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CADERNOS DA
TV ESCOLA
00170
ESTE CADERNO COMPLEMENTA A SÉRIE DE VÍDEOS DA TV ESCOLA
A IDADE DO BRASIL 1
MINISTERIO DA EDUCAÇÃO
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
INI. 1/1999
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Presidente da República
Fernando Henrique Cardoso
Ministro da Educação e do Desporto
Paulo Renato Souza
Secretário de Educação a Distância
Pedro Paulo Poppovic
Secretaria de Educação a Distância
Cadernos da TV Escola
Diretor de Produção e Divulgação de Programas Educativos
José Roberto Neffa Sadek
Coordenação Geral
Vera Mana Arantes
Projeto
José Roberto N. Sadek; Geraldino Vieira/Andi; Manoel Manrique/Unicef;
Paulo Dionísio/TVE-Brasil; Renato Barbieri/Videografia; Victor Leonardi/UnB
Organização e Pesquisa
Kelerson Costa
Projeto e Execução Editorial
Elzira Arantes (texto) e Alex Funni (arte)
©1999 Secretaria de Educação a Distància/MEC
Tiragem : 110 mil exemplares
Informações:
Ministério da Educação e do Desporto
Secretaria de Educação a Distância
Esplanada dos Ministérios, Bloco L. sobreloja. sala 100 CEP 70047-900
Caixa Postal 9659 - CEP 70001-970 - Brasilia/DF - Fax: (061) 410.9158
Internet: http://www.mec.gov.br/seed/tvescola
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Leonardi. Victor
A idade do Brasil 1 -Brasilia : Ministério da Educação. Secretaria de
Educação a Distância.1999.: 64 p.: il. ; 16 cm- (Cadernos da TV
Escola. Idade do Brasil ISSN 1517-4425 n.1)
1 As navegações portuguesas. 2. Cultura de sintese. 3 Preconceito e
solidariedade. I Brasil. Secretaria de Educação a Distância
CDU 381
SUMARIO
A IDADE DO BRASIL
Victor Leonardi
I Apresentação
As navegações portuguesas
Cultura de síntese
I Preconceito e solidariedade
I Fontes das ilustrações
APRESENTAÇÃO
o ano 2000 o Brasil celebra oficialmente seus
quinhentos anos. Muitos comemoram, ou-
tros discordam, outros lamentam, alguns
protestam, alguns aplaudem. Muitos se admiram.
Nossa história envolve particularidades, curio-
sidades, fofocas, anedotas, tragédias e aventuras
heróicas. Há também situações e fatos mal expli-
cados e, principalmente, muitas controvérsias. Por
exemplo, a respeito do descobrimento.
Mais do que discutir se o Brasil foi descoberto,
achado ou inventado, além de comemorar os qui-
nhentos anos da sociedade brasileira (que come-
çou quando Cabral deixou aqui dois ou três por-
tugueses e estes começaram a procriar), a TV Es-
cola aproveita esse momento para ajudar os edu-
cadores do Brasil a pensar e a refletir a respeito
de algumas peculiaridades de nossa história e al-
guns traços de nosso caráter. E também a pensar
em quem somos, como somos e por que somos
assim.
Nestes dois Cadernos e nos três documentários
chamados "A idade do Brasil"o pretendemos
contar a história do Brasil (já fazemos isso em
outra série de programas), nem desenvolver uma
análise social, psicológica ou cultural dos traços
do brasileiro e de seu jeito de ser.
Nossa intenção é colaborar para que as esco-
las possam aprofundar a discussão acerca de al-
guns momentos históricos de alguns jeitinhos e
de algumas características do comportamento
brasileiro que se mostram polêmicos ou discutí-
veis, envolvendo várias interpretações possíveis.
Procuramos dar aos diretores, orientadores
pedagógicos e professores a oportunidade de
discutir o tema entre si, com os alunos e com a
comunidade, de acordo com o projeto pedagógi-
co de cada escola.
A elaboração dos vídeos contou com a valio-
sa parceria do Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef), da Agência de Notícias dos Di-
reitos da Infância (Andi) e da TV Educativa do Rio
de Janeiro.
José Roberto N. Sadek
Capítulo 1
AS NAVEGAÇÕES PORTUGUESAS
grande navegador Bartolomeu Dias morreu
pouco tempo depois de ter saído de Porto Se-
guro em companhia de Pedro Álvares Cabral, no
ano de 1500. Portanto, ele participou de um aconteci-
mento que todo brasileiro se habituou a conhecer
como marco inicial de nossa história.
Bartolomeu Dias era um homem de grande expe-
riência - vários anos antes, em 1487, já havia desco-
berto a passagem do Atlântico para o Índico. Essa sua
histórica viagem abriu para os europeus a possibili-
dade de completar o caminho marítimo para o Orien-
te, objetivo que seria alcançado por Vasco da Gama,
dez anos depois.
Esses grandes feitos náuticos fazem parte de uma
série de episódios, e de processos históricos comple-
xos, que tradicionalmenteo conhecidos como 'des-
cobrimentos portugueses'. Parece fácil comentar o
tema, neste quinto centenário dessas navegações, mas
na realidade o assunto éo delicado e polêmico que
merece algumas reflexões.
Há longo tempo, a historiografia tradicional - em
Portugal e no Brasil - costumava apresentar essa 'era
dos descobrimentos' de modo ufanista. Muitos livros
foram escritos com base em uma retórica laudatoria,
cujo resultado era a exaltação mítica dos 'feitos me-
moráveis' e uma visão acrítica do contraditório pro-
cesso de expansão ultramarina.
Capítulo 1
Quando vistos por esse prisma patriótico, os por-
tugueses dos séculos 15 e 16 apareciam como agen-
tes de uma missão civilizadora em terras da África
negra e da América do Sul, habitadas por povos su-
postamente sem história. Quanto ao Islã, com sua
antiquíssima tradição cultural na África,o passava
de um inimigo a ser vencido.
O risco do ufanismo
Milhares de crianças portuguesas estudaram essa his-
tória em seus livros didáticos. Durante o regime
salazarista (a ditadura que dominou Portugal entre
1928 e 1974), o nacionalismo historiográfico exacer-
bado deu um tratamento ainda mais chauvinista a tais
temas, gerando sentimentos de separatismo e de tolo
orgulho - dos 'brancos' em relação a negros e
ameríndios -, com base em estereótipos raciais e cul-
turais sem nenhum fundamento científico: as ultrapas-
sadas noções de barbárie, atraso, gentilidade e paga-
nismo.
Felizmente, os grandes historiadores portugueses
daquela épocao aderiram a essas versões oficiais,
meramente propagandísticas, do tema dos 'descobri-
mentos'. Jaime Cortesão e inúmeros intelectuais por-
tugueses de sua geração sempre se afastaram do tom
laudatorio do discurso oficial, embora se apaixonas-
sem pelo tema das grandes navegações. Tema, aliás,
até hoje fascinante.
E é justamente por também ser um apaixonado
dessas grandes navegações portuguesas que tenho
tentado, nos últimos anos, em artigos e em cursos
universitários, evitar que o tom laudatòrio e acritico
venha mais uma vez atrapalhar um novo centenário
desses feitos inegavelmente épicos.
Se o discurso oficial atualo reduzir este momen-
As navegações portuguesas
to de reflexão - a passagem do quinto centenário das
viagens de Dias, Gama e Cabral - a uma simples 'co-
memoração', várias questões aindao resolvidas sa-
tisfatoriamente pela historiografia poderão ser
aprofundadas daqui até o final do milênio.
As crianças brasileiras também aprenderam, tal
como as portuguesas, a celebrar os descobrimentos
como ações heróicas. Nossos livros didáticos incor-
poraram todo o ufanismo e todo o preconceito ibéri-
co contra negros e índios.
Capítulo 1
No entanto, nossos historiadoreso se dedicaram
tanto ao estudo das grandes navegações quanto à ocu-
pação do Brasil pelos europeus. Por isso, entre muitos
deles, a exaltação da expansão portuguesa tomou a
forma de uma visão amena da colonização, na qual os
portugueses eram vistos como agentes civilizadores,
difusores do progresso e da fé cristã entre índios bár-
baros e pagãos, e seus atos de violência eram esqueci-
dos ou entendidos como necessários.
Mas também tivemos grandes pensadores queo
celebraram qualquer compromisso com esse ponto de
vista e desenvolveram estudos sérios e profundos
sobre nossa formação social, como é o caso de
Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda e
Caio Prado Júnior.
Revisão historiográfica
e crítica da versão oficial
Nas décadas de 1960 e 1970, surgiu no pólo oposto,
em reação a essa visão proselitista da expansão ibé-
rica, uma historiografia ultracrítica que pregava a re-
visão radical de tudo que havia sido escrito até então
a respeito das navegações portuguesas.
Por ter ocorrido num momento histórico em que,
derrotado, o colonialismo europeu se retirava da Ásia
e de várias regiões da África, esse revisionismo
historiográfico - em grande parte necessário, sem
dúvida - às vezes foi longe demais.
Por razões ideológicas, ligadas à conjuntura polí-
tica daquela época, provocou um novo tipo de mal-
entendido na cabeça de muitos estudantes de Histó-
ria. Nessas novas versões, Vasco da Gama, Bartolomeu
Dias, Pedro Álvares Cabral e outros navegantes por-
tugueses passaram a ser apresentados como meros
protagonistas de atos de pilhagem pura e simples.
As navegações portuguesas
Embora as violências cometidas na era do
mercantilismo devam de fato ser analisadas pelos
historiadores, parece-me que hoje já estamos nos
aproximando de uma nova compreensão, mais equi-
librada, desses grandes processos históricos que de-
ram origem ao mundo moderno.
Em 1992, por ocasião do quinto centenário da via-
gem de Cristóvão Colombo, vários intelectuais e ar-
tistas hispano-americanos de renome protestaram por
escrito contra a idéia de 'comemorar' a conquista es-
panhola da América. O grande pintor equatoriano
Oswaldo Guayasamín considerava equivocada a rea-
lização de festejos para celebrar acontecimentos que,
em sua época, haviam sidoo prejudiciais para as
culturas autóctones.
Longe de expressar um ponto de vista nacionalista
estreito, a postura de Guayasamín coincidia, na época,
com a de inúmeros historiadores peruanos, colombia-
nos, mexicanos e guatemaltecos. Todos eles considera-
vam que, diante dos conhecimentos históricos atuais,
ninguém mais poderia ignorar os massacres cometidos
contra astecas, incas e chibchas, povos cujas realizações
culturais, anteriores à chegada dos espanhóis, o mundo
inteiro tanto admira na atualidade.
Segundo esses intelectuais hispano-americanos, o
tom festivo e leviano das 'comemorações' (comemo-
rar massacres?) deveria dar lugar a atividades que
propiciassem uma reflexão mais profunda a respeito
das relações entre os países ibero-americanos. Algo
queo estivesseo relacionado com feitos e nomes
supostamente gloriosos do passado - Cortez,
Alvarado, Pizarro -, mas sim com o futuro, com a co-
operação econômica e cultural entre países que, des-
de o século 16,m uma história em comum.
Capítulo 1
Essas idéias chocavam-se com a insistência do
governo espanhol em 'comemorar' em Sevilha, em
1992, o 'encontro' de culturas. Quando se recorda o
caráter arrasador da conquista de Tenochtitlán (prin-
cipal cidade asteca) o saque de Cuzco (centro do im-
pério inca) e a rápida extinção dos povos indígenas
da área caribenha no século 16, fica sem dúvida difí-
cil falar de 'encontro' de culturas...
No entanto, foi esse eufemismo que prevaleceu
nos discursos oficiais. Talvez isso explique o fato de
Sevilha ter recebido um número de visitantes muito
aquém das previsões iniciais.
Na época, o lingüista norte-americano Noam
Chomsky também declarou considerar errônea a idéia
de 'descobrimento'. Segundo ele, o que os europeus
descobriram em 1492 foi uma América descoberta
milhares de anos antes por seus primeiros habitan-
tes: os ancestrais dos maias, dos toltecas, dos
araucanos, dos tupi, dos, dos habitantes de
Tiwanaco e de tantos outros povos da América pré-
As navegações portuguesas
colombiana e pré-cabralina. Em sua opinião, houve
de fato uma invasão de terras e de culturas alheias.
As 'descobertas' portuguesas
Sete anos depois do quinto centenário da viagem de
Colombo, aqui estamos nós, no mundo de língua por-
tuguesa, pensando e relembrando os feitos de Vasco
da Gama e Pedro Álvares Cabral. O que fazer parao
repetir pura e simplesmente os equívocos e eufemis-
mos de Sevilha?
Se prevalecer, na preparação das atividades culturais
previstas até o ano 2000, o tom diplomático dos discur-
sos oficiais, é provável que o 'quinto centenário dos des-
cobrimentos portugueses'o dê em nada. Ou que se
resuma a uma gigantesca operação de marketing monta-
da para melhorar, ao mesmo tempo, a imagem do Brasil
no exterior e a de Portugal na Comunidade Européia.
Mas também é possível que, desta vez, a ocasião nos
propicie tempo e disposição para uma reinterpretação
desseo desigual e conflituoso relacionamento da an-
tiga metrópole com antigas colônias dentro do mundo
que se comunica - com muito orgulho - na língua de
Camões, Machado de Assis e Fernando Pessoa.
Pero Vaz de Caminha, que participou da viagem de
Cabral, preferia a palavra 'adiamento' para se referir
aos primeiros contatos entre lusos e indígenas em
Porto Seguro; mas, na verdade, a expressão 'invenção
do Brasil' é muito melhor.
No final do século 15, cerca de 6 milhões de ho-
mens, mulheres e crianças já viviam nas terras que
hoje compõem o território brasileiro. Maso existia
a sociedade brasileira.
Existiam, havia vários séculos, culturas e socieda-
des que falavam línguas tupi,, aruák ou karib. A
sociedade luso-brasileira só começou a se formar,
Capítulo 1
lentamente, do século 16 em diante: algo novo, que
foi sendo construído aos poucos, ou inventado aos
poucos.o sem violência, é verdade, mas também
com muito poder de síntese e originalidade.
Essa nova sociedadeo foi uma mera projeção
da sociedade portuguesa em terras sul-americanas;
tampouco foi o resultado de um gigantesco crescimen-
to de alguma sociedade tupi. Foi, isto sim, uma com-
plexa e contraditória aculturação que envolveu
vivências históricas de origem tupi,, bantu,
sudanesa, lusitana e tantas outras.
A criação-invenção coletiva de algo culturalmente novo,
mesmo que tenha sido parte de um processo inconsci-
ente, merece com certeza ser relembrada, e repensada,
até o dia do quinto centenário da viagem de Cabral.
O Brasil ocupa uma situação bastante singular no
interior do mundo de língua portuguesa. Ao ser com
muitas ressalvas, o processoo equivale ao da história
As navegações portuguesas
da presença portuguesa na África, por exemplo, ou na
índia. Por isso, é difícil falar dos 'descobrimentos portu-
gueses', de forma genérica. Essa expressão coloca lado a
lado processos históricos qualitativamente diferentes.
No caso de Moçambique, por exemplo, onde a ci-
vilização islâmica estava presente trezentos anos an-
tes da passagem dos portugueses por,o há sen-
tido algum em se utilizar a palavra 'invenção' para se
referir ao acontecido. Aliás, em Moçambique a própria
expressão 'países de língua portuguesa' adquire uma
conotação muito diferente da nossa., apenas uma
minoria da população fala português no imenso ser-
o (a palavra 'sertão' foi usada por portugueses tan-
to no Brasil quanto na África) moçambicano.
Descobertas e descobridores
Bartolomei! Dias de fato descobriu - antes de qual-
quer outro europeu - a passagem marítima pelo cabo
da Boa Esperança. Nesse caso, podemos falar efetiva-
mente de um descobrimento português, de extraordi-
nária relevância para o mundo da época.
No entanto, a expressão 'descobrimentos portu-
gueses'o é usada apenas para se referir ao
achamento de cabos, baías e rotas marítimas, mas
também inclui a história da expansão e da presença
portuguesa nos demais continentes. Assim, conside-
ro útil e necessário deixar a grandiloqüência de lado,
de uma vez por todas.
O estilo elevado e grandioso tem sido freqüente
nas relações internacionais, por razões de Estado, mas
cai mal na obra de um historiador. Longe de sair di-
minuída, a imagem de Bartolomeu Dias pode assim
ser revigorada, como a do grande navegador portu-
guês que ele de fato foi.
Os grandes historiadores portugueses sempre pro-
cederam assim. Jaime Cortesão, por exemplo, rejeita-
va o ufanismo e aconselhava o reconhecimento do
muito que os portugueses devem aos outros povos -
principalmente aos normandos e aos genoveses no
que diz respeito às técnicas de navegação, aos judeus
maiorquinos em relação à cartografia, e aos árabes,
no tocante à astronomia náutica.
Quando observados de forma generosa e tolerante, os
'descobrimentos' adquirem outra significação -
universalista -, que contém o que de melhor a cultu-
ra portuguesa produziu em todos os tempos.
Sinto-me feliz quando leio o que Jaime Cortesão es-
Capítulo 1
As navegações portuguesas
creveu: "Os homens e os povos descobrem-se uns aos
outros. B, mais do que isso, descobrem pouco a pouco
o denominador comum de humanidade que os une".
Atuação dos portugueses na Índia
Na Idade Média, a Europa Ocidentalo teve contato
direto com a índia durante vários séculos. Esse isola-
mento foi rompido no dia 20 de maio de 1498, quan-
do as quatro naus portuguesas comandadas por Vasco
da Gama entraram no porto de Calicute.
O rei de Portugal dessa época era d. Manuel, mas, na
verdade, essa viagem fez parte de um esforço continuado
que vinha do tempo de d. João I e do infante d. Henrique.
A partir daquele momento, a história da Europa
começou a entrar numa nova fase, ligada à expansão
mercantilista moderna. Também a história da índia
nunca mais foi como antes: atrás dos portugueses vie-
ram os holandeses, os franceses e os ingleses, cuja
longa permanência em terras indianas alterou signi-
ficativamente os marcos históricos regionais.
Qualquer que seja nossa avaliação do papel de
Vasco da Gama, uma coisa é certa: naquele momento,
os portugueses estavam à frente da expansão ultrama-
rina, e coube a Vasco da Gama uma posição pioneira
nesse entrecruzamento de rotas e tempos.
É difícil caracterizar a atuação de Vasco da Gama
na índia. Um historiador indiano, K.M. Panikkar, cha-
ma de "período Vasco da Gama" o tempo que trans-
correu de 1498 - chegada dos primeiros portugueses
a Calicute - até a década de 40 do século 20, quando
as forças britânicas se retiraram da índia (1947) e os
últimos navios europeus abandonaram a China
(1949).
Nesses quase cinco séculos, segundo Panikkar, a
Ásia sofreu a imposição de intercâmbios econômicos
Capítulo 1
que lhe eram desfavoráveis e viveu sob múltiplas for-
mas de dominação colonial.
Embora reconheça a importância dos trabalhos de
d. Henrique em Sagres, esse autor condena a brutali-
dade dos métodos dos primeiros navegadores portu-
gueses do Índico. Registra crueldades como a perpe-
trada por Vasco da Gama, em sua segunda viagem, ao
massacrar navios árabes inofensivos que levavam
peregrinos de retorno de sua viagem a Meca. As mer-
cadorias foram saqueadas e as embarcações queima-
das pelos portugueses, o que levou o historiador in-
diano a dizer que Vasco da Gama praticou atos de
pirataria e terrorismo na Ásia.
O historiador português Joaquim Romero Maga-
lhães admite que muitos atos de violência semelhan-
tes foram cometidos por portugueses no Índico, es-
palhando o medo e o terror com o intuito de forçar
uma abertura comercial.
como se sabe, o próprio Pedro Álvares Cabral se
envolveu em episódios sangrentos em Calicute, bom-
bardeando a cidade em 1500, após a morte de alguns
de seus homens. Lopo Soares de Albergaria destruiu
a esquadra indiana do samorim, em Cranganore, e
Lourenço de Almeida provocou intensa batalha naval
ao largo de Chaul.
Modernidade, progresso,
construção e destruição
Tais fatos históricos podem até ser considerados como
parte integrante de uma época diferente da nossa, na
qual árabes e turcos também impunham, pela força,
sua presença mercantil em outras áreas do mundo.
Embora isso seja verdade, ao reler esses episó-
dios, quinhentos anos depois, fica difícil para o his-
toriador atual aceitar a versão amena da história dos
As navegações portuguesas
descobrimentos, que tende a minimizar os atos trucu-
lentos e conferir à presença portuguesa na Ásia um ca-
ráter exclusivamente civilizador.
Na verdade, essa aurora do mundo moderno foi
ambivalente e paradoxal. Ao mesmo tempo, os nave-
gadores modernos enriqueceram os conhecimentos
geográficos e as ciências da natureza, e usaram sem
cessar a força bruta, como sempre fizeram os mais
truculentos e arcaicos homens, desde os tempos pré-
históricos. com o moderno e o antimoderno de mãos
dadas, cartografia e construção naval evoluíram ao
som do troar de canhões...
o Francisco Xavier, um homem realmente santo, foi
contemporâneo de Antônio Faria, que a literatura imor-
talizou como exemplo máximo de hipocrisia e de cobiça!
Tudo isso fez parte do ultracontraditório e moder-
no processo de expansão marítima que se iniciou no
Índico, após a viagem de Vasco da Gama. Daí por di-
ante, a presença portuguesa no comércio oriental au-
mentou rapidamente, com d. Francisco de Almeida e
d. Afonso de Albuquerque instalando feitorias e cons-
truindo fortalezas cada vez mais a leste, até chegar a
Málaca, às Molucas, à China e ao Japão.
A história daquele mundo, que até então vivia fecha-
do, aindao era universal (no sentido de que uma cri-
se ou catástrofe em uma de suas regiõeso afetava
necessariamente os demais povos, que em geral nem
chegavam a tomar conhecimento do ocorrido).
As grandes navegações do início da história moderna
inauguraram uma fase de crescente interdependência
entre os vários continentes. Foi o início da economia-
mundo, a aurora dos tempos modernos, embora só
mais tarde viessem a se configurar plenamente as
novas relações sociais e de produção.
Capítulo 1
As navegações portuguesas
Nascimento da internacionalização
Até o século 15, as diferentes civilizações viveram re-
lativamente isoladas dentro de um quadro limitado e
descontínuo de comunicação material e espiritual.
Mesmo considerando a presença muito anterior dos
árabes na índia e de barcos chineses no Índico, nao
há como negar a amplitude da comunicação inaugu-
rada pelos europeus nos séculos 15, 16 e 17 entre
Europa, África, Ásia, América e Oceania.
Os portugueses foram pioneiros nesse notável pro-
cesso de universalidade cultural. Os feitos náuticos de
Gil Eanes, Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama,
Cabral e Magalhães foramo decisivos para o advento
da economia-mundo quanto as demais navegações da-
quele período, empreendidas por genoveses, catalãos,
castelhanos, franceses e ingleses: Colombo, Vespúcio,
Caboto, Verrazzano, Urdaneta, Yañez Pinzón, Corte-Real,
Malocello, Cadamosto, Cartier, Hudson, Frobisher,
Barents, Burrough, Tasman.
No século 18, esse processo aindao estava con-
cluído, cabendo a Bougainville e lames Cook levá-lo
até a Austrália Oriental, a Polinesia e outros arquipé-
lagos do Pacífico.
Por mais contraditório e violento que tenha sido
esse processo de expansão e conquista,o se poderá
nunca esquecer o pioneirismo de italianos e ibéricos em
sua primeira fase. A cartografia, a construção naval, as
técnicas de navegação, a botânica, a zoologia, a geogra-
fia, todas essas áreas do conhecimento receberam um
grande impulso a partir daquelas viagens, apesar de
tantos desencontros e colisões culturais (as mais graves
provocaram a extinção de povos indígenas no Brasil).
E eis aí então o cerne da contradição: o 'progres-
so' moderno veio acompanhado de morte e destrui-
ção. E por isso fica difícil 'comemorar* e festejar acon-
Capítulo 1
tecimentoso ambivalentes e, até mesmo, trágicos.
Vistos pelo ângulo da economia-mundo (inicio da
formação do mercado mundial e intensificação da divi-
o internacional do trabalho), os 'descobrimentos'm
um lado admirável e brilhante. Mas os mesmos proces-
sos mostram sua face tanatológica e destruidora quan-
doo observados pelo ângulo dos povos africanos,
ameríndios e asiáticos subjugados pelo colonialismo.
Qual desses dois aspectos o historiador deve enfatizar
e divulgar? Os dois aos mesmo tempo, pois o passado foi
assim, desigual e plural. O problema com os organizadores
de eventos comemorativos reside, justamente, no fato de
focalizarem exclusivamente a face resplandecente do Pro-
gresso, deixando de lado sua face sombria.
Esperança e utopia
É tempo, portanto, de reavivar o sonho, de estimular
a inventividade e de reacender a esperança. Sonho
que vem do início da Escola de Sagres, ou até mesmo
de antes, do tempo dos franciscanos espirituais que
tanto enriqueceram Portugal - tanto do ponto de vis-
ta cultural quanto do científico -, desde o reinado de
d. Dinis, o rei poeta, e da rainha santa d. Isabel.
As navegações portuguesas
Desde meados do século 15, esse Portugal
universalista e cristão coexistiu com outro Portugal,
cobiçoso e mercantilista, que a partir de 1444 foi
vanguardeiro no tráfico de negros da Guiné, como se
pode 1er nas páginas clássicas do texto do cronista
português Eanes Gomes de Zurara, escrito em 1453.
O infante d. Henrique e seu irmão d. Pedro (este,
humanista e tradutor de Cícero, foi quem trouxe o li-
vro de Marco Polo de Veneza para Lisboa) viveram
nessas fronteiras de dois mundos, ou de duas concep-
ções de vida: a do mercantilismo e a das aspirações
franciscanas por um mundo de amor e fraternidade.
Essa ambivalência fez parte de todo o processo de
expansão ultramarina liderado por portugueses.
Infelizmente - para os índios do Brasil e para os povos
africanos - as forças da economia-mundo acabaram, mui-
tas vezes, anulando os esforços humanitários e solidários.
Mas estes também fizeram parte dos 'descobrimentos'.
Após a morte de Francisco de Assis, a ala chama-
da 'espiritual' da ordem franciscana foi perseguida na
Itália, pelas semelhanças entre sua prática conseqüen-
te do ideário cristão e as idéias de Gioacchino da
Fiore - que anunciava o advento de uma nova era de
paz e bem-aventurança, a era do Espírito Santo -,
condenadas por Roma. Mas em Portugal recebeu o
apoio de d. Isabel, de forma que o franciscanismo se
tornaria um dos principais traços culturais da socie-
dade portuguesa dos séculos 14 e 15.
O povo português manifestava uma espiritualidade
heterodoxa muito desenvolvida, que às vezes assumia
até mesmo formas consideradas heréticas pelo alto cle-
ro e por Roma - como o culto ao Divino Espírito Santo,
que mais tarde passaria dos Açores para o Brasil.
Porém, essas expressões populares do ideário cris-
o coexistiam com instituições clericais rígidas, no
topo da sociedade portuguesa quinhentista, que aca-
Capítulo 1
As navegações portuguesas
baram dando origem ao regime do padroado e à ex-
tensão da Inquisição para as colônias ultramarinas.
Nos barcos portugueses que navegavam pelo Atlân-
tico e pelo Índico viajavam portugueses de todos os ti-
pos: inquisidores (houve Inquisição em Goa), homens
honestos e solidários (Anchieta) e até mesmoo Fran-
cisco Xavier, que esteve na índia, na China e no Japão.
Se hoje, quinhentos anos depois das viagens de
Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral, podemos
revalorizar algum projeto português do passado, e
dar-lhe importância em nosso próprio tempo, com
certeza esse é o principal: o sonho luso-franciscano
de um mundo universalista e fraterno, no qual a ci-
ência seja valorizada (na Idade Média, muitos fran-
ciscanos foram cientistas), mas a cooperação e a soli-
dariedade humana também o seja.
Se esse projeto português só existiu em estado
virtual, nos séculos 15 e 16, isso em nada diminui sua
importância. Afinal, tudo que possui virtualidade exis-
te como faculdade susceptível de se realizar.
Depois de ter zarpado do Tejo em agosto de 1487,
Bartolomeu Dias ultrapassou o cabo do Padrão, atual
cabo Cross, no sudoeste africano, ponto que já havia
sido atingido por Diogo Cão. Logo depois passou pela
angra dos Ilhéus, atual baía Spencer, e pelo cabo da
Volta, atual Diaz Point.
Navegando ainda mais para o sul, foi envolvido du-
rante vários dias por uma tormenta, ao fim da qual aportou
numa baía hoje denominada Santo Antônio, onde colocou
um marco de pedra. Prosseguiu um pouco mais adiante,
até o rio hoje chamado Great Fish, e daí retornou ao Tejo,
o sem antes colocar um padrão português no cabo das
Tormentas, atual cabo da Boa Esperança.
Estava aberto o caminho marítimo para a índia.
Vasco da Gama passou por. Pedro Álvares Cabral
também, logo depois de ter saído de Porto Seguro.
Capítulo 2
CULTURA DE SÍNTESE
ilhares de anos antes da chegada dos por-
tugueses, as terras que hoje pertencem ao
Brasil já eram povoadas. O Homo sapiens
o é originário da América: todos os povoadores
iniciais do continente americano vieram de fora, de
outros continentes.
Há divergências quanto à data inicial desse po-
voamento (11 mil anos? 40 mil anos? Muito antes
disso?) e também quanto aos caminhos percorri-
dos por essas migrações paleolíticas (Behring?
Melanesia e Austrália? Outras vias ainda desconhe-
cidas?).
No entanto, há uma certeza: aqueles povoadores
iniciais - mongólicos e negroides -o eram eu-
ropeus. Nem vieram pelo Atlântico, tal como os
mercantilistas ibéricos fariam nos tempos moder-
nos.
Os primeiros caçadores-descobridores vieram do Ve-
lho Continente pelos confins da Ásia e pelas águas do
Pacífico. Vieram do Oriente, viajando em direção ao
leste, ou seja, em direção ao oriente!
Por isso, costumo dizer que o Extremo Orien-
te da 'pré-história'o ficava na Ásia, mas sim no
Brasil: a parte mais oriental do continente ame-
ricano fica no atual estado da Paraíba. Então, es-
Capítulo 2
ses orientais 'pré-históricos' foram os verdadei-
ros descobridores das terras que hoje chamamos
'Brasil'.
Formação da sociedade brasileira
No entanto, a sociedade brasileirao tem milhares
de anos: tem apenas quinhentos anos. A sociedade
brasileirao é uma versão em tamanho grande de
alguma sociedade tupi, ou aruák. Ou.
A história dessa grande síntese a que chamamos Bra-
sil - uma história de miscigenações, aculturações e
sincretismos - começou no início do século 16.
Ao longo desse processo, a língua portuguesa aca-
bou predominando, mas issoo torna o Brasil idên-
tico a Portugal. No início do século 16, enquanto Por-
tugal tinha 1 milhão de habitantes, no Brasil os inú-
meros povos indígenas (de línguas tupi,, aruák,
karib e outras) somavam, juntos, cerca de 6 milhões
de pessoas!
Esses povos indígenasm uma história muito mais
antiga que a história da sociedade brasileira. Suas lín-
guaso ágrafas (nãom representação escrita), mas
issoo significa que eleso tenham história - esse é
um preconceito dos que forjaram a expressão 'pré-his-
tória' (por isso, prefiro usá-la entre aspas).
Os povos indígenaso tinham escrita, mas ti-
nham uma cultura antiga e bem estruturada. Em sua
lenta maturação, a jovem cultura luso-brasileira foi
recebendo muitas influências dessas culturas de
remotíssima procedência oriental.
Até o final do século 18, o tupi-guarani ainda era
falado emo Paulo, e o nheengatu (língua geral dos
povos indígenas) ainda é falado por brasileiros em
Cultura de síntese
alguns municípios do rio Negro, no Amazonas, no fi-
nal do século 20!
Matriz cultural e mestiçagem
Nossa matriz cultural é ibérica, mas os portugueses do
Brasil (até o final do século 18, ninguém se dizia 'bra-
sileiro') tinham filhos com mulheres de origem tupi,
ou africana. E eram as mães que cuidavam dos bebês
mestiços, das crianças mestiças, dos adolescentes
mestiços.
Ao longo do período colonial, o Brasil ganhou uma
população mestiça enorme - e essa é uma das fontes
da extraordinária energia psíquica dos brasileiros.
Sua mentalidade foi sendo gestada em casas nas
quais o nheengatu e o tupi-guarani (ou uma língua
aruák) eram o dia inteiro falados pelas mães.
Ora, isso que acontecia com os portugueses do
Brasil, quase sempre mestiços, nunca aconteceu com
os portugueses de Portugal. Inúmeros vocábulos em
língua tupi acabaram sendo integrados na linguagem
do português brasileiro.
Quando sabia falar a língua do pai, o filho de pai
português ee tupi nascido emo Paulo no sécu-
lo 17 usava palavras portuguesas, cujas remotas ori-
gens se encontram no latim ou no grego. Mas também
usava palavras de origem tupi que nenhum habitante
de Lisboa (ou poucos deles) conseguiria entender.
Trezentos anos depois, continuamos a usar essas
palavras no Brasil inteiro: capim, urubu, caatinga,
maracujá, biboca, ariranha, tatu, tamanduá, mandio-
ca, juriti, guará, jacaré, cupuaçu, jabuticaba, açaí,
aipim, araçá, araponga, arara, babaçu, beiju, bocaiúva,
buriti, caiçara, caipora, caitetu, caju, gamboa,
Capítulo 2
catanduva, cipó, cuia, cupim, guariroba, igarapé, ingá,
ipecacuanha, itaimbé, jabuti, taquara... E centenas de
outras.
Sem o samba, a capoeira e o maracatu, a cultura
brasileirao seriao rica como é. E essa é uma parte
da contribuição negra para o grande caldeirão étni-
co-cultural chamado Brasil. O mesmo pode ser dito
do lundu, da congada e do acalanto, que em outras
épocas, ou regiões do país, contribuíram para a for-
mação musical e poética do povo brasileiro.
Nas artes plásticas e visuais, a contribuição do
negro foi importantíssima, tanto no período colonial
- com os pintores Manoel da Cunha, Jesuíno do Monte
Carmelo, Leandro Joaquim e Raimundo da Costa e
Silva -, quanto no Império, com Francisco Pedro do
Amaral. Eo é preciso pensar muito. Basta lembrar
que o Aleijadinho era filho de escrava e que Macha-
do de Assis era mulato, para notar a extraordinária
vinculação do negro com as artes e com a literatura
no Brasil.
Essa longa tradição chegou aos séculos 19 e 20
com muita força, no jornalismo, na música, na escul-
tura, no teatro, no romance, na dança, na poesia, no
ensaísmo, no cinema: Cruz e Sousa, Gonçalves Cres-
po, José do Patrocínio, Luis Gama, Lima Barreto,
Teodoro Sampaio, Edison Carneiro, Abdias Nascimen-
to, Ruth de Sousa, Sílvio Caldas, Ataúlfo Alves,
Clementina de Jesus, Cartola, Lupicínio Rodrigues,
Rubem Valentim, Zezé Mota, Milton Nascimento, Gil-
berto Gil, Ivone Lara, Emanoel Araújo e dezenas de
outros artistas ilustres, que o Brasil todo admira,m
uma origem africana, mais ou menos remota.
Usamos a língua portuguesa de formao livre e sol-
ta, que a cultura brasileira só podia ser antropofágica e
sintetizadora, como de fato é. Os brasileirosoo cria-
tivos e inventivos no falar que a palavra vernáculo - lin-
Cultura de síntese
Capítulo 2
guagem pura, isenta de estrangeirismos - fica meio sem
sentido entre nós. Vernáculo também quer dizer idioma
próprio de um país, de uma terra. E nosso vernáculoo
é próprio desta terra, é originário da Península Ibérica, a
milhares de quilômetros daqui...
O que nos distingue e singularizao é o falar
castiço: é o formidável poder de síntese da cultura
brasileira. O racismo e as forças desagregadoras do
separatismo também atuam por aqui, mas felizmente
as forças de atração, empatia e afinidade acabaram
prevalecendo, neste final de século 20.
Por isso,o somos um aglomerado de guetos, mas
uma grande síntese em andamento. A incompletude
dessa síntese torna tudo muito relativo e instável, mas
quando comparamos nossa situação com a de outros
países (Estados Unidos ou África do Sul, por exemplo),
percebemos que a solidariedade, a amizade e a coope-
raçãom muito mais chances de vencer entre nós.
A invenção do Brasil
As terras que hoje habitamoso foram descobertas
pelos portugueses, mas sim por aqueles caçadores e
artistas (faziam magníficas pinturas rupestres) do
Paleolítico Superior, que vieram do Oriente.
No entanto, aquilo que existia por aqui antes da
chegada dos portugueses - cerca de mil povos falan-
do mil línguas diferentes - aindao era o Brasil.
A síntese-Brasil teve início com os portugueses, há
quinhentos anos; assim, esta é a idade de nossa so-
ciedade e o marco inicial do processo de formação de
nossa cultura.
A invenção do Brasil - país síntese, obra-prima da
miscigenação, do sincretismo e da diversidade - é uma
Cultura de síntese
Capitulo 2
das melhores expressões, na historia cultural, do poder
da inventividade. Um poder que é um não-poder, pois
nao existe para o exercício da dominação. É o poder que
confere alegria e está ligado à arte de viver.
Glauber Rocha dizia que todo cineasta é um inven-
tor. Poderíamos dizer também - já que o Brasil é um país
deliciosamente inventado, a partir de tantas eo varia-
das tradições - que todo brasileiro tem um pouco de
inventor em sua trajetória de vida, formada de sucessi-
vas adaptações, migrações, aculturações, achamentos,
deslumbramentos, trombadas, trancos e jeitinhos.
Às vezes os estrangeiros percebem no povo brasi-
leiro qualidades que nem sempreo percebidas
aqui. Neste momento, temos problemas sociais e
ambientais gravíssimos, e a crise econômica é uma
ameaça maior. Procurar soluções para esses proble-
mas é tarefa prioritária.
Mas, ao mesmo tempo - e isso é extraordinário na
cultura brasileira -, somos o país no qual, segundo
Jacques-Ives Cousteau, "se um dia a humanidade inteira
cair na depressão, é no Brasil que encontrará a regenera-
ção, do mesmo modo que, se um dia ela estiver próxima
da asfixia, é na Amazônia que poderá se reanimar".
Essa capacidade de regeneração - por meio do
entusiasmo e da arte de viver -o é um poder de
dominar: é um poder de vitalizar.
O Brasilo pode ser encarado apenas como fon-
te de recursos e de matérias-primas, local de investi-
mento e especulação financeira. Ou, ainda, como ce-
nário macabro de inúmeras violências contra meno-
res abandonados, negros, trabalhadores sem terra,
povos indígenas e favelados.
O Brasil tem todos esses problemas, como eu já dis-
se, mas tem também auto-estima suficiente para encon-
trar soluções para os mesmos. uma visão puramente
negativa de nossa situação pode nos afundar de uma vez.
Cultura de síntese
É importante às vezes lembrar, sem nenhum ufanis-
mo: essa auto-estima nao é fruto de uma manipulação
ideológica, mas decorre do próprio caráter rejuvenescedor
da cultura brasileira. Cultura que se formou nas encruzi-
lhadas e nos múltiplos caminhos que trouxeram a huma-
nidade aqui para estas terras, ao longo de intermináveis
migrações históricas e 'pré-históricas'.
Apesar de todas nossas deficiências no plano político
e de nossas fragilidades sociais, nossa cultura tem
forças inegáveis: adaptabilidade; facilidade para im-
provisar e encontrar soluções originais; admiração
pelo novo; criatividade; esperança no futuro; alegria
de viver; pronta disponibilidade para uma brincadei-
ra ou um jogo.
uma cultura vigorosa
Capítulo 2
Se alguém acha que essas qualidades estão
homogéneamente distribuídas entre todos os países
do planeta, está muito enganado, ou nunca teve oca-
sião de viajar e viver fora do Brasil. Somos um país-
encruzilhada, país-labirinto, país de imigração, onde
a intolerância e a rigidez existem, mas em proporções
menores que em outros países do mundo. E por isso
ainda temos salvação.
como nenhuma sociedade é um todo homogêneo,
é evidente que essas qualidadeso estão distribuí-
das uniformemente entre todos os brasileiros. E é
evidente também que muitos brasileiros - envolvidos
com corrupção administrativa, crime organizado, abu-
so sexual de crianças, violência contra trabalhadores
rurais, falcatruas políticas e financeiras, exploração
desenfreada de seus semelhantes etc. - nadam a
ver com o futuro-probabilidades de que estamos fa-
lando, um mundo novo e melhor.
Homens corruptos e violentos fazem parte de uma
rotina velha e repetitiva, ligada desde os tempos colo-
niais à destruição, eo à construção de algo novo.
Tânatos (que na mitologia grega simboliza o impulso
de morte e destruição) e Eros (deus que assegura a con-
tinuidade da espécie e a coesão do cosmo)o vivem
em compartimentos estanques. Vivem juntos nessa
mesma sociedade desigual que, por um lado, contém
em seu interior forças e elementos propiciadores de
cooperação, amizade, crescimento e solidariedade.
Por outro lado, contém simultaneamente estruturas
e instituições que incentivam e facilitam a exploração
econômica, a fraude, as falcatruas, a falta de transparên-
cia, as agressões ao meio ambiente, os desequilíbrios
sociais, o analfabetismo, a doença, o preconceito e o
racismo. É como se o Brasil fosse um belo e grande pás-
saro tentando levantar vôo, com uma pedra (ou um saco
de dejetos coloniais) amarrada nos pés.
Cultura de síntese
Em qualquer outra sociedade do mundo, tanto a
destruição quanto a construção estão igualmente pre-
sentes. É provável inclusive que as dimensões
tanatológicas (as forças de destruição) da história bra-
sileira superem as de outros povos das Américas e da
Europa. No entanto, como a cultura brasileira tem
qualidades queo força para aqueles que trabalham
com Eros numa perspectiva de renovação social, tam-
m é provável que o Brasil - com todos seus pro-
blemas - possa vir a ser aquele país em que a huma-
nidade em depressão virá buscar um novo alento.
Nossas múltiplas encruzilhadas culturais (nas
quaiso gerados os sonhos)o muito ricas em ca-
rinho, em entusiasmo e em energia psíquica.
Vivemos numa linha fronteiriça da consciência, na qual
manifestações de dignidade e felicidade se misturam com
manifestações de crueldade e horror. Mas, a cada manhã,
estamos mais próximos do sol, aprendendo a voar, apesar
do baixíssimo nível dos políticos destas latitudes.
o somos um país lascivo, inquietante e exótico,
como insinuam certas visões folclorizantes de nossa
cultura, ainda em moda na Europa. Mas somos, isto sim,
parte desse singular e originalíssimo fenòmeno históri-
co-cultural que conseguiu dar alguma unidade para tan-
ta diversidade aqui acolhida ao longo de cinco séculos.
Aos autóctones de língua tupi, aruák, jê e karib vie-
ram se misturar, nos últimos quinhentos anos, congos,
benguelas, cabindas, daomeanos, iorubas, açorianos,
minhotos, algarvios, galegos, andaluzes, napolitanos,
calabreses, sicilianos, toscanos, alemães, austríacos,
ucranianos, russos, poloneses, finlandeses, japoneses,
coreanos, turcos, sírios, libaneses, egípcios, gregos, ingle-
ses, holandeses e milhares de pessoas de muitas outras
procedências geográficas, lingüísticas e religiosas.
Sempre que uma síntese se processa, o futuro
passa a ser mais sedutor que o passado, e então os
hábitos anterioreso impedem mais o advento do
novo. Isso ocorreu, e continua ocorrendo, nas múlti-
plas encruzilhadas a que chamamos Brasil.
Nessa idade - quinhentos anos -, um país deixa
de ser jovem e entra em sua plena maturidade, isto é,
chegamos ao tempo em que é preciso deixar o pássa-
ro levantar vôo, livre de qualquer peia colonial
preconceituosa, corruptora ou derrotista.
Capítulo 3
PRECONCEITO E SOLIDARIEDADE
ensar nas diferentes formas de dominação co-
lonial como resultado de um processo inevi-
tável de superioridade racial foi uma manei-
ra muito comum de tranqüilizar a consciência das
elites européias durante um amplo período, ao lon-
go do qual o racismo impregnou uma boa parcela
das historiografías francesa, inglesa, alemã e espa-
nhola.
Esse racismo historiográfico preconceituoso em
relação a negros e índios também existiu em Portu-
gal e no Brasil. Mas nesses dois países, por razões di-
versas, surgiu também o mito da democracia racial
brasileira - que ainda hoje faz muita gente crer que
o há racismo no Brasil, ou que essa questão pode
ser reduzida à questão da dominação de classe.
O preconceito
contra o negro em Portugal
Na verdade, a visão preconceituosa em relação ao
negro esteve presente em Portugal desde a chegada
dos primeiros contingentes de escravos ao Algarve, na
primeira metade do século 15, cem anos antes da che-
gada dos primeiros escravos africanos ao Brasil, que
ocorreu em 1538.
Em seu livro Crônica do descobrimento da Guiné -
concluído em 1453 -, Zurara relata o desembarque de
um contingente de escravos na cidade portuguesa de
Capítulo 3
Lagos. Seu depoimento expressa todas as contradições
e o caráter ao mesmo tempo econômico e religioso
da expansão mercantilista portuguesa.
Naquele 8 de agosto de 1444, ali em Lagos, os afri-
canos estavam sendo vendidos na presença do infan-
te d. Henrique, que abriuo dos 46 escravos que lhe
cabiam como quinto. Essa venda de escravos, dali por
diante realizada em escala cada vez maior, foi um dos
negócios mais rendosos da fase que precedeu a acu-
mulação capitalista propriamente dita.
No entanto, esse comércio era visto pelas classes
dominantes portuguesas como uma obra de salvação,
de caráter religioso, pois os escravos eram sistemati-
camente batizados e convertidos ao catolicismo. É o
que diz Zurara, expressando a mentalidade dominan-
te em Portugal naquela época. Segundo ele, montado
em um magnífico cavalo e cercado por sua comitiva, o
infante d. Henrique sentia uma satisfação indescritível
ao contemplar a salvação daquelas almas.
Enquanto isso, os 230 africanos se entreolhavam,
com as cabeças baixas e as faces banhadas em lágri-
mas. Alguns gemiam de tristeza, enquanto fixavam
seus olhos no céu. Outros batiam nas faces com as
próprias mãos e se lançavam ao chão. Outros canta-
vam um lugubre canto à moda de seu país e, embora
o fossem compreendidos pelos portugueses, ex-
pressavam claramente uma grande dor.
A angústia atingiu o ponto máximo quando che-
gou o momento da distribuição dos negros entre seus
novos proprietários, depois de efetuadas as transações
comerciais. Esposas foram separadas de seus maridos
e as mães faziam um esforço desesperado, e inútil,
parao se separar de seus filhos.
O relato de Zurara é muito importante para aque-
les que tentam hoje compreender o caráter específi-
co assumido pelo racismo em Portugal e no Brasil. O
Preconceito e solidariedade
Capítulo 3
cronista demonstra sua compaixão diante da trágica
situação daqueles homens, mulheres e crianças, re-
cém-chegados da Guiné. É provável que uma boa
parte da multidão que testemunhou aquela cena te-
nha nutrido esse mesmo sentimento em relação aos
negros. Mas é muito provável também que a maioria
tenha pensado como Zurara: apesar do caráter trági-
co da separação de pais e filhos, maridos e esposas,
tudo era feito pela salvação de almas que, de outra
forma, estariam perdidas.
Essa obliteração da consciência, que em Portu-
gal e no Brasil sempre acompanhou os pensamen-
tos racistas,o se explica apenas pela religião, mas
também pelo paternalismo do escravocrata portu-
guês.
Anos depois daquele desembarque, Zurara relatou
que os infelizes eram tratados com benevolência, as-
sim que aprendiam a língua portuguesa e adotavam
o catolicismo. Ou seja, o português pensa que 'faz o
bem' quando é paternalista com aqueles a quem ele
destroçou (pais separados de filhos, irmãs de irmãos,
todos eles arrancados de sua terra de origem pela
força, vendidos como escravos).
Querer ser benigno e, ao mesmo tempo, dono de es-
cravos, é um paradoxo psicocultural que fez parte do
complexo processo de formação das ideologias racis-
tas que ainda hoje sobrevivem no Brasil.
Paternalismo e violência
Os portugueses que vieram para o Brasil nos séculos 16
e 17 trouxeram para o Novo Mundo essa mentalidade
que já era corrente em Portugal no século 15, no tempo
de Zurara. No novo contexto econômico e cultural da co-
Preconceito e solidariedade
lônia, caracterizado pelo latifúndio e pelas dimensões do
país, o racismo ganhou conotações mais duras.
A miscigenação ocorridao expressa nenhum su-
posto abrandamento dos preconceitos etnocêntricos em
relação aos negros. Tornou-se prática freqüente daque-
les homens isolados nos trópicos, em uma época (no
século 16, principalmente) na qual a colonização era
obra quase exclusiva de pessoas do sexo masculino.
Mestiçagem e preconceito de cor se combinaram em
proporções diferentes nas diversas colônias - inglesas,
francesas, holandesas e portuguesas. Essa é a particula-
ridade dos colonos portugueses, em comparação com os
holandeses ou ingleses: sua união sexual freqüente com
índias e negras. Mas elao anula, nem exclui, o racis-
mo ideológico, estético e cultural, que nunca deixou de
existir no Brasil, até os dias de hoje.
O fato de a mulher negra ter com freqüência iniciado
sexualmente os filhos de donos de engenho, no Nordeste,
ajuda a explicar a forma específica assumida pelo racismo
no Brasil. Maso anula a existência do racismo.
Fosse o branco mais ou menos paternalista ou católi-
co, mais ou menos propenso a aventuras sexuais com ne-
gras e índias, a mentalidade que predominava no período
Capitulo 3
colonial era aquela registrada pelo padre jesuíta André
João Antonil, em 1711: "no Brasil, costumam dizer que
para o escravoo necessários três 'p', a saber: pau, pano
e pão".
O 'p' da palavra pau, a que se refere Antonil, diz
respeito a castigo. O negro precisava apanhar, para
se sujeitar definitivamente a sua condição de escra-
vo - fossem ouo seus proprietários adeptos da ati-
vidade sexual com negras, no canavial ou na casa-
grande. O 'p' referente a apanhar era muito mais fre-
qüente do que o de comer (pão) e o de vestir (pano),
como explica o jesuíta: "contudo, provera Deus que
o abundante fosse o comer e o vestir, como é mui-
tas vezes o castigo, dado por qualquer coisa prova-
da ou levantada".
Antonil, italiano de Lucca que morou 35 anos no
Brasil,o expressava um ponto de vista isolado. Essa
maneira de encarar o negro, paternalista e autoritária
ao mesmo tempo, foi típica do racismo em sua ver-
o luso-tropical.
No sertão brasileiro, quase cem anos antes de Antonil,
frei Vicente do Salvador mostrava a maior indiferença
diante das crueldades cometidas contra negros que ha-
Preconceito e solidariedade
viam reconquistado sua liberdade por meio da fuga.
Ao relatar o procedimento adotado pelo gover-
nador Diogo Botelho, de utilizar índios para
recapturar negros fugitivos, o religioso deixa
transparecer a mentalidade dominante no século 17:
o negro é bom para o trabalho, e a negra para o tra-
balho também (e, eventualmente, para a cama); mas
sempre, em qualquer dos casos, sóo bons quan-
doo fogem. Quandoo ousam questionar sua
condição de escravo.
Em relação aos quilombolaso havia paternalis-
mo algum, nem sequer o paternalismo autoritário que
valia para os demais negros. O negro fujão negava o
sistema pela raiz e precisava a qualquer custo ser re-
tirado da situação livre que o quilombo lhe oferecia
temporariamente. com esse objetivo, todos os méto-
dos podiam ser utilizados - até mesmo a instigação
de índios contra negros.
Frei Vicente era um homem culto. Na dedicatória
que escreveu em seu livro, em 1627, fala de lógica, de
física e de ética, mencionando Aristóteles, Plutarco e
Homero. Era um homem de letras, nascido na Bahia.
Se até mesmo entre homens cultos e cristãos, como
ele, o racismo e o escravismo conseguiam obliterar a
memória e limpar a consciência, o queo dizer dos
demais brancos do Brasil seiscentista?
Naquele regime baseado na autoridade patriarcal,
a tendência a dissimular o excesso de autoridade sob
a forma de proteção se combinou com atrações se-
xuais inegáveis.
O racismo atualmente existente no Brasil é herdeiro
de tôda essa intrincada situação colonial inicial, em-
bora tenham surgido novos fatores, no decorrer dos
séculos 18 e 19.
Capítulo 3
Negros libertos
e homens livres miseráveis
A descoberta de ouro em Minas Gerais (1693), Mato
Grosso (1719) e Goiás (1725) deu uma nova faceta à
questão do racismo, no século 18. Para entendê-la é
preciso, antes, perceber algumas das conseqüências
sociais do acúmulo de riquezas e da concentração de
miséria provocados pelo ouro.
O fato de o Brasil ter se tornado o maior produtor
mundial de ouro, em poucas décadas, atraiu para a co-
lônia, e em particular para Minas Gerais, uma enor-
me massa de portugueses recém-chegados da Euro-
pa, além de um grande número de luso-brasileiros de
outras capitanias.
A circulação de mercadorias possibilitada pela
mineração desencadeou um processo de integração
das várias regiões do Brasil, antes isoladas entre si.
Pelo rioo Francisco, chegavam a Minas Gerais vin-
dos do Nordeste colonizadores que traziam aguar-
dente, fumo e gado. Do sul, pelas feiras de Sorocaba,
chegavam tropeiros paulistas e gaúchos, trazendo
muarés. Abriu-se um caminho de Minas para o Rio de
Janeiro, para onde em 1763 se transladou a capital do
vice-reino.
Em vários sentidos e em várias direções, o sertão foi
sendo rasgado e povoado. Pela primeira vez, no inte-
rior de um país até então essencialmente agrícola, se
iniciou no território das minas um processo de urba-
nização.
Praticamente tôda a população de Minas Gerais se
concentrava em núcleos urbanos. Em meados do-
culo 18, Mariana eo João d'El Rei abrigavam mais
de 10 mil habitantes e Vila Rica de Ouro Preto conta-
Preconceito e solidariedade
Capítulo 3
va com mais de 30 mil, população considerável para
a época. Havia ainda mais onze vilas oficiais e inú-
meros povoados, em muitos dos quais se desenvol-
via o setor de serviços, com toda a dinâmica caracte-
rística do setor terciário: pequeno comércio, novos
ofícios urbanos e artesanato diversificado.
A colonização, até então restrita ao litoral, avan-
çava rumo ao interior, e dava uma nova configuração
à sociedade, com a emergência de uma classe média
e o aumento do número de negros alforriados. Esse
aspecto é o que mais nos interessa nesse momento,
por sua relação com o tema do racismo.
A proporção de alforriados em relação ao total de
escravos passou de 1,4 por cento, em 1735, para 35 por
cento, em 1786. Essa massa considerável de negros
alforriados nem sempre encontrava uma vida digna.
Alguns já dominavam um ofício artesanal, que passa-
ram a exercer livremente. Outros se dedicaram ao
pequeno comércio, ou se tornaram faiscadores.
Preconceito e solidariedade
No entanto, uma grande parcela desses negros
alforriados se misturou aos brancos pobres e mi-
seráveis que já viviam naquelas vilas e cidades.
Nem sempre eram indigentes, ou mendigos, mas
quase sempre maldotados e pouco favorecidos do
ponto de vista econômico e profissional. Acabavam
indo integrar um grande contingente de vadios e va-
gabundos. Fruto do processo de desclassificação social
ocorrido em Portugal e nas minas, eram tidos como
membros de uma outra humanidade, além de serem
considerados inferiores, devido à cor de sua pele.
No século 18, esse processo de desclassificação, ou
exclusão social,o atingiu só os negros, mas também
milhares de brancos. Mas fatores ideológicos encar-
regaram-se de fazer desaparecer essa realidade e
substituí-la por outra versão histórica, que relaciona-
va, de forma exclusiva, marginalidade e cor (negra) da
pele. Em vez de se abrir para libertos e negros livres,
a sociedade colonial muitas vezes criou para eles si-
tuações ainda mais difíceis.
Ao lado dessas relações, nas quais predominavam
a autoridade e a violência do escravista, havia tam-
m relações em que amor e interesse apareciam jun-
tos na mentalidade senhorial, revelando laços de
cumplicidade que ligavam senhor e escravo, antes da
alforria. Às vezes tais laços permaneciam após a liber-
dade do escravo - por exemplo, sob a forma de
compadrio.
Essas estranhas misturas de carinho e ódio,
medo e confidencia, castigo e generosidade confe-
rem ao regime colonial português sua especificida-
de, e ao patriarcalismo senhorial um papel desen-
corajador dos esforços coletivos de emancipação,
exercendo uma influência que limita e esteriliza o
negro, mantendo-o na dependência com outros
métodos.
Capítulo 3
Muitos desses preconceitos e lugares-comuns pas-
saram para o século 20. Em meio a eles, predominam
fatos reais, meias verdades e mentiras. É desse con-
texto incerto e ultracontraditório que as ideologias
racistas, em suas várias versões brasileiras (mais ou
menos paternalistas, mais ou menos satíricas, mais ou
menos discriminadoras) se alimentam.
O preconceito contra os índios
Também os índios eram vistos com extremo preconceito,
pelos portugueses e por seus descendentes no Brasil. Por-
tugal e Brasil, de um lado, e o resto da Europa, de outro,
construíram visões diferentes do homem americano.
Na Itália, na França e nos demais países europeus,
graças principalmente às cartas de Américo Vespúcio,
a terra recém-descoberta e seus habitantes pareciam
algo belo e agradável (levando à concepção do 'bom
selvagem', que tanta influência teve no pensamento
europeu do século 18). No entanto, em Portugal e no
Brasil essas idéias quaseo tiveram difusão.
Preconceito e solidariedade
Nenhuma corrente indianófila significativa está
representada na literatura portuguesa, na qual o
indianismo jamais exerceu papel importante. No pró-
prio Brasil, o entusiasmo pelo 'bom homem natural'
só encontraria uma expressão mais forte na literatura
romântica do século 19. Nos séculos anteriores, a fi-
gura do índio assumia um papel ultranegativo.
Em Tratado da terra do Brasil, datado do final do
século 16, Pero de Magalhães Gândavo constrói uma
imagem terrível dos primeiros habitantes que, segun-
do ele, seriam desumanos e cruéis, vivendo como
animais, sem ordem e sem sociedade. Afirmava que,
desonestos e luxuriosos, eles se entregavam aos-
cios como seo tivessem razão humana.
Em Diálogo das grandezas do Brasil, escrito em 1618
por Ambròsio Fernandes Brandão, um dos parceiros
do diálogo, Alviano, diziao ver diferença entre os
índios e as feras.
Simão de Vasconcelos, por sua vez, escreve que,
quando Gaspar de Lemos chegou a Portugal em 1500,
com a notícia da descoberta do Brasil e levando con-
sigo um índio, a população lisboeta considerou o via-
jante tupi "semelhante às cabras, ou a um fauno, um
daqueles monstros da Antigüidade".
Lendo Maurício de Heriarte, em sua Descrição do
estado do Maranhão, Pará, Gurupa e Rio das Amazonas,
encontramos preconceitos semelhantes em relação
aos indígenas do século 17. Para Heriarte, todos os
índioso falsos, covardes, traidores, carniceiros, cru-
éis, homicidas, mentirosos e maliciosos, entre outros
atributos igualmente negativos.
Um ponto de vista brasileiro
Os escritores românticos brasileiros do final do
século 19 se mostraram mais favoráveis e simpáticos
Capítulo 3
aos índios. Mas, apesar de seu interesse pelos estu-
dos históricos, os textos literários quase sempre se
limitam a uma idealização do passado. Por exemplo,
nos romances Iracema e Ubirajara, de José de Alencar,
há sérias incorreções etnológicas e históricas.
Em sua História geral do Brasil, publicada em 1854,
Francisco Adolfo de Varnhagen afirma que a violên-
cia contra os índioso foi uma manifestação de
barbárie ou tirania, mas a atitude necessária para
impor o cristianismo e hábitos civilizados. Para
Varnhagen, a sujeição dos povos indígenas era neces-
sária - pois, quando entregues à liberdade, logo vol-
tavam a seus usos e idolatrias.
Quando se recorda que Varnhagen foi um dos ex-
poentes máximos da chamada historiografia brasilei-
ra tradicional, percebe-se a que ponto esses precon-
ceitos contra os índios seriam reproduzidos nas ge-
rações seguintes. O grande erro do crítico contempo-
râneo seria introduzir idéias atuais na discussão da
época. Mas no período colonial já houve quem criti-
casse as atrocidades contra os índios, como Antônio
Vieira, por exemplo. E Varnhagen sabia disso (sua eru-
dição era enorme); mas seu oficialismo e seu respei-
to às razões de Estado mantiveram-no sempre coeren-
te na defesa dos métodos coercitivos.
Em sua História das bandeiras paulistas (edição em
três volumes, lançada em 1951, que faz uma síntese
da monumental História geral das bandeiras paulistas,
em onze volumes, publicada entre 1924 e 1950),
Affonso d'EscragnolleTaunay alega que as violências
contra os índios cometidas no sertão - nas longín-
quas regiões interioranas do Brasil - também haviam
sido praticadas por outros povos europeus, eo
apenas por portugueses e espanhóis.o coisas da
época, diz ele, encarando a violência como necessi-
dade daquele momento histórico.
Preconceito e solidariedade
Embora reconhecendo que nos primeiros séculos
de vida da América colonial a escravidão de negros e
índios foi acompanhada de um "cortejo de injustiças",
violências e "crueldades", Taunay acaba tratando de
forma ufanista as proezas armadas do bandeirismo de
apresamente Chega até mesmo a dizer queo "inú-
teis e ridículas" as tentativas daqueles que tentam obs-
curecer o vulto daqueles feitos épicos dos bandeiran-
tes contrapondo-lhes a crueldade da conquista, pois
o regime do "homem lobo do homem" permanecia
ainda em vigor.
Graças a esse raciocínio simplista, a violência come-
tida por outros europeus (Taunay cita pilhagens colo-
niais de franceses, ingleses, holandeses e dinamarque-
ses) contrabalançaria a violência dos portugueses; ou
seja, a guerra justifica a guerra e o historiadoro pode
nunca interpretar fatos - ou melhor,o pode criticá-
los, mas pode enaltecer os feitos do colonialismo, como
acontece na História das bandeiras paulistas.
Essas opiniões, emitidas em 1951, mostram como
até datas relativamente recentes a historiografia tra-
dicional manteve seus pontos de vista etnocêntricos.
Um pesquisador de grande erudição, como Taunay,
ainda fazia comentários parecidos com os de frei
Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, trezen-
tos anos antes (considerada a primeira história do
Brasil escrita por um brasileiro).
Esses vários cronistas coloniais e historiadores repro-
duzem a respeito dos povos indígenas visões de
mundo que foram dominantes no Brasil até datas
muito recentes, consolidando e prolongando as po-
sições preconceituosas e racistas.
Falando dos índios, frei Vicente do Salvador faz em
tom pejorativo a seguinte afirmação, que se tornou fa-
Capitulo 3
mosa: "e o pior é que carecem de, de lei e de rei". Para
ele, os indios só se distinguiam "em serem uns mais
bárbaros que outros (posto que todos oo assaz)".
Essas observações que acabo de fazero dimi-
nuem em nada a imensa contribuição de Taunay para
a historiografia brasileira, com sua vasta obra, de
mais de cem títulos. O fato de subestimar a
destrutividade do bandeirismo paulistao lhe tira o
lugar de destaque em nossa produção historiográfica,
na primeira metade do século 20. Sem ele, os remo-
tos sertões do país - e suas 'fronteiras' nos séculos 17
e 18 - seriam ainda mais inacessíveis para o pesqui-
sador contemporâneo interessado na história do in-
terior do Brasil.
Em 1942, Rocha Pombo publicou sua História do
Brasil, na qual se refere aos índios do Norte e Nor-
deste como "matilhas de depredadores, dificilmente
subjugáveis". A conclusão reflete a mentalidade domi-
nante na época: "A violência se tornou o único recur-
Preconceito e solidariedade
so de arranjo entre as duas raças". Durante muitas
décadas, os livros de Rocha Pombo foram amplamen-
te utilizados como textos didáticos em escolas de to-
dos os níveis, prolongando o efeito multiplicador da
visão social ali contida.
Em sua História do Brasil, publicada em 1935 e
reeditada em 1959, Pedro Calmon também se mantém
dentro da visão que a historiografia tradicional per-
petuou em relação ao índio. Embora reconhecendo
que "esta terra tinha dono", "era do índio", Calmon tra-
ta os antigos habitantes de forma muito contraditó-
ria. Ora aparecem como bárbaros, "tão bárbaros que
viviam pelo mato como bichos", ora "como capazes de
fidelidade e vida associativa".
Pedro Calmon foi reitor da universidade do Brasil e
ministro da Educação no governo Dutra, em 1949 e 1950.
É grave constatar que, detendo tanta responsabilidade,
um pensador descreva os índios como uma verdadeira
'praga'. O etnocentrismoo podia ser mais evidente:
índio visto como 'bicho' e como 'praga'.
Assinale-se, porém, a favor do senhor Pedro Calmon,
que em algumas passagens ele expressa um ponto de
vista contrário. Depois de ter chamado os tapuias de
bichos e praga, reconhece que eles "jamais se deixaram
domesticar", tendo sido "inimigos inclementes da colo-
nização", o que lhes confere um caráter quase heróico
na longa resistência aos invasores.
O texto de Pedro Calmon é muito contraditório, e
sua ampla utilização nas escolas da época nos dá uma
idéia do processo de produção e reprodução das ide-
ologias etnocêntricas no Brasil.
o menos imbuído de preconceitos, o historiador
jesuíta Serafim Leite escreveu uma obra monumental,
cuja importânciao pode ser subestimada. Sua Histó-
ria da Companhia de Jesus no Brasil, publicada entre
1938 e 1950, contém informações abundantes a respei-
Capítulo 3
to do relacionamento de colonos, índios e jesuítas em
todo o sertão do Brasil, no período 1549/1760.
O autor pesquisou documentos relativos ao Bra-
sil em inúmeros arquivos europeus, durante anos,
dedicando sua vida a essa tarefa. No entanto, a pers-
pectiva etnocèntrica prejudica muitas análises conti-
das nos dez volumes de sua obra. Ele recorre a con-
ceitos cientificamente duvidosos, afirmando a supe-
rioridade da cultura européia e declarando-se indife-
rente ao etnocídio ao lançar a pergunta: "que importa
o debate acerca da sobrevivência de culturas?".
Oliveira Viana é ainda mais conservador em relação
a índios e negros. Em seu livro Populações meridionais
do Brasil, que apareceu pela primeira vez em 1920, e
mereceu várias edições posteriores, ele dedica um ca-
pítulo às lutas contra negros e índios feitas por bandei-
rantes, exaltando a violência e mostrando de forma
preconceituosa e racista o "baixo povo rural", formado
por mestiços desocupados, ociosos e vagabundos.
Oliveira Viana louva a guerra, que valoriza insis-
tentemente, em particular ao falar do gaúcho e do Rio
Grande do Sul, e sem nenhuma ambigüidade coloca
o negro e o índio como inferiores. No entanto, o pró-
prio autor era mulato, o que revela toda a complexi-
dade psicológica que está por trás dessa historiografia
ultraconservadora.
Ele trata o índio como um bárbaro, e como o
maior obstáculo à expansão da colonização, razão
pela qual caracteriza a conquista da terra como um
empreendimento essencialmente guerreiro, sem o
qualo se venceria a "massa hostil da bugreria exas-
perada". Seu racismo levou-o a afirmar que o índio,
"cuja inteligênciao parece superior à do negro,
embora ambos pertençam a um tipo inferior,o se
civiliza porque desdenha e, mesmo, repugna nossa
civilização". Já o negro "a imita e macaqueia".
Preconceito e solidariedade
Oliveira Viana foi professor da faculdade de Direi-
to do Estado do Rio de Janeiro, participou da comis-
o encarregada de redigir o anteprojeto da Consti-
tuição apresentado à Assembléia Nacional Constitu-
inte de 1933/1934, e era membro da Academia Brasi-
leira de Letras.
Assim como nem todos os cronistas coloniais
transmitiram uma imagem negativa do índio - Fernão
Cardim, por exemplo - também na chamada
historiografia tradicional vamos encontrar autores que
vêem a questão indígena com outros olhos. É o caso
de Capistrano de Abreu, que em seus Capítulos de
história colonial considera que "cumpria amparar a
pobre gente das violências dos colonos". Refere-se ele
à "cobiça dos colonos", aos "governadores venais" e,
amparando-se em palavras do padre Antônio Vieira,
afirma que os alicerces da sociedade brasileira "assen-
taram-se sobre sangue, com sangue se foi amassan-
do e ligando o edifício". Mas Capistrano foi apenas
uma das honrosas exceções, no interior de uma
historiografia majoritariamente preconceituosa em
relação aos índios.
Cooperação cultural
e recusa do racismo
Também existiu na história do Brasil um grande-
mero de pessoas não-racistas, dotadas de uma visão
de mundo pacífica, com solidariedade interétnica e
cooperação cultural. Aqui, a aculturação, o sincretismo
religioso e a mestiçagem se processaram de forma
menos conflituosa do que nos Estados Unidos, por
exemplo, e esse fato merece reflexão.
As diferentes formas de messianismo e
milenarismo surgidas no Brasil nos séculos 17, 18 e
19 expressam bem uma tendência (de uma parcela do
Capitulo 3
povo português e do povo brasileiro) à convivência
racial equilibrada e, até mesmo, fraterna. As manifes-
tações de sebastianismo exprimem essa tendência.
O sebastianismo anunciava a volta do rei portu-
guês d. Sebastião, morto em 1578 na batalha de Alca-
cer Quibir contra os mouros, no norte da África. O
movimento, baseado na crença de que eleo mor-
rera - e voltaria um dia, para criar um reino de bem-
estar, justiça e paz - surgiu em Portugal e mais tarde
chegou ao Brasil.
Em 1817, ocorreu em Pernambuco um movimen-
to messiânico desse tipo, em torno de Silvestre José
dos Santos: anunciava o regresso de d. Sebastião da
ilha das Brumas, para instalar definitivamente o pa-
raíso na terra. Mestiços, brancos e negros se agrupa-
ram em torno de seu líder carismático na serra do
Rodeador. Eram cerca de quatrocentas pessoas, que
viviam em comunidade e se tratavam mutuamente de
'irmãos' e 'irmãs'. Foram todos - homens, mulheres e
crianças - trucidados pelo governo.
O sebastianismo se manifestou também no Rio de
Janeiro, em 1816; em Minas Gerais (na serra do
Caraça); e na Bahia (em Ilhéus), em 1817; e em 1833
em Pernambuco, dirigido pelo mameluco João Antô-
nio dos Santos.
Em todos os casos, a esperança messiânica popu-
lar criava um clima de fraternidade racial que contras-
tava fortemente com a xenofobia e o racismo domi-
nantes nas esferas privilegiadas.
Era como se um Brasil utópico e messiânico qui-
sesse nascer, de dentro das asfixiantes e escravistas
estruturas oligárquicas. Um Brasil que esperava a volta
do Encoberto, o pai dos pobres, que levaria adiante
seu reformismo social, lá nos confins do sertão, em
que eles - os messianistas - estavam instalados.
Esse Portugal futuro, ou esse Brasil futuro,o era
Preconceito e solidariedade
o dos colonizadores gananciosos e tacanhos: era o
mundo de Bandarra -sapateiro português que, no
século 16, profetizou a vinda de um rei 'encoberto'
que conquistaria o Marrocos, derrotaria os muçulma-
nos e fundaria um império universal baseado na jus-
tiça e na paz - e de Antônio Vieira.
Um mundo de língua portuguesa que Fernando
Pessoa descreveu em versos, numa poesia que ex-
pressa toda a importância social das utopias: um
mundo no qual poderemos ser tudo, para além da
estreiteza "de uma só personalidade, de uma só na-
ção, de uma só fé".
O sincretismo das religiões afro-brasileiras é uma
prova concreta de que o Brasil tem condições de eli-
minar o racismo de seu cotidiano muito mais rapida-
mente do que qualquer outro país da América. A sín-
tese da espiritualidade é uma dádiva muito rara - e a
sociedade brasileira a recebeu.
uma sociedade que, por meio da miscigenação, in-
corporou seres humanos de todas as raças e línguas (la-
tina, germânica, eslava, escandinava, semita, turca, ja-
ponesa, coreana, chinesa, banto, sudanesa, tupi, jê etc.)
pode muito bem avançar rumo à paz e à superação do
racismo, nos próximos anos: o êxito vem quando é pos-
sível encontrar um caminho novo, como queriam os
sebastianistas: o desejo já é uma parte da realização.
Antônio Conselheiro sabia disso, lá em Canudos,
na década de 1890, à frente de milhares de brancos,
negros, caboclos e mulatos. Os luminares aceleram a
marcha da humanidade, diziam os antigos profetas. E
os modernos poetas, como Fernando Pessoa:
Ah sentir tudo de todos os feitios!
Não ter substância, modos, desvios
Alma vista de uma estrada que vira a esmo
Seja eu leitura variada para mim mesmo!
Capítulo 3
Os inúmeros caminhos alternativos de que está
feita a história do Brasilo eram becos sem saída,
mas sim alternativas de vida que a máquina estatal
oligárquica triturou durante o Império, tornando ain-
da maior o 'Grande Desencontro'.
A monarquia unificou as diferentes áreas de língua
portuguesa da América em um só país, mas fez isso
tentando eliminar a pluralidade étnica e cultural,
como se o destino do Brasil fosse ser branco e euro-
peu, eo pluriétnico e universal.
As elites brasileiras do Final do século 19 pretendiam
construir uma nação diferente, mas tendo como modelo
as modernas nações ocidentais, reservando para a con-
tribuição africana e indígena um lugar menor, como sim-
ples elemento folclórico. Ao subestimar as múltiplas raízes
culturais da sociedade, empobreceram o Brasil.
Em vez de procurar sua identidade aqui mesmo, na
América, as elites bem pensantes, modernistas ou não,
Preconceito e solidariedade
saíram à procura de modelos europeus de desenvolvi
mento econòmico e de expressão cultural, sem perceber
que o Brasil era muito mais rico, culturalmente, do que
as sociedades que elas, nossas elites, procuravam imitar.
O Brasil era mais rico justamente por sua pluralidade
étnica, por ter sido formado por brancos, negros, ama-
relos, vermelhos e demais cores do arco-íris humano,
o belo em sua diversidade. Por outro lado, querer que
o Brasil seja africano, ou querer revalorizar exclusiva-
mente sua herança africana, é proceder da mesma for-
ma, embora em sentido inverso. O Brasil é plurietnico:
o é só negro, nem só branco.
Pluralidade, diversidade e tolerância religiosa,o
caminhos que podem agora ser retomados, depois de
tantas besteiras autoritárias e populistas cometidas
em seu território em nome do racionalismo europeu
e do progresso industrial tipo norte-americano. como
diziam os versos de Fernando Pessoa: "sejamoss
leitura variada paras mesmos!".
O Brasil é uma das expressões universalistas (em-
bora contraditória) da síntese, da fusão, do sincretismo,
e por isso o racismo caio mal na boca de um brasilei-
ro: a separatividade é sinal de ignorancia em qualquer
parte do mundo, mas aqui é ignorância ao quadrado.
Enquanto o racista europeu exclui 'o outro', o ra-
cista brasileiro exclui a si próprio, rechaça sua própria
cultura, que é uma cultura de síntese, em ebulição, em
movimento miscigenador.
FONTES DAS ILUSTRAÇÕES
Capa Terra Brasilis, mapa de Lopo Homem, Pedro e Jorge
Reinei, publicado no Atlas Miller (1515-1519). Extraído de:
Imaginário do Novo Mundo, de Ana Maria de Moraes Belluzzo
(org.).o Paulo, Fundação Odebrecht, 1994, p. 68.
9 Livro das armadas, Academia de Ciências de Lisboa. In
Grandes Personagens da Nossa História.o Paulo, Abril
Cultural. 1969. Vol. 1, p. 35.
12 Códice Florentino, Bernardino de Sahagún. Biblioteca
Medicea Laurenziana, Florença. In Astecas, coleção "Civili-
zações Perdidas". Rio de Janeiro, Abril Coleções, 1998, p. 24.
14 Enciclopédia Abril.o Paulo, Abril Cultural, 1978. Vol 8. p. 43.
20 História da colonização portuguesa do Brasil, Carlos
Malheiro Dias (org.). Porto, Litografia Nacional, 1923. p. 7.
21 Revista Humanidades. Brasília, Edunb, 1992. Vol. 8, n° 2, p.
120.
24 Gravura de J.B. Debret (1820). Acervo da Biblioteca Munici-
pal deo Paulo,o Paulo.
31 Viagem pelo Brasil, 1817-1820, K.F.P. von Martius & J. B. von
Spix.o Paulo, Melhoramentos, 1968, p. 27.
33 Viagem pelo Brasil, 1817-1820, K.F.P. von Martius & J. B. von
Spix.o Paulo, Melhoramentos, 1968, p. 83.
35 Viagem pelo Brasil, 1817-1820, K.F.P. von Martius & J. B. von
Spix.o Paulo, Melhoramentos, 1968, p. 63.
37 Gravura de Rugendas (1835). Acervo da Biblioteca Munici-
pal deo Paulo,o Paulo.
41 Grandes Personagens da Nossa História.o Paulo, Abril
Cultural, 1969. Vol. 3, p. 600.
43 Gravura de Rugendas (1835). Acervo da Biblioteca Munici-
pal deo Paulo, SR
44 Museu do Estado, Recife, PE. In Grandes Personagens da
Nossa História.o Paulo, Abril Cultural, 1969. Vol. 3, p. 601.
47 Viagem pelo Brasil, 1817-1820, K.F.P. von Martius & J. B. von
Spix.o Paulo, Melhoramentos, 1968, p. 43.
48 Gravura de J.B. Debret (1820). Acervo da Biblioteca Munici-
pal deo Paulo,o Paulo.
50 Gravura de J.B. Debret (1820). Acervo da Biblioteca Munici-
pal deo Paulo,o Paulo.
54 Gravura de J.B. Debret (1820). Acervo da Biblioteca Munici-
pal deo Paulo,o Paulo.
60 Desenho de Urpia. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
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