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Felipe Augusto Witthinrich Lins
A idealidade do objeto literário:
a neutralização da tese
Tese apresentada como requisito
parcial para a obtenção do grau de
Doutor em Teoria Literária.
Curso de Pós-graduação em Literatura,
Centro de Comunicação e Expressão,
Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientador: Prof. Dr. Marcos J. Müller-Granzotto
Nossa Senhora do Desterro, março de 2008
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2
Agradecimentos
Agradeço ao CNPq pelos seis meses de bolsa de pesquisa que me concedeu.
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3
À Malina
4
RESUMO
Partindo da tese A idealidade do objeto literário, que Derrida planejara escrever no início de
sua carreira, optando por neutralizá-la antes mesmo do surgimento da desconstrução, esta tese
trata da neutralização da tese em duas versões: a estrutural (neutralização da tese como
abandono da tese doutoral) e a genética (neutralização da tese como suspensão da atitude
natural ingênua). Na versão estrutural, mostra-se como a própria desconstrução justifica a
neutralização da tese através da noção derridiana de iterabilidade, que é aqui defendida como
a estrutura da desconstrução. Dado que a desconstrução implica o abalo à metafísica da
presença, a tese de Derrida, devido ao seu necessário nculo à fenomenologia, à idealidade e
à teoria literária todas tributárias da metafísica –, tem sua neutralização legitimada.
Contudo, a versão genética mostra que A idealidade do objeto literário é a própria
neutralização da tese, já que é assim que Derrida acaba por definir a literatura; esta passa a ter,
neste caso, a mesma definição da fenomenologia, e, por fim, da desconstrução. Revela-se,
então, uma inextricável imbricação entre fenomenologia, literatura e desconstrução, o que
permite defender a tese de que a neutralizada tese A idealidade do objeto literário é a gênese
da iterabilidade, isto é, da própria desconstrução.
Palavras-chave: desconstrução; fenomenologia; teoria literária; iterabilidade.
ABSTRACT
From the doctoral thesis The Ideality of the Literary Object, which Derrida had intended to
write at the beginning of his career, choosing to neutralize it even before the appearance of
deconstruction, the present work addresses the neutralization of the thesis in two versions: the
structural (neutralization of the thesis as abandonment of the doctoral thesis) and the genetic
(neutralization of the thesis as suspension of the naïve natural attitude). In the structural
version, it is shown how deconstruction itself justifies the neutralization of the thesis through
the derridian notion of iterability, which is here seen as the structure of deconstruction. Since
deconstruction implies that the metaphysics of presence is made unsteady, Derrida’s thesis, by
reason of his necessary tie to phenomenology, ideality and literary theory all tributary of
metaphysics –, has its neutralization made legitimate. However, the genetic version shows
that The ideality of the literary object is the very neutralization of the thesis, for it is thus that
Derrida defines literature in the last analysis; the latter gains, in this case, the same definition
of phenomenology and, eventually, of deconstruction. An inextricable imbrication arises
between phenomenology, literature and deconstruction, which allows for claiming that the
neutralized thesis The ideality of the literary object is the genesis of iterability, i.e., of
deconstruction itself.
Key-words: deconstruction; phenomenology; literary theory; iterability.
5
SUMÁRIO
VERSÃO ESTRUTURAL
INTRODUÇÃO ( I )...................................................................................................................7
CAPÍTULO B..........................................................................................................................14
VERSÃO GENÉTICA
INTRODUÇÃO ( II )................................................................................................................93
CAPÍTULO a’..........................................................................................................................96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................124
6
VERSÃO ESTRUTURAL
7
INTRODUÇÃO ( I )
Em 1980, durante a defesa de um doutorado baseado num conjunto de dez de suas
obras aentão publicadas (doctorat d’État), Jacques Derrida professa, diante da banca, um
balanço de sua trajetória intelectual, de modo a contextualizar sua produção. Num dado
instante de seu pronunciamento
1
, ele declara:
Vers 1957, j’avais donc deposé, comme on dit, un premier sujet de thèse. Je
l’avais alors intitulé ‘‘L’idealité de l’objet littéraire’’. Ce titre aujourd’hui paraît
étrange. A un moindre degré il l’était déjà et je m’en expliquerait dans un instant.
(...) L’idealité de l’objet littéraire, ce titre s’entendait un peu mieux en 1957 dans
un contexte plus marqué qu’aujourd’hui par la pensée de Husserl. Il s’agissait
alors pour moi de ployer, plus ou moins violemment, les techniques de la
phénoménologie transcendentale à l’elaboration d’une nouvelle théorie de la
littérature, de ce type d’objet idéal trés particulier qu’est l’objet littéraire, idéalité
«enchaînée», aurait dit Husserl, enchaînée dans la langue dite naturelle, objet non
mathématique ou nom mathématisable mais pourtant différent des objets d’art
plastique ou musical, c’est-à-dire de tous les exemples privilégiés par Husserl dans
ses analyses de l’objectivité idéale. Car je doit le rappeler un peu massivement et
simplement, mon intérêt le plus constant, je dirai avant même l’intérêt
philosophique, si c’est possible, allait vers la littérature, vers l’ecriture dite
littéraire.
2
A idealidade do objeto literário, portanto. Teria sido uma tese de Derrida. Seria, se ele a
tivesse escrito, o que jamais ocorreu. As razões deste abandono podem ser inferidas da
própria obra que ele desenvolveu a partir de então, contraída no vocábulo desconstrução.
Da referência de Derrida a sua tese inexistente depreendem-se pelo menos três
implicações conhecidamente impermeáveis à desconstrução: 1. o necessário nculo à
fenomenologia de Husserl; 2. o privilégio da noção de idealidade, sobretudo por sua aplicação
ao objeto literário; 3. a postulação de uma teoria literária.
1
Jacques Derrida. “Ponctuations: le temps de la thèse”. In: Du droit à la philosophie.
2
Ibid., pp. 442-444.
8
1
Sabe-se que até 1957 Derrida nada publicara. Sua produção se resumia a um trabalho
acadêmico correspondente ao que em França se chamava mémoire pour le diplôme d’études
supérieures, que, escrito em 1953-54, mas apenas publicado em 1990, leva o título Le
problème de la genèse dans la philosophie de Husserl. Somente em 1962 aparece sua
primeira publicação, L’Origine de la geometrie (uma tradução de um texto de Edmund
Husserl precedida por uma longa introdução). Portanto, tem-se nesse entretempo um Derrida
às voltas com a fenomenologia de Husserl. O ano de 1967 consagra a inclinação de Derrida a
essa temática, através do surgimento de A voz e o fenômeno, ao mesmo tempo em que o
descola dela, através de Gramatologia e A escritura e a diferença.
Trata-se, portanto, do período de formação de Derrida. Neste caso, o subseqüente
desenvolvimento desconstrutivo não pode ser alienado à fenomenologia husserliana; esta tem
o valor de começo factual da desconstrução, que poderia, de direito, ter sido qualquer outro, já
que diversos outros sistemas de pensamento também foram desconstruídos, o que dá à
desconstrução uma certa independência quanto a uma filiação específica. Conseqüentemente,
isso impossibilita a manutenção da tese A idealidade do objeto literário, dado seu necessário e
irredutível vínculo a um contexto contingente e provisório do pensamento derridiano: a
fenomenologia de Husserl. Vinculação esta que, ao ser enfatizada, apenas explicita o sentido
daquilo que Derrida, reportando-se a 1957, entende como sendo um grau menor de estranheza
do título da tese em relação à evidência imediata de seu maior grau de estranheza no contexto
contemporâneo, já marcado pela consolidação e ampla difusão do pensamento desconstrutivo.
Ou seja, levada em conta a desconstrução, não poderia restar outra alternativa para a tese A
idealidade do objeto literário senão sua neutralização.
2
Aliás, tomado isoladamente, isto é, sem referência à fenomenologia, o título A
idealidade do objeto literário, avaliado sob a ótica desconstrutiva, levanta sobre si
inevitáveis suspeitas, que a noção de idealidade como tal mantém laços estreitos com a
metafísica da presença, alvo constante dos escritos de Derrida. Daí se segue que, aplicada ao
objeto literário, a idealidade faz a literatura submeter-se ao âmbito filosófico-metafísico,
9
impedindo a consecução daquilo que justamente se pretende quando se postula uma
idealidade para o objeto literário: a singularidade irredutível da literatura.
Certamente, dada a noção de singularidade que o âmbito filosófico-metafísico valoriza
em que ela é tomada como uma instância transcendente, transparente a si e absolutamente
separada das demais (e.g., um em-si) –, defender a idealidade da literatura é o mesmo que
defender sua singularidade, que a literatura, ao ser pensada como idealidade, tornar-se-ia
independente, ou seja, não dependeria de fatores alheios a ela, aos quais ela se subsumiria. Os
críticos formalistas (que hoje não representam tendência hegemônica nos estudos
literários), ao reivindicar a análise intrínseca da obra literária, acreditam estar garantindo, por
meio de uma idealidade imanente ao texto, a singularidade irredutível (entendida ou
subentendida por eles como essência) da literatura. No entanto, sua atitude de igualar
singularidade à idealidade apenas reitera o privilégio histórico da filosofia sobre a literatura,
que a idealidade como tal é uma categoria emprestada da filosofia metafísica. Por isso,
querer dar à literatura uma singularidade equivalente à idealidade significa, paradoxalmente,
apagar qualquer especificidade do literário, pois se a literatura é determinada e totalmente
delimitada pela idealidade, que é originariamente filosófica, não há propriamente aquele
almejado domínio intrinsecamente literário. Noutras palavras, pela defesa formalista da
idealidade, a literatura, ao invés de ganhar a tão requerida independência, acaba sendo
totalmente aderida à filosofia. Pois não há, contrariamente ao que pensam os formalistas,
idealidade literária exterior à idealidade metafísica e independente dela. É verdade que a
filosofia, para monopolizar o domínio da idealidade e consolidar sua pureza, precisa excluir
de dentro de si a literatura, mas o faz por identificar nesta a materialidade, a empiricidade, a
contingência, a particularidade, enfim, tudo aquilo que se opõe ao campo semântico da
idealidade, requerido pela filosofia como sua propriedade exclusiva. É por não conceder
idealidade alguma à literatura que a filosofia faz a literatura se situar fora da filosofia; um fora
comandado pelo dentro, em oposição a ele. É esta a razão pela qual, em contrapartida, muitos
críticos contemporâneos assumem o rebaixamento e a exclusão promovidos pela filosofia em
relação à literatura, e acreditam encontrar assim a singularidade da literatura, identificando
singularidade com materialidade, empiricidade, contingência e particularidade. Essa é uma
atitude de inversão da metafísica (inverter a hierarquia do par opositivo, ou seja, inverter os
valores, valorizando o rebaixado e o excluído), mas que, por se limitar a inverter, mantém a
oposição hierárquica, recaindo novamente na idealidade metafísica.
Por se pode prever que, em Derrida, a literatura, em sua singularidade irredutível,
não se nem pela idealidade nem em oposição a ela, mas se é permitido antecipar
10
através do que, a partir de suas investigações em torno da escrita, ele entende sob o nome de
iterabilidade.
3
Se a filosofia desconstrutiva não se define estritamente como uma filosofia, daí não se
segue que ela seja o avatar de uma teoria literária. Embora filosofia e literatura não possam se
confundir totalmente por indiferenciação homogeneizadora num pensamento tão atento às
heterogeneidades e diferenças irredutíveis como o de Derrida, não nele uma distinção
prévia e essencial entre filosofia e literatura que permitisse delimitar tranqüilamente o objeto
literário a partir de uma teoria. Aliás, essa separação, bem como sua histórica disposição
hierárquica denunciada pela desconstrução, a própria idéia de teoria literária reproduz, pois
supõe a submissão do literário a uma abordagem filosófica.
Pela desconstrução, não uma diferença apriorística ou substancial entre literatura e
filosofia a concebê-las como duas instâncias rigorosamente opostas e auto-idênticas
idealmente constituídas de antemão assim como não é legítimo sustentar uma relação de
derivação e submissão ontológica entre elas. Se uma reenvia a outra, nada, contudo, de
fronteira nítida a separá-las, pois a própria fronteira é dividida e contaminada por aquilo que
ela mesma divide. Dividir é partilhar (separar), mas é também (com)partilhar. E se ambos os
lados delimitados retroagem reciprocamente, é que cada qual não se limita a si, contendo uma
cláusula de abertura originária e irredutível, motivo por que a fronteira é constantemente
deslocada e deslocável.
Embora a desconstrução não seja uma teoria literária, a literatura desempenha um papel
fundamental em numerosos textos não especificamente filosóficos de Derrida, tanto naqueles
em que ele analisa obras literárias propriamente ditas quanto naqueles em que se arma uma
reflexão mais geral sobre a especificidade do literário. Ora, mas dizer isso não ajuda em nada
a comprovar a afirmação de que a desconstrução não é uma teoria da literatura. Pois a
entender que, pelo menos em parte, o é, pois parece estabelecer uma clara distinção entre os
escritos derridianos sobre obras literárias (crítica literária) e sobre o conceito de literatura
(teoria literária) por um lado, e os seus escritos filosóficos por outro. Para desfazer esse
equívoco, é preciso acrescentar que os textos em que Derrida tematiza a filosofia atentam para
uma essencial operação de escrita constituinte do filosófico que este, contudo, esforça-se por
reprimir, pois a explicitação da irredutibilidade da escrita no interior da filosofia desestabiliza-
a em sua identidade, contaminando-a com a literatura.
11
Portanto, se não em Derrida uma abordagem estritamente filosófica do filosófico,
também não há, conseqüentemente, uma abordagem filosófica (não-literária) do literário
(crítica e teoria da literatura), tampouco uma abordagem literária do filosófico pois não é
pela simples inversão, reduzindo a filosofia à literatura, que se desconstrói a tradicional
redução, imposta pela metafísica da presença, da literatura à filosofia –, e nem mesmo uma
abordagem estritamente literária do literário, que Derrida não faz literatura. Aliás, o estilo
de escrita pouco ortodoxo de Derrida levou muitos leitores a adotarem a perspectiva de que a
desconstrução é uma espécie inovadora de teoria literária, entendida agora pela via inversa – o
que faz contestar a pertinência do uso do termo teoria literária, exigindo sua anulação –, pois
esta não mais se daria como uma abordagem teórico-filosófica, mas sim como uma
abordagem propriamente literária, tematizando tanto a filosofia quanto a literatura numa
escrita que, dadas as suas propriedades equívocas, estaria mais de acordo com a equivocidade
do literário, evitando a tradicional recaída na redução do equívoco (linguagem literária) ao
inequívoco (metalinguagem teórico-filosófica), e permitindo assim o acesso à singularidade
irredutível da literatura, isto é, sua irredutibilidade às categorias filosófico-metafísicas.
Não é, contudo, adotando esta perspectiva inversa que Derrida desconstrói o conceito
de teoria da literatura (bem como não é desta maneira que, em Derrida, a literatura adquire
singularidade – entendida aqui como excesso irredutível, e não como o particular de um geral,
tampouco como uma instância auto-idêntica que não se relaciona a nada além de si mesma).
Pois tal inversão tem como conseqüência reduzir a filosofia ao literário
3
, atitude meramente
oposta em relação à metafísica, que reduz a literatura ao filosófico.
Tanto a metafísica da presença quanto a sua inversão comungam um mesmo
pressuposto: o conceito corrente de escrita, pelo qual ela é mera representação da fala. Esta
estaria do lado da filosofia, por estar mais próxima da idealidade da presença (representação
da presença). A escrita, por sua vez, estaria do lado da literatura, e, por implicar contingência
e ausência, duplamente distanciada da presença (representação da representação). Com isso, a
metafísica as separa rigidamente, e valoriza a fala, rebaixando a escrita. Com isso, o processo
que consiste em inverter a metafísica se resume a aceitar o papel de contingência relegado à
escrita e, coextensivamente, à literatura, o que não proporciona a irredutibilidade do literário,
que, ao inverter a equação, a contingência toma o lugar superior na hierarquia, resultando
num relativismo cúmplice da metafísica.
3
É como se a filosofia não passasse de um gênero literário. Não é o caso em Derrida, para quem o próprio
gênero deve ser desconstruído por ser uma categoria originariamente filosófica.
12
Ao promover o alargamento do conceito de escrita, em que ela, devido à gica da
iterabilidade, torna-se rastro, (arquiescrita), Derrida mostra que uma escrita originária no
interior da própria fala, o que faz a escrita portanto, a literatura tornar-se irredutível. Vê-
se, todavia, que essa escrita originária não é mais a escrita empírica que se apresenta tanto
nos textos filosóficos quanto nos literários. Aliás, vale mencionar aqui um postulado histórico
da metafísica: se a filosofia se apresenta através da escrita, esta empiricidade, isto é, esta
contingência não lhe é necessária, podendo ser excluída, reduzida, ao passo que a literatura
necessita da escrita empírica que a constitui, o que faz sua existência depender de algo
contingente, o que a torna igualmente contingente, portanto, redutível. Pois bem, se Derrida
deixa de identificar a escrita a seu aparecer empírico, requerendo a não-presença da
arquiescrita (iterabilidade) no interior da própria filosofia como condição de
(im)possibilidade da filosofia –, deriva-se daí uma inevitável conseqüência: como não se pode
identificar esse conceito derridiano de (arqui)escrita à noção corrente de escrita, tampouco se
pode identificá-lo à objetividade (constituída pela filosofia) chamada literatura, pois ele é
anterior à partilha filosofia/literatura, sendo ao mesmo tempo a condição e a impossibilidade
de tal partilha. Isso não exigiria que se revisasse a afirmação de que a desconstrução acede à
singularidade irredutível da literatura? A desconstrução derridiana certamente faz emergir a
literatura enquanto singularidade irredutível, mas tal ocorre, paradoxalmente, à custa do
sacrifício desse próprio objeto constituído a literatura propriamente dita em nome de uma
escrita que, sendo originária, não lhe é mais exclusiva, pois é constituinte até mesmo da
filosofia. Eis o porquê, finalmente, da impossibilidade de fazer da desconstrução (ao menos
do ponto de vista de seu fundo sem fundo) uma teoria literária, isto é, uma disciplina que,
como toda disciplina, pressupõe a idealidade constituída de seu objeto, pressupondo, noutros
termos, a singularidade de seu objeto na auto-identidade plenamente positiva e delimitável de
suas propriedades intrínsecas e exclusivas.
*
O primeiro e único capítulo da versão estrutural da atual tese dedicar-se-á a definir a
desconstrução. Nele será argumentado que a noção derridiana de iterabilidade (a co-
implicação originária entre o singular e o geral: ambos indissociáveis, porém heterogêneos) é
o axioma estruturante da desconstrução; é, por assim dizer, a condição necessária e suficiente
para que o pensamento de Derrida se mostre em sua singular (geral) generalidade
(singularidade), não se confundindo com outros pensamentos que a ele se entrelaçam. A
13
adoção da iterabilidade como o princípio desconstrutivo por excelência permitirá mostrar a
cumplicidade, comumente despercebida, que o relativismo e o imanentismo mantêm entre si e
com a metafísica, embora eles tentem dela se afastar. Conseqüentemente, isso remete à
questão da literatura, pois tanto o relativismo quanto o imanentismo foram amplamente
utilizados (implícita ou explicitamente) por intelectuais contemporâneos como antídoto à
submissão do literário ao reino metafísico, ou seja, como uma maneira de dar à literatura uma
singularidade irredutível, mesmo que para isso fosse necessário (essa é a tendência mais
difundida) apagar qualquer especificidade do literário em proveito de sua plena identificação
ao conceito de cultura: por ser concebida como particular e contingente, a cultura opõe-se aos
postulados absolutos da metafísica, garantindo para si e para a literatura que a ela se adere
como uma dentre as produções culturais um estatuto de singularidade empiricamente
demonstrável, isto é, positivável. Em contrapartida, a iterabilidade derridiana será
reivindicada como um meio de contestar, de modo geral, as teses imanentistas-relativistas
(sobretudo a noção de singularidade nelas presente), apontando, de modo específico, para o
fracasso de tais teses em alcançar o literário na sua singularidade, o que, por sua vez, se
acessa através disso que aqui se pretende defender como sendo a estrutura da desconstrução: a
iterabilidade.
Sendo assim e levando em conta tudo o que se argumentou até aqui –, desde que
desconstrução, a natimorta tese de Derrida, se tivesse de ser ressuscitada, deveria
desconfiando da fenomenologia, da idealidade e da teoria literária –, de início, ter seu título
alterado: de A idealidade do objeto literário para A iterabilidade do objeto literário (ou ainda,
o que seria, talvez, mais apropriado, A iterabilidade da instituição literária
4
). É justamente
isso que a leitura da versão estrutural da presente tese acabará por inferir, confirmando a
neutralização da (minha) tese (de Derrida).
4
Como a literatura, enquanto objeto, é indiscutivelmente um objeto cultural – no simples sentido de não ser um
objeto natural (embora este também possa ser facilmente considerado cultural) –, tomá-la como uma instituição
traz a vantagem de evidenciar sua essência não-natural sem que se tenha a necessidade de especificar o tipo de
objeto de que se trata, que o atributo cultural é normalmente utilizado para delimitar e, de certa forma,
alterar o sentido do termo objeto, tradicionalmente concebido como pertencente à esfera da natureza. Noutras
palavras, como objeto se define por oposição a sujeito, aceita-se com mais facilidade chamar de objeto aqueles
que aparentemente não dependem de nenhuma participação do sujeito, o que não é o caso dos objetos culturais,
cujo estatuto de objeto é amiúde questionado em virtude de sua inexorável implicação com o sujeito que o
institui, implicação esta que o termo instituição, por definição, já supõe.
14
CAPÍTULO B
Assumida de uma maneira geral, a desconstrução derridiana pode ser tematizada como
uma estratégia de leitura do texto filosófico que tem o intuito de questioná-lo a partir dos
próprios conceitos pelos quais ele se afirma –, denunciando a violência decorrente de seu teor
metafísico, pois a metafísica, por determinar o sentido do ser a partir do princípio da presença
plena fundada na idealidade, garante sua identidade, ou seja, a pureza de sua interioridade,
excluindo violentamente dali tudo aquilo que considera empírico, factual, acidental, mundano,
material, sensível, isto é, tudo o que, em última instância, pode ser pensado, por oposição à
presença ideal, como ausência, como contingência. Isso porque a presença plena é postulada
pela metafísica como a transcendência de uma origem pura e simples, e já que tal presença é
contaminada pelo desvio considerado secundário da ausência (contingente), esta deve, de
direito, ser reduzida a fim de que se restaure, por uma decisão teleológica, a pureza e a
plenitude da presença ideal. Em outras palavras, o ser enquanto presença é a origem e o telos
da metafísica.
Pode-se perceber, assim, que a metafísica trabalha a partir de oposições binárias,
privilegiando o termo da oposição que se encontra numa posição hierárquica superior em
relação ao seu correlato opositivo. Dessa maneira, constata-se que os conceitos que
fundamentam a filosofia, dentre eles, o inteligível, o ideal, o de direito, o necessário, o dentro
adquirem sua identidade e primazia à custa da redução dos termos que mantêm com eles
uma relação de oposição, que na presente ocasião são, respectivamente, o sensível, o
empírico, o de fato, o contingente, o fora. Nesse caso, o empirismo poderia ser lido como uma
maneira de escapar à metafísica, pois se fundamenta por aquilo mesmo que ela reduz. No
entanto, a filosofia empirista, por assimilar ingenuamente a própria definição de empiria
construída pela metafísica, e por perpetuar a noção de fundamento, acaba por recair na
metafísica, mantendo a oposição binária ao promover uma mera inversão desta, em que o
empírico assume, dentre os pólos opositivos, o lugar da presença, situando-se na posição
hierárquica superior. Portanto, segundo Derrida, reivindicar contra a metafísica o seu fora,
isto é, aquilo que ela opõe, é ainda valer-se da oposição inaugural dentro/fora que consolidou
o estatuto metafísico. Por se pode notar na metafísica uma totalidade, um fechamento,
que o seu fora é determinado a partir de seus próprios termos, o que assegura para ela uma
identidade a si, fechando uma totalidade em que o domínio da presença figura como origem e
telos, conforme foi explicitado no parágrafo acima.
15
Essa totalidade, esse fechamento que Derrida visualiza impele-o a solicitar a metafísica.
Ele se vale da palavra solicitar decompondo-a e redimensionando-a a partir de sua etimologia,
que em latim significa “abalar o todo”: “Esta operação denomina-se (em latim) preocupar ou
solicitar. Em outras palavras sacudir com um abalo que atinge o todo (de sollus, em latim
arcaico: o todo, e de citare: empurrar)
5
. É preciso estar atento para o fato de que Derrida
critica a metafísica não no sentido de superá-la, como se fosse possível sinalizar seu fim a fim
de se situar para além dela. Ao contrário, Derrida argumenta que é necessário operar a partir
dos conceitos metafísicos:
(...) não tem nenhum sentido abandonar os conceitos da metafísica para abalar a
metafísica; não dispomos de nenhuma linguagem – de nenhuma sintaxe e de
nenhum léxico – que seja estranho a essa história; não podemos enunciar nenhuma
proposição destruidora que não se tenha visto obrigada a escorregar para a
forma, para a lógica e para as postulações implícitas daquilo mesmo que gostaria
de contestar. Para dar um exemplo entre tantos outros: é com a ajuda do conceito
de signo que se abala a metafísica da presença
6
.
Portanto, Derrida não determina o fim da metafísica, mas sim seu fechamento, também
entendido como clausura (clôture). No livro intitulado Jacques Derrida, assinado pelo próprio
Derrida e por Geoffrey Bennington, este, em um dos verbetes que constam no seu
Derridabase, elucida a distinção entre fechamento e fim:
Também insistimos sobre a complexidade da idéia de ‘fechamento’, que não deve
ser imaginada como um limite em forma de círculo rodeando um campo
homogêneo: isso seria um pensamento metafísico do fechamento que separaria um
dentro de um fora e facilitaria a transferência analógica desse dentro/fora em
antes/depois, que outra coisa não é do que a confusão que tentamos evitar aqui: o
fechamento deve ser antes pensado segundo uma forma invaginada que reconduz
o fora dentro e facilita ao contrário a inteligência do sempre – já derridiano.
Certamente Derrida não pretende assimilar, um ao outro, o fechamento ao fim da
metafísica.
7
5
Jacques Derrida. A escritura e a diferença, p. 16.
6
Ibid., p.233.
7
Geoffrey Bennington & Jacques Derrida. Jacques Derrida, p. 199.
16
Assim, paradoxalmente, é somente ao tomar a metafísica como um sistema com uma
totalidade fechada que se pode, operando nessa trama, encontrar ali a heterogeneidade que
denuncia a impossibilidade de qualquer pretensa totalidade homogênea ou identidade plena,
pois o momento em que algo se apresenta o mais coincidente e redutível a si mesmo é
justamente o momento em que se mostra uma abertura para o seu fora, que, diferentemente do
fora que a metafísica determina como seu oposto para reduzi-lo, é um fora irredutível
8
, um
excesso que já reside originariamente no dentro, instaurando-se, de maneira indecidível, como
uma não-presença a contaminar a pureza da presença. É importante notar que a valorização
dada por Derrida à não-presença não implica uma simples inversão de uma oposição binária,
como no caso do empirismo, mas a necessidade de, para além da inversão, promover, num
único gesto, um deslocamento, um afastamento, um espaçamento irredutível, de modo a
abalar o caráter opositivo e hierárquico da estrutura:
Desconstruir a oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter
a hierarquia (...) A necessidade dessa fase é estrutural; ela é, pois, a necessidade de
uma análise interminável: a hierarquia da oposição dual sempre se reconstitui. (...)
Dito isso, ater-se, por outro lado, a essa fase significa ainda operar no terreno e no
interior do sistema desconstruído. É preciso também, por essa escrita dupla,
justamente estratificada, deslocada e deslocante, marcar o afastamento entre, de
um lado, a inversão que coloca na posição inferior aquilo que estava na posição
superior, que desconstrói a genealogia sublimante ou idealizante da oposição em
questão e, de outro, a emergência repentina de um novo “conceito”, um conceito
que não se deixa mais – que nunca se deixou – compreender no regime anterior.
9
8
O fora em questão é o fora não relacional, alheio à relação de oposição com o dentro, ou seja, absoluto.
Convém enfatizar que este absoluto, longe de ser metafísico pois se a metafísica considera algo inferior é para
reduzi-lo a fim de que se restaure a presença absoluta –, dá-se a pensar tão-somente através de aporias
encontradas no próprio texto metafísico. Para melhor elucidar tal afirmação, cito aqui um parágrafo do livro
Derrida e a literatura, de Evando Nascimento, em que o autor explicita a necessária implicação do fora absoluto
com a desconstrução, colocando esta a partir do entendimento que Derrida tem do já acima mencionado
vocábulo solicitar: “Em latim sollus quer dizer todo, e citare (...) vem de ciere, mover, mexer, tirar do lugar,
donde sollicitare, agitar ou sacudir o todo. O alcance de uma leitura de textos fundamentais da tradição
metafísica se deixa provar por essa abertura para além do todo fechado do solo original, na direção de um fora
absoluto”.Evando Nascimento. Derrida e a literatura, p.96. Ainda a respeito do verbo solicitar, cf. Jacques
Derrida. A escritura e a diferença, p.16.
9
Jacques Derrida. Posições, p. 48.
17
Para Derrida, portanto, a não-presença, longe de ser meramente o elemento da oposição
subjugado pela metafísica – como se fosse uma negação derivada da idealidade da presença –,
é o deslocamento, o espaçamento
10
na interioridade metafísica, ou seja, é a marca de um fora
radical que já habitava o dentro do sistema metafísico, não podendo, por isso, ser reduzida.
Em carta endereçada a Jean-Louis Houdebine em 15 de julho de 1971, cujo fragmento
encontra-se publicado no livro Posições, Derrida prolifera um debate que travara com esse
autor e com Guy Scarpetta quando concedeu a eles uma entrevista, que por sinal consta no
mesmo livro. Na carta, Derrida chama a atenção de seu destinatário para a interpretação
equivocada que este fizera da noção derridiana de não-presença, já que Houdebine, apesar de
ter acertado em pensar esse termo como o espaçamento referente à singularidade, à
heterogeneidade, à alteridade do outro, reivindica, contudo (e é aqui que se manifesta seu
equívoco), a matéria como um elemento a ocupar esse lugar do espaçamento, da não-
presença, do outro.
Eu não subscreveria sem reservas o que você diz, ao menos de acordo com essa
formulação, na frase: “essa inscrição do espaçamento não se sustenta a não ser por
aquilo que ela nega sob a forma de uma ‘presença’ (e que é, de fato, uma ‘não-
presença’): outro, corpo, matéria”. Eu temia precisamente que essa categoria de
“negação” nos reintroduzisse na lógica hegeliana da Aufhebung. Cheguei a falar,
de fato, em ‘não-presença’, mas eu designava menos uma presença negada que
‘algo’ (nada, na verdade, na forma da presença) que se afastava da oposição
presença/ausência (presença negada) com tudo aquilo que ela importa. (...) Na
mesma frase, pensa você que corpo e matéria designam sempre não-presenças no
mesmo nível que outro? Assim como não é uma forma de presença, outro
tampouco é um ser (ente, existência, essência etc.).
11
A noção, defendida por Houdebine, de matéria enquanto elemento relativo à
heterogeneidade suscita aqui uma atenção especial, pois existem diferenças muito sutis entre
essa idéia abonada por muitos pensadores contemporâneos e o pensamento de Derrida, que
10
“(...) o espaçamento é a impossibilidade que tem a identidade de se fechar sobre si mesma, sobre o lado de
dentro de sua própria interioridade ou sobre sua coincidência consigo mesma. A irredutibilidade do
espaçamento é a irredutibilidade do outro. (...) A irredutibilidade do outro se marca. (...) O espaçamento não
designa nada, absolutamente nada, nenhuma presença a distância; trata-se do índice de um lado de fora
irredutível e, ao mesmo tempo, de um movimento, de um deslocamento que indica uma alteridade irredutível.
Não vejo como se poderia dissociar esses dois conceitos, de espaçamento e de alteridade”. Ibid, pp. 89; 118.
11
Ibid., p. 119.
18
muitas vezes é lido como se estivesse postulando, com outras palavras, o mesmo que aqueles,
que todos têm em comum a valorização do heterogêneo a partir de uma atitude crítica em
relação à metafísica, o que desemboca nos estudos literários, uma vez que a literatura – sendo
a instância que, em rigor, a filosofia mais precisa, para se definir, determinar como seu
correlato opositivo inferior (pela razão de que ambas só existem enquanto linguagem) – torna-
se, para muitos desses críticos da metafísica, um elemento propriamente heterogêneo,
irredutível às categorias filosóficas. Mas isso estaria em desacordo com Derrida? Ainda é
cedo para responder em nome da literatura. Quanto à questão da materialidade, certamente
que sim (desacordo que implica, como veremos, uma diferença radical). No intuito de aclarar
essa afirmação, tomo agora a liberdade de inserir uma longa digressão no meu texto.
Diversos pensadores, ao longo do século XX, problematizaram as mudanças associadas
à cena do que hoje se denomina capitalismo global, apesar de alguns se valerem de nomes
outros, como modernidade consolidada, mundo tecnizado, indústria cultural, pós-
modernidade etc. A relação desse contexto com a metafísica foi insistentemente abordada por
Heidegger, para quem o mundo técnico dá-se como concretização plena do projeto metafísico,
pois até o problemático ente supremo, determinação metafísica do ser, é abandonado em
virtude da total entificação do mundo promovida pela técnica. Além disso, pelo fato de essa
contextualização histórica colocar um desafio à lógica marxista tradicional, que a dialética
de classes começa a perder seu efeito, alguns autores com a pretensão de, num gesto,
manter a eficácia do marxismo e valorizar a contingência, o heterogêneo postularam a
necessidade crítica de resgatar as histórias singulares esquecidas pela história metafísica
ocidental, pensando-as como restos materiais. Walter Benjamin é um exemplo dessa proposta
de leitura renovada do materialismo de Marx, pois abandona alguns equívocos que havia
neste, como a concepção de dialética que mantinha uma história linear, progressiva e
teleológica. Em Benjamin, a dialética começa por se dissolver, que ele pretende operá-la a
partir da reapropriação contínua das materialidades que foram subsumidas pela dialética
metafísica. Ou seja, a matéria já não é, como em Marx, o telos como Natureza, mas é
constituída na imanência pelas singularidades, pelas heterogeneidades que foram excluídas
pela história do ocidente, e que devem retornar constantemente, pois não se deixam reduzir
por uma síntese totalizadora. Benjamin conjuga, portanto, um marxismo com a idéia
nietzscheana de tempo como eterno retorno, fazendo que as ruínas, os cacos do passado sejam
reapropriados no presente e re-significados por uma redenção imanente, isto é, não uma
redenção supra-sensível, mas material. Por isso o valor dado aos fragmentos, às miudezas do
cotidiano, às relações mais fugazes, aos textos literários, ao cinema, ao trapeiro, à prostituta,
19
ao colecionador, ao jogador, enfim, a tudo aquilo que a história oficial não conta, preocupada
que está em relatar sua vitória sobre os fracos e seu progresso que se pelas guerras. Esta
história ocidental eurocêntrica é a história dos vencedores. Benjamin recria a história dos
vencidos, por notar que a experiência moderna descentra o sujeito pleno a si através dos
golpes que são nele desferidos pela multiplicidade de imagens descontínuas que ele
experimenta na metrópole. Sem sujeito pleno, esfacela-se a imagem do indivíduo que de tudo
se apropria, já que ele mesmo é diluído na massa.
Evoco agora, para elucidar com mais propriedade o parágrafo precedente, alguns
postulados do filósofo italiano Gianni Vattimo, pois ele em Benjamin uma categoria que
concretiza, no mundo tecnológico, a rememoração do ser heideggeriano. Segundo ele, todas
as categorias metafísicas (...) são categorias violentas; são enfraquecidas ou despotenciadas
no sentido em que, por exemplo, Benjamin fala da ‘percepção distraída’ do homem
metropolitano”.
12
Para compreender essa afirmação, urge abordar determinados pontos
referentes à meditação benjaminiana.
Para Benjamin, a percepção humana é condicionada historicamente, ou seja, sua
estrutura está sujeita a modificações conforme o contexto histórico. A eleição da arte como
fenômeno que permite refletir acerca dessa questão não é fortuita: se fosse possível
compreender as transformações contemporâneas da faculdade perceptiva segundo a ótica do
declínio da aura, as causas sociais dessas transformações se tornariam inteligíveis”
13
Como
a reprodutibilidade técnica tornou-se, na era da modernização e urbanização consolidadas,
condição de possibilidade da obra de arte, desbancando inclusive o estatuto de aura
14
de que
ela outrora gozava, as faculdades perceptivas sofreram conseqüente alteração. Assim, o
cinema, enquanto exemplo fundamental de arte cuja gênese se deve imprescindivelmente à
reprodução técnica, ilustra essa nova forma de percepção, caracterizada como distraída:
Através da distração, como ela nos é oferecida pela arte, podemos avaliar,
indiretamente, até que ponto nossa percepção está apta a responder a novas tarefas
12
Gianni Vattimo. As aventuras da diferença: o que significa pensar depois de Heidegger e Nietzsche, p. 13.
13
Walter Benjamin. Obras escolhidas v.I: Magia e técnica, arte e política, p. 170.
14
É assim que Benjamin postula a importância do uso da noção de aura, definindo-a e analisando as
conseqüências, na cultura contemporânea, de seu declínio em favor da reprodutibilidade técnica: É uma figura
singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto
que ela esteja (...) Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o
declínio atual da aura (...) Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma
de percepção cuja forma de captar o ‘semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças à reprodução ela
consegue captá-lo até no fenômeno único” Ibid., p. 170. É possível notar, com essa definição de aura elaborada
por Benjamin, que o sentido de singular a que ele se opõe é o de uma singularidade ideal e transcendente. Por
esta razão, Benjamin reivindica uma noção de singularidade como restos materiais imanentes.
20
(...) a recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os
domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas estruturas
perceptivas, tem no cinema o seu cenário privilegiado.
15
Ou seja, a mesma profusão de estímulos que a modernidade impõe ao homem metropolitano
dá-se na recepção do cinema, caracterizando uma experiência de choque, cujo domínio é da
ordem tátil:
(...) onde a coletividade procura a distração, não falta de modo algum a dominante
tátil, que rege a reestruturação do sistema perceptivo. (...) essa dominante tátil
prevalece no próprio universo da ótica. É justamente o que acontece no cinema,
através do efeito de choque de suas seqüências de imagens.
16
Dessa maneira, pode-se inferir, com Benjamin, que a percepção distraída de que fala Vattimo
é derivada da primazia do caráter tátil decorrente da experiência de choque moderna da
metrópole, que é compreendida por essa heterogeneidade, quer dizer, por essa singularidade:
o cinema, cujo valor de distração é fundamentalmente da ordem tátil, isto é, baseia-se na
mudança de lugares e ângulos, que golpeiam intermitentemente o espectador”.
17
Outra singularidade a que, apesar de exceder os rastros deixados por Vattimo, arrisco
aqui remeter-me com o intuito de redundar a noção de percepção distraída enquanto
materialidade heterogênea –, é Baudelaire, tal como descrito por Benjamin no ensaio A
Modernidade, onde o referido poeta diferencia-se tanto do flâneur quanto do basbaque: este
dilui-se, como massa, na metrópole; aquele observa enquanto por ela flana, mantendo sua
individualidade, assumindo uma posição análoga à do pesquisador. Mesmo sendo abordado
por Baudelaire como um herói da modernidade, o flâneur não condensa em sua imagem um
traço importante, que para Benjamin presentifica-se no “Baudelaire real”, ou seja, naquele que
“se entrega a sua obra”. Tal traço é a distração:
No flâneur, o desejo de ver festeja o seu triunfo. Ele pode concentrar-se na
observação disso resulta o detetive amador; pode se estagnar na estupefação
nesse caso o flâneur se torna um basbaque. As descrições reveladoras da cidade
15
Ibid., p. 194.
16
Ibid., p. 194.
17
Ibid., p. 192.
21
grande não se originam nem de um nem de outro; procedem daqueles que, por
assim dizer, atravessaram a cidade distraídos, perdidos em pensamentos e
preocupações. (...) Baudelaire teve em mira o seu comportamento, que é tudo
menos o do observador.
18
Portanto, em semelhança com o exemplo do cinema, aqui é Baudelaire o elemento singular
que demanda a elaboração de um pensamento relativo à modernidade, pois tal poeta se
apresenta distraído em razão da multiplicidade dos estímulos, vale dizer, dos golpes
desferidos pela cidade grande sobre seu aparato perceptivo.
Retomando Vattimo, um artigo de sua autoria, incluído no livro intitulado O
pensamento débil, que de certa forma surge como um atalho para meu percurso, pois
corresponde às expectativas atuais de meus intentos, que nele o autor apresenta em linhas
gerais sua filosofia, evidenciando a importância do materialismo de Walter Benjamin para a
sua configuração enquanto crítica à metafísica. Contentar-me-ei, portanto, se vicejar ao tecer
uma colcha de retalhos a partir de fragmentos significativos “oportunisticamente” excertados
do artigo em questão, nos quais se revelam mais claramente as intersecções desejadas.
O título do artigo que passo a tematizar é Dialética, diferença e pensamento débil
19
, em
que Vattimo se propõe a definir e defender o último termo, levando em conta, sobretudo, que
sua existência se deve à herança deixada pelos dois primeiros, que para ele (como para
Benjamin, já o vimos) não existe experiência purificada de todo o condicionamento histórico-
cultural: No existen condiciones trascendentales de posibilidad de la experiencia, accesibles
mediante cualquier tipo de reducción o ‘epojé’ que suspenda nuestra pertenencia a
determinados horizontes histórico-culturales, lingüísticos, categoriales”.
20
Assim, Vattimo
fundamenta o pensamento débil pela hermenêutica, entendida sob certas condições:
La verdad no es fruto de interpretación porque a través del proceso interpretativo
se logre aprehender directamente lo verdadero, como ocurre cuando la
interpretación se concibe como deciframiento, desenmascaramiento, etc., sino
porque solo en el proceso interpretativo entendido principalmente en relación al
18
Walter Benjamin. A modernidade”. In: Obras escolhidas v.III: Charles Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo, p. 69.
19
In: Gianni Vattimo & Pier Aldo & Rovatti (eds.). El pensamiento débil.
20
Ibid., p. 19.
22
sentido aristotélico de hermeneia, expresión, formulación se constituye la
verdad.
21
Isso significa que o filósofo que deseja pensar dessa maneira não pura, assumindo a tradição,
vai encontrar invariavelmente no seu caminho o conceito de dialética, devendo por ele
começar. Tal conceito caracteriza-se por dois elementos: totalidade e reapropriação. Pela
noção vattimiana de tradição, uma contínua e ininterrupta transmissão através das
interpretações. É aqui que a dialética de Benjamin se mostra emblemática, porquanto
ultrapassou Marx a partir de uma possibilidade que este mesmo, quando inverteu a dialética
hegeliana, deixou vislumbrar. Em Benjamin, a necessidade materialista da referida
reapropriação dos cacos do passado como foco privilegiado fez a totalidade se dissolver,
que esta, por ser excludente, ocasionaria posteriores exclusões, impedindo a constante
reapropriação das singularidades esquecidas pela história linear progressiva. Benjamin é,
portanto, um pensador que encetou a dissolução da dialética; esta se constitui, segundo
Vattimo, como o último grande sistema metafísico. Quanto ao pensamento da diferença
22
que se caracteriza pela crítica ao pensamento violento inerente à metafísica –, é, para Vattimo,
um herdeiro que leva às últimas conseqüências as exigências dissolventes da dialética.
Vattimo ressalta a ligação da tradição do pensamento ocidental com o contexto sócio-
econômico no qual Benjamin alterou a configuração da dialética, qual seja, o da modernidade
consolidada. Antes desta, a industrialização, que se engendrava, demandava um pensamento
fundado em bases seguras para justificar seu telos e sua promessa de progresso. Ou seja, a
metafísica tinha a função de instaurar uma totalidade do mundo, um sentido único de história,
um sujeito centrado em si próprio. A hegemonia da técnica é o estado de coisas em que a
metafísica, enquanto sistema que, segundo Heidegger, ocasionou o esquecimento da diferença
do ser do ente, atinge seu paroxismo, fazendo surgir um mundo de entes garantido
21
Ibid., p. 39.
22
O pensamento da diferença em Heidegger (cf. Introdução a Heidegger, de Vattimo) se define basicamente
pela rememoração da diferença entre o ser e os entes que foi recalcada pela metafísica, que fez do ser um ente
supra-sensível. Para ele, ao contrário, o ser é o horizonte de abertura que possibilita o surgimento dos entes. A
intenção de Heidegger é rememorar este ser que foi esquecido pela metafísica, que não é um ente supremo. O
mundo técnico, como vimos, levou às últimas conseqüências o projeto metafísico, fazendo inclusive com que
seu ente supremo se apagasse em virtude da total entificação do mundo, o que faz com que se dissolvam os
fundamentos. Tal dissolução apresenta-se notavelmente no anúncio da morte de Deus, proferido por Nietzsche.
O intuito do pensamento débil de Vattimo é, a partir da associação da herança (assunção hermenêutica)
metafísica deixada pela dialética com o pensamento da diferença de Nietzsche e Heidegger, rememorar o ser
num mundo sem fundamentos. É por isso que o ser aparece em sua forma fraca, caduca, débil (ontologia do
declínio), pois se chega ao ser apenas pela recordação, nunca pela presença. Ele é sempre algo que pode retornar.
Aqui entra também a perspectiva nietzscheana do eterno retorno, que é utilizada por Benjamin (cf. apresentação
de S. P. Rouanet do livro A origem do drama barroco alemão, de W. Benjamin).
23
magicamente, em que os fundamentos metafísicos acima citados são, paradoxalmente,
destruídos.
Para Vattimo, a legitimidade em operar a partir de um conceito metafísico como a
dialética reside tão somente no fato de que o crítico, por pressupor metodologicamente a
exigência em considerar o contexto tecnizado atual, não deve permitir que o citado conceito
tenha a pretensão de aceder ao ser como presença originária. Contudo, não só é legítimo como
necessário o uso do conceituário metafísico, haja vista que, como outrora vimos, não
experiência destituída de uma linguagem que nos anteceda: Puesto que no disponemos de un
acceso precategorial o transcategorial al ser, que desmienta y desautorice las categorías
objetivantes de la metafísica, no podemos sino aceptar estas categorías como ‘buenas’, al
menos en el sentido de que no tenemos otras”.
23
Excluídas dessas categorias aquilo mesmo
que as constituía como metafísica, vale dizer, la pretensión de acceder a un ontos on”, daí
decorre que una vez eliminado este requerimiento, tales categorías adquieren solo un valor
de monumentos, herencia a la que se concede la pietas
*
despida a las huellas de lo que en
otro tiempo ha vivido”.
24
A partir desta citação, percebe-se claramente que, para Vattimo, a
própria metafísica transmitida pela tradição torna-se resto material, caco, ruína do passado,
não havendo hierarquia entre esta metafísica enfraquecida e as histórias periféricas recalcadas
pelo ocidente, que também retornam enquanto materialidade.
De acordo com a exposição até aqui arquitetada acerca de Vattimo, pode-se afirmar que
os valores do pensamento débil para o qual a questão do enfraquecimento da metafísica é
imprescindível são finalmente redobrados pela sua colagem aos exemplos benjaminianos
aqui expostos que ratificam a noção de percepção distraída como materialidade, que a
distração é o constante retorno do ser enquanto categoria fraca que rege a percepção do
homem metropolitano golpeado pelos estímulos de choque da modernidade, em que nenhum
valor perdura, dada a sua caducidade, o que faz com que nada funcione como fundamento,
como âncora, ou seja, como categoria forte e violenta da metafísica.
23
Gianni Vattimo & Pier Aldo & Rovatti (eds.). El pensamiento débil, p. 33.
*
A noção de pietas em Vattimo é análoga à idéia benjaminiana de redenção dos elementos excluídos da história
teleológica, progressiva e patrilinear, que pensa o passado como algo acabado, irrecuperável. A partir da
redenção, as ruínas do passado voltam a significar no presente; o passado não cessa de passar: El angel Del
cuadro de Klee, del que habla Benjamin en la tesis numero 9, experimenta un gran piedad por las ruinas que la
historia acumula a sus pies, por todo lo que no ha originado auténticos efectos históricos. Y todo ello, a lo que
parece, no porque estos despojos contengan um gran valor con vistas a nuevas construcciones, sino más que
nada por tratarse de huellas de algo que há vivido”. Ibid., p. 24.
24
Ibid., p. 33.
24
Há outro aspecto pelo qual se legitima aqui a abordagem da herança marxista de
Benjamin manifestada num tipo específico de materialismo
25
. A partir da assunção das
conquistas teóricas do estruturalismo e da conseqüente desconfiança com relação a um grave
problema que este suscita
26
, pôde-se repensar o que se chama de singularidades materiais
como aquilo que possibilita uma abertura na estrutura, isto é, como algo a introduzir a
historicidade nas premissas atemporais dos estruturalistas; essa seria uma das formas
possíveis de pensar a “passagem” para o pós-estruturalismo. Aliás, este termo foi criado por
críticos literários norte-americanos para classificar filósofos franceses contemporâneos, como
Derrida, Deleuze, Lyotard, Foucault. Além disso, olhando mais pontualmente Benjamin, o
declínio da aura da obra de arte por ele abordado foi um dos pontos fundamentais para o
surgimento de um paradigma em que boa parte da teoria literária transfigurou-se: os estudos
culturais, que têm implicação com o pós-estruturalismo, o que explica a grande aceitação dos
textos de Derrida pelos departamentos de literatura, que ele é ali assimilado como um pós-
estruturalista
27
.
Através dos estudos culturais, a literatura liberta-se, de maneira evidente, da sujeição
aos cânones ocidentais até então inabaláveis. Diluem-se as fronteiras que separavam as
diversas formas de arte em campos autônomos, o que proporciona aos críticos a travessia dos
textos literários com as mais variadas linguagens, como videoclips, cinema, hq’s, artes
plásticas, música etc. Dissolve-se a hierarquia que entronava a arte elevada em oposição à
cultura popular. Pela assunção, por parte da crítica, do contexto da reprodutibilidade técnica,
25
Em Benjamin e em Vattimo a idéia de materialidade deve ser pensada no sentido imanentista da
impossibilidade de haver qualquer ponto fora da historialidade intramundana e concreta, sendo que, para
Vattimo especificamente, esta nada mais é do que a própria prática interpretativa, já que a matéria retorna
enquanto eventualidade do ser, que é um ser fraco, desde sempre inscrito na história e continuamente projetando-
se, transmitindo-se; portanto, matéria que sempre já foi, mas que nunca foi um fato, pois quando volta dá-se
como acontecimento de interpretação. Vattimo enfatiza em vários pontos de seu percurso a famosa máxima
nietzscheana que diz que não fatos, interpretações, inclusive esta afirmação com valor de verdade, que
também não é um fato.
26
Seria leviandade esquecer a enorme influência que teve, no decurso do século XX, o estruturalismo na teoria
literária, na lingüística, na antropologia, enfim, nas ciências humanas em geral. Ele é até mesmo constituinte de
algumas delas. Contudo, importa aqui frisar que o estruturalismo como tal encerra um problema, pois apesar de
apontar para uma superação da metafísica, que ele não procura nenhuma origem que transcenda a estrutura,
ele é metafísico no sentido de trabalhar com oposições binárias, pois, em rigor, o centro da estrutura opõe-se aos
elementos que a compõem, que são relacionais e intercambiáveis. Isto é, o centro da estrutura está fora do jogo
relacional inerente aos seus termos, figurando como um fundamento transcendente à disposição destes.
Inversamente, somente se pode dizer que a metafísica opera por oposições binárias porque se percebe nela seu
caráter essencialmente estrutural. Pode-se inferir, assim, que toda filosofia metafísica é estruturalista, já que uma
análise detalhada mostrará que ela sempre operou por tais oposições excludentes e hierarquizantes. Em tempo:
segundo os postulados do estruturalismo não há evento, acidente, acaso, enfim, não há nada que exceda a
estrutura. Portanto, levar às últimas conseqüências o método estritamente estruturalista é aceitar a
homogeneidade plena do sistema, o que redunda na impossibilidade de abordar o efetivamente heterogêneo.
27
Em meu ver, trata-se de um equívoco classificar Derrida como pós-estruturalista, o que ficará mais claro no
decurso do texto.
25
isto é, da indústria cultural, a arte em geral é pensada enquanto cultura (ou mercadoria). Os
valores são, portanto, relativizados. A partir da abertura do passado proporcionada por esse
olhar, as manifestações culturais até então recalcadas pela crítica canônica são redimidas,
podendo ser valorizadas retrospectivamente. Dessa forma, os relatos das populações e das
subjetividades marginalizadas pela história ocidental são aflorados, ganhando a oportunidade
de compor uma pluralidade de histórias. Isso explica a plurivalência de muitos departamentos
de teoria literária, que se mimetizam em teorias feministas, pós-modernistas, pós-colonialistas
etc.
Retornando à questão da matéria, é mister assinalar que sua perpetuação leva por vezes
a preocupantes desdobramentos, como o que acontece com o culturalista Arif Dirlik. A
aparição deste autor na presente digressão justifica-se pela sua análise do capitalismo global,
bem como pelo quadro que ele tece a respeito de uma linha teórica citada no parágrafo acima
(que também se vale de Derrida por estar diretamente relacionada com o pós-estruturalismo)
que está muito em moda ultimamente nos estudos literários: o pós-colonialismo, cuja
importância, segundo seus defensores, em detrimento de outras linhas de pensamento que lhe
são simultâneas, reside na sua abordagem política do ficcional
28
.
Dirlik traça um panorama do discurso pós-colonialista ao qual se insere, criticando o
próprio pós-colonialismo por este não se dar conta de que o resgate ou recriação dos relatos
das culturas rejeitadas pela história eurocêntrica é possível em virtude do contexto do
capitalismo global, e que este se funda sobre a materialidade, retomada, portanto, como
transcendência, ou seja, com um valor diferente daquele que ela tem em Benjamin e em
Vattimo. É curioso seguir o percurso dirlikiano, pois ele acredita que o capitalismo global não
substituiu a produção em favor dos serviços, ao contrário do que pensam muitos autores
contemporâneos
29
. No texto intitulado A aura pós-colonial: a crítica terceiro-mundista na era
28
Cito um trecho de um texto de Diane Brydon traduzido por Valéria Brisolara na home page da UFRGS: O
pós-modernismo e o pós-colonialismo freqüentemente parecem estar preocupados com os mesmos fenômenos,
mas eles colocam-nos em diferentes campos de interpretação. O nome ‘pós-modernismo’ sugere uma
estetização do político enquanto o nome s-colonialismo coloca em primeiro plano o político como
inevitavelmente contaminando o estético, mas permanecendo distinguível dele. Se o pós-modernismo é pelo
menos parcialmente sobre “como o mundo sonha ser 'americano'" (Stuart Hall citado em Ross XII), então o
pós-colonialismo é sobre acordar desse sonho, e aprendendo a sonhar diferentemente. O s-modernismo não
pode dar conta de tal escrita de resistência pós-colonial, e raramente tenta fazê-lo”. A fonte original é: Diane
Brydon. The post-colonial studies reader. New York: Routledge, 1995, p.136-142: The Inuit
speaks:contamination as literary strategy. Interessa notar a evidente analogia com o outrora citado texto de
Benjamin O declínio da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, que finalizou com uma questão,
extensamente refletida até hoje, prevendo duas alternativas para o futuro: ou está-se caminhando para a
estetização da política, ou para a politização da estética. Ao que parece, para Brydon, o pós-modernismo surge
como a concretização do primeiro caminho possível, enquanto o pós-colonialismo atualiza o segundo.
29
Eis uma maneira de elaborar, à guisa de fábula conceitual, o que pensam aqueles que defendem a passagem do
capitalismo industrial para o pós-industrial: sabe-se que, falando corriqueiramente, o capitalismo industrial, que
26
do capitalismo global, Dirlik elabora duas respostas à pergunta que ele mesmo se coloca a
respeito do começo do “pós-colonial”. Na primeira, o autor defende ironicamente que seu
começo deve-se à chegada dos intelectuais do Terceiro Mundo à academia do Primeiro
Mundo. Já a segunda resposta surge após um longo desdobramento da anterior, abrangendo-a,
pois se apresenta como uma inferência dos argumentos desenvolvidos até então: com o
surgimento do capitalismo global, não no sentido de uma exata coincidência no tempo, mas
no sentido de que um é condição do outro”.
30
Apesar de valorizar a diluição de oposições binárias e de fronteiras fixas na constituição
das múltiplas identidades, vinculando-se assim ao discurso pós-colonial, Dirlik reivindica o
status fundacional do capitalismo global em tal discurso, que, segundo ele, foi recalcado pelos
pós-colonialistas em razão de uma tentativa de superação do eurocentrismo a partir da
abertura para a constituição histórica das mais diversas heterogeneidades presentes nas
localidades excluídas pelo sistema colonial. O autor sugere que o eurocentrismo não figura
apenas como um etnocentrismo entre outros, já que perpetua seus valores capitalistas no
mundo globalizado. Ou seja, até mesmo a emergência do multiculturalismo foi possível
pelo fato de a produção capitalista ter sido descentralizada pelas indústrias transnacionais que
era baseado na produção, vivia de uma relação dialética entre opressor e oprimido, sendo que aquele necessitava
deste, tanto que o papel do Estado era justamente assegurar a qualidade de vida do oprimido, de modo a
possibilitar ao opressor uma generosa mais-valia através de uma força de trabalho duradoura e eficaz. Ou seja, a
identidade de um era metafisicamente definida em oposição à do outro, através de uma lógica excludente, a
mesma que opunha o citado sistema ao malogrado comunismo. Com o surgimento do capitalismo pós-industrial,
ou de consumo, a tônica não incide mais sobre a produção industrial, pois o capital adquire uma virtualidade,
uma auto-referencialidade, crescendo progressivamente nas bolsas de valores, relativizando a força de trabalho
humana. Esta é inclusive substituída pelas máquinas em virtude da expansão tecnológica. Da produção passa-se
aos serviços, de onde decorre o termo terceirização. não mais os opressores e os oprimidos, apenas os
incluídos no sistema global que anulou as diferenças de outrora, sublimando-as, fazendo do mundo uma
videosfera global, um espaço totalmente homogeneizado, afogando inclusive o discurso utópico comunista que
se opunha ao capitalismo. (Vale lembrar que essas diferenças que existiam outrora e que foram abolidas pelo
imperativo do mercado global denotam identidades que se definem por mútua exclusão em oposição binária; não
são, portanto, diferenças radicais, pois a singularidade de cada “operário” bem como de cada “burguês” na época
industrial era subsumida nas classes denominadas proletariado e burguesia, respectivamente. É por este motivo
que não há no contexto atual nostalgia possível daquilo que seria uma diferença que se perdera na passagem do
sistema cuja base era o setor secundário para o sistema de serviços terciário, pois a lógica opositiva característica
da metafísica já suprimira de antemão quaisquer singularidades.). Contudo, mesmo na mais consolidada
homogeneidade ainda aqueles que não conseguem o lugar prometido pelo novo sistema; são os excluídos. Ou
antes, estes situam-se na aporia de ser incluídos e excluídos num só tempo, já que ainda podem oferecer serviços,
ou seja, estão plenamente encaixados no setor terciário característico da nova ordem, não tendo, todavia,
condições de consumir, isto é, de usufruir os benefícios da sociedade de consumo, pois os serviços por eles
oferecidos não passam de subempregos. Tal é a especificidade da configuração capitalista atual: a inclusão
exclusiva, ou exclusão inclusiva. Neste contexto, diferentemente da era industrial, os incluídos, sendo aqueles
que consomem, não precisam dos excluídos, dos não consumidores, como era o caso dos opressores em relação
aos oprimidos. Os excluídos são, portanto, dejetos, restos do sistema no sistema, meras coisas. Os efetivamente
incluídos têm à sua disposição máquinas que fazem quase todo o serviço de que necessitam; sua renda, enfim,
não depende do suor do mais fraco, que perambula nas cidades como fantasma, como espectro.
30
Arif Dirlik. "A aura pós-colonial: a crítica terceiro-mundista na era do capitalismo global". In Novos Estudos,
nº 49. SP: Edusp, 1997, pp. 30-49.
27
começaram a se instalar nos países periféricos, o que criou um novo paradigma de mundo,
permitindo a transposição de seu estado de coisas para o discurso, possibilitando inclusive a
rejeição às oposições binárias que eram características do pensamento colonial. Dessa forma,
as vozes das subjetividades que a crítica pós-colonial acredita inserir no discurso o são em
função de sua anterior assunção pelo contexto criado pelo capitalismo tardio, que necessitou
dar voz para as culturas “extra-ocidentais” no intuito de agradar a seus recentes consumidores
em potencial espalhados pelo mundo. É possível notar, assim, que o pensamento de Dirlik, em
contraste com a crítica pós-colonial em geral, adota uma separação entre um nível material e
um nível cultural, sendo aquele condição de possibilidade deste. Já o pós-colonialismo, de
acordo com Dirlik, subsume o material no cultural, operando uma reflexão diferencial por crer
que todas as relações são, em última análise, simbólicas. Portanto, não se situam sobre um
fundamento, mas no constante deslizamento metonímico do sentido. Assim, de acordo com
ele, os pós-colonialistas, mesmo aqueles com orientação marxista, submetem esta ideologia à
linguagem pós-estruturalista, pensando-a como a única capaz de contestar o marxismo
tradicional, que, por acreditar numa teleologia universal, homogeneíza todas as
heterogeneidades numa história universal eurocêntrica. Dirlik caracteriza
epistemologicamente a crítica pós-colonial como uma teoria que reveste a temática do que
outrora era chamado de Terceiro Mundo numa linguagem pós-estruturalista, portanto, ainda
numa racionalidade de Primeiro Mundo. Ao aceitá-la, crê-se que a inserção da colônia na
metrópole só foi possível pela abolição de fronteiras que o discurso pós-estruturalista defende,
pois este nega que as causas desta abolição sejam materiais e oriundas do capitalismo global,
o que, para Dirlik, só faz legitimá-lo, mesmo que de maneira subliminar.
Mesmo afirmando ser contrário à metafísica, Dirlik acaba por recair nela quando
defende a matéria como fundamento, a despeito das teorias que, mais coerentes nas suas
críticas à metafísica, não aceitam fundamentos. Vê-se que, para ele, a resistência ao mercado
totalitário reside somente na reativação de um fundamento materialista como consciência de
que o visível deslocamento de fronteiras identitárias na atualidade tem como causa o anterior
deslocamento das indústrias européias e norte-americanas para os países periféricos. Assim,
para Dirlik, a crítica pós-colonial, ao adotar os pressupostos epistemológicos do pós-
estruturalismo, afirma o eurocentrismo quando acredita que o está superando. É em função
dessa subserviência do pós-colonial à mentalidade primeiro-mundista, afirmadora tácita do
capitalismo global, que intelectuais de países do Terceiro Mundo, eufóricos com a perspectiva
de usufruir um poder que lhes era negado por contextos econômicos anteriores, são admitidos
no corpo docente das mais conceituadas academias euro-americanas, segundo o autor.
28
Deve-se reter a argumentação de Dirlik para evitar equívocos análogos aos de seu
raciocínio. É notável a falta de sensibilidade teórica que o faz pensar que a cultura é mera
referência secundária à primazia da materialidade da produção capitalista. Essa emergência da
prioridade dos fatos tem a pretensão de invalidar a perspectiva dos teóricos que acreditam na
prioridade do discurso, da interpretação ou da ficção. Pois o que faz com que o pós-
colonialismo figure como teoria literária é a adoção do ponto de vista segundo o qual as
identidades são postuladas como ficcionais, que são construtos históricos contingentes,
sempre situadas nas fronteiras que, por não serem fixas, deslocam-se constantemente sem
referência a nenhum fundamento. Com isso, fica claro que, em Dirlik, a defesa do fundamento
tem como objetivo restaurar a segurança da verdade inquestionável, do significado
transcendental, contra a equivocidade da ficção. Em última instância, o que Dirlik
implicitamente sugere é que se deve eliminar do pós-colonialismo seu estatuto de teoria
literária, de modo a condicioná-lo a uma disciplina que tem mais afinidade com os fatos, com
a verdade: a história. Contudo, a própria história compreendeu-se, a partir de uma certa
historiografia influente no século XX, como um discurso narrativo em prosa, resumindo-se a
um gênero literário. Segundo Hayden White, a história é uma narração que se alardeia como
uma ciência para se distanciar daquilo de que ela de fato mais se aproxima: o romance.
31
Ou
seja, não vem de hoje a assunção do valor da ficção, da narrativa, isto é, dos elementos
constituintes da teoria literária como parti pris epistemológico de outras ciências humanas.
Conseqüência disso é a transdisciplinaridade reinante na teoria literária, que agrega os mais
variados discursos em função da comum afirmação da potência da ficção.
Pode-se, no entanto, verificar a confirmação contemporânea da visão de história que
permeia a crença de Dirlik no livro Relações de força, do historiador Carlo Ginzburg:
A contigüidade largamente aceita entre história e retórica empurrou para as
margens a existente entre história e prova. A idéia de que os historiadores possam
provar algo parece a muitos antiquada e até ridícula. Mas mesmo quem manifesta
algum desconforto diante do cenário intelectual reinante considera, quase sempre,
como certo que retórica e história se excluem reciprocamente (...) As teses
cépticas baseadas na redução da historiografia à sua dimensão narrativa ou retórica
circulam já há alguns decênios, ainda que as suas raízes sejam, como se verá, mais
antigas
32
.
31
Hayden White. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX.
32
Carlo Ginzburg. Relações de força: história, retórica, prova, p. 13.
29
Assim, em oposição à corrente historiográfica que os textos históricos pelo prisma da
narrativa, Ginzburg busca na Retórica de Aristóteles a legitimação da necessidade da
evidência da prova como pano de fundo inexorável para a configuração da especificidade do
trabalho do historiador. E é em outro texto do próprio Aristóteles que ele encontra a gênese
daquilo que ele considera um equívoco de interpretação comum aos pensadores qualificados
como pós-modernos.
De acordo com Ginzburg, teóricos que ele considera pós-modernos tais como
Foucault, Deleuze, Barthes, De Man e Derrida – têm como traço comum o relativismo cético,
cuja gênese reduz-se à tradição nietzscheana, ou melhor, a um texto específico de Nietzsche,
intitulado Acerca da verdade e da mentira em sentido extramoral
33
, que por sua vez remonta
à Poética de Aristóteles. Para Ginzburg, a primazia dada por Nietzsche a esse escrito
aristotélico ocasionou o recalque de um ponto fundamental que deve ser resgatado na
retomada da Retórica, já que na Poética a retórica é vista como mero discurso sem referência
a uma realidade. Já no caso do livro Retórica, este termo vincula-se essencialmente a um
fundamento dado pela evidência da prova, derivando daí o seu valor de discurso. Vê-se assim
que, em semelhança com Dirlik, Ginzburg propõe uma matéria como fundamento, como
transcendência.
Apesar de não poder levar a rio o reducionismo desses dois últimos autores citados
(Dirlik e Ginzburg), creio que um impensado em seus argumentos, isto é, algo como um
sintoma por eles não percebido, pois a acusação de relativismo que eles dirigem a muitos
pensadores contemporâneos segundo a qual as pressuposições relativistas derivariam da
precipitada conclusão que faz qualquer fundamento ser concebido como dogmatismo
metafísico, haja vista que a metafísica opera necessariamente por fundamentos levam-nos a
suspeitar desses pensadores acusados de relativistas, interrogando-os o pela falta de um
fundamento (por qualquer que seja) que serviria para escapar ao relativismo, como querem
Dirlik e Ginzburg, mas quanto à eficiência de seus textos em possibilitar pensar a
irredutibilidade e a incondicionalidade do evento, da singularidade, do heterogêneo, da
diferença não-oposicional, da alteridade.
Ora, mas a matéria, tal como se apresenta em Benjamin e em Vattimo, não foi
justamente colocada como a marca da singularidade irredutível, como aquilo mesmo que na
homogeneidade permitiria o surgimento do heterogêneo? Já não se daria a esperada
33
Friedrich Nietzsche. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Obras Incompletas.
30
resposta que evitaria a recaída na transcendência metafísica? Além disso, o pós-colonialismo,
com sua apropriação pós-estruturalista tão enfatizada por Dirlik que, como vimos, insiste
em considerar justamente o pós-estruturalismo adotado pelos pós-colonialistas como causa do
relativismo que neles encontra não constituiria da mesma forma uma saída louvável para os
impasses aqui colocados (já que o pós-estruturalismo, além de ter, ou por ter surgido como
uma resposta às limitações metafísicas dos estruturalistas abordadas aqui, teria permitido o
resgate de relatos outrora reprimidos pela história do ocidente, tornando-os singulares, ou
seja, fazendo que eles não fossem mais reduzidos a um campo totalizador)?
Para responder a tais perguntas, que condensam uma aparente contradição interna da
presente digressão, creio ser importante denunciar o materialismo de Vattimo e Benjamin no
seu teor metafísico, teor esse que também permanece no pós-estruturalismo, nos estudos
culturais, bem como nos textos pós-colonialistas propriamente ditos. Pois neles um resíduo
simultaneamente relativista e dogmático (simultaneidade que não é nenhuma contradição,
que o relativismo é, por mera inversão, igualmente metafísico
34
) cuja manifestação, num de
seus modos (o historicista), dá-se na subsunção de todos os elementos singulares e
heterogêneos a um determinado conceito de história que, oposto ao conceito tradicional, é
agora invertido e colocado no lugar superior da hierarquia
35
–, sem que se questione o que
34
Segundo o viés desconstrutor da metafísica da presença, a necessidade de abalar o privilégio da presença do
presente exige que se atente para o seguinte: qualquer singularidade, ao ser positivada como tal, ao ser manifesta,
presentificada em si mesma no presente, deixa imediatamente de ser singular para ser um conteúdo presente
particular apresentado na forma absoluta da presença. Este é o motivo pelo qual o relativista é cúmplice do
metafísico, pois mesmo valorizando o relativo, fazendo deste uma singularidade irredutível a regras ou
conceitos, o fato de reconhecê-la e referenciá-la como ocorrência indivisível “no mundo” a reduz às regras ou
conceitos que possibilitaram seu reconhecimento. Aliás, a indivisibilidade associada à singularidade carrega todo
o peso da questão, pois no caso do relativismo é o que faz o relativista positivar, isto é, manifestar o singular
como tal. Vale ainda esclarecer que a indivisibilidade do singular presta-se, por um lado, a uma certa metafísica
(e.g., aquela que postula a transcendência de um em-si singular), pela qual a singularidade, sendo a de uma
negatividade infinita, de uma infinitude idêntica a si, o pode se manifestar de forma alguma, pois, caso
contrário, tornar-se-ia finita, positiva, contingente, particular, relativa; pelo lado inverso, a indivisibilidade do
singular presta-se ao relativismo, pelo qual a singularidade, sendo finita, de uma finitude idêntica a si, deve se
manifestar como tal, pois, caso contrário, tornar-se-ia infinita, negativa, ideal, absoluta, metafísica. Vê-se, a
partir daí, que a inversão do modelo hierárquico metafísico promovida pelo relativismo perpetua a hierarquia,
perpetuando, portanto, a metafísica. É por isso, ou melhor, para escapar disso, que Derrida – abalando a oposição
entre infinito e finitude através da aporia de uma finitude infinita insiste em enfatizar que a singularidade deve
ser originariamente dividida, nunca indivisível, devendo se manifestar como algo, nunca como tal é o que
veremos mais adiante sob o nome de rastro, de arquiescrita, cujo princípio é o da iterabilidade.
35
Se diferenças entre as diversas correntes aqui denunciadas, todas participam, contudo, de um mesmo solo
metafísico, porquanto recorrem à forma proposicional “tudo é x”, mesmo que x seja algo que a metafísica
considera relativo. Assim, para aquelas que privilegiam a história: tudo é história; para as que privilegiam a
ficção: tudo é ficção; a linguagem: tudo é linguagem; a cultura: tudo é cultura etc. Nota-se, com isso, que o
denominado relativismo contemporâneo (que impera, sobretudo, nas ciências humanas) é constituído por uma
inextricável implicação circular com o imanentismo: tudo é relativo a um único campo (alguns diriam: a um
único ponto de vista) que, outrora relativo a um absoluto metafísico, é agora (mantendo os predicados de
relatividade que a metafísica lhe atribuía, mas reivindicando o posto de irrelativo) relativo somente a si, pois não
é relativo a nada além de si, sendo que, paradoxalmente, tal “si”, embora tornado um irrelativo, não se configura
como uma singularidade irredutível, pois, ao manter a relatividade como seu mais inexorável atributo, faz do
31
permite chamar de história as “histórias singulares” outrora subjugadas pelo telos ocidental
metafísico e que seriam agora reapropriadas por uma redenção imanente. Ou seja, o
heterogêneo deixa de sê-lo a partir do momento em que é absorvido por uma determinada
noção de história, pela qual ele não passa de história particular, sendo assim reapropriado num
conceito de história que, mesmo pretendendo-se singular, passa a ser geral. Neste caso, a bem
intencionada e bem arquitetada tentativa de postular o heterogêneo é malograda pelo fato de
que a reapropriação dos elementos heterogêneos do passado no presente resulta na
relativização de tais elementos, fazendo deles mera diversidade assimilada por uma
homogeneidade plena, sem fissuras
36
. Noutras palavras, com isso se legitima,
paradoxalmente, a história ocidental, pois criticá-la a fim de resgatar o que ela recalcou
implica reivindicar para o recalcado o mesmo estatuto daquilo que é criticado, o que acaba
por inflar a história, que dela nada mais escaparia. Tal é o problema que se verifica nos
argumentos dos defensores do multiculturalismo e do pluralismo contemporâneos.
Evoco o próprio Derrida para ratificar as afirmações do parágrafo acima, valendo-me de
uma citação extraída do texto que suscitou esta digressão, em que Derrida objeta o
materialismo de Scarpetta e de Houdebine a partir da problematização do conceito de história:
(...) a partir de qual núcleo semântico mínimo se chamariam ainda ‘histórias’ esses
tipos de histórias heterogêneas, irredutíveis etc.? Como determinar esse mínimo
que eles deveriam ter em comum se não é por pura convenção ou por pura
confusão que se lhes deve conferir o nome comum de história? (...) Mais
precisamente, ao perguntar em que consiste, nesses diferentes tipos de história, a
historicidade da história, ou seja, aquilo que permite chamar de história essas
histórias irredutíveis à realidade de uma história geral, não se trata de retornar a
singular, do que era para ser um singular, o particular de um geral, e de um geral que é, por fim, ocupado pelo
relativo ele mesmo; conseqüentemente, o relativo é tudo. (Resumindo: x é relativo; ora, se tudo é relativo a x, x é
relativo a x: tudo é relativo ao relativo, que, por sua vez, é o relativo em si; logo, x é tudo). Ou seja, nada há fora
desse campo particular, tudo está relacionado a ele, pois não nenhum lugar fora dele a partir do qual se possa
visualizá-lo como um todo, ou visualizar o todo; por isso, quem defende essa tese é relativista. Mas, para tanto, é
preciso conceber o todo, concebendo o particular como o todo, o que faz do relativista um imanentista, que
acredita ingenuamente escapar do dogmatismo metafísico apenas por não pressupor nenhuma transcendência
para além do solo total da imanência. Ora, a manutenção da completude imanentista é ela mesma metafísica,
que aquilo que a metafísica exclui para afirmar sua transcendência é a ela imanente. Haverá ainda espaço, noutro
contexto, para uma melhor compreensão em torno dessas questões, que reaparecerão em breve.
36
Ou seja, mesmo que Benjamin tenha se posicionado contra a noção historicista de história que concebe,
como seu fundamento, um tempo homogêneo e vazio –, e, com isso, tenha primorosamente conseguido
desbancar a problemática noção teleológica de progresso que mantinha como seu horizonte último uma idéia
de transcendência (que se alcançaria pela supressão da própria história) –, seu pensamento materialista histórico,
ao defender (justamente por uma oposição ao modelo historicista tributário da transcendência) o imanentismo,
32
uma questão de tipo socrático. Trata-se, antes, de mostrar que o risco da re-
apropriação metafísica é inelutável (...) É preciso, por um lado, inverter o conceito
tradicional de história e, ao mesmo tempo, marcar a distância, cuidar para que ele
não possa ser em razão da inversão e pelo simples fato de conceptualização
reapropriado.
37
Retornamos, assim, ao ponto inicial da digressão.
A inserção de uma longa digressão em meu texto abalou essencialmente a sua cadência.
Ora, um texto nunca está livre de acidentes. É sempre possível que algo irrompa, gerando uma
descontinuidade no ritmo que o autor tenta impor; este acredita ingenuamente dominar o
“próprio” texto, que na verdade não o pertence, nem mesmo ao leitor. A escrita, como bem
afirma Blanchot
38
, é algo de que não se pode apropriar, uma não-relação, que a relação
subsume o outro à medida do mesmo, anulando a alteridade do outro. Mesmo se refletirmos
sobre a nossa relação, a minha contigo, veremos que ela se dá pela não-relação deste texto que
eu assino, o qual, assim como todo texto, demanda uma contra-assinatura do leitor. A tua,
portanto. Sim, pois escrevo agora para ti. A contingência do meu agora não deve tornar
incompreensível para ti tal advérbio. Ao contrário, este funciona para ti, no teu agora, que
não é mais o meu. Aliás, ele nunca nos pertenceu. Nossa presença no agora não é requerida,
como não o é o pronome eu, que tais palavras conservam sua significação mesmo na nossa
ausência; a minha, podes experimentar agora mesmo, ao ler o presente texto, que me torna
outro, abandonando-me de mim pela procuração de signos que valem para além da minha
morte; a tua, experimentas no instante em que te identificas com dêiticos que já estavam aqui
inscritos antes de tua chegada, e que originariamente te substituem, pois subsistem como tais
para quem quer que seja o leitor, mesmo que o leitor seja eu. Nosso contrato, nossa relação se
estabelece assim, numa descontinuidade radical, numa proximidade distante mediada pela
escrita, que por ser da ordem da não-presença, nem presença, nem ausência, se apresenta
neste momento para mim e se apresenta neste momento para ti, destituindo-nos, desde sempre,
de nossa própria presença. E se a escrita me ausenta, se a partir dela a tua presença é prevista,
acaba por recair nos problemas relativos à tese da imanência, que foi aqui denunciada enquanto mplice da
metafísica.
37
Jacques Derrida. Posições, pp. 55, 56. Situação análoga ocorre quando Derrida manifesta reservas quanto ao
uso indiscriminado que Foucault faz das palavras força e poder: “Mesmo se, como Foucault parece recomendar,
não se fala mais do Poder com maiúscula, mas de uma multiplicidade dispersa de micropoderes, a questão
permanece a de saber qual é a unidade de significação que permite chamar ainda de ‘poderes’ esses
microfenômenos descentralizados e heterogêneos. (...) nunca uma chamada de poder ou força, mas somente
diferenças de poder e força, e diferenças tão qualitativas quanto quantitativas. (...) é preciso partir da diferença
para aceder à força, e não o inverso”. Jacques Derrida, Limited, Inc, p. 204.
33
é porque, pela escrita, o eu e o tu são rastros, espectros anteriores à presença, bem como a
condição desta.
Essa menção à nossa relação, tal como eu a elaborei, tem por interesse marcar a
implicação necessária da noção derridiana de não-presença à questão do signo, mais
especificamente, da escrita. Inclusive, é em virtude do signo que a irrupção da digressão, que
foi perpassada pelo tema da matéria, se justifica: Uma doutrina de ‘materialidade do
significante’, que se atribuiu algumas vezes, erradamente, a Derrida, parece à primeira vista
consagrar o triunfo do materialismo. Era, no fundo, a posição do grupo Tel Quel”
39
. Ou seja,
interpreta-se, muitas vezes, a valorização dada por Derrida ao significante tomando-o como a
face do signo cuja essência resume-se à materialidade, em contraposição ao significado, que
seria ideal. Neste caso, a oposição binária através da qual a metafísica reduzia o caráter
material do signo em favor do significado transcendente (para além do próprio signo) é
apenas invertida, pois o significante, pensado nesse contexto como matéria, toma o lugar
superior na hierarquia. É nesse sentido que a literatura cujas significações são
reconhecidamente efeitos de seus significantes –, por não prescindir da materialidade,
sobretudo no tocante à exterioridade material da escrita, deixa de se situar na margem para
figurar na posição privilegiada outrora ocupada pela filosofia. É claro que a filosofia se vale
do caráter material para subsistir, mas ela reivindica o direito de reduzi-lo, tomando-o como
acidental, como mera referência secundária à linguagem ideal fundada na presença plena. Por
isso, a literatura é vista pela filosofia como o seu correlato opositivo, como o registro que, por
se perpetuar na equivocidade, na exterioridade dos significantes distanciada em relação à
presença, não tem o valor de verdade. Ora, essa definição de literatura criada pela filosofia é
justamente o que se aceita ao simplesmente inverter a oposição. Assim, querer dar um
privilégio à literatura pelo viés da materialidade do significante é ainda operar de forma
metafísica, caindo no seu extremo oposto relativista, pois a materialidade é definida pela
metafísica como contingente, factual, como aquilo que deve ser reduzido. Portanto, manter a
compreensão que Derrida tem do signo é tarefa essencial para evitar que se faça uma redução
de seu pensamento às teorias cujo resíduo metafísico foi aqui denunciado. Deve-se ter em
mente que o significante não pode ser tomado apenas como materialidade, o que permite
distanciá-lo das oposições metafísicas, e, em última instância, dimensionar o literário na sua
efetiva irredutibilidade.
38
Cf. Maurice Blanchot. A conversa infinita.
39
Geoffrey Bennington. “Derridabase”. In: Jacques Derrida. Jacques Derrida, p. 30. Vale ressaltar que do grupo
Tel Quel faziam parte Houdebine e Scarpetta, bem como Derrida, apesar de este nunca ter aprovado os
dogmatismos a que tal grupo por vezes recorria.
34
Pelo que enunciei acerca da desconstrução derridiana, poder-se-ia supor que ela se
descola, desde o princípio, de qualquer tradição, tendo, de direito, uma plena autonomia em
relação a qualquer pensamento determinado. Contra isso, importa dizer que a desconstrução é,
antes de tudo, um acontecimento (como singularidade diferencial, deixando marcas nos textos
que e se deixando marcar por eles), jamais um conceito desvinculado dos textos sobre os
quais ela se erigiu enquanto tal. Por exemplo: alguns leitores de Derrida, ao serem solicitados
quanto ao estabelecimento de uma gênese da desconstrução, relacioná-la-iam rapidamente ao
pensamento de Heidegger e ao estruturalismo de Saussure, conforme sugere a seguinte
citação:
Ainda que o conceito construction tenha sido resultado da tradução que Derrida
fez do conceito Destruktion, de Heidegger, e tenha, dessa maneira, um
compromisso filosófico com o projeto de Ser e Tempo e com a ontologia
fundamental, ele nasceu no contexto francês do estruturalismo e serviu para o
debate de questões típicas de filosofia da vertente lingüística saussuriana da
segunda metade do século 20.
40
De fato, tais referências, apesar de não poderem ser cristalizadas como as únicas, não estão
equivocadas, haja vista que até mesmo pela minha descrição da desconstrução é possível
comprová-las (mas veremos que, ao mesmo tempo, é possível deslocá-las, e é nessa escrita
dupla que reside a singularidade diferencial do pensamento derridiano). Ou seja, não como
negar que Derrida seja, de certa forma, um herdeiro de Heidegger, porquanto intenciona, de
maneira muito semelhante a este, denunciar a metafísica
41
, o que no caso de Derrida,
particularmente, é feito a partir de noções estruturalistas, que o pensamento metafísico é
40
Ernildo Stein. Diferença e Metafísica: ensaios sobre a desconstrução, pp. 7, 8.
41
Não lugar aqui para vasculhar semelhanças e diferenças entre Heidegger e Derrida. Dentre muito que
poderia ser dito a esse respeito, escolho aleatoriamente uma citação que marca uma certa distância que separa
esses dois filósofos: (...) para Derrida, e aqui, ao contrário de Heidegger (...), pensar diferentemente da
metafísica é não pensar mais em obediência à presença do ser, mesmo que esta seja pensada mais
originariamente enquanto evento, envio de um vir-à-presença que reúne ou configura uma época segundo um
determinado modo de revelação, por exemplo, a tecno-ciência em escala planetária que constitui, para
Heidegger, o modo de revelação configurador de nossa época”. Paulo Cesar Duque-Estrada. “Derrida e a
escritura”. In: Às margens: a propósito de Derrida. Org. Paulo Cesar Duque-Estrada, p. 17. E se quisermos saber
o que o próprio Derrida tem a dizer sobre sua relação com Heidegger, eis aqui um exemplo recente: “Não apenas
não sou um discípulo de Heidegger, mas há quarenta anos que não lhe faço uma referência que não seja
também questionadora, amesmo crítica ou desconstrutora. Bastaria ler um pouco para verificar isso. Porém,
é verdade que, por essa razão, levo o pensamento de Heidegger a sério, e é isso que parece insuportável.
Tentam não apenas fazer de mim um heideggeriano, mas também reduzir Heidegger ao Discurso do Reitor.”
Jacques Derrida. Papel-máquina, p. 345.
35
visto por ele como uma estrutura composta por oposições binárias.
42
Conseqüentemente,
Derrida o próprio estruturalismo como uma teoria tributária da metafísica, e procede por
questioná-lo, invertendo as oposições no mesmo gesto que instaura um afastamento
irredutível, a fim de que se abalem as hierarquias metafísicas, como outrora vimos. Em outras
palavras, Derrida se apropria do estruturalismo de Saussure para radicalizá-lo, para excedê-lo,
dando ao conceito de signo saussuriano uma nova abordagem, pois apesar de este conceito
permitir o questionamento da metafísica de uma maneira inédita e eficaz
43
, ele acaba por
recair na metafísica em função da manutenção da oposição entre significado e significante, o
que, em última instância, legitima a postulação de um significado transcendental para além do
jogo diferencial entre os significantes:
A manutenção da distinção rigorosa essencial e jurídica entre o signans e o
signatum, a equação entre o signatum e o conceito, deixam em aberto, de direito, a
possibilidade de pensar um conceito significado em si mesmo, em sua presença
simples ao pensamento, em sua independência relativamente à língua, isto é,
relativamente a um sistema de significantes.
44
Demando a licença para antecipar que, de acordo com Derrida, o significado está sempre na
posição de significante, pois todo significante remete aos outros significantes. Portanto, o
significante o pode ser reduzido, ou seja, não pode ser somente material; deve ser pensado
segundo sua iterabilidade, que é a repetição na diferença, a diferença na repetição. Isto é, o
significante deve ser reconhecido como o mesmo nos diferentes contextos em que ele se dá, o
que não ocorreria se ele fosse apenas material, como bem atesta Bennington:
A doutrina da materialidade do significante, e, por sua vez, o pensamento do signo
em geral, resulta no pensamento da diferença, igualmente antecipado por
42
“(...) não haveria a menor dificuldade em mostrar que um certo estruturalismo sempre foi o gesto mais
espontâneo da filosofia”. Jacques Derrida. A escritura e a diferença, p. 91.
43
Em se tratando da valorização dada ao pensamento saussuriano, tal pode ser percebida quando Derrida afirma
que Saussure “(...) enfatizou, contra a tradição, que o significado é inseparável do significante, que o significado
e o significante são as duas faces de uma única e mesma produção”. Ademais, Derrida continua: “Ao sublinhar
os caracteres diferencial e formal do funcionamento semiológico, ao mostrar que é ‘impossível que o som,
elemento material, pertença, ele próprio, à língua’ e que, ‘em sua essência, ele [o significante lingüístico] não é
nada fônico’; ao de-substancializar ao mesmo tempo o conteúdo significado e a “substância de expressão”
que não é mais, pois, por excelência, nem exclusivamente, a fonia –, ao fazer também da lingüística uma simples
divisão da semiologia geral, Saussure contribui, de maneira decisiva, para fazer voltar contra a tradição
metafísica o conceito de signo que ele lhe havia tomado de empréstimo”. Jacques Derrida. Posições, p. 24.
44
Ibid., p. 25.
36
Saussure. Pois, efetivamente, não se teria nunca sucesso em identificar o mesmo
signo através de suas repetições não idênticas (variações importantes de sotaque,
tom, grafismo etc.) se fosse preciso contar exclusivamente com sua materialidade.
Deve-se poder reconhecer que é o mesmo signo apesar de todas essas variações, e
isso implica que isto que assegura a mesmice através das repetições deva de fato
ser uma idealidade: o significante não é nunca, portanto, pura e essencialmente
sensível, mesmo ao nível de sua descrição fonológica ou grafológica. (...) Esta
“idealidade” não confere também , simplesmente, uma “identidade” ao signo (...)
A identidade do signo, mesmo que seja ideal, está assegurada somente por sua
diferença com relação a outras idealidades. Esta diferença entre as unidades
aparentemente sensíveis não pode, por definição, ser ela mesma sensível (não se
pode ver, tocar, ouvir etc. uma diferença enquanto tal).
45
Através dessa noção de significante em Derrida se pode vislumbrar o que ele entende por
não-presença, que não pode ser reduzida, pois sua essência é a iterabilidade. Assim, o
significante tem uma idealidade, mas que não é fundada na presença, e sim “fundada” na
diferença, o que ficará mais claro em momentos posteriores deste texto.
Antes de prosseguir, faz-se urgente resolver uma questão que ficou pendente: distanciar
Derrida do relativismo de que ele é comumente acusado e por meio do qual é erroneamente
associado a outros pensadores contemporâneos. Para tanto, cito um trecho de uma entrevista
dada por ele a Evando Nascimento:
Não sou relativista, e aos que acreditam poder tirar uma lição relativista das
leituras de meus textos diria simplesmente que se enganam. O relativismo é uma
filosofia que consiste em dizer que todas as perspectivas se equivalem, que todos
os pontos de vista têm o mesmo valor, e que tudo depende do lugar onde o
indivíduo se encontra, do tempo, do assunto etc. Nunca pensei desse modo. Creio
que a origem dos mal-entendidos no caso se deve a que sou muito enfático a
respeito da singularidade e das diferenças: a singularidade das culturas, das
nações, das línguas. Não acredito que se possa deduzir um relativismo da atenção
à singularidade, mas como enfatizo muito a incondicionalidade, o perdão
incondicional, a hospitalidade incondicional etc. conclui-se daí que sou relativista.
45
Geoffrey Bennington. “Derridabase”. In: Jacques Derrida. Jacques Derrida, p. 32.
37
Muito ao contrário, o motivo da incondicionalidade é justamente o que abala todo
e qualquer relativismo e hipóteses condicionais. Existem coisas que é preciso
fazer, às quais é preciso responder de maneira imperativa, com urgência, e que não
se deixam relativizar. Acredito também na verdade das ciências, o sou cético,
acredito no saber, acredito no objetivo dos cientistas. Trata-se evidentemente de
uma objetividade garantida pela discussão, pela comunidade científica, pelos
protocolos de interpretação. Em todo caso, jamais fui relativista. E naturalmente
enganam-se os que tiram essa conclusão, privando a desconstrução de toda espécie
de força de convicção. Isso supõe, segundo a definição clássica, que se você se diz
relativista, ou cético, como pode acreditar na verdade do que diz? Penso que a
interpretação relativista é uma interpretação fraca
46
.
Em meu ver, aqueles que julgam Derrida relativista estão a tomar a desconstrução
apenas por um de seus aspectos, pois não obstante haver um procedimento de valorização do
relativo, que constitui uma das facetas necessárias do jogo desconstrutor, no sentido de que
ela concretiza o momento de inversão de oposições binárias, também, no mesmo gesto,
como já vimos, a etapa essencial sem a qual a desconstrução efetivamente não acontece, que é
justamente a fase em que se marca o deslocamento, o espaçamento, o afastamento, isto é, o
rastro indecidível em que uma alteridade radical se inscreve, para além da inversão opositiva,
no interior do campo a ser desconstruído, impedindo assim a consagração do relativismo (e,
consequentemente, da metafísica). Resta, assim, intensificarmos aquilo que na desconstrução
permanece de irredutível, de incondicional
47
.
A fim de que o acima prometido ocorra, julgo necessário tirar proveito de uma questão
inscrita em momentos anteriores deste texto, mas ainda confusa: a distinção entre a noção de
contradição propriamente dita e a de contradição tomada como indecidibilidade. Apesar de
essa distinção não ser adotada de forma rigorosa por Derrida, que parece se valer muitas vezes
dos termos contradição, aporia, paradoxo e indecidibilidade como sinônimos, importa frisar
que a noção de indecidibilidade traz a vantagem de inscrever nela mesma a referência à
alteridade radical. Portanto, mesmo utilizando, por exemplo, o termo contradição, Derrida o
faz com algumas reservas, sempre pressupondo o caráter indecidível que tal vocábulo deve
suscitar:
46
Entrevista publicada no suplemento Mais! da Folha de S. Paulo, em 27.5.2001.
47
Incondicional, isto é, irredutível à condicionalidade. A noção de incondicionalidade será esmiuçada em breve.
38
O “indecidível”, que não é a contradição na forma hegeliana da contradição, situa,
em um sentido rigorosamente freudiano, o inconsciente da oposição filosófica, o
inconsciente insensível à contradição à medida que ela pertence à lógica da
palavra, do discurso, da consciência, da presença, da verdade etc.
48
Ademais, a indecidibilidade, por sua referência à alteridade absoluta, não permite que um
eventual uso derridiano do termo paradoxo seja interpretado como significando o mesmo que
em Deleuze, pois para a filosofia deleuziana um paradoxo se apresenta enquanto equivocidade
dos simulacros, que estão dispostos em sínteses disjuntivas (ou disjunções inclusivas) como
inflexões da univocidade do Ser-Uno-Todo-Virtual
49
, ou seja, como atualizações (ou
entificações, se preferirmos uma terminologia heideggeriana) do ser. Vale enfatizar que, para
Deleuze, o ser não se opõe aos simulacros, já que a afirmação da imanência do ser, do plano
de superfície, é sempre primeira, não podendo haver jamais uma transcendência. Os
simulacros se dão em disjunção, sem relação entre si, pela razão de que se eles fossem
simplesmente relacionáveis não se poderia jamais conceber algo além dos próprios
simulacros. Noutras palavras, é somente nesse hiato que separa os simulacros que se pode
intuir o ser que ali está imanente, que é o ser como relação. De modo semelhante a Deleuze,
Foucault também considera os estratos, as positividades (aquilo que Deleuze chama de
simulacros) como formas do saber (Ser-saber), formas estas que se dispõem em sínteses
disjuntivas, não-relacionais (as palavras e as coisas), cuja única relação (síntese) se pelas
forças informes do poder (Ser-poder) que as atualizam, que estão a elas imanentes. ainda
em Foucault um terceiro domínio ontológico – que não se opõe aos outros dois –, chamado de
Ser-si, que é a dobra da superfície, em que o sujeito é constituído. Melhor dizendo, de acordo
com Foucault é necessário partir dos estratos (a conhecida potência dos simulacros
deleuziana), quebrando a relação intencional e diáfana entre essas formas do saber, que são as
palavras e as coisas, fazendo que elas se mostrem tais como elas são, irredutíveis entre si
pois, segundo ele, nunca falamos daquilo que vemos e nunca vemos aquilo de que falamos –,
para que, nessa não-relação, as forças informes do poder se “apresentem” como a única
relação que junta as formas do saber ao separá-las, separando-as ao uni-las, constituindo um
paradoxo em que o mais próximo é o mais distante e vice-versa. E é isso que permite criar,
48
Jacques Derrida. Posições, p. 101.
49
“Podemos dizer que, para Deleuze, o Ser se declina univocamente como Uno, como vida inorgânica, como
imanência, como doação insensata do sentido, como virtual, como duração pura, como relação, como
afirmação do acaso e como eterno retorno (...) Devemos partir da univocidade do Ser e nela dispor o equívoco
como expressão, ou simulacro, e não inversamente”. Alain Badiou. Deleuze: o clamor do ser, p.96, 98.
39
nesse espaço imanente de uma única superfície, uma interioridade, que não se opõe a
nenhuma exterioridade, pois como o exterior, a interioridade (o sujeito, ou o
pensamento) não é mais do que dobra na superfície, a dobra do fora. Apenas a título de
registro, aproveitando para alinhavar brevemente neste contexto uma questão que será
posteriormente abordada (a relação entre desconstrução e fenomenologia), gostaria de afirmar
que, segundo Deleuze, a dobra, sendo para ele e para Foucault um movimento posterior, tem
um sentido diferente daquele que tem em Heidegger, para o qual a dobra seria originária (o
ente que ao se desvelar vela o ser), o que faz de Heidegger um prisioneiro da fenomenologia
por manter, ainda que num segundo nível, a intencionalidade, pois pela sua concepção de ente
a visibilidade e a dizibilidade deste permanecem relacionadas entre si de forma transparente,
como um fenômeno. O mesmo problema Deleuze denuncia em Merleau-Ponty:
Em primeiro lugar, a dobra do ser, segundo Heidegger e Merleau-Ponty, só supera
a intencionalidade para fundá-la na outra dimensão: eis por que o Visível ou o
Aberto não fazem ver sem também fazer falar, pois a dobra não constituio se-
vidente da visão sem constituir também o se-falante da linguagem, a ponto de ser
o mesmo mundo que é falado na linguagem e que é visto através da visão. Em
Heidegger e em Merleau-Ponty, a luz abre um falar tanto quanto um ver, como se
as significações obcecassem o visível e o visível murmurasse o sentido. Não pode
ser assim em Foucault, para quem o Ser-luz remete apenas às visibilidades e o Ser-
linguagem aos enunciados: a dobra não poderá fundar uma nova intencionalidade,
pois esta desaparece na disjunção, entre as duas partes, de um saber que jamais é
intencional
50
.
Por se percebe a rejeição de Foucault e Deleuze em relação à fenomenologia (aliás,
Deleuze elogia Foucault por ter sido o primeiro filósofo a romper totalmente com a
intencionalidade fenomenológica), o que mostra mais uma diferença entre esses autores e
Derrida, que nunca apresentou qualquer tentativa de superação do pensamento
fenomenológico, que as críticas dirigidas por Derrida a tal filosofia sempre foram feitas a
partir da radicalização de elementos textuais já inscritos nela mesma.
50
Gilles Deleuze. Foucault. Sugiro a leitura desta obra para uma maior compreensão das afirmações que teci tão
vagamente acerca de Deleuze e Foucault. Neste livro, a impressionante semelhança entre o pensamento
foucaultiano e o deleuziano é evidenciada pelo próprio Deleuze. Cf. também o citado livro de Alain Badiou
intitulado Deleuze: o clamor do ser.
40
A sinopse acima apresentada, essa apressada e irresponsável sinopse que insurgiu num
parágrafo como um corpo estranho, um parágrafo que não a tinha num horizonte de
previsibilidades; enfim, a tal sinopse das filosofias de Deleuze e de Foucault teve como
objetivo mostrar que Derrida, diferentemente de seus dois últimos colegas citados, não parte
da imanência como afirmação primeira e última, pois para ele sempre uma alteridade
promovendo uma descontinuidade originária no interior de qualquer imanência, alteridade
essa que Deleuze de pronto repudiaria, visto que ela fere frontalmente o princípio de
imanência. Em suma, se em Deleuze e em Foucault os paradoxos apenas atualizam a
virtualidade imanente do ser, em Derrida os paradoxos ou aporias funcionam como
indecidíveis, como rastro do outro totalmente outro, excedendo o horizonte do ser, mas sem
abolir ou ultrapassar tal horizonte.
Ora, malgrado diversos pontos de convergência aos quais não pude aqui me deter, a
distância de Derrida em relação a Deleuze e a Foucault, sendo situada na temática da
alteridade radical, leva a aproximar Derrida de Lévinas. Sem dúvida, Lévinas é uma herança
inquestionável (pelo menos em termos de ser a mais explícita de todas) que Derrida veio cada
vez mais assumindo, sobretudo no tocante à desconstrução da ética tradicional. A relação de
Derrida com Lévinas demandaria uma longa reflexão que não cabe aqui, mas tudo leva a crer
que este é o autor que Derrida, mesmo que o tenha desconstruído em alguns momentos, mais
“escuta”. Tenho, inclusive, a suspeita de que é principalmente a inscrição levinasiana no
pensamento de Derrida que permite perceber uma diferea entre este e os autores que (como
Lévinas e o próprio Derrida) também se apropriam da fenomenologia de Husserl, mas que, ao
invés de adotar o viés do outro enquanto outro, derivam uma ontologia
51
a partir dela, tais
como Heidegger e Merleau-Ponty, o que explicaria, mais uma vez, o motivo pelo qual Derrida
não é ontólogo, não pressupõe a imanência do ser como afirmação primeira (apesar de não
negar tal pensamento do ser), mas, como Lévinas, trata do outro enquanto outro, que
postular tão somente a prioridade do ser ainda seria permanecer no domínio do mesmo.
51
Para evitar confusões, vale assinalar o significado subjacente à palavra ontologia nos contextos em que ela está
associada a nomes como, por exemplo, Heidegger, Merleau-Ponty, Foucault e Deleuze. Sabe-se que Heidegger
propôs, contra a ontologia metafísica tradicional (cujo modo privilegiado de dizer o ser é o ente), uma ontologia
fundamental, que trata da compreensão do sentido do verbo ser. A partir daí, o ser deixa de figurar como um ente
transcendente e supra-sensível para tornar-se imanente aos entes. Assim, tanto Merleau-Ponty como Deleuze e
Foucault praticam uma ontologia cuja acepção se afina com a de Heidegger. Ademais, em se tratando da
derivação de uma ontologia a partir de Husserl, creio ser necessário emitir algumas considerações: Husserl não
queria fazer ontologia, pois o significado que esta tinha para ele era ainda o da ontologia tradicional. Como seu
interesse voltava-se para a investigação das condições de possibilidade de todo ente, de todo objeto (isto é, das
condições de possibilidade da própria ontologia, tal como ele a entendia), isso implicava uma filosofia
transcendental. Contudo, suas descrições acerca do mundo da vida apontavam para a postulação de uma
ontologia fora dos moldes da ontologia tradicional, o que resultou nas ontologias de Heidegger e Merleau-Ponty.
41
Assim, Derrida alia-se a Lévinas nas interpretações que este faz da fenomenologia husserliana
(sempre com algumas reservas, é claro), pois a alteridade radical é decorrente da brecha
deixada por Husserl quando este opera a descrição da intersubjetividade fenomenológica.
Curiosamente, a maior reserva de Derrida em relação a Lévinas dá-se justamente no
tocante à fenomenologia husserliana, quando Derrida defende Husserl contra uma crítica que
faz Lévinas a respeito da intersubjetividade fenomenológica. Essa questão pode ser
encontrada em Bennington, que elabora de maneira exemplar
o motivo de algumas objeções de Derrida a Lévinas em Violence et métaphysique:
Lévinas opõe às dificuldades de Husserl, nas Cartesian meditations, com o
problema do outro, o sentido de que o outro é absolutamente outro em relação a
mim, e Derrida defende Husserl com o argumento de que a alteridade do outro tem
a chance de ser registrada apenas na medida em que, em certo sentido, o outro é o
mesmo que eu. O outro é realmente outro na medida em que ele, ou ela, não
tenha o status daquela forma de alteridade própria aos objetos do mundo exterior:
a alteridade do outro, no sentido que esta recebe em Lévinas, depende, de acordo
com suas recentes análises, do fato de que o outro deva supostamente parecer-se
comigo o suficiente para que sua alteridade (como “uma outra origem do mundo”,
numa linguagem fenomenológica) possa tornar-se evidente. (...) Husserl permite
que a alteridade do outro venha à tona, justamente por causa da impenetrabilidade,
para mim, daquilo que é, contudo, manifestamente um alter ego, o mesmo que
eu.
52
O que foi apresentado na citação acima exigiria uma análise mais detalhada da relação
entre Derrida e Husserl. Mas não insistamos, por ora, em tal aspecto. Ainda é cedo para isso.
Voltando à dicotomia Heidegger / Lévinas, uma citação retirada de Bennington
explicita o motivo pelo qual Derrida não pode ser simplesmente subsumido ao pensamento
(judaico) levinasiano da transcendência do outro
53
, tampouco ao pensamento (grego)
52
Geoffrey Bennington. “Desconstrução e Ética”. In: Descontrução e Ética: ecos de Jacques Derrida. Org.
Paulo Cesar Duque-Estrada, p. 15.
53
Para não deixar margens a interpretações equivocadas quanto ao que Lévinas entende por transcendência, um
comentário acerca dessa questão não seria fortuito. Primeiramente, devo salientar que a alteridade radical em
Lévinas, isto é, a transcendência absoluta do outro, apesar de ser decorrente da intersubjetividade de Husserl,
passa necessariamente pelo pensamento heideggeriano da imanência do ser. Tal afirmão da imanência do ser
faz Lévinas entender que toda transcendência postulada na história da metafísica nada mais foi do que
imanência, ou seja, mero produto derivado do mesmo, resultando no mesmo. Todavia, Husserl já mostrara
que a idealidade transcendente podia ocorrer à medida que fosse constituída pelos atos de uma subjetividade
42
heideggeriano da imanência do ser
54
, pois Bennington pensa, nesse contexto, a contaminação
derridiana como uma inextricável relação do ser com o outro, colocando Derrida num espaço
indecidível entre Heidegger e Lévinas. Creio ser pertinente apresentar essa citação porque,
além de permitir elucidar pontos obscuros do meu texto, ela introduz certos elementos que
retomarei posteriormente. Enfim, eis a citada citação:
Essa contaminação necessária, essa parasitagem do outro através do ser e do ser
através do outro, seria justamente onde Derrida não é Lévinas, pois este não quer
tal contaminação. Lévinas gostaria, por exemplo, de guardar a possibilidade de
“escutar um Deus não contaminado pelo ser”, logo, radicalmente separado do ser.
(...) podemos dizer que, à medida que Derrida duplica Lévinas ou Heidegger tão
de perto, ele é justamente “mais outro” do que qualquer outro. Pode-se aliás,
constituinte, pois, segundo ele, esta constitui o objeto transcendente a partir da imanência das intuições
fenomênicas, tornando claro (transcendente) o que é vivido de modo obscuro (imanente). Mas como os atos da
subjetividade constituinte são, para Husserl, ainda ativos, Lévinas dá preferência à passividade – que ele
encontra na meditação heideggeriana de um ser neutro, destituído do poder ativo constituinte. Pois a
neutralidade do ser, que é aquilo que Lévinas chama de il y a, embora sendo ainda o mesmo, é, contudo, um
mesmo neutralizado de qualquer poder constituidor, o que possibilita pensar uma transcendência que não mais
depende da atividade de uma consciência transcendental, mas uma transcendência infinita, para além, inclusive
da totalidade do registro do mesmo. Isto é, se toda transcendência dependesse de atos constituintes, como estes
atos partem da imanência do mesmo, toda transcendência somente se daria como o resultado do mesmo. Noutras
palavras, nunca houve, para Lévinas, uma efetiva transcendência, uma verdadeira metafísica. Entretanto, como
vimos, o ser enquanto o mesmo deve ser considerado como uma etapa necessária, porém provisória, pois é a
partir daí que se pode ter acesso à origem absoluta do ser, que é sempre ser-para-o-outro, superando a imanência
em direção a uma transcendência infinita, a um infinito para além da totalidade do mesmo, o que significa
superar a ontologia fundamental com vistas a encontrar a ética como filosofia primeira, como a única metafísica
válida. Somente assim a transcendência deixa de ser um objeto constituído a partir da totalidade do mesmo para
escapar a toda e qualquer tematização e objetivação. Ora, Derrida, apesar de assumir a noção levinasiana de
alteridade radical, não subscreve o sentido de superação que Lévinas reivindica, pois, de acordo com o
pensamento derridiano, o ser e o outro são originariamente inextricáveis, não podendo jamais haver uma pureza,
quer do lado do ser, quer do lado do outro.
54
É preciso tomar muito cuidado para que a distinção entre Derrida e os aqui chamados pensadores da imanência
seja sustentada com rigor. Pois Heidegger, Nietzsche, Deleuze, Foucault, Merleau-Ponty (e amesmo Benjamin
e Vattimo), embora sejam imanentistas, não postulam a imanência do mesmo como identidade, mas como
diferença. Eis que se torna altamente difícil estabelecer uma distinção consistente entre Derrida e esses autores,
que uma diferença no interior de uma imanência pode ser pensada como uma alteridade originária a cindir a
homogeneidade do mesmo. Para resolver esse problema, devo confessar, antes de tudo, que toda denúncia ao
imanentismo que faço em meu texto, bem como o distanciamento que faço de Derrida em relação à tese da
imanência, deriva de uma interpretação que faço de Derrida a partir da intensificação de postulados levinasianos
(que estão, certamente, inscritos na filosofia de Derrida). Pois bem, temos então, por um lado, a imanência não
como identidade, mas como diferença; por outro, a transcendência absoluta e infinita (Lévinas) rompendo o
domínio da imanência; e, entre eles, Derrida: a diferença como alteridade radical no interior da imanência. Aliás,
um interior que não é propriamente um interior, já que a alteridade que lhe contamina não permite que ele se dê
como interioridade em si. Resumindo: em Derrida, a transcendência absoluta (alteridade radical) é imanente à
imanência, o que faz a imanência não ser imanente a si própria. Ou seja, a imanência difere de si por meio de
uma diferença que é alteridade radical. no caso dos imanentistas aqui citados, a diferença não é alteridade
radical (assim como em Lévinas a alteridade radical não é propriamente a diferença), mas é tão-somente
diferença no interior da imanência como tal. Exempli gratia: em Heidegger, a diferença entre ser e ente tem por
propósito perpetuar a imanência do ser. Ademais, pelo círculo hermenêutico, a resposta a uma questão apenas
explicita o sentido implícito na questão.
43
estender essa lógica: é apenas passando por muito perto da metafísica que Derrida
terá conseguido escrever o discurso menos metafísico imaginável. Derrida é
totalmente contra Lévinas e Heidegger, nem judeu nem grego, nem um pensador
da lei nem um pensador do ser. Por exemplo, esse motivo da contaminação, que
parecia nos remeter do outro absoluto que seria Deus, em direção ao ser, marca
também uma diferença decisiva com Heidegger. Pois, se para este último, o Ser
não é nada fora dos entes onde marca seu recuo, esse pensamento, contudo, quer
guardar uma certa pureza, enquanto pensamento, com relação à técnica. Heidegger
diz que a essência da técnica não é técnica. Tudo o que foi dito da repetição
eventualmente maquinal como possibilidade essencial da arquiescritura marca a
necessidade de uma contaminação de toda essência por uma técnica
generalizada
55
.
Noutras palavras, para Derrida, diferentemente de Lévinas, a abertura à alteridade
absoluta é possibilitada a partir de um princípio de contaminação (também chamado de
iterabilidade), que é inclusive o princípio da desconstrução, pois a alteridade radical existe
em Derrida nos termos de uma tal contaminação originária (outro nome para a
indecidibilidade), o que impede a total aderência de Derrida a Lévinas.
Retomando a indecidibilidade cuja tematização no seu sentido estrito foi desviada
pela sinopse que, detendo-se primeiramente nos pensamentos de Deleuze e de Foucault,
acabou por fazer um encadeamento metonímico de nomes como Heidegger, Merleau-Ponty,
Husserl e Lévinas –, vale notar que Derrida tomou-a de empréstimo de Gödel, um matemático
que, em 1931, escreveu um artigo intitulado Sobre as proposições indecidíveis dos Principia
Mathematica e sistemas correlatos, no qual postula seu famoso teorema da incompletude. Já
que é possível analisar o trabalho desconstrutivo pelo viés das descobertas de Gödel, pode
parecer que Derrida simplesmente transpõe um mecanismo do domínio lógico-matemático
para suas leituras filosóficas. Contudo, como o próprio Derrida enfatiza, foram as
conseqüências tiradas de suas investigações em filosofia que o permitiram visualizar uma
analogia com a citada expressão de Gödel. Portanto, a indecidibilidade em Derrida é derivada
de sua própria experiência através dos textos filosóficos.
Ainda ficou pendente a tarefa de definir a própria indecidibilidade, ação exigida pelo
fato de este termo ter sido utilizado no presente texto de forma imprecisa. Para tanto, adoto
55
Geoffrey Bennington. “Derridabase”. In: Jacques Derrida. Jacques Derrida, pp 114, 115.
44
um atalho, valendo-me da definição de indecidível efetivada por seu próprio criador, tal como
descrita por Nagel e Newman no livro Prova de Gödel:
Gödel mostrou (i) como construir uma fórmula aritmética G que representasse o
enunciado metamatemático: “A fórmula G não é demonstrável”. Esta fórmula G
afirma ostensivamente de si própria que o é demonstrável. (...) Mas (ii) Gödel
também mostrou que G é demonstrável se, e somente se, sua negação formal ~ G
for demonstrável. (...) Entretanto, se a fórmula e sua negação forem ambas
formalmente demonstráveis, o cálculo aritmético não será consistente.
Conseqüentemente, se o cálculo for consistente, nem G nem ~ G são formalmente
deriváveis dos axiomas da aritmética. Portanto, se a aritmética for consistente, G
será uma fórmula formalmente indecidível. Gödel provou então (iii) que, embora
G não seja formalmente demonstrável, ela é, não obstante, uma verdadeira fórmula
aritmética. (...) (iv) Como G é tanto verdadeira como formalmente indecidível, os
axiomas da aritmética são incompletos. Em outros termos, não podemos deduzir
todas as verdades aritméticas a partir dos axiomas. Além disso, Gödel estabeleceu
que a aritmética é essencialmente incompleta. (...) a consistência da aritmética não
pode ser estabelecida por um argumento capaz de ser representado no cálculo
aritmético formal
56
.
A partir da demonstração acima, pretendo encontrar uma analogia com Derrida, a fim
de fazer funcionar sua concepção de indecidibilidade. Destaco a palavra analogia, pois, ainda
que inspirada em Gödel, a noção derridiana de indecidibilidade, longe da pretensão de
reivindicar o valor supostamente inequívoco de uma demonstração lógico-matemática,
mantém, como assinala o próprio Derrida, uma relação estritamente analógica com as
descobertas gödelianas
57
. É esta analogia, repito, que será aqui potencializada. Para tal, farei
um encadeamento, partindo da idéia de indecidibilidade, dos valores de différance, arqui-
rastro, arquiescrita, suplemento etc., explicando-os de uma vez por todas.
56
Ernest Nagel e James Newman. Prova de Gödel, pp. 77, 78.
57
“(...) foi preciso analisar, pôr a trabalhar (...) certas marcas (...) que chamei, por analogia (eu enfatizo isso)
de indecidíveis’, isto é, falsas propriedades verbais, nominais ou semânticas, que não se deixam mais
compreender na oposição filosófica (binária) e que, entretanto, habitam-na, opõe-lhe resistência, desorganizam-
na, mas, sem nunca constituir um terceiro termo, sem nunca dar lugar a uma solução na forma da dialética
especulativa...”. Jacques Derrida. Posições, p. 49.
45
Ao propor o termo différance
58
, Derrida encontra, como Gödel, algo que num dado
sistema é indecidível, pois não pode ser demonstrado a partir dos recursos do sistema em
questão. A letra a inscrita deliberadamente no interior desse vocábulo mostra que uma
diferença na escrita (ou escritura, conforme alguns tradutores de Derrida) que não se realiza
na fala, pois em língua francesa não distinção de pronúncia entre différence e différance
59
.
Para potencializar a compreensão dessa intervenção aparentemente simples operada numa
única palavra por Derrida, emito algumas considerações acerca da relação da metafísica com
a linguagem.
Como foi explicitado, é o ser enquanto presença a origem fundante da metafísica.
Nesse caso, a metafísica não precisaria de linguagem, que toda linguagem é representação,
portanto, algo derivado da presença. No entanto, é a linguagem determinada a partir dos
princípios da lógica que reativa a presença em seu valor de idealidade, pois a forma
privilegiada de dizer o ser é a sua conjugação na terceira pessoa do indicativo do presente, ou
seja, o verbo ser conjugado como “é”, o que o torna um substantivo, um ente, ou, se
preferirmos, um significado que supostamente existiria fora do jogo relacional e diferencial
dos significantes. Assim, a proposição ideal por excelência seria aquela representada pela
58
toda uma complexidade concernente ao operador textual différance sobre a qual o me estenderei aqui.
Para uma noção bastante detalhada de tudo o que esse termo implica, cf. o ensaio de Derrida intitulado “A
Diferença”, In: Margens da filosofia, pp. 33-63. Todavia, para não abolir por completo uma abordagem, por
mínima que seja, desse termo tão importante e tão famoso no pensamento derridiano, adoto a partir de agora um
procedimento que consiste em numerar algumas aparições deste vocábulo no meu texto, remetendo-as ao da
página, onde exibirei apenas citações em que o próprio Derrida discorre sobre este assunto. Por ora, exponho na
presente nota uma das considerações mais recentes que fez Derrida em torno da différance, mostrando assim sua
atualidade: O que o motivo da différance tem de universalizável em vista das diferenças é que ele permite
pensar o processo de diferenciação para além de qualquer espécie de limites: quer se trate de limites culturais,
nacionais lingüísticos ou mesmo humanos. (...) portanto claramente uma potência de universalização.
Depois, a différance não é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um movimento de espaçamento,
um ‘devir-espaço’do tempo, um ‘devir-tempo’ do espaço, uma referência à alteridade, a uma heterogeneidade
que não é primordialmente oposicional. Daí uma certa inscrição do mesmo, que não é o idêntico, como
différance. Tudo isso era também uma meditação sobre a questão da relação do significado com o significante
(...) Na seqüência, meu trabalho se desdobrou num longo requestionamento de todas as diferenças
consideradas simples oposições. Eu insisto, a différance não é uma oposição, tampouco uma oposição dialética:
é uma reafirmação do mesmo, uma economia do mesmo em sua relação com o outro, sem que seja necessário,
para que ela exista, congelá-la, ou fixá-la numa distinção ou num sistema de oposições duais”. Jacques Derrida
& Elisabeth Roudinesco. De que amanhã, pp. 33, 34.
59
Como a seguinte citação antecipa reflexões ainda não devidamente elaboradas, sua provável carência de
sentido será suprida retrospectivamente, após um breve percurso no decurso da presente tese: “Entre a
diferença e a différance, a distinção não é a que separa o oral do escrito. Na différance, o se trata apenas do
tempo, mas também do espaço. É um movimento no qual a distinção ainda não sobreveio: espaçamento, devir-
espaço do tempo e devir-tempo do espaço, diferenciação, processo de produção das diferenças e experiência da
alteridade absoluta. O que então chamei de ‘rastro’ [trace] diz igualmente respeito à oralidade e, portanto, a
uma certa escrita na voz. (...) Tentei pensar a possibilidade da différance antes da diferença diacrítica, antes de
uma semiótica e de uma lingüística, antes mesmo de toda antropologia, para falar resumidamente. O ‘rastro’
[trace] é o movimento, o processo, na verdade a experiência que, de uma vez, tende e fracassa em deixar de
lado o outro no mesmo”. Jacques Derrida. Papel-máquina, p. 346.
46
forma lógica proposicional “S é P”. Tal é o caráter logocêntrico da metafísica
60
. E o elemento
da linguagem que, segundo a metafísica, mais tem o privilégio de manter a idealidade da
presença sem o risco de perder-se na exterioridade empírica é a voz, pois eu me ouço no
momento em que falo,
61
sem o desvio de signos escritos que podem ameaçar a restituição da
presença plena.
A phoné é, efetivamente, a substância significante que se à consciência como
aquilo que está mais intimamente ligado ao pensamento do conceito significado. A
voz é, desse ponto de vista, a consciência mesma. Quando falo, não apenas tenho
consciência de estar presente àquilo que penso, mas também de manter o mais
próximo de meu pensamento ou do “conceito” um significante que o cai no
mundo, que ouço tão logo o emito, que parece depender de minha pura e livre
espontaneidade, que parece não exigir o uso de qualquer instrumento, de qualquer
acessório, de qualquer força extraída do mundo. Não apenas o significante e o
significado parecem se unir, mas, nessa confusão, o significante parece se apagar
ou se tornar transparente, para deixar o conceito se apresentar ele próprio, como
aquilo que é, não remetendo a nada mais do que à sua presença. A exterioridade
do significante parece reduzida.
62
É que reside o estatuto fonocêntrico da metafísica denunciado por Derrida. Dessa maneira,
pelo fonologocentrismo, a metafísica institui um domínio da linguagem que, apesar de ser
representativa, tem a vantagem ardilosa de ser uma representação transparente, com uma
absoluta diafaneidade, pois pode, em última instância, ser apagada diante da presença plena a
que ela se adere. A fala teria, portanto, o privilégio de assegurar a presença a si, a
temporalidade homogênea e absoluta, sem a contaminação de qualquer elemento que a
60
De maneira sucinta e notável, Alain Badiou exprime como se sucedeu, na história da filosofia, essa
determinação metafísica do ser pelo logos, sem, contudo, valer-se do termo logocentrismo: O que é pensar?
Sabemos que, desde sempre, essa é a questão central da filosofia. Também sabemos que se trata de ligar a
resposta a uma outra pergunta: o que é o Ser? (...) Uma longa tradição pensa a identidade do pensamento e do
Ser como princípio. Aristóteles, no livro gama da Metafísica, trata da possibilidade de um pensamento do ser
enquanto ser segundo a triplicidade do princípio de identidade, do princípio de não-contradição e do princípio
do terceiro excluído”. Alain Badiou. Deleuze: o clamor do ser, p. 96, 97.
61
O sistema do ‘ouvir-se falar’ através da substância fônica que se como significante não exterior, não
mundano, portanto não-empírico ou o-contingente teve de dominar durante toda uma época a história do
mundo, a mesmo produziu a idéia de mundo, a idéia de origem de mundo a partir da diferença entre o
mundano e o não-mundano, o fora e o dentro, a idealidade e a o-idealidade, o universal e o não-universal, o
transcendental e o empírico etc.”. J. Derrida. Gramatologia, p. 9.
62
J. Derrida. Posições, p. 28.
47
frature, que promova um espaçamento no interior de tal temporalidade fundada no presente.
Nesse sentido, a metafísica opõe a fala à escrita, considerando esta última mera representação
gráfica daquela. A escrita, então, é vista como uma empiricidade qualquer, tendo seu valor
apenas enquanto registro mnemônico do pensamento puro reduplicado sem desvios pela fala.
Além disso, a escrita é desvalorizada e rebaixada pela filosofia pelo fato de que a intuição
evidente daquele que está em presença diante do objeto ideal (ou do significado
transcendental) se perde na exterioridade dos signos escritos, pois estes ameaçam a
restauração da origem, que podem funcionar com sentidos inesperados em contextos
diferentes daquele em que foram produzidos. Exibo um trecho de umcitado artigo assinado
por Paulo César Duque-Estrada para aprimorar o entendimento das afirmações do presente
parágrafo:
A escritura vai se mostrar, neste sentido, como uma estrutura derivada de segundo
grau, já que ela nunca se relaciona imediatamente com o significado, mas apenas e
tão somente com o significante primeiro, mais próximo do significado, que é o
significante falado.(...) A escritura, por sua vez, elemento estranho, não orgânico à
unidade entre voz e sentido e, portanto, não orgânico à própria linguagem, não é
mais do que sua representação exterior. Mais precisamente, a escritura é uma
representação fonética instituída, quer dizer, um acontecimento que vem se
acrescentar de modo contingente, arbitrário, à unidade entre voz e sentido. Com
relação a esta unidade, diz Derrida, “a escritura seria sempre derivada, inesperada,
particular, exterior, duplicando o significante: fonética”. (...) Esse rebaixamento da
escritura e sua conseqüente subordinação como simples representação fonética
exterior à voz e ao sentido constitui, para Derrida, a característica
fonologocêntrica da metafísica.
63
Pode-se ver, assim, que a metafísica é um sistema que, para ser consistente, ou seja,
para que não tenha contradições internas, deve considerar a escrita como seu fora, seu oposto,
como uma ausência, que é a fala que garante a pureza de sua interioridade por ser o meio
pelo qual o logos acede plenamente à presença, apresentando (tornando presente) a
idealidade, isto é, o próprio fundamento da metafísica
64
. Em suma, a filosofia metafísica é um
63
Paulo Cesar Duque-Estrada. “Derrida e a escritura”. In: Às margens: a propósito de Derrida, p. 16.
64
(...) metafísica que, apesar de todas as diferenças e não apenas de Platão a Hegel (passando por Leibniz)
mas também, fora dos seus limites aparentes, dos pré-socráticos e Heidegger, sempre atribuiu ao logos a origem
48
sistema baseado na fala, que é o único elemento da linguagem capaz de se unir, sem desvio
nem contaminação, à idealidade da presença. Ora, mas a metafísica se vale do seu fora, do seu
oposto, isto é, da escrita para demonstrar a hegemonia da presença
65
, o que a poderia tornar
inconsistente e incompleta. Entretanto, Derrida nos ensina que o que a ela se opõe, ou seja,
seu fora, é por ela comandado, situado numa posição inferior. Noutras palavras, pela oposição
dentro/fora, o fora o é em relação ao dentro, a partir das determinações deste. Isto é, a
escrita deve ser fonética, uma mera camada derivada
66
e secundária totalmente realizável na
fala. Com isso, a metafísica salva a sua consistência e, ao mesmo tempo, institui-se como um
sistema completo, pois, por um lado, não paradoxos internos, que a escrita, por ser
considerada uma derivação inferior da própria fala, não se situaria no mesmo nível desta a
ponto de figurar como uma exterioridade na interioridade, mas apagar-se-ia no momento em
que fosse pronunciada pela voz; por outro lado, essa condenação e redução da escrita em
proveito da fala atesta a completude do sistema metafísico, pois, dessa forma, não há nada
que lhe exceda, isto é, se todas as afirmações de um sistema devem ser para que ele seja
completo demonstráveis a partir dos recursos do próprio sistema, toda a escrita de que a
metafísica se vale, por ser determinada enquanto escrita fonética, seria subsumida ao domínio
da presença plena, fazendo parte dele por poder ser totalmente reproduzida na fala. Vale
lembrar que a fala defendida pela metafísica deve estar sempre, por sua vez, aderida ao
domínio da idealidade do logos, o que garante a presença em sua pureza. Conseqüentemente,
qualquer uso da linguagem que de fato não estiver comandado por esses pressupostos
da verdade em geral: a história da verdade, da verdade da verdade, foi sempre, com a ressalva de uma excursão
metafórica de que deveremos dar conta, o rebaixamento da escritura e seu recalcamento fora da fala ‘plena’”.
Jacques Derrida. Gramatologia, p. 4.
65
A filosofia escreve-se, isso traz consigo pelo menos três conseqüências. Imediatamente, em primeiro lugar,
uma ruptura com o regime circular do escutar-se-falar, com esta presença a si do sentido numa fonte cuja
verdade recorre a si própria continuamente. Irreversivelmente qualquer coisa se perde, na escrita, desta
presença do sentido, desta verdade que é todavia o grande, o único tema do filósofo. Ora, o filósofo escreve
contra a escrita,escreve para reparar a perda da escrita, esquecendo e negando com isso mesmo, ao fazê-lo, o
que faz com sua própria mão. (...) o filósofo escreve para se manter no círculo logocêntrico. Mas também para
reconstituí-lo, para interiorizar uma presença contínua e ideal que ele sabe, consciente ou inconscientemente,
pouco importa, na medida em que lhe sofre de qualquer maneira o efeito, que foi rompida na própria voz. A
descontinuidade, a demora, a heterogeneidade, a alteridade trabalhando a voz, produzindo-a desde o seu
primeiro sopro como sistema de traços diferenciais, num escrita sem ainda o ser. A escrita filosófica vem então,
literalmente, colmatar esta brecha, fechar a comporta e sonhar a virgem continuidade. (...) Sempre
insuficientemente formalizada, ainda demasiado embaraçada na língua natural, na sua imprecisão, nos seus
equívocos, na sua metaforicidade, a escrita filosófica não suporta a comparação com o seu modelo: o rigor, a
exatidão unívoca de uma língua puramente formal. (...) O filósofo entende regressar à proximidade da fonte
falante, murmurando, antes, a sua fala interior, e negar que escreve. Espantado com a diferença no escutar-se-
falar, com a escrita na fala, ele escreve na página para apagar, para esquecer que, quando fala, o mal da
cifra está já no germe”. Jacques Derrida. Margens da filosofia, pp. 332, 333.
66
Derivada porque representativa: significante do significante primeiro, representação da voz presente a si, da
significação imediata, natural e direta do sentido (do significado, do conceito, do objeto ideal ou como se
queira)”. J. Derrida. Gramatologia, p. 37.
49
metafísicos deve de direito ser excluído. É importante observar que a metafísica considera
esse desvio a seus princípios como algo de fato, quer dizer, contingente, empírico, ocasional,
acidental, material. Com isso, a ameaça representada pela escrita acaba por ser controlada,
pois de direito é possível excluí-la, reduzi-la. Evidencia-se, portanto, que um registro
lingüístico que não está, ao menos em princípio, comprometido com nenhuma tese para além
dele mesmo, como é o caso da literatura, é situado como correlato opositivo da filosofia,
como o seu outro
67
, o seu fora, porém, mais uma vez, um fora determinado pelo dentro da
filosofia, pois ocupa o lugar da contingência, do material, de tudo aquilo que pode ser
reduzido em nome da idealidade plena.
Derrida insiste em apontar a completude do sistema metafísico, o seu fechamento, e é aí
que ele encontra os meios para desconstruí-lo, pois se o fora é o fora a partir das
determinações do dentro, inversamente, como veremos, o dentro é o dentro em função do
fora, um fora que, entretanto, não é exatamente oposto ao dentro, mas escapa, precede à
oposição dentro/fora, pois é um fora que se mostra necessário à própria constituição
identitária do dentro, habitando-o originariamente, deixando de ser mera contingência.
Por tudo isso, dizer que a metafísica é habitada por seu fora, isto é, algo que a ela não se
opõe, mas que precede, condiciona e escapa às oposições (algo que é uma não-presença
indecidível entre presença e ausência) é dizer que isso que não se deixa dominar pela lógica
opositiva está a marcar, ali onde a metafísica se mostra mais completa, sua incompletude. Tal
caráter incompleto da metafísica, residindo na contaminação indecidível inerente à não-
presença originária, é a abertura da imprevisibilidade e incondicionalidade da alteridade
radical. É esse o motivo pelo qual Derrida não se limita a apontar a inconsistência do sistema
metafísico. Se fosse esse o caso, Derrida estaria apenas aceitando passivamente a definição de
escrita criada pela própria metafísica, pela qual a escrita seria uma ausência em relação de
oposição à presença, isto é, em oposição à fala. Aqueles que se limitam a essa constatação
acabam por assumir uma posição cética: diante de um paradoxo, que leva a um impasse
lingüístico instransponível, restaria apenas suspender qualquer juízo, dada a impossibilidade
67
“A filosofia ateve-se sempre a isso: pensar o seu outro. O seu outro: o que a limita e aquilo que ela supera na
sua essência, na sua definição, na sua produção. (...) Ater-se a pensar o seu outro: o seu próprio outro, o
próprio do seu outro, um outro próprio? Ao pensá-lo como tal, ao reconhecê-lo, perdemo-lo. Reapropriamo-lo,
dispomos dele, perdemo-lo ou, mais ainda, perdemo-nos (de) o perder, o que, quanto ao outro, retorna sempre
ao mesmo. Entre o próprio do outro e o outro do próprio. Se a filosofia entendeu sempre, pelo seu lado, manter-
se em relação com o não-filosófico, mesmo com o anti-filosófico, com as práticas e os saberes, empíricos ou
não, que constituem o seu outro, se ela se constitui segundo esse entendimento refletido com o seu exterior, se
ela sempre ouviu falar, na mesma língua, dela mesma e de outra coisa, poder-se-á, em todo rigor, marcar um
lugar não-filosófico, um lugar de exterioridade ou de alteridade a partir do qual se pode ainda tratar da
filosofia? Esse lugar não terá sido sempre, previamente, ocupado pela filosofia?” Jacques Derrida. Margens da
filosofia, pp. 11-13.
50
de alcançar um critério transcendente. Ainda poderíamos dizer que a falta de critério
transcendente gerada pela apresentação da contradição resultaria, em alguns casos, na
afirmação de um ser imanente como tentativa de se opor à metafísica, de ultrapassá-la, já que
para esta o ser é transcendente (podemos ironicamente constatar o problema de uma tal
concepção imanentista, pois na própria idéia de oposição e de ultrapassamento a
transcendência está implicada, o que faz a imanência existir apenas a partir de um apelo à
transcendência). Enfim, a simples assunção e valorização dos paradoxos encontrados no
interior do sistema metafísico não permite a tematização daquilo que não pode ser tematizado,
ou seja, não possibilita o impossível, outro nome da alteridade irredutível; esta o se daria a
pensar porque ao tomar a escrita como simplesmente oposta à fala, e ao verificar as duas
residindo num mesmo campo, resumir-se-ia a ficar encerrado na completude do sistema,
perpetuando-se num impasse. Diferentemente, Derrida, além de verificar o paradoxo pelo
qual a escrita se mostra ao lado da fala no interior do sistema, desloca o conceito de escrita
estabelecido pela metafísica (a partir do qual a escrita seria ausência oposta à fala), e faz da
escrita algo que, sendo presença e ausência, não é nem presença, nem ausência, ou seja, uma
não-presença, um indecidível. Portanto, para Derrida, a contradição não reside entre dois
elementos (um representando a presença e o outro a ausência) no sistema, mas, residindo na
própria escrita
68
, faz desta algo que, malgrado estar dentro do sistema, não se deixa por ele
apropriar, pois é também um fora, um fora, contudo, que não é mais pensado como oposição
ao dentro, pois é um fora como outro totalmente outro, rompendo, a partir do dentro, a
interioridade homogênea do dentro. Assim, finalmente podemos nos assegurar que, para
Derrida, a contradição, a aporia, o paradoxo, enfim, todos esses termos estão contraídos
naquilo que ele entende por escrita
69
, que se torna, dessa forma, um indecidível, o elemento
que deixa entrever a incompletude da metafísica.
Talvez minhas considerações a respeito da completude não tenham sido esclarecedoras;
temo, inclusive, que elas tenham sido apresentadas de maneira contraditória. Para suspender
qualquer equívoco em relação a tal questão, creio ser oportuno refazê-la neste parágrafo,
como se ele fosse uma nota de de gina. Primeiramente, devo dizer que Derrida, ao
perceber que a metafísica toma a escrita como o seu fora, isto é, como uma ausência, e ao ver
que a metafísica incorre na contradição de se valer da ausência, isto é, da escrita para se
68
Tentei descrever e mostrar como a escrita comportava estruturalmente (contava-descontava) em si mesma
seu processo de apagamento e de anulação, marcando, ao mesmo tempo, o resto desse apagamento...”. Jacques
Derrida. Posições, p. 76.
69
Ou, de maneira mais geral, rastro, que mostra com maior evidência como a generalização do conceito de
escrita não se limita ao domínio do humano ou do simbólico, implicando inclusive o animal, o maquinal.
51
constituir enquanto tal, tão logo ele percebe que essa ausência é postulada como contingência
em oposição à idealidade da presença representada pela fala. E é que ele verifica a
completude da metafísica, pois o que é contingente sendo contingente em relação ao
necessário e ideal pode ser excluído, reduzido em proveito da idealidade defendida pela
metafísica, o que a torna homogênea. É por isso que aqueles que notam a contradição interna
da metafísica, mas não se dão conta de que a ausência é contingência determinada pela
idealidade da presença, acabam por afirmar tacitamente a completude, perpetuando-a,
permanecendo apenas na atitude pela qual se denuncia a inconsistência, os paradoxos internos
ao sistema. Cabe ainda ressaltar que estes últimos seriam relativistas no sentido forte
(possivelmente seriam eles mesmos os céticos), pois relativizam o sistema em si, mostrando-o
num impasse insuperável, sem optar por nenhum dos termos da contradição, que tais
termos se mostram num mesmo nível. ainda os relativistas no sentido fraco, que são
aqueles que percebem a determinação metafísica pela qual a ausência é tida como
contingência, mas escolhem o termo subjugado pela oposição, colocando-o no lugar superior
da hierarquia, perpetuando, todavia, a hierarquia, correndo inclusive o risco de deixar a
contingência ser apropriada pela pura idealidade, o que também resulta na manutenção da
completude. Enfim, essas considerações nos fazem concluir que Derrida, apesar de passar por
todas essas etapas acima apresentadas, afirmando a completude, não pára por aí, pois
promove um deslocamento no conceito de escrita. Assim, o que a metafísica atribuía à escrita,
isto é, o caráter de ausência contingencial, é complicado por Derrida, que faz da própria
escrita o princípio de contaminação originária. A partir daí, a contradição não mais se situa
entre elementos relativos ao interior de um sistema em que uma característica simples
(idêntica a si) representada por um elemento se oporia à característica simples (apenas
contrária àquela) de um outro elemento – mas se situa no próprio elemento outrora subjugado
pela metafísica, comprovando a incompletude do sistema metafísico, pois nesse caso se
mostra a abertura para uma alteridade radical que não se deixa mais governar pelas oposições
do sistema, mas que é possível no ponto de fracasso do próprio sistema (já que pensar uma
alteridade absoluta fora da contaminação seria ainda pensar de forma metafísica), lá onde uma
contradição tornada indecidível entre oposições binárias permite pensar uma diferença que
não seja oposicional, mas uma diferença irredutível e produtora (différance), uma
singularidade, uma heterogeneidade. Importa ainda enfatizar que para Derrida a
indecidibilidade não suspende a decisão, mas exige que toda decisão pressuponha a
indecidibilidade
70
, sem a qual não haveria efetivamente uma decisão, pois sem a prova do
70
A co-implicação originária e inextricável entre a decisão e a indecidibilidade tem a mesma estrutura daquilo
52
indecidível bastaria que se aplicassem regras preestabelecidas, resumindo-se a seguir um
programa calculado de antemão.
71
Ora, a metafísica somente se constitui como tal pelo
apagamento do rastro da indecidibilidade, pela anulação da contaminação originária,
decidindo-se de antemão pela teleologia da presença pura e plena cujo fim residiria na
restauração da origem (a própria presença ideal) que teria sido desviada “acidentalmente”
pelo surgimento do signo. Enfim, se este parágrafo alcançou o propósito de elaborar o tema da
completude, esboçando a incompletude, acredito que agora possamos sair dele, de modo a
privilegiar a incompletude a partir da retomada de pontos que ficaram suspensos.
O vocábulo différance
72
atesta a incompletude do sistema metafísico, que deixa de ser
completo à medida que a letra a da différance
73
se furta à apropriação pela fala, apenas se
oferecendo à leitura, o que faz Derrida afirmar que não escrita puramente fonética
74
. Para
robustecer tal afirmação, Derrida evoca outros exemplos da escrita que, igualmente, não são
realizados na fala, tais como a pontuação, as aspas, os parênteses, o espaçamento entre
caracteres etc. A partir daí, deriva-se que a escrita não é uma representação material da fala,
ou seja, não é uma contingência, uma empiricidade, mas opera originária e irredutivelmente
que será explicitado em breve: a iterabilidade, que é a co-implicação entre geral e singular, ou entre condição
(possibilidade) e incondicional (impossibilidade). Ou seja, a indecidibilidade é a impossibilidade de decidir, é o
impossível, o singular, o incondicional, pois não supõe condições prévias que possam regular uma decisão, mas
que, por isso mesmo, exige, injunge uma decisão, que, por sua vez, é sempre uma condição, sempre se por
condições, por possibilidades, participando de uma generalidade. De modo correlato, não indecidibilidade
(incondicional) sem decisão (condição). O próprio ato de pensar o incondicional já é em si uma condição, isto é,
a condição de pensá-lo. O incondicional nunca pode se dar como tal, pois ele precisa de alguma condição para se
dar, para ter efeito. Por isso ele é impossível (e é necessário manter essa impossibilidade); é impossível que ele
se como tal, em sua pureza incondicional. Nesse caso, ele está originariamente dividido, contaminado por
alguma condição, por alguma possibilidade, que é uma decisão. Esta, por sua vez, deve se dar como o rastro da
indecidibilidade (impossível) que a pressupõe. Pois uma decisão plena e idêntica a si não seria verdadeiramente
uma decisão; seria a positivação de uma lei que faria com que todas as futuras decisões nela se baseassem, o que
nada mais seria do que a adoção de uma receita prévia, excluindo a indecidibilidade, a impossibilidade que
paradoxalmente possibilita a decisão enquanto possibilidade do impossível. Pois, para Derrida, uma decisão que
lhe valha o nome deve sempre ser dividida, deslocada de si, mantendo a aporia que a originou e relançando-a
indefinidamente, a fim de que novas decisões efetivas possam acontecer, a fim de que o próprio acontecimento
(o futuro, o porvir) possa acontecer.
71
Com poucas palavras, Derrida, no seguinte trecho, fala da aporia em sua necessária implicação com a
indecidibilidade, além de mencionar a questão da decisão: A aporia de que tanto falo não é, apesar do nome de
empréstimo, uma simples paralisia momentânea diante do impasse. É a prova do indecidível, na qual apenas
uma decisão pode sobrevir. Mas a decisão não põe fim a alguma fase aporética”. Jacques Derrida. Papel-
máquina, p. 350.
72
“Ao não se deixar subsumir simplesmente sob a generalidade da contradição lógica, a différance (processo
de diferenciação) permite realizar um cálculo diferenciante dos modos heterogêneos da conflitualidade ou, se
preferirmos, das contradições”. Jacques Derrida: Posições, p.101.
73
O que se anunciava assim como différance” tinha isto de singular: acolher de uma só vez, mas sem
facilidade dialética, o mesmo e o outro, a economia da analogia – o mesmo apenas diferido, revezado,
transferido e a ruptura de qualquer analogia, a heterologia absoluta”. Jacques Derrida. Papel-máquina, p.
285.
74
Derrida afirma, inclusive, que é no sistema de língua associado à escritura fonético-alfabética que se
produziu a metafísica logocêntrica determinando o sentido do ser como presença”. Jacques Derrida.
Gramatologia, p. 53.
53
no interior da própria fala, como um espaçamento, um rastro, o que implica dizer que a
representação, isto é, o secundário está na origem. Conseqüentemente, não origem: tudo
começa pelo derivado. Assim, a escrita é, para Derrida, um indecidível, pois escapa à
oposição metafísica entre presença (ideal) e ausência (contingente), tornando-se, dessa
maneira, uma não-presença originária e irredutível, isto é, um rastro, um espectro
75
. Essas
reflexões acerca da escrita, de uma certa necessidade ou idealidade da escrita, levam Derrida a
criar termos como arqui-rastro, arquiescrita
76
, que noutros contextos figuram como espectro,
não-presença, suplemento de origem etc.
Para justificar a mútua implicação dos termos différance
77
, arqui-rastro, arquiescrita
etc., e potencializar o entendimento do uso alargado do conceito de escrita proposto por
Derrida, transcrevo aqui um trecho que tomo de empréstimo de Bennington:
A generalização tão célebre e tão desconhecida do termo “escritura” ou “arqui-
escritura” [opto, como alguns tradutores, por “escrita” e “arquiescrita”,
respectivamente], em estreita colaboração com os termos “traço” [ou rastro,
conforme os melhores tradutores], “diferensa” [ou différance, conforme aqueles
75
Derrida também entende o espectro como sobre-vida (continuar vivendo uma vida precária e, ao mesmo
tempo, vida após a morte), o que desorganiza a oposição entre vida (presença ideal) e morte (ausência
contingente), reinscrevendo a morte como condição necessária à vida, e não mais como um acidente empírico
que lhe fosse meramente exterior. Noutras palavras, a morte é condição de possibilidade da vida, logo, sua
condição de impossibilidade, uma vez que a vida, sendo inexoravelmente assombrada e contaminada por esse
fora absoluto (a morte), jamais pode se dar em sua pureza, numa identidade plena tão-somente oposta a uma
morte que lhe sobreviesse empiricamente de fora, como se a morte fosse um fora contingente determinado,
através de um jogo de espelhamento invertido, pelo dentro necessário que seria a vida.
76
Eis a maneira como Derrida concebe a arquiescrita (ou arquiescritura): Arquiescritura cuja Necessidade aqui
queremos indicar e cujo novo conceito queremos desenhar; e que continuamos a denominar escritura somente
porque ela se comunica com o conceito vulgar da escritura. Este, pôde, historicamente, impor-se pela
dissimulação da arquiescritura, pelo desejo de uma fala expelindo seu outro e seu duplo e trabalhando para
reduzir sua diferença. Se persistimos nomeando escritura esta diferença, é porque, no trabalho de repressão
histórica, a escritura era, situacionalmente, destinada a significar o mais temível da diferença. Ela era aquilo
que, mais de perto, ameaçava o desejo da fala viva, daquilo que do dentro e desde seu começo, encetava-a. E a
diferença, nós o experimentaremos progressivamente, não é pensada sem o rastro. (...) Ela é aquilo mesmo que
não se pode reduzir à forma da presença”. Jacques Derrida. Gramatologia, p. 69. Nesta mesma obra Derrida
também define o arqui-rastro: O rastro não é somente a desaparição da origem, ele quer dizer aqui (...) que a
origem não desapareceu sequer, que ela jamais foi reconstituída a não ser por uma não origem, o rastro, que se
torna, assim, a origem da origem. Desde então, para arrancar o conceito de rastro ao esquema clássico que o
faria derivar de uma presença ou de um não rastro originário e que dele faria uma marca empírica, é mais do
que necessário falar de rastro originário ou de arqui-rastro. E, no entanto, sabemos que este conceito destrói
seu nome e que, se tudo começa pelo rastro acima de tudo não há rastro originário”. Ibid., p.75
77
A différance é o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças, do espaçamento, pelo qual os
elementos se remetem uns aos outros. Esse espaçamento é a produção, ao mesmo tempo ativa e passiva (o a da
différance indica essa indecisão relativamente à atividade e à passividade, aquilo que não se deixa ainda ser
comandado e distribuído por essa oposição), dos intervalos sem os quais os termos ‘plenos’ não significariam,
não funcionariam. É também o devir-espaço da cadeia falada que tem sido chamada de ‘temporal’ e ‘linear’;
devir-espaço que, tão somente ele, torna possíveis a escrita e toda correspondência entre a fala e a escrita, toda
passagem de uma à outra”. Jacques Derrida. Posições, p. 33.
54
que, como eu, preferem não traduzi-la] e “texto”, comporta-se com uma clareza e
simplicidade totalmente impressionantes, considerando as enormes dificuldades
que implica. Isolam-se primeiramente os traços que distinguem o conceito
tradicional da escritura, mostra-se depois que esses elementos se aplicam tanto à
fala, no seu conceito tradicional, como à escritura; justifica-se a manutenção do
termo escritura para essa estrutura geral. Em poucas palavras: “escritura” implica
repetição, ausência, risco de perda, morte; mas fala alguma seria possível sem
esses valores; aliás, se “escritura” sempre quis dizer significante, que remete a um
outro significante, e se todo significante remete aos outros significantes, então
“escritura” nomeará propriamente o funcionamento da língua em geral
78
.
Tendo em vista tudo o que foi até aqui apresentado em torno da noção derridiana de
escrita (arquiescrita), podemos seguramente afirmar que ela por comportar em si própria a
indecidibilidade, a contaminação combina repetição e diferença, idealidade e alteridade,
substituição e singularidade
79
, que é aquilo que Derrida chama de iterabilidade.
(...) não incompatibilidade entre a repetição e a novidade do que difere. (...)
uma diferença sempre faz com que a repetição se desvie. Chamo isso de
iterabilidade, o surgimento do outro (itara) na reiteração. O singular sempre
inaugura, ele chega mesmo, de modo imprevisível, como o chegante mesmo, por
meio da repetição. Recentemente me apaixonei pela expressão francesa une fois
78
Geoffrey Bennington. “Derridabase”. In: Jacques Derrida. Jacques Derrida, p. 43.
79
Inclinado a refletir sobre aquilo que na linguagem permanece de singular, de irredutível, Derrida trata
extensamente da singularidade mesma da língua, do idioma, do idiomático, da data, da assinatura, do nome
próprio, mostrando que o singular sempre se a partir da repetição. Tomemos o exemplo do nome próprio:
este, apesar de ser o próprio de uma língua, escapa ao que é próprio à linguagem, pois não se deixa traduzir para
outras línguas, que um nome próprio é um significante que não remete a nenhum conceito que supostamente
existisse de maneira independente (fora da cadeia dos significantes) e assim pudesse operar a passagem
tranqüila de uma língua à outra. Ademais, longe de estancar o jogo diferencial dos significantes, apontando para
um indivíduo concreto fora da linguagem (o que faria a singularidade residir além do rastro), o nome próprio se
repete para além da morte do seu portador. Isso (a morte, o desaparecimento do referente) não é para Derrida
uma contingência, mas é a própria possibilidade do rastro, da linguagem, da ngua. Ora, se não língua sem
nome próprio, e se este é um elemento claramente impossível de ser traduzido (há outros, evidentemente, e a
poesia é o melhor exemplo disso), a tradução não existe sem um princípio de intraduzibilidade a lhe contaminar,
a lhe tornar possível. Sendo assim, a possibilidade plena da tradução é impossível. Para termos uma dimensão do
que Derrida tece a respeito do nome próprio, eis aqui uma citação: “(...) um nome de uma vez substituível e
insubstituível. Ser substituível em sua insubstituibilidade é o que acontece com qualquer singularidade, com
qualquer nome próprio, mesmo e sobretudo quando o que ele nomeia ‘propriamente’ não tem uma relação de
propriedade indivisível para consigo, para alguma ipseidade intacta. Prótese do nome próprio que vem a
significar, a chamar (sem nenhum referente ôntico, sem nada que apareça como tal, sem objeto nem ente
correspondente, sem um sentido que esteja no mundo ou fora do mundo) alguma ‘coisa’ que não é uma coisa e
que não tem nenhuma relação de analogia com o que quer que seja”. Jacques Derrida. Papel-máquina, p.284.
55
pour toutes” [de uma vez por todas]. Ela expressa com bastante economia o
acontecimento singular e irreversível d(o) que acontece uma vez e, portanto,
não se repete mais. Mas, ao mesmo tempo, ela abre para todas as substituições
metonímicas que a levarão para outro lugar. O inédito surge, quer se queira, quer
não, na multiplicidade das repetições. Eis o que suspende a oposição ingênua entre
tradição e renovação, memória e porvir, reforma e revolução. A gica da
iterabilidade arruína de antemão as garantias de tantos discursos, filosofias,
ideologias...
80
Enquanto repetição, a escrita é o elemento do mesmo, da idealidade. Contudo, o mesmo
da escrita, ou do significante, não é o mesmo tal como postulado pela metafísica, que para
esta o mesmo é o idêntico. No caso da escrita, o mesmo não é idêntico a si, não tem
identidade (ou interioridade) plena está aberto à exterioridade –, pois um significante é o
que é em sua relação diferencial com os outros significantes que ele não é
81
. Dessa forma, é
apenas a alteridade não identificável (aquilo que o significante não é) que garante a idealidade
do significante, permitindo que ele se repita como o mesmo
82
. O significante é, portanto, o
rastro do outro, que é igualmente rastro, pois o outro pode se dar a partir do rastro. Assim,
visto que o que a escrita repete não é uma origem, uma presença ou uma essência que lhe
sejam anteriores, que lhe transcendam (ao contrário, é a partir do apagamento do rastro que
são constituídos tais valores metafísicos), o mesmo que nela se repete está assegurado por um
jogo de substituições que marca, nesse mesmo que é repetido, uma alteridade, uma diferença
irredutível, pois nunca se substitui uma presença supostamente existente fora do significante,
fora da escrita ou do rastro.
80
Jacques Derrida. Papel-máquina, pp. 331, 332.
81
Na seguinte citação, Derrida articula, assim como venho fazendo, o significante à escrita: A exterioridade do
significante é a exterioridade da escritura em geral e (...) não signo lingüístico antes da escritura”. J.
Derrida. Gramatologia, p.17.
82
Ora, como o significante não tem identidade plena, que sua identidade é sempre o efeito da relação que ele,
em cada contexto que se repete, mantém com os outros significantes, daí resulta que um contexto nunca pode ser
saturado, determinado, visto que o contexto é também constituído pela cadeia de significantes. Essa abertura
essencial do contexto Derrida chama de disseminação, que difere da polissemia: A atenção dada à polissemia
ou ao politematismo constitui, possivelmente, um progresso relativamente à linearidade de uma escrita ou de
uma leitura monossêmica, ansiosa por se amarrar ao sentido tutelador, ao significado principal do texto, até
mesmo ao seu referente primordial. Entretanto, a polissemia enquanto tal organiza-se no horizonte implícito de
uma retomada unitária do sentido, até mesmo de uma dialética (...) de uma dialética teleológica e totalizante
que deve permitir a um momento dado, por mais distanciado que ele seja, de voltar a reunir a totalidade de um
texto na verdade de seu sentido, constituindo o texto em expressão, em ilustração, e anulando o deslocamento
aberto e produtivo da cadeia textual. A disseminação, ao contrário, por produzir um mero não-finito de
efeitos semânticos, não se deixa reconduzir a uma presença de origem simples (...) nem a uma presença
escatológica. Ela marca uma multiplicidade irredutível e gerativa. O suplemento e a turbulência de uma certa
56
O rastro, onde se imprime a relação ao outro, articula sua possibilidade sobre todo
o campo do ente, que a metafísica determinou como ente-presente a partir do
movimento escondido do rastro. É preciso pensar o rastro antes do ente. Mas o
movimento do rastro é necessariamente ocultado, produz-se como ocultação de si.
Quando o outro anuncia-se como tal, apresenta-se na dissimulação de si. (...) O
campo do ente, antes de ser determinado como campo de presença, estrutura-se
conforme as diversas possibilidades genéticas e estruturais do rastro. A
apresentação do outro como tal, isto é, a dissimulação de seu “como tal”, começou
desde sempre e nenhuma estrutura do ente dela escapa.
83
Como adquirimos a compreensão do que escrita “quer dizer”, retomo, a fim de
desdobrar a questão da incondicionalidade, um elemento contido na última citação arrancada
de Bennington, em que ele afirma que a escrita implica ausência.
84
Ora, se existe ausência, esta não acontece fora da não-presença irredutível e originária
característica da escrita, fora desse rastro espectral, num tempo (nem) presente e (nem)
ausente. Por isso, postular simplesmente uma ausência idêntica a si é aderir à lógica opositiva
pela qual a ausência se opõe à presença, o que resulta em duas problemáticas posições: uma
delas consiste em decidir simplesmente por uma pureza da presença ideal que seria primeira e
que faria da ausência uma derivação contingente; a outra posição, oposta à primeira, reside na
essencialização de uma ausência absoluta (teologia negativa) pela qual se postularia um vazio,
um nada puro e primordial. Portanto, de um lado, a ausência, enquanto contingência, por ser
determinada a partir de condições de possibilidade oferecidas pela presença, não passa de um
ente condicionado; de outro lado, a ausência é incondicional, absoluta, infinita, pois não se
submete a nenhuma condição de possibilidade. Mas neste caso, como a ausência absoluta,
sendo incondicional, não pode se dar a partir de nenhuma condição, de nenhuma possibilidade
– pois, se assim o fosse, ela ocorreria como finitude, como contingência, perdendo sua pureza
infinita e absoluta –, isso faz com que tal ausência infinita não passe de uma negatividade
falta fraturam o limite do texto, interditam sua formalização exaustiva e clausurante ou, ao menos, a taxonomia
saturante de seus temas, de seu significado, de seu querer-dizer”. Jacques Derrida. Posições, p. 51, 52.
83
Jacques Derrida. Gramatologia, p. 57.
84
Se escrita significa rastro, e se ausência significa morte, tomemos uma citação de Derrida para aprimorar nossa
compreensão acerca dessa temática: Desde que rastro, qualquer que seja, ele implica a possibilidade de se
repetir, de sobreviver ao instante e ao sujeito de seu traçado, cuja morte, desaparecimento, mortalidade pelo
menos, ele desse modo atesta. O rastro figura sempre uma morte possível, consignando a morte (...) não
presença sem rastro, nem rastro sem desaparecimento possível da origem do chamado rastro, sem uma
57
concebida por uma operação meramente lógica, uma abstração derivada de uma positividade
empírica, já que neste contexto é a presença que figura como o elemento contingente que deve
ser excluído a fim de que se alcance a almejada negatividade plena e absoluta; esta seria
posta, por inferência retrospectiva, no lugar da origem.
Incidindo sobre a questão da incondicionalidade, mas sem cair no malogro acima
denunciado, Derrida procede por tematizá-la segundo o princípio aporético da iterabilidade,
que mostra a condição do incondicional como impossível. Essa aporia, em que a
incondicionalidade se contamina necessária e originariamente com uma certa condição, torna
a possibilidade do incondicional impossível, tornando o incondicional o próprio impossível.
Dessa forma, Derrida defende uma condição que é, ela mesma, sem condição,
incondicional, uma condição aporética
85
. E é por esse motivo que, em Derrida, a escrita (por
tudo o que ela implica enquanto rastro) pode ser lida como a única possibilidade do
impossível, como o único meio pelo qual uma ausência absoluta, uma alteridade
incondicional (impossível) se inscreve necessariamente (sem ser, com isso, reduzida) num
regime de repetição, de possibilidade. Para tanto, é preciso que esta repetição, isto é, que esta
possibilidade não seja mais uma condição de possibilidade estabelecida de antemão por um
discurso regulador, pois, se isso ocorresse, a alteridade ficaria anulada: se tudo o que acontece
estivesse previsto pelo domínio do mesmo, não haveria acontecimento, nunca o outro
totalmente outro surgiria. Em suma, pelo princípio de iterabilidade, a repetição, sendo
originária, substitui o insubstituível, repete a alteridade radical, aquilo que não pode ser
repetido. Assim, a escrita é a possibilidade sem poder, a condição sem condições, ou seja, a
condição incondicional que anuncia nela mesma o incondicional, pois é apenas na
contaminação – na indecidibilidade de um condicional que é ao mesmo tempo incondicional –
que se a pensar um incondicional, um absoluto, haja vista que pensar uma ausência ou um
absoluto simplesmente como tais, na sua pureza incondicional, é ainda manter-se na oposição
binária pela qual o incondicional se opõe ao condicional. Nesse sentido, é preciso que haja
morte, portanto. Esta, repito, não chega a acontecer [n’ arrive pás à arriver], a me acontecer, chegando-me,
chegando a não me acontecer. Possibilidade do impossível”. Jacques Derrida. Papel-máquina, p. 354.
85
Como a noção de incondicionalidade alude à noção de soberania absoluta e idêntica a si, e como o próprio
Derrida associa o motivo incondicional à soberania, é preciso se precaver de alguns equívocos que uma leitura
apressada dos textos de Derrida poderia gerar. Faz-se necessário expor, em traços sumários, o modo como
Derrida concebe a soberania. O soberano é sempre aquele que reivindica para si a incondicionalidade. Dessa
forma, ele pode, estando fora e antes das condições, criar as condições pelas quais ele submete seus súditos.
Noutras palavras, ao unir soberania (poder absoluto) e incondicionalidade, o soberano se torna indivisível. Ele
precisaria se dividir, assumindo uma condição fraca (force faible) para que a incondicionalidade seja do outro,
do que chega, do evento, do porvir. Nesse caso, não se deve abolir o valor de soberania, inclusive porque isso é
impossível. No entanto, deve-se reivindicar para ela a hospitalidade infinita.
58
uma mínima condição, uma experiência ficcional do talvez
86
, para que o incondicional (o que
não tem condição) aconteça. Pois se o incondicional é o absoluto, o infinito, ele poderia ter
lugar, ele poderia acontecer (já que se ele é sem condições, isto é, sem condições de
possibilidade, ele é impossível) à medida que se inscrevesse num regime de possibilidade.
Mas a possibilidade de o incondicional acontecer é impossível, que ele deixaria de ser
incondicional à medida que ele fosse submetido a condições de possibilidade. Assim, a única
possibilidade de o incondicional acontecer, de o acontecimento acontecer é impossível.
Quando o impossível se faz possível, o acontecimento tem lugar (possibilidade do
impossível). Nisto consiste mesmo, de modo irrefutável, a forma paradoxal do
acontecimento: se um acontecimento é apenas possível, no sentido clássico da
palavra, se ele se inscreve em condições de possibilidade, se outra coisa não faz
senão explicitar, desvelar, revelar, realizar o que é possível, então não é mais
um acontecimento. Para que um acontecimento tenha lugar, para que seja possível,
é preciso que seja, como acontecimento, como invenção, a vinda do impossível.
Eis aí uma pobre evidência, uma evidência que nada mais é do que evidente. É ela
que nunca terá deixado me guiar, entre o possível e o impossível. É ela que me
terá tantas vezes levado a falar de condição de impossibilidade.
87
O incondicional é, portanto, possível como impossível, é o impossível como
condição do possível. Vale ainda assinalar que a possibilidade como impossível é uma
invenção, a invenção do impossível.
A invenção é sempre possível, ela é a invenção do possível (...). Igualmente a
invenção apenas seria conforme seu conceito, o traço dominante de seu conceito,
86
“Ora, a experiência do’ talvez’ seria, de uma vez, a do possível e a do impossível, do possível como
impossível. Se apenas acontece [arrive] o que é possível, portanto antecipável e esperado, isso não faz um
acontecimento. O acontecimento é possível se vindo do impossível. Ele acontece como a vinda do impossível,
ali onde um’ talvez’ nos priva de toda a segurança e deixa o porvir ao porvir” Ibid., p. 258. Nesta mesma
página, Derrida cita, em nota de rodapé, um trecho de seu livro Politiques de l’amitié, onde abordara o
“talvez”: E não categoria mais justa para o porvir do que a do ‘talvez’. Tal pensamento une a amizade, o
porvir e o talvez, para se abrir à vinda do que vem, ou seja, necessariamente sob um regime de um possível,
cuja possibilitação deve prevalecer sobre o impossível. Pois um possível que fosse apenas possível (não
impossível) um possível segura e certamente possível, acessível de antemão, seria um mau [mauvais] possível,
um possível sem porvir, um possível posto de lado, se se pode dizê-lo, confiante da vida. Isso seria um
programa ou uma causalidade, um desenvolvimento, um desdobramento sem acontecimento. A possibilitação
desse possível impossível deve continuar sendo, de uma só vez, tão indecidível e, portanto, tão decisiva quanto o
porvir mesmo”.
87
Jacques Derrida. Papel-máquina, p. 279.
59
na medida em que, paradoxalmente, a invenção não inventa nada, quando nela o
outro não vem e quando nada vem ao outro e do outro. Porque o outro não é
possível. Portanto, seria preciso dizer que a única invenção possível seria a
invenção do impossível. Mas uma invenção do impossível é impossível, diria o
outro. Decerto, mas essa é a única possível: uma invenção deve se anunciar como
invenção do que não parecia possível, sem o que nada mais faz senão explicitar
um programa de possíveis, na economia do mesmo.
88
Pode-se dizer, de outro modo, que o fazer-se possível do impossível é uma ficção. A
possibilidade deve tornar-se uma ficção, as condições de possibilidade devem mostrar-se no
seu estatuto ficcional para que o impossível tenha lugar (e é por isso que não se pode dizer
que tudo é ficção, já que esta é a possibilidade enquanto abertura ao impossível, ao totalmente
outro). A condição de possibilidade do incondicional é, portanto, uma condição de
impossibilidade, pois a impossibilidade é o possível como impossível. Nesse caso, deve-se
pensar num tempo a possibilidade e a impossibilidade da incondicionalidade. Redundando
noutras palavras, se é possível que o outro venha, chegue, aconteça, o outro não acontece. Ou
seja, se o outro é possível, o outro não é possível, visto que o outro, para ser efetivamente
outro, para merecer este nome, deve interromper um regime de possibilidades previstas e
calculadas, que a partir destas se deriva o mesmo. Assim, a possibilidade do outro é
impossível. Nesse sentido, o outro, assim como o acontecimento, é o impossível mesmo.
Nota-se, dessa maneira, que o impossível não é o oposto do possível: “A im-possibilidade não
é, portanto, o simples contrário do possível. Ela parece somente se opor, porém dá-se do
mesmo modo à possibilidade: atravessa-a e deixa nela o rastro do seu rapto”.
89
Não sendo
oposta ao possível, a impossibilidade dá-se a pensar tão somente na aporia manifesta na
própria possibilidade. É somente nessa aporia (nessa contradição, indecidibilidade ou
paradoxo em que uma possibilidade é ao mesmo tempo impossibilidade) que o impossível se
anuncia. Se não existem condições para o acontecimento, sua única condição, sua única
possibilidade é impossível. Dessa forma, o acontecimento participa da indecidibilidade. E
contra aqueles que precipitadamente interpretam que a indecidibilidade suspende a decisão, é
preciso reafirmar o que foi esboçado alhures em nota de rodapé: é a decisão que não suspende
a indecidibilidade:
88
Ibid., p. 277.
89
Ibid., p. 281.
60
O que vale para o acontecimento vale para a decisão e, portanto, para a
responsabilidade: uma decisão que posso tomar, a decisão em meu poder e que
manifesta o passar ao ato ou o desenvolvimento do que é possível para mim, a
atualização do meu possível, uma decisão que não depende senão de mim, seria
ainda uma decisão? Daí o paradoxo sem paradoxo a que tento me entregar: a
decisão responsável deve ser a im-possível possibilidade de uma decisão ‘passiva’,
uma decisão do outro em mim que não me exime de nenhuma liberdade, nem de
nenhuma responsabilidade.
90
Enfim, a condição de possibilidade do outro é uma condição de impossibilidade. Sem
condições, o outro é o incondicional. Ora, se o incondicional é sem condições e se as
condições são sempre pensadas como condições de possibilidade, o incondicional é
impossível. É por esse motivo que seria preciso pensar em condições que não fossem de
possibilidade, mas condições de impossibilidade. Somente estas permitiriam pensar o
incondicional, isto é, o impossível. Assim, as condições de impossibilidade seriam a única
possibilidade do impossível, do incondicional, ou seja, do singular, do outro totalmente outro.
Nos últimos parágrafos, acabei por insinuar um breve esboço de uma certa lógica sem
lógica com a qual Derrida opera intensamente suas reflexões mais recentes, em que ele,
abordando mais especificamente temáticas relativas à ética e à justiça
91
, mostra que os
conceitos utilizados nestas áreas sempre supõem um caráter de incondicionalidade que acaba
por ser apagado em favor da predominância de uma lógica condicional, em que uma decisão
por condições previamente estabelecidas mostra-se alheia à indecidibilidade que a decisão
deveria pressupor. Apesar de não ter o espaço necessário para adentrar propriamente essas
temáticas mais atuais, nas quais Derrida trata da hospitalidade radical, do dom, do perdão
incondicional, da amizade, da responsabilidade, da democracia por vir etc, resolvi assinalar
brevemente uma certa formalização que atravessa tais questões
92
, tentando mostrar que o
90
Ibid., 275, 276.
91
Em didáticas palavras, pode-se resumir a argumentação de Derrida quanto à ética e a justiça da seguinte
maneira: a ética que Derrida reivindica (contrariamente à ética normativa) é o incondicional cujas condições são
políticas; a justiça que ele propõe é o incondicional cujas condições são o direito. Ou seja, não ética sem
política, pois a incondicionalidade da ética depende de certas condições políticas para se dar. Mas pode haver
política sem ética (sem abertura ao outro): é o caso da ética normativa, que apaga o apelo ético ao se aderir tão-
somente a um conjunto de condições políticas normativas. A política, em Derrida, precisa ser cindida pela ética.
A mesma estrutura vale para o direito (condicional) em relação à justiça (incondicional).
92
(...) isso nos obriga a pensar o possível (a possibilidade do perdão, mas também do dom, da hospitalidade
e a lista, por definição, não está fechada, ela é a de todos os incondicionais) como o impossível mesmo. Se o
possível ‘é’ aqui o im-possível, se, como muitas vezes me arrisquei a dizer a respeito de temas diferentes, mas de
maneira portanto relativamente formalizável, a ‘condição de possibilidade’ é uma ‘condição de
61
modo como Derrida as aborda não difere do modo pelo qual ele sempre lidou, desde seus
primeiros textos, com a questão da escrita, bem como dos termos a ela correlatos, pois a
escrita enquanto rastro, não-presença, contaminação originária, iterabilidade e
indecidibilidade se mostra, em virtude justamente de sua solidariedade a esses singulares
significantes, como a única condição do incondicional, como a condição incondicional do
incondicional, como a possibilidade impossível do impossível, como a única possibilidade do
impossível. Enfatizo essa continuidade na obra de Derrida porque muitos leitores afirmam que
seu pensamento divide-se em duas partes; eles consideram que nos seus textos ulteriores
Derrida teria promovido em suas reflexões uma virada política e ética, abandonando, ou até
mesmo contradizendo o que afirmava na época em que suas investigações priorizavam
questões outras, quando a desconstrução se debruçava sobre aspectos filosóficos mais
atinentes ao transcendental, ao epistemológico e ao ontológico. Derrida refuta esse modo de
interpretá-lo:
O que enuncio aqui não representa nenhum ethical turn”, como se chegou a
dizer. Tento apenas, com alguma conseqüência, dar continuidade a um
pensamento há muito tempo engajado nas mesmas aporias (...) Sou mais sensível à
continuidade do que ao que alguns chamam, no exterior, de “political turnou de
“ethical turn” da desconstrução.
93
Enfim, se uma continuidade no pensamento de Derrida, isso se dá em virtude do
atravessamento de todos os seus quase-conceitos pelo princípio de iterabilidade
94
, que denota
a co-implicação aporética, a contaminação originária e indecidível entre singular e geral. Por
definição, o singular é único, irrepetível, irredutível, incondicional, e o geral é a idealidade, a
impossibilidade’, então como se deve re-pensar o pensamento do possível, que nos vem do fundo de nossa
tradição”? Ibid., pp. 264, 265.
93
Ibid., pp. 278; 348. Ademais, os predicados concernentes às análises acerca da escrita reiteram-se em todos os
textos de Derrida, inclusive nos seus textos ulteriores, o que também pode ser averiguado na inscrição constante
do termo espectro. Só para dar disso um exemplo: “A lei da contaminação espectral, a lei impura da pureza, eis
o que é preciso reelaborar incessantemente. (...) A estrutura espectral é que faz a lei aqui, tanto do possível
quanto do impossível, de seu estranho entrelaçamento”. Ibid., pp. 279, 280.
94
Luiz Fernando Medeiros de Carvalho chega a considerar a iterabilidade o “conceito operacional básico” de
Derrida: Derrida é um pensador que propõe o jogo entre concentração e expansão. O seu trabalho começa
com a meditação sobre a estruturalidade do jogo e a história dos nomes do centramento no Ocidente e
desdobra-se na meditação sobre o que acontece de novo na repetição, encenando a dramaturgia da
transformação do traço, e anunciando assim o seu conceito operacional básico: a iterabilidade geradora da
disjunção do traço. O traço ao se inscrever nunca está presente a si, se modifica ao se traçar, é outro no
seu desejo de inscrição (...) com este conceito operacional Derrida critica a reunificação, a tentativa de
delimitação de um centro nomeado obra, texto, livro, identidade presente a si mesma, assumida como ilusão de
sincronia entre intencionalidade e ação”. Luiz Fernando Medeiros de Carvalho. Cenas Derridianas, pp. 30, 31.
62
repetição de um mesmo idêntico, é aquilo que reduz a singularidade (a alteridade, a
heterogeneidade) a um domínio de condições particulares, relativas e contingentes
subsumidas numa condicionalidade universal. A iterabilidade abala essa oposição rigorosa
entre o singular e o geral, evocando e mantendo o momento de contaminação originária em
que ambos não se dissociam totalmente. Assim, dado que uma singularidade incondicional,
absoluta e idêntica a si não pode se dar como tal, não se dando nem mesmo a pensar (pois ela
precisa de certas condições para ter efeito), é necessário que ela se divida e participe de uma
certa idealidade, de uma generalidade. Correlativamente, dado que uma pura generalidade
ideal e idêntica a si não pode se dar como tal (pois uma generalidade totalizante impediria a
mínima percepção de quaisquer diferenciações, impedindo, com isso, a própria distinção entre
o que é geral e o que não o é), é necessário que ela retenha em si mesma a diferença, a
singularidade, a alteridade irredutível. Nota-se, a partir daí, que não há, para Derrida, singular
sem geral nem geral sem singular, o que permite afirmar que toda idealidade, isto é, toda
repetição (geral) é única (singular), pois o único se pela repetição; esta conserva o
único, sendo dele o rastro. Melhor dizendo, através da iterabilidade se repete uma
diferença, pois não nada anterior à repetição que a repetição pudesse repetir como tal, o
que torna a repetição dividida em si mesma, indissociável da singularidade por ela marcada.
Inversamente (e essa inversão é apenas didática), pela iterabilidade, a singularidade não existe
fora de um regime de repetições, o que torna cada singularidade uma repetição e cada
repetição sempre singular. É por isso que a própria iterabilidade pode figurar como um outro
operador textual irredutível, já que ela retém em si os predicados aporéticos que permitem sua
participação sem pertença aos demais operadores, pois, sendo simultaneamente singular
(única) e geral (ideal), isto é, incondicional e condicional (ou irrepetibilidade e repetição), a
iterabilidade em si difere de si, dividindo-se originariamente e participando de uma
generalidade (idealidade), ao mesmo tempo em que, ao participar, mantém sua singularidade
irredutível, furtando-se, assim, à pertença plena. É nesse sentido que cada contexto é único e,
concomitantemente, geral, pois para que um contexto seja o que é ele precisa ser
contextualizado, ou seja, enxertado ou suplementado por outro contexto singular.
Importa observar que não há, para Derrida, diferença substancial entre contexto e texto.
Segundo ele, nada existe fora do texto; não extra-texto. Essa afirmação gerou múltiplas
interpretações equivocadas em torno da desconstrução. A postulação de que nada fora do
texto sem que se saiba o que Derrida entende por texto leva a duas precipitadas
conclusões: 1. a de que Derrida acredita que nada existe fora da linguagem, que texto é,
para a opinião corrente, co-extensivo à linguagem; 2. a de que Derrida é um relativista, já que
63
todos os entes seriam relativos a um só campo denominado texto, que é em si mesmo relativo.
Ao fim e ao cabo, as duas conclusões se equivalem, identificando Derrida a uma tradição que,
pelo menos desde o estruturalismo, considera que tudo é linguagem, que não nada fora
dela, pois, segundo essa concepção, tudo o que se concebe como exterior à linguagem nada
mais é do que seu produto.
Simplificando ao extremo, “não há nada fora do texto” quer dizer: cada coisa existe tão-
somente num ou noutro contexto. Ao que se poderia objetar: neste caso, não seria melhor
dizer que não nada fora do contexto? Resposta derridiana: o contexto é também um texto.
Não para separar rigidamente texto e contexto, pois este funciona como um texto. Ou seja,
se, como comumente se crê, a abertura do texto (o fato de ele não ter em si mesmo um sentido
completo, exigindo, para sua significação, informações e situações “extra-textuais”) é
apaziguada pelo contexto, pela possibilidade de saturação do contexto que é o que
fechamento, completude de sentido ao texto, controlando assim sua polissemia –, para
Derrida, ao contrário, o próprio contexto contém essa cláusula de abertura inerente ao texto,
sendo, como este, insaturável, o que gera um processo indefinido de disseminação, pelo qual
cada elemento contextual em torno de um texto, não podendo ser extra-textual, ou seja,
idêntico a si, já é em si um texto, ou seja, diferente de si, demandando, portanto, o enxerto de
outro texto, e assim simultânea e sucessivamente.
No que tange à necessidade – para o próprio sentido da desconstrução – de desconstruir
a tese de que tudo é linguagem, recorro a uma breve definição de desconstrução elaborada
pelo próprio Derrida:
Je ne peux donc pas expliquer ce que c’est la déconstruction, pour moi, sans
recontextualiser les choses. C’est au moment le structuralisme était dominant
que je me suis engagé dans mes tâches, et avec ce mot-là. C’etait aussi une prise
de position à l’egard du structuralisme, la déconstruction. D’autre part, c’etait au
moment les sciences du langage, la référence à la linguistique, le ‘tout est
langage’ était dominants. C’est là, je parle des annés 1960, que la déconstruction a
commencé à se constituer comme... je ne dirais pas anti-structuraliste mais, en tout
cas, démarquée à l’egard du structuralisme, et contestant cette autorité du langage.
C’est pourquoi je suis toujours à la fois étonné et irrité devant l’assimilation si
fréquente de la déconstruction à comment dire? un ‘omnilinguistisme’, à un
‘panlinguistisme’, un ‘pantextualisme’. La construction commence par le
contraire. J’ai commencé par contester l’autorité de la linguistique et du langage et
64
du logocentrisme. Alors que tout a commencé pour moi, et a continué, par une
contestation de la référence linguistique, de l’autorité du langage, du
‘logocentrisme’ mot que j’ai répété, martelé –, comment se fait-il qu’on accuse
si souvent la déconstruction d’être une pensée pour laquelle il n’y a que du
langage, que du texte, au sens étroit, et pas de realité? C’est un contresens
incorrigible, apparemment.
95
Antes de exibir a noção derridiana de texto (segundo a qual não extra-texto) ação
requerida a todo aquele que pretende comprovar a irredutibilidade que ela guarda em relação
aos postulados que a ela se assemelham
96
–, reflitamos um pouco sobre o modo como se
articula a tese de que tudo é linguagem (ou ficção) aos estudos literários.
Apesar das críticas dirigidas às afirmações de que tudo é linguagem ou ficção, devemos
reconhecer seu valor para os estudos literários. A partir de tais afirmações, acabou-se de vez
com a velha discussão entre análise extrínseca e análise intrínseca do texto literário.
Como se sabe, a teoria literária surge como uma reação ao historicismo que, por sua
vez, aparecera como rechaço romântico à normatização imposta à criação literária desde a
retomada renascentista da Poética aristotélica reinante nos estudos literários do século XIX,
que procuravam determinar e explicar a literatura a partir de critérios alheios a ela, recorrendo
à história, à sociedade, à biografia do autor etc. Faltava à literatura, portanto, um método de
abordagem que, sem retornar ao prescritivismo de outrora, tampouco reduzisse a literatura a
explicações causais externas a ela. É assim que surge, sobretudo com a ajuda da lingüística,
uma ciência destinada a tematizar a literatura de um modo imanente, a partir de seus
elementos próprios, que a literatura, deixando de figurar como mera expressão de uma
nação ou de uma sociedade, passa a ser considerada como um arranjo verbal específico,
dotado de uma coerência interna. Dessa forma, tendo sido determinado o objeto literário, a
teoria literária delineia-se como a disciplina que se afirma como a metalinguagem apropriada
para o estudo dessa linguagem-objeto que é a literatura. Diversas correntes aparecem para
95
In: “Le Monde”, 12 de outubro de 2004. E, para suplementar esta citação, apresento aqui mais uma citação em
que Derrida nitidamente contesta o postulado de não nada fora da linguagem: Il y a pour moi un dehors du
langage, et tout commence là. Je ne l´appelle pas facilement le réel parce que la notion de réalité est surchargée
de préssuposes métaphysiques”. Jaques Derrida. Moscou aller-retour, p. 110.
96
Além dos citados postulados que afirmam não haver nada fora da linguagem, da cultura etc., também
inclusive dentre os que defendem tais postulados quem defenda nada haver fora do texto, o que parece igualá-
los a Derrida. É o caso dos estudos culturais, que ampliam significativamente a noção de texto, considerando
texto qualquer produção cultural que porta significado: um slogan publicitário, uma performance, uma foto, um
filme etc. No entanto, para os estudos culturais, texto se confunde com formação discursiva, o que não é o caso
em Derrida, para quem o texto excede o discurso, abrangendo inclusive o âmbito não puramente discursivo, até
mesmo para além (ou aquém) do humano.
65
cumprir essa posição de teoria literária: o formalismo russo, o new criticism, a escola crítica
de Genebra, a análise estrutural etc.
Sinceramente, não me sinto confortável em escrever esse pequeno manual de teoria
literária que insurgiu no parágrafo anterior. Devo confessar que escrevo tais considerações por
anamnésia, sem me preocupar muito com diferenciações mais sofisticadas. O que
efetivamente me impele a esboçar esse breve histórico sobre teoria literária é o desejo de
situar minimamente a diluição da oposição entre abordagem transcendente e abordagem
imanente das obras literárias. Melhor dizendo, se a teoria literária constitui-se em oposição
às análises extrínsecas, que submetem a literatura a explicações oriundas de campos teóricos
cujos objetos nada têm a ver com o objeto literário pelo imanentismo, isto é, pelo estudo da
literatura a partir de seus próprios elementos constituintes, a diluição da oposição
transcendente / imanente afetará inclusive o valor e a legitimidade da disciplina nomeada
teoria literária.
A postura imanentista tentara postular para a literatura uma singularidade irredutível.
Haveria, portanto, um objeto literário irredutível aos causalismos sociológicos, históricos e
psicológicos. Entretanto, o imanentismo vigorava ainda como uma tendência objetivista e
cientificista que acreditava em uma linguagem inequívoca (a metalinguagem da teoria)
separada da linguagem equívoca inerente à literatura. Mantinha-se, dessa maneira, uma
oposição binária. Com isso, mesmo que o estruturalismo tenha alardeado que tudo é
linguagem, havia ainda, na linguagem, a distinção rígida entre linguagem-objeto e
metalinguagem, o que resulta no comprometimento do estruturalismo com o objetivismo
herdado da metafísica.
Para resolver o problema estruturalista acima denunciado, dissolveu-se, finalmente, a
oposição entre metalinguagem e linguagem-objeto. Passando por cima de muitas
considerações, podemos imaginar que tal dissolução se deu pela seguinte cadeia
argumentativa: se tudo é linguagem (o que equivale a dizer que tudo é cultura), não há
nenhuma verdade que lhe seja exterior; consequentemente, toda verdade é um produto da
linguagem, portanto, uma ficção. Ora, se toda verdade é ficção, e se o nada fora da
linguagem, a instância que, na linguagem, crê-se verdadeira (metalinguagem) em oposição à
instância considerada ficcional (literatura), é também ficcional. Portanto, tudo é ficção.
Enfim, acaba-se definitivamente com a oposição entre abordagem intrínseca e abordagem
extrínseca, o que permite reinterpretar a literatura por vias históricas, sociológicas,
psicológicas etc., que todos esses campos participam de uma comum estrutura discursiva: a
66
ficcionalidade. Isto é, posso recorrer e.g. à história para “explicar” um texto literário, dada a
assunção de que o discurso histórico é ele mesmo também ficcional.
Doravante, a reivindicação da singularidade irredutível da literatura não se mais pela
sua circunscrição enquanto objeto contemplado por uma metalinguagem teórica; ao contrário,
a literatura é apenas pontualmente e acidentalmente positivável, delimitável, determinável,
situável, tornando-se, assim, heterogênea, irredutível a quaisquer conceitos formulados de
antemão. Isso significa que a literatura não possui mais propriedades exclusivas, o que torna
possível encontrá-la” nas mais variadas produções culturais, conforme vimos
anteriormente.
Percebe-se que os estudos literários, desde o surgimento daquilo que se convencionou
chamar pelo nome de teoria literária, constituíram-se pela valorização da imanência como
estratégia para alcançar a singularidade da literatura. Todavia, até o momento em que a teoria
literária configurou-se, nas décadas de 50 e 60, enquanto análise estrutural, a imanência
residia no objeto literário, o que ainda implicava uma linguagem que lhe fosse exterior (e até
mesmo superior), que lhe transcendesse; após o estruturalismo, cumpre-se efetivamente a
teleologia da imanência almejada para a literatura desde o início da teoria literária. Ou seja, a
fim de dar à literatura o estatuto de uma singularidade não mais dominada por uma idealidade
a ela exterior (que anulava o singular), foi preciso diluir a distinção literatura/não-literatura e,
assim, conquistar definitivamente a imanência da literatura, estendendo-a a ponto de fazê-la
figurar como a própria totalidade. Como conseqüência disso, nada existe fora da literatura, o
que gera o efeito inverso àquele desejado enquanto afirmação da singularidade, pois
entroniza-se tão-somente a idealidade metafísica, a generalidade universal, uma generalidade
pura, isto é, supressora de toda e qualquer singularidade e diferença radical, fazendo do
singular uma presença pontual, um conteúdo particular dominado pela forma geral da
presença, um reles exemplo de uma regra predeterminada idealmente.
É preciso, pois, denunciar o caráter ardiloso das premissas implícita ou explicitamente
adotadas pelos estudos literários contemporâneos (certamente, isso não significa que não haja
leituras críticas singulares que excedam a homogeneidade implicada pela imanência
totalizante de seus pressupostos, mas a manutenção de tais pressuposições perpetua uma regra
condicionante da qual se escapa por descuido, porque o mundo mesmo, em sua estrutura
iterável, nunca se deixa cooptar pelas determinações que se lhe impõem
97
). Se tanto na fase
97
La déconstruction a lieu, c’est un événement qui n’attend pas la délibération, la conscience ou l’organisation
du sujet, ni même de la modernité. Ça se déconstruit. Le ça n’est pas ici une chose impersonnelle qu’on
opposerait à quelque subjectivité égologique. C’est en déconstruction (Littré disait ‘se déconstruire... perdre sa
construction’). Et le ‘se’ du se déconstruire’, qui n’est pas la flexivité d’un moi ou d’une conscience, porte
67
anterior ao estruturalismo como na fase a ele posterior privilegiou-se a irredutibilidade da
literatura a partir da imanência, após o estruturalismo um deslocamento, em certa medida
pertinente, se opera: nada mais se dá como exterior à imanência, o que permite pensar a
irredutibilidade da literatura não mais na forma de objeto, como queria o estruturalismo, mas
enquanto singularidades heterogêneas dadas em qualquer ponto dessa imanência. Assim,
nesse plano em que tudo é ficção, ora enfatiza-se o caráter histórico-ficcional, ora o caráter
político-ficcional, ora o caráter ideológico-ficcional etc., o que gera as denominações tais
como pós-estruturalismo, pós-colonialismo, teorias feministas, estudos culturais e assim por
diante. A prometida revelação do ardil que envolve grande parte dos estudos literários
contemporâneos é finalmente escancarada: se concebe o literário em seu estatuto
heterogêneo à custa de sua positivação em manifestações singulares, e à custa de que estas se
subsumam à homogeneidade de uma imanência totalizadora, o que resulta na forma mais
sofisticada e contemporânea da metafísica da presença.
Retornando a Derrida, apresento agora uma citação em que ele esclarece sua noção de
texto:
(...) o conceito de texto ou de contexto que me guia compreende, e não exclui pois,
o mundo, a realidade, a história. Uma vez mais, (pela milésima vez, talvez, mas
quando se aceitará entender isso e por que essa resistência?), tal como o entendo, o
texto não é o livro; não está encerrado num volume encerrado na biblioteca. Não
suspende a referência à história, ao mundo, à realidade, ao ser, principalmente não
suspende a referência ao outro, porque dizer da história, do mundo, da realidade
que surgem sempre numa experiência, logo num movimento de interpretação que
os contextua segundo um feixe de diferenças, e pois de remessa ao outro, é
exatamente recordar que a alteridade (a diferença) é irredutível. A diferença é uma
referência, e reciprocamente. (...) esse conceito de texto ou contexto acolhe a
referência como diferença e inscreve a diferença na presença. (...) Esse conceito de
escrita ou do traço inquieta, aliás, toda lógica das oposições, toda dialética. De-
limita o que limita
98
.
toute l’énigme. (...)Si la déconstruction a lieu partout ça a lieu, il y a quelque chose (et cela ne se limite
donc pas au sens ou au texte, dans le sens courant et livresque de ce dernier mot), il reste à penser ce qui se
passe aujourd’hui, dans notre monde et dans la ‘modernité’, au moment la déconstruction devient un motif,
avec son mot, ses thèmes privilégiés, sa stratégie mobile, etc”. Jacques Derrida. “Lettre à un amis japonais”. In:
http://www.jacquesderrida.com.ar/frances/lettre_ami.htm.
98
Jacques Derrida. Limited Inc., pp. 187, 188.
68
E ainda:
Gostaria de recordar que o conceito de texto que eu proponho não se limita nem à
grafia, nem ao livro, nem mesmo ao discurso, menos ainda à esfera semântica,
representativa, simbólica, ideal ou ideológica. O que eu chamo de “texto” implica
todas as estruturas ditas “reais”, “econômicas”, “históricas”, sócio-institucionais,
em suma, todos os referenciais possíveis. Outro modo de recordar que não
extra-texto. Isso não quer dizer que todos os referenciais estão suspensos, negados
ou encerrados num livro, como se finge ou freqüentemente se tem a ingenuidade
de acreditar e acusar-me. Mas isso quer dizer que todo referencial, toda realidade
tem a estrutura de um traço diferencial e só nos podemos reportar a esse real numa
experiência interpretativa. Esta se ou assume sentido num movimento de
retorno no diferencial
99
.
Como se pode perceber, a noção alargada de texto em Derrida assim como o
alargamento da noção de escrita por ele promovido está intimamente relacionada à idéia de
iterabilidade. É pela iterabilidade, portanto, que se excede o prejuízo ainda reinante naqueles
que acreditam destronar a metafísica por meio da simples inversão de suas oposições binárias,
pois afirmar que tudo é linguagem resulta na homogeneização de um sistema do qual nada
escapa, e no qual todas as diferenças são apenas diferenças relativas, relativas a esse sistema,
o que não difere dos postulados metafísicos. A única diferença é que, para a metafísica como
tal, a linguagem é uma derivação secundária da presença; para aqueles que afirmam que
tudo é linguagem
100
, a presença é derivada, construída pelo domínio fechado da linguagem.
Em nenhum dos dois casos, uma abertura para a alteridade irredutível, que tudo é
reduzido a um único campo. Nesse sentido, o relativismo se confunde com seu par opositivo,
pois os relativistas são assim denominados pela razão de colocarem no lugar do absoluto
aquilo que é, para os dogmáticos, relativo em oposição ao absoluto.
Em Derrida, pela iterabilidade, a asserção de que tudo é texto, apesar de, à primeira
vista, soar a relativismo imanentista metafísico, trai imediatamente tal juízo. Se não nada
fora do texto, é porque todo texto é cada texto, sendo singular à medida que, enquanto geral,
99
Ibid., p. 203.
100
Nessa esteira, é possível listar, como o fiz alhures, toda uma série de proposições do tipo tudo é x” muito
difundida no pensamento contemporâneo: tudo é cultura; tudo é ficção; tudo é narrativa; tudo é literatura; tudo é
história; tudo é ideologia; tudo é política etc.
69
não se reduz a si próprio, mantendo-se aberto à alteridade singular e irredutível que nele se
marca, ou melhor, da qual ele é a marca.
Em regime desconstrutivo, dizer que tudo é texto é o mesmo que dizer: tudo é
iterabilidade. Mas se o todo é a iterabilidade, ele contém uma cláusula de incompletude (falta)
à medida que acolhe o que lhe é radicalmente heterogêneo: a singularidade irredutível
(excesso). Deslizando alternadamente entre a falta e o excesso, o todo não coincide consigo,
não sendo, de todo, todo.
A iterabilidade, enfim, é a desconstrução em sua singular (geral) generalidade
(singularidade), sendo assim o próprio princípio desconstrutivo. Foi através deste quase-
conceito derridiano que se pôde tomar precauções contra as posições e inversões metafísicas
amplamente denunciadas ao longo desta longa e acidentada descrição da desconstrução, o que
permitiu o acesso a uma renovada concepção de singularidade (e, por tabela, de generalidade):
uma singularidade que não se opõe ao geral, pois é indissociável dele, mas que também não se
reduz a ele, pois lhe é heterogênea.
Em se tratando de desconstrução, não existe singularidade em si. A singularidade
ocorre por meio de uma generalidade (o incondicional ocorre por meio de condições).
Correlativamente, não existe se não se quiser reproduzir a metafísica generalidade em si.
Se existisse, as condições, ao invés de serem meio de ocorrência do incondicional, seriam
particularidades derivadas de uma generalidade pura e idêntica a si. Pela via desconstrutora,
as condições pelas quais o incondicional se não podem ser particulares; devem ser elas
mesmas gerais, mas de uma generalidade que, acolhendo a singularidade sem reduzi-la,
manifesta-a, o que faz o geral ser sempre repetido enquanto diferença singular, nunca como
idêntico.
Pelo viés desconstrutor acerca da singularidade, esta jamais pode ocorrer como tal,
que sua ocorrência implicaria sua anulação enquanto tal; sua ocorrência faria dela (do que
deveria ser ela) mera particularidade derivada de uma generalidade prévia e idêntica a si. Mas
é por não poder ocorrer que a singularidade deve ocorrer; caso contrário, ela seria uma
instância negativa cuja absoluta transcendência nem mesmo se daria a pensar. Ora, como a
singularidade deve ocorrer? Noutras palavras, como uma singularidade pode simultaneamente
ocorrer e manter-se em seu estatuto singular sem que sua ocorrência a anule ao torná-la um
ente particular? Não podendo se manifestar com tal, ela deve, através da iterabilidade, se
dividir e se manifestar como algo; por exemplo, como literatura.
70
Uma singularidade absoluta, absolutamente pura, se houvesse uma, nem mesmo
apareceria, ou pelo menos não estaria disponível para a leitura. Para tornar-se
legível é preciso ser dividida, participar e pertencer. Então, ela é dividida e toma
sua parte no gênero, no tipo, no contexto, no significado, na generalidade
conceitual do significado, etc. Perde-se a si própria para oferecer-se. A
singularidade nunca ocorre uma única vez [ponctuelle], nunca está fechada como
um ponto ou um punho cerrado [poing]. É um traço [trait], um traço diferencial e
diferente de si próprio: diferente consigo mesmo. A singularidade difere de si, e é
diferida [se diffère] de modo a ser o que é e para ser repetida em sua própria
singularidade. Não haveria leitura da obra e tampouco nenhuma escrita, para
começar sem essa iterabilidade. (...) E qualquer obra é singular no sentido que
fala singularmente tanto da singularidade quanto da generalidade. Da iterabilidade
e da lei da iterabilidade
101
.
Ora, mas se a operação desconstrutora consiste justamente em mostrar que todo texto
assim como o texto que é o próprio mundo é secretamente trabalhado pelo princípio da
iterabilidade, de que forma a iterabilidade mesma daria a singularidade irredutível dos textos
literários face aos não-literários? Igualmente, se tanto a filosofia quanto a literatura são
constituídas pela iterabilidade, de que maneira esta poderia ser reivindicada como o meio pelo
qual a literatura adquire uma singularidade irredutível à filosofia?
Para resolver o problema acima mencionado, é preciso, antes de tudo, eliminar qualquer
tentação que consistisse em procurar alguma propriedade intrínseca no texto literário que o
faria irredutível aos textos não-literários: ninguna frase es literaria en mesma, ni desvela
su ‘literalidad’ en el transcurso de un análisis interno; no se convierte en literaria, no
adquiere su función literaria sino según el contexto y la convención, es decir, desde poderes
no literarios
102
. A singularidade irredutível da literatura não reside em propriedades
exclusivas que constituiriam a essência do literário. Não há, na verdade, uma essência
atemporal da literatura; para que se atenha ao que lhe é singular, é necessário que ela seja
pensada, ao contrário, como um objeto convencionado, ou seja, como uma instituição. E
tomá-la enquanto instituição significa concebê-la como cultural e historicamente situada. Mas
neste caso a literatura não seria reduzida às condições institucionais que externamente a
delimitam?
101
Jacques Derrida. “This strange institution called literature”. In: Derek Attridge. Acts of literature, p. 68.
102
Jacques Derrida. Dar la muerte, pp. 146, 147.
71
Tem-se, por conseguinte, o seguinte dilema: por um lado, se a irredutibilidade da
literatura reside nalguma essência atemporal que lhe seja própria e exclusiva, a literatura
acaba por ser identificada ao modelo metafísico da idealidade; por outro lado, se a literatura
se resume ao conjunto de algumas condições contingentes, ela acaba por recair no relativismo,
que é igualmente metafísico, porquanto é implicitamente regido por uma condicionalidade
totalizante. Em nenhum dos dois casos, portanto, a irredutibilidade tem lugar.
Novamente, é a iterabilidade que oferece uma resposta satisfatória ao dilema colocado.
É através dela que se deve pensar a própria condição institucional que especificidade à
literatura. Pela iterabilidade, a literatura participa de outras instâncias sem a elas pertencer,
haja vista que em Derrida a literatura, embora seja uma instituição, reivindica para sua
própria definição aquilo que escapa a qualquer definição
103
, definindo-se como uma “estranha
instituição”, pois, apesar de ser, enquanto instituição, condicionada e constituída
historicamente, excede todo princípio regulador institucional, toda condição ou delimitação
discursiva, contextual e histórica, mostrando-se, assim, essencialmente ambígua, situando-se
no espaço insituável da não-presença, da contaminação originária, da escrita, do espectro, do
rastro, do espaçamento, da différance, ou seja, oferecendo-se como um indecidível
104
.
103
Uma definição é sempre uma resposta à questão “o que é...?”, questão essa que funda a filosofia enquanto
metafísica da presença. Para Derrida, tanto a escrita quanto a literatura e a poesia furtam-se à questão “o que
é..?”. Em se tratando de poesia, Derrida propôs-se a defini-la no ensaio Che cos’è la poesia?, sugerindo a
impossibilidade de sua definição: Lembre-se da questão: ‘O que é...?’ (ti estí, was ist..., istoria, episteme,
philosophia). ‘O que é...?’ chora o desaparecimento do poema uma outra catástrofe. Anunciando o que é tal
como é, uma questão saúda o nascimento da prosa”. Jacques Derrida. “Che cos’è la poesia?”. In: Inimigo
Rumor, 10. RJ : 7Letras, 2001, p. 116. No caso da escrita, podemos encontrar sua elaboração enquanto aquilo
que escapa à presença, à questão “o que é...?” no seguinte trecho, em que a presença é representada pela figura
do pai: “O que é o pai?, indagávamos mais acima. O pai é (o filho perdido). A escritura, o filho perdido, não
responde a essa questão, ela (se) escreve: (que) o pai não está, ou seja, não está presente. Quando ela não é
mais uma fala despossuída do pai, ela suspende a questão o que é, que é sempre, tautologicamente, a questão ‘o
que é o pai?’ e a resposta o pai é o que é’. Então, produz-se uma linha de frente que não se deixa mais pensar
na oposição corrente do pai e do filho, da fala e da escritura”. Jacques Derrida. A farmácia de Platão, p. 98.
Ademais, no texto La double séance, Derrida discorre sobre a relação da literatura com a questão “o que é?”
(cito aqui um trecho deste texto, apesar de não poder refazer seu contexto a fim de permitir sua adequada
compreensão): “La double séance dont je n’aurai jamais le front ou l’aplomb de dire qu’elle est réservée à la
question qu’est-ce que la littérature, cette question devant désormais être reçue comme une citation déjà se
laisserait solliciter la place du qu’est-ce que, tout autant que l’autorité présumée par laquelle on soumet quoi
que ce soi, singulièrement la littérature, à la forme de son inquisition, cette double séance dont je n’aurai jamais
l’innocence militante d’annoncer qu’elle est concernée par la question qu’est-ce que la littérature, trouvera son
coin ENTRE la littérature et la vérité, entre la littérature et ce qu’il faut répondre à la question qu’est-ce que?”.
Jacques Derrida. La dissemination., p. 203.
104
“(...) o nome da literatura, este sim dotado da força do indecidível derridiano. Tal como seu correlato,
poesia, literatura participa da natureza dos elementos instáveis, incapazes de se enquadrar no jogo marcado
das oposições metafísicas. Poesia e literatura podem ser consignados no vocábulo grego poiésis, relacionando
este a sua função fictícia, a mímesis. Todos esses termos entram numa série por definição aberta. Nem toda
palavra pode se converter em indecidível, faz-se preciso ser dotada de uma força deslocadora, tal como detêm
khóra, phármakon, trace, hymen, schibboleth, recolhidos nos textos de filósofos e escritores e abrindo para uma
alteridade impossível de controlar por discurso regulador”. Evando Nascimento. “Introdução: Derrida e a
cultura”. In: Em torno de Jacques Derrida. Paula Glenadel e Evando Nascimento (orgs.), p.11.
72
Enquanto instituição, a literatura não apenas institui a ficção, mas é, ela mesma, uma
instituição ficcional, pois sua condição é a de se furtar a qualquer condição à medida que
pressupõe o direito incondicional de dizer tudo:
The space of literature is not only that of an instituted fiction but also a fictive
institution which in principle allows one to say everything. To say everything is no
doubt to gather, by translating, all figures into one another, to totalize by
formalizing, but to say everything is also to break out of [franchir] prohibitions.
To affranchise oneself [s’affranchir] in every field where law can lay down the
law. It therefore allows one to think the essence of the law in the experience of this
‘everything to say’. It is an institution which tends to overflow the institution.
105
Por ter o direito de dizer tudo, a literatura tem, por isso mesmo, o direito de não dizer tudo.
Mas como a literatura jamais exclui o dizer, pois ela não existe sem ele, a sua possibilidade de
não dizer tudo se somente no dizer, o que faz Derrida inferir que a literatura
essencialmente guarda um segredo à medida que o ostenta:
A instituição da literatura reconhece, por princípio ou por essência, o direito de
dizer tudo ou de não dizer dizendo, portanto o direito ao segredo ostentado. (...) A
literatura guarda um segredo que, de alguma forma, não existe. Por detrás de um
romance ou de um poema, por detrás do que, com efeito, é a riqueza de um sentido
a se interpretar, não há sentido secreto a ser procurado. O segredo de um
personagem, por exemplo, não existe, não tendo nenhuma densidade fora do
fenômeno literário. Tudo é secreto na literatura e não há segredo oculto por detrás
dela, eis o segredo dessa estranha instituição a respeito da qual e na qual não paro
de (me) debater...
106
Ao versar sobre a literatura, sinalizando-a como uma instituição indecidível, acabei por
mostrar que a iterabilidade indecidível inerente à instituição literária reside na seguinte aporia:
enquanto instituição, a literatura pressupõe condições, mas, por exceder os limites, as
105
Jacques Derrida. “This strange institution called literature: interview”. In: Derek Attridge (org.). Jacques
Derrida: acts of literature, p. 36.
106
Jacques Derrida. Papel-máquina, p. 358.
73
condições inerentes a qualquer instituição, a literatura pressupõe também, como sua mais
própria condição, uma incondicionalidade.
Isso pode ser verificado de maneira muito simples se refletirmos sobre a literatura no
seu direito de dizer tudo, pois se a condição da literatura é a de tudo dizer, ou melhor, se a
literatura, enquanto instituição, tem por condição dizer tudo, sua condição, isto é, sua
possibilidade é a de fazer o impossível, que é impossível dizer tudo. Assim, a condição da
literatura é a condição do incondicional, daquilo que não tem condições, que a
possibilidade de dizer tudo pela qual a literatura, ao exercer isto que lhe é possível, mostra,
no dizer, que não pode dizer tudo, ostentando a impossibilidade de sua possibilidade –
pressupõe uma incondicionalidade.
No entanto, se a irredutibilidade da literatura reside na aporia de ela ser uma instituição
incondicional, o que a difere da democracia, que compartilha com a literatura a mesma aporia,
ou seja, o direito incondicional de dizer tudo publicamente?
Um trecho de A universidade sem condição pode ser útil para a compreensão dessa
relação entre literatura e democracia. Neste livro, a democracia (que deve ser sempre, para
Derrida, democracia por vir
107
) se apresenta como a herança da era das Luzes que deve ser
mantida no horizonte para a constituição do que Derrida defende como as novas
Humanidades. Estas seriam constitutivas daquilo que ele chama de Universidade sem
condição, que é assim definida:
(...) a Universidade sem condição: o direito de princípio de dizer tudo, ainda que a
título de ficção e de experimentação do saber, e o direito de dizê-lo publicamente,
de publicá-lo. Essa referência ao espaço público permanecerá como o elo de
filiação das novas Humanidades à era das Luzes. Isso distingue a instituição
universitária de outras instituições fundadas no direito ou no dever de dizer tudo.
Por exemplo, a confissão religiosa. E mesmo a “livre associação” em situação
psicanalítica. Mas é igualmente isso que liga fundamentalmente a Universidade, e
por excelência as Humanidades, ao que se chama literatura, no sentido europeu e
107
“(...) quando eu falo de uma democracia por vir, não me refiro a uma democracia futura, a uma nova
organização de Estados-nação (ainda que isto possa ser desejável), mas quero dizer, com este por vir, a
promessa de uma autêntica democracia que nunca se concretiza no que chamamos democracia. (...) esta
democracia com a qual sonhamos está ligada conceitualmente a uma promessa. A idéia de uma promessa está
inscrita na idéia de democracia: igualdade, liberdade, liberdade de expressão, liberdade de imprensa todas
estas coisas estão inscritas como promessas na democracia. Democracia é uma promessa”. “Política e amizade:
uma discussão com Jacques Derrida”. In: Paulo César Duque-Estrada (org.). Desconstrução e ética: ecos de
Jacques Derrida, p. 244.
74
moderno do termo, como direito de tudo dizer publicamente, até mesmo de
guardar um segredo, ainda que sob a forma da ficção.
108
Diante disso, qual é, afinal, a singularidade da literatura frente à democracia?
Certamente, Derrida as considera indissociáveis, como se pode notar a seguir:
A literatura é uma invenção moderna, inscreve-se em convenções e instituições
que, retendo apenas esse traço, asseguram-lhe em princípio o direito a dizer tudo.
A literatura liga, assim, seu destino a uma determinada não-censura, ao espaço da
liberdade democrática (liberdade de imprensa, liberdade de opinião etc.). Não
democracia sem literatura, não literatura sem democracia. (...) A possibilidade
da literatura, a autorização que uma sociedade lhe dá, o fato de levantar suspeitas
ou terror a seu respeito, tudo isso vai junto – politicamente – com o direito
ilimitado de fazer todas as perguntas, de suspeitar de todos os dogmatismos, de
analisar todas as pressuposições, quer as da ética, quer as da política de
responsabilidade.
109
Entretanto, embora sejam inseparáveis, daí não se segue que a literatura dependa
totalmente da democracia:
A instituição da literatura no ocidente, em sua forma relativamente moderna, está
ligada à autorização para se dizer tudo, e, sem dúvida também, à vinda de uma
idéia moderna de democracia. Não que ela dependa de uma democracia no seu
lugar, mas parece-me inseparável daquilo que causa uma democracia, no sentido
mais amplo (e, indubitavelmente, ele mesmo por vir) de democracia
110
.
Dada a afirmação de Derrida acerca da não-dependência da literatura à democracia,
sugerindo que elas sejam, embora inseparáveis, heterogêneas, sinto-me autorizado a reativar a
pergunta que ficara suspensa: “qual é, afinal, a singularidade da literatura frente à
democracia?”. Pois é fácil diferenciá-las da confissão religiosa e da clínica psicanalítica, as
quais, apesar de serem instituições caracterizadas pelo direito de dizer tudo, este dizer tudo se
108
J. Derrida. A universidade sem condição, pp. 18, 19.
109
Jacques Derrida. Paixões, pp. 47, 48.
110
Jacques Derrida. “This strange institution called literature: interview”. In: Derek Attridge (org.). Jacques
Derrida: acts of literature, p. 37. (tradução de Marileide Esqueda, mimeo).
75
sob a condição do privado, assegurando aquilo que tradicionalmente se concebe como
segredo. Ora, mas talvez esteja aí, no segredo, o acontecimento singular da literatura: mesmo
sendo o direito de dizer tudo publicamente (o que a difere da confissão religiosa e da clínica
psicanalítica ao mesmo tempo em que a identifica à democracia), a literatura vale-se do
“publicamente” como cifra do segredo (o que a difere da democracia e a reenvia à confissão e
à clínica). Enfim, ao mesmo tempo em que compartilha e se furta a todas essas instâncias, a
literatura acaba por se situar num espaço insituável, onde reside sua simultânea participação e
irredutibilidade a quaisquer instâncias. Ou seja, a literatura não se separa rigorosamente de
nenhuma instância nem se confunde com nenhuma delas. A literatura depende da democracia,
do contexto histórico, político e social, mas não se subsume a nada disso ou seja, não
depende de nada disso.
Apenas no tocante à conexão entre literatura e segredo, vale agora exibir argumentos
retirados do recentemente aqui citado Paixões, um dos escritos de Derrida em que ele se
propõe a definir o literário pela via do segredo. Em Paixões, é possível verificar que Derrida,
ao situar a paixão, confidenciando sua paixão paradoxal pela literatura por aquilo que,
inexoravelmente dela, não se reduz a nada que se possa positivar dela –, consistência à
afirmação, contida no parágrafo anterior, de que a singularidade da literatura é indissociável
do segredo, o que permite que se aufira o modo como tem lugar, no pensamento derridiano, o
acontecimento irredutivelmente singular do literário:
Talvez eu apenas quisesse confiar ou confirmar meu gosto (provavelmente
incondicional) pela literatura, mais precisamente, pela escritura literária. Não que
eu ame a literatura em geral nem que a prefira ao que quer que seja, como pensam
muitas vezes aqueles que não discernem por fim nem uma nem outra com relação
à filosofia. Não que eu queira reduzir tudo a ela, e menos ainda a filosofia. (...)
Entretanto, se, sem amar a literatura em geral e por ela mesma, amo alguma coisa
nela que não se reduz de modo algum a uma qualidade estética, a uma fonte de
fruição formal, isso seria em lugar do segredo. Em lugar de um segredo absoluto.
estaria a paixão. Não paixão sem segredo, este segredo, mas não segredo
sem paixão. Em lugar do segredo: aí, entretanto, onde tudo está dito e o resto nada
mais é senão o resto, nem mesmo literatura
111
.
111
J. Derrida. Paixões, pp. 46, 47.
76
Voltando à cadeia, brevemente interrompida, referente ao liame do literário com o
segredo, e deste com o público e o privado, bem como com algumas das instituições
constituintes do mundo ocidental, passemos finalmente às passagens de Paixões que a
desenvolvem:
(...) o estar aí do segredo não concerne mais ao privado do que ao público. Não é
uma interioridade privada que seria preciso desvendar, confessar, declarar, isto é,
pela qual seria preciso responder ao prestar contas e tematizar às claras. (...) esse
segredo não é fenomenalizável. Nem fenomenal nem numenal. Não mais que a
religião, estejamos certo disso, a filosofia, a moral, a política ou o direito não
podem aceitar o respeito incondicional a esse segredo. Essas instâncias são
constituídas como instâncias próprias do pedido de contas, isto é, de respostas, de
responsabilidades assumidas. É provável que admitam às vezes segredos
condicionais (o segredo da confissão, o segredo profissional, o segredo militar, o
segredo de fabricação, o segredo de Estado). Mas o direito ao segredo, em todos
esses casos, é um direito condicional. Pois neles o segredo é compartilhável e
limitado pelas condições dadas. (...) Em todo lugar onde são requeridas uma
resposta e uma responsabilidade, o direito ao segredo torna-se condicional. Não há
segredo, apenas problema para esses saberes que são, nesse caso, não apenas a
filosofia, a ciência e a técnica, mas também a religião, a moral, a política e o
direito
112
.
Poucas páginas adiante, logo após se ater na elaboração da idéia de que a literatura é o
direito de dizer tudo, Derrida deixa vislumbrar que a relação do segredo com a literatura,
diferentemente da relação do segredo com outras instituições, reside no fato de na literatura
não haver a exigência condicional da resposta, da responsabilidade:
Mas essa autorização para dizer tudo constitui, de modo paradoxal, o autor em
autor não-responsável perante seja quem for, nem mesmo perante si, pelo que
dizem e fazem, por exemplo, as pessoas ou os personagens de suas obras,
portanto, pelo que se admite que ele próprio tenha escrito. Essa autorização para
dizer tudo (que vai junto, entretanto, com a democracia como hiper-
112
Ibid. pp. 42, 43.
77
responsabilização aparente do “sujeito”) reconhece um direito à não-resposta
absoluta, onde não poderia ser o caso de responder, de poder ou de dever
responder. Essa não-resposta é mais originária e mais secreta do que as
modalidades do poder e do dever, pois no fundo é heterogênea a elas. (...) na
literatura, no segredo exemplar da literatura, uma chance de dizer tudo sem tocar
no segredo
113
.
Retomando alguns argumentos inscritos pouco e articulando-os às últimas citações
que versaram sobre a implicação entre literatura e segredo –, pode-se dizer que a democracia,
em seu direito de dizer tudo, diferencia-se da confissão religiosa e da clínica psicanalítica pelo
fato de que, ao contrário destas duas últimas, é o direito de dizer tudo publicamente, e não em
segredo. A literatura, por sua vez, associa-se à democracia por seu direito de tudo dizer
publicamente. No entanto, apesar de literatura e democracia partilharem os mesmos
predicados, elas não se confundem
114
. Nesse caso, a literatura se distancia da democracia
naquilo que ela (a literatura) partilha com a confissão e a clínica, isto é, o segredo, e se
distancia destas instâncias do segredo à medida que transpõe a incondicionalidade da
democracia ao segredo, fazendo que este não mais seja, como no caso da confissão e da
clínica, condicionado à esfera do privado. Noutras palavras, pode-se afirmar, no dado
contexto, que a irredutibilidade da instituição literária estaria nesse deslocamento entre as
citadas instituições (por um lado, a democracia; por outro, a confissão e a clínica), pelo qual o
segredo (condicional) inerente às duas últimas é reinscrito no direito (democrático) de dizer
tudo publicamente (direito de dizer tudo, isto é, condição do incondicional) o que faz a
literatura constituir-se como um segredo ostentado, como o direito público e democrático ao
113
Ibid., pp. 48, 49.
114
Por vezes, ao ler Derrida, tem-se a impressão de que elas se confundem, ou seja, que elas são apenas
indissociáveis, e não simultaneamente heterogêneas. Mas como pode haver equivalência entre elas, ainda mais
no pensamento de alguém tão atento às diferenças irredutíveis como o é Derrida? A única saída para tal impasse
é pensar que literatura e democracia se confundem, são, por assim dizer, sinônimas, quanto se tem em
conta aquilo que assinalei poucas páginas: para Derrida, a democracia deve ser pensada como democracia por
vir, já que esta não se confunde com nenhuma democracia instituída; portanto, não haveria equivalência
homogeneizante com a literatura, pois, como já vimos em nota precedente, uma democracia por vir existe em
estado de promessa, não havendo, por isso, meios de comparação para que se proceda à efetivação de um sistema
de equivalências, o que, num gesto, afirma e frustra a sinonímia entre democracia e literatura. Cito o trecho
que me animou a erigir as reflexões que acabo de apresentar: uma condição hiperbólica da democracia
que parece contradizer um certo conceito determinado e historicamente limitado da mencionada democracia,
aquele que a liga ao conceito de sujeito calculável, contável, imputável, responsável e devendo responde,
devendodizer a verdade, devendo testemunhar segundo a fé jurada (‘toda a verdade, nada além da verdade’),
perante a lei, devendo desvendar o segredo, exceto no caso de algumas situações determináveis e
regulamentadas pela lei (confissão, segredo profissional do médico, do psicanalista ou do advogado, segredo da
Defesa nacional ou segredo de Estado em geral, segredo de fabricação etc.). Essa contradição indica também a
78
segredo, a um segredo que, não mais tendo seu estatuto ontológico definido pelo privado,
adquire incondicionalidade.
A importância de pensar a singularidade da literatura pelo viés do segredo reside no
fato de que Derrida, insistindo na necessidade de desconstruir a oposição público / privado,
reivindica para o segredo que é comumente concebido como concernente à esfera privada
o estatuto de singularidade. Dessa forma, a relação passa a se estabelecer, à guisa de
iterabilidade, entre o público (geral) e o singular, o que gera a aporia de uma relação sem
relação e sem oposição; ambos são indissociáveis, porém heterogêneos. uma dimensão do
segredo irredutível ao blico, mas que não se estrutura pelo par opositivo público / privado.
Aliás, é por isso que Derrida enfatiza a relação imbricada entre democracia que é
inextricavelmente da ordem do público e literatura: para questionar o histórico
confinamento da literatura ao reino do doméstico ou do privado. E se pela associação
democracia / literatura a democracia ajuda a retirar a literatura da interioridade privada, a
literatura, correlativamente, ajuda a pensar a idéia de uma democracia por vir, denunciando a
concepção de democracia que tende a excluir o segredo à medida que o circunscreve ao
privado, e permitindo, com isso, que se instaure no espaço público democrático a dimensão
radicalmente heterogênea de um segredo que, sem se confundir com o privado, não se opõe
nem se reduz ao público. Isso se porque a literatura, ao invés de expressar a interioridade
da vida privada, questiona, de maneira performativa, a oposição entre o público e o privado,
tornado-a indecidível.
Apresento a seguir uma extensa colagem de citações – extraídas de um texto cujo
contexto descontextualizado e aqui re-contextualizado é o de uma resposta de Derrida a
provocações de Richard Rorty – das quais o parágrafo anterior é, por assim dizer, a paráfrase:
(...) no puedo aceptar la distinción público/privado de la manera en que [Rorty] la
usa en relación con mi obra. Esta distinción tiene una larga historia, cuya
genealogía no es muy bien conocida, pero si he tratado de apartar una dimensión
de la experiencia ya sea que lo llame “singularidad”, lo “secreto” o lo que sea
de la esfera pública o política, y he de volver a esto, no la llamaría privada. En
otras palabras, para lo privado no se define por lo singular (no digo personal,
porque encuentro a esta noción un tanto confusa) o lo secreto. En tanto trato de
tematizar una dimensión de lo secreto que es absolutamente irreductible a lo
tarefa (tarefa do pensamento, tarefa teórico-prática também) para toda democracia vindoura. J. Derrida.
Paixões, pp. 48, 49.
79
público, también me resisto a la aplicación de la distinción público/privado a esta
dimensión. (...) Lo secreto es lo irreductible al terreno de lo público a pesar de
que no lo llamo privado e irreductible a la publicidad y a la politización, pero al
mismo tiempo, este secreto está en la base de lo que puede permanecer y
permanece abierto del terreno de lo público y del dominio de la política. Es en la
base de lo secreto que puedo retomar la cuestión de la democracia, porque hay una
concepción de la política y de la democracia como apertura -donde todos son
iguales y donde el espacio público está abierto a todos- que tiende a negar, a
disolver o prohibir el secreto; en todo caso, tiende a limitar el derecho a lo secreto
al dominio de lo privado, estableciendo así una cultura de la privacidad (creo que
ésta es la tendencia hegemónica y dominante en la historia de la política en
Occidente). Es éste un asunto muy serio, y es contra esta interpretación de la
democracia que he intentado pensar una experiencia de lo secreto y de la
singularidad sobre la cual el dominio de lo público no tiene ningún derecho ni
poder. Incluso si se tomara el ejemplo del más triunfalista de los totalitarismos,
creo que lo secreto permanece inaccesible y heterogéneo al dominio de lo público.
Y esta heterogeneidad no significa despolitización, es más bien la condición de la
politización: es el modo de introducir la pregunta por lo político, por la historia y
la genealogía de este concepto, con sus consecuencias más concretas.
Dando continuidade à colagem de citações, eis a parte em que a desconstrução da
oposição público / privado é diretamente abordada a partir da literatura:
Para mí, los textos que son aparentemente más literarios y más atados al fenómeno
del lenguaje natural, como Glas o La tarjeta postal, no son evidencia de un retiro
hacia lo privado, son problematizaciones performativas de la distinción
público/privado. Hay una cantidad de ejemplos: de esta manera, la cuestión de la
familia en Hegel discutida en Glas, de la relación de la familia con la sociedad
civil y el estado, puede verse como una elaboración performativa de lo privado en
un plano teórico, filosófico y político; no es una retirada a la vida privada. En La
tarjeta postal, la verdadera estructura del texto es aquella donde la distinción entre
lo público y lo privado es claramente indecidible. Y esta indecidibilidad plantea
problemas filosóficos a la filosofía y problemas políticos; y cuando se habla de
destino y de la irreductible indeterminación del destino, no estamos simplemente
80
dentro de la literatura y dentro de lo privado, suponiendo por el momento que se
pueda diferenciar entre ambos. (...) La literatura me interesa, suponiendo que, a mi
manera, la practico o la estudio en los demás, precisamente como algo que es
completamente opuesto a la expresión de la vida privada. La literatura es una
institución pública de reciente invención, con una historia breve,
comparativamente, o gobernada por todo tipo de convenciones vinculadas a la
evolución de la ley, lo que permite, en principio, tener algo para decir. Por lo tanto,
lo que define a la literatura como tal, dentro de una cierta historia europea, está
profundamente conectado con una revolución en la ley y la política: la
autorización por principio de que algo puede decirse públicamente. (...) no soy
capaz de separar la invención de la literatura la historia de la literatura, de la
historia de la democracia. Con el pretexto de la ficción, la literatura debe ser capaz
de decir algo; en otras palabras, es inseparable de los derechos humanos, de la
libertad de expresión, etc. Se podría, si se dispusiera de tiempo, analizar la historia
de este derecho de que la literatura tiene algo para decir y de los varios límites que
se le han impuesto. Es obvio que si la democracia aún está por venir, este derecho
a decir algo, incluso en literatura, no está concretamente efectivizado o realizado.
En todo caso, la literatura es en principio el derecho a decir algo, y es para gran
beneficio de la literatura que sea una operación a la vez política, democrática y
filosófica, en la medida en que la literatura permite formular preguntas que
frecuentemente se reprimen en un contexto filosófico. (...) Es una gran suerte que
está atada a la aventura histórica de la democracia, claramente europea, y a la cual
la reflexión política y filosófica no puede dejar de prestar atención y no debe
confinar a la literatura al reino de lo doméstico o de lo privado.
115
A literatura, sob essa perspectiva, opera a aporia de publicar o segredo,
redimensionando, por isso mesmo, o valor do público. Mas tornar o segredo público não seria
revelá-lo? E revelar o segredo não seria anulá-lo enquanto tal? Certamente. No entanto, a
inscrição pública do segredo não é a revelação de um conteúdo privado previamente
escondido, pois não nada escondido a ser revelado; ao contrário, é o próprio evento do
segredo, a emergência performativa da incondicionalidade de um segredo que não existia
antes de seu acontecimento performativo. Segundo as palavras de Paula Glenadel:
115
www.jacquesderrida.com.ar
81
Se a literatura é, como diz também Derrida, uma história do segredo, não se trata
de um segredo de ordem epistêmica, da ocultação de uma verdade, fundo ou
fundamento; mas de um imperativo do segredo, ou melhor, de um performativo do
segredo, em que o essencial não é que alguma coisa seja ocultada, calada ou não
sabida, mas que haja segredo, endereçamento ao abismo de uma singularidade
116
.
A relação do segredo à literatura aparece também, e da forma mais fundamental, no
capítulo de Donner la mort intitulado “La littérature au secret”, onde Derrida, acrescendo o
tema do perdão, esboça uma genealogia da literatura, reivindicando para ela uma origem
abraãmica:
De entre todos los que, en número infinito a lo largo de la historia, han guardado
un secreto absoluto, un secreto infinito, pienso en Abraham, en el origen de todas
las religiones abrahámicas. Pero asimismo en el origen de ese caudal sin el cual lo
que denominamos literatura sin duda no habría podido surgir jamás como tal, ni
con ese nombre. ¿El secreto de cierta afinidad electiva uniría pues de ese modo el
secreto de la Alianza electiva entre Dios e Abraham con el secreto de lo que
llamamos la literatura, el secreto de la literatura y el secreto en literatura? (…) Por
eso inscribo aquí la cuestión del secreto como secreto de la literatura bajo el signo
aparentemente improbable de un origen abrahámico. Como si la esencia de la
literatura, en sentido estricto, en el sentido que esa palabra de Ocidente conserva
en Ocidente, no fuera de ascendencia esencialmente griega sino abrahámica. Como
si viviese de la memoria de ese perdón imposible cuya imposbilidad no es la
misma a ambos lados de la supuesta frontera entre la cultura abrahámica y la
cultura griega.
117
Avaliando o que se adquiriu até o presente momento, ficou claro que para Derrida é
imprescindível pensar a literatura como instituição, ou seja, como um objeto histórica e
convencionalmente determinado. Isso poderia levar a crer que Derrida se submete ao
relativismo que tanto aqui se combateu, por pensar a literatura como totalmente dependente
116
Paula Glenadel. “Figuras do afundamento: sujeito e sentido na modernidade e mais além”. In: Anais do X
Congresso Internacional da Abralic. Rio de Janeiro: UERJ, 2006.
117
Jacques Derrida. Dar la muerte, p. 115; 125.
82
de condições convencionais, históricas, culturais, que estas são, por si só, contingentes e
particulares, isto é, controladas implicitamente por uma condicionalidade metafísica, ideal,
geral e necessária (novamente, eis mais um modo de manifestação da cumplicidade entre
metafísica e relativismo). No entanto, foi demonstrado que a condição mais própria da
instituição literária é pressupor, aporeticamente, uma incondicionalidade, o que aponta para a
irredutibilidade da literatura, pois, desse modo, ela não se reduz a condições relativas e, por
conseguinte, à condicionalidade ideal e absoluta que as comanda. Ou seja, a condição que
especificidade à literatura, por ser atravessada pela incondicionalidade, isto é, por ser pensada
a partir da iterabilidade que é condição incondicional, o que faz a condição particular se
tornar ideal, mas um ideal fraturado pela incondicionalidade –, ao invés de ser contingente,
material e relativa a uma idealidade transcendente que a domina, é ela mesma ideal, mas de
uma idealidade que, traduzida em regime derridiano, tem o estatuto de irredutibilidade, pois
dado que aquilo que se pode chamar de uma certa idealidade em Derrida diferentemente da
idealidade metafísica, que se assenta na presença plena tem como fundo o sem fundo da
alteridade radical, toda idealidade derridiana é iterabilidade
118
, e é, portanto, irredutível.
A condição da literatura é, em si mesma, uma condição cindida (não particular, mas
geral) na qual a incondicionalidade se inscreve, pois, como já vimos repetidas vezes, é preciso
de uma mínima condição (generalidade) para a emergência do acontecimento incondicional
(singularidade). E tal condição não pode ser particular, pois condições particulares são
vigiadas por uma generalidade metafísica ideal, totalizadora e transcendente. A condição, para
exibir-se enquanto iterabilidade, deve ser ela mesma condição incondicional, o que a devém
geral, ideal, mas cuja idealidade e generalidade deixa de ser transcendente para se tornar
imanente. Tal imanência, contudo, ao invés de ser imanente a si mesma, é originariamente
cindida pela transcendência, mas por uma transcendência que não é mais aquela da idealidade
e generalidade metafísicas, mas sim a transcendência da singularidade irredutível (alteridade
radical), que, por sua vez, só é o que é por meio de sua inscrição na imanência, na condição
imanente geral e ideal que deve ela mesma ser irredutível, porque, caso contrário, não
118
É importante notar aqui um ar de família com as definições, já amplamente expostas nesta tese, acerca do que
é para Derrida o significante, a escrita e o rastro. Isso ficou muito claro no caso do significante, que, conforme
vimos, não pode ser totalmente material, mas tem de ser para que possa ser reconhecido como o mesmo nas
suas infinitas ocorrências de certa forma ideal, mas cuja saída de si para uma repetição noutro lugar existe
pelo fato de ele não ser idêntico a si (por isso sua idealidade não é a da metafísica), pois, se o fosse, não
precisaria sair de si para se reiterar noutro contexto; além disso, sua repetição pode existir pelo fato de ele
estar originariamente contaminado pela singularidade, pela alteridade radical, que, por sua vez, se deixa
vislumbrar nessa repetição de um mesmo que não se reduz a si mesmo, porquanto sai constantemente de si para
retornar fora de si como um si diferido.
83
marcaria, não seria o vestígio irredutível da irredutibilidade, que é o que constitui o rastro, a
escrita, isto é, a iterabilidade.
Se a pergunta pela singularidade da instituição literária é a pergunta pela sua condição
mais própria, deve-se responder que o próprio desta estranha instituição é simular
(questionando) e questionar (simulando) tudo o que é próprio, isto é, toda propriedade,
abalando, dessa forma, a própria essência institucional, que se assenta no valor de
propriedade. Conforme Evando Nascimento:
A literatura pode ser pensada como essa instituição ligada a um direito bastante
recente, o qual, em princípio, garante sua existência enquanto texto impresso, e
portanto, propriedade de um autor específico. Os dispositivos que garantiriam essa
identidade baseada numa atribuição de posse seriam, por exemplo, o título, o
nome do autor, a assinatura, a editora, o original, a versão, a tradução, a cópia etc.,
incluindo o copyright entre a capa, a folha de rosto e o texto propriamente dito. O
surgimento da palavra literatura se quase que simultaneamente à consolidação
dos direitos autorais relativos ao objeto livro. Porém, como observa Derrida, a
relação da obra literária com essa garantia institucional vai ser a mais ambivalente
possível. Sem dúvida nenhuma, deve-se ao aparato jurídico a possibilidade de
acesso à literatura tal qual se concebe atualmente, mas nada se terá compreendido
a respeito dessa palavra, e da produção que em seu nome se faz, se não perceber
como ela própria re-duplica os mecanismos que a instauram, parodiando a letra
restrita da lei que a sustenta. O que tanto fascina Derrida na literatura não é uma
riqueza polissêmica jazendo entre as páginas de um livro, mas a potência
disseminante de uma inscrição que, no momento mesmo em que parece legitimar
as mais caras instituições, rompe com elas, desnudando os ‘pressupostos obscuros’
que as modelam, e indagando radicalmente o valor de propriedade com todos os
seus derivados. (...) A resposta ao enquadramento institucional concernente aos
direitos autorais como função do texto escrito é a de um pôr em causa o valor
mesmo que funda nossas instituições. Como se o próprio do literário fosse o de
questionar o valor de propriedade em todos os seus sentidos, ético, religioso,
moral, econômico etc., e em todos os domínios onde ele se apresenta
119
.
119
Evando Nascimento. Derrida e a literatura, pp. 275, 276; 281.
84
Dessa forma, o poder performativo que faz da literatura uma instituição singular reside
em simultaneamente encenar e suspender os pressupostos inerentes a toda instituição. É o que
Derek Attridge sustenta, relacionando literatura e lei:
Literature, that is, is seen as a historical (and relatively recent) institution, brought
into being and governed by laws; but the texts which come under its aegis have the
peculiar attribute of being able to stage and suspend all the presuppositions upon
which any such institution rests among them the operation of laws, the property
of belonging to a category, the function of proper names. Crucial to the literary
text are such features as its external boundaries, its uniqueness, its authorship, its
title, and its acts of reference, yet equally crucial is the way in which these features
are put into question as stable properties or concepts
120
.
Assim, a literatura, não sendo uma instituição como as outras, é a instituição que tem
por condição incondicional encenar as condições institucionais e suspendê-las, questionando-
as ao dramatizá-las. Isso permite que se responda definitivamente à possível objeção segundo
a qual, se tudo é resultado de um processo generalizado de iterabilidade, a literatura não
poderia ter sua singularidade na iterabilidade, pois esta seria, ao contrário, aquilo que a
literatura compartilha com tudo o mais, e não o que a distingue das demais coisas. Todavia,
embora seja verdade que a iterabilidade não seja exclusividade do literário, dado que ela opera
em todas as ocorrências do rastro, tal não significa que a literatura seja apenas um dentre
outros casos particulares da estrutura geral da iterabilidade, já que ela explicita, em seu
próprio modo de manifestação, a iterabilidade, estrutura que, apesar de condicionar todos os
objetos, todas as instituições, é por eles velada, estando neles somente de maneira implícita.
Noutras palavras, a literatura exibe em si mesma a própria iterabilidade logo, a própria
desconstrução sem que seja necessário passar pela operação desconstrutora, cuja finalidade
é a de tornar explícita a iterabilidade implícita nas instituições, e que estas, ao contrário da
literatura, insistem em apagar. Ou seja, a literatura é a instituição que revela em si mesma
aquilo que somente se revela nas outras instituições após uma operação desconstrutora sobre
elas. Tal é, ao fim e ao cabo, sua singularidade irredutível. Marcos Siscar tem algo semelhante
a dizer acerca disso:
120
J. Derrida. “This strange institution called literature”. In: Derek Attridge (org.). Jacques Derrida: acts of
literature, p. 181.
85
A meu ver, a relação com a literatura é fundadora, para Derrida, menos no sentido
do seu projeto digamos filosófico do que do papel que a literatura m para a
constituição de uma assinatura. Antecipando minha conclusão, eu diria que a
literatura é fundadora na medida em que seu tratamento mostra, explicita ou
dramatiza um modo de pensar. Lendo textos literários, Derrida parece ensinar uma
relação com a alteridade, com o sem-fundo do fundamento. Talvez porque a
literatura consista a dar um fundo, retirando-o (...) Derrida estabelece uma relação
especial com algumas obras e com alguns textos que, não obstante essa lógica
frustrante do ponto de vista de seu projeto de sentido, parecem marcados pelo que
poderíamos chamar de sucesso performativo ou, mais especificamente, pelo
sucesso da contradição performativa. Em outras palavras, se o sentido de um texto
está em desajuste contínuo com o projeto de sentido desse texto, a literatura é o
lugar onde esse desajuste é encenado de modo especial do ponto de vista do
discurso desconstrutor. (...) como se a literatura fosse o lugar onde a aporia se
realiza como tal (ou seja, aporeticamente, o que aliás a coloca num campo distinto
da tradicional equivalência entre forma e conteúdo), enquanto os outros textos
seriam aporéticos em outro sentido, vencidos pela experiência ou pelo desejo de
controle da aporia, por querer afirmar a aporia fora dela. E se a literatura é a
desconstrução, ou seja, a ligação paradoxal entre o determinado e a
indeterminação, entre um acontecimento (retórico, político, etc.) e o fato de seu vir
a ser, então é possível dizer que a dita literatura é o indesconstrutível da
desconstrução: a literatura é o ponto em que a desconstrução se determina, por ter
lugar, como modo de seu ter lugar. Em outras palavras, a literatura é o ponto em
que a desconstrução se desconstrói como por si mesma, à revelia de sua força
pensante, aporeticamente situada entre a demonstração da lógica do acontecimento
e a dívida, a crença ou o investimento em relação à literatura. (...) Distinguindo a
literatura tanto da retórica literária, quanto do discurso literário e da história das
belas letras, o gesto da desconstrução derridiana me parece ser o de designar a
literatura (“no sentido moderno”, como Derrida gosta de dizer) como lugar do
acontecimento da desconstrução
121
.
121
Marcos Siscar. A literatura como indesconstrutível da desconstrução”. (Texto, mimeo, de conferência no
“Seminário Crítica e Valor homenagem a Silviano Santiago”, realizado de 02 a 06 de out. 2006, na Fundação
Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro). Ainda nessa mesma linha de raciocínio, Marc Goldschmit, em sua
introdução a Derrida, evidencia a importância da literatura no pensamento de Derrida, chegando a afirmar,
inclusive, que a desconstrução da filosofia é possível graças à literatura: El encuentro de la deconstrucción
86
Retenhamos a proposição de Siscar: “a literatura é a desconstrução”. Tal proposição
ajuda a compreender o fato de que a escrita literária (embora tenha a mesma estrutura da
textualidade constituinte de toda escrita, de todo rastro, do próprio mundo, o que significa que
antes mesmo da existência da literatura já se operava a iterabilidade) não é, para Derrida,
apenas um caso particular da arqui-escrita, da escrita geral
122
. Nesse caso, a citação de Siscar
ainda pode ser complementada por uma citação advinda de Evando Nascimento, que vem
corroborar o que venho afirmando:
Enquanto re-inscrição do traço, o literário não se distingue em quase nada de
qualquer outra forma de inscrição. No entanto, se algo se faz em nome da
literatura, fascinando tanto Derrida, é essa virtualidade, sempre possível de passar
despercebida, isto é, de não ser contra-assinada, de um texto testemunhar sobre o
processo de inscrição em geral. Por assim dizer, a literatura porta o traço do traço,
ou a marca da marca, como apagamento e inscrição. Antes de ser dotado de um
conteúdo precioso, o texto literário dispõe da capacidade de re-encenar a origem
(dividida e insituável) de toda escrita. Ele seria, então, bem mais do que uma
espécie desse grande gênero, configurando antes o caso que diz tudo quanto
acontece no momento em que um rastro (trace, Spur) se inscreve com toda
ambivalência, sua irrupção coincidindo com a da eventualidade de seu
apagamento. E isso a literatura o faz independente da redução conceitual que a
respeito dela a filosofia propôs, muito provavelmente porque ela desde sempre se
con la literatura no tiene nada de accidental: Derrida trabaja las fronteras de la literatura y de la filosofia; las
desplaza y las complejiza. Señala que estas fronteras atraviesan desde el interior aquello que ellas
supuestamente separan y delimitan. La generalización derrideana del concepto de escritura como tecido de
diferencias y transformación de textos no es indiferente a la cuestión de la literatura. Derrida trabaja con un
concepto de la literatura que transforma las categorías y los conceptos de la critica literaria y de la filosofía. La
deconstrucción es así inseparable de la cuestión de la literatura, y anuncia otras prácticas de escritura que
operan en la subversión del logocentrismo. (…) la filosofía es provocada a la deconstrucción cuando encuentra
la literatura (…) La literatura no puede sino desorientar la filosofía puesto que ella se escapa a sus motivos (…)
La literatura es para la filosofía una provocación a pensar. La inestabilidad de esencia de la literatura no puede
dejar de desorientar y subvertir la pregunta tradicional de la filosofía, la de los diálogos de Platón, la pregunta
‘¿qué es?’. (…) Derrida desclasifica la representación filosófico-metafísica de la literatura (…) La literatura es
pensada como el acontecimiento que puede ocurrir a la metafísica y alterarla. (…) En consecuencia, se llamará
“literatura” a las prácticas de escritura que deconstuyen a las instituiciones literarias y filosóficas por su
carácter idiomático e irreductible de acontecimiento. La deconstrucción sucede, entonces, a través de la
literatura; dicho de otra manera, a través de la singularidad intraducible y universal de la lengua de un texto”.
Marc Goldschmit. Jacques Derrida, una introducción, pp. 107-9.
122
Eis o modo segundo o qual Marc Goldschmit elabora essa mesma questão: La escritura llamada ‘literária’
no se reduce en ningún momento a un género de escritura “regional”, porque la escritura en general es
literaria”. Marc Goldschmit. Jacques Derrida, una introducción, p. 107.
87
comunicou embora redobrando-a para além de seus limites com o que
historicamente ficou conhecido sob o nome de escrita fonética. Talvez porque ela
não deixou se perder o rastro do rastro, abrindo-se para um horizonte sem
determinação metafísica da presença em qualquer uma de suas modalidades o
enigma da mímesis literária estaria em se reservar para uma experiência mais
ampla não de todo estranha ao filosófico, mas que este teria procurado esquecer,
reprimir e recalcar em nome do privilégio logocêntrico
123
.
também um trecho de Derek Attridge que, além de redundar, de certa forma, a
citação acima, dá sustentação ao que afirmei, reiteradas vezes, quanto à necessidade de pensar
a singularidade através da iterabilidade, e, conseqüentemente, a singularidade da literatura
enquanto iterabilidade, o que, por um lado, faz os textos literários e os não-literários
participarem de uma mesma estrutura, mas, por outro lado, faz emergir a literatura como
singular em relação às outras ocorrências da iterabilidade, que a literatura é a figura que,
sem se apagar enquanto figura, ostenta seu fundo, sem fazer dele, contudo, outra figura:
(...) Derrida enfatiza não a singularidade como tal, mas a enigmática e produtiva
relação entre singularidade e generalidade, uma relação que para ele não é uma
mera co-existência paradoxal mas uma interdependência estrutural. Pois se o texto
literário fosse absolutamente singular a cada vez que o encontrássemos, ele não
daria, definitivamente, acesso ao mundo humano; sua legibilidade, sua posse de
“sentido”, mesmo que sujeita a mudanças através de instâncias particulares de
leitura e interpretação, implica uma repetição, uma lei, uma idealidade de algum
tipo. Assim, para ser interpretável, qualquer texto literário deve pertencer a um
gênero ou a um número de gêneros, um conjunto de convenções generalizadas que
guiam a leitura; mas a relação de “pertença”, neste caso, não é aquela que pode ser
facilmente abarcada pelo pensamento filosófico. Onde quer que o texto literário
assinale seu próprio status como escrita, como literatura, como membro de um
gênero específico, ele o faz por meio de uma marca que é necessariamente
marcada previamente como marca é o que Derrida chama de re-marca. Isso não
é uma auto-reflexão nem uma mise-en-abyme clássica (...), mas um momento em
que as categorias de forma e conteúdo, dentro e fora, quebram-se; outra intimação
123
Evando Nascimento. Derrida e a literatura, p. 301.
88
do movimento anterior o rastro, différance, suplementaridade que
simultaneamente produz e restringe as categorias da filosofia. Mais uma vez,
deve-se notar que isso não envolve a extração de uma essência da literatura; a re-
marca é uma possibilidade permanente em todos os textos, todos os signos, mas a
literatura tem a capacidade de encenar sua operação com uma força descomunal e
produzir um prazer descomunal ao fazer isto. Ou, dito de outra forma: um texto no
qual a re-marca, e a relação entre singularidade e generalidade, são encenadas com
um poder assombroso é, nessa medida, “literário”.
124
Aliás, em entrevista ao próprio Attridge, Derrida faz a seguinte colocação: ‘O que é a
escrita em geral?’ e, no espaço da escrita em geral, esta outra pergunta, que é mais do que
um simples caso particular: ‘O que é a literatura?’”.
125
Para Derrida, longe de ser uma
espécie do nero escrita, longe de ser um mero exemplo de uma regra geral, a literatura é
exemplar, ou seja, a própria exemplaridade do exemplo. Eis, finalmente, o segredo sem
segredo da literatura:
Quanto ao segredo exemplar da literatura, permitam-me acrescentar esta nota para
concluir. Alguma coisa da literatura terá começado quando não houver sido
possível decidir se, quando falo de qualquer coisa (da própria coisa, esta, por si
mesma), ou quando dou um exemplo, um exemplo de qualquer coisa ou um
exemplo do fato de que posso falar de qualquer coisa, de meu modo de falar de
qualquer coisa, da possibilidade de falar em geral de qualquer coisa em geral, ou
ainda de escrever esta fala etc. Por exemplo, suponhamos que eu diga “eu”, que
escreva na primeira pessoa ou que escreva um texto, como se diz,
“autobiográfico”. Ninguém poderá me contradizer seriamente se eu afirmar (ou
subentender por elipse, sem tematizá-lo) que não escrevo um texto
“autobiográfico”, mas um texto sobre a autobiografia, da qual este texto é um
exemplo. Ninguém poderá me contradizer seriamente se eu disser (ou subentender
etc.) que não escrevo sobre mim, mas sim sobre “mim”, sobre um eu qualquer ou
sobre o eu em geral, propondo um exemplo: sou apenas um exemplo ou sou
exemplar. Falo de qualquer coisa (“eu”) para dar um exemplo de qualquer coisa
124
Derek Attridge. Jacques Derrida: acts of literature, pp. 15, 16. (tradução de Marileide Esqueda, mimeo).
125
J. Derrida. “This strange institution called literature”. In: Derek Attridge. Jacques Derrida: acts of literature,
p. 37.
89
(um “eu”), ou de alguém que fala de alguma coisa. E dou um exemplo de
exemplo. O que acabo de dizer da fala a respeito de qualquer coisa não espera a
fala, quero dizer, o enunciado discursivo e sua transcrição escrita. Isto vale para
todo rastro em geral, quer seja pré-verbal, por exemplo, para um dêictico mudo,
quer o gesto, ou o jogo animal. Pois se houver dissociação entre eu e eu”, entre a
referência a mim e a referência a (um) “eu” no exemplo de meu eu, esta
dissociação, que poderia somente se assemelhar a uma diferença entre uso e
menção”, permanece uma diferença pragmática, e não propriamente lingüística e
discursiva. Ela não precisa estar necessariamente marcada nas palavras. As
mesmas palavras, a mesma gramática podem responder às duas funções.
Simultânea ou sucessivamente. Não mais do que a ironia, e outras coisas
parecidas, a diferença entre as duas funções ou os dois valores não necessita ser
tematizada (às vezes ela deve não o ser e é este o segredo), nem explicada com
insistência, nem mesmo assinalada por algumas aspas, visíveis ou invisíveis, ou
por outros índices não-verbais. É porque a literatura pode jogar o tempo todo
econômica, elíptica e ironicamente com essas marcas e não-marcas, e portanto
com a exemplaridade de tudo aquilo que ela diz ou faz, que sua leitura é ao mesmo
tempo uma interpretação sem fim, uma fruição e uma frustração sem medida: ela
pode sempre querer dizer, ensinar, dar mais do que o faz ou, em todo caso, outra
coisa. Mas como disse, a literatura apenas é exemplar naquilo que acontece em
toda parte, cada vez que rastro (ou graça, quer dizer, cada vez que alguma
coisa a mais do que nada, cada vez que (es gibt) e que isso dá sem retorno, sem
razão, gratuitamente, e se houver o que há então, isto é, testemunho) e antes
mesmo de todo speech act no sentido estrito. O “sentido estrito”, aliás, sempre é
ampliado pela estrutura de exemplaridade. É a partir dessas exemplaridades ou
dessas aporias, através delas, que se tem uma chance de poder ter acesso à
possibilidade rigorosa do testemunho, se houver: à sua problemática e à sua
experiência. (...) Falo sempre de mim sem falar de mim. (...) é por causa desta
estrutura de exemplaridade que cada um pode dizer: falo de mim “sem-
cerimônia”, o segredo permanece inteiro, minha cortesia, intacta, minha reserva,
intocada, meu pudor, mais ciumento do que nunca, respondo sem responder (ao
convite, a meu nome, à palavra ou ao apelo que diz “eu”), vocês nunca saberão se
falo de mim, este eu aqui, ou de um outro eu, de um eu qualquer ou de um eu em
geral, de você ou de vocês, deles, delas ou de nós, se esses enunciados são
90
concernentes à filosofia, à literatura, à história, ao direito ou a qualquer outra
instituição identificável. Não que essas instituições sejam alguma vez assimiláveis
(isso foi bastante dito e quem poderia contradizê-lo?), mas as distinções às quais
se prestam somente se tornam rigorosas e confiáveis, estatutárias e estabilizáveis
(ao longo de uma história enorme, com certeza) a fim de dominar, ordenar, fazer
parar esta turbulência, a fim de poder decidir, a fim de poder em suma. É disso, é
para isso que a literatura (entre outras coisas) é “exemplar”: ela é, diz, faz sempre
outra coisa, uma coisa diferente dela mesma, ela mesma que, aliás, é apenas uma
coisa diferente dela mesma. Por exemplo ou por excelência: filosofia
126
.
Enfim, é porque a literatura é exemplar que se pode falar de sua singularidade
irredutível sem cair na armadilha de fazer dela um caso particular de uma estrutura geral, pelo
que se embrenharia no relativismo que tanto se procurou combater. Ou seja, sua singularidade
irredutível significa que ela não é apenas um exemplo da iterabilidade, mas aquilo que
acesso à iterabilidade em geral:
(...) embora a literatura não seja o texto em geral, embora nem toda arqui-escritura
seja “literária”, imagino se a literatura é simplesmente um exemplo, um efeito ou
região entre outras, de alguma textualidade em geral. E imagino se você pode
simplesmente aplicar-lhe a questão clássica: o que, com base nessa textualidade
geral, faz a especificidade da literatura, da literariedade? Pergunto isso por duas
razões. Primeiramente, é possível que a escritura literária, no período moderno,
seja mais que um exemplo entre outros, e sim uma trama condutora privilegiada
para acessar a estrutura geral da textualidade, o que Gasché chama de infra-
estrutura. O que a literatura “faz” com a língua mantém uma força reveladora que
certamente não é única, que pode dividi-la em um ponto com a lei, por exemplo,
com a linguagem jurídica, mas que em uma dada situação histórica (precisamente
nossa própria, e esta é uma razão a mais para nos sentirmos envolvidos,
provocados, convocados pela “questão da literatura”) nos ensina mais, e até o
“essencial”, sobre a escrita em geral, sobre os limites filosóficos ou científicos
(por exemplo, lingüísticos) da interpretação da escrita. Em suma, esta é uma das
razões principais do meu interesse pela literatura e estou convencido de que isso
126
Jacques Derrida. Paixões, pp. 61, 62.
91
motiva o interesse de tantos teóricos de literatura em empreendimentos
desconstrutivistas quando privilegiam a escritura. Em segundo lugar, mesmo que
devêssemos inexoravelmente analisar estas questões histórico-institucionais, a
política e a sociologia da literatura, esta não é uma instituição entre outras ou
como outras
127
.
Se Derrida reconhece que a literatura é a trama condutora privilegiada que acesso à
textualidade geral e originária, à arquiescrita em suma, à iterabilidade –, e se a iterabilidade
é o princípio sem princípios da desconstrução, isso significa que a literatura não é apenas um
objeto constituído pela iterabilidade; se fosse apenas isso, a literatura não teria sua
singularidade na iterabilidade, já que os demais objetos são derivações da estrutura da
iterabilidade embora revelem essa participação após um trabalho desconstrutor. O que
singulariza a literatura face aos outros objetos e instituições é a capacidade que ela tem de ser
uma ocorrência da iterabilidade e ao mesmo tempo ostentar-se aporética e indecidivelmente
enquanto iterabilidade.
Tendo em consideração tudo o que já foi articulado até o atual momento, não seria
fortuito arriscar umas poucas palavras para concluir este capítulo. Como foi demonstrado ao
longo desta versão estrutural, a iterabilidade é a estrutura da desconstrução, o que vem a
confirmar aquela hipótese inicial que residia na necessidade de adotar a desconstrução como
justificativa para a neutralização da tese A idealidade do objeto literário, já que a iterabilidade
é o que permite desconstruir os problemáticos pressupostos contidos em tal tese, sendo,
igualmente, aquilo que se deve reter para afirmar a literatura em sua irredutível singularidade.
127
J. Derrida. “This strange institution called literature”. In: Derek Attridge. Jacques Derrida: acts of literature,
pp. 71, 72. (tradução de Marileide Esqueda, mimeo).
92
VERSÃO GENÉTICA
93
INTRODUÇÃO ( II )
Mas se a desconstrução, através do princípio de iterabilidade, é a responsável pela
neutralização da tese A idealidade do objeto literário, como lidar com a afirmação de Derrida
na porta dos anos 90, em entrevista a Derek Attridge de que a idealidade do objeto
literário é a neutralização da tese?
A poesia e a literatura proporcionam ou facilitam o acesso “fenomenológico”
àquilo que torna uma tese uma tese como tal. Antes de ter um conteúdo filosófico,
antes de ser ou comportar uma tal “tese”, a experiência literária na escrita ou na
leitura, é uma experiência “filosófica” que é neutralizada ou neutralizante, até o
ponto em que permite pensar a tese; é uma experiência não-tética da tese, da
crença, da posição, da ingenuidade, do que Husserl denominou “atitude natural”. A
conversão fenomenológica da contemplação, a “redução transcendental” que ele
recomendou talvez seja a condição mesma (não digo a condição natural) da
literatura.
128
Aliás, na mesma entrevista, pouco antes de revelar esse consórcio entre fenomenologia
e literatura afirmando que esta, tendo a redução transcendental como condição, é a
neutralização da tese –, Derrida, para explicar que: 1. embora não exista a literariedade como
uma essência da literatura (auto-identidade da coisa literária), não havendo, portanto, texto
que seja literário em si, dnão se segue que 2. a literariedade possa ser entendida pela via do
relativismo, isto é, que ela dependa de uma contingência de leitura pela qual o sujeito
empírico atribuiria deliberadamente o predicado literário sobre qualquer texto; enfim, para
explicar que a alternativa 2 (subjetivismo relativista) também não é uma boa alternativa à
previamente rejeitada alternativa 1 (objetivismo idealista), Derrida propõe a compreensão do
conceito de literariedade nos termos de uma objetividade ideal. Evidentemente, isso não
representa, por si só, uma proposta convincente para abalar a oposição, pois mostra Derrida
128
Jacques Derrida. “This strange institution called literature”. In: Derek Attridge. Jacques Derrida: acts of
literature, p. 46.
94
subscrevendo aquela possibilidade que ele mesmo rechaçara de antemão (1), como se ele
passasse agora a aceitá-la apenas para não dar razão ao subjetivismo relativista (2). Todavia,
para que essa sua rejeição a 2 não reenviasse, por sua vez, a 1 o que resultaria no acato ao
idealismo metafísico –, Derrida teve de recorrer ao que teria sido a tarefa da tese A idealidade
do objeto literário (“ployer, plus ou moins violemment, les techniques de la phénoménologie
transcendentale à l’elaboration d’une nouvelle théorie de la littérature, de ce type d’objet
idéal trés particulier qu’est l’objet littéraire, idéalité ‘enchaînée’, aurait dit Husserl,
enchaînée dans la langue dite naturelle, objet non mathématique ou nom mathématisable
mais pourtant différent des objets d’art plastique ou musical, c’est-à-dire de tous les exemples
privilégiés par Husserl dans ses analyses de l’objectivité idéale
129
.):
(...) não há nenhum texto que seja literário em si. A literariedade não é uma
essência natural, uma propriedade intrínseca ao texto. É o correlativo de uma
relação intencional com o texto, uma relação intencional que integra em si, como
um componente ou uma camada intencional, a consciência mais ou menos
implícita de regras que são convencionais ou institucionais – sociais, em todo caso.
Certamente, isto não significa que a literariedade seja meramente projetiva ou
subjetiva no sentido da subjetividade empírica ou capricho de cada leitor. O
caráter literário do texto está inscrito no lado intencional do objeto, em sua
estrutura noemática, pode-se dizer, e não somente no lado subjetivo do ato noético.
Há “no” texto características que exigem a leitura literária e invocam a convenção,
instituição, ou história da literatura. Esta estrutura noemática está incluída (como
“não-real”, nos termos de Husserl) na subjetividade, mas uma subjetividade que é
não-empírica e ligada a uma comunidade intersubjetiva e transcendental. Acredito
que esta linguagem de tipo fenomenológico seja necessária, mesmo se, em um
certo ponto, ela deva ceder ao que, em uma situação de escrita ou leitura, e em
particular uma escrita e leitura literária, põe a fenomenologia em crise, bem como
o próprio conceito de instituição ou convenção (mas isso nos levaria muito
longe).
130
129
Cf. a primeira página da introdução da versão estrutural.
130
Jacques Derrida. “This strange institution called literature”. In: Derek Attridge. Jacques Derrida: acts of
literature, p. 44.
95
A idealidade do objeto literário; não mais neutralizada. Não mais a neutralização da
tese, mas a mesma tese, neutralizada na versão estrutural, retorna diferida na versão genética,
dizendo de si mesma: eu sou a neutralização da tese.
Certamente, quando Derrida define a literatura como a neutralização da tese, ele o
reutiliza o sintagma A idealidade do objeto literário. Contudo, dada a necessidade de ele
recorrer, após um longo e já consolidado percurso desconstrutivo, a uma linguagem
fenomenológica – para definir a literatura, bem como para fundamentar a literariedade em seu
estatuto de idealidade objetiva –, isso não exigiria uma reconsideração da tese, desta (minha)
tese (de Derrida) até então neutralizada por ter sido considerada, a partir da própria
desconstrução, datada? Ademais, impõe-se frisar que Derrida não se limita à utilização do
léxico da fenomenologia para definir a literatura; curiosamente, ele define a literatura como a
própria redução transcendental fenomenológica é definida: como a neutralização da tese.
Além disso, se no final da versão estrutural a literatura apareceu, em sua irredutível
singularidade, como exemplar como aquilo que, não sendo somente um objeto (ou uma
instituição) constituído pela iterabilidade constituinte de todos os objetos ou instituições, é
também (por não apagar esse fundo sem fundo que a constitui, ostentando-o) o paradoxal
objeto que constitui a iterabilidade constituinte, produzindo-a, porquanto acesso a ela,
revelando-a –, não seria pertinente sustentar a afirmação de que sem o objeto literário Derrida
não teria sido capaz de intuir a iterabilidade originária, ou seja, de estender, para além do
literário, a iterabilidade (simultaneamente produzida e revelada por ele) a ponto de ela se
tornar um princípio sem princípios, isto é, o aporético axioma que a estrutura da
desconstrução? Sendo assim, a literatura não seria a própria gênese da noção derridiana de
iterabilidade, portanto, da desconstrução?
Conseqüentemente, se a literatura é a gênese da desconstrução, dado que gênese
significa, segundo seu étimo, além de origem, devir, uma gênese nunca deixa de operar. Num
certo sentido, então, a literatura é a desconstrução. Esta, portanto, acaba por ter a mesma
definição da literatura, logo, da fenomenologia: a neutralização da tese. Com isso, literatura,
fenomenologia e desconstrução revelam-se inextricavelmente imbricadas.
Eis então que na versão genética a fenomenologia, a idealidade e a teoria literária,
neutralizadas na versão estrutural pela desconstrução, reativam-se conjuntamente e de
maneira inédita, redimensionando sem contradizer, mas pressupondo, retroagindo sobre a
versão estrutural, isto é, a desconstrução, o que permitirá defender uma tese: A idealidade do
objeto literário é a gênese da iterabilidade derridiana, ou seja, da desconstrução.
96
CAPÍTULO a’
Malgrado a pertinência das análises contidas nas últimas páginas do capítulo B em
torno da singularidade da literatura enquanto instituição (e.g., “a literatura, não sendo uma
instituição como as outras, é a instituição que tem por condição incondicional encenar as
condições institucionais e suspendê-las, questionando-as ao dramatizá-las”; “o poder
performativo que faz da literatura uma instituição singular reside em simultaneamente encenar
e suspender os pressupostos inerentes a toda instituição”; “a literatura é a instituição que
revela em si mesma aquilo que somente se revela nas outras instituições após uma operação
desconstrutora sobre elas”.), o que permite que a literatura não seja apenas um caso particular
(um exemplo) da escrita geral (i.e., da iterabilidade) sendo, ao contrário, a trama condutora
exemplar a dar acesso à iterabilidade é, antes de tudo, o fato de ela ser irredutivelmente da
ordem da escrita. Por ser, dentre os objetos, o objeto mais essencialmente atado à escrita, o
objeto literário tem o estatuto de exemplaridade; é o objeto mais apto a exemplificar a
iterabilidade que Derrida detecta como sendo a “essência” da escrita, e, por extensão, da
inscrição em geral, o que faz enviar ao fundo sem fundo desde onde todos os objetos
emergem, permitindo a passagem de uma teoria da literatura (A idealidade do objeto literário)
a um pensamento chamado desconstrução.
Noutras palavras, muito antes de enfatizar as aporias da instituição literária, ou seja,
muito antes de tematizar a literatura como uma estranha instituição como a instituição que,
dada sua condição incondicional, mais ostenta a iterabilidade –, Derrida já havia intuído que a
“essência” do objeto literário é a escrita (o que, empiricamente, o caráter institucional da
literatura vem a confirmar, que, ao ser definida como uma invenção européia moderna
ligada a um certo conjunto de normas jurídicas que determinam autoria, assinatura da obra
etc., a literatura, diferentemente da poesia ou das belas letras, emerge inexoravelmente por
meio da escrita).
Em tempo: a afirmação de que a literatura é irredutivelmente escrita pode levantar
alguma objeção, sobretudo para quem quisesse evocar a primordialidade da literatura oral, ou
do poético como tal. Isso fica evidente quando se considera o modo como até mesmo os
filósofos mais radicalmente contestadores da tradição filosófica abordaram o literário e o
poético. Marc Goldschmidt estabelece uma distinção entre Heidegger e Derrida por um viés
que assinala a necessária imbricação, para Derrida, entre escrita e literatura, demonstrando
97
que a redução da escrita nas reflexões de Heidegger sobre o literário foi justamente o que fez
dele mais um cúmplice da metafísica que ele mesmo tentara destruir:
Heidegger devalúa la literatura como escritura desde una interpretación de la
técnica y de la esencia de la palabra en el sentido propio (de la “literatura” en el
sentido amplio). El principio de esta devaluación y de este rebajamiento es
fundamentalmente filosófico o metafísico; sitúa el pensamiento de Heidegger en
continuidad con una tradición más acá de la que pretende por el contrario
remontarse. (…) La quina de escribir, las técnicas de telecomunicaciones, la
escritura y la literatura “en sentido restringido” instrumentalizan el lenguaje y no
tienen más relación con la esencia de éste que es decir el ser, mostrarlo (…) El
texto de Heidegger sobre la mano del hombre y sobre la animalidad es, entonces,
solidario del pensamiento de la técnica y de la política; son inseparables de una
devaluación de la literatura. (…) Esta devaluación de la literatura se hace en
nombre de la Dichtung (“es necesario liberar la Dichtung de la literatura”, escribe
Heidegger), es decir, en un cierto sentido, de la poesía (de la poesía general de la
lengua). En cierto modo, repite el gesto platónico de devaluación de la poesía
dramática en nombre de la verdad, precisamente cuando Heidegger pretendía
“deconstruir” ese gesto metafísico. (…) El pensamiento de Heidegger, bajo la
forma exterior de una gran subversión, aparece en la lectura de Derrida como la
confirmación y la repetición más depurada y más sutil de la metafísica occidental.
“La valorización del lenguaje hablado (…) constante, masiva en Heidegger”
[Jacques Derrida. Marges de la philosophie, p. 159, nota] es lo que “explica en
particular la descalificación de la literatura, opuesta al pensamiento de la Dichtung,
pero también a una práctica artesanal y campesina de la letra” [Ibid., p. 159]. Esta
concepción “fonocentrista” de la literatura el rebajamiento de la huella escrita en
nombre de la presencia de la Habla viva inscribe a Heidegger en el horizonte de
la metafísica de la presencia. La destrucción heideggeriana de la metafísica es así
la repetición menos clásica, más radical, y sin duda más perversa, de la metafísica.
La devaluación general de la escritura y de la literatura es, en efecto, el rasgo
común de todas las metafísicas de la presencia. Se la encuentra en Platón en el
comienzo de la filosofía, en Rousseau, y persiste de manera aún más insistente y
más disimulada en aquel que trabaja en “destruir” esta metafísica: Heidegger. La
devaluación de la escritura “toma sentido en el interior de esta interpretación
98
general del arte de escribir como destrucción creciente de la palabra o del habla.
La máquina de escribir no es sino una agravación moderna del mal. Éste no
procede solamente por la escritura sino también por la literatura” [Jacques Derrida.
Heidegger et la question, p. 202]. Derrida trabaja entonces en volver a pensar la
escritura y la literatura de manera de sustraerlas a sus determinaciones filosófico-
metafísicas. Así, la institución de la filosofía y los presupuestos más persistentes
de la metafísica son los que se juegan, vuelven a jugarse y se deshacen con la
cuestión de la escritura literaria
131
.
Nota-se, a partir da citação acima, que a singularidade irredutível da literatura à
filosofia deve ser procurada no aspecto indelével da escrita literária, que a filosofia tem por
missão apagar a escrita, inclusive aquela de que ela se serve.
Se Derrida intuíra, desde muito, que a essência” do objeto literário é a escrita, isso
significa que o objeto literário não difere da escrita literária. Logo, esta não pode ser o meio
acessório a consignar a idealidade do objeto chamado literatura, como se tal objeto já existisse
constituído de antemão sem a constituição operada pela escrita. Assim, a literatura revela-se
como o objeto que, diferentemente dos outros objetos, não se vale da escrita como um
instrumento de transmissão de uma idealidade pronta fundada na plenitude da presença
metafísica; ao contrário, o objeto literário tem sua idealidade na própria escrita. Ou seja, a
escrita é a idealidade do objeto literário. A literatura é o objeto cuja idealidade a
possibilidade de algo se repetir como o mesmo não está em lugar algum fora da escrita.
Neste caso, a escrita precisa ser, ela mesma, ao menos de certa forma, ideal. Mas como a
escrita pode comportar idealidade se ela sempre foi considerada empírica? Noutros termos, se
a escrita é constituinte do objeto literário, ela não pode ser reduzida. Mas como fundamentar a
irredutibilidade da escrita sem o auxílio da tradição filosófica, que sempre defendeu
justamente a redução da escrita em proveito da fala?
Verificar que o objeto literário porta uma escrita irredutível não é o suficiente para que
se afirme isto: que a escrita é irredutível. Pois sempre se pode circunscrever tal
irredutibilidade no interior de um objeto, limitando-a a uma ontologia regional, o que acaba
por reduzir, num campo mais abrangente, aquilo que apenas num objeto específico não é
passível de redução. Do ponto de vista dos fundamentos, ou das condições de possibilidade da
escrita inerentemente irredutível encontrada no objeto literário, tal escrita, se não se estender
131
Marc Goldschmidt. Jacques Derrida, una introducción, pp. 78-80.
99
para além de seu próprio objeto, ou seja, se não deixar de ser regional para passar a ser
fundamental, perde seu estatuto irredutível ao ser reduzida à metafísica da presença. Numa
palavra, a escrita literária não deixaria de ser empírica, limitando-se, assim, ao relativismo.
se sabe que o que, ao fim e ao cabo, singulariza Derrida no interior da tradição
filosófica e que o faz apontar, justo em virtude dessa sua singularidade, a um certo exterior
é a sua atenção à escrita enquanto constituinte do discurso da filosofia, e não apenas como
seu meio meramente acessório. Mas como foi possível operar a passagem que fez da
singularidade de um objeto (o literário) o próprio fundamento de todo e qualquer objeto?
Como Derrida pôde estender a irredutibilidade da escrita (i.e., sua iterabilidade), constatada
primeiramente (e exemplarmente) no objeto literário, para a filosofia, chegando a fazer da
escrita (enquanto iterabilidade) a condição de (im)possibilidade do discurso filosófico?
Es precisamente la opción por la escritura contra el lenguaje lo que resulta
indicativo de la incidencia de Husserl en la filosofía de Derrida, y digo
curiosamente porque en un principio la cosa no tiene nada de obvio, puesto que
Husserl, en la interpretación de Derrida, sería afectado por el mismo
logocentrismo, o sea por la misma elección de la voz contra la escritura que
caracterizaría a la tradición metafísica. Sin embargo, todo el recorrido de la
fenomenología, y por ende la salida teórica que se abre camino a partir de los años
sesenta, está polarizado en el rol de la escritura y de la inscripcn en
general, sea en cuanto a la constitución de las teoas y de la ciencia, sea
respecto de la experiencia. En Derrida esta reflexión se ha prontamente
entrelazado con la tematización de las relaciones entre literatura (práctica escrita
por excelencia) y la filosofía (que se escribe pero, por lo menos en la tradición
platónica que sigue siendo la más influyente, aspira a prescindir de la escritura).
(…) Derrida se plantea sencillamente este interrogante: ¿una teoría, una idea, un
teorema, podrían existir, así como existen, es decir por fuera del espacio y del
tiempo, si no tuvieran por lo menos una actualización en el espacio y en el tiempo,
sobre cera o sobre papel? Y esa circunstancia empírica, pero sistemática, y por
ende necesaria— ¿hasta qué punto cuenta en la constitución de nuestras teorías?
(…) Éste es el punto. La escritura, la señal de ser hijo, el cordón umbilical de la
tradición, es el tema filosófico fundamental, probablemente el único, y no procede
100
de los tres revoltosos [Heidegger, Freud e Nietzsche], sino de ese inmenso
empleado de la filosofía que fue Husserl.
132
Foi a partir de Husserl, portanto, que Derrida pôde transformar a escrita empírica em
escrita transcendental, desconstruindo, conseqüentemente, a própria oposição transcendental /
empírico. Noutras palavras, foi através da radicalização das investigações de Husserl em torno
da constituição dos objetos ideais que Derrida pôde fundamentar a iterabilidade que intuíra no
objeto literário, estendendo-a a ponto de se tornar o princípio sem princípios da
desconstrução; ou melhor, sacrificando uma teoria literária em nome do surgimento da
desconstrução. E ainda, talvez, sacrificando uma teoria literária para que não fosse preciso
sacrificar a própria literatura, ou simplesmente porque a literatura mesma existe à medida
de seu auto-sacrifício
133
, exigindo que uma teoria literária seja sacrificada para dar lugar à
desconstrução.
Numa entrevista intitulada A corazón abierto, Derrida revela o motivo pelo qual sua
obra nasce de uma relação indeslindável entre fenomenologia, escrita e literatura:
Durante los primeros os de mis estudios filosóficos, cuando empecé a leer y a
escribir sobre Husserl, al principio de los años cincuenta, después de que Sartre y
Merleau-Ponty introdujesen la fenomenología, sentía la necesidad de plantear la
cuestión de la ciencia, de la epistemología, a partir de la fenomenología, cosa que
Sartre y Merleau-Ponty en cierto modo no habían hecho. Por lo tanto, escribí mis
primeros ensayos sobre Husserl orientándolos hacia las cuestiones de la
objetividad científica y matemática (…) A lo largo de esos primeros escritos
buscaba, por fidelidad a ese anhelo de escritura, lo que dentro de la fenomenología
husserliana podía permitirme problematizar la escritura. ¿Dónde habla de la
escritura? ¿Qué hace con ella? ¿Cómo articular esas cuestiones de la ciencia, de la
fenomenología y de la escritura? Encontré ese lugar en El origen de la geometría,
(…) y que inmediatamente después decidí traducir. (…) Porque en el había una
observación breve y elíptica sobre la escritura, sobre la necesidad que tenían las
132
Maurizio Ferraris. Envejecimiento de la ‘escuela de la sospecha’. In:
http://www.jacquesderrida.com.ar/comentarios/ferraris.htm
133
Conforme Evando Nascimento: A literatura morre no instante mesmo em que nasce porque ela é insituável
como mais uma instituição dentre as outras de que dispõem as sociedades ocidentais. A essência de certas obras
literárias é o ter essência reconhecível pois se furta, através de inúmeras estratégias, ao papel expressivo e
representativo que lhe impôs uma tradição remontando ao diálogo platônico”. Evando Nascimento. Derrida e a
literatura, p.303.
101
comunidades de sabios de constituir objetos ideales comunicables a partir de
intuiciones del objeto matemático. Husserl decía que la escritura era la única que
podía darles a esos objetos ideales su idealidad final, que era la única que en cierto
modo les permitiría entrar en la historia: su historicidad les venía de la escritura.
No obstante, esa observación de Husserl seguía siendo equívoca y oscura, y yo
traté, por consiguiente, de formar un concepto de escritura que me permitiese a la
vez dar cuenta de lo que pasaba en Husserl y, si era preciso, plantearle cuestiones a
la fenomenología y al intuicionismo fenomenológico y, por otra parte, desembocar
en la cuestión que seguía interesándome: la inscripción literaria. ¿Qué es una
inscripción? ¿A partir de que momento y en que condiciones una inscripción se
torna literaria?
134
Em outra entrevista, ao ser igualmente interpelado quanto aos primeiros impulsos que o
impeliram à produção, Derrida enuncia algo que pode servir aqui como complemento à
citação anterior:
Me interesé muy pronto por el problema de la escritura, particularmente la
escritura literaria, pero también por lo que ocurría en el momento en que se
inscribe algo. Desde este punto de vista, lo que me interesó en Husserl, al que leí
hace ya mucho tiempo, principalmente en El origen de la geometría, es cuando
subraya que en la historia de un objeto ideal -en la historia de la forma en que un
objeto científico se convierte en universal como objeto ideal, que no se confunde
con ninguno de sus ejemplos empíricos-, la escritura es indispensable. En cierto
momento, Husserl afirma en El origen de la geometría que la inscripción no es
simplemente un momento suplementario o accesorio en la constitución de la
objetividad ideal sino un momento indispensable. Naturalmente esto acarrea
ciertas dificultades. Por una parte reconoce que el objeto ideal debe recibir una
especie de incorporación escrita, pero también evidentemente tal incorporación
escrita, siéndole exterior al mismo tiempo, puede hacerle entrar en crisis; como
signo puede hacer entrar en crisis al objeto ideal. En esta interpretación de la
escritura por parte de Husserl había una especie de tensión o de contradicción. Por
un lado, Husserl repetía o reconstituía las interpretaciones clásicas de la escritura
134
http://www.jacquesderrida.com.ar
102
como algo secundario, sensible, corporal respecto al eidos, la idealidad matemática
o científica por ejemplo. Por otro, reconocía que esta exterioridad era algo interior
en cuanto que era la condición esencial de la objetividad. Y precisamente me he
centrado en las dificultades que se derivaban de todo ello para la fenomenología, a
menudo con preguntas de tipo heideggeriano, como usted recordaba, sobre la
determinación del ser como objeto, o la correlación sujeto-objeto.
135
Pode-se perceber, portanto, que as análises de Derrida acerca da fenomenologia de
Husserl têm sempre uma dupla face: por um lado, Derrida denuncia a filiação de Husserl à
metafísica da presença, que se manifesta no princípio dos princípios da fenomenologia, isto é,
no princípio intuitivo que reside na forma do presente vivo; por outro, ele encontra, em
momentos decisivos das descrições fenomenológicas, a implicação de uma não-presença
originária e irredutível, o que lhe permite contestar o princípio intuicionista da fenomenologia
a partir dela mesma. Conseqüentemente, os recursos que Derrida extrai da fenomenologia
para descontruí-la são reiterados por ele no decurso de sua obra, independentemente das
múltiplas e díspares temáticas abordadas. Deduz-se, a partir daí, que toda a desconstrução
derridiana carrega rastros husserlianos irredutíveis.
Eis uma declaração em que o próprio Derrida, partindo de um comentário sobre sua
primeira publicação, confirma o que foi exposto em todo o parágrafo anterior:
(...) l´Introduction à Origine de la géométrie m´avais permis d´approcher
quelque chose comme l´axiomatique impensée de la phénoménologie
husserlienne, de son « principe des principes », à savoir l´intuitionisme, le
privilège absolut du présent vivant (...). Cette axiomatique impensée paraissait
limiter le déploiement d´une problématique conséquente de l´ecriture et de la trace
dont L´Origine de la géométrie désignait pourtant la nécessité, et sans doute pour
la première fois avec cette rigueur dans l´histoire de la philosophie. Husserl y
situait en effet le recours à l´écriture dans la constituition même des objets idéaux
par excellence, les objets mathématiques, mais sans approcher et pour cause la
menace que la logique de cette inscription faisait peser sur le projet
phénoménologique lui-même. Naturellement, tous les problèmes travaillés dans
l´Introduction à l`Origine de la géométrie n´ont plus cessé d´organiser les
135
http://www.jacquesderrida.com.ar/textos/ilegible.htm
103
recherches que je tentai plus tard autour de corpus philosophiques, littéraires, voire
non discursifs, notamment graphiques ou picturaux : je pense par exemple à
historicité des objets idéaux, à la tradition, à l´héritage, à la filiation ou au
testament, à l´archive, à la bibliotèque et au livre, à l´écriture et à la parole vive,
aux rapports entre sémiotique et linguistique, à la question de la vérité et de
l´indecidable, à la irreductible altérité que vient diviser l´identité à soi du présent
vivant, à la necessité de nouvelles analyses concernant les idéalités non
mathématiques etc.
136
Se a gênese da desconstrução pode ser rastreada na leitura derridiana da fenomenologia,
isso ocorre porque a desconstrução é, antes de tudo, a radicalização das reduções
fenomenológicas de Husserl.
Derrida mostra que Husserl, apesar de propor a redução das teses da atitude natural,
postula, como motivação à própria redução, uma tese. O presente vivo, sendo a forma ideal e
concreta que garante a presença a si dos atos subjetivos diante da presença das objetividades
ideais inexoravelmente produzidas por tais atos, é a tese implícita da fenomenologia que a
vincula à metafísica da presença. Assim, Husserl, mesmo tendo criticado a metafísica, nela
recai. Segundo Derrida, isso estava de certa forma previsto, pois as críticas dirigidas à
metafísica por Husserl tinham por objetivo restaurar a metafísica autêntica, que teria sido
desviada de seu verdadeiro sentido ao longo da história da filosofia.
Poderíamos perceber o motivo único e permanente de todos os erros e de todas as
perversões que Husserl denuncia na metafísica “degenerada” através de uma
multiplicidade de campos, temas e argumentos: sempre uma espécie de
cegueira diante do modo autêntico da idealidade, aquela que é, que pode ser
repetida indefinidamente na identidade da sua presença pelo próprio fato de que
ela não existe, não é real, é irreal, não no sentido da ficção, mas em outro sentido
que poderá receber vários nomes, cuja possibilidade permitirá falar da não-
realidade e da necessidade da essência, do noema, do objeto inteligível e da não-
mundanidade em geral. Essa não-mundanidade não sendo uma outra
mundanidade, essa idealidade não sendo um existente caído do céu, a sua origem
será sempre a possibilidade da repetição de um ato produtor. Para que a
136
Jacques Derrida. Du droit à la philosophie, pp. 445, 446.
104
possibilidade dessa repetição possa abrir-se idealiter ao infinito, é preciso que uma
forma ideal assegure essa unidade do indefinidamente e do idealiter: é o presente,
ou antes, a presença do presente vivo. A forma última da idealidade, na qual, em
última instância, pode-se antecipar ou lembrar toda repetição; a idealidade da
idealidade é o presente vivo, a presença a si da vida transcendental. A presença
sempre foi e sempre será, até o infinito, a forma na qual, como podemos dizer
apoditicamente, se produzirá a diversidade infinita dos conteúdos.
137
Pela citação acima, nota-se que Husserl, apesar de condenar a metafísica em função do
conceito de idealidade por ela sustentado, renovando-o, reafirma pressuposições metafísicas
ao fundá-lo na presença do presente vivo. Tal conseqüência, no entanto, deve-se tão-somente
ao fato de que Husserl tomou a decisão de manter-se fiel ao imperativo intuicionista de
“voltar às coisas mesmas”. Ou seja, se ele tivesse radicalizado sua proposta de redução das
teses, a tese intuicionista que sustenta o princípio da fenomenologia também teria sido
reduzida, e a noção de idealidade por ele renovada apareceria em toda sua originalidade, pois,
se Derrida, por sua vez, reduziu a tese da intuição, potencializando a redução transcendental
indefinidamente, ou seja, fazendo a redução se confrontar diretamente com a mais radical
irredutibilidade, isso foi possível em virtude da noção de idealidade que Husserl defendeu
em contraposição à idealidade que reinava até então no âmbito da metafísica:
(...) percebe-se [desde a Filosofia da Aritmética, o primeiro livro de Husserl]
uma preocupação que não o abandonará jamais: aquela da origem concreta, na
experiência subjetiva da percepção, das significações ideais e dos objetos
científicos (...) que, em razão de sua exatidão e de seu valor objetivo universal
pareciam, de direito, independentes, em sua procedência, de toda experiência
psicológica, da multiplicidade dos eventos psíquicos, dos atos dos quais eles são o
pólo. Até então, na história da metafísica, a alternativa era a seguinte: ora não se
respeitava a objetividade e a universalidade [dos objetos ideais] inscritas,
entretanto, em seu sentido –, reenviando-os à experiência sensível, à sua origem
psicológica: este era o gesto do empirismo, notadamente nos filósofos ingleses;
ora, ao contrário, para dar conta de sua universalidade, de sua necessidade
inteligível, atribuía-se aos objetos ideais e às verdades matemáticas que eram deles
137
Jacques Derrida. A voz e o fenômeno, p. 12.
105
o modelo um lugar eterno fora da experiência e da história, topos noetos em
Platão, entendimento divino nos grandes racionalistas cartesianos, estrutura a
priori do espírito finito em Kant, cuja noção de “formas universais da
sensibilidade pura” assegurava uma função análoga. Estava-se, no fundo, sempre
privado diante da difícil questão da origem: a história da metafísica era a história
dessa privação. Na verdade, o empirismo e o racionalismo estavam sempre
obscuramente justapostos, e sua cumplicidade será o alvo de Husserl.
138
Pode-se afirmar que Derrida adota para si o mesmo problema de Husserl: a origem da
idealidade. Ambos pretendem, portanto, investigar o modo pelo qual algo se repete como o
mesmo. Mas, se para Husserl a idealidade se origina em atos fundados na intuição, para
Derrida a origem da idealidade é a alteridade radical, o que o leva a transformar a idealidade
em iterabilidade. Em todo caso, a afirmação husserliana de que os atos que produzem a
idealidade devem também ser ideais
139
será levada às últimas conseqüências por Derrida, que
reduz a tese de que esses atos devem estar preenchidos pela presença intuitiva. Todavia, tal
redução da intuição foi possível a partir de um lapso deixado pelo próprio Husserl, pois,
em A origem da geometria, Husserl acabou por reconhecer a necessidade da escrita na
constituição dos objetos ideais. Derrida infere, a partir daí, que não pode haver idealidade sem
a escrita. E como a idealidade não pode ser originada de uma empiricidade, pois do particular
não se chega ao universal, a própria escrita torna-se, para Derrida, ideal. A escrita seria,
portanto, constituinte, não podendo, por essa razão, ser reduzida. Porém, ela não pode ser
fundada na presença intuitiva; seu fundamento é uma diferença radical, o que faz de sua
idealidade a própria iterabilidade. É por isso que Husserl, a fim de manter-se fiel ao seu
princípio intuicionista, não radicalizou sua afirmação acerca do caráter necessário (portanto,
não contingente) da escrita, pois ela ameaça o valor de presença inerente à intuição. Por estar
associada aos predicados que são passíveis de redução, tais como a exterioridade, a
facticidade, a empiricidade, o caráter de mediação, o risco de morte e de ausência etc, a
escrita deve ser, para Husserl, reduzida. Todo o trabalho de Derrida consiste, portanto, em
transformar esses predicados em originários, em constituintes. Conseqüentemente, a escrita,
por ser definida através de tais predicados, torna-se, igualmente, originária, irredutível:
138
ALTER – Revue de phénoménologie. Derrida et la phénoménologie, p. 72. (A tradução é minha).
139
A idealidade é a salvação ou o domínio da pureza na repetição. Em sua pureza, essa presença não é
presença de nada que exista no mundo, ela está em correlação com atos de repetição, eles próprios ideais”. J.
Derrida. A voz e o fenômeno, p.16.
106
arquiescrita. Enfim, o que Derrida faz em sua desconstrução é fundamentar a afirmação
husserliana de que a escrita é a origem da idealidade, reivindicando para a escrita seu estatuto
merecidamente essencial e necessário, ou seja, pensando-a através da iterabilidade. Noutras
palavras, a iterabilidade, que governa essa nova concepção de escrita elaborada por Derrida, é
a idealidade sem intuição, sem presença, sem preenchimento. E toda a desconstrução nada
mais faz do que repetir esse princípio da iterabilidade em cada caso singular e irredutível, que
se mantém irredutível e singular pelo fato de a iterabilidade conter em si a aporia de ser,
além de geral, singular, abrindo sua generalidade para uma singularidade irredutível, e,
simultaneamente, dividindo a singularidade de modo a dá-la a ler, o que pode ocorrer num
campo de generalidade.
A indestrinçável imbricação entre idealidade, escrita e iterabilidade é explanada de
maneira ainda mais contundente nas palavras de Maurizio Ferraris:
(...) el verdadero quid teórico es la identificación entre idealidad e iterabilidad. El
razonamiento es el siguiente: ¿qué es una idea? En principio, una entidad
independiente de quien la piensa, que puede existir después de que aquel que la
pensó ha dejado de pensarla, por esa vez o para siempre. Ahora bien, para que una
condición de este tipo pueda cumplirse no basta con afirmar que la idea es
“espiritual”, precisamente porque de esa manera podría resultar dependiente tan
sólo de los actos psíquicos del individuo. En vez de concentrarse en el carácter
espiritual de la idea, Derrida nos invita a tomar en consideración la circunstancia
de que una idea, para ser tal, debe resultar indefinidamente iterable; y también,
que la posibilidad de repetir comienza exactamente en el momento en que se
instituye un código, cuya forma arquetípica (originaria y no derivada) es ofrecida
precisamente por el signo escrito, por el rastro que puede presentarse, si bien no de
modo necesario, incluso en ausencia del escritor. En este caso, Derrida no actúa ya
como exegeta de Husserl, sino que teoriza por mismo. Sugiere que una mensaje
cualquiera, incluso la lista de las compras o la cuenta de la lavandería, representa
del mejor modo la condición de la idealidad, precisamente porque, a diferencia de
los procesos psicológicos, puede acceder a una existencia aparte de su autor. (…)
La escritura puede ser leída en ausencia del escritor: aun la lista del almacén, que
aparentemente me recuerda, estando yo presente, las compras que debo realizar,
pero que mañana podrá quedar sobre la mesa de la cocina, y acaso (supongamos
que soy un autor famoso) ser estudiada y clasificada por un filólogo. (…) es un
107
hecho que la posibilidad de ser leído en ausencia del escritor necesariamente forma
parte de las características del escrito; no es un accidente, sino, antes bien, un
requisito indispensable que pertenece a la esencia de la escritura, del mismo modo
que lo empírico necesariamente forma parte de lo trascendental. De ello Derrida
obtiene como conclusión: 1) que la esencia de la idealidad consiste en la
repetibilidad; 2) que la repetibilidad aparece esencialmente relacionada con
fenómenos como el de la escritura y el de la huella en general; y 3) que la
desaparición del sujeto representa una condición necesaria para la configuración
de la idealidad como iterabilidad.
140
Ou seja, conforme as últimas palavras da citação acima, a escrita é a idealidade como
pura repetição, isto é, como a paradoxal repetição de nada que lhe anteceda. Não nenhum
sujeito transcendental que servisse de fundamento para a repetição, que valesse como uma
presença plena anterior à repetibilidade. É nesse sentido que, em Derrida, a idealidade é a
própria iterabilidade, sendo basicamente aí que Derrida se distancia de Husserl. Pelo princípio
intuicionista de Husserl, para que se garanta a repetição ideal indefinida, para que uma
idealidade possa se repetir como idealidade, isto é, como a mesma, é preciso uma presença
ideal como condição de toda repetição. Tal presença é a consciência transcendental, que se
assenta na forma do presente vivo. em Derrida, dado o caráter não presente da escrita, e
dado que a escrita é a origem da idealidade, não uma presença anterior à idealidade que
pudesse assegurar inequivocamente a repetição da idealidade como tal, como idêntica a si. O
mesmo, portanto, só se repete como diferença.
Neste caso, Derrida acaba por ser mais fiel do que Husserl à idéia de origem, mesmo
que a tenha abalado nos termos de uma repetição originária: a origem do mundo não pode
estar ela mesma no mundo, senão se confundiria com este. A origem do mundo deve estar
fora do mundo, embora não possa estar noutro mundo, o que seria um postulado metafísico,
reproduzindo o imperativo da presença como presença alhures. Estando fora do mundo sem
estar noutro mundo, a origem do mundo é a alteridade radical que está implicada na
idealidade, impedindo que esta se feche sobre si mesma, permitindo, ao contrário, sua
indefinida recontextualização diferencial.
Em termos genéticos, a desconstrução se mostra como a radicalização das reduções
fenomenológicas. Ainda segundo Ferraris:
140
Maurizio Ferraris. Introducción a Derrida, pp. 34, 35; 61.
108
(...) si en Husserl la epojé [redução fenomenológica] era un momento provisorio y
epistemológico, en Derrida se torna permanente y ontológico: en principio, la
perfección del fenómeno es una presencia de conciencia, tanto más fuerte en la
medida que es ideal; no obstante ello, la idealidad es para Derrida iterabilidad
(posibilidad de repetición indefinida), de modo que conforme al double bind la
perfección del objeto se da en el sujeto, como presencia ideal, pero la presencia
requiere iteración, la iteración necesita signos, los signos son no presentes y, por
ende, la presencia perfecta es también una presencia imperfecta.
141
E se as reduções fenomenológicas são a neutralização da tese, radicalizá-las significa
radicalizar, levando às últimas conseqüências, a neutralização da tese, o que gera, como
vimos, a noção de iterabilidade, ou seja, o próprio princípio sem princípios da desconstrução.
Ora, se tal princípio é o que a singularidade irredutível da literatura, e se esta é também
definida por Derrida como a neutralização da tese, isso me impele a sustentar a afirmação
segundo a qual a literatura (A idealidade do objeto literário) provoca o atravessamento da
fenomenologia à desconstrução, já que a insistência de Derrida acerca do papel constituinte da
escrita (insistência que jamais o abandonará) deriva de sua tentativa de elaborar, a partir de
uma leitura inaudita da fenomenologia transcendental, uma nova teoria da literatura.
Certamente, a fenomenologia serviu de fundo teórico para a teoria literária. A escola
crítica de Genebra, bem como a sistematização da obra de arte literária promovida por
Ingarden (teoria dos estratos), são diretamente tributárias de Husserl. Sendo assim, em que,
afinal, residiria a originalidade de Derrida mediante tais teorias literárias fenomenológicas?
Numa palavra: a escrita. Pois nenhuma delas se ateve à escrita. Preferiram repetir a
metafísica, assumindo o princípio intuicionista da fenomenologia, e, conseqüentemente, o
fonologocentrismo. Se tivessem dado uma atenção à essência do objeto literário, e se tivessem
respeitado a própria fenomenologia na sua exigência de descrição dos fenômenos, a
conseqüência disso teria sido a constatação de que, se uma essência da literatura, tal
essência é a escrita. Nesse caso, a escrita não poderia ser reduzida; seria irredutível. No
entanto, aceitar essa conseqüência seria catastrófico tanto para a fenomenologia enquanto
filosofia quanto para a teoria literária enquanto disciplina com um objeto delimitável. Isso
porque atestar que a essência da literatura é a escrita acaba por exceder o território da
141
Ibid., p. 44.
109
literatura ao mesmo tempo que retira da filosofia seu poder de legislar sobre todos os objetos,
sobretudo o literário. Quando afirmo exceder o território da literatura” quero dizer: aceitar
que a essência da literatura é algo que não pertence exclusivamente a ela, dado que nem toda
escrita é literária. Como seria possível uma afirmação dessa natureza? Seria preciso, para
tanto, abalar a própria idéia de teoria literária, que não haveria um objeto com propriedades
exclusivas que ela pudesse abarcar. Da mesma maneira, seria preciso abalar a própria filosofia
(inclusive, a própria noção de essência), que reconhecer a irredutibilidade da escrita
resultaria na subversão do privilégio que a metafísica quer garantir para a fala. Não é difícil, a
partir daí, perceber em que reside a originalidade de Derrida frente às teorias literárias
fenomenológicas.
Mas como se o apagamento da escrita nas teorias literárias fenomenológicas? (Aliás,
é importante salientar que todas elas partem do texto literário escrito. É mais do que evidente,
portanto, o processo de apagamento da escrita, que nem mesmo se defende a hipótese
ingênua da primazia de uma literatura oral). No caso de Ingarden, basta dizer que em sua
teoria dos estratos o primeiro deles é o fônico. Ou seja, a primeira apreensão de uma
idealidade que o leitor efetua diante da obra literária é o fonema, que tem como materialidade
não a escrita, mas a matéria sonora. Assim, se o fonema é ideal, a materialidade que serve de
conteúdo para essa forma ideal não é nem mesmo a escrita, mas o som. Se nos lembrarmos da
concepção de significante adotada por Derrida, o significante é uma idealidade, e não
apenas a matéria da forma chamada significado; e a mesma idealidade vale para a escrita. Em
Ingarden, o fonema é ideal, o que poderia parecer uma vantagem diante das teorias que
concebem o fonema como material diante do significado, que seria ideal. Contudo, a noção
ingardeniana de fonema compreende em si o próprio significado. Em todo caso, a escrita fica
de fora. Uma citação extraída de Maria da Glória Bordini ajuda a aclarar minhas afirmações
acerca de Ingarden:
A formação lingüística mais simples, para ele [Ingarden], é a palavra, uma forma
fônica significativa, somada à sua significação. A matéria gráfica dessa palavra
não lhe importa, pois, ao ser escrita, apenas representa a forma fônica significativa
e se torna assim transparente e irrelevante como elemento constitutivo da obra. (...)
A forma fônica significativa se constitui quando a matéria sonora se torna
portadora da significação. Não é a seleção, a ordenação e repetição convencional
de sons que produzem a significação, mas é esta que informa os sons concretos,
garantindo à palavra uma invariância essencial de sentido, ainda que seus
110
componentes fônicos concretos admitam pronúncias variadas, em termos de
timbre, intensidade etc. O fonema (o termo é utilizado para denominar a forma
fônica significativa da palavra inteira e não na acepção que lhe dá a ciência
lingüística) não será algo de real, pois permanece idêntico na diversidade das
pronúncias, mas também não será um objeto ideal autônomo (...) Dele, a matéria
sonora é que pertencerá ao real. O fonema terá a função de servir de invólucro
externo para a significação. Esta outorga ao som concreto sua forma significativa,
que por sua vez envolve de matéria a significação. Em conseqüência, a palavra-
fonema terá um núcleo ideal, significativo, e uma superfície real, sonora.
142
na escola crítica de Genebra, o apagamento da escrita dá-se à medida que esta é
considerada mero meio pelo qual o leitor acede à consciência do autor. A escrita é, nesse caso,
diáfana, transparente. Caso contrário, seria impossível a tão requerida coincidência
(transparência recíproca) entre a mente do crítico e a mente do autor. Terry Eagleton, em sua
Teoria da literatura: uma introdução, esboça um panorama dessa corrente fenomenológica da
crítica literária (importa notar, na seguinte citação, a noção de autor reivindicada pela escola
de Genebra):
(...) a principal dívida crítica para com a fenomenologia é evidente na chamada
escola crítica de Genebra, que floresceu principalmente nas décadas de 1940 e
1950 (...) A crítica fenomenológica é a tentativa de se aplicar esse método à obras
literárias. Como acontece no isolamento do objeto real feito por Husserl, o
contexto histórico concreto da obra literária, seu autor, as condições de produção e
a leitura, são ignorados. A crítica fenomenológica visa a uma leitura totalmente
“imanente” do texto, absolutamente imune a qualquer coisa fora dele. O próprio
texto é reduzido a uma pura materialização da consciência do autor: todos os seus
aspectos estilísticos e semânticos são percebidos como partes orgânicas de um
todo complexo, do qual a essência unificadora é a mente do autor. Para conhecê-
la, não devemos nos referir a nada que sabemos sobre o autor – a crítica biográfica
é proibida mas tão-somente aos aspectos de sua consciência que se manifestam
na obra em si. Além disso, interessam-nos as “estruturas profundas” de sua mente,
que podem ser encontradas nas repetições de temas e padrões de imagens. Ao
142
Maria da Glória Bordini. Fenomenologia da obra literária, pp. 95, 96.
111
perceber essas estruturas, estamos apreendendo a maneira pela qual o autor
“viveu” seu mundo, as relações fenomenológicas entre ele, sujeito, e o mundo,
objeto. O “mundo” de uma obra literária não é uma realidade objetiva, mas aquilo
que em alemão se denomina Lebenswelt, a realidade tal como organizada e sentida
por um sujeito individual. (...) Para a crítica fenomenológica, a linguagem de uma
obra literária pouco mais é do que uma “expressão” de seus significados
internos
143
.
Pela citação acima, é possível notar um procedimento de neutralização da tese, pois
tudo o que é empírico (“o contexto histórico concreto da obra, seu autor [como sujeito
empírico], as condições de produção e leitura”) é reduzido em proveito da consciência do
autor. Nesse caso, não seria preciso diferenciar essa neutralização da tese daquela que é
reivindicada por Derrida como a própria definição da literatura?
A resposta a esta questão talvez auxilie na compreensão da diferença entre
fenomenologia e desconstrução enquanto reivindicadoras da neutralização da tese. A escola
crítica de Genebra, ao neutralizar a tese, apenas repete a fenomenologia em seu intuito
filosófico de abarcar todos os conhecimentos, todos os objetos, em sua pretensão de reduzir
todos os objetos ao absoluto da consciência transcendental. Pois o objeto literário é reduzido
ele mesmo em proveito de uma consciência transcendental (a consciência do autor). Ou seja, a
crítica de Genebra requer para si o posto de neutralizadora da tese, e não concebe o próprio
objeto literário como a neutralização da tese. Com isso, a crítica se confunde com a filosofia
fenomenológica, pois seu campo é a consciência transcendental, e não algo que é, na própria
literatura, irredutível, como o é a escrita.
A crítica fenomenológica focaliza , tipicamente, a maneira pela qual o autor sente
o tempo ou o espaço, ou a relação entre o eu e os outros, ou sua percepção dos
objetos materiais. Em outras palavras, as preocupações metodológicas da filosofia
husserliana freqüentemente tornam-se, na crítica fenomenológica, o “conteúdo” da
literatura.
144
Tem-se, portanto, com a tradição da teoria literária fenomenológica, o seguinte estado
de coisas: com Ingarden, a literatura é uma ontologia regional; ele se detém na investigação
143
Terry Eagleton. Teoria da literatura: uma introdução, pp. 64, 65.
144
Ibid., p. 64.
112
do literário enquanto objeto. Na escola crítica de Genebra, o objeto literário se dilui na
consciência do autor. Em nenhum dos casos, como vimos, uma atenção aos aspectos
constitutivos da escrita para a emergência da literatura.
Ao que parece, as teorias literárias fenomenológicas, de um modo geral, tomam a
literatura como uma ontologia regional, como um objeto constituído reenviando à
subjetividade transcendental enquanto fonte constituinte. Em Derrida, ao contrário, a
idealidade do objeto literário, ao ser reduzida à sua essência irredutível que é a escrita, deixa
de ser apenas constituída para ser tal como e em função da escrita tornada arquiescrita
igualmente constituinte.
Afirmar que a literatura se torna constituinte é o mesmo que postular que ela concretiza
efetivamente o sentido da intencionalidade, conceito fundamental na fenomenologia de
Husserl. Pois se a literatura é a neutralização da tese, ela é referência sem referente, o que no
limite significa: intencionalidade sem intuição. A intuição, em Husserl, é o telos da
intencionalidade, seu fim. Ora, mas seu fim (meta) é seu fim (aniquilamento). Ou seja, a partir
do momento em que a teleologia da intencionalidade se efetiva na intuição, a intencionalidade
se apaga em favor da presea intuitiva. Derrida radicaliza, portanto, a intencionalidade,
fazendo dela uma referência sem referente.
Se a neutralização da tese no sentido das reduções fenomenológicas faz que o referente
seja neutralizado enquanto correlato da referência, isto é, da intencionalidade, fazendo que o
correlato da intencionalidade seja uma objetividade ideal (irreal); noutras palavras, se a
neutralização da tese no sentido das reduções fenomenológicas também afirma uma referência
sem referente, este, no entanto, acaba por ser reintroduzido na referência (como seu
preenchimento intuitivo) sob a forma do presente vivo. De modo diverso, Derrida, ao dar a ler
a intencionalidade no seu caráter radical de referência sem referente, faz da referência (i. e.,
da intencionalidade) o rastro da alteridade radical: différance.
Em Derrida and Husserl, Leonard Lawlor explicita esse liame entre intencionalidade e
différance, afirmando que esta deriva daquela:
Derrida’s concept of différance derives form the Husserlian concept of
intencionality. Like intencionality, différance consists in an intending to; it is
defined by the dative relation. This connection of différance back to Husserlian
intencionality is why the Husserlian concept of noema (…) is at its root. For
Husserl, the noema (or meaning) consists in an ontological difference. It is at once
irreell, that is, it is not a reell part of consciousness (as are the noetic acts and the
113
hyle); thus it is different from, outside of, and other than consciousness. But it is
also a non-real thing since it is ideal, which in turn means that the noema is
identical to consciousness, inside of, and the same as consciousness. Thus it is at
once in consciousness without it belonging to consciousness; it is at once inside
and outside consciousness, immanent and transcendent, mundane and extra-
mundane. It is at once related to acts of consciousness and iterable beyond them; it
is in the passage between these poles. Because the noema is transcendent, outside,
extra-mundane, iterable beyond, it always implies a relation to others; it always
implies transcendental intersubjectivity. This relation to others means that
whenever I intend something, it includes the possibility of absence or non-
presence. The other, for Husserl this phenomenological necessity is the center of
Derrida’s thought – can never be given to me in the same way as I have a
presentation of myself; the other is only given in a re-presentation (never
Gegenwärtigung but only ever Vergegenwärtigung). I lack knowledge of the
interior life of others. Because however consciousness itself, transcendental life,
consists for Husserl in intending, that is, in iterating a unity, we must conclude that
even when I do not intend alterity, when I intend that the unity stay within, when I
fulfill the form of sense with an intuition, alterity is always already there as a
necessary possibility; the indefinite iterability of any sense structure necessarily
implies the possibility of alterity, of non-presence, of non-intuition. But and this
phenomenological necessity is the other center of Derrida’s thought because
consciousness is a consciousness to, the intending of a sense necessarily ends in
(as well as necessarily opens up) some sort of fulfillment, in some sort of presence;
the sense returns to me. What Husserl shows in the Fifth Cartesian Meditation is
that I understand the other even though I cannot live his or her interior life. This
description of the noema is the Derridean concept of différance reconstructed
entirely in Husserlian terms.
145
A importância dessa descrição de Lawlor reside em dois pontos contíguos: 1. na sua
capacidade de justificar a afirmação segundo a qual a iterabilidade é a idealidade cujo fundo é
a alteridade radical, uma não-presença, uma não-intuição; 2. na articulação do primeiro ponto
à noção de noema, o que justifica, por sua vez, a abordagem que Derrida fez do objeto
145
Leonard Lawlor. Derrida and Husserl, pp. 3, 4.
114
literário enquanto correlato ideal de determinados atos de leitura: O caráter literário do texto
está inscrito no lado intencional do objeto, em sua estrutura noemática, pode-se dizer, e não
somente no lado subjetivo do ato noético
146
. O que permite afirmar que, se ‘no’ texto
características que exigem a leitura literária e invocam a convenção, instituição, ou história
da literatura”, tais características estão ali dadas no modo da idealidade, e não enquanto
empiricidade. Ou seja, os caracteres institucionais, convencionais e históricos da literatura não
podem ser pensados pela via do relativismo. Legitimam-se, assim, definitivamente, as críticas,
feitas na versão estrutural desta tese, em torno do relativismo. A iterabilidade, que na versão
estrutural se mostrava como sendo o antídoto mais eficaz ao relativismo, impedindo um
retorno ao idealismo metafísico e ao mesmo tempo mostrando a cumplicidade deste com
aquele, mostra-se agora ainda mais fortemente atada ao literário.
ainda um passo mais radical operado por Derrida a ser explicitado. O papel
constituinte da escrita que Derrida encontra em Husserl, e que neste tem ainda uma
abrangência limitada, é aplicado por Derrida em todos os momentos da reflexão husserliana
que trapaceiam, inadvertidamente, seu princípio intuicionista. É por isso que Derrida insiste
em apontar, na temporalidade e na experiência da intersubjetividade, a inscrição de uma não-
presença originária no interior da presença plena garantida pela intuição. Tal é o propósito de
A voz e o fenômeno. É assim que Derrida estende a irredutibilidade da escrita para toda a
inscrição em geral, inclusive na ordem daquilo que se chamaria de uma experiência ante-
predicativa. É assim, também, que Derrida marca uma diferença com a fenomenologia no que
diz respeito à neutralização da tese, radicalizando as reduções fenomenológicas, isto é, a
neutralização da tese. Em A voz e o fenômeno, Derrida afirma:
(...) a fenomenologia nos parece atormentada, senão contestada, internamente, por
suas próprias descrições do movimento da temporalização e da constituição da
intersubjetividade. No íntimo daquilo que une esses dois momentos decisivos da
descrição, uma não-presença irredutível tem um valor constituinte reconhecido, e
com ela uma não-vida ou uma não-presença ou não-pertinência a si do presente
vivo, uma inextirpável não-originalidade. Os nomes que ela recebe só tornam mais
viva a resistência à forma da presença: em duas palavras, trata-se: 1. da passagem
necessária da retenção para a re-presentação (Vergegenwärtigung) na constituição
da presença de um objeto (Gegenstand) temporal cuja identidade possa ser
146
Cf. a introdução desta versão genética.
115
repetida; 2. da passagem necessária pela apresentação na relação com o alter ego,
isto é, na relação com o que torna possível também uma objetividade ideal em
geral, sendo a intersubjetividade a condição da objetividade e esta só sendo
absoluta no caso dos objetos ideais. Nos dois casos, o que é chamado como
modificação da apresentação (re-presentação, a-presentação), (Vergegenwärtigung
ou Appräsentation) não sobrevém à apresentação, mas condiciona-a, fissurando-a
a priori.
147
Nota-se que Derrida enfatiza que na fenomenologia a objetividade ideal é condicionada
pela intersubjetividade. É aqui que entra o valor da escrita para Husserl. Para que um objeto
adquira universalidade, valendo como o mesmo para além de seu contexto particular de
origem, valendo para além da morte de seu “criador” e da comunidade restrita a que este
pertence, é preciso que tal objeto seja consignado pela escrita. Ou seja, Husserl deixa entrever
que é uma não-presença (a escrita) que garante a repetição indefinida do objeto,
possibilitando, assim, sua universalidade, sua idealidade.
Contudo, em Husserl essa não-presença é reduzida à presença do presente vivo. Noutras
palavras, Husserl tenta escapar da ameaça representada pela originariedade de uma não-
presença através do recurso à consciência transcendental, a própria temporalidade originária
sempre presente a si mesma. Assim, mesmo a presença de uma não-presença (o alter ego) no
meu ego é resolvida por Husserl na forma do presente vivo, o que lhe permite manter o
princípio intuicionista da fenomenologia.
Derrida mostra, em A voz e o fenômeno, o modo pelo qual a temporalidade da
consciência transcendental ou seja, o próprio princípio intuicionista da fenomenologia
contém em si uma alteridade radical a lhe cindir originariamente. Neste contexto, inclusive,
Derrida chega a encontrar, no interior da forma da presença fenomenológica, uma ficção que,
anterior à oposição entre verdade e ficção, é a própria condição de tal oposição.
Para desdobrar o parágrafo anterior, começo apresentando um breve resumo da
fenomenologia de Husserl, explicitando termos ainda não esclarecidos, como “redução das
teses”, “fenômeno” e “intencionalidade”. Em seguida, entrarei na tematização de A voz e o
fenômeno.
Husserl tem o intuito de fundar o conhecimento de forma transcendental, investigando
suas condições de possibilidade, ou seja, o modo pelo qual o conhecimento é possível. Ele
147
J. Derrida. A voz e o fenômeno, p. 13.
116
critica a tese da atitude natural, para a qual os objetos existem desde sempre já constituídos,
como relações entre partes exteriores entre si. Tal tese da atitude natural é compartilhada
pelos cientistas e pelo senso comum. Para Husserl, essa concepção faz perder a experiência do
mundo vivido, de onde todo conhecimento e toda ciência brotam. Isso explica o imperativo de
seu projeto, que é “voltar às coisas mesmas”.
Husserl começa por operar a redução do mundo natural e constituído, colocando-o entre
parênteses, de modo a encontrar a sua essência, seu eidos. Coloca-se entre parênteses o
mundo constituído, toda empiricidade, ou seja, o que é “de fato”, de modo a desvelar o que é
“de direito”. O transcendental é, pois, a possibilidade jurídica da fenomenologia. Com isso,
Husserl descobre que a essência dos objetos é o fenômeno, que é sempre fenômeno para uma
consciência. Esta, por sua vez, tem por essência a intencionalidade, isto é, ser sempre
consciência de algo. Dá-se assim a aprioridade da correlação, ou seja, uma mútua fundação:
nem os fenômenos existem independentemente de uma consciência que os visa, nem esta
existe por si só, como uma substância.
Há, portanto, como condição dos objetos constituídos, uma subjetividade constituinte.
Esta não pode ser empírica, psicológica, pois uma tal concepção não garantiria a apoditicidade
exigida por Husserl, que um sujeito empírico, por ser particular e contingente, não é um
princípio universal e necessário; não pode, pois, fundar objetos ideais. Os objetos ideais, por
sua vez, não são uma idealidade eterna caída do céu, mas dependem de atos que os
constituem. Tais atos são os atos de uma subjetividade, de uma consciência que, longe de ser
empírica, é intencional.
Os objetos ideais são para Husserl noemas, transcendências que se dão na imanência dos
vividos intencionais da consciência. Portanto, os objetos ideais são correlatos dos atos da
consciência. Esta constitui tais objetos a partir de fenômenos que se dão em plena evidência,
isto é, em intuição, para uma consciência presente a si. Husserl pretende descrever os
fenômenos, que é o que aparece, tais como eles aparecem para a consciência.
A diferença entre fenômeno e objeto é que este é um todo determinado, enquanto o
fenômeno é um todo indeterminado. Assim, esta cadeira que tenho diante de mim é um
objeto, pois está determinado lingüisticamente. Tanto a cadeira quanto eu podemos estar
ausentes; seu significado permanece. Mas, segundo Husserl, para que eu possa determinar o
que tenho diante de mim como cadeira, é necessário que eu o tenha diante de mim, que a
minha consciência vise algo como uma figura que se destaca de um fundo, que eu não sei
ainda bem o que é, mas que tem uma unidade, um sentido para mim. Dessa forma, há um
sentido na percepção, na experiência antepredicativa (anterior à linguagem), e tal sentido é
117
o fenômeno para a consciência. O fenômeno é, portanto, algo que eu intuo como uma unidade
que se dá em presença, em evidência para mim, algo que eu percebo, que eu viso. É a essência
do objeto, sem a qual não haveria objeto algum, que este é uma idealidade constituída por
atos da consciência cujo fundamento último é a presença de um fenômeno diante da
consciência presente a si.
Em suma, pela redução, tudo o que ameaça a restituição da presença deve ser excluído,
posto entre parênteses, a fim de que se garanta a evidência plena da intuição na presença a si
da consciência. Portanto, o transcendental, ou seja, as condições de possibilidade adquirem
seu fundamento de idealidade pelo valor da presença. Tal é o caráter metafísico do
transcendental. A presença seria, destarte, uma origem pura, e tudo o que é não-presença é
pensado como acidente, devendo poder ser reduzido pelo telos metafísico que é um fim em
que a presença retornaria na sua pureza.
No livro A voz e o fenômeno, Derrida pratica uma leitura das Investigações lógicas I, de
Husserl, inferindo que a teoria da significação que se apresenta nesse texto husserliano é o
que permite e garante toda a validade do projeto fenomenológico enquanto projeto
fundamentado metafisicamente por um telos que assegura a possibilidade da intuição de um
fenômeno presente a uma consciência presente a si. Ora, para garantir a presença plena é
necessário operar reduções, reduzir tudo o que não é presença ideal. Ou seja, o projeto
fenomenológico depende das reduções, da redução do de fato de modo a conquistar
efetivamente o de direito. De acordo com Derrida, tais reduções fenomenológicas, por sua
vez, dependem da legitimação das “distinções essenciais” propostas no primeiro capítulo
do tomo inaugural das Investigações lógicas segundo as quais à palavra signo ligar-se-iam
dois conceitos heterogêneos: a expressão e o índice.
Assim, não é fortuita a primazia dada por Derrida às Investigações lógicas I, no tocante
à teoria da significação tal como ali se apresenta:
Nessa área mais do que em outras, uma leitura paciente evidenciaria, em
Recherches, a estrutura germinal de todo o pensamento husserliano. A cada página
pode-se ler a necessidade – ou a prática implícita – das reduções eidéticas e
fenomenológicas, a presença discernível de tudo aquilo a que elas darão acesso.
148
148
J. Derrida. A voz e o fenômeno, p. 9.
118
Contudo, mesmo em A voz e o fenômeno, livro que se esforça por denunciar a filiação
de Husserl à metafísica da presença, Derrida reconhece a faceta das descrições husserlianas
que, transgredindo a tese da presença, permite visualizar o teor metafísico implicado na
fenomenologia:
Afirmando que “a Bedeutung lógica é uma expressão”, que verdade teórica
em um enunciado, empenhando-se resolutamente em uma questão sobre a
expressão lingüística como possibilidade da verdade, não pressupondo a unidade
de essência do signo, Husserl pareceria estar invertendo o sentido do procedimento
tradicional e respeitando, na atividade da significação, aquilo que,o tendo
verdade em si, condiciona o movimento e o conceito da verdade. E, efetivamente,
ao longo de um itinerário que desemboca na Origine de la géometrie, Husserl
dedicará uma atenção progressiva àquilo que, na significação, na linguagem e na
inscrição que consigna a objetividade ideal, produz a verdade ou a idealidade, mais
do que a registra. Mas este último movimento não é simples. está o nosso
problema e a ele deveremos voltar. O destino histórico da fenomenologia parece,
de qualquer forma, compreendido entre estes dois motivos: por um lado, a
fenomenologia é a redução da ontologia ingênua, o retorno a uma constituição
ativa do sentido e do valor, à atividade de uma vida que produz a verdade e o valor
em geral através dos seus signos. Mas, ao mesmo tempo, sem que se justaponha
simplesmente a esse movimento, uma outra necessidade confirma também a
metafísica clássica da presença e marca a filiação da fenomenologia à ontologia
clássica. Foi por essa filiação que decidimos nos interessar.
149
Quanto ao teor metafísico das distinções essenciais na sua relação com as reduções
fenomenológicas, Derrida afirma logo em seguida:
A filiação metafísica se revela, sem dúvida, no tema ao qual voltamos agora: a
exterioridade do índice em relação à expressão (...) a significação indicativa
cobrirá, na linguagem, tudo aquilo que recai sob as “reduções”: a factualidade, a
149
Ibid., pp. 33, 34.
119
existência mundana, a não necessidade essencial, a não evidência etc. Já não
teríamos o direito de dizer que toda a problemática futura da redução e todas as
diferenças conceituais nas quais ela se pronuncia (fato / essência,
transcendentalidade / mundanidade, e todas as oposições que constituem um
sistema com ela) se desenvolvem em um distanciamento entre dois tipos de sinais?
Ao mesmo tempo que ele, senão nele e graças a ele?
150
Devo agora explicar essa citação de Derrida, em que estão antecipadas questões que
ainda não esclareci. Nessa citação, Derrida relaciona os índices à não-presença. As distinções
essenciais entre índice e expressão são um exemplo de oposições binárias características do
pensamento metafísico. Os índices são da ordem do de fato, da exterioridade empírica, do
acidente. São signos que ameaçam a possibilidade da presença plena dos fenômenos a uma
intuição. São, por exemplo, os dêiticos em geral, que apontam para uma factualidade, para
uma contingência, para uma situação particular do discurso. E devido ao caráter funcional das
distinções essenciais, os índices podem ser também qualquer signo proferido no mundo,
realizado sonoramente, materialmente, ou seja, sempre que comunicação efetiva há signos
indicativos. Em oposição a esses índices estão as expressões. As expressões seriam da ordem
do de direito. As expressões não seriam empíricas, factuais, mas seriam representações
transparentes que se adeririam perfeitamente aos fenômenos dados em presença na intuição.
As expressões garantiriam a idealidade. Vale lembrar que idealidade se houver atos que
constituem essa idealidade. Tais atos lingüísticos são constituídos pela voz, único elemento da
linguagem que permite a idealidade e a repetição ao infinito da forma da presença sem o
desvio acidental dos índices. Isso porque a voz não precisa, de direito, ser proferida no
mundo. Pode ser uma voz absolutamente baixa, sem a necessidade da mediação de qualquer
materialidade existente no mundo. A voz é, portanto, o ato de uma consciência presente a si
que constitui a idealidade de seus correlatos, isto é, dos objetos ideais, a partir dos fenômenos
dados em presença na intuição. Assim, as expressões devem ser objetivas, puramente gicas,
reduzidas ao puro S é P, isto é, diáfanas, transparentes. O telos da linguagem é a expressão.
Por isso deve-se, segundo Husserl, reduzir os índices de modo a garantir a idealidade que se
funda na presença, isto é, de modo a garantir a presença mesma.
150
Ibid., p. 35.
120
Mas como encontrar expressões depuradas de quaisquer índices, que na linguagem
comunicativa, pelo fato de eu ter de proferir no mundo signos, eu estou operando com
índices? Esse é um problema com que Husserl se depara. Ele percebe que se sempre
índices no discurso efetivo, poderia parecer que as expressões fossem uma mera espécie do
gênero indicativo, que seria o gênero devido a sua maior extensão. Para provar que as
expressões não são a espécie do gênero índice, Husserl determina que é somente numa
linguagem interior, num discurso monologado, numa voz absolutamente baixa, na vida
solitária da alma que se deve perseguir a pureza intocada da expressão. Pois nesse caso eu não
preciso comunicar nada a mim mesmo, que meus atos estão imediatamente presentes para
mim. Eu não preciso, portanto, de índices. Vale dizer que na comunicação efetiva eu me valho
de índices para comunicar ao meu interlocutor os atos pelos quais eu viso os fenômenos que
estão presentes para mim. O interlocutor nunca vai viver esses atos, pode supor que eu os
vivo. Por isso os atos se perdem para a idealidade, excedem a presença no momento em que
são exteriorizados.
No solilóquio eu não preciso, portanto, de índices. Para Husserl, se eu não preciso de
índices, é porque não índices na vida solitária da alma. Posso apenas ter uma comunicação
representada, como quando eu falo pra mim mesmo: “você não deveria ter feito isso, você não
pode continuar agindo assim”. Mas, para Husserl, isso é apenas uma falsa comunicação, uma
simulação, uma ficção. Ora, mas é justo a ficção que prova para Husserl a existência de
expressões na vida solitária da alma, porque ali os índices não funcionam como índices. A
comunicação simulada não é nem expressão, nem indicação. É ficção. Essa ficção é anterior
às oposições binárias entre índices e expressões que comandam a tarefa fenomenológica.
O signo é originariamente trabalhado pela ficção. Assim, seja a propósito de
comunicação indicativa ou de expressão, não há nenhum critério seguro para
distinguir entre uma linguagem exterior e uma linguagem interior, nem,
considerando a hipótese de uma linguagem interior, entre uma linguagem efetiva e
uma linguagem fictícia. No entanto, essa distinção é indispensável a Husserl para
provar a exterioridade da indicação à expressão, com tudo o que ela comanda. A
declarar-se essa distinção ilegítima, prevê-se toda uma cadeia de conseqüências
temíveis para a fenomenologia.
151
151
Ibid., p. 66.
121
Isto é, a ficção desloca oposições binárias, mostra uma contaminação originária entre a
presença das expressões e a ausência dos índices, mostrando com isso o malogro da finalidade
intuitiva das reduções fenomenológicas, seu caráter metafísico. Pois se aquilo que eu tinha por
índices, como o pronome “você” que se apresenta no exemplo da comunicação fictícia no
solilóquio, aparece enquanto representação, isso quer dizer que os índices têm um caráter
representativo não contingencial (como o era na comunicação efetiva). Sendo assim, eles são
irredutíveis, podem subsistir para além de um contexto particular. Eles são ideais, repetíveis,
iteráveis, portanto, mas de uma idealidade que não se funda na presença, porque também não
são expressões, não são lógicos. assim uma representação anterior à presença
condicionando a própria presença, ao contrário do que queria Husserl. uma
indecidibilidade que impede determinar os índices como empíricos, como pura materialidade
fônica, já que pela ficção eles se mostram iteráveis, e o que é pura materialidade não pode ser
repetido noutro contexto.
O próprio Husserl nos os meios para pensar assim, contra a sua própria posição.
Na verdade, quando eu me sirvo, efetivamente, como se diz, de palavras, quer eu o
faça ou não com fins comunicativos (situemo-nos aqui antes dessa distinção e na
instância do signo em geral), devo, logo de saída, operar (em) uma estrutura de
repetição cujo elemento pode ser representativo. Um signo nunca é uma
ocorrência, se ocorrência quer dizer unicidade empírica insubstituível e
irreversível. Um signo que só ocorresse “uma vez” não seria um signo. Um
significante (em geral) deve ser reconhecível em sua forma, apesar e através da
diversidade dos caracteres empíricos que podem modificá-lo. Ele deve permanecer
o mesmo e poder ser repetido como tal, apesar e através das deformações que
aquilo que se chama ocorrência empírica lhe faz, necessariamente, sofrer. Um
fonema ou um grafema é, necessariamente, sempre outro, em certa medida, a cada
vez que ele se apresenta em uma operação ou percepção, mas ele pode
funcionar como signo e linguagem em geral se uma identidade formal permite
reeditá-lo e reconhecê-lo. Essa identidade é necessariamente ideal. Ela implica
pois, necessariamente, uma representação: como Vorstellung, lugar da idealidade
em geral, como Veregegenwärtigung, possibilidade da repetição reprodutora em
geral, como Repräsentation, enquanto cada ocorrência significante é substituto (do
122
significado, assim como da forma ideal do significante). Sendo essa estrutura
representativa a própria significação, não posso iniciar um discurso “efetivo” sem
estar originariamente empenhado em uma representatividade indefinida.
152
A comunicação comigo mesmo, isso o que Husserl chama de ficção, é portanto, para
ele, sem finalidade, isto é, sem telos
153
(nota-se aqui que a ficção tem a mesma estrutura da
intencionalidade radicalizada por Derrida, que é igualmente sem fim, que seu fim [meta]
seria seu fim [aniquilamento]). Apesar de na textualidade de Husserl aparecer essa instância
anterior às distinções essenciais, ele não pôde assumir o que as descrições por ele promovidas
poderiam levá-lo a assumir. Não o pôde em função de suas intenções expressas, que são
governadas pelo imperativo teleológico da presença.
Derrida verificou em Husserl, potencializando-a, a contaminação originária, a
indecidibilidade sobre a qual a metafísica se decide, mas que Husserl mesmo não ousou
assumir. E não assumiu por um motivo muito simples: a ficção sempre foi pensada como o
outro da filosofia, em oposição à filosofia, como a linguagem que a filosofia deve eliminar
para garantir a legitimidade, a verdade de seu discurso. A filosofia precisou sempre se definir
através do rebaixamento da ficção, ou seja, através do rebaixamento da escrita.
Dessa forma, pelo exemplo da ficção, e em razão da solidariedade que este termo
mantém, em Derrida, com sua noção de escrita (e, evidentemente, de escrita literária), pode-se
afirmar que se a escrita opera originariamente no interior da fala, ela é a im-possibilidade do
fenômeno, que este não pode se dar na forma da presença que seria repetida infinitamente
na sua idealidade por um meio diáfano e transparente, meio este que seria a fala purificada de
toda contaminação do rastro, uma fala que exclui de si o rastro, instituindo sua identidade em
oposição a esse rastro, instituindo, assim, a escrita como seu outro, um outro situado do lado
de fora como correlato opositivo dessa pureza da interioridade que é a voz tal como
privilegiada pela metafísica.
152
Ibid., p. 59.
153
(...) se a representação de discurso indicativo é falsa, no monólogo, é porque ela é inútil. Se o sujeito não
indica nada para si mesmo, é porque ele não pode fazê-lo, e não pode porque não tem essa necessidade. Como o
vivido é imediatamente presente a si no modo da certeza e da necessidade absoluta, a manifestação de si a si
pela delegação ou pela representação de um índice é impossível que supérflua. Ela seria, em todos os
sentidos da palavra, sem razão. Logo, sem causa. Sem causa porque sem fim: zwecklos, diz Husserl”. Ibid., p.
68.
123
Como a consciência de si aparece em sua relação com um objeto cuja presença
ela pode guardar e repetir, ela nunca é completamente estranha ou anterior à
possibilidade da linguagem. Certamente, Husserl quis manter, como veremos, uma
camada originariamente silenciosa, “pré-expressiva”, do vivido. Mas a
possibilidade de constituir objetos ideais pertencendo à essência da consciência, e
esses objetos ideais sendo produtos históricos que aparecem graças a atos de
criação ou de visada, o elemento da consciência e o elemento da linguagem serão
cada vez mais difíceis de discernir. Ora, sua indiscernibilidade não introduzirá a
não-presença e a diferença (a mediateidade, o signo, o retorno etc.) no coração da
presença a si? Essa dificuldade requer uma resposta. Essa resposta se chama
voz.
154
Enfim, pela experiência da ficção, isto é, pela experiência do rastro, da arquiescrita, a
presença a si da consciência (a voz) é fraturada, fissurada desde o seu dentro. A ficção como
arquiescrita, como iterabilidade é, pois, o rastro originário e irredutível inscrito na
interioridade da presença fenomenológica. Ou seja, não apenas a escrita em Derrida deixa,
com a ajuda de Husserl, de ser constituinte tão-só da literatura para ser também constituinte
de todos os objetos ideais, como ela passa a ser constituinte até mesmo da forma do presente
vivo, isto é, da subjetividade transcendental que Husserl postula deixando de lado o
reconhecimento da prioridade da escrita na constituição da idealidade devido às
conseqüências que isso pudesse acarretar para seu princípio intuicionista como o
fundamento constituinte dos objetos ideais.
154
Ibid., p. 22.
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