algumas
mudanças no sistema educacional. certa concordância de idéias no campo da
formação de professores a respeito de que o professor realiza atividades que
combinam teoria com situações práticas em seu cotidiano profissional. Porém, na
maioria dos programas de formação de professores o primeiro contato do aluno é
com atividades teóricas tratadas em disciplinas pedagógicas, para então, alguns
momentos mais tarde iniciar as atividades práticas (estágio, monitoria, etc.).
Segundo Libâneo e Pimenta (2006), este caminho não lhes parece o ideal para se
pensar num currículo de formação de professores:
O caminho deve ser outro. Desde o ingresso dos alunos no curso, é preciso
integrar os conteúdos das disciplinas em situações da prática que coloquem
problemas aos futuros professores e lhes possibilite experimentar soluções.
Isso significa ter a prática, ao longo do curso, como referente direto para
contrastar seus estudos e formar seus próprios conhecimentos e convicções
a respeito. Isso quer dizer que os alunos precisam conhecer o mais cedo
possível os sujeitos e as situações com que irão trabalhar. Significa tomar a
prática profissional como instância permanente e sistemática na
aprendizagem do futuro professor e como referência para a organização
curricular. (LIBÂNEO e PIMENTA, 2006, p.51)
Os autores também refletem sobre a necessidade da articulação entre
formação inicial e continuada de professores. A primeira estaria ligada aos contextos
de trabalho “possibilitando pensar as disciplinas com base no que se pede na
prática” (LIBÂNEO E PIMENTA, 2006, p.52). A segunda partiria da escola
combinando os saberes e experiências dos professores adquiridos no cotidiano
escolar. “Articula-se com a formação inicial, indo os professores à universidade para
uma reflexão mais apurada sobre a prática. Em ambos os casos, estamos frente a
modalidades de formação em que interação entre práticas formativas e os
contextos de trabalho”. (Ibid., p.52)
A partir do estudo teórico realizado, percebemos como fundamental a
existência de parcerias efetivas entre a universidade (formação inicial ou continuada)
e a escola (prática docente). Esta parceria se constitui numa via de mão dupla
trazendo benefícios às duas partes. A escola tem a oportunidade de se atualizar em
contato com as pesquisas realizadas nas universidades. Estas, por sua vez, se
beneficiam tendo a oportunidade de conhecer e trabalhar com a realidade escolar. O
senso comum de que os cientistas detêm conhecimentos teóricos e professores
detêm conhecimentos práticos, acaba por incentivar a manutenção de um abismo
entra as duas instituições de ensino, dificultando ainda mais o diálogo e a troca de
experiências entre seus interlocutores. Superando os obstáculos que interferem na
possibilidade desse encontro somaremos um conhecimento favorável à
educação.
3. 2 Linguagem, produção escrita e formação de professores
Nesta seção, apresentaremos os principais conceitos teóricos que
fundamentam este estudo. Em coerência com a teoria a ser apresentada,
trabalharemos de forma dialógica com os autores que tratam sobre a temática da
linguagem e formação de professores. Primeiramente, focalizamos a concepção de
linguagem que permeou nossa pesquisa, que foi essencial para nortear o tratamento
e a análise realizados sobre as produções escritas das alunas-professoras que
subsidiaram o trabalho das formadoras durante o curso de extensão.
A concepção de linguagem pela qual optamos assume formas de interação
social (BAKHTIN, 2004), nas quais a presença do outro é de extrema importância.
Este inscreve-se tanto no ato de produção de sentido na leitura, como também na
sua produção, no momento em que está sendo construída. Ele é condição
necessária para a existência do texto. O Outro, parte constitutiva da situação social
de enunciação, atua de modo que o sujeito também seja parte constitutiva dessa
organização, constituindo-se. O diálogo, então, é condição fundamental para se
conceber a linguagem.” (GOULART, 2005; p.7-8).
Foi nesta perspectiva cio-interacionista da linguagem, em que o sujeito é
reconhecido como ativo em sua produção discursiva, na qual realiza um trabalho
constante com a linguagem, resultado da exploração, consciente ou não, dos
gêneros discursivos disponíveis em nossa ngua, que nosso objeto de investigação,
a produção escrita das alunas-professoras, ganhou valor. Este estava inserido num
real processo de interlocução e apenas num contexto efetivo de interação discursiva
foi possível à aluna-professora tornar-se sujeito do que escreveu.
Tendo sido a linguagem vista como forma de interação social, investigamos
as produções escritas de forma dialógica. Isso significou analisá-las dentro de um
contexto de formação continuada, de maneira respeitosa, sem nos restringir a uma
análise formal que faria-nos e julgá-la de um ponto de vista de "erros de expressão",
mas sim, buscando captar o todo enunciativo que se estabelece e o sentido da
mensagem que e se quis comunicar ao seu interlocutor.
Desta forma, para fundamentar nossa análise de produções escritas,
consideramos os seguintes princípios bakhtinianos:
(a) o sujeito está no estudo da linguagem e na produção de sentido;
(b) a língua é vista como atividade de interação social;
(c) a linguagem é constitutiva da realidade e consideram a enunciação e o
discurso.
Segundo estes, acreditamos que o exercício da produção discursiva, seja
escrita ou oral, estabelecido como um dos pilares de constituição do currículo de
formação continuada de professores, pôde encaminhar uma tomada de consciência
acerca de seu trabalho e prática docente. Concordamos com Andrade (2007) sobre
uma formação como experiência lingüística, fundamentada segundo os princípios
bakhtinianos para se pensar em diálogos entre formadores e alunos-professores:
Espelhando o ensino da língua, que possui a característica especifica que
se amplifica a todo o contexto escolar, de que toda e qualquer experiência
de aprendizagem sobre qualquer conteúdo, incluindo-se o próprio conteúdo
da língua, dá-se necessariamente dentro de uma experiência lingüística, a
própria formação é uma experiência lingüística. Seus modos de realização
discursiva entre formadores e formandos devem ser coerentes com o
conteúdo apresentado. Na concepção de linguagem bakhtiniana que
assumimos, os interlocutores constituem-se mutuamente em cada ato
enunciativo. As palavras são gestos significativos, de ação entre
interlocutores. Sendo assim, a formação docente é um diálogo, no qual os
saberes são comunicados entre interlocutores que ocupam posições sócio-
históricas distintas, hierarquizadas assimetricamente. (p.3-4)
Diante do desafio de pensarmos sobre o lugar da escrita das professoras
nossos sujeitos de pesquisa no currículo de formação continuada de professores,
estes conceitos contribuíram para fundamentar a compreensão das alunas-
professoras como sujeitos históricos e atuantes no mundo do trabalho. Nesta
perspectiva, suas produções escritas são uma busca de resignificação de sua
prática docente, possibilitando uma interação discursiva entre esta e o que se
aprendeu na formação continuada.
Kramer (2004) também se apropria de Bakhtin para fundamentar seus
estudos de análise das histórias de vida escritas por professoras na formação de
professores (Educação Infantil) à luz da linguagem sob uma perspectiva dialógica:
[...] a produção e recepção de significados é o que constitui a linguagem
que tem dimensões dialógicas e ideológicas historicamente determinadas.
Toda palavra tem intenções, significados; para entender o discurso (o texto
falado ou escrito), o contexto precisa ser entendido. A compreensão implica
não só a identificação da linguagem formal e dos sinais normativos da
língua, mas também os subtextos, as intenções que não se encontram
explicitadas. (p.498)
A autora expressa o encantamento que subjaz as produções escritas: o que
não está explicitado está subentendido ou “querendo se dizer”. Para reconhecer
esses “pormenores” é preciso reconhecer o sentido histórico do texto e do sujeito
que o escreve:
Nesse processo, aprender com a experiência, rever a própria trajetória com
a leitura e a escrita, reler aquilo que foi escrito em cada um de nós e não
aquilo que aprendemos a escrever e a ler podem se constituir em
ações formadoras da maior importância. (KRAMER, 1998; p.21)
Amorim (2002) supõe a “escrita como um acontecimento do encontro com um
objeto cujo caráter de alteridade não deixa nenhuma margem de previsibilidade ou
de controle da parte do autor.” (p.2) Em seu estudo, procurou identificar as múltiplas
vozes (destinatário, locutor, autor...) presentes no texto escrito, a partir do conceito
de polifonia de Bakhtin, e problematizou a ilusão de transparência do texto, seguindo
ao encontro discursivo dessas vozes e sua subjetividade. Na análise das produções
escritas das alunas-professoras, esta compreensão do texto dialógico nos foi muito
relevante, visto que nosso olhar de pesquisadora pôde se voltar para a instabilidade
do enunciado e suas relações discursivas tecidas no texto.
Brandão (2004), por sua vez, enfatiza que a linguagem, além de cumprir as
funções de comunicar e organizar o pensamento, também deve cumprir a função de
ação interlocutiva entre os autores do discurso, estabelecendo-se com suas marcas
ideológicas intrínsecas:
A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que
serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de
pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de
produção social; ela não é neutra, inocente em natural, por isso o lugar
privilegiado de manifestação da ideologia. (p.11)
Assim, na perspectiva da linguagem como prática social e cultural, é preciso
repensar os espaços existentes em que se efetive o trabalho com a língua sob esse
olhar. Desvendar o discurso em toda a sua potência ideológica é permitir o trabalho
diversificado, a partir dos gêneros discursivos disponíveis socialmente. O acesso
aos gêneros inevitavelmente levará à inclusão social. A leitura e a escrita são
práticas que nos constituem parte do mundo letrado.
3.2.1 Escrever: autoria e participação social
Torna-se importante, para se abordar o tema da produção escrita, tocarmos
em suas relações com a atividade da leitura. O papel que a leitura vem
desempenhando em nossa sociedade altamente tecnológica e baseada em textos
digitais juntamente com a escrita, conduz-nos a um desafio maior: pensar em uma
educação voltada para a formação do leitor. Numa formação que promova a
reflexão: leituras, registros e releituras.
Ao refletir acerca de nossas práticas escolares, de nosso cotidiano da sala de
aula e das necessidades do aluno atual, sempre nos questionamos sobre esse ideal
de formação. Em pleno século XXI, algumas discussões se tecem sobre as novas
tendências tecnológicas que vêm cada vez mais modificando o ato de ler e escrever
e de busca pelo conhecimento. Na intenção de se pensar uma formação na
perspectiva do letramento, dispomo-nos a fazer diferente: assumimos o papel de
mediador entre o aluno e o conhecimento, dando-lhe oportunidades e possibilidades
para investigar e descobrir, para simultaneamente desvelar e atuar no mundo. A
resposta para esse trabalho é visualizada através das relações discursivas que se
constituem a partir daí: a aprendizagem do aluno. A relação dialógica que se
estabelece com o conhecimento que lhe foi apresentado se elege na funcionalidade
social.
A velocidade com que a sociedade se movimenta e se comunica hoje, exige
rapidez igual ou superior medida em gigabytes, para os momentos de leitura, escrita
e de busca pelo conhecimento. Uma das facilidades, sem dúvida, é a capacidade de
se enviar e ter acesso a textos e livros em apenas alguns segundos. O
conhecimento que antes ficava empoeirado e amarelado naquelas pesadas
enciclopédias de capa dura, hoje é armazenado em arquivos digitais. Milhões de
caracteres invadem a todo o tempo nossa residência através da internet. A pesquisa
escolar ou sobre alguma informação hoje é feita rapidamente e muitas vezes de
forma completa, sem sair de casa. Com apenas alguns cliques, se tem acesso a
obras raras de autores renomados ou desconhecidos e a bibliotecas de excelência
de qualquer país e em qualquer língua.
O conhecimento enfim é acessível para (quase) todos, ou para alguns que
lêem e escrevem. Estar ou não incluído nestas recentes e tecnológicas práticas
sociais depende da permanência ou passagem pela escola básica. Apropriar-se dos
diferentes gêneros discursivos presentes nessas práticas passa por uma formação
que valorize e incentive linguagem. Neste sentido, estamos aptos a nos relacionar
com o mundo de maneira ativa e generosa, como ressaltam Prado e Soligo (2007):
Afinal, se ler possibilita acessar informação, conhecer o que era até então
desconhecido, produzir sentidos a partir dos textos escritos pelo outro,
desejar muito mais leitura e o que com ela se conquista, dialogar relatar
descrever, informar, comentar, explicar, analisar, discutir, opinar e
manifestar tudo o que achar por bem, por escrito, possibilita o exercício da
necessária expressão. E da generosidade. E do compromisso. Não com
o outro, mas também conosco. Com o outro porque essa é uma forma de
compartilhar. E conosco porque a escrita permite a cada um de nós se
conhecer melhor e se dar a conhecer aos outros. (p. 24)
Torna-se necessário para nós, os professores ou formadores, enquanto
mediadores entre o conhecimento e o aluno, repensarmos no lugar da escrita nas
salas de aula, pois o registro escrito tem, em sua materialidade, potencialmente a
riqueza da nossa história e da nossa memória. O trabalho com escritas durante a
formação é um meio de possibilitar ao sujeito reconhecer-se autor e logo, deixar
marcada sua existência e experiência no mundo. A escrita, desta forma, se revela
para o autor um entrelace de possibilidades, relações, descobertas, informações,
memórias e vivências, que o vão constituindo e reconstituindo a cada produção, a
cada registro e a cada releitura. A partir do exercício de se tornar autor, a escrita se
compõe numa releitura do mundo. Essa releitura exige compromisso com seu
próprio texto, como bem expressam Prado e Soligo (2007):
Escrever exige a todo instante um deslocamento do autor, indo de sua
posição de escritor para a de leitor do próprio texto. Esse papel de analista
do escrito é o que permite, por assim dizer, o controle de qualidade, do
ponto de vista do conteúdo da forma. Aquele que escreve tem de ser, quase
ao mesmo tempo, autor, leitor e revisor. (p.34)
Nestas várias posições em relação ao seu próprio texto, nos deparamos com
a escrita na formação continuada de professores como forma de convidar o docente
a vivenciar os fundamentos do letramento, percebendo a escrita como uma prática
social, no caso, de formação profissional. Narrando a escola e seus sujeitos, parece
que se torna mais próxima a possibilidade de compreendê-la em sua complexidade
e diversidade. As experiências que têm apresentado resultados significativos
durante a formação de professores são com os chamados memoriais de formação
(PRADO e SOLIGO, 2007; SARTORI, 2008; FERNANDES e REIS, 2008) que
partem de uma perspectiva da interlocução na escrita de caráter polifônico, se
construindo no diálogo com outros gêneros discursivos e num espaço de dizer sobre
o que se faz.
3.2.2 Narrativas, memórias e memoriais: contando nossa história através da
escrita
A escrita, através dos tempos, tem se constituído na forma mais eficaz de
perpetuar no tempo idéias, princípios e assim de acumular conhecimento. É esta a
sua importância maior: um meio de documentar as histórias e memórias, que
permite atingir numerosos núcleos populacionais do planeta, podendo conter
elementos de profunda reflexão humana e que repercutirá dentro de cada leitor,
ainda que de formas diferenciadas. O exercício da escrita permite uma intensa
aquisição de experiência e cultura, interagindo diretamente com o indivíduo que e
com o próprio que escreve, permitindo seu crescimento pessoal e ainda criando uma
ponte entre autor e leitor que torna íntimos indivíduos que jamais se conheceram.
Em se tratando de escrita de professores, concordamos com a premissa de
Prado e Soligo (2007) de que a partir da perspectiva da formação de professores
reflexivos vem se consolidando uma maior valorização dos saberes docentes
através da sua produção escrita. A idéia de saberes docentes que compartilhamos
com Tardif (2002) ecoa de forma a convergir o que se faz com o que se sabe: “Em
suma, o saber dos professores é plural, compósito, heterogêneo, porque envolve, no
próprio exercício do trabalho, conhecimentos e um saber-fazer bastante diversos,
provenientes de fontes variadas e, provavelmente, de natureza diferente.” (TARDIF,
2002, p. 18)
Diante da riqueza desses saberes presentes no discurso dos professores, a
produção escrita sobre os mesmos se apresenta como um importante instrumento
de divulgação desse saber na comunidade escolar e acadêmica. Segundo Prado e
Soligo (2007, p.47): “Ou seja, convencê-los de que podem converter as conversas
cotidianas sobre o que pensam e sentem em relação ao que vivem, aprendem e
fazem – em conteúdo de um tipo de texto privilegiado para essa finalidade: o
memorial de formação.”
Os autores se preocupam ainda, em seu estudo, em “percorrer uma trilha
argumentativa que passa primeiro, pela discussão da importância das narrativas,
depois das memórias e, por fim, do que vem a ser um memorial de formação.”
(Idem; p. 47) Essa “trilha” nos dará um panorama de como foi se constituindo esse
gênero discursivo através da utilização e de estudos de outros gêneros discursivos
em pesquisas acadêmicas. Acompanharemos a “trilha argumentativa” de Prado e
Soligo, mas incrementaremos a discussão teórica com autores que trataram da
temática no último ano atravessados com outros que se tornaram referência para
esta pesquisa.
Primeiramente, Prado e Soligo apresentam o conceito de narrativa como um
registro e partilha de histórias que “supõe uma seqüência de acontecimentos, é um
tipo de discurso que nos presenteia com a possibilidade de dar à luz o nosso desejo
de os revelar.” (p.48) Submetem a apreciação as contribuições de Bruner (2001), na
visualização de conceitos que favorecem a compreensão das características
peculiares das narrativas:
O que é mais importante que saibamos a esse respeito? Que o critério de
seleção e seqüenciação dos acontecimentos é sempre uma prerrogativa do
narrador; que as histórias que lemos e ouvimos nos remetem sempre às
nossas próprias histórias, às nossas experiências pessoais; que o narrado
tem intenções nem sempre explícitas; que as narrativas são polissêmicas
ou seja, têm múltiplas possibilidades de interpretação e, embora
canônicas e modelares, a arte de narrar pressupõe algum tipo de
transgressão que contrarie as expectativas; [...] que as histórias dialogam
umas com as outras, se inter-relacionam. (PRADO e SOLIGO, 2007; p.50)
A contribuição de Benjamim (1987a), em sua concepção de narrativa, é
inerentemente ligada à história e aponta que, diante da ação de narrar, construímos
um novo sentido para os acontecimentos do passado:
Somos todos historiadores quando produzimos histórias, quando relatamos
os fatos, quando registramos nossas memórias; que o ato de contar uma
história faz com que ela seja preservada do esquecimento, criando-se a
possibilidade de ser contada novamente e de outras maneiras; que o
sentido das histórias só se constrói no olhar do outro, na relação com outras
histórias. (...) Para que se produzam outros sentidos, outras relações,
outros nexos. (PRADO e SOLIGO, 2007; p.50-51)
Kramer e Jobim e Souza (2003) em seu estudo sobre as práticas de
professores a partir das narrativas de suas histórias de vida complementam:
As formas e os conteúdos de uma narrativa biográfica variam com o
interlocutor. Situam-se, por assim dizer, no interior de uma reciprocidade.
(...) Outro aspecto importante é entender a narração mais como uma
reinterpretação do que propriamente um relato. O narrador reconta sua
história dando um novo encaminhamento aos acontecimentos passados,
um novo enredo, um novo sobrevir. Os sentidos passados, construídos em
diálogos anteriores, nunca podem ser estáveis; serão, por assim dizer,
sempre renovados no processo de desenvolvimento posterior do diálogo.
(p.28)
Assim, podemos dizer a partir das contribuições apresentadas, que a
narrativa é o registro da maneira particular do sujeito de ver e interpretar o mundo e
suas experiências. É também por meio de delas que podemos tornar públicos os
nossos pensamentos e as nossas formas de interpretar a vida. Sabemos que
através das narrativas, podemos ter acesso à profundidade da subjetividade
interpretada como uma síntese de dimensões que somente a própria pessoa pode
produzir.
Essa é uma das formas pelas quais podemos perceber a riqueza das
narrativas. Elas não são apenas relatos de experiências ou de sentimentos, mas se
constituem em uma elaboração complexa que sintetiza experiência, história e
memória de forma a possibilitar que o outro possa experimentar, pensar e sentir, de
sua maneira singular, sobre o que vivenciamos.
Seguindo por sua “trilha argumentativa”, os autores trazem o conceito de
memória como a nascente da possibilidade do ato de narrar. Entendemos a
memória como um conjunto de registros de nossas experiências que fica
“adormecido” em algum lugar da nossa mente e que a qualquer momento pode ser
acionado ou solicitado por nós, na medida da nossa necessidade. Prado e Soligo
(2007) sintetizam o conceito de memória em duas vertentes: memória-conservação
e memória-recordação:
Por memória-conservação podemos compreender a possibilidade de
preservar todas as coisas que queremos guardar e que, de algum modo
porque guardadas na memória, retidas em algum lugar da nossa mente
podemos recuperar. É como se armazenássemos nossos conhecimentos,
idéias e impressões em um determinado receptáculo a que pudéssemos
recorrer quando necessário. a memória-recordação é a possibilidade de
acionar “os guardados” da memória-conservação, que acabam por se
atualizar, por evocação, no ato de recordar. Assim, recordar pode ser
compreendido como vitalizar, oxigenar, reavivar as memórias guardadas.
(p.52)
A partir do conceito de memória compartilhado com os autores, seguimos na
trilha em direção ao que se constitui a escrita de memórias ou memorial de
formação.
Soares (2001), em sua obra sobre sua travessia de educadora em que
escreve sob este gênero, considera que escrever sobre si, sua trajetória pessoal e
profissional, é tomar o presente como a chave do passado. Quando se inscreveu
para um concurso em uma universidade para professor titular, no edital foi
solicitada a escrita de um memorial. A autora relata suas primeiras angústias:
Pedem-me um memorial: devo contar o que fui, o que foi; explicar o
passado. Mas, antes de explicar o passado, é preciso explicar o presente,
este presente: por que atender um edital que convida à inscrição a concurso
de professor titular? Quero, antes de tudo, responder a essa pergunta,
porque acredito que é pelo presente que se explica o passado o
acontecimento atual, efeito dos acontecimentos passados, é que permitirá
bem perceber e bem avaliar esses acontecimentos passados, que logo
relatarei. (SOARES, 2001, p.21-22)
A autora ainda traz a discussão acerca da solicitação desse tipo de gênero
em concursos para as universidades, chamando a atenção para o que a
universidade espera do profissional que quer contratar quando exige um memorial.
Fica claro que não basta apenas ser detentor dos conhecimentos necessários à
regência de determinada disciplina - o que fica evidente nas provas discursivas ou
de aula -, mas o mais significativo talvez seja olhar para a trajetória do profissional:
seus feitos, seus desejos, seu amadurecimento ao longo do seu percurso
acadêmico. Soares (2001) complementa:
Não por modismo o gênero memórias está muito em voga na literatura
contemporânea -, mas porque parecia-me, e parece-me, que fazer uma tese
cujo objeto é a própria vida acadêmica (pois é isto o memorial) obriga o
professor universitário a ultrapassar o que fez, em sua vida acadêmica, para
determinar por que fez, para que fez e como fez; ou seja: além da
enumeração, que es em seu curriculum vitae, a análise, a crítica, a
justificativa. E mais: o memorial é possível a quem tem um passado
acadêmico para contar, e a esses deveria ser oferecido o acesso ao
último degrau da carreira docente universitária. (p.25)
O memorial mencionado por Soares, enquanto exigência da seleção de
concursos universitários, se define como uma autobiografia que descreve, analisa e
critica acontecimentos sobre a trajetória acadêmico-profissional e intelectual do
candidato, avaliando cada etapa de sua experiência. Neste sentido, este gênero
inclui em sua estrutura seções que destacam as informações mais significativas,
como a formação, as atividades técnico-científicas e artístico-culturais, as atividades
docentes, as atividades de administração, a produção científica, entre outras
realizadas pelo candidato. Sua característica principal é a escrita na primeira pessoa
do singular, o que permite ao candidato enfatizar o mérito de suas realizações.
Prado e Soligo (2007) definem o gênero memorial como a narrativa da própria
história, onde se constrói pelo autor/narrador uma pré-seleção dos fatos e
experiências que gostaria de compartilhar com o outro:
Diferentemente da biografia/autobiografia, não compromisso em historiar
toda a vida. (...) É um texto que relata fatos memoráveis, importantes para
aquele que o produz, tendo em conta suas memórias. É uma marca, um
sinal, um registro do que o autor considera essencial para si mesmo e que
supõe ser essencial também para os seus ouvintes/leitores. (p.53)
A narrativa da própria história, selecionada em partes pelo autor/narrador,
vem aliada a uma escrita que permite ao narrador uma análise crítica ampla de suas
experiências vividas quando relatadas no papel:
Nesse sentido, o memorial não é somente uma crítica que, forçosamente,
avalia as ações, idéias, impressões e conhecimentos do sujeito narrador; é
também crítico da ão daquele que narra, seja como autor do texto ou
como sujeito da lembrança. Portanto, tem muito a ver com as condições,
situações e contingências que envolveram a ação do narrador, protagonista
das memórias. Além de ser crítico e autocrítico, é também um pouco
confessional, apresentando paixões, emoções, sentimentos inscritos na
memória. (Ibid., p.53)
A forma como encaramos certas situações e objetos es impregnada por
nossas experiências passadas. Através da memória, não o passado emerge,
misturando-se com as percepções sobre o presente, como também desloca esse
conjunto de impressões construídas pela interação do presente com o passado que
passam a ocupar todo o espaço da consciência, ou seja, nossas visões e
comportamentos estão marcados pela memória, por eventos e situações vividas.
O memorial é o resultado de uma narrativa da própria experiência retomada a
partir dos fatos significativos que nos vêm à lembrança. Fazer um memorial consiste,
então, em um exercício sistemático de escrever a própria história, rever a própria
trajetória de vida e aprofundar a reflexão sobre ela, como um exercício de auto-
conhecimento.
3.2.3 Escrita de professores: memoriais de formação
Partimos da concepção de Prado e Soligo (2007) sobre memoriais de
formação:
Um memorial de formação é um gênero textual predominantemente
narrativo, circunstanciado e analítico, que trata do processo de formação
num determinado período. (...) De modo geral, podemos dizer que se trata
de um texto em que os acontecimentos são narrados geralmente na
primeira pessoa do singular, numa seqüência definida a partir das memórias
e das escolhas do autor para registrar a própria experiência e, como todo
texto escrito, para produzir certos efeitos nos possíveis leitores. O texto
encadeia acontecimentos relacionados à experiência de formação, à prática
profissional e também à vida neste caso, nos aspectos que, de alguma
forma, explicam justificam ou ilustram o que está sendo contado. (PRADO e
SOLIGO, 2007; p.55)
Os autores também deixam registrado que este gênero discursivo funciona
para os professores, durante sua formação, como uma meta-reflexão, articulando a
teoria estudada com elementos de sua prática profissional:
Quando os autores são profissionais em exercício, a questão principal é
tratar, articuladamente, da formação e da prática profissional porque, nesse
caso, quem está escrevendo o texto é um sujeito que ao mesmo tempo
trabalha e está em processo de formação. Isso possibilita a emergência de
um conjunto de conhecimentos advindo da ação, de um conjunto de
conhecimentos advindo da formação e a inter-relação de ambos. [...] o
essencial é relatar o que, do trabalho de formação, interferiu de alguma
maneira na atuação profissional e o que, da experiência profissional,
colocou elementos ou interferiu no trabalho de formação. Assim, trata-se de
um texto reflexivo de crítica e autocrítica. (PRADO E SOLIGO, 2007, p.56)
Sartori (2008), em sua pesquisa de doutorado, realizada sobre o curso de
licenciatura em Pedagogia de docentes em exercício na educação infantil e nas
primeiras séries do ensino fundamental da região metropolitana de Campinas,
analisa 40 memoriais de formação produzidos pelas professoras e reitera a
relevância desse gênero discursivo na formação de professores:
O Memorial de Formação tem relevância na formação de professores por
propiciar ao sujeito a oportunidade de fundar novos sentidos para suas
experiências. [...] Se reflexão é fundamental para a experiência, o Memorial
de Formação é uma oportunidade ímpar de o sujeito refletir sobre o vivido.
[...] O Memorial de Formação, então, é um modo de reflexão sobre a
experiência e também de conscientização da experiência. Conscientização
envolve [...] uma re-tonalização, uma re-acentuação da experiência, ou
ainda, uma re-avaliação apreciativa. O movimento de revogação do
passado envolve re-acentuação do vivido. [...] Assim, o Memorial de
Formação é um importante instrumento na formação de professores porque
mais do que o registro de um processo reflexivo é o registro de ‘re-
acentuações’ de uma vida. (SARTORI, 2008, p.183)
A autora, em sua tese, defende a idéia de que ao escrever um memorial de
formação, o sujeito se constitui autor no conflito entre diferentes vozes presentes em
seu texto. Segundo ela, essas vozes se compõem entre o eu (autor) e o outro
(academia ou outros interlocutores) que emergem num espaço de confrontos
discursivos o texto escrito (memorial de formação). Esse confronto discursivo é a
tentativa do autor de articular seus enunciados (saberes e práticas) com os
enunciados da academia (teoria). Nesta articulação de enunciados sobre
experiências de profissão e de formação se constitui o gênero discursivo analisado:
O posicionamento autoral emerge, dessa forma, da heterogênea rede na
qual o eu referencia a si e ao outro. É esse posicionamento autoral que
indicia a forma de o autor se colocar no enunciado e, no jogo de mostrar-se
explicitamente e também esconder-se explicitamente, a professora-aluna
diz muito de si, de como se na categoria aluna e na categoria professor.
Há, assim, uma identidade sendo construída inextricavelmente ao
posicionamento autoral. Nos MF [memoriais de formação], assumir-se autor
é inevitavelmente assumir-se professor, que vida pessoal e profissional
entrelaçam-se na sua constituição. Portanto, se é no posicionamento autoral
que é possível vislumbrar o professor, que se instituiu no momento único da
enunciação, assumir-se autor é crer que o eu tem muito a dizer e, por isso,
não precisa do outro para se dizer. Ao contrário, o outro está a seu dispor,
será citado conforme as necessidades do eu. Quanto mais o eu aparece no
texto, assume a autoria do dizer, mais palavras suas estarão no enunciado.
Quanto mais o outro domina o texto, menos o eu aparece, mais subjugado
está pela palavra do outro, mais dependente da palavra do outro. O
processo de autorizar-se a dizer, um percurso de autoria no qual o eu é
soberano revela mais do que reflexão sobre si mesmo, revela posição
diante de si e do outro. (SARTORI, 2008; p.183)
Percebemos que na arena discursiva que se estabelece entre o eu e outro (s)
no memorial de formação, entre autorizar-se a dizer e sentir-se autorizado a dizer, o
autor faz escolhas e tende a se posicionar no seu dizer. Esse é o exercício da
reflexão que pode contribuir para uma tomada de consciência do autor sobre sua
formação.
Perrenoud (2001) faz um estudo sobre a tomada de consciência na prática do
professor, ressaltando a importância de uma formação para a lucidez. Essa
formação estaria relacionada à compreensão de que a prática pedagógica não é a
concretização de uma teoria e nem mesmo de regras de ação. Ela está subordinada
ao funcionamento do sistema de esquemas geradores de decisões. Esses
esquemas são acionados por mecanismos que favorecem uma maior lucidez sobre
a prática, como por exemplo, o que ele chama de escrita clínica, que definiria
escrever sobre a prática numa tentativa de construir representações, r-se à
distância e reler-se, como formas de tomada de consciência para uma efetiva
transformação da prática pedagógica. Este conceito estaria ligado ao que ele
denomina de competência profissional, relacionado a uma “disposição a manter-se
em alerta, a aproveitar toda a oportunidade de compreender um pouco melhor quem
somos.” (PERRENOUD, 2001, p.183)
O autor ainda traz a discussão de que a tomada de consciência vai ao
encontro de se formar para a lucidez, sendo necessário ao sujeito mais do que saber
analisar, querer analisar, visto que trabalhar sobre sua prática “é aceitar ser
confrontado com aquela parte do eu que se conhece e que se preferia que não
emergisse.” (Ibid., p.184)
Segundo o autor, as competências são construídas a partir da experiência
antecipada e de uma reflexão sobre a experiência – é preciso incorporar ao curso de
formação mecanismos que integrem experiência e reflexão, como análise de
práticas; estudos de caso; escrita; estágios – e outras formas de presença no
terreno da ação; relatos ou imagens da prática; observação intensiva da situação
educativa; iniciação ou participação em pesquisa; trabalho sobre histórias de vida;
entre outras condutas que poderiam favorecer a reflexão ou tomada de consciência
na formação. Nesta perspectiva, entendemos o memorial de formação como uma
estratégia possível para a tomada de consciência do professor na releitura da sua
prática pedagógica e de seus saberes durante a formação.
Reiterando a importância da produção escrita na formação de professores,
verificamos o estudo de Fernandes e Reis (2008), em que analisaram trechos de
memoriais escritos por alunos de um curso de pedagogia e observaram as
construções das identidades e processos de autoria em situação de formação. As
autoras retomam a articulação entre teoria e prática presentes na produção escrita
dos alunos a partir de suas experiências escolares, acadêmicas e de estágio.
Novamente, esses elementos trazidos à tona pela memória no momento da escrita,
constituem o gênero discursivo memorial. No entrelace dialógico desses elementos
tecendo o registro das suas memórias, os estudantes se percebem autores
posicionados em determinada realidade social, e logo, produtores de conhecimento
e já marcados por uma categoria profissional:
Neste trabalho, observamos o quanto a escrita autobiográfica,
memorialística, pode produzir efeitos significativos na construção identitária
de professores em formação. A reconstrução da memória de eventos
passados durante o período educacional básico, aliada à reflexão sobre os
eventos de formação, como a prática de ensino e o estágio, assim como,
discussões de cunho teórico nas disciplinas, propiciaram às alunas
reflexões importantes sobre sua própria formação e construção de
identidades docentes a serem colocadas em ação como possibilidades de
práticas discursivas docentes. Os fragmentos de textos discentes, aqui
analisados, apontam para relações entre a prática e o campo teórico da
formação, como um percurso que se constitui dialogicamente, em um
processo que pode ser reconstruído discursivamente pelos alunos através
de uma produção discursiva que remete à reflexão e à construção de
sentidos próprios. (FERNANDES E REIS, 2008, p.14)
As autoras também enfatizam a relevância desse estudo para o processo de
constituição da relação dialógica entre alunos e formadores, observando que a
escrita de memoriais durante a formação, seja ela inicial ou continuada, pode se
tornar uma importante aliada na avaliação de nossas próprias práticas, “como um
recurso de percepção das contradições e acertos do trabalho docente”
(FERNANDES e REIS, 2008; p.14) e ainda evidenciar que “reflexão e pesquisa não
se encontram desconectadas deste processo” dialógico de formação.
As leituras de pesquisas aqui apresentadas permitem-nos afirmar que
entendemos que escritas sobre si, como as narrativas e memoriais de formação, são
mais uma possibilidade de descoberta do universo docente. Desta maneira, traça-se
um caminho para compreender as construções identitárias que são evidenciadas
nestas produções escritas, numa relação entre memória e linguagem; entre sujeitos
e suas histórias. O memorial de formação se torna então, um texto dialógico, onde
as diferentes vozes constroem sentidos próprios e provisórios sobre o cotidiano do
professor: sua história, suas indagações, seus conflitos, ou seja, sobre o homem
plural de que fala Lahire (2002):
Somos, portanto, plurais, diferentes nas diversas situações da vida comum,
estranhos às outras partes de nós mesmos, quando estamos investidos em
tal ou tal domínio da existência social. (...) Esta intuição teórica da
pluralidade das “pessoas”, dos “eus” 9ou do fracionamento da pessoa)
diríamos que são resumos de experiências incorporadas na única e
mesma pessoa biológica. (p. 39)
A pluralidade que em todo ser humano, e que sentido aos diversos
papéis que assumimos diariamente em nosso contexto social, se faz presente o
tempo todo nos memoriais de formação utilizados pelos autores acima destacados
em suas pesquisas. Assim, percebemos as relações estabelecidas entre o
professor, autor dessas narrativas, e a linguagem, no momento em que relata ou
registra suas histórias de vida.
A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que
serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de
pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de
produção social [...]. (BRANDÃO, 2004; p.11)
Concordamos com os autores na compreensão dos memoriais de formação
enquanto possibilidade de discurso e espaço de interlocução, que contém
processos ideológicos e fenômenos lingüísticos articulados em um texto enunciado
por um sujeito-autor. Na perspectiva da interlocução como princípio formativo, a
utilização desse gênero discursivo na formação de professores evidencia, não
apenas aspectos das múltiplas experiências vividas pelas professoras, mas também
nos instiga a repensar os lugares de formação, de formadores, de alunos e de
professores, historicamente apontados como lugares hierárquicos, bem definidos e
determinados socialmente.
É importante pontuar que em nossa pesquisa não nos detivemos em analisar
produções escritas de professoras do gênero memoriais de formação, e sim
portifólios. Porém, entendemos que os dois gêneros discursivos apresentam
características muito semelhantes em estilo de escrita sobre si: um se aprofundando
mais sobre trajetória de vida e o outro sobre trajetória de aprendizagem. No capítulo
5, em que realizaremos a análise discursiva dos portifólios das alunas-professoras,
pretendemos esclarecer melhor a singularidade deste gênero sobre o qual nos
debruçamos.
4 O Curso de Extensão Alfabetização, Leitura e Escrita como prática de
letramento
Sucedendo o capítulo em que nos aproximamos teoricamente dos principais
autores que respaldam nosso estudo, neste momento direcionaremos o foco para o
campo empírico por onde nos enveredamos: o curso de extensão Alfabetização,
leitura e escrita.
Na primeira seção trataremos, por assim dizer, do “esqueleto” do curso, seu
histórico de vida, juntamente com os elementos que constituem seu programa:
ementa, objetivos e planejamento das aulas. Traçaremos ainda, um breve perfil das
alunas-professoras que participaram deste período investigado (2006/2).
Entendemos que esta primeira seção contextualizará a segunda, em que
partimos dos elementos do programa, citados acima, para corroborar nosso
pressuposto de que o curso se constituiu a partir de práticas de letramento.
4.1 Histórico do curso, ementa, objetivo e planejamento das aulas
O curso Alfabetização, leitura e escrita fundou-se a partir de uma proposta de
extensão universitária que teve sua primeira fase com início em 1986, sob a
responsabilidade da Professora Marlene Alves de O. Carvalho
19
. Nesta ocasião, o
planejamento do curso foi elaborado em colaboração com Lucia Regina G.
Vilarinho
20
, para que fosse aprovado pela Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pelas suas instâncias superiores.
O curso, naquele momento, tinha como parceiros: a Secretaria Municipal de
Educação que se ocupava das inscrições e da divulgação e a Faculdade de Letras
que à época enviou professores de lingüística, de fonética e de outras disciplinas
sobre a língua, como foi o caso da professora Miriam Lemle
21
, que teve importante
presença. Autora do Guia Teórico do Alfabetizador
(1987), esta professora deu
várias aulas no curso neste momento inicial. O curso era oferecido no turno da tarde
com um total de 40 vagas e as professoras tinham dispensa de ponto concedida
pela Secretaria de Educação para participarem.
As atividades propostas no curso tinham como objetivo principal - além de se
constituir numa formação continuada para professoras em alfabetização -, promover
trocas discursivas sobre sua prática docente.
Com a repercussão e a grande procura pela extensão, Marlene Carvalho e
Lucia Regina Vilarinho perceberam que poderiam expandir, por meio da pós-
graduação, as idéias construídas na extensão sobre alfabetização. A iniciativa de se
19
Ex-professora e diretora da Faculdade de Educação da UFRJ e atualmente é professora adjunta do Mestrado
em Educação da Universidade Católica de Petrópolis. Enquanto eu terminava esta dissertação, foi selado
também o vínculo de Marlene Carvalho como professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em
Educação da UFRJ, integrando o LEDUC. Marlene já colabora hoje com as atividades do I Curso de
Especialização em Alfabetização, Leitura e Escrita, coordenado por este laboratório e oferecido no âmbito do
projeto do CFCH, CESPEB (Curso de Especialização Saberes e Práticas na Educação Básica)
20
Foi Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UFRJ de 1972 a 1994, atuando no Departamento de
Didática e como Coordenadora do Curso de Pedagogia. Atualmente é Professora Adjunta da Universidade
Estácio de Sá no Programa de Pós-Graduação em Educação. (Fonte: Sistema de Currículo Lattes).
21
Atualmente é professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Laboratório
CLIPSEN - Computações Lingüísticas: Psicolingüística e Neurofisiologia. (Fonte: Sistema de Currículo Lattes).
pensar um curso de pós-graduação sobre o tema da alfabetização, relacionando a
prática docente com a teoria, foi pioneira na área de formação continuada de
professores. Assim, foram criados dois Cursos de Especialização em Alfabetização
(360 horas) na Faculdade de Educação, coordenados pelas duas professoras, com
a participação de professores convidados da Faculdade de Letras. No primeiro
curso, em 1991, foram abertas 40 vagas para professoras, sendo 30 bolsas
conseguidas junto ao governo. Concluíram o curso pouco mais de 30 professoras e,
a elas foi oferecida uma cerimônia de formatura no salão Pedro Calmon. O curso
seguinte, em 1993, sem a oferta de bolsas, teve um número reduzido de alunas.
Como mais um desdobramento do curso de extensão, foi criada uma
disciplina optativa sobre alfabetização no mestrado, oferecida pelas duas
professoras no período de 1988 a 1989. Após o curso de 1993, Lucia se aposentou.
Marlene não pôde continuar a oferecer sozinha a especialização e manteve apenas
o curso de extensão.
Uma nova professora da casa entrada em 1998, Ludmila
22
estabeleceu uma
parceria com Marlene em atividades de extensão ligadas à formação docente, em
vários trabalhos de pesquisa sobre formação de professores e alfabetização de
crianças e adultos. Durante o período de 2000 a 2002, suas equipes de pesquisa se
integraram na condução do curso de extensão:
Sua equipe já havia trabalhado, durante o ano de 1999, sobre as práticas de
alfabetização concebidas pelas próprias professoras alunas do curso, tendo
retraçado um mapeamento dos saberes docentes sobre alfabetização e
investigado as práticas de leitura e produção de texto adotadas, as
dificuldades que percebem no processo de letramento dos alunos e o
processo de escolha de alternativas de ação. Haviam trabalhado com o
pressuposto de que é preciso reforçar a importância da experiência no
processo de formação em serviço, admitindo, assim, outra forma de se
relacionar com o conhecimento e com a própria profissão. (ANDRADE,
2004; p.106)
22
Ludmila Thomé de Andrade, atual professora da Faculdade de Educação da UFRJ.
Segundo a ex-coordenadora do curso, professora Marlene Carvalho, em
entrevista concedida à mestranda Shirléia Leandro
23
, na primeira versão do curso as
professoras tinham dificuldade em falar sobre suas práticas, provocando as
professoras a pensarem em atividades que incentivassem essa interlocução.
Andrade (2004) apresenta em seu livro sobre professores-leitores e sua
formação, atividades baseadas nas avaliações tiradas do ano anterior sobre os
saberes docentes das alfabetizadoras, oriundos de suas práticas:
Tais atividades supunham que, em alguns momentos do curso, as alunas
fossem instadas a se expressar sobre as suas práticas, e o estímulo para o
fazerem era basearem-se em discursos de colegas de cursos anteriores.
Um recurso interessante, por exemplo, foi o de redigir e apresentar aos
sujeitos um texto denominado “Espelho, espelho meu: professoras falam de
sua prática”, que descrevia propostas metodológicas, dificuldades e acertos
vivenciados por três professoras diferentes. Essas figuras funcionaram
como “figuras-símbolo” ou “espelhos” para provocar a discussão. Essa
estratégia funcionou a contento, levando as professoras a se expressarem
com mais naturalidade sobre a própria experiência. (p.106)
Andrade (2004) também realiza uma análise discursiva sobre as produções
escritas da professoras, percebendo como a formação está presente em suas
práticas através do seu discurso, sob um foco de formadora:
Para a análise dos textos das professoras, tratamos os textos em questão
como parte da interlocução entre pesquisadores situados na atividade de
transmissão e professores em formação. A forma de intervenção dos
formadores, como exposto acima, apoiava-se nas reflexões que vínhamos
estabelecendo na tentativa de identificar como elementos orquestrados: a
constituição dos saberes docentes, a subjetividade do professor e,
finalmente a sua experiência. Estávamos conscientes de que os conceitos
em torno da alfabetização (vindos da lingüística e da psicologia piagetiana),
mesmo se difundidos tão largamente durante os últimos vinte anos, em
cursos de formação inicial e contínua, em materiais impressos (livros e
revistas acadêmicos ou materiais de leitura produzidos por secretarias de
educação), não estariam presentes nos relatos dos professores quando
escreviam sobre suas práticas, sobre sua formação. Ou melhor, não
estariam presentes ao menos de uma forma acadêmica, mas tão-somente
misturados a outros tipos de saberes. (p.107)
23
Shirleia Leandro da Silva, mestranda atualmente em Educação pela UFRJ. Título da sua pesquisa Formação
Continuada de professores de Língua: escrita e história, com defesa prevista para fevereiro de 2010.
Após o ano de 2002, este curso de extensão ficou inativo, devido à
aposentadoria da Professora Marlene. No segundo semestre letivo de 2006, se
reiniciou uma nova versão baseada nos mesmos princípios da primeira, mas com
novas atividades e diretrizes. Neste novo momento do curso, assumiu como sua
coordenadora e formadora a professora Ludmila Thomé de Andrade e se constituiu
em convênio com a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. O público
alvo do curso era os professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental
(alfabetizadores); num total de 15 aulas com carga horária de 80 horas, sendo 60h
presenciais e 20 não presenciais
24
e tendo os seguintes conteúdos programáticos
presentes em sua ementa:
Concepções de formação de professores: a centralidade dos saberes
docentes. Concepções de língua e de linguagem e suas implicações para o
ensino da língua portuguesa. Alfabetização e letramento. Métodos de
alfabetização e as concepções de alfabetização subjacentes. A teoria da
psicogênese da língua escrita e os princípios do sistema alfabético.
Gêneros discursivos e o ensino da língua portuguesa. Literatura e escola.
Leitura e escrita na alfabetização: processos em construção. A organização
do trabalho pedagógico na perspectiva do letramento: diagnóstico,
planejamento, desafios e intervenções pedagógicas. (2006)
E como objetivo:
O curso se propõe a contribuir com a formação do professor alfabetizador,
com vistas à melhoria do ensino da língua portuguesa. Buscar-se-á
promover a reflexão dos professores sobre as suas práticas de ensino de
alfabetização implementadas nas escolas, valorizando-se os saberes
docentes, a partir do resgate das suas trajetórias pessoais para
compreensão das práticas pedagógicas. Promover-se-á, portanto, a
reflexão sobre o cotidiano da sala de aula de alfabetização, à luz dos
estudos sobre letramento, que permitem conceber as práticas sociais vivas
e dinâmicas e os seus atores alunos e professores do ensino
fundamental- como sujeitos produtores de história e de cultura. (2006)
Foi sobre esta última versão do curso, em sua primeira edição, ocorrida no
segundo semestre de 2006, que este estudo tomou por seu foco de observação e
24
Tempo destinado à realização das tarefas de casa: leitura (em que as alunas-professoras eram solicitadas a
estudar os textos de base) e produção de textos, de vários gêneros, como trataremos mais adiante.
análise. Neste período, a equipe de formadoras era constituída pelas seguintes
professoras da Faculdade de Educação da UFRJ, participantes do LEDUC: Ludmila
Thomé de Andrade, Patrícia Corsino e Margareth Brainer de Queiroz Lima. O
planejamento das aulas era construído em conjunto pelas três formadoras, porém as
aulas eram ministradas por uma formadora, de acordo com sua área de atuação
e pesquisa. Sua estrutura
25
foi delineada sob três unidades de trabalho:
1. Língua, linguagem: experiência e formação;
2. Alfabetização, letramento e gêneros discursivos;
3. Leitura, escrita e literatura na alfabetização.
E as aulas divididas por temas:
Unidade I: Língua, linguagem: experiência e formação
Aula 1 - A leitura e a escrita como experiência dos professores alfabetizadores:
vivências compartilhadas.
Aula 2 - Concepções de língua e de linguagem e implicações para o ensino de
língua portuguesa.
Unidade II: Alfabetização, letramento e gêneros discursivos
Aula 3 - Alfabetização e letramento.
Aula 4 - Métodos de alfabetização: antigas questões, novas discussões.
Aula 5 - O lugar da consciência fonológica na apropriação do sistema de escrita.
Aula 6 - Alfabetização, leitura e escrita: processos em construção.
Aula 7 - Gêneros discursivos: introdução.
Aula 8 - Alguns gêneros escolares.
25
O planejamento completo com as leituras sugeridas para cada aula encontra-se em anexo.
Unidade III: Leitura, escrita e literatura na alfabetização
Aula 9 - Ensino de leitura na escola.
Aula 10 - Pensando a qualidade do livro de literatura infantil.
Aula 11 - Escolarização da literatura infantil na escola.
Aula 12 - Ensino de escrita na escola.
Aula 13 - Ensino de escrita na escola.
Aula 14 - Jogos e brincadeiras como alternativas metodológicas para a
alfabetização.
Aula 15 - O planejamento como instrumento para organização da prática
pedagógica.
Nesta versão, houve sempre o objetivo de observar sua linhagem histórica
com a versão anterior, de duração longa e presente na memória de muitas
professoras. Houve professoras que vieram como alunas e lembravam-se do curso
em suas edições anteriores. Trata-se de uma presença marcada da universidade no
município do Rio de Janeiro. Podemos dizer que a trajetória do curso é marcada
assim, na teoria e na prática, por concepções discursivas de interlocução, sempre
ligadas à pesquisa universitária e à difusão do conhecimento construído durante a
formação.
Durante esta versão do curso na qual nos detivemos neste estudo, as alunas-
professoras foram convidadas a escreverem textos como tarefas a serem realizadas
em casa solicitadas pelas formadoras. Listamos abaixo, as diferentes orientações
propostas para a produção dos textos
26
:
1. Registro de suas memórias de alfabetização.
2. Definição de linguagem.
3. Descrição de atividades de alfabetização utilizada em sua sala de aula,
enquadrada em algum método.
4. Registro de uma seqüência didática de atividades desenvolvida com os
alunos.
5. Elaboração de uma seqüência didática para realizar em sala de aula.
26
Esta listagem foi complementada pelo trabalho de Andrade e Lima, 2007.
6. Relato reflexivo sobre o curso (no meio do curso).
7. Análise de dois textos de seus alunos quanto ao gênero.
8. Portifólio.
O convite à produção de textos durante a formação pretendia que as alunas-
professoras dialogassem com os autores estudados a partir de seus saberes e
práticas. A partir das tarefas feitas em casa, a aula seguinte procedia através da
discussão sobre elas. Segundo Andrade e Lima (2007):
As metodologias empregadas na formação foram: análise de escritas de
crianças; análise de propostas de atividades; leitura em pequenos ou
grandes grupos para discussão; socialização de experiências com
teorização; discussão a partir de questões colocadas pelo formador aos
alunos para levantamento e socialização de seus conhecimentos prévios;
exposição dialogada pelo formador; vídeo e debate. Tanto as atividades
realizadas no momento presencial da formação, como aquelas solicitadas
como “tarefas de casa” buscaram favorecer a interlocução e o
fortalecimento da sala de aula como um espaço dialógico. (p.5)
Ao final do curso, foi solicitado pelas formadoras, como trabalho final, a
elaboração de um Portifólio. Esta produção escrita das alunas-professoras acabou
definindo-se enquanto gênero discursivo composto por vários gêneros, selecionados
por elas como relevantes, como alguns dos seus próprios textos que haviam sido
entregues e devolvidos pelas formadoras durante o curso. (ANDRADE e LIMA,
2007)
4.2 O perfil das alunas-professoras de 2006/2
Esta seção apresenta um caráter descritivo e sucinto do perfil das alunas-
professoras inscritas no curso de extensão Alfabetização, leitura e escrita, no
período de 2006/2. Pensamos que um breve perfil se mostra relevante na medida
em que submete a apreciação uma contextualização do sujeito envolvido no
processo de análise de dados da pesquisa.
O curso de extensão teve em seu início com 58 inscrições de professoras
regentes da CRE do município do Rio de Janeiro. puderam ser aceitas 45,
contando-se com uma evasão, pois o número ideal segundo as formadoras seria 30,
mas torna-se importante atender à demanda efetiva. Das 45 aceitas, porém, houve
uma redução importante, pouco a pouco a evasão das alunas fez com que
concluíssem o curso apenas 20 professoras com a entrega do portifólio.
Tomamos emprestado de um artigo sobre o curso, escrito por duas das
formadoras, a descrição do perfil das alunas-professoras:
As alunas-professoras participantes deste grupo, especificamente,
ensinavam, predominantemente, em turmas de alfabetização, de 1ª ou de 2ª
série
27
do ensino fundamental (70%) e as demais, em turmas de e
séries deste mesmo nível de ensino (20%). Apenas dois exerciam a função
de coordenador pedagógico (10%). É importante dizer que 90% dos
docentes declararam ter concluído o vel superior, quer o curso de
pedagogia (70%), quer o de licenciatura em letras (10%), ou outros cursos
como administração de empresas, psicologia ou outra licenciatura ou
bacharelado em matemática, artes ou biológicas (20%).
Complementarmente aos cursos de formação inicial em nível médio ou
superior, pudemos constatar que a quase totalidade do grupo afirmou
participar, sistematicamente, de cursos de aperfeiçoamento, de congressos
e mini-cursos, ou até mesmo de curso de especialização, no sentido de
obterem uma melhor qualificação para o exercício de sua profissão.
(ANDRADE e LIMA, 2008)
O tempo de magistério das alunas-professoras era bem variado: entre 4 e 27
anos. a experiência em alfabetização variava de 0 a 8 anos. Em suas fichas de
inscrição, declararam buscar espontaneamente o curso de extensão, apesar do
convênio com a Secretaria Municipal de Educação. (ANDRADE e LIMA, 2008)
Gitsos (2008) traz a contribuição de seu estudo, analisando as fichas de
inscrição e de avaliação preenchidas pelas alunas-professoras deste mesmo
período do curso. Interessa-nos, especificamente de sua pesquisa, o tópico da ficha
27
A nomenclatura “série” ainda foi utilizada na época pelas professoras em suas fichas de inscrição.
de inscrição
28
Motivação para fazer o curso, em que acreditamos se delinear um
perfil identitário das alunas-professoras inscritas no curso:
Ao analisarmos, primeiramente, as respostas contidas nas fichas de
inscrição na questão sobre os motivos que levaram as professoras a
procurarem o curso, criamos algumas categorias em relação às motivações
que impulsionam a busca das professoras pelo curso de extensão. [...]
Ressaltaram-se: (1) Aprofundamento e/ou atualização do tema
Alfabetização; (2) Aperfeiçoamento profissional; (3) Troca de experiências
com outros professores (dentro e fora do curso); (4) Superação de
dificuldades na sala de aula, no ensino, em relação à Alfabetização; (5)
Aperfeiçoamento pessoal; (6) Auxílio a outros projetos acadêmicos.
(GITSOS, 2008, p.34)
Segundo sua análise, Gitsos verificou no discurso das alunas-professoras que
havia uma concentração de respostas sobre as razões que as levaram a fazer o
curso no que ela designou como Aprofundamento e/ou atualização do tema
Alfabetização. O que vinha em segundo lugar, como motivo para a procura do curso
era reuniu sob a rubrica Aperfeiçoamento profissional. Ela ainda ressalta a
existência de uma relação entre as categorias de Aprofundamento do tema e o
Aperfeiçoamento profissional, observando que seus discursos apontam uma relação
de causa e conseqüência entre tais eixos. Ou seja, nas formulações dos
professores, a hierarquia ou a articulação lógica freqüente para apresentar estas
razões particulares para procurarem o curso apresenta-se assim: a atualização do
tema leva ao aperfeiçoamento profissional e o aperfeiçoamento profissional implica
na atualização do tema. (GITSOS, 2008, p.36)
Gitsos observa nestas respostas das alunas-professoras quanto aos motivos
pela procura da formação continuada, que a busca por aprofundamento do tema ou
aperfeiçoamento profissional ocorrem devido às dificuldades encontradas dentro da
sala de aula, o que parece sugerir-lhes a necessidade de atualização. “Muitos
28
A ficha de inscrição encontra-se em anexo.
docentes passam por uma série de questionamentos profissionais, talvez devido ao
excesso de responsabilidade e insegurança, desenvolvendo essa sensação de estar
se tornando ultrapassado e incapaz em suas práticas, acarretando uma necessidade
de atualização.” (GITSOS, 2008, p.36-37)
Tal seria brevemente o perfil de quem procura a formação continuada na
universidade. Percebemos que, apesar de tantos empecilhos encontrados nas suas
trajetórias, estas alunas-professoras reproduzem em seus discursos turmas muito
heterogêneas e lotadas, dupla regência associada ao cansaço físico e mental,
violência escolar, escasso tempo para trocas de experiências, etc. elas se
mostram dispostas a trilhar um caminho diferenciado e renovado em suas práticas
através da busca pela formação.
Na próxima seção, buscaremos compreender os modos como esse novo
caminho arriscado pelas professoras pode se constituir numa formação continuada
calcada fortemente em novas práticas de letramento.
4.3 Letramento e formação de professores
Viemos estabelecendo ao longo deste estudo, um diálogo com autores que
entendem linguagem como uma construção histórica dos sujeitos, considerando os
contextos sociais, culturais e históricos em que vivem e se relacionam. Desta forma,
compreendemos que mantendo uma relação com a história, com a cultura e com a
sociedade de cada grupo, a linguagem se constitui como uma, entre outras práticas
sociais. Por isso, quando falamos ou escrevemos, não realizamos uma atividade
caracterizada, exclusivamente pela nossa subjetividade, mas também pelos traços
institucionais, familiares, religiosos e culturais que nos influenciam e nos identificam
em relação a nós mesmos e aos outros. Materializamos uma ação que foi gerada a
partir de uma história e atualizada pela realidade do momento. Essa linguagem de
uso e em uso é representativa de nossos valores, comportamentos, reflexões,
habilidades e aprendizagens escolares e sociais. Nesta seção, trataremos de
alguns eventos ou práticas de letramento observadas no curso de extensão.
4.3.1 Retextualização e metalinguagem: práticas de letramento
Através e pela linguagem neste curso de extensão, vivenciamos uma
possibilidade de reflexão e interação discursiva sobre práticas e saberes docentes
tendo em vista uma mudança de atitude e de reconstrução do professor enquanto
autor. Concebemos a possibilidade de aliar o trabalho com a linguagem em uso na
formação continuada de professores como forma de possibilitar professoras de
Ensino Fundamental I experimentar práticas de letramento que possam
desencadear esse processo de reflexão acerca de suas práticas e saberes
docentes. Segundo Matencio (2006)
29
:
O pressuposto básico é que entender o processo de inserção do professor
em formação em práticas acadêmicas de leitura e escrita é crucial para que,
sem que se ignorem os conflitos ideológicos entre os diferentes discursos
que se fazem acerca de seu objeto de estudo, haja integração de seus
saberes prévios sobre esse objeto. (p.93-94)
A autora ainda ressalta a importância de relacionar o processo de letramento
do professor em formação a atividades de retextualização:
29
Apesar de a autora referir-se em sua pesquisa à formação de professores em cursos de Letras, acreditamos
que seu discurso é relevante também para a formação continuada de professores de séries iniciais do Ensino
Fundamental.
Na formação de professores, atividades dessa natureza dão origem à
produção de diferentes gêneros textuais e implica tanto a modalidade
escrita, quanto a falada. [...] Afinal, sua realização envolve a ação de ler e
escrever e, portanto, a mobilização de conhecimentos acerca das
estratégias de leitura e de escrita, assim como o redimensionamento de
representações acerca dessas práticas; mas implica ainda, apropriação e
sistematização de conhecimentos da área de atuação do professor em
formação. (MATENCIO, 2006, p.96)
Através dessas atividades, percebemos a relação que as alunas-professoras
estabelecem com a linguagem, considerando seu papel fundamental na construção
da identidade profissional do sujeito que está em formação e experienciando
abordagens teóricas e metodológicas, a (re) construção de uma postura profissional
e a assunção de lugares e papéis sociais e comunicativos nas práticas
acadêmicas.” (MATENCIO, 2006; p.99). A autora atenta ainda para a avaliação das
produções escritas nessas práticas de retextualização. Ela menciona que mais
importante do que identificar os eventuais erros na compreensão das solicitações,
ou erros ortográficos e gramaticais nessas produções, é identificar o que a aluna-
professora realiza de fato e em que essa produção pode ser significativa e contribuir
para sua formação.
Como exemplo de retextualização ocorrido no Curso de Extensão
Alfabetização, leitura e escrita, podemos citar a elaboração de mini-projetos,
planejamentos e seqüências didáticas a partir da leitura de textos que lhes serviram
como fundamentação teórica e da discussão em sala com as formadoras para a
construção desses novos textos. Essas atividades realizadas pelas alunas-
professoras se caracterizam como práticas de letramento na medida em que lhes
servem como meio de exercitar sua reflexão sobre suas práticas diárias. É uma
maneira de legitimar ou ao menos de se pensar acerca de seus saberes docentes e
sua contribuição para sua formação.
Olson (1995) nos traz a contribuição de pensar a escrita como atividade
metalingüística, que para escrever precisamos refletir sobre a linguagem utilizada.
Para apresentar esta relação entre o conhecimento da escrita e a metalingüística, o
autor cita Herriman (1986; p.167):
O conhecimento metalingüístico pode estar relacionado à aplicação da
escrita através da ênfase no grau de atenção que pode ser dado à
construção e à compreensão da linguagem escrita. O processo de escrita
da prosa descritiva envolve constante atenção à sintaxe e à semântica. A
escolha de palavras e de construções gramaticais, especialmente em
relação a detalhes como tempo, modo e aspectos verbais, é importante
para expressar, precisamente, a intenção de quem escreve. (apud. OLSON,
1995, p.276)
Como base para nossa análise, tomaremos três exemplos de atividades que
buscaram essa inferência e reflexão sobre a língua no momento que se fez uso dela.
A primeira atividade de “casa” solicitada pelas formadoras foi proposta na
Aula
30
1 e constava como enunciado: escrever individualmente em seus cadernos
algum registro de suas próprias memórias de infância, relacionadas a momentos
marcantes de sua relação com a leitura e/ou escrita. No encontro seguinte, a
abertura da aula teve como base a leitura de trechos do livro de Paulo Freire - A
importância do ato de ler (p. 12-14), em que no primeiro capítulo também traz sua
relação profunda entre as vivências da infância e a escrita como contexto em que
torna a aprendizagem significativa. Após a leitura, as alunas-professoras foram
convidadas a se organizarem em grupos para discutir se poderiam encontrar
elementos comuns a todas as experiências ou se havia alguma coisa que se
compartilhava por serem professoras, relacionando os trechos da leitura de Paulo
Freire com suas memórias escritas de alfabetização/infância. A partir da conversa
nos grupos, foi proposta uma plenária para cada grupo apresentar pontos que
30
O planejamento completo das aulas mencionadas no texto encontra-se em anexo.
marcavam a história individual se aproximando da história coletiva por serem
professoras.
Outra atividade de “casa” solicitada pelas formadoras referia-se a Aula 7 que
constava como enunciado: produzir um texto de gênero avaliativo que relate os
pontos/conteúdos/temas estudados até aqui que contribuíram de alguma maneira
para a sua formação. No encontro seguinte os textos foram apenas entregues às
formadoras como avaliação do trabalho realizado até aquele momento. A seguir
apresentaremos alguns trechos recortados das produções escritas das alunas-
professoras
31
, não para análise discursiva, mas como forma de ilustrar a relação
pretendida entre escrita, aprendizagem e reflexão:
“O pontapé inicial para que eu começasse a refletir sobre a minha prática
deu-se a partir da leitura ‘Reflexões sobre Alfabetização Emilia Ferreiro’.
Percebi que precisava ampliar meu conhecimento para entender e atender
melhor o meu alunado. Vi que minha atitude de curiosidade e interesse em
relação ao conhecimento que me chega através do curso está influenciando
minhas ões e que o meu olhar no desejo de aprender, em pesquisar
novas perguntas e respostas para questões antigas não é o mesmo.
Passei a ter acesso a informações que antes me eram desconhecidas:
consciência fonológica, diferença entre letramento e alfabetização,
conhecer os princípios do sistema alfabético, gêneros discursivos. Cada
encontro é um ganho surpreendente para mim.”
“O que os textos lidos me acrescentaram foram características vistas de
uma forma detalhada das fases da escrita e as possíveis intervenções do
professor em cada uma delas partindo da teoria em direção a prática,
baseado nisto, senti-me segura e embasada para trabalhar diversificado.
Uma vez estudada as teorias de Vygotsky e Bakhtin; as diferenças entre
letramento e alfabetização e outros textos, o professor passa a ter
conhecimento de como a criança se apropria e usa sua linguagem para
melhor entender e intervir na aprendizagem de seu aluno.”
“Agora passo com nitidez a analisar as produções dos alunos com ‘os
óculos da Emília Ferreiro’, como disse a professora Margareth Brainer,
podendo verificar em qual nível, segundo a psicogênese, se encontram.
Daí, contribuir com atividades de acordo com os níveis para que progridam
no processo de construção e apropriação da leitura e escrita. Portanto, o
curso tem contribuído quantitativa e qualitativamente, pois apropriei-me de
ferramentas as quais já aplico em sala de aula na expectativa de resultados
positivos. Assim, que este seja o primeiro de muitos outros cursos de
extensão em alfabetização.
31
Optamos por não identificar de forma alguma as alunas-professoras, visto que sua identidade não é relevante
para o nosso estudo, e sim, o seu discurso.
“Como havia dito anteriormente, ao ler estes textos, percebe-se certa
seqüência, a continuação de um caminho, talvez pretensão das professoras
do curso de que cada professora disponha-se a este caminhar, enfrentando
os desafios e fazendo a experiência da leitura como experiência,
revolvendo, mexendo onde for preciso para que, como o diz o texto de João
Wanderley Geraldi: ‘as contradições que se presentificam na prática efetiva
de sala de aula’, sejam superadas pelo desejo de uma práxis
verdadeiramente revolucionária capaz de diminuir a distância entre a escola
que temos e a escola que queremos. Agora, penso mais na questão do
‘para que’ ensinar, o que planejo ensinar e ‘para que’ aprender, o que as
crianças devem aprender. Quantas vezes preocupamo-nos mais com a
aquisição de conceitos e metalinguagens do que com o domínio de
‘habilidades de uso da língua em situações concretas de interação’.”
Trazendo os trechos das produções escritas de gênero avaliação como
ilustração, percebemos nitidamente que o exercício da escrita na formação favorece
e possibilita a reflexão sobre a língua no momento do seu uso, visto que no discurso
das alunas-professoras existe a preocupação em utilizar “termos”, “expressões” ou
mesmo citações de autores estudados durante a formação.
Finalmente, outra atividade de “casa”, solicitada pelas formadoras referia-se
como requisito para conclusão do curso: o portifólio. Este gênero discursivo se
caracterizou pelo entrelaçamento de todos os trabalhos realizados durante o curso,
atravessados por reflexões e relações com sua formação e logo, também se
constituiu em um importante exercício de escrita sobre a língua para as alunas-
professoras. No próximo capítulo, direcionaremos nosso foco de investigação para
nosso objeto principal: a análise discursiva destas produções escritas.
Numa perspectiva de se repensar metodologias de trabalho que favoreçam a
formação de sujeitos criticamente letrados (GOULART, 2005; p.1), chamamos a
atenção para o programa deste curso de extensão onde destacamos um trabalho
intenso sobre gêneros discursivos. Além do diálogo teórico estabelecido entre
Bakhtin e Marcuschi, foram apresentados sob a forma de transparências alguns
textos como exemplos de diferentes gêneros textuais, além das esferas constitutivas
dos gêneros (estrutura, tema e estilo). Foi trabalhado também o tema gêneros
escolares que está completamente imerso no cotidiano das alunas-professoras e
que rendeu muita discussão e relação com a prática pedagógica.
Durante os estudos sobre gêneros discursivos, foram solicitadas as seguintes
tarefas: listar os gêneros escolares que usam e criar em grupo um mini-projeto
selecionando alguns gêneros a partir de um tema (Aula 7) e selecionar dois textos
de alunos e analisar quanto ao gênero textual (Aula 8). Estas atividades realizadas
foram muito significativas para a turma, que puderam reorganizar e compreender
melhor, através da prática, seus conhecimentos e saberes sobre o tema estudado. A
partir do conhecimento e da apropriação de diferentes gêneros discursivos da
linguagem escrita abre-se espaço para participação política do sujeito no meio
social.
Segundo Goulart (2005; p.1), uma formação nesta perspectiva está
intimamente relacionada à construção da autoria e da cidadania, à medida que
associamos estas condições à condição letrada.” Neste sentido, a autoria está
relacionada à produção de novos discursos a partir dos conhecimentos adquiridos
e logo, esta formação continuada caracterizada como um evento de letramento.
Neste sentido, Goulart (2005; p.4) cita Heath (1982, p.50) referindo-se que “a
linguagem escrita é essencial à natureza das interações e aos processos e
estratégias interpretativas de seus participantes”. E ainda, citando Bakhtin (1992;
p.283), Goulart (2005; p. 9) ressalta que a variedade dos gêneros do discurso
utilizada por uma pessoa pode revelar a sua variedade de conhecimentos e
aspectos de sua personalidade”. Esta afirmação nos evidencia ainda mais que a
linguagem escrita é o fio condutor da formação como prática de letramento, onde o
outro é parte constitutiva da situação social de enunciação e se constitui nesta
relação de interação.
Andrade (2007) contribui para a reflexão, abrindo caminhos para se pensar
sobre o letramento do professor na formação continuada:
Consideramos que tais procedimentos planejados para a formação docente
permitem-nos pensar numa construção de trajetórias de letramento docente.
Se queremos formar alunos leitores na escola básica, é preciso considerar
processos possíveis para os professores se verem antes como produtores
de linguagem: leitores, escritores, escribas, autores, revisores e tantas
outras posições possíveis. [...] Trabalhar os conhecimentos sobre a
linguagem no âmbito da formação de professores de língua na dimensão do
letramento docente permite, portanto pressupor que se pode partir de fios
ideológicos constitutivos da identidade do docente brasileiro, no contexto
histórico e político educacional em que vivem seu cotidiano escolar. Dar
acesso a esta voz e em seguida dar-lhe escuta, para dar visibilidade a estes
fios. É neste cenário assim tecido que se inscreve a formação a ser
planejada pelos formadores, para que esta venha a se constituir como
acontecimento enunciativo. (ANDRADE, 2007
,
p.134)
Aliada a uma nova ordem cultural, percebemos nos últimos anos uma
iniciativa para se entender os processos de ensinar e aprender. Essa iniciativa
amplia as discussões acerca de modos de se ensinar e aprender, ao relacionar
determinadas noções à essência das ões educativas, que efetivamente trabalham
com a construção do conhecimento. Como exemplo, destacamos as noções de
interatividade e alteridade, tanto discutidas por Bakhtin (2004), que destacam a
dimensão dialógica imprescindível à construção do conhecimento, ressaltando o
valor do encontro entre o que há e o que falta em cada um para essa construção.
Assim, a escola e a ação pedagógica se atualizam e se transformam. Hoje,
entende-se que levar os alunos a construírem conhecimentos e valores na escola,
sobre vários conteúdos e também sobre a língua, requer condutas que considerem
as relações que cada aluno estabelecerá com o conhecimento e as novas formas de
consumo e de produção e que reconheça a importância das diferentes mídias na
vida das pessoas como mediadoras constantes e efetivas. A linguagem agora deve
ser experienciada e não somente estudada. Produzir novos discursos e, ao mesmo
tempo, favorecer acesso ao que foi produzido se torna uma importante relação
dialógica com a ação pedagógica.
Neste sentido, esta seção buscou perceber uma possibilidade diferenciada de
formação continuada de professores e o curso de extensão Alfabetização, leitura e
escrita, como prática de letramento, que suas atividades propostas de
retextualização e de metalinguagem se fundamentavam na escrita, tomando-a como
fio condutor do trabalho. A alunas-professoras puderam expressar seus saberes
docentes em formação ao mesmo tempo em que iam se (re) constituindo na medida
em que faziam reflexões para seus textos ou produções.
Essas atividades deram o “tom” do curso de extensão e nós as
caracterizamos como práticas de letramento, na medida em que ofereceram às
alunas-professoras a oportunidade de vivenciarem práticas de leitura e de escrita de
mesmo tipo que seus alunos poderão também vivenciar.
O encontro ou confronto entre o eu-aluno e o eu-professor de cada aluna-
professora abre certamente caminhos para repensarem sua prática e seus
conhecimentos adquiridos, abrindo a perspectiva de mudança de atitudes
anteriormente sedimentadas em seu cotidiano. Sendo assim, foi possível perceber a
relação funcional das alunas-professoras com a linguagem, considerando seu papel
fundamental na construção da sua identidade profissional em formação e
experienciando abordagens teóricas e metodológicas, possibilitando uma (re)
construção de sua postura profissional.
A partir das observações das aulas do curso e das tarefas solicitadas pelas
formadoras, se evidenciou o papel político do formador, quando este proporciona às
alunas-professoras o trabalho com a linguagem. O estudo sobre gêneros
discursivos, por exemplo, imediatamente dá acesso ao mundo da escrita e aos seus
conhecimentos implicados. Desta forma, munidas destes novos conhecimentos,
estarão atentas para desvendar os discursos sociais existentes, para reconstruir o
seu papel enquanto docentes e então produzir novos discursos de forma “criativa”,
calcadas nas relações sociais que supõem a formação dos conhecimentos como
construção social e coletiva, estreitamente vinculada aos usos sociais da linguagem.
Enfim, através de práticas coerentes com os princípios teóricos defendidos
para a formação, vão se delineando caminhos para se compreender a formação de
professores e nela os profissionais que buscam cursos de formação continuada
como este curso de extensão, na relação entre história e linguagem. A relação
fundamental a ser estabelecida, a cada vez, parece se localizar entre sujeitos e suas
produções de linguagem, sendo, portanto relações de práticas com a linguagem que
são freqüentemente linguagem escrita. Assim, percebemos que é possível e se faz
necessário um currículo diferenciado de formação continuada, voltado para a
experiência da linguagem escrita como forma do sujeito descobrir-se autor,
assumindo posições e possibilitando mudanças em suas práticas e na sua postura
profissional.
5 A produção escrita das alunas-professoras
Neste capítulo, direcionaremos nosso foco para a descrição da metodologia
utilizada durante o processo de investigação e a análise dos portifólios das alunas-
professoras.
5.1 Caminhos metodológicos
A utilização do termo “caminhos metodológicos”, para descrever os
procedimentos que foram adotados neste estudo pressupõe certa idéia de
reflexão, principal atividade relativa à investigação científica, como uma atitude
que busca soluções através da pesquisa, com utilização de certos métodos
escolhidos como sendo apropriados, para os acontecimentos novos que se tem
diante de si. Em nosso caso específico, o procedimento utilizado durante a
pesquisa se constituiu em uma opção necessária a seguir, de modo a atingir seu
desenvolvimento de modo satisfatório, ou seja, de maneira crítica e com o
objetivo de se reverter em possibilidades de reflexão que se tornem disponíveis à
sociedade. Conforme Gatti (2002, p.43): ”Método não é algo abstrato. Método é
ato vivo, concreto, que se revela nas nossas ações, na nossa organização do
trabalho investigativo, na maneira como olhamos as coisas do mundo”.
A metodologia adotada se constituiu em observação etnográfica, sendo
que nossa pesquisa se ateve ao campo empírico do I Curso de Extensão
Alfabetização, leitura e escrita. O curso foi oferecido pela universidade, às
professoras do Ensino Fundamental I da Rede Pública de Educação do Rio de
Janeiro, como descrevemos brevemente no capítulo introdutório. O período
investigado por este estudo tratou exatamente do primeiro evento do curso, no
semestre de 2006, no período de 15/08/2006 a 05/12/2006 (15 aulas).
Inicialmente, a atividade de pesquisa consistiu na aproximação do tema de
escrita de professores, que se havia originado em discussões ocorridas no grupo
de pesquisa, pautadas em estudos que nos haviam permitido selecionar alguns
conceitos norteadores, tais como: análise do discurso, interlocução, polifonia,
gêneros discursivos, linguagem e formação de professores, entre outros, tratados
por autores como: Bakhtin (2004); Lahire (2002); Maingueneau (1997); Goulart
(2005) e Andrade (2005; 2007; 2008); entre outros que nos foram úteis na relação
dialógica que se formava no grupo e que orientaram o desenvolvimento e a
construção desta pesquisa.
A partir desta primeira etapa de estudos acima referida e de profícuas
discussões, cheguei ao campo para a observação e para construir relações entre
o estudo teórico realizado no grupo com a experiência do curso de extensão.
Assim sendo, como um estudo de caso, realizamos uma investigação
aprofundada e exaustiva acerca de um curso de extensão em especial,
possibilitando o seu conhecimento amplo e detalhado, através da descrição da
situação deste contexto da realidade, embora sem pretensões a generalizações.
Os procedimentos da pesquisa relacionados aos instrumentos que foram
utilizados aconteceram da seguinte forma:
a) Análise documental 1: levantamento dos dados pessoais e currículos das
alunas-professoras a partir de suas inscrições. Objetivo: identificar seu perfil
de formação (inicial e continuada);
b) Análise documental 2: levantamento dos dados do curso de extensão
(histórico, ementa, objetivos e planos de aula) no período pesquisado.
Objetivo: justificar a sua escolha como campo empírico neste estudo.
c) Em campo, foi realizada a observação assistemática e não-participante das
15 aulas do curso de extensão (diário de campo). Objetivo: coletar dados
discursivos que seriam fundamentais na análise das produções escritas, no
caso, os portifólios.
d) No grupo de pesquisa foram produzidas atas a partir de discussões
relacionadas às aulas do curso. Objetivo: aproximação entre o estudo
teórico e vivências no curso de formadoras, alunas e pesquisadoras.
Para a análise das escritas docentes, foram utilizadas as bases conceituais e
metodológicas da Análise do Discurso (linha francesa), articuladas à proposta
bakhtiniana de uma perspectiva dialógica que atribui um lugar privilegiado à
enunciação enquanto realidade da linguagem. Consideramos a idéia de formação
como campo discursivo que articule o lingüístico e o social. (BRANDÃO, 2004)
A Análise do Discurso permitiu-nos considerar os portifólios, solicitado pelas
formadoras, como produção discursiva, ou seja, permitiu-nos elaborar categorias de
análise que se revelaram pertinentes
32
, que envolviam desde o que objetivaram
dizer até sobre o formato do texto utilizado. O suporte portifólio acabou por se
revelar um gênero discursivo aberto, com amplas possibilidades de realização,
dando margem à autoria dos sujeitos em formação, em plena constituição. Pudemos
explorar estes retratos subjetivos do processo individual de formação, a partir das
atividades propostas no curso, entrelaçadas com suas reflexões acerca de sua
aprendizagem e prática docente.
Durante o curso de extensão, as alunas-professoras foram convidadas a
escrever textos referentes aos temas estudados nas aulas, como descrevemos na
seção 4.2. A escolha por uma metodologia de análise discursiva marca nosso
interesse em compreender o sentido da riqueza de enunciações presentes na
escrita, caracterizadas por apresentar marcas identitárias da profissão docente
durante a formação continuada e representadas por embates discursivos e
dialógicos. Como estes foram escritos como trabalho final, frequentemente
constituíram-se em retomadas de escritas elaboradas anteriormente, e resumiam
através de uma apresentação as escritas das alunas-professoras produzidas
32
Apresentadas na próxima seção 5.2, de análise dos portifólios.
durante a formação, porém arrematadas com reflexões e tematizando suas próprias
aprendizagens.
É importante enfatizar que para selecionar os trechos dos portifólios e tratá-
los na análise, realizamos nos textos uma revisão das pequenas normas da língua
portuguesa (uso de vírgulas, de letra maiúscula, escrita de palavras e etc.). Esta
decisão se fez necessária a fim de garantir o integral entendimento discursivo da
enunciação e com a preocupação de não estereotipar a imagem das alunas-
professoras a partir de suas produções escritas.
Como foi apresentado na seção 4.2, das 45 alunas-professoras inscritas no
curso de extensão Alfabetização, leitura e escrita realizado em 2006/2, apenas 20
concluíram entregando seu portifólio como trabalho final. Para o trabalho de análise
realizado nesta pesquisa, foram lidos estes 20, a partir das categorias estabelecidas
para a análise.
A seguir, apresentaremos mais pressupostos teóricos que esperamos que
permitam situar a análise do discurso pela qual optamos para trabalhar nesta
investigação.
5.1.1 Análise do discurso francesa
A perspectiva teórica francesa da Análise do discurso, segundo
Maingueneau
33
(apud. BRANDÃO, 2005, p.16), filia-se:
a uma certa tradição intelectual européia (e sobretudo da França)
acostumada a unir reflexão sobre texto e sobre história. Nos anos 60, sob a
égide do estruturalismo, a conjuntura intelectual francesa propiciou, em
torno de uma reflexão sobre a “escritura”, uma articulação entre a
lingüística, o marxismo e a psicanálise. A AD [Análise do Discurso] nasceu
tendo como base a interdisciplinaridade, pois ela era preocupação não
de lingüistas como de historiadores e de alguns psicólogos.
33
(1987)
Dessa forma, a AD inscreve-se em um contexto que articula o lingüístico com
o social, partindo de influências dessas outras áreas do conhecimento e ampliando
seu campo e adquirindo novos pontos de vista nos estudos da linguagem. Essas
áreas do conhecimento auxiliam a AD a considerar outras dimensões da linguagem,
como aponta Maingueneau (apud. BRANDÃO, 2005, p.17):
O quadro das instituições em que o discurso é produzido, as quais
delimitam fortemente a enunciação; os embates históricos, sócias, etc. que
se cristalizam no discurso; o espaço próprio que cada discurso configura
para si mesmo no interior de um interdiscurso.
Como vimos, a linguagem pode ser estudada não somente enquanto
formação lingüística, mas também enquanto formação ideológica.
Para contextualizar o alicerce que sustenta nosso direcionamento
metodológico, partimos da compreensão das alunas-professoras enquanto sujeitos
produtores de discurso na relação com o outro. Verificamos essa relação nas suas
produções escrita e na interlocução estabelecida durante as aulas do curso de
extensão. “O sujeito constrói sua identidade na interação com o outro. E o espaço
dessa interação é o texto.” (BRANDÃO, 2005, p.76)
Sob esta perspectiva de incompletude do sujeito, em que ele não se
estabelece sozinho, mas sim na relação dialógica entre eu e tu, visualizamos um
deslocamento do conceito de sujeito que tem por conseqüência fazê-lo perder seu
centro e se caracteriza por um discurso polifônico que incorpora e assume diferentes
vozes sociais. (Ibid. p.86)
Em síntese, Pêcheux (apud. BRANDÃO, 2005, p.104) descreve a AD como
uma prática indissociável da reflexão sobre a própria linguagem, porém como uma
disciplina em constante construção, em que:
[...] o lingüístico é o lugar, o espaço, o território que dá materialidade,
espessura a idéias, conteúdos, temáticas de que o homem se faz sujeito;
não um sujeito ideal e abstrato, mas um sujeito concreto, histórico, porta-
voz de um amplo discurso social.
Estes pressupostos da AD fundamentaram nossa compreensão das
produções escritas das alunas-professoras como um espaço dialógico e ideológico
que tem muito a dizer sobre elas e sobre suas práticas.
5.1.2 Gêneros discursivos e interdiscursividade
As nossas opções metodológicas adotadas fundamentam-se na convicção de
que o diálogo com alguns conceitos bakhtinianos, tais como gêneros discursivos e
interdiscursividade, suscitam reflexões pertinentes e profícuas sobre as produções
escritas de professoras.
À medida que nos deparávamos com suas produções escritas, alguns
elementos constitutivos dessa identidade construída em formação iam se revelando
na forma didática como os textos eram apresentados. Pudemos considerar, por
exemplo: a descrição de suas aprendizagens; os conceitos construídos de modo
particular ou reditos, pois já sabidos anteriormente; a exposição de sua prática como
ilustração e justificativa da aprendizagem feita na formação continuada (através de
exercícios dos alunos, projetos de escola e planejamentos de aula).
Assim, o exercício da produção discursiva, seja escrita ou oral, estabelecido
como um dos pilares de constituição de um currículo de formação continuada de
professores, encaminha uma tomada de consciência acerca do trabalho docente e
da prática pedagógica, além de evidenciar traços identitários da profissão docente
descritos pelo próprio autor da história o professor. A análise do discurso
enunciado pelo professor através de sua escrita constituiu o norte de nossa
metodologia de trabalho, permitindo refletir sobre a idéia de que ouvir o que este
professor tem a dizer através de seus escritos é dar vez a sua possibilidade de tecer
um sentido para a sua história profissional de maneira criadora, dialógica e reflexiva.
Diante do desafio de se pensar sobre o lugar da escrita de professoras no
currículo de formação continuada de professores, percebemos a importância de
refletir sobre os conceitos bakhtinianos de gêneros discursivos e interdiscursividade
na produção escrita das professoras. A opção pelo aprofundamento destes
conceitos vai ao encontro da idéia de que as professoras se constituem autoras de
seu próprio texto e constroem enunciados singulares e autênticos de sua trajetória
de vida e de profissão. Estes conceitos fundamentam a compreensão das
professoras como sujeitos históricos e atuantes no mundo do trabalho. Acreditamos
que suas escritas também procuram resignificar suas ações, permitindo que o
confronto entre sua prática e o que se aprende na formação continuada possa dar
mais nitidez à sua própria identidade de professor.
Primeiramente, para compreendermos o conceito de gêneros discursivos nos
estudos de Bakhtin, é importante ressaltar que considerávamos esta idéia como um
“dialogismo do processo comunicativo inseridos no campo dessa emergência”
(MACHADO, 2005; p.152) e não como uma simples classificação de tipos textuais:
Aqui as relações interativas são processos produtivos de linguagem.
Consequentemente, gêneros e discursos passam a ser focalizados como
esferas de uso da linguagem verbal e ou da comunicação fundada na
palavra. (Ibid., p.152)
O exercício da escrita estabelecido como fio condutor do processo de
aprendizagem no currículo da formação continuada envolve as ações de ler e
escrever, portanto, a mobilização de conhecimentos e estratégias de leitura e
escrita, assim como o redimensionamento de representações sobre essas práticas.
Mas do que isso, implica na sistematização e apropriação de conhecimentos do
cotidiano de trabalho da professora em formação, constituindo-se a sua produção
escrita, em um gênero discursivo “reinventado”, tecido por vários elementos
constitutivos e identitários que se relacionam e dialogam entre si, como suas
representações sociais, seus ideais de escola, suas dificuldades diárias, suas
relações de trabalho, sua trajetória profissional, entre outros.
A interdiscursividade em Bakhtin também está diretamente relacionada ao
conceito de dialogismo, como esclarece Fiorin (2006; p.166):
O dialogismo não se confunde com a interação face a face. Essa é uma
forma composicional em que ocorrem relações dialógicas, que se dão em
todos os enunciados no processo de comunicação, tenham eles a dimensão
que tiverem. [...] O dialogismo é sempre entre discursos. O interlocutor
existe enquanto discurso. Há, pois, um embate de dois discursos: o do
locutor e o do interlocutor [...].
O estudo e análise das produções escritas das professoras enquanto gênero
discursivo supõe uma leitura de uma vasta diversidade discursiva de interações
verbais e não-verbais entrelaçadas, relacionadas entre si e produzidas durante a
formação continuada e a partir de toda a experiência vivenciada e do saber docente
adquirido. Esta produção escrita das professoras é constituída por vários outros
discursos em diálogo. Ao ser escrito, para que o seja, seu texto foi construído e
desconstruído, assim sendo, constituindo-se visitando textos que se aproximavam e
que se tornaram escolhas feitas ou não, mas que deixam ecos, traços, em uma
polissemia de sentidos e significados possíveis que se entrecruzam no exercício da
produção de autoria de discursos e enunciados.
O curso de extensão tratado, em especial, caracterizou-se por valorizar a voz
docente representada nas produções escritas das professoras e nas efervescentes
discussões realizadas durante as aulas. A intenção curricular em jogo não era
apenas permitir ou abrir espaço para essa voz se fazer presente e sim estabelecer
formas de interação discursiva entre formadoras e professoras, entre universidade e
escola. Nesta interação, o outro foi parte constitutiva da situação social de
enunciação e se constituiu nesta relação dialógica:
As esferas de uso da linguagem não são uma noção abstrata, mas uma
referência direta aos enunciados concretos que se manifestam nos
discursos. A vinculação dos neros discursivos aos enunciados concretos
introduz uma abordagem lingüística centrada na função comunicativa em
detrimento até mesmo de algumas tendências dominantes como a função
expressiva do mundo individual do falante”
34
. Quando considera a função
comunicativa, Bakhtin analisa o dialogismo entre ouvinte e falante como um
processo de interação “ativa”, quer dizer, o está no horizonte de sua
formulação o clássico diagrama espacial da comunicação fundado na noção
de transporte da mensagem de um emissor para um receptor, bastando,
para isso, um código comum. (MACHADO, 2005; p.156)
Nesta perspectiva, produzem-se novos discursos e, ao mesmo tempo, se
favorece acesso ao que foi produzido em formação. Na (re)descoberta do
professor enquanto autor, acontece o defrontamento com uma mudança: o exercício
de ser autor implica em se tornar e sujeito social e logo se evidencia o papel político
do formador quando este proporciona às professoras acesso e à produção de
diferentes gêneros discursivos. O papel político do formador e o tornar-se sujeito
social são intenções enunciativas que não são ditas, mas estão implícitas no
discurso das formadoras. Machado (2005) completa:
Esse é o ponto de vista dos gêneros discursivos pensados numa escala
comunicacional que se estende para além da interação verbal do dito e
abarca o o-dito da enunciação concreta, sócio e culturalmente
configurada. (p.165)
O (re)conhecimento destes gêneros leva imediatamente ao mundo da escrita
e aos seus conhecimentos neles implicados. Desta forma, as professoras adquirem
a possibilidade de estarem mais atentas a desvendar os discursos sociais existentes
34
Mikhail Bakhtin, 1982; p. 256; citado pela autora.
e produzir seus próprios e novos discursos, possibilitando uma (re) construção de
sua postura profissional.
Ao estudar a produção escrita das professoras, verificamos o quanto os
conceitos bakhtinianos, tais como gêneros discursivos e interdiscursividade, nos
servem de base para as análises dos textos na possibilidade de descoberta do
universo docente. Desta maneira, vai se delineando um novo caminho para se
pensar sobre reformulação curricular na formação continuada de professores e na
identidade deste profissional que procura a extensão.
Os gêneros discursivos e a interdiscursividade de Bakhtin ajudam-nos a
compreender as produções escritas das professoras enquanto possibilidade de
discurso, que estas contêm processos ideológicos e fenômenos lingüísticos
articulados em um texto enunciado por um sujeito. Sua análise discursiva evidenciou
não apenas aspectos das múltiplas experiências vividas pelas professoras, mas
também suas relações dialógicas estabelecidas e a possibilidade de estarem mais
atentas a desvendar os discursos sociais existentes para produzir seus próprios e
novos discursos.
5.2 Portifólio: produzindo reflexão
O referido Curso de Extensão Alfabetização, leitura e escrita ocorreu em
2006, oferecendo aos pesquisadores do grupo de pesquisa um notável número de
dados disponível para ser analisado. A partir da análise documental ementa e
planos de aula do curso - supusemos que poderíamos observar a prática da
retextualização (MATENCIO, 2006), enquanto evento de letramento, visto que as
alunas-professoras, ao produzirem suas escritas, mobilizaram seus conhecimentos
prévios (saberes docentes) para se relacionar com os diferentes gêneros discursivos
apresentados e (re)construir significados sobre sua prática ou sobre seus saberes.
A equipe de formadoras do curso de extensão escolheu o gênero portifólio
como um modelo de avaliação solicitado no final do curso às alunas-professoras. A
idéia era reunir em um trabalho relatos do seu processo de aprendizagem, exemplos
de sua prática a partir da vivência do curso, imagens, produções que foram
significativos para sua formação. Como descrevem as formadoras nas Orientações
para a elaboração do trabalho final: portifólio
35
:
A partir do levantamento pessoal de alguns momentos importantes do
curso, de episódios de seu processo particular como docente em formação
continuada, estabeleça um relato. A escrita deve estar presente, não basta
colar figurinhas sem um encadeamento de sua apresentação. Narre seu
próprio processo, embora não precise falar dele inteiro. Conte como foi para
você ter passado por este curso. Relembre, critique, avalie-nos/se, pense
em seus alunos. Ao mesmo tempo, apresente exemplos de tudo o que
contar. Para estas ilustrações, coloque no portifólio alguns dos trabalhos
que elaborou neste semestre para seus alunos, para o curso ou em outros
espaços de formação. Neste caso é que valem muito mais linguagens do
que apenas a escrita. (2006)
Desde que as escolas começaram a adotar o conceito de construtivismo
como base teórica para suas metodologias de ensino-aprendizagem caracterizadas
pela centralidade no aluno, na construção do conhecimento e na mediação do
professor neste processo, a idéia da reflexão tem marcado os Projetos Políticos
Pedagógicos de todas as redes de educação no país. Hoje se produz intensamente
sobre professores reflexivos, escola reflexiva e alunos reflexivos (ALARCÃO,2003;
CONTRERAS, 2002; PIMENTA, 2002; SCHÖN, 1992), e entendemos toda essa
atenção dada ao tema como uma nova possibilidade de se pensar educação. Neste
contexto, o portifólio surge nas salas de aula como um instrumento de avaliação
para apresentar o desenvolvimento do aluno em determinado período letivo:
35
O texto completo “Orientações para a elaboração do trabalho final: portifólio. Avaliação parcial dos
professores-alunos” encontra-se em anexo.
O Portifólio de Aprendizagem é uma ferramenta pedagógica que permite a
utilização de uma metodologia diferenciada e diversificada de monitorização
e avaliação do processo de ensino e aprendizagem, não descurando a
atenção à carga de aspectos inerente à situação de aprendizagem. O uso
de portifólios de aprendizagem relevância e visibilidade ao processo
formativo de aquisição, treino e desenvolvimento de competências. O seu
caráter compreensivo, de registro longitudinal, permite detectar dificuldades
e agir em tempo útil, ajudando o aluno a melhorar.
36
Na formação de professores encontramos a utilização dos portifólios para
descrever a trajetória profissional e de aprendizagem do aluno-professor. É um
instrumento reflexivo de avaliação que o permite revisitar seu percurso de
aprendizagens durante determinado período ou contexto:
Dessa forma, procuramos trabalhar a idéia de Portfólio na visão reflexiva,
seguindo as idéia de ALARCÃO (2003), como um conjunto coerente de
documentação refletidamente selecionada, significativamente comentada e
sistematicamente organizada e contextualizada no tempo, reveladora do
percurso profissional. (SANTOS, 2006)
37
No contexto da formação continuada de professores, em especial neste curso
de extensão, construímos a idéia de portifólio como um texto autoral e reflexivo que
trouxe à tona a voz docente retratando marcas identitárias em formação. Nóvoa
(1992) relaciona uma perspectiva crítico-reflexiva à formação de professores, que
articulamos com a concepção de produção escrita como via de possibilitar a reflexão
sobre seus saberes e práticas.
A formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça
aos professores os meios de um pensamento autônomo e que facilite as
dinâmicas de autoformação
38
participada. Estar em formação implica um
investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os
projetos próprios, com vista à construção de uma identidade, que é também
uma identidade profissional. (NÓVOA, 1992, p.25)
36
Disponível em: http://portfolio.alfarod.net/descricao.php. Acesso em: 14 nov. 2008.
37
Disponível em: http://www.partes.com.br/educacao/portfolio.asp. Acesso em: 03 jun. 2008.
38
O autor define a expressão como “troca de experiências e partilha de saberes que consolidam espaços de
formação mútua, nos quais cada professor é chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e
de formando.” (NÓVOA, 1992, p.26)
Assim, concordamos com o autor no que se refere a pensar a formação
continuada de professores sob uma perspectiva que favoreça a autonomia,
criatividade e a reflexão a partir de trocas de experiências, num contexto interativo e
dialógico.
Neste sentido, a análise de portifólios nos apontou para esse caminho
discursivo da formação em que observamos:
[...] as escritas como interação verbal, coerente com uma prática formadora
que se ateve ao diálogo, buscando realizar os princípios de uma
interlocução em que ambos os participantes da interação apropriam-se do
discurso construído, sentindo-se ativos em sua construção. (ANDRADE e
LIMA, 2008, p.7)
5.2.1 A análise discursiva dos portifólios
A partir da leitura dos vinte portifólios produzidos ao final do curso, foi possível
elaborar categorias de análise que marcaram todo o discurso das alunas-
professoras que vão do que objetivaram dizer até ao formato do texto utilizado.
Bakhtin (1952/1953) e sua concepção de gêneros do discurso contribuíram
para o nosso direcionamento inicial de identificação do tema recorrente nos
portifólios das alunas-professoras. Segundo ele:
A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),
concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da
atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as
finalidades de cada uma dessas esferas, não por seu conteúdo
(temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos
recursos da língua recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas
também, e sobretudo, por sua construção composicional. (p.279)
Como vimos, Bakhtin aponta que todo gênero discursivo define-se por três
elementos constitutivos de seu interior: o seu conteúdo temático (conteúdo
individualmente avaliado e ideologicamente marcado), seu estilo (modo de
composição do dizer) e sua construção composicional (marcas específicas de
linguagem, traços da posição enunciativa do locutor).
Relacionando essa estrutura de gêneros discursivos, a partir da concepção
bakhtiniana, com a estrutura dos portifólios, foi possível identificar um caminho na
construção das categorias para análise. Após a identificação do tema recorrente
trajetória -, visualizamos o posicionamento do curso de extensão nesse momento do
texto. Em seguida trabalhamos a estrutura e a constituição do sujeito dentro dele,
pela escolha da relação de interlocução com as formadoras que foram leitoras do
texto.
Assim sendo, construímos as categorias de análise da seguinte forma:
A) Trajetória de vida/profissão;
B) O curso de extensão e a produção de meta-reflexões sobre teoria e prática: (i)
Modos diferenciados do aparecimento da prática; (ii) Modos diferenciados de
como os conceitos vêm imbricados.
C) Estrutura composicional do trabalho;
D) Interlocução direta com as formadoras.
Vejamos como essas categorias se constituíram na análise discursiva dos
trechos dos portifólios das alunas-professoras.
A) Trajetória de vida/profissão
Reunimos para análise sob a categoria Trajetória de vida/profissão trechos
que descreviam o percurso profissional das docentes passando por sua vida
pessoal: seus desejos, seus medos e angústias na profissão. As alunas-professoras
escolheram em geral situar este tema no início da introdução ao seu trabalho.
Abaixo destacamos alguns trechos retirados dos portifólios das alunas-
professoras para ilustrar esta categoria de análise. É importante enfatizar que
obviamente não nos detivemos em identificá-las por nomes, nem de forma
pseudônima, visto que nosso foco de estudo é o seu discurso e as relações entre
eles.
“Ingressei no curso de extensão em Alfabetização, Leitura e Escrita da
UFRJ por dois motivos fundamentais: o primeiro, porque sou uma
apaixonada por alfabetização e sempre ‘corro atrás’ desse assunto desde
que, é claro, mereça a minha credibilidade. Segundo, por ser um curso
oferecido pela UFRJ, universidade que sempre me seduziu e encantou.”
“Em 1977, designaram-me, em uma das escolas em que lecionava, a ser
alfabetizadora. Fui um rotundo fracasso. Em setembro daquele mesmo ano,
me demiti do magistério no município do Rio e no estado, mais pela
sensação da falha do que pela perspectiva de um salário menor, uma vez
que ser bancária também não era meu sonho dourado. Lembro-me do meu
esforço em fazer com que as palavras ‘entrassem nas cabeças daquelas
crianças. Lembro-me de ficar depois da hora com os alunos que tinham
mais dificuldades, nada adiantava. Nunca tinha alfabetizado, havia
solicitado à direção que o me desse uma turma de alfabetização, mesmo
assim, nova na escola, fiquei com a turma que ninguém queria, com um
método que não conhecia e do qual não gostei Pompom, meu gatinho’
palavração. Em 2001, aposentada, retorno ao magistério e, procurando
desafios, peço para trabalhar com turma de Progressão crianças oriundas
do Ciclo de Formação da XXX que não atingiram os patamares mínimos de
leitura, escrita e matemática para estarem aptas a cursar a terceira série. É
claro que o fantasma de 77 me perseguia e de cinco analfabetos,
consegui resultado com dois.”
“Por volta do ano de 99 comecei a ler alguma coisa dos estudos de Emília
Ferreiro sobre Psicogênese da Língua Escrita. Nesta época ainda não tinha
me apropriado do assunto. Tudo era muito novo pra mim, ainda o
conseguia ver nas hipóteses sobre a escrita funcionavam na prática. Estava
lecionando em uma turma de série inicial (acho que série) que tinha
alunos alfabetizados e outros ainda em processo. Usava uma
metodologia derivada da palavração e textos ‘meio modernos’, mas ainda
na linha dos escolarizados. No ano seguinte (2000), em abril, passei a
exercer a função de Coordenadora Pedagógica na escola onde lecionava o
que coincidiu com o ano da implantação do 1º Ciclo de Formação. Este fato
fez com que eu buscasse mais informações a respeito do processo de
alfabetização, porque não só a organização tempo/espaço teria outra lógica,
como a proposta curricular também teria que acompanhar essa nova lógica
em suas práticas de ensino e avaliação.”
“Ser professora, para mim, era como um caminho certo, algo que com
certeza eu gostaria de fazer. Para minha família era simplesmente uma
profissão cansativa e mal remunerada. [...] acabei o curso normal, fiz minha
graduação que para o espanto de todos, foi em pedagogia, isto é, dentro da
mesma área, pois eu ainda não havia desistido. Acabei a graduação e iniciei
uma pós em psicopedagogia que me ajudou a entender melhor o meu aluno
e suas necessidades, não no que diz respeito ao seu cognitivo, mas sua
necessidade como pessoa inserida em um contexto.”
Podemos perceber que apesar dos preconceitos familiares e sociais, as
alunas-professoras fizeram a opção pela carreira docente com firmeza, seriedade e
vontade de fazer o melhor. Elas relatam, na maioria dos trabalhos, suas dificuldades
de formação para lidar com determinados problemas de aprendizagem dos alunos,
com as mudanças estruturais ocasionadas pelo Ciclo e com a ausência de
profissionais especialistas para auxiliá-las no cotidiano escolar.
Carecem de formação continuada direcionada dentro da rede para
professores o que geralmente acontece só para coordenadores ou só para um
professor por escola. Para professores, são oferecidos os chamados cursos de
capacitação, que são facultativos, estanques em seus temas e devem ser cursados
fora do horário de trabalho. O horário se torna um empecilho que impede muitos
professores de participarem. A maioria realiza a dupla regência ou tem duas
matrículas, o que torna impossível estudar. Como exemplo, podemos citar este
próprio curso de extensão, que apesar de não ser uma formação oferecida pela
secretaria de educação, teve um número de inscrições surpreendente, por volta de
50. E ao final do curso, somente 20 o concluíram com participação efetiva.
Acreditamos que esta evasão ocorreu por essas professoras que trabalham o dia
inteiro devido ao horário noturno. Algumas alunas- professoras também
mencionaram seu encantamento” pela universidade e pela possibilidade de realizar
um curso de formação neste espaço, muitas vezes considerado distante ou ausente
da sua realidade.
B) O curso de extensão e a produção de meta-reflexões sobre teoria e prática
A segunda categoria analisada focaliza o modo como o curso de extensão
ajudou as alunas-professoras a produzir meta reflexões sobre sua prática e sobre a
teoria em geral. Destacamos, primeiramente, os modos diferenciados do
aparecimento da prática docente em seus portifólios:
“Soube do curso no último dia de inscrição tendo, por isso, que fazer
verdadeiros ‘malabarismos’ para participar do processo de seleção e
apresentar meu Curriculum Vitae a tempo. No entanto, valeu muito a pena
qualquer dificuldade que eu possa ter encontrado durante todo o percurso,
do início ao fim, pois nele processaram-se verdadeiras aprendizagens,
aquelas capazes de provocar mudanças profundas na vida de um ser
humano. Minha imaginação criou asas, renovaram-se em mim o entusiasmo
e a esperança que me mantêm confiante e corajosa diante dos desafios que
tenho cotidianamente como educadora alfabetizadora.”
“A partir daí, criei mais rodas de leitura, busquei mais trocas de experiências
e mais oportunidades de relatos para o outro, dando mais espaço para o
diálogo em sala de aula e com minhas colegas de trabalho, etc. Optei por
menos rigidez e maior dialogicidade. [...] Procurei desenvolver atividades
diversificadas de leitura e escrita com estratégias de antecipação e pós-
leitura, respeito aos processos individuais de construção da alfabetização,
levando-se em conta também a importância da ludicidade na
aprendizagem.”
“Esta leitura mudou cotidianamente minha intervenção. E mais, venho
lutando para que o que estou apreendendo possa ser apreendido pelas
minhas colegas professoras da unidade escolar. [...] Procurei desenvolver
atividades diversificadas de leitura e escrita com estratégias de antecipação
e pós-leitura, respeito os processos individuais de construção da
alfabetização, levando-se em conta também a importância da ludicidade na
aprendizagem. A diagnose e o acompanhamento do nível de conceituação
da escrita de cada aluno o fundamentais para o sucesso na
alfabetização.”
“Além dos trabalhos desenvolvidos por mim, em minha turma da escola,
mencionados, um que se tornou longitudinal e partiu do que aprendi com os
textos do curso foi o da escrita de cartas. A partir de um passeio à biblioteca
da UNIRIO, os alunos foram convidados a descrever o que viram e o que
sentiram através de uma carta endereçada a outro colega da turma. [...] os
alunos copiaram como deveriam preencher o envelope e estudaram a
estrutura de uma carta. [...] Fica clara, assim, a importância do ambiente
facilitador para o desenvolvimento da criança para que ela possa, sem
grandes conflitos, conhecer-se e explorar o ‘mundo que a cerca,
permitindo-lhes aprender e aprender-se como ser humano, como cidadã.”
Como vimos, a prática docente aparece com nitidez na maioria dos portifólios
das alunas-professoras. Ela aparece como uma maneira de apresentar toda a
aprendizagem adquirida durante o curso. Ao mesmo tempo surge como a “luz no fim
do túnel” para algumas, já que a formação inicial ficou muito distante da prática atual
e os cursos de capacitação parecem não atendê-las efetivamente. O curso de
extensão aparece, para algumas alunas-professoras, como uma complementação
aos conceitos sabidos, embora deixados de lado por alguma falta de motivação, e
para outras, como uma grande novidade, dando a impressão de que aqueles
conceitos ainda não tinham sido estudados na formação inicial.
Uma característica da composição curricular deste curso de extensão, que,
acreditamos, tenha se tornado responsável pela notável motivação das alunas-
professoras com os conceitos estudados, foi o grande acervo de idéias e exemplos
práticos apresentados no decorrer da formação. Como professora, sei que
precisamos enxergar a teoria na prática e na maioria das formações não esse
entrelace. Elas destacam atividades/idéias que realizaram com suas turmas em
todos os portifólios e muitas destas foram apresentadas como alternativas de
mudança na prática de sala de aula como: trabalho diversificado, roda de leitura,
gêneros textuais, seqüência didática, visão diferenciada da análise da produção
escrita do aluno, construção de projetos, diálogo e flexibilidade no planejamento.
Por outro lado, em alguns portifólios, foi grande a quantidade de anexos,
apresentando folhas de tarefas/exercícios em branco (na sua maioria utilizando
diferentes tipos textuais) que foram propostos às suas turmas ou mesmo a própria
produção escrita de todos os alunos da turma como um meio de justificar que
estavam trabalhando na prática o que tinham aprendido na formação. Neste
momento, percebemos a voz estanque das alunas-professoras, que, ao anexar
produções e exercícios para/dos alunos, deixam de se pronunciar sobre ou de
dialogar com o item apresentado em seu trabalho final da formação. Que relações
elas estabeleceram a partir daqueles itens para justificar sua colocação no texto final
do curso? Neste caso específico de anexos “desconectados” do corpo do trabalho,
percebemos uma saída tangencial ao objetivo da meta-reflexão. Projetos inteiros de
trabalho (com etapas e sugestões), exercícios e produções de alunos sem nenhuma
interlocução ou produção discursiva acerca da sua inclusão ao trabalho, nos
parecem revelar uma marca identitária característica do professor.
Ainda tratando da categoria que se detém sobre as meta-reflexões produzidas
em formação sobre a prática e sobre a teoria em geral, chamamos a atenção agora
para os modos diferenciados como os conceitos vêm imbricados nos portifólios.
Basicamente, eles aparecem de dois modos: primeiro, sob a voz da aluna-
professora, estabelecendo algumas relações com o seu saber docente:
“Ainda nesta unidade, as professoras trabalharam com o tema ‘ensino da
escrita na escola’, ficando muito clara a importância de que o aluno
alfabetizando escreva não para ser corrigido, as para ser lido, narrado,
compartilhado, que possa ser sua escrita uma expressão das suas idéias,
sentimentos e emoções. [...] Criar um ambiente alfabetizador de interesse e
receptividade em relação à leitura e à escrita depende de teoria e prática,
de tempo e atenção às singularidades dos sujeitos escolares.”
“Pelo menos três metodologias nortearam as cartilhas de alfabetização. As
primeiras cartilhas baseavam-se nos métodos de marcha sintética
(processos de soletração e silabação), depois o grande modelo da época
passou a ser o método de marcha analítica [...]. Hoje a indicação é que se
trabalhe com textos (orais e escritos) do cotidiano, que façam sentido. E
paralelamente a língua seja trabalhada de forma a ser analisada pelo
aluno.”
“Os textos ‘O ensino de estratégias de compreensão leitora’ e ‘O desafio da
leitura’, retirados do livro ‘Estratégias de leitura’ de Isabel Sole, por mostrar
que mesmo que se deva incentivar a leitura espontânea e por fazer, devem
ser postos em prática ‘artifícios’ que permitam o leitor dialogar com o texto
lido, procurando sua idéia principal, suas mensagens subliminares, etc.”
“Estabelecer relações entre os textos estudados, buscar argumentos,
revisitar a teoria diante da prática, eis a vivência de um momento dialógico...
Um momento de alegria e de entusiasmo, de persistência e de reflexão,
pois segundo Bakhtin, experimentamos a interdiscursividade, à medida que
nos deparamos dialogando com as pessoas, com a obra produzida pelos
autores e, nesta relação, vamos nos apropriando do discurso desses
‘outros’, marcando e deixando-nos marcar.”
“Pensar sobre a língua e as linguagens é tema bastante sugestivo, poético
(poesia é uma linguagem!). Quanto pode render a um bom observador as
múltiplas faces da linguagem, das palavras, dos gestos, olhares, feições.
Quanto se pode dizer sem falar palavra! Tudo foi dito, e tanto se disse. Não
houve a primeira, nem a última palavra. Nunca houve e tanto foi dito... No
silencioso diálogo dos gestos, dos olhos, dos atos... Tudo foi dito.”
Como vimos nestes trechos, algumas alunas-professoras se utilizam de sua
bagagem conceitual, provavelmente adquirida em outras formações ao longo da vida
profissional, e conseguem estabelecer reflexões e relações com os ‘novos’ conceitos
aprendidos nesta formação e amesmo com sua prática. Outras fazem questão de
pontuar as unidades e os textos trabalhados durante o curso, demonstrando sua
organização didática na produção de textos e sua eficiência na leitura.
Outro modo que encontramos de como os conceitos vêm imbricados nos
portifólios aparece sem a voz da aluna-professora, na forma de suas próprias
anotações pessoais, feitas durante as aulas da formação e ainda em textos de
autores relacionados aos temas tratados no curso:
“A partir do momento em que o homem usa a linguagem para estabelecer
uma relação viva com ele próprio ou com os seus semelhantes, a linguagem
não é um instrumento, não é um meio; é uma manifestação, uma
revelação da nossa essência mais íntima e do laço psicológico que nos liga
a nós próprios e aos nossos semelhantes. (Goldstein, apud Benjamin, 1992,
p. 229)”
“Alguns conceitos básicos de lingüística - Linguagem oral: 1) O falante
nativo e sua língua; 2) Variação lingüística; 3) Usos da linguagem:
adequação; 4) O certo, o errado e o diferente; 5) Consciência lingüística do
falante; 6) As regras da linguagem”
“Gênero textual ‘reflete os textos materializados que encontramos em nossa
via e apresentam características sócio-comunicativas definidas por
conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica’.”
Os trechos destacados apresentam três de alguns modos de como os
conceitos vêm imbricados nos portifólios. O primeiro trecho caracteriza-se por uma
citação que aparece logo na primeira página do trabalho intitulada de “Concepções
de linguagem”, onde a professora se dispõe ainda de outras citações para
conceituar o tema, finalizando com esta citação. Apesar das referências estarem
aparentemente corretas, não um discurso produzido por ela que ao menos
justificasse o porquê da seleção das citações.
No segundo trecho, a aluna-professora destaca suas próprias anotações do
que foi dito durante o curso pelas formadoras. Sua interpretação ou resumo da aula
aparece de modo estanque neste seu trabalho de final de curso, deixando-nos com
ânsia pela voz da professora expressando a sua aprendizagem.
O último trecho destacado apresenta um caso recorrente em alguns portifólios
no que diz respeito à ausência de referência teórica do texto. Não pra saber
quando se trata da professora ou quando se trata de outro autor. Ela segue por um
caminho de descrição das unidades trabalhadas no curso e permanece
conceituando os temas estudados, embora não deixe claro sobre a origem da
autoria.
C) Estrutura composicional do trabalho
Outra categoria analisada trata da estrutura composicional dos portifólios das
alunas-professoras. Observamos um formato bastante didático nesta estrutura na
maioria dos trabalhos, com traço escolar, caracterizado por pastas, desenhos, fotos,
reportagens de jornal, poesias, citações para ilustrar, adesivos, entre outros.
Entendemos que este movimento didático e escolar permeia a escrita das
professoras, que estão no lugar de alunas neste curso e, portanto, se utilizam de
sua representação de alunos (os seus próprios? Às vezes infantilizam-se...) para
confeccionar seu trabalho final, se mostrando empenhadas através da descrição das
aulas, unidades do curso, dos conceitos aprendidos e dos conceitos já sabidos.
Algumas utilizaram ainda o gênero diário para descrever os momentos do
curso:
“Hoje, dia 15/08, foi a apresentação dos professores e colegas de turma.
Trocamos experiências de alfabetização em grupos de seis. O nosso
primeiro trabalho foi registrar a nossa memória de infância relacionada com
a relação leitura e escrita. E com isso uma reflexão nos dias de hoje, será
que mudou? Como está sendo feita? De que maneira?”
“Ah, tivemos um momento especial a colega leu uma poesia de sua autoria
sobre o tema. Muito boa, emocionante! [...] Que pena minha amiga
Rosângela o poder vir ao curso... Com tantos problemas familiares acho
que ela vai acabar desistindo.”
“Este foi um dia daqueles! Estou escrevendo a monografia, finalizando o
projeto de educação ambiental, passeando com a turma... Ufa! Esqueci de
deixar no carro o material do curso, vim assim mesmo, sem lenço em
documento! A colega me emprestou uma folha de seu caderno para as
anotações... a aula da Patrícia foi muito boa (assunto que gosto), mas,
fiquei bem quietinha... Tô cansada.”
Neste caso, percebemos o uso espontâneo deste gênero como uma tentativa
de tornar a formação, sempre tão formal e rígida, em algo mais descontraído,
prazeroso e próximo das alunas-professoras. Neste gênero tudo é descrito em
detalhes objetivos e subjetivos, onde exatamente mora a peculiaridade dele, onde
podemos nos expressar intensamente com desejos, opiniões, críticas e sugestões.
O professor falando/escrevendo para ele mesmo, como numa conversa informal e
íntima.
D) Interlocução direta com as formadoras
A última categoria analisada aponta a interlocução direta das alunas-
professoras com as formadoras através dos portifólios:
“O curso mostrou a importância das minhas experiências em leitura e
escrita. De certo modo, essas experiências influenciaram a minha prática e
nortearam as minhas atividades em sala de aula como professora de
alfabetização. Mostrou também que a leitura e a escrita podem ser
vivenciadas como experiência, aumentando nossas possibilidades de uso e
reflexão.”
“Esse curso que achei que não conseguiria finalizar, afinal 2006 foi um ano
em que me propus a várias coisas... Consegui. Foi importante dentro da
minha formação, refleti e aprendi. Para falar a verdade, eu havia dito que
não queria mais alfabetizar ninguém, aí veio o ano intermediário com 8
crianças com o processo de alfabetização bastante atrasado, veio o curso e
no final do ano pedi a classe de alfabetização. Quero tentar novamente,
acho que agora estou melhor preparada. [...] Agora com uma classe de
alfabetização nas mãos vou tentar rever meus caminhos como
alfabetizadora, tentar uma maneira mais próxima, dialógica. Principalmente
quero ouvi-los mais para entender melhor o que desejam e como desejam
aprender os meus alunos.”
“O curso foi um facilitador na medida em que oportunizou leituras, a própria
conversa e troca de experiências com outras colegas e professoras para o
embasamento que me faltava. Para mim o que mais me ajudou foi saber e
entender um pouco sobre a fase pré-silábica. Perceber que o código usado
pelo meu aluno tem significado. Gostaria que o curso tivesse uma
continuação, pois ficou faltando o retorno dos trabalhos solicitados. Estou
entregando meu portifólio com algumas dúvidas e questionamentos que
infelizmente não terei respostas. Obrigada pela oportunidade em fazer parte
de um curso de qualidade.”
“Para mim a avaliação ao final do curso foi prejudicada, em função da
enorme quantidade de perguntas num pequeno espaço de tempo.
Considero relevante o conteúdo da avaliação, porém facilitaria se fosse ao
término de cada aula. Sendo assim, o registro seria mais seguro, pois
avaliaríamos com mais precisão e vocês poderiam analisar melhor todo o
processo. O portifólio, proposto como avaliação parcial do curso,
oportunizou mais um aprendizado significativo, porém deveria ter sido
sugerido ao início do curso, o que possibilitaria um registro mais rico e
abrangente do processo de aprendizagem, objetivo principal de tal
instrumento.”
“Os pontos vistos e estudados serviram para a minha reflexão e vieram
consolidar e reafirmar a minha prática como professora alfabetizadora. [...]
Aproveito o ensejo para agradecer às professoras formadoras do LEDUC,
Ludmila, Patrícia e Margareth a grande contribuição para o enriquecimento
da nossa turma.”
Como vimos nestes trechos destacados, a maioria dos portifólios apresenta
alguma forma de agradecimento ou encantamento pelo curso de extensão. As
alunas-professoras, presencialmente nas aulas e em suas produções escritas
demonstram em seu discurso o quanto se sentiram enriquecidas em sua prática
docente com esta formação continuada. Não somente por tratar de temas relevantes
à prática pedagógica, mas por tratar desses temas sob a ótica do letramento e da
interlocução. As alunas-professoras, em seus portifólios, se constituíram autoras do
seu próprio texto, construíram enunciados singulares e autênticos de suas trajetórias
de vida e de profissão: suas práticas, seus saberes, seus interlocutores e sua
satisfação por estar em formação, dentre outros elementos.
As categorias analisadas no discurso das alunas-professoras nos evidenciam
marcas identitárias do professor em formação. Entendendo a produção escrita como
fio condutor da uma formação continuada sedimentada por estes conceitos, o
interlocutor (formador professor universitário) é parte constitutiva da situação social
de enunciação e se constitui nesta relação de interação. Nesta perspectiva, a
linguagem é experienciada e não somente estudada. Produzem-se novos discursos
e, ao mesmo tempo, se favorece acesso ao que já foi produzido. A ação pedagógica
se constitui numa importante relação dialógica.
6 Considerações finais
M E M O RIA L D E C R ISTIA N E JO A Z E IR O BO R R A L H O
N este m em orial, procuro relatar as atividades no cam po da educação que venho
desenvolvendo desde o início de m inha vida profissional. N ele, enfatizo m inhas experiências
na prática pedagógica escolar.
N o ano de 1996, term inei o antigo Curso Norm al no Colégio da C om panhia de Santa
Teresa de Jesus R J. Com desejos de prosseguir m eu caminho em E ducação, optei em
prim eiro lugar pelo curso de Pedagogia
PedagogiaPedagogia
Pedagogia para o vestibular e consegui ingressar em 1997 nesta
U niversidade, onde concluí o curso com habilitação em M agistério das M atérias Pedagógicas
M agistério das M atérias Pedagógicas M agistério das M atérias Pedagógicas
M agistério das M atérias Pedagógicas
do 2ª grau
do 2ª graudo 2ª grau
do 2ª grau, em 2001.
N o curso de Pedagogia, através dos estágios, am pliei meu foco de interesse passando
a envolver a form ação de professores com o problem ática interessante. Inicialm ente, o
E stágio Supervisionado e de Prática de Ensino foi feito no Instituto de E ducação do Rio de
Janeiro, no qual realizava atividades de observação, participação e regência em turm as de
F orm ação de Professores. Posteriorm ente, fiz estágio no C ogio E stadual Julia K ubitschek,
onde realizei atividades de observação, co-participação e regência nas aulas das disciplinas
de Psicologia e Sociologia da E ducação, tam bém em turm as de F orm ação de P rofessores.
D urante o curso de Pedagogia, em 1998, prestei concurso para o cargo de Professor II
do M unicípio do R io de Janeiro e em abril de 1999 fui em possada para o cargo, estando na
função até hoje.
N aquele primeiro ano (e prim eira experiência com o regente), iniciei com um a turma de
alunos de um projeto cham ado P rojeto 181 8 anos ou m ais, que já vinha com um
histórico escolar de indisciplina, incapacidade e frustração. M uitos professores já tinham
passado por aquela turm a desde o início do ano e todos a haviam abandonado, incrédulos.
E u perm aneci com aquela turm a até o fim do ano, com sucesso (e muita aprendizagem ). N ão
tive nenhum apoio pedagógico, contei apenas com a m inha bagagem escolar e acadêm ica.
N esse m omento, vivenciei na prática dilem as educacionais que já m e haviam envolvido de
m odo teórico, de forma cada vez m ais am plificada, durante o curso de P edagogia e
principalm ente nas disciplinas de Teoria da A lfabetização. A s aulas na U niversidade eram
um ponto de equilíbrio entre a teoria e prática; nelas, tinha m uitas oportunidades de trocar
experiências de trabalho com colegas e professoras com o também angústias vivenciadas no
m esm o. E m especial, fui m uito bem acolhida pela professora L udm ila Thom é de A ndrade,
com quem pude dividir todos esses m omentos e principalm ente participar de suas aulas com
produções dos m eus próprios alunos. F oi realm ente um prim eiro incentivo à opção pelas séries
iniciais do E nsino F undam ental, através do estudo m ais aprofundado de alguns teóricos
com o Piaget, V ygotsky, E m ilia F erreiro, P aulo F reire, entre outros, e da relação que
estabelecíam os entre esses e os conhecimentos trazidos pelos professores das demais aulas.
D esde então, tenho constantem ente participado de alguns sem inários e encontros
ligados à questão da leitura e escrita e da educação em geral, que vêm contribuindo para um
processo de am adurecimento profissional e teórico em m inha prática de sala de aula.
E m 2001, concluí a graduação, em bora só conseguisse colar o grau neste ano de 2005
devido a algum as pendências adm inistrativas, apresentando o tem a de m onografia
V iolência na escola: um ensaio, sob orientação do P rofessor M arcio da C osta.
E m 2002, comecei a atuar como Professora do E nsino F undamental no C olégio da
Com panhia de Santa Teresa de Jesus R J. Esta instituição foi responsável por toda a
m inha formação escolar e inicial de professora, pois nela tive a oportunidade de estudar
durante toda a m inha vida. C onfrontando naquele m om ento realidades educacionais quase
opostas, m e deparei novam ente com novas experiências de turm as recém alfabetizadas. N o
entanto, devido a um a cobrança m ais efetiva diante da postura profissional e da própria
prática pedagógica, fui m e adaptando às novas estruturas de trabalho e buscando a
fundam entação teórica necessária para em basar m inha prática.
D esta form a, incentivada pela própria escola, pude continuar participando de
congressos, cursos e sem inários ligados à educação que em algum m om ento enriqueceram
m inha atuação enquanto educadora.
Trabalhando efetivam ente em sala de aula com turm as de 1ª série do E nsino
F undam ental I das redes privada e pública m unicipal, questões acerca do processo de
alfabetização que envolvem o aluno foram sendo suscitadas em m inha prática. Iniciou-se,
então, um constante m ovim ento de reflexão sobre os processos de aquisição da escrita nas
crianças, nas relações de ensino e ainda com o elas fazem usufruto deste instrum ento de
com unicação social no seu dia-a-dia.
A ssim, compartilhando com BOZ ZA (2004), entendendo letram ento com o um a form a
de inserção social através da am pliação/apropriação de conhecim entos produzidos
historicam ente, percebo que é im portante um trabalho pedagógico que realize um a
alfabetização que se aproxim e do processo natural do desenvolvim ento psicológico da
criança, acom panhando a m aturação dos processos cognitivos envolvidos, de form a a tam bém
não situar esses processos na figura do professor e sim nas relações sociais m ais com plexas
que supõem a form ação dos conhecim entos com o construção social e coletiva, estreitam ente
vinculada aos usos sociais da linguagem .
D a form a que tem sido vista na escola, a tarefa de ensinar foi adquirindo, com o
tem po, características extrem am ente unilaterais, estáticas e lineares. O professor se coloca
num lugar em que se apodera do conhecimento e acredita que sua tarefa é precisamente
repassá-lo às crianças, sem argum entos, trocas ou diálogos, cristalizando assim a relação de
ensino, que m e parece se constituir nas interações sociais.
Com o professora de 1ª à 4ª série, m e vejo como as outras colegas, bastante aflita
quanto a m étodos e teorias que saltitam ao nosso redor, ofertados com o m anuais de
instrução de novos aparelhos para se alfabetizar. M as de fato, ao longo dos meus 6 anos de
prática, percebo que não é possível - com partilhando então, com Paulo F reire ler o mundo
através de pedacinhos linearmente program ados se queremos que atuem em sociedade.
E ntendo que é preciso com preender e se aprofundar cada vez mais nos estudos acerca
dos processos cognitivos que favorecem o aprendizado da leitura e da escrita para que se faça
possível um trabalho pedagógico que de fato se esforce para trazer a criança para o m undo
em que vivem os, através das interações sociais e do real entendimento do funcionam ento
social da escrita.
A escrita, com o forma de linguagem , é constitutiva do conhecim ento na interação.
N ão se trata, apenas, de ensinar a escrita, m as de usar, de fazer funcionar a escrita com o
interação e interlocução na sala de aula, experienciando a linguagem nas suas várias
possibilidades.
D esta form a, m esm o sabendo que acum ulo m uito m ais experiências de trabalho
efetivo em sala de aula do que especializações ou participações em grupos de pesquisa, ainda
assim, é o meu desejo ingressar na pesquisa acadêmica através deste concurso, de m odo a
fundam entar e sedim entar um a prática com inúm eras questões relevantes aos tem as
apresentados nesse edital.
A ssim sendo, é im portante ressaltar que a escolha desta U niversidade, só enfatiza seu
grau de significado em toda a minha trajetória de trabalho e estudo que certam ente, vem de
encontro com m inhas concepções de E ducação e de luta por transform ações sociais.
A gradeço desde já a atenção,
Cristiane Joazeiro Borralho.
Ao iniciar este capítulo final, procurei buscar algo significativo em toda minha
trajetória acadêmica e profissional que pudesse ilustrar e sintetizar o que
representou fazer parte de um grupo de pesquisa, dentro de um programa de pós-
graduação, atuando como pesquisadora e aluna, sendo professora em outro espaço.
A coincidência (ou não) então se instaurou: encontrei entre os arquivos guardados,
mas não-empoeirados, em meu computador (santa tecnologia!) o memorial,
destacado acima, que escrevi para a seleção neste programa de pós-graduação.
Minha turma foi a última a entrar para o programa através de memorial e não de
projeto de pesquisa. Concordo com SOARES (2001) quando traz a discussão
acerca da solicitação desse tipo de gênero (memorial) em concursos para as
universidades. Concursos para professores
39
ou seleções de alunos para
programas, não diferem muito no que diz respeito à escolha de candidatos para
representar, de certa forma, o nível de ensino das universidades. Solicitar a escrita
deste gênero no ato de uma inscrição de seleção muito quer dizer acerca das
intenções, - e porque o pretensões? sobre o que a universidade espera do
profissional/aluno que quer contratar/selecionar. A meu ver, mais significativo e
completo do que analisar um formato fechado de projeto de pesquisa salvo sua
relevância no auxílio da análise de um curriculum vitae -, é direcionar o foco para a
história do candidato e a trajetória acadêmica e profissional que construiu ao longo
do tempo. Seu percurso com certeza exigiu-lhe escolhas freqüentes que, em
parte, determinaram muito de sua personalidade, saberes, capacidades, habilidades
e perspectivas para a nova escolha. E esses elementos discursivos só poderão estar
presentes e vivos quando descritos em um memorial.
Ao escrever um memorial, despimo-nos de todas as capas que nos
sobrepõem para nos encontrar com nosso eu nosso íntimo, nosso interior. Nesse
momento, tomamos consciência de nosso âmago e, quase num desabafo, soltamos
39
Magda Soares escreveu um memorial em 1981 atendendo a requisito para a inscrição em concurso de
professor titular na Universidade Federal de Minas Gerais que mais tarde, em 2001, transformou em livro, cujo
título é Metamemória-memórias: travessia de uma educadora.
as palavras precisas para descrever nosso percurso, é um momento de mudança,
em que nos revemos para registrar os fatos mais significativos. Segundo LARROSA
(2004), “um dos efeitos da tomada de consciência é que cada um sente a
necessidade de reescrever, a partir desse momento de mudança, sua própria
história.” (p.32)
A partir do memorial que trouxe inteiro acima, penso que é possível
apresentar com nitidez o percurso pelo qual venho traçando ao longo dos doze anos
de formação e de profissão. Após o árduo e prazeroso -, caminho de leituras e
discussões acerca deste gênero discursivo que tanto me revelou encantador para
compor minha pesquisa, nada mais apropriado do que finalizá-la pelo seu início:
meu memorial “de entrada” no mestrado. Seguindo o mesmo gênero, pretendo com
esse capítulo final expressar, através da escrita, minha trajetória de aprendizagem
durante o mestrado e na pesquisa, articuladas à minha atuação profissional, como
não poderia deixar de ser. Finalizando, então, com um memorial de formação “de
saída”.
6.1 A seleção
A escrita de um memorial como requisito de inscrição para a seleção deste
programa de pós-graduação abriu as portas para um lado que até então me era
desconhecido pelo excesso de trabalho em escolas – a pesquisa. Depois de concluir
minha formação inicial em Pedagogia e logo conseguir atuar em escolas pública e
privada como professora, realmente me afastei da universidade e estive totalmente
voltada para o trabalho. Depois de quatro anos vivenciando apenas “capacitações”
oferecidas pela rede municipal ou seminários e cursos pela escola privada, o desejo
de estudar temas de modo mais aprofundado, durante um tempo mais significativo
foi se aflorando, mas, o afastamento que tinha promovido da universidade se tornou
determinante na hora de optar pelo mestrado. Hoje, após toda a experiência
concluída, percebo que minha entrada neste programa só foi possível, devido a sua
característica principal: a possibilidade de articulação entre teoria e prática.
Como todo candidato que se preze, escolhi duas universidades da cidade
para realizar o concurso com processos de seleção diferentes quanto ao gênero: a
primeira opção foi a UFRJ, pela minha formação inicial e afinidade com temas de
pesquisa. Solicitou um memorial na inscrição. A segunda opção, pela sua reputação
acadêmica, solicitou um projeto de pesquisa. A escrita do memorial foi um deleite.
Tentei colocar em palavras todo o meu desejo de aprender mais e de levar minha
prática docente para um diálogo com a teoria. a escrita do projeto de pesquisa
não foi fácil, simplesmente porque não tinha um. Recorri a leituras emergenciais, de
praxe, e à experiência de amigos e professores para produzir alguma coisa em tão
pouco tempo. Estava totalmente ignorante deste universo.
Realizei a primeira prova discursiva na outra universidade, obtendo a segunda
melhor nota de todos os vinte e poucos candidatos. Pensei que, para quem estava
afastada de fundamentações teóricas mais significativas do meio acadêmico, não
estava tão “por fora”. Também obtive êxito na prova de língua inglesa. A realidade
da minha inexperiência estava por saltar a minha frente: a entrevista. Foi dura,
frustrante e sórdida. Estar professora e com um projeto de pesquisa assumidamente
inconsistente, não me garantia uma vaga no programa apesar do segundo lugar na
prova discursiva. O que estaria sendo avaliado então? O programa não seria o
espaço do aprender? Não poderia, ao longo do curso, ir adquirindo os
conhecimentos e leituras que me faltavam para me enquadrar em seu grupo de
pesquisa? A resposta que consegui foi em forma de “conselho”: procurar o curso lato
sensu pago, oferecido pelo professor que realizou a entrevista comigo. Ficou claro
que aquela universidade não estava aberta para a prática docente. Seu viés de
formação passava por lugares demarcados e bem fundamentados teoricamente.
Ainda bem, aquele não era meu lugar.
Nas provas, discursiva e de língua, da UFRJ já não me saí tão bem. Fiquei na
média necessária para a vaga. Em contrapartida, na entrevista conversamos sobre o
meu memorial. Senti-me mais à vontade para falar do meu trabalho, sobre o que
desejava com o mestrado e principalmente sobre a possibilidade de estar de volta à
instituição responsável por minha formação inicial, onde conhecia professores,
currículo e a proposta pedagógica. Bom, o final já é conhecido. Conquistei a vaga, e
porque não dizer uma oportunidade no programa para complementar minha
formação, aprender a fazer pesquisa e contribuir para as reflexões sobre educação
na sociedade.
6.2 O memorial
O requisito de um memorial, a meu ver, fez a diferença nesta seleção, pois
sua escrita possibilitou reconstruir minha trajetória pessoal, numa dimensão
reflexiva, como o sujeito da minha própria história. Assim, foi um esforço de
organização e análise do que vivi como experiência. Esse exercício de meta-reflexão
pôde se tornar algo constituinte de mudança: no jeito de olhar e pensar criticamente
o mundo, tendo como vantagem o distanciamento temporal.
A escrita do memorial se mostra, neste sentido, um instrumento através do
qual o aluno articula suas experiências com suas percepções interiores, a partir da
reflexão. Na elaboração de um memorial, as condições e situações que envolvem
sua trajetória, tais quais as questões que mobilizam sua atenção, evidenciando
como elas se originam em sua história, devem ser consideradas. Pelo seu caráter
problematizador, reflexivo e sistematizador, o memorial se constitui numa ferramenta
necessária à formação quando serve de fio condutor para que o aluno, lendo-o,
relendo-o e reescrevendo-o, seja capaz de construir relações dialógicas entre suas
experiências profissionais e os conteúdos teóricos estudados em sua formação.
Neste exercício de escrita, a possibilidade de uma releitura crítica da sua prática e
da própria realidade que o cerca se materializa em forma de texto.
Ainda que minha proposta de pesquisa tratasse de analisar portifólios, ao
retomar o meu memorial “de entrada” no programa de pós-graduação neste capítulo
final, trago como objetivo relacionar dois gêneros discursivos – memorial e portifólio -
que se constituem em uma produção escrita significativa e de efetiva aprendizagem
na formação de professores. Através deste memorial, foi possível fazer a releitura da
minha prática e da minha formação e consequentemente me torno sujeito a partir
da identificação de tantos lugares ocupados por mim como professora, aluna, autora
e pesquisadora -. Um sujeito "melhor", sob uma perspectiva dialógica e discursiva
deste gênero textual. Se o processo inicialmente parece individual, no ato da
reflexão sobre a prática e da organização lingüístico-textual que se deve imprimir à
descrição de suas dimensões, estritamente fundado no diálogo e conflito internos,
logo se torna coletivo e social, quando se constitui um gênero discursivo à
disposição de outros leitores.
6.3 Na releitura, singelamente uma contribuição
Olhando para trás, por todo o caminho percorrido na preparação e na escrita
desta pesquisa, desde seus primeiros rascunhos e desdobramentos, indago-me,
enfim, que reflexões ela podesuscitar nas práticas de outros professores ou na
experiência de outros pesquisadores?
Ao iniciar o mestrado, imaginava que não seria possível escrever uma
dissertação com tantos elementos autobiográficos marcando meu estilo de escrita. É
notável que para se dizer algo no espaço acadêmico é preciso estar fundamentado
teoricamente em outros dizeres. Porém, a partir da experiência de pesquisadora no
curso de extensão, minha produção de textos (relatos) foi tão intensa e farta que não
seria possível pular essa parte e simplesmente coletar dados e analisá-los. Trazer
enunciados próprios organizados e recortados pela sua relevância no texto como um
todo foi uma opção metodológica que compôs a tecitura do estudo. Assim, não é
apenas uma pesquisa que está sendo apresentada neste texto, mas sim todo o
processo de aprendizagem pelo qual se passa quando percebemos esse encontro
de lugares durante a formação.
As inquietações apresentadas no capítulo dois, acerca da dialogia entre os
lugares ocupados por mim, se constituíram em elos entre a profissão e a pesquisa.
Lugares que não se deixariam marcar sem a perspectiva do outro. Falar nos
encontros de pesquisa e escrever sobre essas inquietações foi uma grande
aprendizagem enquanto mestranda e pesquisadora, como relatei no capítulo
mencionado. No princípio, eu era uma professora querendo complementar minha
formação, me atualizar e aprender mais. E agora, a experiência da pesquisa tornou
possível realizar uma releitura crítica da minha prática docente, convivendo,
observando e analisando os enunciados no curso de extensão - de outras colegas
de profissão. Suas produções escritas traziam um pouco do meu dizer também
enquanto professora como elas. Estar do lado de cá, do ponto de vista da
universidade, fazendo parte também do lado de da escola, do objeto de estudo,
fez a diferença na análise dos dados e na concepção das alunas-professoras
enquanto autoras e produtoras de conhecimento.
Não saberia dizer, com precisão, ao final deste percurso, se sou mais
professora ou mais pesquisadora. Penso que ocupo dois lugares privilegiados de
saberes que interagiram discursivamente e ideologicamente durante toda a
formação. Como pesquisadora, ganhei a experiência da participação, do
envolvimento, da interlocução com pares e do trabalho científico. Como professora,
ampliei meu universo de saberes, conheci autores e teorias que se distanciam da
realidade escolar atual e aprendi que é possível trabalhar com a escola/professor e
não sobre a escola/professor. Dois lugares que se sobressaem no balanço atual do
meu percurso profissional, mas que não se definem estáticos e imóveis. Logo
percebo que, inevitavelmente, o lugar de professora se realça, porém renovado,
revigorado e com um olhar diferenciado da própria identidade.
De forma singela, deixo minha contribuição para as reflexões acerca de uma
possível concepção de construção de um currículo de formação continuada de
professores que tenha como preocupação primeira a relação funcional das
professoras com a linguagem, considerando o seu papel fundamental na construção
da produção de discursos enquanto possibilidade de reflexão sobre sua prática
docente. Nesta perspectiva, a relação entre o pensar e o agir têm suas implicações
na prática fundamentada pela experiência da linguagem, através da produção
escrita, na qual o sujeito se descobre autor, sujeito histórico e social.
Por hora, novas conexões, perspectivas e “temas de pesquisa” se constituirão
no próximo lugar que venho ocupando indiretamente oito meses e
simultaneamente à finalização desta dissertação, lugar este que também se tornará
um espaço dialógico de interlocução entre os outros lugares da minha experiência,
promovendo também amadurecimento, ganhos e mudanças efetivas em minha
trajetória pessoal e profissional. Este novo lugar apenas se diferencia na
incondicional dedicação, fundamentada em uma teoria que ainda não encontramos
nos programas de pós-graduação e que os livros tentam explicar, mas que me
parece ser inexplicável em enunciados. Somente semana após semana é possível
narrar, sentir e experienciar na prática este lugar que se apresenta sempre
enigmático, porém sublime... O lugar de mãe.
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ANEXOS
ANEXO 1 – FICHA DE INSCRIÇÃO
FICHA de INSCRIÇÃO
Curso de extensão Alfabetização, Leitura e Escrita
Nome:
_______________________________________________________________
Endereço:
_______________________________________________________________
Série/ ano em que ensina:
_______________________________________________________________
Escola em que ensina:
_______________________________________________________________
Telefones:
_______________________________________________________________
E mails:
_______________________________________________________________
Motivação para fazer o curso:
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
ANEXO 2 – EMENTA, OBJETIVO E PROGRAMA DAS AULAS
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Faculdade de Educação
Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação
Curso de Extensão em Alfabetização, leitura, escrita
Público alvo:professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental
Número de horas: 80 h (60 presenciais e 20 não presenciais)
Horário: 3ªs fªs de 18 às 21 hs
Início: 15/08/2006
Ementa:
Concepções de formação de professores: a centralidade dos saberes docentes. Concepções
de ngua e de linguagem e suas implicações para o ensino da língua portuguesa.
Alfabetização e letramento. Métodos de alfabetização e as concepções de alfabetização
subjacentes. A teoria da psicogênese da língua escrita e os princípios do sistema
alfabético. Gêneros discursivos e o ensino da língua portuguesa. Literatura e escola.
Leitura e escrita na alfabetização: processos em construção. A organização do trabalho
pedagógico na perspectiva do letramento: diagnóstico, planejamento, desafios e
intervenções pedagógicas.
Objetivos do curso:
O curso se propõe a contribuir com a formação do professor alfabetizador, com vistas à
melhoria do ensino da língua portuguesa. Buscar-se-á promover a reflexão dos professores
sobre as suas práticas de ensino de alfabetização implementadas nas escolas, valorizando-
se os saberes docentes, a partir do resgate das suas trajetórias pessoais para compreensão
das práticas pedagógicas. Promover-se-á, portanto, a reflexão sobre o cotidiano da sala de
aula de alfabetização, à luz dos estudos sobre letramento, que permitem conceber as
práticas sociais vivas e dinâmicas e os seus atores alunos e professores do ensino
fundamental- como sujeitos produtores de história e de cultura.
Unidades de trabalho
Unidade 1- Língua, linguagem: experiência e formação (2 aulas)
Unidade 2- Alfabetização, letramento e gêneros discursivos (6 aulas)
Unidade 3- Leitura, escrita e literatura na alfabetização (7 aulas)
Planejamento
Unidade 1- Língua, linguagem: experiência e formação
Aula 1
A leitura e a escrita como experiência dos professores alfabetizadores: vivências
compartilhadas
Texto para leitura:
ANDRADE, Ludmila T. de Dizeres e discursos de professores em formação inicial
(mimeo)
Leitura complementar:
KRAMER, Sonia. Leitura e escrita como experiência- notas sobre seu papel na formação
. In; ZACCUR, E. (org) A magia da linguagem. Rio de Janeiro: DP&A:SEPE, 1999,
p.101-122.
Aula 2
Concepções de língua e de linguagem e implicações para o ensino de língua
portuguesa
Texto para leitura:
GERALDI, J. W. “Concepções de linguagem e ensino de português”.In: GERALDI, J. W.
(org.) O texto na sala de aula São Paulo: Ática, 2005.
ALBUQUERQUE, E. B. de “Mudanças didáticas e pedagógicas no ensino da língua
portuguesa: algumas reflexões” in ALBUQUERQUE, E. B. de Mudanças didáticas e
pedagógicas no ensino da língua portuguesa: apropriações de professores
BORTONI-RICARDO, Stella Maris Desigualdades sociais, variação lingüística e o
processo educacional in BORTONI-RICARDO, Stella Nós cheguemu na escola e agora?
Unidade 2- Alfabetização, letramento e gêneros discursivos
Aula 3
Alfabetização e letramento
Texto para leitura:
SOARES, M. “Letramento em texto didático” In: SOARES, Magda Letramento: um tema em três
gêneros Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
Aula 4
Métodos de alfabetização: antigas questões, novas discussões
Textos para leitura:
CARVALHO, Marlene “Parte I – Alfabetização” Alfabetizar e letrar – um diálogo entre a teoria e
a prática Petrópolis: Vozes, 2005 (p. 12-61)
GALVÃO, Andréa e LEAL, Telma Ferraz “Há lugar ainda para os métodos de alfabetização?
Conversa com professores(as)” in MORAIS, Artur, ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de
e LEAL, Telma Ferraz.(orgs.) Alfabetização: apropriação do sistema de escrita alfabético Belo
Horizonte: Autêntica, 2005.
Leitura complementar:
SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. Trabalho encomendado para o GT10. 27ª Reunião
Anual da Anped. Caxambu, 2004. In: www.anped.org.br
Aula 5
O lugar da Consciência fonológica na apropriação do sistema de escrita
Textos para leitura:
Morais, A.Artur Se a escrita alfabética é um sistema notacional (e não um código), que
implicações isso tem para a alfabetização?
in MORAIS, Artur, ALBUQUERQUE, Eliana
Borges Correia de e LEAL, Telma Ferraz.(orgs.) Alfabetização: apropriação do sistema de
escrita alfabético Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
Morais, A.Artur Como promover o desenvolvimento das habilidades de reflexão
fonológica dos alfabetizandos?
in MORAIS, Artur, ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia
de e LEAL, Telma Ferraz.(orgs.) Alfabetização: apropriação do sistema de escrita alfabético
Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
Aula 6
Alfabetização, leitura e escrita: processos em construção
Texto para leitura:
FERREIRO, Emília. Reflexões sobre Alfabetização. São Paulo: Cortez, 2001 (24ª Edição
atualizada)
Aula 7
Gêneros discursivos: introdução
Texto para leitura:
MARCUSCHI, L.A . Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:Dionísio, A.P.; Machado,
A.R. & Bezerra, M.A. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Ed. Lucerna, 2002.
Aula 8
Alguns gêneros escolares
Texto para leitura:
Abaurre, B. et allii Considerações sobre a diferenciação de gêneros discursivos na escrita
infantil in Rocha, G. e Val, M. da G. C. (orgs.) Reflexões sobre práticas escolares de
produção de texto – o sujeito autor Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
Unidade 3- Leitura, escrita e literatura na alfabetização
Aula 9
Ensino de Leitura na escola
Texto para leitura:
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura Porto Alegre: ArtMed, 1998. (C1 “O desafio da
leitura” e C4 “O ensino de estratégias de compreensão leitora”)
Aula 10
Pensando a qualidade do livro de literatura infantil
Texto para leitura:
ANDRADE, Ludmila e CORSINO, Patrícia. Critérios para a constituição de um acervo
literário para as séries iniciais do Ensino Fundamental: o instrumento de avaliação do
PNBE-2005. Texto apresentado no Seminário Jogo do Livro. Belo Horizonte: UFMG,
novembro de 2005 (mimeo).
Aula 11
Escolarização da Literatura infantil na escola
Texto para leitura:
Soares, M. B. “A escolarização da literatura infantil e juvenil” in Martins, A A et allii
(orgs) A escolarização da leitura literária Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
Aula 12
Ensino de Escrita na escola
Texto para leitura:
LEAL, Leiva “A formação do produtor de texto escrito na escola: uma análise das
relações entre os processos interlocutivos e os processos de ensino” in Rocha, G. e Val,
M. da G. C. (orgs.) Reflexões sobre práticas escolares de produção de texto o sujeito
autor Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
Aula 13
Ensino de Escrita na escola
Texto para leitura:
Abaurre, B. et allii Considerações sobre a diferenciação de gêneros discursivos na escrita
infantil in Rocha, G. e Val, M. da G. C. (orgs.) Reflexões sobre práticas escolares de
produção de texto – o sujeito autor Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
Aula 14
Jogos e brincadeiras como alternativas metodológicas para a alfabetização
Texto para leitura:
LEAL, Telma Ferraz et allii Jogos e Brincadeiras no Ensino da Língua Portuguesa
Fascículo 5 Pró-letramento Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
Aula 15
O planejamento como instrumento para organização da prática pedagógica
Textos para leitura
LEAL, Telma Ferraz. O planejamento como estratégia de formação de professores:
organização e reflexão sobre o cotidiano da sala de aula.
Texto Sobre Planejamento Do Proletramento (Fascículo 2)
ANEXO 3 – PLANEJAMENTO DAS AULAS 2/ 7/ 8
Aula 2- Profª Lud e Profª Patricia 22/08
Concepções de língua e de linguagem e implicações para o ensino de
língua portuguesa
Momento 1 - LEITURA E ESCRITA: VIVÊNCIAS COMPARTILHADAS –
EXPERIÊNCIA E FORMAÇÂO
Abertura: Leitura de trechos de Paulo Freire- A importância do ato de ler. Leitura
complementar a BCQ. Paulo Freire, no seu livro A importância do ato de ler, no primeiro
capítulo de 3, que tem o mesmo título, também traz esta relação profunda entre as
vivências da infância como contexto em que se deve compreender a relação que se
estabelece com a escrita e que vai torná-la significativa. p. 12-14
18:15 (30 minutos) -
Solicitação de que se reúnam em 9 grupos de 5, em que relatarão ou lerão o que cada
uma terá escrito e discutirão entre si. Será que se pode encontrar elementos comuns a
todas estas experiências? Será que há alguma coisa que se compartilha por serem
professoras?
No Grupão, apresentação de alguns pontos que tenham podido discutir nos pequenos
grupos e discussão do que foi dito pelos grupos.
Que pontos se encontram?
O que da história individual se aproxima de uma história coletiva?
Será que podem encontrar elementos comuns a todas estas experiências?
Será que há alguma coisa que se compartilha por serem professoras?
Material: hidrocor, cola, papel pardo, lápis cera. No Grupão, apresentação de alguns
pontos que tenham podido discutir nos pequenos grupos e discussão do que foi dito
pelos grupos.
18:45 (30 minutos) apresentação no grupão - Buscar nos relatos das professoras
elementos para dialogar com os conceitos formulados no texto da Profª Sonia Kramer,
Leitura e escrita como experiência- notas sobre seu papel na formação , tais como:
Vivência e experiência
Leitura como experiência
Leitura como formação
Formação como transformação da realidade
Leitura de trechos do texto de Lygia Bojunga: Livro
Intervalo- 19:30 às 19:45
Momento 2 – CONCEPÇÕES DE LINGUA E LINGUAGEM -
19:45 (30 minutos)- escrever individualmente, numa tira de papel,uma definição para
língua e linguagem (Na definição: o que penso sobre língua e sobre linguagem? Suas
funções, seus usos etc.)
Sorteio de quatro definições e discussão no grupão
20:15- Leitura dirigida do texto de Solange Jobim Sousa
transparências dos pontos principais
Momento 3 – AVALIAÇÃO DA AULA –
20:50- escrever uma palavra que possa resumir o que foi a aula para cada uma
escrever e colocar na cesta.
Obs.: deixar para a aula 3 em que vamos discutir alfabetização e letramento a articulação
com o Texto de Geraldi.
Aula 7 - Lud 26/09
Gêneros discursivos: introdução
Texto para leitura:
MARCUSCHI, L.A . Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:Dionísio, A.P.; Machado,
A.R. & Bezerra, M.A. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Ed. Lucerna, 2002.
MOMENTO 1 – 30 minutos – exposição conceitual
Definição de gênero de acordo com texto de Marcuschi –uso de transparências – elementos
conceituais nucleares discussão
1. Oralidade e escrita - gêneros orais, gêneros escritos, graus de formalidade na
escrita e na oralidade, relações inter-constitutivas entre gêneros e entre
modalidades (oral e escrita). -> transparência sobre gêneros orais e escritos
2. Definição de gênero a partir de uma reflexão sobre o conceito de letramento.
Modelo de Kato, adapatado por Terzi (Fala1 <-> Escrita 1 <-> Escrita 2 <-> Fala
2). Interferências entre oralidade e escrita.
Exemplos transparências:
a) TFOUNI, Oralidade analfabeta letrada -> discurso literário –narrativo-
b) RATTO: discurso militante de analfabeto letrado.
c) SIGNORINI: escrita truncada, hipercorrigida traindo a escolaridade e o
letramento.
MOMENTO 2 – exploração do conceito -
3. Cada uma das esferas constitutivas dos gêneros
a) TEMA (30 min)
Coesão e coerência de textos se dá antes de tudo, exteriormente pelo tema. Há uma
restrição entre os gêneros adotados e os temas a serem abordados.
Poesia e jornal
Música de Chico Buarque (“Lutou contra a existência... a dor da gente não sai no
jornal”)
Música de ninar em ritmo de rock
Música infantil bicho papão em ritmo de rock
Livro de história escrita de narrativa, ilustração do livro e canção
História de Ruth Rocha e canção feita sobre o mesmo tema
b) ESTRUTURA (30 min)
mancha gráfica de alguns gêneros a ser reconhecidos
elementos intrínsecos a alguns gêneros – carta, receita, regras de jogo, receita médica.
estrutura textual
KOCH: poema sobre show, notícia de jornal,
Os modos de coesão diferentes para o mesmo tema permitem construir mais sentido.
Adotar uma forma adequada para um conteúdo é revelar-se como mais autor,
autonomamente produtor de sentido, apropriando-se do que já existe como forma.
Música Mutantes – minha vida era um palco iluminado...
c) ESTILO (15 min)
dois jornais do mesmo dia dando a mesma notícia adotando o mesmo texto o que
muda?
Humor, crítica social, tarefa escolar, a subjetividade revelada nos modos de organizar
seu texto, para além da estrutura, atravessando os elementos sintáticos, morfológicos,
textuais, encontramos a semântica.
Momento Final (1 hora)
4) Os gêneros na leitura e na escrita como trabalhar?
Pedir às professoras que se reúnam em pequenos grupos e pensem em todos os
gêneros que elas têm solicitado a seus alunos no trabalho escolar de escrita e de
leitura. Produzir um planejamento de trabalho de uma duração mais longa (projeto)
com as crianças a partir da utilização de alguns gêneros em torno de algum tema.
Entregar ao final.
Aula 8 – Lud 03/10
Alguns gêneros escolares
MOMENTO 1
Leitura do livro A Redação de Antonio Skarmeta
Oralidade/escrita
- Diferenças materiais materialidade concretude da realização Um não é representação do
outro. Escrever-se alfabeticamente mas também iconicamente, por imagens... Acrescentar
LIBRAS: espaço diante da parte superior do corpo, movimento, velocidade...
- Casos extremos Práticas de letramento orais (a presença do texto escrito sendo oralizado,
comentado, refletido)
- Que modalidade de gêneros é priorizada na escola? Porque? Como trabalhar a oralidade?
Com que objetivos?
- Transparência de gêneros da oralidade e gêneros da escrita
- Esquema de Kato e Terzi
-> Gêneros orais e gêneros escritos = interconstitutivos? Fala 2 => influência inegável
de experiências com situações de escrita...
-> Aprendizagem de gêneros = leitura e escrita / aprendizagem de:
Formatos específicos (gráficos)
Vocabulário específico
Formulações sintáticas coerentes/ adequadas
experiências sociais institucionais / posições de poder
MOMENTO 2
1. O tema
História e canção Ruth Rocha
O show
2. A estrutura
a. Mostrar textos instrucionais de longe;desenhar a estrutura de uma carta; mostrar um
poema; carta, receita culinária, regras de jogo, receita médica, ...
b. Mesmo tema com estruturas diferentes; estruturas adequadas, com elementos
coesivos próprios.
3. O estilo
Música mutantes mesmo tema, mesma estrutura canção, arranjo diferente
Culminar com textos acartilhados de Wanderley e texto do piolho.
ANEXO 4 – ORIENTAÇÕES PARA ELABORAÇÃO DO PORTIFÓLIO
I Curso de Extensão em Alfabetização, Leitura e Escrita
Formadoras professoras do LEDUC:
Ludmila Thomé de Andrade, Patrícia Corsino e Margareth Brainer
Faculdade de Educação da UFRJ
2006-2
Orientações para a elaboração do trabalho final: portifólio
Avaliação parcial dos professores-alunos
O Portifólio é um instrumento de avaliação que permite ao aluno revisitar o seu
percurso de aprendizagens efetuado durante um certo período, num certo contexto. Ele traz a
idéia de colagem, de montagem de uma memória, de álbum de recortes, de liberdade para
selecionar dentre o que foi a sua experiência particular alguns flashes que valem a pena ser
guardados. O trabalho final deste curso tem este tom.
Gostaríamos que vocês construíssem um texto que pode se utilizar de linguagens bem
variadas, desde que se monte um produto final que possa ser apreciado, seja por suas próprias
colegas do curso, por nós formadoras ou por outras pessoas que se interessem pelo ensino da
alfabetização, leitura e escrita.
A partir do levantamento pessoal de alguns momentos importantes do curso, de
episódios de seu processo particular como docente em formação continuada, estabeleça um
relato. A escrita deve estar presente, não basta colar figurinhas sem um encadeamento de sua
apresentação. Narre seu próprio processo, embora não precise falar dele inteiro.
Conte como foi para você ter passado por este curso. Relembre, critique, avalie-nos/se,
pense em seus alunos. Ao mesmo tempo, apresente exemplos de tudo o que contar. Para estas
ilustrações, coloque no portifólio alguns dos trabalhos que elaborou neste semestre para seus
alunos, para o curso ou em outros espaços de formação. Neste caso é que valem muito mais
linguagens do que apenas a escrita.
Não precisa ser nada de exaustivo (TUDO que foi visto no curso), nada de muito
longo. O importante é sua autoria, para que nós possamos ver os verdadeiros efeitos da
formação que propusemos nas verdadeiras professoras que vocês são.
Obrigada, um abraço e boa escrita!
Vocês podem entregar até meados de janeiro, no LEDUC.
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