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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
Kelly Renata Santos Martins
A
H
ISTÓRIA
(
RE
)
CONTADA EM
U
M FAROL NO PAMPA
,
DE
L
ETICIA
W
IERZCHOWSKI
A
RARAQUARA
2008
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K
ELLY
R
ENATA
S
ANTOS
M
ARTINS
A
H
ISTÓRIA
(
RE
)
CONTADA EM
U
M FAROL NO PAMPA
,
DE
L
ETICIA
W
IERZCHOWSKI
Dissertação de Mestrado, apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários da Faculdade de Ciências e Letras da
Unesp de Araraquara, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários.
Linha de pesquisa: Teorias e crítica da
narrativa
Orientador: Prof. Dr. Sidney Barbosa
Co-orientadora: Profª. Drª. Norma Wimmer
A
RARAQUARA
2008
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M FAROL NO PAMPA
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IERZCHOWSKI
Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de
Pós em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e
Letras da UNESP de Araraquara, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Estudos Literários.
Linha de pesquisa: Teorias e crítica da narrativa
Orientador: Profº Drº Sidney Barbosa
Co-orientadora: Profª Drª Norma Wimmer
Data de aprovação: 11/04/2008
M
EMBROS COMPONENTES DA
B
ANCA
E
XAMINADORA
:
Presidente e Orientador: Profº Drº Sidney Barbosa
UNESP-FCL – Campus de Araraquara
Membro Titular: Profª Drª Maria das Graças Gomes Villa da Silva
UNESP-FCL – Campus de Araraquara
Membro titular: Prof. Dr. Henrique Silvestre Soares
UFAC – Rio Branco – Acre
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
4
Dedico à minha mãe, ma fleur, Maria Isabel
dos Santos, e ao meu atencioso pai, Luiz
Carlos Martins.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, a Deus por ter me dado força e coragem para superar mais um
desafio;
À minha mãe, que me motiva e torce por mim sempre, ao meu pai, pela constante
preocupação e disponibilidade, ao meu irmão e aos meus amigos que sempre estiveram ao meu
lado, mesmo aqueles separados pela distância;
Ao Prof. Dr. Sidney Barbosa, pela orientação, confiança e atenção;
À Profª Drª Norma Wimmer, pela co-orientação, pela amizade e por ser meu “farol” desde
a graduação;
Ao Profº. Drº. Jorge Vicente Valentim, pela bibliografia que me forneceu e pelas
preciosas considerações feitas no Exame Geral de Qualificação; e à Profª DLígia Iara Vinholes,
pela leitura atenciosa que fez do trabalho, na mesma ocasião;
Aos membros da banca da sessão de defesa do mestrado, formada, além do orientador,
pelo Prof. Dr. Henrique Silvestre Soares e pela Profª Drª Maria das Graças Gomes Villa da Silva;
Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação da FCL, principalmente à Clara Bombarda;
Ao Prof. Dr. Eduardo Catanozi e à Profª. Drª. Norma Wimmer, pelos empréstimos de
livros e pela atenção; à Profª. Drª. Giséle Manganelli Fernandes, pela redação do “abstract” e pela
disponibilidade; e ao Prof. Dr. Mário Maestri, pelos artigos e informações sulinas.
Um agradecimento especial ao meu querido Anderson, por me apoiar e estar sempre ao
meu lado; aos meus queridos amigos Alessandro Lacruz e Lilian Godoy, por ouvirem o relato de
minhas angústias e pelas palavras motivadoras; às amigas e companheiras de mestrado Taís
Bernardo e Márcia Elisa, pela força, amizade e pelo amparo mútuo; ao meu amigo e também
companheiro de mestrado e graduação Leandro Passos, que tanto me ajudou; à Angélica, pelas
dicas, à Patrícia, pelos “helps”.
Enfim, agradeço a todos que contribuíram de alguma forma para a realização desse
trabalho e para me manter no caminho.
6
A arte é uma modalidade do imaginário, e o
imaginário não reproduz a realidade
exterior, mas a transforma, e, mais longe
ainda, transfigura-a.
Maria Teresa de Freitas, 1989, p. 113.
7
RESUMO
Este trabalho centraliza-se no romance Um farol no pampa (2004), seqüência do livro A casa das
sete mulheres (2002) de Leticia Wierzchowski. Nesse, a autora revisita um episódio marcante da
história brasileira: a Guerra do Paraguai, tendo como fio condutor o amor entre dois primos:
Matias e Inácia. Os objetivos desta dissertação são: refletir a respeito das relações literatura-
história de modo geral e no contexto sul rio-grandense, em particular; analisar a maneira como a
autora representa a Guerra do Paraguai; finalmente, por tratar-se de um texto contemporâneo,
verificar se nele ocorrem características da metaficção historiográfica. Para tanto, são
apresentadas, no presente trabalho, considerações acerca do aparato teórico referente ao romance
histórico tradicional e pós-moderno, considerações de historiadores sobre a Guerra do Paraguai,
particularmente no Rio Grande do Sul, bem como reflexões relativas aos diversos tipos de
narrativa que compõem o romance. A análise do romance aborda as técnicas narrativas, os
aspectos estéticos e a reavaliação da história por meio da ficção.
Palavras–chave: relação Literatura e História, romance histórico, metaficção historiográfica,
Guerra do Paraguai..
8
ABSTRACT
This thesis addresses the novel Um farol no pampa (2004), a continuation of the book A casa das
sete mulheres (2002), by Letícia Wierzchowski. In the former work, the author revisits a
remarkable event in Brazilian history, the Paraguayan War, through the love affair between two
cousins, Matias and Inácia. This study aims at discussing the relationship Literature-History in a
broad manner, and, in special, in the context of the State of Rio Grande do Sul; it also analyzes
the way the author represents the Paraguayan War; and since the novel is a contemporary text,
this research examines whether characteristics of historiographic metafiction can be verified in it.
In order to do so, this investigation approaches theories on the traditional historical novel and on
the postmodern one, debates considerations made by historians about the Paraguayan War,
mainly related to the situation in Rio Grande do Sul, and focuses on the different kinds of
narrative present in the novel. The analysis of the novel emphasizes the narrative techniques, the
aesthetic aspects and the reevaluation of History through fiction.
Keywords: relationship Literature-History; historical novel; historiographic metafiction;
Paraguayan War.
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1: Os três chefes de Estado do Brasil, Uruguai e Argentina, em uma caricatura da
revista A Semana Ilustrada, de 1865............................................................................................. 54
Ilustração 2: Episódio da Divisão Buenos Aires na batalha de Tuiuti, quadro de Cândido
Lopez ............................................................................................................................................. 58
Ilustração 3: Tela Penélope tecendo, de Stradono....................................................................... 100
Ilustração 4: Mesa com cinco carretéis, de Iberê Camargo ........................................................ 103
Ilustração 5: A Sibila de Delfos, de Michelângelo....................................................................... 105
10
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Esquema temporal das ações do romance......................................................................89
11
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 12
2. O REGIONALISMO E AS SAGAS NO RIO GRANDE DO SUL..................................... 20
2.1. A mulher e a escritora na literatura gaúcha ........................................................................ 26
2.2. Leticia Wierzchowski e sua contribuição para a literatura brasileira................................. 29
3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO LITERATURA-HISTÓRIA........................ 37
3.1. Do romance histórico à metaficção historiográfica............................................................ 42
3.2. Um “farol” sobre a História da Guerra do Paraguai........................................................... 46
3.3. Um farol no pampa: um romance histórico “moderno” ..................................................... 63
4. A CONSTRUÇÃO DE UM ROMANCE BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO ............. 70
4.1. A estrutura narrativa ........................................................................................................... 72
4.2. O espaço e o tempo............................................................................................................. 85
4.4. Os personagens e os fatos históricos .................................................................................. 90
4.3. Elementos míticos, místicos e simbólicos .......................................................................... 98
5. CONCLUSÕES...................................................................................................................... 111
6. REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 115
6.1. Corpus .............................................................................................................................. 120
6.2. Bibliografia Geral............................................................................................................. 120
6.3. Bibliografia da autora ....................................................................................................... 121
6.3.1. Edições estrangeiras .................................................................................................. 122
12
1. Introdução
Apesar das agitações incessantes da existência rio-
grandense, ameaçada constantemente de invasões,
lutando com heroísmo em prol da causa da política
brasileira, nas relações da América do Sul,
conquistando palmo a palmo e sem nenhum auxílio
militar o seu território dominado por platinos,
escrevendo as mais belas páginas da história nacional
na época dos Farrapos [...], o rio-grandense conta
com uma cintilante plêiade de vates, de jornalistas e
de escritores.
Alcides Maya
1
A presente dissertação centraliza-se no romance Um farol no pampa (2004), um
desdobramento do livro A casa das sete mulheres (2002), redigido pela escritora gaúcha Leticia
Wierzchowski.
Em Um farol no pampa, a autora revisita um episódio marcante da história brasileira: a
Guerra do Paraguai, ocorrida de 1864 a 1870, tendo como fio condutor o amor entre dois primos,
Matias e Inácia. Como a obra em questão constitui a seqüência de outra anterior, parece
conveniente resumir brevemente o primeiro volume.
A Casa das Sete Mulheres é um romance cujo cenário é o Rio Grande do Sul dos meados
do século XIX, notadamente da Revolução Farroupilha (1835 1845), fato histórico muito
marcante para os gaúchos. A trajetória de sete gaúchas da família de Bento Gonçalves da Silva,
militar e chefe da revolução que pretendia separar o Rio Grande do Sul do Império, é retomada
sob a perspectiva revisionista da História. Segundo a narrativa, após o início do conflito, Bento
Gonçalves isolou as mulheres de sua família em uma estância afastada das áreas em conflito, à
beira do Rio Camaquã, com o propósito de protegê-las. Na Estância do Brejo, de difícil acesso,
estas deveriam esperar o desfecho da guerra. A revolução prolongou-se mais do que se esperava,
e a vida daquelas sete mulheres confinadas à solidão do pampa começou a se transformar; elas
1
MAYA, Alcides. O Rio Grande mental. In: Através da impressa. Porto Alegre: Editores Octaviano Barbosa & C.
Livraria A Nacional, 1900.
13
tiveram de superar a fragilidade feminina, assumir as rédeas da estância, e proteger-se ao mesmo
tempo em que lutavam com seus temores internos. Entre idas e vindas, nascimentos, mortes e
casamentos, elas permaneceram cerca de dez anos esperando o fim da guerra e o retorno de seus
maridos, noivos, filhos e parentes.
Um farol no pampa continua a saga iniciada em A casa das sete mulheres, tendo como
pano de fundo a Guerra do Paraguai. Se no primeiro livro os personagens principais eram
mulheres - e muito da trama girava em torno de Manuela, a noiva de Giuseppe Garibaldi -, no
segundo volume a autora concentrou a narrativa em Matias, o sobrinho-neto imaginário de Bento
Gonçalves. Antonio, filho de Matias, refaz os passos do pai, levando-nos pela história. Como
ocorre no primeiro romance, a presença feminina continua em primeiro plano, porém, menos
intensamente, uma vez que a história de amor de Matias e Inácia, a neta de Bento, é o centro da
narrativa.
Matias, um dos personagens principais da trama, cresce sob os olhares de Dona Antonia,
ouvindo as histórias da Revolução Farroupilha e testemunha o repúdio da tia-avó pela guerra para
quem o Rio Grande perdera tantos homens. Comprometido com sua prima Inácia, mulher à
qual dedicou amor desde criança, Matias decide-se a partir para a Guerra do Paraguai. Depois de
encarar a morte durante as batalhas, volta e é “golpeado” pelo fato de que, por ter recebido a
notícia de que ele estava morto, sua noiva havia se casado com outro.
O leitor desvenda o passado simultaneamente a Antonio, o filho de Matias e de sua
mulher Ticiana de Oiny. Com a morte do pai, Antonio, que nunca antes havia pisado nos Pampas,
resolve, em 1902, deixar o Rio de Janeiro, reconstituir a trajetória de Matias e tomar posse de sua
herança, a Estância do Brejo. Assim, Um farol no pampa retoma os personagens de A casa das
sete mulheres. Aqui seus herdeiros enfrentam mais uma guerra; os acontecimentos são narrados
com alternância de estilos, vozes e tempos e sua representação compõe uma narrativa de muita
agilidade e ritmo.
O objetivo deste trabalho é contribuir para o estudo das relações Literatura-História,
analisar a maneira como a autora Leticia Wierzchowski representa literariamente a Guerra do
Paraguai e, por se tratar de um romance contemporâneo, verificar se este pode ser considerado,
do ponto de vista da composição, uma metaficção historiográfica. Serão analisados também a
estrutura do romance e os diversos gêneros narrativos (diário, cartas, notícias de jornal) que o
compõem, bem como os efeitos estéticos que provocam.
14
Para realizar o presente estudo, fez-se necessário analisar as relações entre Literatura e
História e a forma como se processam e se apresentam no romance. Além disso, tornou-se
indispensável examinar os pressupostos teóricos que dizem respeito ao romance histórico e à
metaficção historiográfica, aparato teórico de que se lançou mão.
No que concerne à metodologia, a pesquisa foi norteada pelas concepções teóricas de
Aristóteles (s.d.), Maria Teresa de Freitas (1986; 1989), Hayden White (1994), Vanoosthuyse
(1996), Teresa Cristina Cerdeira (2000), de Georg Lukács (1965), Marilene Weinhardt (1994) e
Linda Hutcheon (1991), sobre o romance histórico e a metaficção historiográfica, bem como por
outras obras teóricas julgadas pertinentes para a realização do estudo acerca da relação Literatura-
História. É o caso, por exemplo, de concepções teóricas sobre narrativa tais como as de Antonio
Candido (1959), Gérard Genette (1980), Umberto Eco (1985), Ligia Chiappini Moraes Leite
(1985), Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1986), Benedito Nunes (1988), Silviano Santiago
(1989), Mikhail Bakhtin (1990) e Leyla Perrone-Moisés (1990).
Para analisar a relação Literatura-História foi necessário também buscar o conhecimento
do fato histórico norteador da narrativa, no caso, a Guerra do Paraguai. Assim, autores que
abordam este fato histórico, além de outros cujas obras retomam a História Rio-grandense e a sua
literatura, como Guilhermino Cesar (1971), Francisco Doratioto (2002), Guimarães (2000),
Sandra Jatahi Pesavento (1997) e Regina Zilberman (1992) são de fundamental importância para
a análise do corpus.
Esta dissertação apresenta-se estruturada em três capítulos: o primeiro traz uma
explanação sobre a literatura gaúcha, além de uma apresentação da autora, das marcas que
caracterizam sua obra e de suas contribuições para a literatura brasileira contemporânea. O
segundo apresenta considerações sobre a relação Literatura-História: a maneira como a matéria
histórica é tratada no romance e a conseqüente classificação do texto como romance histórico
tradicional ou moderno. o terceiro apresenta um estudo geral sobre a construção do romance,
relevando questões de estilo, narratividade, personagens, tempo, espaço, mitos, símbolos, pontos
de vista e modos de apresentar a narrativa.
Para finalizar esta dissertação, seguem-se as considerações finais e a apresentação dos
resultados obtidos. Em seguida, são apresentadas as referências das obras consultadas para a
elaboração deste trabalho e a bibliografia ativa e passiva da autora.
15
Por tratar-se de um estudo de uma obra referente ao Rio Grande do Sul, parece relevante
realizar uma explanação bastante geral sobre a literatura dessa região e sua especificidade. Para
isso, será utilizado o panorama literário apresentado por Regina Zilberman, estudiosa da literatura
sulina, em seus livros A Literatura no Rio Grande do Sul (1992) e Literatura gaúcha (1985), por
Guilhermino Cesar, em História da Literatura do Rio Grande do Sul (1971), entre outros.
Segundo Zilberman (1992, p. 8), “a literatura gaúcha retira sua especificidade do fato de
os autores dirigirem os textos originariamente ao público local, seu sentido provindo do diálogo
daí resultante”. Assim, é comum a presença dos costumes, mitos, aspectos geográficos e das
temáticas relacionadas com as questões da identidade gaúcha e a realidade humana e social do
sul, com o intuito de “dotar o Rio Grande de uma literatura autônoma e auto-suficiente, que
respondesse às necessidades locais”
2
.
No Brasil, as primeiras manifestações regionalistas na prosa coincidiram com importantes
produções de 1830 do século XIX, destacando-se as de Gonçalves Dias e José de Alencar,
concretizadores do projeto indianista. Conforme Zilberman
3
, “o indianismo foi a resposta a uma
solicitação de volta às origens, matriz de todo o mito; e, como tal, idealizou as personagens,
dando-lhes envergadura heróica, alto padrão moral, disponibilidade para a ação desinteressada e
coragem imorredoura”. Entretanto, o indianismo não corresponderia à realidade social, por se
tratar de uma imagem idealizada. Criou-se, então, uma epopéia com verossimilhança histórica,
embelezando as relações entre os antepassados (conquistador e conquistado).
Com o rápido esgotamento da temática indianista, esta foi substituída pelo Regionalismo.
“Ao contrário do indianismo, o Regionalismo permaneceu influente na ficção nacional”, como
afirma Regina Zilberman
4
. Como a figura do índio foi rejeitada por ser julgada pouco
representativa da nacionalidade brasileira, surgiu outro símbolo: o tipo regional (o sertanejo, o
cangaceiro, o gaúcho), uma vez que a inclinação regional era peculiar à literatura brasileira. Além
de acercar a realidade e valorizar o cenário regional, houve o interesse pelas questões da terra,
seus habitantes, suas reflexões sobre a miséria e o poder, voltando-se mais para os problemas
sociais
5
.
2
Idem, p. 9.
3
Idem, p. 44.
4
Idem, p. 45.
5
Idem, p. 47.
16
No Sul, pode-se constatar a presença bem concreta da literatura regional, cujas
características são a escolha do tipo humano, a presença dos costumes e das linguagens locais,
ambientes com hábitos e estilos de vida peculiares de certa região. Outro aspecto diz respeito à
“cor local”, pois “o gênero se define, sobretudo, pela insistência naquilo que especifica um
espaço geográfico diante de uma suposta generalidade nacional”
6
. Vale ressaltar que a impressão
de um local onde vive certo tipo humano faz com que seus atos, hábitos e até mesmo a essência
sejam determinados pelo lugar.
Nessa vertente, nos anos 1870 do século XIX, surge no Sul um grupo de jovens e
escritores: a Sociedade Partenon Literário, que não apenas estimulava as atividades literárias,
como também se preocupava com questões político-sociais, como a abolição dos escravos
(CESAR, 1971, p. 175). A Sociedade Partenon lançou uma revista, a Revista do Partenon
Literário, e a maior parte de suas atividades era voltada para a população em geral. No ano 1885,
a Sociedade deixa de existir devido à saída de alguns membros defensores da monarquia e a
desentendimentos entre os membros republicanos que permaneceram na Sociedade (CESAR,
1971, p. 185). É importante ressaltar que, conforme Zilberman (1992, p.49), são os cios do
Paternon Literário, dentre eles Apolinário Porto Alegre, que definem o padrão romântico da
literatura regionalista gaúcha.
Pela sua predominância e grande difusão no Rio Grande do Sul, o Regionalismo gaúcho
se estendeu por todo o culo XIX, principalmente na década de 1870, com o Partenon Literário;
de modo menos intenso, até os primeiros anos do Modernismo, ressurgindo depois da década de
1930.
Dessa forma, a produção literária sulina retoma suas forças com o Modernismo, apesar de
o projeto modernista não ter causado grande impacto no Sul devido ao forte vínculo com o
Simbolismo, por parte dos poetas, e por o Regionalismo enfatizar a tradição local (CESAR
apud ZILBERMAN, 1992, p. 63). Assim, houve poetas que ficaram divididos entre a linha
simbolista e a adesão ao projeto modernista, como Augusto Meyer e Mario Quintana, e outros
que aderiram a propostas estéticas revolucionárias, como Raul Boop
7
. Quanto aos romancistas
que surgem nessa época, alguns provêm do Regionalismo pré-modernista, como Roque Callage e
João Fontoura. Com o livro No galpão (1925), Darcy Azambuja, tido como sucessor de Simões
6
Idem, p. 45.
7
Idem, p. 63.
17
Lopes Neto, ultrapassa o período do Regionalismo pré-modernista, apresentando uma linguagem
moderna ao mesmo tempo em que conserva os principais temas de Simões
8
, como a cultura local.
Esse livro, conforme Zilberman
9
, “configura-se como a criação mais importante da década em
que a literatura brasileira amoldava-se” aos padrões da estética modernista.
Com as transformações na literatura e no Brasil na década de 1930, a narrativa regional
sulina passa a buscar novos rumos e reavaliar suas bases ideológicas. Assim, surgiram prosas
mais comprometidas com a denúncia social e retorna a vertente localista.
Como afirma Regina Zilberman
10
, alguns procedimentos modernistas são incorporados à
literatura nessa época: a realidade retratada é vista de dentro, dando “margem à assimilação entre
o assunto e a técnica literária; e, por essas razões, valoriza uma linguagem atual, sintética e
atinente ao contexto das personagens, como fazem Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge
Amado”. Dessa forma, apropriando-se do panorama e da linguagem regional, as obras regionais
adquirem um valor documental inegável.
Segundo Cyro Martins (2000, p. 19), nos anos de 1930, as características do romance
continuam sendo “o trato dos temas da região do escritor em termos de ficção”, porém valendo-se
de “uma linguagem singela, largada, temperada com o sal da terra e sem vanglórias. Era o
espírito da poesia dos anos 20 transposto para a prosa, completando o ciclo de cultura renovador
da inteligência nacional”.
Paralelamente ao romance dessa época, entre 1948 e 1960, Érico Veríssimo escreve uma
das principais obras cíclicas sulina, apresentando um grande painel social-regional e pondo fim
ao mito do gaúcho macho: O tempo e o vento.
De fato, O Tempo e o Vento não é apenas a fixação de um momento ou de
momentos específicos, mais ou menos isolados ou temporalmente limitados, de
uma das zonas agrárias brasileiras [...], é a tentativa, a única, de abranger
globalmente no tempo e no espaço uma dessas zonas agrárias. (DACANAL
apud BUENO, 2006, p. 41)
A amplitude temática dessa obra marcante da literatura nacional contribuiu para traçar o
panorama cíclico sulino, cujo elemento desagregador era a guerra. Seguindo essa linha, houve
8
Idem, p. 76.
9
Idem, p. 80.
10
Idem, p. 81-82.
18
várias obras cíclicas na literatura regional, como o ciclo da cana-de-açúcar, de José Lins do Rego,
da Bahia, com Jorge Amado, e da Amazônia, de Abguar Bastos
11
.
O Rio Grande do Sul respondeu rapidamente às novas propostas de estética da moderna
ficção brasileira, estabelecendo como marco as obras Campo fora (1934), de Cyro Martins, que
representa a tendência regionalista, Caminhos cruzados (1935), de Érico Veríssimo, e Os ratos
(1935), de Dyonélio Machado, ambas de cunho urbano
12
.
Conforme Ligia Chiappini (1995, p. 156), uma das conclusões a que se chegou sobre o
regionalismo brasileiro é que:
[...] a transição difícil nos reajustes sucessivos de nossa economia aos avanços
do capitalismo mundial se trama de modo específico e a literatura tende a
recontar o processo ora com decadência, ora como ascensão, ora como
pessimismo, ora com otimismo, dependendo de que lado está: da modernização
ou da ruína.
Dessa forma, a literatura regional assume um papel social e político importante no país:
ela se torna um instrumento de crítica e reflexão acerca da problemática tanto regional como
nacional.
Atualmente, menos aparente, mas ainda freqüente, nota-se novamente a presença do
regionalismo. Porém, os escritores m seguido novas estéticas e caminhos propostos pela
modernidade. Um exemplo é a obra da escritora do romance objeto deste estudo: Letícia
Wierzchowski.
Pode-se dizer que o Regionalismo colaborou para a aparição da ficção histórica sulina. Ao
tratar da região Sul, os escritores deparavam-se com vários conflitos e guerras. Dessa maneira,
era quase inevitável a utilização de fatos históricos em obras literárias, uma vez que a sociedade
regional sofrera influência desses fatos. Com isso, surgem os romances históricos, os quais eram
de cunho (e punho) masculino.
Na trilha da história da literatura gaúcha, Letícia Wierzchowski vem ganhando destaque,
não apenas no Sul, onde sua obra é muito lida, mas também em outros Estados brasileiros e em
outros países. Assumindo a vertente regionalista, a ficção histórica e a estética contemporânea, a
autora desponta como uma das revelações da nova safra da literatura gaúcha, seguindo, mas, por
11
BUENO, 2006, p. 41.
12
Idem, p. 82.
19
outro lado, rompendo, com a tradição. Assim, esta dissertação vem a contribuir também para os
estudos críticos acerca da obra da autora e para a divulgação de seu trabalho.
20
2. O Regionalismo e as sagas no Rio Grande do Sul
De todas as literaturas regionais do Brasil, tenho a
impressão que a gaúcha é a que mais apresenta uma
identidade de princípios, uma normalidade geral
dentro do bom, uma consciência de cultura, uma
igualdade intelectual e psicológica, que a tornam
fortemente unida e louvável.
Mário de Andrade
13
No Sul, as primeiras manifestações regionalistas apareceram no cancioneiro popular.
Segundo Regina Zilberman (1992, p. 48), as manifestações literárias pioneiras surgem, por razões
políticas, na época da Revolução Farroupilha, quando foram editados também os primeiros
jornais rio-grandenses. Ela ainda afirma que os fundadores da literatura sulina seriam os
integrantes da sociedade do Partenon Literário, por sua atividade junto ao meio intelectual, pela
discussão de idéias e atuação em distintos campos literários. Foram os temas apresentados pelo
grupo que estabeleceram as principais linhas de produção poética local
14
.
Constitui uma das primeiras obras regionalistas do Sul O Corsário (1849), de José
Antônio do Valle Caldre e Fião, na qual se integram o homem do campo, o espaço rural e a
Revolução Farroupilha. Com alguns desses mesmos elementos, César de Lacerda escreve o
drama O monarca das coxilhas, obra que foi encenada em Recife, no ano de 1867.
No Rio Grande do Sul, o Regionalismo no século XIX abrangeu grande parte da produção
literária, principalmente na década de 1870, época em que o Partenon Literário congregou
escritores gaúchos. Porém, o romance regionalista teve novo destaque nos anos 1930 do século
XX, com Aureliano de Figueiredo Pinto, Cyro Martins, Ivan Pedro de Martins, os quais, ao se
apropriarem da temática regional, apresentaram-na “dentro de uma ótica social, conforme os
cânones do romance da época” (ZILBERMAN, 1992, p. 49).
Para Alfredo Bosi (1994, p. 207), “o projeto explícito dos regionalistas era a fidelidade ao
meio a descrever: no que aprofundavam a linha realista estendendo-a para a compreensão de
ambientes rurais ainda virgens para a nossa ficção”.
13
ANDRADE, Mário de. Os gaúchos. In Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 1939.
14
Idem, p. 48.
21
Como afirma gia Chiappini (1995, p. 154) em um artigo sobre o Regionalismo, este é
“um fenômeno universal, como tendência literária, ora mais ora menos atuante, tanto como
movimento [...] quanto na forma de obras que concretizem, mais ou menos livremente, tal
programa, mesmo que independentemente da adesão explícita de seus atores”. Assim, o
Regionalismo, mesmo com seus altos e baixos, “volta à moda meio sem querer”, pois
“permanece intrigado pelas questões teóricas, estéticas e éticas”
15
.
Segundo Antonio Candido (1959, p. 300), a ficção foi beneficiada pelo contato de uma
realidade concretamente demarcada no espaço e no tempo, que serviria de limite e em certos
casos, no Romantismo, de corretivo à fantasia”. Dessa maneira, divulgando o “patriotismo
regional”, o Regionalismo, principalmente após 1930, foi importante para aproximar os leitores
da realidade tanto regional como nacional de forma crítica, desenvolvendo abordagens
sociológicas e ideológicas, contribuindo, assim, para a abrangência da cultura e da história do
país.
No caso do Regionalismo rio-grandense, além deste caracterizar-se pelo tipo humano
escolhido e pelo meio, ocorre ainda uma terceira característica: a utilização (e a fixação) do
tempo histórico. Assim, representa-se a estrutura social: os fazendeiros e os peões, escravos,
homens livres juntos no campo e também na guerra, sem antagonismos; todos unidos por uma
causa: esse é o mito da “democracia rural”, despertado já a partir da Revolução Farroupilha.
Conforme Regina Zilberman (1992, p. 50), “os valores vividos comunitariamente
sustentam a unidade entre os homens, destacando-se a coragem, a disponibilidade para a luta e o
desejo de liberdade”. É em torno dessa liberdade que se configura o ideal gaúcho, do homem
heróico, sempre disposto a lutar até a morte pela manutenção da ordem social e da autonomia
política e ideológica. Mesmo inserido na ordem social, o gaúcho também se posiciona numa
ordem natural por revelar afinidades com o pampa, a Campanha e com animais, sobretudo o
cavalo. Ocorre, assim, uma relação contínua entre o indivíduo e o ambiente, além da fraternidade
entre classes diferentes. Não é preciso mais nada do que isso para garantir a sobrevivência.
Portanto, tudo o que vier de fora, de outro lugar, outra região, gerará desconforto e estranheza,
pois esses fatores externos geralmente são os fatores desencadeadores de uma ação
16
.
15
Idem, p. 154
16
Idem, p. 50
22
A opção por um fato histórico, como, por exemplo, a Revolução Farroupilha, facilita o
desdobramento da aventura”, e também “ajuda a expor a ideologia dos criadores e charqueadores
gaúchos, interessados em veicular os princípios republicanos e federalistas, que os liberaria do
poder decisório e centralizador da Corte”, conforme Zilberman
17
. As narrativas regionalistas
sulistas tratam, ainda segundo ela, de questões ideológicas e sociais, amalgamando a valorização
de fatos passados e os aspectos naturais da região sul. Além disso, a escolha pela temática da
guerra oferece ao escritor “emoções diretamente comunicáveis, sentimentos e reações
exacerbados”, situações dramáticas e trágicas. Dessa maneira, “a aventura guerreira comove
sempre, quer pelos grandes triunfos, quer pelos grandes desastres” (FREITAS, 1986, p. 3),
tornando-se um ótimo material romanesco.
Um dos principais representantes da literatura gaúcha do início do movimento
Regionalista foi João Simões Lopes Neto, considerado precursor do Regionalismo no Sul.
Inspirado no folclore, Simões escreveu Contos gauchescos, Lendas do Sul e Casos do Romualdo,
nos quais predominam os temais locais. Como afirma Alfredo Bosi (1994, p. 212), “seus contos
fluem num ritmo tão espontâneo, que o caráter semidialetal da língua passa a segundo plano,
impondo-se a verdade social e psicológica dos entrechos e das personagens”. Além disso, seus
contos são ricos em metáforas e imagens, e a maioria dos escritores gaúchos se vale dessa
herança.
Segundo Cyro Martins (2000, p. 79), “o grande surto do regionalismo literário rio-
grandense ocorreu em conseqüência da Revolução de 1923. Por isso, predominavam nos contos e
nos versos, os “causos” de valentia. [...] A produção era em grande quantidade, porém,
qualitativamente, a colheita foi escassa”. Para ele, a única obra que se pode salvar dessa “safra”
foi o livro de contos No Galpão (1925), de Darcy Azambuja, premiado pela Academia Brasileira
de Letras.
Com o passar do tempo, a narrativa gaúcha passou a enfocar também o cenário social,
inserindo questionamentos a respeito das inegáveis contradições sociais existentes. Nessa
vertente surgem Érico Veríssimo, Dyonélio Machado e Reynaldo Moura, com destaque para
Érico e Dyonélio, que alcançaram repercussão nacional.
Enquanto Dyonélio Machado direciona sua narrativa para a interioridade, pendendo para
o romance psicológico, como faz em Os ratos (1935), no qual relata a trajetória de homens
17
Idem, p. 51.
23
humildes em meio a uma realidade hostil e mostra a carência da classe média urbana, Érico
Veríssimo traça um painel histórico da vida sul-rio-grandense, criando tipos humanos. Em
algumas de suas obras, Veríssimo utiliza uma técnica narrativa que desperta atenção: trata-se da
técnica contra-pontística, “que significa a interpenetração de diferentes histórias ao longo de um
mesmo fluxo narrativo e temporal” (ZILBERMAN 1992, p. 99). Essa técnica passa a ser marca
registrada de sua ficção. Sua principal obra foi a saga do Rio Grande, O tempo e o vento,
retomada mais adiante quando serão apresentadas reflexões acerca de sua ascendência sobre a
obra de Leticia, leitora entusiasta de Veríssimo.
Retomando a questão do Regionalismo sulino, de fronteiras bem demarcadas
geograficamente a região que corresponde ao Rio Grande do Sul -, pode-se dizer que uma
fusão de texto e contexto, pois os fatores históricos, econômicos e sociais são determinantes na
construção desse tipo de obras.
A maioria dos escritores sul-rio-grandenses estabelece um diálogo com os leitores
gaúchos, salvo algumas exceções, como é o caso de alguns contemporâneos - Luís Fernando
Veríssimo, Moacyr Scliar e Tabajara Ruas. No entanto, mesmo tendo redigido obras cuja
temática foge ao regionalismo, eles também não deixaram de sucumbir à tentação de tratar de
temas como a imigração e as guerras.
A literatura gaúcha é autônoma, mas não isolada; está inserida no contexto da arte literária
nacional. Conforme ainda Zilberman
18
, a criatividade da literatura do Rio Grande do Sul “advém
de seu depoimento a respeito da realidade histórica, com a qual os escritores se comprometem,
provindo o valor das obras da profundidade ou extensão com que desenvolvem este motivo.”
Essa é a peculiaridade dessa literatura que ficcionaliza suas próprias vivências e realidades para
que o passado não se perca no futuro. Com isso, o Rio Grande do Sul pode ser considerado um
celeiro de romance histórico brasileiro.
Nesse sentido, inúmeros escritores valeram-se do episódio da Revolução Farroupilha para
produzir suas obras. É o que ocorre desde O corsário (1849), de Caldre e Fião, O monarca das
coxilhas (1867), de César de Lacerda, O vaqueano (1872), de Apolinário Porto-Alegre, Os
farrapos (1877), de Oliveira Bello, e os contos de Simões Lopes Netto da coletânea de 1912,
passando para O Continente (1949), da trilogia O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, A prole
do corvo (1978, de Carlos de Oliveira Gomes, Os varões assinalados (1985) e Netto perde sua
18
Idem, p. 174-175.
24
alma (1997), ambos de Tabajara Ruas, Avante soldados: para trás (2001), de Deonísio da
Silva
19
, até A casa das sete mulheres (2002), de Leticia Wierzchowski, uma das poucas escritoras
a enveredar pela ficção histórica na literatura gaúcha. São também comuns as sagas de família
como O tempo e o vento, de Veríssimo, e Camilo Mortágua (1980), de Josué Guimarães. A
valorização histórica e a identidade gaúcha é uma constante sulina e as guerras sempre estiveram
presentes na sociedade rio-grandense. Entremeando as sagas familiares, ocorrem também as
sagas históricas, coletivas.
Conforme Regina Zilberman (1992, p. 109), “não se trata propriamente de ficção
histórica, que a revolução aparece não como passado distante que é objeto de reflexão crítica
dos escritores, mas a atualidade viva na mente deles”. Isso vale para os escritores pioneiros da
literatura rio-grandense, como Caldre e Fião e Apolinário Porto-Alegre.
Ainda o surgimento de obras que tratam da Revolução Farroupilha, mesmo dentro de
uma fase cujo enfoque é a imigração sulina. Em A prole do corvo (1978), Oliveira Gomes
desmistifica a suposta nobreza da causa da Revolta dos Farrapos, atingindo a imagem de líderes
como Canabarro e Bento Gonçalves. Seu intuito era mostrar que esses líderes:
[...] lutavam apenas em seu próprio interesse, agiam de modo prepotente e
arbitrário e não mais encontravam ressonância entre os criadores sulinos. Sugere
a incompetência da classe política e militar, que dilapida a riqueza e as posses
dos fazendeiros, sacrifica seus filhos e perde batalhas, sem abdicar o poder.
(ZILBERMAN, 1992, p. 120)
Na década de 1930, o foco literário é orientado pelo processo de representação da
colonização do Estado. A formação racial vai além de portugueses, negros e índios devido à
marcante presença de imigrantes (alemães, italianos, judeus, açorianos). Assim, a temática sulina
é direcionada para a origem e formação da sociedade rio-grandense. A narrativa passou a ser
crítica, “de modo que, voltada à exploração da história da ocupação do território, incorporou dois
procedimentos: a pesquisa do passado e a postura questionadora quanto ao processo de formação
racial e, sobretudo, social”, como afirma Zilberman
20
.
É a partir dessa questão que surgem as sagas que tratam da colonização do Rio Grande do
Sul e dos imigrantes, como Valsa para Bruno Stein (1986) e A face do abismo (1988), ambas de
19
Escritor catarinense que viveu parte de sua vida em Porto Alegre.
20
Idem, p. 112.
25
Charles Kiefer. Um pouco antes, Assis Brasil em Um quarto de légua em quadro (1976) narra a
vinda de casais orianos ao Brasil, criticando a ocupação do Rio Grande e seguindo a tradição
histórica. Além disso, Assis Brasil constrói um grande painel da história gaúcha, assim como
Érico Veríssimo. Dessa forma, as ações da maioria de seus romances ocorrem preferencialmente
no século XIX, passado muito anterior ao tempo do escritor, o que é visto em algumas obras de
Letícia Wierzchowski, inclusive a que engloba este trabalho.
Nos anos 70 é a vez dos descendentes italianos narrarem a sua saga. Ary Trentin em
Barcas e arcas (1981) descreve a travessia oceânica e a instalação dos italianos no Brasil;
enquanto que Jo Clemente Pozenato, em O quatrilho (1985) narra os primeiros anos dos
italianos na nova terra.
Moacyr Scliar em seus romances A guerra no Bom Fim (1972), O exército de um
homem (1973), Os deuses de Raquel (1975), (O ciclo das águas) (1977) e O centauro no
jardim (1980) tematiza a imigração dos judeus, proporcionando uma reflexão do presente, e
marca a transição do histórico para o urbano. Seus romances mais recentes são Os leopardos de
Kafka (2000) e Na noite do ventre, o diamante (2005).
Houve também a presença de reflexões políticas a partir de 1970, acentuadas nos anos 80.
As obras Mês de cães danados (1977), de Moacyr Scliar, Os tambores silenciosos (1977) e
Camilo Mortágua (1980), de Josué Guimarães, Incidente em Antares (1971), de Érico Veríssimo,
A região submersa (1981) e O amor de Pedro por João (1982), ambos de Tabajara Ruas, são
alguns exemplos. Essas obras sulinas trazem a situação da vida política do país, retratando os
acontecimentos dos últimos trinta anos.
Além da Revolução Farroupilha, considerada o “paradigma do espírito liberal
oitocentista” (CESAR, 1971, p. 69), e das sagas dos imigrantes, outros acontecimentos históricos
igualmente serviram de cenário para a ficção. É o caso da Guerra do Paraguai, considerado
segundo episódio mais marcante do Rio Grande do Sul e abordado em Um farol no pampa. A
Guerra do Paraguai constitui, efetivamente, um compromisso “nacional” do Rio Grande do Sul.
A produção literária gaúcha, sobretudo em sua versão histórica, foi realizada
predominantemente por homens, razão pela qual acabaram surgindo romances “machistas” em
que predominam personagens masculinos; personagens femininos, quando ocorrem, ficam em
segundo plano. Rompendo com essa tradição sulina, Leticia Wierzchowski é uma das poucas
autoras gaúchas a enveredar pela ficção histórica e apresentar a visão das mulheres.
26
2.1. A mulher e a escritora na literatura gaúcha
Nesta terra de centauros, a feminilidade é temida.
Donaldo Schüler
21
Ao longo da história da literatura do Rio Grande do Sul, nota-se um pequeno número de
escritoras. Essa situação se altera definitivamente nos dias de hoje. Devido à forte tradição de
escrita masculina, foram poucas as mulheres que tiveram “coragem” para entrar no meio literário,
o que aconteceu por volta do fim do século XIX. Segundo Regina Zilberman (1985, p. 74), este
fato “pode ser também atribuído à situação bastante secundária a que foi submetida a mulher na
sociedade sulina, sobretudo enquanto durou o domínio da economia pastoril e do sistema
patriarcal no campo”.
No século XIX, as mulheres eram tidas como as “primeiras escravas da casa” (ou, no caso
da elite, “as rainhas do lar”), não tinham instrução, nem educação social. Destituídas de atrativos,
eram submissas e viviam isoladas dentro da sociedade. Dessa forma, tampouco nas obras
literárias a mulher tinha algum destaque. Era um personagem pouco interessante e superficial.
Sem qualquer legitimidade e reconhecimento social, mesmo entre as classes
dominantes, a mulher não tinha na literatura nenhum aliado. Não era
personagem interessante, não se registrando, dentre os ficcionais do século XIX,
qualquer figura feminina de destaque: ou são as pálidas amadas dos heróis,
filhas ou irmãs de grandes ou médios proprietários rurais em época de casar, ou
são elementos colaterais da trama, de caracterização epidérmica e participação
ocasional.
22
As mulheres aparecem nas obras sempre em segundo plano, servindo como meras
coadjuvantes ou como complemento do cenário, não ocorrendo nenhum papel de heroína. Para
elas é designada apenas a função de mãe e de companheira, submissas e pacientes. Foram
também poucas aquelas que no século XIX dedicaram-se às letras. As que tiveram essa ousadia,
21
SCHÜLLER, Donaldo. Chimarrita. Porto Alegre: Movimento, 1985, p.18.
22
Idem, p. 77.
27
em geral poetisas, não eram reconhecidas: Eurídice Barandas, Delfina Benigna da Cunha, Rita
Barém de Melo, Amália Figueiroa e Luciana de Abreu não tiveram muitas sucessoras. Talvez um
dos motivos seja a expressiva marca do Regionalismo até os anos 1930, além da forte tradição
literária masculina.
Conseqüentemente, a temática desenvolvida tanto pelos poetas como pelas poetisas dessa
época era voltada para o sentimento de solidão, desilusão, amores e abandonos. Não havia a
inclusão do erotismo feminino. A paixão, se existe, dá-se num ambiente descarnado, em que as
imagens neutralizam o desejo”, conforme Zilberman
23
. Contudo, um dos escritores a apresentar o
tema do erotismo feminino em sua obra foi Simões Lopes Neto. Em “A Salamanca do Jarau”, da
obra Lendas do Sul (1913), através do mito da Teiniaguá, Simões mostra a sensualidade da
mulher e a atração física, temática até então desconhecida da literatura rio-grandense
24
. É
importante ressalta que esse mito também foi usado por Érico Veríssimo em O Tempo e o Vento
O Continente, para descrever a personagem Luzia. Veríssimo foi um dos primeiros e poucos
autores a elaborar personagens femininos complexos em sua época, dando voz e ações mais
expressivas a mulher.
Apesar da pouca importância atribuída à figura feminina tanto na literatura como na
história, pode-se dizer que ela é um exímio referencial de paciência e de determinação. Com as
guerras, a mulher passa a ter uma função fundamental para a sociedade e para a economia do
Estado. Era ela quem cuidava sozinha da casa, dos filhos menores, das filhas moças, da criação e
da plantação, além de proteger a família e seus bens. Assim, uma destoante caracterização da
mulher nas obras literárias do século XIX, na qual ela aparece como um ser frágil. No entanto, o
que a história mostra são mulheres trabalhadoras, ativas, e fortemente presentes. Porém, com
relação à história, a única mulher a receber destaque, por enfrentar a guerra como um soldado, foi
Anita Garibaldi, que, aliás, não era gaúcha, mas catarinense. Outra mulher que ficou conhecida
por seus feitos foi Ana Néri, voluntária nos hospitais de sangue durante a Guerra do Paraguai. Por
isso, essas duas personagens históricas tornaram-se personagens de romances históricos e, desse
modo, representantes da mulher na literatura gaúcha.
Segundo Zilberman (1992, p. 145), “Lila Ripoll, a partir da década de 40, na poesia, e
Lara de Lemos, depois dos anos 50, foram das poucas escritoras que o Estado leu, até a firmação
23
Idem, p. 79.
24
Idem, p. 79.
28
da prosa de Tânia Faillace”, nos anos 1960, autora de novelas protagonizadas por mulheres em
busca de emancipação”. Nessa linha seguiram também as escritoras Patrícia Bins, com o romance
Jogo de fiar (1983), no qual a protagonista rememora e avalia sua vida, e Lya Luft, com suas
novelas As parceiras (1980), A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982) e O
quarto fechado (1984). Nota-se que o foco dessas autoras é a representação da busca e a
afirmação feminina e das dificuldades apresentadas nesse caminho de emancipação e autonomia.
É importante salientar que nos anos de 1970 e 1980, os escritores adotam um tipo de personagem
feminino: uma mulher jovem ou de meia idade, da classe média, incomodada com sua situação.
Um exemplo desse tipo feminino é a personagem Inês, de O 35° ano de Inês (1970), de Tânia
Jamardo Faillace (ZILBERMAN, 1985, p. 84). Contudo, há também poemas engajados, que
manifestam o anseio pela mudança social, por igualdade e justiça, como os de Poço de águas
vivas (1957), Canto breve (1962), Aura amara (1968) e Para um rei surdo (1973), de Lara
Lemos.
Em Chimarrita (1985), obra escrita por Donald Schüler, é apresentada uma história de
opressão feminina social e ideológica. As chimarritas são “seres humilhados, mas rebeldes,
indomadas pelos homens que as derrotam sem as sujeitar” (ZILBERMAN, 1985, p. 89). Trata-se
de uma figura arquetípica, que representa a violência da qual a mulher “foi vítima e a revolta que
foi capaz de expressar.
25
. Assim, nessa obra, Schüler utiliza a temática feminina por um outro
viés, desvinculando-se da tradição machista, como Érico Veríssimo, criador de personagens
femininos marcantes, fortes e atuantes, como Ana Terra, Bibiana Cambará e Luzia.
Atualmente, a presença da mulher rio-grandense como personagem da literatura alcançou
um patamar expressivo. O panorama mudou e as escritoras surgiram, apesar do tradicionalismo
gaúcho. No momento, além de Letícia Wierzchowski, os nomes mais conhecidos nacionalmente
são os das escritoras Lya Luft (Perdas & ganhos), Martha Medeiro (Meia noite e um quarto e
Divã), Cintia Moscovich (Arquitetura do arco-íris) e Clarah Averbuck (Um dia de gato).
Em A casa das sete mulheres (2001) e Um farol no pampa (2004), mesmo tratando-se de
dois romances que representam épocas passadas, Letícia constrói grandes personagens femininas
que destoam dos padrões do tempo retratado. São mulheres ativas, fortes, impetuosas, corajosas e
conscientes da realidade. Dessa forma, ao dar voz à mulher, a autora inova a ficção histórica,
tradicionalmente masculina, assumindo uma posição crítica e contemporânea para um
25
Idem, p. 89.
29
acontecimento passado. É uma forma de inovar a literatura, amalgamando passado e
contemporaneidade.
Apesar de inseridas tardiamente no contexto literário gaúcho, as mulheres revelam uma
renovação na escrita e trazem para a ficção o universo feminino. Como afirma Regina Zilberman
(1992, p. 147), rompe-se a tradição literária masculina, renova-se “a prosa gaúcha e, também por
esse ângulo, apresentam-se alternativas ao projeto centenário, mas não mais exclusivo, do
Regionalismo e do ruralismo”. Assim, Leticia segue pela tradição de escrever obras de temática
histórica, enveredando por outro caminho, pouco trilhado pelas escritoras gaúchas. Porém, rompe
com a tradição masculina, colocando a posição das mulheres em evidência.
2.2. Leticia Wierzchowski e sua contribuição para a literatura brasileira
Criar é uma aventura sem fronteiras. Reconstituir um
momento passado como um escafandrista no fundo
do mar, passeando dentro de um navio: gosto da
solidão desse passeio.
Leticia Wierzchowski
26
Leticia Wierzchowski nasceu e vive em Porto Alegre. Começou a escrever aos vinte e
cinco anos, após abandonar a faculdade de arquitetura. Antes de publicar seu primeiro romance,
ela foi proprietária de uma confecção de roupas e trabalhou no escritório de construção civil de
seu pai. Começou a “inventarhistórias à noite, quando trabalhava com o pai. Cursou a Oficina
de Criação Literária na Pós-Graduação em Letras da PUC-RS, coordenada pelo escritor Assis
Brasil. Seu primeiro romance, O Anjo e o resto de nós, que foi publicado em 1998 e relançado em
2001, conta a saga da família Flores, ambientada no início do século XX, no interior do Rio
Grande do Sul.
Um farol no pampa (2004) é seu oitavo livro e levou dois anos para ser escrito. Ela é
ainda autora dos romances Anuário dos amores (1998), Eu @ te amo (1999), Prata do tempo
26
WIERZCHOWSKI, Leticia. Criar é uma aventura sem fronteiras. In Cultura News. São Paulo: Livraria Cultura,
janeiro de 2007, n. 151.
30
(1999), O anjo e o resto de nós (2001), e A casa das sete mulheres (2002). Este último foi
adaptado para a televisão em uma minissérie da Rede Globo, levada ao ar em 2003. Reexibida
em 2006, essa minissérie vem sendo editada em vários países, como Itália, Espanha e Portugal.
Publicou também Cristal polonês e O pintor que escrevia (2003), lançado em 2004 na Espanha.
Suas obras mais recentes são o livro infato-juvenil Todas as coisas querem ser outras coisas
(2006), o livro infantil O menino paciente (2007), escrito em co-autoria com seu marido Marcelo
Pires, e os romances Uma ponte para Terebin (2006), baseado na vida de seu avô imigrante
polonês, e De um grande amor e uma perdição maior ainda (2007). Atualmente, junto com
Tabajara Ruas, a autora está desenvolvendo o roteiro cinematográfico do livro O continente,
primeiro romance da trilogia O tempo e o vento, de Érico Veríssimo. Alguns de seus livros foram
publicados em outros idiomas. O principal deles é A casa das sete mulheres, lançado na Itália e
na Espanha.
Além de romances, Leticia também escreve contos e crônicas. Ela participou dos livros de
contos Ficções fraternas (2003) e Contos de Agora (2007), este último um audiolivro, e Valores
para viver (2005), um livro de crônicas. Também deu sua contribuição no livro de histórias de
viagem, Inesquecível (2006), e, juntamente com Ana Klacewicz, escreveu o livro de lendas
Dragão de Wawel e outras lendas polonesas (2005).
Como uma típica autora gaúcha, Leticia enveredou pelo viés do romance histórico,
ficcionalizando a saga de uma família importante no passado do Rio Grande do Sul: os
Gonçalves da Silva. Foi por meio dessa saga que ela ficou conhecida nacionalmente, quando o
romance A casa das sete mulheres foi adaptado para a televisão
27
. Antes desse marco, Leticia era
conhecida apenas no Sul, porém tinha seis livros publicados. A adaptação para a televisão
levou a um certo preconceito em relação à obra da autora, pois, na época em que a minissérie de
mesmo título foi ao ar, o livro A casas das sete mulheres ficou mais de dois meses na lista dos
romances mais vendidos e chegou ao patamar de 60 mil exemplares. Nessa ocasião, série e livro
receberam críticas de historiadores por conta das licenças poéticas naturais numa ficção histórica.
Estes ignoraram as regras do literário e a possibilidade de mais de uma abordagem do fato
27
É importante lembrar que vários autores consagrados tiveram suas obras adaptadas para a televisão, como O
tempo e o Vento e Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, Os Maias, de Eça de Queiroz, entre outros autores e
obras. Dessa forma, a obra de Leticia está ao lado de grandes obras literárias, o que mostra a qualidade de sua
produção literária.
31
histórico, uma vez que a literatura possui liberdade para reinventá-lo, utilizando outras
perspectivas a fim de oferecer uma releitura por outro viés: o ficcional.
Sem pretensão de uma nova adaptação para televisão, segundo suas própria palavras, e
considerando um desafio para sua carreira literária, Leticia prossegue com a mesma saga familiar
em Um farol no pampa. Contudo, é tido o amadurecimento de sua escritura ao introduzir
alternâncias de estilo e ao se desprender da ênfase dada anteriormente ao passado histórico,
transformando-o em pano de fundo para o desenrolar do romance, mas, ao mesmo tempo,
valendo-se da criticidade perante o fato histórico. A construção do romance propriamente dito e o
estilo da autora serão tratados mais adiante.
Apesar de ser possível notar marcas de diversos escritores em sua obra, principalmente de
Érico Veríssimo, Leticia Wierzchowski criou o seu próprio estilo e identidade literária. Ela utiliza
recursos e procedimentos de escritura usados por outros escritores, mantendo um diálogo entre as
obras para criar a sua. Como afirma Donaldo Schüler (1989, p. 39), antes de narrar, o narrador
leu outros textos. Foram estes que o levaram a escrever, e é com estes que continuamente
dialoga”. Todo escritor transmite à sua obra marcas, vestígios de leituras de outros textos; ocorre
uma revisita à tradição a fim de traduzi-la como criação” (CERDEIRA, 2000, p. 226). Dessa
maneira, há a intertextualidade, o “diálogo” entre os textos, a fusão de textos, implícita ou
explicitamente. Segundo Kristeva (1974, p. 60), todo texto se constrói como um mosaico de
citações, pois ele sempre absorve algo de outro texto. Assim, Um farol no pampa remete,
concretamente, tanto a obras literárias (O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, e Rumo ao farol,
de Virginia Woolf), como à História (a Guerra do Paraguai).
Laurent Jenny em A estratégia da forma (1979, p. 6-7) afirma que “a intertextualidade
não só condiciona o uso do código, como também está explicitamente presente ao nível do
conteúdo formal da obra”. O que Letícia se propôs a fazer é aquilo a que Jenny se refere a
respeito da “sensibilidade dos leitores à repetição”, exemplificada como “dogma da imitação,
próprio do Renascimento”. Trata-se de “um convite a uma leitura dupla dos textos e à decifração
da sua relação intertextual com o modelo antigo”. Dessa maneira, os textos de Érico Veríssimo,
principalmente os de O tempo e o vento, serviram como um modelo explorado pela escritora para
sua criação. Para essa questão, parece pertinente citar as palavras de Chklovski (apud
EIKHENBAUM, 1978, p. 19): toda obra de arte é criada paralelamente e em oposição a um
modelo”.
32
Com relação ao pensamento crítico contemporâneo, Teresa Cristina Cerdeira faz uma
afirmação categórica e significativa sobre a relação da intertextualidade com a tradição.
O objeto estético assim violado em sua inteireza – ao fazer-se corpo revisitado –
perde a aura que lhe conferia o selo único do autor, mergulha na incerteza
produtiva porque geradora do novo. Se a intertextualidade não é apanágio da
pós-modernidade, é entretanto aí que a ousadia da apropriação parece ganhar
corpo e o diálogo intertextual ultrapassar o eco das referências intelectuais que
justificam o reconhecimento de uma cultura humanística, para se transformar no
centro de interesse da ficção, roubo salutar de uma liberdade que ousa deslocar
seus mitos perturbadores (como ousar escrever depois de Os Lusíadas, como
ousar compor depois do Quixote?) para devorá-los e devolvê-los em outra
produção. Viver a contemporaneidade é também perceber que o tempo do
fascínio do absoluto foi ultrapassado por um diálogo mais democrático com a
tradição. (2000, p. 226)
Portanto, não é possível ao escritor desligar-se da influência do cânone literário. Ele é a
base para novos textos; o diálogo textual com a tradição torna-se imprescindível, impossível não
ocorrer. É a reinvenção permanente da literatura. Como afirma Tomachevski (1978, p. 170), “a
experiência literária, a tradição à qual se refere o escritor, revelam-se-lhe como uma tarefa legada
por seus antecessores, tarefa cuja realização exige toda sua atenção”. Letícia não nega o legado
de sua herança e mostra maestria no seu manuseio. Ao mesmo tempo em que demonstra,
singularmente, as marcas de seus antecessores, ela (re)elabora suas próprias marcas.
Enquanto se insere na tradição literária gaúcha, em Um farol no pampa utiliza técnicas e
características de construção de um romance singular e único em sua especificidade. Isso fica
claro na entrevista que Letícia concedeu ao jornal O Estado de São Paulo (2007b, p.14). Ela
declara seu encanto por Érico Veríssimo e sua ascendência sobre o que escreve, principalmente
sobre seus últimos romances. Ao comentar sobre a trilogia do escritor gaúcho, O tempo e o vento,
Leticia relata seu fascínio com relação à criação do painel de personagens por serem “tão reais e
tão calcados nas gentes do sul”
28
. Nota-se que, assim como aconteceu com Veríssimo, a autora
tem o compromisso de construir personagens que expressem a cultura e a história gaúcha,
resgatando o passado e a identidade sulina. Novamente, faz-se necessário apresentar as palavras
de Teresa Cerdeira (2000, p. 230):
28
Idem, p. 14
33
De certa maneira, a contemporaneidade aposta no palimpsesto, nesse texto final
e outro que, guardando os rastos tênues de um texto primeiro, se permite viver,
não como rapina, que o devora e anula, mas como possibilidade de perpetuá-lo
na diferença e no convívio com a multiplicidade de textos que, dizendo com as
mesmas sedutoras palavras, vão elaborando versões sempre novas da memória
dos homens.
O texto primeiro” serve como base para a elaboração de um novo texto literário. Não se
trata de imitação de um modelo, mas de novas versões, outras construções literárias que trazem
múltiplas referências textuais, mas que guarda sua originalidade na maneira de fazê-lo. Como
bem coloca Umberto Eco (1985, p. 66), os livros se falam entre si”. O romance possui o espaço
do diálogo com textos (intertextualidade) e com discursos (interdiscursividade), com isso, pode-
se dizer que o saber é textualizado
29
.
Dessa maneira, além de Veríssimo, outros autores de quem a própria escritora diz “se
aproveitar”, sobretudo no que diz respeito ao gênero “romance histórico”, o Tabajara Ruas,
Moacyr Scliar e Assis Brasil. Esses três escritores representam história e ficção entremeadas, o
que pode ter contribuído para que Letícia enveredasse pela vertente da ficção histórica. Ela se diz
também leitora fiel de Nabokov e de Eça de Queiroz, e afirma ainda que Gabriel García
Márquez e seu romance Cem anos de solidão seriam os responsáveis por tê-la levado a escrever
(WIERZCHOWSKI, 2007b, p. 14).
Ao ser indagada sobre qual seria uma cena marcante da literatura, Leticia cita a cena do
livro Rumo ao farol, em que Virgínia Woolf “narra a decomposição da casa dos Ramsay e a luz
do farol que corre pelos cômodos do imóvel desabitado”
30
. Talvez essa cena pudesse tê-la levado
à “construção de seu farol”, uma vez que se trata de uma imagem polivalente de significados.
Além disso, essa obra de Woolf sugere uma viagem pelo interior dos personagens, o que se
aproxima de Um farol no pampa, no qual os personagens realizam constantes interiorizações,
estabelecendo, de fato, uma relação intertextual.
A escritora declara que a literatura “é ao mesmo tempo um parêntese no mundo atual e
uma forma de compreender e solucionar este mundo” (RECORD, 2006). Além disso, ela defende
que um livro deve transmitir alguma emoção e que “um texto de construção perfeita precisa
também tocar o seu leitor, espantá-lo, emocioná-lo, instigá-lo”. Em outras palavras, conforme a
29
Idem, p. 231.
30
Idem, p. 14.
34
própria expressão da escritora, a literatura “aciona as sinapses do leitor” e é em torno disso que
ela escreve seus livros
31
.
Em Um farol no pampa ressoam também cenas das obras de Tabajara Ruas (Netto Perde
a sua alma), principalmente na representação pormenorizada das crueldades da guerra. Por outro
lado, a descrição detalhada do ambiente remete a Eça de Queiroz, a representação de conflitos da
América Latina faz referência à obra de García Márquez, e a elaboração de obras hercúleas e a
idéia de transformar A casa das sete mulheres em uma trilogia (uma vez que a autora prometeu
publicar o terceiro volume da saga), por exemplo, mostram claramente a influência de Érico
Veríssimo, a ser tratada logo a seguir.
Além de optar por um gênero muito utilizado pelos escritores gaúchos, valendo-se do um
passado histórico do Rio Grande do Sul, é possível elencar outros aspectos escriturais herdados
de Veríssimo, como a simplicidade da prosa, certa tendência “sentimentaleira”
32
, quebra na
seqüência dos fatos, superposição de tempos, a nomeação e disposição dos capítulos, a saga
familiar e a narratividade, dentre outros. Para exemplificar as semelhanças com a principal obra
desse escritor, foram verificadas, de maneira geral, as correspondências entre os capítulos de Um
farol no pampa com os da obra O tempo e o vento.
Os capítulos A herança, A família e Auroras e poentes e crepúsculos do romance de
Leticia se assemelham aos capítulos O sobrado, A guerra, A fonte, O deputado e Reunião de
Família de O tempo e o vento. Todos eles, em algum momento, apresentam trechos de notícias de
jornal, cartas e aspectos da história e cultura gaúcha, além de situações familiares e conflituosas,
como guerras e questões políticas. Nota-se, também, semelhança visível na denominação desses
capítulos.
os capítulos Olhos de Vidro, de Um farol no pampa, possuem correlação com os
capítulos Caderno de Pauta Simples. Ambos são narrados em terceira pessoa e tratam da infância
de um menino (Matias Gutierrez e Floriano Cambará, respectivamente). Pelo olhar ingênuo da
criança, é apresentado um mundo de fantasia, o universo infantil, mas sempre ligados com a
realidade. À medida que os meninos crescem, as características infantis vão sendo deixadas de
lado para dar lugar ao mundo adulto e aos seus julgamentos. Esteticamente, tanto Olhos de Vidro
como Caderno de Pauta Simples intercalam a narrativa com versos ou períodos e frases curtas.
31
Idem.
32
Termo citado por Antonio Candido em entrevista sobre a obra de Érico Veríssimo, em 05/08/2000 para os autores
e organizadores do livro Érico Veríssimo: o romance da História.
35
O nome Caderno de Pauta Simples remete aos Cadernos de Manuela e vice-versa.
Mesmo destoando no gênero de visões apresentadas o primeiro, de um menino (memórias); o
segundo, de uma mulher (diário) -, nota-se o mesmo trabalho de metalinguagem. O menino tenta
deixar os cadernos de pauta dupla para se entregar às linhas simples “como um audaz
equilibrista”. Mas, para isso, precisa de amadurecimento: “Proeza que exijo do adulto: enfrentar o
papel completamente sem linhas, saltar para o vácuo branco e nele criar ou recriar um mundo”
(VERÍSSIMO, 1961, p. 238). Manuela, espreitando “as coisas pelas frestas da memória”,
aguarda o momento certo para “roubá-las do seu esconderijo do tempo, enfiando-as nas malhas
de uma palavra, de um juízo, de uma frase, pintando-as com esta tinta negra que mancha o papel”
(WIERZCHOWSKI, 2004, p. 106). Além disso, por se tratar de um diário, os Cadernos de
Manuela estabelecem relação com O diário de Sílvia.
Tanto O diário de Sílvia, como os Cadernos de Manuela apresentam uma visão aguda
sobre os acontecimentos da época, além dos lamentos de suas vidas amorosas. O que difere em
ambos é que Sílvia é casada, mas carrega um amor frustrado pelo irmão de seu marido, enquanto
Manuela passa sua vida solteira à espera de Garibaldi, uma vez que sua família impede a sua
união com o “aventureiro” italiano e este se casa com Anita. Com isso, a narrativa do diário de
Sílvia é concentrada no cotidiano do personagem e nas memórias dos anos vividos na casa
materna e na escola; a narrativa de Manuela é intercalada por devaneios, memórias e divagações
sobre acontecimentos passados e sobre o possível retorno de Garibaldi. Ambas são narrativas
intensas, repletas de metáforas que representam a visão feminina, amalgamando passado e
presente num fluido memorialista. Mesmo entregues a suas angústias e dilemas, tanto Sílvia (“O
Brasil declarou guerra às potências do Eixo. A cidade está agitada. Estouram foguetes. Grupos
andam pelas ruas com bandeiras cantando hinos, gritando vivas e morras.” (VERÍSSIMO,
1962, p. 914)) como Manuela (“Andava a sombra da guerra a flanar sobre as cabeças dos rio-
grandenses, e Moringue [...], sim, o velho Moringue andava aprontando das suas, atacando
estâncias de uruguaios, sob a desculpa de que esses eram inimigos dos brasileiros da fronteira.”
(WIERZCHOWSKI, 2007, p. 146)) apresentam um posicionamento realista e crítico com relação
aos fatos históricos, pagando-lhes seu tributo.
Manuela vive na esperança de um reencontro que nunca ocorrerá. Seu escapismo são os
cadernos e os devaneios. Sílvia, em sua vida de casada, fala e age sem convicção, mas indaga-se
sobre as causas do insucesso de sua vida e, assim como Manuela, vive de memórias.
36
Um farol no pampa é constituído de quarenta e quatro capítulos e, além dessa grande
quantidade de capítulos em um único volume, o que difere também de O tempo e o vento é a
repetição constante deles. Por isso, são enumerados de acordo com a quantidade de vezes que são
retomados (A herança I, A família I,..., A herança II, Auroras e poentes e crepúsculos II), com
exceção dos capítulos Cadernos de Manuela e Olhos de Vidro.
Além disso, os encontros de Antônio com uma misteriosa jovem, que no final do romance
pode-se entender tratar-se da filha de Inácia, Carmosina, que havia morrido aos quatro anos de
idade, sugere, outra vez, procedimento intertextual em relação à obra de Veríssimo, notada em
um conto, Sonata. A ação do conto passa-se em 1939; um professor de piano em um anúncio
de jornal, de 1912, uma oferta de trabalho e resolve ir ao endereço onde encontra, saída do
passado, a aluna à sua espera.
É possível, pois, afirmar que Leticia utiliza a temática história de modo semelhante a
Veríssimo, valendo-se da ficção como instrumento modelador, além de usar um painel
diacrônico, fluxo de consciência, personagens femininas marcantes e a técnica contrapontística
33
,
que consiste em contar histórias paralelas, com recuos e avanços temporais que ora se tocam,
entrecruzam-se, até chegar num núcleo comum. Pode-se dizer também que a autora herda a
tradição de seu antecessor e apresenta mulheres fortes, homens destinados a lutar e a brutalidade
da guerra.
Com essa herança e entre outras, Letícia segue o rastro de seus antecessores e constitui o
seu estilo, com sua marca, suas características e sua singularidade, mostrando-se uma escritora
em constante aperfeiçoamento, inserida na tradição literária, mas original na sua apreciação
estética.
33
Técnica aprendida por Érico Veríssimo com Huxley, ao traduzir o romance Contraponto.
37
3. Considerações sobre a relação Literatura-História
[...] literatura e história (Histoire) andam juntas sem
que isso signifique, necessariamente, um relativismo
resignado da “ciência histórica” ou um realismo
militante da literatura.
Jeanne Marie Gagnebin
34
Muito se discute a respeito da relação Literatura-História. Basicamente, essa discussão
ocorre porque ambas utilizam a mesma forma de comunicação: a linguagem. A História vale-se
da narratividade para contar os acontecimentos e a Literatura utiliza os fatos históricos para criar
sua ficção. Surge daí a questão que deve ser colocada aqui: quais são os limites entre discurso
histórico e discurso ficcional?
Essa problemática é abordada em um trecho de um dos capítulos do romance estudado,
intitulado Olhos de Vidro. Algumas histórias que Dona Antônia contava para Matias, quando ele
era menino, eram reais, outras não:
E lá no quarto era que a vó Antônia contava mais histórias. Ela sempre dizia,
Umas histórias são de verdade, outras são de mentira. Mas eu nem sei mais qual
é o quê.
E desfiava suas histórias. (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 71-72)
Às vezes uma história é tantas vezes contada, tantas vezes divulgada, que passa a “ser”
verdadeira, independentemente de sua origem, se de um fato real ou de algo imaginado. Isso
ocorre porque “a ficção, liberta do compromisso com a verdade, discute a História, sem obedecer
a suas determinações, enquanto o discurso oferece rias opções de sentido, inclusive em
contextos diferentes da história original” (BOËCHAT, 2000, p. 183-184).
Conforme Maria Aparecida Baccega (2000, p.65), “a história é, na verdade, tanto o
discurso histórico, o texto que organiza um determinado modo de entender os acontecimentos,
como a práxis da qual ele é componente e resultado”. Portanto, “a história é ciência factual”
34
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva: FAPESP:
Campinas, 1994, p. 3.
38
(NUNES, 1995, p. 41), é o relato de eventos passados e importantes para a constituição e futuro
de uma sociedade. a ficção assume posição oposta; cria, inventa uma história, explorando a
realidade.
Aristóteles distinguia o historiador do poeta considerando que “um escreveu o que
aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido” (s.d., p. 252). Ele também afirma que “o
possível inspira confiança”, autorizando, assim, os poetas a recorrerem a personagens que
existiram. Com isso, a aproximação do fato histórico à literatura. Conforme Roland Barthes
(1988), o texto literário produz o efeito de real, uma vez que a civilização ocidental prestigia o
que “aconteceu”.
É certo que parece impossível estabelecer limites entre o ficcional e o histórico quando
lidamos com literatura. Conforme Maria Teresa de Freitas (1989, p. 109), “os limites entre a
representação e a criação sendo tênues, História e Romance freqüentemente se confundem, e a
fragilidade de fronteira entre esses dois instrumentos de conhecimento do homem coloca alguns
problemas que merecem estudo”. Dessa forma, é difícil delimitar fronteiras precisas entre os dois.
Porém, segundo ela, “estudar as relações entre Literatura e História não significa [...] buscar
apenas o reflexo de uma na outra. Mais do que a imagem, a Literatura seria antes o imaginário da
História”
35
. Assim, ao analisar essa relação, deve-se considerar a presença da História como
elemento acrescentador, e não influenciador da obra literária. A confluência entre História e
Literatura faz com que ambas se somem para um único fim: criar a ficção histórica.
[...] quando um escritor se volta ao passado, e tenta ressuscitar representações e
ideologias anteriores àquelas que predominam em sua época, mas que
sobrevivem, na memória e no inconsciente coletivo, aos momentos histórico-
sociais em que foram criadas, ele vai visar a exprimir desse passado aquilo que
ainda não foi dito, aquilo que dele está reprimido ou latente, para assim explorá-
lo em todas as suas virtualidades e prolongá-las. (FREITAS, 1989, p. 113)
Ao explorar os fatos históricos, o escritor ficcional reinventa-os, buscando preencher
lacunas ou sugerir respostas e até mesmo assumir um posicionamento destoante da historiografia.
Ainda com relação à delimitação de fronteiras entre História e Literatura, Hayden White
(1994, p. 29) afirma que “toda disciplina é constituída por um conjunto de restrições ao
pensamento e à imaginação, e nenhuma é mais tolhida por tabus do que a historiografia
35
Idem, p. 115.
39
profissional”. Dessa forma, alguns historiadores sentiram-se ameaçados em seu fazer escritural e
pode-se dizer que foi daí que surgiu a necessidade de delimitar fronteiras.
Uma semelhança entre esses dois instrumentos é que ambos são constituídos de material
discursivo, o que remete a outro questionamento: a história pode ser representada de maneira
exata? Nesta reflexão, entra em questão o conceito de “verdade histórica”. A história se constrói
por relatos, fatos vivenciados por alguém ou por uma pessoa que retransmitiu essa vivência. Por
isso, é possível que o relato do acontecimento histórico sofra distorções. Até pouco tempo atrás, a
História era contada pelos vencedores que, como tais, tendiam a “modificar” os acontecimentos
para amenizar detalhes obscuros, desfavoráveis a eles, e chegando a inverter acontecimentos para
que se tornassem heróis ou para fazer prevalecer seus pontos de vista e assim construir a
ideologia.
Além disso, história e ficção valem-se de um recurso comum: os documentos históricos.
Na historiografia, são eles que validam o acontecimento tornando-os verdadeiros, assumindo a
posição de testemunha. Assim, o aparato documental auxilia na reconstrução do passado,
constituindo-se em uma importante fonte de pesquisa e de inspiração tanto para o historiador
como para o ficcionalista.
A revisão da história factual e documental, empreendida nos anos 1970 e 1980, foi
apresentada, na França, pela corrente da “História nova”. Segundo Jacques Le Goff (1995, p. 28),
“a história nova nasceu em grande parte de uma revolta contra a história positivista do século
XIX”. Uma das contribuições da história nova foi ampliar o campo do documento histórico,
aceitando os diversos tipos de documentos (estatísticas, fotografia, depoimentos orais, dentre
outros) juntamente com os métodos tradicionais. Com isso, além de utilizar diversos aparatos
para escrever o acontecimento histórico, enquanto os historiadores tradicionais tratavam a
História como narrativa dos acontecimentos, a nova história preocupa-se em analisar as estruturas
e as “versões” de um mesmo fato. Ainda conforme Le Goff (1995, p. 21), a história nova
“pretende ser uma história escrita por homens livres ou em busca de liberdade, a serviço dos
homens em sociedade”, desvinculando-se do discurso autoritário dos homens de poder. Dessa
forma, conforme afirma Teresa Cristina Cerdeira (2000, p. 200), o historiador contemporâneo,
imerso na multiplicidade e na diferença, nega-se a deixar para sempre calados “os esquecidos da
História””.
40
A Literatura e a História são, portanto, disciplinas distintas. Porém, nada impede que
ocorra um entrelaçamento entre ambas. Segundo Vanoosthuyse (1996, p.14), entre la fiction et
l’histoire le rapport n’est ni de réduction de l’une à l’autre, ni de détermination réciproque, ni de
contradiction partielle, mais de convergence brisée
36
. Ambas, unidas, tornam-se um fim, algo
único, diferente de um aglomerado de fatos históricos, mas elas não deixam de ser “formas”
diferentes.
Nota-se que ambas, Literatura e História, querem transmitir “uma imagem verbal da
‘realidade’”, tal como coloca Hayden White (1994, p. 138). O escritor literário utiliza o
acontecimento histórico como um meio de representar uma época, uma sociedade, de gravar
episódios importantes universalmente (FREITAS, 1986, p. 3). Neste sentido, é pertinente analisar
a forma como o discurso do historiador e do escritor de ficção se correspondem ou se
assemelham (WHITE, 1994, p. 137).
No discurso histórico, conforme White
37
, o historiador busca explicar as partes e o todo,
ou entre as fases e a estrutura completa de um processo”, além de fazer intervir não mais o
passado como modelo de presente, mas o presente como reavaliador do passado, que lhe chega
incompleto, dilacerado e, por isso mesmo, extremamente sedutor [...]” (CERDEIRA, 2000, p.
201). Para isso, eles se apropriam de “tropos de linguagem” como metáforas, metonímias e
sinédoques. Dessa forma, a historiografia se aproxima mais ainda da obra literária, a qual se vale
de várias figuras de linguagem como artifício para cativar o leitor e deixar a leitura mais
agradável.
Segundo Leyla Perrone-Moisés (1990, p. 104),
[...] na sua gênese e na sua realização, a literatura aponta sempre para o que
falta, no mundo e em nós. Ela empreende dizer as coisas como são, faltantes, ou
como deveriam ser, completas. Trágica ou epifânica, negativa ou positiva, ela
está sempre dizendo que o real não satisfaz.
Assim, a literatura torna-se uma abertura de possibilidades de dúvidas salutares que
colocam em xeque a realidade histórica, tentando preencher lacunas ou suprimir excessos.
Contudo, ocorre na literatura a imitação poética que estabelece a convenção de verossimilhança
36
“Entre a ficção e a história o relacionamento não é nem de redução de uma à outra, nem de determinação
recíproca, nem de contradição parcial, mas de convergência quebrada”.
37
Idem, p. 133.
41
para garantir certa veracidade histórica ou verdades possíveis. Mas vale lembrar que a Literatura
poetiza a História, sem que haja um pacto de fidelidade com esta; é uma construção de
linguagem, o lugar da metaforização. Ao tecer a ficção, explodem “as fronteiras do imaginário e
afasta-se consciente e voluntariamente do objeto, para se construir como imagem dele.”
(CERDEIRA, 2000, p. 201). para historiografia, o que interessa é o discurso “da verdade”, o
que a dispensa de ser um texto cativante e “belo”, caracterizando-se pelo caráter documental.
Como afirma Maria Teresa de Freitas (1989, p. 117), “o texto literário que se apodera de
uma série histórica terá com certeza um significado distinto daquele que possui o texto histórico,
tentará passar um conhecimento de outra natureza, uma verdade de outra ordem”. Esse
significado será descoberto pela análise da construção do romance e da maneira como o escritor
realizou o imbricamento de História e ficção e reinventou o fato histórico.
Tanto Literatura como História são representações do mundo social e são discursos
significativos. É pela narrativa histórica e literária que se constitui a identidade de uma nação,
conforme demonstra Zilá Bernd (1992, p. 17) citando Ricoeur (1985, p. 432),
A [...]identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois definir-se é,
em última análise, narrar. Uma coletividade ou um indivíduo se definiria,
portanto, através de histórias que ela narra a si mesma sobre si mesma e, destas
narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da definição implícita na qual
esta coletividade se encontra”. Portanto, a construção da identidade é
indissociável da narrativa e conseqüentemente da literatura.
Assim, a narrativa ficcional é uma forma de analisar e definir também a essência da
identidade coletiva. Ambas, História e Literatura, exercem um papel importante na construção
daquilo que se convencionou designar identidade nacional, embora tangenciem instâncias
diferentes de um mesmo tema ou objeto.
42
3.1. Do romance histórico à metaficção historiográfica
La véritable Histoire, aujourd'hui comme hier, ne s'
écrit pas chez les historiens mais chez les écrivains.
38
Pierre Barbéris
39
O romance histórico surgiu em meados do século XIX. A característica fundamental deste
tipo de romance é a especificidade histórica do tempo da ação, condicionado ao modo de ser e de
agir dos personagens. O precursor do gênero foi o escocês Walter Scott, o qual situava romances
amorosos em um passado reconstruído por meio de fatos reconhecidos. Conforme Castelo Branco
Chaves (1979, p. 29), nas primeiras décadas do século XIX,
[...] o interesse pela história constituía não o fundo da cultura, mas também
um dos mais vastos e ricos recursos ao divertimento dos espíritos. Em quase
todas as épocas da história se verifica, em cada uma delas, a criação da sua
utopia, geralmente prospectiva. A utopia romântica teve a particularidade de se
projetar sobre o passado, de ser uma utopia retrospectiva. Toda utopia se cria
como uma compensação das realidades presentes; os românticos, porém, antes
de a visionarem no futuro, fizeram-na transitar pelo passado, e esse foi o toque
de genialidade de Walter Scott e a verdadeira causa da quase universal aceitação
da sua obra.
Desse modo, a insatisfação e a reflexão parecem estar direcionadas ao presente e não ao
passado, uma vez que é ele que projeta a utopia de um modus vivendi ideal e idealizado. Como
afirma Teresa Cristina Cerdeira (2000, p. 199), “o discurso da História deixa [...] de ser um
templo de eternização do passado, para se instituir como dimensão criadora do futuro”.
Sobre o romance histórico scottiano constata-se a presença do exotismo do tempo aliado
ao ambiente histórico com o intuito de favorecer o crescimento dos ideais liberais, “à moral
racional, às crenças religiosas e aos sentimentos nacionalistas patrióticos que as guerras
napoleônicas despertaram e todas as nações por elas devastadas” (CHAVES, 1979, p. 59-60).
Além disso, a representação pretendida verossímil do passado e o aparecimento maciço da
força popular.
38
“A verdadeira História, hoje assim como ontem, não é escrita pelos historiadores mas pelos escritores.”
39
BARBÉRIS, Pierre, Prélude à l’Utopie. Paris: PUF Écriture, 1991.
43
Georg Lukács foi quem melhor analisou e elaborou teorias sobre o gênero romance
histórico. Em sua obra Le roman historique, Lukács aponta algumas características básicas do
romance histórico: presença de grandes painéis históricos, englobando determinada época e
conjunto de acontecimentos; temporalidade cronológica dos acontecimentos narrados;
personagens fictícios; as personalidades históricas são apenas citadas ou integram o pano de
fundo das narrativas; dados históricos utilizados com o intuito de conferir veracidade histórica,
verossimilhança; e, em geral, o narrador em terceira pessoa, como forma de distanciamento e
imparcialidade, assim como faz o discurso da História.
Ainda a respeito do romance histórico, Marilene Weinhardt (1994, p. 51) afirma que:
Ao romance histórico não interessa repetir o relato dos grandes acontecimentos,
mas ressuscitar poeticamente os seres humanos que viveram essa experiência.
Ele deve fazer com que o leitor apreenda as razões sociais e humanas que
fizeram com que os homens daquele tempo e daquele espaço pensassem,
sentissem e agissem da forma como o fizeram.
Depreende-se que o romance histórico possui um caráter explicativo e represente um fato
que tenha realmente existido e personagens que podem tê-lo vivenciado. Dessa forma, nota-se
certo pacto de verossimilhança entre a ficção e a referencialidade histórica, reiterando a idéia de
que o discurso histórico monolítico era insuficiente e incapaz de englobar um aparato
cronológico, pois havia outras certamente várias para um fato. Ao assumir um único discurso,
ignorando a população ou uma classe social distinta, por exemplo, perdem-se informações e
detalhes valiosos para uma reconstrução do passado histórico.
No entanto, conforme a posição de Umberto Eco (1985, p. 64), o romance histórico deve
“não apenas identificar no passado as causas do que aconteceu depois, mas também desenhar o
processo pelo qual essas causas foram lentamente produzindo seus efeitos”. Dessa forma, um
personagem pode possuir idéias “mais modernas” com relação à época em que ele se situa no
romance, a fim de anunciar concepções que ainda poderiam advir.
Por volta dos anos de 1970, surge a teoria do Pós-Modernismo, apresentada por teóricos
americanos cuja principal prerrogativa era a escritura de romances com problemáticas acerca de
um passado (meta-história). No entanto, conforme Eco (1985, p. 55), “o pós-moderno não é uma
tendência que possa ser delimitada cronologicamente, mas uma categoria espiritual [...], um
modo de operar”. Pode-se dizer que toda época possui o seu pós-moderno (vanguarda).
44
Ainda segundo Eco (1985, p. 56-57), “a resposta pós-moderna ao moderno consiste em
reconhecer que o passado, que não pode ser destruído porque sua destruição leva ao silêncio,
deve ser revisitado: com ironia, de maneira não inocente”. A partir dessas premissas é que surge a
metaficção historiográfica, valendo-se de instrumentos estéticos como a ironia e o jogo
metalingüístico.
A metaficção historiográfica ocupa-se não apenas em apresentar fatos passados e os
motivos que levaram a eles, mas também propõe uma reflexão de forma não inocente, além de
fazer uma releitura da história através do preenchimento das lacunas deixadas pelos discursos
oficiais. Dessa forma, tratando a História como narrativa, o escritor contemporâneo realiza a
desconstrução dos fatos e dramatiza as circunstâncias” (BOËCHAT, 2000, p. 180). Para tanto,
apresenta outros pontos de vista, como, por exemplo, do escravo, do empregado e da mulher.
Autora do termo metaficção historiográfica, Linda Hutcheon
(1991, p. 21-22)
, define-o da
seguinte forma:
Com esse termo, refiro-me àqueles romances famosos e populares que, ao
mesmo tempo, são intensamente auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira
paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos
[...]. Na maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é a
narrativa seja na Literatura, na história ou na teoria - que tem constituído o
principal foco de atenção. A metaficção historiográfica incorpora todos esses três
domínios, ou seja, sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como
criações humanas (metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu
repensar e sua reelaboração das formas e dos conteúdos do passado.
Esse tipo de produção literária refere-se a obras que apresentam problemáticas,
questionamentos e reflexões tanto para a ficção como para a história nela inserida. Além disso,
explora todas as formas do discurso literário, experimentando todas as possibilidades de
construção narrativa. Essas características apontam a metaficção historiográfica como produção
que difere do romance histórico, uma vez que é “o inesperado outro que tece com a tradição, e
não com a nostalgia da tradição, essa estratégia de repetição na diferença” (CERDEIRA, 2000, p.
231).
45
A metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou de senso comum,
para distinguir entre o fato histórico e a ficção. Ela refuta a visão de que apenas a
história tem uma pretensão à verdade, por meio do questionamento da base dessa
pretensão na historiografia e por meio da afirmação de que tanto a história como
a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de significação, e é a partir
dessa identidade que as duas obtém sua pretensão à verdade. Esse tipo de ficção
pós-moderna também recusa a relegação do passado extratextual ao domínio da
historiografia em nome da autonomia da arte. (HUTCHEON, 1991, p. 127)
Apresentando experiências públicas enquanto discurso, a metaficção historiográfica
assume um aspecto popular e, com isso, aproxima-se mais do leitor. Por outro lado, alguns
escritores propõem-se a desvendar mistérios escondidos por trás de uma trama de acontecimentos
históricos, o que também desperta o interesse do leitor, ainda mais em se tratando de um fato
presente na memória do público leitor.
O termo metaficção historiográfica sugere uma dicotomia, assim como o termo romance
histórico. Esse tipo de literatura coloca em evidência o processo de construção ficcional
(metaficção), ao mesmo tempo em que questiona a referência histórica (historiográfica). Assim,
tanto metaficção historiográfica como romance histórico são formas híbridas, uma vez que
imbrica histórico e literário; porém, fica evidente que nunca será historiografia. Trata-se de um
discurso competente, que reescreve com liberdade os signos da história. Contudo, esta liberdade é
relativa, pois a utilização da matéria histórica não deve deturpar o signo.
O romance histórico difere da metaficção historiográfica por seu caráter mais informativo,
em que o fato histórico serve antes como pano de fundo do que como algo questionador e
investigativo. A metaficção historiográfica renova a tradição, escrevendo a ficção histórica em
um outro contexto, com um olhar mais contestador direcionado a história, ao passo que apresenta
inovações nos recursos estéticos literários. Em suma, a metaficção historiográfica caracteriza-se
basicamente pelas reflexões que o espaço estético mantém com o histórico, o político e o cultural.
46
3.2. Um “farol” sobre a História da Guerra do Paraguai
Parece que a regra geral aqui é a guerra, sendo a paz
apenas uma exceção; pode-se dizer que esta gente
vive guerreando e nos intervalos cuida um pouco da
atividade agrícola e pastoril e do resto; mas um
pouco, um pouco, porque parece que tudo é feito
com o pensamento na próxima guerra ou na próxima
revolução. nos olhos destas mulheres uma
permanente expressão de susto.
Érico Veríssimo
40
De forma fragmentada e não-linear, a narrativa de Um farol no Pampa envolve os anos
1847 a 1903, um período bastante longo, marcado por vários acontecimentos importantes na vida
pública e política do Brasil, principalmente da região Sul.
Após o capítulo A herança I, em que é feita a descrição do personagem Antônio, situado
em 1902, e o seu propósito em viajar para os pampas, há a primeira contextualização histórica do
romance. Apesar de breve, as informações desse trecho estabelecem ligação intrínseca com o fato
histórico do primeiro volume (“A Revolução Farroupilha terminou em 1845 com a assinatura do
Tratado de Paz de Ponche Verde”) e também relata o destino dos chefes da revolução, os generais
Netto e Bento Gonçalves. O destino da família deste último é que continuará a ser ponto de
referência para o romance. (“O general Antônio Netto exilou-se no Uruguai, onde viveria até
morrer, em 1866, durante a Guerra do Paraguai. Bento Gonçalves da Silva, adoentado, recolheu-
se à Estância do Cristal com a esposa, Caetana, e os filhos” (
WIERZCHOWSKI,
2004, p. 21)).
Nota-se que já é antecipado o destino de Netto, e anunciada a morte de Bento, em 1847. Ambos
são personagens importantes da História do Rio Grande do Sul, o que mostra a preocupação da
autora em situar e anunciar categoricamente, logo no início do romance, a retomada dos rumos
iniciados em A casa das sete mulheres.
O capítulo A família VII, aborda o início da guerra civil no Uruguai, ocorrida em 1863.
Venâncio Flores [...] invadira o Uruguai à frente de tropas organizadas em Buenos Aires com a
ajuda do governo argentino [...]” (
WIERZCHOWSKI,
2004, p. 207). Bernardo Berro, presidente
40
VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o vento – O continente. 2ªed, São Paulo: Globo, 1950.
47
do Uruguai, busca aproximação com o Paraguai, pois o governo de Solano López tinha algumas
ligações com os blancos uruguaios. O governo de Berro havia taxado a movimentação do gado
pelas fronteiras rio-grandenses e limitado o número de escravos nas propriedades de brasileiros
residentes no território uruguaio. Logo após a ofensiva de Flores, o general Netto juntou armas e
homens para também lutar. Este tinha seu próprio exército, formado por lanceiros negros, a
Brigada Ligeira
41
. Esse é o panorama inicial traçado no romance e que condiz com a História
oficial. Com isso, são apresentadas hipóteses sobre o agravamento dos conflitos entre Uruguai,
Paraguai e Argentina, resultando na Guerra do Paraguai.
Essas informações de caráter histórico são apresentadas, simultaneamente, ao personagem
D. Ana e ao leitor. Depois, prossegue um diálogo entre Ana, José (seu filho) e a sua nora Maria
Angélica. José comenta que “há muitas cousas em jogo”, mas apenas expõe a posição do
Uruguai, que “quer enfraquecer o poder que o Império exerce sobre ele”
42
. O comentário de
José coloca em evidência a obscuridade dos motivos do início da guerra, de maneira a instigar o
leitor a querer saber o que poderiam ser essas “cousas” em jogo. Em seguida, confirma-se que o
Uruguai não renovou o tratado de navegação, impedindo o Brasil de utilizar rios importantes do
Sul. Com isso, Jotambém explica a participação do general Mitre, que queria minar o poder
dos federalistas, os quais, por sua vez, possuíam forte ligação com os paraguaios, razão pela qual
patrocinou os colorados chefiados por Flores. Após essa breve explanação, começam a surgir
indícios do que seriam as “cousas em jogo”, ou seja, os interesses envolvidos na questão.
Os acontecimentos prosseguem no Prata. No texto, o narrador menciona o conteúdo de
uma carta do general Antonio de Souza Netto enviada a Caetano. Nesta, o general informa que os
brasileiros residentes no Uruguai estavam sendo alvos de agressões e tocaias, e as terras estavam
sendo confiscadas por Berro. Em seguida, é relatado o episódio, que realmente ocorreu, no qual o
general Netto vai até o Rio de Janeiro falar com o imperador, D. Pedro II, em 1864. Após essa
conversa, D. Pedro II envia um representante ao Uruguai acompanhado de uma esquadra
comandada por Tamandaré, exigindo do governo uruguaio, agora comandado pelo presidente do
Senado, Cruz Aguirre, “[...] uma punição para os crimes cometidos contra cidadãos brasileiros e
41
O general Netto foi um dos idealizadores da Revolução Farroupilha, iniciada em 1835. Com sua Brigada Ligeira,
formada por negros voluntários que almejavam o fim da escravidão, ele venceu várias batalhas pela
independência do Rio Grande do Sul e pela formação do que denominava a República Piratini
42
Idem, p. 209.
48
o respeito à propriedade e à integridade desses cidadãos”
43
(
WIERZCHOWSKI
, 2004, p. 212).
Porém, nenhuma medida foi tomada. Depreende-se que essa problemática dos estancieiros
brasileiros que viviam no Uruguai foi um dos motivos que levaram o Brasil a entrar na guerra. Na
realidade, a preocupação do general Netto, que toma a frente e exige uma atitude do imperador,
não era somente com relação aos crimes contra os brasileiros, mas sim, principalmente, com
problemas em suas terras.
No capítulo A família VIII, é a criada de Manuela quem traz a notícia do real (e oficial)
início da guerra. Solano López capturou o navio brasileiro Marquês de Olinda, no qual seguia o
presidente da província de Mato Grosso, o coronel Carneiro de Campos, tornado prisioneiro do
governo paraguaio. Porém, as tropas brasileiras haviam invadido o Uruguai um mês antes.
Mesmo assim, foi definido pela historiografia como o início da Guerra do Paraguai o episódio da
prisão do navio Marquês de Olinda, em 12 de novembro de 1864, conforme se depreende de um
diálogo entre Manuela e sua criada. Esta diz que a guerra havia começado, mas aquela não
entende a que guerra se referia a criada, pois havia notícias da invasão do território uruguaio
por tropas do Império. A notícia deixa Manuela, que conhecia uma versão do início da mesma
guerra, confusa. Fica nítido, portanto, que as informações a serem divulgadas entre a população
eram escolhidas, bem como ficou encoberto o motivo que realmente desencadeou o conflito.
À sua esposa Clara, Caetano relata o episódio de chacinas e saques, e as expectativas que
tem em relação à guerra. O Império acreditava que o conflito levaria poucos meses, pois
alegavam que o Paraguai não tinha recursos para sustentar uma guerra longa. Porém, ainda
segundo boatos, López possuía um exército de setenta mil armas”, e, portanto, Caetano contava
com a possibilidade da campanha ser “mui longa e traiçoeira”
44
.
Nota-se que todos os acontecimentos relacionados com a guerra são trazidos pelas vozes
narrativas, que assumem o papel de contar situações e eventos vividos simultaneamente por elas,
conjugados contrapontisticamente na narrativa - Matias nos campos de batalha, Inácia na estância
e Antônio em outra época: ambos relatam o mesmo momento histórico, mas por perspectivas
diferentes. Conforme chegam as notícias, por cartas, jornais, conversas e boatos, os personagens
as transmitem para os demais. Assim, é pelos personagens que não m certeza dos fatos, pois
apenas reproduzem o que ouviram ou leram, que o leitor fica a par dos acontecimentos históricos
43
Idem, p. 230.
44
Idem, p. 234.
49
que realmente ocorreram. Dessa forma, as informações não são aprofundadas; são apenas
comentadas. Esse é um indício de verossimilhança importante. períodos em que tanto na
história quanto na ficção as informações são desencontradas ou fragmentadas. Trata-se um dado
realista, que mostra a subversão do discurso do poder, colocando em questão a visão contaminada
por um historicismo laudatório e nacionalista que deixa lacunas para não apresentar a “verdade”.
No que diz respeito a narrativas historiográficas da Guerra do Paraguai, é importante
salientar que, em geral, elas foram escritas por oficiais combatentes e são marcadas por discursos
apologéticos do Estado e da elite, conforme Mário Maestri (2003). Portanto, a história foi
moldada de acordo com a visão de um grupo elitizado, bem como afirma Jacques Le Goff (1995,
p. 261):
A história era, antes de tudo, obra de justificação dos processos da ou da
Razão, do poder monárquico ou do poder burguês. [...] Os papéis representados
pelas elites do poder, da fortuna ou da cultura pareciam ser os únicos que
contavam. A história dos povos se diluía na história dinástica, e na história
religiosa na da Igreja e dos clérigos.
Assim, em Um farol no pampa a visão da população e dos soldados perante esse tipo
de discurso e as descrições dos episódios vividos pelos combatentes, trazendo à tona os conceitos
da História Nova, que conta os outros lados da História, aqueles dos marginalizados e dos
vencidos.
Ainda com relação aos motivos desencadeadores da guerra, no capítulo A família VII, em
uma conversa entre os personagens Clara e Tomázia, esta sugere que o sucedido com o navio
Marquês de Olinda poderia ser apenas um impasse diplomático. Clara, que acabara de ler uma
carta escrita por Caetano, retruca mostrando a carta a Tomázia: “Há muitas cousas em jogo no
Prata. E o tal López moveu-se no tabuleiro. Ele quer vencer a partida e tem setenta mil homens
no seu exército” (
WIERZCHOWSKI,
2004, p. 235). O posicionamento desses personagens,
mergulhados num tempo-espaço definido, mostra uma espécie de aprofundamento da história.
Trata-se, porém, de uma outra forma de aprofundar-se, deixando indícios e apontando questões
sobre o que estava além do discurso difundido pelo Império. Sabe-se que havia vários interesses
envolvidos, porém são relatados somente os que interessam aos rio-grandenses. No texto, não é
mencionada a participação da Inglaterra, como destacam alguns historiadores. Este país via no
Paraguai um excelente mercado a explorar e em seu interesse pelo algodão ali produzido, uma
50
vez que os Estados Unidos, em guerra civil, tinham cortado a exportação deste produto. Além
disso, o Paraguai mostrava-se um país poderoso, o mais rico do continente, constituindo, assim,
numa ameaça para os países vizinhos e, conseqüentemente, para o equilíbrio econômico do Cone
Sul. Dessa forma, a visão estimulada pela Inglaterra era a de que o Paraguai seria uma vítima da
Tríplice Aliança, pois, no auge de sua hegemonia capitalista do século XIX, a Inglaterra
considerava o Paraguai um país atípico, objeto de sua cobiça financeira e econômica. A guerra tal
como ocorreu realizou todo o trabalho sujode que a Inglaterra necessitava. Logo após o final
do conflito, a City, o centro financeiro de Londres, chegou com os empréstimos, e o Paraguai
tornou-se um dos países mais endividados da América do Sul, situação que perdura até hoje.
Informações fragmentadas e obscuras sobre os reais motivos da guerra e omissões de
detalhes mostram a preocupação das autoridades em não apresentar a “verdade” para a
população. Os homens iam para os campos de batalha por algum motivo, seja para obter algo a
seu favor, seja para lutar por seu país ou por sua sobrevivência. Não fica nítido no romance o que
impulsiona os homens a irem para a campanha. Em Auroras e poentes e crepúsculos II, o próprio
Matias não sabe por que decidiu lutar; sente como se fosse uma obrigação, um dever, conforme
diz a Inácia: “Não vou le mentir. Eu vou seguir com a gente do Netto. Acho que é a minha
obrigação”
45
. Ele nem ao menos sabe por que está lutando. “Matias certamente se uniria a
alguma tropa. Não sabia explicar o motivo daquela decisão, mas era uma coisa que o destino lhe
tinha imposto”
46
. Movido por um sentimento de obrigação e sem ter razões específicas, nem ao
menos interesse nos motivos que levaram ao estopim da guerra, como as questões territoriais, é
que Matias parte para os campos de batalha. Parece que ele é motivado por histórias ouvidas na
infância, nas quais havia “heróis” como Giuseppe Garibaldi. Ele tinha crescido ouvindo as
pessoas glorificarem a Revolução Farroupilha, episódio marcante na História do Rio Grande do
Sul e essas histórias repercutiram nele naquele momento.
Tinha vindo para a guerra por uma questão de consciência, e porque crescera
ouvindo dizer que um homem de bem se talhava entre pelejas. Crescera ouvindo
de lutas onde havia o bem e o mal... Crescera sonhando com um herói italiano.
Ali, no entanto, não havia heróis nem bandidos. (WIERZCHOWSKI, 2004, p.
342)
45
Idem, p. 223.
46
Idem, p. 216.
51
Talvez seja essa a razão dos homens irem para a guerra sem contestar: eles herdaram a
missão de guerreiros, de defensores de suas terras, em decorrência das glórias do passado. Assim,
o bom gaúcho era aquele que não fugia de uma “peleja”; em tempos de guerra, sua obrigação era
ir para os campos de batalha. Porém, na Revolução Farroupilha havia um ideal de liberdade que
motivava os soldados e os negros escravizados, enquanto na Guerra do Paraguai não parecia
existir uma meta nítida, uma vez que havia muitos interesses, todos visando poder e benefício dos
próprios governantes. Dessa forma, ao enfrentar os campos de batalha, Matias constata que a
guerra não é feita de “mocinhos” e “vilões”, mas de seres humanos, todos fadados à mesma sina:
lutar.
Aqui não “bandidos” ou “mocinhos”, como quer o revisionismo infantil, mas
sim interesses. A guerra era vista por diferentes ópticas: para Solano López era a
oportunidade de colocar seu país como potência regional e ter acesso ao mar
pelo porto de Montevidéu, graças a uma aliança com os blancos uruguaios e os
federalistas argentinos, representados por Urquiza; para Bartolomé Mitre era a
forma de consolidar o Estado centralizado argentino, eliminando os apoios
externos aos federalistas, proporcionado pelos blancos e por Solano López; para
os blancos, o apoio militar paraguaio contra argentinos e brasileiros viabilizaria
impedir que seus dois vizinhos continuassem a intervir no Uruguai; para o
Império, a guerra contra o Paraguai não era esperada, nem desejada, mas
iniciada, pensou-se que a vitória brasileira seria rápida e poria fim ao litígio
fronteiriço entre os dois países e às ameaças à livre navegação, e permitiria
depor Solano López (DORATIOTO, 2002, p. 93-96).
Cada país envolvido na guerra contra o Paraguai tinha interesse em aumentar seu poder e
conquistar maior autonomia política. Dessa maneira, nota-se que os objetivos da guerra são
exclusivamente voltados à elite, a qual envia escravos e homens comuns para lutar pelo Império
do Brasil. Essa questão é bem representada pelos personagens Joaquim, que mandara três
escravos para compensar sua ausência na guerra, uma vez que, a princípio, decidira não lutar, e
Bernardino, que também envia escravos no seu lugar como forma de mostrar que fez a sua parte
como cidadão rio-grandense. Havia “muita gente pagando 600$000 para não vir, ou mandando
escravos em seu lugar” (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 397). Enquanto os estancieiros enviavam
escravos para os campos de batalha, permanecendo no conforto, em contraponto, os soldados
arregimentados pereciam a mercê do ambiente hostil e da falta de recursos e condições.
No capítulo Auroras e pontes e crepúsculos III, o narrador descreve o cotidiano e a
situação dos acampamentos. É início de 1865 e mais de nove mil homens encontram-se nos
52
arredores de Montevidéu. Matias era o primeiro-sargento da Cavalaria Ligeira do general Netto e,
de longe, observa o general Osório traçando planos juntamente com o coronel Caetano, filho do
general Bento Gonçalves. Enquanto estudavam estratégias, aguardavam a tomada de poder do
Uruguai por Venâncio Flores. Faltava “muito pouco para que Aguirre perdesse o controle da
situação” (
WIERZCHOWSKI
, 2004, p. 242), pois não tinha mais o apoio de López, que, a
princípio, se propôs, sem sucesso, a ser mediador entre o Império do Brasil e a República
Oriental do Uruguai.
Como a guerra estava apenas começando, apesar da má qualidade da comida e das
condições de higiene precárias, havia a preocupação dos comandantes em não deixar faltar
mantimentos para os soldados a fim de manter o moral das tropas. No entanto, depois de um mês
acampados à espera de ordens, não havia mais água potável. Inicia-se, então, uma revolta interna.
As doenças começam a aparecer; os homens morrem de disenteria
47
, cólera e varíola. Pelo olhar
de Matias resume-se a indignação diante de mortes vãs, do futuro dos negros e da singularidade
dos soldados impostos pela condição de guerra.
Ali, no entanto, não havia nem heróis nem bandidos. Aqueles índios descarnados
eram tão infelizes quanto a soldadesca aliada que penava sob a chuva e sob o
sol. No tempo do pai, lutara-se por uma república e pelo fim da escravidão, e
tinha sido aquele um bom sonho. Ali havia negros por toda parte no exército
aliado, eles eram a maioria da tropa brasileira, e o mais aguerridos nas pelejas.
Quando a guerra acabasse, como haveriam de voltar à lavoura e ao chicote?
48
O olhar cáustico sobre a guerra, comparada a “uma doença que deixa cicatrizes”
49
, corrói
mitos, inclusive do mundo dividido em forças maniqueístas. Essa incidência confirma o que diz
Linda Hutcheon (1991, p. 121), pois “hoje pensar historicamente é pensar crítica e
contextualmente”. Dessa maneira, a visão crítica de Matias apresenta o lado da guerra conhecido
apenas pelos combatentes. Todos os soldados passam a ser considerados iguais, por se
encontrarem na mesma situação, lutando por suas vidas. São vítimas da guerra provocada por
terceiros. Por outro lado, eles enfrentam o inimigo que está na mesma condição. Com isso, o
personagem Matias esboça um painel crítico e questionador, uma vez que, além das batalhas, os
47
Idem, p. 243-244.
48
Idem, p. 342.
49
Idem, p. 149.
53
soldados deviam combater a adversidade do ambiente, a suscetibilidade a doenças, a escassez de
alimento e água potável e as lutas internas em prol de interesses de uma minoria aristocrática.
No mesmo capítulo, mais adiante, a narrativa sobre o acampamento é relegada a segundo
plano para dar lugar aos acontecimentos da Estância do Salso, à qual chegam notícias e boatos
sobre a guerra. “Inácia ouvira o cunhado dizer que o tal Solano López tencionava invadir o Rio
Grande”
50
. Em seguida, é revelada a opinião da população em geral sobre o imperador brasileiro
D. Pedro II: uma personalidade poderosa, inatingível, alguém de extrema confiança. Mesmo que
López invadisse, o imperador “jamais deixaria que o inimigo tomasse posse do Rio Grande”
51
.
Essa era a imagem que o Império queria transmitir à população da época a fim de justificar o
derramamento de sangue: D. Pedro II como salvador e López como terrível inimigo, formando a
típica dicotomia maniqueísta do bem e do mal.
Esta é também a perspectiva oferecida pela historiografia oficial brasileira: falseando o
processo histórico que levou ao conflito, disseminou-se a idéia de que o Brasil, afinal, estaria
combatendo a ditadura de Solano López, e não o Paraguai, propriamente dito. Essa mesma
perspectiva parece também ter sido desenvolvida pelos paraguaios, até que, após a revisão do
contexto histórico, a este lhe foi conferida uma aura de mito, passando de vilão a herói. Segundo
Francisco Doratioto (2002, p. 80), em função da situação paupérrima do Paraguai após a guerra,
da baixa auto-estima nacional, dentre outros fatores, surgiu a necessidade do revisionismo
histórico da figura de Solano López e de sua transformação em herói, vítima da Tríplice Aliança
e sinônimo de coragem e patriotismo.
Dessa forma, a idéia de domínio brasileiro faz subestimar o poder de um país pequeno
como o Paraguai. No romance, comandantes e soldados menosprezam o inimigo, como uma
maneira de conferir confiança, principalmente para a população. Um exemplo disso é a fala de
Bernardino, representante da elite, em uma conversa com Perpétua e Inácia: “Solano López é o
ditador de um país pequeno, que busca ganhar poder nas relações do Prata. Duvido muito que
tenha recursos bélicos ou financeiros para uma guerra grande com um império como o do Brasil.
Talvez não passe de um inconseqüente”
52
. Rapidamente, Inácia, mesmo sendo uma representante
da classe aristocrática, mostra sua preocupação com a Argentina, a qual ainda estava neutra com
relação à guerra. Contudo, Bernardino a tranqüiliza afirmando que Mitre jamais se uniria a
50
Idem, p. 245.
51
Idem, p. 246.
52
Idem, p. 247.
54
López, ainda que não explicitasse seus argumentos e deixasse, assim, transparecer o jogo de
interesses dos países vizinhos. Em um momento anterior, no início da conversa, ele também
tranqüiliza Perpétua: “Esteja tranqüila, senhora. O Império está cuidando das cousas. E nossos
homens na fronteira estão em alerta”
53
. Mais uma vez, a palavra “cousas” é abrangente e,
também, ambígua. Que “cousas” seriam essas? Do que o Império estaria cuidando: dos seus
próprios interesses ou da situação da população? Afinal, já havia soldados posicionados na
fronteira do país, o que não impediu a invasão pelas tropas paraguaias.
Logo a seguir, um trecho informativo revela que o Paraguai havia declarado guerra contra
o governo argentino por este não ter autorizado que as tropas paraguaias atravessassem o seu
território, em Missiones. Como Venâncio Flores já estava novamente no poder uruguaio e graças
aos atritos, foi assinado, em 1º de maio de 1865, o tratado da Tríplice Aliança – Argentina, Brasil
e Uruguai contra o Paraguai
54
. Com isso, tanto na história, quanto na ficção, a guerra começa
definitivamente, dando início às sangrentas batalhas.
Ilustração 1: Os três chefes de Estado do Brasil, Uruguai e Argentina, em uma caricatura da revista A Semana
Ilustrada, de 1865.
53
Idem, p. 247.
54
Idem, p. 248-249.
55
Para Matias, que estava ainda acampado em Montevidéu, a guerra começou com o
anúncio da formação da Tríplice Aliança e a marcha para Corrientes. As expectativas e
promessas de um conflito breve por parte dos comandantes não são concretizadas. Como Matias
mesmo afirma a Caetano: O Paraguai é uma terra desconhecida, Caetano. Como o exército vai
avançar por aqueles charcos e alagados?”
55
. Porém, os brasileiros contavam com uma suposta
inferioridade dos soldados paraguaios, tanto em armas como em contingentes treinados. No
entanto, eles também tinham contra si doenças provocadas pela penúria em que as tropas viviam
e as chuvas torrenciais que causavam várias baixas.
Juntamente com a notícia de que os paraguaios tinham invadido o Rio Grande, chegam
relatos do “horror da fuga” da população. Ao fugirem dos inimigos, “mãe e filhos tinham se
separado, e [...] muitas crianças acabaram morrendo nos campos em derredor”
56
. Enquanto as
tropas inimigas tentavam tomar a vila de São Borja, os habitantes da Estância do Cristal
(Caetana, Tomázia, Joaquim e Josefina, sua esposa) ficam apreensivos, apesar de receberem a
informação de que havia chegado reforço: o 1° Batalhão de Voluntários da Pátria, sob o comando
de Menna Barreto. Mesmo assim, São Borja é tomado pelos inimigos, que a saquearam, inclusive
a igreja, e violentaram moças da vila. Sentindo-se ameaçada com a proximidade da guerra,
Tomázia mostra seu desespero e indignação: “Que diabo! [...] Será que o Império vai ficar de
braços cruzados enquanto o Rio Grande é barbaramente saqueado?”
57
. Com o início das invasões
paraguaias, a população fica apreensiva e até a classe aristocrática começa a temer por suas
estâncias e suas vidas, principalmente as mulheres, que, sozinhas, devido à partida de maridos e
filhos para as batalhas, ficam a mercê dos acontecimentos da guerra.
Ao receber as notícias das “barbaridades que as tropas paraguaias tinham cometido na
província do Mato Grosso”
58
, Caetana faz remissão à revolução comandada pelo marido contra o
Império: Tudo isso é mui triste. [...] Lembro-me bem de que Bento desistiu de tomar São José
do Norte porque não havia outra saída para manter a vila além de incendiar suas casas. Mas isso
foi em outro tempo, quando um homem de bem tinha a sua honra
59
. Por esse comentário de
Caetana, nota-se um distanciamento comparativo da qualidade entre as duas guerras a dos
Farrapos, na qual havia objetivos considerados nobres, que levava muito em conta a honra, e a do
55
Idem, p. 252.
56
Idem, p. 258.
57
Idem, p. 258.
58
Idem, p. 237.
59
Idem, p. 238.
56
Paraguai, uma guerra cruel, bárbara e sem escrúpulos, na qual homens eram comparados a
animais ferozes. “Nessa maldita guerra do Paraguai matavam civis, matavam mulheres, matavam
crianças, matavam de tudo. A vida não valia nada”
60
.
Em A família XII, outra remissão à Revolução Farroupilha, dessa vez feita por um
cavaleiro que levava correspondência à família do general Bento: [...] se o Rio Grande tivesse
virado república, que se aquela guerra na qual ele lutava vinte anos antes, ah, aquela guerra sim!,
se aquela guerra tivesse dado certo, eles não estariam vivendo nada daquilo
61
. Tratava-se de uma
guerra marcada por esse forte ideal libertário e separatista, na qual os vencidos tiveram mais
prestígio do que os vencedores. Por isso, os personagens rememoram um passado de glória para
contrapô-lo ao presente desastroso de um conflito sem fins claros e que minava com a população
e com as cidades fronteiriças.
Joaquim, que decidira não ir para os campos de batalha e ficar para cuidar da estância e
dar assistência médica aos peões e suas famílias, mas que tinha enviado três de seus escravos para
a fronteira, se sentia “em dívida”, uma vez que “no Rio Grande, um homem devia conviver com
o sangue e a espada.”
62
. Mais uma vez é demonstrada a obrigação do homem gaúcho. Ele não
apenas participava de batalhas para defender o território rio-grandense, mas lutava também por
uma questão de honra. O destino do gaúcho eram as pelejas”. No caso de Joaquim, ele se sente
em dívida por ser herdeiro de um dos heróis” rio-grandenses, Bento Gonçalves. Por isso, ele
cobra de si mesmo uma de atitude e toma sua decisão: “Sigo para a guerra, madre. Não há sentido
em estar aqui enquanto os homens se batem naqueles charcos. É uma obrigação que me persegue.
Tenho pensado nisso dia e noite...”
63
Após constatar não poder mais fugir de seu destino, parte
para a guerra na condição de médico, para trabalhar num hospital de sangue. Dessa forma, ele
ameniza sua culpa e, executando o caminho inverso dos soldados, luta para salvar almas e vidas.
Com a grande invasão das tropas paraguaias no sul, parece que os pedidos de Tomázia
quanto a uma providência por parte do Império são ouvidos, pois D. Pedro II resolve ir a Porto
Alegre para se colocar a par da situação. D. Ana, que esperava uma atitude do imperador, mesmo
à beira da morte, mostra-se muito consciente e crítica: “Bueno [...], se o hombre não veio por
60
Idem, p. 390.
61
Idem, p. 389.
62
Idem, p. 259.
63
Idem, p. 350.
57
bem, que venga por mal. era tempo de conhecer o filho insolente.”
64
. Mesmo com a visita do
imperador, esta apenas citada no romance, a guerra segue o seu curso e não surge nenhuma
solução para o conflito e para as invasões, nem mesmo se preocupam em tranqüilizar a
população, que é obrigada a se autoproteger, sentindo-se abandonada pelo governo imperial.
O capítulo Aurora e poentes e crepúsculos IV inicia-se com uma longa carta de Inácia a
Matias. Angustiada, Inácia relata sua preocupação com o noivo diante da proporção tomada pelo
conflito (“Tem me custado muito esta distância de vosmecê, e a toda hora me pego sofrendo, com
lágrimas nos olhos, pensando na sua saúde e no seu bem-estar.”
65
).
Sempre à espera de notícias, Inácia passa os dias a pensar e a rezar para que Matias esteja
bem, pois ela tem noção da situação caótica vivida pelo noivo pelas histórias que chegam até ela
(“Conta-se muito, meu amor, e imagine as tristezas e os desconsolos que isso me causa.”
66
). Os
dias à espera de notícias custam a passar e, para amenizar sua angústia e seu sofrimento, ela e
borda, fazendo uma espécie de rememoração construtiva, ou seja, pelas lembranças e pelas
leituras, ela “borda” o seu presente e tenta construir outro universo, imaginando o seu futuro.
Quando a narrativa está centrada em Matias, durante o período de guerra, é transmitida a
sensação de um ambiente hostil, turbulento, precário e fétido, com moscas negras por toda parte,
chuvas torrenciais, terrenos alagadiços, escassez de alimentos e água potável, febres, infecções,
varíola e mortos por todos os lugares -, contrapondo-se à atmosfera limpa e tranqüila da estância
onde se encontra Inácia. uma realidade dos acampamentos a que os soldados estavam
fadados, destoante do mundo de Inácia. Pelas palavras do general Osório, cujo humor e força
Matias admirava, a situação é apresentada com um humor sarcástico: “As muquiranas são peças
obrigatórias do uniforme destas tropas.”
67
. Dessa forma, os soldados eram condecorados
ironicamente com moscas negras que se sentavam nos uniformes maltrapilhos. Além disso, esses
mesmos soldados eram comparados a essas moscas (“Os homens morrem como moscas nesta
guerra.”
68
).
Enquanto marcha “pelas terras alagadas rumo ao inimigo”, Matias se lembra “das
verdades” que sua avó lhe ensinava na infância.
64
Idem, p. 261.
65
Idem, p. 269.
66
Idem, p. 269.
67
Idem, p. 272.
68
Idem, p. 348.
58
Tem se lembrado das verdades que ela lhe ensinou naqueles tempos da estância,
quando o mundo era apenas o lugar proibido pelo medo da mãe, quando a guerra
era a brincadeira nas horas frescas da varanda, enquanto a avó contava alguns
causos e os soldadinhos de chumbo aniquilavam-se com galhardia,
silenciosamente, caindo no piso de madeira da varanda sem que Matias sentisse
por eles um pingo de dó.
69
Pelos pensamentos desse personagem, constata-se a idéia de que somente quem viveu
uma guerra sabe o que ela é realmente; que meros relatos não se comparam ao que os olhos dos
soldados presenciaram. Devido a isso, ao descrever o horror, parece ocorrer uma mensagem
subliminar de alerta. Os homens das classes dominantes fazem guerra por ambição e por poder,
mas quem sempre sofre suas conseqüências são os soldados, marcados pelo terror e pela
crueldade, e a população, exposta à violência e ao medo, sofrendo pelas perdas de seus parentes.
Ao enfrentar um novo confronto, Matias tomba gravemente ferido na Batalha do Tuiuti,
ocorrida no dia 24 de maio de 1866 e considerada a maior batalha campal da América do Sul. O
pintor Cândido López
70
, que combateu na Guerra do Paraguai, retratou, entre os anos de 1876 e
1885, essa batalha na tela apresentada abaixo.
Ilustração 2: Episódio da 2ª Divisão Buenos Aires na batalha de Tuiuti, quadro de Cândido Lopez
71
69
Idem, p. 273.
70
Cândido López (1840 - 1920): pintor argentino que retratou a Guerra do Paraguai em seus quadros entre 1876 e
1902. Na batalha de Curupaiti, em 22 de setembro de 1866, Cândido perde sua mão direita e passa a treinar a mão
esquerda para continuar pintando.
71
http://www.imageandart.com/tutoriales/biografias/candido_lopez/ Acessado em 20 de novembro de 2007.
59
Ao ser ferido no peito por uma baioneta paraguaia, Matias contemplou o rosto de seu
algoz, “essa face que o lhe provocou ódio nem qualquer sentimento digno de nota”, e olhou o
céu, “espantado por ser azul e lindo e parecer alheio a tudo”
72
. O céu azul que Matias admira é
representado na tela de Cândido Lopez, sugerindo um diálogo entre as duas obras, apresentando o
contraponto entre a natureza impávida e a dor humana. Além disso, antes de ser gravemente
ferido, Matias “combateu até que o chão transformou-se num amontoado de cadáveres
irreconhecíveis. Pernas e braços, cabeças decepadas, gente morta no fragor”
73
da batalha à beira
da lagoa de Tuiuti, cenário semelhante ao recriado por Cândido.
O céu azul, limpo e bonito descrito por Matias estabelece um contraste com o caos que se
encontra sob ele. Dessa maneira, o céu pode simbolizar a burguesia, aqueles que não foram para a
guerra, mas vivem de seus negócios e interesses. A colocação do narrador por meio de uma
metáfora mostra o distanciamento da burguesia e do poder com relação aos horrores: “De longe,
de cima, não deve ser assim, tão devastadoramente triste.”
74
. Os poderosos se distanciam e
apenas recebem as informações do andamento da guerra, enquanto índios, negros e brancos
morrem lutando pelos interesses burgueses.
A situação não era caótica e tenebrosa apenas nos campos de batalha. Os hospitais de
sangue se pareciam com esses campos. Sem recursos, com muitos pacientes, poucos médicos e
em uma situação de calamidade, todos os dias eram despejados centenas de feridos que morriam
pelos cantos. “Jamais o médico podia permanecer mais do que cinco minutos, sempre havia
alguém sem um braço ou com os miolos para fora, ou com as tripas escorrendo do ventre, sempre
havia alguém vomitando sangue ou berrando ou simplesmente morrendo em silêncio. Aquilo era
a guerra.” (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 365).
A visão crítica e a perspectiva ex-cêntrica em relação ao monofonismo oficial é que “a
guerra, afinal, é o grande comércio moderno.”
75
. Essa idéia é reiterada ao longo do romance e
que, em A família XIII, ganha uma afirmação pontual e contundente do narrador:
72
Idem, p. 345.
73
Idem, p. 344.
74
Idem, p. 335.
75
Idem, p. 274.
60
A guerra tinha sido cruenta, e ele trazia nos olhos as imagens daquela gente
morta, das crianças definhando por causa da fome, das cidades incendiadas,
saqueadas, das pilhas de cadáveres ardendo sob o sol. Enquanto avançava,
tentou jogar para longe aquele pensamento. Era o fim daquilo tudo. Nunca mais
uma guerra para ele, nunca mais.
76
Valendo-se do caos em que se encontravam as cidades, várias pessoas se aproveitavam da
situação. Bernardino, típico aristocrata, era uma delas. Numa passagem de Auroras e poentes e
crepúsculos VIII, casados, Inácia está sozinha em seu sobrado, enquanto Bernardino está em
Porto Alegre tratando de negócios. Essa informação vem seguida de um parêntese muito
significativo: “e havia, sim, muitos negócios a serem feitos naquele período de guerra”
77
. Isso
demonstra a existência de obscuridade a respeito dos “negócios” que estavam sendo feitos, tanto
em relação à guerra, por parte daqueles que se aproveitavam dela.
Para Matias, a guerra termina mais cedo, em outubro de 1866. Após ficar entre a vida e a
morte, o capitão Marco Antônio, um dos filhos de Bento Gonçalves, o encontra num Hospital de
Sangue, um “hospitaleco daqueles onde depositam a soldadesca que vai morrer”
78
. Seu estado
era deplorável:
Se lhe contassem que estava seis quilos mais magro, que seus olhos se reviraram
constantemente na cavidade das órbitas por causa dos delírios da febre, que fedia
como uma coisa morta, que seu cabelo era uma pasta imunda e ainda coalhada
de sangue seco, que seu uniforme rasgado em tiras estava duro de sujeira, ele
não acreditaria.
79
Depois de ser levado para um hospital em Corrientes e escapar da morte, Caetano libera
Matias das obrigações de soldado para que volte à Estância do Brejo e se recupere dos
ferimentos. Porém, este não sabe que mais uma vez será duramente atingido. Dessa vez, por um
golpe desferido pela amada: Matias encontra Inácia casada com outro. “Ele voltou ferido do
Paraguai e com o moral embaixo, porém foi Inácia quem lhe deu a estocada final, a faca
enfiada no fundo da carne.”
80
. Assim, não suportando tamanha desilusão, decide partir para o
Rio de Janeiro, tentando uma nova vida após a guerra, pois, de certa forma, “ambos haviam
76
Idem, p. 483.
77
Idem, p. 411.
78
Idem, p. 396.
79
Idem, p. 365.
80
Idem, p. 455.
61
morrido naquela guerra, cada um a seu modo, duas experiências completamente diversas,
incomparáveis.”
81
.
Iniciando o capítulo Auroras e poentes e crepúsculos X, apresenta-se um artigo da
Semana Illustrada dirigido aos Voluntários da Pátria que retornam ao Brasil com o fim da guerra.
A corte preparou uma grande comemoração e um desfile com as três primeiras tropas de
voluntários. Matias considera o evento uma hipocrisia, “tudo aquilo era uma espécie de pilhéria
macabra, pensava Matias. Como se a guerra, a maldita guerra, tivesse sido uma coisa boa.”
82
. Ele
se recusou a “ver aquele triste espetáculo, um bando de coitados mortos de fome de repente
elegidos à categoria de heróis. Um brevíssimo brilho, e o esquecimento outra vez. Todos doentes,
famintos e loucos”
83
. Segundo Doratioto (2002, p. 483), “o Brasil enviou para a guerra cerca de
cento e trinta e nove mil homens, dos quais por volta de cinqüenta mil morreram. Destes, a maior
parte não pereceu em combate, mas, sim, devido a doenças e aos rigores do clima”. Não havia o
que comemorar, mas o que lamentar e questionar. Para ele, esse evento nada mais era do que uma
maneira de o imperador salvar sua imagem diante da população.
Dessa maneira, pela perspectiva de Matias, a Guerra do Paraguai não teve “vencedores”,
mas várias vítimas.
Até o império afundava-se nos azares daquela maratona bélica, pois os cofres do
país estavam zerados, as fazendas sem os braços dos negros, e o imperador tinha
sua imagem muito arranhada por causa da duração da guerra e das enormes
perdas humanas. Milhares de soldados tinham morrido nos pântanos paraguaios,
de fome, de frio, de cólera-morbo, de tiro ou de degola. Os que voltaram antes,
esses são como ele, um pouco anestesiados para a vida, semi-embrutecidos,
tristes. Pouco mais do que uns trapos de gente.
84
Apesar de todos esses pontos negativos elencados por Matias, o que prevaleceu na
historiografia foi o fato de que o Brasil havia se saído vencedor. Mais uma vez, uma reflexão
crítica pela ótica de um ex-soldado, que conheceu e viveu a dureza e a desumanidade de uma
guerra.
A forma como a Guerra do Paraguai é narrada nesta obra não mostra um ideal claro, mas
aponta para questionamentos e destaca a indução de uma história oficial para encobertar os
81
Idem, p. 427.
82
Idem, p. 455.
83
Idem, p. 454-455.
84
Idem, p. 455.
62
interesses de uma minoria elitizada, como a imposição da dicotomia maniqueísta entre o bem,
representado pela Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai), e o mal, representado pelo
Paraguai, concretamente por Solano López, estabelecida pelo Império. Dessa forma, os
personagens questionam a necessidade da guerra e as informações transmitidas a respeito dela.
Enquanto isso, os soldados lutam por dever, por terem enfrentado outras guerras (“Guerra,
sempre guerra. Não se passa no Rio Grande uma trinca de anos em paz.”
85
). É a força dessas
guerras vivenciadas, principalmente a dos Farrapos, que os move, pois na narrativa não há
motivos claros que os impulsionam a lutar. A identidade do povo gaúcho é marcada pelos
confrontos constantes na região. Com isso, os homens são destinados à sina guerreira e não
devem fugir da peleja”, enquanto as mulheres esperam por notícias, pelo retorno dos homens e
por dias de paz, tocando seus afazeres e se indagando sobre a necessidade de tanto sangue
derramado.
Pelos dados históricos apresentados, é possível constatar que a autora valeu-se, até certo
ponto, da versão oficial da Guerra do Paraguai. Porém, o não-aprofundamento dos motivos que
levaram à guerra e os apontamentos feitos, faz com que os personagens, e até mesmo o leitor,
questionem a necessidade dela e colocam em xeque o monolitismo do discurso histórico oficial.
Além disso, a autora preocupa-se em situar o leitor no tempo, no espaço e sobre os
acontecimentos da época narrada. A utilização de datas, nomes de batalhas, nomes de
“personagens históricos”, cartas e jornais para dar verossimilhança é um artifício de autenticação
e de referendamento do discurso histórico. Contudo, a presença dessas variantes narrativas como
forma de questionar a monofonia histórica, as vozes femininas atuantes, a fragmentação textual
dentre outros fatores comprovam a modernidade e a singularidade do romance, com relação ao
próprio gênero do romance histórico.
85
Idem, p. 126.
63
3.3. Um farol no pampa: um romance histórico “moderno”
A história é um desafio para os historiadores,
mas um paraíso para os ficcionistas
.
Luís Fernando Veríssimo
Como afirmado anteriormente, Walter Scott foi o pioneiro em situar romances no
passado, embasado em fatos históricos. O romance scottiano tinha como pressuposto um maior
apego à historiografia factual; a construção dos personagens nele inserido era menos importante.
Pela análise realizada, pode-se constatar que o romance Um farol no pampa distancia-se
do modelo scottiano. A autora ficcionalizou vários personagens históricos, criando os fatos da
trama, além de apresentar alterações quanto ao comportamento e ao físico das mulheres da época,
por exemplo. As personagens do romance revoltam-se, mostram a indignação e a insatisfação
perante a guerra e suas vicissitudes.
Trata-se de uma obra regionalista, projetada em um passado histórico, com certo tom
melodramático e forte tendência a um enquadramento informativo, motivador, no leitor, de um
interesse por esse episódio da história do Brasil. A autora ocupa-se dos estados psicológicos e dos
os pontos de vista dos personagens, como a visão das mulheres e a mentalidade em relação a
épocas passadas.
No entanto, uma proximidade com a obra de Scott é o uso da técnica bifocal, a qual
constitui a composição do romance histórico. Segundo Antonio Candido, essa técnica:
“[...] consiste em pôr no primeiro plano um personagem fictício (como Eurico)
ou semifictício (como D'Artagnan), que serve de pretexto para traçar plano mais
distante os personagens históricos (como Richelieu, no Cinq Mars, de Vigny; ou
Dom João I, n'O monge de Cister) e a reconstituição do momento em que se
passa a narrativa, e ao qual se prendem solidariamente os acontecimentos
históricos ou fictícios. A narrativa oscila entre o plano inventado e o plano
reconstituído, e esta oscilação constitui poderoso elemento de verossimilhança
da mesma natureza, formalmente, que a descrição da realidade presente no
romance de costumes contemporâneos.”
(1959, p.304)
64
Com o intuito de escrever uma trilogia, a autora utiliza essa técnica no romance em
estudo, o segundo da série, no qual a história de amor de Matias e Inácia é ambientada pela
Guerra do Paraguai, e esta é precursora da separação do casal. Matias é um personagem fictício
enquanto Inácia é uma personagem semifictícia, uma vez que há registros da existência da neta
de Bento Gonçalves, já de Matias, não. a história de amor e a reconstituição de fatos passados
ocorrendo, assim, o imbricamento de invenção e realidade.
A Guerra do Paraguai interessa à Leticia não apenas como pano de fundo romanesco, a
fim de dar continuidade à saga familiar iniciada em A casa das sete mulheres, e empecilho para a
união dos protagonistas, Inácia e Matias. uma crítica férrea quanto à guerra e seus motivos,
levantando questionamentos tanto para reflexão dos personagens como também do próprio leitor.
Dessa maneira, o romance propõe um nítido exercício ficcional de recuperação da
memória e da História, onde águas se misturam, limbos se liquefazem e o tempo se dilui,
construindo um belo efeito de metaficcionalização da História.
“Este interlúdio tem algo de mágico. É como se sente num limbo entre passado e
o futuro, como se toda a massa de água que o rodeia anulasse o tempo, como se
não viajasse então de um lugar ao outro, mas entre duas épocas que jamais
conheceu. Por vezes tem a estranha sensação de que não é mais ele, Antônio,
mas o pai, na viagem que jamais ousou fazer, rumo a um passado que ficou
perdido nas vaguezas do pampa” (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 263).
Ao viajar por um passado desconhecido, Antônio, o filho de Matias, sente-se presente
numa outra época, como se a tivesse vivenciando. uma quebra temporal que permite tanto a
Antônio como ao leitor presentificar o passado e retomar a História rio-grandense. Além disso,
nota-se o mito da viagem, não apenas a de transposição de espaço, como Antônio que sai do Rio
de Janeiro e vai ao encontro dos pampas, da Estância do Brejo e do passado de seu pai, mas
também a viagem pelas épocas, pelos escritos e até mesmo pelo devaneio, como acontece no caso
de Manuela.
Um farol no pampa revisita um momento da História importante tanto para os rio-
grandenses como para a nação como um todo, sendo esse o motivo desencadeador da narrativa. É
devido a esse fato que Matias vai para a guerra e, com isso, perde sua noiva e seus planos futuros.
Nesse contexto, a autora voz aos soldados, aos escravos e às mulheres, categorias sociais
caladas, sem voz tanto na literatura como na sociedade rio-grandense. Apesar de no romance os
personagens serem mulheres da elite, elas também eram marginalizadas e escravizadas:
65
marginalizadas pela sociedade e escravas da guerra. Em geral, os personagens estão em busca de
afirmação e indagam as “verdades inquestionáveis” imposta pelo poder de forma crítica e
consciente, mostrando uma mentalidade além da época representada. O romance age, nesse
sentido, como força questionadora de valores estabelecidos e funciona como colaborador do
progresso e emancipação dos ideais.
O romance utiliza a Guerra contra o Paraguai para contar a história de uma família perante
uma nova guerra, ao mesmo tempo em que mostra o lado dos soldados, principalmente de
Matias, que, na guerra, percebe o absurdo das lutas e a degradação do homem, uma vez que a
perspectiva de morte, tanto por doenças, fome ou ferimentos, era iminente, e vivia-se pior que
animais, esfarrapados, passando fome, frio e lutando pela sobrevivência. Com isso, seus
devaneios e deslumbres de quando era criança, alimentados pelas histórias da Guerra dos
Farrapos, ficam apenas na lembrança; seu olhar crítico lamenta tanto sangue derramado e
sofrimento. Por esse ardil literário, o leitor participa, constata aspectos novos e é convidado a
criticar também.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que se propõe a criar um romance regionalista,
redigido sob a inegável influência e inspiração do escritor Érico Veríssimo e de sua obra O tempo
e o vento, a autora exibe traços modernos na sua escrita, como a disposição dos capítulos, a
fragmentação da narrativa, os rios fios narrativos, a visão feminina, a alternância de estilos,
vozes e épocas. Esses traços aproximam o romance da metaficção historiográfica, uma vez que
ele proporciona questionamentos e reflexões tanto para a ficção como para a história que nela é
contada, explorando todas as formas do discurso literário e experimentando todas as
possibilidades de construção narrativa de maneira subversiva. Segundo Hutcheon (1991, p. 152),
a metaficção historiográfica “se aproveita das verdades e mentiras do registro histórico”. Ou seja,
a metaficção reescreve o passado dentro de um novo contexto, utilizando os dados existentes
sobre o acontecimento histórico.
Um exemplo marcante é Manuela, única personagem narradora. Em seus cadernos, que
escreve tanto para abstrair-se do tempo e sentir-se viva, como para “documentar” um tempo
segundo sua visão, ela faz um exercício de anamnese e busca na memória recordações pessoais
de uma História que se presentifica:
66
O sono me vem, e pisa de leve como um gato. É nesta hora que mais me contenta
escrever. Cerrando os olhos... Sim, pois hay coisas que se pode ver somente com
os olhos cerrados. Espreitando-as pelas frestas da memória, para depois, num
suspiro, roubá-las do seu esconderijo do tempo, enfiando-as nas malhas de uma
palavra, de um juízo, de uma frase, pintando-as com esta tinta negra que mancha o
papel. (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 106).
Com os olhos fechados, Manuela lança seu olhar para o passado, demonstrando um duplo
gesto subversor: o de recusar a disposição imediata da versão oficial da História e o de escolher a
possibilidade de mesclar memória e sonho. Esse exercício de recuperação da memória, presente
nos Cadernos de Manuela é mais um magistral efeito de metaficcionalização. Dessa maneira, os
fios do passado entrelaçados com os fios da ficção bordam o tecido literário, resgatando a
história, tanto por uma perspectiva poética, como crítica.
Assim, em pleno contexto da pós-modernidade, a autora faz uma conscientização e
reflexão crítica da História. A guerra é vista com um olhar reticente e o discurso histórico é
recuperado a partir de ruínas, fincadas nas memórias das cartas de Matias lidas por Antônio, nos
diários de Manuela, na estrutura do farol à margem do rio Camaquã, nos passos incertos de
homens e mulheres que ficaram apagados ao longo das décadas e das páginas de um discurso
pretensiosamente glorificador de “barões assinalados”.
Segundo Linda Hutcheon (1999, p. 229),
[...] o romance é potencialmente perigoso, não só por constituir uma reação
contra a repressão social, mas também por atuar, ao mesmo tempo, no sentido de
conceder autoridade a esse mesmo poder de repressão. Contudo, o que a ficção
pós-moderna faz é reverter esse processo duplicado: ela insere o poder, mas
depois o contesta. Entretanto, a duplicidade contraditória permanece.
No que concerne à condição de ficção pós-moderna, Um farol no pampa corrobora a
afirmação de Linda Hutcheon: ao mesmo tempo em que concede autoridade ao discurso do
poder, o romance também mostra a exclusão das mulheres, dos escravos e dos soldados no
contexto político e social.
Conforme Hayden White (1994, p.137), o discurso do historiador e do escritor
imaginativo se sobrepõem, se assemelham ou se correspondem mutuamente”. Dessa maneira, a
autora trabalha o imbricamento da versão histórica oficial partindo de “personagens históricos”
da época para elaborar sua ficção. Parece que o intuito da autora é fazer um romance que seja
diferente dos demais por fazer prevalecerem as vozes femininas, apresentando, inclusive um
67
narrador feminino (Manuela), o que não é comum ocorrer na tradição literária rio-grandense,
como também as vozes dos soldados, marginalizados” pela guerra. O romance demonstra uma
visão crítica em relação ao monofonismo da História oficial, mostrando os dilemas e os
contestamentos tanto das mulheres presas nas estâncias como dos homens fadados aos horrores e
traumas da guerra; “uma gica cruel e eterna aquela: os homens iam, as mulheres ficavam
esperando” (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 223).
Ao dialogar, crítica e causticamente com a história não no sentido pejorativo, mas no
sentido benjaminiano, de que a história “é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo
homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”” (BENJAMIN, 1986, p. 229), ou seja,
invadida por ruínas, como a construção de um farol no pampa, onde “o teto, recoberto de
remendos, não filtrava o tempo” (“imaginou o interior, cheio de sol e de chuva. Cheio de glórias
e de pó”
86
), a autora estaria recusando
[...] a visão de que apenas a história tem uma pretensão à verdade, por meio do
questionamento da base dessa pretensão historiográfica e por meio da afirmação
de que tanto a história como a ficção são discursos, construtos humanos,
sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua
principal pretensão à verdade. Esse tipo de ficção pós-moderna também recusa a
relegação do passado extratextual ao domínio da historiografia em nome da
autonomia da arte (HUTCHEON, 1991, p. 127).
A incorporação de determinados “passados intertextuais”, como os nomes de personagens
“históricos”, fatos ocorridos em regiões devidamente localizadas no tempo e no espaço, situações
culturais e sociais, remete Um farol no pampa à ficção pós-moderna, uma vez que tais “passados
intertextuais” podem ser lidos como elementos estruturais, reiteradores de uma “marcação formal
da historicidade tanto literária como “mundana””
87
. Porém, entenda-se aqui paródia não como
aquele reaproveitamento exclusivamente irônico e provocador da desconstrução de veia cômica
ou risível, mas uma “paródia seriamente irônica”
88
, como explica Linda Hutcheon: para em
grego também pode significar ‘ao longo de’ e, portanto, existe uma sugestão de acordo ou
intimidade, em vez de um contraste” (HUTCHEON, 1989, p. 48). Ou seja, parodiar a história da
Guerra do Paraguai não significa desqualificar o acontecido ou somente contrastar e destruir a
versão oficial, mas antes apropriar-se dela para, ao lado dela, propor uma outra possibilidade de
86
Idem, p. 381.
87
Idem, p. 163.
88
Idem, p. 163.
68
leitura, na qual a metáfora da viagem poderia ser a fundadora de tal possibilidade. Dessa forma, a
paródia pode ser redefinida “como uma repetição com distância crítica que permite a indicação
irônica da diferença no próprio âmago da semelhança” (HUTCHEON, 1991, p. 47). Um exemplo
disso é a contraposição das duas maiores guerras passadas no Rio Grande: a Revolução
Farroupilha e a Guerra do Paraguai. Esta é apresentada no romance como inconseqüente e com
objetivos obscuros e interesses puramente aristocráticos, aquela foi a glória do povo gaúcho, com
ideal nobre; no entanto, ambas derramaram muito sangue, como todas as guerras, sem conseguir
nenhum resultado digno de nota para a História ou para a sociedade.
Portanto, como mostra a autora do romance, “a viagem é também uma chance de repensar
a (sua) vida (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 13). Ao transpor tempos e espaços, o passado é
rememorado. E isso proporciona certo prazer, euforia, a mesma que Antonio sente, “a euforia do
desenhista diante da folha em branco”
89
ao se ver diante do resgate de um passado, que considera
cheio de segredos. O que Leticia Wierzchowski faz é o mesmo que Caetana a coser as letras de
Bento Gonçalves no tecido, coser pensamentos no bordado do tecido textual, tentar fixar nas
malhas da ficção “um tempo que deixará cicatrizes para sempre”
90
, mesmo que seja um tempo
marcado parcialmente por glórias.
O exercício dialogante da autora em Um farol no pampa pode ser como aquele de Pierre
Menard, autor do Quixote, para quem “a verdade histórica não é o que sucedeu; é o que pensamos
que sucedeu” (BORGES, p. 56). Assim, neste romance, a autora compartilha a idéia de que a
ficção histórica, no limiar do século XXI, pode ser bem entendida nos parâmetros críticos de um
todo heterogêneo. Neste sentido, a proposta de Teresa Cristina Cerdeira (2000, p. 224) apresenta
aqui uma consonância singular, uma vez que trata-se da:
[...] concepção de História, não mais como um todo acabado e contínuo, mas
como aquela que se tece dos farrapos do passado que o tempo legou o presente.
História como discurso, tecido rendado onde os vazios também se escrevem e se
inscreve como significação, discurso que é pessoal e temporalmente
determinado, que tem, portanto, as marcas do eu e do momento de sua escritura.
Com os olhos voltados ao passado, retomando os discursos existentes sobre o
acontecimento histórico, a autora tece a sua ficção, sugerindo outros discursos como espaços de
89
Idem, p. 20.
90
Idem, p. 31.
69
significação, além da possibilidade de aquisição de uma reflexão crítica por parte do leitor. Esta
torna-se uma preocupação explícita: problematizar o passado histórico tão significativo para a
região Sul e para o país.
70
4. A construção de um romance brasileiro contemporâneo
Eu procuro bons enredos, bons personagens. Não
necessariamente eles precisam estar aqui, nos dias
atuais. Gosto de tecer a trama e para isso não me
incomodo de buscar os fios na meada do tempo.
Leticia Wierzchowski
91
Em Um farol no Pampa, Leticia Wierzchowski deixou de lado a narrativa cronológica e
construiu o livro intercalando pensamentos e tempos, mesclando acontecimentos situados no
século XIX e no início do século XX. Assim, a autora utiliza uma técnica contrapontística,
mencionada anteriormente, aliada a uma linguagem menos convencional, com imagens poéticas e
uma narrativa engenhosa, o que demonstra o aprimoramento de seu estilo literário. Além disso,
não o mesmo enfoque aos fortes perfis femininos apresentados no primeiro volume, A casa
das sete mulheres, porém, os personagens femininos, principalmente Manuela, Antônia e
Caetana, continuam a conduzir os personagens e o leitor pelo rastro da família Gonçalves da
Silva.
Tal como foi visto nos capítulos anteriores, o romance em questão reúne vários gêneros
textuais (diário, cartas, bilhetes, notícias de jornal, texto na segunda pessoa do singular e de viés
infantil), que se interpenetram uns nos outros, revelando uma tentativa de recuperar espaços,
percursos e figuras do passado. Assim, com esse hibridismo textual, a obra elenca características
da dramatização, da epicidade, do lirismo, do diálogo, do diário e do testemunho epistolar, além
do processo da metalinguagem como forma de “assimilação da realidade” (BAKHTIN, 1998, p.
124).
O personagem principal do romance é Matias, filho de Mariana, sobrinha do general
Bento Gonçalves, pessoa que realmente existiu e que ocupa lugar na historiografia do Sul e do
Brasil. Porém, a ação alterna-se com fortes personagens femininos, como Manuela, D. Antonia,
D. Ana e Caetana, e, num segundo momento, com a visão do filho dele, Antonio. Essas visões
masculinas diferem d’A casa das sete mulheres, na qual prevalece a visão feminina. A ação situa-
se ora nas Estâncias, ora no sobrado onde vive Manuela, ora no Rio de Janeiro, ora nos campos
91
Trecho extraído do site http://pt.wikipedia.org/wiki/Let%C3%ADcia_Wierzchowski .
71
de batalha para onde segue Matias. O narrador acompanha a trajetória de Matias desde sua
infância até sua morte, dando continuidade com seu filho Antonio tomando posse da herança
deixada no Sul.
Ao abandonar a Estância do Brejo para cumprir uma obrigação de “legítimo gaúcho”,
Matias, filho do índio João Gutierrez e da sobrinha do general Bento Gonçalves, Mariana, inicia-
se na vida, abandonando a proteção do lugar onde viveu e de D. Antônia, tendo contato com a
realidade adversa e a fatalidade. Mesmo movido por certa obrigação, Matias tem um único ideal,
que não corresponde às exigências da guerra, mas em manter-se vivo, uma vez que havia
prometido isso a sua tia Antônia, além de retornar à estância para se casar com Inácia, sua prima
e seu amor desde a infância. Porém, Matias não é um bom soldado. Ferido, ele retorna mais cedo
da guerra e seu sonho cair por terra ao receber a notícia de que sua noiva havia se casado com
outro.
Se, no primeiro volume, a autora representou generais e soldados como heróis, homens
destemidos e impetuosos, movidos por um ideal, no segundo, desvenda-se o outro lado da guerra
através de um personagem que difere completamente dessas características. Matias Gutierrez,
luta sem convicção e termina desiludido. Ele vai para a guerra sem conhecer os motivos que a
desencadearam apenas por julgar-se no dever de lutar, uma vez que é da tradição gaúcha o
homem ser guerreiro e defender seu povo e seu chão. Ao contrário da Revolução Farroupilha, na
qual os vencidos ficaram mais famosos do que os vencedores, a Guerra do Paraguai é abjeta, o
que resultou numa representação menos heróica, confirmada na obra tanto pelo personagem
Matias como pelos soldados que doam suas vidas a um propósito desconhecido, tendo ainda
como inimigos a escassez de comida e água, as doenças como o cólera, além das tocaias
paraguaias. A guerra resume-se à ausência de ideais, à morte inútil, ao cenário de destruição, ao
sangue derramado inutilmente e à luta pela preservação da vida.
No imbricamento de história e ficção, a guerra travada por Brasil, Uruguai e Argentina
contra o general paraguaio Solano López e suas tropas começou a tomar dimensão maior do que
o previsto, dentro de um projeto literário, que foi inicialmente planejado pela autora. Desde 1999,
ela vasculhou em arquivos e livros a história oficial daqueles que rodeavam o tão famoso e
popular general Bento Gonçalves. “Impressionada com as leituras especialmente de Maldita
guerra, de Francisco Doratioto, e Imagens da Guerra do Paraguai, coletânea de textos e
fotografias —, ela decidiu dar mais espaço à ‘campanha’” (CORREIO BRAZILIENSE, 2004).
72
Assim, pode-se dizer que a pesquisa realizada por Leticia foi instrumento vital para a construção
do romance.
De maneira ilustrativa, pode-se comparar o romance a uma árvore. Ele possui raízes na
trajetória de uma família e nas tradições sulinas; seu caule é a história de amor entre Matias e
Inácia; seus galhos direcionam-se para o presente, ao mesmo tempo em que retomam o passado e
buscam o futuro pelo tempo da narrativa; e suas folhas seriam os demais personagens da trama
que executam papéis específicos na reconstrução do passado histórico-ficcionalizado.
4.1. A estrutura narrativa
A unidade da obra não é uma entidade simétrica e
fechada, mas uma integridade dinâmica que tem seu
próprio desenvolvimento; seus elementos não são
ligados por um sinal de igualdade e de adição, mas
por um sinal dinâmico de correlação e de integração.
J. Tynianov
92
Com relação à estrutura da narrativa, Um farol no pampa apresenta uma prosa fluente,
sem estabelecer uma ordem cronológica dos acontecimentos, mas com regressões e progressões
temporais bem elaboradas. Para causar esse efeito, a autora utilizou uma estrutura diversificada,
com capítulos denominados de cinco maneiras distintas, repetidos e seqüenciados por meio de
algarismos romanos, conforme reaparecem no decorrer da narrativa. Somente os capítulos
intitulados Olhos de vidro e Cadernos de Manuela não possuem uma seqüência numérica. Pode-
se afirmar que isso se deve ao fato de serem capítulos carregados de metáforas metatextuais. O
olhar sibilino de Manuela, aquela cuja “pena começa a riscar o papel, enchendo a folha branca
com uma letra fina e elegante” (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 230), e os “olhos de vidro”, que nos
remetem não apenas a uma visão cristalina do passado, ao contrário de certas visões
determinantes e castradoras da história, mas também ao olhar das Gréias, as três irmãs videntes
que compartilham de um único olho, um globo de vidro, e que lhes possibilitavam vislumbrar o
92
TYNIANOV, J. “A noção de construção”. In: EIKHENBAUM, CHKLOVSKI, JAKOBSON, TOMACHEVSKI.
Teoria da Literatura – Formalistas Russos. 4ª, Porto Alegre: Editora Globo, 1978, p.102.
73
futuro, imprime a necessidade de registrar a palavra escrita, exatamente aquela que “só existe aos
olhos de outrem”
93
, configurando, assim, os vários pontos de vista sobre um acontecimento a
partir de um bordado de versões.
Retornando à apresentação dos capítulos, o romance é dividido em: A herança (de I a IX),
A família (de I a XIII), Auroras e poentes e crepúsculos (de I a XII), Olhos de Vidro (sete
capítulos) e Cadernos de Manuela (três capítulos). Com exceção dos capítulos Cadernos de
Manuela e trechos proféticos que “dialogam” com Maria Angélica, na segunda pessoa do
singular (capítulos A família II, VI e IX). Os demais são narrados em terceira pessoa do singular
(narrador onisciente). Vale lembrar que a reprodução de várias cartas no decorrer do romance,
apresentando outro tipo de discurso: o epistolar. Essas são narradas ora na primeira pessoa do
singular, ora na primeira pessoa do plural.
De maneira geral, o grupo de capítulos intitulados A herança apresentam o filho de
Matias descobrindo o passado do pai e seu patrimônio, a Estância do Brejo. O conjunto de
capítulos A família narra várias histórias dos personagens da família de Bento Gonçalves e
anuncia o início de uma nova guerra. Auroras e poentes e crepúsculos, além de tratar da
família Gonçalves, mostram os acontecimentos da guerra, desde seu início. Olhos de Vidro
tratam da infância de Matias de maneira singular e única, sob uma ótica poética. E os Cadernos
de Manuela, também existentes no primeiro volume, A casa das sete mulheres, trazem as
anotações dessa personagem. Esta, solitária e considerada louca, continuidade aos seus
cadernos, iniciados no início da Revolução Farroupilha, enquanto ainda espera por Giuseppe
Garibaldi, rememorando os acontecimentos passados: Na minha idade, é preciso atar-se ao
presente, pois toda a graça está no passado.” (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 236).
É importante salientar que os capítulos, com exceção de Cadernos de Manuela e Olhos de
Vidro, são entrecortados, apresentando outro local e outro episódio. Um exemplo são os capítulos
Auroras e Poentes e Crepúsculos, que no geral mostram Matias nos campos de batalha e, logo
em seguida, Inácia na Estância do Salso, traçando um paralelo entre os dois personagens, um
exemplo da utilização da técnica do contraponto.
É pertinente atentar também para os títulos dos capítulos, que dialogam com seu conteúdo
e também com a obra de Érico Veríssimo, como foi mencionado anteriormente, no primeiro
93
Idem, p. 266.
74
capítulo desta dissertação. Os títulos mais expressivos e significativos o Auroras e poentes e
crepúsculos e Olhos de Vidro.
Auroras e poentes e crepúsculos refere-se, respectivamente, ao nascer do sol, ao pôr do
sol e à luz fraca depois do pôr do sol e antes da aurora. Assim, por enfocarem o período da
Guerra contra o Paraguai, pode-se dizer que estes capítulos remetem ao surgimento da guerra, do
seu fim e do seu transcorrer, mostrando a decadência do ser humano. Além disso, fazendo um
interlúdio com a luz do farol, “luzes que tudo viam e que nada sentiam”
94
, o título desse capítulo
pode representar também a construção do farol, sua conclusão e seu declínio com a chegada das
estradas de ferro; a luz que testemunhou e iluminou a História havia se extinguido, restando a
construção de madeira. Nesse caso, o farol também poderia ser uma metáfora textual que
simbolizaria a obra literária e seu processo de criação.
Pela carta de Inácia a Matias logo ao início do capítulo Auroras e poentes e crepúsculos
IV, é possível designar outro significado para a denominação desse capítulo: o nascimento do
amor entre Matias e Inácia, a separação pela guerra e a real separação pela falsa notícia da morte
de Matias.
[...] e quando o galo canta pela manhã anunciando um outro alvorecer, eu
desperto na minha cama triste, dividida entre a felicidade de ter virado um dia a
mais sem notícia ruim e o medo de que as próximas horas sejam portadoras
daquilo que eu jamais quereria ouvir. (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 270)
É possível notar também que o encadeamento das palavras auroras, poentes, crepúsculos
marca o caminhar do tempo, vários ciclos que se fecham e recomeçam a cada novo dia,
evidenciando o passar do tempo. Esse processo é enfatizado pela conjunção “e”, que remete à
idéia de repetição dos dias. Outro aspecto que faz remissão a esse título é o duo vida/morte. A
voz sibilina aparece nesses capítulos anunciando as gestações de Maria Angélica, a quem
“doía(lhe) r filhos naquele mundo tenebroso”
95
. Enquanto ela vida, os homens tiram-na:
“[...] o que arde em ti é uma espécie de ódio pelo desprezo que os homens dão ao que de mais
caro há dentro de ti, esta maravilhosa capacidade de fazer a vida, quando tudo em derredor
promove o horror da morte.”
96
.
94
Idem, p. 287.
95
Idem, p. 287.
96
Idem, p. 257.
75
Os capítulos Olhos de vidro mostram a perspectiva de um menino que, mesmo notando o
que se passa a sua volta, não compreende os acontecimentos e busca refúgio no seu mundo
infantil. São olhos que “não vêem”, mas que sentem, sendo uma maneira de escapar da realidade
e amenizar seus sofrimentos e seus medos:
E todas as tardes, depois do almoço, o menino fugia pro estaleiro.
Lá era feliz. Lá a madre não estava doente. Lá os quero-queros cantavam pra ele,
e havia um brilho nas cousas, aquele brilho do sol entrando pelas frestas, e o
menino podia ficar horas a pensar em Giuseppe Garibaldi.
97
São capítulos carregados de poeticidade e sabedoria popular, com uma estética
diferenciada que apresenta disposição de trechos em versos, períodos curtos, frases soltas e
presença de onomatopéias, demonstrando a ligação com a utilidade do olho de vidro, utilizado
para efeito estético de pessoas que perderam o globo ocular. Além disso, esses capítulos possuem
certa semelhança com os Cadernos de Manuela: o menino Matias e a paciente Manuela
constroem seu próprio mundo, oscilando entre os fatos da realidade e as histórias da imaginação.
Os capítulos Cadernos de Manuela são carregados de conhecimento e sabedoria, com
parágrafos longos e densos de emotividade. Manuela, única personagem narradora, faz um
exercício de anamnese e vai buscar na memória recordações de um passado que se presentifica,
devido à ameaça iminente de uma nova guerra. Segundo Márcio Seligmann-Silva (2003, p. 63),
“a tarefa da memória deve ser compartilhada tanto em termos na memória individual e coletiva
como também pelo registro (acadêmico) da historiografia”. No caso do romance em questão, a
escritora pesquisou os registros da história oficial, além de valer-se da memória individual e
coletiva, uma vez que ela está inserida na cultura da região Sul do Brasil. Assim, Manuela é um
instrumento de rememoração da própria história coletiva e de uma das famílias mais importantes
do Rio Grande do Sul, que realmente existiu.
No entanto, é importante atentar para a característica criadora da memória.
Das gavetas da memória o passado não surgirá sempre o mesmo, porque a
memória é criadora e completa lacunas com criações de realidades próprias,
obviamente espúrias, mas mais ou menos contíguas aos fatos de cujo acontecer
lhe havia ficado uma lembrança, como o que resta da passagem de uma
sombra’ (CERDEIRA, 2000, p. 211).
97
Idem, p. 100.
76
Na rememoração, as lacunas da história coletiva são preenchidas pelas lembranças
individuais, recriando o fato memorado. Ao adentrar no universo literário, a história recebe novos
moldes, evocando outras perspectivas, outras possibilidades de leitura e outros posicionamentos,
graças à liberdade poética e ao desprendimento com a veracidade factual.
Nesse rememorar do passado, tanto coletivo como individual, nota-se um jogo entre o real
e o imaginário, jogo este encontrado tanto nos Cadernos de Manuela como em Olhos de Vidro.
uma realidade interior e outra exterior. Ao mesmo tempo em que Manuela demonstra lucidez
relativamente às questões familiares e sociais ao seu redor, ela não quer acreditar que Garibaldi
não voltará e fantasia permanentemente seu retorno. Com isso, afasta-se da pressão da realidade e
encontra refúgio em um mundo próprio, no sobrado em que vive em Pelotas, em companhia de
uma empregada, longe da família e de todos. Dessa forma, ela passa sua vida escrevendo,
sonhando. Nesse rememorar que remete à fuga, ela não apenas relembra traços de Garibaldi, mas
também acontecimentos que ficaram marcados em sua memória. Manuela mostra-se preocupada
em registrar, pela escrita, os acontecimentos e a trajetória de seus familiares; sua loucura consiste
apenas em uma fachada para dizer e fazer o que bem entendia: “Tinha certo prazer nisso, em ser a
louca.” (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 283). “Enfiada em seu vestido branco, como sempre. Não
há manhã em que ela não esteja lá. A louca Manuela Ferreira”
98
.
Pelos Cadernos de Manuela e pela função de escritora de histórias, essa personagem
poderia ser considerada uma metáfora que explica a proposta metatextual do romance: enquanto a
história se constrói, Manuela sedimenta-a com a prática da escrita ficcional, a do romancista. Esta
seria uma tentativa de refletir o fazer literário, mais especificadamente a ficção histórica, no
próprio ato da escrita. Assim, enquanto rememora e vivencia a história, ela escreve a sua própria
“história”. Trata-se de uma forma de registrar os acontecimentos e não deixar que eles se
apaguem no transcorrer do tempo.
98
Idem, p. 499.
77
Ah, tudo isso vai perder-se para sempre, como tudo se perde inexoravelmente
nesta vida. Do pó ao pó, dizem os padres segurando seus livros ensebados,
recheados de orações e de apontamentos sobre vidas e mortes e outros percalços
de interesse divino. Eles têm razão neste ponto; tudo de desaparecer um dia.
Mesmo assim, tomada dessa certeza não tão bela quanto a que uma dama
deveria acolher no intuito de guiar por ela os seus dias; mesmo assim, dedico-me
a este passatempo de desfiar em linhas a vida de certas pessoas, porque a
minha... Ah, a minha vida ficou para trás, enrodilhada para sempre nos passos de
meu Giuseppe.[...] e então me quedo aqui, sob esta janela, esperando, esperando
– e escrevendo
99
.
Ao assumir a posição de “escritora”, iniciada em A casa das sete mulheres, Manuela
segue o seu propósito e começa “um caderno novo”. Ela decide “recomeçar a escrever da época
em que o farol de D.Ana estava sendo construído na Barra, uns meses depois da morte do
general Bento Gonçalves”
100
. Dessa maneira, ela mesma fecha o ciclo iniciado no primeiro
volume da obra de Wierchowski, dando início ao segundo volume, justamente com a construção
do farol, símbolo que percorre o romance. Ambos, romance e farol, são construídos
simultaneamente, elaborando um diálogo metaficcional estreito e significativo, no qual o
romance é tecido sob a luz do farol, o qual, por sua vez, traça e ilumina o caminho ficcional, o
fazer literário.
Retomando as reflexões acerca de sua estrutura, o romance inicia-se com o filho de
Matias “assumindo” a herança do pai e, conseqüentemente, tomando conhecimento do passado
por meio da leitura de cartas. Com a possibilidade do surgimento de uma nova guerra, Manuela
relata acontecimentos passados durante a Revolução Farroupilha, retomando passagens do
primeiro volume como forma de situar o leitor e dar prosseguimento à nova saga que se inicia. É
nítida a presença da narrativa memorialista que, como afirma Silviano Santiago (1989, p. 48), é
uma narração “necessariamente histórica [...], isto é, é uma visão do passado no presente,
procurando camuflar o processo de descontinuidade geracional com uma continuidade palavrosa
e racional de homem mais experiente”. Antônio é de outra geração e tenta reconstituir seu
passado. Depara-se com Manuela, sua tia-avó, que viveu este passado que ele tenta reconstruir.
Entremeando sua busca, rememora-se a história do Rio Grande do Sul desde a morte de Bento
Gonçalves e a Guerra do Paraguai, retornando ao presente da enunciação, em 1902.
99
Idem, p. 75-76.
100
Idem, p. 76.
78
Dessa maneira, são representados vários eventos históricos, alguns em um passado
longínquo, outros em um passado recente e outros referindo-se ao presente, o que causa uma
ruptura com a linearidade narrativa e constrói um texto esteticamente singular. Pode-se afirmar
que essa ruptura é um recurso que corrobora para uma narrativa memorialista, que resgata
vestígios e fragmentos de um passado histórico com entremeios. Como conseqüência deste
procedimento literário, fica bem demarcada a técnica do contraponto: Antônio rememora a vida
de seu pai, Matias; Manuela rememora a Guerra dos Farrapos em contraponto com a iminência
de outra guerra; Matias luta por sua vida nos campos de batalha, enquanto Inácia, angustiada,
espera o seu retorno; a visão infantil dos “olhos de vidro” de Matias contrapõe-se, por sua vez, ao
olhar maduro e à vivência de Manuela, apesar de ambos apresentarem um interlúdio lúdico; o
relato tenso dos campos de batalhas seguido da descrição das estâncias em espera dos
acontecimentos.
Para estabelecer essa relação contrapontística, contribuem a rememoração realizada pelos
personagens por meio de cartas, histórias e de suas próprias lembranças. Essa fragmentação, que
se apresenta como uma característica da obra e marca do pós-moderno, leva o romance a
assemelhar-se ao fluxo de consciência, mostrando os conflitos existentes. Esses procedimentos
são pontos fortes no romance, proporcionando dinamicidade e caracterizando a modernidade
literária, além de homenagear outros autores, estilos e técnicas narrativas de outras épocas.
Ao voltar-se para o passado, ocorre o resgate da memória, que se apresenta em
fragmentos, destacando partes marcantes que ficaram na lembrança. Pensando nisso, a autora
procurou reproduzir o processo de rememoração de um indivíduo na própria estrutura do
romance. Como a lembrança não é algo linear e contínuo, assim também torna-se o romance: há
várias lembranças, cada qual resgatada em um tempo determinado e diferente, surgindo
fragmentadas em forma de capítulos e “semi-capítulos”. Além dessas rememorações se oporem a
tempos, elas também contrapõem-se entre si. A quebra da linearidade e o entrelaçamento dos
contrapontos proporcionam um texto dinâmico e envolvente, simulando um efeito de realidade
bem mais consistente.
O que contribui para a fragmentação são os diversos gêneros literários presentes e
igualmente relembrados, e entremeados na narrativa, como o diário e o epistolar. Conforme
Bakhtin (1998, p. 125), “todos esses gêneros que entram no romance introduzem nele as suas
linguagens e, portanto, estratificam a sua unidade lingüística e aprofundam de um modo novo o
79
seu plurilingüismo”. Isso proporciona originalidade estilística à obra, além de ser um indício de
manifestação polifônica.
Dessa forma, verifica-se também a ocorrência do efeito polifônico no romance. Conforme
Diana Luz Pessoa de Barros (1999, p. 5-6), “emprega-se o termo polifonia para caracterizar um
certo tipo de texto, aquele em que se deixam entrever muitas vozes, por oposição aos textos
monofônicos, que escondem diálogos que o constituem”. No caso de Um farol no pampa, as
vozes são distintas e se opõem ao discurso da história oficial. Essas vozes distinguem-se de
acordo com os capítulos, sem mencionar as cartas apresentadas e que não deixam de se constituir
em outras vozes.
Para construir uma narrativa complexa e de melhor efeito literário, a autora optou pela
ampliação do número de narradores. Os fatos se revelam através do diário de Manuela, das cartas
e dos bilhetes vindos dos campos de batalha, de informes, além de um narrador onisciente
(terceira pessoa) e de um narrador que se dirige diretamente a um personagem, na segunda pessoa
do singular, como se estivesse dialogando com ela.
No caso do narrador onisciente, ele se distancia e se aproxima do objeto, enfocando os
personagens, principalmente os femininos, e o ambiente (perspectiva). Pode-se dizer que se trata
de um narrador pós-moderno, pois, segundo Silviano Santiago (1989, p. 40), “o narrador pós-
moderno é o que transmite uma “sabedoria” que é decorrência da observação de uma vivência
alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência”. A par
de tudo, inclusive de sentimentos, o narrador lança seu olhar sobre a vivência de personagens
tomados de um passado histórico.
Além do conceito de narrador pós-moderno, Santiago estabelece um panorama dos tipos
de narradores, com base nas considerações de Walter Benjamin sobre o narrador: “Trata-se antes
de julgar belo o que foi e ainda o é no caso, o narrador clássico -, e de dar conta do que
apareceu como problemático ontem – o narrador do romance -, e que aparece ainda mais
problemático hoje – o narrador pós-moderno”
101
. O narrador pós-moderno do romance em
estudo acompanha os personagens, fatos e incidentes, fazendo uma reflexão sobre o que se
encontra ao seu redor, mas subtraindo-se da ação narrada. Ao fazer isso, ele “cria um espaço para
a ficção dramatizar a experiência de alguém que é observado e muitas vezes desprovido de
101
Idem, p. 41.
80
palavra”, bem como afirma Santiago
102
. Subtraindo-se à ação, o narrador identifica-se com o
leitor; e ambos tornam-se observadores da experiência do personagem. É o que acontece em todo
romance: mesmo nas narrações em primeira pessoa, o narrador e o leitor observam também tal
personagem quando este não está narrando. É o caso de Manuela. Quando ela não está
escrevendo nos seus cadernos, é o narrador quem, por sua vez, narra as suas ações:
Manuela de Paula Ferreira está olhando para a rua.
Encostada à janela da casa decrépita em que viveu os últimos trinta e sete anos
da sua vida, Manuela está olhando para a rua. Com os olhos postos nas pedras
deste calçamento, foi que gastou a sua vida, uma vida árida e tão solitária, em
que somente se regozijou numa única esperança: o retorno de Giuseppe.
(WIERZCHOWSKI, 2004, p. 495)
Dessa maneira, é colocada a questão do olhar: distingui-se o olhar do narrador, do
personagem e do leitor. Segundo Silviano Santiago (1989, p. 44-45),
A ficção existe para falar da incomunicabilidade de experiências: a experiência
do narrador e a do personagem. A incomunicabilidade, no entanto, se recobre
pelo tecido de uma relação, relação esta que se define pelo olhar. Uma ponte,
feita de palavras, envolve a experiência muda do olhar e torna possível a
narrativa.
Não troca de experiências entre narrador e personagem, por isso a necessidade do
olhar, que retransmite o que foi observado através das palavras, da escritura. O intuito do
narrador pós-moderno é apresentar a experiência pela palavra escrita, uma vez que o mundo se
encontra privado do olhar e da palavra, e esta pouco é considerada
103
. Como bem coloca o
próprio narrador em um dos capítulos Olhos de Vidro, “o amor, naquela casa, era feito de
silêncios e de olhares.” (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 159). Assim, “o narrador que olha é a
contradição e a redenção da palavra na época da imagem. Ele olha para que o seu olhar se recubra
de palavra, constituindo uma narrativa” (SANTIAGO, 1989, p. 51). Mesmo tratando-se da
representação de um fato histórico, passado, representação que pode se encaixar nas variantes
lúdicas, a obra pode ser considerada pós-moderna, bem caracterizada pelo narrador e pelos
recursos estilísticos a ele atribuídos pela autora.
Um exemplo que simboliza essa experiência do olhar no romance é a relação que
102
Idem, p. 44.
103
Idem, p. 48.
81
Manuela tem com o menino que toda manhã passa debaixo de sua janela para vê-la vestida de
noiva, “para ver a louca”.
embaixo, na rua, o menino procura a janela no andar superior do sobrado, a
janela onde Manuela espia o lento desenrolar da vida na cidade de Pelotas. A
eterna janela com suas velhas cortinas que um dia foram azuis. E o menino a vê.
[...] O menino olha Manuela por um instante e sorri. É como um jogo para ele,
ela estar lá, encarapitada na sua janela, é uma coisa que abre seu dia. A velha
vestida de noiva, como se alguém a quisesse levar ao altar. Então o menino grita:
- Olha a noiva! A noiva de Garibaldi! A louca! [...] Na rua, o menino acabou de
gritar, e então desata a correr, mesmo sabendo que ela jamais virá atrás dele. O
menino dobra uma esquina, os livros sob o bracinho ágil, e desaparece na bruma.
Uma ilusão, um sonho. Uma luz que brilha e se apaga.
104
O olhar do menino, que julga Manuela louca pela forma que a vestida de noiva na
janela do sobrado -, desconhece as experiências de Manuela e as razões porque esta deixa passar
sua vida em uma espera . É por isso que ele a qualifica como louca. No entanto, Manuela
precisa desse jogo lúdico para continuar sua espera e manter-se lúcida e consciente, e, assim, ela
olha a cidade enfaticamente, vendo além do que se encontra diante de si, enquanto a cidade a olha
superficialmente, pela ótica de um menino, que não tem pudor em dizer o que pensa.
Essa questão gira em torno da constituição e definição da identidade do indivíduo.
Conforme Zilá Bernd (1992, p. 15), “a consciência de si toma sua forma na tensão entre o olhar
sobre si próprio visão do espelho, incompleta e o olhar do outro ou do outro de si mesmo
visão complementar”. Os dois olhares, o de Manuela para si e do menino e da cidade para ela,
definem sua identidade: Manuela é a velha louca-consciente, abandonada por Garibaldi. No
entanto, para o leitor, ele é importante porque lhe revela pela escritura os detalhes do emaranhado
da história.
Com relação à narração em primeira pessoa, pode-se dizer que Manuela é uma narradora-
testemunha, por narrar os acontecimentos em primeira pessoa e “é um “eu” já interno à narrativa,
que vive os acontecimentos aí narrados como personagem secundária, podendo observá-los,
desde dentro, e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil” (LEITE, 1985, p.
37). Esse personagem transmite sua vivência e a de outras pessoas de sua família.
também cartas narradas na primeira pessoa (ora do singular, ora do plural). Esse texto
epistolar é uma marca testemunhal, além de apresentar-se como registro do acontecimento. Trata-
104
Idem, p. 499-500.
82
se de um diálogo, um meio de comunicação entre as famílias, que davam ou solicitavam notícias,
e os soldados, como também é uma forma do romancista autenticar a narrativa, “com a chancela
de veracidade, ao mesmo tempo em que endossa ilusoriamente a outrem a responsabilidade da
focalização” (AGUIAR E SILVA, 1986, p. 766).
Conforme Oscar Tacca (1983, p. 42),
A possibilidade de uma composição de liberdade praticamente ilimitada nasce
no preciso momento em que se pode ver toda a matéria narrativa distribuída em
peças soltas e unitárias (as cartas). A supressão de uma única delas deixa
vislumbrar um jogo de silêncios e de mistérios, de buracos’, tão próprios do
romance contemporâneo.
Esses silêncios e mistérios vêm ressaltar a questão das lacunas deixadas pelo discurso
histórico oficial. Além disso, é pela interrupção de correspondências enviadas por Matias e pela
falta de notícias dele que ocorre o desfecho da narrativa, pois Inácia passa a acreditar que ele está
morto.
Além dessas cartas, apresentam-se, no romance, a transcrição de notícias de jornais e
informes. É o caso do informe da revista A Semana Ilustrada sobre os Voluntários da Pátria, e da
notícia do jornal A Reforma sobre a morte de Garibaldi, referidos, inclusive, na sua posição
gráfica nas páginas do romance, como segue abaixo.
A Reforma
Órgão do Partido Liberal
Porto Alegre, 23 de junho de 1882.
Redactor-chefe A. L. da F. Palheiro
(A Reforma publica-se todos os dias a excepção dos immediatos aos
santificados)
A Pátria (Montevidéu), 10 de junho, foi obsequiada com telegramas datados de
Roma em que diz que o intrépido guerreiro Giuseppe Garibaldi morreu em
conseqüência de BRONCHITIS AGUDA.
83
Immensa consternação na cidade, fechando-se immediatamente todas as casas de
negócio e suspendendo as funcções theatraes. As repartições públicas tiveram o
pavilhão oriental a meio pao e foi declarado dia de luto nacional.
(WIERZCHOWSKI, 2004, p. 495).
Ao inserir tal notícia tomada de um jornal da época, a autora optou, mais uma vez, por
proporcionar verossimilhança, por representar a realidade se apropriando dos registros históricos.
Esse recurso dá autenticidade ao texto e demonstra, nitidamente, o diálogo entre história e
literatura que permeia toda a narrativa, marcando o romance.
a voz na segunda pessoa, a qual se dirige a Maria Angélica, trata-se de um narrador
onisciente intruso. “Esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se
acima, ou [...] por trás, adotando um ponto de vista divino [...], para além dos limites de tempo e
espaço”
105
. No romance, esse narrador assume uma posição profética, anunciando o futuro de
Maria Angélica, além de fazer comentários sobre a guerra.
Contudo, retomando a questão da polifonia, a multiplicidade das vozes distribui-se em
duas grandes vozes gerais: das mulheres fadadas à espera e dos homens participantes da guerra.
Considerou-se discurso autoritário aquele em que se abafam as vozes dos
percursos em conflito, em que se perde a ambigüidade das múltiplas posições,
em que o discurso se cristaliza e se faz discurso da verdade única, absoluta,
incontestável. Para reconstruir o diálogo desaparecido são, nesse caso,
necessários outros textos que, externamente, recuperem a polêmica escondida,
os choques sociais, o confronto, a luta. (BARROS, 1999, p. 6)
No que diz respeito ao romance estudado, o que se pode notar é que há duas posições com
relação ao acontecimento histórico, apresentando a perspectiva das mulheres e a dos soldados.
Dessa forma, em contraponto à história oficial, a visão e a opinião dos personagens que estão
de fora da guerra e que a consideram somente mais um derramamento de sangue inútil, e dos
combatentes, desiludidos e lutando sem um propósito nítido, apenas por suas vidas. Este seria o
“diálogo desaparecido”: o que a população e os soldados diziam sobre o fato que estava
ocorrendo e que lhes era apresentado de maneira vaga, sem muitas explicações. O romance de
Leticia vem dar a palavra a estes “personagens” da História até então calados.
Sobre outro panorama, Paul Ricoeur (1995, p. 163) afirma que “qualquer ponto de vista é
o convite dirigido a um leitor que oriente seu olhar na mesma direção que o autor ou o
105
Idem, p. 26-27.
84
personagem; por sua vez, a voz narrativa é a palavra muda que apresenta o mundo do texto ao
leitor”. Assim, as vozes presentes na narrativa são subjetivas e expressivas; elas não forçam o
leitor a seguir um olhar único, mas um olhar diferente e, certas vezes, até mesmo duo. No
entanto, procedendo assim, elas desnudam uma parte importante da história que existia, mas que
ficava oculta.
Linda Hutcheon (1991, p. 156) afirma que a tendência pós-moderna estabelece, diferencia
e depois dispersa as vozes em narrativas que utilizam a memória para tentar dar sentido ao
passado. É justamente isso que acontece com Manuela e com os demais personagens que
presenciaram a Revolução Farroupilha: eles rememoram um passado nobre e com heróis,
colocando-o em oposição ao presente caótico e aterrorizador e passa ao leitor uma realidade
ficcional” até mais rica do que o que registra a História.
Dessa maneira, a polifonia suscita alguns posicionamentos sobre o acontecimento
histórico, principalmente a forma como a população e os soldados encaravam a guerra. As
mulheres são obrigadas a tomar conta dos afazeres das estâncias e a protegê-las, enquanto,
angustiadas, mas questionadoras, recebiam notícias vagas, que, por isso, despertavam dúvidas e
indagações quanto sua veracidade, enquanto esperam o retorno de seus maridos e filhos. Elas
apresentam um olhar humano, que transparece seus estados psicológicos que desestabilizavam
com os momentos. Os soldados lutavam por suas vidas e não viam sentido nas crueldades da
guerra. Apresentam-se saturados e perturbados por desconhecerem seus destinos. Essas duas
vozes apresentam-se em oposição ao discurso do Império, criticado por todos esses personagens.
Mesmo almejando transmitir uma imagem positiva, contestam sua posição de maneira crítica,
reivindicando o fim da guerra.
Por demonstrar a obscuridade das informações que chegavam à população e a crítica dos
personagens diante dos acontecimentos, o texto representa uma outra perspectiva da Guerra do
Paraguai. São as mulheres e os soldados-escravos, os excluídos, que apresentam, por meio da
literatura, a sua visão e a sua voz até agora sufocados ou esquecidos.
85
4.2. O espaço e o tempo
Le récit tue le temps, mais pour lui donner
naissance.
106
Jean-François Hamel
107
Duas temporalidades e dois espaços indissociáveis se superpõem na narrativa de Um farol
no pampa: o presente, no Rio de Janeiro e, em seguida, com a visita de Antônio, no Rio Grande
do Sul, e a narração de fatos passados, vividos no Sul do Brasil, mas dados no presente da ação.
Verifica-se, mais uma vez, a técnica contrapontística com relação aos tempos e espaços.
O espaço do romance é constituído pelos pampas do Rio Grande do Sul, parte dos
territórios uruguaio (Montevideo) e argentino (Corrientes), no século XIX, desde o começo até o
fim da Guerra do Paraguai, e o Rio de Janeiro, vários anos após a guerra. Dentro desses,
espaços delimitados como as estâncias, o sobrado onde mora Manuela, os acampamentos, o farol,
o hospital, a casa de Matias no Rio de Janeiro e a viagem de trem de Antonio até os pampas.
Nestes espaços é representado o ambiente social da época, caracterizado pelas descrições e
atitudes dos personagens.
A solidão dos pampas e o turbilhão das batalhas estabelecem um grande contraste. Apesar
da inércia, da passividade e da tranqüilidade que as envolvem, as mulheres das estâncias estão
sempre apreensivas, angustiadas, à espera de notícias de seus familiares que estão na guerra.
Assim, elas vivem suas guerras interiores, presas em suas casas. Em contraponto, os soldados
vivem em um cenário de atrocidades, em um ambiente hostil, onde lutam para manterem-se
vivos.
É importante salientar que a apresentação dos espaços, tal como aconteceu com o uso de
procedimentos literários no decorrer do romance, busca transmitir uma sensação de real. Tanto os
pampas, como as lutas são descritas com detalhes. As cenas dos campos de batalhas são
minuciosamente narradas, construindo imagens fortes. Uma emboscada paraguaia no
106
“A narrativa mata o tempo, mas para dar-lhe nascimento a ele”.
107
HAMEL, Jean-François. Revenances de l’histoire. Paris: Les Éditions de Minuit, 2006, p.7.
86
acampamento dos soldados brasileiros em Esteiro Bellaco, é um exemplo dos cenários das
“pelejas”.
As patas do baio que ele monta pisoteiam homens que rastejam no lodo. Uma
espada rasga a manga do uniforme, penetra sua carne; o sangue jorra
angustiosamente.
[...] Crê que é o inferno. Crê que está morto. Desvia de uma pilha de cadáveres
paraguaios: braços e pernas e troncos entrelaçados. Uma cabeça rola e cai aos
seus pés. Aqueles olhos outra vez...
[...] Quando o calor aumenta, quando as chamas começam a lamber aquela
montanha de carne morta, braços e pernas se movem hirtos, tomados de súbita
vida. Um cadáver cai da pilha e rola pelo chão.
Matias deixa o rosto cair no barro e fecha os olhos. (WIERZCHOWSKI, 2004,
p. 333-334)
A descrição minuciosa ilustra, de maneira bem realista e impressionista, o caos e o horror
das sangrentas batalhas da Guerra do Paraguai, através do personagem Matias. Em oposição,
longe dessa realidade, é descrita também a Estância do Salso, onde vive Inácia: “Mal raiou o dia;
o silêncio ainda estende seus braços sobre tudo. A casa, muito quieta, imersa na penumbra desta
quase manhã, guarda o repouso de Perpétua e suas filhas”
108
.
No romance, dois espaços recortam fundamentalmente a paisagem, opondo-se entre si: o
pampa, com as suas “pelejas”, e o espaço urbano. Porém, um dos espaços mais significativos da
narrativa é o farol, associado ao título do romance, uma vez que ele é um espaço intermediário
entre aqueles dois outros espaços e tem a função estética como seu objetivo literário. A princípio,
a construção do farol, idealizado anteriormente por Giuseppe Garibaldi, é um desejo de D. Ana,
que queria facilitar a navegação do rio Camaquã. Contudo, esse farol mostra-se como um guia
para todos, no sentido próprio e no figurado. Quando ele é inaugurado, é uma vitória, uma
conquista, como o fim de uma guerra. No trecho em que a voz sibilina se dirige a Maria
Angélica, destaca-se o lado simbólico do farol: “E a luz intermitente do farol banha teus
pensamentos. A guerra e seus horrores então se iluminam destas fagulhas de luz, e tu contemplas
tuas idéias quase com desespero.” (WIERZCHOWSKI, 2004, p.256). Trata-se, portanto, de um
espaço carregado de simbologia, um ponto de referência, um feixe de luz para os “viajantes” do
romance. No entanto, após sua ascensão e a chegada da luz elétrica, o farol é abandonado,
108
Idem, p. 309.
87
tornando-se uma velha testemunha do passado e cenário para o encontro de Antônio com uma
jovem misteriosa.
Contudo, um espaço que também se distingue dos demais: o sobrado de Manuela. Lá,
ela, aparentemente, se refugia do mundo real, mas mantém-se sempre a par dos acontecimentos
ao seu redor. Ao criar seu próprio mundo, o tempo parece não passar no sobrado. Porém, os
objetos sem cor, a ferrugem, o cheiro de mofo constatado por Antônio são indícios da passagem
do tempo. Assim, nota-se que, para Manuela, o tempo tinha um ritmo diferente do tempo
exterior.
Ela abriu a porta, destravando o ferrolho enferrujado, e deixou ver o pequeno
vestíbulo onde um carpete corroído pelo tempo mostrava os restos da sua trama.
As paredes, os móveis, o espelho sobre um aparador, tudo era velho, descolorido
e triste. A casa tinha cheiro de mofo que entrava em golfadas pelas narinas. [...]
A criada levou-o para uma sala onde móveis dispostos pareciam esperar a
companhia de fantasmas. (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 324)
Reclusa em um mundo seu e apegada ao passado, no qual é a lembrança de Garibaldi
que a faz sobreviver, Manuela permanece sozinha, trancada no sobrado, naquela casa onde o
tempo não entrava”
109
, frase que sobrepõe de forma enfática a espacialidade sobre a
temporalidade. Seu contato com o mundo exterior é a janela de seu quarto e sua criada. Mas já no
fim da vida, com mais de oitenta anos, Manuela não quer ter nenhum contato com o exterior, uma
vez que o mais quem esperar; Garibaldi havia morrido e não voltara para ela. Portanto,
“Manuela não gosta de janelas abertas”
110
; vive recolhida no passado e nas memórias.
Num tom memorialista, nota-se o desdobramento do "eu": o narrador, no presente da
narrativa, fala de personagens do passado, um passado que retorna e existe somente por
intermédio do texto e de cartas. O fio condutor é a história de Matias, cujo destino é alterado pela
guerra, além das entremeadas histórias de sua família.
Essas cartas, que permeiam o romance, retomam diversos tempos e espaços, entremeando
a narrativa e apresentando as vozes dos personagens que buscam por notícias ou são portadores
dela. Tal, como afirma Oscar Tacca (1983, p. 42),
109
Idem, p. 325.
110
Idem, p. 324.
88
A escrita epistolar torna patente a existência de diversos tempos, que se
correspondem e se entrecruzam: um tempo de produção (momento da escrita);
outro de leitura; outro daquilo que é narrado, que pode implicar um futuro,
ligado (nesta modalidade romanesca muito mais do que noutras) quase sempre –
embora não forçosamente – ao tempo da escrita.
Dessa forma, o texto epistolar apresenta o momento do personagem e, de modo natural,
utiliza o registro gramatical dos personagens, podendo até vir a substituir o narrador onisciente.
Com o objetivo de receber notícias, Caetana e os demais enviavam seus escravos (Congo)
até Pelotas ou outras cidades para obter “jornais e informações colhidas pelas ruas”
111
. “As
notícias que chegavam à casa faziam aumentar o medo e a insegurança. Os homens tinham
partido havia meses, o correio era escasso e demorado”
112
. É com essas informações que as
mulheres, refugiadas em suas estâncias e em seus quartos, ficam a par dos acontecimentos
exteriores. Porém, essas notícias eram colocadas em dúvida, pois demoravam meses para chegar
e, nesse período, poderiam ter acontecido muitas outras coisas. Com isso, o contraponto entre
interior, estância, quartos, introspecção, e exterior, tudo que se passa além do domínio dos olhos.
Por outro lado, apresenta-se também o contraponto no interior de espaços, principalmente no caso
dos personagens Matias e Inácia: na infância, cada um vivia em uma estância, e estas eram
distantes; noivos, Matias está nos campos de batalha enquanto Inácia permanece na Estância
do Salso; após sua dispensa da guerra, ele parte para o Rio de Janeiro e ela fica no Rio Grande do
Sul.
Com relação ao tempo da narrativa, várias divisões cronológicas, sendo que o tempo
histórico o período da Guerra do Paraguai é o mais significativo (de 1863 a 1870). Em
seguida, o tempo em que Antônio reconstrói os passos de Matias, passando-se em 1902 e
1903, quando decide ir ao Rio Grande do Sul assumir a herança de seu pai. Contudo, a narração
sobre a família Gonçalves e, conseqüentemente, sobre a vida de Matias desde a infância, inicia-se
no ano de 1847, com a morte do general Bento Gonçalves. Para ilustrar melhor essa
temporalidade, é apresentado abaixo um quadro demonstrativo:
111
Idem, p. 258.
112
Idem, p. 259.
89
Esquema temporal das ações do romance
1847 a 1882 1902 e 1903
Morte de Bento Gonçalves;
Construção do farol;
Início e fim da Guerra do Paraguai.
Vida de Matias;
Vinda de Antônio para os pampas (início).
Descoberta do passado (herança); conhece
Manuela;
Declínio do farol.
Tabela 1: Esquema temporal das ações do romance
Esse é o tempo da diegese, que “comporta um tempo objetivo, um tempo “público”,
delimitado e caracterizado por indicadores estritamente cronológicos” (AGUIAR E SILVA,
1986, p. 746). Dessa forma, com relação ao fato histórico presente no romance, Benedito Nunes
(1995, p. 21) afirma que “as divisões cronológicas do tempo histórico se redistribuem em
unidades qualitativas, que dependem da duração dos acontecimentos, tanto quanto essa duração é
inseparável da conexão causal entre eles”. Assim, mesmo que o tempo histórico se apresente
fragmentado no romance, para produzir os efeitos literários e estéticos, nota-se que seu percurso é
progressivo, qualitativo e segue a temporalidade da historiografia.
Segundo Gerard Genette (1980, p. 31), “a narrativa é uma seqüência duas vezes temporal:
o tempo da coisa-contada e o tempo da narrativa (tempo do significado e tempo do
significante)”, sendo assim, “uma das funções da narrativa é cambiar um tempo num outro
tempo”. No romance em análise, a ão está no passado, o que o torna o presente da narrativa.
Este presente é considerado a partir do passado resgatado pelos personagens; é o tempo da
narrativa. Contudo, há anacronias, “desencontros entre a ordem dos acontecimentos no plano da
diegese e a ordem por que aparecem narrados no discurso” (GENETTE apud AGUIAR E
SILVA, 1986, p. 751).
Dentro desses dois grandes períodos, tempos reiteradamente rememorados pelos
personagens, como o episódio da Revolução Farroupilha. Portanto, a diegese comporta também
“um tempo mais fluido e complexo o tempo subjetivo, o tempo vivencial das personagens. [...]
Esta temporalidade [...] é entretecida num presente que ora se afunda na memória, muitas vezes
involuntária, ora se projeta no futuro, ora pára e se esvazia.” Nota-se a presença intensa desse
tempo no diário de Manuela, que realiza progressões e regressões temporais constantes, de
acordo com o fluxo psicológico, sendo mais um recurso literário da contemporaneidade. Esse
tempo ocorre também nos episódios em que Matias está no campo de batalha e quando relembra
sua infância. Apesar de esses momentos serem narrados por um narrador onisciente, nota-se que
90
digressões que retratam o psicológico das personagens e seu fluxo de consciência, alterando
permanentemente a apresentação da temporalidade.
Em busca desse tempo passado, Antônio busca resgatar a história de seus antepassados.
Primeiro, em sua viagem até o Rio Grande do Sul, ele vem embalado pelas cartas trocadas entre
Matias e Inácia. nos pampas, ele encontra uma testemunha viva de sua “herança”, sua tia-avó
Manuela, a guardiã do tempo passado. No final do romance, esta lhe deixa seus cadernos como
documentário da saga da família, com a recomendação de os queimar após sua morte: “Pedi-lhe
certa noite que queimasse esses cadernos. Queime-os, por favor. Mas se vosmecê quiser lê-los, se
vosmecê quiser gastar o seu tempo com isso, há de encontrar neles um pouco da história daqueles
que lhe engendraram.” (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 508).
Desta maneira, o transcorrer do tempo é fator determinante para a ocorrência de vários
acontecimentos e efeitos literários. É por ficar tanto tempo sem notícias de Matias que Inácia
acaba se casando com Bernardino. Perpétua, mãe de Inácia, que não aprovava o casamento de
Inácia com o primo mestiço, manipula essa questão do tempo em prol de seus planos para a filha:
“Tempo eu le darei, meu amigo. Tempo é o que mais temos nesta casa”
113
. Realmente, nota-se
que o tempo nas estâncias demorava a passar, o que prorrogava a angústia de quem esperava por
notícias, em geral, as mulheres.
4.4. Os personagens e os fatos históricos
O homem é personagem, que é homem. E o escritor é
o criador de personagens que se incorporarão em
homens.
Maria Aparecida Baccega
114
No que diz respeito aos personagens de Um farol no pampa, estes podem ser classificados
como “entidades imigrantes”, aquelas que “mudam de um mundo onde os reconhecemos como
entidades existentes [...] para um mundo ficcional (nós os aceitamos no romance como
113
Idem, p. 340.
114
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: Literatura e História. São Paulo: Ática, 2000.
91
personagens de ficção e pessoa histórica”, e “entidades nativas”, aquelas “cuja existência não
conhecemos antes do romance” (PARSON apud MIGNOLO, 2001, p.125). Há, na obra, pessoas
históricas, ou melhor, entidades imigrantes, como Bento Gonçalves, General Osório, Antônio de
Souza Netto, Solano López, Venâncio Flores, e personagens que fazem parte da família de Bento
Gonçalves como sua esposa Caetana e seus filhos, Perpétua, Joaquim, Caetano, Marco Antonio,
Bento, Leão, Maria Angélica e Ana Joaquina, suas irmãs Antonia, Ana e Maria Manuela, suas
sobrinhas Manuela e Mariana, e Inácia, neta de Bento. Estes, portanto, são personagens tomados
à realidade. Porém, mesmo nessa condição eles integram uma ficção e não é possível, e nem
interessa à crítica literária, saber se o que é contado se passou “realmente”. A própria autora
confirma essa afirmação ao apresentar sua obra: “Esta ficção se debruça sobre personagens reais,
mas é apenas a coisa imaginada”. Em contraponto, temos os demais personagens como Matias,
Congo, Pedra, Xica, D. Rosa, Beata e Netinho, considerados entidades nativas por não haver
dados históricos que comprovem suas existências históricas. Sendo assim, é pertinente a
consideração de Genette, o qual afirma que “em toda ficção os personagens históricos podem
conviver com personagens ficcionais dentro do contexto do romance porque eles se
sujeitam às regras da ficção”(GENETTE apud HUTCHEON,
1991, p. 197)
.
Essa parece, numa primeira abordagem, uma das dificuldades encontradas com relação
aos personagens: na multiplicidade de seus discursos e de suas representações, observar o
entrecruzamento da história e da ficção. O próprio enredo do romance tem por base a relação
amorosa entre Matias, entidade nativa, e Inácia, entidade imigrante. Mesmo que Inácia tenha
existido, a autora ficcionalizou a sua vida, suas atitudes; ela passou a ser uma personagem
ficcionalizada e é isso que interessa à literatura.
Nesse sentido, o romance não é a história da família de Bento Gonçalves da Silva, mas
uma criação ficcional a seu respeito, uma invenção da autora Leticia Wierzchowski a partir de
dados da história da saga de uma família. Pode-se dizer que a trajetória histórica do Sul e o
destino dos descendentes do presidente da República Rio-grandense foram apenas o ponto de
partida utilizado pela autora para dar início à sua criação artística.
Segundo Linda Hutcheon (1991, p. 151), a ficção histórica é “aquela que segue o modelo
da historiografia até o ponto em que é motivado e posto em funcionamento por uma noção de
história como força modeladora (na narrativa e no destino humano)”. É o que acontece em Um
farol no pampa: são os fatos históricos, no caso desse volume a Guerra do Paraguai, que
92
“modelam” o romance, trazendo à tona questionamentos e uma visão revisionista do passado em
foco.
É certo que esses acontecimentos históricos ocorreram, no entanto, sua representação
acaba revelando uma possibilidade de interpretação. Trata-se, portanto, de uma versão para o
acontecimento, apresentada sob o ponto de vista dos narradores e, implicitamente, da autora, uma
vez que ela realizou pesquisas sobre o acontecimento histórico para dar vazão a sua criação
literária. Do contrário, não seria um romance, mas um documento histórico. Para confirmar isso,
cabe aqui a afirmação de Maria Teresa de Freitas (1986, p. 07):
[...] ao criar uma história com personagens e situações dramáticas, o autor
tentará passar uma visão pessoal do universo – que não é de forma alguma cópia
da realidade, mas sim interpretação dos acontecimentos relacionados à História-,
através da qual chegará a uma realidade de natureza distinta daquela que a
originou.
Desse modo, a ficção histórica não tem a pretensão de realizar uma cópia fiel da História
que pretende representar, uma vez que esta não é a missão da literatura. Pelo contrário, a
literatura recria o real, conforme a mimesis aristotélica, para suprir uma falta ou “representar uma
proposta alternativa de completude” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 106). Ou, conforme
Umberto Eco (1985, p. 62), “o romance é a história de um alhures”; é uma “outra história”.
Segundo Silviano Santiago (1989, p. 51), os personagens observados pelo narrador
“passam a ser atores do grande drama da representação humana, exprimindo-se através de ações
ensaiadas, produto de uma arte, a arte de representar”. É o narrador, detentor da arte da palavra
escrita, que narra as ações dos personagens-atores numa representação lúdica, no qual espaço e
tempo permitam que eles existam, ou, no caso do romance, “revivam”. O autor da obra esconde
por detrás do narrador, manipulando os fatos a fim de recriar a própria realidade.
Quanto aos personagens, em sua maioria mulheres, percebe-se que eles possuem
características humanas e não apenas míticas como no romance histórico tradicional. É o caso de
Bento Gonçalves que, em seu leito, apresenta-se fragilizado, lutando sua última batalha, contra a
morte. Nos pensamentos de Joaquim, o pai nada mais era do que um homem: “Mais do que tudo,
aquele era o vulto de outro homem. Um homem exaurido. Manchas cinzentas ao redor dos olhos
marcavam-lhe o rosto emagrecido” (WIERZCHOWSKI, 2004, p.38). Naquele momento, pelo
93
olhar do filho, o famoso e aclamado guerreiro do Rio Grande do Sul não passava de um homem
vencido pela doença, como qualquer outro ser humano.
Outro exemplo é a descrição da visita de Antônio a sua tia-avó Manuela. Ela, um
personagem emblemático da narrativa, se encontra com mais de oitenta anos, fraca e à beira da
morte: “A cabeça afundada no travesseiro, o mais do que pele translúcida estirada sobre os
ossos salientes, Manuela Ferreira lhe sorria. Os olhos, de um verde apagado, tinham recobrado
algum viço”
115
. Por esses dois exemplos, verifica-se que os personagens fortes adquirem
características mais humanas, perdendo seu vigor, quando estão próximos da morte. Porém, as
mulheres ainda apresentam uma posição sensitiva, intuitiva, que não as deixa nem nos seus leitos
de morte (“Focou seus olhos no rosto de Antônio. – Está mudado... O que houve?”
116
).
Além disso, em Um farol no pampa são nítidas as transgressões, tanto de comportamento
como do porte físico dos personagens. Conforme Mário Maestri (2004), o mulheres e homens
lindos, com atitudes e sentimentos modernos para a época. É como se a autora narrasse o presente
em um passado. As mulheres são brancas, esguias, de olhos claros, atraentes, sonhadoras, o que
provavelmente não condiz com as sinhás da época. o estereótipos da mulher sulina do início
desse milênio, descendentes dos imigrantes europeus (alemães, italianos, russos, poloneses,
ucranianos e de outras nacionalidades), com atitudes contemporâneas. Na verdade, as mulheres
da época apresentada no romance eram submissas, não tinham instrução, pois a maioria não sabia
ler. Em geral, casavam-se muito jovens, sem tempo para o despertar de paixões e com cuidados
refinados de si; tinham muitos filhos e, aos vinte anos, ficavam gordas e sem atrativos
117
.
Com a recorrência de guerras, essas mulheres da época representada tiveram que lidar
com a terra e cuidar de seus filhos sozinhas, uma vez que os homens iam para os campos de
batalha. Pode-se dizer que vem daí a força feminina, pois elas eram responsáveis pela
manutenção da estrutura familiar durante as guerras. Essa força é muito demonstrada no
romance; é algo passado de geração em geração: “[...] Perpétua era forte. [...] Quantas vezes as
tias e até a mãe tinham falado da força feminina, da gana que uma mulher devia ter para manter
sua gente? Ela guiaria a família no meio daqueles dissabores, daquele horror que se tinha abatido
sobre todos” (WIERZCHOWSKI, 2004, p. 291). Após a morte do marido, Perpétua cuida da
família e da estância, dos aspectos materiais da propriedade e, sobretudo, dando conta dos
115
Idem, p. 464.
116
Idem, p. 464.
117
Idem.
94
infortúnios e das perdas de seus netos. Há um e outro personagem masculino presente nas ações
da Estância da Barra, mas esses não passam de meros coadjuvantes.
No entanto, além de fortes, as mulheres são consideradas misteriosas, verdadeiras
profetisas que tudo conhecem, sentem e adivinham: “Seus olhos [de Manuela], Antônio agora
podia ver melhor, fitavam-no firmemente para poder decifrá-lo”
118
. Além disso, em Olhos de
Vidro, o narrador as comparadas à guerra - perigosas: As mulheres e a guerra eram coisas mui
contrárias, e ambas guardavam em si perigo igual”
119
. Pode-se dizer que esta afirmação é um
anúncio da “traição” de Inácia.
Em consideração feita acerca dos personagens de romances históricos, Umberto Eco
(1985, p. 63) afirma: “Naturalmente, para corroborar a impressão de realidade, os personagens
históricos farão também aquilo que (por consenso da historiografia) de fato fizeram [...]. Nesse
quadro (“verdadeiro”) inserem-se os personagens de fantasia, os quais porém manifestam
sentimentos que poderiam ser atribuídos também a personagens de outras épocas”. Portanto, não
é necessário que o personagem seja inteiramente fiel à representação de sua época, o que permite
abrir para leituras mais críticas e contemporâneas sobre o passado histórico.
No romance em questão, as mulheres também agem, praticam “ações”, mesmo sendo atos
simples, em geral. Nesse sentido, uma personagem que merece destaque é Dona Ana que, no
intuito de querer ser útil e fazer algo em prol dos navegantes do rio Camaquã, manda construir o
farol à margem da Lagoa dos Patos, dentro de sua estância. É ela quem supervisiona a construção
e, depois, o funcionamento do farol, que era iluminado por dois escravos que ali se revezavam dia
e noite.
Outro personagem importante para a trama e para a elaboração do efeito literário é
Manuela. Pode-se dizer que esta é uma personagem complexa, que oscila entre a loucura e a
lucidez. A loucura é seu escapismo para não sofrer e continuar a ter esperanças. Logo, sua lucidez
mostra uma mulher realista, fria e consciente, a par de todos os acontecimentos importantes,
apesar de viver fechada em seu sobrado. É por suas memórias, documentadas em seus cadernos,
que o leitor desvenda o passado. Além disso, é importante salientar que ela é o único personagem
narrador e que seus cadernos representam a grande questão metalingüística da obra: o processo
da construção da obra literária pelos meandros da memória textual adquirida e pela abertura de
118
Idem, p. 325.
119
Idem, p. 159.
95
interpretações por parte do leitor. Manuela inicia seus cadernos comentando sobre o caráter
inexorável da vida e, assim, explica a proposta deles: “dedico-me a este passatempo de desfiar em
linhas a vida de certas pessoas [...]” (WIERZCHOWSKI, 2004, p.75); e o romance termina com
os cadernos de Manuela sendo queimados. Isso mostra o “fogo da escritura” e a perpetuação da
obra literária.
Maria Angélica é outro personagem interessante para a construção do romance. Por ela
estar sempre grávida, dando à luz a vários filhos, é estabelecido um contraponto em relação às
mortes pela guerra. Enquanto soldados se matam, ela dá a vida, mostrando a renovação do ciclo e
reafirmando a fé no ser humano: o que arde em ti é uma espécie de ódio pelo desprezo que os
homens dão ao que de mais caro dentro de ti, esta maravilhosa capacidade de fazer a vida,
quando tudo em derredor promove o horror da morte”
120
. Assim, pela voz direcionada à Maria
Angélica, manifesta-se, mais uma vez, a indignação e a angústia das mulheres ao verem seus
filhos morrerem “como se não fossem vida, mas qualquer coisa de inútil e de profano”
121
.
Apoderando-se do discurso histórico para subvertê-lo, a autora mostra a necessidade que
o povo gaúcho tinha de criar heróis que, na verdade, não passavam de homens comuns.
Motivados pela valentia desses “heróis” e se espelhando em seus atos “nobres”, homens iam para
a guerra para imitarem esses heróis. Matias, principal personagem masculino da trama, é mestiço,
porém, herda o sangue da família de Bento Gonçalves por parte da mãe, Mariana. Passa a
infância ouvindo os feitos de bravos homens na Guerra dos Farrapos e querendo ser um deles.
Contudo, isso não faz dele um bom soldado e nem recebe uma boa qualificação no exército, ao
contrário dos filhos de Bento, que se tornaram generais e tinham patentes. No entanto, os filhos
de Bento Caetano, Leão e Marco Antônio mostram-se solidários com Matias. Assim, quando
cai gravemente ferido e é encontrado por um dos primos, Matias é liberado da guerra. Nota-se
que há pessoas que foram feitas para os campos de batalha, que guerra não é para qualquer um, é
uma vocação. Na condição de mestiço, Matias não é um exemplo da identidade gaúcha;
uma subversão. Na tradição, o verdadeiro gaúcho é aquele “cuja alma é formada lisa por
natureza, se habitua a lutar a peito descoberto, com galhardia e denodo, como praticavam os
legítimos cavaleiros da idade média, que tão alto elevaram o sentimento de valor” (FRANCISCO,
1923, p. 12).
120
Idem, p. 257.
121
Idem, p. 257.
96
Matias somente vai à guerra por uma questão de consciência. Quando retorna e descobre
que Inácia se casara com outro, foge para o Rio de Janeiro. Esses são pontos que o
descaracterizam da consagrada identidade do homem gaúcho e que dão o tom contestatório do
status por parte da autora do romance:
O gaúcho sempre se distinguiu pela nobreza da sua conducta em todos os lances
da vida. [...] o valor nato do gaúcho, sua arrogância, e sua galhardia provêm da
topographia da nossa terra. Nascemos e nos criamos nos pampas – campos
planos, lisos, despidos de sinuosidade, cuja formação se reflecte em nossa alma
quotidianamente, de modo a dar à alma do gaúcho a sua mesma forma lisa e
límpida. (FRANCISCO, 1923, p. 11-12).
O tipo ideologicamente reconhecido como gaúcho pela sociedade da época retratada no
romance é o homem ligado à terra, o homem da Campanha. Nem todo habitante do Rio Grande
do Sul pode ser considerado um verdadeiro gaúcho, pois este deve ter os atributos físicos e
morais que o caracterizam. Pode-se afirma que Caetano, Leão e Marco Antônio eram, nesse
sentido, legítimos representantes gchos, principalmente por honrar e seguir os passos do pai
Bento, tornando-se figuras imponentes e honradas pelo sangue herdado. Matias, cujo pai era
um bugre, um mestiço de branco e de índio, não era o tipo gaúcho ideal. O fato da família de
Mariana, sua mãe, não aceitar a união dela com seu pai, João Gutierrez, demonstra o preconceito
racial sulino. As moças da aristocracia deviam se casar com homens de mesma linhagem, do
mesmo status. Assim, Mariana acaba por refugiar-se na estância de sua tia, D. Antônia, que
acolheu ela e o esposo como filhos, e Matias como neto.
Em uma entrevista, a autora afirma que as pessoas sentem-se atraídas pelo relato de fatos
históricos humanizados e querem descobrir mais sobre o passado. Depois de ter escrito A casa
das sete mulheres e Um farol no pampa, ela supõe que hoje as pessoas saibam muito mais sobre
Bento Gonçalves do que sabiam antes. Segundo ela, atualmente, o povo desconhece o passado de
seus antecessores e até a própria história. Talvez o resgate do passado de lutas seja a força
motivadora da tradição dos romances históricos-regionalistas do Rio Grande do Sul ainda nos
dias de hoje.
É importante citar também que a autora procurou reproduzir nas falas dos personagens a
linguagem dos gaúchos. Devido à colonização espanhola na região dos pampas, os gaúchos
adotaram algumas palavras e expressões do idioma espanhol. Para reportar fidelidade à região
retratada, a autora reportou esse “empréstimo idiomático” também a seus personagens. Nota-se a
97
ocorrência de palavras como hijo, mui, madre, padre, bueno, hombre, peleja do pronome le e de
expressões como Que passa?, além do tratamento da época, vosmecê. Essas marcas aparecem no
discurso direto dos personagens gaúchos, em suas cartas e no diário de Manuela. Portanto, a
preocupação em representar a linguagem de uma determinada região é uma forma de caracterizar
e delimitar a identidade do povo gaúcho.
O que chama atenção a respeito dos personagens é a maneira como eles são apresentados
no decorrer do romance. Como foi afirmado, a autora pesquisou a história da família de Bento
Gonçalves. Assim, ao apresentar os personagens considerados “entidades imigrantes”, são
colocados seus nomes completos, de forma a proporcionar um pacto de verossimilhança, pois,
conforme Aguiar e Silva (1986, p. 704) “o nome é um elemento importante na caracterização da
personagem, tal como acontece na vida civil em relação a cada indivíduo”. Uma vez que grande
parte dos personagens são entidades imigrantes de um meio social real, o nome torna-se uma pré-
característica importante do personagem. Além disso, a amostra de nomes e sobrenomes
demonstra nobreza, status social, caracterizando-os como pessoas da elite: “Joaquim Gonçalves
da Silva guia seu zaino pelo caminho que leva à Estância de Pedras Brancas”
122
. Em
contraponto, os personagens escravos são tratados por seus apelidos ou apenas pelo primeiro
nome, enfatizando sua condição de servidores, de localização inferior na escala social.
Nota-se uma diferenciação no tratamento devido à condição de escravos, os quais têm
importância secundária no romance e na sociedade da época retratada. O personagem Pedra,
por exemplo, possui certo status que o coloca acima dos outros da mesma condição que ele. Ele
era o homem de confiança de D. Ana Joaquina, um escravo extremamente fiel e íntegro. Apesar
de suas qualidades, este era tratado pelo apelido, como os outros escravos, e, na ocasião, não
obteve privilégios, partindo para a guerra com os demais.
Congo, Xica, Beata e Netinho são outros escravos presentes na narrativa. São eles os
responsáveis em grande parte pelo funcionamento das estâncias. O tratamento desses escravos é
diferenciado no romance; são considerados praticamente membros da família. Porém, não
recebem o mesmo tratamento formal como as donas e donos das estâncias. Muitos têm apelidos
de acordo com alguma característica específica e são tratados de maneira informal, distinguindo
dos demais personagens. Mesmo “íntimos” da família, ainda continuam sendo escravos.
122
Idem, p. 29.
98
também personagens que são escravos e criadas, mas sequer são tratados pelo nome
ou por um apelido. É o caso da criada de Manuela, que está sempre a sua volta e de outras
criadas das Estâncias. Elas têm voz, mas aparecem exercendo suas funções ou para trazer
notícias do mundo exterior. São personagens mais do que secundários no romance, como o eram
naquela sociedade.
Porém, ao mesmo tempo em que é nítida a grande discrepância entre esses escravos que
convivem numa sociedade tão díspar quanto a dos demais personagens, as duas incidências
culturais acabam conjugadas no texto a partir de uma junção pela diferença e não pelas
semelhanças. Todos se voltam para um único foco em comum, a guerra, deixando de lado as
diferenças que os distinguem, lutando lado a lado nos campos de batalha e sofrendo, também, a
angústia da espera.
4.3. Elementos míticos, místicos e simbólicos
Tecer era tudo que fazia. Tecer era tudo o que queria
fazer.
Marina Colasanti
123
No sentido de resgatar a construção da identidade de um povo, os mitos, os símbolos, as
crenças e as ideologias assumem um papel sacralizador pela literatura. Segundo Zilá Bernd
(1992, p. 21),
a literatura atua em determinados momentos históricos no sentido da união da
comunidade em torno de seus mitos fundadores, de seu imaginário ou de sua
ideologia, tendendo a uma homogeneização discursiva, à fabricação de uma
palavra exclusiva, ou seja, aquela que pratica uma ocultação sistemática do
outro, ou uma representação inventada do outro.
123
COLASANTI, Marina. A moça tecelã. In: Doze reis e a moça no labirinto do vento. São Paulo: Círculo do Livro,
1982, p. 10.
99
No romance, esse “outro” é o negro na condição de escravo, e o índio, como soldado. Em
geral, essa era a condição desses indivíduos na região Sul. Ao resgatá-los, aprofunda-se a noção
de nação para uma forma heterogênea e mais completa.
Com isso, ao investir em uma “mitologia da origem e do enraizamento”
124
de forma
sacralizadora, épica ou trágica, de uma nação, a escritora constrói uma idéia de identidade
nacional, uma vez que “a literatura faz o país e que o país faz a literatura” (MARCOTTE apud
BERND, 1992, p. 21).
Dessa forma, há vários elementos míticos, místicos e simbólicos subjacentes em Um farol
no pampa. Um desses elementos é o ato de bordar/fiar ou de fiar, uma constante durante o
percurso do romance. Sem ter o que fazer e sendo esta uma atividade tida como exclusivamente
feminina na época, as mulheres estancieiras se dedicam ao trabalho de bordar e fiar enquanto
esperavam que seus maridos, filhos e parentes retornassem da guerra. Trata-se de uma metáfora
metatextual do fiar” romanesco: os vários “bordados” formando a obra literária. Além disso,
esse ato remete ao mito de Penélope
125
, além de apontar para uma temática de cunho feminino
que congrega, simultaneamente, a espera amorosa, a carência afetiva e a criação dessas mulheres.
Estes aspectos foram contemplados praticamente em todas as literaturas, contextos e épocas, da
Odisséia até ao Um farol no pampa. Enquanto os homens viviam nos campos de batalha, as
mulheres ficavam trancafiadas nas estâncias, esperando e bordando. Um exemplo declarado é
quando Manuela decide costurar seu próprio vestido de noiva a fim de esperar por seu sonhado
Garibaldi: “Mandei comprar cetim branco e pus-me então a costurar o mais demorado vestido
que jamais se fez nesta terra. Eu era a Penélope esperando Ulisses, e a cada dia dava um ponto ou
dois no meu trabalho” (
WIERZCHOWSKI,
2004, p. 147). Como não sabe o dia da possível
chegada de seu futuro esposo, agora viúvo de Anita, ela prolonga seu trabalho, como faz
Penélope que desmanchava seu trabalho para despistar os pretendentes e ter mais tempo para que
Ulisses regresse: “Ainda não estava completamente terminado o trabalho de preencher as flores
124
Idem, p. 21.
125
Penélope era esposa de Ulisses e ficou famosa pela fidelidade ao marido, posta à prova numa espera de vinte anos
enquanto ele estava ausente na guerra de Tróia e na longa viagem de volta à pátria. Diante do prolongamento da
ausência de Ulisses, surgiram pretendentes para cortejar Penélope. Para não ter que escolher nenhum deles, ela
passa a tecer uma mortalha para Laerte, pai de Ulisses, e, assim que a terminasse, faria a escolha. Porém, à noite,
ela desfazia o trabalho realizado durante o dia. (KURY, 2001, p. 313).
100
do peitilho a cada dia inventava um novo arranjo, um bordado a mais, qualquer coisa que
permitisse o seu lavoro, infindável”
126
.
Ilustração 3: Tela Penélope tecendo, de Stradono
A esposa Penélope é uma personagem emblemática da fidelidade e da obediência
feminina. A serenidade e a confiança dessa personagem mítica é bem representada na obra de
Stradono, mostrada acima. No entanto, esse mito aparece alterado no romance em estudo, uma
vez que, no caso de Inácia, esta não espera o retorno do futuro marido por considerá-lo morto e se
casa com outro. O inverso acontece também com Manuela, que passou toda sua vida fiel a
Garibaldi, porém, este não retorna. No entanto, ambas tecem e bordam, conforme a tradição
cultural e literárias.
Com relação a Inácia, ela ampara suas grimas com seu bordado. Quando a guerra ainda
está no início, ela declara, em uma carta a Matias, sua espera tumultuada por insegurança e
receio: “Ah, estes meus bordados, eles guardam em si a minha angústia e o meu medo,
Matias...”
127
.
Isolada na Estância do Salso e sem notícias de Matias, Inácia passa a temer que o noivo
esteja morto. Angustiada, ela “sente raiva dessas mãos, cujo maior lavor é escrever, é bordar um
enxoval que talvez jamais deixe a arca de madeira ao da cama, o enxoval com as letras dos
dois nomes trançadas em fio de seda, a letra I e a letra M(WIERZCHOWSKI, 2004, p. 310).
126
Idem, p. 164.
127
Idem, p. 270.
101
Inácia não se mostra confiante no retorno de Matias e borda suas iniciais sem convicção. Dessa
forma, a tarefa torna-se um fardo e o destino do casal é ameaçado.
Aos seus vinte e três anos de idade, Inácia, considera-se jovem e, no limite de sua agonia
e espera, recebe a notícia de que Matias estaria morto. Diante disso, cortejada por Bernardino de
Almeida e pressionada pela mãe, Perpétua, de que ele era um bom partido, ela acaba se rendendo
aos desejos da mãe, considerando também que essa seria a melhor atitude a tomar, uma vez que
“Matias tinha morrido e ela estava viva, viva, viva. Por mais que odiasse aquilo, estava viva. E
Bernardino amava-a”
128
. Assim, há uma deturpação do mito de Penélope. Apesar da promessa de
retorno de Matias, Inácia acredita na notícia da provável morte do noivo que Bernardino envia a
Inácia. Com o coração saturado pela espera, ela prefere aceitar a morte de Matias, mesmo a
informação sendo duvidosa, baseada em suposições:
Embora tal informação possa estar errada, o que le tenho a contar não creio,
ainda assim preciso comunicar à senhorita que o senhor Matias foi ferido na
batalha de Tuiuti [...], estando gravemente ferido no pulmão direito e vítima de
uma febre adquirida nos charcos paraguaios. Tal fato se deu três dias após a
batalha de Tuiuti, e dele não constam mais registros, o que faz supor que pereceu
dos graves ferimentos sofridos em campanha.
129
Inácia difere das demais mulheres da família ao mostrar-se impaciente e sem esperanças,
e, na primeira notícia da provável morte de Matias, ela acredita sem contestar. Demonstra
também que, ao contrário de sua avó sensitiva, ela não pressente que a notícia pode ser falsa e
não a questiona em nenhum momento.
Ao mesmo tempo em que se constata o mito de Penélope, deve-se lembrar que o ato de
bordar e de fiar faz também remissão às Parcas
130
, que são, na mitologia romana, três mulheres
responsáveis por tecer o destino dos homens. Essa relação fica visível no primeiro capítulo,
quando Caetana está tentando bordar as iniciais do marido, Bento Gonçalves da Silva.
128
Idem, p. 362.
129
Idem, p. 347.
130
“Divindades do destino em Roma, identificadas com as Moiras dos gregos [...]. Em sua origem, as Parcas
provavelmente eram demônios ligados ao nascimento, porém ganharam com o tempo as características mais
abrangentes de seu modelo grego. Elas apareciam como fiandeiras, fixando a duração da vida humana. A
exemplo das Moiras, as Parcas eram três irmãs que determinavam o nascimento, o casamento e a morte das
criaturas humanas.” (KURY, 2001, p. 304).
102
Caetana Joana Francisca Garcia Gonçalves da Silva borda as iniciai do esposo
num lenço de linho branco. Começou este trabalho na noite anterior, e agora não
pode pará-lo, não ousa deixá-lo de lado, como se tudo dependesse dele, a vida e
a morte, dessa finíssima fímbria de algodão.
131
“Caetana borda é para não sentir”
132
. Com a linha vermelha, que simboliza ligação à
morte, ela borda, com certa dificuldade e resistência, o destino de seu marido sobre o linho
branco, o qual simboliza a vida (CHEVALIER, 1988, p. 431; 944). Além disso, ainda conforme
Chevalier (1988, p. 641), “escrevendo ou pronunciando o nome de uma pessoa, faz-se com que
ela viva ou sobreviva [...]; o conhecimento do nome proporciona poder sobre a pessoa: aspecto
mágico”. O desejo de Caetana é abreviar o sofrimento de Bento ao mesmo tempo em que um
fio de esperança de que ele resista.
O pensamento, esse lhe escapa, inquieto, rondando o trabalho laborioso da
agulha, tecendo com ela a trama dos fios de seda, e segue, como um cavalo sem
freio, rumo aos despenhadeiros da sua angústia. (WIERZCHOWSKI, 2004,
p.23)
Mesmo com medo de perder o esposo, ela continua a bordar as iniciais em fio vermelho
sobre o linho branco numa tentativa de fiar seu destino. A cor branca e a cor vermelha possuem
significados ambivalentes: as duas cores tanto podem simbolizar a vida como a morte
(CHEVALIER, 1988, p. 142; 944) Dessa forma, é apresentada a dicotomia morte-vida, e nesse
caso, a espera é outra: a chegada da morte; a passagem para ‘outra vida’ (renascimento). Assim, o
mito de Penélope e o das Parcas fundem-se em Caetana. Após dar o último ponto no bordado, ela
vai até o quarto se despedir de Bento, pois sabe que a hora dele morrer está próxima e que sua
espera terminará.
Contudo, é pela morte que o herói recebe sua glória e é reconhecido finalmente pelos seus
feitos. Vida e morte sempre andam juntas e é por ambas que se constrói o “homem ilustre”. Bento
Gonçalves era um herói para os gaúchos, um homem ilustre. O gesto de Caetana apenas
contribui para eternizar o seu nome e sua importância.
Uma remissão clara da importância do ato de costurar e bordar na vida das mulheres da
obra em questão está presente na própria capa do livro, ilustrada pela tela intitulada Mesa com
cinco carretéis (1959), do pintor Iberê Camargo.
131
Idem, p. 23.
132
Idem, p. 23.
103
Ilustração 4: Mesa com cinco carretéis, de Iberê Camargo
Nesta tela, cinco carretéis empilhados, em cima de uma pequena mesa, de maneira a
formar um castiçal. A escolha por esse formato remete a imagem do farol apresentado no título e
os carretéis simbolizam a figurativização feminina e o ato de bordar, prática recorrente no
romance. Este quadro é reproduzido na capa do livro, na sua edição de 2004.
Outro exemplo da presença do mito das Parcas no romance está em um dos capítulos
Olhos de Vidro, no qual o menino Matias compara o futuro com uma colcha que sua avó tecia:
“Mas o amanhã era como a colcha que avó Antônia tecia, era um sem-fim de pontos atrelados,
eram os dias que se desdobravam, enquanto ele virava homem [...]”(
WIERZCHOWSKI,
2004,
p.161). A simbologia da colcha remete à idéia de acolhimento, proteção, como também à união
de “tecidos”, ou seja, a construção textual por meio de diversos tipos de narrativas,
estabelecendo, assim, uma metáfora metatextual: a tessitura da obra literária. Como foi visto, o
romance é composto por trechos de jornal, cartas, diário e notícias. Unindo todos esses “pontos”
são “cosidos” a história e o destino dos personagens. Assim, o texto se constrói de textos; a
junção de várias narrativas que se congregam para um mesmo fim.
A metáfora do bordar e do costurar também dá conta da ansiedade dos personagens
femininos à espera de paz e do reencontro, juntando fragmentos de suas vidas, emoções e
sentimentos, assim como representa as características pós-modernas de analisar, reinterpretar,
104
reescrever, juntar fragmentos dispersos, sugerir reflexão, incluindo as margens e corporificando
um campo de interpretações abrangente. O bordado configura-se como um escapismo, algo para
amenizar o sofrimento e não ver a passagem do tempo. Contudo, mostra-se também um ato
extremamente reflexivo e questionador, criando uma atmosfera complexa, simbólica e analítica.
Constantemente, é possível notar que algumas mulheres do romance se assemelham à
Sibila
133
, sacerdotisa grega dotada de poderes proféticos. D. Antônia é uma delas. Através de
sonhos e de pressentimentos, prevê rias acontecimentos que realmente acabam acontecendo.
Antes de morrer, ela prevê a chegada de uma nova guerra: “Tenho um pressentimento, um
pressentimento ruim. Vem guerra por aí”
134
. mais madura Maria Angélica mostra-se também
crente em presságios e demonstra iniciar-se no ato de profetizar:
Imaginava que daria ao marido outra menina. Um pressentimento... Dizia que
pressentimentos não passavam de caprichos, mas ela testemunhara D. Antônia
ouvir as vozes da sua alma durante toda a sua vida, e a tia jamais se enganara.
Não tinha sido D. Antônia, afinal de contas, quem lhe dissera que teria onze
filhos?
135
partes do romance em que constatamos uma voz profética que fala para Maria
Angélica coisas que aconteceram e que vão acontecer em sua vida. É como se fosse um ser
onipresente e onipotente: “Pela oitava vez teu ventre está cheio, Maria Angélica. Tens sete
filhos da tua carne, o último deles é esta menina que dorme em teu colo, sem saber que o mundo
que a acolheu está em guerra” (
WIERZCHOWSKI,
2004, p.255). Essa “voz” tem conhecimento de
tudo, até mesmo dos sentimentos mais recônditos de Maria Angélica.
133
Sibila é “um dos nomes da sacerdotisa incumbida de proferir os oráculos de Apolo. A primeira Sibila teria sido
uma moça com esse nome [...]. Dotada de poderes proféticos, ela tornou-se a tal ponto famosa como adivinha que
todas as profetisas passaram a ter esse nome.” (KURY, 2001, p. 356).
134
Idem, p. 187.
135
Idem, p. 287.
105
Ilustração 5: A Sibila de Delfos, de Michelângelo
Caetana também mostra-se sensitiva, com os olhos voltados para o futuro, como a Sibila
de Delfos. No casamento de sua neta Inácia com Bernardino, ela pressente algo errado. Mesmo
tendo gostado da união da neta que “havia perdido” o noivo na guerra, Caetana sente “um
incômodo, uma coisa fininha, irritante, alguma coisa como um espinho invisível, ficara
alfinetando a sua alma”
136
. Passado certo tempo, ela descobre o que era essa impressão ao
receber uma carta de seu filho Marco Antônio, na qual anunciava que Matias estava vivo. Com
isso, ela se indaga o motivo pelo qual deixara de ouvir seus pressentimentos, deturpando, desta
maneira, o mito sibilino.
Com relação à simbologia feminina, no final do romance, após receber a notícia da morte
de Garibaldi, Manuela compara-se a uma árvore.
E ela, ela mesma é aquela árvore que o jornal cita. [...] Aquela árvore gigantesca
que tombou após o funeral de Giuseppe, aquela árvore cujo desmoronar
impressionou a todos e ainda impressionará para sempre aqueles que
conhecerem a história; aquela árvore é ela.
Sempre foi uma árvore na vida de Giuseppe Garibaldi.
Por isso ficou.
Por isso deixou-se ficar, raízes plantadas na terra do Rio Grande, olhos e copa
fitos no céu, enquanto os anos e os invernos se sucediam.[...]
137
136
Idem, p. 391.
137
Idem, p. 501.
106
Manuela é a própria árvore fincada nos pampas gaúchos. Ela passou quarenta anos à beira
da janela do seu quarto olhando a rua à espera de seu amado. Foi fiel a ele como Penélope, mas a
espera foi vã. O tempo passou e ele não veio. Ela, com suas raízes fincadas nas terras que a
fecundaram, assumiu o passatempo da escritura para manter seu amor e sua esperança vivos, mas,
principalmente, para registrar sua história como também dos pampas onde viveu (“É preciso
anotar isso no livro. Algum dia alguém haverá de ler.”
138
). Seus frutos são os vinte cadernos que
se dedicou a escrever com sua letra elegante. Além da costumeira quebra do mito, aqui, neste
episódio, a transmutação da dor da personagem em escrita. Seu caderno passa a ter,
simbolicamente, o poder de transformar o sofrimento em literatura. Vê-se a competência e a
arte literária da autora do romance.
Outro elemento simbologicamente muito expressivo é o farol. Assim como ele é utilizado
para orientar os navegantes, no texto o farol tem função semelhante: a de orientar o leitor pela
história do romance e da Guerra do Paraguai. A luz do farol é quem guia o leitor pelo romance e
pelos entremeios da História, utilizada como mais um recurso metatextual. Contudo, essa luz dá
voltas em torno de um eixo; portanto, o caminho não possui uma “luz constante”, ocorrendo
momentos obscuros como também no direcionamento por várias histórias do romance. E nesses
entremeios, também brechas a serem preenchidas pelo leitor, que estabelecerá ele próprio o
caminho de sua leitura.
Além disso, o farol representa o duo vida/morte presente em todo o romance. Uma das
cenas em que essa dualidade fica evidente é quando Antônio, filho de Matias, vai até o farol
durante a noite e encontra uma bela jovem. Porém, essa jovem não estava viva, pois, no final do
romance, entende-se que ela é a filha de Inácia, Carmosina, que havia morrido aos quatro anos de
idade. Com isso, é introduzida, também, a questão do maravilhoso na obra.
O símbolo do farol remete igualmente ao fogo. Era o fogo que produzia a luz que
orientava os “navegantes” por seus caminhos, indicando-lhes as possibilidades de trajeto. Na
última página do romance, esse mesmo fogo que iluminou toda a história é alimentado pelos
diários de Manuela: “No dia seguinte, ao cair da tarde, os cadernos de Manuela conheceram o
fogo” (
WIERZCHOWSKI,
2004, p.529). Os cadernos que conduziram Antônio e o leitor pela
história, agora passam essa função ao fogo, que deveriam consumi-los. Logo, nota-se mais uma
138
Idem, p. 502.
107
metáfora textual: o mesmo fogo que grava no papel a escrita é também capaz de consumir uma
obra literária.
Além disso, o farol pode ser visto como um símbolo fálico, ocorrendo, assim, uma díade
com o primeiro livro, no qual há a simbologia da casa, que remete à proteção, ao seio maternal, e
ao órgão genital feminino (CHEVALIER, 1988, p. 197). A união dos dois símbolos, a casa e o
farol, induz a um tratamento gestativo e reprodutor da História, simbólico na recuperação do
passado.
Outro aspecto simbólico importante no romance é o da viagem, citada rapidamente no
capítulo anterior. no romance um retorno nostálgico ao passado, além dos constantes
deslocamentos espaciais (viagens) dos personagens principais. A viagem simboliza a busca da
verdade, do conhecimento e da paz, como também remete a uma aventura, ou até mesmo à fuga
de si mesmo. No caso de Matias, ele parte para a guerra à procura de vivenciar o ideal gaúcho, da
sua identidade e da “verdade”, uma vez que ele passou sua infância ouvindo os feitos de heróis
como Garibaldi. Ao retornar da guerra, a desilusão amorosa, e ele parte para o Rio de Janeiro,
o que poderia ser visto ainda como uma fuga e também como busca pela paz. Logo, Antônio
busca conhecer o passado do pai e viaja para o Rio Grande do Sul. Além disso, viagens
metaforizadas, como os devaneios de Manuela, construindo seu próprio espaço, e a passagem
para outro plano pela morte. Pode-se dizer que Manuela dedica-se à escritura não apenas para
“viajar” pelas histórias, mas para sentir-se viva, de manter-se viva, para não morrer.
também no romance algumas manifestações referentes ao folclore gaúcho. São apenas
passagens curtas, inseridas principalmente na série de capítulos Olhos de Vidro. Lendas como o
Negrinho do Pastoreio
139
(“Acenderam velas pro Negrinho do Pastoreio”) e a Teinaguá
140
(“[...] a
Teinaguá tinha olhos de fogo.”) aparecem como fruto de histórias contadas por Dona Antônia a
Matias quando este era criança (
WIERZCHOWSKI, 2004,
p. 132-133). Além disso, no romance
139
“Tradição popular do Rio Grande do Sul, em sua zona pastoril. Um negrinho, escravo de estancieiro rico e mau,
somítico e perverso, perdeu a tropilha de cavalos baios que pastoreava, e foi mandado surrar barbaramente pelo
amo. Ainda sangrando, atiraram-no dentro de um formigueiro, onde o negrinho faleceu. Reapareceu, na lenda
compensadora do martírio, montando um baio à frente de uma nova tropilha, invisível, mas identificável pelo
som, percorrendo as campinas. É afilhado de Nossa Senhora, e a quem lhe promete cotos de velas, o Negrinho
do Pastoreio faz encontrar objetos perdidos” (CASCUDO, 1980, p. 522-523).
140
“É um lagarto encantado, que possui na cabeça uma pedra preciosa, um carbúnculo cintilante. Numa lenda do
Rio Grande do Sul, um sacristão da igreja de São Tomé conseguiu aprisionar o teiniaguá, que se transformava
em linda moça. Preso e condenado à morte, por ter quase abandonado o serviço e cometido sacrilégio, o
sacristão foi libertado pelo lagarto e conduzido para a serra do Jarau, onde ainda vive, guardando os tesouros
ocultos na ‘Salamanca’” (CASCUDO, 1980, p. 743).
108
encontram-se também alguma referência à cultura dos escravos (“Ela, Manuela, era uma espécie
de amuleto enterrado nas funduras da terra, como um daqueles santos que os negros às vezes
enterravam nas encruzilhadas para afastar os maus espíritos.”
141
). Isso demonstra a diversidade
cultural da região Sul e o entrelaçamento entre as culturas. No entanto, são poucos os trechos em
que essas culturas são apresentadas, formando, assim, apenas um painel cultural amplo e
superficial. De toda maneira, este painel serve para reforçar o projeto literário da autora, que seja
o de realizar, tal como o havia feito Érico Veríssimo, um retrato do Rio Grande na História.
É importante ressaltar que a religiosidade é a arma das mulheres, que, no caso, seguem a
religião católica. Sempre quando guerra ou quando necessitam proteção em situações difíceis,
elas se unem para rezar. Em certas ocasiões, essas preces são colocadas em questão pelos
próprios pensamentos das mulheres, pois, por mais que rezem a Deus e aos santos, sempre algum
ruim acontece. Manuela não acredita mais na existência divina: “Faz tempo que descobri que
Deus não existe, de modo que estamos sem qualquer juiz”
142
. Matias é outro personagem que
perde sua em Deus: “Fez o sinal-da-cruz, embora acreditasse cada vez menos que um deus
estivesse zelando pelas almas em meio àquele horror”
143
. Com o fardo de um Estado sempre
envolto em guerras, os personagens passam a colocar em dúvida a existência de um Deus diante
de tanto horror e mortes. Trata-se, pois, de um aspecto daquela sociedade e daquele tempo que é
registrado pela literatura de Leticia Wierzchowski.
Outro símbolo recorrente em todo o romance são os olhos. Além do título de um dos
capítulos apresentarem esse signo, nota-se a constante repetição da palavra “olhos”, a qual vem
sempre acompanhada de um adjetivo: “olhos tristes”, “olhos passivos”, “olhos assustados”,
“olhos de tenente”, dentre outros. Isso caracteriza e simboliza a pluralidade de visões acerca da
História, como as várias vozes e aspectos expressivos dos personagens. Cada voz possui a sua
visão, o seu olhar, mais crítico ou mais horrorizado, como também expressa a identidade da
pessoa, o seu interior. Conforme Silviano Santiago (1989, p. 49), “olha-se para dar razão e
finalidade à vida”. Assim, o interior e a percepção intelectual dos personagens são mostrados
através do olhar. O romance enriquece-se com esta pluralidade de perspectivas, os quais fazem
ponte com a polifonia.
141
Idem, p. 501.
142
Idem, p. 328.
143
Idem, p. 315.
109
O mito de que o Minuano
144
, vento frio e seco que “durava três dias e três noites”
145
,
típico da região do Rio Grande do Sul, traz acontecimentos ou notícias ruins é uma forte crença
sulina. Ela também é mostrada no romance. Essa analogia acerca do Minuano é vista na obra O
tempo e o vento, na qual ele é considerado anunciador de maus presságios pelos personagens
femininos Ana Terra e Bibiana Terra Cambará -, passando essa crença de geração a geração.
Em Um farol no pampa, com as desordens” acontecendo no Uruguai e sentido a fragilidade de
sua saúde, é o personagem Inácio, esposo de Perpétua, que sente o aviso do Minuano: “Na
verdade, este inverno não começou bem. Ele sente um aviso no vento e tem ouvido coisas”
146
.
Passado um tempo, Inácio morre e a proximidade da guerra começa a abalar a região Sul.
Segundo Zilá Bernd (1992, p. 55),
A História retém os fatos que correspondem, de algum modo, às exigências do
momento e aos preconceitos do vencedor. Libertando o saber intuitivo,
manifesto nos mitos, nas tradições orais e nos ritos religiosos de uma
comunidade, o escritor resgata fragmentos da História, secretada no inconsciente
da comunidade, impossíveis de serem acessados de outro modo.
Dessa maneira, os mitos, os símbolos, as tradições e a cultura de um povo corroboram
para o despertar e para o resgate da história. Esses elementos assumem a missão de indicadores
dos vestígios da história em uma ficção, o que vem ao encontro da proposta de Um farol no
pampa.
Ao resgatar a cultura européia, uma vez que o país sofreu influência dela e o Rio Grande
do Sul mais do que outras regiões do país, a escritora procurou resgatar as raízes da tradição
juntamente pelo folclore local e a cultura dos índios e escravos.
Além disso, esses elementos míticos, místicos e simbólicos são mecanismos ficcionais
que se contrapõem com a realidade factual, contribuindo para a ficcionalização e a
verossimilhança do retrato da época, produzindo o efeito estético e literário, almejados por
Leticia. São recursos de construção textual muito utilizados em metaficções e em obras
modernas, que demonstram a contemporaneidade e a qualidade do romance em estudo. A autora
desloca os elementos de um universo específico, recria e transforma os elementos míticos para
144
“Vento forte, frio e cortante que sopra no Rio Grande do Sul depois das chuvas de inverno” (HOUAISS, 2001, p.
1928).
145
Idem, p. 132.
146
Idem, p. 126.
110
resgatá-lo em uma consciência moderna, colocando em jogo passado e presente. Com isso, ela
constrói um grande romance brasileiro contemporâneo, repetindo a tradição regionalista e dando
a constituir inovadora.
111
5. Conclusões
Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra
sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e
volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o
sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai
girando o vento, e volta fazendo seus circuitos.
Eclesiastes, I: 4, 5, 6
Ao final deste estudo foi possível concluir que Um farol no pampa segue o rastro do
romance histórico, mas possui várias características que poderiam levá-lo e ser considerado
metaficção historiográfica: a autora utiliza técnicas modernas e voz a personagens femininos,
distoando dos enredos masculinos da tradicional literatura gaúcha.
A fragmentação textual, a polifonia, a digressão temporal, a multiplicidade de neros
narrativos e os questionamentos dos personagens comprovam o caráter metaficcional da obra.
Além disso, o romance é envolto em metáforas metatextuais e apresenta uma riqueza de
símbolos, comprovando as características pós-modernas do romance.
É importante salientar que as rememorações, os diversos gêneros textuais e os
anacronismos que compõem o texto são aspectos considerados responsáveis pela ruptura da
linearidade temporal, uma das principais características contemporâneas presentes na obra em
questão.
A história vivida pelos “personagens históricos”, ou melhor, das “entidades imigrantes”
do Rio Grande do Sul é reconstruída pelo amalgamar de fato histórico e ficção. Como na ficção
não uma fronteira delimitada entre o “reale o imaginário, o processo literário fica a cargo do
escritor, livre para dar vazão à sua criação, cabendo ao leitor contribuir com sua visão de mundo
e imaginação para interpretação e complementação da obra. Assim, pelos mecanismos ficcionais
e por recusar a disposição imediata da história oficial, possibilitando a abertura de dúvidas
salutares, foi construído Um farol no pampa, um romance que toma como base o romance
histórico tradicional, reformulando sua construção a partir da diferença entre perspectivas de um
mesmo acontecimento histórico, além de introduzir elementos estéticos dos romances
contemporâneos.
112
A seleção dos fatos históricos e dos personagens demonstra a preocupação da autora com
o caráter documental da obra. Ela utiliza a versão oficial da Guerra do Paraguai, colocando-a em
contraponto aos diálogos e cartas de seus personagens. Com isso, ocorre o questionamento do
monolitismo do discurso histórico oficial, e mostra a realidade sanguinolenta dos campos de
batalha. A escassez de informações sobre os motivos da guerra e a indignação perante tantas
mortes e tanto sofrimento. Nesse sentido, trata-se de um romance denunciador, não apenas da
guerra, mas também da interpretação que se fez dela.
Portanto, pela trajetória de Matias e por seu olhar marcado pela violência e crueldade da
guerra, é redimensionada e reavaliada a imagem que os discursos ratificadores do poder haviam
tecido para garantir sua hegemonia.
No rastro do romance regionalista e rompendo os laços com a tradição de romances
históricos exclusivamente masculinos, Leticia Wierzchowski assume uma escrita nova em que a
ficção desterritorializa a história oficial, para lê-la por um viés inesperado: pelas mulheres e pelos
soldados, que possuem papel secundário, no caso das mulheres, praticamente nenhum, nos
documentos históricos e nas narrativas tradicionais sobre a Guerra do Paraguai. Além disso, é
representada no romance a identidade gaúcha, sua tradição e seus tabus, como do homem
guerreiro, que não foge de uma “peleja” e que honra suas raízes e seus preceitos.
Dessa maneira, o trabalho pôde apresentar não o estudo e a definição classificatória da
obra em questão, como realizar sua contextualização no âmbito da literatura regional,
especificamente da gaúcha. Por isso, pôde-se entender a escolha pela ficção histórica, as marcas
regionais acentuadas e a inovação sobre esses aspectos literários herdados de 1849, com Caldre e
Fião, até por volta de 1930, quando Érico Veríssimo iniciou sua trajetória de romancista.
Foi seguindo sua herança que a escritora gaúcha envereda pela temática histórica. O curso
da História é o fio condutor que dirige as histórias ficcionais contadas no romance,
principalmente a de Matias e Inácia. Baseado em “entidades imigrantes” de uma família rio-
grandense de prestígio e em fatos verídicos, o romance é construído pela transformação da
realidade histórica em ficção, valendo-se de um olhar crítico e questionador.
No entanto, a relação entre História e Literatura vai além da representação mimética ou
factual, quer no romance histórico, quer na metaficção historiográfica. O foco está na análise da
forma como o escritor manuseia a História para gerar sua ficção, ou seja, na escolha dos
113
elementos estéticos e da perspectiva histórica e na maneira como ambos são juntamente
trabalhados.
Neste estudo foi possível verificar também o processo intertextual que se estabelece em
relação a obras de outros escritores, principalmente quanto aos cânones da literatura rio-
grandense, como a textos de Érico Veríssimo. À medida que a autora segue seus antecessores,
construindo um mosaico de citações, ela também delimita e marca seu estilo e sua singularidade.
No entanto, ao fazer referência a textos historiográficos e ao estabelecer diálogo com
outros textos, que tenham ou não abordado o mesmo fato histórico, constata-se, também, o
caráter paródico da narrativa. Esta anda ao lado da história da Guerra do Paraguai, apropriando-se
de sua semelhança para sugerir concretamente outra possibilidade de leitura.
A construção do romance ocorre de forma híbrida, com vários textos, tempos e espaços
misturados, objetivando estabelecer reflexões com a questão histórica, política e cultural,
valendo-se também da metatextualidade, produzindo um efeito estético e, ao mesmo tempo,
ético. No entanto, a autora enfatiza demasiadamente o horror da guerra, a fim de ressaltar a
repulsa dos habitantes perante um conflito visivelmente sem motivos nobres e que serviu, além
de atender necessidades e interesses das elites, apenas para devastar as cidades e o povo da
região. Com isso, destaca-se a parte descritiva. Dessa forma, é possível constatar certa
semelhança da narrativa com um roteiro cinematográfico, devido ao conjunto de imagens que
adquire uma narrativa própria, o que enriquece ainda mais a obra, tornando-se uma leitura
prazerosa.
Com base nos conceitos apreendidos, é possível elencar alguns aspectos singulares do
romance, como a remissão à História através da trajetória de uma família rio-grandense ilustre e a
desmistificação do fato histórico através da posição e questionamentos levados a efeito pelos
personagens.
Dessa forma, a Guerra do Paraguai amalgamada com a ficção criada por Leticia
Wierzchowski contribui como mais uma versão do acontecimento, levando os leitores a repensar
o sentido da guerra e questionar o fato de ter sido tanto sangue derramado e tão poucas conquistas
realizadas. Ao mesmo tempo, o romance é enriquecido com uma base metatextual que apresenta
a tessitura do fazer literário; uma luz sobre a literatura.
O estudo do romance Um farol no pampa levou a refletir a relação desempenhada pelo
cruzamento de História e ficção e sobre as perspectivas possíveis sobre um fato histórico, como
114
também analisar o percurso do romance histórico de sua constituição até sua versão
contemporânea, a metaficção historiográfica. Com isso, nota-se o papel importante que a
literatura assume ao (re)contar a História, principalmente pelo viés questionador. Dessa forma, o
romance em questão reflete e avalia não apenas o acontecimento histórico como também a
produção literária, a arte e a cultura, de uma época e de um espaço geográfico, pela
metatextualidade.
Considerando, finalmente, as características do romance histórico tradicional e as de
metaficção historiográfica, Um farol no pampa oscila entre as duas tendências, valorizando, no
entanto, em sua composição, aspectos próprios a cada uma delas. Trata-se, portanto, de um
romance que, pelas características analisadas, possui um posicionamento artístico intertextual de
primeira linha. Surpreendentemente, ele constitui-se em um bom exemplar da literatura brasileira
atual, além de ser uma ficção histórica gaúcha de cunho feminino.
115
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Espanha – La casa de las siete mujeres – edição pocket (2005, Byblos)
Espanha – O pintor que escrevia (no prelo, Ediciones B)
Espanha – Um farol no pampa (no prelo, Ediciones B)
Itália – La casa delle sette donne (2004, Sonzogno Editore)
Portugal – A casa das sete mulheres (2003, Ambar)
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