Download PDF
ads:
EDUARDO PRADO
A ILLUO
AMERICANA
.
A primeira edição foi confiscada e supprimida por ordem do Governo
Brasileiro
E conhecer que vives de um engano.
Comprado tanto a custo do teu
damno !
Rofino da Moura
Novissimos do homem.
Cant.
1.Est. 38
1917
LIVRARIA E OFFICINAS
MAGALHÃES
Avenida D. Pedro I - 33
(Ypiranga) S. PAULO
4.ª Edição Revista
Com um prefacio e estudo Biographico do autor
PELO
Dr. Leopoldo de Freitas
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
O Escriptor d' "A Illusão
Americana"
«... Sinto a dupla felicidade de louvar,
atravéz do homem que tanto prezo; terra
que tanto amo.»
Eça de Queiroz, o primoroso estylista da
Casa de Ramires, assim disse do fino espi-
rito do dr. Eduardo Prado, num artigo da
Revista Moderna de Julho de 1898.
Ninguem melhor do que o romancista
portuguez apreciou e literariamente analy-
sou as qualidades, o talento e as preferencias
do vigoroso escriptor brasileiro, nesta cele-
bre publicação na cidade de Paris.
O dr. Eduardo Prado foi publicista que se
distinguio com brilhantismo em nossa
literatura. Elle era nacionalista, muito amava
as causas da patria brasileira, não obstante
os tempos que passou em viagens mundiaes,
instruindo o seu espirito, distrahindo-se e
observando civilisações diffe-rentes.
Nascido nesta capital de S. Paulo, em 1860,
era filho do consorcio da illustre Sra. d. Ve-
ridiana da Silva Prado com o dr. Mar
tinho Prado.
O dr. Eduardo Prado escutou as portas do
saber desde muito moço e tendo con cluido
o bacharelato, na Faculdade de Di-
ads:
IV
reito, que nos paizes latinos se tornou um
complemento do baptismo, pouco depois
defendeu thezes, e doutorou-se, foi quando
emprehendeu suas peregrinações.
Escriptor e jornalista, elle revelou-se desde
estudante na imprensa academica e depois no
Correio Paulistano. Escreveu as mo-
nographias e brochuras: Viagem ao Rio da
Prata; Viagens; Viagem ao Oriente; 0 pro-
blema da Immigração; À Arte na Brasil;
Fastos da Dictadura Militar no Brasil; A
Illuo Americana; Conferencia sobre a vida e
a acção do Padre Anchieta; Discursos pro-
feridos no Instituto Historico de S. Paulo; A
Bandeira Nacional; Vida do Padre Manoel
de Moraes; Terra Roxa, este manus-oripto
perdeu-se; numerosos artigos da redacção d'O
Commercio de o Paulo e que foram
publicados nas Collectaneas.
«Em tudo isto, acertadamente disse o
inolvidavel literato dr. Affonso Arinos, no
seu discurso de 18 de Setembro de 1903, na
Academia Brasileira: encontramos
Eduardo Prado com os seus contrastes, o seu
sarcasmo, a sua vivacidade, a singular
harmonia entre as cousas sérias e as cousas
alegres, as cousas leves e as cousas
profundas.»
Brasileiro e americanista, o fluente e bri-
lhante escriptor paulista empregou as ener-
gias da sua intelligencia, os recursos da
V
observação e a coragem das idéas, na occa-
sião em que se operou neste paiz a trans-
formação do regimen governamental.
Eduardo Prado veio para a fileira do com-
bate aos politicos que fizeram a Republica.
Achava-se então na Europa, e pertencendo
a commissão representativa do Brasil na
Exposição Universal de Paris, tinha col-
laborado no excellente livro Le Brésil en
1889 com a publicação dos dois artigos L'Art
e Immigrationi fez uma viagem ao paiz de
Portugal, que elle tanto estimava
affectuosamente e apreciava espiritualmente
e logo na "Revista de Portugal", o escriptor
com o pseudonymo de Frederico de S. prin-
cipiou a tratar dos "Acontecimentos do
Brasil" em artigos que antecederam os Fas-
tos da Dictadura Brasileira.
Estas publicações echoaram com vibração
intensa por todas as cidades, deste paiz.
Ignorava-se quem era Frederico de S. que
analysava e criticava com o rigor da sua
logica aos desmandos e aos erros do novo
regimen proclamado pelo exercito e armada
em nome do povo.
Soube-se mais tarde que esse vigoroso
escriptor era o dr. Eduardo Prad oque com a
sua costumada independencia declarava:
« O Brasil está neste momento sob o re-
gimen militar. Quanto tempo . durará esse
regimen ? No tempo do Imperador, quando
VI
o soberano resistia aos ministros, se estes
insistiam — a corôa cedia.
Hoje quando o marechal Deodoro pensar de
um modo e os seus ministros de outro quem
cederá?
A espada que não tremeu ao ser desem-
bainhada contra as instituições que o general
jurara defender,' hão precisará mesmo reluzir de
novo para fazer emudecer e sumir-se debaixo do
da terra os novos ministros, talentosos .
patriotas, mas patriotas desarmados!»
Patriota na accepção legitima da expressão o
dr. Eduardo Prado «agarrou-se as tradicções do
passado sem temor de ser esmagado no caminho;
segurou-se ao rochedo da nossa Historia, viveu
nella, viveu por ella e morreu fiel a ella...» Então
respondeu de uma vez aos seus adversarios e
detractores:
« Anti-patriotas, nós ? E' uma injustiça! Nós.
que exaltamos a coragem do nosso povo, . a sua
energia, a sua constancia; que temos um immenso
amor pela sua Historia, pelo drama da conquista
desta terra; que, com reverencia, amamos a nossa
raça e tudo que a ella se refere: as lendas da sua
vida primitiva, as tradicções do seu passado; que
amamos a lingua que falamos, a arte de nossos
paes d'além mar; que temos immensa ternura pelo
homem do campo, que com elle convivemos,
ouvin-
VII
do-lhes as longas narrativas e o pitoresco
falar: nós, que temos votado a vida ao estudo
da tudo quanto é brasileiro nós o temos
patriotismo!...»
Ainda ê o dr. Affonso Arinos, no formoso
discurso academico de 1903 quem nos conta:
Moniz Barreto, «aquelle moço de genio
que. morreu em Pariz aos trinta annos,
depois de ter-se nos revelado um pensador,
disse verbalmente a mim que Eduardo Prado
era uma das mais completas organisa-ções de
escriptor que elle jamais vira.»
E das suas qualidades de escriptor de
combate que as condições do Brasil obri-
garam-no a adoptar, disse o fulgurante esty-
lista Eça de Queiroz:
«... Todos os seus livros são guerras e elle
intellectualmente um guerrilheiro.
Desde a primeira pagina ao primeiro
fremito, as idéas alçam o pendão, as ironias
despedem a sua flexa, os argumentos bran-
dem a sua clava, as citações clamam, as
cifras silvam e, na pressa e excitação da lide,
tudo rompe, um pouco tumultuaria-mente,
num arranque para avante, contra a causa
detestada que urge demolir!...
E mesmo quando em dias de paz, reco-
lhido e quasi ajoelhado, glorifica, como na
Apologia do padre Anchieta, ainda alguma
confusão se estabelece no seu estylo mas
docemente alvoroçada e enternecida, como
vIII
a de turba piedosa que se empurra para um
altar amado.
E' que os seus livros são sempre actos
intensamente vivos, ora uma hoste em mar-
cha ora um povo em préce. Elle concebeu e
trabalhou todos os seus livros num momento
de urgencia, por impulsivo patriotismo para
atacar idéas ou homens de quem receiava a
desorganisação do Estado ou para animar
aquelles que reagiam contra essa
desorganisação pela força latente de alguma
virtude social.»
Eça de Queiroz confirma esta apreciação-
da índole do publicista Eduardo Prado e da
situação que coube ao Brasil transformado
em Republica pelo pronunciamento militar e
pela acção dos propagandistas democraticos,
dizendo:
«Assim a victoria do Jacobinismo politico
e do fanatismo positivista determinou essas
vehementes chronicas de Frederico de S., Os
Fastos da Dictadura, que acompanharão, na
Historia, a dictadura com um silvar, de. certo
amortecido, mas perenne* mente
desagradavel de latego.
Assim as tendencias norte americanistas
da Republica provocaram esse esplendido
libello, A Illusão Americana, o mais forte
que se tem construído contra a raça náo-
anglo-saxonia, tal como a moldaram na Ame-
rica um solo novo, o uso muito duro da
IX
escravatura, o contacto violento com as raças
barbaras, o excesso de democracia utilitaria e a
carencia de uma tradicção., »
Valente belluario foi o dr. Eduardo Prado, e
como tal mestre na redacção de pamphleto,
genero de literatura que costuma appareçer nos
períodos de agitação partidaria e de vehemencia
de paixões politicas.
Ainda é o romancista Eça de Queiroz quem
nos vae dizer acerca da arte de pamphletario em
que o talento do dr. Eduardo Prado teve relevo:
Todos os seus livros políticos desde os
Destinos do Brasil, perfeito estudo de psycologia
social são, pois pamphletos.. Certamente realisam
e com singular rigor, a definição de pamphleto
formulada por Paulo Louis Courier, mestre
pamphletario deste seculo.
Que é um pamphleto? — "Uma idéa muito
clara sahida de uma convicção muito forte,
rigorosamente deduzida em termos curtos e
límpidos com muitas provas, muitos
documentos, muitos exemplos..."
E tambem:
"A mais corajosa, maia util, mais pura acção,
que um homem pode praticar no seu tempo,
porque se a idéa é boa, derrama a verdade e, si é
má, logo apparecerá quem a corrija, e a
correcção produzirá exame, comparação, prova
e, portanto aproximação da verdade!...
X
A visão que este vibrante escriptor
tinha das cousas era: Como um fino dardo
que vara horizontes.
A esta clara visão elle junta um raro poder
de deduzir, de desfiar, de subtilmente desfiar,
e de ligar depois os tios subtis numa trama
meuda e resistente que, quando combate, se
torna aquella rêde de ferro com que os
gladiadores no circo immobilisavam para a
morte os contendores e quando solicita ou
propaga, aquella doce rêde de seda
aconselhada pelos santos padres para doce-
mente pescar" as almas...
A todas estas superiores potencias junta a
potente paciencia de esquadrinhar os textos,
desenterrar os documentos, amontoar os
exemplos, percorrer toda a Historia e toda a
Natureza, para recolher um facto, um
precedente, uma analogia, de sorte que a sua
logica, bem armada e dextra, sempre combate
sobre uma macissa, formidavel muralha de
prova.
E em todo este esforço, ajudado por uma
memoria de prodigiosa diligencia e seguran-
ça. Ora, a memoria é a decima Musa, ou
talvez, a mãe das Musas.
A sua maneira de utilisar esses dons, o seu
Estylo é o melhor, o mais adequado a um
publicista e, participa superiormente da
'natureza desses dons. E' limpo, transparente,
secco, quasi nú, sem roupagens roça-
XI
gantes e bordadas que lhe embaracem a
car-bira dextra, ou deformem as linhas
puras do raciocínio.
Não ha nelle mollezas, repousos, tenden-
cias a vaguear e a scismar, mas sempre o
mesmo ímpeto elastico o anima e arremessa.
Ainda menos tenta essas fugas vistosas de
foguetes que estala nos ares, cuidadoso em
nunca perder o solo macisso da Realidade,
que a todos, como a Antheu, communica
força invencível'; quando, por vezes, attinge
a essa plenitude e abundancia sonora que se
chama Eloquencia, é porque,
inesperadamente o exaltou a grandeza da
verdade entrevista, um arranque generoso de
indignação, alguma brusca emoção de
piedade, ou aquella segura proximidade do
triumpho, que solta todo som aos clarins...»
Desta forma completa e clara o apreciado
escriptor d'Os Maias tratou a individuali-
dade literaria e politica do dr. Eduardo Prado,
cavalheiro cuja amizade cultivou com
extremosa affeição; espirito cujo brilhantis-
mo, elle, perfeitamente admirou.
O feitio da sua intelectualidade de pu-
gilista appareceu nitidamente no valente
pamphleto que é o livro A Illusão Americana.
Embora, como escreveu o Poeta Olavo
Bilac no seu discurso-resposta ao do dr.
XII
Affonso Arinos, na Academia Brasileira: «O
escriptor d'A. Illusão Americana exagerou
bastante os perigos do que elle chamava e do
que vós mesmo chamaes a nossa:
Desnacionalisação.
...Tive e tenho para mim que Eduardo
Prado foi sempre um firme, um puro e
excellente brasileiro, no Brasil e na Europa,
no Sertão e no boulevard.
Outro pamphleto ardente que a penna de
Eduardo Prado escreveu é A Hespanha e no
qual trata do auxilio poderoso que os Estados
Unidos deram aos cubanos insurgidos para
conseguirem, a final, a sua independencia
como nação, sem comtudo deixar de fazer
commentarios a situação dos < povos da
America do Sul que são fracos, o mal
governados e, não pagando os juros da sua
divida ào extrangeiro estão prejudicando ou
projectam prejudicar . os interesses de
cidadãos de paizes fortes...»
Mais adiante declara acerca do mesmo
facto:
«A lucta dos Estados Unidos e da Hes-
panha é, talvez, o prologo de um drama
universal, representado em formas novas,
com desprezo pela arte antiga e pelas con-
venções fóra da moda, taes como o Direito,
em geral, e o unico Direito Internacional,
muito especialmente.
XIII
Nos paizes fracos, devia ser prohibido o
estudo desse pretendido Direito, origem de
perigosas illusões entre os povos e de uma
falsa confiança entre os governos de boa fé.
A guerra actual justifica essa opinião...»
Collectaneas — vol. I., pag. 371.
O publicista Eduardo Prado com "a sua
logica bem armada e dextra" expõe e con-
fronta as phases do conilicto hispanonorte
americano e possuído de sympathia pela
cavalheiresca nação de Cervantes, exaltou a
sua attitude em face da politica do Tio Sam.
E este "drama universal representado em
formas novas" parece que era a visão dos
tempos previstos pelo malogrado escriptor.
Tempos que agora são de luto, sangue,
horror, miseria e calamidade causada pela
Guerra Atroz, no mundo inteiro.
Vem" a proposito traduzir aqui o conceito
do critico dinamarquez Georges Brandés
quando discutio com o jornalista Clemen-
ceau sobre o paradoxo de Fred. Nietzsche : "
A moral da seguraa necessaria", Revue
Suisse, Bib. Universelle.
Disse o auctor das "Novos Rumos da Li-
teratura":
«Embora considere a guerra presente uma
demencia collectiva, recuso admittir que os
aggravos estejam de um lado só, les torts
soient d'un seul côté...
XIV
Esta guerra como quasi todas as grandes
guerras é uma guerra economica.
Naturalmente nenhum belligerante concordará
nisto, pois, é mais conveniente dar apparencias
aos factos. Pois cada povo não lucta pela
liberdade? Conforme declaram os seus
intellectuaes. Desde a Russia, a classica terra
do Absolutismo; a Allemanha, o pais dos
burgueses afidalgados e do ca-poralismo; a Gran
Bretanha, que nunca deixou de se esforçar pela
conservação da sua superioridade industrial no
mundo; a França que nestes ultimos annos
augmen-tou consideravelmente o sen imperio
colonial...
A verdade é que cada uma destas potencias
lucta pela supremacia economica. ,
Veja-se porém o que acontece: Cada nação se
julga campeão de uma civilisacão superior e
serve-se dos mesmos argumentos... Quanto as
atrocidades digo que:
O homem é um animal feroz, capaz de
tudo, uma vez que estiver armado e livre:
pensa em destruir, incendiar e matar. Ah! e,
como os civilisados suppor-tam a guerra ?...
Sim, depois de cada carnificina humana, nos
consolamos em exclamar: Esta foi a ultima. E' o
que se dizia depois da de 1870: Será a ultima
guerra da Europa; puro engano! Nenhuma
guerra é a ultima: a
XV
guerra é eterna como a maldade dos ho-mens é
perpetua.»
Pela sua vez o dr. Rudolf Kjellen, prof. na
Universidade de Upsal, na sua monogra-phia
sobre os Problemas politicos da Guerra
mundial, escreveu que:
«A guerra é um cataclysma geologico,, uma
catastrophe horrivel! Que o seu problema é
extenso e complexo, tem muitos problemas
entreligados: o problema geographico-historico;
o problema nacional frequentemente ligado ao da
raça; o problema sociologico e politico que
consiste em determinar até que ponto a politica
interior de um paiz pode influenciar a sua politica
exterior; finalmente, o problema Economico, sem
duvida o mais imperioso e que parece dominar
todos...»
Talvez fosse attendéndo aos factores deste
problemas de sociologia, de politica e de
economia que o publicista Eduardo Prado na
occasião em que a guerra civil dividia
extremamente as opiniões no Brasil escreveu A
Illusão Americana, denunciando com a sua
argumentação as práticas dos Estados Unidos
com as outras nações continen-taes e latinas.
Seja como for, esse livro teve uma im-mensa
popularidade; no momento em que o governo
federal do Brasil negociava com o dos Estados
Unidos amparo para a sua legalidade; pela sua
vez a auctoridade po-
XVI
licial de S. Paulo confiscava a primeira edição
que aqui apparecia e, o seu illustrado auctor
foragia-se no sertão para garantir a sua liberdade,
como tambem a vida contra a exaltação dos
jacobinos.
A Illusão Americana nos recorda um episodio
de nossas luctas jornalísticas pelo principio da
liberdade neste paiz.
Eramos, então, prisioneiros d'Estado quando,
cuidadosamente, um moço official, de nossa
amizade, entregou um exemplar dizendo-nos:
Veja este livro. Veio de 8. Paulo e o governo
prohibe que, circule !...
Mais de vinte annos decorreram desta epoca dè
calamidade nacional. A intervenção da
esquadrilha dos Estados Unidos nas aguas do Rio
de Janeiro cooperou bastante para o desastre da
Revolução, celebraram-se diversas conferencias
pan-americanistas e agora pouca importancia é
ligada aos vôos expansionistas da grande Águia
de Washington, cujas garras supplantam raios...
E do dr. Eduardo Pisado, do seu luminoso
espirito 'e da bondade do seu coração, restam
reminiscencias sinceras, pois elle falleceu
prematuramente em 1901.
Foi o seu amor 'pela literatura e a tradição
brasileira que o tomaram contrario «a imposição
das instituições anglo-saxonicas da America do
norte ao nosso paiz...»
LEOPOLDO DE FREITAS
Março 1917 8. Paulo.
A Illusão Americana
Pensamos que é tempo de reagir contra a
insanidade da absoluta con-fraternisação que se
pretende impôr entre o Brazil e a grande
republica anglo-saxonia, de que nos achamos
separados, não só pela indole e pela lingua como
pela historia e pelas tradicções do nosso povo.
O facto de os Estados Unidos e o Brazil se
acharem no mesmo continente é um accidente
geographico ao qual seria pueril attribuir uma
exagerada importancia.
Onde é que se foi descobrir na historia que
todas as nações de um
. A illusão americana 2.
mesmo continente devem ter o mesmo governo ?
E onde é que a historia nos mostrou que essas
nações têm por força de ser irmãs? Em plena
Europa monarchica não existem a França e a
Suissa republicanas? Que fraternidade ha entre a
França e a Allemanha, entre a Russia e a Austria,
entre a Dinamarca e a Prussia? Não pertencem
estas nações ao mesmo continente, não são
proximas vi-sinhas, e deixam porventura de
serem inimigas fígadaes?
Pretender identificar o Brazil e os Estados
Unidos, pela razão de serem do mesmo
continente, é o mesmo que querer dar a Portuga!
as instituições da Suissa, porque ambos os paizes
estão na Europa!
A fraternidade é uma mentira.
Tomemos as nações ibericas da America.
Ha mais odios, mais inimisades entre, elles do
que entre as nações da Europa.'
A illusão americana 3
O Mexico deprime, opprime e tem por. vezes,
invadido Guatemala, que tem sangrentíssimas
guerras com a republica do Salvador, inimiga
rancorosa do Nicarágua, feroz adversaria do
Honduras, que não morre de amores pela
republica de Costa Rica. A embrulhada e horrível
historia de todas estas nações é um rio de sangue,
é um continuo morticinio. E onde fica a
solidariedade americana, onde a confraternisaçâo
das republicas ?
A Colombia e Venezuela odeiam-se de morte.
O Equador é victima, nunca resignada, ora das
violencias colombianas, ora das preterições do
Peru. E o Peru ? não assaltou a Bolívia, não
uniu depois a ella n'uma guerra injustíssima ao
Chile? E o Chile já não invadiu duas vezes a
Bolívia e o Peru. não fez um horroroso morticínio
de bolivianos e peruanos na ultima guerra, talvez
a mais sangrenta d'este século ? E o Chile não
tem sómente estes inimigos: o seu grande
adversario
A illusão americana
é a Republica Argentina. Este paiz, que tem
usurpado territorios á Bolívia, obriga o Chile a
conservar um exercito numeroso, e ninguem
ignora que um conflicto entre aquelles paizes é
uma catastrophe que, de um momento para outro,
poderá rebentar. O dictador Francia, o verdugo
taciturno do Paraguay, que Augusto Comte
colloca entre os santos da humanidade venerados
no calendario positivista, por odio aos argentinos
e aos outros povos americanos, enclausurou o seu
paiz durante dezenas de annos.
A Republica Argentina é a adversaria nata do
Paraguay. Lopez ata-cou-a, e ella secundou o
Brazil na sua guerra contra o Paraguay. E que
sentimento tem a Republica Argentina pelo
Uruguay ?
Não ha um só homem de estado argentino que
não confesse que a suprema ambição do seu paiz
é a reconstituição do antigo vice-reinado
A illusão americana 5
de Buenos-Ayres, pela conquista do Paraguay e
do Uruguay,
Eis ahi a fraternidade Americana. Voltado para o
sol que nasce, tendo, pela facilidade da viagem,
os seus centros populosos mais perto da Europa
que da maioria doa outros paizes americanos;
separado d'elles pela diversidade da origem e da
língua ; nem o Brazil physico, nem o Brazil
moral, formam um systema com aquellas nações.
Dizem os geologos que o Prata e que o Amazo-
nas foram em tempo dois longos mares interiores
que se communicavam. O Brazil, ilha immensa
era por si só um continente. As alluviões, os
levantamentos do fundo d'aquelle antigo
Mediterraneo soldaram o Brazil ás vertentes
orientaes dos Andes. Esta juncção é porém,
superficial; são propriamente suas e independen-
tes as raízes profundas e as bases
6 A illusão americana
eternas do massiço Brazileiro. Por
isso não vêm até ás praias brasileiras as
convulsões vulcanicas do outro systema. Quando
muito, chegamas vibrações longínquas, tenues e
subtis que os instrumentos registram, as que os
sentidos não percebem. Conta o missionário
jesuíta Samuel Fritz, que em 1698, uma terrível
erupção andina transmudou o Silomões, o
rio brazileiro, num «rio de lama, e
que, apavorados, os índios viam naquillo a colera
dos deuses. Parece que, na ordem politica, taes
têm sido as erupções hespanholas e revoluciona
rias que, afinal conturbaram as aguas brasileiras.
A torrente, porém, não é de lama, porque é de
lama e é de sangue . .
Estudem-se, um por um, todos os paizes
ibericos americanos. O traço caracteristico da
todos elles, além da continua tragi-comedia das
dictadu-ras, das constituintes e das sedições, que
é a vida d'esses paizes é a ruína das finanças.
A illusão americana 7
E na ruina das finanças o ponto principal é o
calote systematico, o roubo descarado feito á boa
fé. dos seus credores europeus. Os ministros da
fazenda das republicas hespanholas, por meio de
emprestimos que não são pagos, têm extorquido
mais dinheiro das algibeiras europêas do que
jamais a Europa tirou das minas de ouro e prata
da America. Tomemos os phantasticos
orçamentos destes paizes, e, no meio dos deficits
pavorosos e das mais indecentes falsificações, na
irregular contabilidade publica que conservam'
estes paizes, onde os dinheiros do estado são
gastos e apropriados pelos presidentes com uma
sem-cerimonia de que é incapaz o Czar da
Russia, o que é que vemos ? está o
celeberrimo orçamento da guerra a tudo devorar.
estão as dezenas de generaes, as centenas de
coroneis e os milhares de officiaes.
E' a prova de que não existe. a fraternidade
americana.
8
A illusão americana
Se as nações americanas vivessem ou pudessem
sequer viver como irmãs, . não precisariam esmagar
de impostos o contribuinte nem arrebentar os
respectivos thesouros, defraudando os credores com
a compra d'esses armamentos e apparatos bellicos
tão destruidores da prosperidade nacional.
Fallemos agora da grande republica norte-
americana, e vejamos quaes os sentimentos de
fraternidade que ella tem demonstrado pela
America latina, e qual a influencia moral que ella
tem tido na civilisação de todo o continente.
* * *
No ultimo quartel do seculo passado, homens
extraordinarios, da ve-lhà extirpe saxonia,
revigorada pelo puritanismo, e alguns d'elles bafeja-
dos pelo philosophismo, surgiram nas treze colonias
inglezas na America do Norte. Resolveram
constituir em ação independente a sua patria; e ão
lhes entrou nunca pela mente
A illusão americana 9
fazer proselytismo de independencia ou de forma
republicana da America. Nem isso era proprio da sua
raça.
O fim que tiveram em vista foi um fim immediato,
restricto e practico. Fazendo a independencia da sua pa-
tria, tinham como alliados os reis de França e de
Hespanha. Como poderiam elles querer que este
ultimo, a quem eram gratos pela sua intervenção em
favor da independencia, perdesse as suas ricas
colonias ameri-canas ? Se alguma sympathia houve
entre elles pela emancipação de ou-tros paizes da
America, essa sympathia appareceu trinta ou
quarenta annos depois quando toda America latina, á
custa de sacrifícios, ulti- mava a sua independencia
sem auxílios norte-americanos.
E' altamente comica a ignorante pretenção com que
escriptores francezes superficiaes procuram, ligar, a
revolução americana á revolução fran- ceza, querendo
por força que as idéas revolucionarias francezas
tenham in-
10
A illuo americana.
fluido na America, quando, a ter ha
vido alguma influencia, foi antes da
America sobre a França.
A pessoa de Franklin, com os seus calções
pretos, sem espada ao lado, nem bordados, nem
plumas, com os seus grossos sapatos de enfiar, o
seu prestigio de sabio e de libertador, passeando
atravez das galerias de Versailles; a fama de ter
elle sido um simples operario na sua mocidade,
isso sim foi uma influencia real em França.
Quando elle, no seu scepticismo cheio de
bonhomia, ria-se da pomposa divisa que lhe
arranjou Turgot, o celebre: Èripuit cedo ful-men
sceptrumque tyrannis, — dava uma prova de que
ao seu terrível bom senso não escapava a
insensatez? suicida da aristocracia, franceza.
Quando rebentou a revolução, quando ella
Começou a matar e a incendiar, houve em toda a
America uma grande sympathia por Luiz XVI e
Maria Antonieta, os antigos alliados, os
generosos protectores da indepen-
A illusão americana 11
dencia americana. Pouco tempo depois o governo
de Washington rompeu relações diplomaticas
com a republica fianceza. Onde a solidariedade'
republicana, onde a fraternidade?
Vejamos na historia: Que auxilio prestou o
governo americano á independencia das colonias
ibericas da America Qual tem sido a attitude
dos Estados Unidos quando estes paizes têm sido
atacados pelos governos europeus Como os
tem tratado o governo de Washington,— Qual
tem sido o papel dos Estados nas luctas
internacionaes e civis da America latina Qual
a sua influencia politica, moral e economica
sobre estes paizes.
Tudo o que se vae ler n'este trabalho é
referente a esses pontos, que serão todos
discutidos, embora nem sempre na ordem da sua
enumeração.
• • •
A' Inglaterra principalmente, e não aos
Estados Unidos, deve a America
12
A illusão americana
latina a força moral que lhe permit-tiu fazer a sua
independencia. Foi William Burke a primeira voz
que na Europa se declarou em seu favor
escrevendo um vibrante pamphleto, advogando a
independencia da America do Sul. (1) O Abbé de
Pradt e posteriormente Canning, que foi quem
praticamente tornou possível, isto é, tornou
effectiva e certa esta independencia,
officialmente aconselhada por Lord Wellington
no congresso de. Verona. (2) A independencia
das nações latinas da America em nada foi
protegida pelos Estados Unidos.
A' Inglaterra deveram então serviços
consideraveis as nações que luctavam pela sua
emancipação politica.
O Sr. Carlos Calvo diz que a atti-tude dos
Estados Unidos e a procla-
(1) Willian Burke, South American independence,
or the emancipation of Sout America, the glory and
interest of England: London, 1807.
(2) Chateaubriand, Le congrés de Vérone, chap
XVI.
A illusão americana 13
mação da doutrina de Monröe pesaram de uma
maneira decisiva no animo do governo inglez
quanto este, em agosto de 1822, pelo orgão de
Lord Vellington, tomou no congresso de Verona
a defeza dos paizes hespano-americanos,* contra
quem a Santa Alliança pretendia intervir, em
favor da Hespanha.
Esta affirmação é erronea. Em primeiro logar
a chamada doutrina de Monrõe foi
proclamada 'pelos Estados Unidos quinze mezes
mais tarde, isto é, em dezembro de 1823, E qual
foi a attitude dos Estados Unidos em relação ás
colonias revoltadas? Um auctor hispano-
americano, o snr. Samper, da Colombia, diz:
«Enquanto á los Estados Unidos, es curioso
observar que siendo esa potencia la más
interesada en favorecer nuestra independencia,
bajo el punto de vista político y no poço bajo el
comercial, se mostro sin embargo mucho menos
favorable que Inglaterra, indiferente por lo
común
14 A illusão americana
hácia miestra revolución y muy tardia en sua
manifestaciones ofíciales, como parcimoniosa en
procuramos los auxílios de armamento que soli-
citábamos, con nuestro dinero, de los negociantes
y armadores». (1)
Muito antes da mensagem de Mon-röe. o
embaixador americano, Rush, tinha recebido de
Canning a confidencia de que a Santa Alliança
pensava em intervir na America a favor da
Hespanha, e Canning accrescenta-ra estar
disposto a se oppôr directamente a esse plano se
tivesse a cooperação dos Estados Unidos. Rush
mandou as declarações de Canning ao seu
gQverno que as recebeu com grande satisfacção
porque até áquella occasião, segundo o contou
depois Calhoun, que fazia parte do gabinete, os
Estados Unidos não tinham julgado prudente
intervir em vista do grande poder da Santa
Alliança. Monröe tra-
(1) J. M. Samper, Ensayo sobre las revoluciones politicas
y la condición social de las republicas hispano americanas,
pag.,195. Paris, 1861.
A illusão americana 15
tava os seus secretarios com consideração
diversa da que usam os se-mi-barbaros
presidentes de outras republicas da America com
os irresponsaveis que se prestam a ser seus
ministros ; communioou a noticia de Londres ao
gabinete, e consultou a Jefferson se devia
acceitar o proposto auxilio da Inglaterra. (1) Até
então, a attitude dos Estados Unidos tinha sido
toda de reserva, de abstenção, e, para uma nação
que se quer apresentar como a protectora dos
latinos - americanos, é forçoso confessar que
essa politica não era de fraternidade, mas sim de
egoísmo. Ainda em 1819 o governo americano
recusara receber os consules nomeados por
Venezuela e pelo governo de Buenos Ayres,
allegando varios pretextos, (2) e a 9 de Março
de
(1) Von Holst, Constitutional History of the U. S.
of America, vol. 1, ,pag. 420; Jefferson's, Worles; vol.
VII, pg. 315 e 316.
(2) Animal registar of the year 1819, 1820; pag.
233, London.
16 A illusão americana
1823 é que reconheceu a independencia das
republicas hespanholas.
Fortalecido e animado pela iniciativa da
Inglaterra, em 2 de dezembro de 1823, o
presidente Monröe-disse na sua mensagem : -
«Devemos declarar por amor da franqueza e das
relações amigaveis que existem entre os Estados
Unidos e aquellas potencias (europêas), que
consideraremos-qualquer tentativa da sua parte
para estender o seu systema a qualquer parte
d'este hemispherío como cousa o perigosa para
a nossa tranquilidade como para a nossa
segurança. Com as colonias existentes e as de-
pendencias das mesmas potencias não temos
intervindo nem interviremos.
Em relação, porém, aos. governos que
declararam a sua independencia e que a m
mantido, independencia que, depois de grande
reflexão e por justos princípios, nós
reconhecemos,, toda interferencia, por parte de
qualquer potencia europêa, afim de op-primi-los
e de qualquer modo domi.
A illusão americana 17
nar os seus destinos, não poderá ser encarada por
nós senão como uma manifestação pouco
amigavel para com os Estados Unidos.
Eis ahi a famosa doutrina!
A nunca assás ludibriada e escarnecida
ingenuidade sul-americana viu n'esta declaração
um compromisso formal, solemne e definitivo,
de al-liança com os Estados Unidos, alliança tão
sensata aliás como a do pote de ferro com o pote
de barro. Ha setenta e um annos que o governo
americano tem accumulado declarações sobre
declarações, que equivalem quasi que a
retractações; ha setenta e um annos que
escriptores, oradores, políticos americanos
explicam que aquillo não é um compromisso
nem uma alliança; ha setenta e um annos que,
por palavras, actos e omissões, o governo de
Washington praticamente demonstra a
significação res-tricta, e, por assim dizer,
platonica das palavras de Monröe, e ainda hoje,
ha quem tenha superstição de tomar
A ILLUSÃO AMERICANA
18 A illusão americana
aquillo ao, da letra. A estultícia parece que é
invencível.
Poderíamos encher paginas e paginas de
extractos de livros, de jor-naes e de discursos de
americanos interpretando a chamada doutrina
n'um sentido bem diverso da interpretação
jacobina que hoje é acreditada no Brasil.
Preferimos, porém, relatar simplesmente os
factos.
Quem conhece os documentos officiaes
americanos daquella epocha sabe que toda a
politica interior e exterior dos Estados Unidos
estava subordinada aos interesses da instituição
peculiar, euphemismo com que-se costumava
designar a escravidão. Os Estados Unidos, desde
que sabiam que qualquer paiz americano estava
disposto a abolir a escravidão, eram
immediatamente hostis á independencia d'esse
paiz.
O pobre Haiti era o objecto do odio
americano. Hamilton, da Carolina do Sul,
declarou na camara dos
A illusão americana
19
representantes que a independencia do Haiti, por
fórma alguma, devia ser tolerada; Hayne,
acompanhado por todo o seu partido, queria que
o simples facto de um paiz qualquer reconhecer a
independencia do Haiti fosse motivo para a
ruptura das relações diplomaticas com os Estados
Unidos. Em 1825, o governo de Washington
pediu ao Czar da Russia a sua intervenção junto,
á Côrte de Hespanha para que esta cessasse de
hostilisar as suas antigas colonias, já de facto
independentes, e especialmente a «Colombia e o
Mexico. E isto, dizia o secretario d'estado Henry
Clay a Middleton, ministro americano em S.
Petersburgo, porque o Mexico e á Colombia
proseguindo em sua hostilidade contra a Hespa-
nha, podiam eventualmente tomar conta de Cuba
e ali acabar com a escravidão. Henry Clay
mandou tambem pedir ao Mexico e á Columbia
que adiassem a sua expedição libertadora de
Cuba, e Middleton recebeu
20 A illusão americana
ordem para insistir junto ao Czar, chefe da Santa
Alliança, porque os Estados Unidos faziam
questão de impedir a independencia de Cuba. O
Mexico e a Colombia lembraram aos Estados
Unidos o cumprimento da sua promessa contida
na celebre mensagem de Monröe. Henry Clay
respondeu que a mensagem contida com effeito
uma promessa, mas que os Estados Unidos
tinham-n'a feito a si mesmos e não a um outro
paiz, e que por isso nenhum paiz tinha o direito
de exigir o cumprimento da mesma promessa. (1)
Os paizes hispano-americanos qui-zeram,
parece que mais uma lição pratica da doutrina de
Monröe Convocaram o celebre congresso de Pa-
namá, assembléa destinada a la al-lianza de
toda» las Americas, á mutua fraternidade, etc,
etc. Compareceram os representantes de
quatro paizes. Os Estados Unidos depois de
muita
(1) Von Holst, vol. I, pag. 422-428.
A illusão americana
31
hesitação, nomearam dois representantes que
nunca chegaram a Panamá.
As instrucções dadas a estes (1826) são talvez
o melhor Commentario da doutrina de Monröe.
D'ellas resulta principalmente que os Estados
Unidos não estavam por fórma alguma dispostos
a fazer suas as brigas da America latina com as
potencias eu-ropêas. E nunca, mas nunca, os Es-
tados Unidos mudaram de modo de pensar e de
proceder.
Vamos ver os muitos factos em que aquelle
governo, por seus actos, deu a interpretação
authentica da doutrina que os sul-americanos têm
falseado. Antes, porém, daremos uma opinião
valiosa, e que destroe pela base a crendice que se
quer espalhar no Brasil que os Estados Unidos
não consentem na America outro governo senão
o republicano.
Os sul-americanos que isto dizem affirmam
uma falsidade, e os que se regosijam com isso
bem merecem o
22
A illusão
americana
desprezo que os americanos lhes votam. Haverá
cousa menos digna do que um cidadão desejar
que a sua patria não tenha a. livre disposição dos
seus destinos e esteja, quando se trata da escolha
ou da mudança da sua fórma de governo,
dependente dà vontade do extrangeiro?
Felizmente a nação americana, tenham sido
embora grandes as faltas dos politiqueiros que
tanta vez a têm deshonrado, conta, no mundo do
pensamento homens do mais alto valor, herdeiros
legítimos dos heroes da independencia.
Eis aqui como um d'esses homens julga a
doutrina de Monröe, na interpretação forçada e
indigna que lhes querem dar os jacobinos brazi-
leiros, que põem a republica acima da patria:
«Querer firmar o principio de que os Estados
Unidos não podem consentir na America
nenhum systema político differente do seu, ou
que não
A illusão americana
23
podem tolerar nenhuma mudança politica tendo
por fim substituir a fórma republicana pela fórma
monar-chica, seria ir além das pretenções do
congresso de Laybacn e de Verona que. pelo
menos, tinham temor da destruição da sua obra
politica, emquanto que os Estados Unidos não
podem ter esse temor». (1)
Em 1786, um joven brazileiro,
Maia, estudante de Montpellier, disfar-çando-se
com o pseudonymo de Wan-dek e rodeando-se
de mil mysterios, tentou approximar-se de
Jefferson, então embaixador dos Estados Unidos
em Versailles. Aproveitando-se de uma viagem
de Jefferson pelo sul da França, encontrou-se
com elle em Nimes, e ahi falou-lhe da indepen-
dencia do Brazil, com que sonhava, e pediu-lhe o
auxilio dos Estados Unidos. Jefferson
desanimou-o, como
(1) Wolsey, Introduction to the Study of Inter-
national Law, § 74.
34 A illusão americana
se evidencia das cartas que o embaixador
escreveu a Jay, Secretario de Estado, dando-lhe
conta da entrevista que tivera com p joven
brazilei-ro. Em 1817, um emissario pernam-
bucano foi aos Estados Unidos pedir auxilio; foi
ludibriado, e o governo de Washington apressou-
se em dar conta de tudo ao ministro portuguez
Correia da Serra. Por occa-sião da independencia
do Brazil, não recebemos prova alguma de bôa
vontade por parte dos americanos, e depois de
outros países reconhecerem a emancipação do
Brazil é que os Estados Unidos reconheceram a
nossa autonomia.
Note-se que a celebre doutrina de Monroe
data de 1823; foi na mensagem presidencial
d'esse anno que aquelle presidente estabeleceu a
não intervenção da Europa nas cousas da
America. Ora, dois annos depois, em 1825, é que
a nossa independencia foi reconhecida por
Portugal, pela in-tervenção ingleza, representada
na
A illusão americana 25
pessoa de Sir Charles Stuart, depois Lor
Rothesay. Mais tarde é que os Estados Unidos
celebraram com o Brazil um tratado de amisade,
com-mercio e navegação. O ministro americano
no Rio, Raguet, oppoz grandes embaraços a
nossa nascente naciona-lidade embaraços que
foram em parte removidos pelo, seu
successor, William Tudor.
Para se fazer uma ideia do que foi a missão
de Raguet basta percorrer rapidamente, a sua
correspon dencia. (1)
Raguet accusa a nossa esquadra no Rio da
Prata de covardia (pag. 20); diz que com o povo
brazileiro é inutil appellar para a razão e para a
justiça (pag. 32); Raguet em termos grosseiros
ameaça o ministro dos estrangeiros de uma
guerra com os Estados Unidos (pag. 27): «Isto
não é um povo civilisado (pag. 64).
(1) U. S. House of R. Does. 20th Congress, Ses sion
lst, vol. 7, Doc. 281.
26
A illuo americana
Tal foi o procedimento de Raguet e taes foram as
suas grosserias, que Henry Clay, Secretario
d'Estado, mandou-lhe um despacho (pag. 108),
estranhando as suas maneiras, e dí- zendo-lhe que
era preciso não esquecer que, afinal de contas, o
Brazil era um paiz christão.
0 governo americano ligou-se por esta epocha
inteiramente aos governos que faziam pressão
sobre o Bra-zíl por motivo de questões de presas
marítimas no Rio da Prata.
Durante as nossas luctas no Rio da Prata
encontrámos sempre a oppo- sição norte-
americana entorpecendo a acção das nossas
esquadras, desres- peitando os nossos
bloqueios, con-luiando-se com os nossos inimigos,
e para depois, valendo-se das difficuldades iniciaes
da nossa independencia politica, fazer-nos
exigencias desmedidas e exorbitantes
reclamações. O pri- meiro representante
americano que veio ao Rio de -Janeiro, ao findar o
período colonial, deu origem a um
A illusão americana 27
desagradavel incidente diplomatico, faltando ao
respeito á família real o que era uma injuria feita
ao paiz.
O representante americano que tratou das
reclamações de presas no Rio da Prata, depois de
atropelar as negociações, rompeu bruscamente e
retirou-se sem que houvesse motivo para essa
desfeita, que foi aliás reparada pelo successor
daquelle diplomata Willian Tudor, que firmou
com-nosco um tratado de amizade, com-mercio
e navegação.
Leiam-se as insolentes mensagens do
presidente Jakson ao congresso americano,
referindo-se ao Brazil e aos outros paizes da
America do Sul.
Aquelíe general sem escrupulos, que foi o
patriarcha da corrupção na sua patria, em suas
mensagens ao , Congresso, exprime-se com
grosseira arrogancia em relação ao Brazil e aos
outros paizes da America do Sul.
Em 1830, não havendo mais guerra no Prata
nem no Pacifico, o Secretario da Marinha
insiste pelo aug-
98 A illusão americana
mento da força naval nas costas da America do
Sul: «É preciso», diz o secretario John Brancb, não
diminuir as bossas forças, que são indispensaveis
para a defeza dos nossos interesses perante
aquelles governosinstaveis e incapazes». (1)
As exigencias do governo americano foram
enormes, e da própria correspondencia do
ministro Tudor sevidencia o desarrasoado de
algumas das reclamações.
Assim, tratava-se, por exemplo, escuna
United States capturada pela nossa esquadra
quando tentava forçar o bloqueio levando
munições de guerra aos nossos inimigos. Era por
ventura possível duvidar da legitimidade da
apprehensão? William Tudor n'um dos seus
despachos ao seu governo refere-se a exagerações
das reclamações, e n'outro despacho pa- rece sentir
que as. cousas se tivessem
. (1)U. S. Senate Documents: Congress 21st Sess. 2,
1830 e 31, vol. I, pag. 38. Doc. I.
A illusão americana 29
arranjado pacificamente, e compraz-se em dar o
plano de uma possivel expedição naval
americana contra o Brazil para bloquear
Pernambuco, a Bahia e o Rio de Janeiro. E
emquanto assim se exprimia o diplomata
americano, da sua propria correspondencia re-
sulta que, por esse tempo, a escuna de guerra
brazileira Ismenia salvava de piratas na costa de
Africa um negociante americano, conservando-
lhe um grande carregamento de marfim. Da
correspondencia de Raguet em-se os
contrabandos feitos nas costa do Brazil pela
Morning Star Phila-delphia; a insolencia do
commandante Biddle da Cyane com a nossa
flotilha ao mando do almirante Pinto Guedes, vê-
se a manobra fraudulenta do navio americano
President Adams, sahindo de Montevideu com
falso manifesto para Boston, e tentanto ir
abastecer o porto de Buenos Ayres que o Brazil
bloqueava. (1)
Executiva documents presented to the H. of
Representatives 25th Congress. Doc. 32, pag. 32.
30
A illusão americana
O Brazil teve de ceder ás imposições norte-
americanas, e pagou pelas reclamações a quantia
de 427:259$546 réis, que n'aquelle tempo valiam
Reis ou sete vezes o que valem hoje. (1)
Leiam-se os States Papers americanos do
tempo, e ha de se ver que, quando tratava com o
nosso governo o almirante francez Roussin, que
se apresentou na barra do Rio de Janeiro com a
sua esquadra a nos fazer exigencias, o ministro
americano deu-lhe o seu apoio moral, e esteve
bem esquecido de Monröe e da sua doutrina. (2)
Quando a Inglaterra e a França intervieram na
Republica Argentina
(1) Ibidem.
(2) Listas das quantias (capital e juros) pagas em
virtude das reclamações americanas:
NAVIOS
QUANTIAS
Tell-tale 37:924$850
Pionneer 21:134$676
Sarah George 42:472$199
Rio
8:081$034
Panther
4:229$918
Hero
12:048$979
Nile 3:313$178
Budget.
30:939$993
A illusão americana
31
contra Rosas, o governo americano, que
convivia em perfeita harmonia com aquelle
monstro, o que fez? Nada.
Entre as recommendações que o governo de
Washington faz a William Tudor ha a de preparar
o espirito do governo brazileiro para a noticia que
logo lhe seria dada do governo americano haver
reconhecido D. Miguel como rei de Portugal.
Com effeito no dia 1.° de Outubro de 1830 o pre-
sidente dos Estados Unidos recebeu officialmente
o snr. Torlades, encarregado de negocios de D.
Miguel-O governo americano foi o unico go-
verno que reconheceu o rei absoluto e usurpador
de Portugal!
Por essa epocha, o governo doa Estados Unidos
tinta já organisado
Hannah ............................................................... 37:197$774
Spermo............................................................... 92.246$803
Hussar ............................................................... 28:337$824
Amihy ................................................................ 16:922$878
Ruth.................................................................... 29:428$440
Ontario
l:742$000
Spark
61:250$000
Total . . 427:259$545
32
A illusão americana
o seu plano de guerra contra o Mexico, outra prova
da solidariedade e da fraternidade americana. A
do governo de Washington começou com a
questão do Texas. Favoreceu quanto pôde a revolta
d'aquelle territorio, animou-o a separar-se do
Mexico para mais depressa absorvêl-o e depois
declarou a guerra ao Mexico, verdadeira guerra de
conquista humilhou aquella republica até ao
extremo, e arrebatou-lhe metade do seu territorio.
O' fraternidade!
E a doutrina de Monröe o q'ue era feito d' ella?
A Inglaterra. estendia as suas conquistas ao oeste
do Canadá até chegar ao oceano Pacifico. Antes já
arrebatara, contra todo o direito, as ilhas Malvinas
ou Falkland á Confederação Argentina.
E será possível fallar nas ilhas Malvinas sem
recordar um dos maiores attentados contra o
direito das gentes, n'este seculo, attentado per-
petrado por uma força naval dos
A illusão americana
33
Estados Unidos, e approvado e sanc-cionado
pelo governo de Washington? Em 1831, os
argentinos tinham uma colonia nas ilhas
Malvinas. Alguns navios de pesca, americanos,
não qui-zeram obedecer a umas ordens do
governador da colonia. D'ahi um con-flicto
administrativo e diplomatico entre o consul
americano em Buenos Ayres e o governo
argentino.
Estava a questão n'este pé quando a corveta
americana Lexington sahiu de Buenos Ayres
commandada pelo capitão Silas Duncan, foi ás
ilhas Malvinas, bombardeou o estabelecimento
argentino, desembarcou tropa, matou muitos
colonos, incendiou todas as casas, arrazando as
plantações e levando os sobreviventes presos, uns
para os Estados Unidos, e abandonando outros,
em grande miseria,j na costa desertas do
Uruguay. Destruído o estabelecimento argentino,
a Inglaterra tomou conta das ilhas.
O governo argentino em 1839 reclamou
satisfação.
A ILLUSãO AMERICANA
34 A illusão americana
E o que lhe respondeu o governo americano
pela palavra do Secretario d'Estado Daniel
Webster ?
Que o governo americano aguardava a decisão
final do conflicto existente entre a Inglaterra e a
Republica Argentina a respeito da soberania das
Ilhas Malvinas.
Ora em 1831, por occasião do at-tentado
americano nas Malvinas, a soberania argentina
existia de direito e de facto sobre as Malvinas.
De direito, reconheceram-no os mesmos Estados
Unidos, porque na mensagem presidencial de 17
de novembro de 1818 referente á independEncia
das antigas províncias unidas do Rio da Prata
attríbuia-se-lhe a soberania dentro dos limites do
antigo vice-reinado de Buenos Ayres que
comprehendia as Malvinas; de facto, eram
argentinas as Malvinas, porque eram colonisadas
por argentinos e administradas por auctoridades
argentinas desde 1829; dois annos depois é
que a Inglaterra se apossou d'essas ilhas.
A illusão americana 35
Como é que os Estados Unidos de quem
tantas vezes tem-se dito que não consentirão que
um paiz europeu se aposse de uma pollegada de
territorio americano, não duvidaram, no caso
presente, pôr em duvida a soberania argentina
nas Malvinas em conflicto com a usurpação
ingleza ?
E a Republica Argentina em 1884 renovando
a sua reclamação obteve a mesma resposta.
Propoz submetter o caso a arbitramento; o
governo de Washington negou-se.
Eis-ahi a sinceridade americana
quando falia na doutrina de Monröe
e sustenta a theoria do arbitramento
para a solução dos çonflictos inter-
nacionaes,
Mais tarde e-no Honduras, alargou a
Inglaterra impunemente os seus domínios sem
que saísse a campo a tal doutrina, e quando
Schomburgh intrometteu-se em territorio
brazilei-ro na lagôa dos Piráras, na fronteira da
Guyana ingleza, retirou-se diante da energia da
diplomacia brazileira, que
36
A illusão americana
n'essa occasião não encontrou e altiva nem pediu
então o menor apoio em Washington, apesar de
Monröe e da sua doutrina.
Correm os tempos, e o Brazil, a Republica
Argentina o o Uruguay, em legitima defeza,
emprehendem a mais justa das guerras contra Lo
pez, do Paraguay. encontramos a diplomacia
americana a nos crear embaraços e,
representada nas pessoas dos ministros Washburn
e general Mac-Mahon, íntimos de Lopez, espec-
tadores mudos e impassíveis das suas crueldades,
seus verdadeiros cumpli- ces pelo silencio e a
pelo louvor. Quantas difficuldades não crearam
esses homens aos exercitos alliados? Ainda ahi
mostraram os americanos do norte quai a sua
comprehensão da fraternidade americana.
Washburn e Mac-Mahon, abusando das sua ín-
munidades, eram espias e auxiliares de Lopez,
trahindo o exercito alliado. E o procedimento do
Brazil tinha sido todo de correcção e lealdade em
A illusão americana
37
emergencias bem graves para a republica norte-
americana.
Aquelle grande paiz dera ao mundo um
exemplo bem desmoralisador pelo seu apêgo á
escravidão.
Emquanto no Brazil não houve escravocratas
que tivessem o cynismo de querer legitimar a
iniqua instituição, nos Estados Unidos, onde os
senhores de escravos foram muito mais crueis
que no Brazil, publicaram-se livros, sermões,
com a apologia scientifica e até religiosa da
escravidão, e chegou o momento em que metade
do paiz julgou que, para conservar e estender a
escravidão, valia a pena sacrificar a propria
patria americana. O escravismo sobrepujou o
patriotismo. E rompeu a guerra civil mais ter-
rível e mais sangrenta de que reza a historia. O
governo de Washington deixou logo, aos
primeiros tiros do forte Sumter, em,Charleston,
de dominar parte do territorio. Os rebeldes
crearam uma verdadeira esquadra de corsarios.
O governo americano, que
38
A illuo americana
a ignorancia ou a fé estão agora querendo
apresentar aos brazileiros como indefesso
propugnador do progresso e das idéas liberaes e
humanitarias em materia de direito internacional,
tinha-se recusado a adherir ao tratado de Paris, de
1856, pelo qual ra abolido o corso como recur-
so barbaro abandonado pelas nações cultas. Por
uma punição providencial, foi contra os interesses
do governo americano que se organisou o corso
mais activo e terrível de que ha noticia.. Os
corsarios sulistas correram todos os mares do
globo. N'esse tempo, a marinha mercante
americana era talvez a segunda do mundo. Com o
desenvolvimento da corrupção politica nos
Estados Unidos, o favor feito aos poucos ricos
armadores na-cionaes, a pretexto de
proteccionismo, tornou por tal fórma cara a
construcção naval que a marinha mercante ame-
ricana por assim dizer desappareceu. Os corsarios
sulistas tinham pois, n'aquelle tempo, presas ricas
e nume-
A illusão americana 39
rosas em que saciar a sua sêde de vingança e
principalmente de lucro. Deante do incremento
tomado pela revolta sulista, não- foi possível ás
nações estrangeiras desconhecer nas relações
internacionaes, a personalidade juridica dos
confederados, nome esse que os revoltosos
assumiram. De facto, senhores de varios pontos,
dispondo de fortalezas, os rebeldes dominavam
uma parte do territorio de que o, governo de
Washington, ao cabo de muito tempo, não se
tinha podido apoderar. As nações estrangeiras
não podiam deixar de considerar os confederados
como bellige-rantes. Nem outra doutrina podia
prevalecer. 'De outro modo, bastaria a qualquer
governo declarar simplesmente rebeldes ou
piratas as forças de terra ou de mar ao serviço
dos seus adversarios para prival-as de todos os
direitos de guerra. Ora a revolução é um direito,
segundo as theorias modernas, e as nações
extrangeiras não devem, entorpecer por qualquer
40 A illlusão americana
modo, ainda que indirecto, o exercício d'esse
direito. Grocio diz que, uma nação onde ha uma
revolta deve ser considerada pelos terceiros, isto
é, pelos outros paizes, como duas nações
separadas, cada uma com os seus direitos de
belligerante. Os tratadistas de direito
internacional dizem que para isso é preciso: 1
o
que a revolta tenha algum tempo de duração,
não tendo podido o governo suffocal-a; 2.° que os
recursos da revolta sejam importantes; 3.° que
ella domine um parte do territorio quer maritimo
quer terrestre. Ora os confederados estavam
n'esse caso, e o proprio governo americano creára
um precedente contra si quando, em 1837,
reconhecêra como belligerantes os revoltosos do
Texas, sem fazer caso das reclamações do
Mexico.
O reconhecimento dos insurgentes como
belligerantes é cousa muito das tendencias do
direito internacional moderno. E' uma medida
aconselhada pelos proprios interesses da nu-
A illlusão americana 41
manidade. O título de belligerante confere certos
direitos; mas, a esses direitos correspondem
certos deveres que, a bem de todos, devem ser
cumpridos pelos belligerantes. Se se nega todos
os direitos aos insurgentes, como pretender
impor-lhes os deveres geraes da guerra ? E ao
interesse da humanidade convem que esses de-
veres sejam respeitados. Ora, se não ha direito a
que não corresponda um dever, tambem não ha
deveres a que não correspondam tambem
direitos. Bluntschli, o oraculo do direito in-
ternacional, diz que, desde que os rebeldes se
acham militarmente or-ganisados, devem ser
reconhecidos como belligerantes, e diz mais que
o direito internacional actual fez um progresso
mostrando-se disposto a conceder a qualidade de
belligerante a um partido revolucionario. As leis
da humanidade, diz elle, assim o exigem. (1)
(1) Vid. Le droit international codifié, § 512.
42
A illusão americana
Não tardaram os corsarios sulistas em apparecer
nos portos do Brazil, e o governo brazileiro
manteve-se na maior discrição e na attitude a
mais correcta, sómente permittmdo que os navios
fizessem agua e recebessem carvão apenas em
quantidade sufficiente para, em marcha lenta, se
transportarem ao mais proximo porto estrangeiro.
O governo americano julgou deyer reclamar pro
forma, e o ministerio dos negocios estrangeiros do
Brazil, n'uma nota luminosa e digna, nota que é
hoje classica em direito internacional, defendeu o
procedimento do governo imperial, e o proprio
secretario de estado do governo de
Washington, o eminente Mr. Seward, um dos
mais notaveis estadistas americanos, deu-se por
sa- tisfeito com a justificação contida em a nota
brazileira, assignada pelo mi- nistro de
estrangeiros, o conselheiro Magalhães Taques.
Seward disse, em resposta, que se rendia á
evidencia demonstrada n'aquella nota habilis-
A illusão americana
43
sima (most able note). (1) O amor proprio
brasileiro, n'aquelle tempo, podia ter satisfações
d'estas.
Terminada a guerra civil, houve o grande litigio
entre a Inglaterra e os Estados Unidos, a celebre
contenda conhecida pelo nome de «Questão
Alabama». O governo do Brazil foi escolhido pelas
altas partes litigantes para ser um dos arbitros entre
as duas grandes nações. Não podia ser mais
solemnemente reconhecida do que foi então a
lealdade e a correcção do governo do Rio de
Janeiro. (2) Annos mais tarde, surgiu um litigio
derivado ainda da, guerra civil americana. O
conflicto era entre as duas grandes republicas do
mundo, entre a França e os Es-tados Unidos. O
arbitro unico escolhido foi o Imperador do Brazil.
No tribunal que funccionou em Washin-
(1) House of Representatives Exec. Docs. 5 thses-sion,
vol. IV, 38th congress.
(2) Ibidem, 37th congress; 2d session, vol. IV.
44
A illuo americana
gton, representou o soberano brazi-leiro o sr.
barão de Arinos. No tribunal do Alabama, que
funccionou em Genebra, o juiz brazileiro foi o
fallecido barão depois visconde de Itajubá. Vê-
se, por isso, qual não era o prestigio do Brazil.
Hoje, querendo os Estados Unidos fechar o mar de
Behring, e, retrocedendo estranhamente para
epochas passadas, restabelecer o mar clausum que
Selden e Freytas defenderam, no seculo XVII
contra Grocio, o fundador de direito internacional
moderno, a Inglaterra oppoz-se á pretensão e os
dois pai-zes recorreram a um arbitramento. Parece
que os tempos estavam mudados. .. Os Estados
Unidos não appellaram para o governo do
Brazil, ; e. o governo de Washington, que querem
agora apresentar como o paladino da fraternidade
americana, nem por sombras pensou em recorrer
aos seus collegas presidentes de republicas latinas.
Os Estados Unidos preferiram a arbitragem de
algumas
A illusão americana 45
anachronicas chancellarias de velhaa e
carcomidas monarchias europêas! Não seriamos
completos em nossa demonstração de que os
Estados Unidos, embora contem illustres escrip-
tores de direito internacional, são mais egoístas e
prepotentes em sitas praticas do que as
monarchias europêas, se não nos referíssemos ao
celebre incidente do Trent. O vapor d'este nome,
vapor inglez, levava, como passageiros, dois
enviados diplo-matieos representantes dos
Estados Confederados, os srs. Sliddel e Mason,
que iam. como enviados extraordinarios e
ministros plenipotenciario, em missão especial,
um d'elles para Londres outro para Paris. Pois
bem, um navio de guerra americano em alto mar,
deteve o vapor inglez e violentamente arrancou
de bordo os dois passageiros. Este acto, contrario
ao direito das gentes, esse desrespeito ao
pavilhão de uma nação neutra, esta felonia contra
os dois diplomatas despertou a indignação de
todos
46
A illusão americana
os governos, e o governo de Washington viu-se
obrigado a censurar o official que perpetrou tão
feia acção, mas aproveitou-se d'ella conservando
por muito tempo os dois prisioneiros. Este acto é
apenas menos condemnavel do que a vilania que
contra nós praticou Solano Lopez, aprisionando
em plena paz o vapor braziieíro Marquez de
Olinda, vapor que levava o coronel Carneiro de
Campos, presidente de Matto Grosso. Esta proeza
parece que foi vivamente aconselhada a Lopez
pelo cidadão uruguayo o sr. Vazques Sagastume,
hoje ministro no Rio de Janeiro, e portanto um
dos coryphéus da fraternidade americana.
Com o seu immediato vizinho meridional, o
Mexico, a politica dos Estados Unidos terá sido
uma politica de fraternidade ?
O facto mais importante d'essa politica, qual
foi ?
Foi uma guerra.
E essa guerra contra o Mexico é
A illusão americana
47
pintada com verdade e eloquencia pelo
historiador americano H. H. Bancroft:
«A guerra dos Estados Unidos contra o
Mexico foi um negocio premeditado e
determinado de antemão. Foi o resultado de um
plano de salteio, que o mais forte organisou de-
liberadamente contra o mais fraco. As altas
posições politicas de Washington eram
occupadas por homens sem princípios, taes como
os senadores, os membros do congresso, sem
fallar do presidente e do seu gabinete, e havia a
grande horda doa demagogos e dos politiqueiros,
que se comprazia em satisfazer os instinctos dos
seus partidarios. Estes eram os senhores de
escravos, os contra-bandistas, os assassinos de
indios, que, com as suas ímpias bôcas maculadas
de tabaco, juravam pelos sa-grados princípios de
4 de julho, que haviam de estender o predomínio
americano do Atlantico até ao Pacifico. E esta
gente, despida, das
48 A illuo americana
noções do justo, e do injusto, estava disposta
cynicamente a reter tudo quanto podesse saquear,
e invocando para isso o principio unico da força.
«O Mexico, pobre, fraco, luctando para obter
um logar entre as nações, vae agora ser
humilhado, es-pesinhado, algemado e vergastado
pela brutalidade do seu vizinho do norte. E este é
um povo que tem o maior orgulho da sua
liberdade christã, dos seus antecedentes
puritanos! 'Veremos como os Estados Unidos
começaram, então, a empregar toda a sua energia
em descobrir plausíveis pretextos para roubar a
um vizinho mais fraco uma vasta extensão de
terra. E para que ? Para ahi estabelecer a
escravidão.» (1)
A guerra foi precedida da intrusão americana
no Texas, dos subsídios que os americanos
deram á re-volta por elles mesmos fomentada
(1) H. H. Bancroft, Works. San Francisca, 1885, vol.
XIII, cap. 13.
A illusão americana 49
n'aquelle territorio, cuja independencia não
tardaram em reconhecer como medida
preparatoria da annexação, que foi a gota de
agua que fez transbordar a paciencia dos
mexicanos. E esta paciencia tinha sido posta á
prova de mil modos, por annos e annos n'uma
longa serie de vexames. As reclamações
americanas multiplicavam-se. Extractas hoje,
isto é, pagas a bom dinheiro peio Mexico, re-
nasciam d'ahi a mezes. E as reclamões eram
extraordinarias. Bancroft, entre outras, cita a
reclamação de um americano que por cincoenta
e seis duzias de garrafas de cerveja recebeu
8:260 dollars. (1)
Uma vez, o commissario americano Voss
recebeu o dinheiro, e este não appareceu
(Bancroft, pag. 320).
Em 1818, estando os Estados Unidos em paz
com a Hespanha, o general Jackson invadiu a
fronteira da
(1) Ibidem, pag. 318, nota.
A ILLUSÃO AMERICANA
60
A illusão americana
Florida, capturou e guarneceu um forte
hespanhol, apoderando-se de Pensacola e de
Barrancas.
Mais tarde, tambem sem declaração de guerra,
o general Gaines fez incursões no Mexico.
Estava, pois, nas tradições do governo de
Washington O começar a guerra contra o Mexico,
sem previa declaração para de surpreza romper as
hostilidades e invadir o territorio. E "assim foi.
Vejamos agora como foi feita a guerra. Os
americanos fizeram-na de um modo barbaro. «O
bombardeio de Vera Cruz durou quatro dias; foi
horrível e inteiramente desnecessario». (Bancroft,
pag. 547). «O saque, as matanças de feridos no
campo de bata' lha, os prisioneiros queimados
vivos, são factos confirmados pelas mais ele-
vadas auctoridades officiaes.» (1) «As
barbaridades illegitimas commettidas quasi
sempre com impunidade por uma massa
indisciplinada como era.
(1) Livermore, War with Mexico, pag. 268.
A illusão americana 51
o exercito americano, estão, infelizmente, por
demais verificadas (Ban-croft, pag. 547). E isto
estava de accordo com a opinião publica.
Leiamos as expressões dos jornaes
americanos:
Dizia um: «Devemos destruir a a cidade do
Mexico, arrazando-a ao nivel do solo. Façamos o
mesmo com Puebla, Perote Jalapa, Saltillo e
Mon-terey e feito isto, devemos ainda
augmentar as nossas exigencias». Dizia outro:
«Aniquilemos os mexicanos, levemos a
destruição e a morte a todas as famílias,
façamo-I lhes sentir um jugo de ferro, e assim
seremos respeitados». (1)
E o Mexico perdeu quasi metade do seu
territorio.
Faz-se muito cabedal do facto dos Estados
Unidos terem mais tarde intimado â França a
retirada das suas tropas do Mexico. Foi um
serviço, mas como não tem o Mexico pago
(1) Jay, Reveiv of the Mexican War, pag. 259.
52 A illusão america
caro este serviço? O governo de Ma- ximiliano não
se pôde manter, embora, tenha sido o governo mais
ho- nesto que o Mexico tem tido desde a
independencia. Maximiliano era um estrangeiro.
Houvesse um príncipe mexicano, que aquella
população, de. índole monarchica, acceitaria unani-
me a monarchia. Demais, Maximiliano não quiz
sanccionar os grandes abusos do clero, sobretudo
em relação aos bens da Igreja. Não esqueçamos que
o decreto abolindo os contractos agrícolas dos
peones, revogação de uma lei antiga- pela qual os
traba- lha dores das haciendas ficavam verdadeiros,
escravos, sujeitos até aos açoites, attrahiu, contra
o príncipe liberal, os odios das chamadas clas- ses
conservadoras, que sabemos o que são, em toda a
America latina. Parece que ha uma fatalidade para
os chefes de estados libertadores: Alexandre II
da Russia, despedaçado pelas bombas nihilistas,
Maximilia- no fuzilado, Lincoln assassinado, e
A illusão americana
53
D. Izabel do Brazil exilada. O rnarty-rio é a
consagração dos grandes feitos em prol da
humanidade! No Mexico, o sentimento
monarchico é irresistível. Não póde restaurar a
monarchia mas tem tornado impossível a
republica.
Porque no Mexico não ha, não houve, nem ha
de haver republica. O notavel escriptor americano
Gronlund diz que, se os Estados Unidos, na,
epocba da sua independencia, tivessem encontrado
um príncipe inglez, como o Brasil encontrou um
príncipe portuguez, a monarchia se teria es-
tabelecido nos Estados Unidos (1). E o tempo teria
feito d'esta monarchia um regimen bem differente
do regimen de oppressivo monopolio e de" cruel
plutocracia que é hoje a essencia mesma do
governo norte- americano. Se se pôde dizer isto
dos Estados Unidos, com muito mais razão se dirá
o mesmo do Mexico.
(1) Gronlund, Co-operative Commorwealth, Lon-don.
1891. Swan & Sonnenschein, Pag. 157.
54 A illusão americana
A Republica, no Mexico, como n'ou-tros paizes da
America latina nunca será uma cousa impessoal; a
republica ahi será sempre um homem. Foi
Juarez, homem representativo, homem que
representou o odio ao extrangeiro. Ora, o odio
póde destruir; o odio póde ser a verdadeira expres-
são do sentimento nacional n'um momento dado,
mas o odio não cria cousa alguma. Augusto
Comte tem uma das suas intuições geniaes, quan-
do quer que as sociedades humanas tenham o amor
por base. o amor é creádor. Por isso Juarez
nada creou. Don Sebastian Lerdo de Tejada, mi-
nistro e successor de Juarez, foi uma transição entre
a politica do odio indígena e a concepção juristica
da socie- dade. Homem de lei, jurisconsulto pre-
tendeu pôr tudo em artigos de codigos. Espiava-o o
militarismo, sorto com- mum e inevitavel de toda
a America Iberica. Deposto e expulso Lerdo, pelo
general Diaz, voltou o Mexico ao militarismo
systematico. O general
A illusão americana
55
Diaz e o general Gonzalez revezam-se, ha vinte e
tantos annos, no poder, e o poder d'elles é
praticamente absoluta A constituição, copiada da
constituição, americana, dá ao presidente quasi
todos os poderes. O congresso é nada, as eleições
uma farça.
O furor imitativo dos Estados Unidos tem sido
a ruina da America. Pericles no seu celebre
discurso do Ceramico, disse: «Dei-vos, ô
athenienses, uma constituição que não foi copiada
da constituição de nenhum outro povo. Não vos fiz
a injuria de fazer, para vosso uso, leis copiadas de
outras nações». Ha muita grandeza na exclamação
do genio grego. Ha uma presciencia de tudo.
quanto descobriu a sciencia social moderna que,
afinal, se póde resumir n'isto: As sociedades
devem ser regidas por leis sahidas da sua raça, da
sua historia, do seu caracter, do seu desenvolvi-
mento natural. Os legisladores latino-americanos
têm uma vaidade inteiramente inversa do nobre
orgulho
56 A illusão americana
do ateniense. Gloriam-se de copiar as leis de outros
paizes!
Todos os paizes hespanhoes na
America, declarando a sua independencia, adoptaram
as formulas norte-americanas, isto e, renegaram as
tradições da sua raça e da sua historia, sacrificando
ao principio insensata do artificialismo politico e
do exotismo legislativo.
O que colheram d'esse absurdo,
diz a triste historia hispano-america-
na deste seculo. O Brazil, mais feliz,
instinctivamente obedeceu á grande
lei de que as nações devem reformar-se dentro de si
mesmas, como todos os organismos vivos, como a
sua propria substancia, depois de estarem
lentamente assimilados e incorpora dos á sua vida
os elementos exteriores que ella naturalmente tiver
absorvido. No Brazil tivemos a inde-
pendencia, facto logico do desenvol vimento
da sociedade colonial; a monarchia mantida foi o
respeito da tradição e a conservação do paiz
A illusão americana 57
na sua indole historica que ninguem póde mudar.
0 constitucionalismo e o systema parlamentar
adoptados foram, até certo ponto, uma revives-
cencia do passado, uma reproducção das côrtes
lusitanas, e cousa. que muito se harmonisava
com a orga-nisação quasi espontanea, mas sem-
pre representativa, e mais poderosa do que se
julga, dos governos mu-nicipaes e locaes da
colonia.
As idéas liberaes do seculo, consagradas nas
instituições coevas da independencia acharam
uma base historica em que se firmaram. E isto
deu ao Brazil setenta annos de liberdade.
Mais tarde, foi em 1889 commet-tido no
Brazil o mesmo grande erro em que os hispano-
americanos tinham caído no primeiro quarto do
seculo, isto é, quando artificialmente se quiz
impor ao Brazil a formula norte-ame-ricana.
A perda da liberdade foi a consequencia
immediata, fatal, da desgra-
58
A illusão americana
cada idéa. E nós, tardiamente, fomos tomar parte
na fastidiosa e desalentadora tarefa em que vivem,
ha noventa annos, os hispano-americanos, isto na
longa, vã, tormentosa, sangrenta e degradante e
inutil tentativa, quasi secular, de querer implantar
na America latina as instituições de uma raça
estranha.
O grande orador americano Henry Cíay
fallava, uma vez, em 1818, no congresso
americano em favor das colonias hespanholas
revoltadas contra a metropole: «Acredita-se
geralmente em nosso paiz que os sul-americanos
são muito atrazados e supersticiosos para se
constituírem em nações livres. E' uma injustiça. E
a prova de que elles não estão tão atrazados é que
estão adoptando as nossas instituições e as nossas
leis». (1) O insigne historiador Von Holst diz que
Clay affirma um contrasenso; porque
(1) Henry Clay, Speeches, vol. I, pag. 89 e 90.
A illusão americana 59
esta imitação servil, essa sim, é prova de
incapacidade. (1)
O Mexico copiou pois a constituição norte
americana. Uma disposição constitucional disia
mais que o presidente era inelegível para o
período presidencial immediato à sua presi-
dencia. D'ahi o hybrído e, inunora-lissimo pacto
de Diaz e de Gonzalez. Diaz elege Gonzalez
com a condição de Gonzalez eleger de novo a
Dias, E isto dura ba mais de vinte annos. Agora,
parece que Diaz o quer largar, e fez
reformar a constituição, revogando a
incompatibilidade, vae-se fazer reeleger, a Gon-
zalez vae ficar logrado. Falla-se em revolução
gonzalista, e o estado de sitio funcciona no
Mexico com a mais invejavel regularidade.
Eis-ahi o serviço que os Estados Unidos
prestaram ao Mexico livran-do-o de um governo
que, embora in-
(1) Von Holst. Constitutional history of the U. S.
vol. I, pag.. 415.
60 A illusão americana
criminado do estrangeiro, foi o mais brando, o
mais civilizado, n'uma palavra, que jamais teve
aquelle desgraçado paiz. E não se limitaram a
isso os bons officios da irmã republica. Depois de
haver retalhado o territorio mexicano em 1848, e
sobretudo depois da victoria definitiva da
republica no Mexico, os Estados Unidos
constituíram sobre aquelle paiz um verdadeiro
protectorado, que mexicanos imprevidentes
foram ac-ceitando, sem ver que era a ruina e o
descredito da sua patria. O duum-virato Diaz-
Gonzalez attrahiu para o Mexico uma nuvem de
aventurei-ros que patrocinados pela legação
americana, apresentavam-se querendo concessões
e privilegios, que lhe eram dados a troco de
favores pes-soaes. de acções beneficiarias e de
outras mil fórmas da fraude financeira. O
Mexico, a pretexto de armarem-no com todos os
instrumentos modernos de progresso, foi a presa
submissa e opima dos americanos. Tudo foi ali
A illusão americana
61
objecto de privilegio, tudo motivo para
concessões com garantias de juros e outras
vantagens onerosas para o thesouro. Os
concessionarios corriam para New-York, e na
bolsa de Wall Street obtinham dos incautos o
dinheiro que desejavam. Quer imperasse Diaz ou
reinasse Gonzalez o methodo era sempre o
mesmo. Muitas vezes, membros do governo de
Washington eram socios d'essas ali-cantinas, e se
o governo mexicano fazia alguma pequena
difficuldade em entregar o dinheiro, logo agia
sobre elle a pressão diplomatica Diaz e Gonzalez
amontoavam grandes fortunas e Washington
rejubilava. Os jornaes americanos annunciavam
com enthusiasmo os progressos da iniciativa
americana, dizendo que a conquista financeira do
Mexico era apenas o preludio da conquista
politica que mais tarde viria. N'esse tempo, o
illustre Lerdo de Tejada que vivia em New-York
exilado, dizia a quem es-creve estas linhas: «Os
generaes me-
62 A illusão americana
xicanos, no meu tempo, roubavam nas estradas;
agora roubam nas companhias. E' um progresso».
A principal figura d'esta roubalheira, figura pouco
sympathica, mas. parece que um pouco innocente
nesses crimes, foi o general Grant. Aquelle
soldado feliz era um homem de curta
intelligencia, ignorante em materia de negocios e,
em todo o caso, um individuo sem grandes de-
licadezas. Logo que se tratava de um assalto
qualquer ás piastras mexicanas, o iniciador da
idéa fa ter com o general Grant, e este logo dava-
lhe o seu nome. o seu prestigio e a sua influencia.
Chegou então ao auge a jogatina e a
immoralidade. 0 Mexico, a pretexto de applicação
no seu solo de capitaes yankees, era praticamente
governado pela legação americana. O Mexico
deixou de ser dos mexicanos. Alguns patriotas
protestavam ; mas os generaes Diaz ou Gonzalez
dispunham logo do recurso de prender os
patriotas e de proclamar o
A illusão americana
estado de sitio. O illustre orador, o notavel poeta
do Mexico, o snr. Al-tarnirano, no meio do
abaixamento geral, ergueu, contra a aliianca ame-
ricana, a sua voz eloquentíssima: «Não!» bradava
elle no congresso «mil vezes a nossa pobreza
antiga do que a ignominia que presenciamos.. O
leão mexicano era livre na liberdade ampla dás
nossas serranias. O extrangeiro desleal e
corruptor tem-no agrilhoado, e julga-se ainda seu
bem feitor, dizendo que são de oiro as cadeias
com que o subjuga! Não! Vincula quamvis aurea
tamen vincula sunt! Emquanto esta voz illustre se
levantava no Mexico, em New-York n'um grande
banquete de confrater-nidade (financeira já se vê)
entre figurões americanos e notaveis mexicanos,
banquete presidido pelo general Grant, o snr.
Evarts, um dos mais conhecidos estadistas
americanos» antigo secretario de estado, usava
de linguagem que bem justificava a indignação
patriotica de Altamirano.
64
A illusão
americana
O snr. Evarts passava por ser o homem mais
espirituoso dos Estados Unidos, mas, muitas
vezes, apezar de homem letrado, tocava as raias
da vulgaridade. Isto é muito commum nos
Estados Unidos. Ha ahi muita gente com
reputação de espirituosa, mas n'aquelle páiz que,
tendo tido a honra de ser a patria de Edgar Poë,
deixou-o morrer na miseria e no des- prezo geral,
negando-lhe até hoje um monumento, as
çhocarrices dos pro-fissional wits ou espirituosos
de profissão, são muita vez acolhidas com
enthusiasmo. Eis o que dizia o sr. Evarts, entre
as gargalhadas dos yankees, e os sorrisos,
amarellos, dos mexicanos: «A doutrina de Monroê
e por certo uma boa causa, mas, como todas as
cousas boas antiquadas, precisa de ser reformada. .
Essa doutrina resume-se nesta phrase: A America
para os americanos. Ora, eu proporia com prazer
um addi- tamento: Para os americanos, sim senhor,
mas, entendamo-nos, para os
A illusão
americana
66
americanos do norte (applausos). Comecemos
pelo nosso caro vizinho, o Mexico, de que já
comemos um bocado em 1848. Tomemol-o
(hilaridade). A America Central virá depois,
abrindo nosso appetite para quando chegar a vez
da America do Sul. Olhando para o mappa
vemos que aquelle continente tem a fórma de um
presunto. Uncle Sam é bom garfo; ha de devorar
o presunto (appkmsos e hilaridade prolongada).
Isto é fatal, isto é apenas questão de tempo. A
bandeira estrellada é bastante grande para
estender a sua sombra gloriosa de um oceano a
outro. Um dia ella fluctuará unica e ovante do
polo norte ao polo austral.»
Commentarios são estes do sentimento geral
do povo americano.
Em 1836 no congresso americano, exclamava
o senador Preston:
«A bandeira estrellada não tardará em fluctuar
sobre as torres do Mexico, e d'ali seguirá até ao
cabo Horn,
A ILLUSÃO AMERICANA
66 A illusão americana
cujas ondas agitadas são o unico limite que o
yankee reconhece para a sua ambição.»
Continuava, porém, no Mexico a orgia dos
melhoramentos.
A repartição mexicana de estatística começou
a ser de uma phanta-sia e de uma imaginação
pasmosas. Concessão de caminho de ferro que
fosse objecto de um decreto do executivo era
immediatamente ínscripta nos relatorios e nos
outros documentos officiaes, não como um
simples acto legislativo, mas como uma realidade
effectiva. Eram mais tantos e tantos milhares de
kilometros de linha que se davam como feitos, e
que os map-pas do governo, destinados ao estran-
geiro, traçavam orgulhosamente em longos riscos
multicôres. Qualquer tentativa de uma nova
industria, de uma cultura estranha era
immediatamente
A illusao americana
67
classificada como uma fonte creada e
abundante de riquezas immensas. Foi então que
no Brazil houve ingenuos que começaram a se
inquietar com a grande baléla do café do Mexico,
e foi depois de ler algumas d'aque]las estatísticas
ultra-phanta-sistas, que o sr. Quintino «Bocayuva
fez propaganda republicana n'uns artigos com
este titulo: Olhemos para o Mexico. Muita outra
gente quiz, mais ou menos por esse tempo, que
os brazileiros olhassem tambem para a Republica
Argentina, e viajantes boçaes que d'ali vinham,
depois de curto passeio, vinham republicanos.
Tinham visto os restaurantes luxuosos de Buenos
Ayres, admirado as carruagens das cocottes e dos
empregados publicos prevaricadores, tinham
contemplado a architectura riquíssima dos bancos
sem ver a fraude e a ruina que iam por dentro.
Voltavam para o Brazil, e vendo os nossos
ministros e parlamentares andando de bond,
vendo os modestos edifícios
68 A illusão americana
dos nossos bancos (então ainda acreditados),
concluíam que o Brazil era um paiz atrazado e
que a culpa era da monarchia.
E', porém, muito grande a forca das cousas.
Antes de rebentar a fal-lencia fraudulenta, não da
Republica Argentina, mas dos maus governos
d'aquelle bello paiz, terminou escandalosamente o
consorcio financeiro do Mexico e dos Estados
Unidos. Partiram as primeiras reclamações dos
pobres accionistas defraudados; os infelizes que
contribuíram para as extraordinarias emprezas
pomposamente patrocinadas pelos ge- neraes de
uma e de outra republica, começaram a perceber,
embora tardiamente, que tinham sido atrozmen- te
espoliados. As minas nada rendiam, as terras
concedidas eram llanos estereis, serras
inaccessiveis ou pantanos e mangues pestilentos
nas costas inhospitas do golpho ou do Pacifico. E
n'essas phantasticas creações, nos ordenados das
directorias, nos esti-
A illusão americana 69
pendios á imprensa, nas remunerações a
funccionarios mexicanos e a diplomatas dos
Estados Unidos, escoaram-se, volatilisaram-se os
milhões de dollars subscriptos. O grito das victi-
mas foi medonho. A principio, o grande prestigio
do general Grant foi um dique que por algum
tempo conteve a onda da indignação que a final
irrompeu por toda a parte, nos meetings, na
imprensa e nos tribunaes de New-York. A
celebre empreza do caminho de ferro do
Tehuantepec foi declarada em íallencia; os
bancos suspenderam pagamentos, houve
suicidios entre os figurões compromettidos, um
filho de Grant foi arrastado aos tribunaes, e o
pobre general soffreu grandemente na sua
popularidade, quando o seu nome se achou
envolvido em tantos litígios escandalosos. A
maior parte dos decantados melhoramentos do
Mexico ficaram adiados indefinidamente, o
thesouro d'aquella republica saiu arrebentado da
lucta, mas, continuando debaixo do dominio
70 A illusão americana
de Diaz e de Gonzalez o Mexico é ainda hoje
uma victima, depauperada, da amisade e da
fraternidade norte-americana.
Esta rapida exposição demonstra o que é a
fraternidade dos Estados Unidos para os paizes
latinos. Vimos o Mexico; vamos agora á America
Central.
«Está no destino de nossa raça», dizia na sua
mensagem de 7 de janeiro de 1857 o presidente
Bucha-nan «o estender-se por toda a America do
Norte, e isto acontecerá dentro de pouco tempo se
os acontecimentos seguirem o seu curso natural.
A emigração seguirá até ao sul, nada poderá
detel-a. A America Central, dentro de pouco
tempo, conterá uma população americana, que
trabalhará para o bem dos indi-
A illusão americana
71
genas. O senador G. Brocon em 1868: «Temos
interesse em possuir Nicaragua. Temos
manifesta necessidade de tomar conta da
America Central, e, se temos essa necessidade, o
melhor é irmos já como senhores áquellas terras.
Se os seus habitantes quizerem ter um bom
governo, muito bem e tanto melhor. Se não
quizerem, que vão para outra parte. Vão-me
dizer que ha tratados, mas que importam os
tratados se temos necessidade da America
Central? Saiba-mo-nos apoderar d'ella, e se a
França e se a Inglaterra quizerem intervir, avante
ó doutrina de Monröe!.
A extraordinaria historia do flibusteiro
Walker é das que melhor pintam a fé norte-
americana e o desprezo profundo que os
governos dos Estado Unidos têm pela soberania/
pela dignidade e pelos direitos das nações latinas
da America. Houve um momento em que os
americanos julgaram chegada a occasião de
conquistar a America Central. Tendo
72 A illusão americana
conquistado metade do Mexico, a conquista da
America Central deixaria o que hoje resta do
Mexico independente, apertado entre dois ter-
ritorios americanos, isto é, fadado a uma
absorpção rapida. Um aventureiro, William
Walker, saiu em 1853 de S. Francisco, á frente de
um pequeno exercito de bandidos, formado
debaixo das vistas protectoras das auctoridades
americanas. Este bando armado invadiu o
territorio mexicano de Sonora, e Walker
proclamou-se presidente do novo territorio, anne-
xando-o por sua propria auctoridade aos Estados
Unidos. Teve, porém, de desistir do seu proposito
e de ren-der-se ás auctoridades federaes ame-
ricanas de San Diogo, que o tiveram de julgar
pelo crime commettido e pela quebra da
neutralidade, mas que, como era de esperar,
absolveram-no. Por esse tempo, na infeliz
republica de Nicaragua tratava-se de uma eleição
presidencial, o que nas republicas hispano-
americanas é synonimo
A illusão americana
73
de guerra civil. Estavam em campo dois
candidatos, generaes, se vê, por signal
chamados, um Castellon e outro Chamarro.
Mais, ou menos eleito Chamarro, foi meio
deposto por seu rival Castellon que, para forta-
lecer a sua situação teve a idéa desastrada de
convidar a Walker a vir' ao Nicaragua ajudal-o a
defender a constituição e o principio da aucto-
ridade. Walker formou novo exercito, e partiu de
S. Francisco em maio de 1855.
Immediatamente, o ministro de Nicaragua em
Washington, o sr. Marco-leta, queixou-se
energicamente, mas o Secretario d'Estado Marcy
fingiu ignorar o caso e não attendeu ao re-
clamante. Logo teve logar a primeira batalha.
Os nicaraguenses alliados de Walker parece que
fugiram aos primeiros tiros, mas os 56 america-
nos que elle commandava levaram tudo de
vencida, dando a Walker um immenso prestigio.
Logo depois, outras victorias do mesmo teor
em
74
A illusão americana
Bahia das Virgens, San Juan del Sur e Rivas, e
sem resistencia, Walker entrou em Granada. A
cidade foi saqueada durante tres dias, e Walker
tendo feito uma proclamação garan-tindo a vida
dos moradores, os principaes d'estes voltaram ás
suas casas, e foram fuzilados sem demora nem
processo. O ministro americano Wheeler, que
estava feito com Wai-ker, empenhou-se sobretudo
para que apparecesse um cidadão importante
chamado Mayorga, a quem deu todas as garantias,
dizendo-lhe que ficava debaixo da protecção da
bandeira estrellada dos Estados Unidos. Mayorga
caiu na armadilha, e o ministro americano
entregou-o a Walker, que o fuzilou logo com
muitos outros cidadãos de Nicaragua. (1) Walker
arranjou logo uma especie de tratado de paz com
um general Corral, e fez presidente nominal da
(1) Walker on Nicaragua, pag. 6, Cojutepec, 1866.
A illusão americana 75
republica a D. Patrício Rivas que, sob a pressão
do medo, logo que pôde, fugiu das mãos de
Walker, no que andou com prudencia, porque
dias depois o general Corral (outro protegido da
legação americana) foi fuzilado. Walker ficou
senhor absoluto do paiz, e a 12 de julho de 1856
proclamou-se dictador, tendo o seu
embaixador Vigil sido recebido solemnemente
pelo governo de Washington a 12 de maio do
mesmo anno.| A 22 de setembro Walker expediu
um decreto restabelecendo a escravidão no
Nicaragua. A escravidão havia sido abolida ali
havia trinta e dois annos. Grande parte da
imprensa americana e a maioria do congresso
saudou com jubilo este decreto escravagista. As
outras nações da America Central reconheceram
o perigo, declararam guerra a Walker, que
começou a receber, grandes recursos dos Estados
'Unidos. A guerra seguiu com varia sorte. Walker
incendiou completamente a cidade de
76
A illusão americana
Granada e recolheu-se a Riyas, praça que se
rendeu ao general Mora em 1 de maio de 1867; e
graças á intervenção do capitão Davis, com-
mandante do navio de guerra, americano Saint
Mary's, Walker póde escapar, refugiando-se com
o seu estado maior e 260 soldados a bordo do
mesmo navio de guerra, que os transportou para
Nova Orleans, onde foram recebidos no meio de
applausos populares. (1)
(1) Haydn's, Dictionary of Dates, 1889, pag. 635.
O relatorio do ministro da marinha Toucey em 1857
falla a respeito do asylo concedido a William Walker
nos seguintes termos:
Julgou o governo necessario, como medida de
humanidade e de politica, dar instrucções ao com-
modore Mervine (chefe da divisão naval), no sentido
de facilitar ao general Walker e aos seus com-
panheiros, no caso d'ellea a solicitarem, a retirada de
Nicaragua. A acção do commandante David,
facilitando por meio do navio Saint Mary's a retirada
de Nicaragua ao general Walker e aos seus soldados,
foi pois approvada por este ministerio.»
Inglez: «It was deemed necessary, as a mea-snre of
humanity and policy, to direct commodore Mervine to
give general Walker and such of his men, as were
willing to embrace it, an opportu-nity to retreat from
Nicaragua. And the action
A illusão americana
77
Em New-York houve um meeting em honra e
favor de Walker. 0 presidente dos Estados
Unidos, Bucha-nan, mandou um telegramma
encomiastico a respeito de Walker, dizendo «que
os heroicos esforços de Walker excitavam a sua
admiração e a sua solicitude». (1)
Em Nova Orleans, sempre com a
benevolencia do governo de Washington,
começou o aventureiro a organisar outra
expedição. Denunciado pelos agentes
diplomaticos centro-americanos, foi preso,
sendo, porém logo solto mediante pequena
caução.
Equipando o navio Fashion, partiu a 11 de
novembro para Punta Arenas, onde desembarcou
com 400 homens, sem que se oppozesse a isto
of commander Davis, so for as he aided general
Walker and his men, by the use of the Saint Marv's to
retreat from Nicaragua, was approved by this
Departement.»
Congressional Globe, part. I, l.st session, 35.
congrega, 1857 • 1858, pag 856.
(1) Von Holst, Constitutional History of the United
States, 1856 - 1859, pag. 160.
78
A illusão americana
o Saratoga, vaso de guerra americano. O capitão
Paulding, da marinha americana, chegando
depois, obrigou Walker a render-se e trouxe-o
para New-York. Walker foi entregue ao»
tribunaes, mas estes não o processaram, sendo,
porém, processado e reprehendído o capitão
Paulding, por ter excedido as suas instrucções e
ter contrariado o governo de Washington,
declarado protector de Walker. Em agosto de
1860, Walker desembarcou em Truxillo
(Honduras), apo-derou-se da fortaleza e saqueou
a cidade. O capitão Salmon, comrnandante do
Icarus, navio de guerra in-glez, intimou Walker a
restituir a propriedade roubada. Walker recusou e
fugiu. Foi perseguido, apanhado, o governo de
Honduras, fêlo julgar e fuzilar (1) o desastre final
de Walker produzia indignação noa Estados Uni-
dos. Quizeram fazer d'elle um heroe
(1) Haydn's, Dictionary of dat, es 1889, ibidem.
A illusão americana
79
sublime. O poeta Joaquim Miller exal-tou-o e
attribuiu-lhe:
A piercing eye, a princely air A
presence like a chevalier Half angel,
half Lucifer.
Quem ha, versado na historia la-tino-
americana, que não tenha na lembrança o barbaro
bombardeamento de S, João de Nicaragua (Grey-
town) em 1854? O commandante de um vapor
americano matou cruelmente com um tiro de
carabina, á entrada d'aquelle porto, o patrão de
um barco de pesca. As auctoridades exigiram a
entrega do criminoso. O ministro americano
oppoz-se; houve manifestações de desagrado ao
ministro, e tanto bastou para que os Estados
Unidos mandassem a Nicaragua a corveta Cyane,
que exigiu todas as reparações, o pagamento de
uma longa lista de pretendidos pre-juízos
soffridos por americanos, e
80
A illusão americana
30:000 dollars de indemnisação ao ministro,
pelas assuadas. Isto sob pena de bombardeio em
vinte e quatro horas. A população, julgando que o
caso se limitaria a algumas bombas arremessadas
contra a pequena cidade, que apenas contaria
umas quinhentas casas, retirou-se para o interior.
O commandante do vaso de guerra inglez
Bermuda protestou solemnemente, declarando
que a fraqueza do seu navio impedia-o de op-
por-se pela força ao bombardeio. No
dia seguinte, depois de atirar algumas bombas, o
commandante operou um desembarque, e as suas
tropas incendiaram todas as casas. A cidade ficou
inteiramente destruída, e o prejuízo causado a
estrangeiros pela destruição de mercadorias subiu
a mais de 2.000:000 de dollars. (1)
(1) Calvo, Traité theorique et pratique de droit
international.
Von Holst, vol. IV, pag. 11.
Na grande obra do sr. Calvo a data do bombardeio
é dada como em 1834, e n'outra sua obra
A illusão americana 81
Este crime não teve outra punição além do
justo estygma da historia.
Quando a Inglaterra começou a se apoderar
dos territorios que cercam Belise e das ilhas
Honduranas que constituem hoje o Honduras
inglez, a pobre republica de Honduras em vão
appellou para a protecção do governo de
Washington, allegando contra a violencia que lhe
era feita a doutrina-de Monröe.
N'esta questão da Centro-America, longe de
se oppor á intervenção eu-ropêa, o governo
americano solicitou até a interferencia da
Inglaterra no assumpto pelo tratado de 19 de
abril
como em 1835. Erros de revisão d'esta ordem são
numerosos nas preciosas e utilíssimas compilações do
sr. Calvo. For isso é preciso um certo cuidado com as
informações que ellas nos fornecem, sendo sempre
bom ir verificar as fontes citadas que, sendo
numerosíssimas, nem todas podéram ser convenien-
temente resumidas pelo auctor. Assim, o sr. Calvo
não falla do protesto, importantíssimo alias, do
commandante do Bermuda, e é de estranhar que
episodios da importancia das expedições Walker não
sejam, sequer tratados pelo escriptor argentino.
A ILLUSÃO AMERICANA
82 A illusão americana
de 1850, conhecido pelo nome de tratado
Clayton-Bulwer. Por esse tratado os Estados
Unidos associaram-se á monarchia europêa para
regularem a construcção e a neutralidade do
projectado canal de Nicaragua. E, cousa notavel,
uma dás consequencias d'este tratado foi os
Estados Unidos reconhecerem solemnemente' o
domínio inglez no Honduras em detrimento das
republicas hespanholas no Centro America. Na
clausula l.
a
d'este tratado os dois governos con-
cordavam que nem um nem outro poderia
occupar, fortificar, colonisar ou assumir ou
exercer qualquer domínio sobre Nicaragua,
Costa Rica, a Costa dos Mosquitos ou qualquer
parte da America Central.
Em 29 de junho de 1850 o minis-tro inglez
em Washington, sir Henry Lytton Bulwer,
declarava que o governo inglez excluía d'aquella
clausula os estabelecimentos inglezes do
Honduras, e a 4 de julho o secretario d'estado
annuia n'uma nota ad-
A illusão americana 83
mittindo que ficavam fóra do tratado os
estabelecimentos, inglezes no Honduras. (1)
em 1855 o ministro americano em
Londres, Buchanan, solicitou que a Inglaterra
abandonasse a ilha de Ruatan e outras de que a
Inglaterra se tinha apoderado na costa do Hon-
duras, assim como o territorio entre os rios Sibun
e Sarstoon, e que a possessão ingleza de Belise
se limitasse á parte dos tratados anglo-hes-
panhoes de .1783 e 1786, e que a Inglaterra
abandonasse a Costa dos Mosquitos. Lord
Clarendon, ministro dos negocios estrangeiros da
Inglaterra, repondeu com uma redonda negativa.
E Monröe? (2)
(1) Hertslet, A complete collection of treaties, etc.
vol. VIII, pag. 969 e vol. X, pag. 645. . (2) Elisée
Réclus, Geographie Universel, tomo XVII pag. 484,
diz: «La côte dite de Mosquitia ou des Mosquitos fut
revendiquée par le gouver-nament anglais, et si les
États Unis n'étaient in-tervenus, tout 1'espace comprís
entre la riviére de Nicaragua et la baie da Honduras
serait devenu territoire britannique comme l'est
actuellement le
84 A illusão americana
Quando se formou na Europa, com séde em
França, a mallograda companhia do canal
interoceanico, que obteve uma concessão do
congresso colombiano, o governo de Washington
saíu-se logo com a doutrina de Monröe, fazendo
um terrivel escarcéu. O velho Lesseps, porém, foi
de Panamá a New-York, foi a Washington e,
como por encanto, toda a opposição
pays de Belize. En vertu de la doctrine de Mon roe,
l'Amerique reste aux Américains et le litto-ral de la mer des
Caraibes est restitué à la Repu-blique du Nicarágua».
Esta affirmação do illustre geographo é inteiramente
falsa. A intervenção dos Estados Unidos foi seguida da
negativa de Lord Clarendon. Em 1860, pelos tratados de 28
de janeiro e 11 de fevereiro, assignados em Managua, a
republica de Nicaragua fez muitas concessões á Inglaterra
quanto ao transito do isthmo, e cedeu á republica de Nica-
ragua o protectorado da Costa do Mosquito.
Em troca de concessões analogas feitas pelo-Honduras, a
Inglaterra reconheceu, com varias res-tricções, o domínio
d'essa republica sobre as ilhas do Honduras pelo tratado de
28 de novembro de 1859.
Nos Estados Unidos esses tratados foram considerados
como victorias da diplomacia ingleza e foram muito
atacados, prova de que não foram celebrados, graças aos
Estados Unidos, como diz o ar. Béclus.
A illusão americana
85
cessou por parte da secretaria distado. Annos
depois, tudo isto ficou explicado por occasião do
celebre processo de Panamá, e soube-se porque
as influencias americanas, os homens do governo
de Washington deixaram de lado Monröe e a sua
doutrina. No processo de Panamá verificou-se
que milhões de francos foram mysteriosamente
gastos para acalmar escrupulos e para suavisar a
doutrina de Monröe. Eis qual tem sido o papel
dos Estados Unidos em relação á grandiosa idéa
do canal interoceanico. Aquelle paiz tem em-
pregado toda a sua influencia para atrazar e
embaraçar por todas as fórmas a grandiosa
empreza, promet-tedora de benefícios para a
humanidade, e isto para não prejudicar as
companhias dos caminhos de ferro
transcontinentaes. É mais um serviço, que lhe
devem a Colombia, o Equador, o Peru, a Bolivia
e o Chile, paizes cuja prosperidade tanto ne-
cessita do canal de Panamá.
A illusão americana 86
Quando em 1888 a esquadra italiana amaeçou
os portos da Colômbia e do Equador, exigindo
violentamente satisfações e indemnisações, que
protecção ás suas irmãs violentas deu a república
norte-americana ?
Quer-se apresentar o governo americano aos
brazileiros como o grande amigo das nações
d´este ontinente, como o seu protector nato, e no
furor d´isso demonstrar, há jornaes brazileiros,
de tão atrophiao pratiotismo, que chegam a
collocar o Brazil como que debaixo do
protectorado americano, fazendo do Rio de
Janeito o vassallo e de Washington o suzerano. É
contra este falsa idéa, contra este aquecimento
do pundonos nacional, que queremos reagir,
relembrando aos nosso compratriotes o que tem
sido a politica americana.
A illusão americana 87
Para o Mexico, ella tem sido um algoz e para
a America Central um inimigo.
Continuemos agora a ver o que os Estados
Unidos têm feito contra outros paizes, sem
esquecer a pobre republica do Haiti, a quem os
Estados Unidos tanto tem atormentado, a
pretexto de indemnisação por prejuízos soffridos
por americanos, nas muitas revoluções haitianas.
Haiti e S. Domingos, têm sido varias vezes
ameaçados por navios de guerra da união
americana, sempre a pretexto de indemnisações
reclamadas. E aquelles pobres paizes julgavam-
se isentos d'estas reclamações; todos os seus
governos tinham de certo, cautelosamente,
expedido decretos dizendo de antemão que não
se respon-sabilisavam pelos prejuízos que as
suas revoltas cousassem tanto em terra como. no
mar !
Nao é tão grande como se pensa no Brazil o
empenho que têm os
88 A illusão americana
Estados Unidos de que a Europa não possua
territorios na America.
A Dinamarca lhes quiz ceder a ilha de S.
Thomaz; os habitantes acceitaram a idéa, mas os
Estados Unidos recusaram. No momemto do-
minava n'aqueile paiz uma politica de
retrahimento, reacção do período anterior das
invasões do Mexico e da America Central. O
presidente Grant mostrou-se disposto a adquirir
Cuba, e hoje, que es Estados Unidos pre-param-se
com uma nova esquadra para fazer politica
exterior (1), as vistas americanas são para outro
porto das Antilhas, par o porto magnifico do
Haïti, o Molhe S. Nicolas, cuja posse é exigida
pela marinha americana para centro da
estação
(1) A construcção desta esquadra foi ensejo para
grandes escandalos administrativos entre o ministerio
da marinha e os constructores. Ficou provado que os
costructores e empregados superiores da marinha
roubaram descaradamente o thezonro. Basta dizer que
o governo pagon como encoura-çados navios qne não
o são.
A illusão americana 89
naval do golfo, e para dominar completamente a
passagem dos estreitos antilhanos. O governo
americano, n'estes ultimos tempos, tem tido as
necessarias complicações com o Haiti,
desavenças preparatorias para a conquista, que
em documentos officiaes ultimamente tem
sido aconselhada e reclamada.
Devemos, a respeito de Cuba, mencionar de
passagem a expedição que fracassou em Round
Island em 1849, a que foi batida em Cardenas
em 1860, a de 1851, commandada pelo caudilho
Lopez, que, batido, foi executado, com cincoenta
dos seus companheiros (1).
Os patriotas cubanos que têm sonhado com a
independencia da perola das Antilhas, pozeram a
principio, grandes esperanças na doutrina de
Monröe. Julgaram que os Estados
(1) Sobre esta expedição ler: America y Espana,. de
D. José Ferrer de Couto, Cadiz. 1859.
90 A illuo americana
Unidos não podiam deixar de prote-gel-os contra
a metropole. Como po-deria a aguia americana
consentir que, á sombra das suas azas pode-rosas,
continuasse uma parte do livre solo americano
debaixo do jugo hespanhol ? New-York, por
muitas, vezes, tem-se tornado o quartel general
dos conspiradores cubanos. A legação de
Hespanha, em Washington, diversas vezes tem
protestado contra a quebra das leis da
neutralidade por parte do governo americano, que
tem deixado organisarem-se verdadeiras
expedições armadas contra b governo de Cuba.
Qual tem sido o proceder do governo americano
sem fallar na celebre expedição Lopez ? A princi-
pio, deixa que a conspiração gaste dinheiro em
New-York, frete navios, compre armas, e á ultima
hora vi-ra-se contra ella, a policia americana põe-
se de accôrdo com o serviço de vigilancia
mantido pela legação hes-panbola, e os pobres
patriotas são burlados nas suas esperanças. Mais
de
A illusão americana
91
uma vez, às expedições têm chegado a sair de
portos americanos, têm apor tado a Cuba e têm
sido invariavel mente batidas pelos hespanhoes.
Os patriotas cubanos, talvez injustamen
te, accusam sempre os seus auxilia res,
americanos mercenarios, de traição. Uma vez, a
tripulação inteira de um navio, composta de
americanos, foi inexoravelmente fuzilada em
Cuba e, apesar da emoção que este facto
produziu nos Estados Unidos, o governo de
Washington nem por isso tomou a defeza da
causa da independencia cubana. Tem sempre
abandonado esta causa, vendendo á Hespanha a
posse indefinida de Cuba, a troca de favores
commerciaes, isenções de direitos para productos
americanos, etc, etc. O frio egoismbe o
requintado machiavelismo não são, pois, o
privilegio exclusivo da negregada diplomacia das
côrtes europêas. Ninguem ignora que a republica,
então chamada da Nova Granada
92
A illusão americana
(hoje Columnbia), concluiu com os Estados
Unidos um tratado a res-peito da construcção de
um caminho de ferro no isthmo de Panamá, o
mesmo caminho de ferro que mr. de Lesseps
comprou depois por vertiginosa quantidade de
milhões, por conta dos pobres accionistas da com-
panhia do Canal.
Fez-se o caminho de ferro, e Panamá tornou-se um
logar de um transito espantoso. Transito do oiro que
vinha da California e de americanos que iam para a
Califórnia. Do oiro nada ficava em Panamá,
mas dos americanos alguns ficavam, e estes
exerciam diariamente a sua brutalidade contra os
pobres habitantes, desgraçados south americans
destinados a succumbir ao contacto do yankee. No
dia 15 de Abril de 1856 as provocações americanas
cansaram a paciencia dos naturaes de Panamá. Os
americanos começaram a fazer fogo de rewolver
contra os passantes, estes reagiram a pedra, depois
a tiro.
A illusão americana
N'uma palavra, houve um tumulto enorme e
muitos mortos de parte a parte. Resultado:
intervenção ame-ricana, intimação para o
governo do isthmo ser independente de Bogotá
(isto é, entregue aos yankees) e 400:000 dollars
de indemnisação.
Quem, porém, devia pagar as vidas dos neo-
granadinos, tirados pelo americanos, e as suas
casas incendiadas por estes? Veiu o costumado
ultima-tum e o governo de Bogotá deu-se por
muito feliz por ter sómente de pagar a
exorbitancia que lhe era exigida pela força e
contra todo o direito. (1)
Os Estados Unidos têm muitas relações com o
Peru, e estas relações não têm trazido grandes
benefícios para esta republica latina.
(1) Vide Nueva Granada y los Estados Unidos de
America, Final contestacion diplomatica. Bogotá,
1857; Manifiesto dirijido á la nacion por algunos
representantes sobre el convenio Her-ran Cass.
Bogotá, 1858,
94 A illusão americana
A republica do Peru soffreu tam bem
violencias americanas.
Durante uma das muitas revoluções d'aquelle paiz,
varios navios americanos, entre outros a Lizzie
Thompson e a Georgiana, aproveitando-se do facto
dos navios de guerra peruanos estarem com os
revoltosos, empregaram-se activamente no con-
trabando do guano contra disposição
expressa das leis peruanas. Os navios de guerra
revoltosos entregaram-se ao governo, facto que deu
muito prestigio ao principio da auctoridade e
consolidação da republica no Peru, que depois
d'isso (1860) tem gosado de inalteravel felicidade
de riqueza e poderio, como sabemos. Um d'esses
navios revoltosos, o Tumbes, logo que voltou ao
serviço da legalidade, aprisionou, como era direito
e dever do governo peruano, os navios contra-
bandistas. O que fez o governo de Washington ?
Reclamou cada vez mais insolentemente, rompeu
as relações diplomaticas, andou procurando nos
A illusão americana
95
archivos quanta especie de reclamação havia,
juntou tudo, lançou um ultimatum, e o pobre
Perú teve de pagar. (1)
A historia ao Peru, depois do grande período
tragico e heroico da conquista e depois de findo
o dominio colonial, é bem simples. Tem sido
setenta annos de, desgraça que transformaram a
mais rica possessão da corôa hespanola n'um dos
paizes mais pobres e infelizes do mundo. Quator-
ze lustros de regimen republicano! Houve,
porém, um período de illusoria prosperidade, e é
de estranhar que então alguem tambem não nos
dissesse: Olhemos para o Perú! O grande
período da nevrose e da megalomania financeira
na Argentina, foi o período da grande importação
do
(1) O direito do Peru é demonstrado á saciedade na
correspondencia official, trocada a esse proposito
entre os governos de Washington e de Lima. Vid.
Question between the United States and Peru.
Diplomatic correspondence. Lima, 1861.
96 A illusão americana
oiro europeu, o período correspondente, no Brazil,
foi o da fundação das finaas republicana, foi a
epocha do papel. No Peru; a epocha póde ser
chamada a epocha do guano.
Durante centenares se não milha-res de annos,
segundo os calculos do sabio Raymondi. os
pelicanos do mar, as aves dos rochedos, as gaivotas
das praias, revestiram as fraldas dos penhascos, as
planuras e encostas dos ilhotes e das enseadas
fragosas, de uma grande e profunda coberta del
dejecções que constituíram uma enorme massa de
materia alcalina e phosphatada com que a industria
começou, ha uns trinta annos, a revigorar as terras
exhaustas pelas culturas seculares. Para os valles da
Virgínia depauperados pela esgotante cultura do
tabaco, para os campos da Inglaterra e. da
Allemanha, foi levado, em grandes carregamentos, o
adubo salvador, comprado a peso de oiro no Peru.
Isto que devia ser a riqueza da infeliz nação foi uma
causa
A illusão americana 97
de desgraça. O esterco, que ia ao longe fertilizar
as terras estereis, serviu para activar a
putrefacçâo do governo e do paiz todo. O guano
foi declarado propriedade nacional e a sua
extracção era objecto de concessões feitas a
particulares. Os particulares eram, em regra,
parentes ou amigos dos homens do governo, e
tornavam-se, em todo o caso, seus socios. O
thesouro recebia grendes proventos do guano,
em troca das concessões, já sob fórma de direitos
de exportação. Foi n'esse tempo que o governo
peruano viu-se prezo de um bem singular motivo
de inquietação ou de susto, susto que parece
ser proprio aos estadistas financeiros, em
vesperas de grandes desastres. Tambem no Perú
se perguntava na imprensa, no congresso, em
conversas particulares: O que fazer dos saldos do
thesouro ? Pergunta insensata !
Ha um conto oriental — do homem a quem o
destino deu um milhão por
A ILLUSÃO AMERICANA
98
A illusão americana
dia com a condição do homem gas-tal-o todo no
tempo comprehendido entre duas auroras. A
falta do cumprimento d'esta condição era a morte
do infeliz. Prazeres, gosos, prodigalidades, tudo
isto bastou, nos primeiros dias, para consumir o
milhão diario. Em pouco tempo veiu a fadiga, o
esgotamento' e debalde trabalhava a imaginação do
homem para achar o meio de esvasiar os ultimos
saccos de oiro que ainda estavam cheios quando
alvorecia a aurora do novo dia. Appareceu o Anjo
da Morte e an-nunciou ao desgraçado o seu fim.
Lamentou-se o homem : Não consegui gastar o
meu milhão ! E o Anjo da Morte respondeu-lhe :
E que tu esquecestes o unico meio que Havia
para isso ! — Qual era ? — Fazer o bem!
Ora, os paizes, victimados pela
superabundancia de dinheiro, só têm um meio de
escapar a esse mal, aliás singularissimo. E fazer
o bem. E ha
A illusão americana
99
tantos modos de um governo ser bemfazejo !
Não fallamos de soccorros publicos, de grandes
esmolas collecti-vas, de dinheiro distribuído
pelos pobres ou pelos soldados, signaes certos
estes do esphacelamento do caracter nacional,
factos proprios das tyrannias expirantes e dos
pretoria-nismos insaciaveis. A sciencia poli-tica
caminhou desde a antiguidade. Hoje, o dinheiro
publico, que vem do imposto, sendo mais do que
é necessario para os serviços publicos, o que ha a
fazer é pagar as dividas do estado, se o estado
tem dividas. Se as não tem ou se não convem
liquidal-as por qualquer rasão, não ha outro
alvitre honesto senão a diminuição dos impostos.
Os Estados Unidos, ha bem pouco tempo,
tinham um saldo embaraçoso, uma grande
reserva metallica que muito deu que fallar. Por
alguns annos prevaleceu, até certo ponto, n'esse
particular, a politica honesta e sensata, de
applicar esse saldo á
100 A illusão americana
amortisaçao da divida. Os proteccionistas não
queriam consentir na diminuição dos impostos de
entrada, que eram os que mais avolumavam a
saldo. Á tentação era, porém, muito grande e
muito pequenos eram os escrupulos dos políticos.
Em pensões escandalosas, em subsídios injustifi-
caveis foi malbaratado o saldo. Ap-pareceu o
déficit no orçamento. O thesouro, para favorecer
os ricos proprietarios das minas, continuou a
permittir a livre cunhagem da prata, foi
transformando úm metal desvalorisado n'uma
moeda tambem depreciada e, em virtude da
celebre lei de Gresham que a moeda depre-
ciada faz emigrar a moeda de valor — o oiro
emigrou para a Europa, e o paiz todo caiu na
pavorosa crise economica em que hoje se debate,
Sobrenadando no naufragio os grandes
capitalistas e os homens do monopolio, sendo,
porém, a classe pobre, os operarios, mergulhados
na miseria a mais negra.
A illusão americana 101
O Perú, dizíamos, achou-se em serias
difficuldades diante de tanto dinheiro. Não lhe
veiu á mente a idéa de fazer o bem, que seria, no
seu caso, o pagamento das dividas nacionaes ou a
diminuição dos impostos. Por essa epocha, o
ministro das relações exteriores mandou uma
circular ás legações peruanas, ordenando-lhes
que, convocando os prin-cipaes economistas dos
paizes onde se achassem acreditadas,
expozessem-lhes a situação financeira do Perú e
pedissem áquelles luminares da sciencia
conselho e opiniões para aquelle grave caso. O
Perú soffria, o Peru ia morrer talvez e
desesperado recorria á sciencia, perguntando-lhe
quaes os remedios para o seu mal, para a terrível
doença: a plethora de dinheiro. Variaram talvez
os alvitres, mas a doença desappareceu por si,
antes de ser applicado ao enfermo o receituario
da douta faculdade. Dois generaes de boa
vontade, os generaes Pardo e Prado, secundados
102 A illuo americana
por outros collegas, por muitos coroneis e por um
exercito todo met-tido a politico, acabaram com
os saldos, e o Perú deixou de ser excepção na
America hespanhola, ficou tão fallido como
qualquer outra republica, dando-se a
integralisação na quebradeira hispano-americana.
N'essa epocha dé desmoralisações
administrativas que chegam até á legenda, foi
grande no Perú a malefica influencia dos Estados
Unidos. Os aventureiros americanos enchiam
Lima. Como no México, esses aventureiros eram
apresentados pela legação americana, por ella
patrocinados, e o posto de ministro americano no
Perú tornou-se muito lucrativo. De vez em
quando, lá iam boas sommas em indemnisações a
yankees concessionarios de guanos ou de
qualquer outra cousa e que se pretendiam lesados
pelo governo. Ora, esses movimentos de capitaes,
não se dão sem deixar algumas aparas nas mãos
da diplomacia de Washington. Fallava-se
A illusão americana
103
tambem, ás vezes, em doutrina de Monröe, o que
não impediu a Hes-panha de aggredir o Perú e o
Chile, bombardear Valparaiso sem que. dos
Estados Unidos partisse uma voz sequer em
favor dos paizes victimas da violencia d'aquella
nação europêa. A esse proposito escrevia um
illustre argentino:
«A doutrina de Monröe não convem á
America do Sul, e o exemplo mais curioso que
citei é o d'esse bombardeio de Valparaiso. A
esquadra norte-americana dos mares do sul
assistiu impassível ao bombardeio de Valparaiso,
porque, em virtude da doutrina de Monroe, as
potencias leuropêas ficam excluídas de toda a
intervenção na America. Em virtude d'essa
doutrina aquella esquadra deveria oppor-se ao
bombardeio, mas para se oppor efficazmente ella
precisaria do apoio das esquadras da França e da
Inglaterra presentes no porto, e essas esquadras,
ainda em virtude da tal doutrina, abstiveram-se
104 A illusão americana
e deu-se o bombardeio. Por este exemplo vê-se de
que utilidade póde ser a doutrina Monröe para a
America, do Sul (1).
Voltemos, porém, ao Perú.
O guano foi diminuindo pouco a pouco.
(1) Alberdi, traducção de Th. Mannequim, Paris,
1866, Antagonisme et solidaritê des états orien-taux et
des états occidentaux de 1'Amérique ate Sud, pag. 155.
Emquanto os Estados Unidos mostravam esta
indifferença diante do assalto da Hespanha ás
republicas do Pacifico, o Brazil mo-narchico, embora a
braços com as difficuldades da guerra do Paraguay,
respondia ao appello do Chile pela seguinte fórma:
«Correspondendo ao honroso appello do governo
chileno, o governo de Sua Magestade o Imperador
auctorisa o abaixo assignado a assegurar a v. ex.
a
que,
de perfeito accôrdo com as considerações exaradas por
v. ex.
a
, o governo imperial o va-cillará em prestar
com o maior prazer o concurso dos seus bons officíos
e do seu apoio moral para que não prevaleçam
princípios que offendam a autonomia e os legítimos
interesses dos estados do continente sul americano,
Estas palavras são de uma nota dirigida a 7 de junho
de 1864 a D. Manuel A. Tocornal, ministro das
relações exteriores do Chile pelo conselheiro João
Pedro Dias Vieira, ministro dos negocios estrangeiros
do imperio.
A illusão americana
105
O governo do Pe lançou mão do trabalho
dos chins, reduzidos nas guaneiras, a verdadeiros
galés e na realidade escravisados nas estancias e
nas fazendas de assucar. Esse trafico de escravos
amarellos era feito por umas casas americanas, e
quasi sempre sob a bandeira estreitada que
protegia a escravidão asiatica, no Perú, em
Cuba. O porto de saída d'esses desgraçados era
Macau. O governo portuguez começou a se im-
pressionar com o escandalo, e o relatorio que Eça
de Queiroz, consul de Portugal na Havana,
apresentou ao governo demonstrando as
monstruosidades commettidas contra os chins,
appressou talvez o fechamento do porto de
Macau á emigração chineza, Houve americanos
estabelecidos no Perú e ligados aos agricultores
peruanos que se enfureceram com a suppressão
do trafico amarello, e foi então que se organisou
uma das mais hediondas emprezas de pirataria de
que ha noticia. Foi armado
106 A illusão americana
um grande navio, que saiu mar em fóra e
demandou o pequeno grupo de ilhas perdido no
oceano Pacifico conhecido pelo nome de ilha da
Pas-choa, e que hoje foi annexado pelo Chile.
Essas ilhas, celebres pelos estranhos
monumentos graníticos que deixou uma raça
desapparecida, pelos vultos colossaes de pedra
esculpida plantados nas encostas das montanhas,
por uma civilisação ignota, eram povoadas de
polynesios, raça suave e inoffensiva, de uma
innocencia paradisíaca, que o contagio
exterminador do homem civilisado ainda não
victi-mára. Os flibusteiros desembarcaram na ilha,
mataram as creanças, os velhos, e quasi todas as
mulheres, e acorrentaram e algemaram os homens
validos que, atirados ao porão do navio, foram
trazidos para o Pe como escravos. Quando a
noticia d'es-te horrível attentado echoou na Eu-
ropa, o governo inglez commoveu-se e ordenou
ao ministro de Inglaterra
A illusão americana 107
em Lima que informasse sobre o assumpto.
Verificada a exactidão da noticia, o governo
inglez exigiu inexoravelmente que os infelizes
escra-visados lhe fossem entregues pelos
cidadãos republicanos da America.
Recolhidos a bordo de um navio de guerra
inglez, os desgraçados que tinham escapado á
ferocidade americana, foram restituídos ás suas
ilhas, devendo sua salvação ao espirito christão
da Inglaterra, ás sociedades humanitarias
composta de burguezes, de mulheres religiosas e
de curas de aldeia, que n'aquelle paiz, que é o
mais poderoso e livre do mundo, têm bastante
influencia para mover a imprensa, a opinião e o
governo em favor de uns míseros selvagens, per-
seguidos a milhares de leguas de distancia.
Era esta e originava factos d'esta ordem a
situação politica e financeira do Perú, quando
houve a guerra com o Chile. Depois da utilisação
das gua-neiras que estavam quasi esgotadas,
108 A illusão americana
no extremo sul do paiz e na costa boliviana,
descobriram-se, ou antes, começaram a ser
utilisados, os chamados campos de nitrato de
soda, isto é, grandes e espessas camadas d'es-sa
substancia, provindas parece que de feldspathos
decompostos pela acção das aguas thermaes e
sepultados hoje nos areaes do deserto de Ata-
cama. Esses nitratos são, como o guano, adubos
de grande valor para as terras. Assim, aquella
região de absoluta aridez, começou a dar a terras
distantes a fertilidade que ella mesma não tinha.
Affluiram para Ataca-ma os grandes capitaes e as
grandes energias dos chilenos. A concorrencia foi
fatal a peruanos e a bolivianos. O Chile foi logo
senhor da industria dos nitratos. Começaram as
auctori-dades bolivianas a vexar por todas as
fórmas fiscaes e administrativas os chilenos.
D'aqui incidentes diplomaticos, conflictos,
questões e, por fim, a guerra.
N'essa guerra havia: de um lado,
A illusão americana 109
o pequeno exercito chileno triplicado pelo
numero de voluntarios; do outro, havia dois
exercitos desmoralisa-dos por longos annos de
intervenções na politica, desorganisados pelos
pronunciamentos, desprestigiados pelas
confraternisações, aviltados pelas traições e pelas
falsidades que são a sorte commun da vida de
todo o exercito que se mette em politica. A
victoria, ardua, gloriosa nas suas dificuldades,
terrível nos seus effeitos, coroou a energia da
administração chilena. A guerra estava a findar
quando se deu a celebre intervenção norte-
americana, episodio curiosíssimo da historia da
America do Sul.
O ministro americano Hurlbutn era o
legitimo representante dos interesses fundidos
das casas americanas e dos políticos peruanos
nos escandalos da exploração do guano e dos
mil negocios que, á sombra da diplomacia norte-
americana, tinham arruinado o Perú, A
victoria chilena era a desor-ganisação de toda
aquella federação
110 A illusão americana
de interesses e de corrupção. Era presidente dos
Estados Unidos o general Garfíeld e chefe do
gabinete ou secretario de estado, o famoso James
C. Blaine.
Singular e estranha personalidade era a d'este
quasi grande homem! Havia n'elle como que um
ultimo alento do sopro heroico dos tempos da
independencia e da grandeza intel-lectual dos
estadistas americanos. Elle era uma especie de
Hamilton, de Clay, de Webster, ou de Seward,
mas era incompleto, era desigual e desequilibrado.
Faltava-lhe a grandeza moral d'aquelles vultos ou
talvez simplesmente a sua estrella. Na audacia, na
vastidão dos seus projectos, era de um arrojo quasi
genial. Na execução, os seus meios eram fracos, as
suas hesitações eram longas, os seus recursos
pareciam poucos, os seus alliados eram ignobeis,
seus motivos dir-se-íam pessoaes e mesquinhos,
talvez immoraes; a sua politica era tortuosa e a
mise en scene, embora
A illusão
americana
111
espectaculosa, nunca deu-lhe, aos olhos dos seus
compatriotas, senão esse prestigio imcompleto,
que sempre lhe bastou para dar-lhe a audacia dos
grandes intuitos sem, com tudo, garantir-lhes o
successo. A rasão de tudo isto era, quem sabe, se
simplesmente a differença que ha entre o tempo
dos grandes homens a quem Blaine succedeu na
politica, e a degenerescencia da antiga, tradição
dos velhos estadistas americanos.
Os paes da patria americana, os fundadores
da constituição, viveram n'um periodo historico
de pureza moral, em tempos de patriotismo e de
abnegação. Blaine floresceu no imperio do
industrialismo e da finança, na expansão de
todos os despotismos do monopolio e de todas as
corrupções da plutocracia. Não é uma simples
banalidade a velha proposição de Montesquieu
de que as republicas precisam ter como
fundamento a virtude. Esse foi o fundamento da
republica norte-americana. Será in-
112 A illusão americana
viavel e uma fonte perenne de males, qualquer
outra republica que não tiver o seu berço banhado
na atmos-phera da virtude civioa. As sociedades
politicas e as fórmas do governo precisam de
nascer puras para ter a vida longa e prospera. Os
organismos politicos são como os organismos
animaes e vegetaes; quanto mais perfeitos nascem
e quanto mais robusta é a sua infancia, mais
garantias apresentam de duração.
Nunca se viu uma republica nascer disforme
para a vida da violencia, do crime, da discordia,
da corrupção e do erro para d'ahi se adiantar até á
virtude, á paz e á verdade.
Imaginará alguem por ventura a republica
romana nascendo com Sylla e Catilina e acabando
em Fabrício e Cincinnato? A crença universal
sem-pre attribuiu á humanidade em seu
apparecimento a frescura de todas as forças vivas.
A podridão é propria dos tumulos e não dos
berços. O que ha a espe-
A illusão
americana
118
rar de uma existencia humana cuja infancia não
tiver sido innocente?
Querer justificar a corrupção e o crime
quando apparecem, por assim dizer, identificados
e consubstanciados com uma republica que
começa, dizendo que tudo isto é proprio das
instituições novas, ó falsear a verdade historica.
Não; o nascer das republicas, se não fôr rodeado
do perfume da abnegação, se não fumegarem em
roda do seu berço o incenso puro e a myrrha
incorruptível do sacrifício e do patriotismo, não
promette e não dará nunca no futuro senão
crimes e desgraças.
A republica norte-americana não teve a sua
infancia corroída pela corrupção, nem a sua
puerícia se passou nos jogos sangrentos das
guerras civis. Era ella quasi secular quando o
seu solo foi fratricidamente regado pelo sangue
de seus filhos, e os vícios contra os quaes luctam
hoje os patriotas, as faltas que lhe apontam os
pensadores, são vícios de hoje,
A ILLUSÃO AMERICANA
114
A illusão americana
faltas actuaes, que senão podem justificar no
exemplo dos antepassados. A lição da historia da
independencia e os exemplos das gerações extin-
ctas são espelho de virtude.
Blaine foi e tinha que ser o estadista da sua
epocha.
Tinha bella presença, a sua voz era
insinuante, o seu olhar era agudíssimo, o seu sorriso
era cheio de finura. Foi chamado o homem mag-
netico. Era um grande orador e um escriptor de
raça. A sua illustração era vasta em assumptos da
politica nacional, deficiente no resto dos co-
nhecimentos humanos, mas o seu talento suppria
tudo. Fez-se grande e subiu por si. Os seus
adversarios at-tribuiam-lhe grande numero de capi-
tulações de consciencia com os interesses de
grandes financeiros, e sua pobreza sabida era um
pouco contra-dictoria com o luxo de sua vida, com
o seu bello palacio de Washington, com os vastos
salões, cheios de objectos de arte e de retratos,
bustos,
A illusão americana
115
estatuas, medalhas, quadros, gravuras e mil
outras recordações de Napoleão, heroe da
especial admiração de Blaine. O estadista
republicano tinha idéas dominadoras e o tempe-
ramento cesariano. De todas as paredes da casa
de Blaine, o olhar profundo de Bonaparte
cravava-se nos visitantes. Napoleão não
terminara a conquista da Europa e nos abys-mos
dos seus pensamentos estava a ambição
dominar o Oriente e a Asia. Blaine via na
politica mais do que a arte de ganhar eleições, o
seu talento de orador pedia talvez um theatro
igual ao theatro em que representam os
Gladstone e os Salis-bury. Debaixo das ogivas de
Westminster, a palavra da eloquencia póde
decidir da sorte de um povo. Nas estreitezas do
systema presidencial, o presidente de ser um
incapaz, um incompetente teimoso, armado de
im-menso poder contra o qual são inuteis todos
os esforços do talento. Blaine sentia-se afogado
n'aquelle meio, e
116
A illusão americana
toda a sua imaginação volvia-se para a politica
exterior. Na politica exterior elle foi o lisonjeiro
por excellencia do espirito da dominação
americana sobre todo o continente. Elle imaginava
a aguia americana pairando, de polo a polo, com as
azas poderosas expandidas. A aguia symbolica elle
não a via protegendo os fracos com a sua sombra,
como acredita a ingenuidade de alguns sul-
americanos. Elle queria que ella dominasse, que o
seu olhar perscrutasse as solidões geladas do polo,
os valles profundos dos Andes, as planuras do
Amazonas, a vastidão dos pampas e o infinito dos
mares. Elle queria que o bico adunco d'a-quelle
passaro apocalyptico rasgasse os inimigos, e que as
garras colossaes se apoderassem de todo o
continente de Colombo. Blaine no poder, era uma
ameaça para toda a America. Quando chegava ao
seu termo a guerra do Pacifico, Blaine era secre-
tario de Grarfield, e Blaine teve uma occasião de
tentar fazer prevalecer
A illuo americana 117
a politica que elle mesmo chamou a politica
imperial dos Estados Unidos.
O presidente Hayes, embora tivesse sido
derrotado pelos eleitores, acabava de exercer o
seu mandato usurpado, occupando Ulegalmente a
cadeira de presidente em que o collocára um voto
fraudulento do Supremo Tribunal encarregado da
apuração eleitoral. O patriotismo de seu
competidor, o presidente eleito, Tilden, preferiu
deixar o usurpador na suprema magistratura a
abrir um conflicto que levaria, com certeza, o
paiz a uma nova guerra civil. O general Garfield,
apenas eleito, confiou a direcção da politica
internacional a Blaine, e a attençâo d'este volveu-
se logo para a lucta entre o Chile, o Perú e a
Bolivia.
A primeira d'estas nações estava em vesperas
de colher o fructo das suas arduas victorias,
impondo aos vencidos uma ' paz garantidora dos
interesses, da tranquillidade e da segurança do
Chile no presente e no
A illusão americana
futuro. Começaram a se agitar no Peru e em New-
York os interessados americanos, socios de
peruanos e bolivianos nas concessões de guanos e
na extracção dos nitratos. A consagração da
victoria chilena era o fim definitivo do regimen
das concessões, dos privilegios e dos mil abusos,
tão uteis aos americanos, na desordem financeira
do Perú e da Bolívia. O ministro americano
Hurlbuth, em Lima, os seus collegas generaes
Adams, em La Paz, e Kílpatrick em Santiago,
entraram na combinação. Era preciso uma
intervenção dos Estados Unidos em favor dos
vencidos, e contra o Chile, e em beneficio directo
dos especuladores americanos e seus socios.
dissemos que, por occasião da guerra do
Paraguay, os ministros americanos Washburn e
general Mac-Mahon constituiram-se os
defensores acerrimos de Lopez, foram seus com-
mensaes, testemunhas, e, pelo silencio, cumplices
das suas horríveis atrocidades. Illudido pelas
noticias
A illusão americana
119
dos seus diplomatas, o governo de Washington
considerou Lopez, por muito tempo, como a
victima sym-pathica do barbaro exercito alliado.
Foi preciso que o illustre coronel Von Versen,
que ha pouco morreu general do exercito allemão
e ajudante de ordens do Imperador Guilherme II,
foi preciso que este europeu, um dos prisioneiros
de Lopez que mais soffreram da sua tyrannia,
fosse libertado depois de Lomas Va-lentinas pelo
marquez de Caxias e, indo aos Estados Unidos,
escrevesse a verdade sobre Lopez, para desfazer
no espirito do governo de Washington a
indisposição que, contra o Brazil, tinham creado
a falsidade dás informações diplomaticas. O
governo americano esteve até em termos de
mandar uma esquadra á America do Sul para
proteger a Lopez.
Em relação ao Chile, deu-se a mesma cousa.
O governo americano quiz arrancar ao Chile o
resultado das suas victorias. As informações
120 A illusão americana
dos ministros americanos no Pacifico medraram
depressa no animo de Blaine, sempre disposto á
politica da intervenção, de arrogancia e de quasi
despotismo em relação aos outros pai-zes da
America. Os especuladores do guano e dos
nitratos fallaram-lhe de grandes lucros para o
commercio americano e, entre a administração
americana e os especuladores, houve accordos,
combinações e arranjos muito suspeitos. Em
resultado d'isto tudo, Blaine despachou para o
Chile, como medianeiro de paz, Mr. Tres-cott, que
levava como seu secretario Mr. Walker Blaine,
filho do Secretario de Estado. O enviado
extraordinario, em missão especial, levava ins-
trucções de proteger a todo o transe os interesses
dos homens dos guanos e dos nitratos e ordem
para, esgotados os meios suasorios e de conci-
liação destinados a apressar a paz, dar um
ultimatum ao Chile, impondo-lhe dentro de certo
prazo a retirada das suas tropas do territorio do
Perú
A illusão americana 121
e da Bolívia. Era a mais brutal intervenção, a
mais injustificavel das prepotencias.
Mr. Tresçott, em Lima e em Santiago, tinha-se
posto de accordo com o ministro de França, e sua
acção contra o Chile devia ser conjuncta com a
da diplomacia franceza. Era interessada n'esta
questão dos guanos uma grande casa judia, os
Dreyfus, de Paris, de quem fôrà advogado o
então presidente da Republica Franceza, que os
jornaes republicanos, n'esse tempo, chamavam
ainda o integro Grévy, alguns annos antes do
processo em que ficou provado que o seu genro
Wilson tinha, no palacio do presidente, agencia
montada de venda de empregos e condecorações.
Onde estavas ó doutrina de Monroe ! ? As
duas grandes republicas do mundo achavam-se
reunidas n'um esforço commum em rasão dos
interesses pessoaes dos seus chefes. Os Estados
Unidos, que são contra a ingerencia europêa em
negocios ame-
122
A illusão americana
ricanos, associaram-se a uma nação europêa contra
uma nobre republica sul-americana n'uma empreza
de verdadeira extorsão.
N'este ínterim, n'uma estação de caminho de
ferro, em Washington, ao lado de Blaine, caía
assassinado pelo fanático Guiteau o presidente
dos Estados Unidos, o general Garfield. Em menos
de vinte annos, dois presidentes dós Estados Unidos
eram assim trucidados : Lincoln e Garfield O
presidente assassinado foi substituído pelo vice-
presidente Arthur. Diz-se que os príncipes
herdeiros são em geral os chefes da opposição. Nas
republicas, o vice-presidente é o inimigo natural do
presidente effectivo. Quem é segundo é sempre
contra quem é primeiro. Nas republicas sul-
americanas, o vice-presidente acaba, quasi sempre,
conspirando contra o presidente, muitas vezes
depondo-o, a menos que, mais promptamente, o
presidente em exercício não supprima por qualquer
fórma o seu rival. Nos
A illusão americana
123
Estados Unidos as cousas não chegam a este
ponto, mas os vice-pre-sidentes que têm
assumido o governo têm feito sempre o contrario
dos seus antecessores. A subida de Arthur foi um
grande golpe para Blaine e para a sua politica.
Emquanto o diplomata Trescott achava-se no
Chile, foram pouco a pouco transpirando na liber-
rima imprensa americana, imprensa que
atravessou mais de um seculo sem a menor
coerção, imprensa que, mesmo durante a
tremenda guerra civil, não soffreu grandes peias
nem restricções, — as noticias vagas a principio e
depois affirmativas e positivas do conluio de
Garfield, de Blaine, e dos negociantes de New-
York contra o Chile. Achava-se reunido o
congresso, e nos Estados Unidos, o governo não
ousa sonegar documentos nem esclarecimentos
de certa ordem ao poder legislativo. A
commissão dos negocios estrangeiros, da Casa
dos Representantes, occu-pou-se da missão
Trescott e, n'uma
124 A illusão americana
reunião, levantou-se o deputado democrata Perry
Belmont que, com provas nas mãos, demonstrou a
iniquidade e a vergonha do governo americano ir
ser o procurador dos especuladores peruanos e
americanos junto ao Chile. A impressão foi im-
mensa nos Estados Unidos. O governo chileno,
com uma audacia extraordinaria, mandou
apparelhar os seus encouraçados, empenhados na
guerra contra o Perú, á espera do ultima-tum de
Mr. Trescott. Viesse esse ultimatum, e os navios
de guerra chilenos partiriam para S. Francisco
para vingar a affronta. O presidente Arthur,
porém, poz um termo ao grande escandalo.
Despediu Blaine do poder e subatituiu-o pelo sr.
Fre-linghuysen. Este telegraphou logo a Trescott
dizendo-lhe que se retirasse do Chile, e teve a
franqueza de dar ao ministro chileno em
Washington uma copia das instrucções de Blaine a
Mr. Trescott. Deu-se então um incidente de um
comico singular.
A illusão americana 125
O ministro dos negocios estrangeiros do Chile
perguntou a Mr, Trescott se era verdade que elle
tinha ordem de apresentar-lhe um ultimatum.
Trescott negou a pés juntos. Então o ministro
chileno mostrou-lhe a copia das proprias
instrucções dadas a Trescott. Desmoronou-se
tudo, e assim terminou, no opprobrio e na vergo-
nha, a orgulhosa embaixada que os Estados
Unidos mandaram ao Pacifico! Blaine, porém, e
o espirito de intrusão e de prepotencia
diplomatica que existe em certos meios
americanos, tiveram, annos depois, a sua desfor-
ra. Rompêra a guerra civil no Chile, e Blaine
achava-se de novo na secretaria de estado,
servindo desta vez com o presidente Harrison,
que mais tarde tambem o despediu. Os homens
de grande superioridade intellectual são, nas
republicas, pouco compatíveis com a
mediocridade dos circulos governamentaes.
Desde o começo da guerra civil chilena, o mi-
nistro americano Patrick Egan, anar-
126
A illusão americana
chista irlandez de mau nome, decla-rou-se em
favor dos insurgentes, protegendo-os por todos os
modos com quebra manifesta dos seus deveres.
Como é sabido, os principaes chefes da revolução
eram os homens mais ricos do Chile, grandes
capitalistas, industriaes e banqueiros opulentos.
Esta circumstancia explica talvez a singular attitude
da legação americana. Derrotado e aniquilado o
partido de Balmaceda, houve reclamações
americanas, por prejuízos soffrídos, por
desacatos feitos a marinheiros americanos. O novo
governo chileno, ainda em lucta com mil
difficulda-des, pediu um prazo. A resposta que lhe
deu o governo americano foi a ordem á esquadra
de mandar alguns encouraçados a Valparaiso e um
insolentíssimo ultimatum. O governo chileno teve
que ceder Blaine tirou a sua desforra, e mais
uma vez o governo de Washington humilhou
uma republica sul-americana.
A illusão americana
127
Temos visto que não ha paiz la-tino-
americano que não tenha soffri-do as insolencias
e ás vezes a rapi-nagem dos Estados Unidos.
Para terminar, lembraremos dois factos
acontecidos com o Paraguay e com Venezuela.
Em 1853 o Paraguay fez um tratado geral de
commercio e navega ção com os Estados Unidos.
O senado americano não ratificou o tratado,
mas apesar d'isso o governo de Washington
nomeou seu consul no paraguay o sr. Hopkins.
Este senhor, apesar das suas funcções consulares,
pretendeu logo, á moda americana, ganhar muito
dinheiro em mil especulações Embalde tentou
levantar capitaes em Londres e em Paris. Te
ve então a idéa genial de comprar em New-York
um navio em péssimo estado (Não é de hoje que
ali se vendem navios avariados!) e fel-o
segurar por 60:000 dollars. Este navio
naturalmente naufragou na viagem, e com o
dinheiro-
128 A illusão americana
do seguro Hopkins achou-se á testa do capital
necessario para fundar a «Companhia do
commercio e navegação do Paraguay.
Este consul tornou-se logo exigentíssimo junto
do governo paraguayo, e foi tão insolente que o
governo de Assumpção cassou-lhe o exequatur.
Para se ver livre de embaraços Hopkins declarou
que a sua segurança pessoal estava ameaçada,
assim como a dos seus compatriotas, e reclamou o
auxilio do navio de guerra americano Water
Witch, e este auxilio lhe foi dado. O sr. Hopkins, á
testa de marinheiros armados, desembarcou e foi
ao consulado buscar os papeis de tal companhia.
Estavam as cousas n'este quando a situação
ainda mais se aggravou. O commandante da
Water Witch quiz passar por um canal, cujo tran-
sito era prohibido aos navios. O forte de Itapiru
fez alguns tiros de polvora secca para prevenir o
americano. Este, porém, desprezou o aviso, e
A illusão americana
129
respondeu cora uma descarga geral de bala
contra o forte, que por sua vez fez-lhe fogo vivo
e certeiro que causou serias avarias a Water
Witch, onde morreram muitos marinheiros, mas
e então, o navio americano virou de bordo,
desistindo do seu proposito.
O governo de Washington mandou contra o
Paraguay uma esquadra de vínte navios e de dois
mil homens de desembarque, para extorquir á
pobre republica 1 milhão de dol-lars que lhe
reclamava o sr. Hopkins. Esta esquadra custou ao
governo perto de 7 milhões de dollars de des-
pezas, e voltou de Montevideu graças á mediação
do governo argentino, sendo celebrado um
tratado em vir-tude do qual as reclamações de
Hopkins foram sujeitas a uns arbitros, e estes
declararam, como não podiam, deixar de declarar
inteiramente phantasticas as reclamações do con-
sul americano.
A ILLUSÃO AMERICANA
130 A illusão americana
O Paraguay, porém, não obteve reparação
alguma pela violação do seu territorio commetida
pelo agente americano. (1)
O facto com Venezuela é tambem
característico. O governo americano tinha uma
porção de reclamações contra Venezuela, a
proposito de prejuízos soffridos por cidadãos
americanos durante as guerras civis venezuelanas.
Pela convenção de 25 de abril de 1866 foi
nomeada uma commissão mixta que, em 1868,
deu sentença contra Venezuela, obrigando esta a
pagar dollars 1.253:310.
Verificou-se mais tarde que o commissario
americano David M. Talma-ge, e que o ministro
americana em Caracas, ajudados pelo americano
William P. Murray, formaram uma sociedade
para ganhar dinheiro com o negocio,
defraudando os proprios reclamantes americanos,
exigindo-lhes
(1) Calvo, Droit international théorique et pra-
tique, § 1268.
A illusão americana
131
40 e 60 por cento das indemnisações concedidas,
prejudicando o governo de Venezuela,
admittindo reclamações fraudulentas,
augmentando mesmo estas reclamações para
mais folgadamente poderem os reclamantes
pagar-lhes as porcentagens. Isto ficou provado
perante a commissão dos negocios estrangeiros
do senado americano em 1878. (1)
Ainda ultimamente desembarcou em New-
York um general venezuelano que, como
governador de um estado, era accusado de ter
causado certo prejuízo, em Venezuela', a um
cidadão americano.
Contra todas as leis, este general foi preso a
pedido do americano e sujeito em processo por
um acto de governo praticado na sua patria!
Não ha nação latino-americana que não tenha
soffrido das suas relações com os Estados
Unidos.
(1) Defensa de loa derechos de Venezuela. Caracas,
1878.
132
A illusão americana
Demonstrado isto, voltemos de novo a fallar
do que têm sido as relações entre o Brazil e os
Estados Unidos,
II
mostrámos, de passagem, a frieza com que no
seculo passado Jefferson acolheu a idéa da
independencia do Brazil, e o procedimento indigno
do governo de Washington denunciando ao
governo portuguez as aberturas dos revoltosos
de Pernambuco em 1817. Vimos a demora no
reconhecimento da nossa independencia, vimos o
ministro americano no Rio fazendo causa
commum com a violencia do governo de Carlos X
contra o Brazil e, de passagem, alludimos ás
intrigas americanas em favor de Lopez e contra o
Brazil, a Republica Argentina e o Uruguay.
N'esses conflictos, porém, o amor proprio
brazileiro sempre saiu vencedor, porque de um
lado estaVa a integridade dos nossos homens de
es-
A illusão americana
133
tado, e do outro a diplomacia flibus-teira e
gananciosa dos Estados Unidos. O ministro
americano Washburn, que tanto intrigou contra o
Brazil no acampamento paraguayo, trahiu por
fim os seus amigos Lopez e madame Lynch, que
o accusavam de ter desencaminhado valores que
lhe haviam confiado em deposito.
Washburn escreveu um livro, que é a sua
condemnação (1), e, ao mesmo tempo, a prova
de que aquelle diplomata americano, como todos
aquelles com quem nos encontrarmos n'este
trabalho, votaram aversão especial ao Brazil. Da
propria narrativa de Washburn (vol. II, pag. 180)
tira-se a prova da veracidade da accusaçao de
espionagem que era feita contra elle.
Adiante (pag. 558) confessa que os valores
lhe foram realmente entregues por madame
Lynch, que estiveram na sua casa guardados,
mas
(1) Washburn, History of Paraguay, 2 vols.
134 A illusão americana
que elle, Washburn, ignora o seu paradeiro,
suppondo que foram enterrados algures (!).
O exercito brazileiro e a armada são cobertos
de ridículo e de calum-nias pelo ministro
americano.
A batalha de Riachuelo é descripta como uma
cousa vergonhosa para nós (pag. 10, vol. II), e
Caxias é vilipendiado.
As indelicadezas, as incorrecções, |as faltas de
Washburn. foram o graves, que os officiaes da
marinha americana que se achavam no Paraguay,
romperam com elle. Washburn ataca-os com
violencia, qualificando de «perversa e de anti-
patriotica» a attitude dos officiaes superiores, seus
compatriotas (pag. 467, vol. H).
Depois de Washburn veiu Mac-Mahon, cuja
amisade pelo ménage Lopez-Lynch foi sempre
firme. Mac-Mahon e Washburn dizem-se cousas
bem desagradaveis nos seus escriptos posteriores.
estão de accôrdo nas injurias contra os
brazileiros.
A illusão americana
135
Esta polemica fez escandalo nos Estados
Unidos, e o governo abriu um inquerito em que
figuravam Wash-burn, Mac-Mahon, os officiaes
Davis, Kirklànd, Ramsey e dois aventureiros
Bliss e Mastenuan. Toda a gente injuriou-se no
inquerito, fizeram-se graves accusações uns aos
outros, sendo uma verdadeira vergonha aquel-la
lavagem official de roupa suja, aquella briga de
ministros com almirantes, de almirantes com
ministros, etc. (1)
Durante a guerra do Paraguay o ministro
americano general Mac-Mahon, em desprezo de
todos os usos internacionaes, escrevia para os
jor-naes americanos (2) artigos diffama-torios
dos alliados. Dizia: Que Lopez era innocente das
crueldades que ca-lumniosamente lhe
imputavam os al-
(1) Paraguayan Investigation. Report of Co-mittee
of Foreign affairs.
(2) Vide Harper's New Monthly Magazine, vol. XL.
136 A illusão americana
liados, que as centenas de mortes attribuidas a
Lopez tinham sido perpetradas pelos brazíleiros,
emquanto os paraguayos trabalhavam nas trin-
cheiras (1); que o povo brasileiro era fraco e
effeminado (2); que o seu exercito (a cuja
cobardia o diplomata americano constantemente
allude) era composto de escravos e galés (3); que
a «honra nacional» como nós a entendemos na
zona torrida é cousa bem diversa da honra
nacional americana, etc. etc
(1) Vide Harpers New Monthly Magazine,
vol. XL, pag. 423.
(2) Ibidem, pag. 428.
(8) Ibidem.
Segando um corrispondente do Pais de New-York,
este nosso velho inimigo voltou agora á acena n'uma
circumstancia humilhante para o Brazil. «O United
States Service Club recebeu solem-nemente o
almirante Benham. O discurso de felicitação foi
proferido pelo general mr. T. Mac-Mahon, muito
conhecido no Brazil como amigo particular de Solano
Lopez e nosso implacavel diffamador durante a guerra
do Paraguay.
«Eis o discurso: «Almirante. Preferiria nada dizer
para não collocar-vos na contingencia de fazer un
discurso, o que será para vós uma prespec-
A illusão americana 137
Entretanto os factos eram os factos, e, sendo
innegaveis as Yictorias brazileiras, o americano
nosso inimigo explicava o successo das armas
bra-zileiras pela seguinte fórma:
«D. Pedro, no modo por que tem dirigido a
guerra, a melhor prova da sua extraordinaria
habilidade; é um rei sabio e perfeito. E alem
d'isso, está cercado de conselheiros que, se
tivessem a honestidade commum que
tiva terrível: entretanto é necessario que eu exprima a
satisfação de vos ver entre nós, e vos manifeste
quanto nos encheis de justo orgulho, não só como
cidadão americano como na qualidade de official da
nossa armada. O vosso procedimento no Brazil foi
inspirado pelo dever em honra da nação e da sua
bandeira. Que elle era indispensavel, posso affirmal-o
pela experiencia pessoal de um quarto de seculo. Era
necessario para convencer aquelles amigos nossos (se
são com effeito amigos) que a nação americana nada
perdeu ainda do seu prestigio, que será mantido
sempre á face do mundo inteiro. O vosso prooeder
demonstrou que o direito internacional das relações
do nosso paiz não pode ser desrespeitado
impunemente. As republicas sul-americanas devem
ser-nos agradecidas pelo que fizemos e estamos
fazendo por ellas, ou antes, pela humanidade, com o
exemplo que lhe damos.»
138
A illusão americana
a nossa raça saxonia aos indivíduos como
aos governos (!), poderiam ser collocados ao par
dos primeiros estadistas do nosso tempo. Isto
grande força á. diplomacia do Brazil, emquanto
que a habilidade dos seus financeiros tem-lhe
permittido o manter illeso o seu credito.»
Washburh teve varias conferencias com o
general em chefe do exercito
«O almirante respondeu: «Do fundo do coração
agradeço-vos a cordial recepção que me fazeis. Quanto
ao meu procedimento no Brazil e aos ef-feitos que elle
tenha produzido, penso que, sem contestação,
concorreu para tornar-nos bons amigos d'aquelle paiz.
Esta amisade baseia-se no respeito, e talvez em
alguma cousa mais. That friend-ship is founded on
respect wíth perharps a little tinge of something else)».
«Estas palavras, diz o correspondente do Paiz,
provocaram uma tempestade de applausos e gar-
galhadas.
«Seguiram-se os cocktails do estylo e um gran
de brodio, em que foi nota dominante do humor
yankee a pilheria do almirante, considerada ge
nuína e rude expressão da verdade.
Eis como um almirante americano diz dever ser a
amisade do Brazil para com os Estados Uni-dos.
Bespeito e... alguma cousa mais, isto 6, medo e
subserviencia!
A illusão americana 139
alliado, o marquez de Caxias, e diz cynicamente
que, em troco de uma grande quantia, Lopez
devia acceitar a paz nas condições que o Brazil
queria. N03 archivos do ministerio da guerra, no
Rio de Janeiro, ha of-ficios do marquez de
Caxias bem pouco honrosos para Washburn (1).
Não foi pela corrupção que a
diplomacia norte-americana se distin
guiu. Fallamos da violação do ter
ritorio maritimo do Brazil por um
navio de guerra americano. Vejamos
as particularidades do facto.
No mez de outubro de 1864, o vapor
confederado Florida e o navio federal
Wachusset achavam-se ancorados no porto da
Bahia. O primeiro d'esses navios, que tinha
entrado no porto para concertar as suas avarias e
para tomar viveres, recebeu a or-
(1) Officios de Caxias ao ministro brazileiro em
Buenos Ayres, de 13 de março de 1867; idem de l5 do
mesmo mez e anno ao ministro da guerra.
140 A illusão americana
dem, que executou, de se collocar ao lado da
corveta brazileira Dona Januaria. Na manhã do
dia 7 de Outubro, o navio federal americano
deixou o seu ancoradouro e approxí-mou-se do
Florida. Ao passar pela proa da corveta brazileira,
recebeu ordem de voltar para o seu ancoradouro.
Esta ordem foi desobedecida e, momentos depois,
ouviam-se tiros trocados entre os dois navios
americanos. O commandante brazileiro mandou
um official a bordo do Wachusset, e o
commandante d'este vaso de guerra prometteu ao
official nada tentar contra o Florida. Faltando
indignamente á sua promessa, o commandante
americano tomou repentinamente a reboque o
Florida e foi saindo com elle fóra do porto sem
dar tempo ao navio brazileiro, que confiára na
palavra de um militar, de oppor-se ao attentado. O
que augmenta ainda a revoltante deslealdade é que
o consul americano na Bahia tinha dado sua
palavra de
A illusão americana l4l
honra ás auctoridades brazileiras de que o
Wachusset respeitaria a neutralidade do territorio
do Brazil e, na occasião em que o attentado foi
commettido, o consul estava a bordo do
Wachusset. O commandante do Florida',
confiando na neutralidade do Brazil e na palavra
do commandante americano, tinha deixado
desembarcar quasi toda a sua marinhagem e,
aprovèitando-se d'isso, o Wachusset
traiçoeiramente o atacou.
O governo de Washington deu todas as
satisfações possíveis ao Brazil, mas commetteu
a indelicadeza final de mandar pôr a pique o
Florida no porto de Hampton Roads, para não
entregal-o ao Brazil, e depois disse
officialmente, que um incidente imprevisto tinha
causado a perda do Florida.
Outro facto:
Em 1842 a barca peruana Carolina, em
consequencia de grossas avarias, arribou ao
porto de Santa Ca-tharina. Não havia ali consul
peruano,
A illusão americana
e as auctoridades nomearam uma commissão de
exame que condemnou o navio, o qual por isso
foi vendido de conformidade com as leis com-
merciaes brazileiras.
O navio estava seguro em New-York e em
Philadelphia, e as companhias accionaram perante
os tribu-naes do Brazil o capitão americano,
accusando-o de ter obtido por fraude a
condemnação. A condemnação foi revogada e a
venda annullada, mas, o capitão tinha
desapparecido com o dinheiro.
Um certo Wells, antigo consul americano
demittido por indelicade-. zas no exercício do seu
emprego, comprou os direitos das companhias de
seguros e intentou uma acção contra o governo do
Brazil. O governo americano transmittiu a
reclamação ao ministro dos Estados Unidos no
Eio de Janeiro, mas o governo brazileiro, com
toda a razão, recusou-se a pagar, e o governo
americano, que então luctava com as
difficuldades
A illusão americana 143
da guerra civil, recommendou até ao seu ministro
que não levasse as cousas por diante. Era
ministro americano no Hio o sr. Webb, que por
essa occasião reconheceu a injustiça da
reclamação. Ora em 1867 o sr. Webb mudou de
opinião e, depois de se ter encontrado com Wells,
nos Estados Unidos, o ministro começou a fazer
exigencias, e no momento em que ia sair um
paquete para a Europa o sr. Webb ameaçou
romper as suas relações diplomaticas com o
governo do Brazil se este não pagasse. O governo
arcava então com as grandes difficuldades da
guerra do Paraguay e temeu o mau effeito que
produziria na Europa a noticia de um rompi-
mento com os Estados Unidos. Pagou, mas
debaixo de protesto, a quantia de £ 14:262 ao
cambio de 16, taxa que n'aquella epocha se
considerava desastrosa, porque ainda não se
tinham visto os cambios de 10, de 9, e de 8 3/4
que fazem hoje a gloria das finanças
republicanas.
144 A illusão americana
Em 1872, o ministro do Brazil em Washington,
sr. Carvalho Borges, solicitou da Secretaria
d'Estado um novo exame da questão, e o advoga-
do do governo americano opinou que o Brazil
tinha sido victima de uma extorsão, e que a
quantia lhe devia ser restituída com os respectivos
juros.
De conformidade com esse parecer, o governo
americano mandou entregar á legação brazileira a
quantia de £ 5:000. Faltavam pois £ 9:252 que a
legação reclamou, pois Webb tinha recebido £
14:252, conforme mostrou com recibo do proprio
Webb. Este diplomata tinha desviado, pois, £
9:252, de cujo paradeiro o pôde dar conta.
em 1874 é que finalmente o governo de
Washington reembolsou o Brazil da quantia total
(1).
Não foi esta a unica reclamação
(1) Cairo, Droit International tkéorique et
pra-tique, § 1269.
A illusão
americana
145
de dinheiro que, com mais violencia que
razão, noa fizeram os americanos, além das
reclamações de Raguet e Tudor.
Em 1849, o governo brazileiro viu-se
constrangido a ceder a uma nova e importante
reclamação feita então pelo ministro americano
David Tod. Adiante veremos a justiça e mora-
lidade d'essa reclamação. O facto, porém, é que
a 20 de janeiro de 1850 foi ratificada' uma
convenção americano-brazileira pela qual o
Brazil pagava aos Estados Unidos quinhentos e
trinta contos (530:000$$000 réis) que o
governo americano distribuiria entre os
reclamantes.
David Tod exultou. A 23 de agosto de 1840
escrevêra ao seu governo : «Quanto mais
examino este assumpto e reflicto sobre elle
mais me convenço de que este negocio foi
muito satisfactorio e a quantia recebida muito
sufficiente para serem pagos todos os
reclamantes. Tod, porém, orgão dos
reclamantes negociantes ameri-
A ILLUSÃO AMERICANA
146 A illusão americana
canos do Rio, insistia para que a distribuição fosse
feita no Rio e não em Washington debaixo das
vistas do governo americano (1).
O ministro Tod e os americano do Rio não
conseguiram, porém, que o commissario
encarregado de distribuir esse dinheiro viesse
fazer este trabalho ao Rio de Janeiro. O governo
americano nomeou para essa commissão o sr.
Geo. P. Fisher, e o relatorio d'este funçcionario é
curiosíssimo. D'esse relatorio vê-se que os
reclamantes americanos, em regra, não podiam
apresentar prova nenhuma dos seus» direitos, que
eram na maior parte phantasticos.
Depois de, durante dois annos, ouvir todas as
reclamações o commissario Geo. P. Fisher dizia:
«A quantia paga pelo governo do Brazil, em
virtude da convenção de 1849, foi
(1) U. S. House of Representatives docs, 31 st.
Congress vol. 7. Doc. 19.
A illusão americana 147
de 500:000$000 réis que perfizeram 300:000
dollars.
«Ora, pagas as quantias que foram
attribuidas e as quantias reclamadas resta um
saldo de 130:000 a 150:000 dollars, isto é,
mais ou menos, metade do que o Brazil pagou.
«Acho que o nosso governo vae ficar em
posição esquerda em relação ao governo do
Brazil, que terá razão de se queixar da injustiça
que sof-
freu. (1).
Este documento, melhor do que qualquer
outra demonstração, prova a conscia com
que foram feitas as reclamações norte-
americanas.
Nos paizes sul-americanos, e alguns ha onde,
apesar das revoluções, os cargos de ministro o
occupados por homens instruídos e conhecedores
da historia diplomatica, ha uma grande
(1) U. S. of Representativos docs. Congress 32.
Sess. I. 1851-52, vol. 6, doc. n.° 75.
148 A illusão americana
prevenção contra a politidq absor-vente, invasora e
tyrannica da diplomacia, norte-americana. A
ultima vez que foi, ministro de negocios estran-
geiros do Brazil o visconde de Abaeté, este
estadista teve noticia de que se tramava em New-
York uma expedição de flibusteiros contra o Pará e
o Amazonas e, se a legação brazileira em
Washington não contrariasse activamente a
conspiração, talvez chegasse a se reproduzir no
valle do Amazonas um novo attentado, igual ao da
expedição do pirata . Walker contra a America
Central.
Estas pretensões americanas sobre o Amazonas
tornaram-se então amea-çadoras. Em seguida á
exploração feita no grande rio pelo tenente Hern-
don, da marinha americana (que aconselhára aos
brazileiros o uso da forca para os indios, em vez
da çateche-se) (1) começou a agitação americana a
proposito do Amazonas.
(1) Vide Herndon, The Valley of the Amazon.
A illusão americana 149
Foram despachados agentes diplomaticos para
o Perú e para a Bolívia, com o fim de levantarem
os governos d'aquelles paizes contra o Brazil e
de os aconselharem a pedir o auxilio dos Estados
Unidos.
O celebre geographo e meteorologista
americano Maury escreveu um violento
pamphleto contra o Brazil (1) que foi
victoriosamente respondido por De Angelis (2).
Fallava Maury, não na conveniencia que o Brazil
teria com a abertura do Amazonas á navegação,
mas no direito dos Estados Unidos de nos
forçarem a isso.
As intrigas americanas não foram bem
recebidas no Perú, mas a Boli-via hesitou um
pouco, e tanto bastou para começar nos Estados
Unidos a conspiração flibusteira a que allu-
dimos.
(1) The Amazon and the Atlantic slopes of
South America. Washington, 1853.
(2) De la navegacion del Amazonas. Montevi
deu, 1854.
150 A illusão americana
Preparava-se evidentemente uma invasão
armada do Amazonas quando o ministro do Brazil
em Washington interpellou numa nota positiva o
governo americano, perguntando-lhe se seria
permittida tal pirataria.
O Secretario d'Estado, respondendo ao
ministro (1) que tão opportuna e energicamente
reclamava pelos interesses do Brazil, respondeu
por duas vezes (2) que «os funccionarios da
Uno, com conhecimento de causa, não facilitariam
a partida de nenhum navio que fosse violar as leis
do Brazil», e que, a empreza que tivesse por fim
forçar a entrada do rio seria illegal e implicaria
violação dos direitos do Brazil, e que, se algum ci-
dadão da União tivesse a temeridade de intental-a,
sobre elle cairia o rigor da lei».
Declarações igualmente categoricas
(1) O sr. barão do Penedo.
(2) Notas de 20 de abril o de 23 de setembro de
1853.
A illusão americana 151
tinha já feito o governo americano ao Mexico era
relação ao Texas, e devia mais tarde fazel-as á
America Central, e estas declarações não im-
pediram os attentados que conhecemos.
O governo do Brazil não diminuiu a sua
vigilancia, denunciou mais de uma conspiração
planeada por Maury, official da marinha
americana e funccionario publico, e por seus
companheiros. Uma vez esteve apparelhada uma
expedição, e á ultima hora foi detida em
Sandy Hook á saída do porto de New-York.
Todos estes americanos, nos seus escriptos,
faltavam muito dos interesses commerciaes dos
Estados Unidos nos seus capitaes immensos que
estavam anciosos por um emprego no Amazonas.
Chegou o momento das circumstancias da
politica permittirem a decretação da liberdade da
navegação, e não appareceram os taes capitaes
americanos. Os magnificos vapores que hoje
sulcam a Amazonas são os de uma companhia
ingleza que
tem sido o maior propulsor do prógresso e do
enriquecimento da região amazonica. Isto, porém,
não quer di zer que os americanos não tenham
mais vistas sobre o grande rio sulamerícano.
O general Grant, n'um discurso pronunciado
em 1883, n'uma recepção ao general mexicano
Porfírio Diaz, chegou a dizer que os Estados Uni-
dos necessitavam de tres cousas sómente, porque o
resto tudo tinham no seu paiz. As tres cousas eram:
café, assucar e borracha. E o general disse: Seja
como fôr havemos de ter café, assucar e borracha.
O general accentuou bem a phrase Seja como fôr
(by any means), e no Mexico esta phrase foi tomada
qua-si como uma ameaça. «O problema do assucar
estava acerto ponto resolvido pela absorpção das
ilhas Hawai, que, embora não admittidas na União
americana, estão, para todos os fins pratfcos, como
que annexadas aos Estados Unidos.
A illusão americana 153
O café, julgava o general Grant que viria com
o Mexico;
A borracha, para têl-a, é- preciso ter o
Amazonas.
No Hawai a usurpação americana foi simples e
rapida. A raça indígena, isto é, perto de um mi-
lhão de habitantes, raça que tem a brandura de
indole propria de todo os polynesios, havia perto
de um seculo que ia sendo educada por
missionarios de varias nações, e tinha chegado
a um grau de civilisação que lhe permittiu o
constituir um governo regular. no archipelago
nns quinhentos americanos e uns seis ou oito mil
portuguezes. Pois bem, os americanos, auxiliados
por um vaso de guerra do seu paiz, expelliram do
governo os indígenas, e,. fazendo desembarcar
tropa, tomaram conta de todo o paiz, excluindo
inteiramente os hawaianos de toda a
administração de sua terra. Os governantes ameri-
canos impostos pelas bayonetas, decretaram a
federação com os Estados
154 A illusão americana.
Unidos tal qual queriam talvez os insensatos
brazileiros que em 1834 apresentaram um projecto
analogo na Camara dos Deputados. O congresso de
Washington não quiz a annexação do Hawai, mas
ficou aquelle paiz sempre governado pelos
americanos. Esta grande e clamorosa iniquidade,
este abuso da força, não encontra justificativa.
Os empregados publicos e jornalistas officiaes
e officiosos que escrevem no Brazil, dizem-se
muito enthusias-mados pela amisade dos Estados
Unidos, e facilmente conseguirão talvez illudir a
boa fé dos brazileiros.
Á politica internacional dos Estados Unidos é
egoistica, arrogante ás vezes, outras vezes
submissa, segundo os interesses da occasião. E,
em todo o caso, ella nunca se deixa guiar por
sentimentalismos de fórma de governo.
Durante a guerra franco-prussiana, depois de 4 de
setembro, isto é, depois da proclamação da
republica, quando a, França continuava à arcar
com
A illusão
americana
155
o inimigo allemão, os Estados Unidos
manifestaram, por todas as fórmas, as suas
sympathias pelo imperio teutonico contra a
republica latina. A realeza e a aristocracia
europêas têm um immenso prestigio nos Estados
Unidos. Toda a ambição da enorme colonia
americana na Europa é approximar-se das côrtes.
Nao ha família americana de alguma fortuna que
não tenha, nos seus pratos ou nas suas colheres,
algum bra-zão, um mote nobiliarchico, um elmo
ou qualquer outra cousa heraldica. E' com
desvanecimento que ellas querem, á força, ligar
os seus appellidos obscuros aos nomes fidalgos
do Reino Unido, pretendendo sempre descender
da nobreza. 0 livro da nobreza ingleza Burke's
Peerage and Barone-tage é sabido de r pelas
senhoras americanas, cuja maior ambição é sempre
casar com fidalgos europeus, ir viver na Europa,
deixando o velho Un-cle Sam, do outro lado do
Atlantico. Essa tendencia admirativa em rela-
156
A illusão americana
ção a todos os europeis da realeza provém, de
certo, de que, a muitos respeitos, os Estados Unidos
são ainda uma colonia. A civilisação vem-lhe da
Europa, e por isso o americano, desde o mais rude
até ao homem mais eminente, pergunta sempre ao
estrangeiro : Então o que acha d'este paiz ? . Tal
qual como o parvenu enriquecido gosta de mostrar
a sua casa, os seus carros, ao homem de bôa
sociedade e, dando a beber ao gentleman elegante
os seus vinhos preciosos, per-gunta-lhe com
insistencia: Então, que tal acha?
Ora,. as americanas entendem que o fidalgo é
mais competente em materia de elegancia e de apuro
social do que qualquer outro individuo. D'ahi a
preferencia das americanas pelas nações
aristocraticas da Europa.. Isto quanto aos indivíduos.
Quanto ao governo, tambem não ha duvida que os
Estados Unidos são mais amigos de Inglaterra e da
Allemanha, apesar da França ser republica.
A illusão americana 157
E esta preferencia pela Allemanha, por parte
do governo americano, chegou até á brutalidade
por occasião da guerra franco-prussiana. O
ministro americano em Berlim, Bancroft, homem
illustre por seu saber, o que é raríssimo entre a
diplomacia americana, que é ordinariamente a
escoria da politicagem, privava com o Imperador
Guilherme e com Bismarck, e a sua attitude foi
sem generosidade e sem tacto. Acompanhou o
Rei da Prussia em campanha, e os seus des-
pachos para Washington, publicados pouco
depois, eram insultuosos para a França. Girando
ao redor das negociações de armistícios e de paz,
foi sempre um servidor zeloso da Allemanha. O
general americano Sheri-dan julgou-se talvez
muito honrado com ser admittido como ajudante
de ordens do príncipe Frederico Carlos, e tomou
parte em toda a campanha, prestando bons
serviços ao exercito allemâo. Sheridan era um
americano notavel, um illustre general, e com
158 A illusão americana
elle serviram contra a republica fran-ceza grande
numero de officiaes nor-te-americanos. E o
general Grant ? Esse era presidente dos Estados
Unidos, e n'uma mensagem ao congresso
americano em 1870, felicitou a Àllemanha pelas
suas victorias, e mostrou-se jubiloso com a derrota
da França.
Foi a 7 de fevereiro de 1871, isto é, seis mezes
depois da quéda de Napoleão III, contra quem o
governo americano podia ter resentimentos em
razão da guerra mexicana foi seis mezes depois
da proclamação da republica em França, que o
presidente, Grant expediu a sua celebre
mensagem ao Congresso,, mensagem insultuosa
para a França, e em que exaltava o governo livre
da Allemanha e approvava a guerra de 1870, e a
consequente annexação da Alsacia e da Lorena.
Dias depois, Grant, recebendo o ministro da Àlle-
manha, disse-lhe que o governo americano não
podia deixar de sympa-
A illusão
americana
159
thisar com á Allemanha na lucta que ella acabava
de sustentar, e por esse tempo Bancroft escrevia
a Bismarck felicitando-o pela sua obra «destina-
da» dizia o americano «a rejuvenescer a Europa».
Todas estas baixezas que tinham um mesquinho
fim eleitoral, isto é, ganhar os votos dos al-
lemaes nos Estados Unidos, ficaram
immortalisadas por Victor Hugo, que perguntava
:
Est-ce done pour cela que vint sur sa frégate Lafayette
clormant la main à Rochambeau ? (1)
(1) Certes, que le Peau Rouge admire le Borusse. C'est
tout simple; il le voit aux brigandages prêt Fauve atroce;
et ce bois comprend cette forêt; Mais que 1'homme
incarnant le droit devant 1'Europe, L'homme que de rayons
Colombio enveloppe L'homme en qui tout nu monde
héroique est vivant, Que cet homme se jette a plat ventre
devant L'affreux sceptre de fer des vieux ages funebres
Qu'il te donne, ó Paris, le soufflet des ténèbres,
Qu'il montre à 1'univers sur un immonde char
L'Amérique baisant le talon de César, Oh! cela fait
trembler toutes les grandes tombes! Cela remue, au fond
des pâles catacombes,
Les os des fiers vainqueurs et des puissauts vaineus
Kosciusko frémissant révellle Spartacus; Et Madison se
dresse et Jefferson se leve; Jackson met ses deux mains
devant ce hideux rêve ; «Déshonneur!» crie Adams; et
Lincoln étonné
Saigne, et c'est anjourd'hui qu'il est assassine.
160
A illusão americana
Esta inqualificavel grosseria, esta quebra dos
usos da mais comesinha urbanidade entre as
nações, esta falta de generosidade, envergonharia
de certo a sombra dos grandes homens que
fundaram os Estados Unidos, que
Bancroft, este fica para sempre immortalisado pela
extraordinaria ode que o poeta lhe dedicou
Bancroft
Qu'est ce que cela fait â cette grande France ? Son
tragique dédain va jusqu'á 1'ignorance, Elle existe
et ne sait ce que dit d'elle un tas D'inconnus, chez
les rois on dans les galetas. Soyez un va nu pieds
on soyez un ministre, Vous n'avez point du mal la
majesté sinistre, Vous bourdonnez eu vain sur son
éternité. Vous 1'insultez. Qui dono avez-vous
insulte ? Elle n'aperçoit pas dans ses deuils on ses
fêtes, L'espèce d'ombre obscuro et vague que vous
êtes. Tâchez d'être quelqu'un. Tibère, Gengiskan
Soyez 1'homme fléan, soyez 1'homme volcan, On
examinara si vous valez la peine Qu'on vous
méprise. Sinon, allez-vous en. Un nain Peut à sa
petitesse ajouter sou venin Sans cesser d'étre un
nain et qu'importe 1'atome?
Qu'importe 1'affront vil qui tombe de cet homme ?
Q'importent les néants qui passent et s'en vont ?
Sans faire remuer la tête énorme, au fond,
Du désert ou l'on voit rôder le lynx fároce,
Le stercoraire pent prendre avec le colosse
Immobile à jamais sous le ciel étoilé,
Des familiarités d'oiseau vite envolé.
Vid. Aron, Les republiques sceurs.
A illusão americana
161
fizeram a sua independencia com o auxilio da
França, e que junto aos muros de Yorktown
foram os companheiros de Lafayette e de
Rocham-beau. Quando, annos depois, o general
Grant fez uma viagem ao redor do mundo, quiz
em Paris apartar-se um pouco do que aconselha o
Baede-ker, guia dos viajantes, e desejou ver
Victor Hugo. Sem duvida havia chegado aos
ouvidos de Grant o nome do poeta das
"Orientaes", embora, ignorante como era o
general, de certo nunca tivesse lido um verso
do vate immortal. Mandou pedir uma audiencia.
Foi terrível a colera do velho Hugo. Em termos
violentos, disse ao enviado de Grant, que nunca
receberia similhante miseravel alarve, (um tel
goujat). Este episodio da vida de Victor Hugo é
bem differente da convivencia do Imperador do
Brazil com o auctor de Notre Dame de Paris.
Outro facto:
Em 1891 (o caso foi publicado e discutido), o
capitão Borup, addido
A ILLUSÃO AMERICANA
162 A illusão americana
naval dos Estados Unidos em Paris, foi
surprehendido em flagrante espionagem feita a
favor da Allemanha. Ficou verificado que
documentos que este diplomata americano
solicitou para o seu governo do ministerio da
guerra francez ella os communicou trai-
çoeiramente á Allemanha.
Em 1883, fallecendo nos Estados Unidos o
chefe socialista alleraão, Lasker, o congresso de
Washington, no mesmo anno em que eram presos
e enforcados os socialistas de Chicago, mandou
uma mensagem de pezames pela morte de Lasker,
ao Rei-chstag allemão, e n'essa mensagem
elogiavam-se as idéas e os serviços do socialista.
O Congresso achava muito bons na Allemanha os
mesmos princípios que o governo americano
perseguia no seu territorio.
O governo allemão devolveu a- mensagem
estranhando-a, o que não deixou de envergonhar
os seus auctores.
A illusão
americana
163
Por essa epocha, havia o celebre con-fflicto entre
os Estados Unidos e a Alle-rnanha, porque esta
recusava receber a carne, de porco infeccionada
de tri-china que lhe vinha da America, e
Bismarck declarou que não trataria mais com um
tal Mr. Sargent, ministro americano em Berlim,
que se tinha mostrado incorrecto e incon-
veniente. A moralidade de tudo isto é que a
subserviencia do governo americano á
Allemanha em 1870-1871 não conquistou a
estima do governo do Imperador Guilherme.
Não foi sómente n'aquella epocha quê houve
americanos enthusiastas pelo vencedor e pelo
mais forte. Na guerra da China, em 1859, uma
esquadra americana, neutra, pois a expedição
contra a China era anglo-franceza, estava
ancorada no Peiho, quando a 25 de junho
d'aquelle anno, houve combate entre os bellige-
rantes. Inesperadamente, sem motivo nem aviso,
ps navios neutros americanos, ao mando do
commodore Tatt-
164
A illusão americana
nal, romperam fogo contra os chins. Esta
deslealdade não teve outro motivo se não o desejo
de figurar, foi um sport. E' verdade que, com os
chins, não fazem os americanos grandes
cerimonias. Os pobres chins, são lynchados nos
Estados Unidos sem nenhuma fórma de processo,
sendo até as vezes queimados vivos. Nem com
elles ha respeito pela internacional. Os Estados
Unidos obtiveram da China um tratado de
amisade, commercio e navegação, em virtude do
qual era livre a entrada e saída dos chins e dos
americanos, reciprocamente nos dois paizes. Pois,
não obstante a solemnidade d'esse compromisso
nacional, o congresso americano votou uma lei
prohibindo a entrada dos chins nos Estados
Unidos. Não teria mais audacia na quebra da
palavra da nação, a mais machia-velica
chancellaria carunchosa da Europa decrepita.
A politica americana, em relação aos indios
que ella ainda não acabou
A illusão americana
165
de exterminar, é uma politica de ferocidade
inacreditavel n'este final do seculo XIX. Os
documentos officiaes que se referem á
administração dos indíos são tragicos (1).
Os inqueritos successivos têm demonstrado
que o roubo é a regra, quasi sem excepção, no
tracto do governo americano com os índios. O
governo falta com cynismo á fé dos tratados,
mata os indios a fome e a tiro, rouba-lhes as
terras, onde os installa. Os empregados na
administração dos índios são de uma
deshonestidade proverbial nos Estados Unidos.
Não ha uma voz que conteste isto, e ha muitos
livros americanos em que as particularidades
d'esta longa campanha de sangue, de morticínio,
de roubo e de incendio vem miudamente nar-
rados (2).
(1) Official Reparta of the toar department or lhe
department of the interior.
(2) Resume muito bem esta questão e confirma
com mil casos o que dizemos, o seguinte livro: A
century of Dishonour by H. X. London, 1881. 8º.
166
A illusão americana
A historia dos tratados dos Estados Unidos
com os paizes do Extremo Oriente está cheia de
imposições violentas, de trapaças e de actos de
fé. Os americanos têm sido na China os maiores
contrabandistas de opio, e é pessima a sua
reputação. Em 1828 o governo chim expediu um
decreto especial contra as fraudes norte-
americanas. Esse decreto foi a resposta dada a uma
supplica dos negociantes americanos de Cantão.
Vejâmos o tom em que aquelles orgulhosos
republicanos se dirigiam ao vice-rei de Cantão :
«Prostrados, diziam elles, «prostrados aos pés
de v. ex.
a
supplicamos-lhe que se digne lançar as
suas vistas sobre nós, e estender até nós a sua
compaixão..» (1)
«Não ha melhor prova da exagerar çâo das
reclamações americanas contra a China, diz o
americano James
(Quarterly Review, vol. LXII, pag. 150.
A illusão americana
167
A. Whitney, (1) do que o facto da somma que a
China nos pagou ultrapassar as exigencias dos
reclamantes ao ponto de um grande saldo estar
ainda no thesouro americano sem haver quem o
reclame. E é preciso lembrar», continua o
mesmo auctor, «que as reclamações originaram-
se de prejuizos reaes ou suppostos que os
americanos diziam ter sofírido em 1856, por
occasiao do bombardeio de Cantão pelas forças
inglezas ou dos trabalhos de defeza então
effectuados pelo governo chim. E deve-se
lembrar ainda que o nosso proprio governo
virtualmente sympa-hisava com o bombardeio.
Dois an-nos depois, um official da nossa es-
quadra, embora estivessemos em paz com a
China, secundou a acção dos inglezes contra as
fortificações da embocadura do Peiho. Cinco
annos
(1) James A. Whitney, The Chinese and the Chinese
Question, New-York, 1880, pag. 41.
168 A illusão americana
depois, estando nós ligados á China por um
tratado de paz e amisade, dois navios. americanos
e quatro lanchas quizeram, á força, levantar carta
de um canal. Os americanos estavam
preparados para uma recusa por parte dos chins, o
que era muito justo e natural. Os chins,
oppozeram-se, mas os canhões americanos
impoze-ram silencio ás baterias de terra, e alguns
dias depois, cinco dos fortes chi-nezes foram
arrazados pelos navios americanos, sendo mortos
250 chins.
«Quanto ao perigo que correram as nossas
forças, faça-se facilmente uma idéa d'elle dizendo
que perdemos tres homens».
Ao Japão os Estados Unidos extorquiram um
tratado, e assim foi nas ilhas Samoa onde os
americanos não acceitaram uma especie de
protectorado ou condomínio conjuncto com a
Allemanha e a Inglaterra, como tomaram aos
indígenas parte da ilha de Tutuila, como
deposito de
A illuo americana 169
carvão. Assim foi em Sião e em Madagascar,
paizes onde a industria americana quer introduzir
os seus pro-ductos de fancaria, falsificando as
marcas, e, a despeito das convenções
internacionaes, rotulando, como inglezes, os seus
algodões inferiores e outros productos de
manufactura disfarçados fraudulentamente.
Tratados de commercio! Eis-ahi a grande
ambição norte-americana, am- bicão que não é
propriamente do povo, mas sim da classe
plutocratica, do mundo dos monopolisadores que,
cão contentes com o mercado interno de que elles
têm o monopolio contra o estrangeiro, em virtude
das tarifas probibitivas nas alfandegas, em
detrimento do pobre que se privado de grande
beneficio que a concorrencia universal lhe traria
com o forçado abaixamento dos preços. Esta
classe plutocratica governa o povo americano com
muito mais rigor e tyrannia do que o Czar da
Russia emprega na suprema direcção
170 A illusão americana
de seu povo. Ella suga a seiva americana, e,
practicamente, pelo poder do oiro, tem previlegios
reaes e positivos muito maiores do que os da
nobreza e do clero na Europa, nos tempos
passados. A millionocracia domina os caminhos de
ferro, as docas, as fabricas, e, das sobras dos
seus proventos, tira com que governar, e subsidiar
e converter em seus servos obedientes todos os
políticos dos Estados Unidos, paiz unico na
historia do mundo em que a simples designação
de politico (politician) tornou-se, com muita e
muita razão, uma verdadeira injuria.
Os plutocratas americanos não se satisfazem
com o mercado nacional que o proteccionismo
lhes entregou. Nas suas industrias empregaram
elles capitaes enormes que exigem
remuneração. Em igualdade de condições, elles
não podem concorrer nos mercados do mundo
com os productos manufacturados da Europa. 0
proteccionismo que permittiu nos Esta-
A illusão americana 171
dos Unidos a creação das immensas fortunas
industriaes, trouxe tambem o encarecimento da
vida e, com elle, a elevação dos salarios, que
de si seriam mais elevados do que na Europa
pela raridade relativa da mão de obra perita e
technica (skilled la-bour). Sendo os salarios mais
elevados, o custo da producçâo é maior do que
na Europa, e por isso, na concorrencia universal,
os Estados Unidos são vencidos pelos producto-
res europeus.
Sendo assim, a industria americana succumbe
sob o peso da sua producção exagerada. D'ahi a
crise industrial, aggravada pelo desvalor de parte
da moeda, a moeda de prata, porque, como
dissemos, até em materia de cunhagem de
moeda, os legisladores americanos, têm querido
e têm conseguido, proteger os mil-lionarios em
detrimento do povo. Como conseguiriam os
proprietarios das grandes minas de prata vender
por bom preço o seu metal, se o
173
A illusão americana
valor d'este não se mantivesse pelas compras
contínuas do thesouro ame-. ricano que adquiria
barras de prata para transformai-as em moedas ?
Tanta moeda de prata cunhou o thesouro americano
que rompeu o equilibrio do valor entre a moeda de
prata e a moeda de oiro. A superabundancia
rebaixou a prata, encareceu o oiro e o oiro emigrou
para o estrangeiro. Moeda desigual e em parte
depreciada, eis o que o proteccionismo
produziu no systema da circulação monetaria dos
estados. A estagnação da industria, proveniente do
excesso da producção e da sua incapacidade para
concorrer no estrangeiro com os productos
europeus, aggrava-se de dia em dia. Ha quinze
annos, os americanos diziam que no seu paiz não
havia questão social, que os tumultos operarios, as
luctas e as crises provenientes das difficuldades do
proletariado eram males das- velhas sociedades
europêas, que na livre America havia espaço, luz e
comida para to-
A illusão americana
173
dos os pobres, sob o regimen do trabalho, Hoje,
o que é que vemos? A questão operaria é mais
terrível e mais ameaçadora nos Estados Unidos,
do que na Europa.
0 proletario americano tem uma organisação
de ataque e de defeza contra a sociedade que na
Europa ainda não foi igualada. Parece que, na
Europa, a chamada paz armada, com a
consciencia do perigo que corre a propria
existencia nacional em vista da hostilidade de
vizinhos poderosos, dá ainda a consciencia de
que é necessaria a união para garantir a
existencia da propria patria. Nos Estados Unidos,
a questão social tem uma gravidade unica. Gran-
de parte da massa operaria é extran-geira,
estando ainda na primeira phase da existencia do
immigrante, phase intermedia, na qual tendo-se
desprendido da patria antiga ainda não adoptou a
patria nova. A massa dos immigrantes é
constituída por uma verdadeira selecção de entre
os
174
A illusão americana
operarios dos respectivos paizes de origem.
Selecção, de fortes, de energicos, de resolutos,
pois, o simples acto de emigrar é uma prova de es-
pirito, audacioso. Quem não duvidou abandonar a
patria do seu nascimento não tem escrupulos em
perturbar a patria adoptiva. Por isso, nas dif-
ficuldades da lucta social, o exercito operario, nos
Estados Unidos é mais de temer do que na
Europa.
A politica financeira e economica dos Estados
Unidos produziu, depois de uma notavel
expansão industrial, uma reacção extraordinaria.
O operario hoje não tem trabalho, ou quando o
tem, o patrão não de remunerar esse trabalho
como n'outro tempo, embora o operario precise
sempre do mesmo dinheiro, porque o preço da
vida não baixou.
Sem duvida, a questão operaria é de todos os
paizes. e o problema da riqueza e da pobreza é
tão antigo como. o mundo. Todas as
soluções
A illusão americana
175
d'esse problema são soluções muito relativas e
sempre provisorias.
Á antiguidade tinha a escravidão, que é um
modo de dar uma certa estabilidade e
organisação ao proletariado coagindo-o a
trabalhar e obedecer. O christianismo acalmou as
revoltas da miseria humana quando exacerbada
pela pobreza, prom tendo o céu e a felicidade
futura fazendo do proprio soffrimento um titulo
á ventura eterna. A sociedade pagã appellava
para a força material dominando materialmente o
proletario; a sociedade christã pren-dia-o pelas
cadeias, ainda mais fortes, da esperança e da fé.
O espirito moderno supprimiu a escravidão e
deixou de fallar no céu. O operario foi
abandonado, e a sciencia não encontrou ainda
uma formula que substituísse a escravidão da
antiguidade ou a crença na outra vida que o
christianismo infundia.
Nos Estados Unidos, a agitação operaria é
mais grave do que na
176 A illusão americana
Europa, porque o operario não tem nenhuma das
peias materiaes e não tem os incentivos moraes
que em parte o dominam na Europa e de que elle
se acha liberto na America.
As monarchias europêas preoccu-pam-se
seriamente em melhorar a sorte dos operarios. As
monarchias têm todo o interesse em adiar e evitar
a grande crise do proletamanado, porque as
dynastias sabem que, n'u-ma grande catastrophe
social, os thro-nos desappareceriam. (1) Nas repu-
blicas não ha esse interesse de conservação que
leva os governantes a querer bem governar por
interesse proprio. Na republica tudo é transitorio ;
os homens sabem que, quer en-
(1) Ainda ultimamente, n'um congresso, em Milão,
vimos os representantes da Allemanha cesa-riéta e da
Italia monarchica, manifestarem-se a favor das
pensões aos invalidos do trabalho, em-quanto que os
enviados da republica franceza Yves Guyot e Léon
Say, republicanos, oppozeram-se com ardor a essa
medida humanitaria, já adoptada na Ailemanha.
A illusão
americana
177
cham o seu paiz de benefícios, quer accumulem
erros sobre erros e cheguem até ao crime, terão,
em certo periodo de deixar o poder, e, se a
republica commette faltas graves, mudam-se os
homens, continuando sempre a republica ainda
que seja para repetir as faltas que se procura, em
vão, reprimir com a periodicidade das
revoluções. A republica, bem que seja
pessoalíssima quanto á influencia dos
funccionarios, beneficia de uma especie de
imper-sonalidade que a torna irresponsavel. Na
gestão dos negocios e dos dinheiros publicos, a
monarchia arrisca a sua propria existencia; é
como que uma firma solidaria que responde com
a sua pessoa e com a totalidade de seus bens. A
republica é uma companhia anonyma de
responsabilidade limitada. E conhecemos paizes
onde o simples nome de companhia é quasi
synonymo de deshonestidade.
A ILLUSÃO AMERICANA
178 A illusão americana
A historia demonstra que as republicas, urna
vez falseadas, nunca se regeneram. Cada fórma de
governo tem a sua tendencia, e tem o seu modo
peculiar de resolver os suc-cessivos problemas da
historia nacional. Tomemos por exemplo, os
Estados Unidos e o Brazil, ambos em frente do
mesmo problema: a abolição da escravatura.
Tiveram os Estados Unidos a sua solução
genuinamente republicana e norte-americana, isto
é, a solução pela violencia, pela força, pelo grande
fragor da guerra fratricida. Teve o Brazil uma
solução genuinamente brazileira e monarchica, a
solução que todos vimos, solução que excedeu os
sonhos dos optimistas mais humanitarios.
Porventura deveremos en-vergonhar-nos da
solução que soubemos e podemos dar ao problema
e sentir o não termos imitado os Estados Unidos
tambem n'esse ponto? Dissemos que no Brazil o
problema
A illusão americana 179
escravo teve uma solução monarchi-ea, não
porque a monarchia bra-zileira teve a gloria de ser
punida
pela sua acção libertadora, como porque desde que o
mundo é mundo, nenhuma grande reforma social se
realisou, sem ser debaixo da acção
de um governa monarchico. Ouçamos um dos mais
profundos pensadores do seculo, Dölinger: O
testemunho
da historia nos demonstra que a solução das
questões sociaes, a reforma . das instituições, a
abolição de abusos tradicionaes, realisam-se com
mais facilidade e segurança num governo
monarchico, do que n'uma republica. Quando a
corrupção da republica romana chegou aos seus
extremos limites, todos os romanos intelligentes
admittiram a impossibilidade da republica reformar-
se a si mesma e a inevitavel necessidade da
monarchia. O mesmo aconteceu com a republica
polaca e com a republica franceza no tempo do
directorio.
«Se os Estados Unidos, em 1862,
180
A illusão americana
tivessem um monarcha em vez de um presidente
eleito por poucos annos, certamente lhes teria sido
possível dirigir o problema servil para uma
solução pacifica, evitando uma sangrenta guerra
civil, cujos effeito ainda perduram (1).» Isto dizia
o il-lustre pensador em 1880, e oito annos depois
os factos vieram dar-lhe razão, porque o unico
paiz monarchico da America foi tambem o unico
paiz que pacificamente extinguiu a escravidão.
O seu destino manifesto, o seu natural
instinçto de conservação leva as monarchias a
procurarem resolver os problemas sociaes,
emquanto que as oligarchias republicanas temem
esses problemas e adiam-lhes indefinidamente as
soluções.
E é por isso que vemos as monarchias
europêas, comprehendendo o
(1) J. I. von Döllinger, traducção ingleza sob o
titulo: Studies in European History translated by
Margaret Warre London, 1890, pag. 24.
A illnsão americana
181
perigo e o encargo da sua responsabilidade,
encarando de frente o problema do
proletariado que, nos Estados Unidos, é
desleixado pelos poderes publicos. Na
Europa ha, na velha tradição monarchica, a
remota lembrança da antiga alliança da
realeza com os burguezes contra os senhores
feudaes, que eram os oppressores dos fracos.
Hoje, os oppressores são os burguezes que
confiscaram em seu proveito todas as
chamadas conquistas da revolução de 1789.
O capitalismo semita ou não semita, gosa
hoje de privilegios reaes e effectivos muito
mais vexatorios do que os privilegios antigos
da nobreza e do clero. No antigo regimen, a
nobreza pouco a pouco ía-se enfraquecendo,
e o terceiro estado ía-se fortalecendo. Na
vida moderna o capital cresce por si mesmo,
cada vez mais se avoluma, e é fóra de duvida
que a fatalidade faz com que os ricos fiquem
cada vez mais ricos e os pobres cada vez
mais pobres. A fórma republicana burgueza,
182 A illusão americana
como existe em França e nos Estados Unidos é a
que mais protege os abusos do capitalismo. Ha
como que uma repercussão de antigas eras, nos
tempos de hoje, quando vemos de um lado a
ferocidade burguèzâ contra o proletario,
abroquelando-se em leis proteccionistas, em
monopolios industriaes, e fallando a todo o mo-
mento em principio del auctoridade, em direito
da legalidade, em obe-diencia (1).
Do outro lado vemos o representante das
velhas tradições do Santo Imperio Romano e o
Papa, procurando estender a mão aos operarios,
que afinal são a força, são o numero, são a justiça
e serão o poder da amanhã. O Papa e o Imperador,
com,a com-prehensão superior que lhes dá a fé
(1) Dizia Stendhal que quando se começa a fallar
muito no principio de alguma cousa é porque essa
cousa não existe. Falla-se muito hoje no Brazil em
principio de auctoridade. É porque já não existe a
auctoridade, que foi substituída pela oppressão.
A illusão americana
183
nos seus destinos, estão vendo que novos tempos
de renovação social se approximam, e que é
preciso, na im-mensa Bastilha em que a
burguezia revolucionaria encarcerou o proleta-
riado, rasgar uma janella para o azul. A alliança
da Igreja e do Imperio com a multidão infeliz
contra a bur-guezia gosadora que se diz republi-
cana ou pelo menos democratica, é o grande
facto do findar d'este seculo. A Allemanha
preoccupa-se com a sorte dos operarios;
Bismarck fez votar a celebre lei garantindo a
velhice e a invalidez do trabalhador; o socia-
lismo penetrou nas altas espheras do governo
inglez, e elle existe de facto na grande
democracia russa consagrado em usos e
instituições seculares. Ainda ha muito por fazer,
mas as grandes monarchias deram o signal, e
'este foi principalmente o congresso europeu que
o Imperador Guilherme II forçou a se reunir em
Berlim para estudar os meios de melhorar a sorte
dos proletarios. O movi-
184 A illusão americana
mento está iniciado; onde elle encontra mais
resistencia é em França, baluarte da burguezia
republicana, e nos paizes latinos que mais ou
menos se inspiram do espirito francez. A Igreja
patrocina o socialismo christão, e não o faz
sómente por palavras. Por um instincto admiravel,
o proletariado inglez comprehendeu que nada
podia esperar da sua Igreja official, e na grande
crise de 1890, o seu arauto, o seu chefe, o juiz da
sua causa, o seu paladino, foi o velho cardeal
Manning, que. reconciliou patrões e operarios,
feito digno dos tempos heroicos da Igreja. Nos
Estados Unidos e na Australia ha a alliança tacita
da Igreja e do proletariado. Vejam-se os esforços
do cardeal Gib-bons e de Monsenhor Ireland, e
ad-mire-se como o movimento operario nos
Estados Unidos ganhou ém grandeza com o
influxo da Igreja.
A classe dos donos de caminhos de ferro, dos
monopolistas e dos indus-triaes que a ferocidade
do proteccio-
A illusão americana
185
nismo enriqueceu em detrimento do-conforto e
do bem estar do pobre, armam-se, nos Estados
Unidos, de grandes recursos para a batalha su-
prema que têm de travar, mais dia menos dia,
com o povo americano. O governo e os políticos
de Washington são os representantes directa-
mente interessados ou indirectamente
subsidiados que hão de procurar por todos os
meios proteger os ricos e os satisfeitos contra os
famintos. Os financeiros e os monopolistas
americanos votam odio á Europa, porque pára
se escoou o oiro americano, e porque na Europa
os governos estão dando o exemplo da defeza
das classes operarias. O defensor d'esses
monopolistas, mais conhecidos, é o sr. Andrew
Carnegie, um escossez prodigiosamente
enriquecido nos Estados Unidos, e que, no fim da
vida, figura em todas as manifestações anti-
europêas ou antes anti-liberaes que se dão nos
Estados Unidos. O sr. Carnegie é dono de umas
fundições
186 A illusão americana
gigantescas e auctor de uns livros em que exalta o
capitalismo, a felicida de da riqueza è a
superioridade dos Estados Unidos, paiz que elle
apresenta como o primeiro do mundo. O mais
conhecido dos livros do sr. Carnegie chama-se a
Democracia triumphante, livro ricamente
impresso que na primeira pagina traz uma corôa
real invertida e um sceptro quebrado para indicar
a victoria da democracia. O livro é mal escripto, é
insolente e, para dar uma idéa do seu modo de
argumentar, diremos apenas que, querendo provar
a superioridade artística dos Estados Unidos sobre
a Europa, elle diz que as salas de espectaculo são
maiores em Denver e em Cincinnati do que em
Paris e Londres. No mais, o sr. Carnegie entôa um
hymno enthusiasta á felicidade do povo
americano, cuja existência, segundo o auctor, é
um idyllio sem fim. O sr. Carnegie falia do bem
estar do operario americano, da sua casinha
risonha á beira de campos
A illusão americana
187
sempre verdes e de aguas murmurantes e, em
raptos bíblicos, quasi que diz que os rios são de
leite e de mel. Ora, a ser isso verdade, que pa-
raizo não devia ser o estabelecimento industrial
do sr. Carnegie, as celebres fundições de
Homestead ? Pois bem! Em 1891 rompeu em
Homestead uma greve terrível, provocada, como
depois demonstrou o inquerito official, pela
dureza do proprietario que, do infeliz operario,
exigia um horrivel maximo de trabalho a troco-
de um minimo ridículo de salario. Não parou ahi
o patriarchal e idyllico sr. Carnegie. Nos Estados
Unidos, a policia consente que existam grandes e
poderosas agencias que se encarregam de, fazer a
policia por conta dos parti culares, e são muitas
vezes empregadas em obras de vingança e de
evidente criminalidade. A mais conhecida d'estas
agencias, a agencia Pinkerton, organisou por
conta de Carnegie um verdadeiro exercito de
detectives, armados de rewolvers e de
188 A illusão americana
carabinas, destinados a reprimir os operarios
revoltados, verdadeiros bra-vi como os da Italia
medieval ou antes capangas, como diríamos no
Bra-zil. Os Pinkertons entraram em guerra com os
operarios, houve grandes tiroteios, muitas mortes,
ataques por terra e por agua, assedios, uma ver-
dadeira guerra. A imprensa indignou-se e exigiu
explicações do governo, de como deixava haver
no seu territorio uma verdadeira guerra sem
intervir a auctoridade, e verberou, o escandalo de
se consentir que um mil- lionario podesse ter assim
tropas or-ganísadas ao seu serviço. Onde iria
parar, perguntavam os jornaes, este abuso ? Os
Pinkertons foram algumas vezes batidos e n'outras
trucidaram sem piedade os operarios que tinham a
felicidade de viver na livre America, tendo como
patrão o intransigente republicano mr. Carnegie.
Apesar do immenso escandalo que produziu na
opinião publica americana a carnificina de
Homestead, as tropas
A illusão americana
189
federaes e do Estado respectivo man-tiveram-se
inertes. Quanto a Carne-gie, logo aos primeiros
signaes do tumulto, refugiou-se na velha, na ty-
rannica Europa, porque, alvo do justo odio dos
operarios e incurso nas leis penaes, a permanencia
na tal Demo-cracia Triwmphante poderia ser-lhe
desagradavel. Com o governo e com os tribunaes
Carnegie, na sua qualidade de millionario, muito
facilmente se arranjaria. Não tinha sido elle o
grande protector eleitoral do presidente Harrison
? Com os operarios, a cousa era mais difficil, e o
apoligista da democracia plutocratica deixou-se
ficar tranquillamente na Europa.
Este episodio de Homestead, nós o
mencionamos porque é typico e cheio de
revelações para o futuro da America republicana.
O poder do millionario não encontra nos Estados
Unidos nenhum correctivo efficaz nas leis ou na
acção da auctoridade publica. Tudo lhe é licito,
tudo lhe é possi-vel. Isto entrou tanto na
consciencia
190 A illusão americana
nacional que os homens mais cultos do ! paiz, os
seus escriptores, os seus sabios, os seus poetas, os
seus phi-lanthropos, evitam todo o contacto com a
politica, porque sabem que as posições politicas
são dadas á homens subservientes, pelos magnatas
da finança. N'outros paizès do continente, os
homens de valor desdenham ser políticos, porque
não querem ser títeres irresponsaveis nas mãos do
militarismo. Em todo o caso o resultado é o
mesmo, porque, quer tenha de ser servidor dos
financeiros, quer tenha de ser o instrumento dos
militares, o homem publico perde, com a sua
dignidade a sua independencia. Eis-ahi a situação
do politico na America. O millionario empregara
até agora, a arma -poderosíssima da corrupção, O
sr. Carnegie foi um innovador; com o dinheiro
organisou uma força e com ella bateu os que
perturbavam a sua industria. Isto foi talvez um
ensaio. Em pouco tempo, os mil-liònarios e
milionarios americanos
A illusão americana 191
organisação exercitos. Havendo dinheiro, ha
meios para se defender qualquer individuo, e
quem sabe se, no futuro, não haverá nos Estados
Unidos guerras individuais como as da idade
media? A instituição dos mercenarios póde
deixar de ser privilegio dos governos que,
sentindo-se fracos no interior, procuram no es-
trangeiro braços para defendei-os e coragem e
ambições para sustental-os. Em breve haverá
mercados francos de armamentos e de invenções
belli-cas; alugar-se-hão por meio de agencias,
capitaes valentes, soldados decididos, que
renovarão os feitos das tropas mercenarias de
Carthago ou dos suisso se lansquenetes da
Renascença. Quanto custa um general ?Por
quanto um almirante? Alugar-se-hão
Themistocles por mez, Nelsons por empreitada e
Napoleões a tanto por dia, com comida.
Os governos que têm chamado mercenarios,
tarde ou cedo tiveram de se arrepender. A
lealdade do merce-
192 A illusão
americana
nario é nulla, o o paiz que lhes cabe defender é
muita vez a sua primeira victima. O estrangeiro
chamado para, a qualquer titulo, tomar parte nas
luctas nacionaes, torna-se, depois da lucta, uma
calamidade. O mesmo acontecerá talvez com o
capitalismo; os braços que elle tiver armado contra
o proletariado se voltarão um dia Icontra elle. O
imaginoso novellista Edmund Boisgilbert,
escrevendo no intuito de adivinhar o que vae ser a
vida das gerações futuras, no seu romance
Cassar's Column descreve a grande lucta armada
que os pensadores vêem como inevitavel no porvir
norte-americano (1). N'esse livro, vê-se o capital
omnipotente dominando exercitos e tudo vencendo
á força do oiro, que põe ao seu serviço todos os
progressos da sciencia ápplicada, todos os
requintes do goso e todos os meios
(1) Estas linhas foram escriptas em fins de 1893.
Em 1894 as espantosas paredes de Chicago vieram dar
razão ao auctor.
A illusão americana
193
materiaes de destruir e subjugar as multidões. Ha
contra essa longa ty-rannia uma immensa
revolta; o capital defende-se, a mortandade é hor-
rível e a sociedade americana rue com estrondo,
n'uma catastrophe absoluta! A imaginação do
litterato é grande, mas a invenção do escriptor
corresponde a um secreto instincto de todos.
Hoje, o industrialismo ainda tem algumas
esperanças de se salvar e o povo não tem ainda a
consciencia nitida da sua foa. As dif Acuidades
do presente são, portanto, bastante graves para
o capitalismo e a plutocracia americana procura,
a todo o transe, sair das suas difficuldades e para
isso volta-se para o estrangeiro. É para o es-
trangeiro que os politicos norte-ame-ricanos
querem abrir uma valvula para o excesso da
producção.
Não é só o fim de lucro monetario immediato
que guia esses homens, é uma necessidade
absoluta de segurança nacional. Fechados os
mercados estrangeiros, como já explimos, a pro-
A ILLUSÃO AMERICANA
194 A illusão americana
ducção americana terá de se retrahir, e retrahida,
crescerá, em enorme proporção o numero de
operarios desempregados, que augmentarao o
tão perigoso exercito dos descontentes. N'este
empenho de salvação publica, foi uma missão
especial de representantes do thesouro americano
á Europa, solicitar dos governos europeus a
adopção do bimetallismo para dar saída á
quantidade de prata que tantos embaraços está
creando aos Estados Unidos. A Europa, na confe-
rencia de Bruxellas, recusou attender ao pedido.
Foi no mesmo intuito, de dar saída a seus
productos e de crear-lhes vantagens especiaes nos
mercados estrangeiros, que os Estados Unidos
quizeram impor tratados de reciprocidade
commercial a todos os paizes da America.
Essa empreza de extorquir tratados dos paizes
latino-americanos a troco de vantagens
illusorias, esteve confiada a Blaine quando elle
foi Secretario d'E8tado pela segunda vez.
A illusão
americana
195
III
Quando o ambicioso estadista voltou ao poder
em 1889, com a eleição do presidente Harrison,
voltou disposto a tirar a sua desforra do des-
credito em que caíra em 1881, quando se
descobriu a indelicadeza dos seus processos e
dos seus intuitos na intervenção da lucta entre o
Chile, o Perú e a Bolivia. Em 1884 elle ousára
ser candidato á presidencia da republica, e isto
bastou para um grande numero de votos, do seu
proprio partido, convergir para o seu adversario o
candidato Cleveland, que foi então eleito pela
primeira vez. Em 1888 Blaine não fôra candi-
dato, mas empregara toda a sua influencia em
favor de Harrison com a condição d'este
entregar-lhe a Secretaria d'Estado, de onde
Blaine, com o seu extraordinario talento, acharia
facilmente o meio de dirigir todo o paiz. Assim
foi. O regimen presiden-
196 A illusão americana
cial leva a absurdos d'essa ordem; um homem
repellido positivamente pelas urnas, pela vontade
expressa do eleitorado, basta que elle tenha por si
a vontade do presidente para que esse homem
tome conta do governo el exerça-o sem haver
meio algum de fazel-o sair em quanto durar o
presidente, a não ser por uma revolução. Blaine,
pois, assenboreou-se da Secretaria d'Estado.
Em 1881, um dos pontos do grande plano de
Blaine fôra a reunião de um congresso pan-
americano onde, sob a egide e a protecção dos
Estados Unidos, deveriam os representantes de
todos os paizes da America discutir assumptos de
interesse recíproco. As revelações consequentes á
frustrada intervenção no Pacifico desacreditaram
completamente os projectos de Blaine, e o
primeiro acto do seu successor consistiu em
expedir aviso ás nações convidadas para o
congresso, dizendo-lhes que a grande reunião
dos representantes de toda
A illusão americana
197
a America ficava indefinidamente adiada.'
Blaine, voltando ao poder em 1889, trazia um
plano de dupla vingança, queria humilhar o
Chile e reunir o congresso. Conseguiu as duas
cousas. Teve occasião de lançar, como mos-
trámos, um ultimatum ao governo chileno,
exigindo em prazo dado satisfações e
indemnisações, e viu reunidos em congresso em
Washington, debaixo da sua presidencia, os
representantes de todos os paizes da America.
A primeira parte do congresso consistiu em
banquetes, passeiatas, recepções e festas. Os
enviados da America latina, pela linguagem da
imprensa, pela attitude geral do governo,
ficaram logo convencidos de que o interesse
dos Estados Unidos lucraria com o que se
pretendia d'elles no tal Congresso. O governo
americano poz em discussão tres pontos : 1.°, a
adopção do arbitramento obrigatorio para a
solução dos con-
198 A illusão americana
flictos internacionaes; 2.°, a celebração de
tratados com o governo de Washington
estabelecendo uma parcial ou total e reciproca
isenção de direitos de importação entra o paiz
contractante e os Estados Unidos; 3.° (este apenas
para encher tempo), o Estudo de um caminho de
ferro dos Estados Unidos á Patagonia, ligando
entre si as republicas americanas.
A questão do arbitramento não offereceu
grandes difficuldades. Em materia de promessas,
de tratados e de compromissos internacionaes as
republicas da America não são dif-ficeis. O
Corpus Diplomaticum sul-americano, isto é, a
collecção dos seus tratados, dos seus accordos e
das suas convenções, é enorme. Fazem-se,
desfazem-se, esquecem-se e violam-se tratados
com a maior facilidade. Quasi todas as republicas
concordaram que, no futuro, decidiriam as suas
questões por arbitramento. Era um accordo
platonico, de bonito
A illusão americana
199
effeito, que parecia dar prazer a Blai-ne e que,
em summa, a nada obrigava. 0 governo 'chileno,
porém, foi mais correcto e sincero, e não as-
signou a clausula do arbitramento. O presidente
do Chile justificou esta recusa perante o
congresso do seu paiz, pronunciando as
seguintes palavras :
«Foi tambem proposta e acceita por alguns
representantes do congresso de Washington a
arbitragem internacional na fórma mais com-
pressiva e obrigatoria. Não prestámos
assentimento a este projecto, porque o Chile não
necessita, para o exercício da sua soberania no
mundo civilisado, de outra lei que não seja a lei
geral das nações. Os povos, como o nosso, que
vivem do seu trabalho, e que cumprem
fielmente as suas obrigações e compromissos
interna-cionaes, terão de recorrer á arbitragem
nos casos especiaes e concretos em que assim o
aconselharem a justiça publica, a prudencia e o
respeito
200
A illusão americana
reciproco dos estados soberanos; julgo, porém,
que não nos será licito limitar á arbitragem a
acção das gerações futuras para fazer vingar o
direito. Só a ellas compete apreciar o resolver
sobre os meios que a lei internacional lhes faculta
para a defe-za do seu direito. A restrícção dos di-
reitos do estado, por meio da adopção obrigatoria
de um processo excepcional, como é o da.
arbitragem, não se coaduna com a liberdade, que,
em qualquer eventualidade, desejo reservar aos
poderes publicos da minha patria e aos meus
concidadãos.»
Esta é a linguagem de um verdadeiro homem
de estado, explicando uma resolução das mais
patrioticas e baseada na mais verdadeira com-
prehensão dos direitos e dos deveres
internacionaes.
O Salvador, Guatemala, Haiti e S. Domingos
assignaram a obrigação de recorrer ao
arbitramento, mas poucos mezes depois houve
uma guerra mortífera entre o Salvador e
Guatemala
A illusão americana
201
e as tropas de S. Domingos e Haiti. Ó
fraternidade, ó lealdade americana e republicana!
Na parte commercial, as republicas hispano-
americanas, embora assignassem algumas das
conclusões impostas pelos Estados Unidos, não
se apressaram em concluir os tratados que os
Estados Unidos tanto ambicionavam. O ministro
do Chile nos Estados Unidos, n'um banquete que
lhe foi offerecido em Chicago, teve a franqueza
de declarar que, em vista das exigencias do
governo norte-ame-ricano, o Chile tinha de
continuar a| ter em vista a Europa, e a tra-
balhar por estreitar cada vez mais as suas
relações com o velho mundo. A republica
brazileira, então ainda na primeira das suas
diversas e suc-cessivas dictaduras, foi o primeiro
paiz que cedeu aos desejos dos Estados Unidos,
assignando o tratado de reciprocidade
commercial, que ficará conhecido na historia
pelo nome de tratado Blaine-Salvador, porque os
seus signatarios são aquelle estadista
202 A illusão americana
americano e o ministro brazileiro em
Washington, sr. Salvador de Men
donça.
Esse tratado, foi motivo para o Bra-zil ser
prejudicado sem a minima vantagem, e deu
occasião a uma grande deslealdade por parte do
governo norte-americano.
O que concederam os Estados Unidos ao
Brazil por esse tratado ? A isenção de direitos de
importação sobre o café brazileiro e sobre alguns
typos de assucar. Ora, o café não pagava
direitos nos Estados Unidos desde 1873. E porque
n'aquella epo-cha supprimiram os Estados Unidos
aquelle imposto ? Não foi para obsequiar o
Brazil.; foi porque assim convinha aos interesses
do povo americano, A tarifa aduaneira americana
é proteccionista; as suas elevadas taxas não têm
por fim augmentar os rendimentos do thesouro,
mas simplesmente proteger as industrias e as
culturas nacionaes. Os Estados Unidos' m por
força de importar café,
A illusão americana
203
genero que não produzem. Um imposto sobre a
entrada do café viria a recaír, na verdade, sobre o
consumidor americano. Grande productor de
café, pelas condições geographicas e pelo seu
monopolio d'essa produc-ção no occidente, o
Brazil tinha fatalmente de abastecer o mercado
americano. Não é uma verdadeira burla querer
fazer-nos acreditar que a isenção de direitos
sobre o café brazileiro é um favor, feito ao Brazil
? Se os Estados Unidos voltassem de novo a
impor direitos sobre o café, o Brazil nem por
isso perderia o mercado americano onde não
temos concorrencia. Sómente o consumidor
americano pagaria maia caro aquella bebida que
lhe é indispensavel. Quanto ao assucar, a isenção
de direitos seria na realidade util á industria
assucareira do Brazil, se esta isenção fosse con-
cedida só ao producto brazileiro. Ora, um tratado
anterior e em vigor, já dava livre entrada no
territorio americano aos assucares do Hawai,
304 A illusão americana
mas, apesar d'isso, o Brazil lucraria muito se não
tivesse outro concorrente, senão aquelJas ilhas, a
gosar da livre entrada.
Quando em fevereiro de 1891 foi publicado no
Brazil o texto do tratado Blaine-Salvador, todo o
mundo entendeu que o Brazil beneficiaria da
isenção direitos sobre o as-sucar.
Immediatamente depois, o Jornal do Commercio
annunciou, em telegramma de Madrid, que o
governo americano fizera aberturas á côrte de
Hespanha, solicitando a celebração de um tratado
em virtude do qual os assucares de Cnba e de
Porto Rico entrariam nos Estados Unidos livres
de direitos. Desapparecia assim para o Brazil a
unica vantagem que se esperava do tratado.
Postos os pro-ductos do Brazil em pé de
igualdade com os das colonias hespanholas, tra-
tada a joven republica de modo igual á velha
monarchia que mantem em ferrenho jugo colonial
uma parte riquíssima da livre America — onde
A illusão americana
205
ficavam as vantagens para o Brazil, onde estava
a fraternal preferencia que a grande republica
devia tambem a outra republica, que, embora
menor, é ainda grande ? Como era possível que o
governo de Washington equiparasse no
tratamento fiscal a carunchosa e antipathica
monarchia da Europa decrepita com a virente e
fraternal novíssima republica da America do
Sul? Não! Era impossível. Assim pensou por
certo o governo da republica brasileira, que se
apressou em desmentir o Jornal no Diario
Official, dizendo que era falso que se estivesse
tratando de um convenio commercial qualquer
entre os Estados Unidos e a Hespanha. O mi-
nistro do Brazil em Washington, quando
aconselhava para o Rio o tratado commercial
com os Estados Unidos, affirmava que os
Estados Unidos não dariam livre entrada aos
assucures de nenhum outro paiz. Essa era a pro-
messa que lhe tinha feito o governo de
Washington, e só a confiança n'essa
206 A illusão americana
promessa é que fazia com que o governo no Rio
fosse tão affirmativo. O Jornal do Commercio
insistiu, deu esclarecimentos, annunciou que o sr.
Foster ia á Hespanha tratar tudo foi em vão. O
governo manteve a sua negativa. Semanas depois
era as-signado o tratado! Os assucares de Porto
Rico e de Cuba tinham livre entrada nos Estados
Unidos, e desapparecia assim a unica vantagem
que ao Brazil poderia trazer o tratado Blaine-
Salvador. E não parou ahi o governo de
Washington; fez logo outros tratados com a
America Central, com a Aliemanha e com a
Hollanda. Venezuela tambem fez um tratado, mas
o Congresso venezuelano rejeitou-o.
O governo brazileiro foi assim ludibriado pela
esperteza americana. Em troca de um favor
fictício e il-lusorio, em seguida a uma negocia-
ção em que a fé norte-america-na tornou-se
evidente, o Brazil concedeu isenção de direitos ás
farinhas
A illusão
americana
207
de trigo dos Estados Unidos, deu igual isenção a
varios outros arti-gos americanos, e para todos
os ou-tros introduziu uma reducção de 25 por
cento nas tarifas da alfandega. Esta concessão
trouxe consideravel prejuízo para a roda do the-
souro (1), que já não atravessava epocha para
tanta generosidade. E mais do que isto, ella
causou damno muito grande ás industrias já esta-
belecidas no Brasil e em via de prosperidade. Ha
uma vantagem muito grande para os paizes
importadores de pão em transportar de
preferencia o trigo para reduzil-o a farinha nos
mercados ou proximo dos mercados
consumidores. O consumidor beneficia
duplamente por esta fórma, porque o frete é
muito menor (pois
(1) A commissão de orçamento da camara dos
deputados do Brasil dm 1894 avaliou o prejuizo do
thesouro em 3:000 por trimestre sejam 12:000 contos
de reis por anno. Ora o tratado durou quatro annos,
dando assim ao Brasil um prejuizo do 48:000 ooatos
de réis!
208 A illusão americana
n'um volume reduzido se transporta maior quantidade
de substancia alimentaria), porque a qualidade é
superior, pois o transporte por mar e o tempo
facilmente alteram a farinha que até corre o risco de
grande avaria, risco que junto ao maior frete, é tudo
computado pelo vendedor em detrimento do
consumidor. Havia no Brazil muitos moinhos de
moer trigo em que estavam empregados capitaes
importantes e grande numero de trabalhadores. Estas
em-prezas ficaram arruinadas, os trabalhadores sem
trabalho, e o consumi- dor lesado, desde que as
farinhas americanas, pelo tratado, foram ad-mittidas
livres de direitos. Não ha quem tenha esquecido os
importantíssimos depoimentos, em que a grande
maioria dos negociantes, dos in-dustriaes e dos
financeiros do Brazil, em cartas escriptas ao Jornal
do Commercio, se manifestaram, em. quasi
unanimidade, contra o desastroso tratado.
A illuo americana 209
Estas manifestações e estas queixas de nada
valeram. Mandava quem podia, e o mal estava
feito, soífresse embora o povo brazileiro,
gemessem embora as nossas industrias.
Eis-ahi mais um beneficio que recebemos dos
Estados Unidos (1).
IV
Seria um erro colossal o acreditar que nos
Estados Unidos ha sympathias pela America
do Sul, Brazil e
(1) As ultimas eleições americanas foram contra-
rias á politica ultra-proteccionista e de reciprocidade.
Com quebra da fé internacional que estipulava um
prazo de tres mezes de aviso á outra parte
contratante, para a cessação do tratado, os Estados
Unidos restabeleceram os antigos direitos, dando
grande prejuizo aos produotores de assucar do norte
do Brazil e ao commercio brazileiro, que contava
com os tres mezes de aviso. No momento em que
escrevemos a Allemanha reclama energicamente
contra facto identico, em relação aos seus productos.
O governo do Brazil denunciou o tratado Blaine-
Salvador, e de janeiro de 1895 em diante os
productos americanos pagam os mesmos direitos
aduaneiros que os de outras nações.
A ILLUSÃO AMERICANA
210 A illusão americana
especialmente pela fórma de governo que lhe foi
applicada ha quatro annos. Por mil modos se
revela o desprezo americano pelos irmãos do sul
do continente. Em frente ao capitolio de
Washington ha uma estatua do fundador da
independencia americana. O esculptor Greenough
fez-lhe uns baixos relevos symbolicos tirados da
historia de Hercules. Hercules e seu irmão
Iphicles, infantes, repousavam no mesmo berço e
foram assaltados por duas. serpentes. Iphicles,
simples mortal, filho de Amphytrião e de
Alcmene, rompeu em clamores; Hercules, fructo
do adulterio olympico de Alcmene e de Jove, com
as mãos estrangulou as serpentes, mostrando
assim a sua origem divina. Esta é a «cena que o
esculptor poz no pedestal da estatua de Was-
hington. O que quiz o artista sym-bolisar? Os
guias descriptivos das grandezas da cidade de
Washington esclarecem o pensamento do estatua-
rio. Depois de nos indicarem minucio-
A illusão americana 211
samente (como convem a uma crítica de arte á
moda americana) o preço da estatua,-o seu
volume, o seu peso, a qualidade do marmore, as
peripecias do seu transporte desde Floren- ça a
ás margens do Potomac, dizem-nos finalmente os
guias que os dois meninos de marmore, os dois
gemeos da fabula, representam a America do Sul
e a America do Norte. Aquella é a cobardia, a
fraqueza de Iphicles, e esta é a màgestade divina
de Hercules. (1)
Nos Estados Unidos, a palavra America
significa a parte do novo continente que
obedece ao governo de Washington. Respeitam
os americanos a soberania da Inglaterra no
Canadá e, por todas as outras nações, ha nos
benevolos, uma grande indifferença e nos outros,
um sentimento de accentuada superioridade que
é feito de amor proprio e de
(1) Ed. Winslow Martin, Behind the scenes in,
Washington, pag. 140.
212 A illusão americana
desprezo pelos sul-americanos. Basta dizer que
entre os norte americanos, é motivo de chacota o
haver paizes como o Mexico, Venezuela,
Colombia e um outro que conhecemos, que têm a
petulancia de se intitular Estados Unidos. . . Isto
parece-lhes de um comico irresistível. Quando se
falia d'esses United States, ha nos labios ame-
ricanos o mesmo sorriso que teria o duque de
Wellington, ouvindo nomear um dos presidentes
do Haiti, o general Salomou que se intitulava
duque de Crique-Mouillée.
O Imperador D. Pedro II tinha grande
prestigio nos Estados Unidos. O seu amor á
liberdade, o seu espirito aberto a todas as
novidades do século, a sua actividade, a singeleza
da sua pessoa, impressionaram sempre os
americanos, que de um rei só faziam a idéa de um
homem rodeado de fausto, de um defensor do
passado contra o espirito innovador. Os discursos
pronunciados no senado americano, quando se
discutiu o re-
A illusão americana
213
conhecimento da republica brazileira,
consistiram quasi que exclusivamente não no
elogio dos vencedores, mas na exaltação das
virtudes do grande vencido. O governo
americano foi o ultimo, de todos os governos do
novo continente, que reconheceu a republica no
Brazil, e se inspirou, de certo, para essa demora,
na frieza, ná quasi hostilidade, com que a im-
prensa recebeu a revolução. Ainda ha bem pouco
tempo, o correspondente do Paiz, em New-York,
rememorava estes factos, insistindo na pouca
sympathia que os americanos manifestavam pela
nova ordem de cousas no Brazil. Basta lembrar o
que disseram os jornaes americanos quando, em
1890, chegou a New-York uma esquadrilha
brazileira que, segundo diziam os jornaes do
Rio, ia participar ao governo americano a procla-
mação da republica e apresentar os
comprimentos do novo governo ao presidente
dos Estados Unidos.
214 A illusão americana
Com a precipitação com que foi organisada a
esquadrilha, esquece-ram-se no Rio de que os
navios iam chegar a New-York em pleno inverno.
O frio em 1890-91 foi intensíssimo e os pobres
marinheiros, vestidos ligeiramente, soffreram
immenso. O governo americano forneceu-lhes
roupas grossas e cobertas. Era de ver como os
jornaes de New-York noticiavam estes factos.
Uns, descreviam os negros brazileiros chorando
de frio, escondidos no porão, os navios
abandonados, o convez não varrido, os officiaes
com frieiras nos pés, emfim, um- destroço
completo. Tudo isto acompanhados de ditos
picantes e de uma insistencia enorme nos favores
com que o governo americano estava acudindo á
miseria e á desgraça d'aquelles maltrapilhos. No
mesmo anno, veiu uma esquadra americana ao
Rio, dizendo-se que vinha expressamente
comprimentar o governo. O generalíssimo
Deodoro covidou-os para um baile; o
commandante
A illusão
americana
215
da esquadra pediu-lhe que apressasse o baile, e
como houvesse alguma demora, a esquadra
partiu sem sequer esperar pelo tal baile.
Dois annos depois, uma outra esquadra
brazileira vae a New-York a pretexto da
exposição de Chicago e do centenario de
Colombo. Os officiaes brazileiros ficaram
vexados da linguagem da imprensa a seu
respeito e da desconsideração com que foram
tratados. Sempre collocados em ultimo logar,
sempre preteridos em todas as attenções, o seu
desgosto, se nao faltou á verdade o
correspondente do Paiz, foi muito grande e nao
se oc-cultou.
Quando houve o convite á officiali-dade para
ir a Chicago, os officiaes brazileiros todos
recusaram, declarando a um representante da
imprensa, que o faziam por se acharem justa-
mente melindrados. Nao lhes foi dada satisfação
alguma, e, de volta ao 'Brasil, vieram de certo
muito pouco
216 A illusão americana
inclinados a acreditar ainda na pilheria da
fraternidade americana.
O ministro do Brazil em Washington, o sr.
Salvador de Mendonça, tem experimentado,
muitas vezes, á sua propria custa, que, nos
Estados Unidos, a sua entidade de ministro dos
Estados Unidos do Brazil não merece nenhum
respeito por parte da imprensa. S. ex.
a
tem tido na
sua carreira incidentes desagradaveis, que a im-
prensa americana ha longa e maliciosamente
glosado, sem ter em vista que s. ex.ª, na sua
qualidade de republicano intransigente, historico e
tudo o mais, e pelo seu titulo de ministro de uma
republica, devia ser tratado com mais respeito. O
sr. ministro é amador de bellas artes; tinha uma
galeria de quadros todos assignados pelos maiores
pintores antigos e modernos. Era uma galeria que
valia muitos milhões; s. ex.
a
mandou-a para Paris
para ser vendida em leilão. Os peritos parisienses,
encarregados da avaliação, de-
A illusão americana
217
clararam que os quadros eram todos falsos; s.
ex.
a
, em telegramma para Paris, disse que estava
de bôa fé e que tinha sido enganado. Retirou os
quadros, e, mais tarde, offereceu alguns d'elles á
Academia de Bellas Artes do Rio de Janeiro, que
comeu por lebres primorosas todos aquelles
gatos a oleo (1). Pois esta anecdota, que é apenas
um pouco comica para o nosso ministro, e que só
prova que s. ex.ª não entende de pintura, e que
foi roubado, comprando por enorme somma
aquella galeria, foi decantada nos jornaes de
New-York, e o representante do Brazil coberto
de ridiculo. Outro facto: O sr. Salvador de
Mendonça foi encarregado pelo governo de
comprar uma grande quantidade de prata nos
Estados Unidos. Os ministros da fazenda do
Brazil têm todos, depois d'isso, pretendido
(1) Todas as particularidades d'este incidente
acham-se na obra de Paul Eudel, L'Hotel Drouot em
1885. Paris, 1886, pag. 145.
218 A illusão americana
que as contas não estão certas, que falta prata ou
que falta dinheiro, conforme se tem visto pelas
correspondencias officiaes publicadas. Que tem a
imprensa americana com esta questão
inteiramente brazileira ? É um ponto que deve ser
ventilado entre dois altos funccionarios da re-
publica brazileira, entre o ministro da fazenda e o
ministro diplomatico. Assim não têm pensado,
porém, os jornaes americanos e varias vezes têm
voltado a esta desagradavel historia da prata,
publicando artigos deprimentes para o
representante do Bra-zil. Sem duvida que o
governo de Washington não póde proteger o re-
presentante da republica irmã contra a imprensa,
porque esta ó livre. Mas a vontade é evidente
em toda a sociedade americana. O representante
republicano do Brazil parece sentir isto, porque,
seguindo o exemplo de diplomatas de outros
paizes que foram pessoalmente aggredidos pela
imprensa, s. ex.ª podia, deixando de
A illusão americana
219
lado as suas immunidades, chamar os seus
detractores aos tribunaes. S. ex.ª tem com
certeza confiança na justiça da sua causa, e se
não lançou ainda o d'este recurso é porque
não acredita muito na justiça americana quan-do
esta tem de decidir entre um compatriota e um
sul-americano.
O governo norte-americano, ainda ha pouco,
deu uma nova prova da pouca consideração que
lhe merece a republica brazileira. O governo de
Washington elevou á categoria de embaixadores,
o seu ministro em Paris e os seus representantes
junto ás côrtes de Londres, Berlim, Vienna,
Roma, Madrid e 8. Petersburgo. Ora, o Brazil é a
segunda nação da America, por todos os titulos,
ha a consideração importantíssima de que, pelo
listhmo do Panamá, temos a honra de estar
presos ao mesmo continente occupado pelos
Estados Unidos; temos, como elles, presidentes,
ministros irresponsaveis, etc. Sendo assim, está
claro que o Brazil merece muito
220 A illusão americana
mais dos Estados Unidos do que as carunchosas e
decrepitas monarchias europêas. Não obstante
tudo isto, o governo de Washington conserva no-
Rio um qualquer representante diplomatico de
segunda categoria, não dando ao Brazil a
confiança de tratar o seu governo com a
consideração com que trata o governo hespanhol
ou o governo austríaco. E' mister confessar que
Washington usa para com o Brazil de fraternidade
em dose muito moderada.
Desde que falíamos em imprensa, devemos
fallar de outro modo, pelo qual tambem se
manifesta sempre, pela maneira que temos visto, a
ami-sade dos norte-americanos pelo Brazil.
Falíamos da noticia alarmante falsa ou verdadeira.
Nem tudo são rosas na vida do corpo
diplomatico sul-americano. Representantes do
general A, nomeados pelo general B, estão
promptos a servir o general C. Um bello dia chega
um telegramma: «O general C. ata-
A illusão americana 221
cou o general Á. O que dirá o pobre diplomata
aos reporters que o assaltam e perguntam quem
tem razão, cousa grave, e, cousa ainda mais
grave, quem vencerá? E' diffi-cilima a reposta.
Alguns ha que se arriscam; se acertam, muito
bem. Mas, se se enganam, estão perdidos, por-
que o vencedor demitte-os sem piedade. Os
espertos calam-se. A reportagem, porém, ó
feroz; a reportagem ganha por linha de noticia
fornecida; e um reporter, quando não tem essa
noticia, invénta-a. Muita vez ha ingenuos que
enxergam profundos ma-chiavelismos, intrigas
habilissimas e perfidos intuitos de partidarios ou
conspiradores mysteriosos n'uma noticia que foi
arranjada n'um pobre quinto andar, numa agua
furtada de um reporter qualquer, que forjou essa
noticia para equilibrar o seu orçamento da
semana. Ha, porém, outro genero de noticia falsa
que deve cair, e cáe, dentro da acção dos
tribunaes. E' a noticia falsa, com fins de espe-
222
A illusão americana
culação, para a qual ha penalidade nas legislações
de certos paizes. Ora, estas noticias falsas para
fazer subir ou descer o café nos mercados, para
fazer subir a cotação dos títulos brasileiros, nem
sempre são noticias contrarias ao governo do
Brazil. A especulação é de uma imparcialidade
provada; ás vezes ànnuncia os mais lisonjeiros
acontecimentos, outras vezes as catastrophes as
mais terríveis. Em todo o caso New-York é que é
o ponto de concentração e-de expedição d'estas
notícias. Os jornaes americanos m gasto muito
dinheiro para ter noticias do Brazil nas differentes
crises agudas e periodicas da republica; mas, em
vez de receberem directamente estas noticias,
recebem-n'as via Buenos-Ayres e Montevideu,
onde as noticias são todas exageradas e
apimentadas-com a vontade dos nossos irmãos
argentinos e uruguayos, que são nossos inimigos,
apesar de nós termos seguido o seu exemplo adop-
tando a fórma de governo da Argen-
A illusão americana
223
tina e do Uruguay. Os Estados Unidos o, para
o resto do mundo, o vehiculo transmissor da bilis
argentina contra o Brazil; são os correspondentes
de jor-naes americanos que atacam o Brazil; são
as agencias telegraphicas americanas que
enviara, para todos os pontos do globo, as
noticias deprimentes do Brazil, noticias muitas
vezes falsas, por vezes exageradas, e, ai de nós!
ás vezes tambem verdadeiras. E o que é curioso
é que os jornaes da Europa, que recebem dos
Estados Unidos essas noticias, que transcrevem-
n'as, é que passam por diffamadores do Brazil.
Se os jornaes americanos são insolentes para
com o Brazil, o que póde verificar facilmente
toda a gente, o mundo commercial dos Estados
Unidos tambem nos é adverso. Nunca dos
Estados Unidos veio o minimo auxilio para as
nossas industrias, para a nossa lavoura ou para a
nossa viação ferrea. Ha perto de quatrocentos
mil contos de réis da Inglaterra empregados no
Brazil, quer em
224 A illusão americana
emprestimos ao governo, quer em caminhos de
ferro e outras industrias. O Brazil era pobre quando
iniciou a sua existencia, era despovoado, tinha ás
portas inimigos ameaçadores, tinha problemas
internos gravíssimos e a Inglaterra teve
confiança no Brazil, a Inglaterra nos confiou os
seus capitaes, mesmo em epochas criticas. E o
povo inglez é tão superior que, em 1865, estando o
Brazil de relações rôtas com a Inglaterra, por
motivo de questão Christie (1) (questão de que a
dignidade do Brazil saiu illesa), conseguiu
levantar em Londres um emprestimo, na occasião
em que inicia-
(1) Como se sabe a questão foi sujeita ao juízo
arbitral do Rei dos Belgas, que deu razão ao Brazil.
Quasi toda a imprensa ingleza foi a nosso favor. Na
camara dos communs lactaram por nós oradores
illustres como John Bright, Cobden, Lord Cecil (hoje
Lord Salisbury) e muitos outros. O ministro Christie
apresentou-se candidato á camara dos commnns por
Oxford, declarando que a sua eleição seria considerada
a approvação do seu procedimento no Brazil. Oxford
derrotou-o. Encon-traria-mos porventura nos Estados
Unidos tanto amor á justiça ?
A illusão americana 225
vamos uma guerra terrível. E os capitaes
inglezes não corriam pequeno risco;
aventuravam-se a todas as emergencias da
guerra com o Para-guay, e aos possíveis e
mesmo provaveis desastres da abolição. E em
quantas emprezas estes capitaes, em acções ou
em obrigações, não estão por assim dizer
enterrados? Se se aponta a São Paulo Railway
como em preza até ha pouco tempo remune-
radora, e a Rio Claro Railway, em todas as
outras estradas feitas com capital inglez os
accionistas não recebem dividendos, ou
recebem-nos mínimos. E que enorme capital não
ha empregado na Alagôas Railway, Bahia e São
Francisco, ramal do Tim-bô, Brazil Great
Southern, Imperial Bahia Company, Natal e
Nova Cruz, Campos e Carangola, Conde D'Eu,
Caravellas Navigation Company, Dona Théreza
Christina, Leopoldina, Macahé e Campos, Porto
Alegre e Nova Hamburgo, Recife São
Francisco, Norte do Rio, Southern Brazilian,
A ILLUSÃO AMERICANA
226 A illusão americana
Bahia Central Sugar, C.°, North Bra-zilian Sugar
Factories, Rio de Janeiro Flour Mills C.°, Gaz da
Bahia, Gaz do Pará, do Ceará, Gaz do Rio
(capitaes belgas), Aguas de Pernambuco, etc, etc.
? Todas estas empre-zas, que enumeramos,
representam milhões de libras esterlinas que nada,
ou quasi nada, rendem aos capitalistas. Entretanto
estes capitaes ahi estão fructificando para o
Brazil, mantendo a facilidade de transporte em
regiões que d'ella se aproveitam, e dando luz e
agua ás populações. E as emprezas que dão
alguma remuneração, de quantos benefícios não
enchem o Brazil.? E que enorme prejuízo não
têm dado aos capitalistas europeus as nossas
desgraças? Confiados n'um longo passado de
tranquillidade, os capitalistas europeus tinham os
títulos brazileiros no mesmo apreço que os das
primeiras nações do mundo. O 4 % bra-zileiro
estava a 90 a 14 de novembro
A illusão
americana
227
de 1889; hoje vale 54 (1). Os capitalistas
confiaram em nossa estrellà; estavam ao nosso
lado nos dias prosperos, perdem hoje comnosco
nos dias maus. E, se algum capitalista europeu
se queixa, não somos nós, os devedores, que
devemos protestar. As nossas desgraças não
provéem de causas physicas; se estivessemos
arruinados por algumas causas natu-raes, se o
café tivesse tido uma molestia destruidora, como
a Hemileia va-tatrix de Ceylão e de Java, se
terremotos, ceas ou innundações nos tivessem
reduzido ao ponto em que estamos, então a
queixa seria insensata. Mas, não... tudo caminha,
na parte que compete á Providencia ou ao acaso,
admiravelmente; agora, na parte que cabe aos
homens, sabemos todos o que tem sido. Dizem,
porém, que ha por ahi uma cousa que precisa se
consolidar e que para essa
(1) Outubro de 1893.
228 A illusão americana
consolidação se dar, é preciso que todos os
brazileiros soffram. As vic-timas têm o seu bom
senso e ellas dizem ou pensam: Se é preciso
sof-frermos tanto, é melhor que a tal cousa não se
consolide ! Esta opinião é fatalmente a de todo o
homem isento da superstição partidaria.
Voltando aos americanos, devemos perguntar:
de que auxilio têm elles sido para o
desenvolvimento da prosperidade material do
Brazil ? Os capitaes d'elles para cá não vêm, os
seus braços para não emigram. As duas
emprezas de navegação que or-ganisaram
acabaram na fallencia culposa e mesmo
fraudulenta, fugindo o americano gerente de uma
d'ellas com o dinheiro dos accionistas brazileiros
e com a subvenção que lhe pagou o governo.
Falla-se que os americanos são nossos grandes
freguezes de café. Em primeiro logar, é absurdo
fazer-se d'este facto motivo para uma gratidão
sentimental. Os americanos não
A illusão americana 229
compram café por amisade, nem por
philanthropia. Compram porque querem bebel-o,
e, não o tendo em casa, procuram-n'o onde
encontram, e o paiz que mais lhe convem é o
Bra-zil. Mas, ainda em relação ao café, é forca
confessar que a feição dos mercados europeus é
mais favoravel ao Brazil do que o mercado de
New-York. Seja pelo que for, o motivo, a
tendencia constante dos mercados europeus é
para a alta e New-York é para a baixa. Sem
duvida, de um e de outro lado, o que determina
esta attitude é a especulação, mas é innegavel
que devemos ter mais sympathias por aquelles
que, embora por interesse proprio, promovem
a valorisação de um producto brazilei-ro,
valorisação que redunda em proveito do Brazil.
Falla-se que a França impõe um pesado direito
de entrada sobre o café; mas quem paga esse di-
reito é o proprio consumidor f rancez. Demais o
Havre, Antuerpia e Hamburgo, têm, no seu papel
de mercados
230
A illusão americana
distribuidores, espalhado pela Europa toda o
nosso café e desenvolvido muito o seu
commercio, New-York, porém, pesa sempre no
mercado do mundo pelos seus grandes esforços
para fazer cair o café; quando a lavoura do Brazil
esteve quasi desanimada pela baixa do café, foi
porque a especulação de New-York estava
triumphante! E hoje mesmo, afrouxem os
mercados europeus os seus esforços, e o
fazendeiro verá que os americanos envilecem logo
o seu pro-ducto e se verá cambio baixo, e café
tambem baixo o que não é impossível, como
muita gente crê.
Temos visto o que os Estados Unidos têm sido
para toda a America latina.
Insistimos especialmente no que tem sido para
nós na diplomacia e na ordem economica.
Terminaremos vendo qual a influencia d'aquelle
paiz na ordem moral e intellectual.
A illusão americana
281
A influencia dos Estados Unidos sobre o
Brazil fez-se sentir, em nossa grande questão
social — a escravidão.
Não teriamos conservado por tanto tempo
aquella instituição iniqua, se a maior nação da
America não tivesse tentado legitimada, e se, da
parte escravpcrata dos Estados Unidos, não nos
viesse o incentivo, se não chegasse até nós a
noticia do que se dizia e do que se fazia nos
Estados Unidos para defender a escravidão.
A, corrupção politica e administrativa é a
propria essencia do funcciona-mento do
governo americano. Os Estados Unidos são o
paiz mais rico do mundo; rico pelas opulencias
natu-raes, pela sua enorme extensão, pela
fertilidade do solo, pelos seus portos, suas
banias, seus lagos, seus grandes rios navegaveis,
suas minas incomparaveis. Povoado um solo
d'estes pela raça saxonia, como poderia deixar
este paiz de ser uma nação forte
232 A illusão americana
e poderosa ? O solo mais rico do mundo, habitado
pela raça mais energica da especie humana eis
o que são os Estados Unidos. Aquelle paiz é
grande, mas não. é por causa do seu governo. Ao
amor proprio de outras nações pobres ou, por
outra, menos ricas em vantagens naturaes do que
os Estados Unidos e habitadas por indivíduos de
raças menos energicas repugna o confessar
esta inferioridade. Insensivelmente, a gente é
levada a não reconhecer as alheias superioridades
ou attribuil-as a causas pouco desagradaveis para
a nossa vaidade. Não ha desar algum em dizermos
que ha povos governados com mais acerto do que
nós mas, quanto a confessarmos que esses
povos o que são, é melhores do que nós, quanto a
dizermos que a terra d'elles é mais rica do que a
nossa a isso é que nunca nos havemos de
resignar. Por essa razão, é explicavel que alguns
brasileiros, de espirito simplista, queiram por
força ver, nas vanta-
A illusão americana 233
gens que nos levam os Estados Unidos em
prosperidade, um effeito, nao de causas naturaes
e irremediaveis, mas uma resultante da differença
dos governos. 0 solo não se póde trocar, a raça
nao se pode substituir, mas, em todo o tempo, é
possível mudar o governo. Nao podendo dar-nos
o solo dos Estados Unidos, nem as qualidades
ethnicas do seu povo, houve quem quizesse dar-
nos ao menos o seu governo, isto é, o que de
menos invejavel tem a grande nação. E a escola
fatal dos imitadores de instituições nao attende
ao contra-senso do seu systema, nem aos fu-
nestos resultados que produzem as leis
transplantadas arbitrariamente de um paiz para
outro. Quando os romanos ainda rudes
conquistaram a culta Grande Grecia, Valerio
Mes-sala trouxe de Catania um relogio solar que
mandou collocar no Forum, junto aos Rostros.
Nao attendeu Valerio Messala nem á differença
de longitude nem á orientação do gno-
234 A illusão americana
mon, e dispôl-o ao acaso. Só um seculo mais tarde
é que se descobriu em Roma que o relogio solar
marcava a hora com grande erro de tempo, e
então é que foi substituído. O relogio que dava o
tempo certo em Catania errava em Roma (1).
Assim as instituições: podem dar certo nos seus
paizes de origem, e trazer a confusão e a
desordem nos paizes para onde arbitrariamente as
transmudam. No Brazil aconteceu o mesmo com a
idéa funestíssima de copiar os Estados Unidos nas
suas leis politicas. Copiemos, copiemos, pensaram
os insensatos, copiemos e seremos grandes!
Deveríamos antes dizer: Sejamos nós mesmos,
sejamos o que somos, e assim seremos alguma
cousa. Imagíne-se um individuo qualquer que,
admirando uma téla de Velasquez, deseje pintar
como elle. De que servirá ter a téla, os pinceis, a
palheta e as tintas perfeitamente iguaes, em
(1) Plínio, Hist. Nat., liv VII, 60
A illusão
americana
235
materia prima, tamanho e dosagem ás do pintor
hespanhol ? Debalde arranjará as tintas e
esforçar-se-ha para pintar como Velasquez. Terá
tudo quanto tinha Velasquez, menos o genio, e
mesmo tendo genio, será outro genio e não o
genio de Velasquez. Assim, os paizes sul-
americanos querem ser ricos e prosperos como
os Estados Unidos, e pensam que conseguirão,
isto copiando artigos da constituição norte-
americana. E como é muito da natureza humana
imitar mais facilmente os vicios do que as
virtudes, a imitação das praticas corruptas da
administração americana é cousa muito natural.
«Nos Estados Unidos rouba-se muito», pensa o
empregado publico sul-americano, «e, apesar
d'isso, são um grande paiz; ora, porque tambem
não será grande o meu paiz, apesar de eu roubar
e dos meus collegas roubarem?» Este raciocínio
apresenta-se forçadamente á fragilidade do
funccionario, a tentação fortalece-se e... o resto
temos visto.
236 A illusão americana
Não ha salteio á propriedade que não encontre
escusa no facto de ser esse salteio muito commum
nos Estados Unidos. Essa é a influencia deleteria
que os Estados Unidos exercem na America. Os
vícios dos grandes corrompem os pequenos, e o
mau exemplo dos poderosos é a perdição dos
humildes.
A cívilisação norte-amerícana póde deslumbrar
as naturezas inferiores que não passam da
concepção materialistica da vida. A cívilisação
não me-de-se pelo aperfeiçoamento material, mas
sim pela elevação moral. O verdadeiro
thermometro da civilisação de um povo é o
respeito que elle tem pela vida humana e pela
liberdade.
Ora os americanos têm pouco respeito pela
vida humana. Não respeitam a vida de outrem e
nem a propria. Herbert Spencer dizia aos
americanos que elles commettem um erro funda-
mental no programrna da vida, gas-tando-a com a
febre, em que mutuamente se exaltam, e que
logar ao
A illusão
americana
237
deperecimento precoce do animal homem, pela
apparição das mais medonhas é frequentes
fórmas de nevrose. A vida de outrem é cousa de
pouca consideração nos Estados Unidos. Os
tribunaes regulares matam juridicamente com
frequencia, os assassinatos criminosos são
vulgarissimos, e os lyn-chamentos crescem em
numero todos os dias. Tudo isto são fórmas
accen-tuadas de desprezo pela vida humana. O
lynchamento é o assassinato collectivo, e o facto
da victima ser, ás vezes, criminosa, em nada
diminue o horror do facto, porque esse ó aggra-
vado, já pelos requintes frequentes de
ferocidade, pela irresponsabilidade do
ajuntamento que resolve e executa a pretendida
sentença. No Brazil, ha uma pequena colonia
americana; a parte d'ella estabelecida na zona
cafeeira do sul, veiu, quasi toda, ao findar a
guerra de seccessão e era composta de sulistas
que, privados de ter escravos na sua patria,
emigravam para o paiz onde ainda lhes era
238
A illusão americana
permittido esse prazer. A população brazileira viu
cbegar esses novos hospedes, e viu os que se
insta!-laram na agricultura excederem em
ferocidade aos mais rudes e perversos
atormentadores de escravos. Os americanos
introduziram novas fórmas de tormentos e novos
apparelhos de supplicio. Como os inglezes
transpor-tam-se aos confins do mundo levando as
suas pás de cricket e as suas redes de lawn-tennis
e conservam o amor dos exercícios physicos, que
é a força da sua raça, os americanos traziam, para
usar nos escravos, azorragues aperfeiçoados e
algemas patent, e trataram logo de propagar o
lynchamen-to. Nos varios casos de lynchamentos
que temos noticia, ha sempre um americano
instigador e comparticipante. Esses casos têm sido
raros até e cir-cumscriptos á zona de S. Paulo
onde ha americanos. O exemplo é, porém,
funestíssimo, o contagio rapido, tanto mais quanto
a impunidade é certa. O espirito americano é um
espirito
A illusão americana
239
de violencia; o espirito latino trans-mittido aos
brasileiros, mais o menos deturpado através dos
seculos e dos amalgamas diversos do iberismo, é
um espirito jurídico que vae, é verdade, á
pulhice do bacharelismo, mas conserva sempre
um certo respeito pela vida humana e pela
liberdade. O rabula de aldeia é, sem duvida, um
ente inferior, mas em todo o caso, é superior,
como unidade social, ao capanga e ao mandão. 0
periodo do desbravamento da terra, da. derru-
bada das matas, do estabelecimento das
primeiras culturas, é, no interior e nas
localidades novas, a idade do capanga; o
escrivão, o promotor, o juiz, que vem depois,
expellem e eliminam o capanga. E' a lei que
substituo a violencia. O espirito americano,
infundido nas populações, é antes favoravel ao
capanga do que á gente do fôro; é o estrangeiro,
cujo prestigio é sempre grande, é o homem de
cabello louro e de olhos azues sempre atacado
pelos nossos negroi-
240 A illusão americana
des, influindo em favor da violencia, nobilitando-a
pela sua prepotencia. O americano, mesclado com
as camadas inferiores da população rural, não é um
factor de progresso. Elle age sobre o meio e o meio
reage sobre elle, havendo uma communicacão
reciproca de defeitos que afoga as qualidades de
ambos. Uma ou outra enxada aperfeiçoada que o
americano traz, algum canivete de molas enge-
nhoso, que elle introduz na ferramenta nacional,
não benefícios que compensem os males que
elle nos faz (1).
(1) Poderiamos citar varios episodios da tentativa de
colonisação americana no Brazil, que mostram quão
grande foi o sen insuccesso. O sr. Quintino Booayuva
escreveu em 1867 um folheto aconselhando a vinda
dos chins para o Brazil. Em seguida á sua publicação
recebeu o sr. Bocayuva uma commissão do governo
imperial para ir buscar esses colonos americanos aos
Estados Unidos. Á commissão redundou em pura
perda; o sr. Bo-cayuva voltou trazendo bandos de
desordeiros e assassinos que muito deram que fazer á
policia do Bio. Vide os jornaes do tempo.
No relatorio do sr. Saldanha Marinho, presidente de
S. Paulo (1868), lê-se: «Tendo mais de cem
A illusão americana 241
fallamos do muito que contribuíram os
Estados Unidos para a du-ração da escravatura
no Brazil pela força damnosa do seu exemplo, e
tambem por ter inspirado aos tímidos o receio de
que a solução do problema no Brazil fosse a
mesma tragedia da America do Norte. o
devemos, porém, esquecer que os americanos
contribuíram muito para o trafico africano no
Brazil. O presidente Taylor, na sua mensagem de
4 de dezembro de 1849, dizia: «Não se póde
negar que este trafico é feito por navios
construídos nos Estados Uni-
familias americanas se estabelecido em terras que
demoram nas proximidades do rio S. Lourenço,
municipio de Iguape, e pretendendo-se a abertura de
uma estrada que ligue tal colonia á cidade da Santos,
a lei vigente do orçamento provincial aucto-risou o
governo a auxiliar a abertura d'essa via de
communicação com a quantia de cinco contos de réis.
Esta quantia foi entregue por ordem do meu
antecessor, ao coronel norte-americano Bowen.
Ignora-se qual o emprego que teve essa quantias.
Essa malfadada colonia chamava-se Nova Texas. O
Texas de Iguape não foi para o Brazil o que outro
Texas foi para o Mexico.)
A ILLUSÃO AMERICANA
242
A illusão
americana
dos pertencentes a americanos e tripulados e
commandados por americanos». E isto não nos
deve causar maior admiração do que nos causa o
lermos na mensagem presidencial de 1856, que
«é indubitavel que o trafico africano encontra nos
Estados Unidos muitos e poderosos sustentado-
res». De entre as muitas provas da grande parte
que os americanos do Brazil tomaram no trafico,
destacaremos õ depoimento juramentado do
capitão W. E. Anderson, americano, depoimento
prestado na legação americana do Rio de Janeiro
no dia 11 de junho de 1851. Diz o capitão An-
derson que, em 1843, fez o conhecimento de
Joshua M. Clapp, cidadão americano, que «antes
e depois d'a-quella epocha occupava-se em larga
escala da compra e frete de navios americanos
para o trafico». Refere-se ainda Anderson a um
outro americano, Franck Smith, que tambem era
negreiro. O ministro americano no seu despacho
remettendo este depoi-
A illusão americana
243
mento, queixa-se muito de Clapp e de Smith
como grandes negreiros que, diz o ministro
«deshonram a bandeira dos Estados Unidos». O
depoimento de Anderson revela todos os ardis
dos americanos do Rio na costa de Africa, as
suas crueldades e os seus grandes lucros. (1)
Isto quanto á massa popular é o que temos
observado no sul do Bra-zil, onde, em pontos
isolados, houve, em tempos, pequenos nucleos
de colonos americanos. No norte do Brazil;
cremos que não ha americanos senão como
negociantes no litoral, alem do classico dentista,
e talvez de um ou outro medico desgarrado. Nos
sertões do norte, cremos que o americano é
conhecido apenas sob a fórma nomada de
comprador de couros de cabra por conta dos
negociantes da costa. Os Clapps e Smiths,
negreiros de
(1) Este curioso documento acha-se nos U. S.
Senate Docs., Congress 32, session I, 1861-1852, vol.
9, doc. n.° 73, pag. 5.
244
A illusão americana
outro tempo, variam de profissão, mas conservam
os mesmos instinctos. Na ordem intellectual, os
benefícios da America do Norte em relação ao
Brazil não são em nada especiaes. O Brazil não
tem beneficiado mais do que as outras nações do
mundo, dos inventos americanos. Têm sido
viajantes allemães, francezes, ingle-zes e
dinamarquezes que têm escripto os melhores
livros sobre o Brazil e melhor estudado a nossa
natureza. Se exceptuamos Hart, americano, cujas
monographias são reveladoras de uma profundeza
de observação nota-bilissima, se exceptuamos
Orville Der-by, cujos trabalhos são do mais alto
valor e cujos serviços á sciencia bra-zileira têm
sido e hão de ser ainda inestimaveis, onde estão
os escripto-res americanos que se m occupado
de modo serio do nosso paiz? Os professores que
aqui se apresentam têm sido de uma mediocridade
desesperante, nada têm feito, nada têm creado. E
poderíamos encher duas
A illusão americana,
245
paginas com os nomes dos europeus que pelo
livro, pelo estudo, pela observação e pelo ensino,
têm trabalhado no reconhecimento scientifico
das nossas riquezas e elevado o nosso ni-vel
intellectual.
E dos viajantes americanos que têm escripto
sobre o Brazil, quaes têm sido sympathicos ao
nosso paiz? Se não todos, a grande maioria,
d'elles falia de nós com injusto desfavor. Se
europeus da estatura de Martius, Au-guste Saint-
Hilaire, Sir Richard Burton, Bates, Elisée Réclus
e tantos outros nos são sympathicos, os ameri-
canos exprimem-se até com desprezo a nosso
respeito. N'uma narrativa de viagem, que é um
documento offi-cial americano, isto é, a relação
da expedição exploradora americana em 1838-
1842, (1) somos vilipendiados por tal modo
que uma revista
(1) Narrative of the U. S. Exploring Expedi-tion
during the years 1838-1842, by Charles Wilkes,
U.S. N.
216 A illusão americana
americana censurou acremente o governo de
Washington por ter consentido, n'uma publicação
nacional, expressões tão grosseiras e baixas
contra um paiz estrangeiro. (1)
E o que diremos dos estudos que têm feito
brazileiros nos Estados Unidos? Salvas algumas
excepções, pode-se dizer que os formados nos
Estados Unidos são, na concorrencia
brazileira, os que menos sabem e os que menos
preparo têm. São engenheiros incapazes, medicos
que, ás vezes, nem ousam affrontar o exame de
sufficiencia e muitos outros doutores em artigos
de phantasia como agricultura, architectura, etc,
etc, e a quem faltam os rudimentos de toda e
qualquer instrucçâo geral. E verdade que, em
certas famílias brazileiras, mandara-se para os
Estados Unidos os incapazes, os reprovados nas
escolas do Brazil, emfim os mesmos rapazes que,
n'outro tempo, iam
(1) North-American Review, vol. 61, pag. 57.
A illusão
americana
247
para padres ou para soldados. Seja como fôr, a
verdade é que os torna-via-gens dos Estados
Unidos, embora voltem um pouco desasnados,
não vêm em geral trazer, ao concurso das
actividades brazileiras, senão a sua perturbadora,
ou, pelo menos, inutil e grande incompetencia,
aggravada pela presumpção. Isto provém de que,
nos Estados Unidos, ha universidades para todas
as intelligencias como ha hoteis para todas as
bolsas. Ha tambem gradações nos diplomas. Ha
para todas as capacidades e para todos os preços.
E esta mocidade julga as cousas americanas,
compara os Estados Unidos com o Brazil, não vê
as nossas qualidades, não conhece os
antecedentes da nossa historia, os feitos dos
nossos maiores, e por isso quer lançar tudo ao
desprezo, rompendo com o passado, e, se elles
podessem, transformariam a sociedade brazileira
n'um arremedo simiesco dos Estados Unidos que
elles julgam o primeiro paiz do mundo, porque
ha por lá muita electricidade
248 A illusão americana
e bons water closets. Não tendo a ponderação que
á raça saxonia a harmonia do seu
desenvolvimento, estes nossos pobres luso-indio-
negroides de-sequilibram-se de todo, no meio da
febricitação americana.
E é muito real a acção perturbadora do
nervosismo norte-americano nas organisações
latinas. Temos conhecido muitos casos
indivíduaes bastante curiosos. Uma vez
entravamos em New-York vindo de Panamá, e os
passageiros sobre a tolda contemplavam o
espectaculo grande e cheio-de vida d'aquelle
porto immenso. Ouvíamos o alarido dos
carregadores e dos operarios nas pontes de
desembarque. Nos estaleiros martellava-se
infernalmente o ferro; no vapor havia um reboliço
ruidoso das bagagens tiradas do porão, puxadas
pelos guindastes.
Junto a mim estava um velho, não-sei se de
Nicaragua, de Guatemala ou de Honduras, mas
certamente de um d'esses illustres paizes que,
mais
A illusão
americana
249
civilisados do que o Brazil de então, gosavam
dos benefícios da fórma republicana. O velho
contemplava as tres grandes cidades de New-
York na frente, de Brooklyn á direita e de Jersey
á esquerda, quê se espraiavam cinzentas e
esfumaçadas diante de nós. O velho, mestiço
talvez de Azteca e de conquistador hespanhol,
olhava vagamente com instinctos atavicos de
presa e de salteio:
Quien sabe? exclamou elle, quem sabe se um
dia nós, os de Nicaragua, não viremos a tomar
New-York ?! — Centenares de vapores, grandes,
pequenos, lentos como elephantes ou rapidos
como cervos, cruzavam-se ao redor de nós,
badalando as campanas de bronze e estrugindo
no ar os seus silvos agudos e as notas roucas e
longas de seus uivos de vapor.—Ninguem
respondeu á prophecia interrogativa do velho, e
este, sorrindo tristemente, disse: «Só com os
assobios esta gente nos havia de enlouquecer».
(Solo com los pitos nos volverian locos). Não
250
A illusão americana
queremos dizer que os assobios das machinas
americanas enlouqueçam os brazileiros dos
Estados Unidos; o que é certo, porém, é que não
encontramos na vida da nacionalidade brazileira
nenhum traço luminoso de um discípulo
americano. Nem ao menos, por esse lado, temos
cousa alguma que agradecer á republica norte-
ame-ricanà.
V
Devemos concluir de tudo quanto escrevemos:
Que não ha razão para querer o Brazil imitar
os Estados Unidos, porque sairíamos da nossa
indole, e, principalmente, porque estão
patentes e lamentaveis, sob nossos olhos, os
tristes resultados da nossa imitação;
Que os pretendidos laços que se diz existirem
entre o Brazil e a republica americana, são
fictícios, pois não temos com aquelle paiz
affinidades de natureza alguma real e duradoura;
A illusão americana
251
Que a historia da politica internacional dos
Estados Unidos não demonstra, por parte
d'aquelle paiz, benevolencia alguma para
comnosco ou para com qualquer republica la-
tino-americana;
Que todas as vezes que tem o Brazil estado
em contacto com os Estados Unidos tem tido
outras tantas occasiões para se convencer de que
a amisade americana (amisade unilateral e que,
aliás, s apregoâmos) é nulla quando não é
interesseira;
Que a influencia moral d'aquelle paiz, sobre
o nosso, tem sido perniciosa.
Se a longa serie de factos que apresentamos,
se as razões que expendemos não bastassem
para chamar á verdade os espíritos ainda os mais
rebeldes, bastaria citarmos a opinião do maior
dos americanos, para dissipar as velleidades de
affectos e os
A illusão americana
ingenuos sentimentalismos que nos querem impor
a respeito dos Estados Unidos.
Não! Toda a tentativa para, em troca de
qualquer serviço, collocàr a patria livre e
autonomica em qualquer especie de sujeição para
com o estrangeiro, é um acto de inepcia e é um
crime.
Jorge Washington, na sua mensagem de
adeus, verdadeiro e sublime testamento, escreveu
as seguintes palavras que a veneração americana
tem conservado através das gerações:
«... Deveis ter sempre em vista que é loucura o esperar
uma nação favores desinteressados de outra, e que tudo quanto
uma nação recebe como favor terá de pagar mais tarde com
uma parte da sua independencia... Não póde haver maior
erro do que esperar favores reaes de uma nação a
outra...» (1)
(1) ,. . constantly keeping in view that it is folly in
one nation to look for desinterested favours from
mother; that it must paz with a portion of
A illusão
americana
253
Que o conselho de Washington não sirva
sómente para os seus compatriotas... Os
brazileiros devem acceitar a lição, e sejam quaes
forem as fatalidades do momento, saibam elles
re-pellir o estrangeiro que só conseguirá aviltar o
paiz que acceitar os seus serviços.
No recanto do solo brazileiro de onde
escrevemos estas linhas, os me-zes de setembro e
de outubro d'este anno de 1893 (1), não se
distinguiram em cousa alguma dos de outros
annos. Estas semanas são as da primeira carpa
das roças e do plantio do milho. Quanta
philosophia inconsciente e pratica, quanta sabe-
doria innata n'este povo! E quanto
its independence for whatever it may accept un-der
that character. There can be no greater error than to
expect or calculate upon real favours from nation to
nation. (1) OS primeiros mezes da revolta naval 1893-
1894.
254
A illusão
americana
sentimos que a civilisação destruísse em nossa
alma a serenidade d'esta gente.
Clama alto em nosso espirito a voz da
experiencia fria e implacavel e, pessimista, ella
nos diz : A colonisa-ção iberica da America foi
um in-successo, foi uma desgraça para a
civilisação do nosso planeta. Não chegam a ser
nações os agrupamentos em que ganglios de
populações mestiças, oriundas de todas as
inferiori-dades humanas, querem por força fingir
de povos... O amalgama artificial chamado Brazil
está desfeito, apesar de duas ou tres gerações
terem chegado a viver e morrer na illusão do
artificio, que agora vae findar.
Vemos, porém, o bloco immenso de uma
rocha ferruginosa, ora decomposta, e que forma
uma montanha de terra arroxada, como que
embebida do sangue, ainda fresco, de hecatom-
bes recentes. Aquella terra existia ha milhares
de annos, antes de existir tudo quanto hoje existe
e faz ruido.
A illusão americana
255
Ella existia antes do tempo em que o exercito de
Cesar era contra a armada de Pompeu. Existirá
ainda, quando, de outros ambiciosos, não
restarem nem os nomes pouco il-lustres.
7 de novembro de 1893.
APPENDICE
No dia 4 de Dezembro de 1998 foi posto este livro a
venda nas livrarias de S. Paulo. Vendidos todos os
exemplares promptos n´esse dia, foi ás livrarias o
chefe de policia e prohibiu a venda. Na manhã
seguinte a typographia em que foi impresso o livro
amanheceu cercada por uma força de cavallaria, e
compareceram á porta da officiana um delegado de
policia acompanhado de um burro que puxava uma
carroça. O delegado entro pela officina e manfou
ajuntar todos os exemplares do livro, mandando-os
amontoar na carroça.
260
A illusão americana
O burro e o delegado levaram o livro para a
repartição da policia. No mesmo dia a Platéa
publicava o seguinte:
Um interview com o dr. Eduardo Prado.
Como sabem os nossos leitores, ap-pareceu á
venda o novo livro do dr. Eduardo Prado, a
Illusão Americana, de cuja apparição nos
occupamos no ultimo numero d'esta folha.
Todos os exemplares postos á venda no
sabbado foram vendidos. Soubemos n'esse dia
que a policia pro-hibiu a venda do livro.
O nosso collega Gomes Cardim, por ir lendo
n'um bond a obra prohibida, foi levado á policia.
O mesmo aconteceu com um cavalheiro, de cujas
mãos, na Paulicéa, foi arrancado um exemplar
por um policia secreta.
Um redactor d'esta folha foi procurar o auctor
para ouvir da sua ca as suas impressões
relativas ao successo do seu livro e o seu parecer
sobre a prohibição.
A illusão americana
261
O dr. Eduardo Prado recebeu muito
graciosamente o nosso companheiro, e não
pareceu dar muita importancia nem ao livro nem
á sua prohibição.
Eis, mais ou menos, o que elle nos
disse:
— Na minha infancia, havia na rua de S.
Bento um sapateiro que tinha uma taboleta onde
vinha pintado um leão que, raivoso, mettia o
dente n'uma bota. Por baixo lia-se: Rasgar póde
descozer não. Dê-me licença para plagiar o
sapateiro e para dizer: Prohibir podem, respon-
der não.
Quanto ao honrado chefe de policia, penso
que s. ex.
a
lisonjeou-me por extremo julgando a
minha prosa capaz de derrotar instituições tão
fortes e consolidadas como são as instituições
republicanas no Brazil.
Demais, s. ex.
a
póde dizer-se que, só por
palpite, prohibiu o livro. Saiu o volume ás
quatros horas e ás cinco foi prohibido antes da
auctoridade ter tempo de o ler.
262 A illusão americana
Confesso que a publicação foi um acto de
ingenuidade da minha parte. Não quero dizer que
confiei, e por isso digo antes que estribei-me no
artigo 1.° do decreto n1.565 de 13 de outubro
passado, regulando o estado de sitio. 0 vice-
presidente da republica e o sr. seu ministro do in-
terior disseram n'esse artigo:
«Artigo 1 É livre a manifestação do
pensamento pela imprensa, sendo garantida a
propaganda de qualquer doutrina politica.»
E com suas assignaturas empenharam a sua
palavra n'essa garantia. Escrevo um livro
sustentando a doutrina politica de que o Brazil
deve ser livre e autonomico perante o estrangeiro,
e adopto o aphorismo de Montesquieu, de que as
republicas devem ter como fundamento a virtude.
O governo é contrario a essas opiniões, e está
no seu direito. Manda, porém, prohibir o livro!
Onde está a palavra do governo, dada
solemne-
A illusão americana
263
mente n'um decreto, em que diz garantir a
propaganda de qualquer doutrina politica?
A sabedoria popular diz: Palavra de rei não
volta atraz. — 0 povo terá de inventar outro
proverbio para a palavra do vice-presidente da
re-bublica. —
O auctor recebeu de todos os pontos do
Brazil grande numero de cartas pedindo-lhe um
exemplar do livro prohibido. Estas cartas
vinham assi-gnadas por nomes dos mais
distinctos do paiz, e a todos estes correspon-
dentes peço desculpa por me ter sido impossivel
acceder aos seus pedidos. Mencionarei sómente,
para prova de que os republicanos brazileiros
alguns ha que não são inimigos da liberdade de
pensamento, uma carta do sr. Saldanha Marinho,
em que este pa-triarcha do republicanismo,
saudoso
A illusão americana
decerto das praticas liberaes, da mo-
narchia e rebelde ás idéas liberti-
cidas de hoje, protestava contra a
prohibição d'este trabalho. A todos e
a cada um cabem os agradecimentos
do auctor.
N. B. Este trabalho, tal qual foi escripto para
a primeira edição, foi redigido sem o auctor ter
os seus II-vros á mão, nem as suas notas. Na
edição actual todos os factos citados o
justificados com a citação das fontes officiaes ou
dos auctores que relatam os mesmos factos.
FIM
N. 2.218 Livraria e Officinas Magales 6 - 917
Avenida D. Pedro I - 33 (Ypiranga) S. Paulo
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo