E aí começou o Ezequiel uma narração tão extraordinária, que os amigos não puderam
ouvir sem algum interesse. Os dous vizinhos eram da mesma idade, mais ou menos,
quarenta e tantos anos, casados, com filhos, sendo que o Neves liquidara o negócio
desde algum tempo, e vivia das rendas, ao passo que o Delgado continuara o negócio, e
justamente falira três semanas antes.
— Vocês lembram-se ter visto o Delgado entrar aqui em casa um dia muito triste?
Ninguém se lembrava, mas todos disseram que sim.
— Desconfiei do negócio, continuou o Ezequiel, abstraí-me, e fui direito a ele. Achei-lhe a
consciência agitada, gemendo, contorcendo-se; perguntei-lhe o que era, se tinha
praticado alguma morte, e respondeu-me que não; não praticara morte nem roubo, mas
espancara a mulher, metera-lhe as mãos na cara, sem motivo, por um assomo de cólera.
Cólera passageira, disse-lhe, e uma vez que façam as pazes... — Estão feitas, acudiu ele;
Zeferina perdoou-me tudo, chorando; ah! doutor, é uma santa mulher! — E então? — Mas
não posso esquecer que lhe dei, não me perdôo isto; sei que foi na cegueira da raiva,
mas não posso perdoar-me, não posso. E a consciência tornou a doer-lhe, como a
princípio, inquieta, convulsa. Dá cá aquele livro, Micota.
Micota trouxe-lhe o livro, um livro manuscrito, in folio, capa de couro escuro e lavrado. O
Ezequiel abriu-o na página 140, onde o nome do Delgado estava escrito com esta nota:
— "Este homem possui o senso moral". Escrevera a nota, logo depois daquele episódio; e
todas as experiências futuras não vieram senão confirmar-lhe a primeira observação.
— Sim, ele tem o senso moral, continuou o Ezequiel. Vocês vão ver se me enganei. Dias
depois, tendo-me abstraído, fui logo a ele, e achei-o na maior agitação. — Adivinho,
disse-lhe; houve outra expansão muscular, outra correção... Não me respondeu nada; a
consciência mordia-se toda, presa de um furor extraordinário. Como se apaziguasse de
quando em quando, aproveitei os intervalos para teimar com ele. Disse-me então que
jurara falso para salvar um amigo, ato de covardia e de impiedade. Para atenuá-lo,
lembrava-se dos tormentos da véspera, da luta que sustentara antes de jazer a promessa
de ir jurar falso; recordava também a amizade antiga ao interessado, os favores
recebidos, uns de recomendação, outros de amparo, alguns de dinheiro; advertia na
obrigação de retribuir os benefícios, na ridicularia de uma gratidão teórica, sentimental, e
nada mais. Quando ele amontoava essas razões de justificação ou desculpa, é que a
consciência parecia tranqüila; mas, de repente, todo o castelo voava a um piparote desta
palavra: "Não devias ter jurado falso". E a consciência revolvia-se, frenética, desvairada,
até que a própria fadiga lhe trazia algum descanso.
Ezequiel referiu ainda outros casos. Contou que o Delgado, por sugestões de momento,
faltara algumas vezes à verdade, e que, a cada mentira, a consciência raivosa dava