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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
A IMAGINÁRIA GUARANI:
O ACERVO DO MUSEU DAS MISSÕES
CLAUDETE BOFF
ORIENTADORA: PROFª DRª MARIA CRISTINA BOHN MARTINS
SÃO LEOPOLDO/RS, 2002.
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CLAUDETE BOFF
A IMAGINÁRIA GUARANI:
O ACERVO DO MUSEU DAS MISSÕES
Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de mestre em História,
Programa de Pós-Gradução em História, Centro de Ciências Humanas, Universidade do Vale do
Rio dos Sinos
Orientação: Profª Drª Maria Cristina Bohn Martins
SÃO LEOPOLDO/RS, 2002.
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III
AGRADECIMENTOS
À orientadora professora doutora Maria Cristina Bohn Martins, pelo
estímulo e orientação; à Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e
das Missões, Campus de Santo Ângelo e à Universidade do Vale do Rio dos
Sinos por terem oportunizado o curso de Mestrado em História, em Santo
Ângelo, possibilitando assim, aprofundamento nos estudos relacionados à
nossa região.
Agradeço a 12ª Coordenação Regional do Instituto de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional na pessoa do responsável pelo Museu das
Missões arquiteto Vladimir Stello, à amiga e parceira nas discussões sobre
arte e cultura missioneira, Maria da Graça Azevedo Bortoli, que muito me
animou neste trabalho, à minha família que esteve sempre presente nas
minhas atividades acadêmicas, incentivando-me, à Helena Rotta de Camargo
pela prestimosa revisão dos capítulos desta dissertação, aos professores do
mestrado, pelas excelentes aulas, aos colegas e amigos que de diversas
formas auxiliaram para a realização deste trabalho.
IV
RESUMO
Este trabalho se propõe estudar o acervo das imagens do Museu das
Missões de São Miguel. A produção que ele abriga é resultado da história
vivida nesta região entre os séculos XVII e XVIII por índios guaranis e
missionários jesuítas no que se conhece como os “Trinta Povos das Missões”.
Sua confecção foi motivada pelas necessidades advindas do trabalho de
“conquista espiritual” dos índios e elas refletem este intento. Contudo, mesmo
que tenham sido realizadas a partir desta inspiração e da direção dos
religiosos, as obras em questão acabaram sendo marcadas também pela
sensibilidade estética dos artesãos índios envolvidos na produção, num
processo que entendemos ser de comunicação intercultural. Portanto, o
principal intento desta investigação, foi o de refletir sobre o que se denomina
como o “barroco jesuítico-guarani”, identificando as marcas da mestiçagem
cultural e as novas forma s de expressão que ele possibilita.
V
ABSTRACT
This work proposes to study the colletion of images from the
Museum of Missions. The production that it keeps is a result of lived history
in this region between centuries XVII and XVIII by guarani indians and
jesuits missionaries known as “The Missions’ Thirty Peoples.” This making
was motivated by needs came upon from the work of indian’ s “spiritual
conquest” and they reflect this intention. However, even though they have
been carried out from this inspiration and over the direction of the religious
persons, the works in case have finished being also marked by aesthetic
sensibility of handcrafters indians involved in the production, in a process
that we understand as “intercultural communication”. Therefore the main aim
of this investigation, was to reflect upon what is called jesuit baroque-guarani,
identifying the marks of cultural crossbreeding and the new forms of
expressions that it permits.
VI
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Igreja de Jesus de Roma
Figura 2: Igreja da red. de São Miguel Arcanjo
Figura 3: Imagem de Santo Isidro Lavrador (1,00m)
Figura 4: Nossa Senhora da Conceição (1,22m)
Figura 5: São Miguel Arcanjo (1,16m)
Figura 6: São José com Menino ( 1,11m)
Figura 7: São José (pintura, red. de Santa Rosa, Paraguai)
Figura 8: A casa de Nazaré ( pintura, red. Santa Rosa, Paraguai) Fonte: ABOU
(1995).
Figura 9: Pintura (afresco), ilustração em P/B. Fonte: FURLONG (1962)
Figura 10: Detalhe do afresco (red. de Santa Rosa, Paraguai). Fonte: UNESCO
(1993).
Figura 11: Nossa Senhora da Conceição (1,22m).
Figura 12: Imagens em P/B. N.Sª da Conceição de Alonso Cano e Martínez
Montañes.
Figura 13: São José com Menino, (1,11m)
Figura 14: Nossa Senhora da Conceição ( 1,76m)
Figura 15: Imagem de São José (de costa)
Figura 16: Santa Catarina
Figura 17: Nossa Senhora da Conceição (1,22m)
Figura 18: Nossa Senhora da Conceição ( detalhe do cabelo)
Figura 19: Santo Isidro (1,83m)
Figura 20: Santo Isidro (detalhe da roupa).
Figura 21: Santo Isidro (detalhe do braço).
Figura 22: São Miguel (1,16m) (de frente)
Figura 23: São Miguel ( de lado)
Figura 24: Nossa Senhora da Conceição ( 2,10m).
Figura 25: Nossa Senhora da Conceição ( busto).
Figura 26: Nossa Senhora da Conceição (Cabelo).
Figura 27: Nossa Senhora da Conceição (!,76m).
VII
Figura 28: Nossa Senhora da Conceição (detalhe das vestes).
Figura 29: São José (1,92m)
Figura 30: São João Batista (0,72m) ( frente).
Figura 31: São João Batista (costas).
Figura 32: São Nicolau ( 0,72m) (frente).
Figura 33: São Nicolau (costas).
Figura 34: São Miguel (0,38m)
Figura 35: Trabalho em cantaria, fonte d’ água em São Miguel.
Figura 36: N. Sª da Conceição (1,22m), meio corpo ( figura ¾)
Figura 37: N.Sª da Conceição (1,22m), detalhe do cabelo, parte posterior.
Figura 38: S. José com Menino ( 1,11m), corpo inteiro
Figura 39: S. José com Menino (!,11m), parte posterior
Figura 40: S. João Batista ( influência do barroco europeu).
Figura 41: Escultura do altar de S. Inácio, Igreja de Jesus de Roma. “Fé cristã
sobre a idolatria”.
Figura 42: Duomo de Milão ( Fonte: Guia de Milão, 1999).
Fotos nº:
4, 5, 6, 11, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33,
36, 37, 38, 39, 40.
Gica Produções Fotográficas
Fotos nº.
1, 2, 7, 16, 34, 35, 41.
Claudete Boff
VIII
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS..................................................................................................................................III
RESUMO........................................................................................................................................................IV
ABSTRACT....................................................................................................................................................V
LISTA DE FIGURAS..................................................................................................................................VI
INTRODUÇÃO................................................................................................................................................1
CAPÍTULO 1 - A ICONOGRAFIA E SEUS PRINCÍPIOS DE ANÁLISE..............................14
1
H
AUSER
,
W
ÖLFFLIN E
P
ANOFSKY
...................................................................................................14
1.1
I
CONOGRAFIA
.................................................................................................................................... 28
1.2
I
MAGEM E
R
EPRESENTAÇÃO
.......................................................................................................... 33
1.3
I
CONOGRAFIA
,
IMAGEM E REPRESENTAÇÃO
..............................................................................37
1.4
I
CONOGRAFIA
,
IMAGEM E SIMBÓLICO
.......................................................................................... 41
1.5
A
ARTE NO
C
ONTEXTO DO
B
ARROCO
.........................................................................................44
CAPÍTULO 2 - OS GUARANI E AS REDUÇÕES DO PARAGUAI........................................54
CAPÍTULO 3 TRADIÇÕES FRAGMENTADAS: A COMPLEXIDADE DAS
MISTURAS ...................................................................................................................................................73
CAPÍTULO 4 - A IMAGEM COMO ESTRATÉGIA DE EVANGELIZAÇÃO .........................94
IX
CAPÍTULO 5 - ESTUDO DO ACERVO DO MUSEU DAS MISSÕES E SUAS
ESPECIFICIDADES ................................................................................................................................116
5.1
A
S OFICINAS
ESPAÇO DE PRODUÇÃO DE ARTE
.....................................................................129
5.2
I
MAGENS
,
CRITÉRIOS E LEITURAS
............................................................................................... 143
CONCLUSÃO............................................................................................................................................167
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................................................174
INTRODUÇÃO
Como residente de uma região do Estado do Rio Grande do Sul
conhecida como "região missioneira" e interessada profissionalmente em temas
ligados à história da arte, pude perceber - a partir do contato freqüente com o
acervo do Museu das Missões - aos testemunhos materiais da história vivida
por jesuítas e guaranis neste espaço, como fonte de reflexão e informação da
vida das reduções. Por sua vez, os estudos contemporâneos orientados pela
chamada "história cultural" têm possibilitado, e até mesmo provocado, novas
questões e interpretações sobre os remanescentes da produção artística
originada ao longo de tempo em que existiram as reduções (1609 - 1767).
A historiografia missioneira é vasta e heterogênea. Ela, contudo,
preocupou-se tradicionalmente mais com questões políticas, econômicas e
sociais. Só recentemente as manifestações culturais daí emanadas foram alvo
de maior atenção por parte dos historiadores. Estudos nessa área foram
realizados no início da década de noventa e, com mais freqüência, nos últimos
anos. Porém, anterior aos noventa encontra-se as obras de Furlong (1962,
1984). Sua investigação abrange os Trinta Povos e em todos os aspectos socio-
culturais. Gutierrez (1977,1989 e 1992) aprofunda o tema da arquitetura
2
abordando também a escultura e a arte como meio de evangelizar. Trevisan
(1978) em sua publicação sobre “a escultura dos Sete Povos” reflete a respeito
da originalidade do barroco jesuítico guarani. Já nos anos noventa, além dos
estudos de Sustersic (1993,1995,1999) e Trevisan (2000) encontra-se os
trabalhos acadêmicos: de Nestor Torelly Martins (1992) que trata sobre os
exemplares do Arcanjo São Miguel na escultura missioneira; de Lizete Dias de
Oliveira (1993) que trabalha a iconografia missioneira fazendo um estudo das
reduções jesuítico guarani; de Maria Inês Coutinho (!996) que aborda a
resistência pelo estético. Importantes investigações também foram realizadas
por ocasião das mostras: Brasil barroco, entre céu e terra, em Paris, na França
em 1999/2000; mostra do Redescobrimento, no Ibirapuera, em São Paulo
(2000), esta, promovida pela Fundação Bienal de São Paulo. Elas foram
acompanhadas de publicações e, juntamente com estudos recentes, trouxeram
uma mudança nas abordagens realizadas até então.
A investigação que conduzimos tem como foco principal a análise formal
das imagens que compõe o acervo do Museu das Missões, imagens estas que
foram produzidas por jesuítas e guaranis nas oficinas dos povoados em que
estiveram "reduzidas" populações desta parcialidade indígena durante
praticamente um século e meio da época colonial. Procurou-se destacar como,
mesmo a partir de uma iconografia européia, foi possível haver uma
intervenção dos indígenas no resultado final das obras.
3
Para realizar esta análise, efetivamos inicialmente algumas leituras
teóricas que dessem suporte à análise empírica sobre os remanescentes a
serem tratados. Refletiu-se, assim, a respeito dos primeiros tempos da conquista
espanhola sobre as populações indígenas e sobre o impacto do cristianismo
sobre sua cultura ancestral. Apoiados nos estudos de Gruzinski (1994) sobre A
colonização do imaginário (1993) e sobre A guerra das imagens (1994),
pudemos avaliar as complexas interações envolvidas no processo de aceitação
das novas crenças, imagens e ritos trazidos pelo colonizador. Tratava-se, para a
Coroa espanhola e seus agentes, de substituir as antigas imagens por imagens
do repertório cristão - no caso de povos "idólatras" como os mexica ou os incas
-, ou ainda, de impor imagens aos povos que não as tinham, como é o caso dos
Guarani. Estas eram, preferencialmente, imagens de santos, cuja conduta
deveria ser exemplificadora de bons costumes e/ou intercessoras do contato
com o divino.
Evidenciava-se, assim, uma intervenção direta e profunda nos padrões
culturais das sociedades americanas. Quanto ao termo “cultura” usado neste
trabalho, esclarece-se que em vários momentos ele é insubstituível, embora
concordemos com as críticas que Gruzinski (2001) levanta quanto ao uso deste
conceito.
4
Ele observa que o termo fundamenta-se na idéia de que seria possível,
ao analisarmos uma sociedade, chegar-se ao conhecimento de um substrato
estável ou invariante que definiria a "cultura" de cada grupo ou sociedade. As
culturas, avalia, seriam mais "nebulosas em perpétuo movimento", do que
sistemas bem definidos. Segundo Gruzinski, além desta dificuldade agrega-se
outra, residente no fato de os historiadores estarem pouco equipados em suas
ferramentas conceituais para trabalhar com a complexidade das misturas,
geralmente relegadas ao campo do desequilíbrio e da perturbação. Com
freqüência, tenderíamos a ler o passado como um movimento de progressão
linear, que é quebrado ao defrontarmo -nos com as múltiplas facetas das
mestiçagens.
Contudo, mesmo entendendo que o termo "cultura" dificulta a reflexão
sobre as interações processadas entre as populações nativas e ocidentais, por
vezes rendemo-nos a esta expressão consagrada, embora privilegiemos, neste
trabalho, a noção de “mestiçagem” tão bem delineada pelo referido autor.
Estaremos, então, empregando-a para pensar nas "misturas" - especialmente
no campo da expressão artística - ocorridas em solo americano na época
colonial, a partir do contato entre díspares experiências, imaginários e formas de
vida.
5
Já Theodoro (1996) ao estudar o que chama de "comunicação
intercultural" ao longo do período colonial, cunha a expressão “conjugação de
acervos”, numa perspectiva que é similar à de Gruzinski. Assim como ele, a
historiadora propõe a necessidade de refletir-se sobre o convívio intercultural e
não apenas sobre o confronto cultural.
É justamente ao analisar obras "mestiças", que Gruzinski (2001) entende
da necessidade de pensar-se sobre a questão da quebra de linearidade:
Na falta de se poderem decodificar de modo linear as
informações recebidas de toda parte, obtêm-se saberes ou
práticas que, de tanto justaporem de maneira ocasional e
aleatória os dados e as impressões assim recolhidos,
formam conjuntos jamais fechados em si mesmos.
(GRUZINSKI, 2001: 91).
E, tratando ainda da justaposição de acervos culturais, acrescenta:
Ela estimula capacidades de invenção e
improvisação, exigidas pela sobrevivência num contexto
extremamente perturbado, heterogêneo (indo-afro-europeu)
e sem precedentes. Tal limitação molda nos sobreviventes
uma receptividade particular, a flexibilidade na prática
social, a mobilidade do olhar e da percepção, a aptidão para
combinar os fragmentos mais esparsos (GRUZINSKI, 2001:
92).
6
Estes aspectos que o autor ressaltou tornaram nossa percepção mais
aguçada e atenta à mescla de fragmentos culturais dos grupos presentes nas
reduções jesuítico-guaranis que estudamos neste trabalho. Permitiram, desse
modo, reconhecer a busca de soluções originais para representar, através da
escultura, as suas crenças e visões de mundo. As novas soluções e os motivos
de decoração do ambiente local sugerem o nascimento de um novo estilo,
aquele que se procurou mostrar como o “barroco crioulo”, segundo Trevisan
(1978).
Para encaminhar esta análise na identificação das diferentes fases pelas
quais passou a imaginária missioneira, buscaram-se os suportes teóricos de
Hauser (1988), Wölfflin (2000) Panofsky (1976) e Francastel (1982) por
trazerem os fundamentos da arte em geral e, em alguns momentos, das
representações da renascença e do barroco. Por eles ressaltarem estes
aspectos, a compreensão das obras produzidas no espaço reducional foi mais
ampla.
Para Wölfflin existem leis que regem a evolução interna, inviolável dos
processos artísticos (WÖLFFLIN, 1989:12). Mesmo concordando com tal
afirmação, acreditamos que só estes preceitos não bastam para a reflexão
proposta sobre a imaginária missioneira. Ela é também, segundo Hauser (1972),
produto de uma sociedade. A iconografia que trata do tema das obras, na visão
7
de Panofsky (1976), forneceu os subsídios para a leitura da época e significados
implícitos na obra.
A imagem também foi estudada como produção visual e suas relações
com os produtores e instituições que se envolvem na circulação da produção
artística. No caso aqui específico, tivemos sempre presente para que e para
quem foram produzidas as peças em questão. Ou seja, consideramos a situação
de "missão por redução" que tinha os jesuítas como dirigentes, e os índios
guarani como grupo a ser evangelizado. Consideramos também o conceito de
representação e de simbólico que permitem a compreensão das imagens. Estas
são determinadas segundo interesses concretos e específicos. Referindo-se aos
povoados missioneiros, o pensamento cristão que determinou o tipo de
representação e o valor simbólico da produção artística legitimou os
ensinamentos cristãos.
Reforçando esse aspecto da legitimação do pensamento cristão nos
povoados missioneiros, estudamos o barroco como expressão da Igreja contra-
reformista e mesmo de uma época, e como força propulsora na criação de
obras sacras com fins catequéticos. Sobre estas questões foram importantes as
contribuições de Maravall (s/d), Sarduy (1988) Nunes (1982), Bazin (1997) e
Francastel (1982).
8
Sobre a recomendação do uso das imagens religiosas, Francastel
afirma que foram os clérigos, e especialmente os jesuítas, quem primeiro
deixaram-se seduzir pelos
proveitos que podiam lhes dar o controle e a
multiplicidade das imagens sagradas tão apreciadas pelo
povo. A afirmação contida nos decretos do Concílio e
segundo a qual a visão das imagens ajuda e sustenta a
prece, dava-lhes ademais incontestavelmente o direito de
agir como agiram (FRANCASTEL, 1982: 374).
A utilização das imagens como recurso para o trabalho de evangelização,
pode ser verificada empiricamente através da leitura das Cartas Ânuas.
1
Elas
estão presentes na decoração dos altares ou das praças em momentos
especiais, assim como são conduzidas pelo povo quando das procissões.
O Padre Francisco Lupercio de Zurbano, na Carta Ânua de 1637 1639
por exemplo, assim relata as comemorações da redução de Concepção quando
da vitória sobre as "bandeiras" preadoras de índios:
1
Compreendem a correspondência escrita pelos padres jesuítas que se encontravam em missão (nas
reduções ou nos colégios). Essas cartas eram escritas em intervalos de tempo que poderiam ser de um ano
ou mais. Eram remetidas ao Superior da Província do Paraguai que reunia a informação dos diversos
padres, acrescentava mais alguns relatos de suas viagens ou de eventos importantes, e depois, enviava ao
Geral da companhia de Jesus, em Roma.
9
Llevaron en un magnífico carro triunfal la imagem de
la Virgen alrededor de la plaza principal, aclamándola: “Viva
la vencedora, viva la vencedora”. Estaba, adornada la
imagen magníficamente a su usanza. En lugar de cochero
estaba en el pescante del carro un niño revestido de angel,
llevando en la derecha una corona con cintas, en la
izquierda uno ramo de palmas
2
.
À medida que se descobrem as reações dos guaranis frente à “cultura
de imagens” apresentada pelos jesuítas, o uso das mesmas e a sua produção
aumentam. Na XV Carta Ânua da Redução de Corpus ao Provincial Padre Diego
de Boroa (1634), encontramos o seguinte relato:
Por mover mucho a los yndios la exterior debocion
hizieron los Padres tres andas para tres cuerpos de talla,
que ay en la reduccion, las quales estrenaron el dia Santo
de pascua de resurreccion haziendo una procession
solemne por la plaza de que quedaron los yndios muy
gustosos
3
.
2
XV Carta Ânua das Reduções do Paraná e Uruguai de 1634. Santos Mártires do Caró 21 IV 1635. In:
Manuscritos da Coleção de Angelis. Jesuítas e Bandeirantes no Uruguai (1611 1758). Introdução, notas e
sumário de Hélio Vianna. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Divisão de Publicações e Divulgação, v. IV,
1970, p. 91.
3
XV Carta Ânua das Reduções do Paraná e Uruguai de 1634. Santos Mártires do Caró 21 IV 1635. In:
Manuscritos da Coleção de Angelis. Jesuítas e Bandeirantes no Uruguai (1611 1758). Introdução, notas e
sumário de Hélio Vianna. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Divisão de Publicações e Divulgação, 1970, p.
91.
10
Como essas, há na documentação, incansáveis outras referências à
milagres ou conversões cujo motor é a intercessão de algum santo invocado a
partir de sua imagem.
Apesar, no entanto, deste evidente caráter instrumental das imagens
produzidas nas oficinas das reduções, assim como da sua evidente filiação às
tradições européias, entendemos que - a partir delas - é possível compreender-
se o processo de intercomunicação cultural entre guarani e colonizadores.
Julgamos pertinentes, neste aspecto as observações de Theodoro (1992 e
1995), que entende ter havido, entre os acervos nativos e ocidentais, um
entrelaçamento cultural, um diálogo entre modelos europeus e tradições
ancestrais americanas. Essa intercomunicação foi muito significativa no campo
da arte, pois os objetos copiados foram ressignificados e a decoração e o ornato
apontaram para um nova expressão artística. Ao analisarmos aqui a produção
iconográfica das Reduções jesuítico-guaranis, nosso intento é, justamente,
evidenciar esta intercomunicação e seus efeitos sobre a expressão artística no
conjunto particular das obras abrigadas no Museu das Missões.
Nosso estudo sobre a utilização da imagem como estratégia de
evangelização, reafirmou o poder das representações visuais. A tarefa de
evangelizar a que se propunham os jesuítas, estava bem fundamentada na
produção de imagens e na decoração dos altares. Os missionários eram muito
11
bem preparados para atender às necessidades das reduções e supri-las com
mestres em todos os ofícios.
As diversas influências trazidas pelos padres de diferentes países,
contribuíram para se constituir um acervo iconográfico religioso com os mais
variados cânones. Sustersic, em seu recente estudo sobre “Templos Jesuítico-
Guaranis” (1999), destaca que é muito difícil categorizar a produção artística dos
povoados, pelas suas variáveis, e pela mescla de expressões determinadas pela
mentalidade do artista e sua sociedade. Por exemplo, na igreja da Redução de
São Miguel, há duas linguagens que convivem harmoniosamente: o barroco do
frontispício e o estilo Renascentista do pórtico. Neste caso, não podemos
analisar essa produção como um “estrato coerente” e “unitário”. Estamos diante
de um novo estilo. Tal avaliação serve também para a análise das imagens a
que nos propomos.
Esta investigação, apesar de não ser conclusiva, se propôs abordar um
assunto que, nos últimos anos, busca o seu lugar entre os temas mais
destacados da história da cultura e suas representações - que é a imagem.
Trata -se de tema multidisciplinar, por isso tão instigante.
12
Com base nos pressupostos teóricos já mencionados, procurou-se
analisar um conjunto de imagens produzidas nas oficinas dos espaços
reducionais, a observância de cânones tradicionais num primeiro momento e
suas transformações que sugerem a emergência de um novo estilo. Para tanto,
dividimos o trabalho em cinco partes. Na primeira delas trata-se do barroco,
como fundamento teórico para a análise das imagens do Museu das Missões.
Aborda-se o barroco, também como representação simbólica e como produção
iconográfica que se iniciou no século XVII, estendendo-se até o XVIII.
Na segunda parte estuda-se a contextualização histórica, o cenário
americano e de um modo comparativo, chega-se à instalação das reduções
Jesuíticoguarani que é onde acontece a produção da arte que se objetiva
analisar.
Na parte seguinte, ou terceiro capítulo propriamente dito, trabalha-se a
intercomunicação considerando os conceitos de Wachtel (s/d), Cuche (1999),
Teixeira Coelho ( 1999), Schaden (1969, 1982) e Maria Cristina Bohn Martins
(1999) que analisa a questão a partir das Cartas Ânuas. Ainda neste capítulo,
trata-se da substituição dos ritos nativos pelos ritos cristãos.
13
Na quarta parte, aborda-se a arte como estratégia de evangelização
enfocando o uso das imagens para impactar os nativos e persuadí-los a aderir
ao cristianismo. Neste capítulo a leitura das Cartas Ânuas mostrou todo o
empenho dos jesuítas na ”conquista espiritual” dos indígenas.
No quinto capítulo, apresenta-se o espaço de produção - as oficinas.
Analisa-se o acervo produzidos nos ateliês, as influências européias trazidas
pelos jesuítas, pelas gravuras ou pequenos modelos. Essa análise, amparada
nos estudos de Gruzinski (1993,1994,2001), Theodoro (1992,1995) e Sustersic
(1999), dá atenção especial à mescla de acervos culturais que se manifestaram
nas imagens em estudo. Observa-se, também que à medida que vai
acontecendo o domínio técnico, essa arte mostra uma nova expressão, com
características mais indígenas. Por todos os aspectos citados , dedica-se uma
reflexão às diferentes fases do barroco jesuítico- guarani, trazendo as questões
da análise estética e formal.
14
CAPÍTULO 1 - A ICONOGRAFIA E SEUS PRINCÍPIOS DE
ANÁLISE: HAUSER, WÖLFFLIN E PANOFSKY
A presença dos europeus no Novo Mundo transformou o curso da
história da América e ensejou o contato e a intercomunicação entre tradições
culturais sumamente distintas. Desse processo resultou uma nova cultura, uma
cultura “mestiça”, que se apropriou, sem reduzir-se a eles, de elementos dos
mundos americano e europeu.
Assim, a matriz americana incorporou os novos elementos culturais, sem
perder por completo a sua identidade, ainda que a cosmovisão hispânica tivesse
se introjetado profundamente no universo indígena. A progressiva apropriação,
por parte dos hábeis artesãos aborígenes, de modelos e conceitos europeus,
produziu uma explosão criativa sem precedentes no campo da arte.
Uma das mais representativas expressões dessa realidade pode ser
localizada na chamada “Escola Quitenha”.Tendo surgido paralelamente à
15
consolidação de oficinas, grêmios e confrarias
4
, ela constituiu-se numa das
notáveis manifestações da arte crioula. No México, mais especificamente, a
produção artística da época mostra com muita clareza a mescla da arte européia
com a indígena. É sobretudo Gruzinski (1993) que analisa o impacto das
concepções cristãs ocidentais sobre a produção imagética dos nativos. A pintura
é um dos instrumentos pelos quais podemos observar esse impacto. Assim, a
tela de Tlaxcala, por exemplo, traz significativas representações do mundo
indígena, enquanto reproduz um dos episódios da conquista do México.
5
No
Códice de Tlatelolco (1565), observa-se o mesmo tipo de arranjo (composição
4
Organizações que possibilitaram o treinamento dos nativos e mestiços em vários ofícios, como:
prateiros, ferreiros, douradores, oleiros, enfim, em todas as atividades manuais identificadas com as
artes e o artesanato. Atuavam aos moldes das antigas corporações medievais, porém, segundo
Gutierrez (1995: 26), algumas foram criadas por iniciativa do poder municipal. Na América colonial,
foram assumindo as necessidades locais e se estabelecendo em centros urbanos. Os interessados
nesse trabalho ingressavam muito jovens e, uma vez aceitos nessas organizações, passavam por
vários testes até chegar a serem mestres. Esses grêmios possuíam um santo patrono para cada ofício.
São José era o padroeiro da confraria dos carpinteiros; São Lucas, dos pintores; Santo Elói, dos
prateiros; assim, essas titularidades permaneciam ligadas à tradição cristã.
5
Observa-se, nessa tela, o traço primitivo, pelas figuras de perfil e pela estilização das formas, como se
fossem pictogramas. Por outro lado, a conotação hierárquica e de poder é representada através das
armas e pelo tamanho ou posição das figuras distribuídas no espaço pictórico. GRUZINSKI, Serge, La
colonización de lo imaginario. Sociedades indígenas y occidentalización en el México español Siglos
XVI -XVIII. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993, p. 30-33.
16
simples e ilustrativa, com ausência de perspectiva) e a justaposição de estilos:
as figuras de perfil conservam o mesmo traçado dos desenhos pré-hispânicos; a
composição (da tela de Tlaxcala) em planos diferentes já mostra a influência
ocidental. A produção artística desse período, como não poderia deixar de ser,
evidencia as marcas da evangelização: representa -se o batismo de líderes
indígenas, o martírio de santos e, ao centro da tela de Tlatelolco, o arcebispo do
México e o vice-rei.
A imagem, sem dúvida, foi um excelente veículo de evangelização, para
uma população iletrada. Ela pode ser encontrada em telas, em murais, na
escultura e na arquitetura dos conventos, colégios e igrejas. Os mapas da época
colonial também constituem verdadeiras pinturas diagramadas, de forma que
possibilitam a identificação e o caminho das cidades. Nas culturas do México e
Peru, a familiaridade com a escultura, arquitetura em pedra e a pintura
possibilitou uma maior diversidade das expressões artísticas.
As imagens tradicionais dos índios, sendo fortes meios de comunicação e
persuasão entre eles, e entendidas assim pelo colonizador, tiveram momentos
de grande perseguição iniciada por Cortês. A guerra das imagens abordada por
Gruzinski (1994) iniciou com a chegada de Cortês, por meio de um combate
17
progressivo, longo e freqüentemente brutal
6
. As imagens dos maias, astecas e
incas eram destruídas e depois substituídas pelas cristãs; as pinturas eram
branqueadas com cal, e logo, no mesmo espaço, paradoxalmente, eram
representadas figuras de caciques cristianizados e “papas” (sacerdotes locais).
O argumento usado pelo colonizador para tal combate era o enfrentamento
entre o bem e o mal, a verdade e a mentira, o sagrado e o profano. Os ídolos
nativos representavam o mal e tudo o que ele acarretava. Era preciso
substituí-los por imagens do repertório cristão, imagens de bons exemplos e de
intercessão do divino. A reação indígena teve momentos de grande revolta e
desespero, por ver a destruição de seus objetos de culto. Mas também houve
momentos de aceitação das imagens cristãs, uma vez que, com seus ídolos
destruídos, perceberam que nada lhes acontecia no meio material e que as
novas imagens impostas, de alguma maneira, poderiam ajudar. Por outro lado,
os colonizadores aproveitavam alguns sacerdotes locais para serviços em
rituais cristãos. Isso, aos olhos dos nativos, de algum modo poderia propiciar a
aceitação de novas imagens justapostas às suas. A justaposição de imagens
nativas e ocidentais, como no “Templo Mayor”, no México-Tenochtitlán,
evidencia, já na época de Cortês, traços de sincretismo religioso ou mestiçagem,
6
Gruzinski detalha o combate de Cortês, descrevendo a destruição dos ídolos nativos e como foi
organizada essa perseguição. Ver: GRUZINSKI, Serge. La guerra de las imágenes. De Cristóbal
Colón a “Blade Runner” (1492-2019). México: Fondo de Cultura Económica,1994, pp.40-42.
18
conforme Gruzinski (2001). A guerra para incorporar imagens do cristianismo
entre os guarani não teve esse caráter de aniquilação, como observamos no
México e no Peru, por serem povos destituídos de ídolos representados por
pinturas, por esculturas, ou mesmo por templos sagrados. Esse combate não
aconteceu na Província do Paraguai. Aqui as imagens foram usadas nas
catequeses que os padres faziam, no início, de aldeia em aldeia e, mais tarde,
nas doutrinas ou povoados.Tratou-se aqui, pois, de um combate “pelas
imagens.”
A produção da estatuária missioneira no sul da América, ou seja, o
conjunto iconográfico produzido por um específico segmento da sociedade
colonial espanhola, num tempo dado, constitui o objeto de nossa análise neste
trabalho. Seu repertório é formado por um conjunto de imagens religiosas, que
resultaram do trabalho de artífices indígenas aldeados pelos missionários da
Companhia de Jesus, nas “Reduções do Paraguay”. Foram, a um tempo,
elemento de decoração das igrejas e apelo visual para a prática da catequese.
7
7
Na XIII Carta Ânua da Redução de Santa Maria do Iguaçu, escrita pelo Pe. Claudio Ruyer, em 9-X-1627, ele ressalta
a decoração dos templos salientando que estão muito bem decorados com retábulos e custódias de prata. “ Los
Templos ~q su SS. á hallado en las dhas Reducciones estan muy bien adornados con la Limpieza y poliçia que en
todas las partes de España que su SS. ‘a visto los tienen los dhos Padres de la Compañia de manera que no les falta
mas ~q la riquiza de los de España, aunque tienen muy buen adorno de Retablos, y hornamentos y en todas las dhas
Reducciones ay Sagrarios y dentro de ellos sus custodias de plata muy buenas dentro de los quales esta el Santissimo
Sacramento el qual hallo ia puesto en las dhas quatro Reducciones y en la quinta lo puso aviendo dho missa Pontificial
y hubo una prosecion, sino tan solemme qual merecia la fiesta t anto quanto permitia la disposicion de la Tierra.” M.C.A
. VIANA , Hélio. Introdução, notas e sumário. Jesuítas e Bandeirantes no Uruguai (1611-1758). V. IV. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, 1970. p.78
19
São peças que se podem qualificar como representantes do “Barroco
missioneiro”, portadoras de motivos e técnicas européias introduzidas pelos
jesuítas e ensinadas aos índios. Contudo, não deixam de traduzir, também,
elementos provenientes da própria sensibilidade daqueles guarani que foram
seus executores. Para potencializar a perspectiva pela qual pretendemos
analisar este conjunto artístico, consideraremos, inicialmente, as relações entre a
arte e a sociedade, a partir das proposições metodológicas de Hauser (1972) e
de Wolfflin (2000).
Pelo método sociológico, Hauser (1972) vê a arte como produto da
sociedade. É recorrente, porém, em seus textos, o fator espiritual da arte. E é
considerando esse aspecto por ele analisado, bem como as estruturas
intrínsecas advindas das especificidades da obra em si, que vamos analisá-la. É
necessário, também, que se entenda a forma como representação da vontade
artística específica de uma época, repleta de um estilo inserido num contexto
sócio-cultural. O vigor espiritual da representação abarca os princípios formais
da obra, ultrapassando a imagem como matéria.
Além dos critérios sociológicos e espirituais, propostos por Hauser para
a análise da produção artística, consideraremos também os princípios da escola
formalista de Wölfflin (2000), que vê a arte como uma evolução própria da forma,
ou seja, o resultado da vontade artística específica de cada época,
20
caracterizada como um estilo, e contendo uma dinamicidade interior que
impulsiona a forma a uma nova expressão. Dessa visão despreende-se que a
evolução própria da forma, inserida numa realidade social, expressa traços com
significados gerais que passam a definir um determinado estilo. Reiteramos
nossa convicção de que, embora uma obra represente o contexto em que está
inserida, ela é mais do que isso: ela também deve ser analisada a partir dos
seus princípios formais, pois que carrega no seu interior uma vontade de
evolução, de inovação. Dessa forma, justificamos a conjugação das teorias que
conduzirão a análise que nos propomos fazer do acervo artístico do Museu de
São Miguel. A capacidade de entrosamento de seus princípios permite a fluidez
da nossa intenção de leitura.
O conceito de estilo, como podemos perceber, é fundamental para a
história da arte. Se não agruparmos a produção artística pelos traços gerais que
existem em comum nas obras, provavelmente fare mos um estudo individual de
cada artista, o que seria pouco produtivo para conclusões mais abrangentes,
acerca dos tempos históricos dos quais eles são protagonistas. A escolha
poderia recair entre artistas mais importantes e com maior produção e preterir
outros de menor expressão, o que nos levaria a desconhecer as tendências
comuns e as formas que ligam as diferentes épocas. Como a arte está ligada à
sociedade que a produz, ela perpassa os valores do grupo ao qual está
21
vinculada, apesar de possuir os seus próprios valores intrínsecos, além de traços
gerais comuns que a caracterizam, dentro de uma época ou de períodos
culturais. Essa interseção de época e estilo apresenta variações de acordo com
o domínio técnico do artista, sua sensibilidade e o modo pelo qual ele vê o
mundo, realidade essa perceptível nas obras barrocas do repertório jesuítico-
guarani, que nos interessa neste trabalho.
Hauser analisa a questão das leis puramente formais da arte, afirmando
que, se observarmos a arte somente sob esse aspecto, a análise e a fruição
tornam-se monótonas. Ao passo que, se conhecermos os objetivos que o artista
procurava na sua obra as suas intenções, de informar, de persuadir, de
influenciar o público, (HAUSER, 1988:13), ela adquire outra dimensão para o
espectador. Existem mensagens que podem estar explícitas ou implícitas nas
formas. Isso percebemos através da cor, da posição das figuras e da iconografia.
Quanto mais conhecemos o artista e o seu meio cultural, mais perto chegaremos
do seu entendimento e, com certeza, a sua obra será uma fonte de informações
históricas.
É o caso de Michelangelo que, ao esculpir a “Pietá” (1496) representa os
valores do renascimento - uma figura tranqüila, uma mãe jovem que contempla,
com muita serenidade, o filho adulto morto em seus braços, numa postura de
22
recolhimento e equilíbrio, apesar da dura realidade que sintetiza. Já em “Moisés”
(1515), anuncia a passagem para o barroco, com uma figura de olhar
insatisfeito, contraditório, um homem de grande força interior, “indignado” com a
atitude de seu povo, por vê-lo voltar às práticas pagãs. Numa expressão
dinâmica, pela forma como foi esculpida, a obra revela o “movimento” em
direção ao espírito barroco, materializado no mármore e espiritualizado através
da força do olhar e da postura do corpo. “Moisés” sintetiza a dicotomia barroca,
a luta do bem e do mal. O binômio artista e obra, situado no contexto histórico-
cultural já referido, pode servir como exemplo dessa importante sintonia que
elegemos como fundamental, para a análise das obras produzidas na América
Latina.
Aqui, como na Europa, o Barroco apresentou nuances em sintonia com o
lugar e a época em que se situa a produção em questão, o que leva a
reconhecer o valor da iconografia, dos princípios formalistas e dos critérios
sociológicos e espirituais, como respaldo ao estudo do acervo produzido nas
missões jesuítico-guarani.
Hauser afirmou sobre o valor propagandista das criações culturais e da
arte em especial, assim como Marx considerou as criações espirituais como
armas políticas (HAUSER, 1988:14). O Barroco evidencia, de forma privilegiada,
essa relação, pois é a expressão artística por excelência da Contra-Reforma e
23
do poder da Igreja, sendo utilizado na América com fins catequéticos. Mas ele
não se resume a isso. Se considerarmos a arte sem as suas questões próprias,
como a evolução da forma e o desejo de busca da originalidade, com certeza
ela acabará estandardizada. Fundamentada somente na representação social, a
produção deixaria de expressar valores espirituais,e de ser um meio para o
conhecimento posterior de culturas tão antigas quanto originais. Embora, como
já mencionamos, o estilo de determinada época abarque várias regiões, em seus
traços gerais, ele traz ainda peculiaridades do período, nuances próprias, como
afirmamos acima.
Pode-se tomar como exemplo, o Barroco latino-americano, que
compreende manifestações de um longo período de tempo - do século XVI ao
XVIII -, produzidas num espaço também dilatado - a América de colonização
ibérica, do México até a Argentina. É evidente que ele apresenta diferenças, de
acordo com os povos, épocas e regiões. Em traços gerais, as manifestações da
arte identificam o Barroco, mas, nas suas especificidades, percebe-se na
produção do vice-reinado da Nova Espanha, por exemplo, um tratamento
diferente do realizado nas missões jesuítico-guarani. Os artistas vivenciavam
realidades particulares, o que se reflete na sua produção. As peculiaridade dos
24
"artistas"
8
em questão, dos produtores do repertório que estamos analisando, se
evidenciam no resultado final.
Para o acervo do Museu das Missões, não se pode estabelecer datas
certas
9
, de criação, mas se observa uma “evolução” formal nas representações
das imagens. A evolução intrínseca, expressa na iconografia religiosa das
reduções jesuítico-guarani, se analisada apenas pela ótica sociológica, poderia
minimizar o homem criador como ser espiritual, uma vez que é pelo
conhecimento da forma que se percebe tal estilo. As esculturas desse acervo se
apresentam ao observador com características, com traços, com modos de
representar o mesmo tema, diferenciados. Se tomarmos como exemplo as
imagens de Nossa Senhora da Conceição (altura: 1,22m e 2,10m), constatamos
estilos ou modos diferentes de expressar o mesmo tema. Assim como elas, há
imagens elaboradas com acentuado movimento nas vestes e no cabelo, que
marcam o Barroco propriamente dito; e outras que nos remetem para uma
justaposição de estilos: a decoração lembra formas primitivas, enquanto, o rosto
e sua expressão de êxtase vêm do Barroco europeu. (N.S. da Conceição, altura:
8
Os índios das reduções não eram propriamente “artistas” como os entendemos, isto é, seres
inovadores com uma produção original. Na América colonial, o artífice era mais artesão, por ter a
habilidade da cópia e a destreza do trabalho manual, sem se preocupar em projetar obras originais.
9
A época inicial do acervo é considerada a partir do século XVII e encerra com a expulsão dos jesuítas
na segunda metade do Século XVIII.
25
2,10m). Ao observar esse conjunto, sente-se o impulso interno de evolução ao
qual já nos referimos. Há uma dinamicidade nessa produção como um todo.
No caso de nossa reflexão, deduz-se que só o método sociológico de
análise da história da arte é insuficiente. É preciso considerar o homem como ser
espiritual e, nesse caso especial também a forma, com sua força de evolução
interna expressa na iconografia, como foi demonstrado acima.
Estas conclusões afinam com a orientação metodológica de Wölfflin que
segue os princípios formalistas, isto é, seus estudos se prendem à forma e à
composição da obra. Ele cria uma escala de referências internas que permite
atribuições e classificações dentro dos estilos. Já o método de análise
sociológica - cujos princípios advêm de Marx e Engel - seguido por Hauser
(1972), Francastel (1982), e Nico Hadjinicolaou (1973), refere-se a uma história
social da arte, por relacionar as obras com os grupos sociais que a determinam.
A arte passa a ser o reflexo da sociedade que a produziu. Para esta reflexão,
deve-se agregar o contributo de Bourdieu (1998), teórico contemporâneo que
amplia a perspectiva apontada, ressaltando a importância também do consumo.
Tais dados que serão levados em consideração durante este trabalho.
A esses métodos, soma-se os estudos sobre iconografia de Erwin
Panofsky que propõe a análise através do conhecimento de ícones, que se
26
repetem nas diferentes épocas históricas. Para uma análise iconográfica, é
preciso ter familiaridade com as representações feitas pelos autores. A
iconografia é de auxílio incalculável para o estabelecimento de datas, origens e,
às vezes, autenticidade; e fornece as bases necessárias para quaisquer
interpretações ulteriores (PANOFSKY, 1976:53). Isso não significa contudo,
que, apenas a partir da iconografia é possível alcançar o melhor conhecimento
dos nossos objetos de análise. É preciso também conhecer as idéias filosóficas,
teológicas, políticas e os propósitos e inclinações individuais dos artistas e
patronos. (PANOFSKY, 1976: 53)
Portanto, ao estudar o repertório que resultou da produção das oficinas
jesuítico-guarani, tem-se que considerar as questões acima mencionadas. Além
disso, é preciso levar em conta que, ao longo de dois séculos, esse repertório
adquiriu várias nuances, outros traços, outros desejos de busca e auto-
afirmação. Mesmo que mais teóricos fossem invocados para respaldar o estudo
proposto, algumas questões da análise artística se sobreporiam ao que já está
consagrado como especificidades do Barroco latino-americano.
Concordamos com Janice Theodoro, para quem é lícito falar de um
Barroco latino-americano. No entanto, mesmo aceitando a classificação geral
do Barroco latino-americano, entendemos que ele assume características
27
regionais. Segundo a autora, o Barroco representa um esforço no sentido de
criar, cuja primeira forma de expressão será, basicamente visual. A
fragmentação, ou seja, o que restou dos significados ancestrais, representa a
energia que permite o surgimento do novo. E ainda que, esta consciência
resultou de um diálogo entre diferentes grupos étnicos que amadureceram seus
elos para configurar-se, posteriormente, como um fenômeno estético conhecido
como Barroco permitindo a todos a auto identificação. Na América, temos, pois,
Barrocos: O Barroco brasileiro, o Barroco mexicano, o Barroco peruano, etc.
Cada um deles carrega as suas especificidades mas todos eles apresentam um
eixo em comum: repousam em um saber produzido em conjunto em meio a
fragmentos, cacos, pedaços de tradições nativas sem que o passado entravasse
a possibilidade da mudança
10
(THEODORO,1995).
E mais, mesmo depois da independência dos países ibero-americanos, o
mundo indígena conserva essa função simbólica
11
em seus traços essenciais,
mesmo que não seja plenamente consciente. Esse mundo oculto e original do
nativo marca o barroco de um modo peculiar. E é auxiliados pelo conhecimento
de sua sociedade, pela transformação intrínseca da forma e pelo conhecimento
10
Palestra proferida pela professora Janice Theodoro -“Barroco como conceito”- São Leopoldo,
UNISINOS,1995.
11
Referimo-nos às formas ancestrais, primitivas, que emergem das representações da arte ibero-
americana.
28
de sua iconografia e de todas as suas implicações, que vamos analisá-lo, no
que tange aos grupos guarani reduzidos no Paraguai colonial.
Gruzinski (2001) também argumenta que as obras produzidas pelo
contingente mestiço não podem ser analisadas simplesmente, por um processo
evolutivo fechado e conclusivo. Ao misturarem-se os acervos culturais, eles se
enriquecem e resultam numa quebra de linearidade merecendo estudos
específicos. Para esta análise, não existe compartimento onde se poderia
colocar a produção artística resultante das mestiçagens americanas. Há uma
lacuna na história dos movimentos artísticos, que não contemplam, ainda, essas
especificidades. Mesmo assim, faz-se necessário, para o nosso estudo,
aproveitar conceitos básicos, já consagrados, e somar as contribuições de
Theodoro (1995) e Gruzinski (2001), que tratam, especificamente, do patrimônio
cultural dos povos da América colonial.
1.1 Iconografia
A iconografia nos auxiliará, neste trabalho, a buscar as possíveis origens
da arte religiosa desenvolvida no sul da América, a identificar a época e a
constatar a autenticidade das peças produzidas nos povoados missioneiros. E
29
ainda servirá de base para outras interpretações, como identificação da
mestiçagem nos acervos culturais em estudo.
A iconografia é a descrição e classificação das imagens assim como a
etnografia é a descrição e classificação das raças humanas (PANOFSKY, 1976:
53). Na história da arte, a iconografia trata do tema das obras. Para melhor
entendermos o estudo que a iconografia realiza perante os objetivos de arte,
Panofsky, criador da escola iconográfica, busca uma interpretação em três níveis
de análise.
No primeiro momento, faze -se uma descrição pré -iconográfica do objeto
artístico, observando certas configurações, como linha, cor, material usado,
traços, enfim aquelas experiências práticas que nos são familiares e expressas
por formas. Realiza-se, desse modo, a história do estilo. No segundo momento,
analisa-se o que constitui o universo das imagens. É a análise iconográfica
propriamente dita. Une-se o conhecimento das fontes literárias aos motivos
artísticos. É uma investigação na qual o mesmo tema se apresenta diferente em
diversas condições históricas. São conceitos apresentados através da imagem.
Por exemplo: a figura de um homem com chagas no corpo sempre vai lembrar o
Cristo morto na cruz. Esse estudo nos reporta à história dos tipos: pode-se
analisar a imagem de Cristo morto, através de diferentes épocas históricas.
30
No terceiro momento de análise, busca-se a significação intrínseca, que
é o universo dos valores simbólicos. Pode-se, por exemplo, fazer uma
interpretação iconográfica do Cristo morto, ao longo da história do cristianismo.
Ele foi esculpido e pintado de acordo com as tendências essenciais do espírito
humano e, também, de acordo com a época. Essa mesma figura teve
tratamentos diferentes, na Idade Média, no Barroco e na época atual. Tenta-se
entender essa escultura ou pintura como um documento de época e como
expressão da personalidade do artista que a realizou. A descoberta e
interpretação desses valores “simbólicos”, segundo Panofsky, denomina-se
como iconologia. (PANOFSKY, 1976:53)
São, pois, três os níveis estudados por esse autor: descrição pré-
iconográfica, análise iconográfica e interpretação iconográfica. O primeiro nível
descrição pré-iconográfica tem como princípio regulador da interpretação a
história do estilo. O segundo nível - análise iconográfica tem como pressuposto
a familiaridade com fontes literárias e orais, cuja investigação resultará na
história dos tipos encontrados em diversas épocas. O terceiro nível -
interpretação iconográfica - que busca mais a síntese que a análise, resultando
assim na história dos sintomas culturais ou “símbolos”.
Essa percepção é criticada por Ciro Flamarion Cardoso (1990) o qual
entende que a teoria sobre iconologia fica prejudicada, em parte, na medida em
31
que coloca em questão apenas o ocidente cristão, não universalizando os
“métodos de leitura e interpretação”. (CARDOSO,1990:15) Mesmo os discípulos
de Panofsky não conseguiram fazer esse estudo global. Contudo, sua teoria tem
grande valor para a história da arte, uma vez que procura distinguir as ligações
da arte com a cultura e com as ideologias sociais. Como a iconografia parte da
definição do espaço pictórico - como espaço de representação articulado com as
formas simbólicas da sociedade - ela nos auxilia na compreensão dos acervos
artísticos.
Vovelle (1987) reconhece a importância da iconografia, quando há
dificuldade de encontrar equivalentes escritos para o estudo das representações
coletivas, ao afirmar:
As fontes iconográficas não somente são abundantes,
mesmo em seu inventário atual, como também oferecem
perspectivas renovadas de reflexão. Não obstante afigura-
se paradoxal, eu diria que, em certos aspectos, elas podem
parecer mais “inocentes” ou, afinal de contas, mais
reveladoras que o discurso escrito ou oral, graças às
significações que elas podem extrair, em termos de
confissões involuntárias (VOVELLE,1987:70).
A iconografia via de regra, através das ilustrações, foi uma auxiliar da
análise histórica. Mas, de acordo com Ciro Flamarion Cardoso (1990), ela pode
32
ser também empregada como “fonte para a história” e como “objeto de história”.
(CARDOSO, 1990:9) Ele ressalta a sua importância como documentação
histórica, especialmente para as civilizações antigas, quando as fontes escritas
são raras. Dessa forma, os pesquisadores atuais têm-se debruçado sobre
documentos iconográficos como fontes de novos conhecimentos. No campo
antropológico, a iconografia tem servido como fonte documental para que se
conheça melhor as sociedades e seus costumes.
Ao recorrer à iconografia como objeto de interpretação e conhecimento
da sociedade, é preciso identificar também a subjetividade contida nesses
documentos, como exteriorização de quem os produziu. É importante reconhecer
as representações simbólicas:
... precisamos dominar melhor a problemática visual
do símbolo e sua linguagem para alcançar uma
compreensão mais adequada do lugar da imagem na
consciência humana e na cultura e das funções dos ícones
na vida social (PORTO ALEGRE, 1998:77).
É importante salientar que a iconografia, como toda fonte documental,
pode trazer uma carga ideológica do autor. Mas nem por isso perde seu valor
como fonte histórica e como objeto da história. Nesse mundo complexo das
imagens, as especificidades de cada cultura devem ser consideradas, assim
33
como o domínio do conhecimento dos símbolos é fundamental para o
pesquisador. Ao estudar, por exemplo, a iconografia medieval, e nos deparamos
com a figura da águia nos relevos esculpidos nas igrejas, ela terá um significado:
símbolo do renascimento (renascer) e do batismo. Além disso, pode significar
Cristo e a ascensão aos céus, ou ser o símbolo do evangelista João. Para
certas culturas indígenas, as penas representam os raios do sol e são utilizadas
como adorno de significado cultural, assim como na antiguidade eram símbolo
dos reis e dos deuses. No Museu das Missões, encontra-se um relevo em pedra
do século XVIII, com uma águia bicéfala representada como águia real, pois
sobre ela aparecem as insígnias da coroa real espanhola. Com esses exemplos,
reafirmamos a complexidade da análise iconográfica e, ao mesmo tempo, o
grande interesse que ela desperta nos pesquisadores, uma vez que a imagem
exerce um poder especial, aguçando todos os sentidos.
1.2 Imagem e Representação
Neste momento, trataremos da imagem como produção visual, e de suas
relações com os produtores e as instituições envolvidas na circulação do
“material visual”. A imagem representa algo, alguém ou ainda uma fantasia que,
no momento real, não se faz presente ou não se pode realizar. O que nos
interessa aqui é a representação de formas religiosas cristãs que, mescladas às
34
representações da cultura nativa, nos possibilitam uma leitura da evangelização
da sociedade jesuíticoguarani e sua produção artística.
O estudo da imagem e sua representação nos remete a questões que
envolvem o produtor, a circulação e o historiador da arte. Gaskell (1992)
apresenta a arte como sendo o conjunto de artefatos produzidos por artistas,
assim como a história seria o conjunto dos discursos produzidos pelos
historiadores, e não “o passado”. De acordo com a visão desse autor, a arte
deve ser entendida também como material visual, e a história das imagens como
a história da arte,
por considerar as questões relacionadas ao material
visual além dos limites da arte, assim como em seu interior.
Na verdade, a distinção entre a arte e os outros materiais
visuais sugere, não somente questões de terminologia, mas
também a relativa posição ou privilégio dos diferentes tipos
de material (GASKELL, 1992: 238).
A prática do material visual está afeta a três instituições que, interligadas,
realizam a circulação das imagens nos meios culturais. Essa concepção de
imagem e material visual refere-se à cultura ocidental como um todo. Como
primeira instituição, Gaskell considera os negociantes, leiloeiros e
colecionadores; segunda, os curadores, galeristas e investidores; terceira, os
pesquisadores acadêmicos, editores e os críticos de arte. Todas elas são
35
interdependentes, pois, ao ser realizada uma mostra, há necessidade de que as
três instituições trabalhem juntas, como, por exemplo, nas Bienais de Artes
Visuais. Como se vê, há um complexo cultural e econômico interdependente.
Quanto a esse complexo cultural, sabe-se que as imagens dirigem a reflexão, e
que existe nelas uma intrincada rede de relações que cada produto artístico
contém. Portanto, a intenção de conhecer a lógica interna desse tipo de
produção leva os historiadores de arte acadêmicos à pesquisa e à busca da
memória fortemente imbricada na força das imagens. É o que fazemos ao
proceder a uma investigação, tendo como fonte a iconografia, ou ao organizar
uma mostra de arte. Devemos ter consciência de suas potencialidades como
representação de uma época, de uma sociedade ou mesmo de uma cultura.
Ainda argumenta Gaskell, a respeito da “tríade central” que está
diretamente ligada à circulação do “material visual”, situados fora dessa esfera,
estão os artistas e os professores de arte. O artista é visto apenas como
produtor, com o que não concordamos, pois, além de produtor de imagens, ele
também é, através de seu trabalho, formador de sensibilidades e de senso
estético.
Hoje não se concebe mais a idéia de artista isolado do mundo. Com seu
trabalho, ele expõe uma realidade política e cultural, simbólica ou explicitamente;
contesta o meio ambiente, os desníveis sociais, a dor, a solidão, que nada mais
36
são que a sua representação do mundo. Ele é o próprio contexto que dialoga
com o imaginário coletivo, transformando-o em imagem
12
.
Outro aspecto, apresentado pelo curador de pinturas do Museu S.
Winthrop da Universidade de Harvard, com relação à imagem, é seu estudo
sobre a autoria, a canonicidade e a interpretação, como três aspectos de
especulação para avaliação das obras de arte. Anteriormente, vimos a questão
da circulação do material visual, que está alicerçada em instituições fora do
âmbito da criação, da originalidade. Intimamente ligada a esse contexto está a
análise desse segundo aspecto relevante, consagrando seu trabalho tanto na
área de circulação de imagem, como curador, como na investigação das
questões artísticas.
A autoria das obras realizadas no passado passa ainda pelo trabalho do
“connoisseur”
13
. Ele analisa a obra pelos traços, por suas propriedades internas,
pelo exame técnico, abreviaturas pessoais e estilo. Por sua vez, a canonicidade
oferece subsídios para a avaliação da arte, e pode-se dizer que ela é a
“personalidade artística” definida de uma obra. Gaskell cita o exemplo de Sandro
Botticelli, pintor do Renascimento italiano que, só no fim do século XIX, teve sua
obra reconhecida, apesar de to dos os esforços do “connoisseurismo”. Os
12
Referimo-nos aqui ao imaginário como o capital cultural, e à imagem como o real, o produto.
13
Termo francês que designa a pessoa com profundo conhecimento do assunto.
37
cânones usados por Botticelli, distintos de seus contemporâneos, provocaram
sérios questionamentos a respeito de seu valor como artista do Renascimento.
Mais tarde percebeu-se que sua obra é marcada por uma “personalidade
artística” definida.
Portanto, pela análise do cânone, é possível chegar-se à autoria. Esse
estudo é mais comum quando se necessita identificar o autor de obras mais
antigas. Por exemplo, muitas telas dos discípulos de Rembrandt foram atribuídas
a ele. Então, pelo estudo da canonicidade de seu traço, de sua assinatura, é
possível chegar à interpretação mais correta. Essa interpretação pictórica deve
ser examinada, considerando também a ideologia implícita na representação.
Apoiamo -nos em todas as considerações examinadas neste texto para
analisarmos a produção artística do barroco jesuítico-guarani, que trataremos no
próximo capítulo. Portanto, é pertinente ainda, considerarmos os conceitos de
representação (Chartier) e simbólico (Bordieu), que nortearam nossa concepção
do barroco como cultura e como produção intelectual e artística de uma época.
1.3 Iconografia, imagem e representação
A representação na história, segundo Chartier (1990), pode designar três
realidades maiores: primeiro, as representações coletivas e, nessa questão,
38
aproxima-se de Bourdieu (1998), ao dar especial atenção à cultura; segundo, as
formas de exibição do ser social ou do poder político; terceiro, “a
presentificação”. Seria este o significado de representação de uma identidade ou
de um poder, dotado assim de continuidade e estabilidade. (CHARTIER,
1994:108) Assim, uma obra de arte pode representar o coletivo, a cultura, o
poder político ou ainda ícones de uma época.
Segundo Hunt, Chartier defende uma definição de história que seja
basicamente sensível às desigualdades, na apropriação de materiais ou práticas
comuns (HUNT,1992:17)
Em um sistema de representação em que predomina o figurativo, como,
por exemplo, na obra dos muralistas mexicanos
14
, percebe-se estar
repre sentado o poder da imagem pelos símbolos usados. Orozco
15
, em sua
vigorosa pintura expressionista, deu ênfase à representação do poder, mostrou
os ícones tradicionais da cultura mexicana e os mitos políticos. Na
representação do nativo, vestiu-o como hispano e não como indígena, em seus
trajes tradicionais; na representação do poder instituído, enfatizou os símbolos
14
Pintura mural da Revolução Mexicana que teve grande influência e vigor, nos anos 1930, com artista
que se posicionavam politicamente.
15
Orozco, muralista mexicano, faz uma leitura hispanista da conquista, mas radicalmente
anticlerical e antimilitarista.
39
do poder. Siqueiros
16
, por sua vez, deu atenção especial à representação das
lutas de classe no México, pintando camponeses e revolucionários, trazendo
para os murais e telas a expressão de mães sofridas, camponeses fardados,
corporificados numa estrutura física forte e vigorosa perceptível pelo tamanho
das mãos, do corpo e pelo movimento das formas. Já Rivera
17
mostrou o
popular, a cultura nativa, o coletivo, em composições fechadas e formas
serenas. Realmente ele é o mais popular dos muralistas. A popularidade de sua
pintura se realiza nas inúmeras figuras representantes da cultura asteca, maia e
de outras culturas mexicanas, assim como dos festejos populares. Essa
peculiaridade deu à sua obra uma empática relação com o povo. Nota-se pois,
toda a articulação dos murais que, dependendo da ótica do muralista dá ênfase
através da imagem àquilo que quer comunicar. O próprio tema histórico nos
remete ao entendimento da representação que ora elege o poder instituído, ora
reverencia o povo
18
.
A produção artística dos séculos XVII e XVIII das missões jesuítico
guarani é representada, em sua maioria, por santos guerreiros, anjos, mártires,
por Nossa Senhora, e pelos padres da Companhia de Jesus.Todos
representavam modelos de vida a serem seguidos. De acordo com Karnal:
16
Siqueiros, militante revolucionário sintonizado com o socialismo.
17
Rivera, produzia uma arte de cunho antropológico.
18
Foi tão forte o movimento de realismo social criado por esses artistas que influenciou outros tantos,
como, especialmente no Rio Grande do Sul, os artistas do Clube de Gravura.
40
a representação da estatuária cristã, era um
fenômeno exótico às tradições destes grupos. Assim, as
representações formais passam a coexistir em universos
ora com similaridades, ora não, em relação a suas fontes
européias. Estas complexas interações estimulam a rica
diversidade da questão religiosa no Novo Mundo (KARNAL,
1998:222).
Tais representações artísticas operaram trocas culturais. Vivendo
europeus e indígenas no mesmo ambiente, é natural que a intercomunicação
cultural fosse permeando as representações artísticas e o modo de vida do
colonizador. Assim surgiu nessa interação, uma diversidade de representações
religiosas que enriqueceram e envolveram os meios usados na evangelização.
Sobre o apelo visual das imagens, refere Belluzzo (2000):
A função da imagem eloqüente, além de instruir e
persuadir, é tornar acreditável imediatamente e por si.
Destina-se a despertar sentimentos interiores que vão da
comoção devota ao afeto, à aflição, ao temor. Neste caso, é
o apelo visível que se transmuta em imagem,
diferentemente da forma renascentista em que a imagem
podia ser pensada enquanto forma e apreendida em sua
própria estrutura inteligível ( BELLUZZO, 2000:56).
As imagens tinham a função de dar apoio à catequese. Elas supriam os
ensinamentos que muitos não alcançavam através da leitura, pela complexidade
dos conceitos envolvidos, pela dificuldade de tradução ou também por não
41
conseguirem decodificar as prédicas e a escrita. Sabe-se que nem todos os
índios reduzidos freqüentavam a escola. Esse privilégio era reservado aos filhos
dos caciques, aos músicos, sacristãos, artesãos, administradores e oficiais
mecânicos. A catequese muda e eloqüente foi, assim, o elemento maior de
cristianização.
1.4 Iconografia, imagem e simbólico
Quando, em nosso estudo, tomamos por fonte histórica a produção
simbólica de uma sociedade, referimo-nos ao universo simbólico da arte como
fonte de conhecimentos. As estruturas estruturantes da arte, segundo Bourdieu
(1998), constituem o instrumento metodológico de análise, apoiado na
objetividade e na concordância das subjetividades estruturantes. Esse
instrumento como estruturas estruturantes, tem também a função política de
legitimar a ideologia dominante. Os símbolos usados para efetivar a
comunicação são também instrumentos de integração social, uma vez que os
símbolos religiosos circulam por todas as camadas sociais. No medievo
ocidental, a profusão de símbolos existentes nas igrejas afirma o poder
eclesiástico; na arte egípcia, a intensificação da figura do faraó, nos relevos e na
pintura, lembra o seu poder e divindade.
42
O Barroco latino-americano foi igualmente usado para mostrar a
autoridade que a Igreja exercia sobre as populações, sendo aos poucos
reconhecido pela sociedade nativa e compreendido como forma de
representação do poder eclesiástico. Eis como se manifesta Bordieu (1998): É
enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de
conhecimento que os “sistemas simbólicos cumprem a sua função política de
instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação de uma classe sobre
outra (violência simbólica), dando o reforço da sua própria força às relações de
força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de
Weber, para a “domesticação dos dominados.” (BOURDIEU, 1998:11)
Na América hispânica colonial, avaliando-se o conjunto da sua
produção artística, vê-se que os símbolos de dominação foram justapostos as
tradições nativas. Pode-se pensar, contudo, que tal realidade manifestou-se
diferentemente, em se tratando de sociedades estatais, com clero e religião
instituídas ou, no caso que aqui importa, tratando-se de sociedades simples
como a guarani, onde inexistia a noção de poder político. Contudo, à medida que
houve uma inserção dos guarani na estrutura do aparelho colonial espanhol, ele
procurou vestir-se e adquirir hábitos ocidentais, buscando alguma semelhança
com o espanhol, expressando, assim, símbolos de poder. Gruzinski (1993)
evidenciou que os símbolos de poder do colonizador expressos na arte não
foram assimilados totalmente. Em muitas imagens, assim como na arquitetura,
43
escultura, pintura, nos códices e mesmo nos mapas ilustrados, as formas
primitivas afloraram na produção do período colonial.
Isso é perceptível, por exemplo, na já mencionada tela de Tlaxcala
19
.
O citado autor analisa a questão, expressa em inúmeras gravuras e telas que
vinham da Europa no que ele denominou de a “colonização do imaginário”. Tais
peças tinham a finalidade de povoar o imaginário indígena com símbolos cristãos
e fortalecer os conceitos da nova religião. Gruzinski confirma em suas teorias o
poder que a imagem exerce sobre as pessoas e seu valor simbólico de
reconhecimento da nova estrutura social que se impunha na época. Como en
Occidente en la misma época, el grabado fijó la idea que uno se hacía del
mundo, y los indios, como los demás no escaparon a este acto de dominio
visual, primer esbozo de nuestras guerras de las imágens
(GRUZINSKI,1993:58). As novas imagens apresentadas, ao contrário do que se
pensa, exerceram um grande fascínio sobre os artistas indígenas ao ponto de
eles roubarem livros censurados pela Inquisição para apenas ver as imagens e
não ler o que estava escrito
20
.
19
Ver: GRUZINSKI, Serge. La colonización de lo imaginario. Sociedades indígenas y occidentalización
en el México español. Siglos XVI-XVII. México : Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 58.
20
Sobre este aspecto, Gruzinski (1993), faz uma minuciosa análise sobre as imagens dos mapas,
códices, telas e gravuras que colonizam a imaginação indígena influenciando e mesclando a arte do
período colonial. GRUZINSKI. Op. cit. p.17-76.
44
1.5 A arte no Contexto do Barroco
Até o momento encaminhamos uma reflexão dirigida a estabelecer
princípios norteadores da leitura das produções artísticas. Analisamos
pressupostos teóricos para o estudo da produção artística, para a definição de
estilo e dos elementos que nos auxiliam na leitura de uma obra. Nessa análise,
consideramos a iconografia, a simbologia, e a imagem como material visual a ser
analisado juntamente com seu envolvimento com as instituições que propiciam
a sua circula ção e a representação que ela carrega.
As questões teóricas abordadas remetem ao nosso objeto de estudo que
é o Barroco: o Barroco como cultura nos séculos XVII e XVIII, como criação
artística e como representação simbólica. Entendemos que o Barroco deve ser
pensado dentro do conjunto das transformações que se operam na mentalidade
de uma época,
21
na consciência e sensibilidade do homem; que deve ser
pensado e inserido em uma nova cosmovisão provocada pelos estudos
científicos de Copérnico, Galileu e Kepler. Esses três astrônomos mostraram que
aquilo que antes era suposição e idealização passou agora a ser realidade. Para
21
Usamos o conceito de Vovelle de “mentalidade” como “visão do mundo” o que melhor apresenta a história:
das mulheres, dos artesãos ou, no nosso caso, da iconografia religiosa. VOVELLE, Michel. Ideologia e
Mentalidades. São Paulo : Perspectiva, 1989.
45
Sarduy (1988), a idéia base é a cosmologia. Afirma ele que o círculo é a base e
a estrutura do renascimento, enquanto a elipse predomina na representação
barroca, a qual se relaciona aos estudos de Galileu e Kepler. O espaço barroco
é o espaço das formas livres, do exagero e de uma aparente desordem,
caracterizado pelas volutas e arabescos.
Para os cânones do Classicismo, o Barroco é tido como bizarro. Uma
anomalia segundo o ideal do Classicismo. No português, barroco designa uma
pérola irregular; no espanhol, “berrueco” ou “berrocal” refere-se a algo áspero.
Posteriormente, a palavra aparece no vocabulário dos joalheiros para definir
algo elaborado e trabalhado cuidadosamente (SARDUY,1988). Por muito tempo,
usado no sentido de extravagância, o termo foi pejorativamente pronunciado. No
entanto, o avanço no conhecimento da arte barroca reabilitou o seu sentido e
conceito. A partir daí, Wölfflin (1989) evidenciou que o Barroco não era o
excesso, mas sim a representação de um contexto histórico, em que todos os
atributos concedidos a ele, como excesso, contradição e instabilidade, eram
modos da própria existência.
As considerações que orientaram as pesquisas de Wölfflin quanto aos
aspectos formais puseram também em relevo a conexão com circunstâncias
históricas: a renovação da Igreja chamada contra-reformista, o fortalecimento da
46
autoridade do Papado, a expansão da Companhia de Jesus, etc. Foi isso que
acabou por levar ao sistemático entendimento do barroco (MARAVALL, s/d :24).
A Igreja contra-reformista soube favorecer-se do espírito de dualidade
que vigorou nessa época. O antagonismo entre a o sagrado e o profano, entre a
transcendência e a mundanidade, propiciou formas estéticas muito bem
aproveitadas pela Contra-Reforma, “para a maior glória de Deus”, e para o
reforço da autoridade da Igreja.
Esse foi o pensamento da época, frente aos importantes estudos dos
astrônomos sobre o mundo e sua trajetória. Nessa instabilidade de crenças, a
orientação da Contra-Reforma, originada no Concílio de Trento (1545-1563),
transformou as formas de representação. O visualismo devia ser envolvente e
houve uma adequação entre a catequese e a arte. Os artistas, muitos deles
profundamente religiosos, tomavam como guia espiritual os “Exercícios”, de
Inácio de Loyola.
A arte destinada à fins de piedade, à glorificação de
Deus e à exaltação da Igreja, pôde associar, na iconografia
ou na imaginária, a sensualidade erótica ao misticismo e o
ideal heróico-clássico do Renascimento, inseparável da
beleza do corpo, à santidade, à militância da fé, à profissão
do Credo (NUNES, 1982/3:27).
47
Tendo a Igreja como força propulsora, os artistas e arquitetos contratados
por ela absorveram esse espírito, como homens inseridos no contexto histórico e
social, representando, todo um desejo de renovação através de formas que
realmente pudessem convencer. Para exemplificar esses aspectos, podemos
rememorar o baldaquino
22
feito em bronze por Bernini, na Basílica de São Pedro,
concluído em 1633. Sobre as colunas salomônicas que sustentam a cúpula, o
artista colocou quatro grandes esculturas de rara beleza, representando a
exuberância característica do barroco que não poupa em arrebatar os sentidos
do espectador o qual deveria ficar impactado diante da grandiosidade de uma
criação imbuída do espírito da época e eternizada no bronze de sua estrutura.
O Barroco não foi, portanto, somente uma manifestação da arte
(Sarduy, 1988), uma nova cosmovisão do homem do século XVII e XVIII ou um
conceito de época (Maravall,s/d). Precisa ser entendido como um período
identificado por crises, instabilidade e desejo de auto -afirmação. Atualmente,
alguns autores nominam também outras épocas com características
semelhantes, como, por exemplo, o helenismo ou neo-barroco, segundo aponta
Gruzinski (1993), quando estuda a cultura latino-americana atual.
Foi a época em que Lutero rompeu com a Igreja, que reagiu convocando
o Concílio de Trento. Entre tantas crises, essa foi a que mais abalou a
22
Obra de arquitetura que serve de coroamento ao altar.
48
sociedade. Vários meios foram usados para a reconquista dos fiéis perdidos e a
busca de novas almas. A estética barroca foi um desses meios.
Neste momento, cabe uma reflexão sobre os fatores culturais da
situação histórica vivenciada, ou seja, sobre a importância do Barroco europeu
como expressão de uma época que se manifesta através da iconografia, da
arquitetura e da representação simbólica. Isso tudo contemplando o surgimento
de uma Igreja Contra-Reformista, o fortalecimento da autoridade do Papado, a
expansão da Companhia de Jesus, o contexto de colonização de novas terras e
a cristianização de novos adeptos. Foi o que acabou por levar ao sistemático
entendimento do Barroco como a arte da Contra-Reforma (MARAVALL, s/d: 25).
Marcado por crises de diversas naturezas, o período acabou por definir
uma época de grande produção cultural. E essa crise que envolveu a sociedade
européia no século XVII é especialmente caracterizada, segundo Maravall,
pela relação do poder político e religioso com a
massa de súditos”. Desta forma, “seja como for, importa
afirmar que, mais que uma questão religiosa, o Barroco é
questão de Igreja, e em especial da Igreja Católica, por esta
se caracterizar por um poder monárquico absoluto
(MARAVALL, s/d: 34).
Houve inúmeras transformações na Europa durante esse período, mas,
sem dúvida, a mais densa foi a religiosa. Eis o que Bazin diz a respeito:
49
Há no inconsciente coletivo destes tempos uma
perturbação profunda, devido ao obscuro questionamento
do sagrado, o sagrado monárquico assim como o sagrado
religioso (Bazin, 1887:20)
Desde há séculos a civilização cristã tinha se expandido
harmoniosamente, aproveitando-se das próprias heresias para apurar e
desenvolver seus dogmas.
O período foi também, de grande produção artística, tanto na pintura e
escultura quanto na arquitetura; houve um considerável fomento no mercado de
livros, com o incremento da imprensa, assim como de obras de arte antigas,
modernas e também reproduções. Com a ascensão da burguesia, um novo
mercado de arte se impôs.
A contradição e o movimento que sintetizam a cultura barroca estão
representadas no panejamento das esculturas, nas volutas da arquitetura, na
expressão dos rostos esculpidos. As características do movimento estão
claramente presentes em pinturas como as de Velázquez
23
, no registro do
próprio mover-se, em que o quadro é um reflexo da ação.
23
Velázquez, pintor espanhol, nasceu em Sevilla em 1599. Foi o grande representante da pintura
barroca espanhola. Seus quadros mais famosos encontram-se no Museu do Prado, em
Madrid.
50
A representação das “Meninas” (1656) registra também a própria
dualidade do espírito barroco. Velázquez faz uma leitura da sua própria ação de
pintar, colocando-se dentro do quadro. O movimento está aí imortalizado pela
pintura: Felipe IV e sua esposa, que estão refletidos no espelho no fundo do
quadro, são os observadores da cena que o pintor retrata. O quadro é um
espaço aberto à sensação de que estamos dentro dele. Tais formas abertas
marcam a arte barroca. A sensação de poder tocá-las e se envolver em seu
espaço pictórico caracterizam essa produção.
A análise do barroco nos leva a enfrentar a situação de lidar com
questões contraditórias próprias do ser humano e das instituições políticas,
culturais e religiosas que ele mesmo criou. O movimento que está no bojo da
análise sobre o barroco tem se repetido em outras civilizações e épocas, além
das que lhe deram origem. Vários autores
24
afirmam essas características, em
épocas marcadas por angústias semelhantes, advindas de suas próprias crises
culturais e religiosas.
A arte, nesses períodos, é representada com formas movimentadas e
abertas com predomínio de linhas diagonais, que passam a sensação de
instabilidade. Geralmente são obras monumentais. Tais formas, juntamente com
24
Bazin (1997), Maravall (s/d) e outros
51
os sistemas simbólicos, são instrumentos de conhecimento, de comunicação e
de dominação. Uma das características do Barroco é a força das imagens. Elas
manifestam o vigor da doutrina cristã e representam modelos de santidade que
devem ser seguidos. Pensar como as imagens refletem seu contexto e como
dialogam entre si, conformando no imaginário coletivo um convencimento de
preceitos religiosos, é o que propomos, ao debruçarmo-nos sobre a produção
artística da arte da Contra-Reforma.
A relevância da dimensão simbólica, parte fundamental do poder político
e religioso, no sentido de registrar visualmente na memória do povo o que
deveria ser seguido, foi marca contundente dessa época. A apologética barroca
deixou para a humanidade um patrimônio artístico de valor incalculável, tanto na
construção de igrejas como na construção de palácios. Na América Latina, uma
grande produção da arte religiosa está centrada nesse período ( sécs. XVII e
XVIII ).
Ao longo de nossa investigação, constatamos que o estilo barroco não
esteve subordinado ao movimento espiritual ao qual ele serviu. Não podemos,
neste momento, negar a força do espírito religioso da época, fomentado pelo
Igreja Católica. Mas existe na arte a evolução intrínseca da forma. Se o
Renascimento foi a representação do humanismo, das formas estáveis e
52
equilibradas, numa evolução natural das mesmas e na busca por novas
expressões, o artista barroco se manifesta buscando externar o contexto
histórico e social no qual vive.
O catolicismo da Contra-Reforma foi um fenômeno cultural. A maioria dos
artistas tinha grande espírito religioso. Esse ajuste entre o estado de
desenvolvimento das formas, o desejo de criação dos artistas - já que o principal
mercado da arte volta-se para instituições religiosas, construções e decoração
de palácios - e as novas descobertas das ciências, revolucionando os conceitos
sobre o universo, definem bem o estilo barroco.
A construção deste nosso trabalho, visando a avaliar a arte barroca com
sua iconografia, suas representações, seu poder simbólico, e a imagem como
material visual (e, especificamente, na América de colonização ibérica, como
material catequético), levou-nos a concluir que esse período histórico de intensa
produção cultural, por características gerais, identifica-se com outros momentos
afastados dos séculos XVI e XVII, já mencionados no corpo deste texto. Em
quase todo o relato falamos em séculos XVII e XVIII, mas queremos deixar claro
que, neste tema, não existem rupturas com data definida.
53
Daí a nossa preocupação em analisar o assunto proposto, procurando
estudar o Barroco em um espaço histórico, onde a visão de mundo constitui o
reflexo da produção artística. Na América de colonização ibérica, essa produção
agregou características próprias, mesmo usando formas transplantadas dos
hegemônicos países europeus. No campo da arte, o encontro de culturas
diferentes resultou no Barroco miscigenado, tema que serviu para a condução
da investigação.
54
CAPÍTULO 2 - OS GUARANI E AS REDUÇÕES DO
PARAGUAI
Os espanhóis chegaram em 1537 ao Prata, território dos guarani. Essa
região da América meridional, possui um excelente sistema fluvial proporcionado
pelos rios Paraná, Paraguai e seus afluentes; terras férteis com topografia
caracterizada por planícies, colinas e com raras montanhas e clima subtropical
com chuvas regulares. Aportaram no local acidentalmente, porque, na verdade,
buscavam as minas de prata existente no oeste do território, as minas de
Potosi, no Alto Peru
1
.
Entre os rios Paraná e Paraguai, os desbravadores encontraram grupos
de guarani que por serem povos agricultores, por algum tempo lhes garantiram a
sobrevivência. Diferentes tribos indígenas, como os guayakí e os kaiguá também
habitavam essa região.
1
Atualmente Bolívia.
55
Pelos relatos dos primeiros viajantes, tem-se conhecimento de que a
cultura guarani tinha como costume receber com cordialidade “seus visitantes,”
homenageando-os com ofertas produzidas pelas mulheres dos caciques, o que
enaltecia o poder do líder. Essa tradição caracterizou a primeira etapa do
relacionamento hispano-guarani.
A aliança entre os hispanos e guarani foi sedimentada pelo concubinato
entre soldados espanhóis e mulheres índias, oportunizando o surgimento de um
importante contingente de mestiços. Os laços de parentesco deram sustentação
à estrutura social da província do Paraguai que inicialmente se formava
2
. Muitas
cidades que se instalaram na região foram povoadas por contingentes mestiços,
como, por exemplo: Santa Cruz de la Sierra (1558), Ontiveros (1551), Ciudad
Real (1557), Villa Rica (1570), Santa Fe (1573), Buenos Aires (1580),
Concepción del Bermejo (1584), Corrientes (1588), Santiago de Jerez (1584).
2
Sobre a chamada aliança cario-guarani, Branislawa Susnik cunhou a expressão aliança cario-
espanhola, para designar e caracterizar a fase de primeiros contatos baseada no “cuñadazo”.
Meliá tem criticado esta suposta aliança, ressaltando a inexistência de uma condição de
igualdade entre as partes. Ver: MELIÁ, Bartomeu. El Guaraní conquistado y reducido: ensayos
de etnohistoria. Asunción: CEADUC, 1986, p. 18. Ver: SUSNIK, Branislava. Los aborigenes del
Paraguay: Cultura Material. v. IV. Asunción, Paraguay: Museo Etnografico “Andres Barbero”,
1982.
56
É importante situarmos a sociedade primitiva guarani, para entendermos
melhor as suas ações e reações frente aos jesuítas que abraçaram a missão de
evangelizá -los.
O guarani não possuía qualquer sistema de escrita que possibilitasse,
através de seus símbolos, como nas civilizações do México e do Peru, um
melhor conhecimento de sua cultura, suas impressões e reações diante da
chegada das expedições exploratórias. As fontes de que dispomos para essa
análise baseam-se nas visitas dos primeiros viajantes, nos seus desenhos e nas
cartas escritas pelos cabildantes (índios) ao rei ou ao governador. Servimo-nos
também dos mitos recolhidos da tradição oral; das Cartas Ânuas dos Jesuítas
aos seus Provinciais; das crônicas e diários de pessoas que acompanhavam as
incursões pelo território americano. Boa parte desse material encontra-se nos
arquivos da administração colonial civil e religiosa, na Espanha (Arquivo Geral
das Índias) e em Roma (documentos da Companhia de Jesus).
Em todos os documentos disponíveis ao pesquisador sempre
encontramos a visão do outro, do europeu. Mesmo que sejam, muitas vezes,
testemunhos diretos
3
, esses registros estão marcados pela ideologia do
3
Melià (1987) em seu livro “O Guarani: uma bibliografia etnohistórica”, fez importante estudo sobre essas
fontes documentais. Também importante é o artigo “Las Misiones Jesuíticas entre los Guaraníes de
Paraguay” (1986) em que se expõem os méritos dessas fontes com “testigo de vista” ou“ ”vista de oyo”. In:
Anales del Primer Simpósio sobre las tres primeras decadas de las Misiones Jesuíticas de Guaraníes: 1609-
1642, (Buenos Aires) Argentina: Ediciones Montoya, 1986. p. 92.
57
colonizador, pelo contexto histórico de origem do autor e pelo impacto das
diferenças percebidas. Tal conjunto de percepções gera o modo de ver as
culturas primitivas da América: eivadas de preconceitos, e percebendo o nativo
como ser inferior.
Pedro Borges (1987) avalia o primeiro momento da colonização,
apontando os pressupostos dos administradores da América colonial cujo
entendimento era de que primeiro o índio deveria ser civilizado para depois ser
cristão. Deveria sair da barbárie para depois receber os ensinamentos e aderir
ao cristianismo. Foi com essa mentalidade que os missionários iniciaram seu
trabalho de evangelização.
As considerações sobre a sociedade guarani, pertinentes a essa análise,
são necessárias para a compreensão do intrincado processo de
intercomunicação ensejado entre os índios e os missionários da Companhia de
Jesus.
Sabemos que a sociedade primitiva guarani fundava suas características
num tipo de economia baseado na economia de reciprocidade.
4
Nela o prestígio
4
Ver: Martins, Maria Cristina Bohn (1991) "Economia nas Sociedades Tribais". MARTINS, Maria Cristina
Bohn. O guarani e a economia de reciprocidade. Dissertação de Mestrado do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 1991.
58
era medido pela capacidade de dar e receber; o espaço produtivo era de todos
e não existia, por conseguinte, relação de propriedade. O produto excedente
servia para estabelecer alianças, como por exemplo, promover com ele festas
em que se homenageavam os convidados.
Na sociedade segmentária de fato, as provisões eram mínimas, apenas
as necessárias. Os deslocamentos não permitiam acúmulo de objetos, e os
alimentos, providos pela natureza, não necessitavam de armazenamento. Existia
equilíbrio entre as necessidades e sua satisfação. A idéia de bem-estar era
encontrada nas relações com o grupo, na alimentação suficiente e no ócio,
entendido como as horas não dedicadas à pesca, à coleta ou ao cuidado de
pequenas roças. O tempo médio de cada pessoa ocupada com o trabalho não
passava de quatro a cinco horas por dia. Sahlins (1997) informa que a busca
de meios de sustento era muito intermitente. Detinha-se no momento em que a
pessoa havia reunido o suficiente para sobreviver às necessidades do momento,
circunstância que lhes permitia dispor de grande quantidade de tempo livre
(SAHLINS, 1977:30).
Já em 1575, com a chegada do Frei Luis de Bolaños, ao território onde se
encontravam os povos guarani, a evangelização foi-se tornando regular e
efetiva. A dois aspectos foi dada atenção especial: a catequização em língua
guarani, e a instalação das reduções. Estas últimas ganharam corpo
59
posteriormente, com o trabalho desenvolvido, desde 1609, pelos missionários
da Companhia de Jesus.
Em 1580, o Paraguai era ainda uma imensa e pobre província, muito
diferente do Peru. Sua base econômica, a agricultura, apresentava-se pouco
significativa e sem recursos de mão-de-obra. Por falta de forças militares e
estrutura financeira suficientes para desenvolvê-la, a instalação espanhola,
nessa área, foi dificultada.
Os jesuítas chegaram à província em 1585. Logo instalaram colégios,
relizando suas pregações em catequeses volantes. Andavam de aldeia em
aldeia, fazendo contato com os caciques e procurando atrair os nativos, através
da música e do canto. Levavam consigo uma pintura da imagem da Virgem
Conquistadora, N. Sª. da Conceição. A imagem de Nossa Senhora foi de
fundamental importância para a catequese, primeiro através da sua
representação em pinturas e pequenas imagens; mais tarde, em esculturas de
grande porte colocadas nas igrejas e caminhos para as chácaras. Ela corroborou
para estimular o imaginário indígena, para facilitar a intercomunicação entre os
índios e os missionários, e pretendia facilitar a adesão ao cristianismo. Primeiro
era preciso impactar a visão, com representações que despertassem a
curiosidade, tivessem a magia do envolvimento, sensibilizassem a audição,
60
através do canto e da música religiosa para depois chegar à palavra, como
forma de conquista para a fé cristã. A imagem materializava uma divindade ou
um modelo a ser seguido, significando um suporte de fundamental importância
para populações destituídas de representações materiais.
O novo projeto para a região foi o da conquista espiritual, com todo o
aparato sugerido pelo Concílio de Trento. Evidentemente, essa decisão não
nasceu sem respaldo intelectual e político. Executado pelos jesuítas, seria,
assim, o modo de subjugar as populações nativas sem beligerância. Nesse
contexto, a Companhia de Jesus foi convidada pelo rei da Espanha, Felipe II,
para fazer o trabalho de evangelização na Província do Paraguai.
Em 1609, por sugestão de Hernandarias, governador de Buenos Aires e
grande conhecedor da região, foi iniciado um trabalho visando à formação das
reduções, com os grupos do Guayrá (Paraná), próximo ao rio Paranapanema.
Os religiosos andaram quilômetros por entre as matas, em busca dessas
almas de crenças tão diferentes das suas. Aos poucos, valendo-se da
obstinação, e imbuídos dos princípios da Ordem, foram empreendendo na
formação dos "pueblos", e construção das igrejas e casas indígenas. Para que
isso acontecesse, enfrentaram inúmeras dificuldades. Em várias ocasiões, suas
61
vidas estiveram em risco. Mas, orientados pela rigorosa disciplina e organização
da Companhia, conseguiram levar adiante a missão de evangelizar.
Montoya (1985) relata as informações de um missionário que, em 1639,
destacava:
Aqueles índios que viviam de acordo com os seus
costumes antigos em serras, campos, selva e povoados,
dos quais cada um contava de cinco a seis casas, já foram
reduzidos por nosso esforço ou indústria a povoações
grandes e transformados de gente rústica em cristãos
civilizados com a contínua pregação do Evangelho
(MONTOYA, 1985:20).
Tanto os missionários quanto os colonizadores europeus entendiam que
os nativos deveriam ser civilizados para depois tornarem-se cristãos. A
transformação de “gente rústica” em cristãos “civilizados”, de que fala Montoya,
era o parâmetro da cultura ocidental.
Desde os primeiros anos da colonização, a proposta do governo
espanhol de civilizar, fazendo com que os nativos aderissem aos costumes
ocidentais, já tinha caráter oficial. Desse projeto advieram regras
comportamentais que os nativos deveriam seguir. Deviam por exemplo: ser
monogâmicos, viver em suas próprias casas individuais, manter sua família
cultivando a terra e criando o próprio gado, respeitar a propriedade alheia,
62
vestir-se como os espanhóis, entre tantos outros modos de viver à maneira dos
colonizadores.
5
Portanto, as novas estruturas trazidas pelos jesuítas acarretaram uma
transformação cultural que vai desde o espaço habitável, até o controle das
práticas sexuais.
Se antes a vida do grupo era marcada pela ocupação dispersa do
território, pela liberdade e mobilidade de habitar lugares por eles escolhidos,
agora, impôs-se a redução com seu traçado planejado e fixação dos nativos
em lugar determinado. Esse novo projeto trouxe o modelo da cidade
renascentista adotado como exemplo pela cidade espanhola na América.
Em uma choça da primitiva sociedade guarani, vivia a família extensa:
avós, pais, filhos e netos. Na redução, a casa “manzana” era dividida em quatro
partes, onde viviam as famílias, separadamente, segundo descreveu CALEFFI,
(1992:93). Nela manteve-se embora transformada, a liderança do cacique, que
se estendia à organização de bairros formados pelas casas “manzanas”. Foi
uma forma de adaptar o espaço habitável da sociedade primitiva ao ambiente
reducional.
5
Ver: MARTINS, Maria Cristina Bohn. A festa guarani nas reduções. Perdas, permanências e
transformação. Tese de doutorado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1999, pp.149-159.
63
Na sociedade tribal, o poder se mantinha dentro do corpo social, o líder
étnico não possuía vantagens sobre os demais. Já na redução, o cacique
usufruía de destaque especial, desde as roupas que vestia até a ocupação dos
primeiros lugares na igreja. Na sociedade guarani, o líder poderia ser destituído
de seu cargo, caso não correspondesse às expectativas do grupo. Na redução, o
cacique tinha cargo vitalício e seu poder era hereditário, e em Cédula Real de 12
de março de 1697, foram reconhecidos como iguais aos fidalgos de Espanha
6
.
(CALEFFI, 1991:77)
Em suma,
A redução afetou a totalidade da cultura guarani,
desde sua estrutura familiar, seu governo, até suas
atividades de subsistência, seus ritos religiosos e seus
mitos
7
. O padre trouxe modificações em toda a estrutura
social e cultural. Os conceitos de trabalho e lazer foram
transformados e a “vida boa e livre” passou a ser
semantizada na vida missioneira, como comportamento
selvagem e até bestial (MELIÀ, 1981:4 e 11).
As reduções foram estruturadas de modo que os guarani também
pudessem prestar serviços à comunidade colonial. Inseridas no sistema colonial
6
Ver: CALEFFI, Paula. “O traçado das reduções Jesuíticas e as transformações de conceitos
culturais”. VERITAS, Porto Alegre, v. 37. Nº 145, março,1992, pp.89-94.
7
Ver: texto MELIÁ, Bartomeu. “El modo de ser” guarani en la primera documentación Jesuítica
(1594-1639) In: Revista de Antropologia, S. Paulo, vol. 24, 1981, p.4.
64
espanhol, as reduções participaram da economia, do comércio, do exército, e da
mão-de-obra pública, que os guarani reduzidos emprestavam às cidades.
Separados os produtos para a subsistência, o restante era comercializado. Os
produtos eram colocados no mercado de Buenos Aires e Santa Fé, e exportados
também para a Europa. Para os primeiros, eram enviados tecidos de algodão,
erva-mate e tabaco; para a Europa, eram exportados couros, açúcar e
instrumentos musicais.
A passagem da sociedade primitiva guarani para o espaço reducional nos
interessa e é importante conhecer, à medida que se descobre as reações do
guarani, ao ser apresentado à “cultura de imagens” trazida pelos colonizadores e
jesuítas. Os artefatos que constituíam o rol das expressões “artísticas” , no
contexto tribal, estava representado apenas pela cestaria, a cerâmica e a
pintura corporal, que se baseavam no geometrismo. Também a variedade de
cores aplicadas era reduzida, ficando entre o ocre, o vermelho e o preto. Esse
acervo “artístico” nativo, no espaço reducional, passaria por significativos
acréscimos, com a feitura das imagens, ao passo que a cestaria e a cerâmica
continuariam mantendo a sua forma tradicional.
Quanto à religião, pelos estudos realizados por Susnik (1982), por
Schaden (1964) e por Melià (1981), sabe-se que a dança, o canto e mesmo o
profetismo dos xamãs ofereciam reações à opressão colonial. Contrapondo-se a
65
esses ritos, como o canto do pagé, para realizar curas ou danças para intervir
no tempo, o jesuíta lhes apresentou o cristianismo, através da música, das
imagens e do caráter cenográfico efetivado pela decoração das igrejas. Os ritos
foram transformados e o ambiente da igreja buscou o sentimento de
identificação do indígena com obras que ele mesmo produzia, tanto através da
construção da igreja como das imagens de santos. Essa vivência sensorial por
certo objetivava impressioná-los. Os jesuítas recorreram à cosmovisão guarani
que, em seu modo de ser ancestral, dão um sentido mítico a todas as pautas de
suas atividades dentro da redução. Incentivou-se o hábito de ir às chácaras,
cantando e levando em um andor o santo protetor dos lavradores, Santo Isidro.
Também o sentido dos mitos, do anunciado cataclisma e do paraíso na terra,
próprios de sua cultura ancestral, na redução foram substituídos pela idéia do
juízo final e do paraíso celestial.
Gutierrez (1978), em estudo sobre a evangelização através da arquitetura
e da arte nas missões jesuítico-guarani, descreve como os propósitos de
cristianizar perpassaram os ritos religiosos. Os cultos realizados ao ar livre, as
capelas de N. S.ª de Loreto, de Santo Isidro e Santa Bárbara (solicitada para
melhorar as condições climáticas), os passos da via sacra, as cruzes ao longo
dos caminhos, tudo ajudava a expandir o ritual das procissões e da
catequização. A organização urbana e as atividades diárias eram planejadas
com o propósito de promover um constante diálogo entre Deus e o homem.
66
Para o sucesso da catequese e a melhor compreensão dos conceitos
abstratos que ela impunha, foram usadas várias estratégias de evangelização.
Essas, em sua maioria estiveram amparadas em imagens, pinturas, procissões,
festividades, teatro, cantos, enfim, tudo o que pudesse ser exteriorizado, visível e
palpável.
8
Os concílios realizados nesse território, nos primeiros tempos da
colonização, e as instruções recomendadas pelo Provincial da Companhia de
Jesus, no Paraguai salientavam a importância da catequese seguida do ensino
do canto e de instrumentos musicais, que pudessem envolver as crianças e os
adultos nos rituais cristãos. As instruções (1609 e 1610) do primeiro Provincial
do Paraguai, Diego de Torres Bollo, aos missionários jesuítas mencionam
8
Na V Carta Ânua da Missão de Todos os Santos de Guarambaré, dirigida pelo padre Diogo de
Boroa ao Prvincial Diogo Torres de 28-XI-1614, ele relata sobre a importância e a exteriorização
da Veneração ao SS.mo Sacr. e importância dada à procissão: “ Los yndios tienen mucha estima
y reverençia deste SS.º Sacramento, y oyendo nombrarlo abajan todos la cabeça y para
ayudarles a tener esta devida estimaçion le tuvimos con el aparato possible en n~ra iglessia el
jueves S.tº hasta el viernes. y la octava del corpus toda entera haçiendo de plumas y papel
pintado un tabernaculo a modo de silla muy vistoso y pobre...”e adiante escreve: “ ...con ramos
y arcos y otras ynvenciones a su modo (~q pusieron por la yglessia y por donde avia de yr la
proçession), Los terçiopelos y brocados ~q les faltan, los doseles ricos de los altares eran unas
pobres esteras de juncos y los quadros aquellas estampas pintadas ~q V.R. nos hiço caridad el
año passado pero la mesma pobreça fue caussa de ~q la fiesta y proçession fuesse mas
devoto.” Ver: M.C.A. Jesuítas e Bandeirantes no Itatim (1596-1760). V.II Introdução, notas e
glossário, por Jaime Cortesão. Biblioteca Nacional,1952, p.23.
67
explicitamente que se deve ensinar os índios (em especial as crianças) a cantar
e tocar, como recurso de catequese e de solenização dos cultos.
9
A imagem foi, pois, um dos meios usados pelo jesuíta para transformar a
sociedade primitiva guarani. Tocado por ela, nas suas diversas formas de
representação, o indígena, artífice dessa produção, ficaria embevecido pela
beleza de seu próprio talento. Uma igreja cheia de coloridas imagens; o canto
coral acompanhado de órgão e outros instrumentos musicais, na hora da missa;
as apresentações na praça, palco de metafórica doutrinação: todo esse cenário,
sem dúvida tocava-lhe o coração e a mente.
O espaço religioso orquestrado pelos membros da Companhia de Jesus,
aos poucos foi servindo para conquistar a confiança dos guarani, que pouca
opção tiveram de escolher entre ser livre e ficar sujeito a ser capturado pelo
colonizador, ou viver nos povoados, sob a tutela dos jesuítas, que lhes ofereciam
alguma proteção, sob o escopo da conquista do Novo Mundo.
Havia, nessa época, um grande problema de uso e abuso da mão-de-
obra indígena pelos encomenderos
10
, mão-de-obra requisitada para suas
9
Ver: RABUSQUE, Artur, S.J. A carta Magna das Reduções do Paragui. Estudos Leopoldense,
São Leopoldo, UNISINOS, ano XIII, v. 14, nº 47, pp21-39, 1978, p.25.
10
A encomenda era uma instituição espanhola que, adaptada à América, previa a utilização da
mão-de-obra indígena em condição servil.
68
lavouras. Some -se a isso os ataques dos bandeirantes às populações indígenas.
A situação assim apresentada deixava os guarani sem escolha: ou aceitavam a
redução que lhes garantia a segurança de vida comunitária, ou corriam o risco
de serem absorvidos por uma das duas frentes colonizadoras, a espanhola ou
portuguesa.
A chegada dos espanhóis marcou um grande declínio demográfico das
populações indígenas. Desconsiderando sua cultura e tradição, o sistema de
encomenda facilmente as subjugava, obrigando-as à servidão. ... la encomienda
provenía de las instituiciones medievales según las cuales todo señor tenía
derechos feudales sobre los habitantes de sus dominios. (ARMANI, 1982:29)
Na América, esse sistema iniciou quando o vice-rei das ilhas do Caribe
impôs um tributo aos índios, em ouro ou algodão. Outra alternativa de
pagamento do tributo seria a prestação de serviços, ou seja, a oferta de mão-
de-obra em favor do colonizador.
Foi no início do século XVI, depois de estudos jurídicos realizados sobre
a encomenda que ficou determinado que se consideraba al soberano de Castilla
el único señor a justo título de todos los indígenas, al cual éstos debían tributo y
servicio personal, en su calidad de "Encomendero Mayor. (ARMANI, 1986:30) E
69
assim, a encomenda deixou de estar afeta ao vice-rei passando à instituição do
rei da Espanha.
Sabemos que a encomenda foi uma forma de disfarçar o uso da mão-de-
obra indígena como escrava, uma vez que a escravidão era proibida. Imperador
Carlos V, el qual, con repetidas cédulas reales, mandó que se respetava la
liberdad de los índios, y prohibió severamente reducirlos a esclavitud. (ASTRAIN,
1996:47)
Para não acontecerem abusos com relação ao uso da mão-de-obra
nativa, o encomendero tinha deveres quanto a prover alimentação e observar
horas de trabalho adequadas ao índio, proporcionando-lhe educação civil e
religiosa. Esses princípios básicos estabelecidos pela administração espanhola
não eram observados. Com o grande número de indígenas habitando a região, o
europeu sentiu-se no direito de repartir sua mão-de-obra e suas terras. Os
desmandos foram desde as horas excessivas de trabalho, além da sua
resistência física, até a precária alimentação, causando depressão, desnutrição
e diversas enfermidades.
11
11
ARMANI (1986) apresenta-nos detalhadamente a estrutura da encomenda e seus desastrosos
efeitos sobre as populações nativas. Ver: ARMANI, Alberto. Ciudad del sol: el “Estado” jesuita de
los guaraníes (1609-1768). México: FCE, 1982.
70
Os índios de encomienda eram muitas vezes vendidos ou alugados por
seu encomendero, em desafio à lei; pouca coisa era feita para assegurar a
cristianização dos trabalhadores ou para prover seu bem-estar, como exigia a lei.
(GIBSON, 1998:291). Para conter esses abusos contra as populações nativas,
foram publicadas Ordenanças pelo rei da Espanha, os quais proibiam o serviço
escravo dos índios imposto pela encomenda. Em favor da liberdade das
populações nativas, os jesuítas foram incansáveis em argumentar sobre os
graves prejuízos causados a esses povos.
Portanto, é impossível negar que a chegada do colonizador europeu
transformou as sociedades nativas. Primeiro foi a instituição das encomendas
que forçou o trabalho e o ritmo de vida dos índios, em parâmetros alheios à sua
cultura; depois, os ataques constantes dos paulistas que apresavam os guarani
para as lavouras, na costa brasileira. Foram inúmeras as expedições
organizadas pelos bandeirantes, com grande número de mestiços e índios tupi
aliados aos invasores, que, equipados com armas de fogo, formavam um
exército de forças superiores ao alvo. Primeiro atingiram os índios dispersos
pelas matas, depois os reduzidos.
Em face do contexto desfavorável, raras opções de apoio restavam aos
indígenas. Se, por um lado, a redução ia aos poucos descaracterizando sua
cultura, seu modo de ser ancestral, por outra perspectiva, o colonizador hispano-
71
paraguaio também não lhe oferecia apoio nem o auxiliava nos ataques dos
paulistas. Contrapondo-se a esse desamparo, os jesuítas, com sua formação de
princípios também militares, ajudavam a organizar a resistência indígena,
ensinando a eles algumas estratégias de guerra, pois por aprovação do rei da
Espanha, puderam ensinar-lhes também o uso de armas de fogo. Organizando
e orientando a defesa, os jesuítas foram vistos e admirados pelos indígenas
como seus protetores. Dessa forma, a redução aos poucos foi sendo aceita, com
demandas, por parte dos caciques. Exigiam eles o afastamento dos espanhóis
dos povoados e também que as autoridades e as administrações fossem
constituídas por índios.
12
Tais exigências foram aceitas pelos jesuítas que as
levaram ao governador Hernandarias de Saavedra e ao visitador Francisco
Alfaro, os quais também concordaram com elas. Isso foi firmado pelo Conselho
das Índias e pelo Rei da Espanha. Estabeleceu-se ainda que os índios pagariam
tributos, auxiliariam o Estado, quando necessário, como soldados. e passariam a
ser súditos do rei da Espanha.
Segundo Necker (1990), os guarani aceitaram as reduções também por
sentirem que os missionários poderiam ser novos xamãs, com poderes maiores
que os antigos. Sem outra alternativa melhor que a selva, sujeitos à captura dos
12
ASTRAIN apresenta-nos todos os cargos ocupados pelos indígenas. Descreve as escolhas e a
cerimônia de posse. ASTRAIN, Antonio, S.J. Jesuítas, Guaraníes y encomenderos. Asunción:
CEPAG, 1996, p.95.
72
paulistas e encomenderos, tendo como opção as reduções, foram estabelecendo
seus espaços e firmando também suas fronteiras. Os recursos humanos nativos,
a disciplina militar dos jesuítas, o seu senso de organização e o amor ao
cristianismo fizeram dessa união uma sociedade nova e diferente, baseada no
equilíbrio socioeconômico e religioso: tudo pela “maior glória de Deus”.
73
CAPÍTULO 3 TRADIÇÕES FRAGMENTADAS: A
COMPLEXIDADE DAS MISTURAS
Neste capítulo trataremos do processo de intercomunicação, de
convívio intercultural, que marcou a história colonial da América. O processo,
que se inaugurou com a chegada dos europeus, desdobrou-se em situações que
conduziram a experiências não uniformes. Em algumas delas, como na adoção
de elementos do vestuário ou da dieta alimentar, houve uma aceitação menos
difícil por parte dos nativos. Também no que tange à adoção do casamento
monogâmico e do modelo familiar europeu ocidental, a rejeição aos padrões
tradicionais indígenas acabou prevalecendo.
As presentes questões já foram definidas compondo um quadro de
“aculturação”, ou seja, como um processo que leva algumas culturas a serem
“transformadas” pela ação de outras. Mais contemporaneamente, e atendendo a
necessidade de refletir-se sobre outros campos do comportamento, a
aculturação passou a ser entendida como resultante do “fenômeno de contato
direto e prolongado entre duas culturas diferentes, que leva a transformações em
qualquer uma delas ou em ambas” (COELHO,1999:36). A definição nos
74
interessa na medida em que, ao analisarmos a estatuária missioneira,
entendemos que o conjunto da sua produção iconográfica aporta elementos
das duas culturas.
O conceito de aculturação proposto por Nathan Wachtel (1987), Denys
Cuche (1999) e outros autores, considera o processo de aculturação como
aquilo que ocorre no encontro de sociedades diferentes. Portanto, neste
momento, interessa-nos compreender a intercomunicação que se processou
entre os guarani reduzidos e a cultura ocidental cristã, um contexto em que a
arte foi, sem dúvida, objeto de comunicação e persuasão canal propício ao
intento de evangelizar.
Nathan Wachtel (1987) avalia bem que ainda existem limites imprecisos
envolvendo o conceito desse tema. As discussões em torno dele se iniciaram no
fim do século XIX, mas só no século XX foram processadas com mais
intensidade. Antropólogos e historiadores ainda não chegaram a formalizar
conceitos e definições unânimes a esse respeito. Embora já se tenha definido
uma tipologia (aculturação imposta X aculturação espontânea) e se tenha
apontado etapas (integração X assimilação), reconhece-se a necessidade de
estudos de cada caso, que levem em conta diversas possibilidades. A
integração, conforme Wachtel, corresponde geralmente aos casos de
aculturação espontânea ou produz-se no início do domínio, ao passo que a
75
assimilação aparece, à escala da sociedade global, no termo de um longo
período de controle direto (WACHTEL,1987:158). Assim, devem ser
consideradas as características das sociedades em contato, co mo por exemplo,
o tempo e a intensidade das relações.
Já Janice Theodoro (1995) aborda a questão em termos do que define
como “conjugação de acervos”, pensando mais nas possibilidades de “convívio
intercultural” do que de confronto cultural. Importante é também a contribuição
de Serge Gruzinski (2001), ao considerar o processo de “mestiçagem cultural”
que envolveu a interação entre a Europa e a América, desde o século XVI.
Ele alerta para a ambigüidade do termo “cultura ” que, insistindo nas
especificidades e diferenças, desconsidera o que liga cada cultura a outros
conjuntos definidos. Para ele, o termo sugere idéia de totalidade coerente, de
conjuntos estáveis e harmônicos, condicionando comportamentos. Porém, para
conhecer a cultura no que ela tem de essencial, é preciso chegar ao seu núcleo.
Essa concepção responde às dificuldades das ciências humanas em lidar com o
que é instável, com o que é aparente desordem, como no caso das
manifestações do pensamento mestiço. O autor ainda argumenta que a
categoria “cultura” fundamenta-se num substrato estável ou invariante. Sendo
assim, dificulta a reflexão sobre o enfrentamento de populações nativas e
ocidentais, uma vez que elas pertencem a múltiplos grupos, com características
76
próprias. As peculiaridades estariam mais bem contempladas se pensássemos
em mistura. E aqui poderíamos também usar o termo “conjugação de acervos”,
de Theodoro (1995).
Gruzinski completa dizendo que o “estudo das mestiçagens
1
” levanta
uma série de indagações que continuam ainda hoje. Eis seus questionamentos:
Essa volta ao passado é apenas um modo de falar
sobre o presente, pois o estudo das mestiçagens de ontem
levanta uma série de indagações que permanecem atuais.
Genericamente, eis algumas delas: as misturas resultantes
da expansão ocidental expressam uma reação à dominação
européia? Ou são uma repercussão inelutável desta, e até
mesmo uma forma astuciosa de enraizar nossos costumes
no seio das populações subjugadas? Até que ponto uma
sociedade ocidental pode tolerar a eclosão proliferante de
expressões híbridas? Em que momento ela procura freá-
las, a que preço consegue dominar o fenômeno e
transformá-lo na base de sua supremacia? Que sentido, que
limites e que ciladas se escondem na metáfora tão cômoda
da mistura? Por último, como se desenvolve se é que ele
existe um pensamento mestiço? (GRUZINSKI, 2001:19).
1
GRUZINSKI, assim define mestiçagem: “ Empregaremos a palavra “mestiçagem” para designar
as misturas que ocorreram em solo americano no século XVI, entre seres humanos, imaginários
e formas de vida, vindos de quatro continentes América, Europa, África e Ásia.” (Gruzinski,
2001: 62). Ver: GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo : Companhia das Letras,
2001.
77
Tantas e tão diversas interrogações nos levam a refletir sobre como se
procedeu a interpenetração dos acervos que aqui nos interessa, e sobre o que
resultou dessa mistura de pensamentos, comportamentos, resistências e
justaposições.
Outro aspecto para o qual ele nos chama a atenção é a quebra de
linearidade artística que as mestiçagens provocam. Seus estudos afirmam que
com frequência os historiadores tenderam a ler as épocas passadas como fruto
de um movimento linear, de uma evolução, até mesmo de uma progressão ou
progresso.
E, ainda, continua:
As mestiçagens quebram essa linearidade. Surgindo
na América do século XVI, na confluência de
temporalidades distintas as do Ocidente cristão e dos
mundos ameríndios -, elas as colocam brutalmente em
contato e as imbricam umas nas outras. Aqui, deixa de valer
a metáfora do encadeamento, da sucessão ou da
substituição, que serve de base à interpretação
evolucionista, pois não apenas o tempo dos vencidos não é
automaticamente substituído pelo dos vencedores, como
pode coexistir com ele séculos a fio. Ao juntar abruptamente
humanidades há muito separadas, a irrupção das misturas
abala a representação de uma evolução única do devir
histórico e projeta luz nas bifurcações, nos entraves e nos
impasses que somos obrigados a levar em conta
(GRUZINSKI,2001:58).
78
A produção artística da América colonial poderia ser tomada como a
“imagem da desordem,”
2
se considerarmos a história como um movimento linear,
evolutivo. Mas aqui o que interessa é justamente argumentar sobre essa quebra
de linearidade, sobre a imprecisão e a ambigüidade que existem na produção
artística da América. Sem essa abertura às diversas concepções, não seria
permitido ao observador e ao estudioso do assunto ver as múltiplas
contribuições que convivem nessa produção de imagens.
No presente trabalho, objetivamos abordar essa “intercomunicação” das
culturas através de um ângulo muito específico: a arte. Neste sentido, ele
pretende alocar uma contribuição a estudos particulares e sobre o tema, e
poderá ajudar a compor conceitos mais abrangentes para o fenômeno em
questão.
Tentaremos evidenciar o diálogo travado entre modelos europeus e a
tradição ancestral americana, que soma novos aportes ao acervo cultural de
cada grupo étnico, por motivos ligados à própria natureza do homem. A
assimilação de novas tecnologias para a construção de templos, assim como o
manejo de novos instrumentos para esculpir e pintar, acrescentaram interesses e
atualizaram as formas tradicionais de expressão nativa. A justaposição de novas
2
Gruzinski expõe a “imagem da desordem” como sendo a complexidade e a mobilidade das
misturas e a sua interpenetração no tempo. Op. Cit. (2001), pp.39-62.
79
imagens religiosas propiciaram a intermediação das populações nativas com o
mundo sobrenatural, co m mais forças espirituais a interceder pelas
necessidades dos seus povos.
O caráter mágico dessa arte facilitou o encontro de culturas, ao
contrário dos campos político e administrativo, em que isso não foi possível
3
.
Considerando tal realidade, no campo das tradições religiosas, afirma Wachtel:
Os resultados da aculturação permaneciam, portanto,
no conjunto, limitados, tanto no México quanto no Peru, e a
massa da população nativa recusava-se a aceitar a maioria
das práticas trazidas pelos espanhóis. Na resultante
interação entre continuidade e mudança, a tradição
prevaleceu sobre a aculturação. Em geral, quando
adotavam elementos de uma cultura estrangeira, os índios
meramente os acrescentavam aos elementos de sua própria
cultura ou usavam-nos como espécie de camuflagem.
Mesmo nos casos tradicionais de pensamento. Se adotaram
certos costumes europeus, inseriram-nos no arcabouço da
cultura indígena ( WACHTEL, s/d, 224).
O processo analisado nestes estudos ocorre entre sociedades
desiguais: as populações indígenas da América submetidas ao domínio da
3
Apenas certas instituições, como o cacicado, foram mantidas, embora ajustadas à nova
situação.
80
sociedade colonizadora européia.
4
Mas entendemos, acompanhando estudos
recentes - Wachtel (1997), Theodoro (1999) e Gruzinski (2001) - que, mesmo
em sociedades desiguais, enseja-se uma intercomunicação entre as culturas em
presença. O processo de adoção de traços de uma cultura pela outra pode-se
dar pela via da assimilação ou da imposição. Segundo Denys Cuche, raramente
haverá o desparecimento, e a assimilação deve ser compreendida como última
fase da aculturação, fase, aliás, raramente atingida. Ela implica no
desaparecimento total da cultura de origem de um grupo e na interiorização
completa da cultura do grupo dominante (CUCHE,1999:116).
Se México, Peru e Região Platina foram exemplos de processos de
contatos forçados e desiguais, de aculturação imposta, nos três casos eles
obedeceram a ritmos, intensidade e modos de contato diferenciados. Nos dois
primeiros espaços, focos centrais da monarquia espanhola, bem cedo ocorreu a
presença de missionários encarregados de proceder à evangelização dos
nativos.
5
Lá os espanhóis instalaram um controle sobre várias das atividades
4
Ver Wachtel em seu estudo “A aculturação”. In: LE GOFF, Jacques. Fazer História: 1 Novos
Problemas. Lisboa: Bertrand Editora, 1987, p. 149-172.
5
As primeiras ordens religiosas chegaram no México em 1523; e após 1530, no Peru. “A partir da
primeira metade do século XVI, os “Frailes Menores” começaram a ser empregados nas regiões
centrais, México, América Central e Peru, não somente como propagadores de fé cristã, senão
também como educadores ou “assistentes sociais”, esforçando-se por integrar os índios na nova
ordem socioeconômica trazida pelos espanhóis” (NECKER,1990:43).
81
indígenas e, de uma forma trágica, dizimaram grande parte da sua população,
seja através das guerras, seja das doenças ou do trabalho forçado.
Na Província do Paraguai,
6
região pobre e marginal do Império, os
primeiros contatos entre espanhóis e índios guarani foram marcados pelo
estabelecimento de laços de parentesco
7
que, inclusive, geraram uma grande
população mestiça. Mas a imposição do trabalho servil aos índios
8
deu causa
aos primeiros movimentos de resistência e revolta. A instabilidade daí resultante
conduziu o governador Henandarias de Saavedra a solicitar a intervenção dos
jesuítas, para a pacificação do território através da “conquista espiritual”
9
. Desde
1609, os jesuítas estiveram liderando a organização de povoados, nos quais os
índios deveriam ser catequizados e inseridos na civilização e cultura ocidentais,
em troca de proteção e segurança contra a cobiça dos colonos espanhóis.
Durante os futuros 159 anos, índios e missionários sofreram um processo muito
particular de vivência intercultural. Este é exatamente o recorte geográfico e
temporal da nossa investigação que, como afirmamos anteriormente, se volta de
6
Referimo-nos, aqui, a Província Administrativa, que não deve ser confundida com a Província
Jesuítica do mesmo nome, criada em.1607. Ver ASTRAIN, 1996 pp13-38.
7
SUSNIK (1982). Op. cit. MELIÁ (1986). Op. cit.
8
O 1º “repartimiento” de índios guarani para o trabalho “encomendado” foi organizado pelo
governador Irala, em 1547. . (Ver Meliá,1986: 18-23)
9
Antes dos jesuítas atuaram, entre esses índios os religiosos franciscanos que, ao contrário dos
inacianos, não se opuseram à utilização da mão-de-obra índígena pelos encomenderos. Ver
Necker (1990), p. 141.
82
modo particular para a análise da produção artística, mais concretamente, das
imagens realizadas nos povoados.
Convém lembrar que, no processo de transformação do modo de vida
de uma sociedade em contato com outra, se deve considerar as variáveis que se
interpõem no fenômeno. É o que refere Cuche (1999):
Na análise de toda situação de aculturação, é preciso
levar em conta tanto o grupo que dá quanto o grupo que
recebe. Se respeitamos esse princípio, descobriremos
rapidamente que não há cultura unicamente “doadora” nem
cultura unicamente “receptora”, propriamente dita
(CUCHE,1999:127).
Estamos considerando que o processo que interconectou jesuítas e
povo guarani deve ser pensado como um fenômeno dinâmico, em que trocas de
conhecimentos, tecnologias, formas de comportamento, modos de expressão,
resultam numa interação, embora, evidentemente, sem desconhecer a
situação desfavorável à cultura indígena.
Vários estudos têm apontado a possibilidade de mostrar a situação de
intercomunicação das tradições culturais a que nos referimos. Maria Cristina
Bohn Martins (1999) tratou do tema a partir das festividades religiosas. Percebeu
a autora que essas festas, na sua essência, especialmente as das primeiras
gerações que viveram nas reduções, não assimilaram totalmente o significado
83
cristão. E que, ao mesmo tempo, parte dos valores e práticas que elas
evidenciavam, preservavam elementos da cultura guarani tradicional. Há quem
argumente também que, em muitos momentos e situações, os índios
mantiveram “comportamentos de aparência”, de forma a evitar o conflito com as
novas autoridades. É o que afirma Theodoro ( 1992):
“As populações indígenas, apesar dos esforços da
igreja e dos colonos, deixavam transparecer no lapso a
presença de outras formas de conduta. Imitavam para fazer
crer os espanhóis que a assimilação cultural dissolvia todo o
passado pré-colombiano”. (THEODORO,1992:6)
Já Ronaldo Vainfas (1991) trata a questão de forma diferenciada,
atribuindo a estes comportamentos um signo de “resistência passiva”. Insere
assim atitudes dessa ordem no rol do que chama de “idolatrias ajustadas”
10
.
Esse comportamento de aparência do indígena se manifestava de
acordo com o ambiente em que ele se encontrava. Em presença da sociedade
10
As idolatrias ajustadas pertenciam ao ambiente doméstico e conviviam com a ordem colonial. Os
nativos mantinham suas estatuetas e outros signos reconhecidos pela sua cultura como deuses
ou a tais objetos de adoração, escondidos em cestas ou caixas. Realizavam cerimônias, em
seus lares, prestando-lhes culto. Já as idolatrias insurgentes estavam ligadas às resistências de
insurgência indígena, chegando até a formar movimentos de luta armada contra o colonizador.
Exemplo disso foi o movimento conhecido como Taqui Ongo, surgido no Peru em 1560. Ver
VAINFAS,Ronaldo. Colonialismo e idolatrias: Cultura e resistência indígenas no mundo colonial
ibérico. In: Revista Brasileira de História, n.21, v.11, pp.101-124. SP. ANPUH/Marco Zero,
1990/91.
84
cristã, aderia aos costumes ocidentais e, quando estava no núcleo doméstico,
retornava à prática de sua cultura ancestral. É o que confirma Wachtel (s/d):
Claro que se submetem às aparências do culto
cristão, mas essas permitem-lhes camuflar ritos autóctones;
os espanhóis alimentam, aliás, essa ambiguidade,
edificando cruzes e igrejas no local dos lugares sagrados;
quanto aos índios, dissimulam ídolos junto da porta das
igrejas ou debaixo do altar (WACHTEL,s/d: 162).
Em se tratando de dominação cultural, Cuche (1999), por sua vez,
também afirma: ...sofrer a dominação não significa aceitá-la (CUCHE, 1999:146).
Da mesma forma no México, os estudos de Gruzinski (1993) e
Duverger (1987) apontaram a leitura muito particular das práticas cristãs feita
pelos índios e a conseqüente justaposição de crenças, ritos e modos de
expressão daí resultantes. No caso dos guarani, há um interessante estudo de
Mônica Martini (1987), que avalia suas formas e mecanismos de releitura dos
sacramentos cristãos. A análise de Martini sugere a conclusão de que os
sacramentos não foram entendidos em sua totalidade, segundo os preceitos
cristãos. Por exemplo: o batismo era visto como uma prática mágica que levava
o batizado à morte, por ser muitas vezes administrado a pessoas gravemente
enfermas. Por outro lado, ainda poderia acontecer de o batizado retornar à
saúde corporal, o que era entendido como outra prova de prática mágica. O sal
85
usado no rito do batismo era tido como veneno e provocador de doenças, pelos
feiticeiros, assim como o óleo colocado sobre a testa. Em certas ocasiões,
houve cerimônias de “desbatismo” realizadas por líderes rebeldes entre os
indígenas. O nativo, nesses casos, recebia um novo nome, para voltar ao seu
antigo modo de ser.
Quanto ao sacramento do matrimônio, foi grande a dificuldade enfrentada
pelos jesuítas para instituir o casamento monogâmico, que era rejeitado pelos
caciques. Nos primeiros tempos, os padres tiveram que, fazer vistas largas
para não perder seus líderes junto à comunidade indígena. Isso porque a
poligamia era sinal de prestígio para os caciques, já que, através da mão-de-
obra feminina, eles poderiam exercer o dom da generosidade, elemento
característico da cultura guarani. Outro sacramento cujo grau de assimilação é
difícil de avaliar, é o da confissão. Pelas dificuldades de entendimento da língua,
o arrependimento real dos pecados e da culpa se mostravam imprecisos.
Egon Schaden (1982) preocupou-se em examinar a religiosidade guarani
resultante do processo de catequese e introjeção do cristianismo. Ao contrário
das afirmações dos primeiros cronistas, sobre a qualidade de “finos ateístas”
atribuída aos índios gente sem fé, sem lei e sem rei, segundo se dizia o
autor demonstrou a profunda religiosidade, daqueles povos, ainda encontrada
86
entre certas tribos, e que confere com as observações da época colonial.
Vejamos as considerações de Schaden (1982):
Os estudiosos dos Guarani são unânimes em
considerá-los um povo profundamente religioso. Já os
antigos missionários assinalam o grande interesse desses
índios por tudo que seja religião, “verdadeira ou falsa”. O
espírito extraordinariamente místico dos Guarani
contemporâneos tem despertado a atenção de mais de um
pesquisador. Examinem-se a este respeito, entre outros, os
escritos de Nimuendajú, Cadogan, Haubert e Melià.
Sabemos, também, que é no apego à religião dos
antepassados que os grupos hoje sujeitos à ação
desintegradora do contacto com o mundo civilizado
encontram o principal estímulo para insistir em sua
identidade étnica.
Donde lhes teria advindo esse espírito inteiramente
voltado para a esfera do sagrado? De modo explícito ou
implícito quase todos os autores o consideram já existente
na cultura Guarani antes de conquista espiritual cristã. A
semente lançada pela catequese teria, assim, germinado
em solo fértil, e o notório êxito missionário dos filhos de
Santo Inácio se explicaria, antes de mais nada, pela
afinidade entre a orientação da cultura tribal e os desígnios
da pregação cristã (SCHADEN, 1982:6).
Para ele, a característica de profunda religiosidade da cultura guarani,
favorecia a introjeção de certos conceitos cristãos.
87
Vários foram os instrumentos dos quais se valeram os padres para
facilitarem a prática da catequese. Foram importantes a instrução/mediação das
crianças índias, o teatro, as festas, a música, o uso das imagens. Assim como a
Igreja contra-reformista fortaleceu o uso das imagens nos templos europeus,
para reafirmar os ensinamentos cristãos (tomando os santos como modelos de
vida austera e religiosa), do mesmo modo, aqui na América colonial, os jesuítas
usaram desse artifício para pregarem a mensagem cristã, estimulando os nativos
a seguirem o modelo de vida dos santos e a pedirem intercessão na cura de
doenças
11
.
Os padres entenderam bem a importância de um cenário envolvente e
arrebatador para tocar a sensibilidade do nativo. Esse cenário evangelizador
compreende desde o traçado urbano das reduções até ritos religiosos e festivos,
expressos através da música e do teatro. Nas aldeias de índios catequizados, a
igreja era o edifício central. Para esse monumento convergiam as ruas e
conseqüentemente, a vida social e religiosa. Era, na redução, o único espaço
11
Vários exemplos dessa conduta são encontrados nas Cartas Ânuas. Veja-se, por exemplo, o que
escreve o provincial Francisco Lupércio de Zurbano: “...invocó al santo Patrono de su pueblo, en
especial a los santos médicos Cosme y Damián. Oyó Dios la intercesión de estos Santos y devolvió la
salud a los enfermos, y se pudo continuar el viaje”. Cartas Ânuas de la Província del Paraguai, 1637-
1639, escrita pelo padre provincial Francisco Lupércio de Zurbano sobre algumas expedições à Serra
do Tape. In: CARTAS ANUAS de la Provincia Jesuitica del Paraguay (1637-1639). Edición de Ernesto
Maeder. Buenos Aires: Fundación para la Educación, la Ciencia y la Cultura, 1984. p.156.
88
decorado com imagens e pinturas, em grande profusão, a fim de estimular os
catecúmenos a seguir o modelo de vida dos santos.
É inegável que o poder simbólico da imagem era muito importante para a
Companhia de Jesus, assim como para as outras ordens religiosas que atuaram
na América colonial. Elas aproveitaram, além da força religiosa, a força política,
alegórica e mitológica da imagem barroca.
12
Esse modelo de conquista espiritual através da imagem, os jesuítas
traziam da Europa. Na Igreja de Jesus de Roma, a austeridade exterior da
arquitetura é compensada pelo interior de magnífica decoração. A pintura do teto
com a “Glória de Santo Ignácio”, os altares laterais e, especialmente, o altar do
fundador da Companhia de Jesus, representam a profunda religiosidade de
Ignácio de Loyola. As esculturas em mármore que complementam esse conjunto
fazem uma alusão à vitória da fé cristã sobre a idolatria. Não há espaço em que
o olho possa descansar. Todo o templo está repleto de representações sacras,
mitológicas e alegóricas.
12
GRUZINSKI em “La guerra de las imágenes” (1994:147), trata dessa questão, descrevendo, por
exemplo, as imagens que representam a vitória de Cortês sobre Monteczuma e o cerimonial que
envolve a recepção de um arcebispo ou vice -rei.
Igreja de Jesus de Roma
89
O culto às imagens não era novo na América. No México e no Peru, os
nativos cultuavam ídolos que poderiam aparecer na forma de figuras variadas.
Não havia limite no número de deuses, e isso leva a concluir que a aceitação
de imagens cristãs - como a cruz, a imagem da Virgem Maria ou dos santos -
não causou resistência à cultura indígena. Seriam mais deuses somados ao
panteão dos aborígenes. Mas o que propunham os espanhóis era a introdução
de uma religião monoteísta.
Portanto, mesmo com aceitação das imagens cristãs, houve, por parte
dos espanhóis, muita violência nas campanhas de idoloclastia. Gruzinski (1994)
detalha bem esse fato:
La exptirpación de los ídolos mexicanos fue
progresiva, larga y, a menudo, brutal. De hecho, se remonta
a la expedición de Cortés Y comienza em 1519 en el lindero
de la península de Yucatán, en la isla de Cozumel. Si
hemos de creer a las crónicas, se organizó según un plan
sencillo y precioso que fue constantemente repetido, plan en
dos partes que articula aniquilación y sustituición: en
princípio, los ídolos eran destrozados (por los índios o por
los españoles o por unos y otros), y después los
conquistadores los remplazaban con imágenes cristianas
(GRUZINSKI, 1994:41.)
O cristianismo, como única e verdadeira religião, pressupunha que os
povos nativos abdicassem de sua religião ancestral e adotassem os preceitos
cristãos como inquestionáveis.
A fé cristã sobre idolatria, altar de Sto. Inácio, Igreja
de Jesus de Roma
90
Resultou daí o que já se chamou de “guerra das imagens”, a
idoloclastia, desencadeada pelos espanhóis. Por essa inabalável convicção, o
espírito da reconquista espanhola já vivenciada na perseguição aos judeus e
mouros na Espanha, foi transferido para as novas terras conquistadas. E a
atitude era justificada pelo fervor ao cristianismo.
Gruzinski chama atenção ao “caráter eminentemente laico dessa
empresa” - o combate à idolatria -, nos primeiros anos da colonização. Quanto
aos religiosos, agiram com mais cautela, preferindo as pregações e distribuindo
imagens como as da cruz e da Virgem Maria. ... si ver la imagen es tener
acceso al dios, destruir la representación índia era acabar com el referente divino
del adversário y, por tanto, abolir su idolatria. Esta seguridad, por lo demás, no la
compartía el clero católico que acompañaba Cortés. (GRUZINSKI, 1994: 57)
Foi assim que Cortês desencadeou esta verdadeira guerra de imagens.
Ele “desplegó una energiá asombrosa en cuanto se
trataba de destruir las “imágenes” de los indígenas, ya sea
que los hubiese vencido o tuviese que poner en peligro su
persona y sus hombres. Fue él y no los sacerdotes que le
rodeban quien precipitó a los conquistadores a la
aventura. En México, en la capital de Moctezuma, sin
esperar siquiera la llegada de los refuerzos que había
pedido, se lanzó sobre las estatuas del templo
(GRUZINSKI,1994:41).
91
Os ídolos deveriam ser destruídos porque, dessa forma, subentendia-se
a destruição também das crenças indígenas. A representação das divindades
nativas era uma ameaça à cristianização.
Após a fase laica de perseguição aos ídolos, os missionários, em seu
projeto de conquista espiritual, procuraram aos poucos substituir os referenciais
indígenas, oferecendo imagens de Nossa Senhora e outros santos
reverenciados pelo catolicismo. A proposta de destruir/substituir imagens
evidencia a importância dessa representação das crenças dos povos. O
homem, mesmo antes da escrita, registrava sua história. Através de imagens
sacras e profanas, superou a questão do entendimento pelo código lingüístico,
ao materializar o que é divino e sobrenatural, convecido de que a extirpação
impediria às gerações futuras de conservarem a referência desse acervo
ancestral.
A situação toma novos contornos no sul da América. Como os guarani
não prestavam culto às imagens
13
, os jesuítas encontraram nesse
comportamento peculiar um expediente de aproximação. Se, no México, houve
o combate leigo às imagens, aos ídolos ancestrais, aqui no sul houve um
espaço para impor a devoção à imagem cristã.
13
Segundo Montoya, eram gente “limpa de ídolos e adorações” (MONTOYA, 1985:104).
92
Inúmeros expedientes foram usados para favorecer o processo de
evangelização. Um deles, talvez o mais forte por ser essencialmente sensorial,
foi o das imagens. Parte delas foi produzida com a participação do próprio
nativo.
As formas barro cas foram sabiamente aproveitadas para tal fim. Nas
igrejas e nas praças, a multiplicidade de elementos decorativos usados pelos
artistas, para representar os santos e seus atributos, encontraram um espaço
único para a expressão barroca. Aconteceu o mesmo no ritual litúrgico, com os
cantos e o incenso. No teatro, utilizavam-se os autos dos santos realizados nas
praças. Na pintura do teto das igrejas, estavam as imagens celestiais; nas
esculturas: os gestos das imagens comunicando-se com o espectador, numa
linguagem simbólica muito bem trabalhada pelo artista barroco. Tal situação não
foi específica da América espanhola, mas encontrada também na obra de
Aleijadinho
14
cujos Profetas (Congonhas MG)
15
, “conversam” com o
espectador, assim como entre eles próprios. Seu diálogo é conduzido pelo
gestual das imagens que ora apontam para o alto, ora indicam os pergaminhos,
ora sugerem recolhimento, numa linguagem perfeitamente decodificada por
14
Antônio Francisco Lisboa, escultor e arquiteto brasileiro, nasceu em 1730, em Ouro Preto Minas
Gerais, e faleceu em 1814.
15
Os doze profetas esculpidos por Aleijadinho e mais sessenta e seis imagens dos Passos se
encontram no Santuário de Nosso Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas Minas
Gerais.
93
qualquer observador. No contexto das reduções, encontramos também um
aparato cenográfico apropriado à catequese: tudo ensinar através de
representações visuais” (OLIVEIRA, 2000:38).
Além disso, nas reduções, as imagens foram pensadas para utilização
nos altares. Se observarmos atentamente sua postura, veremos que elas se
relacionam entre si, têm gestos entrosados umas com as outras. Pretendem
envolver a mente e os sentidos e, conseqüentemente, favorecer o arrebatamento
e persuadir o espírito para as coisas de Deus.
Contudo, apesar da receptividade, por parte dos guarani, pelas coisas
sobrenaturais que os jesuítas ensinavam, certos referenciais da cultura nativa
continuaram sendo expressos através da arte, como o presente trabalho
procurará demonstrar. As diferentes manifestações do barroco, que encontramos
nos atuais museus e igrejas, são reflexos do espírito do povo que as produziu:
mais contidas ou mais exuberantes, mais gestuais ou mais introspectivas, mais
rígidas e frontalistas ou mais envolventes, representam uma mostra de
“expressão mestiça,” uma “conjugação de acervos” significativa para a análise
em pauta.
94
CAPÍTULO 4 - A IMAGEM COMO ESTRATÉGIA DE
EVANGELIZAÇÃO
Na Europa, o processo de renovação espiritual e intelectual do século
XVI atingiu todas as áreas da cultura, em especial, as artes. As formas clássicas
da cultura greco-romana revividas no Renascimento deram lugar à linha curva, à
voluta, ao ornamento farto e profuso, manifestando tensão e exaltação das
formas artísticas. Trata-se do Barroco, já categorizado como sendo a expressão
artística da Europa contra-reformista, com uma correspondência significativa na
América colonial hispânica.
Nunes (1999) definiu a função educativa e religiosa dessa corrente
estética, da seguinte forma:
O barroco, pelo seu gosto do monumental, pela sua
vontade de impressionar, ostentando força e poder, foi o
instrumento da espiritualidade católica a serviço de um
humanismo devoto, empenhado na submissão das almas e
na conversão dos povos. Tal aspecto sócio-político entrosa-
se à ascese inaciana e, conseqüentemente, à catequese
jesuítica que acompanhou a expansão colonizadora do
século XVI em diante, trazendo-nos o barroco
(NUNES,1999:123).
95
A Companhia de Jesus, fundada em 1534 em Paris, e aprovada por
bula Papal em 1540, realizava seus trabalhos inspirada justamente nos ideais da
Contra-Reforma católica. A estética barroca, sintonizada com os meios usados
na “conquista espiritual” pela Ordem, deu sustentação a esse projeto. Na
América, milhões de fiéis poderiam ser somados ao cristianismo, o que era
muito importante, pois a Igreja precisava recompor sua posição a partir dos
desdobramentos da Reforma protestante. A própria atuação das monarquias
ibéricas fundou-se no compromisso de trazer esses pagãos “à luz do evangelho”.
Na América, a atuação foi intensa e persistente em seu projeto de
“conquista espiritual” e, conseqüentemente, de evangelização dos nativos. O
momento mais marcante e cruel empreendido para esse fim foi iniciado por
Hernán Cortés, que tomou a iniciativa de destruir os ídolos e templos dos
astecas. Embalado pelo espírito do homem da Renascença, em busca de fama e
fortuna, Cortés demonstrou também em suas atitudes, a marca da reconquista
da Espanha muçulmana. Possivelmente, até mesmo o medo do desconhecido
inspirava as ações do conquistador. Os objetivos dos colonizadores eram claros
e precisos: conquistar a qualquer preço, civilizar, cristianizar, substituindo as
crenças ancestrais pelo cristianismo. E a substituição das imagens foi o primeiro
passo dado nessa campanha. Os colonizadores, e depois os padres, ofertavam
imagens da cruz e da Virgem Maria, que eram colocadas nos templos antigos,
96
como foram encontradas pelos padres, junto aos ídolos do Templo Mayor, em
Tlaxcala, no México.
As imponentes construções de igrejas, no local onde existiam os
templos antigos, faziam parte da estratégia de evangelização. A arquitetura
deveria ser um símbolo de poder e de respeito ao cristianismo. Junto dos
templos religiosos e também dos mosteiros eram edificadas as escolas,
destinadas a preparar as crianças para a nova sociedade que nascia. São de
Duverger (1993) as informações que seguem:
...los frailes se consagran a construir sus
monasterios, pero paralelamente a la construcción de los
edifícios conventuales edifican en forma sistemática un
anexo con materiales ligeros destinados a servir de escuela.
Desde su instalación, es allí donde acongen a los hijos de
las personalidades indias del lugar. Esos jovencitos reciben
allí los primeros rudimentos de la religión católica, aprenden
de memoria las oraciones principales Pater noster, Ave
Maria, Credo en latín y son iniciados en los principios de la
escritura y de la lectura (DUVERGER,1993:102).
A energia da evangelização empreendida pelos padres teve tolerância
maior do que a realizada pelos colonizadores leigos, a qual revelou uma marca
de violência mais acentuada que a dos religiosos. Estes seguiram o caminho da
catequese e do ensino em geral, usaram imagens, canto, música, teatro,
procissões nos dias santos e nas festas do padroeiro local. Lembremos aqui as
97
escolas dirigidas pelos franciscanos, agostinianos, dominicanos e jesuítas, que
contribuíram decisivamente para a formação dos novos líderes indígenas e para
a criação de universidades na América. Os ensinamentos dos colégios religiosos
eram procurados pelos antigos líderes indígenas. Por sua vez os padres
tinham sob sua influência e orientação crianças nativas, agora escolarizadas,
que seriam no futuro os hábeis dirigentes das comunidades locais.
Nos primeiros anos, os sermões e os ensinamentos eram feitos com
auxílio de intérpretes, mas a necessidade de dominar os códigos lingüísticos dos
índios para tornar a catequese mais eficiente, acabou impondo-se. Dominando
a língua nativa, os padres chegaram até as crianças, fazendo com que elas
levassem para as famílias as novas crenças e condutas. A conversão de alguns
chefes também influenciou um grande número de indígenas a aceitar o batismo,
que foi realizado em massa
1
. Esses batismos coletivos, muitas vezes, foram
postos em dúvida pelos próprios padres, pois pouca ou nenhuma consciência
tinham os neófitos do significado desse ritual. Era mais um evento novo
justaposto aos seus costumes tradicionais. É ainda Duverger (1993) quem
explica:
1
DUVERGER (1993) trata desta questão citando o número aproximado de batismos que foram
realizados no México em 1530. Ver : DUVERGER, Cristian. La conversión de los indios de Nueva
España. Com el texto de los Coloquios de los Doce de Bernardino de Sahagún (1564).México : Fondo
de Cultura Económica, 1993, pp. 106-108.
98
A fin de cuentas aplicaron a los adultos el argumento
clásicamente empleado para los niños; pero es cierto que al
proceder así se exponían a contar como cristianos a
autóctonos que seguían siendo indios por su manera se vivir
y de pensar (DUVERGER,1993:108).
Nessa dinâmica de aprender a língua nativa, de substituir imagens, de
construir templos e escolas, de ministrar catequese e traduzir catecismos para
crianças e adultos influentes, de realizar casamentos coletivos em datas festivas
dos padroeiros da igreja, o cristianismo passou a ser a religião predominante,
mesmo com todas as resistências enfrentadas. É dentro desse quadro
referencial que devemos considerar a situação das reduções jesuítico-guarani do
Paraguai.
A instalação dos povoados jesuítico-guarani inicia no século XVII, com a
fundação da primeira redução em 1609. Iniciou-se na região do Guairá,
ocupando logo após a região do Itatim e estendendo-se até o Tape, no sul do
Brasil. Foram muitos os deslocamentos dos guarani reduzidos até se
estabelecerem em lugares definitivos. E isso aconteceu só no fim do século,
época em que as artes tiveram um grande impulso, já com a estrutura urbana
dos povoados definida: ruas bem traçadas, casas circundando a praça e, como
ponto central, a igreja. Também estavam instalados os setores educacional e
99
produtivos, incluídas aí as oficinas da redução,
2
conforme é citado nas Cartas
Ânuas, contidas no Manuscrito da Coleção de Angelis:
...y uan tomar algunos dias disciplinas, enseñar a los
niños a leer, y escrivir y todo genero de musica de canto
llano y Chirimias, y violones com que se sirven los Templos
com mucha autoridad y reverencia y a los grandes officios
en que se ocupen, y a labrar las Tierras como manda su
Magestad en sus ordenacion.... (M.C.A. v.IV:78).
A produção de imagens, nas reduções, foi um dos ofícios marcantes
em que se ocupavam os indígenas. Percebe-se, através dos registros dos
jesuítas, a importância do uso da imagem como forma de persuadir os índios à
frequência aos sacramentos e à oração, seja através de sua beleza exterior, seja
pelo modelo de vida que ela representava, e também, o que era muito
significativo, por sua expressão facial e sua postura
3
. São incansáveis os relatos
dos padres com relação à imagem da Virgem Maria e seu poder de persuasão.
Essa força visual e táctil das representações foi muito bem aproveitada: ... se
tiene la sensación de que la Iglesia se dedica a cristalizar en imágenes y en
2
XIII Carta Ânua da Red. de Santa Maria do Iguaçu, escrita pelo Pe. Claudio Ruyer em 9-XI-1627.
In: Manuscrito da Coleção de Angelis. Jesuítas e Bandeirantes no Uruguai (1611-1758),
Introdução, notas e sumário de Hélio Vianna. R.J. : Biblioteca Nacional: Divisão de Publicação e
Divulgação, v.IV, 1970, p.78.
3
Esta pues trasladada al Cll.º de la Rioja, llevó tras si tanto los ojos de todos los
ciudadanos com su vellleza, ~q tras los ojos arrastó sus coraçones conciliando sus
afectos muy tiernos.
M.C.A (1952) op. cit., v.II: p.184
100
epifanías todas las manifestaciones de la trascendencia, en tal forma que
puedan captar mejor la atención y el fervor de las poblaciones
(GRUZINSKI,1994:134). A imagem era usada na catequese como um reflexo do
mundo celeste. Ela reforçava a pregação evangélica, transmitindo aquilo que a
Bíblia fazia através da escrita. Venerar uma imagem era venerar a pessoa que
nela estava representada e, conseqüentemente, seguir seus passos. Assim
pregavam os Concílios de Nicéia II (787), de Trento (1545), e do Vaticano II
(1965). O de Nicéia II, especificamente, ensinava que, quanto mais os fiéis
contemplassem as imagens dos santos, mais teriam presentes as suas virtudes
e o seu modelo, o que era muito conveniente. A Igreja Católica, desde o
Concílio de Nicéia II, passou a afirmar o valor das imagens sagradas. Durante a
Idade Média, usou-as em profusão com sentido catequético, como atesta o
Duomo de Milão
4
. Os seus vitrais, a porta principal esculpida com temas bíblicos,
o tímpano e as laterais com imagens de santos, as diversas torres com figuras
religiosas no cimo representam a intermediação a que o cristão deve recorrer
para alcançar o céu.
Os concílios da Igreja Católica foram sempre enfáticos quanto à
importância da veneração das imagens e dos rituais religiosos, como as
4
O Duomo de Milão é uma das mais famosas igrejas da Itália. Sua construção foi iniciada em 1356
e concluída quatro séculos mais tarde.
Duomo de Milão
101
procissões e as comemorações dos santos padroeiros. A veneração dos santos,
os hinos litúrgicos, a prédica dos padres durante a missa, a harmonia dos sinais
de celebração religiosa, tinham a intenção de gravar na memória dos nativos as
práticas do cristianismo. Todos esses sinais, evidentemente, deveriam exprimir-
se em forma de vida cristã. Era o que os jesuítas almejavam para os seus índios
reduzidos, mostrando sempre que o espiritual era prioridade dentro da redução,
embora, não afastassem as preocupações temporais. É conveniente lembrar,
que as reduções eram auto-suficientes em sua manutenção.
Outra estratégia de evangelização usada freqüentemente, nos
povoados missioneiros consistia nas procissões, que exerceram um papel muito
importante no cenário do barroco contra-reformista. Eram sistemáticas e
acompanhadas de grandes preparativos. Isso também pode ser comprovado
através dos relatos das Cartas Ânuas. Há inúmeras descrições desses eventos,
especialmente dos que homenageavam Nossa Senhora. Na XV Carta Ânua,
dirigida ao Provincial Pe. Diego de Boroa em 1635 da Redução de Nossa
Senhora de la Candelária. Nesta Carta, encontramos manifestação de agrado
por parte dos índios ao preparar e participar das procissões:
Los indios se esmeraron notablemente en el adereço
de las calles. Las quales trazo, y dividio el herº Bar.
Cardenosa y era de ver la igualdade y hermosura com que
estaban divididos mas de mil y quinientos arcos en quatro
calles iguales. En cuyas quatro esquinas estaban quatro
Detalhe duomo de Milão
102
altares pobres que no se puede encarecer mas pero com
tanta variedad de animales terrestres, aquatiles y volatiles,
tanta fruta de la tierra, tanta raiz, tantas batatas y variedad
de cosas, que ellos tienen y comen que era para ver y
alabar a n~ro Srº de las dos calles se encargo el un Capitan
y de las otras dos el outro com la g.te de su parcialidad. Y
los quatro altares se repartieron entre los carpinteros,
herreros, tejeros, y vaqueros (que toda es de la gte.
escojida por~q. tienen por honrra ocuparse en qualquiera
destos oficios) todos fueron a porfia a quien mejor lo
componia. Començose la procession despues de la missa,
~q oficio el Pe. Xpoval de mendoza y del sermon que
predico el Pe. Gerº. Porcel a proposito de la fiesta y
procession (M.C.A v. IV p. 105-106).
Nas Cartas Ânuas da Província do Paraguai, escritas pelo Pe. Francisco
Lupércio de Zurbano, nos anos de 1637 a 1639, com referência à Redução de
Loreto, encontramos outra manifestação de regozijo e de percepção de
elementos da cultura ancestral mesclada com os ritos ocidentais cristãos.
...después de haber llevado en triunfo la imagen de la
Virgem por calles y plaza, por debajo de los arcos
artísticamente adornados con flores y ramas del campo,
entre súplicas y cánticos sagrados. Se contaron 4.000
concurrentes a esta fiesta, mostrando todos gran piedad y
ostentando sus modestos trajes festivos. [...] Después de
estas rogativas por las calles del pueblo, siguieron otras en
la iglesia, en cuyo medio habían colocado la Virgen un
hermoso trono, adornado a su usanza. Por veinte días
enteros, en la maña y en la tarde, se fueron los
congregantes a la iglesia, cambiando cada hora su turno, y
rogando a la Virgen por la victoria (C.Â. In: Maeder,
1984:94).
103
Sabemos que as reduções só tiveram o período áureo da produção da
arte e da evangelização após 1640, quando se estabeleceram em lugares
definitivos, após o recuo dos bandeirantes
5
. Isso não significa que as imagens
não fossem usadas; elas eram importadas da Europa e amplamente utilizadas:
6
“...una vella escultura de la Concepcion immaculada de Maria SSmª trayda de
España cuya velleça roba los coraçones, cuya afabilidad atrae al mas distraydo y
cuya Magestad se hace respetar del mas altivo ...”. (M.C.A v.II p.156)
É preciso salientar sobre este aspecto que, na primeira fase, as casas
e as igrejas eram feitas de madeira e cobertas de palha, não havendo ainda as
construções em pedra como são referidas hoje. Esse “momento clássico”, assim
denominado por Maeder e Bolsi, (1980) só aconteceu com a estabilidade dos
povos e com a vinda às reduções de jesuítas escultores e arquitetos. Entre eles
temos: Brasanelli que esteve nas Reduções entre 1697 a 1728; Primoli entre
1693 a 1747; Francisco Ribera no período de 1688 a 1747; Antônio Sepp de
1691 a 1733, além de outros que aqui também deixaram suas marcas.
5
Em busca de mão- de- obra para suprir as necessidades da lavoura canavieira no Brasil
Português, os paulistas organizaram entradas para apresamento de índios que estavam sob o
domínio espanhol, destruindo vários assentamentos e determinando a necessidade de
deslocamento de outros.
6
Ver XXIV Carta Ânua dos anos de 1653 ao fim de1654, escrita pelo Pe. Diego Francisco de
Altamirano. Manuscrito da Coleção de Angelis. Jesuítas e Bandeirantes no Itatim (1596 1760).
Introdução, Notas e Glossário por Jaime Cortesão. R.J.: Biblioteca Nacional, Divisão de Obras Raras e
Publicações, 1952, p.156.
104
São Miguel Arcanjo, a redução cuja produção artística nos
propusemos a analisar, foi instalada pela primeira vez em 1632, no lugar
denominado Itaiacecó, e segundo Rego Monteiro, à margem direita do Ibicuí, no
rincão de S. Pedro, nas pontas da serra de São Pedro (PORTO,1954:58). Com
os ataques dos bandeirantes, a redução passou para o outro lado do Rio
Uruguai, próxima à redução da Conceição. Permaneceu lá até seu traslado para
a margem oriental do Rio Uruguai. Em 1687, os miguelinos se estabeleceram ao
Norte do Rio Piratini e próximos ao Rio Santa Bárbara. A fundação de sua
redução em território do Rio Grande do Sul se deu logo após o estabelecimento
das reduções de São Nicolau e São Luís, todas próximas.
A igreja de São Miguel Arcanjo foi projetada pelo Irmão Jean Batista
Primoli. Ela tem o frontispício barroco, decorado com pilastras e capitéis com
formas jônicas, e flores e folhas nativas. Logo abaixo do frontão triangular, linhas
curvas com volutas, como as da igreja de Jesus de Roma
7
, unem a fachada ao
pórtico que foi construído posteriormente, em estilo renascentista. Composto por
colunas com cinco arcos plenos, o pórtico tem seu frontão encimado pela
7
A arquitetura da igreja de Gesú de Roma, cuja construção iniciou em 1571, serviu de arquétipo para as
igrejas das Missões jesuítico -guarani. Essa igreja teve o traço de vários arquite tos, mas o de Vignola
(1507-1575) foi o que predominou. Ele foi considerado o grande arquiteto da Companhia, tendo
inclusive seus livros e tratados de arquitetura enviados à América.
O tipo arquitetônico usado na igreja de Gesú une alguns traços da Renascença, como o frontão
triangular, onde se encontra o brasão Farnese (do Cardeal Alessandro Farnese) e, sobre a porta
maior, um escudo com o monograma da Companhia de Jesus. A planta em cruz latina lembra a
tradição da Idade Média, e as volutas do frontispício denotam um caráter claramente barroco.
Igreja de Jesus de Roma
105
imagem de São Miguel ao centro, e que foi projetado pelo arquiteto José Grimau,
auxiliado por Francisco Rivera e Diego Palácios.
O alpendre é um dos elementos arquitetônicos característicos das
reduções. Encontramos vestígios dessa edificação, tanto nas laterais e no
fundo da igreja, quanto nas oficinas, na casa dos padres e dos índios. A
imponente arquitetura e seu planejamento impressionam não só pela estética,
mas sobretudo pelo espaço geográfico, centro vital das relações sociais e
religiosas. A majestosa construção era símbolo de poder, e acolhia a todos,
seja nos momentos de culto e catequese, nos casamentos coletivos ou nas
festividades dos padroeiros, favorecendo a ambientação que levaria o guarani a
permanecer nesse “acolhimento”. Além dessa situação específica dos povoados,
o contexto-histórico em que tudo isso foi desenvolvido oferecia uma convicção
de pensamentos e atitudes responsáveis por essa organização.
No século XVII o modelo arquitetônico girou em torno da clareza e
simplicidade das rigorosas regras de composição. Daí o quadriculado urbano
das novas cidades da América, modelo que vinha das novas cidades
espanholas. Nessa perspectiva, nas reduções tudo era planejado de modo a
facilitar o controle dos jesuítas sobre os índios, sendo o templo de Deus a
principal construção, conjugada aos afazeres coletivos. As ruas, simetricamente
traçadas, alcançavam a praça e a ig reja, numa clareza de traço urbanístico que
Igreja da Redução de São Miguel Arcanjo
106
referenciava a presença de Deus como Aquele que tudo vê, tudo sabe, tudo
guia.
O ambiente americano e o objetivo de evangelização levaram o barroco
jesuítico-guarani a se mostrar diferente das formas encontradas na escultura
européia, especialmente na sua decoração. Aqui, ela se apresentava mesclada à
flora local. As flores nativas; a folha da alcachofra substituindo a folha de acanto,
nos capitéis; os frutos da região, como o apepu (espécie de laranja nativa),
decoravam as portadas. A sutileza dessas inserções é decorrência da
“identificação” do autor de tal produção com o ambiente em que estava inserido.
Nessa perspectiva também era considerado o modo de vida dos indígenas e as
possibilidades tecnológicas que o meio oferecia, como, por exemplo, o uso da
cal, que foi posterior ao início da construção do templo de São Miguel Arcanjo,
em 1735, e que facilitaria a construção das abóbadas. Sobre o assunto, assim
se manifesta Gutiérrez (1982):
Diversos autores partem da hipótese de que o Padre
Prímoli traçou o projeto para a coberta, da igreja de São
Miguel Arcanjo, com abóbadas de pedra e ladrilho. Isto era
possível ainda que improvável, já que Prímoli não era um
arquiteto improvisado e sabia das limitações que teria a
carência de cal sem aderência adequada, pois somente
dispunha de uma cal pobre feita com moluscos e caracóis.
A Igreja de São Miguel coberta com abóbadas de madeira
chegou incólume até a expulsão dos jesuítas
(GUTIÉRREZ,1982:72).
Detalhe da fachada da igreja São Miguel Arcanjo (Pilastras)
107
Delimitando a produção artística, nas missões jesuítico-guarani, em
159 anos
8
, impressiona-nos o fato de que, neste espaço de tempo relativamente
curto para desenvolver-se uma linguagem artística, surgiu um grande número
de obras. Segundo inventário de 1768
9
, quando da expulsão definitiva dos
jesuítas, da América, deveriam existir, nos Trinta Povos, pelo menos duas mil
imagens, sem contar os retábulos, oratórios, as alfaias e pinturas que decoravam
as igrejas.
Francisco Javier Brabo (1892:180) publicou o inventário dos bens
encontrados nos Trinta Povos, relatando o seguinte a respeito de São Miguel.
Existia um retábulo maior com seis imagens, além de uma de Nossa Senhora e
um São Miguel dourados; sobre o tabernáculo, uma pintura de Nossa Senhora,
duas mesinhas com imagens de São Miguel, Santo Ignácio, São Rafael, São
Gabriel e Santo Antônio. Ao lado do evangelho, estavam dois retábulos
dourados e, em outro, também Santo Ignácio dourado, São Miguel e São Roque.
Em outro altar mediano, duas imagens de Nossa Senhora e uma de Santa
Bárbara, todas douradas; num altar pequeno, a imagem de Santo Isidro,
8
Esse tempo foi estabelecido desde a instalação das reduções jesuítico-guarani (1609) até a
expulsão dos jesuítas da América colonial (1768).
9
Este inventário foi realizado por ocasião da expulsão dos jesuítas do território espanhol e
publicado pela primeira vez na Espanha, em 1872.
Coluna do pórtico da igreja de São Miguel Arcanjo
108
dourada. Esse inventário, dá uma idéia do grande acervo da produção artística
das Missões
10
.
Mais adiante, nesse mesmo relato, encontramos citados os ornamentos,
e as alfaias, enfim, o que pertencia à igreja e à sacristia. Percebe-se na
descrição que o uso do dourado, da prata e do brocado de flores de ouro era
muito freqüente, tanto nas imagens quanto nos ornamentos das casulas e
estolas usadas pelos padres, durante as cerimônias religiosas
11
.
Essa conclusão é significativa, se considerarmos que, até a chegada do
colonizador, os nativos não conheciam as tecnologias e os instrumentos para a
produção desses objetos. A arte guarani baseava -se na tradição e na
repetição de formas - usadas na pintura corporal e nos utensílios para ritos de
origem terapêutica ou religiosa. Na cerâmica, com decorações singelas, os
nativos usavam pigmentos vegetais para pintá-la de vermelho, preto e branco; o
10
Brabo cita as imagens encontradas nas reduções. In: BRABO, D. Francisco Javier. Inventários
de los mueves hallados a la expulsión de los Jesuitas de sus temporalidades por decreto de
Carlos III en los pueblos de Misiones, fundados en las márgenes del Uruguay y Paraná, en el
Gran Chaco, en el Pais de Chiquitos y en el delMojos. Cuyos territorios petenecieron luego al
Virreinato de Buenos Aires com introdución y notas. Madrid, 1872.
11
A XIII Carta Ânua escrita pelo Pe. Claudio Ruyer, em 1627, há um relato sobre a
ornamentação dos templos. Citam-se retábulos bem elaborados e a existência de custódias de
prata. In: Manuscrito da Coleção de Angelis. Jesuítas e Bandeir antes no Uruguai (1611-1758).
Introdução e notas e sumário de Hélio Vianna. R.J.: Biblioteca
109
amarelo, misturado a uma resina, funcionava como selador, diminuindo a
porosidade
12
.
Nas reduções, os guarani passaram a trabalhar com materiais que
exigiam uma tecnologia mais apurada, como a aplicação do dourado nas
imagens, a confecção da alfaias, usando instrumentos de trabalho delicados e
precisos. Todo esse aparato estava fora de sua cultura ancestral, o que leva a
refletir não só sobre o impacto da iconologia cristã, incidindo sobre o imaginário
guarani, como também sobre o aspecto técnico desse impacto. O fato de o
indígena esculpir com novos instrumentos, usando goivas e cinzel, provocou
uma relação positiva com todo o entorno social da produção do objetos. Ao
sentir-se valorizado pelo seu trabalho de artífice, o índio se envolvia nesse
ambiente evangelizador.
Na primeira fase da produção, no século XVII, os artífices guarani
expressava um comportamento minucioso na imitação dos modelos europeus
(Nossa Senhora da Conceição com o Menino e São Miguel Arcanjo, Santo Isidro
entre outros). A fase criativa apareceu mais tarde, no século XVIII, quando o
domínio técnico e formal se consolidou. Ele marcará as esculturas com
12
Leon Cadogan chega a sugerir que a expressão maior da arte guarani estava não na cerâmica,
cestaria ou arte plumária, mas nas elaboradas composições de seus cantos e hinos religiosos.
Ver: CADOGAN, Leon. Ayvu Rapyta: textos míticos dos Mbyá-Guarani do Guairá. Asunción:
Biblioteca Paraguaya de Antropologia; Fundación León Cadogan, CEADUC- CEPAG, 1992.
N. S. da Conceição (1.22 m)
110
interpretações realistas e com características missioneiras. É importante
considerar também a significativa produção de pinturas que vai,
aproximadamente, de 1610 a 1650. Isso se deveu ao fato de serem mais fácil
para carrega-lás de uma redução a outra, nas catequeses volantes ou viagens
missionais.
Dessas pinturas restou um pequeno acervo que se encontra em
algumas igrejas de Buenos Aires. Imagens como a do Bispo São Nicolau e a de
São João Batista se conservam no museu das Missões. Sua talha se caracteriza
por formas bastante simples, predominando a verticalidade do traçado das
roupas. São Nicolau traz uma capa com o mesmo desenho do saiote de São
João Batista, chamando a atenção, nessas figuras, a forma como foram
talhadas. O saiote representa uma pele de ovelha, chegando o artista a uma
síntese quase geométrica da forma da lã. O bispo, por sua vez, traz na capa
exatamente o mesmo desenho.
Sabe-se que o irmão Brasanelli
13
esteve nos Sete Povos trabalhando
nas oficinas de arte. Conterrâneo de Bernini
14
, foi por ele influenciado no traçado
do panejamento das imagens. As diferenças de tratamento escultórico são
13
José Brasanelli, irmão jesuíta, nasceu em Milão, em 1659, e faleceu no povoado de Candelária,
em 1728. Viveu nas reduções jesuítico guarani durante 37anos. Era escultor e arquiteto. “De
1696 a 1705 edificou a igreja de São Borja” (SUSTERSIC,1999:55).
São Miguel Arcanjo (1,16m)
Santo Isidro (1,83 m)
111
nitidamente marcantes. Como exemplo, pode-se citar a Pietá, que se encontra
no museu da Redução de Santa Rosa no Paraguai, e São Francisco de Borja, na
Redução de São Borja, ambos esculpidos por Brasanelli. Atribui-se a ele, ainda,
a fachada da igreja da Redução de San Ignacio Miní e o projeto da igreja da
doutrina de São Borja. Os jesuítas, antes de virem à América permaneciam dois
anos em Sevilla, preparando-se, e foi aí que Brasanelli tomou conhecimento
dos retábulos andaluzes. Segundo pesquisa de Darko Sustersic (1995),
Brasanelli entalhou inúmeros retábulos, para diferentes reduções jesuítico
guarani,
15
numa evidente demonstração de que a tarefa de evangelização a que
se propunham os jesuítas, estava muito bem fundamentada na produção de
imagens e na decoração de altares. Confirmando as idéias contra-reformistas, os
jesuítas agiam organizadamente, preparando-se nas oficinas de arte de Sevilla,
a fim de executar, via produção artística, a estratégia de evangelização.
Os arquitetos, escultores e pintores atuantes nas reduções eram
membros da Companhia de Jesus. Alguns possuíam conhecimento artístico
antes de entrar na Ordem; outros adquiriam logo após seu ingresso, por própria
iniciativa ou indicação de seus superiores, sempre cultivando disposições
14
Gian Lorenzo Bernini nasceu em Nápoles (Itália), em 1598 . Ainda criança mudou-se com seus
pais para Roma. É um dos expoentes do barroco italiano.
15
SUSTERSIC,Darko.La escultura en el Río de la Plata durante el período colonial. In: GUTIÉRREZ,
Ramón (coord.) Pintura, escultura y artes útiles en Iberoamérica,1500-1825. Madrid, Ediciones
Cátedra, 1995, p 273.
São Nicolau (0,72 m)
São João Batista (0,72 m)
112
pessoais e habilidades inatas, “Ad Majorem Dei Gloriam”
16
. De 1610 até a
expulsão definitiva dos jesuítas em 1768, grande parte da arquitetura civil de
Buenos Aires e do Paraguai, incluindo aquelas das missões jesuíticas, foram
obras dos arquitetos artistas da Companhia, que vieram de diferentes países da
Europa.
Pela província do Paraguai passaram 2.291 jesuítas, sendo: 53,07% da
Espanha, 13,70% da Argentina, 7,20% da Itália, 4,14% do Chile, 3,97% do
Paraguai, 3,88% da Alemanha, 2,44% de Portugal, 2,05% da França, 1,57% da
Bélgica, 1,22% da Tchecoslováquia, 1% da Bolívia, 0,96% do Peru, 0,87% da
Áustria, 0,78% do Brasil, 0,56% da Polônia, e 0,52% da Suíça. Estos 16 países
más otros tantos que apresentam porcentajes muy bajos, suman un total de 32
nacionalidades que demuestran la contribuición internacional a la empresa
misionera de la província de Paraguay (PALÁCIOS; ZOFFOLI, 1991:258).
Alguns jesuítas oriundos dessas diferentes nações européias trouxeram às
reduções imagens de moda na Europa, produções recentes de seus países. Isso
não quer dizer que as ilustrações medievais de estilo românico ou gótico não
servissem de modelo. O estilo de cada região segundo a origem dos padres ,
possibilitava às reduções a produção de um barroco peculiar.
16
Expressão latina: “para maior glória de Deus”
113
Toda essa eloqüente produção funcionou, conforme foi referido
anteriormente, como estratégia de evangelização: o guarani arrebatado pelo
poder das imagens, do canto e dos ritos religiosos,
17
entre eles a ladainha e o
sermão, foi sendo cooptado pelo cristianismo.
A leitura que se pode fazer da escultura e das igrejas revela que a
suntuosidade e o esplendor representavam a reverência que se colocava nas
coisas de Deus. As igrejas jesuíticas possuíam um esplendor interno
arrebatador, características do barroco. Todos os investimentos que pudessem
ser feitas para conquistar adeptos ao cristianismo deveriam ser efetivados
18
.
17
Na XXIV Carta Ânua, dos anos de 1653 ao fim de 1654, sobre o Colégio de Santiago del Estero, escrita pelo
Pe. Diego Francisco de Altamiro, encontramos a seguinte descrição dos ritos religiosos e da persuasão
exercida sobre os índios usando o canto, as imagens, a ladainha e o sermão: “Para esto pues todo los meses
un dia, ~q por la mañana se celebra el Jubileo del mês comun a toda la Comp.ª, se les propone ~q acudan a
la comunion del mês, si quieren goçar la presencia de la Reyna de los Angeles,~q por la tarde llamada toda
la Ciudad con repique solemne de 6 campanas ~q tiene Nuestra Yglesia en una sumptuosa torre, se
descubre primero el SS.mo Sacram.to y despues con la mesma solemnidad la Ymagen maravillosa de la
Madre de pecadores, donde la Capilla dela Catedral canta con todo genero de voces e instrumentos la salve
y letania desta Sr.ª, a ~q despues se sigue una platica o sermon, en ~q se persuade a todos los presentes
no menos la frequente comunion, ~q el afecto tierno a la ~q es ñro amparo y protecion....” In: Manuscrito da
Coleção de Angelis. Jesuítas e Bandeirantes no Itatim (1596- 1760) . Introdução, notas e glossário por
Jaime Cortesão. R.J.: Biblioteca Nacional: Divisão de obras raras e publicações, v.II, 1952, p.156-157.
18
Na relação do Estado em que se encontravam as reduções do Paraná e Uruguai, no ano de 1640; são
descritas as igrejas das red. de N.ª S.ª de Loreto e de S. Ignácio del Guayrá como entre as melhores da
Província do Paraguay. Com três naves, e retábulos bem trabalhados, púlpitos, sacristia, batistério,
confessionários e coro, tudo muito bem feito e traçado, de cedro ,com relevos, molduras, frisos, capitéis e
colunas, elas realmente deveriam impressionar. odo esse aparato decorativo, para as igrejas européias era
comum, mas para uma região tão desprovida como a do Paraguai, era envolvente e novo. Ver: M.C.A..Op.
cit. v III, p.192-193.
114
O interior das igrejas era realmente cenográfico, com a proposta de
aguçar todos os sentidos. Pode-se, pois, avaliar o efeito dessa carga cultural e
visual sobre os catecúmenos. Se é admirável a arte religiosa latino-americana,
deve-se isso ao valor e poder da Igreja Católica, uma vez que representa o
resultado do contato processado por ela, muitas vezes, através da força e da
imposição, e outras, através da persuasão em nome da proteção que os padres
representavam para os indígenas, diante da exploração do colonizador. Apesar
de ter sido desigual e assimétrica a relação de forças, entre os elementos da
cultura européia e da cultura ancestral em contato nas reduções, na verdade,
não ocorreu uma anulação da segunda em favor da primeira. Daí concordarmos
com a tese de Theodoro (1995), sobre a conjugação de acervos que se
produziu nas situações de contato.
Essa conjugação de acervos evidencia-se sob diversos aspectos,
podendo ser assim exemplificada: o domínio técnico foi oferecido pelos jesuítas;
os elementos decorativos foram retirados da vida da colônia; o barroco europeu,
antes imitado, nas suas formas redondas e suas volutas, foi assumindo, na
produção jesuítico-guarani formas mais frontalistas, retas, próprias de culturas
que se mantêm presas à tradição, pois os acervos nativos têm essa
característica.
115
A ruptura de certos padrões ancestrais, na estatuária missioneira,
define uma realidade estilística nova gerada pelo propósito de evangelizar os
nativos. Essa mescla de elementos nativos na escultura ou na decoração dos
retábulos, tendo por base os modelos europeus, resultou numa produção
peculiar. Esas varibles estuvieron determinados por la mentalidad del artista y
su sociedad, por las influências recibidas y sobre todo por la evolución de su
experiencia y de los estilos proprios que formaron verdaderas escuelas de las
misiones guaraníes (SUSTERSIC,1999:188).
116
CAPÍTULO 5 - ESTUDO DO ACERVO DO MUSEU DAS
MISSÕES E SUAS ESPECIFICIDADES
As artes servem, pelo menos tanto quanto as Literaturas, como
instrumento aos senhores das sociedades para divulgar e impor crenças
(FRANCASTEL, 1982:3). Imagens religiosas, como vimos, fora m um importante
instrumento à disposição dos jesuítas, no seu trabalho de evangelização dos
guarani aldeados nos Trinta Povos das Missões. Serviram para divulgar os
ensinamentos cristãos junto a uma população iletrada, para impor padrões
estéticos, sensibilizar e estimular devoções. Tais imagens, que inicialmente
provinham da Europa, foram, posteriormente, produzidas em oficinas, nas
próprias reduções. Neste capítulo do trabalho estaremos analisando justamente
essas peças, que consideramos como representantes do barroco jesuítico-
guarani.
Retomamos, assim, o conceito de Janice Theodoro (1995) sobre a
conjugação de acervos, lembrando as matrizes culturais da América: a cultura
indígena e as contribuições européias. Foi esse convívio intercultural que
possibilitou a produção de uma arte sacra, cujos traços vão além dos aspectos
117
formais, pois declaram a sobrevida da ancestralidade índia, ainda que mesclada
com os padrões ocidentais de representação da arte.
Entendemos que a contribuição indígena para essa produção pode ser
observada na sua própria evolução, ou seja, nas marcas dos diferentes estágios
nela reconhecíveis. Assim, num primeiro momento, na fase de aprendizagem, é
possível identificar uma imitação dos modelos europeus realizada com
perfeição. Mas, à medida que o domínio técnico foi sendo alcançado, e a
familiaridade com os instrumentos de trabalho tornando-se rotineira, a
imaginação nativa e as formas de sua cultura ancestral, sutilmente, foram sendo
expostas. Nessa fase posterior, observamos esses elementos nas vestes, nas
decorações, nas faces dos santos. Também em diversos outros traços, como na
forma de trabalhar o cabelo, o manto, na ornamentação da cabeça, nas várias
imagens encontráveis em museus, igrejas e acervos particulares. Esse
comportamento, em relação à produção das imagens sacras, configura aquilo
que definimos como uma fase de "imitação" e outra de "mestiçagem".
Sabemos que a América foi colonizada sob o signo do barroco, expresso
como manifestação da cultura dos séculos XVII e XVIII, como representação da
força e poder da Igreja Católica, que soube bem valer-se das expressões da
arte para a evangelização. No entanto, cremos ser possível observar em várias
imagens da produção artística das reduções, em especial naquelas que
118
analisamos e que constam do acervo do Museu de São Miguel, o processo de
conjugação de acervos ocorrido nas reduções jesuítico-guarani.
Reafirmamos, nesse sentido, nosso entendimento de que a arte é viés de
conhecimento do homem e seu universo. Huyghe (1998), em seu estudo sobre o
poder da imagem, reafirma a sua importância para conhecermos a história do
homem. E, ao mesmo tempo, mostra -nos como a arte está associada ao coletivo
e como ela reflete seus caracteres, testemunhando épocas desaparecidas. No
caso que aqui nos interessa, essas representações artísticas, por mais dirigidas
que tenham sido, perpassam as condições do homem nativo e as trocas
culturais operadas naquele momento. É ainda Huyghe quem afirma: A arte talvez
nos tenha deixado decifrar os seus recursos e modalidades, o poder de criação
que o homem encontra nela e o poder que nela encontramos de investigar o
homem (HUYGHE, 1998: 285).
Como fica perceptível, o valor das representações artísticas é
indiscutível, uma vez que elas nos colocam em contato direto com a realidade
vivida. Daí a importância deste estudo, tendo como objeto os testemunhos
materiais, fruto da sensibilidade nativa orientada pelos princípios catequéticos
cristãos.
119
Ballesteros (1987), referindo-se à questão dos estilos, através dos quais
costuma -se tipificar a produção artística de determinada época, esclarece sobre
a dificuldade de classificar as obras, na América, como renascentistas,
maneiristas ou neoclássicas, uma vez que esses estilos já se processavam
diferentemente na Itália, na França, na Alemanha e na Inglaterra, e mesmo na
própria Espanha, onde se manifestava forte influência do mudéjar
1
. Assim,
... a arte européia difundida na América era um
amálgama de maneiras e estilos espanhol e flamengo,
italiano e germânico, e renascentista. Os artistas indígenas
observaram, copiaram e reinterpretaram múltiplos modelos,
com ainda mais liberdade de ação na medida em que, ao
contrário dos colegas europeus, escapavam à pressão das
tradições, das escolas ou dos critérios estilísticos do Velho
Mundo... (GRUZINSKI, 2001:115).
Avaliando a mesma questão, Gruzinski questiona:
... a arte surgida de suas mãos seria apenas uma
“infinita desordem de estilos”, misturando sem pudor o
românico ao gótico, o renascente ao hispano-mourisco, o
ameríndio ao ibérico e ao flamengo? Ou, ao contrário,
expressaria sofisticadas alianças, inventadas para se
apropriar de formas dissociadas de seu ambiente histórico,
1
O termo mudéjar deriva do árabe “m udayyan”, que significa “submetido”. Os mudéjares são os
muçulmanos da Espanha que se submeteram ou permaneceram nos reinos cristãos. Artisticamente, o
mudéjar traz elementos de procedência islâmica e ocidental. A igreja da redução de Jesus, no Paraguai, por
exemplo, traz em suas portas da entrada principal, elementos mudéjar, que são os arcos trilobados.
120
tão invasoras e desenraizadas como as pessoas que se
instalaram na América? Como se operou a mistura, e com
que fins? (GRUZINSKI,2001:114-115).
Na América, em contato com novas tradições, os estilos europeus viram
novas peculiaridades se agregarem. Para respaldarmos nosso estudo, tomando
em conta essas interrogações, retomamos Wölfflin (2001), com sua teoria sobre
como a evolução da forma, que fez surgirem novos estilos, e Hauser (1988), em
seu estudo sobre a importância de considerarmos também os produtores das
obras.
Mais do que a questão conceitual dos estilos, a questão formal foi
evidenciada na América espanhola. É o que diz Ballesteros (1987):
Mayor problema reviste el renacimiento en sus
distintas fases; hay obras renacentistas en América, y
muchas, si bien debe entenderse que son creaciones
ajustadas en elementos formales y léxicos decorativos a los
modelos europeos, pues el nativo americano no podía sentir
en el mismo grado que los europeos el reencuentro con el
mundo clásico, aun cuando la incorporación cultural fue un
hecho innegable, en mayor o menor medida. El ambiente
humanista que alentó las obras del renacimiento, y aun las
del manierismo, también se dio en América, pero con las
lógicas limitaciones de la ausencia de la romanización
(BALLESTEROS, 1987:7).
121
Uma vez mais queremos, dessa forma, reafirmar a originalidade do
barroco hispano-americano pela sua “própria cosmovisão e particular
sensibilidade”. O classicismo greco-romano inspirou toda uma revolução cultural
no século XV e XVI na Europa. Os artistas europeus viviam esse ambiente e já
possuíam tradição e domínio técnico, no manejo dos suportes para suas obras.
Na América espanhola, astecas, maias e incas, que esculpiam em pedra e
usavam metais, dominaram com mais facilidade as técnicas de esculpir, do que
as tribos guarani, que passaram a trabalhar a madeira e a pedra, quando do
contato com o jesuíta. Para elucidar, valemo-nos novamente do autor
supracitado:
La fuente primigenia de la Historia del Arte es la
propria obra de arte, y a ella es preciso remiterse para
analizar las formas que posee y el contenido que encierran
como testimonio de la Historia, de creencias y
sensibilidades. No obstante, el examen de las diferentes
piezas nos remite a documentos que es preciso conocer, a
las llamadas fuentes literarias, y en muchos casos a la
utilización de estampas de libros y grabados europeus no
hispanos. Sería absurdo negar a estas alturas que en el arte
hispanoamericano hay notables influjos de procedencia
italianas, flamencas, francesas y germánicas. No sólo por
los artistas de estas nacionalidades que trabajaron en el
continente (los conocidos manieristas que fundaran la
escuela pictórica de Lima, los flamencos de Quito o los
jesuítas bávaros y bohemios en los países del Cono Sur),
sino por todo este tráfego de grabados que hoy se conocen
bastante bien y que pusieron al alcance de los artistas
multitud de plantas, decoraciones, composiciones para
esculturas, pinturas, etc. (BALLESTEROS, 1987: 8).
122
Assim, mesmo reconhecendo a importância dos tratados de arte e
arquitetura de Vignola e Palladio, que influenciaram consideravelmente a
arquitetura colonial hispano-americana, entendemos que eles não foram
definitivos em sua aplicação. Foram importantes, mas há que considerar o
aporte indígena, sua sensibilidade, seu senso estético, a aplicação de cores e
dourados que, no final, não eram simplesmente transposições formais.
Quanto ao estilo dos templos religiosos, sabemos que na Mesoamérica,
nos primeiros anos da colonização, suas construções se basearam em modelos
europeus. Essa arquitetura religiosa, aos moldes europeus, não obedecia ao
exato estilo do momento, na Europa. A influência do gótico e do mudéjar
predominaram nos primeiros anos da colonização. Só posteriormente é que vão
incorporando-se às formas renascentistas e depois às barrocas. Concluimos,
pois, que não existiu um estilo puro. É essa também a posição de Ballesteros
(1987):
Ni el gótico de límpias estructuras y programas
iconográficos ni mucho menos el renacimiento con los
precisos cánones de sus órdenes clásicos tuvieron
aplicaciones estrictas. Es cierto que la época en que se
erigieron estos edificios coincide cronológicamente con el
renacimiento en Europa, pero en América sobre todo en
las zonas de evangelización , las condiciones culturales y
aun las sociológicas no eran apropriadas para la total
incorporación de las formas renacientes, salvo contatos
ejemplos y circunscritos a portadas o capillas de indios, etc.,
pero no en conjunto. Todo ocurrió de modo que se
123
adaptaron, con cierto ecleticismo y aires populares, diversas
maneras estéticas, en especial las que podían ser
expresivas de la cristianización y segura posesión del
territorio (BALLESTEROS, 1987 : 37).
A estética renascentista buscou a reprodução da realidade e o
equilíbrio da representação. Afora isso, o pensamento renascentista europeu
procurou fazer da América colonial um novo mundo, onde a imitação daria
sustentação ao poder.
Aos poucos o Renascimento chegou à nova Espanha, através de livros,
gravuras e, especialmente, por arquitetos e escultores da Península Ibérica. Os
primeiros cronistas tiveram a preocupação de registrar o novo mundo como uma
cópia da Europa, segundo o pensamento renascentista. Contudo, a decoração
incorporou elementos da mitologia, das lendas, da flora e da fauna locais,
estabelecendo um processo de mestiçagem artística. O próprio trabalho de
administrar a mão-de-obra das construções das igrejas, dos colégios e edifícios
públicos, constituía um “sistema de comunicação intercultural”
2
. O mestre
europeu orientava e ensinava as novas tecnologias de construção aos artesãos
nativos, aos construtores e escultores, enfim, a todos os obreiros incumbidos da
2
Janice Theodoro (1999) aborda a estética renascentista e barroca aplicada à América colonial,
ressaltando a questão da intercomunicação e da “aparência” , no sentido de “parecer” que
deveriam ter as novas cidades.
124
realização dos projetos das novas cidades. Mas eles, sem dúvida,
acrescentaram elementos da sua própria experiência e cultura.
Foi no século XVII que a assimilação das formas locais de arquitetura e
escultura, aliada à sensibilidade do artesão indígena, passaram a produzir um
outro estilo, o barroco mestiço. A conjugação de acervos culturais nativos e
europeus representou, ao mesmo tempo, o poder do colonizador e a
sobrevivência da cultura ancestral. O indígena, ao prestar serviços na
construção das novas cidades, estava também garantindo sua manutenção e
sobrevida. O seu trabalho era imprescindível à colonização. Exemplo de
miscigenação das formas locais, na arquitetura, encontramos na decoração dos
frisos do altar, na igreja da redução de Trinidad, que representa um anjo
tocando maraca, que é um instrumento feito com planta americana. Portadas e
capitéis também foram decorados com flores e frutos do local. Assim, a
mestiçagem artística está presente nos testemunhos materiais .
No intento de analisar o processo de mestiçagem, na produção artística
jesuítico-guarani, utilizaremos como registros as obras encontradas no Museu
das Missões, no município de São Miguel das Missões, no RS. O referido museu
situa-se junto aos remanescentes do povoado do mesmo nome, fundado em
1687, em frente à igreja da antiga redução de São Miguel, junto à praça. O
prédio do museu foi projetado por Lúcio Costa e inspirado nas casas indígenas
125
das antigas reduções. Hoje, ele exibe o maior acervo público do barroco
jesuítico-guarani dos séculos XVII e XVIII, no Brasil.
O projeto de Lúcio Costa foi executado pelo arquiteto Lucas Mayerhofer
que, na época, era também responsável pela consolidação e restauração da
igreja da redução de São Miguel. Costa, ao realizar viagem para estudar as
possibilidades da construção do museu, escreveu em um relatório, em 1937:
O museu deve ser simples abrigo para as peças que,
todas de regular tamanho, muito lucrarão assim em contato
com os demais vestígios. (...) ocupando a construção, de
preferência, um dos extremos da antiga praça, para servir
de ponto de referência e dar uma idéia melhor de suas
dimensões. Conviria mesmo, aproveitando-se o material das
próprias ruínas e os esplêndidos consolos de madeira do
antigo colégio de São Luiz, reconstruir algumas “travées” do
antigo passeio alpendrado que se desenvolvia ao longo das
casas.
3
Criado em 1940, a construção do museu inspirou-se nas casas
indígenas. O tipo de telhado obedeceu a mesma forma dessas casas, com o uso
de telhas de barro. Nos avarandados, houve aproveitamento de material do
colégio da redução de São Luiz Gonzaga. Grandes portas de vidro conferem um
traço de modernidade ao ambiente rústico, ao mesmo tempo em que houve a
3
Lúcio Costa (1937) In: VIEIRA, Mabel e COUTINHO, Maria Inês. Inventário da Imaginária
Missioneira. Porto Alegre: IPHAN e Comissão 300 Anos, 1993, p.11.
N. Sa. da Conceição (1,22 m)
São José com Menino (1,11 m)
126
intenção de integrar as imagens ao espaço externo. Com o passar dos anos,
evidenciou-se que, devido às condições climáticas de invernos rigorosos e
úmidos e verões extremamente quentes, essa construção não é o ambiente
ideal para a conservação das peças.
Na época da sua criação, o museu contava com apenas três imagens.
Quando da realização do inventário da Imaginária Missioneira, pelo IPHAN e
Comissão 300 Anos, concluído em 1993, já contava com 94 peças catalogadas,
abrigando esculturas com características bem européias e outras marcadamente
nativas. As primeiras trazem a influência de escultores italianos, como Bernini,
e espanhóis, como Martínez Montañés, Alonso Cano e José de Mora.
Tais influências são claramente percebidas nas imagens de Nossa
Senhora da Conceição (altura 1,22m), de São Miguel Arcanjo
4
(altura 1,16m), e
de São José com o Menino (altura 1,11). O tratamento que o escultor deu às
roupas, ao cabelo, aos traços do rosto, enfim, a movimentação dada a cada
imagem nesse espaço lembra as figuras dos artistas citados.
Por outro lado, há algumas peças que apresentam sinais perceptíveis
da cultura indígena. São formas marcadas pelo geometrismo, característico da
4
Essa imagem já havia sido catalogada em inventário preliminar, como Arcanjo Gabriel.
São Miguel Arcanjo (1,16 m)
127
cestaria, da cerâmica e da pintura corporal. Realizadas com maior liberdade e
menor influência direta do jesuíta, são bastante geometrizadas e trazem
decorações do ambiente nativo.
A partir de constatações desta natureza, queremos evidenciar os
diferentes momentos da produção iconográfica do museu das Missões, bem
como avaliar as intercomunicações que ocorreram no processo de execução
dessas imagens. Consideraremos a justaposição de culturas diferentes que
permitiram sintetizar, nas imagens religiosas - tema de nosso trabalho - a mescla
que surgiu da interpenetração de culturas e de acervos, nesse caso já
fragmentados, dos povos em presença. Valemo-nos, para tanto, das
considerações do próprio Gruzinski (2001):
O choque da conquista obrigou os grupos ali
presentes a se adaptarem a universos fragmentados e
fraturados, a viverem situações precárias, instáveis e
imprevisíveis, a se contentarem com intercâmbios quase
sempre rudimentares. Essas características marcaram
fortemente as condições em que se desenvolveram as
mestiçagens da América espanhola, criando, em todos os
sentidos da palavra, um ambiente caótico, sensível à menor
perturbação (GRUZINSKI, 2001:92).
O processo a que se refere o autor foi a ocidentalização proposta pelos
jesuítas, dentro do espaço reducional, promovendo uma cultura voltada para o
sagrado, o que estava em sintonia com o "modo de ser guarani," segundo
128
Bartomeu Meliá: La reducción, sin embargo, no pretendía ser una organización
económica o una protección política. Para los jesuitas era decididamente una
misión y una doctrina que llama a conversión (MELIÁ,1986:176). Havia, contudo,
que se proceder a uma captura do sagrado,
5
no sentido de orientá-lo para a
"verdadeira religião".
Nesse contexto, as igrejas foram o centro de todas as atenções, a
principal edificação dos povoados. Tudo o que se produzia nas oficinas de
escultura, de pintura e de instrumentos musicais era para o embelezamento dos
templos sagrados, com o objetivo de suscitar a admiração e o encantamento
daqueles a quem os missionários desejavam cristianizar.
5
Valemo-nos aqui de um conceito proposto por Duverger ao estudar a ação missionária
franciscana no México. Segundo o autor, o empenho dos franciscanos em compreender “no
detalhe” as estruturas do pensamento indígena relacionava-se ao seu intento de utilizar tal
conhecimento para adaptar a mensagem cristã ao seu público. “Los frailes saben bien que lo
sagrado no se decreta y que el catolicismo no tiene oportunidade de imponerse más que si se
inserta en el sentimiento religioso preexistente (...)”. Pretendiam, pois, os franciscanos, não
modificar as estruturas do pensamento dos índios, mas sim substituir os falsos deuses pelo
verdadeiro. DUVERGER, Christian. La conversión de los indios de la Nueva España. Con el texto
de los Coloquios de los Doce de Bernardino de Sahagún (1564). México: Fondo de Cultura
Económica, 1993.
129
5.1 As oficinas espaço de produção de arte
As peças de que se trata aqui, foram elaboradas em um espaço próprio
para esta atividade, nas reduções. São as "oficinas", presentes em cada um dos
povoados jesuítico-guarani.
No início da criação de cada povo, os ateliês funcionavam
provisoriamente. Após a construção da igreja, foram organizados no pátio
interno, próximos à casa dos padres. Sua instalação deve -se à necessidade de
ornamentar a igreja da redução e ao fato de os jesuítas observarem que os
nativos tinham grande habilidade manual, além de demonstrarem capacidade
para aprender novas técnicas. Os ateliês eram centros econômicos,
administrativos e socialmente autônomos, porém ligados diretamente aos
padres.
Quando nos referimos à independência dos ateliês, isso significa que,
nas cidades, eles muitas vezes eram ligados à municipalidade, e os próprios
administradores dos ayuntamientos
6
solicitavam a sua instalação. Nas reduções,
eram subordinados aos padres, prestando serviços para a comunidade quando
solicitados.
6
Cabildos ou ayuntamientos eram os organismos de poder municipal, dentro do regime
administrativo castelhano, na América.
130
Os espaços de produção gozavam de prestígio e independência.
Prestígio, porque o artesão tinha algo mais, que era a habilidade de transformar
ilustrações em esculturas ou pinturas, de passar do risco arquitetônico para o
volume, para o espaço real, além de cunhar, em seus trabalhos, a expressão da
fé e do amor de Deus para com seus filhos.
Nas cidades da América colonial, como México, Quito e Lima os
grêmios, que eram organizações de trabalho artesanal, atuavam com
independência, em lojas estabelecidas nas cidades. Já no espaço reducional, a
produção era destinada à decoração das igrejas, mas sabe-se também que
muitas encomendas de imagens, oratórios e retábulos eram recebidas das
cidades coloniais e até enviadas à Europa
7
. O comércio de imagens, das
reduções para as cidades, tinha ainda a finalidade de prover fundos para o
pagamento de impostos à Coroa espanhola. Os ateliês dos povoados recebiam
encomendas diretas de vários objetos artísticos (retábulos, pinturas e esculturas)
de cidades como: Asunción, Corrientes, Santa Fé e Buenos Aires (GUTIERREZ,
1995:74). Este circuito de comércio regional foi muito significativo em termos
7
Gutiérrez (1995) salienta que “...uno de los casos interesantes de organización de un circuito
comercial de obras de arte, pueda ser el que montarían los jesuítas para la producción de sus
talleres en las misiones de guaraníes. En efecto, los religiosos para asegurar la liberación del
tributo fiscal de los indios, que los hubiera sometido al sistema de encomienda, organizaron una
red de venta de sus productos a través de bocas de expendio y comercialización com
“Procuradurías de Misiones” en sus colegios urbanos”.
(GUTIERREZ,1995:74). Ver ainda sobre outros aspectos da produção, pp.74-76.
131
econômicos, assegurando às oficinas de arte dos povoados uma produção
regular e intensa. Josefina Plá (1975) afirma: pueden calcularse en 4.000 las
imágenes trabajadas en los talleres misioneros; pero las imágens sólo
representan una parte si bien la más delicada o laboriosa de la ingente obra
total (PLÁ, 1975:79).
As oficinas hispano-americanas funcionavam como uma corporação
gremial, aos moldes das antigas corporações medievais.
8
Assim, o trabalho de
carpintaria, de entalhe, de pintura, etc, era realizado por artesãos que
participavam desse tipo de estrutura organizacional situada nas áreas urbanas.
El gremio nacía de la necesidad de organización, de asegurar la calidad y
además proteger socialmente al artesano (GUTIERREZ, 1995:25). Nesse
modelo de produção artesanal, o conhecimento, muitas vezes empírico, se
restringia ao âmbito familiar. Mas, na segunda metade do século XVI, o trabalho
do entalhador, do pintor, do dourador, enfim, do artesão, enfim, começou a exigir
maiores requisitos profissionais, passando a aprendizagem por vários estágios e
sujeitos a uma hierarquia (aprendiz, oficial, mestre). Havia uma série de provas
8
Ver: GUTIERREZ, Ramón. Los gremios y academías en la producción. In: GUTIERREZ, Ramón
(coord.). Pintura, escultura y Artes útiles en Iberoamérica, 1500-1825.Madrid, 1995, p. 25-49.
132
a serem vencidas para o artista chegar à estabilidade econômica e ter prestígio
profissional.
9
Sabe-se que as práticas de trabalho vigentes entre os guarani - bem
como os valores a elas relacionados - eram distintos daqueles típicos das
sociedades ocidentais da época. Foi uma vitória para os padres conseguir
estabelecer horários, por exemplo, para assistir à missa, ouvir a catequese, ir à
escola, bem como para trabalhar nas oficinas em determinadas horas. Isso foi
conseguido por meio de tratamento diferenciado para os artesãos, que eram
considerados “nobres” perante os demais. Era uma honra ter tal ofício. Nesse
sentido, os jesuítas valorizavam não só os talentos naturais dos índios, mas a
pessoa do artesão, pois ele com seu trabalho estava contribuindo, também, para
a eficácia da catequese. Haubert (1990), já afirmava que: ...o artesanato é
considerado uma espécie de nobreza; dentro dessa elite, são, no entanto, as
aptidões pessoais que regem a especialização. (HAUBERT,1990:262). Kern
(1982), também esclarece sobre a existência de uma “elite guarani”, nos
povoados missioneiros. Esta era formada por índios que demonstrassem talento,
habilidade e deveriam ser praticantes de valores cristãos (KERN, 1982:53). O
escultor era merecedor de distinção, pois ele executava imagens dos santos,
9
As diversas atividades artesanais (prateiro, pintor, ferreiro, etc.) demandavam tempos
diferenciados para que um indivíduo pudesse firmar-se na categoria de oficial e, mais tarde,
tornar-se mestre.
133
muitas vezes, em tamanho natural passando a sensação de estar na presença
viva dos mesmos. Aqui fica evidente a ligação do artesão com a produção de
bens (materiais) sagrados. Ele era visto como alguém que manejava:
las cosas sagradas; por sus manos pasaban los
rudos materiales para convertirse en símbolos sagrados; su
labor así investía peculiar, implícito carisma. [...] Esta actitud
fué favorecida, repetimos, por los Padres como recurso
pedagógico; y no sería aventurado suponer que la
insinuación de esa dignidad tuvo parte importante en la
vocación y ulterior formación del artesano (PLÁ, 1975:78).
Já se disse que a conquista das almas no novo mundo fez-se “pela
palavra, pela escola, mas também pelo gesto, pelo som e pela imagem”
10
.
Oficinas dirigidas por religiosos formavam pintores, escultores e copistas que
reproduziam telas e gravuras trazidas da Europa. Saíam artífices tão hábeis
dessas oficinas que chegou a criar-se certa animosidade por parte dos
espanhóis, pois, segundo Gruzinski, o franciscano Gerónimo Mendieta, chegou
a afirmar que:
quando os artesãos acabavam de chegar da
Espanha, estavam convencidos de que eram os únicos da
profissão que venderiam e ganhariam o que quisessem,
mas os índios roubavam imediatamente sua especialidade,
graças à vivacidade de seu espírito e à astúcia que
empregavam para a ela chegar (BERNARD & GRUZINSKI,
1997:126).
10
BERNARD, Carmen e GRUZINSKI, Serge. História do Novo Mundo: Da Descoberta à
Conquista, uma Experiência Européia, 1492-1550. São Paulo: EDUSP,1997, p.124.
134
Sobre a qualidade que os guarani emprestavam à produção de sua
responsabilidade, escreveu o padre Diego Francisco de Altamirano, na Carta
Ânua de 1653/1654:
Diestros ya los Indios en las artes ~q con primor
exercitan los artifices de Europa, a su imitacion formaron en
las rreducciones entre otras esculturas una dela sereniss.ª
Virgen Maria, tal ~q a no conocer las manos, ~q le dieron la
ultima perfccion, Juzgaramos ser obra de los Maestros de
España, y no de nuevos catholicos, ~q pocos años antes ni
el nombre de Maria SS.mª conocian (M.C.A. Op cit,
1952:183).
Como as demais atividades artesanais, a alfaiataria, a carpintaria e a
sapataria, por exemplo, também funcionavam de acordo com princípios gremiais,
aos moldes das antigas corporações medievais, tanto na organização da
aprendizagem, quanto na própria produção e controle do mercado
11
. Tendo
como base a estrutura européia, estabeleceu-se, uma hierarquia de mestres,
companheiros, aprendizes e inspetores. Havia, nas oficinas, uma série de provas
práticas a serem vencidas, para o artesão angariar prestígio e chegar a certa
estabilidade econômica. Segundo Gutierrez, o ensino era essencialmente
prático, com a finalidade de forjar no un cuerpo teórico sobre el arte, sino un
ejercicio que significara la alternativa de ganarse la vida com su propria tarea.
12
11
CARDOSO, Ciro F. O trabalho na América Latina Colonial. São Paulo: Ática, 1987, p. 66.
12
Op cit, 1995, p. 33.
135
Havia, também, dentro do artesanato, algumas especialidades, de maior
prestígio, como as de tecelões e ferreiros, nas quais só os brancos, e às vezes,
os mestiços, eram aceitos. Em outras, menos apreciadas como as de fabricante
de artigos de couro, pedreiros e marceneiros, admitiam-se índios e negros,
assim como no conjunto daqueles ofícios menores que exigiam grande esforço
físico. Atenção especial era dada aos trabalhadores que lidavam com o ouro e a
prata, matéria-prima que interessava à Real Fazenda.
Nas reduções, esse trabalho se deu de modo relativamente diferente.
Era o jesuíta que dirigia a produção artística, e bastava o interesse e a
habilidade do indígena para que ele pudesse fazer parte da oficina. Trabalhava
nas oficinas quem demonstrasse destreza e gosto para tal. No início da
formação deste espaço, o padre era indispensável no trabalho, porque era
necessário ensinar a técnica e familiarizar os índios com as novas ferramentas,
bem como orientá-los para uma nova percepção: passar do plano bidimensional
(desenhos e projetos) para o plano tridimensional (escultura, cantaria e objetos
de uso e de decoração para as igrejas). Com o tempo e com a formação de
grupos de artesãos, os próprios índios, aqueles com maior habilidade e
conhecimento, instruíam os demais.
13
13
SUSTERSIC cita, neste particular, uma carta do Bispo de Buenos Aires, Antonio da Azcona Imberto, ao
Provincial jesuíta P. Tomás Donvidas, em janeiro de 1677, solicitando ajuda às missões para que os
padres enviassem dois índios para resolver o problema do teto da Catedral que estava caindo. “[...] por
136
Segundo Josefina Plá, muitas obras foram trabalhadas em conjunto. A
confecção da cabeça, das mãos, e a determinação de canônes (medida tomada
como base para a realização das imagens), ficava sob a responsabilidade do
mestre, enquanto que as outras partes da mesma imagem poderiam ser
entalhada por diferentes artesãos, de acordo com sua habilidade. Nota-se
também que as imagens apresentam diferentes proporções e medidas, e
algumas são mais esguias, enquanto outras são mais atarracadas. Também não
havia preocupação em assinar as obras. (PLÁ, 1975:75)
Esse era um comportamento comum nas oficinas de arte, orientadas
por um especialista, mestre e assistido pelos aprendizes. Os padres preparavam
os índios que demonstravam maior habilidade e inclinação para o trabalho
artístico e esses passavam a orientar os novos entalhadores.
As mulheres não participavam das oficinas, mas realizavam trabalhos
de selecionar a lã, tingir e tecer roupas, tapetes, cobertas e faziam cerâmicas
para uso doméstico. Praticavam um artesanato que era também comercializado
falta de inteligência de los artífices y mala calidad de los materiales [...] y así vuelo los ojos e sus
Reducciones donde me dicen es grande la abundancia de madera de todas calidades, y que sobrea la
gente así para cortarlos como para labrarlas porque para todo hay indios inteligentes y maestros”. “El
obispo propone se confeccionen los planos y se labre todo el techo en las misiones y que solo vengan:”
“[...] dos indios oficiales los más inteligentes para que ayudena conocer las maderas y medidas y armar la
obra que trahen conforme a las trazas que esto es cosa de breves días y todo se les satisfará
puntualmente.” Ver: SUSTERSIC, Bozidar Darko. Templos Jesuíticos-Guaraníes. Buenos Aires : Facultad
de Filosofia y Letras UBA, 1999, p.48-49.
137
na Colônia. O gosto pelos objetos artísticos foi desenvolvido pelos jesuítas que
traziam da Europa técnicas “modernas” e diferentes para incrementar a vida dos
povoados. E assim, também, ocupavam as mulheres nessa nobre tarefa.
Furlong (1962) considera que houve grande influência da escultura
italiana, espanhola e alemã, trazida pelos jesuítas de seus países de origem,
mas houve também muitos aprendizes americanos e é possível que os jesuítas
dessem, em algumas peças, os últimos retoques da produção, acentuando suas
preferências por determinados estilos. (FURLONG, 1962:496)
Os materiais usados nos trabalhos artesanais eram encontrados na
própria região, como o urunday, que é uma árvore de excelente madeira para
construção de barcos e móveis, ou o quebracho (jabi), também uma árvore
tropical. Para as imagens que deveriam ser entalhadas, policromadas e
douradas, usavam o cedro e o igary. Os corantes, empregados nos retábulos e
imagens, eram extraídos de plantas ou óxidos locais com a cor ocre. Da erva-
mate, fazia-se o verde, do urucum, o vermelho, do yrybu retymá, o negro.
A pedra foi pouco usada na escultura. Para as que eram colocadas em
nichos na parte externa dos templos e na cantaria, usava-se o asperão ou pedra
grês. Já o granito e o mármore foram usados em pequena quantidade na
redução de Santa Maria de Fé. (PLÁ, 1975:87). Não havia grande variedade de
138
materiais disponíveis e preparados para as tarefas exigidas. E mesmo as tintas
preparadas nas oficinas das reduções tinham seus segredos para se manterem
vivas com o passar do tempo. Na antiga Redução de Santa Rosa e no Museu
Santa Maria de Fé, no Paraguai, encontramos, ainda hoje retábulos e imagens
com as cores originais muito vivas e conservadas. Eles permitem-nos
perceber/avaliar, com maior clareza, a preciosidade dessa produção.
As telas para as pinturas eram feitas de algodão produzido no local, só
algumas poucas, de linho, vinham da Europa. Também se usava a madeira
recoberta com algodão e uma camada de gesso com cola, processo semelhante
ao que até hoje é utilizado. Da pintura em afresco ainda se conserva o exemplar
da capela de Nossa Senhora do Loreto, em Santa Rosa, Paraguai. Numa de
suas paredes, há uma imagem original que representa o patrono dos
marceneiros São José. A pintura retrata o Santo e dois anjos trabalhando em
uma oficina, provavelmente de escultura, porque nela estão representados os
instrumentos desse ofício. É interessante observar a mescla de elementos
decorativos desse afresco. Reportando-nos aos estudos de Gruzinski (2001),
sobre a mestiçagem cultural, essa iconografia traz, ao mesmo tempo,
representações da cultura clássica greco -romana e da cultura indígena. Assim,
as pilastras de forma retangular encimadas por capitéis coríntios que dividem o
espaço da oficina onde se encontra São José lembram ilustrações européias; e
os dois anjos trabalhando, revelam feições notoriamente nativas. Trata-se de
São José ( Pintura, Red. Santa Rosa Paraguai)
139
uma pintura que já esboça uma perspectiva, segundo as leis da geometria, mas
não a efetiva, o que denota primitivismo, se compararmos com o barroco
europeu. Evidencia-se, dessa forma aquilo que qualificamos como processo de
conjugação de acervos culturais, que marcou a arte da América colonial.
Nessa mesma capela, encontramos outras pinturas executadas por
diferentes artesãos. Uma delas, que retrata a lenda da casa de Nazaré e foi
pintada posteriormente por um índio, (FURLONG,1962:524) é um afresco
esquemático lembrando desenhos infantis, enquanto o anjo que carrega a
capela é mais elaborado. A diferença de qualidade e traçado é bastante
acentuada se compararmos com um terceiro afresco, representado por um grupo
de anjos que se movimenta em torno de uma representação do Espírito Santo e
outro, em torno de São Miguel. O conjunto demonstra que foi executado por
mãos hábeis no uso do pincel. Os rostos morenos, meigos, são muito
expressivos, e o olhar das figuras levam o espectador aos dois focos da
composição mencionada acima. Trata-se de uma pintura de profunda
religiosidade, evidenciando mais uma das estratégias de evangelização.
Se as tintas, a madeira e a pedra eram encontradas no local alguns
pigmentos em pó, as folhas douradas e prateadas, e os instrumentos para
esculpir vinham da Europa. As oficinas, além de munidas dessas ferramentas,
possuíam várias gravuras e livros com tratados de arte e arquitetura. Cabe aqui
Lenda da Casa de Nazaré (Pintura Red. Santa Rosa Paraguai
Pintura (afres co) Red. Santa Rosa Paraguai
140
o comentário de Plá a respeito do espírito de organização e disciplina do jesuíta:
Sin ser arquitetos, levantan muy lindos edifícios. Un ejemplo de estas
estupendas dotes de organización fue el Padre Florián Paucke (PLÁ,1975:65).
Portanto, considerando o aparato que existia nos ateliês, e o próprio espírito
disciplinador dos jesuítas, concluí-se que o aprendizado das artes não era
realizado de modo empírico já que os nativos executavam seus trabalhos com
orientação técnica, tinham ilustrações e livros para consulta. A orientação técnica
era necessária, por exemplo, para a produção de imagens ocadas, nas figuras
articuladas e nas peças onde se acoplava a cabeça, as mãos e os pés, que
eram laboriosamente ajustados.
Os modelos vindos da Europa eram gravuras, telas e algumas imagens
de barro ou cera. Josefina Plá nos dá uma síntese do uso das gravuras:
Se realizaron cuadros sobre grabados; esculturas
sobre pinturas y estampas. Esto explica, como se indicó,
algunas de las características del arte misionero. Também
debieron de realizarse en cierta escala y a cierto nivel,
copias de copias, es decir, copias de obras ya realizadas
localmente, o copias secundarias. Y no descartamos, en lo
que a escultura se refiere, los casos en que se importaron
cabezas y manos de talleres europeos, acoplándolas a
cuerpos de hechura local (PLÁ, 1975:86).
O uso de gravuras vindas de diversos países era comum em toda a
América Colonial. Era preciso munir os ateliês de livros e gravuras religiosas
Detalhe do afresco (red. de Sa Rosa, Paraguai)
141
para a confecção de imagens que tinham por objetivo explicitar e divulgar
mensagens cristãs.
Exemplos disso são as inúmeras imagens de Nossa Senhora da
Conceição, reverenciada em todas as reduções, com procissões e especiais
homenagens. Sobre esse fato , na Carta Ânua de 1635, encontramos:
Las fiestas de n~ra S.rª son muy celebradas en esta
reduc.on por tener en ella la milagrosa ymagen. [...] enfim
todos se esmeraron en hazer servicios a esta Reyna y
Señora, llamandola todos a boca llena madre, y sirviendole
con afecto de hijos, y cumpliendo con sus obligaciones,
yudandoles con fabores y gracias esta Soberana Señora
(M.C.A. v.IV, 1970:117).
Além das imagens dos santos, os índios esculpiam retábulos,
fabricavam instrumentos musicais e móveis, executavam pinturas e outros
objetos. Havia, para essas atividades, diferentes funções: de pintores,
douradores, prateiros e entalhistas. Cada povoado se especializava na
fabricação de determinados objetos. Sabemos, sobre esse particular, que a
redução de São João Batista produziu excelentes instrumentos musicais, e a de
São Nicolau foi grande centro artístico, tendo produzido retábulos e imagens
para reduções vizinhas.
Tanto na cantaria quanto nas talhas de madeira, os motivos mais
usados para a decoração foram a flor de maracujá, que simboliza a paixão de
Trabalho em Cantaria, font e D’ Água em São Miguel
142
Cristo; a palma, que tem um sentido triunfal, simbolizando a entrada de Jesus
em Jerusalém; a videira, o vinho e o cacho de uva, com freqüentes alusões na
Bíblia e nos Evangelhos, onde representam o sangue do Redentor; o girassol,
que induz a alma a seguir sempre a luz divina, a folha do cardo, símbolo da
penitência e muitos outros mais.
Contudo, devido à intervenção do indígena, ao transpor para a madeira
os moldes europeus carregados de simbologia litúrgica cristã, muitos elementos
nativos foram acrescidos. Percebe-se essa intervenção na escultura e na
cantaria, onde os guarani acrescentaram os referenciais do seu ambiente, como
a folha da alcachofra, as flores campestres e os frutos, como o apepu e o milho.
Essa mescla, manifestada na arte barroca dos Trinta Povos, Trevisan (1978)
denominou de “barroco crioulo.”
Tais figuras, antes de serem ornamentais, são simbólicas. Todo o
sistema de signos usados reafirma a catequese e alude constantemente aos
princípios da fé, principalmente pela figura do anjo, que é o testemunho das
ações pessoais. As provas de fé dos guarani cristãos, por suas ações pessoais,
eram muito valorizadas pelos religiosos que aludiam a ela, com muita freqüência,
na correspondência enviada aos seus superiores, na América (nas Províncias) e
na Europa. São os chamados "casos edificantes," que envolvem demonstrações
de piedade dos índios e prete ndem noticiar os progressos da evangelização.
143
Assim também os santos, nas igrejas e capelas, tinham sua simbologia
reafirmando os valores do cristianismo e sendo modelos de comportamento. É
o caso de Santo Isidro, que se encontrava nas capelas próximas às chácaras,
lembrando a paciência e o trabalho, uma vez que era representado como
lavrador. No Museu das Missões, encontra-se alguns exemplares da imagem
de São Isidro. Um deles denota que sua confecção provavelmente sofreu
influência das gravuras alemãs, o que se observa pela roupa simples que veste,
pelos seus fisionômicos e pela humildade que inspira.
Infelizmente os atributos que acompanhavam os santos esculpidos, tais
como lanças, palmas, coroas, e outros, feitos de metal, já não se encontram
mais nas imagens. É provavel que tenham sido retirados para serem
reaproveitados, como ocorreu com tantos outros exemplares dessa vasta
produção das oficinas que chegaram até os dias de hoje tristemente mutilados.
Raras são as esculturas que se mantêm inteiras.
5.2 Imagens, critérios e leituras
Santo Isidro (1,00 m)
144
Os critérios e posições museológicas adotados, em termos de análise
estilística, consideram três categorias no tratamento das imagens: eruditas,
mistas e primitivas.
14
No entanto deve-se salientar que tal classificação não se
apresenta necessariamente com total rigidez.
No primeiro capítulo deste trabalho, analisamos as diferentes
interpretações teóricas acerca da questão do estilo de uma obra artística,
especialmente na visão de Hauser (1988) e Wölfflin (2000). Já para a leitura
iconográfica que fizemos desse acervo, apoiamos-nos em Erwin Panofsky
(1976). Hauser (1988), como vimos, analisa a arte sob o ponto de vista do
espírito da sociedade. E essa investigação, de caráter também sociológico,
fundamenta nosso trabalho, uma vez que entendemos o Barroco como cultura
de uma época.
Na América colonial, essa cultura propiciou a evangelização dos povos
nativos e a conseqüente intervenção sobre suas tradições próprias, num
processo de contato que definimos como mestiçagem cultural. Mas não
devemos esquecer que a arte não é somente a representação social, ela
obedece a ritmos próprios e, de acordo com Wölfflin (2000), as formas fechadas
14
Este trabalho e classificação do acervo foi realizado pela 12ª Coordenação Regional do IPHAN e
Comissão 300 Anos, que proveu os recursos para esse fim . O trabalho iniciou em 1989 e foi
concluído em 1993.
145
do Renascimento aos poucos foram dando lugar às formas abertas do Barroco,
numa aceitação natural de evolução.
Assim, o escultor indígena, após o domínio técnico, foi impondo o seu
modo de ver e de expressar-se, mostrando as representações de sua cultura
ancestral. Quando observamos um retábulo numa antiga redução, perce bemos
que as colunas que o adornam costumam ser representações de seu principal
alimento que era o milho. Em outras representações, identificamos também
vários elementos da cultura indígena tradicional, como em certa imagem de São
Miguel
15
adornado por um cocar, ou a de Nossa Senhora da Conceição
16
que, no
lugar do manto e da auréola na cabeça, traz flores. Essa leitura da iconografia
está de acordo com os princípios teóricos de Panofsky (1976), uma vez que,
através do estudo da iconografia manifestada pelos atributos que as imagens
trazem, podemos identificar a época aproximada de sua produção, bem como
conhecer a sociedade onde ela estava inserida, saber de seus valores e de seu
poder.
Quanto às categorias de tratamento das esculturas, elas são tidas como
"eruditas", quando realizadas com fortes traços do barroco europeu. Esse
aspecto observamos no panejamento, com muitas volutas, nas ondulações dos
15
A imagem em questão se encontra no Museu de São Gabriel, RS.
16
A imagem em questão se encontra no Museu das Missões.
N.Sra. da Conceição (2,10 m)
146
cabelos, nas feições, no formato do rosto, nariz, boca, olhos; em proporções
harmoniosas. Podemos citar como exemplo dessa categoria, a imagem de
Nossa Senhora da Conceição com o Menino Jesus. Essa figura feminina (altura
1,22m) tem a cabeça levemente inclinada para baixo, rosto delicado e
cabelos longos e ondulados como as virgens européias. A peanha
17
segue
um modelo muito parecido com o da Imaculada Conceição
18
(1,64m), do escultor
espanhol Martínez Montañés (1629), que influenciou muitos escultores jesuítas
que passaram por Sevilha, onde se encontra seu maior acervo.
Outro exemplo é a imagem de São José com o Menino (altura 1,11m),
que pertence à sala onde está a peça acima descrita. Na iconografia cristã, São
José é representado com o Menino Jesus, exemplificando o amor paternal.
Também, junto à Maria, configura o exemplo de família que deveria ser seguido
pelo guarani:
19
família baseada em laços fraternos, numa união monogâmica,
17
A peanha serve de base para a imagem do santo. No caso do acervo do Museu dasMissões, a
maioria das imagens apresenta uma peanha lisa e arredondada. Nas imagens de N. Sª. da
Conceição, ela é decorada com anjos, lua ou serpente.
18
Esta santa missioneira, como aquela espanhola, tem a lua e a serpente a seus pés. Para o
cristianismo, a lua significa a vida, e a serpente, na iconografia cristã da Idade Média,
freqüentemente, acentua o aspecto tentador da serpente do paraíso. Algumas dessas santas
trazem doze estrelas, formando um círculo, sobre a cabeça, que significa o zelo do apostolado e
a recompensa para quem seguir seus passos. Os anjos que estão na peanha representam a
corte celestial.
19
MARTINS lembra a importância dos santos e do uso de imagens pelos católicos reformados,
mostrando a atenção que a igreja dava ao culto dos mesmos, a especial reverência aos santos
N. Sra. da Conceição
N. Sra. da Conceição - Martinez
Montañes (1629)
147
como tentavam incutir os padres aos caciques poligâmicos. São José, na relação
dos santos cristãos, também representa a boa morte
20
. E como ele teve o
privilégio de morrer na presença de Maria Santíssima e de Jesus, passou
também a ser o protetor dos moribundos. Quanto aos aspectos formais dessa
imagem, pode-se considerá-la de cunho erudito, pelo trato do cabelo, pela
ondulação das roupas e pelas proporções adotadas, nesta escultura, que se
manifesta com fortes traços do barroco europeu.
Encontramos, por outro lado, no Museu das Missões, peças com traços
europeus e a inclusão de elementos nativos na decoração. Ou, ainda, peças cujo
rosto é típico das representações do barroco europeu, mas com formas
geometrizadas nas roupas, e posição ereta. O desenho geométrico pode ser
observado em várias representações da cerâmica, da cestaria, da pintura
corporal e de outros objetos feitos pelos indígenas do sul da América, mesmo
antes do contato com o colonizador europeu. Essa característica foi a marca da
cultura nativa e, mesmo com o passar dos anos e a aprendizagem de técnicas
modernas de esculpir e pintar, trazidas pelo europeu, essas formas primitivas
permaneceram.
padroeiros das comunidades, bem como o significado de sua representação. MARTINS (1999),
op. cit., p.59-60.
20
FLECK refere-se à visão da morte, entre os guarani, como uma maneira de continuar vivo.
Não existe o medo do purgatório ou inferno conforme o sentido cristão. A morte faz parte da
N. Sra. da Conceição Alonso Cano
(1655)
148
A observação atenta revela que elas surgem nas imagens, passando
um forte sentimento da cultura ancestral. Por exemplo, a imagem de Nossa
Senhora da Conceição (1,76), que faz parte do acervo aqui considerado, é de
peculiar singularidade pelo geometrismo que o artista guarani deu ao seu
panejamento. O vestido da Virgem, com estrias e pregas retas, confirma essa
característica da arte indígena expressa pelo geometrismo. Embora a
composição esteja formada em linhas rígidas, ela sugere um leve movimento,
nada comparado, no entanto, com as linhas fluidas e movimentadas do barroco
europeu, ou com aquelas de autoria de Brasanelli, como por exemplo, na
“Pietá,” da Redução de Santa Rosa, no Paraguai, que traz todas as
características do barroco italiano. A imagem de Nossa Senhora da Conceição é
um exemplo ilustrativo dessa concepção de peça mista. Seu rosto delicado e
nariz aquilino lembram as imagens eruditas. Já seu cabelo e véu curtos são
característica das virgens missioneiras. Esse detalhe é sobressalente, quando
observamos com atenção as imagens que representam a Virgem Maria. Os
modelos europeus vestem longos mantos ou estão sem o adereço, como as de
José de Mora, Martínez Montañés e Alonso Cano. Já as missioneiras, do Museu
das Missões, como a que analisamos, têm o cabelo mais longo que o manto,
numa composição peculiar, a revelar a situação de acervos culturais conjugados.
vida. O guarani reduzido, segundo Montoya, encara a morte como uma vontade divina, “ como
libertação e condução para a vida eterna”. (FLECK, 1999:142).
São José com Menino (1,11 m)
N. Sa. da Conceição (1,76 m)
149
Essa imagem, igual à grande maioria das produzidas nas missões,
atesta o argumento de possuírem, como modelos, ilustrações e gravuras
européias, visto que o tratamento que lhes é dado na parte posterior é quase um
plano reto, sem a forma que caracteriza a escultura, isto é, ser trabalhada
igualmente nas três dimensões e em todo o seu volume. Observamos essa
peculiaridade em várias imagens. Na parte posterior, quase inexistem as formas
que complementariam a escultura como um todo. Ela não é esculpida atrás ou
seja, as linhas do vestuário, as pregas, as dobras do manto não são trabalhadas
como na parte frontal. Ao observar essas peças, tem-se a impressão de que o
artista indígena representou apenas o que viu na gravura que servia de modelo e
não o que estava escondido de seus olhos.
A imagem apresenta também uma singularidade na sua policromia. A
carnação é clara , porém o tempo marcou-a com muita sujidade. Após sua
restauração
21
, o amarelo suave do vestido, com flores muito primitivas, parece
grafismo infantil, pela espontaneidade do traço. Sua talha, por todos os aspectos
com que descrevemos os traços da cultura primitiva, com exceção do rosto,
confirma -a como uma peça mista.
21
Concluída em 2000.
N. Sa. da Conceição (1,76 m)
São José (de costas)
150
As talhas de linguagem consideradas primitivas, pelas suas atitudes
eretas, pela predominância do geometrismo no panejamento, pela composição
simples e despojada da abundante decoração característica do Barroco,
encontramos nas imagens de Santa Catarina e de São João Batista. As duas
esculturas citadas e as demais expostas neste espaço, definem a liberdade do
indígena com relação aos moldes europeus. Os cânones usados estão longe de
assemelharem-se às medidas clássicas européias. Pela singeleza desse
conjunto, concordamos com vários autores que já se referiram a essa produção,
como barroco jesuítico-guarani ou ainda “barroco crioulo”.
Passaremos, agora, feita esta apresentação sobre os três conjuntos
iconográficos, a analisá-los detidamente. Nossa confiança na força da imagem
como fonte legítima de conhecimento, nos anima a considerar a reflexão que
segue como a contribuição desta pesquisa. Sob essa ótica, reafirmamos nossa
crença na configuração de uma análise, como documento e representação da
sociedade jesuítico-guarani, que vai além do discurso teórico representativo e
que será feita, neste momento, explícita e prazerosamente, na observação direta
das esculturas do acervo do Museu das Missões.
As peças deste acervo formam um conjunto de noventa e quatro
imagens de diversos tamanhos e expressões. Na organização de nossa análise
pensamos que seria mais interessante dar um cunho didático à leitura formal
Detalhe, N. Sa. da Conceição
Santa Catarina
151
destas peças, destacando três conjuntos por afinidades: o primeiro, com obras
de características eruditas; o segundo, com obras onde a mestiçagem cultural é
evidente; o terceiro, enfim, composto pelas obras de cunho primitivo,
evidenciando as marcas indígenas. A reflexão segue a seguinte ordem, disposta
em grupos de três imagens: Nossa Senhora da conceição (1,22m), Santo Isidro
(1,83m), São Miguel (1,16m), Nossa Senhora da Conceição (2,10m), Nossa
Senhora da Conceição (1,76m), São José (1,92m), São João Batista (0,72m ),
São Nicolau (0,72m), São Miguel (0,38m).
As representações plásticas da Virgem Maria foram as mais usadas
para fins de catequese. Nossa Senhora da Conceição foi a mais venerada de
todas no mundo ibero-americano. Isto está patente para o caso das reduções
através do que foi registrado nas Cartas Ânuas dos jesuítas aos seus superiores.
Nelas, eles escrevem sobre a recitação do rosário, ladainhas à Nossa Senhora,
procissões, festas em sua homenagem, formações de Congregações marianas,
cantos à Mãe e Rainha, romarias e novenas em preparação aos eventos
religiosos que eram muito freqüentes.
Em sintonia com o espírito contra-reformista, a Companhia de Jesus
tomou como estandarte para a cristianização a devoção mariana, incentivando-a
em todos os momentos da vida nos povoados missioneiros. Valorizada pela
152
Contra-Reforma, a veneração à Virgem tornou-a mediatriz suprema de seus
intercessores junto a Deus.
Tal projeção e apreço fizeram de Nossa Senhora a padroeira de todos os
grupos sociais. Europeus, índios ou negros, todos tinham um altar com uma
imagem mariana específica: Nossa Senhora da Conceição, do Rosário, Virgem
de Guadalupe. Isso já não acontecia com as devoções de outros santos
católicos por serem intercessores específicos como: Santo Isidro (dos
lavradores), São João Batista (tornou-se símbolo dos justos e perseguidos), São
Nicolau (símbolo da piedade e caridade).
A natureza humana da Virgem e o fato de ser a Mãe do Salvador faziam
dela a protetora da vida e advogada junto à corte celestial. Assim, ela foi
apresentada à cultura nativa, e desta forma, ela se “manifestou” ao índio Juan
Diego no cerro Tepeyac em 1531, anunciando o restabelecimento da saúde de
seu tio e dando origem à devoção da Virgem de Guadalupe
50
.
A aparição da Virgem Maria foi a primeira percepção da mestiçagem religiosa
constatada pelos próprios padres. Este fato percebe-se através da iconografia
que caracteriza a imagem que representa uma Nossa Senhora morena
50
Conta a história que ao passar pelo cerro ele escuta uma voz que lhe chama, pedindo a construção de
um templo em homenagem a Virgem. Como prova deste milagre, em outra ocasião, a imagem de Nossa
Senhora ficou estampada sobre o avental de Juan Diego.
N. Sa. da Conceição (1,22 m)
153
estampada sobre o avental do índio, o ayate, tecido em fibra nativa. O tipo
iconográfico da Imaculada Conceição foi criado e desenvolvido pela escola de
pintura espanhola do início do século XVII. Ela é representada orando em pé, às
vezes traz as mãos juntas próximas ao peito. Os signos que a identificam na
composição da imagem são as doze estrelas e um grande manto sobre a
cabeça, a lua crescente, a cobra ou dragão, os anjos celestiais ou o globo sob
seus pés. Foi, em traços gerais, essa iconografia que se manifestou no avental
de Juan Diego. E em toda a América essa imagem repetiu-se com pequenas
variações.
Nossa Senhora da Conceição (1,22 m) que se encontra no Museu das
Missões, apresenta a maioria destes signos. Algumas variações são
encontradas dependendo do modelo em que o artista se inspirou. A peça em
questão mostra a influência da cultura espanhola de Martínez Montañés (1629) e
Alonso Cano (1655), conforme já mencionamos. Ela tem aparência frágil e
delicada, traços bem proporcionados. A estrutura natural do corpo, tanto em
altura, quanto em largura e profundidade, conformam os cânones renascentistas.
O cabelo e as vestes têm movimentos suaves em linhas diagonais que buscam
correspondência na posição dos braço que serve de apoio ao menino Jesus. É
uma das imagens mais completas, se considerarmos o estado geral do acervo
do Museu das Missões. As pequenas mutilações que existem causadas pelo
tempo e pelo abandono dos povoados até ser recolhida ao Museu não
154
prejudicaram a possibilidade de fruição estética do observador. A cor das vestes
verde-escuro e a carnação, ainda são bem visíveis, o que certifica a habilidade e
qualidade da produção dos ateliês missioneiros.
Santo Isidro (1,83 m), assim como Nossa Senhora da Conceição, tem
características formais próprias como imagens de cunho erudito e de cópia das
gravuras européias. Santo Isidro é venerado como padroeiro de Madrid desde
1622, quando foi canonizado pelo Papa Paulo V. É considerado pela Igreja como
santo lavrador, paciente e humilde. Santificou-se praticando a caridade, sofrendo
e trabalhando, com paciência, a terra. Nas gravuras, ele é representado rezando
numa ermida enquanto os anjos guiam os bois que aram o solo. Na escultura,
ele traz o gesto da humildade e da paciência. Ele foi um dos santos mais
representado em todos os povoados. Pelo modelo de paciência e trabalho, a sua
imagem merecia ser colocada pelos caminhos das chácaras, em capelas e
oratórios. Era também levado em procissão, acompanhado de rezas e cantos em
épocas de semeadura e colheita.
A imagem que escolhemos para analisar apresenta interessante pintura
nas vestes. A calça imita um tecido brocado com dourado. A capa, na parte
interna, tem peculiar pintura em listras vermelhas e douradas. É a única peça
deste acervo que ainda conserva a textura original do brocado. Seu traje não é
de um simples camponês, conforme ele é visto pela iconografia cristã. Nesta
Detalhe das vestes de Santo Isidro (1,83m)
155
peça, o escultor vestiu-o com trajes domingueiros: capa, casaco enfeitado com
inúmeros botões e cinto afivelado, botas e calças de fidalgo o que denota que
este santo poderia estar em destaque na igreja.
A imagem em tamanho natural passa a sensação de estar em frente ao
intercessor. O santo representa a força e o poder dos milagres. Seus gestos, o
braço esquerdo levantado e o direito no peito, a abertura do casaco em linhas
diagonais correspondem à composição barroca, compondo com o manto que
desce em movimento pelo braço esquerdo. Pela expressão de paciência e de
invocação a Deus e pelo olhar voltado para o céu, pode-se imaginar a força de
persuasão dessas imagens tão reais. Elas gesticulam, elas falam ao coração do
devoto. Percebe-se, através do olhar atento, que a imagem traz uma carga
sociológica, formal e iconográfica que possibilita a sua leitura dentro do barroco
latino-americano. Embora esta peça tenha todas as características eruditas, ela
não acentua o mo vimento e a ênfase cenográfica intensa do barroco europeu.
Dentro do conjunto de maior influência européia, encontramos também a
imagem de São Miguel. Ele é representado como o comandante da milícia
celeste. É um guerreiro. Na iconografia cristã, ele aparece lutando contra os
anjos do mal, precipitando-os para o inferno. Esta luta acontece, nas ilustrações,
no espaço aéreo, onde São Miguel é acompanhado por uma legião de anjos.
Outra representação é a do julgamento final: São Miguel segura, em uma das
Santo Isidro (1,83 m)
156
mãos, a balança que servirá para pesar as almas. Observa-se também, em
muitas imagens deste santo, o combate do dragão infernal. Nas esculturas
missioneiras, este dragão, parte humana e parte figura diabólica, poderia estar
representando o bandeirante paulista, inimigo e apresador de índios. Esta é a
conclusão a que cheg Nestor Torelly (1992) em um trabalho em que analisa
exaustiva e detidamente as representações iconográficas de São Miguel nas
Reduções.
A devoção a São Miguel foi renovada e reforçada após o Concílio de
Trento. Este santo simboliza o triunfo da Igreja Católica. Ele é o anjo do Senhor.
Deus conferiu-lhe poderes extraordinários para a salvação das almas, dotando-
lhe de bravura e fidelidade. A bravura é representada pelo gesto guerreiro com
que empunha a espada e pisa sobre o dragão.
Uma das imagens mais divulgadas em publicações que tratam deste
assunto é a de São Miguel (1,16 m) de cunho erudito, lembrando o barroco
europeu. A dinamicidade das linhas que definem esta peça é perceptível pelo
tratado que o escultor deu ao cabelo, à posição da cabeça, ao braço direito
erguido em posição diagonal, indicando ação, provavelmente portando uma
lança ou espada. O saiote esvoaçante compõe com a capa que traz sobre o
braço esquerdo, e a posição das pernas, como se fosse dar um passo, sugerem
que a imagem se alce para o espaço livre. As linhas que definem o corpete de
São Miguel (1,16 m)
157
guerreiro romano também combinam em diagonais com o decote e a faixa que
traz frente ao peito.
Pode-se argumentar, quando observamos sob diferentes ângulos esta
figura, que todos os elementos plásticos sugerem movimento e profundidade
características da arte barroca. Wölfflin (2000) já afirmava que: O efeito barroco
de profundidade está sempre aliado a uma multiplicidade de ângulos de visão. A
imobilização de uma estátua em um plano determinado seria considerada pelos
artistas dessa época como uma ofensa à vida (WÖLFFLIN, 2000:145). Nesse
sentido, entende-se que as imagens produzidas nos povoados missioneiros que
aparecem com panos flutuantes, composições em movimentos e gesticulantes
têm uma grande influência da escultura alemã e italiana trazidas por Antonio
Sepp e Brasanelli que trabalharam nas reduções jesuítico-Guarani de 1691 a
1728
51
.
Dentro da perspectiva da influência do barroco europeu, analisamos outra
imagem de Nossa Senhora da Conceição (2,10 m) de grandes proporções, se
comparada às demais do acervo do Museu das Missões. Lamentavelmente, ela
51
SUSTERSIC, Darko Bozidar. La Escultura en el Rio De La Plata Durante El Período Colonial. In:
GUTIÉRREZ, Ramon (Coord.) Pintura y escultura y artes útiles en Iberoamérica, 1500 1825. Madrid:
Ediciones Cátedra, 1995.
N. Sa. da Conceição (2,10 m)
158
se encontra bastante mutilada, faltando braços, parte das vestes e do anjo
52
,
dificultando, assim, o olhar sobre as formas plásticas que a compõem. Sobre a
sua representação, uso e iconografia já mencionamos anteriormente. Pretende-
se agora, identificar peculiaridades nativas mescladas à arte ocidental.
Se iniciarmos pela peanha, não have rá dúvidas de que o globo (parte da
iconografia da Nossa Senhora da Conceição) que suporta a imagem, é de cunho
primitivo. A simplicidade da forma e seu acabamento contrastam com as linhas
curvas e o movimento da cobra que a Virgem tem sob seus pés e contrasta
também com o panejamento, o anjo e o rosto da Virgem. Por ser esta uma peça
de proporções consideráveis, existem inúmeros encaixes onde se percebe a
técnica construtiva. O que chama especial atenção nesta imagem é a expressão
do rosto: a boca semi-aberta, os olhos voltados para o céu emoção e êxtase. A
comunicação de sentimentos e de vida nesta imagem impressionam. Pode-se
dizer que ela representa a “pulsação da época” barroca (WÖLFFLIN, 2000:88):
o desejo de cristianizar, de envolver e de arrebatar os nativos para o catolicismo.
O arrebatamento e o estado anímico incutidos nas imagens reproduzem este
propósito cristianizador praticado pelos jesuítas no espaço reducional. E assim
se expressa Sevcenko :
52
Embora esta figura não tem asas para identificá -la como anjo, mas em suas costas há sinais de
encaixes que sugerem a colocação das mesmas.
N. S.ª da Conceição (2,10m)
159
Toda essa intensa atmosfera emocional constitui a
matriz onde germina o ânimo barroco, para o qual a história
é interpretada como mito e o mundo é conduzido pela
intervenção divina, através da corrente da fé que engendra
o milagre. Ao contrário da cultura renascentista centrado no
intelecto, o Barroco reside na imaginação. Não é uma arte
para uma elite ilustrada, mas um empenho em ampla escala
para arrebatar coletividades, exaltando espíritos pela
miríade dos estímulos sensoriais e choques de emoções.
Nenhuma obra barroca pode ser apreciada isoladamente,
desprendida desse contexto místico que tudo abrange. Sua
natureza é essencialmente aglutinadora, envolvente e
sintética. Concebida para articular as contradições, a arte
barroca encarna sacrifício e salvação, dor e êxtase,
ignomínia e glória (SEVCENKO, 2000:66).
Podemos identificar o pensamento sobre a arte barroca de Sevcenko
(2000) nesta imagem da Conceição. Já se disse que esta peça mescla
peculiaridades nativas: o adorno de flores do ambiente local que a Virgem traz
no cabelo é um signo novo. Acrescentou-se, com esse modo de ornar o cabelo
uma nova iconografia nas imagens que tradicionalmente é representada com
doze estrelas sobre a cabeça ou manto longo ou sem esses adereços.
Sua pintura como a maioria das esculturas, apresenta o verde, o
vermelho, o ocre e o azul forte do globo. O rosto ainda conserva boa parte da
carnação. A mestiçagem cultural de que fala Gruzinski (2001) fica, portanto,
N. Sa. da Conceição (2,10 m)
160
bem identificada nesta peça, que é uma das mais expressivas do acervo do
Museus das Missões.
A imagem ma is venerada na América colonial foi, com certeza, a
Imaculada Conceição. Os inúmeros exemplares que dela encontramos e as
citações nas Cartas Ânuas nos levam a essa conclusão.
A princípio, pensávamos em trabalhar com iconografias diferentes para
identificar imagens exclusivamente com características européias, depois com
grupo de peças com elementos da cultura ancestral mesclada com a ocidental e,
por último, as de cunho primitivo pelo tratamento dado às peças. Mas fazendo
minuciosa e direta observação no acervo do Museu das Missões, as peças que
mais impressionam por suas relevantes características são as imagens de
Nossa Senhora da Conceição. Sendo assim, justifica-se a análise de mais uma
delas. Esta tem um metro e setenta e seis centímetros de altura e difere no seu
trato escultórico da que analisamos acima, porém a enquadramos no mesmo
grupo das mistas. Esta imagem foi descrita, mas é pertinente acrescentar
detalhes sobre a pintura de suas vestes: é a única peça desse conjunto que
apresenta cores claras (amarelo, branco, azul e laranja), os motivos florais da
roupa, diferem também das demais. O único elemento que mantém a influência
da cultura ocidental é o rosto. A colocação dos anjos na peanha não segue o
Detalhe das Vestes N. Sa. da Conceição (1,76 m)
161
modelo europeu. Eles estão dispostos de uma maneira mais arbitrária. É uma
das peças mais inteira. O gesto das mãos postas e a presença dos anjos
confirmam-na como modelo iconográfico de Nossa Senhora da Conceição.
Outra peça que se pode considerar mista, com expressão primitiva nas
vestes e feições européias, é a imagem de São José (1,92 m).
O culto a São José se desenvolveu a partir do século XVII, após a
Reforma Católica. Foram os carmelitas, jesuítas e franciscanos que propagaram
sua devoção, mas já no século XV, a festa a São José constava no calendário
litúrgico. Este santo, na iconografia missioneira do acervo do Museu das
Missões, é representado como um homem maduro, trazendo menino Jesus nos
braços. Na Escola de pintura Quitenha, ele é representado como marceneiro em
ambiente de trabalho junto a sua família e anjos que servem de auxiliares.
O número de representações de São José é significativo e, neste acervo,
as sua são as imagens mais completas que encontramos. Esta escultura mostra
uma linguagem de tratamento das vestes muito semelhante a da Nossa Senhora
da Conceição (1,76 m). Predomina o geometrismo no panejamento, linhas retas,
verticais, inclinadas e leves curvas expressam o estaticismo primitivo, embora
exista um leve movimento da perna para frente que sugere deslocamento.
São José (1,92 m)
162
Pela composição geral, é uma figura estática. Aqui, percebe-se que a
visão do guarani ignora as convenções do barroco ocidental como arte de
seduzir o espectador pelo ilusionismo e movimento. Pelo modo como São José
segura o menino nos braços e a composição da escultura, tem-se a impressão
de que a imagem se fecha em si, ignorando um dos princípios do barroco como
forma que avança no espaço. Porém, pode-se considerar com traços europeus o
rosto do santo e do menino Jesus.
São João Batista (0,72 m), São Nicolau (0,72 m), São Miguel (0,38) são
três imagens que, neste trabalho, fazem parte do conjunto de peças com
características primitivas, sugerindo a “liberdade” de expressão do guarani, após
alcançar o domínio técnico e, superar a fase imitativa. É possível que, com o
passar das gerações de entalhadores missioneiros, o conhecimento dos
materiais e os meios de expressão tenham sido totalmente assimilados,
possibilitando, assim, o extravasar da criatividade nativa.
A imagem de São João Batista (0,72 m) na iconografia cristã é
representada vestindo pele de ovelha. Ele é exemplo de penitência e oração por
ter passado vários anos orando no deserto. Também tornou-se símbolo dos
justos e perseguidos ao ser decapitado por determinação de Herodes. A vida
São João Batista (0,72 m)
163
simples que levou determinou o tipo de iconografia que o representa. É uma
figura singela, sem adereços. Nesta peça, ele aparece com biotipo brevilíneo ,
uma característica genética do guarani. A peanha é lisa e arredondada como a
maioria que serve de base para os demais santos. Observamos esta
peculiaridade nas peças da produção missioneira dos Sete Povos, conjunto dos
povoados fundados entre 1682 e 1707
53
em território que hoje pertence ao Rio
Grande do Sul. Já as do Paraguai são diferentes, as imagens têm a peanha
enfeitada ou, simplesmente, a figura não possui este suporte.
Aqui observamos uma mudança de expressão da forma. Elas se
apresentam mais despojadas, mais primitivas, mais estilizadas e mais
geometrizadas. O movimento e a emoção exarcebada do barroco dão lugar às
figuras estáticas com acento étnico guarani. Os cânones e as decorações das
peças também surgem da interpretação do artista indígena. Tais características
são claramente percebidas e possibilitam uma reflexão no sentido de afirmar que
estas peças brotam do sentimento e do coração do indígena que viveu no
espaço reducional.
A imagem de São Nicolau segue a mesma análise. É interessante
observar o mesmo tipo e as mesmas proporções de decoração nas vestes. Sua
53
Essas datas se referem à fundação dos Sete Povos do segundo ciclo missioneiro.
São Nicolau (0,72
m)
164
parte posterior é lisa, sem tratamento decorativo, como na imagem de São João
Batista, com exceção da mitra, que o bispo São Nicolau traz na cabeça.
No catolicismo, este santo é lembrado como pessoa de grande virtude,
zelo e caridade, espírito de oração e sacrifício. Na iconografia cristã, ele é
representado com a mitra, por ser bispo e com vestes que correspondem a sua
função religiosa. Na simplicidade dessa peça e na renovação dos detalhes
decorativos, reafirmamos a sensibilidade indígena, apontando para um novo
estilo.
Já se disse que São Miguel foi umas das iconografias religiosas
juntamente com Nossa Senhora da Conceição mais representadas nos
povoados missioneiros. A peça (0,38m), que neste momento analisamos, é
interessante por apresentar, em sua estrutura, os padrões étnicos guarani
perceptíveis na sua compleição miúda e juntas grossas. Porém, suas vestes são
de um guerreiro romano. Esse tipo de representação faz parte da iconografia do
santo. Aqui está bem caracterizado o primitivismo dessa arte. As formas retas
do vestuário, o trato dado à asa, o cabelo com leve ondulação, posição ereta
mostram o abandono dos moldes europeus e sugerem a busca de formas que
expressam o modo de ver e sentir do guarani, pela simplicidade e despojamento.
Se observarmos a docilidade do rosto e o modo como fo ram entalhadas as
São Miguel (0,38 m)
165
botas e os pés chegaremos a tal conclusão. Na peanha que serve de base à
peça não há vestígio da figura do dragão que, muitas vezes, foi identificado
como o apresador de índios. Nota-se. assim, o abandono da iconografia
européia. Considerando-a com traços da cultura primitiva guarani, ela poderia
ter sido realizada já numa fase de estabilidade, no período áureo das reduções
entre os anos de 1700, com a chegada de jesuítas italianos e de 1768, ano da
expulsão dos membros da Companhia de Jesus. Não existindo datas e nomes
gravados nas esculturas, fica difícil precisar exatamente o seu ano de
produção
54
. Contudo, as características que vão assumindo as peças analisadas
sugerem terem sido feitas, ou em tempos iniciais, de instalação das oficinas em
que cânones europeus são seguidos mais estritamente e os índios “copiavam”
modelos que lhes eram apresentados, ou em épocas posteriores. Então, elas
portam atributos que indicam uma maior liberdade de interpretação dos artesãos.
Mais familiarizados com as técnicas e materiais, os índios puderam, nesta fase
posterior, agregar expressões que lhes eram mais próprias, como vimos
demonstrando e que perfazem uma sensibilidade “mestiça”, a qual conjuga
elementos autóctones aos padrões europeus.
54
Na opinião de Sustersic (1993) as imagens que aparecem com panos esvoaçante, composições com
movimento complexos e gesticulantes provavelmente coincidem com a vinda dos escultores Ântonio
Sepp e Brasanelli, que trabalharam nos povoados de 1697 a 1728. As obras sem referência a modelos
europeus podem ter sido realizadas mais tarde, e são essas que suscitam maior interesse dos
estudiosos. Op. cit. p.275.
166
Tratam-se, por vezes, de expressões fugazes, que dificultam a sua
apreensão e delimitação mais precisa. Como bem afirmou Gruzinski:
A complexidade das mestiçagens e a desconfiança
que provocam talvez decorram desta “natureza” caprichosa
que, com freqüência, transforma seus inventores em
verdadeiros aprendizes de feiticeiros arrastados para os
caminhos mais imprevisíveis. Fenômenos sociais e
políticos, as mestiçagens manobram, na verdade, com tal
número de variáveis que confundem o jogo habitual dos
poderes e das tradições, escapolem das mãos do
historiador que as persegue ou são menosprezadas pelo
antropólogo amante de arcaísmos (...) ou de tradições
autênticas (GRUZINSKI, 2001:304).
Contudo, cremos que, ao reconhecer a sua presença mesmo que
fugidia estamos contribuindo para pensar sobre a história vivida por jesuítas e
guaranis na Província do Paraguai a partir de ângulos que permitam melhor
entendê-la.
167
CONCLUSÃO
O acervo iconográfico do Museu das Missões é uma fonte documental de
incalculável valor histórico e artístico. A história das reduções jesuítico-guarani,
que se desenvolveu no sul da América nos séculos XVII e XVIII, deixou o
testemunho da intercomunicação de conhecimentos e sensibilidades indígenas e
européias. Ele está presente, por exemplo, no conjunto iconográfico que
analisamos neste trabalho.
Sobre estes testemunhos da época e da experiência das reduções,
lançamos nosso olhar para compreender e também acrescentar uma outra
possibilidade de sentir e fruir a arte produzida nos Sete Povos. O impacto das
concepções ocidentais sobre a produção indígena de que fala Gruzinski (1994),
ajudou-nos a refletir sobre as transformações que foram ocorrendo na feitura
dessas imagens. Acrescenta o autor (2001) que, ao misturarem-se os acervos
culturais, eles se enriquecem e resultam numa quebra de linearidade que indica
a necessidade de pensá-los a partir de conceitos como mestiçagem e
hibridação. Demandam, desta forma, estudos específicos. Essa quebra de
linearidade é que mereceu atenção neste trabalho. Buscou-se, assim, avaliar o
que é identificado como peculiar da produção do barroco jesuítico-guarani. Tais
168
aspectos foram encontrados no modo como foi assimilado o barroco europeu e
na leitura que o guarani fez do acervo cultural do Ocidente.
Apoiados nas teorias de Hauser (1972, 1988), identificamos nessa arte
os objetivos que ela veiculava, em especial a "conquista espiritual", uma vez que
a produção artística era um meio de efetivar as propostas catequéticas da
Companhia de Jesus. Na sociedade colonial, as intenções de informar,
persuadir, influenciar os indígenas ficaram evidenciadas pela forma como os
jesuítas conduziram a habilidade artesanal do guarani para a execução de
objetos de cunho religioso. As aptidões naturais dos nativos para a produção da
cerâmica e da cestaria eram perceptíveis para os padres. Também a pintura
corporal para os ritos religiosos, sinalizava uma sensibilidade para a arte. Torna-
se evidente tal afirmação pela capacidade do indígena de imitar os modelos
europeus e também por agregar sua criatividade, produzindo inúmeras imagens
religiosas com a finalidade de participar da catequização.
Porém, não foi só o aspecto da utilização das expressões artísticas a
serviço da catequese que pudemos observar a partir deste trabalho. Segundo
Wölfflin (1988, 2000), a arte tem valores intrínsecos, tem "leis" que regem a
evolução interna da obra. Por isso, afirma-se que determinadas expressões se
169
esgotam
55
, quando elas já não representam o impulso da vida, num determinado
momento. Foi o que observamos neste acervo: há imagens que representam os
primeiros momentos da conquista e, assim, são marcadas pela imitação dos
modelos europeus. Como já disse Theodoro (1995), A América deveria “parecer”
com a Europa. O espírito renascentista de reproduzir um Novo Mundo na
“parecência” do Antigo durou quase um século. Afetou também
significativamente a arte. Então, as imagens que se assemelham mais às
ocidentais foram executadas neste período. Contudo, com o tempo e o domínio
técnico alcançado pelos artesãos indígenas, esta marca passou a ceder lugar ao
contributo de novos elementos que vão delineando outras características à
produção da estatuária missioneira.
Analisamos, especialmente no capítulo cinco deste trabalho, várias
imagens que poderiam estar enquadradas em grupos específicos como:
imagens de cunho genuinamente europeu; imagens de formas mestiças
(apresentando expressões européias e indígenas) e, por fim, imagens primitivas,
apontando para um novo estilo, talvez o mais livre e realizado com maior
espontaneidade.
55
Esse esgotamento fica visível no momento em que acontece uma nova linguagem na
escultura, o que fica definido como uma mescla: formas ocidentais e decorações
nativas assumem essa nova expressão.
170
Diante de tantas expressões e variedades de imagens de santos, o
ideal seria fazer um estudo individualizado. Mas, como já se disse, o estilo é
traço geral e comum expresso na obra. Portanto, a reflexão recai, neste caso,
sobre algumas obras que evidenciam os conjuntos estilísticos mencionados
acima. Para isso, o estudo da iconografia foi de fundamental importância, pois
ela trata do tema das obras. Sendo assim, procurou-se fazer uma leitura pré-
iconográfica, observando as linhas, cores, materiais usados e, em seguida, a
análise iconográfica, cruzando fontes literárias com os motivos artísticos e, por
fim, interpretando o documento como expressão de uma época.
Embora a teoria de Panofsky (1976) tenha suas lacunas, para uma
análise de conjunto, ela foi, sem dúvida, de grande valor. O complemento para
tal análise encontramos em Hauser (1988), Wölfflin (2000) e Ballesteros (1987).
Também nas concepções de Gruzinski (2001) sobre mestiçagem e nos estudos
de Theodoro (1995) que nos remetem ao que a autora chamou de conjugação
de acervos.
De acordo com a visão desses autores, não resta a menor dúvida sobre
a originalidade do Barroco hispano-americano. A religiosidade dos povos que
aqui viviam e a sua particular sensibilidade responderam com muita criatividade
ao novo tipo de vida que foram levados a assumir.
171
Se nas imagens do acervo do Museu das Missões, uma multiplicidade
de influências são observadas, como cânones românicos, góticos e
renascentistas presentes em algumas esculturas, um novo estilo surgiu pelas
soluções originais acrescidas na escultura, e pelo inovar da decoração das
imagens feitas pelo guarani. Esses aspectos estão evidentes na peça que
representa Nossa Senhora da Conceição (2,10 m). O globo que ela tem sob
seus pés e as flores que contornam a cabeça evidenciam a passagem do
barroco europeu para o primitivo. A peanha em forma de globo é simples. Não
se observa encaixes de adereços, nem expressa a sofisticação do barroco
europeu. A talha da base demonstra primitivismo e a associação de flores junto
ao cabelo, também traz essa novidade do ambiente local. Pode-se dizer que isso
é um acréscimo na iconografia de Nossa Senhora da Conceição.
Outras imagens também representam elementos ocidentais e
indígenas, e outras ainda, têm um cunho essencialmente primitivo. A retomada
desta leitura de Nossa Senhora da Conceição tem o objetivo de reforçar a
mistura dos acervos culturais que ficou evidente em nossa análise.
Além disso, a observação direta das peças e o cruzamento das fontes
historiográficas possibilitam a leitura das imagens regidas pelo frontalismo. Essa
característica própria de culturas nativas identifica-se em inúmeras
172
representações de santos, o que aponta para um novo estilo dentro do barroco
jesuítico-guarani. Tal evolução possibilitou as decorações do ambiente local e
algumas mudanças na iconografia, como imagens executadas na última fase de
vida dos povoados. Passadas algumas gerações de vida em redução, a
catequese e os preceitos cristãos já se encontravam mais sedimentados. Os
artistas já tinham o domínio dos instrumentos e gozavam de certa liberdade de
expressão, cunhando com espontaneidade a manifestação de sua cultura, agora
mesclada com a ocidental.
Já se disse que as imagens eretas e frontalistas são próprias das
culturas primitivas. Essa característica flui após o período da imitação e das
imagens mistas (expressando claramente a conjugação dos acervos). A
criatividade latente do último período manifestou-se em inúmeras esculturas. A
força dessas imagens para os indígenas, estava no que elas representavam
como símbolos religiosos. O intento evangelizador, corporificado na imagem
criada pelo nativo, concretizava-se de forma contundente. O tempo não apagou
tais vestígios e os teóricos têm procurado analisar essa questão com a
propriedade daqueles que se devotam a reconstruir os feitos humanos.
Este trabalho procurou evidenciar a força das imagens na catequização
dos índios: imagens presentes nos templos e nas procissões, acompanhando
173
preces e ladainhas, motivando festas e pedidos por intercessão divina; por
vezes até, protagonizando "milagres". Dada a importância da iconografia
religiosa, reafirmada, especialmente, pela contra -reforma, observa-se que a
produção de representações de santos, nessa época, foi fundamental para
civilizar/cristianizar. Uma imagem da Sagrada Família, era não só uma imagem,
mas o veículo de toda uma concepção de família que se queria apresentar e
valorizar frente aos Guarani. Graças a essa produção, hoje temos testemunhos
reais da história vivida nesta região nos séculos XVII e XVIII. Entende-se a
produção que resultou das oficinas dos povoados, em seu conjunto, pode ser
percebida como a expressão de um entrelaçamento cultural, mesmo que
fragmentado, conforme Theodoro (1995); uma mestiçagem de formas e de vida
que buscou sua própria expressão.
A historiografia sobre as reduções, com suas avaliações sobre questões
políticas, econômicas e sociais, respaldou nossa análise da sociedade jesuítico-
guarani e conduziu este trabalho em suas abordagens históricas. Quisemos
aqui, contribuir para uma perspectiva que contemple, também, suas expressões
culturais.
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