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INTRODUÇÃO
Um homem bem logrado faz bem a nossos sentidos: é talhado de uma madeira que é
dura, delicada e bem cheirosa ao mesmo tempo. Só encontra sabor naquilo que lhe é
compatível; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do compatível é ultrapassada.
Adivinha meios de cura contra danos, utiliza acasos ruins em sua vantagem; o que não o
derruba, torna-o mais forte. Ele faz instintivamente, de tudo aquilo que vê, ouve, vive, uma
soma: ele é um princípio seletivo, muito ele deixa de lado. Está sempre em sua companhia,
quer esteja com livros, homens ou paisagens: honra ao escolher, ao abandonar, ao confiar.
Reage a todos os estímulos lentamente, com aquela lentidão que uma longa cautela e um
orgulho proposital aprimoraram nele – examina o estímulo que se aproxima dele, está longe
de ir ao seu encontro. Não acredita nem em ‘felicidade’ nem em ‘culpa’: fica quite consigo,
com outros, sabe esquecer – é forte o bastante para que tudo tenha de lhe sair da melhor
maneira. – Pois bem, eu sou o reverso de um décadent: pois acabo de me descrever.
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Assim Nietzsche se auto-descreve no Ecce Homo. Ele caracteriza a si mesmo
como um fazer instintivo, uma soma, um princípio seletivo. Tal descrição, num texto
onde se dirigiria, com a mais difícil exigência que jamais lhe fora feita
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, a um
interlocutor, no mínimo, imodesto como a humanidade, nos incitaria a postular o grande
valor atribuído por Nietzsche ao escolher, ao selecionar. Selecionar que, como
tentaremos explicitar posteriormente, permearia também o âmbito da filosofia. Digamos
de partida que, ao descrever como alguém se torna o que é (wie man wird, was man ist),
ele enfatizaria em si mesmo essa capacidade de seleção.
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“Daß ein wohlgeratener Mensch unsern Sinnen wohltut: daß er aus einem Holze geschnitzt ist, das hart, zart
und wohlriechend zugleich ist. Ihm schmeckt nur, was ihm zuträglich ist; sein Gefallen, seine Lust hört auf,
wo daqs Maß des Zuträglichen überschritten wird. Er errät Heilmittel gegen Schädigugen, er nützt schlimme
Zufälle zu seinem Vorteil aus; was ihn nicht umbringt, macht ihn stärker. Er sammelt instinktiv aus allem,
was er sieht, hört, erlebt, seine Summe: er ist ein auswählendes Prinzip, er läßt viel durchfallen. Er ist immer
in seiner Gesellschaft, ob er mit Büchern, Menschen oder Landschaften verkehrt: er ehrt, indem er wählt,
indem er zuläßt, indem er vertraut. Er reagiert auf alle Art Reize langsam, mit jener Langsamkeit, die eine
lange Vorsicht und ein gewollter Stolz ihm angezüchtet haben – er prüft den Reiz, der herankommt, er ist fern
davon, ihm entgegenzugehn. Er glaubt weder an ‘Unglück’ noch an ‘Schuld’: er wird fertig mit sich, mit
anderen, er weiß zu vergessen – er ist stark genug, daß ihm alles zum Besten gereichen muß. – Wohlan, ich
bin das Gegenstück eines décadent: denn ich beschrieb eben mich.” - NIETZSCHE. Ecce Homo, “Por que
sou tão sábio”, § 2 (Abril Cultural, p. 371 – Insel Verlag, p. 43-44)
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“In voraussicht, dass ich über kurzem mit der schwersten Forderung an die Menschheit herantreten muß, die
je an sie gestell wurde, scheint es mir uner läßlich, zu sagen, wer ich bin.” - NIETZSCHE. Ecce Homo,
Prólogo, § 1 (Abril Cultural, p. 365 – Insel Verlag, p. 35)