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Universidade
Estadual de
Londrina
ADRIANA GIAROLA FERRAZ FIGUEIREDO
ENTRE OS DIAS E OS ANOS:
L
EITURA DE
C
RÔNICAS DE
R
ACHEL DE
Q
UEIROZ
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LONDRINA
2007
ADRIANA GIAROLA FERRAZ FIGUEIREDO
ENTRE OS DIAS E OS ANOS:
L
EITURA DE
C
RÔNICAS DE
R
ACHEL DE
Q
UEIROZ
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, da Universidade
Estadual de Londrina, como requisito parcial
à obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Santos
Simon.
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LONDRINA
2007
ADRIANA GIAROLA FERRAZ FIGUEIREDO
ENTRE OS DIAS E OS ANOS:
L
EITURA DE
C
RÔNICAS DE
R
ACHEL DE
Q
UEIROZ
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, da Universidade
Estadual de Londrina, como requisito parcial
à obtenção do título de Mestre.
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________
Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________
Profa. Dra. Adelaide Caramuru Cezar
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________
Prof. Dr. Benito Martinez Rodriguez
Universidade Federal do Paraná
Londrina, _____de ___________de 2007.
DEDICATÓRIA
A minha mãe, Clóris Giarola Ferraz, exemplo
de dignidade e de sabedoria. Pelo amor
compartilhado no dia-a-dia e pela capacidade
de tornar tudo possível.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por ser Ele o autor e o consumador da vida.
Ao meu esposo, Marcos, pela ajuda, pela dedicação, pelo
companheirismo e pelo amor incondicional.
Aos meus pais, Nélson e Clóris, e aos meus irmãos, Hugo Vinícius e
Márcio José, por todo apoio, pela compreensão e pela fé depositada em mim,
aspectos fundamentais para o meu crescimento e para a minha determinação ao
longo de minha vida acadêmica.
Ao Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon, pelo desafio inicial, por dividir
comigo um pouco de sua caminhada no estudo da crônica, pela orientação atenta e
segura e pela amizade cultivada durante todo o percurso.
À Profa. Dra. Adelaide Caramuru Cezar, pelas valiosas e
imprescindíveis contribuições no início da caminhada no Mestrado e pelas dicas
importantes para a definição da pesquisa.
Ao Prof. Livre-Docente Joaquim Carvalho da Silva, pelas sábias
orientações na Qualificação.
Ao Prof. Dr. Benito Martinez Rodriguez, da Universidade Federal do
Paraná, pela importante contribuição na Banca de Defesa desta Dissertação.
Aos demais professores da UEL, por indicarem caminhos, pelos
preciosos ensinamentos e por despertarem em mim a paixão pela Literatura.
Aos colegas de Mestrado, em especial, Anderson Possani Gongora,
Andrêya Garcia da Paixão, Paula Gerez Robles, Roberto Oliveira e Suzilene Dias de
Araújo (companheira das disciplinas e das viagens), pelas trocas, pelos bons
momentos passados juntos, pelo apoio e pelo companheirismo.
Aos amigos, em especial, Angela Maria Pelizer de Arruda e Rogério
de Arruda, pela presença constante e pelo carinho irrestrito.
Aos funcionários da Biblioteca Central e da Biblioteca Setorial do
CLCH e às secretárias da Pós-Graduação, Rosane, Lúcia e Durva, pela atenção
dispensada.
A todos, os meus sinceros agradecimentos: Muito obrigada!
Quando tudo no mundo é mocidade,
verde a árvore, moça a natureza;
e cada ganso te parece um cisne,
e cada rapariga uma princesa;
venham minhas esporas, meu cavalo!
Vou correr mundo em busca de alegria!
O sangue moço quer correr, ardente,
E cada criatura quer seu dia...
Nas frias tardes da velhice, quando
É parda toda a árvore que vive;
Em que todo desporto é já cansaço,
E toda a roda corre no declive;
oh! Volta à casa, busca o teu caminho,
vai, mesmo assim, cansado e sem beleza:
lá acharás o rosto que adoravas
quando era jovem toda a natureza!
Charles Kingsley
pessoas que sentem muita pena de não terem
conhecimento dos segredos do futuro. Eu não. Este
mundo atual é tão rico de promessas, mas
também de ameaças, que chego a dar graças a
Deus por estes noventa anos já cumpridos. Pela
falta de tempo a decorrer depois destes noventa
anos, as surpresas serão poucas, quer as boas,
quer as más.
Rachel de Queiroz
FIGUEIREDO, Adriana Giarola Ferraz. Entre os dias e os anos: leitura de crônicas
de Rachel de Queiroz. 2007, 170 fls. Dissertação (Mestrado em Letras)
Universidade Estadual de Londrina, Londrina.
RESUMO
Entre os dias e os anos: leitura de crônicas de Rachel de Queiroz é um estudo em
que se contempla a crônica, sua capacidade de ser um gênero do cotidiano e a
questão da velhice diante dessa cotidianidade. Dentro de uma perspectiva mais
específica, trata-se de uma abordagem de algumas crônicas da autora Rachel de
Queiroz imbuídas das circunstâncias da contemporaneidade e, nesse contexto, a
presença das pessoas idosas. A intenção do trabalho é a de explorar todas as
condições de a crônica ser um gênero totalmente incorporado à vida diária, portanto,
capaz de captar os acontecimentos mais prosaicos decorrentes da modernidade. A
escolha do tema deve-se ao fato da existência, ainda, de poucos estudos realizados
acerca do gênero em questão, bem como a respeito das ações que incidem sobre a
terceira idade. Mais que uma proposta de pesquisa, trata-se de uma busca de
subsídios para o conhecimento das questões inerentes à problematização do gênero
e, também, da senilidade. Pretende-se, com esta dissertação, demonstrar que, além
da questão do gênero, o que define a arte literária é, também, a capacidade de
criação, o engajamento social e a forma de expressão em que esta se consolida.
Palavras-chave: Crônica. Cotidiano. Velhice. Temática. Rachel de Queiroz.
FIGUEIREDO, Adriana Giarola Ferraz. Between the days and the years: a reading of
the chronicles of Rachel de Queiroz. 2007, 170 fls. Dissertation (Master of
Languages) – State University of Londrina, Londrina.
ABSTRACT
Between the days and the years: a reading of the chronicles of Rachel de Queiroz is
a study in which chronicle is contemplated, its capacity of being a genre of the
quotidian and the question of oldness in this quotidianity. In a more specific
perspective, this is an approach of some chronicles by Rachel de Queiroz
impregnated with circumstances of contemporaneity and, in this context, the
presence of elderly people. This study aims at exploring all the conditions that make
chronicle a genre totally incorporated into daily life, therefore, capable of catching the
most prosaic events of the modernity. The choice of this theme lies in the lack of
studies about this genre and also in the actions that reflect on the third age. More
than a proposal of research, this is an investigation of the subsidies for the
knowledge of the questions inherent in the problematization of the genre and, as
well, the senility. In this study, we intend to demonstrate that, beyond the question of
the genre, what defines literary art is also the capacity of creation, the social
commitment and the form of expression in which it consolidates itself.
Key-words: Chronicle. Quotidian. Old-age. Thematic. Rachel de Queiroz.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO….......................................................................................................11
1
CRÔNICA:
UM
GÊNERO
PARTICULAR
E
CONTROVERSO.
APONTAMENTOS
IMPORTANTES........................................................................................................18
1.1
A
C
RÔNICA
,
O
T
EMPO E O
C
OTIDIANO
.....................................................................18
1.2
O
F
AZER
C
RONÍSTICO
:
D
EFINIÇÕES
,
E
STRUTURA E
L
UGAR DA
C
RÔNICA
....................23
2
O
COTIDIANO
E
AS
SUAS
IMPLICAÇÕES:
MOMENTOS
QUE
SE
CONSAGRAM..........................................................................................................34
2.1
O
C
OTIDIANO E A
L
ITERATURA
................................................................................34
2.2
A
E
STRUTURA DA
V
IDA
C
OTIDIANA
.........................................................................41
2.3
A
S
A
RTES DE
F
AZER E O
L
UGAR EM QUE AS
P
RÁTICAS
C
OTIDIANAS
A
CONTECEM
......50
3
O
SUJEITO
E
O
TEMPO:
FALANDO
SOBRE
A
VELHICE..................................54
3.1
A
V
ELHICE
:
P
ARTICULARIDADES DE UMA
C
ONDIÇÃO
I
NCONTESTÁVEL
.........................54
3.2
A
V
ELHICE E A
V
IDA
C
OTIDIANA
:
R
ETRATOS DA
R
EALIDADE
.......................................66
4
LEITURA
DAS
CRÔNICAS:
O
OBJETO
EM
ESTUDO.........................................79
4.1
O
S
V
ELHOS E OS
N
OVOS
T
EMPOS
............................................................................79
4.1.1 “Falso Mar, Falso Mundo” (05-11-1994)..........................................................80
4.1.2 “De Armas na Mão pela Liberdade” (18-11-1995)...........................................87
4.2 O
S
V
ELHOS E A
V
ELHICE
........................................................................................95
4.2.1 “Não Aconselho Envelhecer” (18-03-1995).....................................................96
4.2.2 “A Longa Vida que já Vivemos” (08-05-1992)...............................................103
4.3 O
S
V
ELHOS E OS
N
OVOS
......................................................................................109
4.3.1 “A Menina que vai Crescer” (26-06-1989).....................................................110
4.3.2 “A Arte de ser Avó” (agosto -1958)................................................................116
10
4.4 O
S
V
ELHOS E AS
D
ATAS
.......................................................................................124
4.4.1 “A Cobra que Morde o Rabo” (09-01-1999)...................................................125
4.4.2 “Os Noventa” (25-11-2000)............................................................................131
CONSIDERAÇÕES
FINAIS.....................................................................................137
REFERÊNCIAS........................................................................................................142
APÊNDICE...............................................................................................................148
ANEXOS..................................................................................................................153
11
INTRODUÇÃO
Crônica, cotidiano e velhice. Ocorrências que se encontram em
pontos comuns: as pequenas histórias, os instantes que se consagram, a vida de
cada dia, os homens prosaicos, a labuta diária, as transformações... Enfim, o
transcorrer da existência. E se uma intersecção entre essas circunstâncias,
que se pensar na possibilidade de exploração, de estudo e de entendimento dessa
ligação e das ocorrências em conseqüência desse entrecruzamento.
Para tal, a presente dissertação apresenta-se com a finalidade de
estudar os traços relevantes da crônica, sua ligação com o dia-a-dia (por ser mesmo
este um gênero do cotidiano) e as implicações dos acontecimentos rotineiros de
uma sociedade na vida dos sujeitos, especialmente dos velhos
1
, pessoas totalmente
afetadas pelos acontecimentos diários. Para delinear a pesquisa, além dos
levantamentos teóricos acerca dos temas, serão estudadas algumas crônicas da
autora Rachel de Queiroz, importante representante da literatura nacional.
Com o intuito de elucidar as muitas questões surgidas, em
detrimento do tema do trabalho ao longo da pesquisa, tornou-se necessária a
divisão do mesmo em duas partes de igual importância: os três primeiros capítulos
servirão de base teórica para o desenvolvimento da pesquisa e o quarto e último
será destinado ao estudo do objeto, às leituras de algumas crônicas relevantes para
o entendimento dos aspectos abordados no embasamento teórico. Nesse momento,
a prática se estabelece para que a teoria levantada seja verificada.
1
O termo “velhos” será usado ao longo do trabalho sem nenhum valor pejorativo, nem
tampouco com a intenção de empregá-lo com um sentido negativo. Trata-se, apenas, do
uso de um vocábulo (e de seus muitos sinônimos: senis, idosos, anciãos, senescentes etc.)
adotado para designar as pessoas com um tempo maior de existência.
12
Sobre a escritora Rachel de Queiroz
2
, cabe ressaltar que, sendo
descendente da estirpe de José de Alencar, tentou, como ele, durante toda a sua
vida, incorporar a linguagem que falava e que escutava em seu ambiente nativo à
língua com que ganhava a vida nas folhas impressas que, segundo ela, não fazia
por novidade, mas sim, por necessidade. Mesmo escrevendo romances, literatura
infanto-juvenil, teatro e crônica, Rachel chegou aos noventa anos afirmando que não
gostava de escrever e, se o fazia, era apenas para se sustentar.
No entanto, apesar das declarações da autora, toda a sua produção
atingiu uma posição considerável na esfera literária. E, no caso do trabalho em
questão, suas crônicas foram de extrema importância para que a situação dos
idosos fosse analisada e estudada dentro do contexto social diário.
Frente ao fato de repugnar o termo “terceira idade”, a escritora
deixa transparecer a sua posição diante da senilidade: não gosta dessa condição e
desse momento que vive. O que se pode perceber, a partir de algumas crônicas da
autora e de suas colocações a respeito dessa fase da vida, é que ela vive em meio a
sua ranzinzice, ao seu descontentamento e a sua constante indagação diante da
questão de “ser uma pessoa velha”. E, apesar de não ser essa uma característica
exclusiva dos idosos, que pode se manifestar em qualquer idade, é diante das
dificuldades de adaptação ao ambiente social em que vivem que os senis
apresentam essa particularidade (a ranzinzice) com mais freqüência. No caso de
Rachel, sua intolerância, sua irritação, seu mal-humor e seu constante
2
Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza (CE) em 17 de novembro de 1910. Formou-se no
curso normal aos 15 anos de idade, e sua formação escolar encerrou-se aí. No entanto,
dedicou-se inteiramente à leitura, hábito estimulado por sua mãe, que a mantinha atualizada
com lançamentos nacionais e estrangeiros, especialmente os franceses. O constante
contato com a leitura a estimulou aos primeiros escritos. Submetida a um rígido tratamento
de saúde em 1930, em função de uma congestão pulmonar e suspeita de tuberculose, a
autora se viu obrigada a fazer repouso e resolveu escrever um livro sobre a seca, O Quinze,
obra que logo a transformou em uma personalidade literária. Depois disso, a escritora
publicou mais sete romances, entre eles, o Memorial de Maria Moura (1992), que dois anos
mais tarde viria a tornar-se uma minissérie transmitida pela Rede Globo de Televisão. Além
dos romances, Rachel escreveu literatura infanto-juvenil, teatro, antologias, livros em
parceria, traduções e crônicas (obras que serão elencadas no apêndice desta dissertação).
Iniciou seu livro de memórias, em 1995, escrito em colaboração com a irmã Maria Luíza,
que foi publicado posteriormente com o título Tantos Anos. Pelo conjunto de sua obra,
recebeu, em 1996, o Prêmio Moinho Santista. Faleceu no dia 04 de novembro de 2003,
dormindo em sua rede na cidade do Rio de Janeiro e deixou aguardando publicação o livro
Visões, uma fusão de imagens do Ceará fotografadas por Maurício Albano com textos de
Rachel.
13
questionamento sobre a senescência podem configurar-se resultados de sua própria
condição: a velhice.
Atenta observadora da realidade que a cerca, nada lhe passa
despercebido, especialmente quando o que acontece diz respeito aos senescentes.
Por isso, em algumas de suas crônicas, especialmente aquelas inseridas nos
volumes Terras ásperas (1993) e Falso mar, falso mundo (2002), mostra uma
narração generosa e profunda sobre a velhice e, por meio de sua produção, aos
mais moços dá um conselho: “Não fiquem velhos!”.
O primeiro capítulo desta dissertação traça um panorama geral da
crônica: um pouco da história e da crítica que giram em torno do gênero. Apesar de
não haver, ainda, tantos estudos teóricos a respeito da crônica quanto para os
demais gêneros literários, todos aqueles que foram examinados se fizeram assaz
importantes para o percurso do entendimento do objeto de estudo.
Numa primeira instância, foram abordadas as questões da crônica
relacionadas ao tempo e ao cotidiano. A estreita relação existente entre esse tipo de
texto, as situações corriqueiras e as experiências progressivas do tempo puderam
ser observadas diante da instituição desses fatos em torno de um texto que se
configura, em sua origem, um gênero próprio do cotidiano. De igual maneira, o fazer
cronístico, as suas definições, a sua estrutura e o lugar desse gênero também foram
verificados, levando-se sempre em conta a “riqueza deste gênero polimórfico” que,
cambaleando ora entre o jornalismo ora entre e a literatura, não pertence,
exclusivamente, a nenhum desses mundos e, ao mesmo tempo, encontra repouso
em ambos. Para tanto, foram consideradas as palavras de críticos de e estudiosos
como Afrânio Coutinho, David Arrigucci Junior, Margarida de Souza Neves, Antonio
Candido, Jorge de Sá, Eduardo Portella e Massaud Moisés, além de conceitos
retratados por alguns dos mais importantes cronistas brasileiros como Rubem Braga,
Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e Affonso Romano de Sant’Anna.
O segundo momento do embasamento teórico ficou por conta das
questões ligadas ao cotidiano: as suas implicações na literatura, a estrutura da vida
diária e os lugares em que essas práticas acontecem. O fato de a crônica,
comparativamente a outros gêneros, configurar-se propícia para o trânsito com as
situações do dia-a-dia, favoreceu todo esse estudo que, por ser acessível, leve e
descompromissada, beneficia o entendimento dessas circunstâncias e a percepção
14
da importância dos pequenos fragmentos diários para a construção de uma vida
totalmente estruturada.
Nessa fase, estudiosos como Michel de Certeau, Lefebvre, Peter
Berger, Thomas Luckmann, Agnes Heller e Lukács determinaram os caminhos da
pesquisa. Do mesmo modo, algumas breves leituras de crônicas de Carlos
Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz e Rubem Braga mostraram-se
fundamentais para essa construção.
O terceiro capítulo encerra a idéia do embasamento teórico numa
perspectiva de análise da condição do sujeito velho e a sua relação com o tempo e
com o cotidiano. Nesse momento, são pontuadas situações sobre as
particularidades da velhice, bem como a sua realização dentro da vida diária. É
nesse ponto que são traçadas as condições dos idosos na sociedade: seus
infortúnios, suas decepções, seus sonhos e suas tentativas de se manter em
diante de uma sociedade que não faz questão de facilitar, em nada, as transições de
uma fase da vida à outra, especialmente na época da concretização da velhice.
São levantadas questões inerentes à senilidade e às suas
particularidades: trata-se de uma condição incontestável, por isso, a não ser que a
morte determine o fim desse percurso, todos passarão por essa etapa, todos ficarão
velhos. E, juntamente com essa situação, todas as imposições dessa fase se
tornarão totalmente visíveis e indiscutivelmente palpáveis. Além dessa retratação da
senescência como um fato inerente a todos os sujeitos, faz-se de suma acuidade,
nessa etapa da pesquisa, um subcapítulo sobre a relação da velhice com a vida
cotidiana. Assim sendo, permite-se traçar um paralelo de alguns retratos da
realidade por meio da vida das pessoas idosas, a sua ligação com os fatos do dia-a-
dia, a sua postura e a sua posição diante da desenfreada transformação das novas
sociedades.
Para o desenvolvimento desse capítulo, os estudos de Simone de
Beauvoir
3
em seu livro A velhice fizeram-se extremamente importantes. Por se tratar
3
Em maio de 1967, em Estocolmo, Simone participa, juntamente com seu cônjuge Sartre,
do Tribunal Bertrand Russell, encarregado de julgar crimes de guerra no Vietnã. A partir daí,
Beauvoir vive um período de intenso engajamento, no qual se sente totalmente mobilizada.
Esse trabalho acaba agradando muito a autora. Assim, em meio a seu engajamento social,
em junho do mesmo ano, Simone começa a escrever A velhice, livro sobre a condição dos
idosos, que é publicado em 1970. Este ensaio, que exigiu imensa pesquisa, tem
repercussão enorme e imediata, sobretudo no exterior. A imprensa, tanto de direita quanto
de esquerda, reconhece que o problema dos idosos nas sociedades do mundo todo não
15
de uma obra completa, que resgata todas as questões que dizem respeito ao mundo
dos senis, muitas conclusões puderam ser ambientadas a partir dessa leitura. Com a
mesma autoridade, autores como Ecléa Bosi, Márcia Lígia Guidin e outros foram
utilizados, tendo sempre como base os levantamentos realizados por Beauvoir,
certamente, o mais completo relato já concretizado a respeito da senilidade.
O quarto capítulo, por sua vez, compreende a leitura de algumas
crônicas de Rachel de Queiroz, primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira
de Letras. Autora de oito romances, inúmeras traduções de autores clássicos, peças
de teatro, livros infanto-juvenis e memorialistas, encontrou na crônica o espaço em
que melhor registrou suas lembranças, suas opiniões, seus afetos e suas
indignações. Por assim ser, os textos selecionados da autora constituíram, sem
dúvida, valiosos objetos de estudo, tornando-se imprescindíveis para o bom
encaminhamento desta dissertação.
Para o desenvolvimento da leitura, como corpus ficcional, foram
selecionadas as seguintes crônicas
4
: “Falso mar, falso mundo”, “De armas na mão
pela liberdade”, “Não aconselho envelhecer”, “A cobra que morde o rabo” e “Os
noventa” do livro Falso mar, falso mundo (2002); “A longa vida que vivemos” e “A
menina que vai crescer” do livro Terras ásperas (1993) e “A arte de ser avó” do livro
O homem e o tempo (1995). Como juízo crítico para a seleção dos textos elencados,
foi levada em consideração a importância dos mesmos no tocante à exploração dos
temas propostos neste trabalho, tudo com a finalidade de promover um estudo mais
aprofundado e relevante. Para tanto, as crônicas foram agrupadas em duplas, de
acordo com a afinidade de cada uma aos subtemas reservados para o trabalho com
o corpus.
estava resolvido. Essa obra da autora acaba abrindo uma brecha nas leis, nos usos e nos
hábitos das sociedades ocidentais em favor de uma nova defesa da liberdade: “É preciso
que todos os homens permaneçam seres humanos durante todo o tempo em que estiverem
vivos”. O propósito da escritora fica muito claro desde a introdução do livro: não permitir que
os homens continuem descartando os aspectos da natureza que não lhes agradam. Assim,
Simone de Beauvoir afirma que o motivo maior de sua mobilização na escrita dessa obra
concentra-se na busca de uma quebra da conspiração do silêncio das sociedades que,
abrigadas por trás dos mitos da expansão e da abundância, tratam seus velhos como
párias. Diante de um país (França) em que a proporção de velhos era a mais elevada do
mundo – 12% da população – e que aqueles com mais de 65 anos de idade eram
condenados à miséria, à solidão, ao abandono total e a uma perda de referenciais, Simone
resolve, mesmo que de uma forma aparentemente cruel, porém, com muita sensibilidade,
retratar a realidade daqueles que levam os sujeitos ao encontro do seu próprio destino: os
idosos.
4
Textos que se encontrarão, na íntegra, nos anexos deste trabalho.
16
As duas primeiras leituras, realizadas com os textos “Falso mar,
falso mundo” e “De armas na o pela liberdade”, respectivamente, foram
efetivadas com o desígnio de levantar situações inerentes à posição das pessoas
idosas frente aos novos tempos. Ambas as crônicas mostram a perplexidade da
autora diante das transformações da sociedade, diante das mudanças ocorridas e
diante das novas relações estabelecidas em meio aos novos tempos. Ante uma
realidade totalmente reformulada, cronista e personagens encontram-se perdidas e
totalmente desfiguradas. E o mundo, também atordoado, reserva aos seus situações
contraditórias e completamente descompensadas.
No segundo grupo estão as crônicas “Não aconselho envelhecer” e
“A longa vida que vivemos”. Nelas, estão as percepções de um eu do cronista
revoltado com a sua condição de sujeito idoso. Os velhos e a velhice são colocados
em confronto. Trata-se de praticamente um desabafo da autora diante da sua
condição de ser uma pessoa de terceira idade, termo odiado pela cronista, que
insiste em levantar questões que pontuem os infortúnios reservados a essa fase.
Quando então se estabelece uma relação menos conflituosa entre
os idosos e as outras pessoas, certamente se pode pensar na afinidade dos velhos
com os mais novos, especialmente com os netos e com os bisnetos. E é nessa linha
que se encontram as crônicas “A menina que vai crescer” e “A arte de ser avó”. Se o
relacionamento com os filhos e com a sociedade em geral não vai bem, é na
presença dos netos e dos bisnetos que o indivíduo velho encontra um pouco de
dignidade e de conforto. Na presença dos mais novos, implanta-se a possibilidade
da felicidade, pois nesse relacionamento as cobranças e as imposições são
deixadas de lado. Apenas o sentido cordial e amoroso é estabelecido nesse contato.
Como disse Rachel de Queiroz, certamente a presença dos netos e dos bisnetos
seja uma forma de retratação da natureza e da sociedade diante dos senescentes.
Na última etapa das leituras, entram em foco as crônicas “A cobra
que morde o rabo” e “Os noventa”, momentos em que a cronista deixa transparecer
a sua indignação quando em presença de algumas datas (aniversários, passagens
de ano etc.), que não a agradam muito. Ao contrário, constituem momentos que a
fazem lembrar, de forma mais acentuada, da sua condição de pessoa velha. Esses
dois textos refletem mais uma inevitável constatação da escritora: conforme os anos
vão passando, todos passam também e, pior ainda, ficam mais velhos. Aliás, fato
este que ocorre desde o dia em que o ser humano nasce. Ledo engano acreditar
17
que, ao nascer, uma pessoa começa a viver. De acordo com Rachel de Queiroz,
todo nascimento representa exatamente o início do processo de caminhada para o
fim da vida.
Dessa forma, diante de todas as colocações feitas nesta introdução,
o que se pretendeu fazer nesta dissertação é, por meio dos capítulos teóricos e das
leituras desenvolvidas, estabelecer argumentos convincentes e coerentes para que
as questões sobre a velhice e a sua ligação com o cotidiano pudessem ser
compreendidas dentro da crônica, gênero que merece todo destaque e toda
consideração por parte dos críticos, dos estudiosos, dos integrantes da Academia e
de todos os apaixonados pela literatura.
Tudo isso porque, mais que simples relatos do cotidiano, as crônicas
constituem importantíssimo objeto para que os pequenos instantes se transformem
em momentos consagrados e, ao mesmo tempo, fatores determinantes para a
configuração de uma sociedade. Além disso, que a crônica possa ser reconhecida
como um grande artifício da Literatura Brasileira, que deve ser visto por um outro
prisma, em que seus próprios arcabouços de valores sejam estabelecidos e
validados.
18
1 CRÔNICA: UM GÊNERO PARTICULAR E CONTROVERSO. APONTAMENTOS
IMPORTANTES
A crônica é na essência uma forma de arte
imaginativa, arte da palavra, a que se liga forte
dose de lirismo. É um gênero altamente pessoal,
uma reação individual, íntima, ante o espetáculo da
vida, coisas, seres. O cronista é um solitário com
ânsia de comunicar-se. Para isso, utiliza-se
literariamente desse meio vivo, insinuante, ágil que
é a crônica.
(Afrânio Coutinho)
1.1 A
C
RÔNICA
,
O
T
EMPO E O
C
OTIDIANO
Proveniente do grego chronikós, referente a tempo (chrónos), e do
latim chronica, o termo crônica institui, desde o início da era cristã até a atualidade,
uma estreita e íntima afinidade com o tempo: “trata-se de um relato em permanente
relação com o tempo, de onde tira, como memória escrita, sua matéria principal, o
que fica do vivido” (ARRIGUCCI, 2001, p. 51). Assim, os vários significados e as
definições da palavra crônica, independente de sua etimologia ou procedência,
remetem sempre à noção de tempo, fator este que possibilita uma comunicação
mais próxima das situações vividas e o encontro entre as diversas manifestações
culturais existentes em cada fase da história.
No início, seguindo uma seqüência cronológica, a crônica prestava-
se somente a uma abordagem histórica dos fatos: foi concebida, em sua forma
principal, como crônica histórica. E o cronista preocupava-se em registrar os
episódios pura e simplesmente como os mesmos aconteciam, nem sempre havia um
aprofundamento ou uma tentativa de interpretação dos mesmos. Dessa forma,
tratava-se de uma atividade praticamente automática, que designava ao cronista da
época a função de contador de histórias, o responsável por colocar no papel os
principais eventos de um período em que não existiam jornais ou outras formas de
19
se levar à população as informações históricas
5
, podendo ser a crônica,
considerada, então, a precursora da historiografia moderna: “Tal gênero supõe uma
sociedade para a qual importa a experiência progressiva do tempo, um passado que
se possa concatenar significativamente, a História, enfim [...]” (ARRIGUCCI, 2001, p.
52).
Mas, por ser o cronista aquele que retrata a história da qual também
faz parte, não se pode conceber a idéia de crônica e de tempo desvinculada da
visão particular de cada indivíduo. A possibilidade de um afastamento total do que
fica das impressões do cronista é praticamente impossível. Assim sendo, ao
selecionar os fatos a serem registrados, e imprimir nestes a sua visão particular, a
crônica passa a assumir certo subjetivismo, portanto, um caráter literário, deixando
de ser puramente documento histórico:
Ao cronista compete ser registrador do tempo, o seu particular e
aquele em que mais alargadamente vive, [...], distinguindo o tempo
interior pessoal e vivencial do tempo histórico, aquele em que
mais alargadamente vive. Para o historiador, ainda que de forma
diferente, o tempo é, sem dúvida, matéria-prima essencial. Uma das
categorias básicas de seu trabalho [...] (NEVES, 1995, p. 22).
O tempo passa a ser visto e abordado de forma diferenciada: tempo
histórico e tempo interior encontram entre si o complemento para a construção da
história de uma sociedade, a história de um povo. Carlo Ginsburg, assim como
muitos outros historiadores contemporâneos, acaba por perceber que a observação
dos fragmentos, aquilo que é particular a cada um, embora pareça algo sem muita
importância, pode fornecer pistas relevantes de algo que se sobrepõe aos fatos
miúdos, mas que, por meio deles, pode ser revelado. Sendo assim, história e crônica
não podem ser dissociadas completamente, pois, conforme afirma Margarida de
Souza Neves, aqueles fatos miúdos que o cronista seleciona e expõe em seus
escritos tornam-se para o historiador a própria matéria de sua produção.
É no século XIX que a crônica abandona o caráter estritamente
historicista e passa a assumir uma conotação mais literária. Libertando-se da
característica da crônica medieval de ser apenas a narração de fatos históricos e
5
A não ser os governos. Quando estes consideravam importante, transmitiam ao povo
algumas informações que julgavam ser necessárias.
20
diante do aparecimento do jornal, a literariedade do gênero em questão acentua-se
e firma-se em uma nova proposta de escrita.
Aproveitando-se da expansão da imprensa e da possibilidade de
veiculação no jornal, a crônica surge em forma de um artigo de rodapé, o folhetim:
aparece como um “pedaço de página por onde a literatura penetrou fundo no jornal,
tratando dos temas mais diversos, mas com predominância dos aspectos da vida
moderna” (ARRIGUCCI, 2001, p. 57), e sua função, então, passa a ser a de informar
os episódios, pequenos lances da vida diária da sociedade. Segundo Margarida de
Souza Neves, esses fatos miúdos que passam a fazer parte da seleção do cronista
como ponto de partida para suas produções são novas perspectivas para que os
puramente historiadores tenham a condição de
[...] aprender, na evidência da seleção operada pelo cronista sobre a
matéria do cotidiano que interpreta para si mesmo e para seus
leitores, algo essencial em seu próprio ofício: a construção que faz
sobre qualquer dimensão ou duração da temporalidade seja ela o
cotidiano ou um longo processo histórico – é sempre igualmente uma
leitura do real e não o real redivivo [...] (NEVES, 1995, p. 22-23).
Mesmo diante de tantas transformações, e perdendo a sua
característica primeira de constituir-se um documentário, a ligação entre a crônica e
a história tende a se manter. Torna-se claro e notável que a relação com o tempo,
um dos traços marcantes da crônica antiga, continua presente na crônica atual,
englobando, agora, mais uma condição especial, a de abordar o cotidiano, ponto de
referência do cronista de todos os tempos, de uma forma distinta e particular por
parte do cronista moderno. O fazer cronístico propicia ao historiador, muitas vezes
cego diante das possibilidades de concretização da história por meio do que lhe
possa parecer pequeno, uma alternativa para deixar de medir o tempo somente
através dos anos ou dos séculos, para tornar-se aquele que se reconhece como
“historiador das coisas miúdas”.
No Brasil, vários autores consagrados da época embarcam nessa
nova modalidade literária. Escritores como José de Alencar e Machado de Assis
encabeçam a lista dos muitos que encontram na crônica uma nova possibilidade de
escrita. Esse tipo de produção também prossegue com êxito com o fazer cronístico
de João do Rio, Lima Barreto, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Rubem Braga,
21
seguidos de inúmeros escritores como Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, Carlos
Drummond de Andrade e Paulo Mendes Campos:
Alencar decerto faz graça romântica, mas é que, desde o princípio, a
crônica parece escolher uma linguagem lúdica e esvoaçante para
cobrir o espaço enorme entre os grandes e pequenos eventos com
que se defronta. (E este modo de ser, como que volátil, é
característico ainda do espírito do velho Braga: um dos jeitos de se
falar de tudo, escondendo o jogo, como quem não quer nada.)
(ARRIGUCCI, 1987, p. 57).
Autores consagrados ou não, iniciantes no gênero ou conhecedores
profundos da produção em questão, independente da época em que se escreve,
quando diante da questão da ligação da crônica medieval e da crônica moderna com
o tempo e com o cotidiano, o que pode ser apontado como uma das distinções entre
o fazer cronístico em cada momento é a direção para onde se encaminha o olhar do
cronista. Se no princípio o escritor de crônicas voltava o seu foco para as questões
cotidianas apenas para retratá-las como situação histórica e preocupava-se mais
com os grandes acontecimentos e com as personagens memoráveis, agora, busca,
também, aquilo que é pequeno e aqueles que não figuram entre as páginas
históricas. uma quebra na ênfase e o início de uma maior valorização do fato
miúdo e das situações corriqueiras. A simplicidade e a naturalidade sobrepõem-se
ao requinte gramatical, e os pequenos acontecimentos diários aliam-se aos grandes
eventos para tornarem mais próximas do leitor todas as situações retratadas.
Essa nova visão do universo cronístico sob a ótica do tempo vivido
possibilita ao historiador encontrar na crônica o “espírito do tempo”, favorecendo o
aparecimento de uma ligação concreta e precisa entre os pequenos fatos, os
fragmentos da vida diária, permitindo que se estabeleça uma nova forma de
construção da memória histórica. Os fatos miúdos passam a fornecer pistas e
direções certeiras para a construção dos documentos históricos. Desse modo, a
reconstrução do cotidiano possibilita o engrandecimento das informações que
passarão a fazer parte da história.
Durante o caminho percorrido pela crônica, um abandono cada
vez maior da condição de gênero unicamente informativo. Uma nova linguagem
surge: o tom argumentativo e crítico cede lugar a uma fala mais leve e mais
descompromissada, no entanto, mais poética. Segundo Antonio Candido, essa nova
22
forma de ser da crônica é o momento de amadurecimento do gênero que, a partir do
fato miúdo, do toque humorístico e da poesia, ajusta-se à sensibilidade de todo dia:
Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a
dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um
cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes,
pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma
singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas
suas formas mais diretas e também nas suas formas mais
fantásticas, - sobretudo porque quase sempre utiliza o humor
(CANDIDO, 1992, p. 14).
Vale ressaltar nesse momento que, mesmo diante de inovações e de
reformulações acerca do universo cronístico, a crônica do século XIX não é
considerada nem melhor nem pior que a crônica do século XX. Mudanças
expressivas acontecem no que diz respeito aos elementos formais, ideológicos e
estéticos, e passam a fazer parte da produção dos escritores contemporâneos,
diante da escola que viria a figurar a partir das primeiras décadas do século XX, o
Modernismo. Esta escola iria instituir a incorporação de elementos ligados à
linguagem coloquial na busca de uma arte mais próxima das pessoas comuns e,
dessa forma, influenciaria definitivamente em alguns traços da escrita das crônicas
literárias: “voltada para as miudezas do cotidiano, onde acha a graça espontânea do
povo, as fraturas expostas da vida social, a finura dos perfis psicológicos, o quadro
dos costumes, o ridículo de cada dia e até a poesia mais alta que ela chega a
alcançar” (ARRIGUCCI, 2001, p. 59).
Entretanto, o processo de desenvolvimento do gênero e todo o
trajeto percorrido para se chegar ao que conhecemos como crônica, hoje, deve ser
considerado. O que o se pode esquecer nem negar é que o fato de o texto
cronístico chegar ao público leitor de uma forma mais acessível deve-se, sim,
primeiramente, à modernização do jornalismo. Fato este que permitiu que esses
textos passassem a fazer parte do dia-a-dia de uma parcela da população brasileira,
até alcançarem as páginas dos livros, assumindo uma postura mais voltada para o
lirismo, buscando entreter e dialogar com o público leitor.
Além disso, diante das transformações sofridas pela crônica durante
todo o seu percurso produtivo, é certo que, devido ao interesse de alguns críticos e
até mesmo de estudiosos da Academia, a situação da crônica vem se revertendo
há algum tempo. De gênero inferior, como antes era considerado, a objeto de
23
pesquisa e foco de interesse para uma boa leitura, o estudo do fazer cronístico vem
possibilitando o entendimento da importância da análise do tempo e do cotidiano
nesse tipo de texto.
Assim, a crônica tem sido incorporada às produções destinadas ao
enriquecimento da construção do processo histórico, bem como, diante das ações
dos indivíduos, a uma possibilidade de elaboração e de constituição da história
inerente a cada um.
1.2
O
F
AZER
C
RONÍSTICO
:
D
EFINIÇÕES
,
E
STRUTURA E
L
UGAR DA
C
RÔNICA
Sobre a tentativa de se responder a todas as questões acerca do
que é a crônica, do que a compõe e do que a rodeia, muito ainda se tem discutido a
respeito. E, certamente, a insistência em se chegar a uma conclusão pode
enveredar-se pelo caminho perigoso das definições e das classificações, o que, sob
a ótica de Margarida de Souza Neves, seria o mesmo que menosprezar “a riqueza
deste gênero polimórfico, tanto pela diversidade de suas concretizações no exercício
constante e sempre renovado dos cronistas quanto pela variedade de suas
metamorfoses no tempo” (1995, p. 17). Mais viável que tal empreitada seria, então,
valer-se de algumas idéias que podem auxiliar na compreensão do universo
cronístico.
Segundo Antonio Candido (1992), a crônica compreende um “gênero
menor”. O que, para o crítico, acontece “Graças a Deus”, pois assim podemos tê-la
mais perto de nós. Sendo a crônica uma descrição alegre da vida, “um relato
caprichoso dos fatos, o desenho de certos tipos humanos, o mero registro daquele
inesperado que surge de repente” (CANDIDO, 1992, p. 20), a interação com a leitura
pode ser mais completa, fácil, estimulante e gratificante. Eduardo Portella (1986)
afirma ser a crônica “uma manifestação superlativa da literatura”, uma possibilidade
de invasão da poesia, uma multiplicação de forças expressivas capazes de traçar
seu próprio perfil, autônomo e multifacetado.
Davi Arrigucci Junior diz que esse gênero literário, ligado ao jornal e
cercado de situações triviais que alimentam o dia-a-dia, configura-se um “relato ou
comentário de fatos corriqueiros”, uma possibilidade de interação com o cotidiano.
Para o crítico Afrânio Coutinho, a crônica compreende um “gênero literário de prosa,
ao qual menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades de estilo,
24
a variedade, a finura, a argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e
sem importância, ou na crítica de pessoas” (1986, p. 121).
Até mesmo os próprios cronistas têm opiniões diferentes a respeito
do que seria, realmente, a crônica. Affonso Romano de Sant’Anna alega ser ele um
escritor crônico, pois considera o cronista aquele que pode (e deve) falar na primeira
pessoa sem envergonhar-se. Seu “eu”, como o do poeta, é um eu de utilidade
pública, portanto, a crônica constitui uma forma de interferência no cotidiano, uma
possibilidade de interagir com os “assuntos momentosos”. Para Carlos Drummond
de Andrade, além de ser a crônica uma forma de produção literária característica da
vida moderna, constitui-se o gênero, sempre, de “notícias & não notícias”, pois reúne
em sua concretização o “inútil de extrema utilidade”, uma forma de refrigério da
ânsia por produtividade. Para Rubem Braga, autor essencialmente cronista, a
verdade da crônica é o instante, pois o escritor reconhece a importância desses
pequenos momentos que também fazem parte da condição humana e que definem
algumas situações e características de cada pessoa. Tanto o autor acredita nessa
colocação, que afirma: “A verdade não é o tempo que passa, a verdade é o instante”
(apud SÁ, 2005, p. 12).
Outra posição relevante é a do escritor Vinicius de Moraes, que
acredita ser uma constante na crônica o seu próprio ato de produção. E a origem de
tal fato está na condição de estar a crônica ligada ao coloquialismo, do sentir-se à
vontade do cronista, que expõe sua própria figura dentro do texto. Trata-se de uma
“prosa fiada”, da busca de
um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou da
véspera, em que, com as suas artimanhas peculiares, possa injetar
um sangue novo. Se nada houver, resta-lhe o recurso de olhar em
torno e esperar que, através de um processo associativo, surja-lhe
de repente a crônica, provinda de fatos e feitos de sua vida
emocionalmente despertados pela concentração (MORAES, 1991, p.
17).
Para o autor, o ato de escrever crônicas esdiretamente ligado ao
fato, geralmente vindo do noticiário, ou próprio e pessoal de cada cronista.
Destarte, diante dos inúmeros apontamentos referentes ao fazer
cronístico, conclui-se que, verdadeiramente, definir o que é a crônica não é uma das
tarefas mais fáceis. De uma forma geral e abrangente, em se tratando de um gênero
25
que oscila entre o jornalístico e o literário, ela é um texto, primeiramente, feito para o
jornal ou para a revista, que, a partir de um toque especial de alguns bons cronistas,
deixou de ser apenas o que sua pretensão inicial buscava para engendrar pelos
caminhos da literariedade. Ganhando as páginas dos livros, buscou alcançar a sua
imortalidade. Crônica é um bate-papo ingênuo entre cronista e leitor, ora cercando
as características da reportagem, ora aproximando-se da poesia ou da ficção. Como
diria Arrigucci Junior, “um texto difícil de classificar”, crônica é, antes de tudo,
crônica.
Mesmo antes do aparecimento das crônicas no jornal, o fazer
cronístico tem se enveredado pelos caminhos da narrativa e do comentário. Um
exemplo disso é a Carta de Pero Vaz de Caminha, em que, com engenho e arte, o
escrivão retrata, com toda a literariedade que o momento lhe permite, o que no
Brasil, situação que considera distante da realidade européia de sua época.
Atualmente, de acordo com os estudos feitos a respeito do gênero, o
universo cronístico se diversificou. Eduardo Portella procura identificar, em seu
ensaio “A cidade e a Letra”, a idéia do lugar da crônica na literatura. Segundo o
crítico, a crônica constitui um “gênero literário específico e autônomo”. No entanto,
sua condição ainda é muito relativa, pois não foi possível até agora delimitar as reais
fronteiras do território pelo qual perambula a crônica. Ainda assim, quer
apresentando-se sob a forma de poema em prosa ou de ensaio,
o enriquecimento poético da crônica é uma maneira das mais
eficazes de fazê-la transcender, de fugir ao seu destino de notícia
para construir o seu destino de obra de arte literária [...] E é para fugir
à transitoriedade que o nosso cronista constrói uma vida além da
notícia. E é justamente essa vida que, mesmo envelhecida a notícia,
conserva a juventude da crônica (PORTELLA, 1958, p. 115-116).
Para Massaud Moisés, a crônica pode ser dividida em dois tipos:
crônica-poema e crônica-conto. A primeira, quando o cronista explora mais o tom
contemplativo e emotivo em seus escritos. A segunda, quando o que prevalece é o
caráter narrativo. Todavia, o que se percebe claramente em qualquer uma dessas
formas de escrita é o caráter literário, que, uma vez assumido, zela pela primazia na
escrita. Enquanto poesia, a temática da crônica gira em torno do “eu”, o qual seria,
respectivamente, o assunto e o narrador. Sendo conto, a ênfase volta-se para o
“não-eu”, isto é, recai sobre o fato. Para o crítico, “o percurso do ‘eu’ no rumo de sua
26
interioridade segrega crônicas repassadas de lirismo” (MOISÉS, 1967, p. 111),
enquanto que se voltando para o “não-eu”, reflete sobre o acontecimento. Portanto,
conforme a visão de Massaud Moisés, o lugar ideal da crônica seria o meio termo
entre o acontecimento e o lirismo, podendo ser a crônica considerada a “poetização
do cotidiano”.
Afrânio Coutinho estabelece uma lista elencando as diversas formas
em que a crônica pode se apresentar: narrativa (aproximação com o conto),
metafísica (reflexiva), poema-em-prosa (lírica), comentário (pessoal, informal) e
informativa (mais formal). Entretanto, o próprio crítico assegura-se de esclarecer que
não há possibilidade de se determinar uma separação entre as categorias, pois
diante da capacidade de ser um texto totalmente flexível, “essa tentativa de
classificação não implica o reconhecimento de uma separação estanque entre os
vários tipos, os quais, na realidade, se encontram freqüentemente fundindo traços
de uns e outros” (COUTINHO, 1986, p. 133). Tudo isso, graças ao seu primeiro
veículo, o folhetim, lugar em que se cabia quase tudo, desde os romances, capítulo
por capítulo, as crônicas, o ensaio crítico até os meros classificados e boletins
informativos da sociedade. Eduardo Portella coloca essa delimitação, segundo ele,
“quase didática”, em cheque: “os gêneros literários não se excluem: incluem-se”
(1986, p. 271).
Sob a mesma perspectiva de Afrânio Coutinho, Marlyse Meyer
afirma ter sido realmente essa uma das condições para que a crônica atingisse essa
capacidade mutante:
Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas e modalidades de
diversão escrita: nele se contam piadas, se fala de crimes e
monstros, se propõem charadas, se oferecem receitas de cozinha ou
de beleza; aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças, os
livros recém saídos, o esboço do caderno B, em suma. E, numa
época em que a ficção está na crista da onda, é o espaço onde se
pode treinar a narrativa, onde se aceitam mestres ou noviços no
gênero, curtas ou menos curtas adota-se a moda inglesa de
publicação em série se houver mais textos e menos coluna (MEYER,
1992, p. 96-97).
Talvez essa condição primeira da crônica de “nascer” dentro de um
folhetim, ou despontar nas páginas dos jornais, seja uma das contribuições para
que, em determinado momento, a crítica estabeleça certa marginalização em
relação ao gênero. Esquecendo-se da origem dos romances do século XIX, que
27
eram apresentados ao seu público por meio dos folhetins, certo descaso por parte
da elite acadêmica diante dessa transitoriedade em veículos populares como o jornal
acabou sendo estabelecido.
Ainda hoje, mesmo diante de todas as considerações levantadas
acerca do universo da crônica, alguns críticos consideram-na um gênero menor. No
entanto, conforme afirma Antonio Candido, a crônica serve não apenas para a vida,
mas, também, para a literatura:
Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar
de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à
sensibilidade de todo dia. Principalmente porque elabora uma
linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na
sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como
compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa
profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de
repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata
à perfeição (CANDIDO, 1992, p. 13-14).
Para Davi Arrigucci Junior (1987), a crônica pode se aproximar de
vários outros gêneros, ora achegando-se à prosa lírica, ora estendendo-se até a
prosa de ficção. Buscando uma saída literária, pode tornar-se rebuscada,
alimentando-se das ambigüidades do gênero, sem, no entanto, deixar de lado as
pequenas coisas das quais trata: “Com isso, às vezes a prosa da crônica se torna
lírica, como se estivesse tomada pela subjetividade de um poeta do instantâneo, que
mesmo sem abandonar o ar de conversa fiada, fosse capaz de tirar o difícil do
simples, fazendo palavras banais alçarem vôo” (p. 55). E pode, também, aventurar-
se pelas veredas da prosa de ficção, quando, então, o cronista ênfase à
“objetivação de um mundo recriado imaginariamente” (p. 55).
Sobre a estrutura da crônica, grande parte dessas produções tem
seu tamanho reduzido, devido, principalmente, ao espaço que ocupavam e ocupam
no jornal. Dificilmente é composta em versos, mesmo gozando de certa autonomia
estética, segue pelos caminhos da prosa. Diferentemente de outros gêneros
narrativos, a personagem não é o foco central. Indo por uma via contrária, ela perde
a sua capacidade de constituir-se um fator essencial para dar lugar ao próprio
cronista como centro maior das atenções, pois é ele quem imprime o ritmo e o tom
de sua escrita, por meio da abordagem dos episódios diários.
28
Por ser a crônica totalmente maleável quanto a sua tipologia, a
flexibilidade é uma de suas marcas registradas. Está mais uma situação que
cerca o universo cronístico (e que, de certa forma, também acompanha a poesia e o
romance, mas não de maneira tão acentuada, por constituírem-se gêneros mais
consagrados) e que torna difícil o encontro de um ponto comum entre os críticos, os
teóricos e também alguns estudiosos sobre o assunto. Essa dificuldade vale-se da
condição de ser o gênero em questão extremamente móvel e irregular. Conforme
Afrânio Coutinho, os diversos estilos que compõem o universo cronístico (lírico,
ensaístico e narrativo) ocorrem, sobretudo, em função do habitat da crônica, os
possíveis lugares de encontro com o texto cronístico: o jornal e o livro.
Diante de tal situação, uma grande polêmica cerca a questão da
literariedade da crônica. Luiz Roncari explicita claramente essa situação. Para o
crítico, a crônica é como Sansão, “amparando com as mãos duas colunas enormes
para que não lhe caiam na cabeça: de um lado, o jornal, e de outro, a literatura”
(1983, p. 8). Já Portella, acredita que “a crônica é literatura, e isto vale para qualquer
gênero literário, toda vez que o cronista se resolve ao nível da linguagem” (1986, p.
271). O fazer cronístico não deve simplesmente estar ligado ao significado ou à
redução da linguagem a um mero grafema. Mais que isso, o cronista deve fugir de
qualquer atitude puramente jornalística, trabalhando em harmonia com o significado
e o significante, estabelecendo um equilíbrio entre ambos, para escapar dos perigos
de entrar no território da não-literatura:
O que interessa é que a crônica, acusada injustamente como um
desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio
fazer literário. E quando não o é, não é por causa dela, a crônica,
mas por culpa dele, o cronista. Aquele que se apega à notícia, que
não é capaz de construir uma existência além do cotidiano, este se
perde no dia-a-dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros,
esses transcendem e permanecem (PORTELLA, 1986, p. 272).
Portanto, o autor de textos genuinamente cronísticos recria o
acontecimento diário por meio da fantasia e da sua capacidade de fazer prevalecer a
metáfora, o sentido amplo que permite a identificação dos textos literários.
Ainda a respeito da relação crônica e jornal, Antonio Candido faz
uma reflexão bastante auxiliadora na compreensão dessa afinidade, instituindo a
29
concepção de que não se deve desapreciar a existência do texto nesse veículo. O
crítico ressalta que a crônica
[...] não tem pretensões de durar, uma vez que é filha do jornal e da
era da máquina, onde tudo acaba tão depressa. Ela não foi feita
originariamente para os livros, mas para essa publicação efêmera
que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um
par de sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar neste
veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam
em ‘ficar’, isto é, permanecer na lembrança e na admiração da
posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto
da montanha, mas do simples rés-do-chão (CANDIDO, 1992, p. 14).
E é justamente essa condição que permite à crônica transformar a
literatura em algo muito próximo da vida de cada um. Essa transitoriedade do
veículo acaba sendo incorporada pela própria crônica, revelando, nesse momento, a
despretensão do cronista em relação ao gênero. No entanto, quando chega aos
livros, Candido afirma que percebemos, meio espantados, que a durabilidade da
crônica pode ser ainda maior do que ela mesma pensava. Isso acaba funcionando
como um prêmio para o gênero que, tão despretensioso, consegue mostrar-se
insinuante e revelador, capaz de consagrar-se onde quer que esteja.
Assim, reforçando as palavras de Eduardo Portella, Antonio Candido
(1992) coloca também em questão a ligação da crônica com a efemeridade desse
seu veículo de publicação, o jornal, alegando que o que acontece, na maioria das
vezes, é uma falsa idéia do que vem a ser a seriedade no campo das produções
cronísticas: “uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e
que conseqüentemente a leveza é superficial” (p. 19). Ao contrário, por serem leves
e acessíveis, as crônicas talvez comuniquem muito mais do que qualquer estudo
sistemático e intencional sobre a visão humana do homem e a sua vida de todo dia:
“Na verdade, aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da
crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa
que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas” (
CANDIDO,
1992, p. 19
).
Entretanto, não são todos que compartilham dessa mesma opinião.
Davi Arrigucci Junior (professor e crítico literário) e Marcelo Coelho (jornalista)
ressaltam, em seus estudos sobre o fazer cronístico, que não são apenas afinidades
que constituem a relação da crônica com o jornal. Segundo os dois, a relação entre
30
o texto e o veículo não é muito estável, o que acaba por sugerir a procura de um
novo espaço em que essa produção possa circular: o livro. Arrigucci ressalta que “À
primeira vista, como parte de um veículo como o jornal, ela parece destinada à pura
contingência, mas acaba travando com esta um arriscado duelo, de que, às vezes,
por mérito literário intrínseco, sai vitoriosa” (1987, p. 53).
Seguindo o mesmo raciocínio, Coelho fundamenta sua posição com
julgamentos similares: “O que se pode dizer, de uma forma bem genérica, é que a
crônica se apresenta como um texto literário dentro do jornal, e que sua função é a
de ser uma espécie de avesso, de negativo da notícia” (1999, p. 156).
Para reforçar a posição do crítico e do jornalista, Roncari afirma, no
Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade, o seguinte:
a crônica antes de tudo tenta se diferenciar, como se fosse uma
visitante ilustre num país bruto, inculto e insensível. Por isso [...]
ocupa um espaço fixo, ao invés de ficar flutuando, perdida, seguindo
a vontade do compositor ou diagramador; não se trata dos fatos que
têm importância por si mesmos, ao contrário, volta-se justamente
para aquilo que passaria despercebido se não fosse o cronista [...]
usa uma linguagem diferente, fora dos padrões de registro da notícia,
apelando para o eu, o gosto e os caprichos pessoais; abaixa ou
eleva o registro da linguagem que a circunda, respondendo à rigidez
e uniformidade que se no jornal ao material lingüístico [...] (1985,
p. 14).
Seguindo um caminho contrário, Massaud Moisés resolve investir
contra a instalação das crônicas nos livros, considerando esse veículo impróprio em
relação ao jornal. Para o crítico, as crônicas não podem fugir do destino que lhes é
assinalado desde o princípio de sua existência: são textos que nascem para ser
breves e leves. Reduzindo a imensidão do cotidiano em pequenas porções de cil
digestão, a crônica possui uma estrutura limitada. É na novidade, na surpresa, no
devaneio e na variedade que a crônica se torna um texto atraente e instigante. O
cronista é aquele que oferece ao leitor “alimento espiritual de consumo imediato”. No
livro, no entanto, essa característica tende a se tornar uma existência menos
astuciosa, cedendo aos apelos do espaço em que se encontra, buscando resistir à
“erosão do tempo”:
31
No livro, porém, a crônica sugere o reparo de Tristão de Ataíde e
gera a monotonia, e o possível sobressalto que acompanha a leitura
duma boa crônica de jornal se atenua pela expectativa de uma
sensação análoga oferecida pela leitura de um texto colocado a
seguir. Mais do que um poema, a crônica perde quando lida em
série, reclama a degustação autônoma, uma a uma, como se o
imprevisto fizesse parte de sua natureza, e o imprevisto colhido na
efemeridade do jornal, não na permanência do livro. Eis porque raras
crônicas suportam releitura; é preciso que ocorra o encontro feliz
entre o motivo da crônica e algo da sensibilidade do escritor à espera
do chamado para vir à superfície (MOISÉS, 1982, p. 107).
Dessa forma, conforme Massaud, essa transferência daria à crônica
uma nova condição: a perda de sua identidade e a perda do impacto do confronto
entre o gênero e outros textos quando diante da sua publicação, colaborando para
uma automatização do processo de contato com a crônica.
Para reforçar suas idéias, Massaud centra-se na questão de que
uma diferença muito grande entre o escrever para o jornal e o publicar no jornal.
Textos escritos simplesmente para serem publicados em jornais como reportagens,
editoriais, entre outros, certamente estão fadados a um único fim: o esquecimento.
Por constituírem textos destinados a informar apenas o essencial àquele momento,
o esquecimento é o único destino certo. os textos publicados no jornal utilizam o
periódico única e exclusivamente como um veículo de divulgação, apenas como
uma forma de facilitar o acesso do público leitor a esses textos. Assim,
a crônica move-se entre o ser no e para o jornal, uma vez que se
destina inicial e precipuamente, a ser lida na folha diária ou na
revista. Difere, porém, da matéria substancialmente jornalística
naquilo em que, apesar de fazer do cotidiano seu húmus
permanente, não visa a mera informação: seu objetivo, confesso ou
não, reside em transcender o dia-a-dia (MOISÉS, 1982, p. 104).
Segundo Massaud Moisés, a transferência da crônica para as
páginas de um livro não oferece garantia nenhuma de uma maior valorização do
gênero ou, ainda, garantia de perenidade. Ele admite que, certamente, o manuseio
do periódico dificulte um pouco o estudo e a análise das crônicas e que, no livro,
talvez, a busca seja maior e mais intensa em função da facilidade de acesso. No
entanto, muitas podem não resistir sendo incorporadas aos livros, pois a grande
maioria o suportaria releituras ou até mesmo uma leitura em série, o que causaria
monotonia e, fatalmente, o desinteresse por esse tipo de atividade.
32
Tal posição pode ser considerada um tanto quanto perigosa, pois
não se pode afirmar que os leitores leriam as crônicas contidas em um livro na
seqüência em que as mesmas se encontram, em uma sentada apenas ou até
mesmo sem analisar as particularidades de cada uma. A posição de cada leitor
dependerá de sua intimidade com o gênero e a sua necessidade de apropriação da
leitura em questão. Além do mais, “é preciso admitir que crônicas de novos autores
alguns nem tão novos assim continuam freqüentando as páginas de jornais e
revistas e estas crônicas muitas vezes o compiladas em livros que têm êxito
estrondoso de vendas” (SIMON, 2006, p. 164). Portanto, o que se pode ressaltar,
aqui, é a “modificação do gênero”, juntamente com a sua fixação em determinado
veículo, mas não o declínio ou a desvalorização da crônica em função de seu
suporte.
Não obstante as colocações de Massaud Moisés, mas,
estabelecendo a sua posição diante do fazer cronístico, Eduardo Portella prefere
utilizar os livros como espaço para a divulgação e o estabelecimento das crônicas:
A constância com que vêm aparecendo, ultimamente, os chamados
livros de crônicas, livros de crônicas que transcendem a sua
condição puramente jornalística para se constituir em obra de arte
literária, veio contribuir, em forma decisiva, para fazer da crônica um
gênero literário específico, autônomo (PORTELLA, 1985, p. 111).
O que Portella tenta instituir não é uma condição contrária ao
pensamento de Massaud Moisés, nem mesmo procura apenas elencar os prejuízos
possíveis diante da transposição da crônica do jornal ao livro. Trata-se, aqui, da
condição de repensar a situação de publicação de um gênero tão cambiante como
se tem mostrado a crônica: um gênero de uma autonomia relativa, que circula em
um território tão flutuante, cujas fronteiras ainda não foram capazes de ser definidas.
Diante de todas essas posições, apenas uma questão pode ser
considerada uma verdade incontestável: nem mesmo os críticos conseguem chegar
a um ponto comum em suas afirmações a respeito do lugar da crônica. Afrânio
Coutinho, por exemplo, prefere acreditar que a crônica é um “gênero anfíbio”, capaz
de sobreviver e de circular tanto na coluna de um jornal, como nas páginas de um
livro. O crítico salienta, no entanto, que quem considere que esta deva figurar, de
forma mais exaustiva, nas laudas dos livros. Mas, não acredita ser este o único
veículo capaz de consagrar um gênero. Quer seja nas páginas de um livro ou no
33
rodapé de um jornal, a crônica estará sempre a salvo, pois suas particularidades e
características já a consagraram como um gênero literário por excelência.
Assim, voltando às idéias de Antonio Candido, independente de a
crônica estar no jornal ou enfileirada nos livros, cabe aos leitores encontrarem a sua
essência, pois, “por serem leves e accessíveis talvez elas comuniquem mais do que
um estudo intencional a visão humana na sua vida de todo dia. É importante insistir
no papel da simplicidade, brevidade e graça próprias da crônica” (1992, p. 19).
Mais do que fatos a serem discutidos, todas as situações criadas em
torno da crônica corroboram para o estabelecimento de uma maior aproximação
entre o texto, o leitor e o autor, pois aquele que uma crônica está diante de parte
da sua realidade, exposta por meio das idéias do cronista. Este recria no papel, por
meio de uma linguagem simples e acessível, um cotidiano revisitado por suas
personagens e as situações abordadas, estabelecendo certa cumplicidade entre os
seus escritos e os leitores a quem os mesmos se destinam.
Estender a análise não apenas aos fatos, mas procurar imprimir no
universo cronístico qualidades que levem o leitor à reflexão, por meio de uma
elaboração poética sim, mas despretensiosa e simples, seja talvez uma das
condições que faltava aos noticiários para diminuir a imagem pesada da seriedade e
da objetividade das reportagens. Do mesmo modo, firmando-se como gênero
literário, mesmo diante da sua condição híbrida e flexível, a crônica foi capaz de
vincular a objetividade jornalística à subjetividade literária, unindo, de forma
humanizadora, as características necessárias para se atingir um nível de escrita
acessível e essencial.
Tímida e perseverante, a crônica foi capaz de preencher um vazio
existente na literatura. Não se ornamenta dos grandes feitos literários, mas,
certamente, contém alguns de seus melhores momentos. E, como gênero, dissolve-
se na boca do leitor, deixando um gosto de vivência comum, passível de rápida
absorção, mas de demorada recordação. Como disse Antonio Candido (1992), uma
séria “candidata à perfeição”, capaz de delinear “o perfil do mundo e dos homens”.
34
2 O COTIDIANO E AS SUAS IMPLICAÇÕES: MOMENTOS QUE SE
CONSAGRAM
O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou
que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após
dia, nos oprime, pois existe uma opressão do
presente. [...] O cotidiano é aquilo que nos prende
intimamente, a partir do interior. É uma história a
meio-caminho de nós mesmos, quase uma retirada,
às vezes velada.
(Paul Leuilliot
6
)
2.1
O
C
OTIDIANO E A
L
ITERATURA
Todo dia, ao acordar e despertar para um novo começo, cada
indivíduo assume para si o “peso da vida”. Essa situação pode ser considerada uma
dificuldade, a dificuldade de viver diante desta ou daquela condição, ou, ainda, a
pura vontade de estar e se fazer presente perante as situações cotidianas que
cercam e que fazem valer cada momento diário: as “estranhezas” do cotidiano e os
acontecimentos rotineiros que constituem uma sociedade, certamente, tornam mais
atraente e mais significativa a vida de cada sujeito.
O cotidiano nos é dado a cada novo amanhecer, independente de
nossa vontade ou não. E, para o historiador do cotidiano ou, ainda, para o cronista
da modernidade, o que realmente interessa são as interligações de uma
cotidianidade concreta, as relações existentes entre as diversas personagens que
circulam pelas obras literárias e os instantes que as consagram como integrantes de
um mundo em sua plena atividade e construção. Aquilo que é próprio do homem
comum é o que fornece material considerável passível de representação e de
registro. Enxergar o que é pequeno e considerado banal, torna-se ponto
fundamental para que o cronista possa captar do cotidiano um instante ou um fato
que lhe permita recriar, por meio da linguagem, indo além da efemeridade e da
objetividade. Veja-se a crônica “Soltar papagaio” de Carlos Drummond de Andrade,
compilada no livro Moça deitada na grama de 1987:
6
Estudioso do cotidiano citado e contemplado nas obras de Michel de Certeau.
35
Perguntei por João Brandão, o caçulinha dele informou: Tá por
soltando papagaio. [...] De fato, a pipa de João era o que de mais
simples, pipa mesmo, nada dessas geringonças sofisticadas que a
gente vê em São Conrado, muito exibicionistas. O bom da pipa não é
mostrar aos outros, é sentir individualmente a pipa, dando ao céu o
recado da gente. [...] Quando falo em empinar papagaio, não me
refiro a título de banco, mas a papagaio mesmo, na boa tradição
chinesa que se atribui a um grego, amigo de Platão, a invenção
desse brinquedo. Nobilíssimo brinquedo, que antecipa as máquinas
de voar, dando outra dimensão ao homem, desde a infância. [...] De
um modo ou de outro, preferindo fazer o seu próprio e tradicional
papagaio, ou usando o oferecido no mercado, o brasileiro está
descobrindo que é hora de esticar a linha e acionar a poesia
consoladora da infância. Fuga? Escapismo? Alienação? Nada disso,
irmãos: simples terapia. E como funciona! Garante o João (Brandão).
Nem tudo está perdido ou hipotecado. Restam as pipas, e sua delícia
menineira para todas as idades (DRUMMOND, 1987, p. 107-109).
O cronista aborda a cotidianidade falando da singeleza de uma
atividade tão corriqueira (soltar papagaio), que pode ser até considerada por muitos
como algo banal, mas que tem seu valor como ação, e que pode servir para permitir
aos indivíduos a sua “liberação” dentro do tumultuado mundo da sociedade atual.
Drummond retrata a atitude de uma pessoa adulta, que usa uma brincadeira de
criança para sobrepor a sua necessidade do que é simples diante das complicações
do dia-a-dia. Partindo de um fato miúdo e prosaico, o autor revela os traços literários
de sua escrita ao retratar a cotidianidade. Explorando a simplicidade do dia-a-dia, o
cronista consegue, conforme afirmou Antonio Candido (1992), manter certo ar
despreocupado, tentando falar das coisas sem maiores conseqüências, no entanto,
indo fundo ao significado dos atos e dos sentimentos dos homens, caminhando até
mesmo a uma possível crítica social.
Quando Carlos Drummond de Andrade contrapõe a idéia de soltar
papagaio aos problemas bancários e à antecipação das máquinas de voar,
consegue dar sentido de valor a esse ato corriqueiro e despretensioso, mas que
carrega em si a ingenuidade e as delícias pertinentes à infância.
Conforme o pensador francês Michel de Certeau, é essa história
prosaica que permite o conhecimento do que é inerente a uma coletividade:
É o murmúrio das sociedades. De todo o tempo, anterior aos textos
[...] Mas, nas representações escritas, vai progredindo. Pouco a
pouco ocupa o centro de nossas cenas científicas. Os projetores
abandonaram os atores donos de nomes próprios e de brasões
sociais para voltar-se para o coro dos figurantes amontoados dos
36
lados, e depois fixar-se enfim na multidão do público [...] privilegiam o
anônimo e o cotidiano onde zooms destacam detalhes metonímicos
– partes tomadas pelo todo (1994, p. 57).
As práticas ou “maneiras de fazer” cotidianas surgem como
importante questão dentro do universo literário, mais precisamente, como foco
central e objeto de discussão e de análise nas crônicas modernas. Ao retomarem e
reconstruírem os acontecimentos cotidianos em suas crônicas, autores como Rachel
de Queiroz, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade e outros, imprimem em
suas obras as condições necessárias para que seja possível realizar a descoberta
de cada uma de suas personagens, assim como a possibilidade de identificação das
mesmas no outro e nas circunstâncias a que são destinadas e submetidas. Além
disso, os escritos desses autores proporcionam o reconhecimento dos espaços em
que cada uma circula e atua, como também a apropriação das questões do tempo.
Dessa forma, ante essa postura, pode-se afirmar que as práticas
cotidianas inseridas no universo cronístico configuram-se como o ponto de
observação que permite ao escritor perceber o condicionamento a que o ser humano
é levado em seu dia-a-dia, bem como as implicações desses pequenos fragmentos
para a construção de cada personagem, de cada situação e do contexto literário.
Sob o ponto de vista de Margarida de Souza Neves, a crônica
moderna subsiste na condição de centrar-se naquilo que faz parte do instante,
naquilo que é momentoso:
A crônica moderna, todos sabemos, é algo muito distinto. Seu tom é
leve, e busca sempre ser acessível a todos os leitores. Sua marca de
identidade é a de ser comentário quase impressionista. A escolha de
seus temas é supostamente arbitrária e a liberdade preside na
construção. Sua forma é, por definição, caleidoscópica, fragmentária e
eminentemente subjetiva (1995, p. 20).
A essa condição de ser a crônica necessariamente leve, acessível e
fragmentária, está ligada a questão do cotidiano, que surge como fator essencial
para que os pequenos momentos sejam abordados e esclareçam, a respeito de
cada personagem, a sua real situação em relação aos episódios narrados, como
também a sua posição diante do universo criado dentro de cada crônica. De tal
modo, sintonizado com as notícias diárias e com o cotidiano, cercado de ltiplas
estratégias, “que vão do humor às reflexões e ao lirismo”, o cronista mostra-se capaz
37
de, por meio dos pequenos acontecimentos, recriar um mundo em cada crônica que
produz:
Em que outro documento será possível encontrar o cotidiano
monumentalizado como na crônica? Não são muitas as fontes em
que o historiador encontrará com tanta transparência as
sensibilidades, os sentimentos, as paixões de momento e tudo aquilo
que permite identificar o rosto humano da história (NEVES, 1995, p.
25).
Nesse sentido, ninguém melhor que Rubem Braga para conseguir
estabelecer um caminho partindo dos fatos pequenos e comuns para, então, revelar
traços líricos. Enquanto a influência do Romantismo nas produções do autor pode
ser questionada, o lirismo empregado em suas crônicas constitui um ponto
indiscutível para que o mesmo reconfigure os pequenos acontecimentos diários. E
assim ele o faz na crônica “O homem e a cidade”, texto escrito em 1960, publicado
no livro Ai de ti, Copacabana, de 1994. Nessa crônica, o lirismo reconfigura o
acontecimento miúdo. Braga transforma um simples caminhar pelas ruas da cidade
num momento inexplicável e singular:
Agora, que não preciso mais ir à cidade todo dia, descubro um prazer
novo em andar por essas velhas ruas do centro onde tanto vaguei
outrora. [...] o vento espanta alegremente as nuvens esgotadas de
chover; o ar é fino, a luz é clara, a manhã é assanhada, com uma
alegria de convalescente que pela primeira vez, depois de uma longa
doença, sai a passear entre as árvores, o mar e as montanhas azuis.
[...] E sinto prazer em andar pela calçada larga da Rua do Passeio,
em espiar as grandes vitrinas coloridas de presentes de Natal. (Não
quero comprar nada, não preciso ganhar mais nada, não é verdade
que recebi na minha porta a graça juvenil de uma rosa amarela?) [...]
Muito obrigado, muito obrigado, mas o preciso de nada.
Entretanto, gosto de ver essa fartura de coisas: fico parado numa
porta de mercearia contemplando reluzentes goiabadas e frascos de
vinho, bebidas e gulodices de toda a espécie que vieram de terras
longes se oferecerem a mim (BRAGA, 1994, p. 162-163).
O cronista redescobre o prazer de uma caminhada. Faz o vento
tornar-se alegre, deixa a manhã assanhada e contenta-se apenas em espiar as
vitrinas, pois acredita já ter tudo o que precisa, inclusive “a graça juvenil de uma rosa
amarela”, a presença das flores em sua calçada. Quem precisa de mais diante
dessa graça? As goiabadas ficam reluzentes e tudo mais se torna especial, e o
narrador sente como se as coisas estivessem ali apenas para o seu bel prazer, para
38
o seu deleite. Tudo se configura qual uma boa amostra de como a prosa do autor
pode ser lírica e reinventar os acontecimentos.
E o passeio pela cidade, uma ação tão corriqueira tem o poder a
de levar o eu do cronista ao encontro do seu passado, ao encontro do seu grande
amor:
Mas de repente houve alguma coisa – a visão de um muro, o som de
uma vitrola distante, algum rosto no meio da multidão? alguma
coisa que me devolveu ao meu ser antigo. [...] Quieto vou repetindo
sem voz, para mim mesmo, teu nome, Lenora perdida, para
sempre perdida, mas tão viva, tão linda, batendo os saltos na
calçada, andando de cabelos ao vento dentro da minha cidade e de
minha saudade, Lenora (BRAGA, 1994, p. 163-164).
O autor consegue estabelecer certo equilíbrio ao retomar as coisas
do amor junto às questões do cotidiano. São estas que auxiliam o cronista a
recobrar aquelas. De acordo com Luiz Carlos Santos Simon (2004), “o monumental
e a ênfase [...] são controlados pela entrada em cena de coisas e situações que não
desligam da paisagem amorosa, mas, ao mesmo tempo, modulam o tom,
equilibrando amor e cotidiano” (p. 202). Situações comuns e pequenos elementos
que fazem parte da rotina diária das ruas ganham proporções para o eu do cronista
e o levam ao encontro daquilo que, em algum momento, perdeu-se em seu passado,
“reforçando a prática das crônicas de valorizar os fatos miúdos, extraindo deles um
poder lírico” (SIMON, 2004, p. 204).
Diante de tais situações, pode-se concluir que o cotidiano se inventa
de mil maneiras. E essa é uma realidade que deve ser considerada e analisada para
que se possa chegar às reações de cada indivíduo. Seja de forma passiva ou ativa,
sempre uma reação diante das circunstâncias. Assim, constituem-se as práticas
cotidianas, dentro da literatura, importante meio de análise da representação ou dos
comportamentos de cada personagem criada para figurar por entre as obras
literárias. É por meio da verificação das práticas diárias que as personagens são
desvendadas e permitem a sua exploração dentro do contexto em que estão
inseridas.
Tratando-se do cotidiano, trata-se, portanto, de buscar uma
caracterização da sociedade em que vivemos, o que gera a cotidianidade e,
conseqüentemente, a modernidade. O desafio está em reconduzir os fatos
39
aparentemente irrisórios ao seu lugar de direito, a um espaço possível de
visualização, de exploração e de entendimento. Assim, em relação aos pequenos
acontecimentos do dia-a-dia, é preciso captar o supostamente insignificante, o trivial
e o rotineiro, e dar a tudo isso um sentido amplo e considerável. Em relação à
sociedade e à cotidianidade,
[...] trata-se de defini-la, de definir suas transformações e suas
perspectivas, retendo entre os fatos aparentemente insignificantes,
alguma coisa essencial, e ordenando os fatos. Não apenas a
cotidianidade é um conceito, como ainda podemos tomar esse
conceito como fio condutor para conhecer a ‘sociedade’, situando o
cotidiano no global: o Estado, a técnica e a tecnicidade, a cultura (ou
a decomposição da cultura) etc. Eis, a nosso ver, a melhor maneira
de tratar da questão, o procedimento mais racional para captar nossa
sociedade, penetrá-la, defini-la (LEFEBVRE, 1991, p. 35).
Quando diante das práticas diárias, dos pequenos instantes que se
transformam em importantes ferramentas para a construção das personagens
literárias, não se pode negar que a possibilidade de construção da própria sociedade
é uma realidade constante nesse processo. Ao situar cada personagem dentro de
uma perspectiva metafórica, mas real, além da reflexão sobre uma realidade parcial
da vida social a cotidianidade tal análise proporciona, também, um maior
conhecimento a respeito do conjunto da coletividade. Cedo ou tarde, essa situação
acaba compondo uma concepção geral do homem, da sociedade ou, ainda, do
mundo.
Conforme Berger e Luckmann (1976), a vida cotidiana apresenta-se
como uma realidade interpretada pelos homens e, subjetivamente, dotada de
sentido. E são esses sentidos que, por sua vez, tornam o mundo coerente. Ao
reconstruírem os acontecimentos cotidianos, autores como Rachel de Queiroz,
Rubem Braga, Drummond e outros, não descobrem os outros por intermédio de
suas personagens, como também descobrem a si mesmos representados naqueles
que circulam em suas obras. O sentido daquilo que cerca cada personagem começa
a se configurar a partir dos pequenos momentos que vão surgindo e sendo
edificados ao longo das narrativas, especialmente, nas crônicas. A junção do que,
primeiramente, parece pequeno, permite que se trace um caminho certeiro,
inconstante por vezes, mas preciso no conhecimento do dia-a-dia dos sujeitos.
40
Diante de todas as características próprias do fazer cronístico, a
condição de propiciar uma ligação com os temas do cotidiano subentende a
possibilidade de uma interação mais considerável com a realidade acerca da
sociedade: “Ambigüidade, brevidade, subjetividade, diálogo, estilo entre o oral e
literário, temas do cotidiano, ausência de transcendente, eis os requisitos essenciais
da crônica” (MOISÉS, 1967, p. 119). Portanto, quando diante da crônica, uma
probabilidade maior de aceitação por parte do público leitor, visto que a identificação
com as situações abordadas é facilmente reconhecida e rapidamente estabelecida:
O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma
realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na conduta
subjetivamente dotada de sentido que imprimem a suas vidas, mas é
um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens
comuns, sendo afirmado como real por eles (BERGER &
LUCKMANN, 1976, p. 36).
Essa identificação do leitor com os fragmentos apresentados nas
crônicas propicia a ligação do mesmo com a realidade da vida diária estampada por
meio de objetos que foram designados antes mesmo da entrada de cada
personagem em cena. Face à utilização de uma linguagem também denominada
representante da vida cotidiana, o sentido da própria vida vai sendo determinado e
tornando-se real para cada personagem e, conseqüentemente, por representarem
aquilo que poderia figurar na vida de cada indivíduo, para cada leitor, que se envolve
no processo e a possibilidade de perceber-se naquilo que lê. Enquanto todos
puderem viver o cotidiano, as antigas relações se reconstituem e as novas vão
sendo traçadas. De acordo com Marília Rothier Cardoso,
o homem da rua pode ter o mundo nas mãos, lendo reportagens,
entrevistas e crônicas [...] Significativamente, nomeia-se crônica o
texto leve, fluente e sintético, que forma o elo entre o passado (as
linhagens medievais) e o presente (registro do instante, resgatado da
voragem para a fama) (CARDOSO, 1992, p. 137).
A literatura vale-se, então, do cotidiano para deixar à mostra aquilo
que é pertinente a cada um de seus leitores. O cronista, mais especificamente, tem
a capacidade de buscar novos sentidos na rotina diária e transformá-los em
importantes objetos de construção de identidade. Desse modo, de acordo com Davi
Arrigucci Junior, a crônica torna-se, “pela elaboração da linguagem, pela
41
complexidade interna, pela penetração psicológica e social, pela força poética e pelo
humor, uma forma de conhecimento de meandros sutis de nossa realidade e de
nossa história” (1987, p. 53). Portanto, uma configuração subjetiva e essencial no
conhecimento dos procedimentos que constituem tanto as relações coletivas quanto
as práticas individuais em um determinado espaço e em certo tempo.
Enquanto sujeito de um mundo em constante atividade, passível dos
mais variados acontecimentos, cada leitor de crônicas poderá identificar-se e
encontrar-se diante das leituras realizadas. Se as crônicas possuem a
particularidade de apresentar os pequenos instantes que compõem e constituem a
vida diária das pessoas, têm, igualmente, a capacidade de propiciar o encontro entre
a realidade da vida cotidiana e o sujeito dessas implicações: o homem, muitas vezes
perdido em meio a toda essa situação.
Nesse contexto, as personagens que auxiliarão a arquitetar a
história de uma sociedade vão sendo construídas e moldadas, partindo de suas
próprias atitudes, da sua interação com o meio e do que lhes cabe como resultado
dessa interação.
2.2
A
E
STRUTURA DA
V
IDA
C
OTIDIANA
A vida cotidiana é a própria vida do homem inteiro”, ou seja, o
homem participa da vida cotidiana em todos os aspectos de sua personalidade e de
sua individualidade:
A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem
nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do
trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com
sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se
inteiramente da cotidianidade [...] Nela colocam-se em
funcionamento todos os seus sentidos, todas as suas capacidades
intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos,
paixões, idéias, ideologias (HELLER, 1972, p. 17).
O homem da cotidianidade é, certamente, atuante, ativo, receptivo,
questionador e fruidor. No entanto, não tem a capacidade, em função do movimento
diário com o qual se defronta, de absorver todos esses aspectos. Desse modo, a
literatura torna-se um importante mecanismo de conhecimento e de interação com o
próprio mundo criado pelo homem, mas impossível de ser totalmente explorado pelo
42
mesmo, pois possibilita a visualização das circunstâncias, dos acontecimentos e da
realidade que cerca cada indivíduo.
Constituem partes da vida cotidiana situações como: o trabalho, a
vida privada, os lazeres, o descanso, a atividade social e o próprio conhecimento.
Todos esses fragmentos compõem aquilo que denominamos o universo de cada
pessoa. Assim, quando se pensa em cada uma dessas situações, é possível realizar
uma ligação mais estreita, ainda, da crônica com a história, pois:
A vida cotidiana não está fora da história, mas, no centro do
acontecer histórico: é a verdadeira essência da substância social [...]
As grandes ações não cotidianas que são contadas nos livros de
história partem da vida cotidiana e a ela retornam. Toda grande
façanha histórica concreta torna-se particular e histórica
precisamente graças a seu posterior efeito na cotidianidade. O que
assimila a cotidianidade de sua época assimila também, com isso, o
passado da humanidade [...] (HELLER, 1972, p. 20).
Mesmo tratando-se, às vezes, de uma assimilação inconsciente, o
ser humano acaba por apoderar-se dos diversos fatos que ajudam a arquitetar cada
dia, tornando possível a identificação e a construção da própria história da
humanidade.
Por configurar-se sempre e simultaneamente, o indivíduo, um ser
particular e um ser genérico, as apropriações do mesmo das situações diárias
constituem uma forma natural de expressar suas particularidades, seu ser “isolado”,
como também de buscar uma interação com as necessidades humanas
consideradas num geral, compreendendo, assim, a natureza da humanidade. Todas
as necessidades do “eu”, são, primeiramente, as necessidades humanas
generalizadas. Todas se apresentam sob a forma de indagações que rodeiam a vida
de cada indivíduo, mas, que, por meio das vivências diárias, acabam por
transformarem-se em algo genérico, que atinge a toda uma sociedade. Na literatura,
os pequenos fatos diários, além de apresentarem as condições que norteiam e que
fazem parte da constituição de cada personagem, colaboram na organização e no
entendimento da vida da coletividade.
Para Agnes Heller (1972), ninguém consegue se identificar com as
suas possibilidades humanas desligando-se totalmente da vida cotidiana. O homem
nasce inserido em uma cotidianidade, por isso, torna-se adulto aquele que é
capaz de viver por si mesmo o seu cotidiano. E isso compreende desde as
43
atividades mais simples da vida, como utilizar os talheres, aprender a escrever nas
linhas de um caderno, até as atividades mais complexas, como as relações
pessoais, a realização de um trabalho artístico e o próprio desenvolvimento
profissional. A assimilação e a manipulação das coisas e das atividades é o que
propicia ao ser humano a capacidade de estabelecer as relações sociais. Essa
assimilação é o que torna possível a mediação entre os indivíduos e os costumes,
as normas, a ética e amesmo o aprender a se mover no ambiente particular e
genérico pertinente a cada pessoa.
Em sua trivialidade, o cotidiano se compõe de repetições: gestos
no trabalho e fora dele, atitudes dentro e fora de casa, formas de comportamento e
de tomada de decisões, movimentos mecânicos, atitudes que marcam as horas, os
dias, as semanas, os meses e os anos, como também toda e qualquer manifestação
nos espaços privados e nos espaços públicos. Drummond exemplifica essa
trivialidade na crônica “Anda a pé”, texto componente do volume Cadeira de
balanço, ao retratar o simples fato de se andar a pé como algo notório e exemplar:
O Filósofo me dissera: ‘Vou do Leme ao Leblon a pé, e às vezes
não me satisfaz; então volto a do Leblon ao Leme, e sinto-me em
plenitude.’ [...] Do Leme ao Posto 6, a viagem é proporcionada aos
recursos menores de que disponho. A meta é visível, a curva da
praia ilusão de proximidade. O caminho reto, no mar, não levaria
tempo. Contudo, sinto que é tempo de desperdiçar tempo, e nenhum
veículo dará transporte igual ao dos pés, ambiciosos de marcha. [...]
Andar a pé, no flanco dos motorizados, dá uma imprevista calma. [...]
Nada porém distrai o andar-a-pé do homem, que com o simples
andar-a-pé se confirma em sua soberania perante as coisas. [...] O
andar-em-mim, do princípio, tão leve se fez que agora é um andar
fora e acima de todos os mins pontiagudos, feridos, desarvorados,
que a vida ia acumulando. Amendoeiras e jogos infantis do Posto 6
desabrocham como um continente. Chegar, e sua plenitude
(DRUMMOND, 1998, p. 51-53).
O autor confere ao ato de andar a uma carga de valor profunda,
atribuindo a essa ação corriqueira tamanha importância. Andar a configura-se um
avanço para os indivíduos que, ao alcançarem cada lugar, cada esquina ou cada
destino, sentem-se aptos a continuar seguindo em frente, pois o “ato de andar vale
por si mesmo, sublima o entendimento do corpo com o que se costuma chamar de
espírito, e naquele vigia e sofre” (DRUMMOND, 1998, p. 52).
44
Essa bucólica atitude, assim como as atividades recorrentes do dia-
a-dia abarcam aquilo que é “repetitivo” e que ajuda na compreensão dos pequenos
acontecimentos, na elaboração de uma condição de buscar o entendimento da
importância dos pequenos instantes na construção de uma identidade. Ao cotidiano,
conjunto do que poderia ser aconsiderado insignificante, responde e corresponde
o moderno, o conjunto das situações pelas quais a sociedade se justifica, se
estabelece e se significa:
O cotidiano é o humilde e o sólido, aquilo que vai por si mesmo,
aquilo cujas partes e fragmentos se encadeiam num emprego do
tempo. E isso sem que o interessado tenha de examinar as
articulações dessas partes. É portanto aquilo que não tem data. É o
insignificante (aparentemente); ele ocupa e preocupa e, no entanto,
não tem necessidade de ser dito, é uma ética subjacente ao emprego
do tempo, uma estética de decoração desse tempo empregado. É o
que une à modernidade [...] É o audacioso (aparentemente), o
efêmero, a aventura que se proclama e que se faz aclamar
(LEFEBVRE, 1991, p. 31).
Sendo a crônica o espaço em que o cotidiano aparece numa
condição privilegiada, conforme afirma Antonio Candido, “como prêmio por ser tão
despretensiosa, insinuante e reveladora” (1992, p. 15), podemos identificar nesse
espaço todas as particularidades da vida cotidiana. Crônica e cotidiano se
encontram, se completam e se afirmam na condição de permitir ao leitor que este se
sinta e se reconheça na força de suas manifestações e de seus próprios valores.
Conforme Lukács no capítulo introdutório de sua obra Estética, todo produto artístico
é um momento de suspensão (momento em que o homem particular reconhece-se
como homem genérico e passa a compreender a realidade social que o cerca de
uma forma diferenciada) que volta à cotidianidade, e seu efeito sobrevive na
cotidianidade dos outros. Assim, podemos considerar as crônicas uma forma de
expressão do cotidiano humano, o lugar em que as personagens representam as
situações que envolvem e que constituem a composição da vida de cada ser.
Sobre a estrutura da vida cotidiana, Agnes Heller estabelece alguns
momentos que considera primordiais para o conhecimento completo e eficaz das
características dominantes desse processo: a espontaneidade, a heterogeneidade, o
pragmatismo, a ultrageneralidade e a imitação.
A espontaneidade surge como uma tendência e como uma forma da
atividade cotidiana. No entanto, a autora afirma que “nem toda atividade cotidiana é
45
espontânea no mesmo nível” (1972, p. 30). Em graus diferentes, cada atividade
acontece conduzida de um jeito específico, e nem sempre se apresenta
identicamente espontânea. No entanto, em qualquer uma dessas condições, a
espontaneidade é a tendência primordial de toda e qualquer forma de atividade
cotidiana:
A espontaneidade caracteriza tanto as motivações particulares (e as
formas particulares de atividade) quanto as atividades humano-
genéricas que nela têm lugar. O ritmo fixo, a repetição, a rigorosa
regularidade da vida cotidiana (que se rompem quando se produz a
elevação acima da cotidianidade) não estão absolutamente em
contradição com a espontaneidade; ao contrário, implicam-se
mutuamente (HELLER, 1972, p. 30).
Do mesmo modo, a assimilação dos comportamentos exige, para a
sua efetivação, certa espontaneidade, pois, se cada indivíduo se preocupasse em
refletir sobre todos os acontecimentos e deles extrair a sua essência, a realização
das mais frívolas situações cotidianas se transformaria em situações impossíveis,
como também seria impraticável a reprodução da vida da sociedade.
Mas, a espontaneidade não acontece sozinha. Ela se concretiza
diante das motivações efêmeras e em constantes alterações que aparecem e
desaparecem a cada dia, inseridas na efetivação da vida diária. Mesmo atuando
como peça importante na concretização da espontaneidade, “na maioria das formas
de atividade da vida cotidiana, as motivações do homem não chegam a se tornar
típicas, ou seja, as motivações em permanente alteração estão muito longe de
expressar a totalidade, a essência do indivíduo” (HELLER, 1972, p. 30). Entretanto,
compõem o universo daquilo que é considerado essencial para que a pessoa se
sinta estimulada e capaz de, espontaneamente, atuar em seu dia-a-dia.
A heterogeneidade constitui o lugar da diversidade das
possibilidades humanas, sendo assim, outra importante característica da estrutura
do cotidiano. Igualmente, nesse contexto heterogêneo, está a base da atuação do
homem: as probabilidades que surgem ao longo das realizações diárias. Frente às
atividades realizadas estão as conseqüências das mesmas, configurando uma
relação de probabilidade. Jamais seria possível calcular, com certeza, a
conseqüência de uma ação realizada, nem tampouco seria possível realizar tal
proeza perante a multiplicidade das atividades cotidianas. Dessa forma, pode-se
concluir que as “catástrofes” da vida cotidiana são involuntárias, e acontecem sem o
46
consentimento daqueles que as vivem. Na cotidianidade, podem-se estabelecer as
probabilidades e as possibilidades em presença dos fatos, sem, no entanto, efetivar
a garantia do sucesso de tal investida: “Decerto, essa situação implica no risco da
ação baseada na probabilidade; mas não se trata de um risco autonomamente
assumido e sim de um risco imprescindível e necessário para a vida” (HELLER,
1972, p. 31).
Ainda como questão fundamental da estrutura da vida cotidiana está
o pragmatismo, visto que a cotidianidade une o pensar e o agir como uma unidade
imediata. O pensamento cotidiano orienta-se para a realização das atividades
diárias. A teoria torna-se, portanto, um ponto descartado dentro do contexto da
cotidianidade. Não espaço para tal situação, pois as idéias necessárias à
constituição do cotidiano não se elevam ao plano da teoria, elas configuram a
própria prática diária. A unidade imediata entre o pensamento e a ação implica na
existência da diferença entre o “correto” e o “verdadeiro” na vida cotidiana: na atitude
da vida diária o que é correto acaba por ser, também, verdadeiro. Dessa forma, a
vida cotidiana é totalmente pragmática, ou seja, calcada na praticidade da relação
entre os pontos estabelecidos pelo pensamento e pela ação. E o correto passa a ser
verdade na medida em que se pode prosseguir na cotidianidade com os menores
atritos possíveis:
Até mesmo os juízos e pensamentos objetivamente menos
verdadeiros podem resultar corretos na atividade social, quando
representarem os interesses da camada ou classe a que pertence o
indivíduo e, desse modo, facilitarem a esse a orientação ou a ação
correspondente às exigências cotidianas da classe ou camada em
questão (HELLER, 1972, p. 32).
Para prosseguir com o pensamento de Agnes Heller acerca dos
momentos que compreendem a estrutura da vida cotidiana está a questão da
ultrageneralização, que organiza a concisão do pensamento, instituindo o
pensamento cotidiano como algo marcado por juízos provisórios, pré-juízos e
preconceitos, que são constitutivos inevitáveis do conhecimento cotidiano dos
homens, mas que estão sujeitos aos perigos da cristalização por meio da
experiência individual.
Esses juízos ultrageneralizados o juízos provisórios que a prática
cotidiana confirma, ou, pelo menos, não refuta. Trata-se, aqui, das formulações que
47
norteiam as ações do dia-a-dia, as quais favorecem o aparecimento de conceitos
pré-determinados antes mesmo de certas práticas. No entanto, é necessário que
não se estabeleça um excesso de pré-julgamentos, para que não haja uma perda de
capacidade diante das práticas cotidianas e, nem tampouco, da individualidade de
cada pessoa, porque
[...] quando não se trata da orientação na vida cotidiana e sim da
nossa inteira individualidade, de nossa integridade moral e de seu
desenvolvimento superior, caso em que só podemos operar com
juízos provisórios pondo em risco essa integridade, então devemos
ter a capacidade de abandoná-los ou modificá-los (HELLER, 1972, p.
34-35).
Isso deverá ocorrer quando todos esses juízos provisórios
caminharem para a ultrageneralização, não permitindo que a particularidade de cada
um transite livremente em meio a essas situações. É uma característica comum da
vida cotidiana o “manejo grosseiro do singular”, o esquecimento das peculiaridades
e das singularidades. Para que tal fato não aconteça, para que haja uma reação por
parte do indivíduo diante dos instantes diários de sua vida, é preciso que a
universalidade seja considerada partindo da particularidade. Em suma, o tratamento
grosseiro do singular, a desconsideração daquilo que é próprio a cada um e a
banalização do que concerne a cada indivíduo, pode, mesmo que não seja
prejudicial, converter-se em um dano irreparável ou, ainda, acarretar em uma das
catástrofes da vida cotidiana.
E, por último, concluindo as idéias de Heller sobre a estrutura da
vida cotidiana, aparece a imitação, pois, conforme a autora, não vida cotidiana
sem imitação. O ser humano jamais procede meramente de acordo com a sua
intuição, a sua vontade e a sua necessidade. O ser humano imita os outros. Sem a
mimese, sem a imitação ou a representação do real, sem a recriação da realidade, a
arte literária certamente não seria a mesma. Contudo, a vida cotidiana não vive
apenas da imitação, momentos em que a mimese torna-se desnecessária,
supérflua, “ademais, os tipos e os graus de individualização o necessariamente
diversos nas várias esferas, nas diferentes épocas e situações” (HELLER, 1972, p.
36). A crônica, assim como as demais produções literárias, compreende tal questão
e trabalha com a imitação de acordo com a necessidade de apresentar ao leitor as
48
possibilidades de aprendizagem diante dos fragmentos diários e das probabilidades
de representação do comportamento humano.
E, comparativamente a outros gêneros, é a crônica o “lugar” propício
para esse trânsito com o cotidiano. Todos os fatos que constituem e colaboram para
a construção da vida diária “colam” à própria estrutura da crônica. Os diferentes
tipos de crônicas (desde a crônica lírica de Rubem Braga até a crônica narrativa de
Luís Fernando Veríssimo) têm essa característica de poder dialogar com aquilo que
é fragmentado, que é prosaico e corriqueiro, mas que tem a possibilidade de
representar o próprio desempenho e o desenvolvimento dos sujeitos.
A vida cotidiana não deve caminhar para a alienação. Para tal,
cronistas e historiadores, os contadores da cotidianidade, devem operar a
coexistência entre a particularidade e a generalidade, oferecendo ao blico leitor
uma dimensão da vida social capaz de apresentar a luta contra a desumanização e
a construção do caráter e da realidade de cada pessoa por intermédio das suas
personagens.
Todos esses momentos característicos do comportamento e do
pensamento cotidianos compreendem um atrelamento necessário para que o
homem seja capaz de viver na cotidianidade. Não vida cotidiana sem
espontaneidade, sem pragmatismo, sem ultrageneralização e sem imitação.
Todavia, essas formas da estrutura e do pensamento da vida diária não devem ser
consideradas como verdades absolutas e únicas, elas devem propiciar ao indivíduo
a possibilidade de movimento e de explicitação dentro do universo criado diante das
situações momentosas, das atribuições do cotidiano.
Todo homem pode ser completo, inclusive na cotidianidade, diante
da fragmentação diária a que é submetido. Independente da hierarquia determinada
pela época, pela sociedade e pela condição do indivíduo no meio em que vive: à
individualidade, cabe um espaço de movimentação e de exercício das próprias
vontades. Conforme as palavras de Goethe citadas por Agnes Heller em seu livro O
cotidiano e a história, a “condução da vida” pode acontecer na construção da
hierarquia da cotidianidade. E essa possibilidade existe dentro das obras literárias.
Aos escritores cabe a condição de determinar até que ponto suas personagens
viverão cada momento da vida cotidiana, suas particularidades e a sua inserção
dentro de uma universalidade:
49
A condução da vida supõe, para cada um, uma vida própria, embora
mantendo-se a estrutura da cotidianidade; cada qual deverá
apropriar-se a seu modo da realidade e impor a ela a marca de sua
personalidade. [...] E é a condução da vida porque sua perfeição é
função da individualidade do homem e não de um dom particular ou
de uma capacidade especial (HELLER, 1972, p. 40-41).
Sob essa ótica, a compreensão da vida cotidiana consiste em
adentrar o lado sensível e prático das relações do vivido e do concebido, da
subjetividade, das representações e das imagens, contudo, sem perder de vista a
criticidade, a historicidade e a contextualidade.
Como um dos movimentos que marcou e que marca a modernidade,
a cotidianidade apresenta-se como ponto fundamental nas produções literárias,
especialmente nas crônicas. E permite que os fatos miúdos e corriqueiros ganhem
importância e mudem a ênfase das produções artísticas, estabelecendo a
capacidade de traçar o perfil dos homens e do mundo por meio de uma exposição
acessível, leve e estimulante.
E ainda, conforme afirmou Carlos Drummond de Andrade, à crônica
não cabe tratar de assuntos graves ou sérios, isso deve ficar para o jornalismo
objetivo. Ela até pode portar-se a isso, no entanto, deve estar muito mais
preocupada em apresentar-se com emoção e com sensibilidade, do que por meio da
objetividade e da tensão que recaem, respectivamente, sobre o jornalismo e sobre a
literatura.
Em resposta a um leitor, no texto “O frívolo cronista”, o autor declara
que, para ele, a crônica constitui:
[...] a pausa, o descanso, o refrigério, no desmedido afã de
racionalizar todos os atos de nossa vida (e a do próximo) [...] Tão
compensatória é essa pausa que o inútil acaba por se tornar da
maior utilidade, exagero que não hesito em combater, como nocivo
ao equilíbrio moral [...] É preciso que no meio dessa catadupa de
desastres venha de roldão alguma coisa insignificante em si, mas
que adquira significado pelo contraste com a monstruosidade dos
desastres (DRUMMOND, 1984, p. 178-180).
Afinal, tratar de assuntos da vida cotidiana implica em abordar temas
concernentes à realidade humana, portanto, compatíveis às expectativas dos
leitores. Assim, cotidiano e crônica fundem-se numa mesma perspectiva: a de
reinventar a vida por meio dos acontecimentos diários.
50
2.3
A
S
A
RTES DE
F
AZER E O
L
UGAR EM QUE AS
P
RÁTICAS
C
OTIDIANAS
A
CONTECEM
As práticas cotidianas constituem aquilo que podemos chamar de
procedimentos. Essas artes de fazer são próprias a cada indivíduo e acontecem em
momentos diversificados e nos mais inusitados espaços. São esquemas de
realizações humanas que acabam por apresentar, delimitar ou definir a
personalidade das pessoas nos ambientes em que as mesmas transitam,
independente do tempo em que acontecem.
Rachel de Queiroz, em sua crônica “Cena carioca”, do livro Terras
Ásperas, de 1993, apresenta ao seu público leitor um exemplo de experiência que
pode ser comum a muitos sujeitos. A cena em questão corresponde ao encontro de
quatro amigos em um ambiente em que muitas personalidades se encontram e se
confrontam:
Eram quatro senhores sentados em torno da mesa do botequim.
Botequim, essa instituição perseguida pelas famílias, pelas esposas,
pelos padres, pelos delegados, por tudo que fale em nome da lei e
da ordem ele é tão velho quanto o homem sobre a face da terra.
No tempo das cavernas, os senhores trogloditas deviam se reunir
em torno da trempe do fogo, pelas noites frias, fazendo experiências
com chás de ervas e suco de frutas brabas, nos quais iam
descobrindo efeitos inebriantes. [...] E enquanto isso, iam
decantando, cozinhando; imagine o triunfo do mulherio vendo, de
repente, à noite, os homens começarem a cantar, a dançar, a dizer
bobagem – enquanto, à luz da candeia de sebo, elas batiam e
amaciavam o couro cru e, com rudes agulhas de osso, tentavam
costurar umas tangas! [...] Dado o devido desconto, as coisas não
mudaram, passado um milhão de anos. Os homens continuam
bebendo nas suas rodas exclusivas de botequim; e apesar da
liberação feminina, a presença da mulher ainda é mal aceita nessas
rodas, salvo quando ela comparece como puro objeto de
entretenimento (QUEIROZ, 1993, p. 21).
A cronista aborda uma cena que compreende a realidade de
algumas pessoas. O fato de amigos se encontrarem em bares e suas mulheres não
poderem participar desse momento, certamente é um evento que acompanha a
humanidade. Trata-se de uma realização que, por sua constituição, acaba
delimitando a concepção que se pode efetuar a respeito da personalidade daqueles
que vivem essa verdade.
A realidade da vida cotidiana é uma realidade compartilhada com
outros. A partir do momento em que as situações vão acontecendo diariamente,
51
quer seja nos espaços públicos ou nos espaços privados, os fatos o reconhecidos
e vivenciados pela sociedade. Todos os fazeres que cercam e que acometem parte
da vida dos indivíduos são partilhados e auxiliam na elaboração da prática do
conhecimento de cada pessoa que compõe a cotidianidade.
De que forma, então, um experimenta, conhece, confronta e interage
com o outro na vida cotidiana? Segundo Peter Berger e Thomas Luckmann, “a mais
importante experiência dos outros ocorre na situação de estar face a face com o
outro, que é o caso prototípico da interação social. Todos os demais derivam deste”
(1976, p. 47). De tal modo, essa interação proveniente da cotidianidade possibilita,
além do conhecimento de si mesmo, o conhecimento do outro, daquele que divide
os espaços e algumas circunstâncias com os seus interlocutores da vida diária.
É possível estabelecer diferenças entre esses modos de experiência
com o outro nos pequenos fragmentos diários. É possível, também, determinar o tipo
de pessoa que atua em uma sociedade partindo das suas atitudes cotidianas. As
artes de fazer compreendem uma parcela considerável e significativa na
apresentação dos indivíduos e na possibilidade de se conseguir determinar
coerência no espaço em que o mesmo atua. O cotidiano, como conjunto de
atividades aparentemente modestas, como conjunto de produtos, de procedimentos
e de obras bem diferentes dos seres vivos, constitui um domínio no qual a vida
produtiva e criadora se projeta, determinando, assim, novas criações, novas
possibilidades de conhecimento dos sujeitos, de suas particularidades e de seus
anseios. Na literatura, os escritores possibilitam aos seus leitores um momento de
interação e até mesmo de descobertas, quando diante das personagens, nos mais
diversificados ambientes e nas mais inusitadas ou simples situações.
O cotidiano é o que de mais humilde nas projeções individuais.
Entretanto, é o que garante a solidez das práticas diárias. E, onde quer que sejam
exercitadas, suas concretizações correspondem a não menos que possibilidades de
manifestações capazes de nos apresentar desde a mais pacata criatura, aas mais
insólitas personagens.
Desconsiderar o que acontece no dia-a-dia é o mesmo que, segundo
Michel de Certeau, não ponderar o que o autor denomina de “poesias ignoradas”,
poesias diárias que auxiliam na descoberta do mundo e das pessoas. Isso acontece,
quando, em função da mesmice causada pela vida diária, certas estranhezas, certas
52
simplicidades e algumas peculiaridades da cotidianidade acabam passando
despercebidas.
Essas artes de fazer, esses procedimentos praticados no dia-a-dia,
que devem ser prestigiados, acontecem tanto nos espaços públicos quanto nos
espaços privados. No espaço público, as pessoas que caminham pelas ruas,
principalmente das cidades modernas, geralmente praticam tal atividade de forma
automática. No entanto, são esses mesmos transeuntes que fazem acontecer os
fatos e que permitem a criação dos textos a partir de suas ações: tendo como ponto
de partida os atos dos sujeitos, as histórias o escritas. Segundo Certeau, é no
espaço público que tudo começa a se desenvolver e a dar forma para os
acontecimentos, para os indivíduos e para a própria sociedade. É nesse espaço que:
Tudo se passa, como se uma espécie de cegueira caracterizasse as
práticas organizadoras da cidade habitada. As redes dessas
escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história
múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de
trajetórias e em alterações de espaços: com relação às
representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente [...]
(1994, p. 171).
Sobre o espaço privado, quanto maior se torna a relação do homem
com o espaço público, com o espaço compartilhado, maior se torna, também, a sua
relação com o seu espaço íntimo e particular. Da mesma forma que as situações
acontecem nos ambientes públicos, nos particulares, nas relações com a própria
casa, com o quintal, com o bairro, com a vizinhança, etc., os acontecimentos vão
igualmente se formando. Sob a perspectiva de Pierre Mayol,
Diante do conjunto da cidade, atravancando por códigos que o
usuário não domina, mas que deve assimilar para poder viver aí, em
face de uma configuração dos lugares impostos pelo urbanismo,
diante dos desníveis sociais internos ao espaço urbano, o usuário
sempre consegue criar para si algum lugar de aconchego, itinerários
para o seu uso ou seu prazer, que são as marcas que ele soube, por
si mesmo, impor ao espaço urbano (1996, p. 41-42).
Dessa forma, tanto nos espaços públicos quanto nos espaços
privados, a cotidianidade ganha força nos atos praticados pelos indivíduos. Por
intermédio de sensíveis prosadores, que conseguem retirar do que é miúdo, do que
é fragmentado e do que, aparentemente, parece pequeno, os fatos da vida cotidiana
53
configuram-se a essência para muitos escritos. Enriquecendo as páginas literárias,
as cenas do cotidiano constituem importante aspecto na construção das
personagens, das suas características, das suas peculiaridades, da sociedade e,
conseqüentemente, do mundo.
Se o cotidiano é crivado de tensões e de movimentos (permanências
e transformações), e funciona como um campo de múltiplas possibilidades e de
intersecções que se aproximam, se diluem e se elevam, isso permite a afirmação de
que o estudo da cotidianidade oferece subsídios para a determinação da
espacialidade dos indivíduos numa localização e numa dimensão. De tal modo, se
por um lado o que faz parte do cotidiano é considerado insignificante e banal, por
outro, fornece a base para a sustentação de uma sociedade, tendo em vista que
permite a reprodução dos pequenos instantes que constituem e que consagram a
caracterização de cada ser humano, dos seus ambientes, das suas práticas e de
suas realizações.
54
3 O SUJEITO E O TEMPO: FALANDO SOBRE A VELHICE.
Não é fácil imaginar que o próprio corpo, cheio de
frescor e de sensações prazerosas pode tornar-se
lento, cansado, torpe. Não é possível imaginá-lo,
nem no fundo se quer imaginar [...]. De uma
maneira consciente ou inconsciente, as pessoas
resistem por todos os meios à idéia de sua própria
velhice e de sua própria morte.
(Norbert Elias)
3.1
A
V
ELHICE
:
P
ARTICULARIDADES DE UMA
C
ONDIÇÃO
I
NCONTESTÁVEL
Um destino. Não como encarar a senilidade sem a consciência
de que o ato de envelhecer é inerente a cada indivíduo. Trata-se de uma realidade
definida, no entanto, repleta de indefinições. É um fenômeno biológico: o organismo
do homem que chega à senescência apresenta certas singularidades; e, também,
psicológico: determinados comportamentos nessa fase são considerados
característicos e próprios das pessoas de idade avançada. Como em todas as
situações humanas, a velhice “tem uma dimensão existencial: modifica a relação do
indivíduo com o tempo e, portanto, sua relação com o mundo e com sua própria
história” (BEAUVOIR, 1990, p. 15). É um momento de perdas, de restrições e de
transformações:
Os velhos e aquêles que ultrapassaram a flor da idade ostentam
geralmente caracteres quase opostos aos dos jovens; como viveram
muitos anos, e sofreram muitos desenganos, e cometeram muitas
faltas, e porque, via de regra, os negócios humanos são mal
sucedidos, em tudo avançam com cautela e revelam menos fôrça do
que deveriam. Têm opiniões, mas nunca certezas. Irresolutos como
são, nunca deixam de acrescentar ao que dizem: ‘talvez’,
‘provàvelmente’. Assim se exprimem sempre, nada afirmam de modo
categórico (ARISTÓTELES, 1964, p. 139).
Nessa fase, como em todas as outras pelas quais o sujeito passa ao
longo de sua vida, o homem não vive em seu “estado natural”, pois, na velhice,
como em qualquer outra idade, seu estatuto e sua condição de vida são impostos
pela sociedade à qual o mesmo pertence. Em todas as etapas de sua existência,
55
especialmente durante as passagens de uma à outra, as incertezas e as vidas
são marcantes. Porém, o medo de pensar no futuro e de aceitar a passagem do
tempo acontece de forma mais acentuada quando o que o homem a sua frente é
a velhice. Isso, porque a questão da senescência está intimamente ligada às perdas,
às restrições e a certas regressões, que são atribuídas aos seres humanos por uma
sociedade que, em sua maioria, abandona seus velhos à própria sorte: “Os velhos
têm de lidar com a falta de relacionamento social, cultural e político, que o mundo
novo é difícil e a própria geração está morrendo ou já morreu” (GUIDIN, 2000, p. 64).
Sob a perspectiva de Márcia Lígia Guidin, entender e explicar a
velhice consiste em uma situação delicada, pois se trata de uma condição suscetível
de diferentes formas de interpretação. Segundo a autora, a mais convincente das
explicações diante da dificuldade de se compreender a questão da idade avançada
“está ligada à extensão das atividades sociais, intelectuais e profissionais da vida
adulta” (2000, p. 63), portanto, ao momento de maior atuação do indivíduo no meio
em que vive: compreende-se a vida adulta, aqui, conforme o conceito dado por
Ecléa Bosi em seu livro Memória e sociedade, como o período da vida em que o
sujeito se encontra em plena atividade profissional e integração social. Assim sendo,
a não concordância com essa nova forma de vida fundamenta-se no fato de não se
aceitar a velhice associada a uma solidão ideológica e cultural, a um período de
amortecimento e de deslocamento para um novo mundo, mundo este determinado
pela sociedade e por suas imposições diante do ser de terceira idade. Essa
realidade inversa é o que assusta e o que causa espanto quando o indivíduo se
perante essa nova posição.
Definir o que representa para o homem o ato de envelhecer é uma
tarefa extremamente difícil, por que não dizer, impossível, visto que todas as
situações que envolvem esse processo conduzem a uma série de mudanças, de
indefinições, de questionamentos e de dúvidas. A velhice não é um fato estático,
pelo contrário, é o resultado e o prolongamento de um processo. É o momento em
que alguns paradoxos se tornam mais acentuados e geram as indefinições que
cercam essa realidade: envelhecer compreende um ato de progresso e, ao mesmo
tempo, de regressão.
Para tentar elucidar esse e tantos outros pontos que norteiam a
questão da senilidade, cabe, primeiramente, pensar na velhice em sua totalidade:
ela não é apenas um fato biológico, mas, também, um fato cultural, que envolve não
56
somente as mudanças físicas e comportamentais geradas em função do
envelhecimento do corpo. Envolve, igualmente, a postura da sociedade em que o
indivíduo atua. Conforme Simone de Beauvoir (1990, p. 345), “a velhice é o que
acontece às pessoas que ficam velhas [...]”, portanto, é o destino de todos aqueles
que ultrapassam a infância, a adolescência, a juventude e a fase adulta. Uma
“condição incontestável”, que não pode ser desconsiderada por aqueles que chegam
a essa fase e por todas as demais pessoas:
Morrer prematuramente, ou envelhecer: não outra alternativa. E,
entretanto, como escreveu Goethe: ‘A idade apodera-se de nós de
surpresa.’ Cada um é, para si mesmo, o sujeito único, e muitas vezes
nos espantamos quando o destino comum se torna o nosso: doença,
ruptura, luto (BEAUVOIR, 1990, p. 347).
Mesmo diante das certezas (porque também há certezas nesse
processo) que permeiam a vida dos idosos, a aceitação desse novo estilo de vida
não acontece sempre de forma tranqüila e pacata. Conviver com as doenças que
rondam a senescência, aceitar as rupturas com o mundo e com os seres e pensar
na morte como uma condição concreta, situações que se tornam mais prováveis
com a aquisição da idade, o é uma questão bem-vinda pelos indivíduos. Por mais
que se tente estabelecer um mínimo de condições para enfrentar o período senil, as
inseguranças que perpassam essa fase estão sempre presentes.
Todas as circunstâncias que envolvem esse momento acabam
sendo interiorizadas pelo sujeito, que tende a reagir a elas. De diversas maneiras,
cada indivíduo cria uma forma de conviver com a sua nova realidade. Não há
alternativa: envelhecer, até que algo venha a interromper esse processo, é o destino
de todos! A aparência do corpo e do rosto, a agilidade nos movimentos e nas
reações, o ritmo e a freqüência com que as atividades são realizadas dão a noção
real de que tal fato está acontecendo. Simone de Beauvoir (1990, p. 372) afirma
sobre essa questão que “ser velho é lutar contra a velhice”, e também contra todas
as surpresas, todos os contratempos, os aborrecimentos e os desconfortos, além da
descoberta das alegrias que essa nova condição pode oferecer a cada pessoa.
Esta é uma nova forma de vida que o homem passa a enfrentar e
precisa vivenciar durante a sua existência. Cada um carrega dentro de si uma carga
profunda de valores, e isso também acontece em relação a sua senilidade: descobrir
as agruras e as fortunas dessa fase é uma tarefa, antes de mais nada, particular.
57
Ecléa Bosi, em Memória e sociedade (1998), afirma ser a velhice
uma questão natural, no entanto, determinada pelo outro, por aquele que participa,
direta ou indiretamente, da vida do ser que está chegando à terceira idade. Assim,
esse período compreende, de acordo com a autora, um dos momentos em que a
crise de identificação torna-se mais evidente e marcante:
O velho sente-se um indivíduo diminuído, que luta para continuar
sendo um homem. O coeficiente de adversidade das coisas cresce:
as escadas ficam mais duras de subir, as distâncias mais longas a
percorrer, as ruas mais perigosas de atravessar, os pacotes mais
pesados de carregar. O mundo fica eriçado de ameaças, de ciladas.
Uma falha, uma pequena distração são severamente castigadas.
Para a comunicação com seus semelhantes precisa de artefatos:
próteses, lentes, aparelhos acústicos, cânulas (BOSI, 1998, p. 79).
Conforme Ecléa, a senescência caracteriza-se como o período em
que a impotência de transmitir e de poder trocar experiências acontece porque os
meios de comunicação com o mundo não funcionam com tanta eficiência. Aos
velhos não cabem mais causas que transcendem a sua condição e que dão
significado aos atos cotidianos. Dessa forma, o fato de não se permitir ao idoso estar
engajado em algo acaba por determinar a degradação desse indivíduo, que, vendo
suas forças esgotadas e o distanciamento das ações rotineiras a que até então era
acostumado, sente que o sentido de sua vida esmorece quando a idade lhe vai
chegando.
Por vezes, a sociedade rejeita seus velhos e não oferece nenhuma
condição de sobrevivência àquilo que faz parte de sua produção enquanto ser
atuante em um meio. Quando a força de trabalho diminui, o idoso não é mais
produtor nem reprodutor. Se pertence a uma classe favorecida, defende-se pelo
acúmulo de bens. No entanto, se a sua situação não compreende uma posição
favorável dentro da sociedade, esta lhe imprime um futuro tão incerto quanto se
possa pensar:
A moral oficial prega o respeito ao velho, mas quer convencê-lo a
ceder seu lugar aos jovens, afastá-lo delicada, mas firmemente dos
postos de direção. Que ele nos poupe de seus conselhos e se
resigne a um papel passivo. Veja-se no interior das famílias a
cumplicidade dos adultos em manejar os velhos, em imobilizá-los
com cuidados para ‘seu próprio bem’. Em privá-los da liberdade de
escolha, em torná-los cada vez mais dependentes ‘administrando’
58
sua aposentadoria, obrigando-os a sair de seu canto, a mudar de
casa [...] (BOSI, 1998, p. 78).
Quando o interesse pelos idosos passa a ser meramente como um
objeto de exploração, firma-se um dos grandes problemas que cerca essa etapa da
vida dos indivíduos: as sociedades se aproveitam dessa situação e desenvolvem
meios de exploração contínua dessa condição. O aparecimento de clínicas de
repouso e de tratamento, por exemplo, em sua grande maioria, tornou-se uma forma
de fazer as pessoas de idade avançada pagarem caro por um cuidado que,
comumente, deixam de ter em casa, e que, raramente, encontram nesses lugares
que se dizem especializados nesse sentido. Quando a própria família desampara
seus velhos, independente de ser uma vontade ou falta de opção, alguém tem de
assumir a responsabilidade por essas pessoas, que, em grande parte, não
conseguem se manter sozinhas. Daí a possibilidade de lugares como esses
passarem a fazer parte do mundo senil e, por geralmente estarem desamparados,
os idosos ficam à mercê de instituições que têm total liberdade na decisão dos tratos
para com os mesmos.
Apesar de as pesquisas apontarem para uma realidade nada
confortável aos idosos e, em sua maioria, estes encontrarem-se entregues à
vontade e à assistência de terceiros, começa a ser trabalhada, de forma mais
contundente, a questão do cuidado com os senis. Não se pode desconsiderar o
momento em que a sociedade se encontra. Segundo os últimos dados do IBGE, a
taxa de número de idosos, que é de 5,4% da população brasileira (estimada em 157
milhões de pessoas), tende a aumentar. Até o ano 2020, atingirá uma média de 9%.
Esse aumento de senis na população mudará, sem dúvida, o perfil do país, que
precisará rever as suas prioridades.
Perante esses dados, a sociedade começa a se mexer. Mesmo que
ainda diante de tanto desrespeito e descuido em relação aos velhos, quem se
preocupe em proporcionar o mínimo de condições para que os senis tenham um fim
de vida com dignidade. Algumas casas de repouso e clínicas geriátricas para a
terceira idade oferecem atividades de fisioterapia, de psicologia, hidroginástica,
laborterapia e atividades de lazer. A biodança, uma combinação de ginástica com
baile, é praticada em associações e em ONGs destinadas ao cuidado dos muitos
anciãos que compõem, hoje, a cotidianidade.
59
Danças de salão são oferecidas por instituições como o SESC
(Serviço Social do Comércio) e o SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem
Nacional), com o intuito de promover a interação das pessoas idosas entre si e,
conseqüentemente, com o meio em que vivem. Além do mais, atividades artesanais
e profissionalizantes como crochê, pintura, tricô, bordado, carpintaria e outras são
praticadas em oficinas que possibilitam a inclusão de especialidades na extensa vida
curricular dos senescentes.
Excursões e viagens dirigidas também são promovidas por igrejas e
por outras instituições para permitir que os idosos não percam o contato com o seu
mundo e com a sua realidade. Até mesmo a prática de esportes tem se tornado uma
constante na vida das pessoas da terceira idade, uma prova disso é a Associação
dos Veteranos de Basquete do Brasil (AVBB), criada em Fortaleza em 1985, com o
objetivo de levar o esporte para a vida toda. Na AVBB a idade-limite para começar é
35 anos, mas o término depende da vontade de cada jogador. “Temos jogadores de
80 anos, a idade passa, mas o basquete não. Este é um exemplo a ser seguido
pelos jovens atletas”, diz Nilo Machado Pereira, 65 anos, presidente da AVBB.
Tudo tem acontecido com a finalidade de que medidas realistas
sejam tomadas para que o sistema de saúde e previdenciário do país sofra uma
mudança aceitável, e funcione de forma satisfatória, pois é por meio de atividades
físicas, intelectuais, artísticas, profissionalizantes e de lazer que a velhice poderá ser
enfrentada de uma maneira mais tranqüila e saudável. E, dessa forma, que o
envelhecimento aconteça com decência, mesmo que muitos passos ainda devam
ser dados para que o país atinja a sua maturidade.
Outra demanda que assombra o período senescente é a
aposentadoria. A quantia e a idade para o recebimento de tal benefício variam de
um lugar para o outro. Porém, o que é certo em qualquer uma dessas circunstâncias
é que, geralmente, chegam tarde, quando não muito mais o que se fazer para
aproveitar o benefício em questão. O dinheiro arrecadado mensalmente acaba
sendo usado para gastos com problemas de saúde, muitos deles, causados por
questões psicológicas, devido à solidão e ao abandono que os velhos enfrentam.
Outras vezes, devido à falta de atividade imposta aos idosos. Sem maiores chances
de exercer algum ofício dentro de um grupo social e sem o amparo da própria
família, a velhice passa a ser uma fase de desgaste emocional, físico e mental. E, de
acordo com Márcia Lígia Guidin (2000, p. 63), passa a ser reconhecida como o
60
momento em que “dentre as possíveis marcas gerais da velhice estão o
reconhecimento e a aceitação da degeneração física”, o que acaba por ocasionar o
ostracismo senil:
O Estado fixa a idade em que o trabalhador tem direito a uma
aposentadoria; essa idade é também a que os empregadores
públicos e privados escolhem para despedir seu pessoal, e, portanto,
a idade em que o indivíduo passa da categoria dos ativos à dos
inativos (BEAUVOIR, 1990, p. 276).
Surgem, então, mais alguns questionamentos: Quando acontecerá
essa mudança? Que valores serão pagos? Para que, em tal altura, servirão tais
benefícios? As respostas, certamente, serão diferentes em cada sociedade. O que é
possível afirmar é que, independente do município, do estado ou do país, a
sociedade leva em conta, primeiramente, os seus próprios interesses, pois o que
tem acontecido rotineiramente é o mero interesse pelos idosos como objeto de
exploração. Na maioria das vezes, por existirem em grande número dentro das
sociedades, os velhos m sido alvo de pessoas inescrupulosas que acabam por se
aproveitar da condição desses sujeitos e do fato de os mesmos não terem, na maior
parte das situações, alguém que olhe por eles.
Outro ponto importante que aflige a senilidade está centrado na
questão sexual. O fim dos desejos sexuais é um fator que preocupa, também, as
pessoas que entram na terceira idade. Atingindo a senescência, ocorre a diminuição
(em alguns casos, a supressão) dos desejos sexuais:
Nos dois sexos, a pulsão sexual situa-se no limite psicossomático;
não se conhece exatamente a maneira pela qual ela está
condicionada pelo organismo. O que se constata [...] é a involução
das glândulas sexuais, consecutiva à senescência, acarreta a
redução ou mesmo o desaparecimento das funções genitais. As
reações aos estímulos eróticos são mais raras, mais lentas, ou
inexistentes; o sujeito atinge mais dificilmente o orgasmo, ou não
consegue atingi-lo; e o homem vê diminuir ou desaparecer suas
possibilidades de ereção (BEAUVOIR, 1990, p. 389-390).
Sob esse aspecto, e defendendo a condição senil, Freud afirma que
a sexualidade não está ligada somente ao órgão genital. A energia que cada um
dispõe quanto à sua realidade sexual é que irá transformar as suas reações. Em
todo esse processo uma intencionalidade, e por que não dizer, totalidade, vivida
61
pelo corpo de cada ser humano, quer na senescência ou em qualquer outra fase.
Mais uma vez, as condições de vida de cada sujeito serão fatores determinantes
para que se reverta ou não o que lhe vem como sina.
A viuvez, por exemplo, pode, em algumas ocasiões, causar certos
traumas aos idosos em relação à sua sexualidade. A sociedade, geralmente
hipócrita, cobra dos mesmos uma moral que não lhes permite uma “extravagância
senil”. Então, por assim dizer, basta lembrar que suas tentativas de aventuras
sexuais acabam por dar em nada, e o fracasso vem a acarretar em mais
desilusões com a situação. Biologicamente falando, a mulher é menos atingida
sexualmente na velhice que o homem. Porém, estes têm uma intensidade maior de
atividades sexuais que as mulheres até atingir a senilidade. Mas, ambos terminam
por sentir esse choque, pois, aceitar esse desgaste seja, talvez, mais uma das
grandes batalhas da velhice.
Encarar o período senil consiste em deixar para trás um passado
que se torna cada vez mais distante, e refletir sobre um futuro que se apresenta
muito limitado, incerto e inconstante, pois,
a idade modifica nossa relação com o tempo; ao longo dos anos,
nosso futuro encolhe, enquanto nosso passado vai-se tornando
pesado. Pode-se definir o velho como um indivíduo que tem uma
longa vida por trás de si, e diante de si uma expectativa de sobrevida
muito limitada (BEAUVOIR, 1990, p. 445).
Aceitar e conviver com a senescência é, por conseguinte, uma forma
de perceber que a própria vida está ficando para trás. E é nas lembranças e nas
memórias que os idosos conseguem ultrapassar as barreiras do tempo. É por meio
dessas situações que o ser de terceira idade consegue tornar-se sensível a qualquer
outra fase da vida dos sujeitos. Sua memória lhe permite repensar toda a sua
existência. E, considerando que um velho deixa muitas coisas para trás, inclusive
seus mortos, pode-se esperar que este busque, sempre, por meio das memórias e
das lembranças, manter (ou romper) uma ligação com o seu próprio passado e com
a sua própria história.
Sobre as lembranças dos velhos, Ecléa Bosi afirma o seguinte:
62
Nelas é possível verificar uma história social bem desenvolvida: elas
atravessaram um determinado tipo de sociedade, com
características bem marcadas e conhecidas; elas viveram quadros
de referências familiar e cultural igualmente reconhecíveis: enfim,
sua memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo
mais definido do que a memória de uma pessoa jovem, ou mesmo
adulta, que, de algum modo, ainda está absorvida nas lutas e
contradições de um presente que a solicita muito mais intensamente
do que a uma pessoa de idade (BOSI, 1998, p. 60).
Ao se apropriar do passado por meio das suas memórias, os idosos
não estão simplesmente fugindo das lides cotidianas, entregando-se às delícias do
sonho ou mesmo descansando. O que ocorre nessa situação é uma tentativa de
ocupação conscienciosa e necessária do próprio passado, da substância mesma da
sua vida, pois, em algumas circunstâncias, o velho o se contenta em esperar que
os dias aconteçam e que as memórias venham e o despertem. Ele procura,
interroga, investiga e fala sobre aquilo que lhe permite rememorar o que não mais
parece estar ao seu alcance, mesmo que isso lhe cause sofrimento e certo desgaste
emocional.
A memória dos velhos existe para que o passado seja revivido. Uma
vez “libertos” das atividades profissionais, sociais e familiares, cabe aos senis não
perderem o contato com a gênese de sua vida por meio das lembranças. Ao buscar
na memória o passado, o idoso coloca-se diante da “religiosa função de unir o
começo ao fim, de tranqüilizar as águas revoltas do presente alargando suas
margens” (BOSI, 1998, p. 82). Um mundo social rico em sua diversidade, que
grande parte das pessoas não conhecem e nem terão a oportunidade de conhecer,
pode ser (re)descoberto por meio das memórias dos velhos.
E, por mais que se deva à memória coletiva, é o sujeito, na solidão
da sua individualidade e em suas próprias lembranças que recorda. Cada um é o
responsável pela memorização do que lhe compete e fica no passado. Cada
indivíduo é único no processo de identificação daquilo que é significativo dentro de
um “tesouro comum”. Logo, aos velhos cabe a função de recobrar e retomar
circunstâncias passadas que poderão se tornar expressivas para a construção do
presente, mesmo que o que venha à tona sejam lembranças que os façam perceber
certas perdas, algumas mudanças e, conseqüentemente, impossibilidades futuras.
Indubitavelmente, é por meio do passado que o ser humano
consegue se conhecer em sua totalidade. Mas, na grande maioria das vezes, e em
63
função das condições oferecidas pela sociedade, o confronto gerado entre o
passado e o presente pode se tornar um grande conflito na vida dos velhos.
Repensar sua existência, principalmente a infância e a juventude, pode transformar-
se em algo constrangedor e, muitas vezes, traumático. Na medida em que os idosos
não vivem bons momentos em sua senescência, considerando que a sociedade não
lhes as condições necessárias (e mínimas) para a sua sobrevivência, torna-se
até simples entender a posição do idoso quanto a sua situação. O tempo dos velhos
é um tempo imposto. E estes têm a consciência de que lhes restam poucos anos
para viver, destarte, poucas possibilidades de reversão ou de tentativa de mudança
de determinadas situações:
Última etapa de um constante progresso, a velhice seria o mais alto
ponto de perfeição da existência. Mas, na verdade, não é assim que
esta última se desenrola [...] A cada instante ela se totaliza, mas a
totalização nunca é acabada. A ação humana constitui ao mesmo
tempo o todo e o dilaceramento do todo (BEAUVOIR, 1990, p. 469).
Conforme afirmou Montaigne
7
, é por essas ocorrências que a nossa
caminhada nunca é um progresso certo, mas antes, um movimento titubeante. Deste
modo, de acordo com as idéias de Beauvoir, a “velhice não é a súmula de nossa
vida”, antes disso, consiste na possibilidade de se conviver com um tempo que,
simultaneamente, oferece e retira o mundo de nossas mãos: “Aprendemos e
esquecemos, enriquecemo-nos e nos degradamos” (BEAUVOIR, 1990, p. 469).
E essa degradação coloca em cheque outra questão fundamental na
vida do idoso: sua relação com a morte. Assim, mais uma vez entra em cena o
contexto social, que é o grande responsável pela ligação que será estabelecida
entre a morte e a velhice. Em algumas sociedades, em função das péssimas
condições de sobrevivência, as pessoas se deixam levar com indiferença perante o
fim da vida, isso porque as circunstâncias lhes causam certa aversão pela sua
existência. Dessa forma, a morte não é enfrentada como um problema. Em outras,
os sujeitos cercam-se, na velhice, de uma valorização extremada, a ponto de
7
Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592), escritor e ensaísta francês considerado por
muitos como o inventor do ensaio pessoal. Nas suas obras e, mais especificamente nos
seus "ensaios", analisou as instituições, as opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os
dogmas da sua época e tomando a generalidade da humanidade como objeto de estudo. É
considerado um céptico e humanista.
64
enxergar o período senil como algo desejável, embora ainda haja indivíduos que,
independente das circunstâncias, prefiram escapar-lhe.
As atitudes diante do fim da vida variam de acordo com as idades: a
criança perturba-se com a revelação da morte; o jovem não aceita essa condição,
mesmo sendo o mais capaz de conviver e enfrentar essa situação, pois, não hesita
em arriscar-se e desafiá-la. O adulto é um pouco mais prudente, por estar preso a
interesses (trabalho, família, bens etc.), prefere resguardar-se e agir com maior
precaução.
para o velho, a morte deixa de ser aquele destino geral, abstrato
e distante que é para a maior parte dos indivíduos. Quando se chega à velhice, ela
se transforma em um acontecimento próximo e pessoal, ou seja, a idéia de
concessão de perpetuidade da vida deixa de ser uma ilusão e leva o idoso à
realidade que norteia a sua atual condição: todo velho sabe que morrerá logo, e isso
é algo certo na vida dos senescentes, até que a sua existência chegue ao fim. A
morte, assim como a velhice, pode ser então constituída como aquilo que é
intransponível, ela é o limite máximo das possibilidades, não como atingi-la nem
tampouco projetar-se contra ela. Ela é o que tem de ser: o fim.
Resumindo o que foi dito até então, e de acordo com Cícero, filósofo
que viveu antes de Cristo, há quatro razões possíveis e distintas que fazem a velhice
se tornar algo detestável, inconveniente e temível: ela afasta o indivíduo da vida
ativa, enfraquece o corpo, priva cada sujeito dos melhores prazeres e aproxima o
ser da morte. Mas, segundo Cícero, “razões possíveis”, pois a concretização de tais
fatos somente ocorrerá mediante a aceitação por parte de cada ser.
Segundo o filósofo, estar velho consiste em subtrair-se dos assuntos
públicos, afastar-se da pluralidade da cotidianidade. No entanto, não situações
que não possam ser resolvidas mediante apenas a inteligência ou a experiência?
Longe de ser passiva, a velhice pode ser atarefada, podendo ser ocupada em
atividades relacionadas ao passado e aos gostos de cada um. Ao envelhecer, o
indivíduo pode aprender, a cada dia, coisas novas, não se entregando aos
dissabores de um distanciamento da vida pública, basta-lhe o direcionamento dos
seus esforços àquilo que lhe é prazeroso e saudável.
Quanto às forças da idade, é na falta de vigor que, conforme Cícero,
está o segundo suposto inconveniente da velhice. Entretanto, poucos são os
homens que primam pela busca da força dos animais como o touro ou como o
65
elefante, por exemplo. Antes, “é preciso servir-se daquilo que se tem e, o importa
o que se faça, fazê-lo em função de seus meios” (CÍCERO, 1997, p. 25). De tal
modo, a velhice só será honrada na medida em que se fizer valer dos seus direitos e
não permitir que lhe roubem seu poder natural com cobranças descabidas e
impróprias. O que determinará a continuidade da existência será a consciência de
que o corpo envelhece, todavia, um espírito jovem perpetua uma boa vida.
Como terceiro agravante tido com freqüência como parte da
senilidade está a privação de alguns prazeres como o do sexo, da realização de
certas atividades e de determinados devaneios que não mais cabem aos idosos.
Entretanto, Cícero (1997, p. 39) acredita ser também mais um suposto problema,
visto que “os velhos não sentem mais tão intensamente aquela espécie de cócegas
que o prazer proporciona. É verdade, mas eles tampouco sentem falta disso. Não se
sofre por ser privado daquilo de que não se tem saudades” com tanta intensidade.
Há uma possibilidade de desvio de foco nessa nova etapa da vida. A esses prazeres
e a tantos outros, a velhice não representa um obstáculo insuperável, pelo contrário,
ela pode até convidar e encorajar a outros.
Após todas essas imposições senis, chega-se, talvez, ao ponto mais
temido diante do envelhecimento: a aproximação da morte. Um fato incontestável.
Não há dúvidas que pairem sobre essa afirmação. Contudo, após ter vivido por tanto
tempo (pois chegar à velhice tem se tornado uma dádiva para poucos), qual razão
levaria o ser de terceira idade a não aprender a olhar a morte de cima?!!! Por que
temê-la, se nem ao certo é possível saber se haverá ou não felicidade após a sua
concretização? Aliás, alguém pode estar seguro, até mesmo as crianças e os
jovens, de que estarão vivos até o anoitecer?!!!
Diante dessas colocações de Cícero, resta a cada sujeito
alcançar a velhice para verificar, por si mesmo, a justeza de cada uma dessas
palavras.
Logo, diante de todas essas colocações, cabe àqueles que cercam
os idosos fazer esse momento ser tranqüilo ou apavorador. O que não pode ser
admitido é que a sociedade negue aos seus velhos as mínimas condições de
sobrevivência e provoque nos mesmos a vontade da abreviação da vida, por meio
da morte que, na maioria das vezes, acontece precocemente em virtude das
decepções, do abandono, das doenças e das desilusões diante de um mundo
66
moderno conturbado e apressado, que não pode mais atender aos apelos, aos
desejos e às necessidades dos seus próprios velhos.
Portanto, conforme as colocações anteriores, a velhice não é uma
fase de definição concluída. Ao contrário, configura-se um momento de muitas
transformações, de perdas, de regressões e de novas vivências. Trata-se de uma
verdade experienciável que transcende todo o universo de cada sujeito. Uma
realidade inevitável, muitas vezes valorizada apenas por interesses políticos ou
sociais, o que denota aos senis certa revolta por estarem vivendo esse momento.
Cabe salientar que se trata de um período da existência diferente de tudo que se
viveu, que possui seu próprio equilíbrio (e desequilíbrio) e que deve deixar aberto ao
indivíduo um grande leque de possibilidades, e não se configurar, simplesmente,
como um momento de rupturas, de desligamentos e de transgressões contra si
mesmo.
Para que a velhice não seja vista com olhos de repulsa, é necessário
que a sociedade permita o mínimo de condições aos seus velhos, e faça que a
paixão pela vida continue a existir nas pessoas idosas. É preciso dar aos senis
condições para poderem “preparar” a sua velhice, não apenas proporcionando aos
mesmos uma situação econômica tranqüila, mas, e principalmente, permitindo que
seus dias sejam completos, que as suas ações estejam engajadas e que consigam
enxergar razões que os levem a acreditar na significância da sua existência.
Fechar os olhos para a questão da velhice é, conforme Beauvoir,
negar seu próprio destino e tentar fugir de um fato que diz respeito a todo ser
humano, independente de sua classe social, de sua raça, de seu credo ou de sua
cor. Todos ficarão velhos.
Dessa forma, conforme disse Carlos Drummond de Andrade, “se
procurar bem você acaba encontrando não a explicação duvidosa da vida, mas a
poesia (inexplicável) da vida”. Assim, que se encontrar na velhice o verdadeiro
sabor da “última gota do cálice”.
3.2
A
V
ELHICE E A
V
IDA
C
OTIDIANA
:
R
ETRATOS DA
R
EALIDADE
Sabe-se que a sociedade passa por transformações constantes e
ininterruptas. O mundo, moderno, acelerado e capitalista, comandado por pessoas
pouco preocupadas com os seus compatriotas, entrega os seus à própria sorte. E,
67
nessa desenfreada busca pela sobrevivência diária, destaca-se aquele que
consegue se manter em diante dessas mudanças. Qual a situação, então, do ser
de terceira idade nesse contexto? Em que condições vivem os idosos na
cotidianidade? Qual a real posição dos senis diante das adversidades diárias?
Enfraquecido, empobrecido, exilado no seu tempo, o velho
permanece, no entanto, o homem que era. Como consegue ele, no
dia-a-dia, arranjar-se com uma tal situação? Que chances lhe deixa
ela? Que defesas ele lhe opõe? Pode adaptar-se, e a que preço?
(BEAUVOIR, 1990, p. 549).
Perante todas essas indagações, encontram-se os idosos, pessoas
desprovidas de certas qualificações que não mais lhes são atribuídas em função das
inúmeras transformações pelas quais passam ao longo do decorrer de seus dias.
Quando diante das ltiplas facetas da vida cotidiana, de que forma o velho
consegue se adaptar? Isso realmente acontece? A sociedade e o meio
proporcionam condições de interação e de integração? O senescente consegue se
defender na presença de todas essas mudanças, cobranças e imposições? Todo o
seu esforço é recompensado? Até que ponto essa “luta pela sobrevivência” é válida?
O idoso deve mesmo pelejar pela sua aceitação na nova sociedade?
Segundo Beauvoir, a velhice deveria ser justamente o momento em
que o indivíduo fica mais “aberto ao mundo” e menos preocupado com as cobranças
impostas pela sociedade. Nesse período, o sujeito deveria ser dispensado das
obrigações com o futuro para poder viver mais tranqüilamente o tempo presente.
Essa seria a época do carpe diem, o momento de se colher o que se plantou.
Contudo, sabe-se que não é exatamente isso o que acontece. Num mundo
extremamente capitalista, surge a primeira barreira a ser transposta: vale aquele que
produz mais. Dessa forma, o velho, sendo visto como menos produtivo, sua
substituição acontecer por aqueles que são considerados mais jovens. A
desvalorização do idoso acontece de forma natural e iminente. Assim, a afirmação
feita por Agrippa d’ Aubugné
8
, comentada por Simone de Beauvoir (1990) em A
8
Escritor e poeta francês, nascido em 1552 e falecido em 1630, Théodore Agrippa d'
Aubigné foi condenado à morte quatro vezes, devido a sua ligação com os huguenotes
(seguidores da doutrina de Calvino) e, em 1620, refugiou-se em Genebra, onde permaneceu
até morrer. Destacam-se da sua obra o poema satírico Tragiques (publicado em 1616) e o
seu romance, igualmente satírico, Aventures du Baron de Foeneste.
68
Velhice de que esta seria a “estação do uso, e o mais dos labores” acaba sendo
falsa, pois,
a sociedade de hoje [...] concede lazeres aos velhos tirando-lhes
os meios materiais para aproveitá-los. Os que escapam à miséria e
ao desconforto têm que administrar um corpo que se tornou frágil,
predisposto à fadiga, freqüentemente deficiente ou tolhido por dores.
Os prazeres imediatos lhes são interditados, ou avaramente
dosados: o amor, a mesa, o álcool, o fumo, o esporte, a caminhada.
os privilegiados podem compensar, em parte, essas frustrações:
passear de carro em vez de caminhar, por exemplo (BEAUVOIR,
1990, p. 550).
E, mesmo esses ditos privilegiados não conseguem atingir
totalmente a satisfação, pois se sentem em desvantagem diante de tantas limitações
(naturais e impostas) que a idade e a sociedade lhes conferem. O tempo,
juntamente com as arbitrariedades das circunstâncias, “tomam” algumas
possibilidades do ser humano, daí a característica de se considerar que, à medida
que a senilidade vai chegando, tudo vai se tornando mais difícil e mais passível das
armadilhas da cotidianidade.
No contexto atual, a velhice acaba se transformando em algo
incômodo, pois a presença dos senis coloca os demais sujeitos em confronto com a
sua própria fragilidade e com a efemeridade da existência. Configura-se, nesse
caso, um problema sério por constituir um fenômeno natural humano que,
geralmente, é ignorado pelos indivíduos, que preferem não dispensar a sua atenção
a esse tipo de preocupação.
Em uma sociedade ideal (por que não dizer, idealizada), onde todos
pudessem ter condições de viver cada momento em sua plenitude, talvez a
cobrança aos idosos fosse menos rigorosa. Como a realidade é bem diferente da
idealização, para se manter uma ilusão de um “passado bem vivido”, acaba-se
negando a memória dos velhos ou, até mesmo, manipulando-a.
Outra circunstância que ronda o dia-a-dia da contemporaneidade é a
questão da gritante diferença de classe existente em nossa sociedade. Grande parte
da população brasileira pertence a uma classe mais carente, menos provida
financeiramente e trabalhadora, portanto, uma considerável parcela de pessoas
envelhece mais cedo em função das ocorrências atribuídas pelo cotidiano a que são
submetidas. Com isso, perdem, também, possibilidades de estudo. E, por mais que
69
os idosos sejam considerados sábios em função do seu tempo de vida, ainda assim
não são reconhecidos como pessoas cultas, pois, sem o acesso ao estudo, pouco
lêem, ou, são analfabetos.
Até mesmo os velhos da chamada classe alta, considerados sábios
em função do seu grau de instrução e de suas condições de acesso à cultura e ao
estudo, tampouco podem ser considerados velhos em sua plenitude. Estes
procuram sempre vestir-se bem, jovialmente, fazem academia, plástica e outras
intervenções que têm o intuito de apresentar à sociedade pessoas velhas que não
deixam transparecer em seu semblante que são realmente velhas.
A presença do “velho homem sábio”, aquele que conta as histórias
vividas e presenciadas por ele, que narra com desenvoltura aquilo que o rodeia e
que faz parte não somente de sua vida, mas também daqueles que o cercam, perde
suas forças e acaba praticamente se extinguindo na sociedade atual. De acordo com
Walter Benjamin,
quando se aproxima o fim, os cidadãos modernos são levados por
seus herdeiros a sanatórios ou hospitais. Entretanto, é digno de
observação que não apenas o conhecimento ou a sabedoria do
indivíduo, mas principalmente a sua vida vivida a matéria
formadora das estórias assume formas transmissíveis,
especialmente notáveis no moribundo. Assim como no fim da vida
uma seqüência de imagens se põe em movimento no íntimo da
pessoa composta das suas opiniões acerca dos outros e de si
mesmo –, cristaliza-se repentinamente em sua mímica e seus olhos
aquilo que lhe é inesquecível, atribuindo a tudo que é do seu
interesse aquela autoridade de que todos, mesmo os mais pobres
diabos, dispõem na hora da morte, perante os vivos (BENJAMIN,
1975, p. 70-71).
Essa autoridade, essa capacidade de fazer-se ainda atuante no
meio em que está inserido, de transmitir sabiamente os ensinamentos e as
experiências que adquiriu ao longo da vida acaba sendo podada ao senescente que,
muitas vezes, entrega-se às ilusões impostas pela sociedade. Além do mais,
sentindo-se vencido em meio a tantas limitações, rende-se aos apelos do mercado e
assume uma nova couraça, deixando de lado a sua posição de ser cultural, provido
de uma sabedoria estabelecida no decorrer de toda uma vida, para assumir uma
imagem que não a sua verdadeira: a de um homem modificado pelos sonhos dos
ícones da nova cultura.
70
Dessa forma, o que se estabelece em algumas circunstâncias é a
presença dos “sábios-sabidos-cultos” que não têm aparência de velhos, pois,
conforme afirmou Beatriz Sarlo (1997), por ser o sujeito um ser livre, e por ter ele a
oportunidade de ser cada vez mais livre, sente-se na condição de projetar o seu
próprio corpo: “Hoje a cirurgia plástica, amanhã a genética, tornam ou tornaram reais
todos os sonhos” (p. 25). Nesse contexto, a inconstante sociedade moderna busca
compensar as suas próprias frustrações naquilo que determina para os que nela se
encontram. E, nesse processo, estão também os idosos, que possibilitam ao
mercado a exploração de seus anseios e de suas angústias:
Hoje, não existe um território onde o mercado, com sua imponente
maré generalizadora, não esteja abrindo suas lojas. Sonham-se
objetos que transformarão nossos corpos, e este é o sonho mais feliz
e aterrorizante. O desejo, não tendo encontrado um objeto que o
satisfaça nem ao menos transitoriamente, encontrou na construção
de objetos a partir do próprio corpo o non plus ultra onde se reúnem
dois mitos: beleza e juventude. Numa corrida contra o tempo, o
mercado propõe uma ficção consoladora: a velhice pode ser adiada e
possivelmente – não agora, mas talvez em breve para sempre
vencida (SARLO, 1997, p. 31).
A primazia dos jovens acaba se tornando totalmente sustentável,
pois a juventude deixa de ser apenas uma idade, uma fase da vida, para constituir-
se “uma estética da vida moderna” (SARLO, 1997, p. 36). A infância praticamente
desaparece, diante da precocidade da adolescência, e a primeira juventude acaba
se estendendo até pouco mais dos trinta anos. De tal modo, a maior parte da vida se
desenvolve debaixo dos caprichos e das circunstâncias que rondam a mocidade
que, por sua vez, toma conta da situação e trata logo de impor a sua personalidade
sobre as demais pessoas.
E o que denota de todas essas situações acaba sendo o sumiço, no
dia-a-dia, da presença do ancião como um ser cultural. O velho bio, aquele que
inspirava conhecimento e sabedoria, desaparece da cotidianidade. Aos mais moços,
sobra apenas o distanciamento de sua futura realidade, e o preconceito contra a
velhice toma o lugar do respeito e da valorização: “O preconceito contra o velho no
país é mais forte do que o preconceito racial: incorporado sem crítica, envolve toda a
sociedade e é aceito pelas próprias pessoas de idade” (BARRETO, 1992, p. 24). E
esse distanciamento torna-se mais forte na medida em que a juventude transforma-
se no “lugar” em que todos os sujeitos querem estar e, no entanto, não são aceitos,
71
porque “os ‘jovens’ expulsam desse território os impostores, que não cumprem as
condições da idade e entram numa guerra geracional banalizada pela cosmética, a
eternidade qüinqüenal das cirurgias estéticas e das terapias new age (SARLO,
1997, p. 39).
Assim sendo, o mercado acaba criando uma farsa que toma conta
da vida dos senis que se deixam levar por essas ofertas, visto que, ao lado da
promessa de uma forma ideal de liberdade está, em contrapartida, a possibilidade
de exclusão. E, em consonância com Walter Benjamin, pode-se assegurar que para
essa geração que ainda usou o “bonde puxado por cavalos para ir à escola,
encontrou-se sob céu aberto em uma paisagem em que nada continuava como fora
antes, além das nuvens e debaixo delas, num campo magnético de correntes
devastadoras e explosões, o pequenino e quebradiço corpo humano” (1975, p. 64),
dificilmente essa adaptação acontecerá de forma convincente e satisfatória.
Certamente, diante de todas essas situações, pode ser afirmado que
a idade cronológica é um fator que está intimamente ligado à condição do indivíduo
no cotidiano em que ele atua. Não apenas como forma de se estabelecer a
periodização da vida como instrumento na determinação da transição de uma etapa
para outra, mas, como um meio de se estabelecer uma instituição social está o
curso da vida e o modo como cada um dos estágios pelos quais passa o sujeito
influencia o processo de individualização que sofrem as pessoas na
contemporaneidade.
Trata-se, aqui, de um artifício pertinente à modernidade: a
individualização tem no curso da vida a sua dimensão principal: “Uma forma de vida,
em que a idade cronológica era praticamente irrelevante, foi suplantada por outra,
em que a idade é uma dimensão fundamental na organização social” (DEBERT,
1999, p. 50-51). Nesse contexto social, a idade determina a participação dos sujeitos
em uma sociedade. Aos mais ativos, os jovens, os moços, aqueles capazes de
dominarem todas as suas capacidades físicas e mentais, o mundo abrir-se-á em
muitas possibilidades. Aos velhos, resta-lhes receber o que ainda lhes sobra como
participação no cotidiano, mesmo que as possibilidades sejam restritas e limitadas:
72
Estágios da vida são claramente definidos e separados e a fronteira
entre eles mais estritamente organizada pela idade cronológica. [...]
A institucionalização crescente do curso da vida envolveu
praticamente todas as dimensões do mundo familiar e do trabalho e
está presente na organização do sistema produtivo, nas instituições
educativas, no mercado de consumo e nas políticas públicas que,
cada vez mais, têm como alvo grupos etários específicos (DEBERT,
1999, p. 51).
Em suma, essa padronização pode ser considerada como uma
resposta às mudanças na economia e nas questões de valoração baseadas no
mercado de trabalho que, vendo seus trabalhadores envelhecer e perderem o seu
vigor, preocupou-se em estabelecer novos padrões de aceitação. De tal modo, as
fases de transição entre uma etapa da vida e outra passaram a acontecer em meio a
um momento de crise de identidade, ocasionando, mais uma vez, muitos dissabores
a que são submetidos os velhos da sociedade moderna.
Nessas condições, os próprios idosos passam a questionar-se sobre
a sua situação no contexto diário em que se encontram. Mesmo tendo sido
protagonistas de um passado ativo e digno de boas lembranças, a realidade que os
cerca acaba se transformando em algo que suprime tudo aquilo que viveram:
“Tudo toma, à medida que envelhecemos, o aspecto de uma lembrança, mesmo o
presente. Consideramo-nos a nós mesmos como já passados” (BEAUVOIR, 1990, p.
551). As imposições da vida diária conseguem superar os acontecimentos
passados, deixando aos velhos, como opção, tristezas e recordações. A esse
respeito, Simone de Beauvoir cita em seu livro A velhice um depoimento nostálgico
de Aragon
9
sobre esse sentimento de “frescor desaparecido do mundo” em
Roman inachevé:
Sinto-me sempre estranho entre os outros
Ouço mal, perco o interesse por tantas coisas,
O dia não mais tem para mim seus doces reflexos
cambiantes;
A primavera que retorna é sem metamorfose
Não me traz o peso dos lilases;
O perfume das rosas me faz crer que me recordo.
(apud BEAUVOIR, 1990, p. 551)
9
Louis Aragon (Paris, 3 de outubro de 1897 - Paris, 4 de dezembro de 1982) foi um poeta e
escritor francês. Em 1957 foi-lhe atribuído o Prêmio Lênin da Paz.
73
Sobrepõe-se, aqui, certa melancolia em função de não se encontrar
mais razões para agir, quando são vedadas ao ser de terceira idade as antigas
atividades a que antes tinha acesso.
Frente a um mundo atribulado, tumultuado e veloz, outras
conseqüências da senescência, a ausência de curiosidade do idoso e o desinteresse
por determinadas coisas, acabam sendo reforçados por seu estado biológico, que
não mais lhe permite certas atuações. De alguma forma, toda essa “agitação” acaba
causando fatiga quando é dispensada ao mundo qualquer atenção. Muitas vezes, o
senescente não tem mais forças nem mesmo para afirmar os valores que, durante
toda a sua vida, haviam dado sentido a sua existência. Quando tal fato acontece,
torna-se preocupante a reação do homem idoso, que pode levá-lo a uma total inércia
ou não, dependendo da sua condição intelectual e da sua própria condição na
velhice: se ela é mais favorecida, se o senil tem interesses polivalentes, mais
possibilidade terá de se readaptar a sua nova condição, mesmo que seja muito difícil
renunciar àquilo que, um dia, foi o centro de suas atenções:
Se um velho fica amuado com seu tempo, não encontra nele nada
que possa arrancá-lo de sua melancolia. Mas, mesmo que
permaneça atento ao que o cerca, a ausência de objetivo torna
sombria sua vida. [...] ‘A alma, não tendo mais objetivo, vítima por
inteiro do lazer, entedia-se’ (BEAUVOIR, 1990, p. 564).
A “desrealização” é um sentimento que pode tomar conta dos velhos
nesse momento. Dessa forma, alguns podem se entregar ao ostracismo e, de igual
modo, à desilusão. Sentindo que algumas atividades diárias (às vezes, muitas delas)
não mais têm necessidade da sua presença e da sua colaboração para o seu
desenvolvimento, nada mais passa a interessar a essas pessoas que, percebendo
que o mundo não mais os solicita, acabam sentindo-se em meio a um cenário
totalmente inerte em que eles mesmos parecem não ter mais forças para reagir.
Ainda nesse cenário da cotidianidade, há aqueles que alcançam
uma vida ativa por meio do trabalho, mesmo tendo consciência dos seus limites
atuais. Alguns conseguem, ainda que diante de certo desencanto, reverter parte de
toda a frustração gerada pelo próprio reconhecimento de seus limites. Há muitos que
obtêm a superação conforme vão atingindo certa idade. Entretanto, ainda existem
diversas pessoas idosas que apenas consideram as suas produções como uma
74
realização a mais da sua obra, ou seja, exatamente aquilo que deveriam fazer, nada
além do que o cumprimento daquilo que perpetraram a vida toda.
“Não é a morte que me desagrada, é a decadência” disse
Ballanche
10
. Assim, mesmo quando superam seus limites e conseguem dar
continuidade aos seus feitos, sentem-nos como uma realização incompleta. E a
realização por meio dessas situações acaba tornando-se um fardo pesado e difícil
de ser carregado:
que a indulgência da qual se beneficiam custa caro: desculpam-
se, no detalhe, suas inferioridades, porque os velhos são
considerados definitivamente inferiores; não têm mais nada a perder
porque já perderam tudo. Estão livres de seus complexos de culpa: o
preço que pagam por isso é que a maioria deles tem um amargo
sentimento de decadência. [...] O fato é que, tanto biologicamente,
quanto econômica e socialmente, sua situação degradou-se. [...] Um
homem que tenha exercido um certo poder não se resigna a perdê-lo
(BEAUVOIR, 1990, p. 566).
Mesmo em casos em que a situação parece favorável, o ser de
terceira idade sofre por sentir-se diminuído. E, no mundo literário, isso não é
diferente. Virginia Woolf, aos 58 anos, escreveu em seu diário: “Detesto a dureza
da velhice. Sinto-a chegar. Sinto-me ranger. Estou exasperada”. O
descontentamento torna-se parte da vida do idoso, que, muitas vezes, vê esse
sentimento transformar-se em revolta. Aliás, uma revolta vã, visto que podem até se
mostrar resignados, no entanto, não antes de se entregarem às lamentações.
Por assim ser, grande parte das pessoas velhas mergulha na
melancolia e, conseqüentemente, entrega-se à tristeza, evento que assombra a
senilidade:
A tristeza das pessoas idosas não é provocada por um
acontecimento, ou por circunstâncias singulares: ela se confunde
com o enfado que as devora, com o amargo e humilhante sentimento
de sua inutilidade, de sua solidão no seio de um mundo que lhes tem
indiferença (BEAUVOIR, 1990, p. 568-569).
10
Pierre-Simon Ballanche (Lion 1776 - 1847) foi um escritor e filósofo contra-revolucionário
francês que elaborou uma teoria de progresso que teve considerável influência nos rculos
literários franceses do começo do século XIX. O espetáculo da execução de 700 pessoas na
fracassada revolta realista de 1793, en Lion, deixou uma profunda marca em sua concepção
pessimista da vida.
75
Por vezes, a decadência senil acontece no momento em que as
pessoas enxergam, em seu dia-a-dia, a falta de condições de manter certa
constância naquilo que fazem, que sentem ou que vivem. Não se trata, nesta
situação, de fatores isolados. Trata-se de um emaranhado de situações que
conferem aos idosos a consciência de sua legítima condição: a inutilidade e a
solidão estão presentes em seu cotidiano, e funcionam como indicadores da
indiferença que o mundo lhes impõe. Dessa forma, condenados à passividade,
sentem-se diante de alguns perigos dos quais não conseguem se afastar e aos
quais se entregam cada vez mais.
Mesmo quando algumas garantias lhes são asseguradas, os
senescentes permanecem em atitude de defesa, pois têm a consciência de que o
que norteia sua vida pode se desconfigurar a qualquer instante. E isso acontece,
porque a confiança nos adultos não existe mais. Nessa fase, o idoso conhece a
“duplicidade” dos adultos. E, em presença das possíveis mudanças na atitude
daqueles que o cercam, fica sempre na retaguarda, e estabelece reações que o
colocam continuamente na condição de desconfiado diante do que lhe possa
sobrevir, independente de quem o acolha, pois sabe que:
Os filhos, os amigos, os sobrinhos que o ajudam a viver
financeiramente, ou cuidando dele, ou hospedando-o podem
recusar-lhe essas ajudas, ou restringi-las; podem abandoná-lo, ou
dispor dele contra sua vontade: obrigá-lo a mudar de residência, por
exemplo, o que é um de seus terrores. [...] Teme que lhe façam
favores em nome de uma moral convencional que não implica
respeito nem afeição por ele; tratam-no pensa – de acordo com os
imperativos da opinião: esta última pode ser contornada, ou contar
menos que certas comodidades. As desgraças que o velho teme
doença, deficiências, aumento do custo de vida são tanto mais
temíveis quanto suscetíveis de acarretar mudanças nefastas na
conduta de outrem. Longe de esperar que seu irreversível declínio
natural seja sustado ou compensado pelo comportamento de seus
parentes, ele suspeita que estes últimos precipitarão o curso desse
declínio [...] (BEAUVOIR, 1990, p. 570).
Uma das maiores preocupações do idoso é, portanto, a de que os
seus o deixem à mercê das agruras diárias e, pior ainda, contribuam para que a sua
velhice seja estabelecida mais rapidamente, e desprovida das mínimas condições
para que esse momento seja vivido com decência e com dignidade.
Para se defender ou até mesmo fugir da precariedade que ronda sua
situação, o senil entrega-se, muitas vezes, às atitudes defensivas. Uma delas, talvez
76
a mais comum, seja refugiar-se nos hábitos. E o que é o hábito? Como ele se
apresenta na velhice?
O hábito está intimamente ligado ao passado. É a própria
representação desse momento. Trata-se de atitudes e de comportamentos que
representam e que permitem a realização das ações diárias como andar, comer,
divertir-se, etc. Na velhice, os hábitos colocam-se a serviço da rotina e se fazem
presentes nas ações diárias. Daí constituírem parte do dia-a-dia das pessoas de
terceira idade, que procuram naquilo que sempre realizaram um modelo para a
concretização das ações que irão compor o contexto atual de sua vida.
A senilidade deixa o indivíduo inquieto diante da novidade. Torna-se
bem mais seguro aderir àquilo que conhece e que faz parte do seu cotidiano.
Insistir naquilo que é novo é o mesmo que se entregar ao desconhecido, por
conseguinte, estar sujeito às frustrações e aos desencontros. Repousar sobre aquilo
que está confirmado é cômodo, ou seja, representa uma interação mais
assegurada e desprovida de possíveis desencontros e desapontamentos. Quando o
sujeito idoso se apega aos hábitos, poupa-se de adaptações árduas e consegue
obter respostas antes mesmo das prováveis perguntas. Isso gera confiança e
conforto, pois não exige esforços impossíveis nem tampouco inúteis perante as
situações.
Para o velho, o hábito bem integrado a sua vida enriquece os
momentos e proporciona satisfação. Por meio dos hábitos, ele sabe quem é e,
decisivamente, não esquece quem foi. O hábito protege o idoso de suas ansiedades
e assegura-lhe que o amanhã repetirá o hoje. Assim sendo, permite que as suas
memórias sejam resguardadas e retomadas a cada novo alvorecer:
que o hábito confere ao mundo uma certa qualidade, e ao
desenrolar do tempo uma certa sedução, em qualquer idade perde-
se alguma coisa quando se renuncia a um hábito. Mas quando
somos jovens, não nos perdemos a nós mesmos porque é no futuro,
na realização dos projetos, que situamos nosso ser. O velho teme a
mudança porque, temendo não mais saber adaptar-se ao futuro, não
nele uma abertura, mas apenas uma ruptura com o passado.
Como não faz nada, identifica-se com o quadro e o ritmo de sua vida
anterior: sair dela é separar-se do seu próprio ser (BEAUVOIR, 1990,
p. 574).
O único perigo em se valorizar tanto e permitir incondicionalmente a
sustentação dos hábitos para os idosos reside no fato de os mesmos estarem
77
diretamente ligados aos sentimentos. Quando diante de situações não mais
possíveis de serem realizadas, alguns podem se entregar ao desânimo ou até
mesmo a outros sentimentos como a avareza, por se sentirem ameaçados e
desprovidos de condições de se salvaguardarem das imposições diárias.
Para que não se instale um sentimento total de decadência e de
desconfiança no idoso, as relações familiares devem constituir um norte para o
mesmo. As ligações afetivas com os filhos e, principalmente, com os netos devem
ser uma constante no dia-a-dia senil. É por meio da instituição familiar,
especialmente no tocante aos netos, que muitas satisfações passam a existir no
contexto da velhice. Ainda que se transformem em pessoas mais egoístas e
egocêntricas que as demais, quando na presença, sobretudo, dos filhos de seus
filhos, os senescentes transcendem alguns de seus problemas e acabam cedendo
aos sentimentos nutridos pelos mesmos, que, em sua maioria, são retribuídos.
Analisando todos os pontos até então levantados acerca da velhice,
pode-se, de imediato, descartar a idéia de que constitui uma realidade irrefutável o
fato de se considerar o período da senilidade como um momento em que se atinge a
serenidade. O desejo de ponderar com otimismo a condição humana gerou, por
necessidade própria, a ilusão de que, ao chegar à velhice, os sujeitos atingem certa
maturidade e dela conseguem desfrutar, considerando o fim da vida como o
momento em que a resolução de todos os conflitos acontece. Todavia, essa possível
solução nada mais é que uma “ilusão moda”, que permite aos responsáveis pelos
senis pensar que eles o felizes, que estão realizados por terem atingido essa fase
e, dessa forma, abandoná-los à própria sorte sem que a consciência lhes cobre uma
reação diferente.
Para que a velhice não se transforme em uma “irrisória paródia de
nossa existência anterior”, para que não seja essa etapa apenas motivo de
lamentações, ainda há uma saída: é necessário que as pessoas procurem dar
sentido a sua vida, buscando, além da dedicação aos outros indivíduos, o
envolvimento em causas e trabalhos que propiciem o desenvolvimento social,
político, intelectual e criador de cada um, para que, no futuro, “paixões fortes”
estabeleçam o ritmo e evitem a necessidade do retorno constante ao passado:
78
Mais vale não pensar demais na velhice, mas viver uma vida de
homem bastante engajada, bastante justificada, para que se continue
a aderir a ela, mesmo quando já se perderam todas as ilusões e
quando já arrefeceu o ardor vital (BEAUVOIR, 1990, p. 662).
Dessa maneira, as singularidades da vivência dos velhos
consolidam-se não apenas no universo comum à velhice. Remetem, diretamente, ao
universo social como um todo. Atingem toda uma sociedade que, perplexa (no
entanto inerte) perante as atuações dos seus, encontra-se em conflito:
[...] o velho em nossa sociedade é o descartável que não pode ser
descartado, porque humano. Ao mesmo tempo, denuncia, com sua
presença, que ele é o humano que durante toda sua vida foi
desumanizado na sociedade do descartável. O velho denuncia o que
o jovem canta: ‘O que foi escondido é o que se escondeu / E o que
foi prometido, ninguém prometeu’ (‘Tempo perdido’, de Renato
Russo, no LP Legião Urbana, 1986) (BARRETO, 1992, p. 9).
Conclui-se, por fim, que é preciso romper com o silêncio em torno da
velhice e permitir aos idosos que alcancem os seus últimos dias de forma digna. É
necessário compreender que o medo da solidão, da perda da beleza e do vigor é
vivido de formas diferentes, conforme maior ou menor a facilidade com que os
indivíduos consideram possível vencer a exclusão social de que a velhice é vítima.
Num país que se acredita ainda jovem, vale lembrar que, mais que uma condição
natural, a velhice compreende uma realidade inegável e intransferível, portanto, um
destino a ser enfrentado por todos.
79
4 LEITURA DAS CRÔNICAS: O OBJETO EM ESTUDO
4.1
O
S
V
ELHOS E OS
N
OVOS
T
EMPOS
É preciso, segundo penso, ser sempre muito prático
e concreto, não sonhar com os olhos abertos,
colocar-se diante de fins discretos, atingíveis; é
preciso, então, ter uma perfeita consciência dos
próprios limites, mesmo quando se queira alargá-
los e aprofundá-los.
(Gramsci)
Quando as mudanças históricas se aceleram e a vida cotidiana sofre
modificações, tudo que se configura nesse espaço tem de se adequar à nova
realidade. O estabelecimento de uma série de rupturas, de novas associações nas
relações entre os homens e na relação dos homens com o meio e com a natureza
gera uma nova perspectiva por parte de todos os envolvidos nesse processo de
transformações e de adaptações.
Todo sentimento de continuidade praticamente é arrancado da vida
dos sujeitos. Aos velhos, então, a sensação de que o amanhã o lhes pertence
mais se torna muito acentuada. Tudo que foi construído perde, de certa forma, a sua
altivez inicial, para permitir à sociedade ganhar novas forças naquilo que é inovador,
impactante e transformador, mesmo que isso acarrete aos idosos perdas
insuperáveis dentro das renovadas sociedades.
Sobre a velhice e os novos tempos, Simone de Beauvoir comenta
em sua obra A velhice (1970):
As árvores que o velho planta serão abatidas. Quase em toda parte a
célula familiar explodiu. As pequenas empresas são absorvidas pelos
monopólios ou se deslocam. O filho não recomeçará o pai, e o pai
sabe disso. Ele desaparecido, a herdade será abandonada, o
estoque da loja vendido, o negócio será liquidado. As coisas que ele
realizou e que fizeram o sentido de sua vida são tão ameaçadas
quanto ele mesmo (apud BOSI, 1998, p. 77).
80
Em meio à velocidade de uma sociedade altamente informatizada,
deliberadamente modernizada e, no entanto, matizada nas relações entre os
indivíduos, a afinidade com os senescentes passa a ser pautada pela falta de
reciprocidade: não se discute mais com os velhos, não mais o confronto das
opiniões com as deles e nega-se aos mesmos a oportunidade de desenvolvimento
daquilo que deveria ser intrínseco a todas as pessoas: o desenvolvimento da
alteridade, o direito à contradição, os afrontamentos e até mesmo o estabelecimento
dos conflitos.
Nesse novo contexto social, resta aos senis a perplexidade e a
busca de se manter o mínimo de dignidade, mesmo que diante de novas tendências
e de particularidades impraticáveis em determinadas situações. Perante as
adversidades do dia-a-dia, aceitação e repulsa acabam se tornando as palavras de
ordem.
4.1.1 “Falso Mar, Falso Mundo” (05-11-1994)
O século XX, assim como o início do século XXI, é marcado pelo
montante de mudanças ocorridas e pela velocidade das descobertas e das
inovações. Os avanços tecnológicos, juntamente com o desenvolvimento da
comunicação, cada vez mais veloz e ágil, deram ao homem moderno um novo perfil,
muitas vezes, não o bem assimilado como deveria ser pelos maiores envolvidos
nessas transformações. Com o grande progresso tecnológico e comunicativo, a
população se viu diante de novas tendências, de novas situações, de novas
perspectivas e, conseqüentemente, de uma nova realidade. Realidade esta,
causadora de certos questionamentos e de determinadas discussões.
Tais acontecimentos acabaram provocando o surgimento de uma
sociedade “repaginada”, ocasionando a aproximação de pessoas, mas também, por
muitas vezes, isolando outras muito próximas e até mesmo parecidas em seus
hábitos e suas atitudes, que foram sendo modificados e transformados. Alguns
tiveram de se esforçar para se adequar a essa nova realidade e se sentirem
inseridos nessa sociedade modificada com a qual se depararam.
E, nesse contexto, encontra-se parte da obra de Rachel de Queiroz
que, nos últimos anos de sua produção, presenteou seu público leitor com toda a
sua visão a respeito dessas transformações. Diante de sua idade avançada,
81
conforme ela mesma dizia, e incomodada com a condição dos velhos nesse novo e
atribulado mundo, a autora consegue demonstrar toda a sua perturbação em
algumas de suas crônicas, pois, conforme afirmou Davi Arrigucci Jr. (2001), o gênero
em questão tem a capacidade de tratar dos mais diversos temas, preferencialmente,
daqueles que levam em consideração os aspectos da vida moderna.
“O mundo anda cada vez mais complicado [...]”. Assim, Rachel inicia
a crônica “Falso mar, falso mundo”, inserida no livro de mesmo nome, lançado no
ano de 2002. Último livro da autora, essa obra apresenta a reunião de oitenta e nove
crônicas, produzidas entre o período de 1983 até 2000, carregadas das impressões
de uma mulher perplexa diante de todas as transformações, diante do progresso e
das degradações sofridas pelo mundo e pela sociedade ao longo do século XX.
Atenta observadora da realidade que a cerca, nada lhe passa despercebido e, com
sinceridade, retrata, nessa coletânea de crônicas, sua visão sobre o cotidiano e
sobre o atordoamento em que se encontra o homem, especialmente o velho,
personagem que vive totalmente à mercê das transformações do mundo.
Para apresentar todo o seu espanto frente a esse “novo mundoe a
situação dos idosos nesse contexto, Raquel utiliza-se da crônica, gênero literário,
segundo Eduardo Portella, totalmente matizado, “a ponto de se ter ajustado à trama
existencial complexa da sociedade de massa. Porque a crônica hoje se enriqueceu
desta nova função: é elemento de contato entre a ânsia quantitativa da massa e a
necessidade de evitar-se o desnível qualitativo da informação” (1986, p. 27). Sendo
o cronista o “prosador do cotidiano”, seu texto é motivado pelos próprios
acontecimentos diários e acaba por invadir o dia-a-dia do leitor, ainda mais na
situação em que se encontra o sujeito, desprovido de qualquer couraça e “perdido”
no tumulto da vida contemporânea.
Segundo a escritora, a primeira complicação enfrentada pelos senis
na contemporaneidade é a “massificação da vida cotidiana”. Vive-se, hoje, em um
mundo em que as pessoas deixam de ter uma identidade lida e passam a ter uma
identidade confusa e distorcida. Os indivíduos parecem ser os resultados de um
único processo, em que a massificação acaba apagando as características que
tornariam cada sujeito um ser autêntico e singular. E, para o senescente, indivíduo
desprovido de certas defesas, isso acontece de forma mais rápida e aparente. No
texto em questão, Raquel de Queiroz inicia suas colocações relatando uma
experiência própria vivida nesse “novo cotidiano”:
82
uns vinte anos, Oyama e eu nos hospedamos num hotel
americano que tinha vinte e cinco andares; o nosso quarto ficava no
segundo andar, e cada andar era cópia fiel do outro, superpostos
corredor sobre corredor, quarto sobre quarto. E, de noite, eu não
conseguia dormir, pensando que, por cima de nós, empilhados em
montes, estavam vinte e três quartos iguais, e as camas iguais, uma
sobre a outra. E em cada cama um casal dormindo, roncando,
brigando. E se de repente o hotel afundasse, os assoalhos
afundassem... Lembrei aí que, embaixo de nós tinha um quarto igual,
outro casal na cama; e a impressão era desagradabilíssima, não sei
se me entendem, aquela espécie de promiscuidade invisível mas
concreta, cada casal na sua alcova, como aqueles montes de caixas
de ovos nas prateleiras dos supermercados (QUEIROZ, 2002, p. 47).
Essa vivência da cronista vem confirmar a posição de Stuart Hall
diante da composição do sujeito dito s-moderno que, conforme o autor, “tendo
uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas,
contraditórias, inacabadas, fragmentadas [...]” (1999, p. 46), mas que vive em um
mundo que o trata como igual, que não quer ter trabalho em adequar as
circunstâncias as suas pretensões e parece não perceber (ou não aceitar) que cada
um é diferente e, como tal, deve ser tratado. E a escritora deixa sua posição
bastante clara em relação ao assunto quando compara os indivíduos a “montes de
caixas de ovos nas prateleiras”: todos o semelhantes, agora, mas confusos frente
a sua situação, pois estão desprovidos de uma identidade própria, legítima e
singular.
Quando diante de um prédio com apartamentos totalmente idênticos,
a autora se sente angustiada por pensar que muitas outras pessoas estariam
vivendo as mesmas situações que ela naquele exato momento. É como se a
particularidade de cada um fosse invadida por uma nova tensão, uma mesmice que
desfigura e confunde os indivíduos. Aos velhos, por terem perdido muitas das
suas características, sobra apenas a confusão total ante o tumulto dessa
massificação desenfreada.
A cronista segue falando de uma viagem de avião, coisa que detesta
fazer, mas, rende-se aos avanços e adere à tecnologia. O medo do vôo não a
impede de seguir em tal investida, afinal, hoje em dia, entre os meios de transporte,
os aviões são os mais rápidos, velozes e modernos em que se pode pensar,
configurando mais uma característica da inovada sociedade. Como fugir disso
então?! E, no meio de todo o medo, um garoto de apenas doze anos, com
83
explicações científicas e tecnológicas a respeito do assunto, tenta acalmar a inquieta
senhora e o restante dos passageiros:
Um menino que estudava ciências me explicou que o vôo dos aviões
a jato era comandado pelas leis da balística: o motor funciona como
uma pistola automática que constantemente estivesse disparando. O
vôo é mantido pela explosão contínua do jato, como a bala é
impulsionada pela explosão da pólvora. O avião não pode cair
enquanto o jato estiver mandando o seu impulso. (Estaria o menino
certo? Tinha só doze anos!) Mas, de qualquer forma, me senti segura
e tranqüilizei os medrosos [...] (QUEIROZ, 2002, p. 48).
E aqui, frente a mais uma experiência da extasiada cronista,
percebemos, assim como Fredric Jameson, que mais um elemento constitutivo do
pós-modernismo se faz presente na escrita e nas experiências de Raquel de
Queiroz: as relações com as tecnologias, tanto por parte da narradora, que fala dos
seus anseios diante de tantas inovações, quanto do pequeno menino que, no alto
dos seus doze anos, domina tamanho conhecimento. O que atormenta o eu do
cronista, nesse momento, não é apenas o seu medo de voar, mas, estar à mercê de
uma tecnologia que, construída por homens em constantes transformações e
questionamentos (e por que não dizer confusos em relação a sua própria
existência), possa não ser tão segura em suas realizações.
Entretanto, o que mais escandaliza a escritora em “Falso mar, falso
mundo”, vem logo a seguir, por meio da tevê, um meio de comunicação de massa
que tem a função de “informar” e de colocar o ser humano cara a cara com os
constantes movimentos do mundo e da sociedade, e que, muitas vezes, acompanha
o ser de terceira idade como sua única forma de entretenimento. Mas que, na
atualidade, tem chocado os seus espectadores com os caminhos que tem tomado. É
a televisão que apresenta, como forma de refúgio, um mundo marcado pela
violência, pelas transformações, pela perda de sentido, pelos apagamentos das
referências e, de acordo com Martín Barbero (2001), um “permanente simulacro”.
Esse aparelho funciona como um importante veículo da modernidade às massas. E,
ainda, de acordo com as idéias de Luiz Beltrão e Newton Quirino (1986), os meios
de comunicação envolvem a sociedade dentro de uma realidade substituta, que quer
transmitir aos seus telespectadores a realidade arquitetada por seus idealizadores:
84
[...] os novos meios trouxeram para dentro de nossos lares uma
‘realidade’ exterior, um ‘mundo’ fabricado industrialmente,
padronizado, que liquidou ou ameaça extinguir aquela construção
gradual e privada do homem das anteriores centúrias. [...] A minha
realidade foi substituída pela realidade, ou melhor ainda, pela
realidade deles, os controladores dos meios de comunicação de
massa (p. 119).
Perante essa realidade, Raquel de Queiroz se mostra estarrecida
quando se depara com uma reportagem exibida pelo Fantástico
11
, intitulada Mar
Artificial. E, mesmo considerando a situação, o lugar, o preço e o objetivo de tal
empreitada algo além do normal, a narradora afirma que muitas pessoas aderem ao
apelo desse novo (e manipulado) mundo criado pelos japoneses: crianças, jovens,
adultos e velhos, todos se rendem aos apelos da cotidianidade:
Mas nesta semana vi na TV uma reportagem que me horrorizou
como prova de que, a cada dia, mais renunciamos às nossas
prerrogativas de seres vivos e nos tornamos robotizados. Foi a ‘Praia
Artificial’ no Japão (logo no Japão, arquipélago penetrado e cercado
de mar por todos os lados!). É um galpão imenso, maior do que
qualquer aeroporto, coberto por uma espécie de cúpula oblonga, de
plástico. E filas à entrada, dentro de um guichê, o pessoal paga a
entrada, que é cara, e some. Deve entrar no vestiário, ou antes, no
despiário, pois surgem já sem roupa, convenientemente seminus,
como se faz na praia. Pois que debaixo daquele imenso teto de
plástico está um mar, com a sua praia. Mar que, na tela, aparece
bem azul com ondas de verdade, coroadas de espuma branca;
ondas que chegam a derrubar as pessoas e sobre as quais jovens
atletas surfam e rebolam. E um falso sol, de luz e calor graduáveis; e
a praia é de areia composta por pedrinhas de mármore, a cujo
contato algumas moças de biquíni se queixavam de que doía um
pouco. ‘Mas valia a pena’ (QUEIROZ, 2002, p. 48-49).
A posição da cronista é de espanto diante de tal situação: justo no
Japão, local onde o mar está presente em todos os lugares, uma praia falsa, uma
simulação de sol, de bronzeamento e tudo mais que se possa relacionar a esse tipo
de atividade. Pessoas mostram-se condescendentes com um falso mar na “terra das
águas”. E a autora questiona a diferença entre o falso e o verdadeiro: por que a
praia artificial se , naquele lugar, o mar de verdade? E ainda, por que o velho,
aquele que enfrentou tantas situações, deixa-se levar por essas novas
11
Influente programa televisivo da Rede Globo de Televisão, que funciona como uma revista
eletrônica semanal, levando ao público informações sobre o Brasil e sobre o mundo.
85
ludibriações contemporâneas, quando pode aceitar que o seu fim está próximo e
que já viveu e viu o suficiente por uma vida toda?
O que parece haver aqui é o que afirma Baudrillard em A precessão
dos simulacros (1991, p. 16): um “mundo inteiramente recenseado, analisado,
depois ressuscitado artificialmente sob as espécies do real, num mundo da
simulação, da alucinação da verdade, da chantagem com o real [...]”. É como se
houvesse a necessidade de se preservar o original e expor a plica. Mas, por quê?
E aqui entra a preocupação maior do eu do cronista:
A única presença viva, destacando-se no elenco de bonecos, era a
nossa querida, bela e intrépida repórter Glória Maria, apresentadora
do espetáculo ‘Mar artificial’. se viu? Se fosse uma honesta
piscina de água morna, tudo bem. Mas fingir as ondas, falsificar um
sol bronzeando, de trinta e cinco graus, e toda aquela gente se
deitando com a simulação e depois voltando para a rua vestida nos
seus casacos! Me deu pena, horror, sei lá (QUEIROZ, 2002, p. 49).
Para ela, todos pareciam bonecos ou robôs em meio a uma situação
criada, uma imitação de algo real. Dessa forma, é fácil perceber a preocupação da
escritora de que, nessa era da simulação, os referenciais sejam perdidos e,
conforme Jameson, que a lógica do simulacro, o disfarce, acabe se tornando uma
espécie de realidade paralela que reforce toda a inconstância do sujeito pós-
moderno. Seria essa situação uma forma de colocar a população do Japão dentro
de um mundo criado para “esconder” que o próprio Japão é algo que não está
mais no domínio do real? De acordo com Baudrillard, “já não se trata de uma
representação falsa da realidade (a ideologia), trata-se de esconder que o real
não é o real e, portanto, de salvaguardar o princípio da realidade” (1991, p. 21). E,
ao idoso, sujeito perdido em suas frustrações, suas perdas e suas restrições, cabe a
interação com essa simulação para ofuscar uma hipocrisia ainda maior, a de sentir-
se ainda vivo e atuante nas ações cotidianas.
Independente das respostas a essas questões, a posição da autora
frente a esse e a todos os outros acontecimentos expostos na crônica “Falso mar,
falso mundo” é a de perplexidade: perplexidade diante de uma massificação
desenfreada e sem escrúpulos, atendendo apenas aos objetivos daqueles que se
propõem a “dominar” e a comandar a nova sociedade; perplexidade frente a tantos
avanços e a tantas revoluções tecnológicas que estão aparecendo e entrando na
86
vida dos indivíduos sem pedir licença; e, principalmente, diante de uma simulação
(segundo a autora, desnecessária) que está confirmando a situação do novo sujeito:
aquele que vive em constantes conflitos, que quase nunca consegue resolver os
seus próprios problemas e que não tem mais uma identidade definida, vive em um
mundo desorientado e reformulado buscando a identidade adequada para cada
acontecimento e/ou para cada situação: “Aquilo não pode deixar de ser pecado.
Falsificar com tanta imprudência as criações da natureza e pra quê?” (QUEIROZ,
2002, p. 49). Por que expor quem passou por tantas circunstâncias a mais uma
irrealidade, a mais uma tentativa de substituição para as muitas perdas diárias?
Dessa forma, Rachel nos apresenta, por meio de suas experiências
e de sua escrita, a confirmação da existência de um sujeito cuja identidade
fragmentada remete a literatura brasileira contemporânea a uma nova perspectiva. E
a crônica, conforme Davi Arrigucci Jr., torna-se o veículo ideal para a exposição de
fatos como os aqui abordados pela autora. É relevante que tais assuntos sejam
abordados nesse gênero literário, porque
A crônica é ela própria um fato moderno, submetendo-se aos
choques da novidade, ao consumo imediato, às inquietações de um
desejo sempre insatisfeito, à rápida transformação e à fugacidade da
vida moderna, tal como esta se reproduz nas grandes metrópoles do
capitalismo industrial e em seus espaços periféricos. [...] ela parece
penetrar agudamente na substância íntima de seu tempo e esquivar-
se da corrosão dos anos, como se nela se pudesse sempre renovar,
aos olhos de um leitor atual, um teor de verdade íntima, humana e
histórica, impresso na massa passageira dos fatos [...] (ARRIGUCCI,
2001, p. 53).
Aberta às situações, as mais diversas possíveis, que surgem,
talvez, como respostas alternativas da modernidade ou, ainda, para reforçar a
posição de que essa nova literatura permite a coexistência de traços muito
diferentes e marcantes, a autora deixa transparecer sua indignação como uma
pessoa velha que se considera inserida em todas essas ocorrências: o medo de
que, em meio a tantas transformações, os indivíduos deixem de ser seres animados
e passem a ser considerados, meramente, bonecos comandados por um novo ponto
de vista alterado e distorcido. E deixem de ser sujeitos ativos para aceitar, com
passividade, as novas imposições sociais, especialmente os idosos, aqueles a quem
a sociedade rouba possíveis condições e insiste em deixar à marginalidade, nesse
caso, totalmente aturdidos e desorientados diante dos novos tempos.
87
4.1.2 “De Armas na Mão pela Liberdade” (18-11-1995)
Se o cotidiano se inventa de mil maneiras, também o homem deve
preparar-se para enfrentar as mil faces do dia-a-dia. Diante das práticas diárias, as
reações podem ser as mais diversas possíveis. É por meio das realizações
corriqueiras que as personagens são construídas e desvendadas em cada contexto
em que estão inseridas. Quer seja de forma ativa ou de forma passiva, sempre
uma ação e uma reação diante das ocorrências, pois os “novos tempos” nem
sempre acolhem de forma satisfatória e aprazível aqueles que são os maiores
envolvidos no seu desenrolar, ou seja, cada indivíduo que se encontra submerso na
cotidianidade.
Para representar esse desenvolver das práticas diárias, a utilização
do gênero crônica torna-se relevante, visto que o cronista tem a possibilidade de, a
respeito da matéria do cotidiano, interpretá-la para si mesmo e, respectivamente,
para os seus leitores, possibilitando, assim, uma leitura do real. Dessa forma, Rachel
consegue imprimir no texto em estudo um comentário subjetivo a respeito do fato
abordado por ela, e tenta repassar ao seu público leitor a sua impressão a respeito
do ocorrido. Ela, uma velha escritora, ainda se choca com as adversidades
enfrentadas pelas pessoas idosas.
Dar sentido ao mundo e ao lugar dos indivíduos, no caso, dos
velhos, nesse mundo, é uma prática social estimulada, principalmente, nas relações
que compõem o nosso cotidiano. Assim, quando diante de uma sociedade atribulada
e perpassada por inúmeras, contraditórias e incansáveis inovações e
indeterminações, percebe-se a fragilidade do idoso nesse inevitável processo, uma
vez que, de acordo com Berger e Luckmann (2001, p. 38), “a realidade da vida
cotidiana aparece objetivada, isto é, construída por uma ordem de objetos que
foram designados por objetos antes de minha entrada em cena [da entrada de cada
indivíduo em cena]”. Dessa forma, aos velhos, cabem apenas a sobrevivência e a
tentativa de uma adaptação a essa outra realidade.
Na crônica “De armas na mão pela liberdade”, texto também
encontrado no livro Falso mar, falso mundo, Rachel de Queiroz coloca seu público
leitor frente a frente com uma personagem representada por uma senhora de
noventa anos totalmente desestabilizada perante as atrocidades dos novos tempos:
88
uma idosa à beira de uma loucura em função da situação em que se encontra nesse
momento de sua vida.
A autora, incansável defensora da idéia de que a velhice não
constitui algo bom e, muito menos, apropriado a qualquer pessoa, dá amostras de
sua ranzinzice, de seu descontentamento em relação a essa situação, e inicia o seu
texto mostrando, mais uma vez, a sua perplexidade diante de um fato verídico: “Não
estou inventando: saiu no jornal: ‘Em Porto Alegre, senhora de 90 anos (90, sim)
arma-se com dois (dois!) revólveres e abre caminho para a rua, garantindo o seu
direito de ir e vir’” (QUEIROZ, 2002, p. 115). De armas em punho, a protagonista da
história em questão decide reivindicar um direito seu que deveria ser respeitado. No
entanto, por se sentir lesada, resolve agir com as “armas” que possui.
Frente a esse melindre social da atualidade, o de, em algumas
situações, não se permitir aos velhos a liberdade de transitar pelos ambientes sem a
companhia de alguém que os esteja vigiando, a senhora apresentada por Rachel se
mostra consciente e preparada, mesmo que de forma inadequada, a fazer valer os
seus direitos: “os revólveres, no caso, eram dois trinta-e-oito. Ou, como se diz na
gíria, dois trezoitãos. E tinham bala dentro, e a idosa dona, pelo jeito com que os
empunhava, mostrava que sabia atirar” (QUEIROZ, 2002, p. 115).
Trata-se de uma anciã que vive no porão de uma “casa de idosos”.
Por receber apenas uma pensão de dois salários mínimos, não consegue pagar a
mensalidade de um quarto normal, portanto, tem de adaptar-se a essa condição
imposta pelo meio em que vive, sujeitando-se a coabitar um espaço escuro e sem
janelas, a um preço módico, único valor que a intrépida senhora tem condições de
quitar. Não possuindo outra fonte de renda, a aceitação das adversidades torna-se
praticamente inevitável: “Uma das características marcantes da população idosa no
Brasil é o baixo poder aquisitivo. Aposentadorias e pensões constituem sua principal
fonte de rendimentos” (CHAIMOWICZ, 1998, p. 65). Desse modo, à incansável
protagonista, resta, apenas, amoldar-se às intempéries cotidianas a que é submetida
constantemente por parte daqueles que a rodeiam.
No entanto, adaptar-se não significa, necessariamente, concordar
com todas as imposições que lhe são conferidas. Se nos dias atuais, a sociedade,
hipócrita por conveniência, insiste em não permitir aos seus velhos a liberdade de
transitar livremente, sem a tutela de outros, por onde quer que seja, não resta ao
senescente outra saída se não a de “lutar” por esse direito. De todos os fenômenos
89
contemporâneos, o menos contestável diz respeito ao envelhecimento da
população. Todavia, parece ser difícil admitir que tal fato aconteça para todos. Daí a
prepotência por parte de determinadas pessoas em insistir em tirar dos senis a
simples possibilidade de ir e de vir em um ambiente antes por eles vivenciado,
modificado e reconhecido.
Segundo Simone de Beauvoir, quanto mais opulenta é uma
sociedade, mais ela recusa aos seus velhos deleitar-se com a abundância dos frutos
que os mesmos ajudaram a plantar. Durante a colheita, apenas uma “sobrevivência
bruta” lhes é concedida. Na grande maioria das vezes, quando destinado a viver em
pensões ou asilos, o idoso é
[...] vítima das pressões às quais é submetido. O regulamento é
muito rigoroso, as rotinas rígidas; levanta-se cedo, deita-se cedo.
Separado de seu passado, de seu ambiente, muitas vezes vestido
com um uniforme, o velho perdeu toda a sua personalidade, não
passa de um número. Em geral, as visitas são autorizadas todos os
dias, e a família vem vê-lo de tempos em tempos: isso ocorre
raramente, e, em certos casos, nunca visitas. [...] Em geral, as
saídas não são livres [...] o pensionista tem direito a uma tarde por
semana. Ele não sabe o que fazer de seus dias (BEAUVOIR, 1990,
p. 317-318).
No caso da protagonista da crônica “De armas na mão pela
liberdade”, é exatamente isso que acontece, apesar de viver em um ambiente
totalmente precário, extremamente quente no verão, e demasiadamente frio no
inverno, a diretoria do lugar não lhe permite sair. A ela são negadas as mínimas
condições de interação e de socialização. E tal ocorrência pode ser confirmada na
voz da extasiada Rachel que, prontamente, sente-se tão injustiçada quanto a
corajosa senhora de noventa anos e acaba deixando transparecer toda a sua
indignação diante do sucedido e das conseqüências de se chegar a essa fase da
vida e de esbarrar nas restrições impostas:
[...] a direção a proibia de sair, receando que, assim idosa, ela se
perdesse na rua, sofresse algum acidente ou assalto. Na
mentalidade da maioria das pessoas, velho é pra viver preso, na
casa, no quarto; o ideal é uma cadeira de rodas, mas nem sempre a
conseguem. E o infeliz do idoso quase nunca pode se defender da
solicitude dos mais moços, filhos, parentes, guardiões; ‘Não coma
esse doce, olha o diabetes!’ (como se o doce fosse arsênico).
‘Cuidado, não tropeçar!’ ‘Calma, segure bem no corrimão!’ ‘Olha o
buraco na calçada, veja onde está pisando!’ E os mais solícitos ou
90
mais medrosos nos seguram com tanta força o braço que até
parecem estar carregando às grades um preso renitente (QUEIROZ,
2002, p. 116).
Uma vez incorporadas as transgressões, o eu do cronista deixa
transparecer toda a sua indignação frente às imposições desencadeadas no dia-a-
dia da nobre anciã. É como se estivesse presenciando aquilo que poderia ser parte
de sua própria vivência. Desencadeada a memória e a percepção do presente, as
experiências corriqueiras do passado chocam-se com as impossibilidades
estabelecidas pelos novos tempos, abrindo espaço a um saudosismo e, igualmente,
a certa revolta diante da obscuridade que permeia os dias do ser de terceira idade:
“Imagine o grau de indignação, de constrangimento, de ‘cólera que espuma’, como
dizia o soneto, que sufocava o coração da nossa heroína. A vontade louca de ver o
céu, luz, rua, pessoas desconhecidas, e não as caras severas dos seus guardiões”
(QUEIROZ, 2002, p. 116).
Como mais uma característica do mundo moderno e parte das
particularidades da contemporaneidade, surge, também, na crônica estudada, a
questão da solidão, sentimento, muitas vezes, inerente aos indivíduos,
especialmente aos de idade mais avançada, contudo, geralmente reforçado pela
sociedade. Quando o ancião tem um companheiro para dividir os últimos momentos
de sua vida, todas as improbidades dessa fase são superadas de uma maneira
menos agressiva. De diferente modo, se a velhice é vivida sem a possibilidade do
compartilhamento das últimas sensações e dos últimos instantes, mais difícil ainda
se torna encarar a sucessão de acontecimentos que norteiam essa etapa.
Se por um lado a ambigüidade das relações entre os velhos não lhes
proporciona experiências agradáveis, visto que permite que os mesmos enxerguem
no companheiro um espelho, no qual é possível perceber os sinais da senilidade,
por outro, os mesmos “têm prazer em estar juntos, na medida em que têm
lembranças e uma mentalidade comum” (BEAUVOIR, 1990, p. 578). Assim sendo, a
solidão em função da não presença de um consorte para dividir as felicidades e os
devaneios derradeiros provoca sensações marcantes de tristeza e de abandono,
desestabilizando mais ainda o já conturbado mundo senil.
De acordo com Flávio Chaimowickz (1998), na sociedade moderna,
a presença do cônjuge é muito importante para a segurança e a estabilidade
financeira, afetiva e emocional dos idosos. Ainda sob as perspectivas do estudioso,
91
são as mulheres velhas que mais sofrem na presença dessa situação. Na crônica
em questão, a personagem principal vivencia essa condição:
No jornal de Porto Alegre diz-se que ela é solteira, ou ‘inupta’ (a que
não convolou núpcias), segundo a fórmula legal. Fadada a viver
sozinha, na sua solidão, sem nem ter a companhia de outros velhos,
de um companheiro ao seu lado, que lhe fizesse massagens contra
reumatismo, com quem dividisse a surdez, as deficiências visuais; ou
viúva que fosse, tivesse do companheiro as perenes lembranças de
uma vida comum, até mesmo lembranças de amor (QUEIROZ, 2002,
p. 116).
No caso da audaciosa senhora de noventa anos, essa é mais uma
de suas realidades. Não ter contraído núpcias torna-a mais solitária ainda frente ao
isolamento imposto pelo meio em que vive, em função da sua idade. A velhice em
si já se configura um momento de perdas e de separações. Para a protagonista, isso
se torna mais acirrado, pois, além de lutar contra o medo do silêncio, da escuridão,
dos barulhos e das luzes que a cercam no porão em que vive (situações que se
confundem e que confundem os idosos), sendo “velada” por guardiões praticamente
alheios e indiferentes ao que corresponde a sua realidade, cabe, também, a
desilusão por se encontrar totalmente só, sem nem mesmo a presença de um
parceiro.
Certamente a protagonista vive opressa, quando não, aturdida, pela
sensação de isolamento e de vácuo na alma. Os amores profundos, aqueles que
geralmente ficam no passado e são evocados quando a necessidade exige, nem
isso lhe é possível. No caso em questão, a única possibilidade de invocação desse
sentimento aparece de passagem, numa prosa quase gélida, para confirmar que a
personagem não os possui e nem os possuiu. no tempo presente, resta-lhe
apenas o sentido efêmero de todas as paixões e de todos os vínculos que lhe
pudessem ter sido atribuídos algum dia.
Quando não mais possibilidade de se encontrar e de usufruir na
senescência a exterioridade, ou seja, os benefícios do corpo, o que se busca na
interioridade torna-se frustrante. Se o que se encontra de mais forte acaba sendo a
solidão, sentimento, no caso da personagem de Rachel de Queiroz na crônica em
estudo, que parece ser o que assola de forma mais exasperada o cotidiano da pobre
anciã, as respostas aos anseios e às necessidades podem não ser muito adequadas
nem tão equilibradas:
92
O sentimento de solidão ocorre em um outro momento: quando se
procura companhia e não se acha; quando as palavras necessitam
de um ouvido para se tornarem comunicação, e permanecem
ruminação; quando a dor, a saudade, a mágoa tornam-se muito
pesadas por falta de um ombro amigo onde derramar lágrimas;
quando o alegre e o pitoresco são percebidos ou lembrados, mas
não se atualizam em um rir junto; quando não se conta
inteiramente com alguém e em ninguém se consegue confiar. Na
velhice, a solidão pesa. Não é apenas um sentimento, é um estado,
uma maneira de ser a solitária maneira de ser-velho’ em nossa
sociedade (BARRETO, 1992, p. 30).
Claramente, a viuvez, a falta de um companheiro ou de uma
companheira e a ausência de um parceiro amoroso tornam a solidão dos velhos
ainda mais profunda. E, no caso da senhora do texto, a única saída para se livrar da
solidão do porão foi enfrentar os seus opositores e os caprichos da vida moderna
usando o único recurso de que dispunha: as armas deixadas por seu falecido pai.
A autora, em “De armas na mão pela liberdade”, também faz uso da
ironia quando fala das atuais campanhas de caridade “em prol da terceira idade”. A
cotidianidade exige de seus figurantes algumas adaptações a convenções que se
configuram imprescindíveis para o desenvolvimento da sociedade. Certos modismos
tornam-se necessários para que a inclusão dos indivíduos seja considerada
pertinente. Com os idosos isso não é diferente. Para se criar uma imagem de
possível aceitação e de interação, algumas situações são criadas para que se tenha
a impressão de que, na modernidade, ainda há lugar para os senis:
[...] eles brincam carinhosamente com a idéia de dois velhos
dançando (na televisão, os velhotes dançarinos sempre ensaiam um
tango argentino e são vestidos à moda de 1925, ela de saia meio
curta de melindrosa e ele de colete e polainas!) Botam os velhos
para estudar vestibular, ou para fazer ioga, para treinar pintura a óleo
(flores e paisagens rústicas), a cantar em coros etc. etc. (BEAUVOIR,
2002, p. 116-117).
No entanto, a escritora rebate essas proposições, alegando que
nada disso permite que o sujeito idoso se sinta inserido no contexto ou participante
ativo da nova realidade social, pois o que ele realmente quer é ter o direito de
resolver por si mesmo o que deseja ou não fazer. Tomar as próprias decisões é o
que realmente conta para que a senilidade seja encarada de uma maneira menos
dolorosa:
93
Ninguém parece entender que a primeira condição para o velho não
se sentir tão velho é deixá-lo sentir-se livre. Resolver seus problemas
pessoais; ser ele próprio quem conte os seus sintomas ao médico,
ser ele próprio quem decide se toma ou não os remédios prescritos –
como faz todo mundo. Deixar que ele se liberte um instante ao
menos da tutela dos ‘entes queridos’ e não lhe ralhar se ele, liberado
der uma topada, um tropicão, no exercício dessa liberdade. Deixá-lo
que durma só, que não lhe apareça ninguém no quarto à meia-noite,
perguntando se ele está insone (está muito feliz, lendo), se esqueceu
de tomar o Lexotan... (QUEIROZ, 2002, p. 117).
Na ânsia de expor sua opinião e seus sentimentos em relação à
situação da destemida senhora que mobilizou a cidade de Porto Alegre por uma
façanha considerada não apropriada para uma pessoa dessa idade, a autora usa a
sua autoridade de cronista e os seus próprios sentimentos para falar sobre os
anseios das pessoas velhas que participam dessa nova realidade imposta pela
cotidianidade. Dessa forma, de acordo com Walter Benjamin (1975), em sua posição
de narradora, Rachel acaba enriquecendo a sua própria verdade com aquilo que
vem a saber por meio dos acontecimentos diários. Ao narrar o ocorrido com a
senhora de Porto Alegre, acaba incorporando o episódio a sua própria vida. E, se a
autora se encontra nessa situação, faz questão de compartilhá-la com os seus
leitores, porque sua vida acaba sendo consumida inteiramente em sua narração.
Por meio dessa crônica bem-humorada e, ao mesmo tempo,
carregada de certa tensão, Raquel deixa claro que, diante dos novos tempos, às
vezes a senilidade pesa e força o ancião a admitir que o mundo, de certa forma, não
precisa mais dele. Por isso, algumas decisões podem não parecer apropriadas, mas,
tornam-se o único meio de se fazer valer alguns direitos.
Quando “nada mais lhes interessa, nada mais os solicita, o têm
mais projetos; o mundo lhes parece um cenário de papelão, e eles mesmos parecem
mortos-vivos” (BEAUVOIR, 1990, p. 564), decisões extremas parecem ser a única
saída. E, quando a vigilância não mais é praticada pelos seus e passa a ser
realizada por estranhos que se sentem no direito de decidir por quem viveu uma
vida inteira, situações extremadas parecem ser mesmo a derradeira forma de se
tentar reverter algumas circunstâncias inaceitáveis na velhice.
E Rachel, com toda sua parcialidade diante da situação dos idosos,
encerra a crônica “De armas na mão pela liberdade” manifestando abertamente a
sua posição de cidadã pasmada perante as imposições do mundo dito moderno
quando em face das conveniências delegadas aos indivíduos de terceira idade: “Ah,
94
como a gente entende a velha pistoleira do Rio Grande do Sul!” (QUEIROZ, 2002, p.
117). E segue ironicamente demonstrando que a cotidianidade pode ser cruel
quando assim deseja, mesmo que isso remonte a uma simples questão, como o fato
de se ter um antigo baú em casa. Segundo a autora, por mais comum que possa
parecer um ato, ser velho em uma sociedade totalmente nova nunca será algo fácil e
nem tampouco tranqüilo:
E agora, então, as coisas devem ter piorado. que a nossa
nonagenária pistoleira e fujona confessou que guardava as armas
num velho baú. Cuidado, velhos e velhas, meus colegas: vocês vão
ver que, de hoje em diante, ninguém mais vai nos deixar possuir um
baú! (QUEIROZ, 2002, p. 117).
95
4.2 OS VELHOS E A VELHICE
Nem sabes se és culpado de não ter culpa.
Não morres satisfeito
morres desinformado.
(Carlos Drummond de Andrade
12
)
Admitir que o próprio corpo está envelhecendo, que o frescor da
juventude e da vida adulta está indo embora e aceitar a velhice como um
acontecimento irrevogável não constituem situações tão fáceis de serem
assimiladas. Trata-se de uma constatação simples em virtude das inúmeras
mudanças físicas, emocionais e intelectuais que acontecem, no entanto, configura-
se uma realidade pouco aceitável em função das perdas e das restrições a que são
submetidos os ingressos na terceira idade.
“De uma maneira consciente ou inconsciente, as pessoas resistem
por todos os meios à idéia de sua própria velhice e de sua própria morte. Essa
resistência é um processo de repressão [...]” (DEBERT, 199, p. 235), repressão que
busca fundamento nos dissabores que essa nova condição impõe aos seus.
A realidade é que, de todos os fenômenos naturais existentes,
certamente a velhice é o menos discutível, pois todas as pessoas envelhecem.
Neste exato momento, cada indivíduo está um pouco mais velho que antes e menos
velho que daqui a pouco. O envelhecimento da população é algo certo, e não
passível de retaliação. Trata-se de um processo dinâmico e irreversível.
Entretanto, essa realidade é bastante incômoda, uma vez que nem
os países desenvolvidos, nem aqueles em desenvolvimento encontraram uma
solução satisfatória e humana para os seus velhos. A sociedade lhes confere
condições pouco admissíveis e lhes cobra realizações praticamente impossíveis
diante da realidade vivida pelos novos velhos. Ser um idoso num mundo veloz, em
meio às novidades, às transformações e aos avanços tecnológicos é o mesmo que
se iniciar em uma nova aventura sem o mínimo conhecimento do que virá pela
frente. E o que incomoda nisso tudo é que os mais jovens geralmente se recusam a
12
A epígrafe em questão, poemeto do escritor Carlos Drummond de Andrade, foi extraída do
livro Admirável mundo velho de Maria Lecticia Barreto.
96
“perder seu tempo” auxiliando o senescente a se adaptar e a se ajustar às inovações
constantes e diárias a que é submetido.
A situação das pessoas idosas é, hoje, escandalosa. Todos sabem
que, de uma maneira geral, a sociedade se acomoda, fecha os olhos para as
circunstâncias dramáticas que não abalam o seu equilíbrio e pouco se importa com
a realidade dos seus velhos. De igual modo, torna-se patente uma relação
estremecida dos sujeitos com a terceira idade, já que, durante esse processo, as
muitas dificuldades que são enfrentadas pouco (ou quase nada) são subsidiadas e,
menos ainda, suavizadas.
Simone de Beauvoir não compreende a velhice como uma realidade
bem definida. Contudo, acredita ser necessário que cada um tenha consciência
dessa situação, pois, de acordo com a autora, quando esse fato estiver
totalmente assimilado é que os sujeitos terão condições de absorver essa verdade e
exigir dela o mínimo para uma vida menos inglória:
Paremos de trapacear; o sentido de nossa vida está em questão no
futuro que nos espera; não sabemos quem somos, se ignorarmos
quem seremos: aquele velho, aquela velha, reconheçamo-nos neles.
Isso é necessário, se quisermos assumir em sua totalidade nossa
condição humana. Para começar, não aceitaremos mais com
indiferença a infelicidade da idade avançada, mas sentiremos que é
algo que nos diz respeito. Somos nós os interessados (BEAUVOIR,
1990, p. 12).
4.2.1 “Não Aconselho Envelhecer” (18-03-1995)
Durante grande parte de sua vida, a escritora Rachel de Queiroz
tornou público, por meio de seus escritos, que a velhice era para ela uma situação
praticamente inaceitável e algo que a incomodava muito. Depois de quase dois anos
sem publicar um novo trabalho, a autora resolve apresentar um falso mundo aos
seus leitores. o para desanimá-los, mas sim para alertá-los sobre algumas
contrariedades nem sempre pronunciadas.
Os sábios conselhos que eram dados semanalmente em seus
artigos publicados na imprensa do país chegam ao mercado editorial para
possibilitar aos leitores da autora o acompanhamento do cotidiano dessa cidadã
que, na crônica “Não aconselho envelhecer”, aos moços um conselho: “[...] não
97
fiquem velhos. Verdade que as opções são poucas – morrer ou lutar contra a
velhice. E morrer não seria opção, mas entrega; e a luta? Bem, a luta resulta sempre
numa batalha perdida e inglória” (QUEIROZ, 2002, p. 56). E, de acordo com Walter
Benjamin, “de qualquer forma, o narrador é uma espécie de conselheiro do seu
ouvinte” (1975, p. 65), por isso, Rachel, no papel de narradora da crônica em
questão, sente-se na obrigação de transmitir um pouco de sua experiência alertando
seu público em relação àquilo que já vivenciou. Ou ainda, por sustentar a sua
ranzinzice diante da senescência, perceba nesse momento mais uma possibilidade
de questionar as razões (e também as incertezas) que cercam a velhice.
“Não aconselho envelhecer” trata-se de uma crônica em que a
cronista, ao falar sobre as questões que norteiam a velhice e que se relacionam com
todos aqueles que atingem certa idade, centra-se numa perspectiva mais subjetiva e
incorpora o que aborda para si mesma, tentando expressar a sua opinião a respeito
do tema sobre o qual discorre durante a escrita. Assumindo um traço comum entre
os cronistas modernos, Rachel realiza uma crítica social diante da condição da
terceira idade. Ao aprofundar atos e sentimentos expressos por sua indignação, a
autora consegue destacar a força maior da crônica, que está na capacidade de
traçar o perfil do mundo e dos homens.
Assim, no início da crônica em questão, Rachel manifesta a sua
intenção: informar aos seus leitores e a quem possa interessar as suas impressões
a respeito dessa conturbada fase da vida:
Entre os processos cruéis da natureza, é a velhice o mais cruel.
Implacável, insidiosa, ataca por todos os lados, abre a porta a todas
as moléstias mortais. Pensando bem, é uma espécie de HIV a longo
prazo. Te ataca o coração, o pulmão, todas as demais vísceras a
tripa, o fígado, o que nos abatedouros se chama o arrasto. E mais a
fiação arterial e venosa; e a coluna! E não falei na atividade cerebral.
E também esqueci os ossos, a infame osteoporose, que te rói os
ossos pelo tutano, deixando-os como frágeis cascas de ovos. E
então te basta um pequeno escorregão na banheira para deixar um
fêmur fraturado (QUEIROZ, 2002, p. 56).
Esse primeiro desabafo da autora refere-se à velhice como um
problema biológico, uma condição natural e própria de todos os seres humanos. As
modificações no corpo são as constatações de que a senilidade está acontecendo. É
nesse período que a pessoa terá de se “assumir velha” ou renegar essa imposição
da natureza humana: “algumas tentarão adiar esse momento, outras irão exagerar
98
as conseqüências da velhice. As duas atitudes, opostas, incidirão sobre as atitudes
diante da doença e da saúde, com conseqüências práticas quanto aos cuidados com
o corpo” (BARRETO, 1992, p. 27).
Comparar a velhice ao HIV é uma forma de acusar essa condição
biológica nata de ser algo totalmente inadequado e capaz de comprometer a vida de
qualquer ser humano, que suas conseqüências são aterrorizantes, se observadas
sob o ponto de vista da escritora. Quando a idade se apodera do homem, e isso
quase sempre o pega de surpresa, não outra alternativa a não ser morrer
prematuramente ou envelhecer. E envelhecer consiste em aceitar as mudanças do
corpo e da mente e conviver com essas transformações, mesmo que elas lhe
pareçam implacáveis e insanas.
No plano biológico, a noção de declínio do corpo tem um sentido
claro: o organismo declina quando as suas chances de subsistir se reduzem. E a
fatalidade dessa alteração deve ser considerada conscienciosamente, visto que
estabelece uma ruptura do equilíbrio do corpo. Mesmo a medicina moderna o
mais procura atribuir uma causa ao envelhecimento biológico, ela o compreende
como um processo inerente ao curso da vida, assim como o nascimento, o
crescimento, a reprodução e a morte.
E o que dizer da atividade cerebral. Esta também sofre alterações
com a chegada da senilidade: se as exigências diminuem, de igual modo, também
as capacidades são afetadas. Assim, se as pessoas de mais idade não podem mais
viver hoje como viviam antigamente, sentem a necessidade de ocupar e de redefinir
os espaços criados para envelhecer, pois dessa forma conseguem responder, de
diversas maneiras, aos tipos de controle de emoções que passam a ser exigidos
perante essa nova situação.
Rachel de Queiroz não aceita passivamente todas essas mudanças
ocorridas no corpo e na mente daqueles que ficam velhos. Assim, por meio de uma
linguagem mais leve e mais descompromissada, como se estivesse mesmo
“batendo um papo” com seu público, ajusta a sua fala à sensibilidade do dia-a-dia
para retratar um assunto tão significativo para ela. E se a crônica, conforme afirmou
Antonio Candido, “está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão
das coisas e das pessoas” (1992, p. 14), a cronista aproveita-se dessa condição
para fazer valer a sua posição frente ao assunto.
99
A autora, na excelência de suas faculdades mentais, desfrutando de
toda a sua sabedoria e desenvolvendo seus escritos, não consegue admitir que as
perdas fiquem mais próximas quando a terceira idade vai se aproximando. Para ela,
o estar velho caracteriza uma condição nada comedida, portanto, tem a capacidade
de desestabilizar todo o desenvolvimento daqueles que atingem essa etapa. Então,
o fêmur fraturado deixa de conceber apenas uma lesão que pode fazer parte da vida
de qualquer indivíduo, e passa e simbolizar um dos exemplos daquilo que a
senescência pode representar para os sujeitos que nela se enraízam.
chegam as famosas “bobagens da terceira idade”. Conforme
Rachel, clubes, associações, academias, etc., todos se mobilizam em prol da
velhice, buscando oferecer atividades nada convencionais e nem tampouco
totalmente apropriadas para a vida dos idosos. E, mais uma vez, de acordo com
essa afirmação, pode ser notado o descontentamento da autora diante dessa
situação, pois, conforme explicitado, algumas instituições realmente têm se
preocupado com a saúde e com o bem estar dos senis, oferecendo atividades como
esportes, danças, ginástica etc., para propiciar aos mesmos momentos de prazer, de
diversão, de interação e de cuidados com a saúde mental e física. No entanto, a
autora, por apegar-se sempre a sua irritação diante dessa condição do ser humano,
não consegue vislumbrar os reais benefícios que essas “bobagens” podem
proporcionar aos senis.
Mas a realidade é mesmo um pouco dura e incômoda. Com o
desenvolvimento da senectude, algumas promessas de atenção especial, de
oferecimento de atividades compatíveis e de outras soluções milagrosas para a
inclusão do velho na nova sociedade vão surgindo sem a preocupação de se
estabelecer um compromisso sério. Nem sempre essas promessas cumprem com o
anunciado, pois se configuram, em sua maioria, em mais uma maneira de mascarar
o que essa realidade reserva aos idosos. Além do mais, nem toda ginástica, dieta ou
malhação conseguem esconder o que realmente a velhice proporciona aos
indivíduos.
Em “Não aconselho envelhecer”, essa questão da máscara utilizada
para esconder a realidade da senilidade é fortemente apresentada pela autora, que
considera uma tolice essa busca de se esconder algo que fará parte da vida de
todos, quer queiram ou não. No entanto, ela reconhece a dificuldade de aceitação
100
dessa realidade, principalmente quando a aparência insiste em mostrar que a
pessoa está velha, mas esta não se sente velha:
Diz-se que se consegue muito na luta contra a velhice. Ginástica,
dieta, malhação, corrida etc. Cirurgia plástica. Ah, pensaram no
tormento de uma bela mulher, atriz, dama da soçaite, cortesão, que
viva da e para a beleza, ao descobrir as primeiras rugas, a flacidez
do mento, daquela sutil rede de outras pequenas rugas que rodeiam
os lábios? O dr. Pitanguy opera e os seus colegas de mérito variável
também operam. Mas, por mais famosos, competentes e mágicos
que sejam os cirurgiões plásticos, só fazem mágicas, não fazem
milagres. Esticam a pele sobre os músculos flácidos, fazem peeling,
que é uma espécie de raladura na cútis, fica lindo a princípio, mas,
como toda mágica, não dura muito. E tem que começar tudo outra
vez, as cicatrizes não se escondem tão bem atrás das orelhas ou
no couro cabeludo, que aparado, vai encurtando, deixando as
pacientes com testas enormes, quase uma calvície. E nem falei em
calvície que, mercê de Deus, ataca mais os homens que as mulheres
(QUEIROZ, 2002, p. 57).
Mesmo diante de todas essas inovações oferecidas por uma
sociedade também repaginada, os milagres ainda não são possíveis. E, ao se
deparar com o espelho, a máscara acaba se desfazendo e traz à tona o que, muitas
vezes, se quer esconder. Ainda que o sujeito não se sinta velho, que sua cabeça e
seus sentimentos insistam em contrariar as evidências, nada disso confirma o que o
espelho reproduz, ou seja, a realidade. E, por pior que pareça, as demais pessoas
não verão aquilo que se quer deixar transparecer, mas, aquilo que o espelho vê,
ainda mais diante de uma sociedade que declara, dia após dia, a primazia dos
jovens:
Hoje a juventude é mais prestigiosa do que nunca, como convém a
culturas que passaram pela desestabilização dos princípios
hierárquicos. A infância já não proporciona uma base adequada para
as ilusões de felicidade, suspensão tranqüilizadora da sexualidade
ou inocência. A categoria de ‘jovem’, por sua vez, garante um outro
set de ilusões [...] Assim, a juventude é um território onde todos
querem viver indefinidamente. No entanto, os ‘jovens’ expulsam
desse território os impostores que não cumprem as condições da
idade [...] (SARLO, 1997, p. 39).
Para essa juventude soberana, os senis correspondem aos maiores
impostores, pois se entregam aos subsídios modernos para tentar mascarar a
101
irrefutável realidade da idade e, em alguns casos, acabam ultrapassando os limites
do possível para promover a sua provável aceitação junto a essa mocidade.
Essa situação acaba se transformando em um “pesadelo” para as
pessoas de mais idade a partir do momento em que o ideal estético firma-se sobre o
corpo jovem: o velho representa o que é feio e desfigurado pelas marcas do tempo.
Diante de sua fragilidade, a auto-imagem do senescente fica bastante
comprometida. Muitos problemas surgem em virtude dessa desfiguração: problemas
psicológicos, principalmente a depressão, quando acontecem nessa idade, estão
intimamente ligados ao declínio das funções gerais do organismo e às mudanças na
beleza e na forma do corpo. Além disso, a vida sexual acaba perdendo parte de seu
vigor, tudo fundamentado nas inúmeras transformações que o sujeito sofre nessa
altura de sua vida.
Desse modo, fica mais fácil compreender a ironia da autora ao falar
dessas futilidades criadas para compensar tantas perdas e tantas regressões. Se a
velhice é degeneração, perda, diminuição progressiva, desorganização, redução e
involução, o que dizer aos que atingem essa faixa etária diante de um vocabulário
tão desestimulante e que impressiona por sua configuração negativa?
Para reforçar as suas idéias de que o envelhecimento não constitui o
primor da vida e que, apesar de parecer um privilégio chegar à velhice nessa
realidade tumultuada da vida cotidiana contemporânea, a escritora termina as idéias
da crônica “Não aconselho envelhecer” falando sobre o envelhecimento da cabeça,
o momento em que o cansaço das idéias, da inteligência e da alma torna-se real e,
praticamente, irreversível:
O velho tenta se equiparar às audácias dos jovens, até mesmo
excedê-las mas a si próprio não se convence. Sabe que as suas
idéias são as do seu tempo, fruto do que leu, viu e acumulou; e isso
pode ser camuflado, mas não pode ser modificado. Dizem que as
células cerebrais não se renovam, como as demais células do corpo
– será verdade? (QUEIROZ, 2002, p. 58).
Não como evitar as desilusões diante daquilo que o se
consegue mais alcançar. Por mais que se tente mascarar alguns dissabores diante
das irrealizações que vão acontecendo com a consolidação da senescência, mais
cedo ou mais tarde o cansaço toma conta do sujeito idoso que, diante das suas
restrições, tem consciência de que o seu mundo, a sua instrução, o seu vocabulário,
102
as suas leituras e até mesmo a sua formação, são coisas que pertencem a um
passado e, como tal, perdem a sua importância.
Tudo que foi acumulado acaba sendo abafado com o tempo e,
fatalmente, torna-se parte de um legado que deixa de ser imprescindível à
sociedade, mesmo que represente toda a vida de um indivíduo. E, para que esse
passado não se perca até mesmo para quem o vive, é preciso que se tenha em
mente a sua autoridade: “Meu passado é o em-si que sou, enquanto ultrapassado:
para tê-lo, é necessário que eu o mantenha existindo através de um projeto; se esse
projeto é conhecê-lo, é preciso que eu o torne presente, rememorando-o para mim
mesmo” (BEAUVOIR, 1990, p. 445).
Até mesmo as idéias dos grandes gênios envelhecem. Simone de
Beauvoir (1990) analisa as atividades artísticas intelectuais na velhice e confirma
que escritores, artistas e pesquisadores em geral deixam de vibrar com a sua
criação, porque não se instalam mais em batalha para fazer e recriar a vida. Seja
qual for a sua criação cultural, perdem o estímulo, pois acreditam que ela não
“mudará mais o mundo”. Dessa forma, a curiosidade natural pela pesquisa e pela
aprendizagem perde, gradativamente, o seu brilho e a sua alteridade. Até mesmo os
escritores, segundo a estudiosa,
Apanhados por esse espírito geral, passam a repensar sua
produção, É comum que passem a preferir as memórias, o ensaio ou
a poesia; embora haja exceções, pois a ‘aventura humana não
suscita mais interesse’ e, por isso, não há como criar supostos heróis
ou destinos imaginários (apud GUIDIN, 2000, p. 80).
Para manterem-se vivos em seus projetos, os intelectuais também
procuram viver mais da lembrança do que da esperança de mudança nos objetivos
daqueles que compõem o cotidiano na modernidade.
No entanto, essa colocação de Beauvoir pode ser questionada, visto
que a própria Rachel de Queiroz escreveu até pouco tempo antes de sua morte,
aguardando a publicação do livro Visões, uma fusão de imagens do Ceará
fotografadas por Maurício Albano com textos da autora. E o que dizer, então, de
tantos outros escritores, pintores, escultores etc., que produziram e produzem até o
fim de sua vida?!
Mas, independente de quem seja atingido pela senescência, gênios
incontestáveis ou pobres mortais, o pior de tudo na constatação de que a senilidade
103
se concretizou, conforme Rachel, concentra-se no fato de não se poder lamentar os
estragos que a velhice proporciona ao seu corpo e a sua mente. Quando isso
acontece, geralmente há alguém para protestar diante dessa tentativa: “Eu queria,
quando chegar à sua idade, ter essa lucidez!” (QUEIROZ, 2002, p. 58). E a autora
encerra a crônica em questão revoltada com as particularidades da terceira idade e
condena, mais uma vez, o intuito de mascarar essa realidade e as suas implicações,
delegando um mínimo de dignidade ao fato: “Lucidez? O que é que esse cara
esperava? Que você estivesse caduco?” (QUEIROZ, 2002, p. 58).
4.2.2 “A Longa Vida que já Vivemos” (08-05-1992)
O título da crônica “A longa vida que vivemos”, texto inserido no
livro As terras ásperas, publicado em 1993, remete os leitores de Rachel de Queiroz,
mais uma vez, àquilo que a autora tanto apregoa em seus escritos: “a velhice é
muito ruim”.
Essa antologia de crônicas publicadas primeiramente pela imprensa
brasileira também reserva um espaço para os desabafos da autora e as
“discussões” com seus ledores em detrimento de sua relação com a questão da
senilidade. Em muitas das crônicas selecionadas para compor essa coletânea, o eu
do cronista transporta-se de seus anseios para os questionamentos acerca da
realidade que rodeia esse momento da vida de cada indivíduo.
No início da crônica, a escritora usa a terceira pessoa (parece que
aqui ela tenta manter certo distanciamento e mostrar-se imparcial em relação ao que
vai narrar) para falar a respeito de uma “querida velha dama” que está a dois anos
de completar cem anos. À beira do centenário e diante das marcas do tempo em seu
corpo, a nobre senhora comenta:
– E pensar que estes dedos têm 98 anos cada um! Enrugados,
coitadinhos, e, neste maior-de-todos, um pouco de reumatismo nas
juntas. Mas ainda dão muito bem para segurar a agulha de crochê, o
jornal da leitura, as cartas para a canastra... (QUEIROZ, 1993, p.
150).
A protagonista de Rachel, consciente dos sinais que os avanços da
idade deixam no corpo de cada sujeito, reconhece em sua mão direita as marcas da
104
velhice. E, ratificando sua lucidez diante dessa situação, ainda demonstra certo
conformismo ou resignação em relação às atividades que lhe são possíveis em tal
altura da vida. Fazer crochê, ler o jornal e jogar baralho, certamente não estariam
nos planos de um jovem ou de adulto em plena virilidade física.
É certo que o corpo dos velhos é um corpo frágil. Entretanto, quando
a mente ainda trabalha em função dos anseios e o idoso não se entrega às tristezas
que esse evento proporciona , essa fragilidade é abstraída e suas capacidades são
redirecionadas. No caso da senhora que está prestes a completar cem anos, se a
alternativa é desenvolver alguns trabalhos manuais, mesmo que com algumas
restrições, é exatamente isso que ela fará. E essa disposição da senhora fica
explícita no texto em questão, pois a reação seguinte da personagem é arrumar-se,
sozinha, para juntar-se aos seus logo em seguida.
Neste momento, a primeira pessoa volta a percorrer a crônica de
Rachel de Queiroz. A cronista fala da senhora com ar de notificações científicas:
com certa candura, expõe aspectos da máquina do corpo. Parece mesmo que o eu
do cronista não consegue manter-se distante do assunto quando o que está em
pauta é a terceira idade. Conseqüentemente, quem fala e quem nesse momento
é a mesma pessoa, e todos os focos convergem para a cronista, que assume uma
posição de maior autoridade, pois se trata do próprio “eu” falando de si mesmo,
incluindo-se na narrativa. E, quando a escritora se depara com sua protagonista, as
idéias sobre a velhice acabam se confrontando, pois, conforme o trecho seguinte,
mesmo concordando que o corpo é uma máquina maravilhosa, a autora encerra
essa idéia decretando a morte certa a quem atingiu, no caso, uma idade mais
adiantada:
Depois virá sentar-se à mesa para enfrentar conosco, sem
preocupações de dieta, o gordo cozido dos domingos. E a gente fica
pensando nessa máquina maravilhosa que é o corpo humano. 98
anos que bate aquele coração [...] Cada perna também tem 98 anos,
como gosta ela de dizer; e cada órgão do corpo, cada volta do
cérebro ou das vísceras, cada neurônio, cada músculo, cada osso! E
tudo funciona nestes 98 anos, sem perda de um segundo sequer,
pois bastaria uma pequeníssima parada para lhe decretar a morte
(QUEIROZ, 1993, p. 150).
Se a “querida velha dama” de noventa e oito anos conforma-se com
o seu estilo de vida em função de sua idade, a cronista deixa transparecer, em mais
105
esse escrito, a sua posição frente a essa situação. Ao afirmar que basta apenas uma
pequena parada para que a morte aconteça, Rachel desconsidera os pontos
positivos de alguém que alcançou tamanha idade, e reafirma aquilo que vem sempre
declarando em seus textos e em suas conversas: a velhice não lhe agrada.
A respeito dos centenários, certamente Beauvoir concordaria com a
personagem em questão, pois em seu livro A velhice, dedica um apêndice apenas a
essas pessoas, pois, segundo a autora, aqueles que chegam e/ou conseguem
ultrapassar os cem anos são, certamente, indivíduos excepcionais.
Conforme Guita Grin Debert, “os velhos em contextos culturais
distintos dão respostas dinâmicas e criativas ao conjunto de exigências colocadas
pela velhice, num esforço constante de sobrevivência física e sociocultural” (1999, p.
118). Manter uma vida com dignidade e controlar suas faculdades exige um esforço
monumental. E, quando isso é alcançado, pode-se falar na velhice como um
trabalho árduo, mas satisfatório e compensador, que atingir determinada idade
não é uma condição que todos alcançarão. Os indivíduos m sucessos distintos,
que dependem de habilidades particulares e individuais, mesmo quando ocorrem em
ambientes muito homogêneos. Talvez seja por isso que autora e personagem sejam
tão distintas em relação à senilidade: enquanto esta, consciente de sua velhice,
apenas segue seu curso, aquela, uma contrariada assumida sobre essa realidade,
caminha reclamando e “atacando” as imposições da terceira idade, aliás, como
dito anteriormente, termo odiado pela escritora.
Considerando que autora e personagem viveram uma longa vida,
Rachel compara o corpo humano a uma máquina poderosa que funciona
“indefinidamente” e que se conserta em si mesma, “narcisisticamente”. Essa
máquina corresponde a cada indivíduo que, na supremacia de sua existência, está à
mercê apenas dos ataques alheios, naturais ou não, agressões externas que não
permitem nenhuma resistência.
Todavia, os seres humanos, em geral, ainda têm a capacidade de se
reproduzir e, com isso, não apenas sobreviver por um tempo indefinido, mas,
perpetuar sua espécie com a procriação. Assim, quando a batalha parecer perdida
para aquele corpo desgastado pelo tempo, outros virão e desfrutarão uma vida
mais duradoura, se conseguirem se apropriar daquilo que a própria inteligência
humana vem desenvolvendo para combater os oponentes incansáveis:
106
E ainda temos, nós e todos os demais seres vivos, a capacidade não
apenas de sobreviver, mas de nos reproduzirmos e fabricar novos
seres que nos substituam na hora em que perdermos a batalha. A
gente então vai, mas vêm outros. E esses outros a cada dia logram
vida mais longa graças ao mais importante dos nossos dons: a
inteligência, que trabalha incessantemente para vencer os inimigos
da carne (que não é apenas a luxúria, como reza o catecismo, mas
tudo aquilo que ataque e ofenda o nosso precioso, inigualável corpo).
A divina máquina que o Padre Eterno modelou no barro e depois
animou o seu sopro (QUEIROZ, 1993, p. 151).
Com ironia, que a cronista admite a sua irritação perante a
fragilidade do corpo humano diante das implicações da velhice, encontra-se uma
saída para o corpo cansado. Todavia, percebe-se que essa única saída apresenta-
se na forma de substituição. Mesmo que os homens estejam desenvolvendo práticas
revolucionárias para assegurar uma vida mais tranqüila aos sujeitos, ainda assim
constata-se que outros usufruirão desses benefícios, não os velhos da sociedade
atual. No fim,
o poder do velho, que a ideologia teme e esconde, está nesta
síntese: as singularidades da vivência do velho apontam a falência
do projeto de vida que ele defende, justifica e vende. No fim da vida
de cada um, torna-se patente e patético o engodo: Que tragédia é
essa que se abate sobre todos nós? (BARRETO, 1992, p. 63).
Dessa forma, mesmo diante dos inúmeros avanços projetados pela
modernidade, nem todos os idosos da coletividade serão beneficiados.
O uso da primeira pessoa em grande parte da crônica acontece para
deixar clara a posição do eu do cronista, que não resiste em utilizar esse recurso
para evidenciar a sua relação, enquanto pessoa velha, com a velhice. Essa
autoridade assumida não se evidencia para dar maior veracidade aos
sentimentos do “eu”, como também para reforçar a condição da cronista em seu
próprio cotidiano.
A partir do penúltimo parágrafo, a crônica em questão toma rumos
bem característicos e reforça todas as proposições até então elencadas:
Todas as ciências se juntam para aumentar as chances de vida, a
prolongar a velhice sem senilidade. estão por toda parte os
nonagenários; mas na nossa sociedade, os de 90, como os temos
tanto hoje, eram raríssimos. Uma coisa terrível como o cólera, capaz
de exterminar quase toda a população da terra séculos atrás, é hoje
apenas assunto de preocupação razoável, até mesmo no Terceiro
107
Mundo. E os nossos filhos conviverão com centenários. E não dou
mais nem um século, e estaremos (ou estarão pelos menos os ricos)
vivendo tranqüilamente até a marca dos 900, como o patriarca
Matusalém (QUEIROZ, 1993, p. 151).
Para a cronista, a relação com a senilidade nunca seagradável e
passiva. de se esperar, sempre, que os infortúnios desse período reflitam sobre
aqueles que nele se encontram. Por mais que a contemporaneidade ofereça novos
recursos para tentar tornar a velhice uma trajetória aprazível, poucos poderão
usufruir dessas “invenções maravilhosas e prolongadoras da felicidade” nesse
momento tão conturbado. Além do mais, Rachel compartilha da mesma idéia de
Simone de Beauvoir ao concluir sua análise sobre a senescência:
a velhice não é uma conclusão necessária da existência humana.
Nem mesmo representa, como o corpo, [...] a necessidade de nossa
contingência. Um grande número de animais morrem – como no
caso dos efêmeros depois de se terem reproduzido, sem passar
por um estágio degenerativo (1990, p. 659).
Porém, constitui uma verdade incontestável o fato de o corpo, a
partir de um certo número de anos, começar a sofrer uma involução e,
conseqüentemente, aqueles que chegam a essa situação, sintam uma redução de
sua capacidade de desenvolver determinadas atividades, bem como uma diminuição
das faculdades mentais e uma mudança de atitude em relação ao mundo. Assim
sendo, todos os indivíduos que atingem a velhice sofrem as alterações dessa
passagem e necessitam se adaptar ou se entregar aos infortúnios dessa relação.
Quanto à tranqüilidade prometida por aqueles que tentam amenizar
as conseqüências do período senil, não segurança que possa ser garantida
nesse sentido. Como afirmou a autora: “Eu disse tranqüilamente? Mas isso não
posso garantir. E nem mesmo posso garantir que seja bom” (QUEIROZ, 1993, p.
151).
Desse modo, somente o conhecimento de cada indivíduo é que
poderá assegurar as fortunas e os dissabores dessa etapa da vida. Independente
das inovações oferecidas pela sociedade contemporânea e das imposições
inevitáveis delegadas aos velhos, apenas aqueles que passarem por esse momento
poderão tecer uma opinião a respeito dessa experiência.
108
Ainda assim, por ser cada sujeito uma pessoa única e singular,
voltar-se-á, sempre, ao mesmo impasse causado pela posição da cronista e de sua
personagem mencionada nesta leitura: o sujeito velho viveu por muito tempo.
Dessa forma, a voz da personagem e a voz da cronista causam um efeito que
reforça certa afinidade e, ao mesmo tempo, diferenciação entre quem narra e o
objeto narrado.
109
4.3
O
S
V
ELHOS E OS
N
OVOS
É a sua vida
Que eu quero bordar na minha
Como seu fosse o pano
E você fosse a linha
E a agulha do real
Nas mãos da fantasia
Fosse bordando ponto a ponto
Nosso dia-a-dia.
(Gilberto Gil)
Geralmente o “estilo da velhice” firma suas raízes na solidão, pois o
sujeito senil vive em uma época que despreza e da qual sente medo. Por sua vez,
até mesmo essa solidão não o compreende e, às vezes, o rejeita. Ser velho em um
mundo significativamente novo é o mesmo que transgredir regras e viver na
obscuridade. No entanto, o senescente não liga muito a ser aceito e
compreendido. A repercussão não o preocupa mais. E é nas relações com os
mais moços que algumas circunstâncias podem ser rememoradas e resguardadas.
Ainda que, em algumas situações, esses relacionamentos possam significar um
retorno melancólico ao passado, que um dia foi presente, e a uma constatação de
que o futuro, totalmente incerto, será vivido, seguramente, sem a presença desse
idoso.
“Não me ocorre quem comparou a velhice a um homem que fica
sozinho na mesa de banquete, murchando-se as flores, apagando-se as luzes”
(CARPEAUX, 1992, p. 18). Sem a presença de outrem, a solidão toma proporções
consideráveis e até trágicas. Quando solitária, a velhice deixa de esbarrar nas
confusões vividas pela mocidade e, de igual modo, na maturidade da fase adulta.
Não que a senilidade não esteja carregada de todas essas impressões. Porém,
diante de tantas novas imposições, não mais somente que se viver, mas, lutar
pela sobrevivência.
Na presença dos mais novos, existe a possibilidade da felicidade da
partilha. Em presença dos ardores da infância e da juventude, das responsabilidades
e da maturidade da fase adulta, que se pensar no convívio (o viver junto) como
110
uma troca saudável, uma “comunhão de vida”. Afinal, “se a velhice o os aproveita
da mesma maneira, ela não está totalmente privada deles” (CÍCERO, 1997, p. 40).
Mesmo que essa convivência tome rumos incertos, destinados às tristes
lembranças, às cobranças incabíveis e às desilusões com o futuro (próprio e do
outro), ainda assim, tornar-se-á necessária, pois, como disse Otto Maria Carpeaux, é
este o “[...] centro misterioso da existência humana; lembramos a inexorabilidade do
tempo e, ‘ao mesmo tempo’, as nossas possibilidades secretas de superá-las”
(1992, p. 22).
Tendo perdido as ânforas da infância,
ânforas que tomadas ou aspiradas
derramavam no ar a substância
de que coisas bebiam inebriadas;
tendo perdido o verde som dos hortos
descer pelas ramagens nos silentes
degraus, ainda vejo no sol posto
o fruto ou flor fechada e rescendente.
Sonho com as espigas debulhadas
em grãos que a luz unia ou separava
para cobrir o chão de áureo tecido
e meus pés afundavam na dureza
macia desses grãos que me fugia
sem que ouvisse no ar o seu gemido
(Charles Kingsley
13
)
4.3.1 “A Menina que vai Crescer” (23-06-1989)
As crônicas de Rachel são fruto da diversidade de suas vivências.
Com grande freqüência, a autora abre um espaço de intimidade e uma proximidade
quase presencial com seus leitores.
Resumindo as definições dos estudiosos do gênero, a crônica é uma
exposição dos simples acontecimentos do dia-a-dia do homem. E o cronista, o
responsável por resgatar e transportar essa trivialidade para o papel. Na crônica “A
menina que vai crescer” é possível afirmar que a autora aos seus ledores a
possibilidade de uma imersão em seu mundo. Por meio de um acontecimento
corriqueiro, uma habitual ida ao médico para consultar uma criança, a cronista
desenvolve um texto em que expõe suas angústias e sua acepção acerca do
13
Os poemas de Charles Kingsley utilizados neste trabalho foram retirados do livro Memória
e sociedade de Ecléa Bosi.
111
ocorrido. Ao mesmo tempo, estabelece uma troca: fala sobre as suas descobertas e
os seus anseios em relação à sua bisneta, mas exige um pouco mais de atenção
quando aproveita este momento para continuar as suas divagações a respeito da
velhice:
Ontem o doutor tomou as medidas de minha bisneta de dois anos,
por nome Ana Teresa, e comunicou à mãe que a garota vai ter,
quando adulta, 1,72 m de altura, será esbelta e longilínea. Então a
gente fica pensando: que mistérios, que potencialidades se
escondem dentro daquele corpinho, mulher miniatura, tendo
guardados consigo todos os componentes de uma futura mulher?
(QUEIROZ, 1993, p. 37).
No início da crônica, o eu do cronista se mostra incomodado com a
postura do médico ao atender sua bisneta: diante de uma criança de apenas dois
anos, a preocupação do facultativo e da família diz respeito às potencialidades da
garota para quando crescer e se tornar uma mulher. Apesar de ser Ana Teresa uma
criança linda, perfeita e carismática, todos ficam imaginando como a pequena será
quando adulta e acabam se esquecendo das suas particularidades e de sua
capacidade ainda no corpo de uma criança. E por que tanta pressa para encaminhá-
la à vida adulta, se o que vem a seguir é a implacável velhice, munida de todas as
suas artimanhas e armadilhas? Assim, o discurso do médico, que prega certa
precisão para o corpo da menina, se contrapõe à voz da cronista, fato que acaba por
traçar a construção textual da crônica em questão.
A cronista, que acaba excedendo o caráter de previsão imposto por
sua família e pelo médico da bisneta, aponta para questões mais complexas do que
a estatura da criança, questionando as potencialidades da menina. Ela exerce a sua
autoridade como narradora e bisavó, na tentativa de defender os direitos de sua
bisneta. Para ela, Ana Teresa tem apenas de aproveitar os doces momentos que a
infância pode lhe proporcionar e não se incomodar com as indagações de um futuro
distante e incerto.
De acordo com as palavras de Affonso Romano de Sant’Anna, a
crônica constitui uma forma de interferência no cotidiano, uma possibilidade de
interação com os acontecimentos diários. E Rachel usa desse artifício para defender
os direitos de sua bisneta. Ela expõe a sua opinião sem se incomodar com a reação
dos seus familiares. Talvez a sua intervenção não consiga conscientizar os seus da
112
responsabilidade de cada um perante a vida de Ana Teresa. No entanto, a cronista
cumpre com a sua obrigação de expor sua opinião sem envergonhar-se disso ou
recuar.
Nas palavras de Simone de Beauvoir, pode-se encontrar a razão da
apreensão de Rachel: a “[...] velhice é um destino, e quando ela se apodera da
nossa própria vida, deixa-nos estupefatos. ‘O que se passou, então? A vida, e eu
estou velho’ [...]” (BEAUVOIR, 1990, p. 347). E para a vida que se passa não
retorno, nem tampouco desvios que possam conduzir o indivíduo a uma segunda
chance:
[...] Ana Teresa é, de si, obra além do visível – visibilíssima! –,
perfeita, que não carece de mudança nenhuma para melhorar. Anda,
corre, dança, fala, canta, mente, acarinha, briga, reivindica, chora.
Tem aqueles olhos luminosos, aquele sorriso irresistível. Até as
caixas do supermercado sorriem para ela, o que é sinal de um
carisma absoluto. [...] O mal é que, embora sendo a menina essa
perfeição realizada, todos falam em vê-la crescida. Os pais
mandam medi-la, os doutores vivem a fazer antecipações sobre o
seu futuro, ela própria deve sonhar em ser uma pessoa grande
(QUEIROZ, 1993, p. 38).
Aqui se configura o mal maior expresso nessa crônica: todos querem
ver Ana Teresa crescida. E por quê? Será porque, como afirmou Cícero (1997), eles
acreditem que “a posição do velho é melhor que a do adolescente? Aquilo com que
este sonha, ele o obteve. O adolescente quer viver muito tempo, o velho viveu
muito tempo!” (p. 54). Ou ainda, que a infância é uma fase sem muita importância,
que pode ser logo “atropelada” por outra. Ledo engano! A ansiedade é tanta em
imaginar a pequena garota uma pessoa adulta, que os devaneios da infância
acabam se perdendo. Ao invés de a família aproveitar essa fase tão singular,
preocupa-se mais em imaginar o futuro. No entanto, todos parecem esquecer que,
após a confirmação da vida adulta, a velhice virá e será inflexível em seu processo:
A criança e o adolescente têm uma idade. O conjunto de proibições e
de deveres aos quais estão submetidos, e os comportamentos dos
outros para com eles não lhes permitem esquecer isso. Quando
adultos, não pensamos na idade: parece-nos que essa noção não se
aplica a nós. Ela supõe que nos voltemos para o passado, e que
interrompamos as contas, enquanto, impelidos para o futuro,
deslizamos insensivelmente de um ano ao outro. A velhice é
particularmente difícil de assumir, porque sempre a consideramos
113
uma espécie estranha: será que me tornei, então, outra, uma outra,
enquanto permaneço eu mesma? (BEAUVOIR, 1990, p. 348).
Enquanto crianças ou adolescentes, mesmo sob o crivo de
determinadas instruções por parte dos adultos, a vida segue seu rumo natural,
porque ainda se pode escolher certos caminhos e desfrutar das habilidades que
cada um vai adquirindo ao longo de sua existência. Quando adultos, a questão da
idade pouco incomoda, visto que os sujeitos pensam poder tudo. Essa é a fase da
maturidade, da colheita e da busca de sentido para tudo na vida. Já a velhice... Ah, a
velhice! Esta compreende (e Rachel insiste em lembrar seus interlocutores disso)
aquele momento em que todas as fronteiras perdem seu valor, é a fase da
desesperança, das perdas e das restrições. Daí o desespero por parte da cronista
ao perceber que sua querida bisneta está sendo conduzida a este mundo muito
antes de vivê-lo.
A escritora reconhece que a terceira idade é um estágio natural,
portanto, impossível de ser evitado por aqueles que sobrevivem à vida adulta. Dessa
forma, por viver esse momento e conhecer todos os percalços dessa jornada, não o
deseja a sua bisneta. E vai mais além quando explicita a noção que tem de quão
difícil é o caminho a ser percorrido até esse período. Para Rachel de Queiroz, toda
transição de uma etapa a outra compreende uma mudança brusca, que exige das
pessoas o desvio de certos costumes, o desligamento de determinadas práticas e a
escolha de novos propósitos:
Mas depois de se ver grande, adulta, duvido que ela queira ser velha,
o que é afinal a lei natural das coisas e o destino de toda evolução.
Acontece que a velhice é o mais indesejável de todos os progressos.
E se em geral nós próprios, os velhos, não sonhamos em fazer
marcha inversa e regressar à mocidade, é porque recordamos como
foi duro, desgastante e difícil o caminho que vai do estado de adulto
à velhice. Aliás, mesmo o caminho que leva da infância à mocidade
não se pode dizer que seja um tapete de rosas. Ou quando o é, tem
muito espinho entre a folhagem, que não rosa sem espinho,
como diz a voz do povo (QUEIROZ, 1993, p. 38).
Certamente que também o caminho inverso não é desejado, que
toda mudança exige esforços e, quase sempre, provoca dor. Não há mudança sem
sofrimento, sem ansiedade e sem hesitação, que não “cobre” dos envolvidos
decisões amesmo radicais. E o ser humano frustrado tem de se repensar e se
refazer, o que nem sempre é possível. Quando o é, o indivíduo “terá que voltar a
114
essa reflexão interior, essa ruminação, essa procura de caminho, essa procura...
Voltar talvez aaquela fase bonita de angústia da escolha [...] a essa procura de
adaptação para se situar e estar cavaleiro da situação e não ser derrotado, não ser
afastado, marginalizado [...]” (BARRETO, 1992, p. 8).
A mudança é reconhecida, mas sua profundidade geralmente é
mascarada. Nem sempre as implicações existentes em cada período de transição
são levadas a sério. Quando se fala da senilidade, então, mais circunspecta se torna
a questão, pois muito se comenta sobre os avanços que contribuem para a
“prolongação da vida”, portanto, sobre uma possibilidade mais generalizada de se
chegar à idade avançada. Todavia, nem todas essas inovações podem garantir uma
velhice mais tranqüila, menos conturbada e menos insana. Muitas vezes é preferível
ignorar o idoso, pois ele lembra demais a própria fragilidade de cada um, dessa
forma, a fugacidade da existência humana.
E no tocante às mudanças do corpo, essas também preocupam a
bisavó cronista, que não se conforma em saber que tudo que é tão perfeito em sua
Ana Teresa será suprimido, que as marcas da vida adulta e da senescência
aparecerão sem pedir licença:
E, então, a gente olha para Ana Teresa, esplendorosa, e pensa na
loucura, na imprudência da natureza em substituir aquilo tudo que é
graça suave, combinação sábia de colorido cabelo, olhos, pele,
boca e ir trocando os dentes, engrossando a seda do cabelo e a
transparência da pele, pondo ângulos no desenho suave de braços,
pernas e ombros, estirando ossos... Mesmo que venha ela a ser uma
moça linda, será de lindeza diferente. E para onde vai tudo aquilo
que estava ali, na pessoinha inimitável, e se transformou?
(QUEIROZ, 1993, p. 38).
A vida adulta e a velhice, em geral, estão associadas às
transformações do corpo. Os grupos passam a reconhecer os seus quando estes
apresentam características próprias e comuns àqueles que atingem certo patamar
em relação à idade. Daí a apreensão da escritora ao pensar na pequena Ana
Teresa, pois ela sabe que a idade é inflexível e não perdoa ninguém: quando os
anos vão se aproximando, a natureza se encarrega de atribuir ao corpo aquilo que
lhe é pertinente em cada período da existência humana. As transformações na
aparência indicam uma nova realidade.
115
E a cronista termina seu texto reforçando a relação que mantém com
sua bisneta, que representa para ela o frescor da idade, o início de uma caminhada
penosa. Contrariada com a condição de poder presenciar o crescimento e as
mudanças do corpo de Ana Teresa, Rachel fala da sua vontade de poder “parar o
tempo” para que e vida continue como é para a sua bisneta. Para ela, este é o
“modelo” mais bem acabado e bonito que Ana poderia assumir. Pelo menos, “[...]
para o velho coração da bisavó, que gostaria de parar o tempo e o cenário de luz e
flor em redor de Ana Teresa” (QUEIROZ, 1993, p. 38).
Segundo Simone de Beauvoir, os sentimentos mais calorosos e
mais felizes das pessoas idosas são aqueles que elas nutrem por seus netos. E isso
cabe também aos bisnetos, que ocupam essa mesma linha de pensamento na
cabeça dos senis. Tratam-se de sentimentos simples, que são praticados a partir do
momento que os velhos assumem a condição de avós, de bisavós, etc. Quando isso
acontece, vem também a satisfação por poder assumir essa condição:
Tudo o que faz a ambivalência da condição parental desejo de
identificação, de compensação, sentimento de culpa ou de frustração
é poupado aos avós. Eles podem amar os filhos com toda
gratuidade, com toda generosidade, pelo fato de que não têm mais
responsabilidade; não é aos avós que cabe a tarefa ingrata de
educar, de dizer não, de sacrificar ao futuro o momento presente.
Assim, a criança lhes manifesta freqüentemente muita ternura;
encontra neles um recurso contra a severidade dos pais; não sente
com relação a eles, o ciúme, o desejo de identificação, os rancores e
as revoltas que dramatizam suas relações com seu pai e sua mãe
(BEAUVOIR, 1990, p. 582).
Quando em contato com os netos, com os bisnetos, com crianças e
adolescentes em geral, os velhos encontram nessa afeição “uma desforra contra a
geração intermediária”. Esse contato com a juventude proporciona aos senis um
rejuvenescimento sem medidas. Daí a preciosidade dessa relação, que ressuscita
aos senescentes “sua própria juventude, transporta-os para o infinito do futuro: é a
melhor defesa contra a melancolia que ameaça a idade avançada” (BEAUVOIR,
1990, p. 582).
Infelizmente, essas relações são praticamente raras, uma vez que o
mundo das crianças, dos jovens, dos adultos e dos velhos não são,
necessariamente, muito compartilhados. Nem sempre essa interação é gratuita e
desinteressada. Para as mulheres, então, essa afinidade assume um papel maior,
116
que estas são menos amarguradas e menos reivindicativas do que os homens na
velhice. Elas valorizam mais esse tipo de relacionamento.
De tal modo, entender a inquietação de Rachel de Queiroz em
relação ao crescimento de sua bisneta torna-se uma tarefa fácil, No conturbado
mundo dos velhos, as perdas são muito freqüentes. Permitir que acelerem o
processo de desenvolvimento de Ana Teresa seria, então, antecipar um momento
angustiante, uma vez que, conforme vão crescendo, em sua maioria, os jovens não
mais encontram tempo para interagir com os seus velhos e deles pouco procuram
tomar ciência ou partido.
E o que dizer do desejo da menina: “Mas até a própria Ana só pensa
no tempo em que vai ‘ser grande’. Ou ‘gande’, como ela diz.”? (QUEIROZ, 1993, p.
38). A correção feita pela autora acontece com o propósito de dar autenticidade ao
discurso por ela incorporado até então. A cronista reconhece a sua derrota diante da
Ciência e do desejo do próprio objeto, Ana Teresa. Por meio do lapso fonético
apresentado, ela reafirma a imagem da bisneta como criança. No entanto, o sem
antes reconhecer que a pequena garota também anseia por esse momento.
Diante de uma sociedade acelerada, nem mesmo as crianças
escapam das artimanhas do tempo. E, à exasperada cronista, resta apenas a
apreensão diante do cobiçado desenvolvimento de sua querida bisneta, que se
tornará adolescente, jovem, adulta e, naturalmente, velha. Sendo a velhice,
conforme afirmou a autora, o mais indesejado dos progressos, possivelmente essa
aceleração será repensada quando, certamente, for tarde demais para que cada
etapa da existência seja valorizada em sua totalidade.
4.3.2 “A Arte de ser Avó” (agosto
14
– 1958)
A importância das relações familiares para o bem-estar na velhice
constitui um ponto fundamental na vida dos idosos. Pesquisas enfatizam que esse
tipo de afinidade ainda é essencial na assistência ao senescente e nas expectativas
criadas em relação ao processo de envelhecimento. Entretanto, sabe-se que, no
tocante à linhagem, nem sempre se estabelece uma convivência harmoniosa e bem
resolvida. Se o equilíbrio afetivo das pessoas idosas depende, sobretudo, de suas
14
Mesmo depois de muita pesquisa, não foi possível localizar o dia da produção da crônica
“A Arte de ser Avó”, como aconteceu com as demais crônicas abordadas.
117
relações com os filhos, e essas, na maioria das vezes, são difíceis, uma vez que, de
acordo com Guita Grin Debert, “o fato de os idosos viverem com os filhos [e com
eles se relacionarem] não é garantia da presença de respeito e prestígio nem da
ausência de maus-tratos” (1999, p. 83), é com os netos que os sentimentos mais
entusiásticos afloram.
Tudo isso acontece, segundo Simone de Beauvoir em sua obra A
velhice, porque:
O filho não superou totalmente seu rancor juvenil contra o pai; foi na
medida em que o matou simbolicamente, que chegou a isso:
desligou-se do pai, ou mesmo suplantou-o. Quando viu, de repente,
seu filho um adulto, o pai atravessou uma fase de ‘sentimento
edipiano invertido’: foi-lhe necessário reconstruir suas relações com
seu filho [...] os sentimentos que tem por este na velhice são
afetuosos, ambivalentes ou hostis. É sobretudo contra os filhos que
se elabora a atitude reivindicatória e desconfiada do velho; ele se
conta de que os filhos suportam impacientemente a autoridade que
ele conserva, ou a carga na qual se transformou (BEAUVOIR, 1990,
p. 579).
15
Todavia, quando as afinidades são concretizadas na presença dos
netos, é possível focalizar a possibilidade de um conjunto de mudanças e de
criatividade capazes de minimizar ou até mesmo suplantar os inconvenientes
trazidos pelo avanço da idade. Isso porque é exatamente esse tipo de sentimento
que proporciona aos senis a satisfação e a sensação de preenchimento, pois,
quando os netos entram em cena e os idosos assumem a sua velhice, a condição de
avós lhes traz muitas satisfações.
Na crônica “A arte de ser avó”, texto integrante da coletânea O
homem e o tempo, de 1995, reeditado na Coleção Melhores Crônicas, em 2004,
Rachel de Queiroz explicita essa bivalência dos sentimentos das pessoas de terceira
idade com seus filhos e com seus netos. Com todo o seu conhecimento diante da
condição de ser velho, a autora expõe sua experiência como avó e tenta elucidar,
também, o porquê de os idosos estabelecerem essa relação em detrimento das
relações com seus filhos ou com outros parentes:
15
Lembrando que tais situações dependem muito dos costumes, da região e do tipo de
relacionamento que se estabelece em cada família e cada sociedade. Simone de Beauvoir
escreveu tais afirmações diante de uma realidade vivida por ela na França, país em que, na
época em que o livro A velhice foi escrito, a questão da senescência se impunha
essencialmente para caracterizar as pessoas que não podiam assegurar financeiramente
seu futuro – o indivíduo despossuído, o indigente.
118
Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter
feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os
ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem
os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E
não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o
neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho
que o próprio filho mesmo... (QUEIROZ, 2004, p. 181).
Assim a cronista inicia seu texto, enobrecendo a condição dos netos,
que são, para ela, mais que os próprios filhos, um presente de Deus, dado sem
cobranças, sem dores e sem sofrimentos. Todas as frustrações, as perdas e as
limitações geradas em função do progresso dos anos parecem ser superadas com a
chegada dos netos. Quando todos querem que as pessoas da terceira idade
acreditem nas compensações da velhice, se é que elas existem realmente, é na
presença dos netos que tal fato começa a parecer apropriado e plausível.
Em mesmo grau de relevância, também está a questão da “nostalgia
da mocidade”, que surge quando se estabelece nos senis uma sensação de que
perderam algo que não retornará jamais, a saudade de alguma coisa que se tinha e
que foi sendo tomada sutilmente: “Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de
criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as
suas crianças?” (QUEIROZ, 2004, p. 181). O que o idoso nos seus, agora, são
apenas adultos totalmente complicados, cheios de contas a pagar, com famílias nem
sempre estruturadas etc. As crianças se foram, e o que restou foram homens e
mulheres completamente perdidos na agitação do cotidiano contemporâneo: “não
são mais aqueles que você recorda”.
Nesse momento, quando a autora estabelece a simultaneidade entre
o presente e o passado, nas lembranças dos avós, de sua juventude e da saudade
dos filhos ainda crianças, acaba reportando o eu do cronista ao seu antigo ser. Ao
mesmo tempo em que se uma pessoa feliz na presença dos netos, recobra, em
sua memória, os momentos em que seus filhos ainda eram infantes. E uma vez
desencadeada a memória, o eu do cronista resgata imagens até então perdidas e
reservadas às experiências ligadas à rotina do passado.
Perante mais esse malogro, sem maiores cobranças, chegam os
netos, aqueles que permitem aos idosos resgatar um pouco do que se perdeu com o
adiantamento dos anos:
119
E então, num belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das
agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um
menino. Completamente grátis nisso é que está a maravilha. Sem
dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça da qual você morria
de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela
criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é
“devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito
sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância;
ao contrário causaria escândalo e decepção, se você não o
acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que
anos se acumulava, desdenhado no coração (QUEIROZ, 2004, p.
182).
O eu do cronista segue extasiado com a “bênção” que acredita ter
recebido na pessoa do neto. Diante de tantas intemperanças advindas da senilidade,
receber, assim, de graça, um presente tão especial, e ainda poder resgatar aquilo
que considerava perdido e usufruir, outra vez, da possibilidade de interferir na
educação de uma criança (logicamente, sem cobranças e sem intenções
pedagógicas), é o mesmo que resgatar parte da vida que lhe foi roubada com o
advento da velhice.
Beauvoir ainda assegura que essa relação marcadamente amorosa
e reestruturadora acontece de forma mais intensa na vida das mulheres. São as
avós que conseguem se pronunciar mais abertamente diante da presença dos
netos. São elas que, com disponibilidade para mais ação, se “[...] ‘descomprometem’
menos. Estão também mais habituadas a viver para os outros através deles. Idosas,
continuam atentas aos outros, para o melhor e para o pior” (1990, p. 582). Desse
modo, assim como a entusiasmada narradora Rachel de Queiroz, os senis
estabelecem um vínculo estritamente afetivo e completamente singular com seus
netos.
Para a cronista, os netos são nada mais nada menos que uma forma
de a vida se redimir e de proporcionar alguma alegria diante da situação tão aviltante
que constitui a senilidade: “Sim, tenho certeza de que a vida nos os netos para
nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos,
profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos
arroubos juvenis” (QUEIROZ, 2004, p. 182).
Todavia, nem tudo é um “mar de rosas” na vida da avó. E essa
metáfora deve ser mesmo considerada! Nas palavras da própria autora, “nem tudo
são flores”, que se cruzar com os espinhos nessa caminhada de realizações e de
120
descobertas junto aos netos. E, de acordo com a experiência de Rachel, a maior
barreira nessa famigerada relação está na presença da mãe, a grande antagonista
de todas as avós:
Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser
a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine o
menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de ‘vovozinha’ e lhe conte
que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você.
São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo (QUEIROZ,
2004, p. 182).
Quando a cronista retratou sua família em seu livro Tantos anos,
disse o seguinte: “Famílias, a natureza as faz, mas a gente as arruma e organiza”
(QUEIROZ, 2004, p. 269). Portanto, pode-se aferir que é nesse plano que se
encontra o relacionamento da avó com a mãe do seu neto. Dentro da estrutura
organizacional familiar, cabe às mães o cuidado maior e, por assim dizer, a
prioridade (que poderia ser entendida como propriedade) maior da criança. Nessa
organização realizada internamente, por mais que a ase proponha a substituir,
pelos zelos e pela dedicação incondicional, a mãe da criança, é esta quem toma as
decisões mais importantes e quem dita as regras a serem seguidas na educação
dos rebentos.
A atitude da avó em relação aos netos depende muito da afinidade
que ela mantém com sua filha ou com sua nora. No entanto, independente de tal
condição, esta se sente despeitada por representar junto a eles um papel
secundário. Isso se deve ao fato de a mulher se valorizar muito como mãe e
compreender a importância desse papel na sociedade e no âmbito familiar. De tal
modo, a competitividade com a filha ou com a nora toma proporções gigantescas e
acaba gerando situações delicadas e indesejadas, além de algumas desilusões e
certos desencantos.
Para o homem, essa questão não assume tamanha magnitude. Por,
na maioria das vezes, não disputarem com os filhos e com os genros no plano da
paternidade, essa relação acontece de uma forma mais amena e tranqüila. Todavia,
se acabam se envolvendo na vida dos netos, são tão carinhosos e tão amorosos
quanto as mulheres, com uma questão a seu favor: o menos ambíguos e, por
isso, instituem um relacionamento mais pacífico e menos cercado de cobranças e
de melindres.
121
Mas, nessa complicada relação, nem tudo constitui um infortúnio
para as avós, que têm ao seu lado a condição de poderem dedicar aos netos aquele
momento mais “doce”, esperado e celebrado por eles. Rachel de Queiroz, com
maestria, compara delicadamente a relação da avó e da mãe com a criança, ao
relacionamento da esposa e da amante com o marido:
A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença
constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho, veste-o.
Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de
educar e o ônus de castigar. a avó não tem direitos legais, mas
oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa.
Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, ‘não
ralha nunca’. Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão
pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último
recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de
rebeldia (QUEIROZ, 2004, p. 183).
Quando estão sob a custódia das avós, não para as crianças
aquela marcação certeira sobre o que é proibido ou o. Mais que isso, o que se
pode perceber nessa relação é realmente a sedução da “subversão da disciplina”
que, sem provocar problemas mais sérios, determina a graciosidade e o deleite
dessa afinidade.
Nessa estreita e íntima relação, todas as circunstâncias corroboram
para que o prazer seja aguçado. Na crônica em questão, a escritora celebra a
maravilhosa oportunidade de uma avó ao passear com seu neto e causar, nas
outras avós, o ciúme e aquela inveja sem maldade, pois o próprio neto é sempre o
mais bonito, o mais educado e o mais inteligente de todos. E há, também, o êxtase
ao se ouvir da boca do infante a palavra “vó”. E mais, a cumplicidade que se
evidencia nesse relacionamento. Por mais que possam existir percalços nessa
relação (e eles se instalam mesmo nessas situações), todas as ocorrências, a
mesmo as mais adversas, colaboram para que a velhice seja, para esses
privilegiados, mais produtiva, menos (ou mais) insana e totalmente reconfigurada:
Eu sou avó. [...] Sou avó e estou curtindo muito ser avó. Eu fiz um
poema lindo para o meu neto. Gravei músicas lindas para ele
também. Eu canto para ele. Minha casa está cheia. Agora é a minha
casa: está cheia. Era aquela casa grande, clara, com planta. Agora
está cheia cheia cheia. É uma casa muito alegre: muita gente, muita
música, alegria e... muita saudade. [...] tem muita criança pulando,
correndo, saltando pra lá e pra cá (apud BARRETO, 1992, p. 131).
122
Conforme o depoimento citado anteriormente, pode-se perceber a
relevância desse sentimento e dessa ligação. Tudo toma proporções inebriantes e
prazerosas. Até mesmo os contratempos ganham uma nova dimensão:
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem
entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o
menininho involuntariamente! bateu com a bola nele. Está
quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas
recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço
pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque
‘ninguém’ se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era
um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem
dinheiro que pague... (QUEIROZ, 2004, p. 184).
Neste último parágrafo da crônica “A arte de ser avó”, fica explícita a
opinião do eu do cronista no tocante ao sentimento das avós por seus netos.
Retratando um fato particular, a autora encerra esse texto revelando toda a sua
ternura por esses seres que, sem a menor pretensão, chegam à presença dos
idosos e os enchem de um novo fôlego de vida. De tal modo, permitem que, pelo
menos no deleite de sua companhia, os senis se esqueçam das restrições, das
perdas e das sublimações a que são submetidos quando se deparam com a velhice
e todas as suas implicações.
E, se ainda resta alguma dúvida a respeito do amor da cronista por
seus netos e de toda a sua compaixão pelo prazer e pela importância dessas
pequenas criaturas para ela e para qualquer outro idoso, talvez um excerto de uma
das crônicas da autora escrita para um de seus netos possa clarificar essa
impressão:
Ele não chegou “como um ladrão à noite” como na frase da Escritura.
Veio mesmo de dia e se não a ferro e a fogo, pelo menos entre ferro
e fumaças de protóxido de azoto. Causou a princípio dor, apreensão,
grande medo, e no fim muita alegria. Por que tanta alegria, não sei
aliás. [...] (QUEIROZ, 2004, p. 273).
Mais que uma satisfação no fim da vida, a presença dos netos e a
amizade dos jovens às pessoas idosas a impressão de que esse tempo que
vivem continua sendo o seu próprio tempo. E, de acordo com Beauvoir, essa relação
123
proporciona aos senescentes a possibilidade de ressuscitar a “sua própria
juventude” e de transportá-los para o “infinito do futuro”.
E a crônica presta-se fielmente ao papel de incorporar essas
histórias da vida de cada um. Por ser ela mesmo um gênero do cotidiano, “por meio
dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade
que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo dia. Principalmente
porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais
natural” (CANDIDO, 1992, p. 13).
Assim, quando Rachel estabelece essa interação com seu público
ledor e permite aos mesmos a possibilidade de conhecer um pouco mais a respeito
de sua vida, cria um ambiente de descontração em sua crônica. Ao narrar as suas
emoções referentes aos netos, emprega em seu texto certo ar de familiaridade, de
conversa despretensiosa, no entanto, de fino acabamento, possibilitando uma maior
imersão do leitor na “prosa fiada” que se instala quando a cronista revela a sua
felicidade por ser avó.
Além disso, diferentemente das demais leituras realizadas neste
trabalho, a crônica em questão apresenta um eu do cronista mais novo e menos
atingido pelas circunstâncias da velhice, o que denota ao texto uma linha de
pensamento menos pessimista em relação à situação dos idosos. Em 1958, com
apenas quarenta e oito anos de idade, as impressões de Rachel diante da senilidade
eram mais leves, como se pôde observar nas crônicas anteriores e como será
constatado, ainda, nas leituras que virão.
124
4.4 O
S
V
ELHOS E AS
D
ATAS
Quando a velhice chegar, aceita-a, ama-a. Ela é
abundante em prazeres se souberes amá-la. Os
anos que vão gradualmente declinando estão entre
os mais doces da vida de um homem. Mesmo
quando tenha alcançado o limite extremo dos anos,
estes ainda reservam prazeres.
(Séneca
16
)
O sujeito idoso não pode ser apenas considerado em sua
exterioridade, enquanto objeto da Ciência e da História. Mais que isso, trata-se de
um ser que interioriza a sua situação e que, via de regra, reage a ela, tentando
entender como se a sua velhice e as decorrências dessa transição. Como, então,
em sua singularidade, ele vive a sua velhice? Que conjunturas possibilitam a
compreensão dessa etapa da vida?
É verdade que a condição das pessoas de terceira idade não é a
mesma em todas as partes do mundo e, muito menos, em todas as épocas. Mas é
possível exemplificar esse relacionamento indivíduo/idade considerando algumas
datas que cercam as pessoas idosas, aqueles momentos que se concretizam e que
permitem a conscientização e o vislumbre dos acontecimentos em torno da essência
de cada um.
No entanto, as interferências por parte dos mais variados fatores
acabam por definir a verdadeira condição do homem velho, pois cada um
consegue estabelecer um verdadeiro sentido a sua vida, na medida em que
encontra significado em sua relação com os outros, com o mundo e com sua própria
história. Qualquer recorte é arbitrário e não deve ser permitido. A última idade é um
momento necessário e crucial para que as relações com o próprio corpo, com a
imagem, com o tempo, com as datas, com o próximo e com o mundo sejam
estabelecidas e incorporadas de forma a contribuir para que os senescentes possam
integrar-se de uma maneira satisfatória ao novo mundo e às imposições dessa
transição.
16
Pensamento do filósofo romano que acreditava que o destino de todos encontra-se
predestinado. O homem pode apenas aceitá-lo ou rejeitá-lo. Se o aceitar de livre vontade,
goza de liberdade. E, para o pensador, a morte é um dado natural, assim como a velhice.
125
Juntamente às descobertas e à assunção da velhice caminham a
insegurança e a vivência de situações novas. Dessa forma, quando os sujeitos
velhos se vêem diante de algumas datas, especialmente os aniversários e as
passagens de ano, sentem que a vida está “escorrendo” de suas mãos, que o
tempo está passando. E, à medida que presenciam essas comemorações, sentem
mais ainda o peso da idade, pois celebrar um aniversário ou iniciar um novo ano
representa o andamento da vida e, conseqüentemente, o distanciamento dos dias
de juventude e o envelhecimento do corpo, do intelecto e da alma.
É fato que isso acontece de formas diferentes para cada pessoa.
Entretanto, independente da reação ou da aceitação, são eventos que subsistem na
constituição da vida do ser humano.
Se a velhice “é uma construção social, um fenômeno cultural que
implica uma dinâmica e elabora-se tanto nos valores da cultura oficial, como
encontra-se, também, associada à maneira como é vivenciada [...]” (LEITE, 2004, p.
4), repensá-la em função da decorrência da vida e por meio da aceitação de
algumas passagens e de certas transformações pode tornar-se algo tão prazeroso
quanto assustador, na medida em que aconteça e seja considerado como uma
forma de avaliar e repensar a efetivação da vida.
4.4.1 “A Cobra que Morde o Rabo” (09-01-1999)
“Mais um ano que passa.” Assim Rachel de Queiroz inicia a crônica
“A cobra que morde o rabo” (2002, p. 250), outro momento de desabafo e de
reflexão da autora em relação ao tempo, a sua velhice e ao que decorre dessa
situação. Talvez seja esse quase o ponto final das muitas reflexões da cronista ao
longo de sua senescência. Para ela, a passagem de mais um ano representa bem
mais que a aproximação da senilidade, trata-se de um processo inverso àquele que
é traçado desde o início da vida de cada sujeito.
Quando crianças, as pessoas sonham com o momento em que
serão jovens, adultos e até velhos. Muitas opiniões são formadas ao longo da
existência e muitos são os propósitos lançados ao rés da vida de cada indivíduo.
Cada menino e cada menina criam para e em torno de si ilusões daquilo que a vida
lhes proporcionará ao longo dos anos. Os objetivos são traçados em prol dos
126
desejos e dos anseios dos indivíduos. Entretanto, nem sempre os mesmos são
alcançados.
O próprio eu do cronista começa o texto em estudo apresentando
suas desilusões e os rumos incertos que sua vida tomou com o passar dos anos.
Segundo Vinicius de Moraes (1991), em O exercício da crônica, a auto-referência
existente na maioria das crônicas é quase que uma teorização, pois as reflexões
informais acabam tomando conta desse tipo de texto, que é o que acontece com
Rachel em “A cobra que morde o rabo”, quando a escritora repensa a sua vida e o
caminho inverso percorrido pelos idosos:
Quando eu era menina, pensava na passagem do século e dizia
comigo: ‘Vou estar muito velha. Quando acabar 1999, eu irei
completar 89 anos!’ e esses 80 anos me pareciam tão distantes
quanto o fim do mundo; e me imaginava como seria eu, então (se
sobrevivesse até lá!) velhinha, apoiada no bastão, ralhando com os
bisnetos... e estou, sem bastão, andando livremente (até de
salto, às vezes!), enfrentando a vida e suas tristezas, com a velha
resignação cearense, que a gente traz na massa do sangue
(QUEIROZ, 2002, p. 250).
O fim de 1999, mais que uma passagem de um ano ao outro,
representaria a virada do século, momento marcante para todas as pessoas dessa
época, pois seria uma transição diferente, que acontece de cem em cem anos,
relevante em termos de mudança. Além do mais, presenciar uma virada de século
não é uma ocorrência que todas as pessoas conseguem vislumbrar. De igual modo,
independente da contagem matemática, que calcula a virada do milênio em 31 de
dezembro de 2000, para o comum das pessoas, que considera a virada numérica, o
fim de 1999 representaria, também, a virada do milênio, portanto, um evento mais
raro ainda na vida do indivíduo.
No caso da cronista, quando ainda criança, sonhava com esse
acontecimento pensando no que sua vida se transformaria, por quais processos teria
passado e como reagiria a esse momento estando, então, em sua velhice. E,
mesmo sendo cearense (povo que rebate as agruras e que sempre se levanta) e
desfrutando de mais vigor do que sonhara em sua infância, a narradora admite não
estar feliz nessa fase, porque a velhice lhe consome e as adversidades lhe parecem
muitas e até imponentes demais. O fato de a autora não estar usando bengalas e de
127
conseguir andar de salto alto não a faz se sentir superior àquilo em que imaginara se
transformar em sua meninice.
Segundo Ecléa Bosi, essas impressões acompanham os sujeitos,
porque “o tempo social absorve o tempo individual que se aproxima dele. Cada
grupo vive diferentemente o tempo da família, o tempo da escola, o tempo do
escritório... Em meios diferentes ele não corre com a mesma exatidão” (BOSI, 1998,
p. 418). Dessa forma, o tempo de cada pessoa configura-se na medida em que a
mesma intensifica sua vivência ou nela se retrai. Muitas vezes, nem mesmo as
reações conseguem reverter aquilo que a sociedade impõe e cobra dos seus. Se a
bengala caiu em desuso na contemporaneidade, nem mesmo desse “afetuoso
dissabor” os idosos poderão usufruir mais.
ciclos, mensais e anuais, para as relações afetivas e para o
desenrolar das circunstâncias. Cada ano apresenta ocasiões de plenitude, de
vazante, de recesso, de vazio, de supressão e, também, de organização dos
sentimentos. Todas as desventuras podem ser vivenciadas ao longo de cada ano e
de cada mudança. Segundo a autora, aquilo que passa, que acaba, parece ser
arrancado dos sujeitos sem a mínima chance de retorno. Daí o descontentamento
diante das passagens de ano, das festas realizadas nesse momento e de todas as
incidências decorrentes dessa trajetória:
Por mim, não gosto de passagem de ano. Cada ano que se acaba é
como se o cortassem de mim. Era meu e não é mais. Eu dependo
dele para fazer projetos, marcar viagens, dividi-lo em mínimas
porções: ‘Semana que vem vou a São Paulo, faço isto e aquilo
(divido as horas e até os minutos em variados compromissos), é
como se eu estivesse comprando o tempo para o meu uso’
(QUEIROZ, 2002, p. 251).
Quando o indivíduo dispõe de tempo para realizar os seus projetos,
conseqüentemente, encontra forças e vontade para continuar sua caminhada. Nesse
sentido, a idade é fator determinante para que se procure viver bem, com dignidade
e à sombra dos objetivos delineados durante a existência de cada criatura. Com o
passar das horas, das semanas, dos anos, das décadas etc., o que se percebe e se
institui é a diminuição daquele tão precioso dispositivo necessário para que se viva
intensamente e sem ressalvas: o tempo. Assim sendo, por mais que se consolidem
por meio de festas, de comemorações, de unificação entre os seres e de momentos
128
de regozijo e de abundância, as passagens de ano acabam simbolizando, de igual
modo, uma perda irreparável.
É preciso, nessa circunstância, reler a passagem do tempo e
questionar essa condição da primazia dos indivíduos sobre o mesmo. Quando o
sujeito acredita ser ele o “senhor” das circunstâncias e do tempo, opera em seu
interior uma mentira em que firma seus pensamentos e seus anseios, projetando
nisso toda a sua vitalidade. Dessa forma, quando se depara com a realidade das
“irrealizações” prováveis diante da velhice, conforme afirmou Sartre, percebe-se em
uma categoria repleta de frustrações e de instâncias que limitam todas as suas
escolhas e constituem o avesso daquilo que fora planejado até então:
E como a gente se engana! O tempo é que é nosso dono, suscita o
inesperado, valendo-se das coisas mais íntimas. Até um salto de
sapato que se quebra pode impedir o encontro definitivo de sua vida:
você não consegue chegar na hora, e a pessoa amada vai embora
após a espera inútil, certa de que a sua ausência era a prova
definitiva do rompimento. E quando você consegue chegar ao ponto
marcado, com duas horas de atraso, a pessoa amada foi embora,
certa de que tudo acabou (QUEIROZ, 2002, p. 251).
Rachel de Queiroz mostra-se bem sincera e segura de sua
afirmação quando faz essas declarações em relação à superioridade do tempo
sobre os desejos humanos. O lance do exemplo do salto do sapato, um fato
corriqueiro que pode acontecer a qualquer pessoa, em qualquer situação vivida no
atribulado cotidiano da modernidade, esse simples episódio pode definir e modificar
a vida de qualquer sujeito. Assim, a expressão contestada por Ecléa Bosi, “meu
tempo”, toma mesmo cargas negativas e caráter de discussão: há mesmo um tempo
de cada um, que possa ser manipulado e contestado? Há, também, um meio de
referir-se ao tempo como “o meu tempo”, se ainda a pessoa encontra-se viva e não
tomou emprestada sua época a outrem?
De qualquer forma, o tempo que o homem considera seu é, na
realidade, aquilo que o contraria e que o desconecta das suas vontades. E nesse
contexto, o idoso aparece como um sobrevivente, alguém que se perdeu em meio às
intemperanças e as armadilhas desse tempo. Simone de Beauvoir expõe essa
complicada relação por meio de suas divagações acerca da condição desse mesmo
homem dentro da história, partindo de sua relação com o tempo e as atividades que
executa ao longo de sua vivência:
129
Existir, para a realidade humana é temporalizar-se: no presente,
visamos o futuro através de projetos que ultrapassam nosso
passado, no qual recaem nossas atividades, imobilizadas e
carregadas de exigências inertes. A idade modifica nossa relação
com o tempo; ao longo dos anos nosso futuro encolhe, enquanto
nosso passado vai-se tornando pesado. Pode-se definir o velho
como um indivíduo que tem uma longa vida por trás de si, e diante de
si uma expectativa de sobrevida muito limitada. As conseqüências
dessas mudanças repercutem umas nas outras para gerar uma
situação, variável segundo a história anterior do indivíduo, mas da
qual podemos destacar constantes (BEAUVOIR, 1990, p. 445).
Beauvoir e Rachel de Queiroz compartilham da mesma opinião
quando asseguram que o passar dos anos é um dos responsáveis pelas
modificações da vida dos sujeitos. À medida que os dias vão avançando, mais curto
fica o futuro, enquanto o passado se torna mais pesado e presente, transformando-
se no único meio de resgate daquilo que um dia pertenceu, incondicionalmente, ao
indivíduo. Quando se perdido em sua velhice, o homem retorna à infância, à
adolescência e à maturidade, pois éque encontra uma forma de viver a sua idade
com mais evidência. É nesse universo que o senil, muitas vezes, recusa o tempo
que se instala e mantém uma estreita solidariedade com o passado, pois o
nessa nova etapa condições de se manter firme e em pé. “O que estou querendo
dizer é que a gente é muito mais joguete das circunstâncias do que se pode
imaginar” (QUEIROZ, 2002, p. 251).
Nesse contexto, a cronista compreende que uma simples passagem
de ano pode representar muito mais que um mero evento familiar e também
comercial. Nem mesmo as festas, as reuniões sociais e as badaladas convenções
dessa época podem suplantar aquilo que esse período realmente representa para o
eu do cronista e os senescentes em geral: não haverá mais tanto tempo para
planejar viagens, para realizar projetos e tantos mais desejos que se perderão e
ficarão guardados apenas na cabeça de cada ancião. De acordo com Jorge de
(2005),
Com o seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante
brevíssimo que também faz parte da condição humana e lhe confere
(ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros
núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a
complexidade das nossas dores e alegrias (p. 11).
130
E é nesse sentido crítico que se percebe a importância do lado
circunstancial da vida, capaz de apontar para os momentos mais banais, no entanto,
propícios para o estabelecimento de uma postura adequada perante os idosos. E se
as datas constituem artifícios que acabam afastando o ancião de sua realidade, ou
pelo menos da realidade idealizada por ele, é impossível não acontecer de os velhos
se sentirem deslocados e perdidos diante da passagem de mais um ano de vida,
que é o que cada indivíduo ganha ao longo de sua existência.
E ainda há a mais cruel das verdades nessa constatação: se o
tempo passa, a vida também passa. Toda existência é efêmera. Por mais que se
queira acreditar em uma vida estável, que se admitir o caráter transitório dessa
realização. “Além de tão curta, tão repartida: infância, mocidade, maturidade,
velhice, cada capítulo tem sua própria sorte, seus risos, suas dores, seus mistérios”
(QUEIROZ, 2002, p. 252). Assim, talvez seja essa a grande sorte do ser humano,
saber que tudo é passageiro, a começar pela sua própria vida, sua própria
existência. Logo, por mais intransigentes que determinadas circunstâncias possam
parecer, resta ainda o consolo de que tal fato não durapara sempre, e terá forças
enquanto o tempo assim puder sustentar, aque a efemeridade transpareça e faça
prevalecer a prepotência das situações em detrimento da temporalidade.
Mas, segundo a cronista, o mais curioso de tudo nessa situação
reside na questão do aprendizado que o ser humano tem no decorrer de sua vida.
Por mais que os indivíduos adquiram experiência, por mais que a existência insista
em corresponder a um exercício da prática, não é dessa forma que as coisas
realmente acontecem. Conforme a autora,
Um velho de cabelos brancos é tão experiente e crédulo quanto um
menino, diante de sua vida. Cai nos mesmos tropeços, o menino ao
aprender andar, o velho que já não pode mais confiar nas pernas
para cruzar os passos. E a gente acaba, na vida, no mesmo ponto
em que começou. Como a cobra que morde o rabo (QUEIROZ, 2002,
p. 252).
Essas complicações que se sucedem num crescente na vida dos
indivíduos, especialmente na vida dos anciãos, acabam servindo de pretexto para
que as pressões sofridas em suas trajetórias, suas esperanças, suas desilusões e
suas expectativas tornem-se o ponto central de sua existência. A condição de ter de
se adaptar aos desígnios e aos desejos das demais pessoas acaba desencadeando
131
situações, às vezes, divertidas, outras, ridículas e até desconcertantes. Daí a opção
da utilização da imagem da cobra que morde o próprio rabo como metáfora do ciclo
da vida: “o menino será o velho e o velho será o menino”. A cobra que morde o
próprio rabo opera, num movimento circular e contínuo, todo o processo dinâmico e
transformador da vida. Quando ela morde sua cauda e não ra de girar sobre si
mesma, evoca a roda da vida à qual cada ser humano está preso. No caso dos
velhos, representa a ineficácia da experiência adquirida ao longo da vida, que acaba
sendo menosprezada e destituída de seu verdadeiro valor.
Desse modo, em conformidade com as proposições da cronista,
tudo aquilo que até então era considerado o grande legado das pessoas velhas
perde um pouco de sentido diante dessa constatação. Toda a experiência adquirida
ao longo da existência dos senescentes deixa de ter tanta importância e passa a ser
reconhecida apenas como um retorno ao início de tudo. Se a criança não tem tanta
firmeza em suas pernas quando começa a andar, de igual modo os idosos perdem a
confiança em seus membros inferiores quando a caminhada lhes parece mais dura e
trabalhosa.
E, diante dessas constatações, alguns projetos acabam se
petrificando, os imperativos multiplicam-se e o que corresponde ao avesso deles
transforma-se em impossibilidades. Dessa forma, para entender em que medida o
senil se atado face ao seu destino, é preciso considerar e ponderar as formas
como esse futuro se apresenta e se configura na vida das pessoas que se
encontram na terceira idade. Tanto mais fechado e acabado se apresente, mais
difícil será a adaptação dos idosos em cada novo amanhecer.
4.4.2 “Os Noventa” (25-11-2000)
Heloisa Buarque de Hollanda, no prefácio da obra Rachel de
Queiroz (2004), afirmou que as crônicas da escritora lembram muito o estudo de
Walter Benjamin, “O narrador”, no qual o autor comenta que a literatura tem perdido
aquela característica mágica de relatar os fatos partindo de experiências vividas ou
até mesmo por via de transmissão oral. Não obstante, a cronista em questão
mantém esse tom narrativo, pois se sustenta na confiança daquilo que relata e na
verdade que se estabelece pelo contato direto entre o narrador e o seu ouvinte: as
132
frases fluem e os lances se concatenam e se movem de uma crônica para a outra,
constituindo um infindável contar.
É assim que a autora realiza o seu fazer cronístico, como se
estivesse confabulando com os seus leitores. Construindo quase que uma crônica
poema-em-prosa, Rachel permite o “extravasamento da alma do artista ante o
espetáculo da vida, das paisagens ou episódios [...] carregados de significado”
(COUTINHO, 1986, p. 133). Dessa forma, assim como seus companheiros de época
como Álvaro Moreira, Rubem Braga, Manuel Bandeira, Ledo Ivo e Eneida, a cronista
estabelece esse ar de confissão diante das suas maiores angústias.
Na crônica “Os noventa”, mais uma vez nos deparamos com o eu
do cronista preocupado com a questão da idade e com os assombros que rondam a
senilidade. A escritora estabelece quase que um ambiente de confissão para deixar
transparecer a sua angústia frente a essa situação. Rachel usa as suas crônicas
para refletir sobre as questões que permeiam a sua vida. Se no início das suas
atividades como cronista, buscava seus temas nas lembranças da infância, nos tipos
que a haviam marcado e nos equivalentes a esses fatos na atualidade, no fim de
suas produções, preocupou-se em interrogar e comentar a respeito das questões do
tempo, da idade e de todas as imposições que advêm dessa circunstância.
Sobre a velhice, o acúmulo de dezenas de anos é algo que
incomoda a cronista, pois tem a convicção de que, a cada ano que passa, tudo vai
ganhando novas formas e se configurando de modo a atormentar a vida daqueles
que enfrentam o avançar da idade. Trata-se de uma grande iniqüidade perante
aqueles que já ponderaram longos anos de vivência:
Por que as dezenas são importantes, a gente não sabe muito bem.
Mas sempre procuro dar uma explicação a cada dezena de anos que
completo. Desde os cinqüenta. Talvez seja uma maneira de fugir ao
impulso natural de negar a idade quando ela nos parece excessiva.
Talvez uma defesa também: se eu proclamo a minha idade ninguém
se interessará em alegá-la contra mim, setenta, oitenta e agora estes
antipáticos noventa. Não estou achando a menor graça: e dentro
do meu coração, eu sinto que estes noventa anos são uma injustiça
imerecida (QUEIROZ, 2002, p. 285).
Conforme os anos vão passando e a senilidade vai tomando conta
do corpo dos sujeitos, mais perto os mesmos se vêem da sombria realidade da
velhice. No caso do eu do cronista, atingir os cinqüenta, os sessenta, os setenta, os
133
oitenta e, depois, os ingratos noventa anos, nada mais é do que perceber a vida se
esvaindo por meio de seus dedos. E, perante todos os deleites e os infortúnios que
marcam a existência, chegar até essa idade pode parecer uma injustiça, visto que
denota certas restrições, algumas perdas e muitas mudanças indesejáveis.
A indiferença por parte do ancião ao momento presente e a fixação
do mesmo no passado pode se firmar no ponto em que, na maioria das vezes, a
contemporaneidade lhes tira determinadas possibilidades de escolha. A autora
comenta nessa crônica que todas as pessoas deveriam ter o direito de escolher a
idade que gostariam de ter, isso porque os anos acabam sobrepujando algumas
características inerentes aos seres humanos, que são, geralmente, rechaçadas e até
mesmo esquecidas e abandonadas pelos senis. Do mesmo modo, o contato com
pessoas mais novas, que vivem um momento diferenciado, permite aos velhos um
retorno a um tempo que lhes pertenceu. Na crônica “Os noventa”, é exatamente
essa impressão que a autora transmite:
[...] quando tenho no colo meu bisneto Pedro, que é um irreprimível
aventureiro, sinto que o entendo, partilho das suas brincadeiras, me
arrisco pelos caminhos que ele sugere. E realmente, com Pedro no
colo, sinto que tenho quase a idade dele. Mas junto aos meus velhos
amigos, octogenários, ou mesmo nonagenários, sinto-me como se
fosse o próprio Matusalém. Partilho dos problemas deles, das suas
indignações, de suas leras contra o regime e o poder. Fazendo
essas confissões, ocorre-me, de repente, que sou uma pessoa de
resistência muito frágil ao seu meio e às suas circunstâncias. [...]
(QUEIROZ, 2002, p. 286).
A ligação que os velhos estabelecem entre si e com os mais moços
acaba sendo mesmo muito dúbia, na medida em que dois pontos essenciais
fundamentam esses relacionamentos: a questão da aproximação com a realidade, a
partir do momento que o outro permite ao seu companheiro que se enxergue como
se estivesse frente a um espelho, pois os anciãos compartilham das mesmas
indagações, das mesmas frustrações e dos mesmos anseios; diferentemente, na
presença dos púberes, a possibilidade de retorno e os idosos sentem-se
rejuvenescer ao contato com a mocidade que os cerca.
O que se percebe em presença dessas colocações, de acordo com
Iolanda Lourenço Leite (2004), “é que um referencial simbólico específico de
cada grupo, os quais constroem uma identidade coletiva, marcando as suas
diferenças em relação uns aos outros. Por esse motivo é que a velhice é
134
representada de maneiras diversas em diferentes sociedades” (p. 4), e a idade
daqueles que compartilham o mundo dos idosos também determina o tipo de ligação
que predominará entre eles e o seu próximo. Daí Rachel de Queiroz declarar que as
circunstâncias colaboram para a efetivação de sua realidade.
Se para a cronista o acúmulo de dezenas de anos representa certas
restrições, também simboliza um aumento na capacidade de compreender aqueles
que estão ao seu redor, pois é com o adiantamento dos anos que ela admite se
tornar uma pessoa mais ponderável e tolerante, até mesmo diante de algumas
situações incabíveis e desconcertantes:
Quando jovem, pregava revoluções e mudanças, me apaixonava
contra os poderosos. Mas, à medida que fui envelhecendo, o meu
grande amor pelo gênero humano sobrelevava todos os demais
sentimentos. Quando jovem, a gente tem pelo próximo o interesse
que é mais curiosidade, descoberta e até um pouco de
ressentimento. À medida que o tempo passa, a gente abranda.
Conhecendo melhor as próprias fraquezas, procura entender as
fraquezas dos outros. E vê-los cometer atos de intolerância e
hostilidade, a gente tira o desconto e, em vez de hostilizar, procura
entender. Creio que a melhor qualidade da velhice é a compreensão,
até mesmo as condescendências com o que nos pareça erro nos
outros (QUEIROZ, 2002, p. 286).
Assim, quando o cotidiano da vida dos idosos é partilhado com
outros, e essa ligação permite o florescer de sentimentos sublimes como o amor, o
resultado é o intercâmbio contínuo entre as partes que ficam face a face, e que
resultam nas experiências emocionais mais profundas e passíveis de compreensão.
De tal modo, mesmo diante de tantas circunstâncias desfavoráveis aos senis,
Beauvoir afirma ser a interferência nos relacionamentos a mais grave dificuldade
constatada na definição da condição do idoso, pois “cada um só encontra seu
verdadeiro sentido na sua relação com os outros” (1990, p. 346). Fora disso, tudo se
torna arbitrário e desnecessário.
Talvez essa constatação possa auxiliar no entendimento do
sentimento dos velhos para com seus filhos, seus netos e seus bisnetos, às vezes,
pessoas abomináveis, que a autora segue apontando na crônica “Os noventa”. Para
ela, é prontamente aceitável o amor que uma pessoa de terceira idade oferece aos
seus. Por mais que estes nada tenham feito para merecer tal carinho e tal atenção,
esse sentimento aparece de graça, sem cobranças ou reivindicações. Segundo
135
Rachel, isso ocorre porque, ao envelhecer, o indivíduo fica mais frágil e livre de
certos ressentimentos que insistem em acompanhar os seres humanos ao longo de
sua existência. O esquecimento, o amadurecimento e o perdão passam a coexistir
no mundo dos senescentes que, em função de um desgaste da memória ou um
abrandamento do coração, tornam-se pessoas menos rancorosas.
E mesmo quando a cronista insiste em questionar as conseqüências
da senectude, abordando a questão de uma cordialidade talvez em função de uma
constatação de um retrocesso quando se atinge a velhice: “Meu Deus, como a
Rachel está velha e diferente! Coitada!” (QUEIROZ, 2002, p. 287), ainda assim
encontra, finalmente, uma compensação em todo esse tortuoso processo conforme
ela mesma diz:
É assim que acontece. O seu coração guarda aqueles
ressentimentos gravíssimos, os que não têm perdão. O resto vai
embora, lavado pelo tempo. Em compensação quanta coisa boa nos
ocorre de repente, boiando à flor da memória. Um sorriso, um gesto,
um carinho. [...] E aquela gratuidade lhe dá uma sensação de prêmio;
é como se você, passando num jardim, visse na sua mão a mais bela
flor. Os gestos espontâneos quase sempre são inesperados. E com
esse elemento de surpresa é que nos conquistam a gratidão
(QUEIROZ, 2002, p. 287).
E, frente àqueles que lamentam por não terem conhecimento do
futuro, termina esse escrito afirmando que já bastam às pessoas as promessas e as
ameaças do presente. Diante desse fato, até agradece a confirmação dos seus
noventa anos, e completa seu pensamento conformando-se com o seu destino e
com as surpresas que lhe aguardam: quer sejam boas ou más, serão poucas.
Dessa forma, conclui-se que a reflexão sobre o tempo, sobre a idade
e sobre tudo que dela incide, realizada em grande parte das obras de Rachel de
Queiroz, constitui sua grande contribuição literária e, ao mesmo tempo, sua dor
fundamental. E é na crônica, o lugar do “cotidiano monumentalizado”, que os temas
da autora, as suas angústias pessoais e os mais prosaicos acontecimentos ganham
caráter fundamental para a sua instalação dentro do quadro da literatura brasileira
contemporânea.
De acordo com Heloisa Buarque de Hollanda, a “lucidez, muitas
vezes desconfortável, sobre o fluir incessante do tempo, acompanhou Rachel desde
seus primeiros escritos” (QUEIROZ, 2004, p. 16). Sua reação frente ao sentimento
136
de saudade e algumas datas emblemáticas como as passagens de ano, os
aniversários etc. são interessantes de serem observadas. E, certamente, traduzem
aquilo que norteia parte da obra da autora, que realiza uma reflexão filosófica a
respeito do tempo mais intensificada no final de sua vida, quando conduz seus
pensamentos e sua produção, sem medo e sem ressalvas, para o tema da morte.
Essas últimas linhas que compõem o livro Falso mar, falso mundo
seguem carregadas da sabedoria dos noventa anos da autora, celebrados com essa
reflexiva crônica que encerra o volume. Trata-se de um misto de conforto por tantos
anos vividos e, ao mesmo tempo, uma redenção das mágoas acumuladas ao longo
da vida: “O homem vive um dia, mas nesse dia vive como se fosse para
sempre”
17
(Rachel de Queiroz).
17
Pensamento de Rachel de Queiroz explicitado em muitos de seus escritos e quase sempre
presente em sua fala.
137
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Ainda hoje, na esfera dos estudos literários, a crônica não recebeu a
devida atenção enquanto gênero. Dentro do universo narrativo, não se deu, ainda,
uma autoridade merecida para os textos que figuram nesse domínio. No entanto,
assumir a importância do fazer cronístico denota a capacidade de identificar
características e de apontar peculiaridades da moderna literatura brasileira. Como
afirmou Antonio Candido, graças a Deus a crônica é um gênero menor, porque essa
“suposta inferioridade” acaba aproximando-a dos leitores. Assim, negar essa
afinidade consiste em recusar a realidade da literatura contemporânea.
A crônica por si só compreende um vasto e rico campo de um
discurso poético qualificado. Denegar, portanto, sua existência e sua proeminência
dentro da literatura nacional seria o mesmo que diminuí-la e/ou inferiorizá-la.
Considerar o fato de parecer-se muito com as conversas prosaicas e com os
acontecimentos do dia-a-dia uma condição irrelevante seria o mesmo que destituí-la
de sua veia literária e ignorar os esforços dos muitos autores que se embrenharam
(e se embrenham) por esses caminhos.
A história do fazer cronístico no Brasil teve início há muito tempo,
por volta de 1825. Escrevendo no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Francisco
Otaviano de Almeida Rosa abriu espaço para esse tipo de escritura. Segundo
Afrânio Coutinho (1986, p. 124), José de Alencar foi quem “imprimiu à crônica a mais
alta categoria intelectual” em sua época, após substituir Otaviano no Correio
Mercantil. Desta feita, os autores românticos foram os primeiros cronistas brasileiros,
e iniciaram seu trabalho, mesmo que produzindo textos grandiosos nessa categoria,
debaixo de um rótulo de inferioridade que persiste até os dias atuais. Daí a
necessidade de se trabalhar o gênero crônica buscando efetivar uma profunda
revisão desses valores.
Muitos escritores brasileiros, desde Jode Alencar, Machado de
Assis, passando por Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, até a própria
Rachel de Queiroz, desenvolveram esse gênero:
Se alguma coisa em comum possuem escritores tão diferentes entre
si é, no plano expressivo, a decisiva incorporação da fala coloquial
brasileira, que se ajustava perfeitamente à observação dos fatos da
vida cotidiana, espaço preferido da crônica, por tudo isso cada vez
138
mais comunicativa e próxima do leitor. Na verdade, ela se tornava
um campo de experimentação de uma linguagem mais desataviada,
flexível e livre, adequando-se à necessidade de pesquisa da
realidade brasileira que passara a se impor à consciência dos
intelectuais [...] (ARRIGUCCI, 2001, p. 62-63).
Ao se observar a produção desses autores dentro do estilo em
questão, torna-se totalmente imprudente afirmar que não nesses escritos o
mesmo brilhantismo e a mesma capacidade literária característicos de seus contos,
de seus poemas ou de seus romances. E se essa constatação pode ser claramente
observada, por que, então, inferiorizar o gênero?
Talvez uma das prováveis respostas a esse questionamento esteja
no caráter polimórfico que a crônica assume, oscilando ora entre a efemeridade do
jornal ora entre a arte da literatura, provocando, assim, o questionamento da sua
literariedade.
Para um melhor entendimento do gênero, faz-se necessário uma
reflexão acerca de sua relação com o jornal como seu primeiro veículo de
circulação, mas que procura, conforme a solidificação de suas propostas,
encaminhar-se para a “eternidade” nos livros. Segundo Luiz Roncari (1985, p. 13), a
crônica “realiza seu verdadeiro ser na brevidade dos jornais, mas espera repousar
dessa passagem agitada e curta no livro que a lembre e recorde, como a imagem
que foi um dia”. E, mesmo diante da existência de muitos cronistas medíocres, que
não se preocupam com a qualidade de seus escritos, e apenas o fazem para
cumprir com um compromisso profissional, aproveitando-se da brevidade e da
leveza do texto, ainda assim seria totalmente preconceituoso generalizar toda uma
gama de produções considerando o descompromisso de alguns.
O intuito deste trabalho foi apagar essa impressão fugaz que, às
vezes, a crônica assume perante o público leitor. Espera-se que as leituras
realizadas tenham colocado à mostra a eficácia de Rachel de Queiroz (como
também, mesmo que brevemente, de autores como Drummond e Braga) no manejo
das palavras e na competência em recriar os acontecimentos cotidianos, revelando
todos os dissabores, as verdades, os desejos e as necessidades das pessoas
velhas e do homem em geral diante da vida diária. Dessa forma, que se tenha
conseguido demonstrar que a capacidade da crônica de figurar tanto nas páginas
diárias de um jornal, como nos livros, ou ainda através das fronteiras dos demais
gêneros literários, o constitui um aspecto negativo, mas sim, um privilégio, uma
139
inclinação que permite a ela se aprimorar e acompanhar as transformações da
sociedade moderna.
As leituras das crônicas de Rachel de Queiroz fizeram comprovar
toda essa capacidade literária e, como afirmou Eduardo Portella, a nova condição da
crônica brasileira de adquirir e assumir a sua soberania. Segundo Heloisa Buarque
de Hollanda, a respeito da autora, foi “a crônica o espaço onde melhor registrou
suas lembranças, opiniões, afetos, indignações. Quase um diário que a acompanhou
por 77 anos. [...] E foi ainda neste gênero, entre o jornalismo e a literatura, que a
autora mais experimentou os limites de sua escrita” (QUEIROZ, 2004, p. 8).
E é justamente diante dessa capacidade que se encontra a resposta
para tantos questionamentos a respeito da crônica e o seu encontro (conflituoso
poder-se-ia assim dizer) com o jornal e com a literatura. Sem permitir a perda do
caráter artístico, a crônica permitiu-se acompanhar o desenvolvimento histórico.
Além disso, conseguiu, à medida que se firmou como um gênero próprio do
cotidiano, assistir criticamente à vida, testemunhando suas particularidades, suas
complexidades e, de igual modo, suas trivialidades, sem perder de vista o lirismo, o
humor e a criticidade, ou seja, de forma criativa e eficaz.
No que diz respeito ao fato de alguns estudiosos condenarem a
crônica por esta não demonstrar um engajamento social, diante das inúmeras
colocações de Rachel de Queiroz a respeito da velhice nos textos analisados, tal
situação cai por terra. É bem verdade que o gênero constitui-se, em sua gênese, um
estilo mais descompromissado e leve, o que não significa um total afastamento das
questões sociais nem tampouco uma provável alienação. Ao invés disso, o cronista
tem a possibilidade, como é o caso da autora considerada nesta dissertação, por
meio de uma aparente superficialidade, de estabelecer em seus escritos uma
ferrenha crítica social.
Em todas as crônicas contempladas, percebe-se a preocupação da
cronista em retratar as situações que norteiam a questão do tempo, da idade e da
vida diária. Paulo Rónai afirmou certa vez que a autora procurava sempre imprimir
em seus feitos uma “complexa naturalidade”. “E foi desta combinação entre o estilo
direto, a naturalidade narrativa e a busca insistente pelos efeitos literários da
oralidade, que foram feitas as inúmeras crônicas de Rachel de Queiroz” (QUEIROZ,
2004, p. 10). E esse engajamento que ocorre na crônica deve-se à observação do
cotidiano, daquilo que de mais prosaico e humano na sociedade. Assim sendo,
140
ao cronista cabe a “missão” de, por meio de um bate-papo camuflado e
aparentemente desinteressado, expressar seus juízos de valores e suas opiniões a
respeito da sociedade que o rodeia.
É preciso que se diga, ainda, que a leitura dos textos de Rachel de
Queiroz possibilitou uma dinâmica muito prazerosa no contato com as ações
provenientes dos caminhos da crônica, da vida cotidiana e da problematização
decorrente da vida dos idosos na contemporaneidade. O fato de a autora
estabelecer quase que uma contigüidade presencial com o leitor e criar um espaço
de intimidade muito grande ao relatar a sua perplexidade diante de tantos
acontecimentos que envolvem a pessoa de terceira idade, possibilitaram uma maior
captura da essência da cronista nos textos analisados. Além do mais, em todos os
escritos estudados, pôde-se perceber, de uma forma muito curiosa, uma
objetividade totalmente subjetiva da autora, característica que existe na romancista,
mas que aparece, de forma mais acentuada ainda, na cronista.
Diante das pesquisas, dos estudos, das leituras e de tantas
colocações, conclui-se, portanto, que a crônica é, antes de mais nada, o lugar em
que se pode apreciar todo o trabalho do escritor na construção do seu texto, e ainda
a constatação (por meio deste) de sua própria vida. Dessa forma, o autor de
crônicas pode ser reconhecido o apenas como um narrador ou como um
jornalista. Antes de tudo, trata-se de um cronista, um prosador do cotidiano
preocupado em estabelecer vínculos, em mostrar os fatos e em desafiar não
somente o jornalismo, mais ainda, a própria literatura.
Assim, chega-se ao fim desta dissertação. No entanto, não ao fim
das conclusões a propósito da questão da velhice, nem tampouco a respeito da
crônica, suas ligações com o cotidiano e as implicações da idade na vida das
pessoas dentro das situações corriqueiras. A reflexão sobre o tempo, sobre os anos
e sobre a literariedade da crônica poderão ser observadas e discutidas, à medida
que mais pessoas se dispuserem a se enveredar por esse caminho.
Contudo, é válido afirmar, além disso, que é notável e passível de
comentário e de estudo a habilidade da autora em registrar, de forma exemplar e
autêntica, todas as suas impressões a respeito da senilidade e do cotidiano da vida
moderna dentro da crônica, gênero totalmente propício e aberto para o diálogo
estabelecido por Rachel de Queiroz, o que outorga à cronista, da mesma forma
141
como ocorreu com a ficcionista, o título de “primeira grande voz do modernismo
brasileiro”.
142
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148
APÊNDICE
149
APÊNDICE – Obras
18
Individuais:
Romances:
- O quinze (1930)
- João Miguel (1932)
- Caminho de pedras (1937)
- As três Marias (1939)
- Dôra, Doralina (1975)
- O galo de ouro (1985) - folhetim na revista " O Cruzeiro", (1950)
- Obra reunida (1989)
- Memorial de Maria Moura (1992)
Literatura Infanto-Juvenil:
- O menino mágico (1969)
- Cafute & Pena-de-Prata (1986)
- Andira (1992)
- Cenas brasileiras - Para gostar de ler 17
Teatro:
- Lampião (1953)
- A beata Maria do Egito (1958)
- Teatro (1995)
- O padrezinho santo (inédita)
- A sereia voadora (inédita)
Crônica:
- A donzela e a moura torta (1948)
- 100 Crônicas escolhidas (1958)
- Um alpendre, uma rede, um açude: 100 crônicas escolhidas (1958)
18
Os dados sobre as obras de Rachel de Queiroz foram obtidos em livros de e sobre a
autora, em sites da Internet, em jornais e em revistas de circulação nacional.
150
- Mapinguari (1964)
- O brasileiro perplexo (1964)
- O caçador de tatu (1967)
- As menininhas e outras crônicas (1976)
- O homem e o tempo: 74 crônicas escolhidas (1976)
- O jogador de sinuca e mais historinhas (1980)
- As terras ásperas (1993)
- A longa vida que já vivemos
- Cenas brasileiras
- Xerimbabo (ilustrações de Graça Lima)
- Falso mar, falso mundo: 89 crônicas escolhidas (2002)
Antologias:
- Três romances (1948)
- Quatro romances (1960) (O Quinze, João Miguel, Caminho de Pedras,
As três Marias)
- Seleta (1973) - organização de Paulo Rónai
Livros em parceria:
- Brandão entre o mar e o amor (romance - 1942) - com José Lins do Rego,
Graciliano Ramos, Aníbal Machado e Jorge Amado.
- O mistério dos MMM (romance policial - 1962) - Com Viriato Corrêa, Dinah Silveira
de Queiroz, Lúcio Cardoso, Herberto Sales, Jorge Amado, José Condé, Guimarães
Rosa, Antônio Callado e Orígines Lessa.
- Luís e Maria (cartilha de alfabetização de adultos - 1971) - Com Marion Vilas Boas
Sá Rego.
- Meu livro de Brasil (Educação Moral e Cívica - 1º. Grau, Volumes 3, 4 e 5 - 1971) -
Com Nilda Bethlem.
- O nosso Ceará (com sua irmã, Maria Luíza de Queiroz Salek), relato, 1994.
- Tantos anos (com sua irmã, Maria Luíza de Queiroz Salek), autobiografia, 1998.
- O Não Me Deixes – Suas Histórias e Sua Cozinha (com sua irmã, Maria Luíza de
Queiroz Salek), 2000.
151
Obras traduzidas pela escritora:
Romances:
AUSTEN, Jane. Mansfield Parlz (1942)
BALZAC, Honoré de. A mulher de trinta anos (1948)
BAUM, Vicki. Helena Wilfuer (1944)
BELLAMANN, Henry. A intrusa (1945)
BOTTONE, Phyllis. Tempestade d'alma (1943)
BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes (1947)
BRUYÈRE, André. Os Robinsons da montanha (1948)
BUCK, Pearl. A promessa (1946)
BUTLER, Samuel. Destino da carne (1942)
CHRISTIE, Agatha. A mulher diabólica (1971)
CRONIN, A. J. A família Brodie (1940)
CRONIN, A. J. Anos de ternura (1947)
CRONIN, A. J. Aventuras da maleta negra (1948)
DONAL, Mario. O quarto misterioso e Congresso de bonecas (1947)
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Humilhados e ofendidos (1944)
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Recordações da casa dos mortos (1945)
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios (1951)
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamazov (1952) 3.v
DU MAURIER, Daphne. O roteiro das gaivotas (1943)
FREMANTLE, Anne. Idade da fé (1970)
GALSWORTHY, John. A crônica dos Forsyte (1946) 3.v
GASKELL, Elisabeth. Cranford (1946)
GAUTHIER, Théophile. O romance da múmia (1972)
HEIDENSTAM, Verner von. Os carolinos: crônica de Carlos XII (1963)
HILTON, James. Fúria no céu (1944)
LA CONTRIE, M. D'Agon de. Aventuras de Carlota (1947)
LOISEL, Y. A casa dos cravos brancos (1947)
LONDON, Jack. O lobo do mar (1972)
MAURIAC, François. O deserto do amor (1966)
PROUTY, Oliver. Stella Dallas (1945)
REMARQUE, Erich Maria. Náufragos (1942)
152
ROSAIRE, Forrest. Os dois amores de Grey Manning (1948)
ROSMER, Jean. A afilhada do imperador (1950)
SAILLY, Suzanne. A deusa da tribo (1950)
VERDAT, Germaine. A conquista da torre misteriosa (1948)
VERNE, Júlio. Miguel Strogoff (1972)
WHARTON, Edith. Eu soube amar (1940)
WILLEMS, Raphaelle. A predileta (1950)
Biografias e memórias:
BUCK, Pearl. A exilada: retrato de uma mãe americana (1943)
CHAPLIN, Charles. Minha vida (1965)
DUMAS, Alexandre. Memórias de Alexandre Dumas, pai (1947)
TERESA DE JESUS, Santa. Vida de Santa Teresa de Jesus (1946)
STONE, Irwin. Mulher imortal: biografia de Jessie Benton Fremont(1947)
TOLSTÓI, Leon. Memórias (1944)
Teatro:
CRONIN, A. J. Os deuses riem (1952)
153
ANEXOS
154
ANEXO A – “Falso Mar, Falso Mundo” (05-11-1994)
O mundo anda cada vez mais complicado, o que não é bom. O
nosso frágil corpo humano não foi feito para competir com a máquina, conviver com
a máquina e explorá-la. A cada adiantamento cnico-científico, o conflito fica mais
duro para o nosso lado. A massificação da vida cotidiana, por exemplo. uns vinte
anos, Oyama e eu nos hospedamos num hotel americano que tinha vinte e cinco
andares; o nosso quarto ficava no segundo andar, e cada andar era a pia fiel do
outro, superpostos corredor sobre corredor, quarto sobre quarto. E, de noite, eu não
conseguia dormir, pensando que, por cima de nós, empilhados em montes, estavam
vinte e três quartos iguais, e as camas iguais, uma sobre a outra. E em cada cama
um casal dormindo, roncando, brigando. E se de repente o hotel afundasse, os
assoalhos afundassem... Lembrei que, embaixo de nós tinha um quarto igual,
outro casal na cama; e a impressão era desagradabilíssima, não sei se me enten-
dem, aquela espécie de promiscuidade invisível mas concreta, cada casal na sua
alcova, como aqueles montes de caixas de ovos nas prateleiras dos
supermercados...
Viajar de avião — quem não tem medo adora. Por mim, detesto. Não
tenho medo, mas tambémo acho agradável a idéia de que estamos todos nós ali,
arrumadinhos, em filas simétricas, dentro daquela lata voadora... Um menino que
estudava ciências me explicou que o vôo dos aviões a jato era comandado pelas leis
da balística: o motor funciona como uma pistola automática que constantemente
estivesse disparando. O vôo é mantido pela explosão contínua de jato, como a bala
é impulsionada pela explosão da lvora. O avião não pode cair enquanto o jato
estiver mandando o seu impulso. (Estaria o menino certo? Tinha doze anos!)
Mas, de qualquer forma, me senti segura e tranqüilizei os medrosos: todos sabemos
que uma bala jamais cai a meio do caminho antes de chegar ao seu ponto de
alcance. uma senhora gorda, que mantinha a mão enfiada na bolsa, debulhando
secretamente o seu terço; essa ficou até pior, dizendo que a coisa de que tinha mais
medo era de tiro, e a gente, então, era voada por tiro? Puxou pra fora o terço e eu
nunca mais tentei tranqüilizar ninguém em avião.
Mas nesta semana vi na TV uma reportagem que me horrorizou
como prova de que, a cada dia, mais renunciamos às nossas prerrogativas de seres
155
vivos e nos tornamos robotizados. Foi a “Praia Artificial” no Japão (logo no Japão,
arquipélago penetrado e cercado de mar por todos os lados!). É um galpão imenso,
maior do que qualquer aeroporto, coberto por uma espécie de cúpula oblonga, de
plástico. E filas à entrada, dentro um guichê, o pessoal paga a entrada, que é
cara, e some. Deve entrar no vestiário, ou antes, no despiário, pois surgem sem a
roupa, convenientemente seminus, como se faz na praia. Pois que debaixo daquele
imenso teto de plástico está um mar, com a sua praia. Mar que, na tela, aparece
bem azul com ondas de verdade, coroadas de espuma branca; ondas que chegam a
derrubar as pessoas e sobre as quais jovens atletas surfam e rebolam. E um falso
sol, de luz e calor graduáveis; e a praia é de areia composta por pedrinhas de
mármore, a cujo contato algumas moças de biquíni se queixavam de que doía um
pouco. “Mas valia a pena.”
Não sei se pelo exotismo das feições ou se pelo perfeito com-
portamento dos figurantes, a gente tinha a impressão absoluta de que assistia a uma
cena de animação figurada em computador, como aquelas mulheres afuniladas que
fazem a abertura do Fantástico.
A única presença viva, destacando-se no elenco de bonecos, era a
nossa querida, bela e intrépida repórter Gloria Maria, apresentadora do espetáculo
“Mar artificial”. se viu? Se fosse uma honesta piscina de água morna, tudo bem.
Mas fingir as ondas, falsificar um sol bronzeando, de trinta e cinco graus, e toda
aquela gente se deitando com a simulação e depois voltando para a rua vestida nos
seus casacos! Me deu pena, horror, sei lá.
Aquilo não pode deixar de ser pecado. Falsificar com tanta
imprudência as criações da natureza, e pra quê? Cadê o Partido Verde, o
Greenpeace, os naturebas de todos os gêneros, para clamarem contra o sacrilégio?
156
ANEXO B – “De Armas na Mão pela Liberdade” (18-11-1995)
Não estou inventando: saiu no jornal: “Em Porto Alegre, senhora de
90 anos (90, sim) arma-se com dois (dois!) revólveres e abre caminho para a rua,
garantindo o seu direito de ir e vir”. Não lhe dou o nome porque não sou dedo-duro;
conta-se o milagre sem precisar dizer o nome do santo.
Os revólveres, no caso, eram dois trinta-e-oito. Ou, como se diz na
gíria, dois trezoitãos. E tinham bala dentro, e a idosa dona, pelo jeito leve com que
os empunhava, mostrava que sabia atirar.
Assim mesmo foi detida pelos policiais, tiraram-lhe as armas, sob os
veementes protestos da anciã. E, mostrando-se as autoridades curiosas quanto à
procedência dos revólveres, ela declarou que haviam pertencido ao seu falecido pai,
e que os guardava num velho baú, no porão da “casa de idosos” onde mora. Rece-
bendo uma pensão de uns dois salários mínimos, não podia, logicamente, pagar a
mensalidade que lhe cobrariam por um quarto normal, na “casa de idosos”. Deram-
lhe então o tal porão, a preço módico, escuro, sem janelas imagine o calor que
não faz lá, nos meses de verão, principalmente janeiro, em Porto Alegre! E no
inverno, no frio, como não deve ser escuro e mal arejado. Assim mesmo, parece que
a diretoria da casa não lhe permitia saídas. E a repórter o confirma: a direção a
proibia de sair, receando que, assim idosa, ela se perdesse na rua, sofresse algum
acidente ou assalto. Na mentalidade da maioria das pessoas, velho é pra viver
preso, na casa, no quarto; o ideal é uma cadeira de rodas, mas nem sempre a
conseguem. E o infeliz do idoso quase nunca pode se defender da solicitude dos
mais moços, filhos, parentes, guardiões; “Não coma esse doce, olha o diabetes!”
(como se o doce fosse de arsênico). “Cuidado, não tropeçar.” “Calma, segure
bem no corrimão.” “Olha o buraco na calçada, veja onde está pisando!” E os mais
solícitos ou mais medrosos nos seguram com tanta força o braço que até parecem
estar carregando às grades um preso renitente.
Imagine o grau de indignação, de constrangimento, de “cólera que
espuma”, corno dizia o soneto, que sufocava o coração da nossa heroína. A vontade
louca de ver o céu, luz, rua, pessoas desconhecidas, e não as caras severas dos
seus guardiões. No jornal de Porto Alegre diz-se que ela é solteira, ou ‘inupta’ (a que
não convolou núpcias), segundo a fórmula legal. Fadada a viver sozinha, na nua
solidão, sem nem ter a companhia de outro velho, de um companheiro ao seu lado,
157
que lhe fizesse massagens contra reumatismo, com quem dividisse a surdez, as
deficiências visuais; ou, viúva que fosse, tivesse do companheiro as perenes
lembranças de uma vida comum, a mesmo lembranças do amor. Digo isso
timidamente, temendo risos, pois quem vai admitir que um velho ou velha, de 90
anos, tenha lembranças de amor?
Verdade que nessas campanhas caritativas em prol da “terceira
idade” eles brincam carinhosamente com a idéia de dois velhos dançando (na
televisão, os velhotes dançarinos sempre ensaiam um tango argentino e são
vestidos à moda de 1925, ela de saia meio curta de melindrosa e ele de colete e
polainas!). Botam os velhos para estudar vestibular, ou pra fazer ioga, para treinar
pintura a óleo (flores e paisagens rústicas), a cantar em coros etc. etc. Ninguém
parece entender que a primeira condição para o velho não se sentir tão velho é
deixá-lo sentir-se livre. Resolver seus problemas pessoais; ser ele próprio quem
conte os seus sintomas ao médico, ser ele próprio quem decide se toma ou não os
remédios prescritos como faz todo mundo. Deixar que ele se liberte um instante
ao menos da tutela dos “entes queridos” e não lhe ralhar se ele, liberado, der uma
topada, um tropicão, no exercício dessa liberdade. Deixá-lo que durma só, que não
lhe apareça ninguém no quarto à meia-noite, perguntando se ele esinsone (está
muito feliz, lendo), se esqueceu de tomar o Lexotan...
Ah, como a gente entende a velha pistoleira do Rio Grande do Sul! E
fico preocupada que estarão fazendo com ela, sem nem ao menos serem os
filhos que a tiranizem, vítima da ácida vigilância dos estranhos. E agora, então, as
coisas devem ter piorado. que a nossa nonagenária pistoleira e fujona confessou
que guardava as armas num velho baú. Cuidado, velhos e velhas, meus colegas:
vocês vão ver que, de hoje em diante, ninguém mais vai nos deixar possuir um baú!
158
ANEXO C – “Não Aconselho Envelhecer” (18-03-1995)
Aos moços dou um conselho: não fiquem velhos. Verdade que as
opções são poucas morrer, ou lutar contra a velhice. E morrer o seria opção,
mas entrega; e a luta? Bem, a luta resulta sempre numa batalha perdida e inglória.
Entre os processos cruéis da natureza, é a velhice o mais cruel.
Implacável, insidiosa, ataca por todos os lados, abre a porta a todas as moléstias
mortais. Pensando bem, é uma espécie de HIV a longo prazo. Te ataca o coração, o
pulmão, todas as demais vísceras a tripa, o fígado, o que nos abatedouros se
chama o arrasto. E mais a fiação arterial e venosa; e a coluna! E não falei na
atividade cerebral. E também esqueci os ossos, a infame osteoporose, que te rói os
ossos pelo tutano, deixando-os como frágeis cascas de ovos. E então basta um
pequeno escorregão na banheira para deixar um fêmur fraturado.
Os moços compadecidos, os quarentões assustados e os próprios
velhos, apelando para tudo, inventaram ultimamente essas bobagens de “terceira
idade”, clubes e associações que trabalham contra o isolamento e as tristezas da
velhice. Mas não se iluda, velho, meu amigo e colega. Ninguém está acreditando
naquilo. Você viu na TV um quadro de propaganda dessa falsa recuperação de
terceira idade? Um velho e uma velha, vestidos à moda dos anos 30, tentando
dançar um tango argentino? É patético, embora a maioria dos moços apenas o
considere docemente ridículo.
Diz-se que se consegue muito na luta contra a velhice. Gi-
nástica, dieta, malhação, corrida etc. Cirurgia plástica. Ah, pensaram no tormento
de uma bela mulher, atriz, dama do soçaite, cortesão, que viva da e para a sua
beleza, ao descobrir as primeiras rugas, a flacidez do mento, daquela sutil rede de
outras pequenas rugas que rodeiam os lábios? O dr. Pitanguy opera e os seus
colegas de mérito variável também operam. Mas, por mais famosos, competentes e
mágicos que sejam os cirurgiões plásticos, fazem mágicas, não fazem milagres.
Esticam a pele sobre os músculos flácidos, fazem um peeling, que é uma espécie de
raladura na cútis, fica lindo a princípio, mas, como toda mágica, não dura muito. E
tem que começar tudo outra vez, as cicatrizes não se escondem tão bem atrás
das orelhas ou no couro cabeludo, que, aparado, vai encurtando, deixando as
pacientes com testas enormes, quase uma calvície. E nem falei em calvície que,
mercê de Deus, ataca mais os homens que as mulheres!
159
Você contempla no espelho, vê as rugas do seu rosto, do seu
pescoço, como se olhasse uma máscara que se desfaz. bem, sabe como está
velho, embora não sinta que está velho. Sua alma, seus sentimentos, sua cabeça,
nada disso confirma a palavra ou a imagem do espelho. Mas os outros vêem de
você o que o espelho vê.
E a par disso as cãs, quer dizer, os cabelos brancos? Bem, os
cabelos pintam-se. Mas vocês descobriram que, por mais excelentes que sejam
os cabeleireiros e as tinturas, o cabelo pintado fica sempre gritantemente diverso do
natural? Pensei sobre isso e acabei descobrindo: o cabelo nosso, a natureza lhe
cor de fio em fio, cada fio na sua tonalidade, uns mais claros, outros mais escuros: o
conjunto toma esse colorido inimitável, que profissional nenhum pode obter, que
lhe é impossível tingir fio por fio. E, daí, essas senhoras de comas tão louras, tão
ruivas, tão castanhas e negras, não iludirem nunca, darem mesmo a impressão de
que usam perucas.
E, no final de tudo, vem o envelhecimento da cabeça, da inte-
ligência, das idéias, da alma da chamada psiquê. O velho tenta se equiparar às
audácias dos jovens, amesmo excedê-las mas a si próprio não se convence.
Sabe que as suas idéias o as do seu tempo, fruto do que leu, viu e acumulou; e
isso pode ser camuflado, mas não pode ser modificado. Dizem que as células
cerebrais não se renovam, como as demais células do corpo será verdade? Até
mesmo as idéias dos gênios mortos envelhecem; e diante das idéias de um
Nietzsche, de um Freud, tem que se dar o desconto do tempo e das mudanças.
Contudo, o pior mesmo é quando você, com honesta sinceridade, lamenta diante de
alguém os estragos que lhe traz a velhice, e esse alguém protesta com veemência:
“Eu queria, quando chegar à sua idade, ter essa sua lucidez!”
Lucidez? O que é que esse cara esperava? Que você estivesse
caduco?
160
ANEXO D – “A Longa Vida que já Vivemos” (08-05-1992)
A querida velha dama, que está a dois anos do centenário, olhou
complacentemente os dedos da mão direita e comentou:
E pensar que estes dedos têm 98 anos cada um! Enrugados,
coitadinhos, e, neste maior-de-todos, um pouco de reumatismo na junta . Mas ainda
dão muito bem para segurar a agulha de crochê, o jornal da leitura, as cartas para a
canastra...
E assim falando, saiu em passo curto, mas firme, para tomar banho
sozinha no chuveiro, e lavar o cabelo, e ela mesma arrumá-lo em discreto mise-en-
plis, e vestir o terninho fresco de linho, e fazer a maquiagem (creme, pó-de-arroz,
ruge e batom, em tons suaves, que ela é muito clara).
Depois virá sentar-se à mesa para enfrentar conosco, sem preocu-
pações de dieta, o gordo cozido dos domingos.
E a gente fica pensando nessa máquina maravilhosa que é o corpo
humano. Há 98 anos que bate aquele coração; ou seja, bate a 1 176 meses, 35 770
dias, 858 480 horas, ou, ainda, 51 508 800 minutos. E, se não me erra a
maquininha, 5 195 290 000 segundos! E não acrescentamos o período da gestação,
quando o valente coraçãozinho do feto já batia no ventre da mãe. Cada perna
também tem 98 anos, como gosta ela de dizer; e cada órgão do corpo, cada volta do
cérebro ou das vísceras, cada neurônio, cada sculo, cada osso! E tudo funciona
nestes 98 anos, sem perda de um segundo sequer, pois bastaria uma pequeníssima
parada para lhe decretar a morte.
Nos devaneios da ficção científica os autores gostam de imaginar
máquinas auto-reparadoras, que funcionam indefinidamente e que, sem carecer de
ajuda estranha, se consertam a si mesmas, narcisisticamente.
Mas essa máquina já existe — ela é você! Ou eu, ou seu pai, ou seu
filho! Nós damos o prego por interferência alheia, desastre, invasão de micróbios
ou de lulas degeneradas; sempre por ação de inimigos sejam outros seres ou
máquinas, ou forças da natureza; seja o infinitamente pequeno e infinitamente letal.
A essas agressões externas, nem mesmo as usinas auto-reparado-
ras do Asimov resistiriam.
E ainda temos, nós e todos os demais seres vivos, a capacidade não
apenas de sobreviver, mas de nos reproduzirmos. Fabricar novos seres que nos
161
substituam na hora em que perdermos a batalha. A gente então vai, mas vêm os
outros. E esses outros a cada dia logram vida mais longa — graças ao mais
importante dos nossos dons: a inteligência, que trabalha incessantemente para
vencer os inimigos da carne (que não é apenas a luxúria, como reza o catecismo,
mas tudo aquilo que ataque e ofenda o nosso precioso e inigualável corpo). A divina
máquina que o Padre Eterno modelou no barro e depois animou com o seu sopro.
Li outro dia que, antes de Pasteur, a média da vida humana, entre os
ricos, pouco passava dos 50 anos, e nas áreas de extrema pobreza ainda a média
está entre os 30 e os 40. Mas nós vamos caminhando para sair dessa estatística,
cada vez a passos mais largos. Todas as ciências se juntam para aumentar as
chances de vida, a prolongar a velhice sem senilidade. estão por toda parte os
nonagenários; mas na nossa mocidade, os de 90, como os temos tantos hoje, eram
raríssimos. Uma coisa terrível como o cólera, capaz de exterminar quase toda a
população da terra séculos atrás, é hoje apenas assunto de preocupação razoável,
até mesmo no Terceiro Mundo.
E os nossos filhos conviverão com centenários. E não dou mais
nem um século, e estaremos (ou estarão pelo menos os ricos) vivendo
tranqüilamente até a marca dos 900, como o patriarca Matusalém.
Eu disse tranqüilamente? Mas isso não posso garantir. E nem
mesmo posso garantir que seja bom.
162
ANEXO E – “A Menina que vai Crescer” (23-06-1989)
Ontem o doutor tomou as medidas de minha bisneta de dois anos,
por nome Ana Teresa, e comunicou à mãe que a garota vai ter, quando adulta, 1,72
m de altura, será esbelta e longilínea. Então a gente fica pensando: que mistérios,
que potencialidades se escondem dentro daquele corpinho, mulher miniatura,
tendo guardados consigo todos os componentes de uma futura mulher? Ora, direis,
num ovo também estão encerradas todas as potencialidades do pinto bico,
pena, osso, carne, tripa, até o piar do pinto que se projetará mais tarde no clarinar
do galo. Mas um ovo é oval ou ovóide, branco, liso, fechado, burro. Mal
comparando, é como o presidenciável desconhecido: ninguém pode ver o que está
lá dentro. Não se sabe sequer se aquele ovo foi galado.
a pessoinha Ana Teresa é, de si, obra além de visível visibi-
líssima! —, perfeita, que não carece de mudança nenhuma para melhorar. Anda,
corre, dança, fala, canta, mente, acarinha, briga, reivindica, chora. Tem aqueles
olhos luminosos, aquele sorriso irresistível. Até as caixas do supermercado sorriem
para ela, o que é sinal de um carisma absoluto. Verdade que a fala ainda está
irregular, faltam-lhe algumas consoantes mais fortes e daí? A Brooke Shields,
falando português, deve ser ainda pior, nem por isso deixa de ser a Brooke Shields.
O mal é que, embora sendo a menina essa perfeição realizada,
todos falam em vê-la crescida. Os pais mandam medi-la, os doutores vivem a
fazer antecipações sobre o seu futuro, ela própria deve sonhar em ser uma pessoa
grande. Mas depois de se ver grande, adulta, duvido que ela queira ser velha, o que
é afinal a lei natural das coisas e o destino de toda evolução. Acontece que a velhice
é o mais indesejável de todos os progressos. E se em geral nós próprios, os velhos,
não sonhamos em fazer a marcha inversa e regressar à mocidade, é porque
recordamos como foi duro, desgastante e difícil o caminho que vai do estado de
adulto à velhice. Aliás, mesmo o caminho que leva da infância à mocidade não se
pode dizer que seja um tapete de rosas. Ou quando o é, tem muito espinho entre a
folhagem, que não rosa sem espinho, como diz a voz do povo. E, então, a
gente olha para Ana Teresa, esplendorosa, e pensa na loucura, na imprudência da
natureza em substituir aquilo tudo que é graça suave, combinação sábia de
colorido cabelo, olhos, pele, boca e ir trocando os dentes, engrossando a seda
do cabelo e a transparência da pele, pondo ângulos no desenho suave de braços,
163
pernas e ombros, estirando ossos... Mesmo que venha ela a ser uma moça linda,
será de uma lindeza diferente. E para onde vai tudo aquilo que estava ali, na
pessoinha inimitável, e se transformou? A gente é, de certa forma, como aquelas
bonecas russas que contêm várias bonecas, uma dentro da outra, e que se vai
descartando até chegar à mais bonita, que é a menor. que, no processo de
crescimento, a mudança é inversa, vai-se do menor para o maior. Embora o modelo
menor continue a ser, como nas bonecas, o mais bem-acabado e o mais bonito.
Pelo menos o é, para o velho coração da bisavó, que gostaria de parar o tempo e o
cenário de luz e flor em redor de Ana Teresa. Mas até a própria Ana pensa no
tempo em que vai “ser grande”. Ou “gande”, como ela diz.
164
ANEXO F – “A Arte de ser Avó” (agosto – 1958)
Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter
feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato
de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do
matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas
suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de
filho, mais filho que o filho mesmo...
Quarenta anos, quarenta e cinco. Vosente, obscuramente, nos
seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda
envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações todos
dizem isso, embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto mas
acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos,
às vezes lhe aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a
doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma
coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de
criança no seu pescoço. Choro de criança, O tumulto da presença infantil ao seu
redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de
problemas, que hoje o os seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego,
apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças
perdidas. São homens e mulheres — não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das
agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino.
Completamente grátis nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro,
aquela criancinha da sua raça da qual você morria de saudades, mbolo ou penhor
da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um
menino seu que lhe é “devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu
direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao
contrário, causaria escândalo e decepção, se você não o acolhesse imediatamente
com todo aquele amor recalcado que anos se acumulava, desdenhado, no seu
coração.
Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos
compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos,
165
profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos
arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados,
pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o
Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...
No entanto no entanto! nem tudo o flores no caminho da
avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela,
em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do garoto. Não importa que
ela, hipocritamente, ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de “vovozinha”
e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São
lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições
respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito
semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas
as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de
comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a
obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance
e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas.
Leva a passear, “não ralha nunca”. Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor
pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso
dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite
passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma
aventura. não linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma
maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e
comer croquetes, tomar café — café! —, mexer no armário da louça, fazer trem com
as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a
luz elétrica mil vezes se quiser e até fingir que está discando o telefone. Riscar a
parede com o lápis dizendo que foi sem querer e ser acreditado! Fazer má-
criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços da avó, e de escutar os
debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...
Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais
requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima da alegria de sair de
mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você
ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu
Deus, o olhar das outras avós com os seus filhotes magricelas ou obesos, a
166
morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um
olho, lhe reconhece, sorri e diz “Vó!”, seu coração estala de felicidade, como pão ao
forno.
E o misterioso entendimento que entre avó e neto, na hora em
que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir
abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade...
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem
entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho
involuntariamente! bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas
enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos
arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado
porque “ninguém” se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um
simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...
167
ANEXO G – “A Cobra que Morde o Rabo” (09-01-1999)
Mais um ano que se passa. Quando eu era menina pensava na
passagem do século e dizia comigo: ‘Vou estar muito velha. Quando acabar 1999,
eu irei completar 89 anos!” e esses 80 anos me pareciam tão distantes quanto o fim
do mundo; e me imaginava como seria eu, então (se sobrevivesse alá!) velhinha,
apoiada no bastão, ralhando com os bisnetos.., e estou, sem bastão, andando
livremente (até de salto alto, às vezes!), enfrentando a vida e suas tristezas, com a
velha resignação cearense, que a gente traz na massa do sangue. Não sei muito
bem como se comportam os outros ante a adversidade, mas creio que nós,
cearenses, temos a alma elástica: a batida vem, mas a gente reage sempre e se
levanta. Tiramos o exemplo da natureza a nossa natureza, ! Vá, por exemplo,
ao sertão nordestino, nos meses de novembro e dezembro. O povo, não tira os
olhos do céu, em procura dos prenúncios. Pequenas nuvens ao poente..., pequenas,
claro, ainda não é tempo das grandes, mas se elas se juntam para o sul quer dizer
uma coisa; se aparecem ao poente, a coisa muda. o que eles não dizem é que
coisa será essa: como todos os adivinhos do mundo, gostam de se envolver em
mistério. E aquelas nuvens inocentes são branquinhas como se fossem feitas só de
gelo e neve, não têm nada a ver com chuva, são só enfeites do céu...
Aqui no Rio, chove e a gente se maldiz. Ousam os nativos dizer que
a chuva “estragou” a exibição de fogos na passagem da meia-noite. Mas a velha
Chiquinha Rufino é que sabia interpretar essas coisas: “fogo é coisa do diabo, e a
chuva é coisa de Deus”.
Por mim, não gosto de passagem de ano. Cada ano que se acaba é
como se o cortassem de mim. Era meu e não é mais. Eu dependo dele para fazer
projetos, marcar viagens, dividi-lo em mínimas porções: “Semana que vem vou a
São Paulo, faço isto e aquilo (divido as horas e até os minutos em variados
compromissos), é como se eu tivesse comprado o tempo para o meu uso”.
E como a gente se engana! O tempo é que é o nosso dono, suscita
o inesperado, valendo-se das coisas mais íntimas. Até um salto de sapato que se
quebra pode impedir o encontro definitivo da sua vida: você não consegue chegar na
hora, e a pessoa amada vai embora após a espera inútil, certa de que a sua
ausência era a prova definitiva do rompimento. E quando você consegue chegar ao
ponto marcado, com duas horas de atraso, a pessoa amada foi embora, certa de
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que tudo acabou.
O que estou querendo dizer é que a gente é muito mais joguete das
circunstâncias do que se pode imaginar. E estava errada minha avó quando dizia:
“Tudo que Deus manda é para o nosso bem”. Primeiro, é aum pecado acreditar
que Deus Nosso Senhor, lá do seu trono, no Paraíso, vai se preocupar em quebrar o
salto do teu sapato e, por via disso, pôr fim a um caso de amor. Na realidade, na sua
maioria, os casos de amor são fora da lei, ou dos costumes, ou dos preconceitos.
Deus Nosso Senhor não cuida deles; e, embora os veja se quiser, que Ele pode
ver tudo, deve sorrir paciente, diante das nossas vicissitudes sentimentais e esperar
que passem. Ele, mais que ninguém, no céu e na terra, sabe que tudo passa. Aliás,
tenho a impressão de que a grande sorte do ser humano, na sua passagem pela
vida, é saber que tudo é transitório. A começar pela própria vida, a sua própria
existência.
Além de tão curta, tão repartida: infância, mocidade, maturidade,
velhice, cada capítulo tem sua sorte própria, seus risos, suas dores, seus mistérios.
Mas o curioso é que viver não é um aprendizado. Um velho de
cabelos brancos é tão inexperiente e crédulo quanto um menino, diante da vida.
Cai nos mesmos tropeços, o menino ao aprender a andar, o velho
que já não pode confiar nas pernas para cruzar os passos. E a gente acaba, na vida,
no mesmo ponto em que começou. Como a cobra que morde o rabo.
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ANEXO H – “Os Noventa” (25-11-2000)
Por que as dezenas são importantes, a gente não sabe muito bem.
Mas sempre procuro dar uma explicação a cada dezena de anos que completo.
Desde os cinqüenta. Talvez seja uma maneira de fugir ao impulso natural de negar a
idade quando ela nos parece excessiva. Talvez uma defesa também: se eu
proclamo a minha idade ninguém se interessará em alegá-la contra mim. Cinqüenta,
sessenta, setenta, oitenta e agora estes antipáticos noventa. Não estou achando a
menor graça: e dentro do meu coração, eu sinto que estes noventa anos são uma
injustiça imerecida.
A gente devia ter o direito de escolher a sua idade. Por exemplo,
quando tenho no colo meu bisneto Pedro, que é um irreprimível aventureiro, sinto
que o entendo, partilho das suas brincadeiras, me arrisco pelos caminhos que ele
sugere. E realmente, com Pedro no colo, sinto que tenho quase a idade dele. Mas
junto aos meus velhos amigos, octogenários, ou mesmo nonagenários, sinto-me
como se fosse o próprio Matusalém. Partilho dos problemas deles, das suas
indignações, de suas cóleras contra o regime e o poder. Fazendo essas confissões
ocorre-me, de repente, que sou uma pessoa de resistência muito frágil ao seu meio
e às suas circunstâncias. Verdade que quase sempre sou do contra, embora um
contra ameno, cordial, quase uma adesão.
Quando jovem, pregava revoluções e mudanças, me apaixonava
contra os poderosos. Mas, à medida que fui envelhecendo, o meu grande amor pelo
gênero humano sobrelevava todos os demais sentimentos. Quando jovem, a gente
tem pelo próximo um interesse que é mais curiosidade, descoberta e até um pouco
de ressentimento. À medida que o tempo passa, a gente abranda. Conhecendo
melhor as próprias fraquezas, procura entender as fraquezas dos outros. E vê-los
cometer atos de intolerância e hostilidade, a gente tira o desconto e, em vez de
hostilizar, procura entender. Creio que a melhor qualidade da velhice é a compreen-
são, até mesmo a condescendência com o que nos pareça erro nos outros. E
quando esses erros partem de uma pessoa amada, nossa tentativa de compreensão
se duplica: o importante naquela pessoa, para nós, é o amor que lhe temos e não o
seu comportamento.
O amor dos velhinhos por filhos e netos, às vezes detestáveis, se
justifica precisamente pelo amor que lhes dedicamos. Amor que eles não fizeram
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nada por conquistar, mas que nós lhes oferecemos às mãos cheias e,
principalmente, vindo do fundo do coração. Engraçado é que as leras e os
ressentimentos também se aliviam. Será que, ao envelhecermos, ficamos mais
frágeis, nossos ombros não agüentam o peso dos ressentimentos? E muitas
vezes nos surpreendemos a descobrir numa pessoa de quem não gostávamos
qualidades ou virtudes que, anos atrás, jamais lhe admitiríamos.
O esquecimento, o amadurecimento e, para dizer uma palavra
bonita, o perdão. Poucos dias atrás nos cruzamos de novo. Eu ia com pressa, mas
lhe fiz um gesto amistoso e ele correspondeu com tanta cortesia como o faria um
amigo do peito.
A gente se pergunta se este alívio dos ressentimentos é efeito da
memória desgastada ou de um abrandamento do coração. Talvez sejam as duas
coisas: como o ressentimento se esvaiu com o passar do tempo, o coração não teve
mais estímulo para reagir. Aliás, esse desgaste do tempo que se reflete também na
face do seu ex-inimigo deve igualmente se refletir na própria face, aos olhos dele. E
a cordialidade que mostra talvez derive da constatação dele: “Meu Deus, como a
Rachel está velha e diferente! Coitada!”.
É assim que acontece. O seu coração guarda aqueles res-
sentimentos gravíssimos, os que não têm perdão. O resto vai embora, lavado pelo
tempo. Em compensação quanta coisa boa nos ocorre de repente, boiando à flor da
memória. Um sorriso, um gesto, um carinho. Aquela pessoa que você imaginava
hostil de repente se aproxima e lhe um beijo no rosto. De graça, sem provocação
da sua parte. E aquela gratuidade lhe uma sensação de prêmio; é como se você,
passando num jardim, visse na sua mão a mais bela flor. Os gestos espontâneos
quase sempre são inesperados. E com esse elemento de surpresa é que nos
conquistam a gratidão.
Há pessoas que sentem muita pena de não terem conhecimento dos
segredos do futuro. Eu, não. Este mundo atual é tão rico de promessas, mas
também de ameaças, que chego a dar graças a Deus por estes noventa anos já
cumpridos. Pela falta de tempo a decorrer depois destes noventa anos, as surpresas
serão poucas, quer as boas, quer as más.