A imagem do cheiro: o paradoxo na publicidade de perfume [86]
torna “visível essa invisível carteira de identidade”. Quanto ao cosmético, aponta o mesmo
autor:
Dizemos de maneira equivalente cosmética ou arte da maquiagem. Os
gregos tiveram a requintada sabedoria de fundir numa mesma palavra a
ordem e o ornamento, a arte de ornar com a de ordenar. O cosmo designa a
arrumação, a harmonia e a lei, a conveniência: eis o mundo, terra e céu, mas
também a decoração, o embelezamento ou o arranjo. Nada é tão profundo
como o enfeite, nada é tão abrangente como a pele, o ornato e as dimensões
do mundo. Cósmico e cosmético, a aparência e a essência saem de uma
mesma fonte. A maquiagem iguala a ordem, e o embelezamento equivale à
lei, o mundo surge ordenado, em qualquer nível em que se considerem os
fenômenos. (2001, p.27).
Tomando como base os conceitos de cosmético mapa de ternura
11
, empregados
por Serres, abre-se também a possibilidade de refletir para que ele tem servido. Isso ocorre
porque, realmente, os cosméticos são utilizados para reforçar ou disfarçar. Cria-se uma
máscara impressa sobre a pele, que desperta e sincroniza o olhar do outro:
11
Os conceitos de “Cartaz etólogico” e de “Mapa da Ternura” alinhavados ao conceito de cosmético abre-nos a possibilidade de pensar a
questão propriamente dita do perfume no imaginário humano. Para isso, resgatamos o sentido da palavra cosmético, que também pode ser
usada para designar o mundo do perfume. Aprofundando-se mais um pouco, notar-se-á que o perfume também está intimamente relacionado
ao kosmo (cosméticos) que, segundo Hillman:
“(....) na palavra grega kosmos, de onde vem ‘cosmologia’, ‘cosmonauta’. Komos, ao ser traduzida do
grego para o latim, tornou-se universum, revelando a atração dos romanos por leis universais, o mundo
todo girando em nossa volta (unus-verto). Cosmo, no entanto, não significa um sistema que abrange;
trata-se de um termo estético, que melhor se traduz como ‘ajustado’, ‘apropriado’, ‘bem arranjado’, de
forma que se torna mais importante a atenção particular do que universal. Kosmo é também um termo
moral: kota kosmon (desordem) (...). Kosmo também abrange significados tais como ‘convenientemente’,
‘decentemente’, ‘honorável’. Juntam-se o estético e o moral, como em nossa linguagem diária
profissional, em que ‘direito’, ‘verdadeiro’, ‘certo’, ‘correto’ implicam em ‘bom’ e ‘bonito’. Um outro
grupo de conotações inclui ‘disciplina’, ‘forma’, ‘moda’. Kosmos era usado especialmente a respeito das
mulheres, referindo-se a seu embelezamento, decoração, ornamentos, roupas, e a palavra também pode
descrever canções, falas doces. ‘Cosmético’ está, na verdade, mais próximo do original que ‘cósmico’,
que tende ao significado de ‘vazio’, ‘gasoso’, ‘vasto’.” (HILLMAN, 1993, p. 135).
No trecho acima, constata-se claramente a relação entre o significado de kosmo e de cosmético; esse autor dá claras pistas para que se possam
retornar os olhares sobre os textos publicitários da mídia impressa e a suas imagens. Nessas imagens, depara-se, sem maiores
questionamentos, com a clara aplicação do conceito original da palavra cosmético, que está intimamente relacionado ao belo, ao bonito, à
disciplina, à forma, à moda, e ainda ao vazio e ao gasoso. Por isso, a presença marcante de modelos e cenários belos e perfeitos. Nas palavras
de Hillman: “Se o próprio cosmo implica em beleza, se vivemos num mundo estético, então o modo primeiro de nos ajustarmos ao cosmo
seria através de um sentido de beleza.” (1993, p.135). Depara-se aqui com a razão primeira pela qual a busca frenética pelo belo, pela beleza,
tenha ganhado proporções cósmicas, bem como o aumento exacerbado sobre aquilo que é visível, pela aparência, como se tivesse recaído
sobre nós toda a força da noção afrodítica de beleza. Somente cremos naquilo que vemos, a aparência do mundo revela a sua verdade.
Dessa forma, partindo de todos esses conceitos apresentados sobre o kosmo e sobre o cosmético, que já estão interligados
pela noção de beleza implícita da deusa Afrodite, somos levados a uma hipótese no mínimo instigante a respeito da ausência do cheiro e de
uma predominância das imagens de cheiro, pois já não importa mais o que cheira; importa a aparência, o que você é. Por isso, o perfume em
nosso tempo tem sido confundido muito mais com a roupa, com a moda do que com a questão do cheiro propriamente dito. Tem-se chegado,
então, ao cúmulo de perguntar ao outro “o que você está vestindo?” para se referir a que perfume ou a que marca de perfume a p
essoa está
utilizando.
Nesse sentido, essas questões levam-nos a pensar que o mundo do perfume é a porta de entrada do corpo para o mundo das
imagens; é propriamente a transformação, ainda que de forma ilusória, do corpo em imagem de corpo. O perfume tem em si a característica
da imagem visual, a de ser um paradoxo, ou seja, a presença de uma ausência bem como a ausência de uma presença. Além dessa figura de
linguagem, tudo isso convida a pensar ainda em outra figura de linguagem: a metonímia, que consiste no emprego de uma palavra por outra,
permitido pela proximidade da idéia que expressam
.