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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO)
KÁTIA ALEXSANDRA DOS SANTOS
A HETEROGENEIDADE DO DISCURSO FEMININO: MULHER-EFEITO E SEUS
DESDOBRAMENTOS
MARINGÁ
2008
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KÁTIA ALEXSANDRA DOS SANTOS
A HETEROGENEIDADE DO DISCURSO FEMININO: MULHER-EFEITO E SEUS
DESDOBRAMENTOS
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras da Universidade
Estadual de Maringá, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Letras,
área de concentração: Estudos Lingüísticos.
Linha de Pesquisa: Estudo do Texto e do
Discurso.
Orientadora: Profª. Drª. Maria Aparecida
Honório.
MARINGÁ
2008
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1
Catalogação na Publicação
Fabiano de Queiroz Jucá – CRB 9/1249
Biblioteca Central da UNICENTRO, Campus Guarapuava
Santos, Kátia Alexsandra dos
S237h
A heterogeneidade do discurso feminino: mulher-efeito e seus
desdobramentos / Kátia Alexsandra dos Santos. – – Maringá, 2008
x, 123 f. : il. ; 28 cm
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Maringá,
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2008
Orientador: Maria Aparecida Honório
Banca examinadora: Pedro Luis Navarro Barbosa, Glacy
Queirós de Roure
Bibliografia
1. Mulher. 2. Heterogeneidade. 3. Discurso feminino. I. Título. II.
Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
CDD 305.4
2
KÁTIA ALEXSANDRA DOS SANTOS
A HETEROGENEIDADE DO DISCURSO FEMININO: MULHER-
EFEITO E SEUS DESDOBRAMENTOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras da Universidade Estadual
de Maringá, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Letras, área de
concentração: Estudos Lingüísticos.
Aprovado em 14 de abril de 2008.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Profª. Dr.ª Maria Aparecida Honório
Universidade Estadual de Maringá – UEM
- Presidente -
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Luis Navarro Barbosa
Universidade Estadual de Maringá – UEM
___________________________________________________________________
Profª Dra. Glacy Queirós de Roure
Universidade Católica de Goiás-UCG/Goiânia-GO
3
AGRADECIMENTOS
Á Ceci, pelo apoio, confiança e pela liberdade com que me orientou;
À minha família, por ser minha base de constituição e estar sempre presente,
mesmo quando eu estava ausente;
Às amigas queridas Aline e Elaine pela ajuda e amizade;
À CAPES, pelo apoio financeiro durante a realização da pesquisa;
Aos membros da banca, Pedro Navarro e Glacy Roure, pela leitura atenta e preciosa
contribuição no momento da qualificação;
Aos professores e funcionários do PLE, pelo auxílio e dedicação durante o período
do mestrado;
A todos os colegas do mestrado pelos bons momentos de troca, especialmente
Adriana, Renata, Juliana, entre muitos outros.
À Ana, querida, pelos bons momentos e discussões sobre outros assuntos, que me
possibiitaram fugir da dissertação;
Ao Alessandro pela presença e incentivo na finalização do trabalho;
Às mulheres entrevistadas, pela disponibilidade em fornecer suas falas, sem as
quais não seria possível desenvolver este trabalho.
Enfim, a todas as pessoas que se envolveram direta ou indiretamente neste
trabalho.
4
DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado a minha mãe Maria, uma Maria entre as tantas marias
mulheres.
Mãe, você merece essa dedicatória por ser meu referencial de mulher, por ser a
mãe, a amiga, a pessoa que conjuga todos os papéis possíveis para uma grande
mulher.
5
“Não me venha falar da malícia de toda mulher,
cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é...”
Caetano Veloso
6
RESUMO
Tendo como contexto as novas configurações pelas quais passam homens e
mulheres na contemporaneidade, este trabalho tem como objetivo pensar o efeito
identitário da mulher a partir do discurso que ela faz circular sobre si mesma.
Cremos que dessa forma é possível investigar quem é a mulher contemporânea:
pela sua própria palavra, pelo seu discurso, que é a partir dele que nos
configuramos como sujeito, se considerarmos que o discurso é a via de
materialização da ideologia e essa é a “condição para a constituição do sujeito e dos
sentidos” (ORLANDI, 2002: 46). A base teórica e analítica parte dos pressupostos da
Análise do Discurso de linha francesa (AD), sobretudo no que diz respeito aos
conceitos de heterogeneidade e de forma-sujeito. A Psicanálise auxiliou em nossas
reflexões teóricas ao postular uma noção de sujeito desejante e da mulher como
sintoma. Com isso em vista, analisamos um corpus constituído por 10 (dez)
entrevistas realizadas com mulheres de perfis diversificados. As entrevistas partiram
da seguinte questão: “Você gosta de ser mulher? Por quê?”. A partir desse corpus,
descrevemos o processo de interpelação da mulher, o que chamamos de “efeito-
mulher”. Na descrição/interpretação feita, observamos ainda o que “escapa” dessa
interpelação, o que fura na teia discursiva tecida pela mulher contemporânea. As
análises que fizemos apontam para os seguintes resultados: a mulher atual tem se
situado na posição determinada para ela pelas práticas discursivas masculinas, as
quais são produto da história e da ideologia que se materializa no discurso
dominante: o masculino. Entretanto, a heterogeneidade inerente à constituição do
sujeito faz com que essa interpelação o se dê de forma completa, o que se pode
verificar nos equívocos e faltas presentes no discurso feminino. Considerando esse
aspecto, podemos dizer que a mulher contemporânea reproduz um discurso
composto por formações discursivas machistas, feministas, entre muitas outras que
a ideologia dominante faz circular. Contudo, também voz a um discurso “outro”
que desestabiliza a suposta homogeneidade do que chamamos de “discurso
feminino”. Desse lugar de interpretação que construímos é possível afirmar que a
mulher é, portanto, efeito, mas um efeito que possui desdobramentos: materialização
da heterogeneidade.
Palavras-chave: discurso feminino, efeito-mulher, heterogeneidade.
7
ABSTRACT
HETEROGENEITY IN FEMININE DISCOURSE: FEMALE-PRODUCED EFFECT
AND ITS DEVELOPMENT
Current analysis investigates woman’s identity effects, within the context of novel
developments experienced by males and females in contemporary society, as from
the self-discourse that she spreads around. Who is the contemporary woman may
thus be analyzed through her word and her discourse. Since discourse is the
materialization of ideology and the latter is “the condition foregrounding the
establishment of the subject and of meaning” (ORLANDI, 2002: 46), it is through
discourse that we establish ourselves as subjects. Theory and analysis are based on
the French Discourse Analysis, especially on the concepts of heterogeneity and
subject/form. Psychoanalysis has been a subsidy in so far as it postulated the idea of
a desiring subject and of the female as a symptom. A corpus of ten interviews with
females featuring a diversity of traits was analyzed. Interviews started with the
following question: “Is it a pleasure being a woman? Why?” Through interview
responses the process of female interpellation, or female-produced effect, was
produced and described. Off-cuff opinions, or rather, what is released in the
discursive web by contemporary woman, are reported in the context of the
description and interpretation. Results show that present day woman situates herself
within the context fabricated by male discourse practices which are history and
ideology bound and materializes itself within the male dominant discourse. However,
heterogeneity, inherent to the constitution of the subject, produces a mere incomplete
interpellation, which may be verified by current equivocal statements and gaps in
feminine discourse. It may be stated that contemporary woman reproduces a
discourse composed of male, feminist and other discursive forms which dominant
ideology spreads around and propagates. Contemporary woman also expresses
“another” discourse that disrupts the presumed homogeneity of what may be called
“feminine discourse”. It may be stated that woman is, therefore, an effect, albeit an
effect with developments, or rather, the materialization of heterogeneity.
Key words: feminine discourse; female-produced effect; heterogeneity.
8
SUMÁRIO
UMA MULHER VAI FALAR: CONSIDERAÇÕES INICIAIS......................................11
CAPÍTULO 1
O EFEITO-MULHER: CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO SUJEITO
MULHER
....................................................................................................................15
1.1 Uma história para a mulher.............................................................................18
1.1.1 Idade Média: toma corpo um discurso patriarcal...................................21
1.1.2 O discurso patriarcal no Brasil................................................................27
1.1.3 Movimento feminista e Feminismo.........................................................33
1.2 O Efeito-mulher...............................................................................................36
CAPÍTULO 2:
A MULHER NA PSICANÁLISE: UMA QUESTÃO DE ESTRUTURA
.......................40
2.1 Sujeito psicanalítico.........................................................................................41
2.2 A mulher estruturada como sintoma................................................................44
2.3 Efeito ou sintoma? Mulher-efeito, sintoma? Afinal, aonde chegamos
(chegamos?) ?............................................................................................................50
CAPÍTULO 3:
A MULHER VISTA SOB O SIGNO DA HETEROGENEIDADE................................53
CAPÍTULO 4:
ENFIM, O DISCURSO FEMININO!............................................................................59
4.1 Conversando com mulheres sobre ser mulher: constituição do corpus..........59
4.2 Um percurso de análise...................................................................................65
4.2.1 O que é ser mulher?: mulher “não pode”................................................66
4.2.2 “Você quer se casar?”.............................................................................75
4.2.3 “Você quer ser mãe”?.............................................................................82
4.2.4 O que falha nesse tal discurso feminino.................................................85
4.2.5 “Um caso exemplar”................................................................................89
4.2.5.1 Um discurso feminista?...................................................................93
4.2.5.2 Um lugar para um discurso machista na fala de uma mulher do séc.
XXI..............................................................................................................................96
9
4.2.5.3 Discursos feminista e machista intercalados: heterogeneidade...101
4.3 Juntando os pedaços: fechamento de uma análise incompleta....................103
FALTA AINDA ALGUMA COISA...CONSIDERAÇÕES FINAIS
.............................106
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
........................................................................110
ANEXOS
..................................................................................................................113
10
UMA MULHER VAI FALAR: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Mais um trabalho a versar sobre a identidade feminina, questão bastante
debatida na academia neste período contemporâneo em que vêm sendo colocadas
em pauta as identidades possíveis para o homem desse tempo. Uma ressalva faz-se
necessária, entretanto. Não queremos aqui “construir” nada, considerando que
tomamos como pressuposto a existência de identidades plurais para a mulher atual.
Talvez a palavra seja “desconstruir”. Não no sentido de jogar tudo fora, mas de
repensar, decompor ou entender como se compôs o que chamamos atualmente de
identidade feminina.
Como se trata de um trabalho em Análise do Discurso (doravante AD),
pretendemos observar como as práticas discursivas foram construindo os discursos
que norteiam o processo identitário da mulher. A fundamentação teórica parte da
fase da Análise do Discurso, alguns textos de Michel Foucault e De Certeau, e a
Psicanálise, que nos auxilia a pensar um sujeito descentrado e individualizado.
Buscamos compreender de que maneira foi se constituindo um imaginário social que
cristaliza uma idéia de mulher homogênea, criando um efeito de naturalização do
que é ser mulher, o que é um efeito ideológico que se faz via simbólico (linguagem).
A concepção de discurso que tomamos como ponto de ancoragem é o de discurso
como prática discursiva, como heterogêneo, perpassado pelo interdiscurso e pelo
inconsciente. Bem, isso é discussão para a metade do trabalho. Vamos partir do
começo, de onde tudo começou:
O interesse pela temática da mulher encontra-se no simples fato da
pesquisadora SER mulher. Parece bastante razoável, não? Talvez não. Nem todas
as mulheres interessam-se pelo fato de como ou por que se tornaram mulheres ou
mesmo pelo que é ser mulher. Vejamos, então, outra alternativa possível. Toda
pesquisa parte de um incômodo. E sempre me incomodou muito ser mulher
1
.
Sempre quis compreender as imposições aplicadas às mulheres, as características
tão peculiares, as condutas padrão, enfim, o infortúnio e a delícia de SER mulher.
1
Tomo aqui a liberdade, a despeito das regras acadêmicas, de mesclar, na escritura dessa introdução, as
primeiras pessoas do plural e do singular. Utilizo esse recurso por considerar que, em alguns momentos, a
escritura torna-se muito pessoal, o que requer a utilização de um “eu”, bem aos moldes da ilusão narcísica que
nos constitui.
11
Situando-se num programa de Mestrado em Letras, concentração em Estudos
Lingüísticos e linha de pesquisa Estudos do Texto e do Discurso, cremos que o
presente trabalho configura-se em mais uma contribuição no âmbito da linguagem,
que trabalha com um registro específico de linguagem (oral), um público específico
(feminino) e busca investigar o processo identitário que se via linguagem na sua
relação com a ideologia, história e inconsciente. Dessa forma, a pesquisa é
pertinente e coerente com a linha de pesquisa, bem como se presta ao diálogo tão
necessário entre os trabalhos produzidos na academia e, mais precisamente, neste
programa de mestrado, na esteira de outros trabalhos também produzidos na
perspectiva na Análise do Discurso, área que vem sendo reforçada nesse contexto.
Primeiramente a idéia do projeto era comprovar a presença recorrente do
discurso machista na fala da mulher. Essa era a questão que me instigava: como
pode a própria mulher carregar em seu discurso uma fala essencialmente machista?
Essa hipótese surgiu da observação das falas das mulheres que me cercavam e,
sobretudo, num hábito bastante peculiar a nós que é o de criticar umas às outras.
Diante da inquietação e das leituras que realizamos, o percurso da pesquisa
começou a ser alterado. Durante o encaminhamento do trabalho, o próprio corpus
acabou nos levando por outros caminhos: percebemos que a hipótese inicial era
falha. O discurso de origem machista até aparecia na fala das mulheres, mas não
era essencialmente o que o constituía. A assimilação desse discurso dominante não
se fazia do modo perfeito como imaginávamos. A hipótese foi sendo redefinida em
relação às primeiras impressões e em função dos recortes do corpus. Muitos outros
discursos compunham a fala da mulher, inclusive o feminista. O ponto central,
todavia, foi a descoberta da constituição por um discurso “outro”, algo do nível do
inominável, os equívocos de linguagem, o que observamos a partir dos
apontamentos da AD da terceira fase que se embasa nos princípios da Psicanálise.
O contato com a
Análise do Discurso
de linha francesa, área da qual nos
valemos para fundamentar teoricamente este trabalho, deu-se ainda na graduação
em Letras. Fascinação imediata. Pensar os processos de significação para além da
língua por ela mesma, considerar o papel da ideologia, da história, parecia-nos um
caminho interessante. A descoberta de um sujeito descentrado, o-dono do seu
dizer desestabilizava a nossa ilusão de sujeitos completos. Mas era exatamente
essa desestabilização que explicava muitos fatos, fazia surgir novos
12
questionamentos e desobrigava a relação com uma lingüística imanente, e uma
lingüística das intenções.
Transitar por outras áreas também se fazia necessário. Pensar a constituição
da mulher enquanto sujeito exigia uma leitura para além da lingüística. O que torna
uma mulher uma mulher: seria a anatomia, a história, a cultura? Dentro da
graduação em Psicologia encontramos um caminho na Psicanálise: ser mulher era
também conter uma ESTRUTURA de mulher, o que se via linguagem. Na nova
história também vimos um caminho necessário e determinante para entender a
constituição da mulher atual.
Intercâmbio teórico concluído, começa a dura trilhagem por três áreas do
conhecimento. O ponto comum: a linguagem, ou neste caso: o discurso, apesar de
sabermos que cada uma das áreas tem uma concepção de discurso diferente.
Tomamos esse ponto de ancoragem como material fértil para pensar a identidade
feminina.
Com esse projeto em mãos, pretendemos tomar o discurso feminino,
analisando-o segundo os pressupostos da AD. Para isso acreditávamos que a
maneira mais adequada seria tratar da identidade feminina via discurso produzido
por posições discursivas femininas
2
, considerando que nos tornamos sujeito via
linguagem. Tendo isso em vista, passamos a coletar entrevistas com várias
mulheres. Perguntávamos sobre a questão: “você gosta de ser mulher?“por quê”.
Escolhemos esse questionamento porque acreditávamos que ele daria margem à
discussão do que era ser mulher e as implicações desse fato, como a relação da
mulher com o homem, o que seria pertinente, portanto, para discutir a nossa questão
central de análise que, no início, era a presença do discurso machista na fala da
mulher.
A constituição do corpus foi feita em função das recorrências e também das
dissonâncias que apareceram nas falas das mulheres. Dessa forma produzimos
recortes que se transformaram em registros discursivos e objetos de análise,
produto, portanto, do nosso gesto de interpretação. Todo esse percurso de leituras e
composição do corpus nos permitiu organizar nosso texto da seguinte forma:
2
Falamos em “posições discursivas femininas” ou posição discursiva de mulher”para designar o lugar discursivo
que produz um discurso feminino. Evitamos o termo “discurso de mulheres” ou “produzido por mulheres” por
entendermos que essa posição discursiva não diz respeito necessariamente à produção discursiva de um sujeito
empírico do sexo feminino.
13
No primeiro capítulo, “O efeito-mulher: construção histórica do sujeito mulher”,
fazemos uma retrospectiva da história da mulher no Ocidente desde a Idade dia
até a atualidade e lançamos ainda o conceito da mulher como “efeito”, com base na
proposta pêcheuxtiana de interpelação do indivíduo em sujeito: “forma-sujeito”. No
segundo capítulo, “A Mulher na Psicanálise: uma questão de estrutura”, procuramos
situar alguns pontos da teoria psicanalítica que possam auxiliar na compreensão da
constituição da mulher da contemporaneidade. Partimos do conceito lacaniano da
mulher como sintoma do homem, o que nos permitiu compreender a mulher-efeito
como um conceito que não recobre a mulher como um todo, mas vazão a uma
falta que nos é constitutiva. Feito isso pudemos passar ao conceito de
heterogeneidade, cunhado na terceira fase da análise do discurso. É o que
discutimos no terceiro capítulo. No quarto capítulo justificamos nossa coleta de
dados: as entrevistas que tomamos como corpus representativo do discurso
feminino. Por último, analisamos os recortes das entrevistas coletadas segundo os
pressupostos da AD, considerando, sobretudo, a constituição da mulher pela falta,
segundo o princípio da heterogeneidade. A conclusão... deixamos para a conclusão,
se é que alguma possível dentro da incompletude da linguagem e do sujeito,
sobretudo quando esse sujeito é uma mulher.
Enfim, o trabalho está apresentado. Com ele pretendemos discutir a
identidade feminina via discurso; fazer um levantamento das práticas discursivas que
compõem o discurso da mulher a partir do nosso recorte das falas das entrevistadas;
buscar na historicidade que foi constituindo um efeito homogeneizador da mulher um
referencial para se pensar o efeito-mulher. Por fim, discutir as falhas, equívocos e
sua relação com o ponto central do trabalho que é a heterogeneidade.
Dessa maneira pensamos contribuir aos estudos que discutem a identidade
feminina. Acreditamos fazê-lo com o diferencial de partir do discurso, e do discurso
produzido por posições discursivas de mulher, e ainda de não querer ver essa
identidade como homogênea, mas como um efeito, que pode ser desconstruído e
descrito justamente pela heterogeneidade.
14
CAPÍTULO 1:
O EFEITO-MULHER: CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO SUJEITO MULHER
A chamada história das mulheres, ou seja, a história que não foi dita pela
história oficial (e patriarcal), vem se colocando de maneira bastante visível nas duas
últimas décadas (SCOTT, 1992: 63), sobretudo depois do advento do movimento
feminista, na década de 60. Essa história se faz a partir de práticas discursivas
3
que
a constituem, ou seja, dos discursos que circulam sobre a mulher, dos quais deriva
um “efeito” de identidade para ela, bem como um lugar dentro da disciplina “história”
e na memória dos falantes. Esse olhar sobre a história das mulheres, negligenciado
por muito tempo pela história oficial, vem se mostrando de grande importância
dentro do movimento da história geral, tendo em vista a crítica destinada à validade
da disciplina, dos seus dados, por “excluir” dos feitos históricos a participação
feminina e de outras minorias também sem direito a voz.
A negligência em relação à história da mulher ocorreu em grande parte em
função de o ponto de vista dominante ter sido predominantemente o masculino. O
fato é que a história da mulher como prática discursiva que é, tanto na academia
como no senso comum, emerge em meio à história geral (e o separadamente) e
carrega a memória de outros discursos que o circundam e que com ele se
relacionam, possuindo, portanto, uma historicidade. Afinal, “A história das mulheres
não é delas, é também aquela da família, da criança, do trabalho, da mídia, da
literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e
que praticaram, da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos” (DEL
PRIORE, 2000: 7).
Considerando a intrínseca relação entre discurso e história, para trabalhar
com o discurso feminino, é preciso levar em conta as suas condições de produção,
3
Compreendemos “prática discursiva” no sentido dado pela AD. Conforme o Dicionário de Análise do Discurso
(CHARAUDEAU & MAINGUENEAU): “Noção freqüentemente empregada na AD francófona desde o final
dos anos 60, fazendo convergir o vocabulário marxista da ´práxis´e o de Foucault. Ela funciona seja com um
sentido pouco específico, seja no interior de redes conceituais” (2004: 396). Utilizamos a noção de prática
discursiva conforme a noção geral que, conforme o mesmo dicionário, tem aproximadamente as mesmas zonas
de emprego que ´discurso´ (...) Na verdade, quando se diz ´prática discursiva´em vez de ´discurso´, efetua-se um
ato de posicionamento teórico: sublinha-se obrigatoriamente que se considera o discurso como uma forma de
ação sobre o mundo produzida fundamentalmente nas relações de forças sociais (idem).
15
especialmente o contexto sócio-histórico e a memória que esse discurso hoje retoma
e atualiza.
Tendo como foco a questão identitária vista a partir do discurso, precisamos
considerar o momento de realização deste trabalho, as condições que
circunscrevem a produção do discurso feminino e da própria produção deste
trabalho acadêmico. Pensado desse modo, acreditamos que se faz pertinente,
então, refletir sobre a contemporaneidade para, logo em seguida, buscar dentro do
discurso histórico a memória
4
que se tem sobre a história da mulher.
Pensar nas questões identitárias num período que ainda busca uma
designação precisa, e que chamaremos de “contemporaneidade”, é tocar num ponto
bastante nebuloso e móvel, dadas as novas configurações dos conceitos, o modo de
pensar a constituição do sujeito como heterogênea e as mudanças e crises dos
gêneros. No presente contexto começam a emergir novas configurações identitárias,
renunciando a alguns paradigmas, inaugurando outros. Nesse sentido é que
também a questão dos gêneros começa a se colocar, e os papéis de homem e
mulher começam a passar por profundas modificações.
No auge da ideologia patriarcal era muito simples identificar o que era ser
homem e o que era ser mulher: as práticas discursivas produziam somente essas
duas possibilidades de identificação. Paulatinamente essa estabilidade foi sendo
quebrada e observamos que homens e mulheres vivem um momento de
desestabilização em relação aos modos de subjetivação anteriores, o que modifica
sobremaneira o processo de constituição das identidades.
Sendo assim, “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o
mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o
indivíduo moderno...” (HALL, 2000: 07). As mudanças produzidas a partir do final do
século XX, com o advento da Psicanálise, do feminismo e outros movimentos que
modificaram a forma de viver e de se subjetivar, vêm causando a fragmentação dos
sujeitos, visto que a noção unitária de sujeito tem perdido espaço face ao paradoxo
das múltiplas formas de identificação e, ao mesmo tempo, à perda de identificação, o
que instaura o colapso pelo qual passam os indivíduos da contemporaneidade.
4
O conceito de memória pode ser tomado em muitas acepções. Eni Orlandi (2003) separa dois tipos de memória:
a institucionalizada, que corresponde ao arquivo; e a memória discursiva, que corresponde ao conceito de
interdiscurso, sendo o trabalho histórico da constituição do sentido (o dizível, o interpretável, o saber
discursivo) (2003: 48). Neste momento estamos tratanto de memória enquanto arquivo, arquivo histórico sobre a
mulher.
16
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as
sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando
as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão
também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia
que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de
um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento ou descentração do sujeito. (HALL, 2000: 09).
Hall (2000) ainda afirma que três concepções de identidade: a do sujeito
do Iluminismo, no qual temos uma identidade fixa, imutável e individual; a do sujeito
sociológico, que a identidade do sujeito na sua relação com a sociedade, ou seja,
na interação com o outro; e, por fim, a identidade do sujeito pós-moderno, que migra
da identidade unificada e estável para tornar-se fragmentado
5
.
Assim, o sujeito atual, ou pós-moderno, como designa Hall, fragmenta-se, isto
é, assume várias identidades em diversos momentos, identidades por vezes
contraditórias, que não possui “uma identidade fixa, essencial ou permanente”
(HALL, 2000: 12).
À medida em que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada
uma das quais poderíamos nos identificar- ao menos
temporariamente. (HALL, 2000: 13)
que se mencionar ainda que essa (s) nova (s) identidade (s) do homem
pós-moderno ainda dialoga com as identidades anteriores, sejam eles os sujeitos do
Iluminismo e/ou sociológico. Ainda podemos dizer, levando em conta os postulados
da AD, que o sujeito não “deixou” de ser sociológico para ser “pós-moderno”, tendo
em vista que ele ainda se constitui na relação com o “outro”.
Considerando esses postulados sobre a(s) identidade(s) no cenário
contemporâneo, pretendemos, neste capítulo, pensar a identidade feminina, ou as
possibilidades de identificação com os discursos que produzem o que rotulamos
como “feminino”. Para isso faremos uma rápida apresentação da condição da mulher
na Idade Média, as mudanças que vêm ocorrendo desde então, o rompimento
ocorrido com o movimento feminista na década de sessenta e, por fim, o “efeito” que
5
Apesar de não estarmos trabalhando com a categoria “pós-moderno”, tomamos o texto de Hall por
considerarmos pertinentes suas afirmações sobre a mudança que se processa na sociedade atual, que,como já
mencionamos, chamaremos “contemporaneidade”.
17
se constrói historicamente do que é “ser mulher”. Com isso pensamos poder dar
sustentação a uma investida na questão da identidade feminina atual, via discurso.
Um aspecto que é importante deixar claro é que não pretendemos fazer um
estudo de gênero, tal como tem sido entendido, ou seja, como estudos em defesa do
gênero feminino, pois acreditamos, juntamente com Magali Engel, que
se queremos mesmo dar uma guinada na história das mulheres,
deslocando-as para um campo mais fértil e instigante da história dos
gêneros, é preciso que, entre outras coisas, abandonemos
definitivamente essa obsessão em buscar comprovar que a mulher é
mais discriminada, é mais explorada, é mais sofredora, é mais
revoltada, etc, etc. Nem mais, nem menos, mas sim diferentemente.
Diferenças cujos significados não se esgotam nas distinções
sexuais, devendo, portanto, ser buscados no emaranhado múltiplo,
complexo e, muitas vezes, contraditório, das diversidades sociais,
étnicas, religiosas, regionais, enfim, culturais (ENGEL, 2000: 334).
Feitas essas considerações, vamos dar um passeio pela conhecida (e
esquecida) história da mulher.
1.1 UMA HISTÓRIA PARA A MULHER
Impossível pensar numa história da (ou para) a mulher sem retomar Foucault.
Apesar de trabalharmos numa linha da Análise do Discurso que não parte do
método foucaultiano, o filósofo francês é indispensável quando se trabalha com
discurso, subjetividade e, como é o nosso caso, construção de identidade,
identidade feminina.
Faz-se necessário explicitar, entretanto, que a noção de subjetividade trazida
por Foucault e as formas de subjetivação (Foucault, 2001) não serão operatórios na
análise que se fará neste trabalho. Acreditamos numa possibilidade de articular essa
perspectiva teórica à de forma-sujeito de Pêcheux, com a qual trabalharemos,
contudo isso é atividade para outro trabalho. Ficamos com a noção de subjetividade
trazida por Eni Orlandi (2001) que afirma ser o processo pelo qual o indivíduo torna-
se sujeito. A subjetividade estrutura-se no acontecimento do discurso (ORLANDI,
2001: 99), sendo, pois, o fenômeno que desloca o lugar/situação empírica para a
posição no discurso. Subjetivar-se, portanto, é submeter-se à língua, ao simbólico e,
por isso, estar submetido também à história e à ideologia. A subjetividade é a
18
condição primeira, portanto, que conduz ao efeito de identidade, o que trataremos no
final desse capítulo.
Explicitada essa questão, voltemos a Foucault:
Foucault (2001) em sua “História da Sexualidade nos pressupostos
históricos que funcionam como pano de fundo na construção da sexualidade em
nossa sociedade, desde a Grécia antiga, passando pelo advento do Cristianismo,
construindo no seu primeiro volume, publicado em 1976, a genealogia da
sexualidade na modernidade. Além disso, trata das contribuições da medicina,
pedagogia e outras áreas do saber que interviram nessa construção de sentido da
sexualidade. O autor apresenta a sexualidade como uma das formas mais
recônditas de constituição do indivíduo em sujeito. “Foucault volta-se para a
experiência da sexualidade, região em que certos saberes, normas e formas de
subjetividade permitem que os indivíduos se reconheçam como sujeitos” (ARAÚJO,
2000: 123), além disso, afirma que essa noção que temos de nós mesmos enquanto
seres sexuados é, na verdade, uma construção histórica.
A reflexão acima é bastante importante para nosso estudo, pois se
considerarmos que a história é feita de práticas discursivas, conforme afirma o
mesmo autor, é pelo discurso que se constituem as identidades. Quanto à noção de
gênero, tão diretamente relacionada à biologia, nessa perspectiva, passa a ser vista
também como uma construção histórica. É um passo bastante significativo na
compreensão da formação da identidade da mulher. Mais do que isso, a contribuição
de Foucault estende-se ainda à concepção da sexualidade enquanto mecanismo de
poder. Ele propõe “analisar a formação de um certo tipo de saber sobre o sexo, não
em termos de repressão ou de lei, mas em termos de poder(FOUCAULT, 2001:
88), entendendo “poder” como a “multiplicidade de correlações de força imanentes
ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização” (idem, ibidem)
6
.
Historiadores que trabalham ou não com a temática dos gêneros,
notavelmente Michelle Perrot (conforme RAGO, 1998: 21), colocam a necessidade
de haver uma produção acadêmica que problematize as relações entre os sexos,
sem que se privilegie um dos sujeitos sexuados (homens ou mulheres). A mesma
autora questiona se existiria uma maneira feminina de fazer história ou mesmo uma
memória histórica feminina. A questão se complica quando pensamos nas fontes
6
Essa concepção foucaultiana da construção histórica da sexualidade é pertinente para o que, ao final do
capítulo, designaremos como “efeito-mulher”.
19
que temos: poucos registros do que as mulheres falavam. Registros escritos por
mulheres, menos ainda. Os documentos e fontes oficiais costumam ser
extremamente ligados ao mundo masculino. Sendo assim, o que resta? Os
discursos sobre as mulheres que permaneceram na memória das pessoas, que
foram passando de geração a geração, atualizando-se e constituindo o que hoje
sabemos sobre as mulheres e sua história.
Dentro da memória histórica que nos perpassa, o período mais marcante na
história das mulheres é, sem vida o movimento feminista. Margareth Rago (1998)
coloca o movimento feminista como marco de uma mudança de pensamento na
história da mulher, nos rumos da própria história e ainda na concepção de
cientificidade. Segundo ela, o movimento feminista traz, juntamente com a
Psicanálise, o Marxismo, o Desconstrutivismo e o Pós-Modernismo, uma crítica às
categorias dominantes que se impõem como universais: padrão burguês-masculino-
ocidental (RAGO, 1998: 24). Essa crítica propõe pensar a diferença, considerar a
crise do sujeito, aliando-se ao pensamento do s-modernismo e indo ao encontro
de pensadores como Derrida, Foucault, Lyotard, entre outros. Uma das vertentes
desse deslocamento da história oficial é chamada de “História Cultural”, movimento
ao qual se filia a autora mencionada que trabalha com a história das mulheres. Entre
as críticas que se colocam a partir disso, uma das mais importantes é a oposição de
origem sexista entre o público e o privado, objetivo e subjetivo, entre outras
dicotomias que foram sendo construídas no decorrer da história e que, por isso,
desde muito tempo tomamos como naturais.
Assim, pensar uma história para a mulher é desconstruir os valores
sedimentados a partir da ótica masculina. A crítica feminina sugere que não se parta
do sujeito, mas que ele passe a ser visto como efeito das determinações histórico-
culturais. Dessa forma, a mulher também “não deveria ser pensada como uma
essência biológica pré-determinada, anterior à História, mas como uma identidade
construída social e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais, pelas
práticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes” (RAGO, 1998: 27). É
importante mencionar ainda que, nesse momento, com o advento da História
20
Cultural, o
discurso
, passa a ser visto como principal matéria-prima do historiador,
ponto de partida para se perceber as relações sócio-histórico-culturais
7
.
A História Cultural, a Psicanálise, o Marxismo, o Pós-modernismo e o
Feminismo foram movimentos que permitiram repensar a constituição da história
geral e ainda pensar uma nova forma de se fazer ciência. Rago (1998: 32) acredita
que o feminismo “trouxe a subjetividade como forma de conhecimento”, permitindo
uma “epistemologia feminista” e, portanto, a possibilidade de uma história da mulher
ou, pelo menos, uma história que contemple a presença da mulher na sociedade.
21
Sua principal virtude, dentro e fora do casamento, deveria ser a obediência, a
submissão” (MACEDO, 1992: 15).
A mulher era considerada “naturalmentemenor do que o homem, ser frágil,
incapaz de responder por si mesma. Não era sequer nomeada. Na sociedade era
sempre filha de alguém, esposa ou irmã, nomeada sempre em referência ao homem
a que estava sujeita. Podemos observar que o modo de produção da sociedade
fomenta os discursos que circulam e, por sua vez, produz as identidades dos
sujeitos (homens e mulheres), resultado de uma ideologia
9
que era basicamente
Cristã e feudal.
Essa representação da mulher foi muito divulgada pela Igreja Católica, que
sacramentalizou o casamento (antes apenas “negócio” entre famílias) a fim de
controlar a sexualidade. Vejamos o que afirma Macedo, ao reproduzir o discurso da
Igreja sobre a mulher nessa época:
A mulher era vista pelos religiosos como “naturalmente” inferior ao
“sexo viril”. Deus havia criado primeiro o homem. Ele foi criado à
imagem e semelhança do Todo-Poderoso. Ela era meramente um
reflexo da imagem masculina, uma imagem secundária. Sexos
diferentes, ambos uniam-se pelo casamento. Contudo, não se
tornavam iguais. Considerada a responsável pela queda da
humanidade no pecado, a dominação do esposo sobre ela e as
dores do parto eram vistos como o seu castigo (MACEDO, 1992:
19).
Com esses argumentos a Igreja Católica atestava a inferioridade da mulher e
sua subordinação na relação com o homem. Aspectos biológicos como as dores do
parto e a menstruação eram tomados como castigos divinos por ser a mulher um ser
originalmente pecador. Além disso, “a inferioridade feminina provinha da fragilidade
do sexo, da sua fraqueza ante os perigos da carne” (MACEDO, idem, ibidem: 19).
Note-se que aqui se mesclam os discursos religioso e médico-biológico, ambos
coadunados funcionam como forte argumento para a afirmação da natureza (seja
ela divina ou biológica) inferior atribuída ao sexo feminino. O texto bíblico usufrui do
discurso médico-biológico para demonstrar a “natureza” sórdida da mulher. Neste
9
O conceito de ideologia é central para a AD, contudo ele não é entendido conforme os sentidos que se
divulgam de inversão ou ocultação da realidade. A ideologia é ressignificada pela Análise do Discurso, ela é
vista em relação à linguagem, numa definição discursiva. (Orlandi, 2003: 43). È considerada o que interpela os
indivíduos em sujeitos, o que produz as evidências e naturaliza o que é construído na relação do histórico com o
simbólico (linguagem). Sendo assim, a ideologia para a AD, “não é ocultação, mas função da relação necessária
entre linguagem e mundo” (idem, ibidem: 47).
22
sentido, os textos bíblicos materializam os discursos cristão e biológico, e, ao circular
na sociedade, produziam os efeitos de identidade da mulher como ser castigado e
inferior.
A Igreja ainda incutiu a maternidade como missão primordial da mulher.
Assim, ela podia transitar entre três posições dentro da família: esposa, mãe e
viúva, sendo que era imprescindível ser mãe em qualquer uma das outras situações.
A mulher que não podia ter filhos sofria discriminação do marido (que podia
abandoná-la), da Igreja, que a via como pecadora e castigada por Deus, e da
sociedade como um todo por não poder desempenhar o que era considerado o
principal papel da mulher: o da procriação.
Isso não quer dizer, porém, que as mulheres ocidentais e cristãs (das quais
estamos tratando) não tinham nenhum outro papel na sociedade. Com relação ao
trabalho, elas, além de desempenhar o trabalho doméstico e cuidar dos filhos,
exerciam funções na agricultura (ao lado dos maridos ou sozinhas, quando viúvas),
trabalhavam como servas na casa dos senhores feudais, também se destacaram no
artesanato e na confecção de tecidos no período da alta Idade Média e registros
de algumas mulheres mercadoras (MACEDO, 1992: 28). Mesmo as que não se
dedicavam a nenhum desses trabalhos, e vinham das classes mais abastadas (e,
portanto, não eram nem escravas nem servas), tinham que administrar a família, e
administrar um núcleo familiar na Idade Média não era coisa muito simples,
conforme atesta o mesmo autor. Como esses núcleos eram compostos por várias
pessoas (parentes e agregados), as donas-de-casa tinham que ter um alto senso de
organização para dar conta da alimentação, vestimenta e sobrevivência em geral da
família.
Durante a Idade Média, conforme Alves e Pitanguy (1985), na obra O que é
Feminismo?, destaca-se na literatura a mulher “castelã”, aquela a quem se
dedicavam as cantigas de amor dos trovadores. O estereótipo era de uma mulher
bela e cheia de ornamentos, mulher idealizada, frágil, delicada, romântica, mas sem
papel ativo na sociedade. Contudo, os autores também mencionam que as mulheres
das classes mais baixas trabalhavam, por exemplo, com tapeçaria, e participavam
das chamadas “Corporações de Ofício”, comunidades compostas por pequenos
artesãos. Ainda desempenham atividades de parteiras e curandeiras. Essas últimas
pareciam ser as mais perigosas, pois desafiavam a Igreja e a ciência. Surge, então,
a “mulher-bruxa”, queimada em grandes fogueiras pela inquisição, por conta de seus
23
“poderes”. É interessante observar que as instituições é que legitimavam essas
práticas de exclusão à mulher: o Estado, a Igreja, a Medicina e o Direito.
Em relação a isso, Macedo nos apresenta a etimologia da palavra “mulher”, a
qual corrobora para a identificação negativa do sexo:
A atitude de desprezo dos homens pelas mulheres, consideradas ao
mesmo tempo perigosas e frágeis, era justificada por todos os
meios, até pela etimologia da palavra que as designava. Para os
pensadores da época, a palavra latina que designava o sexo
masculino,
Vir,
lembrava-lhes
Virtus
, isto é, força, retidão, enquanto
Mulier
, o termo que designava o sexo feminino lembrava
Molitia
,
relacionada à fraqueza, à flexibilidade, à simulação (MACEDO,
1992: 21).
Apesar de tudo isso, é importante observar, conforme o faz Macedo (1992:
26) que as mulheres não eram um grupo homogêneo oprimido pelos homens. A
diferença sexual era tão forte quanto a diferença social. “Não é possível alinhar, num
mesmo plano, condessas e castelãs com servas e camponesas livres, ricas
burguesas com artesãs, domésticas ou escravas” (idem, ibidem: 26). Eis aqui o
primeiro ponto, levantado pelo discurso da história para pensarmos a mulher a
partir de um ”efeito” homogeneizador, a fim de chegarmos a uma constituição que é,
essencialmente, heterogênea. Constituição do sujeito, conforme a AD da terceira
fase, e constituição da “mulher” como significante generalizador.
Quando falamos em “efeito”, estamos tomando esse termo dentro da
perspectiva da AD, entendendo-o como “efeito de sentido”, ou seja, construção que
se dá a partir do discurso e sua relação com a ideologia de uma naturalização de
fatos que são produzidos pela história e que são discursivizados. “As relações da
linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e
variados. D a definição de discurso: o discurso é efeito de sentido entre
interlocutores” (ORLANDI, 2003: 26). Sendo a linguagem opaca, não temos,
portanto, uma relação direta língua/sentido, mas sim um “efeito” que se processa na
relação da linguagem (simbólico) com o ideológico.
Assim, por esse “efeito”, a ambigüidade da mulher: doce, submissa, frágil,
mas ao mesmo tempo, sedutora, má, era considerada algo “natural”. A natureza a
havia feito portadora do bem e do mal. A mulher era identificada com a natureza,
portanto, enquanto o homem identificava-se com a cultura. A Psicanálise traz
importantes considerações a respeito dessa dicotomia. Discutiremos um pouco
24
sobre isso no segundo capítulo. A formação discursiva
10
(FD) religiosa cristã, sob
esse aspecto, faz circular um discurso que naturaliza o ambiente da mulher como o
doméstico, privado. Auxilia na produção de uma prática do papel da mulher na
sociedade como a responsável por cuidar da casa e dos filhos, enquanto ao homem
cabe estar em contato com a civilização, habitar o espaço público.
“A valorização do pensamento burguês teve influência decisiva na
deteriorização da imagem feminina. A misoginia, antes subjacente, tornou-se
explícita. (MACEDO, 1992: 55). Conforme o mesmo autor (1992), várias obras
literárias atestam o fato de que a imagem da mulher passa a ser denegrida nesse
período, sendo que passam a ser vistas pelo seu caráter pecador, como traidoras,
fúteis e más, sobretudo dentro da instituição do casamento, que também aparece de
forma negativa. Macedo (1992) acredita que esse fato possa ter se originado por
alguma forma de insubordinação das mulheres perante as condições do casamento.
Apesar disso
É difícil sustentar a hipótese de uma marginalização generalizada da
mulher na Idade Média. O casamento, tornando-a responsável pela
reprodução biológica da família, garantia-lhe papel de relevo na
estabilidade da ordem social. Esta integração tinha, contudo os seus
limites. Juridicamente despersonalizada, esteve reduzida ao meio
familiar e doméstico. Reproduzia, biologicamente os homens que
iriam continuar a dirigir a sociedade. (MACEDO, 1992: 59).
As mulheres que não se enquadraram no estereótipo da época foram
marginalizadas. As principais reações marginalizantes eram contra hereges, bruxas
e prostitutas (idem, ibidem: 59).
O fenômeno da “caça às bruxas” ocorreu principalmente entre os séculos XV
e XVII (conforme MACEDO, 1992: 64), período cronologicamente posterior à Idade
Média, contudo, é um fenômeno que vinha se desencadeando anteriormente e
que representa todo o espírito de uma época em relação à “intransigência na
eliminação de um grupo arbitrariamente considerado indesejável e pernicioso” (idem,
ibidem: 59), grupo esse formado por magas, curandeiras, adivinhas, etc. Na
10
A formação discursiva (FD) é entendida como “aquilo que numa formação ideológica dada- ou seja, a partir de
uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada- determina o que pode e deve ser dito(ORLANDI,
2003: 43). Contudo, trabalhamos com esse conceito vendo-o o de forma fechada, como se as FD´s dessem
conta de discursos específicos fechados entre si. Compreendemos esse conceito através do princípio da
dispersão, entendendo que as FD´s perpassam umas às outras e podem ser vistas, conforme bem definiu Orlandi,
como “regionalizações do interdiscurso(idem, ibidem). É esse conceito que permite ao analista “estabelecer
regularidades no funcionamento do discurso(idem, ibidem).
25
verdade, o combate feroz, iniciado pela Inquisição contra as ´maléficas´, reprimia a
sexualidade feminina(idem, ibidem: 66).
Passamos nessa nossa aventura teórica pela história da mulher por dois
períodos distintos: a Idade Média e o período burguês. Podemos observar alguns
deslocamentos nos discursos sobre a mulher em ambos os períodos. Primeiro
tínhamos uma mulher discursivizada pela Igreja que surge sob o efeito dicotômico da
santa (mãe) ou da bruxa. O Cristianismo “identificou afigurada mulher com a
experiência do pecado, baseando-se para isso no mito da sedução de Adão por
Eva” (BIRMAN, 1999: 62). O papel da mulher valorizado era o da maternidade, que a
redimia dos seus pecados “naturais”. Com a burguesia esse discurso se desloca,
atualizando o papel da mulher na relação com a família e, portanto, com as
transações comerciais também. As de baixa renda podiam (e deveriam) atuar
vendendo sua força de trabalho, as mulheres das classes mais altas deveriam
zelar pela imagem da família, empreendimento que era essa instituição. Daremos
continuidade à discussão sobre a mulher no período burguês quando tratarmos da
mulher no Brasil, no próximo tópico.
Outro importante deslocamento na rede de discursos sobre a mulher ocorre
com o advento do Iluminismo, entretanto passaremos rapidamente por ele. Com o
Iluminismo
surge a proposta da “igualdade para todos”, contudo a categoria “todos”
não incluía a mulher, considerada como possuidora de uma razão inferior. Podemos
observar que aqui a inferioridade da mulher, atestada pelo discurso religioso,
desloca-se para o discurso científico, que a toma como possuidora de uma razão
inferior à masculina
11
. Durante a
Revolução Francesa
muitas mulheres se
destacam e participam ativamente, entretanto esse fato é silenciado pela história que
é construída ainda por e para os homens. Na
II Guerra Mundial
, a mulher acaba
sendo obrigada a assumir o lugar dos homens, enquanto esses estão em batalha,
mas com o término da guerra acabam sendo depostas do lugar que conquistaram e
devolvidas à posição subalterna de “rainha do lar”.
Um aspecto importante em meio a essa história mulher é a sedimentação
de duas identidades possíveis para ela: sua periculosidade e ligação ao mal,
característica divulgada pelo discurso cristão acerca do erotismo 4459( )-83a mulher; e sua
11
26
santidade pela via da maternidade. Esse aspecto diferencia essencialmente a
mulher do homem. Entretanto, conforme Birman (1999)
desde o século XVIII, pelo menos, se forjou um conjunto de
discursos- médico, filosófico e moral- que pretendiam delinear uma
diferença de
essência
entre o masculino e o feminino. Antes disso
não havia absolutamente uma fronteira essencial entre as figuras do
homem e da mulher, pois desde Galeno, no início da era cristã, a
mulher era considerada como um homem
imperfeito
,a quem faltava
calor suficiente para ser um homem” (BIRMAN,1999: 85-86).
Conforme a afirmação acima, o discurso da diferença essencial entre homem
e mulher foi sendo construído a partir do século XVIII, dialogando com um outro
discurso, aparentemente contraditório, de que a mulher seria uma espécie de
homem diminuído. Dessa prática discursiva anterior ao século XVIII mantém-se o
discurso que afirma a inferioridade da mulher em relação ao homem.
Com o discurso da diferença entre os sexos, regulamenta-se e justifica-se a
alocação da mulher com o espaço privado e do homem com o espaçoblico,
dadas as diferenças “essenciais” existentes.
Vamos dar prosseguimento a nossa história, afunilando um pouco os seus
rumos para o nosso país.
1.1.2 O DISCURSO PATRIARCAL NO BRASIL
Durante o Brasil-Colônia, a conduta feminina parece seguir os mesmos
padrões da Europa na Idade Média. Entretanto, a literatura existente sobre a mulher
desse período atesta que nem sempre o estereótipo da mulher boa esposa e mãe,
submissa e fiel era o retrato da mulher brasileira. Muitos registros existem de
modelos que desvirtuam esse tipo de conduta: mulheres adúlteras, prostitutas,
lésbicas, mães solteiras, enfim, todo tipo de “desregramento” em relação à
sexualidade feminina ocorria nesse período segundo observamos nos relatos da
obra História das mulheres no Brasil (2000), organizada por Mary Del Priore. Os
capítulos utilizados da obra em questão são os seguintes: “Maternidade Negada”,
R.P. Venâncio; “Mulheres pobres e violência no Brasil urbano”, R. Soibet; “Trabalho
feminino e sexualidade”, Margareth Rago; “Magia e medicina na colônia: o corpo
feminino”, Mary Del Priore; “Psiquiatria e feminilidade”, Magali Engel; “A mulher e a
família burguesa”, M. D´Incão; “Mulheres dos anos dourados”, C. Bassanezi; “A arte
27
da sedução: sexualidade feminina na Colônia”, Emanuel Araújo. Esses capítulos
dessa obra, que tomaremos por base, carregam em seu discurso uma preocupação
em trazer a história de mulheres reais, que foram pouco contempladas pela história
oficial. Dessa maneira a obra põe em evidência um discurso divergente em relação à
história oficial a respeito da mulher do Brasil-Colônia até a década de 80, relatando a
existência e a atuação de mulheres reais desse período, mulheres essas que
desvirtuavam o padrão feminino que compõe a nossa memória.
No Brasil, assim como na Europa, a mulher era “domesticada” e sempre em
relação a algum homem: “o adestramento da sexualidade (...) pressupunha o desvio
dos sentidos pelo respeito ao pai, depois ao marido, além de uma educação dirigida
para os afazeres domésticos” (ARAÚJO, 2000: 49-50).
O matrimônio também era uma forma de reprimir os impulsos femininos
próprios da adolescência, por isso os pais arranjavam bem cedo casamentos para
suas filhas, “assim, desde muito cedo a mulher devia ter seus sentimentos
devidamente domesticados e abafados” (idem, ibidem: 51). A menina, então,
casava-se, normalmente com alguém bem mais velho e tornava-se mãe, pois “na
visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice da vida da mulher.
Doravante, ela se afastava de Eva e aproximava-se de Maria, a mulher que pariu
virgem o salvador do mundo (idem, ibidem: 52).
Mesmo com a maternidade, a mulher não se livrava da dominação masculina,
porque surgia o médico, para desmentir a beleza e a naturalidade da
maternidade, prescrevendo fórmulas, inventando explicações para coisas que as
mulheres já sabiam e praticavam e ainda interpretações para os “males” que afligiam
o corpo feminino. A maternidade, todavia, não foi vista por todas as mulheres como
“missão”, algo divino, etc. Como atesta o texto de Renato Pinto Venâncio,
Maternidade Negada (2000: 189-222), muitas mulheres durante o período colonial
abandonavam seus filhos ou praticavam aborto por diversos motivos. Uma afirmação
como essa, sendo veiculada num texto científico, vem negar um discurso
consagrado e arraigado em nossa memória discursiva
12
: a maternidade, tida como
missão e/ou desejo de toda mulher. Mais um ponto de divergência em relação à
construção identitária da mulher veiculada pelo discurso histórico.
12
Conceito discutido em nota anterior, diz respeito ao que também é chamado de interdiscurso: o eixo do dizível,
o saber discursivo.
28
Durante o advento da burguesia no Brasil, no século XIX, um
deslocamento nos discursos sobre a mulher:
O nascimento de uma nova mulher nas relações da chamada família
burguesa, agora marcada pela valorização da intimidade e da
maternidade. Um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos
educados e esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada
de qualquer trabalho produtivo representavam o ideal de retidão e
probidade, um tesouro social imprescindível (D´INCÃO, 2000: 223).
Além disso, uma mudança muito importante ocorreu com a instalação da
mentalidade burguesa: o espaço urbano consolidou-se e fez-se a distinção entre
espaço público (a rua) e espaço privado (a casa), quando antes as pessoas tinham
total liberdade para transitar em ambos os espaços nas mais diversas situações.
Inclusive a disposição estrutural das cidades atesta esse fato: antes da “civilização”
do Rio de Janeiro, as casas eram construídas junto com as ruas, não havia
separação, somente nesse momento as casas começam a ganhar afastamento da
rua e dos vizinhos laterais (idem, ibidem: 228). Assim, “o crescimento da população
e as mudanças de atitude quanto ao uso dos espaços de fora da casa devem ter-se
combinado para desencadear a desconfiança em relação aos ´outros´, aos
desconhecidos” (idem. ibidem: 227).
Com a existência do espaço público (onde havia a presença das outras
pessoas), a mulher burguesa teve que aprender a se portar em sociedade, pois
agora, além da vigilância do pai e do esposo, estava submetida à vigilância de toda
a comunidade.
A emergência da família burguesa, ao reforçar no imaginário a
importância do amor familiar e do cuidado com o marido e com os
filhos, redefine o papel feminino e ao mesmo tempo reserva para a
mulher novas e absorventes atividades no interior do espaço
doméstico. Percebe-se o endosso desse papel por parte dos meio
médicos, educativos e da imprensa na formulação de uma série de
propostas que visava “educar” a mulher para o seu papel de guardiã
do lar e da família- a medicina, por exemplo, combatia severamente
o ócio e sugeria que as mulheres se ocupassem ao máximo dos
afazeres domésticos. Considerada base moral da sociedade, a
mulher de elite, a esposa e mãe da família burguesa deveria adotar
regras castas no encontro sexual com o marido, vigiar a castidade
das filhas, constituir uma descendência saudável e cuidar do
comportamento da prole (idem, ibidem: 230).
Todas essas mudanças no comportamento da mulher burguesa trazem-lhe
uma nova função: dela dependia a “imagem” da família perante a sociedade, o que
29
influenciava decisivamente nos negócios da família. Os valores burgueses
assumiram tal importância na vida das mulheres que sua conduta passou do
domínio alheio (sociedade, pais, marido) para ela mesma. Houve um movimento de
auto-vigilância no decorrer do século XIX: as mulheres “aprenderam a se comportar”
(idem, ibidem: 236), ou seja, incorporaram os valores impostos como seus.
Acreditamos que nesse momento os discursos de crítica em relação ao
comportamento feminino passaram a fazer parte do repertório da própria mulher.
Além de se auto-vigiar, ela vigia e fala sobre o comportamento das outras mulheres.
O “código” de conduta feminina foi discursivizado excessivamente em textos
escritos: os jornais, que ocupavam suas páginas com mandamentos de conduta
feminina, bons costumes, etc.; a literatura, que também se ocupava de extensas
descrições dos comportamentos femininos. Através desses e outros textos, além dos
textos divulgados na oralidade, o ideal burguês foi naturalizando o trabalho
doméstico como afazer propriamente feminino, um dos principais pontos do “bom
comportamento” da mulher burguesa.
É importante mencionar que também aqui em terras brasileiras,
principalmente durante o projeto de higienização das cidades, “a medicina social
assegurava como características femininas, por razões biológicas: a fragilidade, o
pecado, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação
da sexualidade à vocação maternal” (SOIBET, 2000: 363).
No século XIX, a medicina e, sobretudo, a psiquiatria fizeram divulgar uma
concepção de sexualidade feminina como diretamente ligada à sanidade mental, o
que passa para o campo da moral e aparece nos discursos sobre a sexualidade
feminina até hoje. “Assim, a sexualidade só não ameaçaria a integridade física,
mental e moral da mulher, caso se mantivesse aprisionada nos estreitos limites entre
o excesso e a falta e circunscrita ao leito conjugal (ENGEL, 2000: 342). Dessa
produção de sentido, resulta uma prática da sexualidade feminina tida como ideal: a
mulher tinha de cumprir suas “obrigações” conjugais no que diz respeito ao sexo,
entretanto não poderia demonstrar disposição excessiva, até as posições do coito
eram determinadas. Práticas sexuais mais ousadas eram direito exclusivo das
prostitutas.
Dos relatos sobre a vida da mulher em terras brasileiras, pudemos perceber
que nem sempre a dominação masculina, normalmente feita através da família, da
Igreja e da medicina, conseguiu adestrar completamente as mulheres, contudo
30
“parece que o normal era a introjeção, por parte das próprias mulheres, dos valores
misóginos predominantes no meio social” (ARAÚJO, 2000: 53).
É preciso pensar de outra forma ainda a conduta das mulheres das classes
menos abastadas. “Apesar da existência de muitas semelhanças entre mulheres de
classes sociais diferentes, aquelas das camadas populares possuíam características
próprias, padrões específicos, ligados às suas condições concretas de existência”
(SOIBET, 2000: 367). A mulher das classes populares, ao que parece, gozavam de
maior liberdade sexual, não necessariamente tendo que casar formalmente,
31
50) e, portanto, dignas de um bom casamento. O código de conduta moral feminino
era bastante divulgado e conhecido, enquanto às mulheres era proibido qualquer
envolvimento sexual antes do casamento, sob pena de não casar mais, aos homens
a sexualidade era incentivada como prova de sua virilidade.
Apesar da popularização do trabalho feminino (no comércio, hospitais,
escolas, escritórios, etc.), a mulher que trabalhava ainda era estigmatizada na
década de 50, pois não poderia ser boa mãe e dona de casa se trabalhasse fora. De
qualquer forma, os afazeres domésticos continuam a ser exclusividade feminina:
“tarefas domésticas como cozinhar, lavar, passar, cuidar dos filhos e limpar a casa
eram consideradas deveres exclusivamente femininos. Dentro de casa, os homens
deveriam ser solicitados apenas a fazer pequenos reparos” (BASSANEZI, 2000:
626). Era a “divisão tradicional dos papéis”, que não poderia ser questionada, à
mulher cabia sempre “agradar” ao homem, sendo boa esposa, “rainha do lar”,
estando sempre contente, disposta a manter a paz e a felicidade da família (sem
pensar em interesses próprios).
A partir do relato sobre os discursos que circulavam sobre a mulher no Brasil
nos períodos que comentamos podemos observar (o que faremos posteriormente)
nas análises das falas femininas atuais a presença de discursos que reproduzem
essas práticas em relação à maternidade, casamento, moral feminina, etc.
Estendemo-nos no período da Idade Média, da burguesia e a os anos 50
para podermos deixar bem sedimentada a origem de um discurso que ainda produz
efeitos na fala de mulheres e homens e que chamaremos de “discurso machista
originário da Idade Média”. Nossa hipótese é de que essas práticas discursivas
sobrevivem reatualizando-se e compondo contraditoriamente a fala da mulher atual.
Juntamente com essa prática discursiva, aparece ainda o discurso originário do
discurso feminista clássico. Por isso julgamos pertinente trabalhar esse outro ponto
dentro da história da mulher.
1.1.3 MOVIMENTO FEMINISTA E FEMINISMO
O segundo ponto que consideramos importante dentro da história das
mulheres, por constituir de maneira bastante marcada o discurso feminino
contemporâneo, é o movimento feminista.
32
Segundo Louro (2000), o feminismo põe em evidência o conceito de gênero,
ele está “ligado diretamente à história do movimento feminista contemporâneo”
(LOURO, 2000: 14). Conforme a autora, o Sufragismo (movimento que reivindicava
o direito de voto à mulher) foi a “primeira onda” dentro do que se chamou movimento
feminista. Nesse contexto, começam a surgir estudos sobre o papel da mulher que
denunciavam amplamente a invisibilidade a que a mulher se encontrava submetida.
“A segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas
tivera como conseqüência a sua ampla invisibilidade como sujeito” (idem, ibidem:
17). As atitudes do movimento foram marcadas por seu caráter essencialmente
político: enquanto algumas militantes reivindicavam igualdade entre homens e
mulheres, outras propunham a subversão, a ocupação do espaço que até então
pertencia ao público masculino.
Pouco a pouco, as discussões chamadas “de gênero”, primeiramente
somente relacionadas às mulheres, estendem-se aos homens. “A pretensão é,
então, entender o gênero como constituinte da identidade dos sujeitos” (idem, ibidem
24). Essa afirmação nos remete aos pressupostos foucaultianos enunciados que
tomam a sexualidade como fator identitário construído historicamente:
Em suas relações sociais atravessadas por diferentes discursos,
símbolos, representações e práticas, os sujeitos vão se construindo
como masculinos ou femininos, arranjando e desarranjando seus
lugares sociais, suas disposições, suas formas de ser e de estar no
mundo”(idem, ibidem: 28).
Na
década de sessenta
há uma forte corrente no sentido dos fatores
genéticos como determinantes dos gêneros: o homem é pré-determinado ao exterior
e a mulher ao interior. Esse fator dá ainda mais força ao argumento de superioridade
masculina e de aprisionamento da mulher ao espaço doméstico. As mudanças
parecem começar a ocorrer na
década de setenta
com o marco instituído da
liberdade sexual, através da pílula anticoncepcional e o levante do movimento
feminista. A partir daí, a mulher começa a requerer seus direitos nos espaços
públicos, começa a se colocar enquanto sujeito dentro de uma sociedade
essencialmente patriarcal, sua voz começa a ecoar, apesar dos muitos rumores e
opiniões contrárias.
O movimento feminista, conforme Hall (2000: 49-50) é um dos marcos
responsáveis pelo descentramento do pensamento do século XX, descentramento
33
da própria identidade do sujeito moderno. Esse movimento questiona a distinção
dentro versus fora, privado versus público; coloca em pauta ainda questões até
então negligenciadas como a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão
doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças etc. Com isso, o movimento
questiona a forma generalizante como somos formados enquanto sujeitos: mães,
pais, homens e mulheres, abrindo espaço para a discussão da diferença sexual.
Um outro aspecto bastante importante regulamentado pelo movimento
feminista é a negação da maternidade como fator determinante para a identidade
feminina. Um deslocamento bastante significativo ocorre no discurso sobre a
maternidade: de missão (concepção ancorada no discurso religioso cristão), a
maternidade passa a ser uma opção. “Dessa maneira, o ser femininamente mulher
não passa mais agora pelo ranço obsceno da obrigatoriedade e da impossibilidade
de ser mulher, sem que esta sofra as penas, dores e delícias da maternidade”
(BIRMAN, 1999: 94). Entretanto, não podemos esquecer que até hoje a presença do
discurso religioso sobre a maternidade ainda é evidente, contudo ele é transpassado
por um outro discurso de base feminista que se impôs desde a década de oitenta
(80).
“O feminismo é uma rejeição explícita ao estilo de vida criado por normas
estritamente coercitivas que restringem e definem o que a mulher é e o que ela pode
fazer” (BARDWICK, 1981: 9). Com a máxima da igualdade, “o feminismo assumiu e
criou uma identidade coletiva de mulheres, indivíduos do sexo feminino com um
interesse compartilhado no fim da subordinação, da invisibilidade e da impotência
(SCOTT, 1992: 67-68). Depois de algum tempo, as designadas como “feministas
radicais” foram aquelas que passaram a divulgar um discurso de superioridade
feminina e tomada de lugar do homem, em resposta aos anos de subordinação.
Hoje em dia, contudo, esse discurso chamado feminista retorna de formas
diferentes, sobretudo na fala de uma mulher que não está e nem esteve engajada no
movimento feminista. Mesmo assim, consideramos que o movimento feminista “não
desapareceu, seja como uma presença na academia ou na sociedade em geral,
ainda que os termos de sua organização e de sua existência tenham mudado”
(SCOTT, 1992: 65).
Bardwick (1981) afirma que o início do movimento feminista nos Estados
Unidos foi marcado por uma assimilação do “discurso do macho”. Dessa forma, as
feministas sem o saber assimilavam um discurso sexista, ou seja, de que as
34
coisas referentes ao “masculino na cultura é que são boas e desejáveis. Dessa
forma, “minimizavam suas próprias realizações e desvalorizavam suas próprias
características, imitando o desdém da sociedade machista pelo ´feminino´”
(BARDWICK, 1981: 2-3). A autora ainda fala em três correntes dentro do movimento
denominado “Feminismo”: as feministas conservadoras, que apenas requisitavam
algumas poucas mudanças no sistema como a divisão dos trabalhos domésticos e
pagamento de salários iguais entre os sexos; as feministas moderadas, que lutavam
por mudanças de leis, reformas em geral que visavam a justiça para com as
mulheres, mas não a destituição das instituições; e as feministas radicais, que
queriam destruir algumas instituições americanas, mudar as estruturas básicas e
não apenas “reformar” a sociedade, essas são as que parecem ter uma visão
sexista, conforme já mencionamos.
Entretanto, apesar da ampla divulgação das feministas radicais, que
pregavam o fim do capitalismo, do casamento, defendiam o homossexualismo, entre
outros aspectos que chocavam o público em geral, havia as feministas moderadas
que reivindicavam medidas mais viáveis a curto prazo, como a assistência à mulher
no trabalho, condições de igualdade salarial, oportunidades igualitárias de estudo,
etc. Todavia, parece que o “discurso feminista” que prevaleceu, e hoje conhecemos
por esse rótulo é o das radicais, um discurso da mulher que quer inverter valores e
chocar.
De qualquer forma, “o feminismo tornou-se um grande movimento porque as
feministas, radicais ou moderadas, expressaram a frustração e o desejo latente de
mudanças existentes numa porcentagem significativa de mulheres” (BARDWICK,
1981: 17). E essa mudança, que ainda hoje é lenta e gradual, perpassa o discurso
da mulher (e não dela, mas também do homem) da contemporaneidade, que
esse movimento da história (do patriarcalismo introjetado ao feminismo) nos constitui
e constitui nossa prática discursiva.
Para fechar esse passeio teórico pela história da mulher, trazemos a reflexão
de Joel Birman (1999: 183-184), que fala das mudanças produzidas na subjetivação
da mulher ao longo do tempo no Ocidente. O autor afirma (e concordamos com ele)
que duas mudanças significativas na história da mulher ocidental: “a primeira se
processou entre a denominada Idade Clássica e a modernidade, enquanto a
segunda indica uma descontinuidade entre esta e a pós-modernidade (idem, ibidem:
35
184). Dizer que houve uma “evolução” em relação à Idade Clássica e a
contemporaneidade talvez não seja a melhor opção. O que houve foram mudanças,
rupturas. Os papéis e discursos sobre as mulheres deslocaram-se, foram
perpassados por outros discursos oriundos de novas ideologias e mudanças
históricas. Assim, observamos o papel da ideologia e da história
13
produzida pelos
historiadores na construção da identidade feminina, o que se materializa nos
discursos SOBRE a mulher e produzidos PELA mulher também. Falemos agora, a
partir do lugar teórico que nos colocamos- a AD- na constituição da mulher como
sujeito.
1.2 O EFEITO-MULHER
A partir dessa revisão teórica podemos pensar como a mulher vem se
constituindo historicamente. É pelas práticas discursivas, ou seja, pelos discursos
que circulam sobre a mulher e que a mulher faz circular sobre si mesma desde muito
tempo que podemos construir o que entendemos por “mulherhoje. Que significante
é esse “A mulher”? Será que ele é mesmo constituído a partir da palavra do homem,
já que o discurso masculino se configurou (e configura ainda?) como dominante?
Propomos pensar essa construção do efeito (que entendemos como
imaginário) “mulher” a partir do conceito pêcheuxtiano de forma–sujeito.
Embasado na tese central de Althusser de interpelação dos sujeitos pela
ideologia, Pêcheux (1997) postula a relação entre ideologia e inconsciente na
construção do sentido e do sujeito. Segundo ele, é no “complexo das formações
ideológicas” (PÊCHEUX, 1997: 160) que a evidência do sentido e do sujeito se dá.
No caso que analisamos, a evidência do que é “ser mulher” se justamente nesse
complexo das formações ideológicas.
Conforme Orlandi, o papel da ideologia é “produzir evidências” (2002: 46).
Dessa maneira, a evidência da existência do sujeito é produzida ideologicamente,
através da filiação do indivíduo a uma dada formação ideológica que, por sua vez,
materializa-se numa formação discursiva. “A ideologia faz parte. Ou melhor, é a
13
A história que tratamos nesse momento é a história como “historicidade”, ou seja, não o fato em si, mas a
produção de uma verdade histórica construída pelos historiadores.
36
condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em
sujeito pela ideologia para que se produza o dizer” (idem, ibidem: 46.).
Pêcheux passa a construir seu conceito de
forma-sujeito
, explicitado em
Semântica e Discurso
14
(1975), para isso recorre a outros campos fora da
Lingüística, a saber à releitura de Marx por Althusser e de Freud por Lacan, para dar
conta de uma teoria não subjetiva do sujeito, tal como algumas noções filosóficas da
época acentuavam. Assim sendo, a forma-sujeito é justamente a interpelação dos
indivíduos em sujeitos falantes a qual se faz via ideologia e inconsciente, um passo
dado para se chegar ao conceito de heterogeneidade. A esse efeito ilusório, pelo
qual todo sujeito é um já-sujeito, e não fruto de um processo de interpelação, o autor
denomina “Efeito Münchhausen”, ilusão necessária para que os indivíduos tomem-se
como “causa de si”. “É exatamente para superar essa visão do sujeito como ser
transparente a si mesmo que ele empreende o esforço de conferir à subjetividade
uma dimensão ao mesmo tempo ideológica e psicanalítica, através do conceito de
forma-sujeito” (TEIXEIRA, 2005: 45)
Forma-sujeito é, portanto, o conceito utilizado para tratar da constituição do
sujeito do discurso, através das propriedades discursivas que o posicionam histórico
e socialmente. Pêcheux trabalha nesse conceito baseado nas noções de
constituição do sujeito em Lacan e Althusser:
Ao dizer que o EGO, isto é, o imaginário no sujeito (lá onde se
constitui para o sujeito a relação imaginária com a realidade) não se
pode reconhecer sua subordinação, seu assujeitamento ao
Outro
,
ou ao
sujeito
, que esta subordinação- assujeitamento se realiza
precisamente no sujeito
sob a forma de autonomia
, não estamos
pois fazendo apelo a nenhuma “transcendência” (um Outro ou um
Sujeito reais), estamos simplesmente retomando a designação que
Lacan e Althusser- cada um a seu modo- deram (adotando
deliberadamente as formas travestidas e “fantasmagóricas”
inerentes à subjetividade) do processo natural e sócio histórico pelo
qual se constitui- reproduz o efeito-sujeito como interior sem
exterior, e isso pela determinação do real (exterior) e
especificamente- acrescentaremos do interdiscurso como real
(exterior) (PÊCHEUX, 1997: 163).
Esse “efeito-sujeito”, resultado de uma ilusão imaginária que se origina na
forma-sujeito, é justamente o sujeito “sempre-já-lá” Um efeito que se cria através dos
processos ideológicos que tornam evidentes a (s) identidade(s) com as quais o
sujeito se afirma.
37
Posteriormente, contudo, Pêcheux percebe que, ao cercar um sujeito plenamente
interpelado, algo parece furar essa estabilidade. Assim corrige-se em auto-crítica
impressa em fevereiro de 1978, quando apresenta seu artigo causa do que
falha: “levar demasiadamente a sério a ilusão de um eu-sujeito-pleno em que nada
falha, eis precisamente algo que falha em Les Vérités de La Palice (PÊCHEUX,
1997: 300).
Pensamos que ocorre com a mulher o mesmo “efeito” ilusório do sujeito.
Assimilar o que é “ser mulher” é pautar-se num conceito imaginário produzido
historicamente pelas práticas discursivas: o que chamamos de “efeito-mulher”. O
significante “mulher” em si mesmo não carrega sentido algum, mas se investe de
sentido pela determinação das posições ideológicas que estão em jogo no processo
sócio-histórico de (re) produção das palavras e dos discursos sobre a mulher. Isso
ficará mais claro quando procurarmos estabelecer, no próximo capítulo, a relação
com a psicanálise, considerando que, ao nomear um indivíduo de “mulher”, o
significante carrega o peso da história, os sentidos e atribuições do que as práticas
discursivas construíram como o que é ser mulher e, portanto, o sujeito estará sob
esse efeito, que entendemos como histórico e imaginário.
Se nos voltarmos para o questionamento que colocamos no início desse
tópico: será que a construção do efeito-mulher se deu por práticas discursivas
masculinas (e, na maioria das vezes, machistas)? E se considerarmos (pelo menos
provisoriamente) como verdade essa pergunta teremos de nos fazer outros
questionamentos neste trabalho: como pensar a identidade feminina, via discurso
(como estamos nos propondo) na contemporaneidade? Vejamos: a construção do
próprio período que estamos vivendo é um passo na caminhada histórica.
Acreditamos que não como estar isento das práticas discursivas que constituíram
e constituem a mulher de hoje. Considerando esse fato, achamos melhor não
problematizar nossa suposta constituição através da palavra do homem, mas
simplesmente ver a mulher contemporânea pela sua palavra, pelo seu discurso. Se
os discursos que a compuseram são ou não masculinos e/ou machistas, o fato é que
eles a compõem e é isso que ora nos interessa. Não havendo como voltar na história
(e assim descobrir qual era o discurso da mulher nas épocas em que a literatura
contempla apenas a história masculina), vamos partir do que temos HOJE como
materialidade, ou seja, a fala da mulher, procurando compreender que práticas
discursivas constituem sua fala na atualidade.
38
Dessa forma não ignoramos o passado, a história, mas procuramos vê-los
sem os ranços das brigas de gênero, para podermos tomá-los como parte do que
hoje é a mulher e o seu discurso. Assim tentaremos compreender como a mulher de
hoje se identifica e reproduz esses discursos que compõem a memória histórica
sobre o que é ser mulher.
Ainda é importante posicionar-nos acerca da nossa noção de discurso.
Tomamos discurso a partir da ótica da AD, na sua formulação clássica “efeito de
sentido entre interlocutores” (Pêcheux:: como materialidade lingüística, na sua
relação com a história, com a ideologia e perpassado pelo inconsciente. Sendo
permeado pela história e pela ideologia, o discurso (re) produz práticas discursivas
assentadas, mas também é o lugar do equívoco, que tem como material a língua,
que está sujeita a falhas.Ainda o consideramos como produzido numa posição
discursiva que fabrica sujeitos falantes, sujeitos esses interpelados pela ideologia,
marcados pela história e faltantes/desejantes, pela interposição do inconsciente.
CAPÍTULO 2:
A MULHER NA PSICANÁLISE: UMA QUESTÃO DE ESTRUTURA
Depois de trabalharmos com a noção de efeito-sujeito, estendido para “efeito-
mulher”, pensamos que a designação “mulher” implica, para qualquer sujeito, além
da questão histórico/ideológica, algo que é de estrutura e que se via linguagem.
39
Daí a necessidade de trabalharmos com alguns pressupostos psicanalíticos, mesmo
que não os tomemos posteriormente como dispositivo analítico.
Abordamos a questão da identidade feminina a partir da ótica da Análise do
discurso de linha francesa (AD), acrescentando alguns textos da Psicanálise, que
na terceira fase da AD ela tem papel fundamental. Ambas as teorias partem da
linguagem como elemento fundamental na constituição do sujeito. O sujeito é para a
Psicanálise um sujeito desejante, constituído pela falta e, para a AD, um sujeito
heterogêneo e interpelado pela ideologia. Considerando, então, que o sujeito se
constitui pela palavra, partimos do pressuposto de que “As formações da linguagem
precedem os indivíduos e os inscrevem em determinadas posições na ordem
simbólica; assim, ´home e ´mulher´ são os primeiros significantes que nos
designam” (KEHL, 1998: 11). Conforme essa designação, é a palavra do “outro” que
palavra ao sujeito que, então, constitui-se. É, portanto, o discurso alheio que nos
permite o acesso ao simbólico e, a partir daí, as possibilidades de identificação.
Freud afirma em seu artigo sobre a feminilidade (1976: 153), que “anatomia é
destino”, ou seja, nascer anatomicamente homem ou mulher implica
necessariamente a transposição de UM dos caminhos do Édipo. Já para Lacan
“linguagem é destino” (apud KEHL, 1996: 13), portanto, o “tornar-se” sujeito e, mais
precisamente, tornar-se um sujeito mulher, depende necessariamente da linguagem,
da simbolização. Considerando esse aspecto, “é a cultura que nos designa destinos
diferenciados como homens ou mulheres” (idem, ibidem: 13), além disso, “Do ponto
de visa do inconsciente, a diferença -embora fundamental- também é mínima:
depende do modo de inscrição dos sujeitos, homens ou mulheres, sob a ordem
fálica que organiza o desejo, mas que o fixa necessariamente o gênero à
sexualidade” (idem, ibidem: 13). Assim, o percurso pelo Édipo e a inscrição na
ordem fálica é que irão determinar a questão da feminilidade ou masculinidade no
indivíduo, seja qual for sua constituição biológica.
Para a Psicanálise, a constituição do indivíduo em sujeito se no momento
da passagem do estado polimorfo infantil
15
, quando a criança ainda identifica-se com
o falo e, por isso, vê-se onipotente, ainda não discriminada da mãe, para a
15
Segundo Birman (1999: 31), “afirmar que a sexualidade é polimorfa implica enunciar que ela tem diversas
formas de existência e de apresentação, se materializando pois em diferentes modalidades do ser”. Desse modo,
o estado polimorfo é aquele em que ainda não se tem uma definição do objeto de desejo sexual, que
primordialmente pode ser múltiplo.
40
organização genital sexuada. Esse processo ocorre pela recusa do amor edípico e
pela identificação ao objeto parental dado pela cultura.
Assim sendo, o sujeito origina-se, primeiramente, do desejo dos pais, depois
a criança torna-se o falo, no registro imaginário, inscrevendo-se, pois, no narcisismo
primário. É preciso, então, que ocorra a castração para que o sujeito se desloque
para o narcisismo secundário, quando assimila a figura do “outro”, deslocando,
então, o amor de si mesmo para outros objetos (BIRMAN, 1999: 44). A partir dessa
passagem pelo Complexo de Édipo é que o sujeito sai da sua arrogância primária de
completude para a noção de si enquanto incompleto, faltante, desejante e sexuado.
2.1 SUJEITO PSICANALÍTICO
41
do imaginário temos a criação de um “eu” unificado, ou seja, é a instância que nos
permite a ilusão de que somos completos, ilusão narcísica de domínio sobre nossos
corpos e mentes. O simbólico, que é a instância que nos interpela via contato com a
linguagem, quebra essa completude imaginária, permitindo-nos o acesso ao Real
por meio de um “filtro”, que é a linguagem. Quanto ao Real é o que não cessa de
não se escrever” (idem, ibidem: 89), ou seja, justamente a dimensão que não pode
ser simbolizada, e que, por isso mesmo, escapa ao sujeito. O Real é o todo e, ao
mesmo tempo, o resto: é o registro que compreende o “todo psíquico, inclusive
aquilo que não é simbolizado; e é também o restante, aquilo que denota a existência
de um vazio, o buraco instaurado pelo simbólico.
Como o sujeito lacaniano se constitui pela linguagem, a ordem simbólica é
que irá mediatizar sua relação com o real, entrelaçando este e o imaginário. O
sujeito entra na ordem do simbólico através do estágio do espelho (quando
reconhece seu corpo no espelho como símbolo de si mesmo) e da metáfora paterna
(significante Nome do pai, instância da lei, ordem simbólica, a própria linguagem)
que leva à divisão do sujeito que precisa recalcar o desejo materno à ordem do
inconsciente. O eu (moi, na terminologia lacaniana) se constitui no imaginário como
uma identidade unificada, entretanto, o sujeito como um todo é o efeito clivado,
faltoso e desejante do inconsciente que, para Lacan, pertence ao simbólico e
também à ordem imaginária.
Assim, a concepção de sujeito de Lacan trata de um sujeito concebido como
efeito do discurso, que “um significante é o que representa um sujeito para outro
significante” (Lacan, 1998). Dessa forma, o sujeito está na esfera de dois
significantes e se coloca, portanto, no espaço de deslizamento da enunciação. Mas,
diferentemente das concepções subjetivistas, o sujeito psicanalítico na enunciação é
o sujeito da instância do imaginário e, portanto, um efeito.
Tendo observado alguns pontos da teoria psicanalítica lacaniana de
constituição do sujeito, consideramos pertinente explicitar melhor a questão do
Complexo de Édipo, para que possamos entender como se a diferenciação entre
o feminino e o masculino (agora conforme a teoria freudiana):
Em anos muito precoces da infância (aproximadamente entre as
idades de dois a cinco anos) ocorre uma convergência dos impulsos
sexuais, da qual, no caso dos meninos, o objeto é a mãe. Essa
escolha de um objeto, em conjunção com uma atitude
42
correspondente de rivalidade e hostilidade para com o pai, fornece o
conteúdo do que é conhecido como o
complexo de Édipo
, que em
todo o ser humano é de maior importância na determinação da
forma final de sua vida erótica. (NAGERA, 1981: 63)
Sabemos que as crianças nascem biologicamente com um sexo, entretanto
até a passagem pelo Édipo se configuram como seres bissexuais (Freud, 1976:
141), característica que permanece em s, contudo um dos lados (feminino ou
masculino) torna-se preponderante:
Freud sublinhou a contribuição da bissexualidade para o duplo e
mais completo complexo de Édipo, ou seja, um que é positivo e
negativo. Ainda mais importante é o fato de Freud ter considerado o
vigor das disposições masculina e feminina como principais
determinantes para a solução da situação de Édipo: “Pareceria,
portanto, que em ambos os sexos a força relativa das disposições
sexuais masculina e feminina é o que determina se o desfecho da
situação edipiana será uma identificação com o pai ou com a mãe.
Esta é uma da maneiras pelas quais a bissexualidade é responsável
pelas vicissitudes subseqüentes do complexo de Édipo” E mais: “A
intensidade relativa das duas identificações em qualquer indivíduo
refletirá a preponderância nele de uma ou outra das duas
disposições sexuais”.(NAGERA, 1981: 63)
O primeiro objeto de desejo para ambos, meninos e meninas, é a mãe,
contudo a menina precisará deslocar esse objeto sexual para o outro pólo, situando-
o, portanto, na figura paterna. Sendo assim, o caminho a ser percorrido pela menina
parece ser bem mais complexo, considerando o deslocamento de interesse sexual
(do feminino para o masculino), bem como a zona erógena que passa do clitóris
(órgão que a menina acredita ser um “pênis pequeno”) para a vagina. No que diz
respeito ao menino, “a zona genital principal do rapaz continua sendo o falo e o
objeto sexual uma mulher” (idem, ibidem: 65).
Considerando esses aspectos, percebemos que a maturação sexual feminina
se de forma diferente da masculina, constituindo-se num processo mais
complexo. Se relacionarmos a isso as imposições de natureza social, que complicam
ainda mais o papel da mulher, veremos que na conjuntura atual o “tornar-se mulher”
parece passar por um processo de antítese: ao mesmo tempo que algumas
tendências a empurram para o “desejo masculino”, em que a mulher precisa ser
dócil, submissa, etc , ela parece precisar fugir desse padrão para sublimar-se.
Ocorre que a mulher atual defronta-se com um paradoxo: algo do nível da estrutura-
43
a feminilidade- determina para ela algumas características regidas pelo desejo;
entretanto, ela se constitui imersa numa ordem fálica, que requisita características
divergentes para que ela possa saciar, então, o desejo masculino. As características
que dizem respeito à feminilidade propriamente dita, são características outras
(diferentes das exigidas pelo desejo masculino do que é ser mulher, numa ordem
fálica) que de alguma forma foram renegadas pela cultura. É o que discutiremos no
próximo tópico através da noção de sintoma, cunhada por Lacan.
2.2 A MULHER ESTRUTURADA COMO SINTOMA
Depois de termos dado uma noção geral da constituição do sujeito mulher
pela psicanálise, para discutirmos a questão da estrutura da mulher partiremos de
um conceito nuclear nesse sentido: a noção de “sintoma”, oriunda do axioma
lacaniano: “a mulher é sintoma do homem
16
Segundo Laurent (2006: 1), Lacan formula, primeiramente, nos anos
sessenta, a proposição da mulher vista como fantasma
17
do homem, numa relação
imaginária. Nos anos setenta, desloca essa proposição para a noção de sintoma, e a
mulher passa a ser em relação ao homem o seu “sintoma”. Ele explica, em
Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (1998), que não identificação
possível ideal com o papel masculino, porque existe a castração. Em decorrência
disso, os homens estariam sempre à procura da parte perdida, que supostamente os
completaria, e encontram essa parte no parceiro sexual, no “outro”. Assim “a fórmula
do desejo do macho designa o lugar da mulher como sendo o do objeto a
18
do
fantasma” (LAURENT, 2006: 2).
a inscrição do desejo da mulher não estaria necessariamente no “outro”.
Ela está à procura do falo, que verdadeiramente nunca recusou, mesmo na
passagem pelo Édipo, mesmo sendo ela própria o objeto que está à procura. Em
Mais Ainda (1996), Lacan postula a fórmula “A Mulher não existe”, afirmando que
16
Esta formulação aparece em : LACAN, J. “RSI”. Semináire du janvier 1975.
Ornicar?
N.3. Paris: Lyse, 1975,
p. 108.
17
A noção de “fantasma” diz respeito à fantasia. O fantasma é a produção no imaginário no sentido de dar corpo
ao desejo, um caminho possível em direção ao gozo. Nas palavras de Lacan, “a fantasia torna o prazer
44
não um significante que designe esse conjunto geral que seria “A mulher”. Elas
existem apenas na singularidade, que “as mulheres se organizam como não-todas
na função fálica” (idem, ibidem: 2). O “A” barrado da fórmula “A mulher” indica que
não inscrição possível para ela, esse significante é algo do nível do não-
simbolizável.
Lacan reformula a diferença entre os sexos postulando a oposição de duas
lógicas: a do “todo fálico” para o homem e “não-todo fálico” para as mulheres; ainda
fala em dois tipos de gozo: gozo fálico para os homens e um gozo suplementar para
as mulheres(SOLER, 2005: 17).
Voltando à noção de “sintoma”, para compreendermos como a mulher pode
ser inscrita como sintoma do homem, é necessário que precisemos essa noção. “O
sintoma é apreendido como fenômeno de verdade, quer dizer, pensado no
significante, e concebido daqui por diante a partir do aparelho do gozo. O sintoma
designa o efeito do gozo do significante no corpo” (idem, ibidem: 4). Relaciona-se
mais ou menos ao que Freud designa como pulsão, algo entre o psíquico e o
somático, mas Lacan coloca o sintoma “enquanto conexão real do significante e do
corpo” (idem, ibidem: 4). Em “Função e campo da fala em linguagem e
psicanálise”
19
, Lacan afirma que o sintoma é “o significante de um significado
recalcado da consciência do sujeito” (1998: 282). Em suma, o sintoma é a
manifestação, seja no corpo, como o foi no caso das histéricas analisadas por Freud,
ou mesmo na fala, do desejo do sujeito, que foi recalcado pela consciência. É “um
sem sentido, uma opacidade no discurso do sujeito, por representar alguma irrupção
da verdade” (DIAS, 2006: 4).
O sintoma é aquilo que retorna a despeito da vontade consciente do sujeito.
Uma palavra, um gesto dissonante que traz à tona alguma verdade que parece, em
princípio, absurda. É a irrupção do conteúdo recalcado e do nível do desejo do
sujeito.
Essa apresentação da noção de sintoma, mesmo que sumária, permite-nos
pensar a mulher enquanto sintoma Temos consciência de que a máxima lacaniana
da mulher como sintoma está relacionada ao corpo do homem, que o homem
coloca a mulher como causa do seu desejo, conteúdo esse que, não podendo ser
verbalizado, pode ser recuperado na terapia. Dessa forma o gozo feminino não
19
In: Escritos, 1998, (original publicado em 1953).
45
passa pela linguagem, tendo caráter místico- o gozo suplementar-. O que seria,
então, esse conceito “mulher-sintoma”? Mulher sintoma do homem? O enunciado
literal da máxima lacaniana parece ressoar alguma submissão (efeito de sentido
dado pelo interdiscurso), contudo, ao tomarmos a noção de sintoma, percebemos
que é exatamente o contrário. A mulher sintoma (do homem e da sociedade, que por
sua vez é predominantemente masculina, tendo em vista ser a voz masculina a
dominante) é o reflexo de tudo que o homem recalca, tudo que o homem deseja e
não pode simbolizar, ou seja, não pode discursivizar.
É importante mencionar ainda que esse conceito de sintoma o pode ser
operatório
20
no que diz respeito ao dispositivo analítico, que estamos trabalhando
nos domínios da Análise do Discurso e os objetos são diferentes. A área na qual nos
situamos recobre o que diz respeito apenas ao discurso, à materialidade lingüística.
Contudo, entendemos que essa noção da estrutura feminina pode nos levar a
compreender a constituição do discurso feminino, o efeito-mulher que nos recobre e
produz nossa identidade e ainda seus desdobramentos. É o que procuraremos fazer
na análise dos enunciados femininos.
A questão da mulher atual poder ou não ser considerada como sintoma do
homem foi discutida por Charles Melman (2005), numa conferência ocorrida no
Brasil intitulada Será que podemos dizer, com Lacan, que a mulher é o sintoma do
homem?. Nesse texto, o autor diz que a questão da diferença (e até da
impossibilidade da relação entre um homem e uma mulher) é algo do nível da
estrutura
21
(p. 16). Afirma ainda que é a mulher quem decide sobre a validade da
figura paterna (ou melhor, do Nome-do pai, instância da lei)
22
, pelo fato dela não ser
toda-fálica como o homem e ter em sua estrutura, portanto, características que
permitem a ela recusar algo da lei paterna, do poder masculino. Ela instaura dessa
maneira o lugar do “Outro”, que é justamente a instância do desejo, o que escapa ao
poder do pai.
Melman faz ainda uma ressalva importante sobre a máxima lacaniana:
20
Essa observação foi sugerida pela professora Dra Glacy Roure na qualificação que, da posição de psicanalista
e analista do discurso, compreende que são objetos diferentes de análise de cada área, o que nos obriga a
enveredar por UM dos caminhos, pelo menos neste momento, já que o trabalho é em Análise do Discurso.
21
Entenda-se estrutura aqui dentro de uma concepção psicanalista: como estrutura de configuração do sujeito: a
forma como ele passa pelo complexo de Édipo, segundo a leitura freudiana, e a forma como ele organiza as três
instâncias psíquicas: Real, Simbólico e Imaginário, conforme a psicanálise lacaniana.
22
O Nome-do-pai é a metáfora paterna ou “função paterna”, aquilo que inscreve para o sujeito a lei que o proíbe
do incesto e instaura a linguagem. Pode ou não ser identificada com a figura paterna, mas funciona em termos de
registro imaginário, não exatamente de uma figura empírica (o pai).
46
Ele não disse “uma mulher é o sintoma do homem”. É A Mulher que
não existe e que, como somos todos aprendizes-mestres, nós
queremos todos fazê-la existir, porque se nós conseguirmos fazê-la
existir, então, nós podemos capturá-la completamente,
perfeitamente e, assim, seremos todos iguais.(MELMAN, 2005: 22).
A partir da fala de Melman, podemos compreender que Lacan está tratando
não de uma mulher específica, que seria o sintoma do homem, mas exatamente do
conjunto A Mulher, significante que não existe, que não está no nível do simbólico e,
por isso, revela a presença de um Outro que se interpõe, oriundo do registro do
Real. É isso ainda que permite a singularidade das mulheres, de cada mulher, já que
elas enquanto conjunto, não existem. O que existe é um efeito de homogeneidade
do conjunto, do qual tratamos no capítulo anterior, que chamamos de “efeito-
mulher”, efeito esse que, ao interpelar as mulheres como sujeito, as homogeinizam,
já que permitem para elas a apropriação de um discurso do que é ser mulher,
configurado por práticas discursivas pautadas em uma ideologia dominante que é
machista.
Mas voltemos ao desejo, instância corporificada pela mulher. A questão do
desejo está diretamente ligada à questão da perda. Vejamos como isso se processa.
Ser um sujeito desejante é ser um sujeito em que algo falta, um sujeito que perdeu
algo. E por haver algo perdido, passamos a vida a procurar essa parte perdida de
nós. Isso explica outra máxima lacaniana: “não relação sexual”. Melman explicita
essa questão afirmando que Lacan quer com isso dizer que a relação sexual não
existe porque ela se não pelo desejo do “todo” do outro sujeito, mas por alguma
“parte” do seu corpo (2005: 24). “A parte do corpo do homem que interessa à mulher
é evidente” (MELMAN, 2005: 25), entretanto o que em nós causa o desejo dos
homens é algo que não sabemos exatamente. Por que estamos mencionando esse
fator? Para falar de um aspecto muito recorrente nas mulheres e que se manifesta
nas suas falas: a insegurança. A mulher vive angustiada sem saber o que tem que
fazer para conquistar um homem. Já neles, essa característica é menos freqüente, já
que possuem (e sabem que possuem) o que uma mulher procura. “A questão do que
torna o corpo de uma mulher desejável para um homem se encontra naquela escrita
de Lacan que sustenta que, para um homem, a imagem de uma mulher é o suporte
desse objeto pequeno a, quer dizer, do objeto de sua fantasia” (idem, ibidem: 25).
47
Segundo esse raciocínio, o que o homem procura numa mulher é algo que
está perdido nele e que pertence ao pequeno a, ou seja, à dimensão do Real, do
impossível, do que foi recalcado, e aqui voltamos ao fato da mulher ser sintoma do
homem. Não uma mulher individual, mas o conjunto das mulheres “A mulher” (que
não existe), é sintoma em relação ao conjunto dos homens, que podemos relacionar
com a própria civilização.
Ao afirmar que “A mulher é sintoma do homem”, estamos tratando de uma
categoria que está fora do registro do simbólico: sendo da instância do Real,
portanto, que ela não “ex-siste”. Dessa forma, ela é sintoma do homem, enquanto
categoria generalizada, não de um homem, ou de alguns homens. É sintoma de “O
homem” enquanto humanidade, ou sociedade em geral, não especificamente do
gênero masculino.
Por isso Freud afirmava em Feminilidade (1976) ser a mulher a
desestabilizadora do pacto civilizatório, porque ela quebra com mais facilidade do
que os homens a questão da lei paterna instituída. Tudo isso porque durante o
Complexo de Édipo feminino, o superego forma-se diferentemente em relação ao
homem, de forma mais branda, o que, assinalaria muitos efeitos “sobre o caráter
feminino em geral” (FREUD, 1976: 159). A mulher vazão ao desejo, e o desejo
sempre está fora da lei. Esse “poder” atribuído à mulher- de conseguir fugir da lei-
pode ser considerado um ponto extremamente positivo. Entretanto, sabemos que
Freud tinha opiniões bastante preconceituosas em relação à mulher. Entretanto, é
preciso considerar o lugar de onde fala Freud, que talvez não permitisse outra forma
de conceber a mulher dentro da sociedade do século XIX.
Para Freud, é que uma mulher é simplesmente um homem
diminuído, uma vez que ela renunciou a uma parte de sua virilidade.
Seu gozo é deslocado para um outro lugar anatômico, mas
permanece um gozo inteiramente fálico. Ou seja, Freud cai em cheio
em nosso sintoma, que quer que a mulher seja de um falicismo ao
menos igual àquele do homem. (MELMAN, 2005: 15).
Não vemos o fato de a mulher constituir-se diferentemente do homem em
relação à lei de forma negativa, como o fez Freud. Ao contrário, o vemos
positivamente, entendendo-o como um fator estrutural que nos permite uma
transposição maior à lei e, portanto, uma abertura maior em direção ao desejo e ao
gozo, característica da feminilidade.
48
Maria Rita Kehl (1996) também nos traz algumas contribuições sobre a
formação do “sujeito-mulher”, conforme a Psicanálise. Ela afirma, com base na
leitura freudiana inicialmente, que as mulheres são seres pouco éticos por conta de
uma “falha” na formação do superego. Vejamos:
O superego é o herdeiro do complexo de Édipo. Instância que se
forma a partir de um duplo movimento psíquico: a renúncia às
pretensões eróticas do amor edípico e o retorno de uma parte da
libido sobre o próprio eu, na forma das identificações paterna e
materna, e da formação dos ideais. Representa ao mesmo tempo
um substituto para as pretensões do amor edípico e uma formação
reativa contra ele (KEHL, 1996: 38)
Assim sendo, é pelo complexo de castração que o menino sai do Édipo,
quando descobre a falta no sexo feminino, no entanto, a menina entra no complexo
de Édipo justamente nesse momento, pela descoberta da castração, “reorientando
seu amor da mãe castrada para o pai fálico” (idem, ibidem: 39). Dessa forma, ela,
diferentemente do menino, entra no complexo de Édipo com a descoberta da sua
castração. A pergunta é: o que a faz sair, então, que não tem nada a perder?
Freud nos responde da seguinte maneira: “Na ausência do temor da castração, falta
o motivo principal que leva o menino a superar o complexo de Édipo. As meninas
permanecem nele por um tempo indeterminado; destroem-no tardiamente e, ainda
assim, de modo incompleto” (1976: 159).
Kehl responde da seguinte forma o mesmo questionamento: “É a ameaça da
perda do amor, e não do pênis, que sinaliza a necessidade da renúncia feminina ao
49
mulher tem sim muito a perder se não sair do Édipo: tem a perder sua própria
feminilidade. Tem a perder o que a faz tornar-se uma mulher.
O que nos interessa dessa discussão sobre a passagem da mulher pelo
Complexo de Édipo é que, ao passar dessa forma e não de outra, é que a mulher
torna-se mulher, assume sua feminilidade.
A constituição do sujeito psicanalítico deixa um legado bastante importante
para nós em termos de pensar o sujeito a partir de uma falta que nos é
constitutiva.No que diz respeito à mulher essa falta se coloca de maneira mais
presente, tendo em vista a falta anatômica que origem à castração simbólica
imposta pela lógica fálica a que estamos todos submetidos.
2.3 EFEITO OU SINTOMA? MULHER-EFEITO, SINTOMA, AFINAL, AONDE
CHEGAMOS (CHEGAMOS?)?
A questão da falta e da mulher como sintoma aponta para possíveis
compreensões da mulher na contemporaneidade. A diversidade de papéis, a falta,
ou assimilação de muitas identidades confirma um movimento que se processa e
que não mais nos permite ver a mulher a partir de um signo homogêneo. Essas
reflexões nos levam a pensar que nesse UM que é a mulher um “Outro” que a
desestabiliza. Obviamente esse movimento vem ocorrendo com homens e mulheres,
mas mais nitidamente com as mulheres, tendo em vista que toda mudança em
relação à lei (e aqui podemos citar o movimento feminista e todas as mudanças que
a mulher vem trazendo em sua história) é mobilizada pelas mulheres. Os homens
parecem estar mais fixos a uma lógica fálica e têm se (des) estruturado em
função do seu relacionamento com a mulher.
A mulher é o sintoma do homem porque se coloca como “objeto de desejo”
dele, já que se defronta com a falta do falo. Entretanto, como para ela não
castração, que
é
castrada, não nada a perder, o que faz com que ela,
contraditoriamente, seja dotada de uma ilimitação fálica (ou SEJA o próprio falo
23
).
Essa estruturação leva a uma
falta
que não é jamais preenchida. Como sempre foi o
homem que historicamente deteve a palavra (KEHL, 1998), é ele quem vai produzir
o desejo que vai habitar a mulher, por isso ela é o sintoma, posto que corporifica as
23
Elizabeth da Rocha Miranda, apud Kehl, (1996: 74), afirma que se o homem possui o suporte imaginário do
falo, à mulher é mais acessível a SÊ-LO.
50
angústias e conflitos, o que não é verbalizado, o que foge à lei instaurada pela
linguagem.
A mulher é, portanto, sintoma do homem, e não somente dele, mas da própria
cultura em que estamos inseridos. Assim, “não estarão as mulheres (...) tentando dar
conta também dos aspectos da problemática masculina de que elas, receptivas,
devoradoras, acabam por se ´encarregar´?” (KEHL, 1996: 59). O questionamento
colocado por Kehl (1996) progride para a afirmação de que a existência dessa
mulher, que não existe para o inconsciente como preconizou Lacan, vem
funcionando, portanto, como o inconsciente do mundo masculino, que traz de
volta alguns pontos recalcados, via sintoma.
Assim, se é pelas práticas discursivas, ou seja, pelos discursos que circulam
sobre e pela boca da mulher que podemos construir o que entendemos por “mulher”
hoje, que significante é esse “A mulher”? Será que ele é mesmo constituído a partir
da palavra do homem, já que o discurso masculino se configurou (e configura
ainda?) como dominante? Ou vem havendo uma subversão quando a mulher acaba
verbalizando o que no homem não encontra simbolização? São pontos da
construção do sujeito mulher na contemporaneidade que gostaríamos de discutir
para pensar a heterogeneidade.
Articulando a noção de efeito-sujeito, ou “efeito-mulher”, com os pressupostos
psicanalíticos, podemos dizer que, ao nomear um indivíduo “mulher”, o significante
carrega o peso da história, os sentidos e atribuições do que as práticas discursivas
construíram como o que é ser mulher e, portanto, o sujeito estará sob esse efeito,
que entendemos como histórico e imaginário. Mesmo que, como afirmou Lacan, A
Mulher o exista, ou melhor, não exista como conjunto, existe um efeito
homogeneizante do que é ser mulher, o que é construído via palavra do homem.
Contudo, esse efeito nem sempre funciona, porque sempre um furo, daí a
mulher se constituir como sintoma.
Quando uma mulher se constitui como objeto causa do desejo para
o homem, se alojando dessa forma no fantasma masculino, ela se
faz, então, objeto de gozo para este homem. Ao ser
objeto a
, ou o
sintoma que o homem recupera no seu corpo ao preço do Falo na
relação sexual, a mulher localiza o gozo fálico deste homem.
(LAURENT, 2006: 1)
51
Essa relação corpórea da mulher como sintoma em relação ao homem produz
uma relação simbólica da mulher e sua constituição identitária. A falta está colocada
e torna-se fato, fato esse simbolizável via linguagem.
Assim, ao mesmo tempo em que a mulher é interpelada pela ideologia e pela
palavra do homem -efeito-sujeito-, também carrega o fado de ser sintoma, portar
uma verdade negada, ou seja, ser aquilo que, como diz a gasta metáfora para
designar sintoma, “ao ser jogado pela porta, retorna pela janela”.
Kehl (1996) nos oferece uma reflexão bastante significativa quando pensamos
na transição por que passa a mulher contemporânea:
Que a mulher tenha se tornado plenamente- não, plenamente talvez
seja exigir demais até para um homem!- capaz de amar e trabalhar,
é essa a revolução na natureza humana que ainda não sabemos
simbolizar, pois acena para a possibilidade de retraçar as vias de
circulação dos valores fálicos em nossa cultura. Que tenhamos nós,
mulheres, conquistado o
falo da fala
, preparando caminho para
nossa própria existência, criando a possibilidade de inscrever no
inconsciente da espécie, nem que seja daqui a duzentos anos, os
signos da nossa subjetividade- ambígua, sim; bissexual, sim;
incestuosa, também-, tudo o que a mulher parece-que-é-mas-não-
pode-ser se torna possível na medida em que adquirimos existência
também sublime, sublimada, acesso ao simbólico, substituindo as
possibilidades concretas, limitadas, destinadas em grande parte ao
recalque (KEHL, 1996: 66)
Com isso fechamos/abrimos a discussão sobre a mulher sintoma, que
corporifica e externaliza a falta, mas ainda carrega o “efeito” de ser mulher conforme
a gica masculizadora e, por isso, está sob o signo da heterogeneidade. Deixamos
as previsões futuras para o futuro. Por enquanto tratemos da mulher heterogênea e
desse conceito de heterogeneidade processado na terceira fase da AD.
CAPÍTULO 3:
A MULHER VISTA SOB O SIGNO DA HETEROGENEIDADE
Antes de ponderarmos sobre a mulher vista pela heterogeneidade, é
importante discutir como esse conceito foi desenvolvido pela Análise do Discurso,
vamos às bases teóricas, portanto.
Na terceira fase da Análise do Discurso, Pêcheux reformula grande parte da
sua teoria. De uma análise automática do discurso (AAD-69) passa-se para a
consideração do discurso e do sujeito visto sob o signo da heterogeneidade.
52
Ao enunciar o conceito de forma-sujeito, Pêcheux (1975) descreve a forma
pela qual o indivíduo é interpelado em sujeito ao assumir, no complexo das
formações ideológicas
24
, sua posição como EU imaginário, entrando, assim, na
evidência das significações. Dessa forma, ele aceita como sua “realidade” parte
desse universo ideológico materializado nas formações discursivas para tornar-se
sujeito do discurso. Vejamos nas palavras de Pêcheux:
O funcionamento da Ideologia em geral como interpelação dos
indivíduos em sujeitos (e, especificamente, em sujeitos de seus
discursos) se realiza através do complexo das formações
ideológicas (e, especificamente através do interdiscurso intrincado
nesse complexo) e fornece “a cada sujeito” sua “realidade”,
enquanto sistema de evidências e de significações- aceitas-
experimentadas. Ao dizer que o EGO, isto é, o imaginário no sujeito
(lá onde se constitui para o sujeito a relação imaginária com a
realidade), não pode reconhecer sua subordinação, seu
assujeitamento se realiza precisamente no sujeito sob a forma de
autonomia...
(PÊCHEUX, 1997: 162-163).
Pêcheux fala do efeito-sujeito referindo-se às teorias althusserianas da
interpelação pela ideologia e lacanianas de constituição do sujeito. Entretanto, até
esse momento (1975) ainda toma essa interpelação do sujeito como algo sem
falhas, como se a ideologia nos assujeitasse sem lugar para furos. Depois do
contato com Jaqueline Authier e da revisão de alguns pontos da teoria psicanalítica
lacaniana, Pêcheux escreve em 1978 o artigo causa daquilo que falha. Desse
momento em diante, a AD caminha rumo à concepção de
heterogeneidade
.
A chamada terceira fase da AD é o fruto do amadurecimento dos conceitos
enunciados por Pêcheux, o que se acentua pelo encontro teórico com a lingüista J.
Authier-Revuz, que propõe a teoria da heterogeneidade enunciativa, a partir de
estudos sobre o discurso relatado.
O princípio da heterogeneidade é apresentado por J. Authier em 1981, no
colóquio Materialidades Discursivas, do qual Pêcheux participa. As idéias debatidas
nesse colóquio levarão Pêcheux a romper com a noção de formação discursiva,
inaugurando o termo “discursividade” e vendo o discurso e o sujeito como
heterogêneos.
24
Formação Ideológica (FI) é “um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem
´individuais´nem ´universais´, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em
conflito umas em relação às outras” (Pêcheux (1971), apud Teixeira, 2005: 33).
53
O que a autora apresenta como “heterogeneidades enunciativas” compreende
a
heterogeneidade constitutiva
, aquela pela qual o “eu pensa falar- ilusão
narcísica- que se constitui basicamente pela interferência do interdiscurso e do
inconsciente; e a
heterogeneidade mostrada
, que é a presença do “outro” no texto,
marcada explicitamente, através de aspas, discurso direto e indireto livre, glosa,
citações, ironia etc.
A noção de
heterogeneidade constitutiva
nos interessa sobremaneira,
que é ela que novo estatuto ao sujeito discursivo, inaugura a presença
determinante do “outro” no mesmo e apresenta essa como condição fundamental, ou
melhor, constitutiva. Contudo, a heterogeneidade mostrada é precisamente a que
confirma o assujeitamento, pois, ao se demarcar o discurso “alheio”, o sujeito afirma
que o restante é autenticamente SEU, de sua autoria e propriedade. É, portanto, a
heterogeneidade mostrada que nos leva à constitutiva.
A partir dos estudos sobre a presença manifestada do “outro” nos textos,
pode-se pensar diferentemente a constituição do sujeito, agora não mais somente
uma posição, um indivíduo plenamente assujeitado por uma ideologia. A Psicanálise
contribuiu muito para essa designação de sujeito da terceira fase da AD, segundo a
qual não falamos sempre o que queremos, como e da maneira que queremos, mas
estamos “sujeitos” a inúmeros fatores e um deles é a manifestação do inconsciente e
isso é que faz com que passemos de indivíduos a sujeitos.
Entendendo o sujeito como um efeito de linguagem, a Psicanálise busca
as formas de constituição desse sujeito não no interior de uma fala
homogênea, mas na diversidade de uma fala heterogênea, que é
conseqüência de um sujeito dividido. (BRANDÃO, 1998: 43).
À abordagem psicanalítica, J. Authier (1990) conjuga a teoria bakhtiniana.
Dessa teoria a autora considera o princípio dialógico constitutivo da linguagem e a
afirmação de que todo dizer é atravessado por outras vozes- teoria polifônica-, o que
significa que nenhum dizer é original e, mais que isso, toda palavra é carregada
ideologicamente
25
. Vejamos o que afirma a autora sobre sua filiação teórica às duas
correntes:
25
Sobre isso ver BAKHTIN, M.
Marxismo e Filosofia da Linguagem:
problemas fundamentais do
método sociológico na Ciência da Linguagem. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
54
Para propor o que chamo de heterogeneidade constitutiva do sujeito e de
seu discurso, apoiar-me-ei, de um lado, nos trabalhos que tomam o
discurso como produto de interdiscursos ou, em outras palavras, a
problemática do dialogismo bakhtiniano; de outro lado, apoiar-me-ei na
abordagem do sujeito e de sua relação com a linguagem permitida por
Freud e sua releitura por Lacan (AUTHIER-REVUZ, 1990: 25)
Das concepções de Bakhtin e Lacan, a autora retira, portanto, elementos para
formular a sua teoria da heterogeneidade enunciativa. Apesar de pontos de vista
bastante divergentes, ambas as correntes
têm em comum o fato de terem oferecido para a concepção de sujeito, de
linguagem, de sentido e da relação estabelecida entre essas posições, a
idéia de não homogeneidade, de alteridade constitutiva, de
heterogeneidade constitutiva, de relação não separável um-outro. É o
conceito de ´outro constitutivo do eu/discurso´, portanto, que sustenta a
originalidade e a contribuição decisiva dessas duas teorias para os
estudos do sujeito e da linguagem.”(BRAIT, 2001: 9).
Authier critica a posição dos estudos pragmáticos e enunciativos que
consideram a noção de intenção do sujeito, a autora menciona o trabalho de Ducrot,
ao qual se apóia que ele dedicou-se aos casos do discurso relatado, entretanto
considera o estudo desse teórico uma abordagem intralingüística do sentido. Critica
os estudos pragmáticos pela não consideração da presença do inconsciente na
linguagem, tal como enuncia a Psicanálise, encerrando-se na “categoria lacaniana
do imaginário que é colocada em jogo, e a ´função de desconhecimento´assegurada
estruturalmente no sujeito por um ´ego´[´moi´] ocupado em anular, no imaginário, a
divisão que afeta o eu´[´je´]” (AUTHIER-REVUZ, 1998: 17).
Considerando o trabalho da autora acima mencionada, Pêcheux, como
teórico inquieto que sempre foi, passou a reformular sua própria teoria. Com
Semântica e Discurso ele “resolve” o problema da máquina discursiva que
homogeneizava os discursos e absorvia completamente o sujeito. Entretanto,
conforme comentamos no primeiro capítulo, a forma-sujeito e o “Efeito
Münchhausen” acabam dando uma dimensão tão perfeitamente estável da
interpelação do sujeito, que não recobre uma questão que sempre pesou nos
estudos de Michel Pêcheux: as ideologias dominadas.
O grande problema, agora reconhecido pelo autor, é que, ao acreditar ter
cercado o sujeito, ele acaba reproduzindo o sujeito pleno, contornando o fato de que
55
“o non-sens do inconsciente, em que a interpelação encontra onde se agarrar, nunca
é inteiramente recoberto nem obstruído pela evidência do sujeito-centro-sentido que
é seu produto” (PÊCHEUX, 1997: 300). O inconsciente ou Outro (da teoria
lacaniana) nunca deixa de estar lá, sendo recoberto pelo Imaginário, que é a
instância fundadora e constitutiva do sujeito, o qual se configura como desejoso,
faltante.
Pêcheux começa a questionar a questão dos discursos de resistência que
surgem em meio a sujeitos interpelados por ideologias dominantes. Como se daria
esse processo se o assujeitamento fosse perfeito? Quer dizer que falhas, as
quais se manifestam na linguagem e pouco a pouco fazem surgir discursos de
resistência. Contudo
Retraçar a vitória do lapso e do ato “falho” nas falhas da
interpelação ideológica não supõe que se faça agora do
inconsciente a fonte da ideologia dominada, depois do fracasso de
fazê-lo o impulso do superego da ideologia dominante, o recalque
não se identifica nem com o assujeitamento nem com a repressão,
mas isso não significa que a ideologia deva ser pensada sem
referência ao registro do inconsciente (PÊCHEUX, 1997: 301)
O autor procurar esclarecer com isso uma falha que houve em Semântica e
Discurso (1975) ao identificar o Sujeito do inconsciente ao Sujeito ideológico de
Althusser. O sujeito é sim interpelado ideologicamente, contudo esse ritual não se
sem falhas, tendo em vista o atravessamento pelo inconsciente. A linguagem é a
instauração do simbólico, e o simbólico faz-se pelo processo metafórico: um
significante por outro. Sendo assim, é nesse filtro pelo simbólico que algo se perde,
já que a linguagem não conta de reproduzir um Real que é insuportável ao
sujeito.
Todas essas inquietações são colocadas em pauta no colóquio
“Materialidades Discursivas”, de junho de 1979, quando M. Pêcheux entra
efetivamente em contato com J. Authier. Esse contato foi decisivo e colocou de uma
vez por todas o discurso, e por conseguinte o sujeito, sob o signo da
heterogeneidade. Como afirma Pêcheux (apud MALDIDIER, 2003: 74): “o primado
do outro sobre o mesmo se impôs”. Authier, na posição de lingüista, que insiste em
manter, fornece pressupostos materiais lingüísticos para a problemática da
heterogeneidade no discurso.
56
O conceito de heterogeneidade constitutiva de J. Authier vinha em
consonância ao conceito de interdiscurso, aliás, a própria autora em seu trabalho
fala da ligação à AD e aos trabalhos de Althusser e Foucault (AUTHIER, 1990: 27).
E a heterogeneidade mostrada, além de levar à constitutiva, também pode ser
relacionada ao intradiscurso da teoria pêcheuxtiana. Intercâmbio teórico perfeito.
Pêcheux, ao comentar sobre os novos caminhos da AD em sua terceira fase,
fala da consideração do discurso-outro, que se faz pela presença da
heterogeneidade mostrada (as marcas do discurso alheio colocado em cena pelo
sujeito), mas, sobretudo, pela heterogeneidade constitutiva, condição primeira do
discurso, que se faz pela “insistência de um ´além´ interdiscursivo que vem, aquém
de todo autocontrole funcional do ´ego-eu´, enunciador estratégico que coloca em
cena ´sua´seqüência” (In: GADET; HAK, 1993: 316-317). O que ele chama de um
“além” interdiscursivo, podemos entender como o Outro, o inconsciente, que se
estrutura via discurso identificando-se com o sujeito, ao mesmo tempo que o
desestabiliza “nos pontos de deriva em que o sujeito passa no outro, onde o controle
estratégico de seu discurso lhe escapa” (Pêcheux, In: GADET; HAK, 1993: 317). A
partir daí, a AD “interessa-se em fazer emergir novos procedimentos de análise a
partir da consideração da heterogeneidade/equivocidade do sujeito e do sentido
(TEIXEIRA, 2005: 16).
Considerando que a heterogeneidade constitutiva é condição de todo
discurso, assumimos uma concepção de discurso como materialidade lingüística
constituída pelo interdiscurso e também pelo inconsciente.
Esta concepção do discurso atravessado pelo inconsciente se articula
àquela do sujeito que não é uma entidade homogênea exterior à linguagem,
mas o resultado de uma estrutura complexa, efeito de linguagem: sujeito
descentrado, dividido, clivado, barrado” (AUTHIER-REVUZ, 1990:28).
Ao chegar à especificidade de um sujeito heterogêneo que se constitui como
tal à medida que fala e falha, Pêcheux ocupa um lugar original dentro dos estudos
lingüísticos, tendo em vista que não se opõe simplesmente a um sujeito intencional,
egóico, mas o situa através do assujeitamento como sujeito ideológico e afetado
pelo inconsciente, e o faz relacionando esse sujeito à materialidade específica da
língua, que a própria língua é sintoma: “a língua que todo o locutor toma como
´instrumento de comunicação´, freqüentemente escapa a ele” (TEIXEIRA, 2005: 16).
A língua, o sujeito e o sentido passam, portanto, pelo crivo da heterogeneidade.
57
A noção de heterogeneidade abarca principalmente o postulado de que o
discurso e o sujeito são constituídos também por uma falta, legado que nos é dado
pela Psicanálise. Entretanto, como operaremos segundo os mecanismos de análise
da AD, é preciso compreender como essa falta se manifesta na linguagem.
Acreditamos que uma noção que nos pode ser útil em termos de análise é a noção
de
equívoco
. O equívoco é procedente da falha, que se origina na língua, ou seja, a
língua está sujeita a falhas. No discurso é que percebemos o equívoco, pois é pela
inscrição da língua na história que ele se produz, no funcionamento da ideologia
e/ou do inconsciente (ORLANDI, 2001: 102-103). Pelo equívoco, portanto,
materializado no discurso das mulheres, podemos nos voltar à falta que é
constitutiva de todo sujeito e que atesta a heterogeneidade.
Como pensar, então, essa noção de heterogeneidade do sujeito em relação à
mulher? Acreditamos que ao situarmos a mulher como “efeito”, mas um efeito que
falha, que produz equívocos no discurso, a colocamos na tensão entre dois pólos:
um regido pela determinação histórico-ideológica e outro que se coloca a partir do
desejo, da falta que constitui todo sujeito. Pensando nessa bipolaridade, situamos o
sujeito sob o signo da heterogeneidade. Se considerarmos ainda a formação da
estrutura feminina pela Psicanálise, podemos afirmar que a mulher apresenta de
forma mais clara essa manifestação heterogênea, posto que corporifica a falta e a
externaliza via sintoma. A materialização dessas posições acerca da identidade
feminina é o que procuraremos demonstrar a partir do discurso feminino que
analisaremos na seqüência.
CAPÍTULO 4:
ENFIM, O DISCURSO FEMININO!
A incursão pelo discurso feminino e as leituras que procedemos acerca da
mulher vista pela história, da mulher vista pela psicanálise, e da constituição do
sujeito pela heterogeneidade, segundo a AD, foram delimitando um percurso teórico-
analítico que mobilizou conceitos requisitados pelo corpus, o qual foi também foi se
delimitando. Dessa forma foi-se construindo, como denominou Orlandi um
“dispositivo de interpretação” (2002: 59). Esse dispositivo se fez por uma via de mão
dupla: as questões surgidas no corpus “pediam” o trabalho de algumas categorias
teóricas e essas categorias teóricas foram fazendo com que o corpus para a análise
58
fosse se compondo. Antes de iniciarmos a análise propriamente dita, é preciso
explicitar esse gesto de composição do corpus.
4.1 CONVERSANDO COM MULHERES SOBRE SER MULHER: CONSTITUIÇÃO
DO
CORPUS
Neste tópico procuraremos justificar a coleta de corpus, talvez nem tanto
convencional. Nos ancoramos nas teorias das quais partimos: a AD, que prevê uma
constituição do corpus não a partir da teoria, mas um trabalho de análise em que as
questões teóricas surjam do corpus, o qual vai se delineando conforme o andamento
da pesquisa; e a Psicanálise, que trabalha com o elemento verbal pautado no
princípio da associação livre.
O material sobre o qual nos debruçamos – a materialidade lingüística- permite
transitar entre as várias áreas teóricas nas quais nos apoiamos, contudo, temos em
vista que são diferentes as noções de discurso em cada uma das áreas, assim como
outros conceitos, tais como feminilidade.
Não pretendemos tecer considerações sobre a articulação da AD e a
Psicanálise, terreno bastante conflituoso e ainda em desenvolvimento. Sabemos que
a relação entre ideologia e inconsciente é o ponto de encontro entre as duas teorias,
mas também ponto de divergência. Considerando isso, pretendemos tomar alguns
pontos da Psicanálise como base para se pensar a constituição do sujeito mulher e
a produção da(s) sua(s) identidades, tendo em vista a brecha teórica da constituição
heterogênea do sujeito em sua dupla interpelação: pela ideologia e pelo
Inconsciente. Todavia, a Psicanálise não será tomada para fins analíticos,
problemática que mencionaremos na seqüência.
A análise do discurso feminino será feita, então, a partir dos pressupostos da
Análise do Discurso de linha francesa da terceira fase, a qual parte de alguns
princípios psicanalíticos. Trabalharemos com a fala de mulheres, voltando nosso
olhar a um material coletado em entrevistas e recortado por nós.
Trata-se, portanto, de mais um “gesto de interpretação”, como se diz em AD,
a fim de pensar as práticas identitárias como efeitos que se produzem na e pela
linguagem. Falamos em “gesto de interpretação”, porque além da investida do
analista ser uma possibilidade de leitura, precisamos considerar que os discursos
analisados são produzidos por um grupo que, por sua vez, é parte de uma
59
determinada realidade social, o que faz com que a referida pesquisa ofereça
conclusões a respeito especificamente dessa realidade. É claro que isso pode
contribuir para conclusões mais generalizadas acerca do tema, entretanto não pode
constituir-se como algo fechado, definitivo.
A Psicanálise nos lega para a constituição do nosso objeto de estudo o
princípio da associação livre, segundo o qual procuramos ancorar nossas
entrevistas. Acreditamos que é no discurso oral que se produz um efeito de
“naturalidade” no uso da língua, dada a não possibilidade de reformulação, de
retorno ao texto. Nessa materialidade é que mais freqüentemente podemos observar
o “real da língua” ou seja, aquilo que é impossível de ser dito e que aparece nos
equívocos, chistes, faltas, falhas, etc.
O discurso oral ainda se justifica por um modelo bastante interessante, e
aceito por cheux, que é o modelo da “Nova História”, sobretudo no que se refere
aos princípios de Michel de Certeau. Esse modelo toma o discurso como base de
análise e material para a história.
“O procedimento de Certeau privilegia o próprio ato de falar, passando pela
escuta das práticas comuns desses usuários (homens comuns)” (TEIXEIRA, 2005:
58). Pêcheux concorda com Certeau ao priorizar a linguagem comum e o aspecto
conversacional da linguagem. Na segunda parte do Tomo 2 de “A Invenção do
Cotidiano (CERTEAU, 1998) denominada “Cozinhar”, quando Luce Giard
(colaboradora de Certeau) traz entrevistas com mulheres a respeito dos hábitos
cotidianos acerca do ato de cozinhar, podemos ter um bom ponto de ancoramento e
modelo para nossa coleta de dados.
Os autores tomam “vozes de mulheres” comuns, espécies de “conversas”,
com o intuito apenas de ouvir essas mulheres, que em geral não são
ouvidas.Trabalharam nessa coleta de dados com mulheres comuns, do rculo de
amizades de uma conhecida, mas não da família da pesquisadora por razões óbvias
de interferência por conta do contato muito íntimo e de possíveis conflitos familiares.
Outro aspecto importante, conforme as próprias palavras da autora, é que “cada
entrevista foi feita de acordo com um plano bem flexível, dando lugar a muita
liberdade e espontaneidade à entrevistada, inclusive para dar vazão às suas
associações de idéias” (CERTEAU et al, 1998: 223).
60
Dessa forma também procuramos proceder nas entrevistas que realizamos:
colocando algumas questões para iniciar a conversa, mas deixando, sobretudo, a
mulher “livre” para falar.
Tendo justificado teoricamente nosso objeto de análise, vejamos como isto se
deu concretamente. A constituição do corpus de análise, conforme mencionado,
parte de entrevistas realizadas com mulheres de perfis diversificados. Tendo em
vista que a pesquisadora é também uma mulher, podemos dizer que a coleta de
dados foi constante, pois o tempo todo estamos conversando com mulheres de
vários espaços e níveis sociais. Entretanto, formalmente, foram feitas 10 (dez)
entrevistas, com mulheres entre 15 e 83 anos, de níveis sociais diferentes e
profissões diversas, nos municípios de Guarapuava, Irati e Maringá, no Paraná.
A escolha da amostra foi aleatória e contou com a disponibilidade dos
sujeitos. Não partimos de segmentos ou estratificações sociais para determinar o
público pesquisado, pois gostaríamos de compor um quadro de mulheres que
pudesse ser representativo da mulher “em geral” no período contemporâneo, e não
de uma classe específica de mulheres. Assim, selecionamos as mulheres em função
das práticas discursivas femininas mais ou menos regulamentadas que
acreditávamos que poderiam apresentar mulheres de determinada faixa etária, por
exemplo, ou classe social.
Dessa forma, procuramos compor um quadro diversificado de mulheres,
partindo do pressuposto de que elas poderiam mostrar práticas discursivas diversas,
tendo em vista o afetamento por alguns discursos (como o feminista ou machista,
por exemplo), dependendo da idade, escolaridade e/ou profissão. Assim, fizemos
entrevistas com dez mulheres, escolhidas em função de sua idade, profissão e
escolaridade. Quanto à idade, optamos por ter representantes das seguintes faixas
etárias: dos 15-25 anos; 25-45 e acima de 45 anos; quanto à profissão, procuramos
contemplar ao menos uma dona de casa e uma mulher considerada bem sucedida
profissionalmente; quanto à escolaridade, selecionamos pelo menos uma mulher de
cada nível: até ensino fundamental, ensino médio e ensino superior acima.
Pretendemos com essa escolha dos sujeitos pesquisados conseguir uma amostra de
práticas discursivas diversas a fim de obter um perfil da mulher em geral, e o
estratificado, conforme já mencionamos.
61
Sabemos da impossibilidade de homogeneizar a mulher, tornando-a uma
mulher genérica abstrata, talvez esse efeito possa ocorrer quando se fala em
analisar o discurso feminino. Nossas mulheres são reais, indivíduos interpelados em
sujeito, e, para que isso fique registrado, acreditamos ser importante apresentar o
perfil das 10 (dez) entrevistadas.
Ao tratar disso, estamos falando de condições de produção (CP).Conforme
Orlandi (2003) as CP compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Em
sentido amplo diz respeito ao contexto sócio histórico e ideológico. Cremos que
tratamos disso no primeiro capítulo deste trabalho. as CP em sentido estrito
dizem respeito ao contexto imediato. Partiremos primeiramente dos sujeitos
pesquisados: das dez entrevistadas cinco eram solteiras, duas casadas, duas viúvas
e uma separada; duas eram professoras, quatro estudantes (três universitárias e
uma do Ensino Médio), uma empregada doméstica, uma funcionária pública, uma
aposentada e uma dona de casa. Em relação ao grau de escolaridade,
adiantamos que três eram estudantes universitárias, uma estudante do ensino
médio, duas professoras pós-graduadas (uma com nível de mestrado e a outra com
especialização); duas com ensino fundamental incompleto, uma com ensino
fundamental completo e uma com ensino médio completo. Os locais onde vivem
essas mulheres são cidades do interior do Paraná (Guarapuava, Irati e Maringá) e a
escolha se deu em função de serem os locais por onde a pesquisadora transitava. O
cruzamento desses dados pode ser observado no quadro a seguir, que apresenta os
sujeitos pesquisados:
Iniciais estado civil
idade Profissão escolaridade
Local
M.M. solteira 22 anos Estudante superior inc. Irati-PR
V.C. solteira 19 anos Estudante superior inc. Irati-PR
P.P.B solteira 15 anos Estudante
ensino médio
incompleto
Guarapuava-
PR
M.S. separada 30 anos Empregada
doméstica
ens. fund.
incompleto
Guarapuava-
PR
R.M. S. viúva 51 anos aposentada
ens. fund.
Guarapuava-
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incompleto PR
T.V. casada 44 anos funcionária
pública
ens. médio
completo
Guarapuava-
PR
N.F.L. solteira 27 anos professora
sup. Comp.
Pós- Grad.
Maringá-PR
E.C.B. casada 34 anos Profesora
universitaria
sup. Comp.
Pós- Grad.
Maringá-PR
C. S. solteira 21 anos estudante superior Inc. Maringá-PR
I. M.S. viúva 83 anos
dona de
casa
Ens. fund.
completo
Irati-PR
O procedimento das entrevistas ocorreu da seguinte maneira: abordamos as
entrevistadas dizendo que estávamos fazendo uma pesquisa sobre o
comportamento feminino e gostaríamos de conversar, fazer algumas perguntas.
Fomos bem recebidas por todas as mulheres, todas se mostraram bastante
dispostas a falar. A impressão que tivemos é de que não um espaço de reflexão
na vida dessas mulheres sobre o fato de ser mulher, daí o interesse em falar sobre o
assunto.
A entrevista partia do seguinte questionamento:
Você gosta de ser mulher? Por quê?
Outras questões que foram colocadas durante as entrevistas pela
entrevistadora foram:
O que a mulher pode ou não fazer?
Qual a diferença entre ser homem e ser mulher? Quais os pontos positivos
e/ou negativos no fato de ser mulher?
Você quer (ou sempre quis) se casar?
Você quer (ou sempre quis) ser mãe?
Daí em diante, foram surgindo muitos assuntos dependendo da entrevista,
mas contemplamos na análise principalmente a resposta a essas questões.
63
Outro dado importante é que nove das dez entrevistas que realizamos não
foram gravadas. Foram feitas anotações pela pesquisadora durante as entrevistas e
logo depois delas. Contudo, a riqueza do material coletado fez com que
considerássemos que ele não poderia ser desperdiçado e, materialidade lingüística
que é, poderia e deveria ser analisado. Ainda é importante mencionar que o material
dessas nove entrevistas, mesmo não tendo sido gravado, é a reprodução das falas
das entrevistadas, procuramos não alterar nada do seu conteúdo e forma original. As
frases que nos “soaram” mais importantes foram anotadas na íntegra. O material
que não lembrávamos e que não foi anotado descartamos, priorizamos as respostas
de questões que foram feitas para todas as entrevistadas. Compreendemos que a
“traduçãodesses textos orais produzidos pelas mulheres significa, faz diferença,
que se configura como outra materialidade lingüística. O recorte que fizemos já é um
gesto de interpretação, sem falar da diferença que entre o registro oral e o
escrito. Os sentidos produzidos, portanto, se colocam nessa relação pelo modo
como o corpus foi sendo constituído, entre a fala propriamente dita das entrevistadas
e a transcrição feita pela pesquisadora.
A última entrevista, realizada com uma senhora de 83 anos, foi gravada e
transcrita. Nela detemos grande parte da nossa análise, considerando a quantidade
e qualidade do material coletado.
Uma outra ressalva ainda faz-se necessária antes de nos dirigirmos para a
análise. Apesar de ter dado algumas características das entrevistadas, estamos as
“homogeneizando no processo de análise. Explicamos: no início do projeto deste
trabalho acreditávamos ser importante mencionar idades, profissões, escolaridades,
etc., por conta da hipótese de que o discurso feminino se manifestaria
diferentemente conforme essas categorias. Todavia, no processo de descrição dos
discursos, observamos que o discurso feminino, mesmo heterogêneo, era um só,
independentemente de quem falava. Em decorrência dessa constatação, em nosso
gesto de interpretação não tomamos as mulheres individualmente, especificamos
quem fala, mas não tomamos esses dados como categorias de análise.
Consideramos a fala das entrevistadas como reflexo de suas posições-sujeito, ou
seja, dadas as condições, elas estão nesse momento na posição de mulheres,
respondendo pela condição “mulher”. Além disso, o objetivo do trabalho é observar
via discurso a identidade feminina e não a identidade particular das entrevistadas.
À análise, então:
64
4.2 UM PERCURSO DE ANÁLISE:
Depois de termos lançado algumas hipóteses teóricas acerca da identidade
da mulher na contemporaneidade, hipóteses que partiram do próprio corpus,
procuraremos situar agora, na fala das entrevistadas, os pontos que mencionamos
na revisão teórica, sejam eles principalmente: o “efeito-mulher” e a questão da
heterogeneidade.
De que maneira essas questões se materializam no discurso de mulheres
comuns, como é o caso das entrevistadas? Elas falam em ser “efeito” ou mulheres
heterogêneas? Obviamente que não. Porém, procuramos pistas nas suas falas,
indícios dentro da materialidade lingüística que essas mulheres nos trazem para
verificar como elas se compreendem enquanto mulher. Que efeito de sentido
produzem ao falar sobre o que é a mulher hoje? Essa é a nossa questão central.
Do conteúdo das falas das entrevistadas, fomos selecionando aquilo que
latejava nos seus discursos. Não partimos de nenhum critério dado a priori, mas
buscamos observar nas falas o que “saltava aos olhos”. Dessa maneira, é no
conteúdo reiterante e também reticente e até negligenciado que procuramos ver o
discurso feminino. Buscamos vê-lo ainda na relação com o exterior que o determina
(contexto histórico-ideológico) e ainda observar os lapsos, as faltas, os resquícios de
um discurso de um sujeito desejante que põe em utilização uma língua que, como
mencionamos, é lacunar tanto quanto o sujeito.
Para iniciar de algum ponto a nossa análise, partimos das regularidades
discursivas, ou seja, dos pontos em comum dentro da fala das entrevistadas. O
primeiro deles diz respeito ao “poder”.
4.2.1 O QUE É SER MULHER?: MULHER “NÃO PODE”
No primeiro tópico da nossa análise trazemos enunciados que surgiram do
questionamento feito às entrevistadas: “Você gosta de ser mulher?”. As respostas a
esse questionamento trouxeram enunciados em que o “ser mulher” foi predicado
através do verbo “poder”, ou melhor, “não poder”. Em decorrência disso
perguntamos o que, então, a mulher pode ou não fazer. Disso surgiu uma
65
discursividade que coloca em cena o “poder” versus “não poder” para designar
respectivamente o masculino e o feminino.
A forma negativa
“não poder
apareceu em maior mero, o que marca a
questão do interdito que surge na fala das entrevistadas. Mulher não pode fazer
certas coisas
26
”. Não conseguiram explicar os motivos, algumas diziam por que
não”, acentuando uma verdade absoluta, apesar de totalmente arbitrária, sinalização
de um pré-construído no espaço interdiscursivo
27
. Outro fator digno de nota é que a
questão do interdito aparece por duas vias: pela negação (o que a mulher não pode
fazer) ou ainda pelo silenciamento demonstrado na impossibilidade de explicitar o
que exatamente o se pode fazer. Isso se faz pela falta de predicação: mulher não
pode...”. “Não pode” o quê? Ou ainda pela indeterminação do objeto, quando
aparece nas falas o vazio, o lugar do impossível de ser verbalizado: mulher não
pode fazer certas coisas”; “ algumas coisas” “muitas coisas”, etc.
Os principais interditos do tipo 1 (negação) explicitados pelas mulheres giram
em torno de sair sozinha (tanto para viajar, quanto sair à noite, ir a um bar, etc.);
alguns interditos sexuais também, e outros de ordem financeira: meninas dependem
mais dos pais financeiramente e têm dificuldade para encontrar um emprego.
Nesse último caso, em relação a emprego, surge um fator bastante
interessante que nos remete à divisão do trabalho (manual e intelectual) vista de
forma naturalizada: a via única apresentada é estudar para, depois, ter
independência financeira. Entretanto o “ideal é que isso ocorra através de
profissões intelectuais, afinal mulher não pode trabalhar em qualquer coisa” (M.M.
22 anos). Nesse enunciado a questão ideológica é muito marcada: a divisão do
trabalho e o interdito são questões sociais arraigadas por uma ideologia capitalista e
patriarcal, mas que se encontram legitimadas, que discursivizadas sem o peso da
história. Queremos dizer com isso que a memória histórica desses “fatos”
discursivizados: a divisão do trabalho e o interdito em relação ao sexo feminino,
parece ter sido “apagada”. Esse “apagamento” ocorre pelo esquecimento 1
28
, de
ordem ideológica, que, via interpelação/assujeitamento, produz a ilusão da
transparência da linguagem e da forma-sujeito, ou seja, a ilusão que permite a todo
26
Colocaremos em itálico e entre aspas todas as citações retiradas das transcrições das entrevistas.
27
O conceito de interdiscurso é equivalente ao de memória discursiva mencionado anteriormente e será discutido
na seqüência.
28
Sobre esse conceito ler Semântica e Discurso de Michel Pêcheux ou Análise do Discurso: Princípios e
Procedimentos, de Eni Orlandi.
66
indivíduo identificar-se como sujeito do discurso, ou melhor, como EGO, instância
produzida pelo imaginário (no sentido lacaniano do termo).
Pela assimilação do discurso como “seu”, aparece aqui a mulher “efeito”, a
que se constitui via discurso histórico-ideológico dominante. Essa mulher, ao
produzir um enunciado como esse, assimila como seu um discurso de origem
capitalista (divisão do trabalho intelectual e manual) e também um discurso de
origem machista acerca dos tipos de trabalho que podem ser executados por
mulheres.
Vejamos algumas outras ocorrências do verbo “poder” em que a interpelação
ideológica se materializa via discurso:
Enunciado 1: Eu queria ser meu irmão, pra poder ter mais
liberdade...viajar, poder fazer muitas coisas (M.M., 22 anos)
Enunciado 2: “mulher é proibida de fazer muitas coisas, tudo
não pode, enquanto homem pode tudo”. (V.C., 19 anos).
Nos dois enunciados acima, aparecem ocorrências do tipo 2: o interdito que é
silenciado. Nesses casos, a mulher é interditada de dizer quem a interdita ou mesmo
de que tipo
de coisas ela está interditada. “Poder”, nesse momento, o é utilizado
no sentido de “possibilidade”, mas como interdito social. O interessante é que, da
forma como aparece nas falas, o efeito de sentido é de um interdito natural. Nessas
falas sobre o que a mulher pode ou não fazer, está inscrito um discurso que é social,
imemoriável, pertencente ao que podemos chamar de uma formação ideológica (FI)
patriarcal originária na Idade Média. Esse discurso reproduz uma lógica assentada
ideologicamente desde muito tempo e que acaba cerceando a ação da mulher na
sociedade. Transparece no discurso que o que pertence ao “poder” está relacionado
ao homem, enquanto o “não poder” diz respeito à mulher.
O enunciado 1 trata ainda da questão da divisão do espaço público e privado.
À mulher cabe o espaço privado, “viajar” é coisa para home
67
equivale os termos “ter mais liberdade” e “viajar”. Essa liberdade para ir e vir é um
direito que a mulher não possui, pelo menos completamente: seu “ir e vir” está
cerceado por fatores inúmeros que a impedem de exercer sua “liberdade”.
No enunciado 2 temos além da questão do interdito silenciado, a questão da
“completude advinda das expressões “tudo não pode” e “homem pode tudo”. O
significante “tudo” remete à ilusão da completude imaginária do sujeito. O efeito de
sentido desliza em “tudo não pode”, que o “tudo” pode corresponder a tudo que o
homem pode fazer e a mulher não, mas também pode designar a totalidade
impossível a todo sujeito, a incompletude que nos constitui. O “tudo” é o impossível,
o pertencente ao Real. Também podemos pensar na organização das ocorrências.
Na primeira o “tudo” vem no inicio: “tudo não pode”, sendo sujeito da oração. Na
segunda ocorrência o “tudo” vem no final, como elemento adverbial, enquanto o
sujeito é o homem. Esse fator possibilita uma leitura diferente. O efeito de sentido
decorrente dessa organização frasal é que o “tudo” da segunda ocorrência diz
respeito ao conjunto de coisas que o homem pode fazer, enquanto na ocorrência
anterior o “tudo” diz respeito à totalidade que o sujeito renuncia na passagem pelo
Édipo, quando do abandono do narcisismo primário. Manifestação do inconsciente?
Talvez. Acreditamos que esse equívoco (da ordem do discurso) interposto pela
ambigüidade de sentido do significante “tudo” margem ao vislumbramento da
condição heterogênea de constituição do sujeito.
Como podemos perceber nessa pequena amostra das falas femininas, o
discurso se compõe de discursos outros oriundos de muitas formações discursivas.
Ao compor sua fala com um discurso “naturalizado” de que a mulher
não pode
fazer
coisas que o homem pode, ecoam na fala da mulher vozes que remetem a um
discurso outro que constitui o discurso feminino de forma contraditória, que está
ancorado num interdiscurso de base machista. O
interdiscurso
“designa o espaço
discursivo e ideológico no qual se desdobram as formações discursivas em função
de relações de dominação, subordinação, contradição” (MALDIDIER, 2003: 53); é
ainda o que Orlandi (2002) chama de o “eixo do dizível”, ou seja, o que rege o dizer.
Nesse caso, temos um discurso machista, não associado empiricamente a nenhum
indivíduo, mas que ressoa, possibilitando o dizível e se materializando na fala das
mulheres por conta de uma dominação ideológica que as assujeita. Na verdade não
é propriamente o discurso machista que aparece na fala da mulher, ele retorna sob a
68
forma do simulacro, resignificado e, além disso, transformado numa voz imemorial,
que reproduz uma ideologia arraigada que nos interpela, mas ao mesmo tempo
nos dá a ilusão de sermos sujeitos, donos do que dizemos.
Pêcheux, na terceira fase da AD, fala da consideração do discurso-outro, que
se faz pela presença da heterogeneidade mostrada (as marcas do discurso alheio
colocado em cena pelo sujeito), mas, sobretudo pela heterogeneidade constitutiva,
condição primeira do discurso, que se faz pela “insistência de um ´além´
interdiscursivo que vem, aquém de todo autocontrole funcional do ´ego-eu´,
enunciador estratégico que coloca em cena ´sua´seqüência” (In: GADET; HAK,
1993: 316-317). O que ele chama de um “além” interdiscursivo, podemos entender
como o Outro, o inconsciente, que se estrutura via discurso identificando-se com o
69
Enunciado 4:
Não sei, acho que pode fazer tudo. É claro
que não pode ser como os homens, mas hoje em dia a
mulher tem muito mais liberdade do que até um tempo atrás
(T.V., 44 anos).
Nesses enunciados está clara a presença do interdiscurso que se atualiza
nessas falas graças às condições específicas de produção, ou seja, somente pode
ser dito e compreendido um discurso como esse porque o momento histórico e as
questões ideológicas assim o permitem. um discurso extremamente machista
que afirma que a mulher não possui igualdade de direitos em relação aos homens;
ainda um outro discurso que nega o primeiro e é esse discurso que aparece no
momento atual. Interessante perceber que, como ele aparece para negar um
discurso primeiro, ambos são interdependentes e só existem um em função do outro.
A atualização do discurso machista nos enunciados 3 e 4 produz um efeito
de sentido de libertação da mulher: ela pode “quase” tudo, está “quase” em de
igualdade com o homem; e ainda um outro efeito de conformidade, que “hoje em
dia ela tem muito mais liberdade do que até um tempo atrás”, enunciado que traz no
seu interdiscurso um outro que afirma: “vocês já evoluíram muito, vamos com calma,
não está bom assim?”. A produção de enunciados como o 3 e o 4 apresentam um
lugar de transição do discurso feminino, dadas as novas condições de produção.
Vejamos:
Para uma FD machista originária da Idade dia o discurso possível seria:
“mulher não pode tudo”;
Numa FD feminista: “mulher pode tudo”;
E no enunciado 1 temos um lugar de deslocamento: “mulher pode
quase
tudo”.
O deslocamento ocorrido é decorrente das condições de produção atuais que
trazem práticas do comportamento feminino regulamentadas pelos discursos que a
mulher faz circular sobre si mesma. O “quase” também espaço ao “resto”, que
não é verbalizado, mais uma vez a questão da incompletude. Dupla indeterminação:
uma decorrente do “quase” e outra decorrente do “tudo” que não é especificado.
Outro ponto relevante nas falas é a questão do interdito sexual, que é
trazida sob a forma do mesmo verbo “poder”. Como sabemos, a sexualidade da
mulher sempre foi alvo de preocupação: da igreja, dos pais, do marido. Os “desvios”
70
sexuais sempre foram punidos através de, no mínimo, discriminação social,
conforme discutimos no primeiro capítulo. Com o advento do Feminismo e também o
surgimento da pílula anticoncepcional, começa a circular um discurso a respeito da
liberdade sexual da mulher. Contudo, ainda scu 4.2480762(m)]TJ7013()2.80a.4459( )-30.7013(2.80762(i)9.23319(m)-3.4459(t)-9.23319(r)13.4459(a)2.80762(l)-1.47013(q23319(m)-2.80762(t)e.4459( )-30.7013(se73.063(h)2.80762(3)2.80502( )-42.81021(é)2.80762( )-1040762(3)294.3422(d)2.81021(a)2.81( 4.24877.998]TJ-221.2 664.9ss83.7026(d)2.8200.7241.40381( )-2.80892(a)2.4472(i)-1.40511(scu)22.80892(t)1v2.80892(a)13.4472(r)3.21279(d)2.21279(d)e80892(l)-1.4200.72413.21279(d)c3.4459(sp)4.978(ci)-1.80892(l)-1.421.9363)1.40511(u)2.80762(d)2.8200.72se73.063(h)xu)2.80a.4459( )-13.4459(a)22.80762(n)13.40511(u)2.80762(d)d.80762(t)e.4459( )-30.21.9361)2.808273(a)e0511( )-115.616(29)22.80762(n)17.42551(í)1.40511(n)]TJ355.56 0 Td[(n)9.23319(o)2.81907684(O.808273(a)2.81907684(d.42551(í)1.40511(n)3.4459(i)-1.40511(scu)22.80762(t)1.40507684(94.339649768.8715(d)]T3319(m)-3.4459(t)-9.23319(r)13.4459(a)2769)2.807622.80762(n)a.80762(t)1.405076872.81021( )-i.40251(a).4485(ci)-1.-1021(i)-1.502( )-4g81021( )-94.3422(d)2.81021(a)2.81049768.77.998]TJ-355.56 -19.49.23319(o)2.800892(a)22.80892(t)1.4892(l)-1.40381( )-19.8728(d)13.4440381(h)2.81021(e)s2.80892(t)1.40892(a)2.80892( )-93.21279(d)ch80892( )-19.8728(d)1313.4472(n).80762( )-1040892(a)22.80892(t)2.8102019)1.40511(n)g)2.80769)2.807621.40511(o)áT3319(m)-3.4459(t)-.80762(p)13.44459( )-30.6132(o)29.23319(n)2.80762(d)2.80762(a)I.808273(a)3.40511(u)2.80762(d)d.80762(t)e.80762(d)2.80762(a)M.4058pdspn e73.063(h)2.80762(e74.978(r)33.4459( )-1á.4459( )-30.7013(p4.3396(5.79.8715(d)7.42551(p)2.8089(a)13e74.978(r)1.40511(o)2.80762(n)e73.063(h)2.80762(2.80762( )-74459( )-30.7013(2.80762(i)9u.42551(í)1.40511(n)3.4459( )-1.44459(33-1040762(3)2t3.4472(r)3e0502( )-42.81021(é22.80892( )-.42811( )-19.8741(o)2.816(5.79.77.998]TJ-3n.56 -19.4a.56 -19.41.40381(a)1h40381( )-19.8728(d)1313.4472(n)ó472(i)-1.40511(scu)19.8728(d)1.80892(l)-1.4026.25-1.40381( )-830892(l)-1.4026.25-12.80762(i)9u.4255(xu)1380892(a)h40381( )-e472(i)-1.40511(scu).)4472(a)2.80026.25-1D)4472(r)3e072(i)-1.ss83.7022(t)1.40511(,)1f.4459( )-1.43319(m)-3.4459(t)-.80892( )-93.21272(d)13.4459(o)2.8026.254e74.978(r)13.4459(a)2e3.7022(t)1.40511(,)1a)2.80769)2.807621.80762(t)1.40511(u)83.7022(t)1.40511(,)1s3.4459( )-30.5511(,)1a)2.80p40511(scu)2.8089(a)13e77013(C)-1.0762( 7.8715(d)3.4459( )-19.0762( )-94.3396(a)2f.4459( )-1.43319(m)-3.4459(t)-2.80762(n)e73.063(h)15.616(co)13.4459(m)-1.40511(o)2.80762(n)e73.063(h)2.83396(a)2]TJ355.56 0 Td[(n)2.83396()2f.4021(m)-7a0502( )-41.-1021(i)-.80762( )-104.978(82.81021( )-94.3422(d)s2.81021(a)2.81( 7.77.998]TJ-32.80762(i)9u.4255(9.47.42551(u)13.44779(d)e80892(l)-7.42551(p)2.80892(r)s,)4472(a)2.800827(n)2.80892(l)-1.40827(n)2q80892(l)-u40381( )-e472(i)-1. )4472(a)2.42551( )-.80892(l)-d40381( )-e472(i)-1.80762(i)-1.40511(s)-4s.800827(n)2.80892(l)-b.8089(a)13e77013(C)-7.42551(p)v3.4459(l)-1.40511(a)2.)2.807621.80762(t)1.40511(d)2.8008273(a)e0511( )-11.80762(t)487.957(p)2.80892(u)c2.810212(n)a.80762(d)d.8079(sp)1.40511(d)2.8008273(a)a.4459( )-30.40511(n)3e0511( )-1g.80762(t)487.957(p)1.40511(n)1.40511(a):0.405166)-83)2.8/R5011.96 Td(25768.8 Tm( )/R1111.96 Td(50.79.724[(70)50[(E)-40511(a)n)-6.(sp7)48445966)n)445966)c40381( )-19.4472(n).807679(d)2.-6.(sp7)oi6(5807679(d):.40511(a)2.278)2.8/R5011.96 Td(75.2487TJ-32.4058p)13.40511(r)3.21279(cu)12.80762( )e40511(scu)30.622(i4711.80762(t)ã.80762(t)1.40511(d)30.51.78642.425512(t)1.80762(d)d.80762(t)e.4459( )-30.51.78642f.4459( )-11.40511(n)c3.4459(l)-1.40511(a)2..51.78642c30.5098(C)9.4058p)132..51.786422.4058pín (d)2.8051.78642.425512(t)3.4459(l)-1.40511(a)c.40381(m)-7.42811(e)13.4459(i)-1.40511(r)s13.4459(o)2.851.78642é.80762(d)2.27870
71
que ao reprovável, ao esteticamente não aceito. E quem deseja estar fora dos
padrões de beleza? Instrumento bastante eficaz de controle, portanto.
Ainda uma informação importante quanto à produção desses enunciados.
As mulheres que os produzem têm, respectivamente, 15 e 51 anos, o que nos leva a
crer que esse posicionamento não diz respeito a uma idade mais avançada, ao
afetamento por FD´s machistas mais divulgadas entre mulheres mais velhas. Esse
discurso, portanto, ainda circula mesmo entre as mulheres mais jovens.
Outra entrevistada assim diz:
Enunciado
7
: A mulher é privada de muitas coisas. Ela não
tem de jeito nenhum, apesar de toda a evolução, a mesma
liberdade do homem. O homem desde cedo tem privilégios:
pode sair de casa mais cedo, não tanta vigilância por
parte dos pais; pode se envolver com quantas mulheres
quiser ou puder (risos). Para a mulher tudo já é mais cheio de
regras, temos que manter um certo padrão moral (E.C.B, 34
anos).
No enunciado 7 podemos separar nitidamente as predicações atribuídas aos
homens e às mulheres:
Mulher: “é privada”; “tudo já é mais cheio de regras”; “manter um certo padrão
moral”;
Homem: “tem privilégios”; pode sair”; “não há tanta vigilância”, “pode se envolver..”.
A oposição das predicações para homem e para mulher produz um efeito
dicotômico de que há uma divisão nítida entre o comportamento de ambos. Há ainda
a intercalação de um discurso bastante divulgado sobre a “evolução” da mulher.
Contudo, essa fala é negada de forma veemente quando a entrevistada insiste: “ela
não tem de jeito
nenhum
(..)
a mesma liberdade do homem
”.
Esse fragmento junta-
se àquele do enunciado 2: “tudo não pode”, o que denota a impossibilidade da
completude, sobretudo no que diz respeito à mulher. Vejamos ainda mais um
atributo dado ao homem: a liberdade, que é
dele
: “liberdade
do
homem”.
72
Uma outra entrevistada ainda afirma:
Enunciado 8:
A mulher na verdade pode fazer tudo o que
quiser, o problema são as conseqüências, nosso meio ainda
é muito conservador, a mulher é privada de muitas coisas
(C.S., 21 anos).
Nos enunciados acima (7 e 8), a palavra “privada” é recorrente e aparece sob
outras formas como o é permitido”. É interessante notar que a origem dessa
privação não é mencionada, como se fosse dada a priori. Na verdade, é exatamente
isso que ocorre: as condições para que esses discursos sejam veiculados,
pertençam ao eixo do dizível, são mesmo dadas anteriormente a qualquer fala e,
portanto, já estão arraigadas de tal forma na nossa memória discursiva que se
colocam de forma naturalizada. No “nosso meio” a “privação” aparece como algo no
âmbito social, mas esse social que priva é naturalizado e sedimentado no genérico:
“a mulher é privada de
muitas
coisas”.
Ao afirmar que “o nosso meio ainda é muito conservador”, a entrevistada se
filia a uma FD feminista, já que adjetiva essa posição a respeito do código de
conduta feminina ditada por uma FD machista como “conservadora”.
Diferentemente, no enunciado a seguir temos apensa uma fala oriunda de uma FD
machista:
Enunciado 9:
Tudo tem um limite...tem muitas loucas que
fazem, mas não é permitido e não é fácil.. Eu posso fazer o
que eu quiser, mas as conseqüências são mais graves
(M.M., 22 anos).
A construção desse enunciado e as “escolhas” lingüísticas feitas pela
entrevistada denotam um pertencimento a uma FD machista. Em primeiro lugar, a
questão dos limites: “tudo tem um limite” é dada sem nenhum complemento,
pautada, portanto, num pré-construído sobre os limites impostos para as mulheres.
Depois ainda a utilização da palavra “loucas” para designar as mulheres que
73
transgridem esses “limites” estabelecidos por uma lógica machista e assimilada
como prática feminina. Essas mulheres são relegadas a um grupo em separado, que
foge à normalidade, daí a designação. Ainda na seqüência aparece a falta de
predição em “tem muitas loucas que fazem”: “fazem” o quê? Isso é silenciado. O que
as denominadas “loucas” fazem não pode (ou não deve) ser nominado, pertence à
ordem do que não deve ser dito, do não simbolizável, mas que é sabido por todos,
inclusive pelas mulheres que, mesmo não verbalizando esses assuntos
explicitamente nas suas falas, o utilizam, através das lacunas.
Sendo assim, o que a mulher pode ou não pode fazer (e falar, sobretudo,
que falar é uma prática que nos constitui identitariamente) diz respeito a toda uma
construção social de conduta feminina legitimada pela história e pela ideologia e que
se mantém graças aos discursos que a materializam e regulamentam. Dessa forma,
podemos perceber a estreita relação entre história, ideologia e discurso como
unidades que se intercalam e não podem, por isso, ser consideradas isoladamente.
Atravessando todos esses aspectos, ainda a presença quase fantasmagórica do
inconsciente, instância estritamente ligada à ideologia e igualmente constitutiva do
discurso e do próprio sujeito. Daí a heterogeneidade de ambos.
Através dos enunciados construídos pelo verbo “poder” a mulher fala de
interditos ditados por uma formação ideológica machista. Por vezes ela reproduz
esses discursos e produz um efeito de naturalidade; outras vezes ela se coloca em
outra FI, dizendo-se submetida a essas regras de conduta feminina, mas não
concordando com elas. Ainda o lugar do equívoco nessas falas que se coloca
sob a forma das indeterminações, ambigüidades, etc. A presença do “Outro”
inconsciente parece se materializar nas falas, denotando um sujeito faltante,
incompleto.
4.2.2 “VOCÊ QUER SE CASAR?”
Um ponto que consideramos importante destacar na nossa análise diz
respeito ao casamento e à maternidade. Como pudemos observar no primeiro
capítulo, essas questões são desde muito tempo imputadas como constitutivas e
determinantes no papel da mulher na sociedade, segundo preceitos de uma
ideologia patriarcal de base religiosa que se manteve viva, mesmo que deslocada,
quando do surgimento de uma ideologia burguesa.
74
Paralelamente a isso, temos um discurso feminista que vem trazer à mulher a
opção (pelo menos imaginariamente) entre querer casar e ter filhos ou não, que
neste momento ela pode trabalhar e, portanto, assumir outras identidades e/ou
formas de sublimação, como diria a Psicanálise.
Entretanto, o que percebemos na fala das mulheres com as quais tivemos
contato é que a mulher ainda está bastante afetada por esse discurso de origem
patriarcal. É claro que agora as identidades possíveis para a mulher não são
somente a de esposa e mãe. Houve a assimilação de novos papéis, contudo esse
fato não fez com que a mulher abandonasse as identidades anteriores, mas sim
acrescentasse outras. Observemos esse tipo de funcionamento na fala das
entrevistadas diante da pergunta: “você quer se casar?”.
Enunciado 10:
Não me vejo cuidando de uma casa, mas
tenho umas pira de me vestir de noiva. (...) Não quero casar,
quero ter alguém, mas não quero depender de homem (...)
Minha mãe sempre diz que não posso me casar porque sou
muito bagunceira, não seria uma boa dona de casa (M.M., 22
anos)
No enunciado 10, o conceito de casamento está definido como cerimônia
(religiosa), ritual, e não a união estável de duas pessoas. Tem-se em vista um
casamento nos moldes tradicionais, o que pode ser confirmado pelo elemento
símbolo do vestido de noiva e ainda pela oposição trazida em “
mas
não quero
depender de homem”. O verbo “depender” é completado pelo pré-construído oriundo
de uma ideologia machista de origem burguesa, configurando-se como “depender
financeiramente”, fato esse constitutivo do casamento tradicional, conforme significa
a fala dessa mulher a respeito de casamento. Surge um lugar da falta instaurado
pelo verbo “depender” que se completa por “financeiramente”, convocando uma
memória do discurso machista nesse lugar vazio de significante.
Outro lugar considerado um vazio se na última seqüência do enunciado
10, quando aparece uma construção heterogênea pela forma do discurso relatado:
“minha mãe sempre diz..”, predicado da seguinte forma:
75
“que não posso me casar”;
“porque sou muito bagunceira”;
“não seria boa dona de casa
É um discurso indireto livre em que a ambigüidade de vozes e tomada de
posição. Não podemos determinar até onde vai a voz da mãe ou da entrevistada. A
mistura das vozes demonstra a presença de um discurso “outroque não pode ser
controlado, já que a heterogeneidade do discurso é constitutiva.
A voz da mãe ou da entrevistada aponta para predicações ideais para que
uma mulher seja uma boa esposa: é preciso que ela não seja “bagunceira”, mas sim
saiba dar conta dos deveres de uma boa dona de casa. Tudo isso remete a uma
ideologia machista originária na Idade Média, conforme descrevemos no primeiro
capítulo. Segundo essa ideologia à mulher está destinada a prática dos afazeres
domésticos, as prendas do lar, o que se constitui como característica elementar na
identidade feminina.
Se observarmos o enunciado 10 como um todo, verificamos a composição
heterogênea explícita do mesmo: ao enumerar as atribuições de uma “boa dona de
casa” (fala da mãe?) temos um discurso machista. em “não quero depender de
homem”, temos um discurso feminista. Como vemos, ambos os discursos, mesmo
que contraditórios, podem e constituem a fala da mulher: uma fala heterogênea.
O enunciado a seguir, traz a questão da educação formal como fator
importante na vida da mulher:
Enunciado 11:
Quero, mas não agora. Quero estudar
primeiro, me formar, para depois pensar em ter alguém (V.C,
19 anos).
A justificativa é composta de um discurso sobre a educação como via de
acesso a uma vida melhor e o casamento aqui é concebido como uma etapa
posterior ao término dos estudos. A ideologia aqui o é mais a da Idade Média,
mas da modernidade, quando a mulher tem direito aos bancos escolares mais
avançados (como a universidade). Nessas novas condições de produção, contudo,
ainda se mantém presente a importância e a necessidade do casamento na vida de
uma mulher. A questão do casamento ainda é algo do nível do
“evidente”/naturalizado pelo imaginário. Não necessariamente nesse momento se
76
coloca isso em questão, o que ocorre nessas novas condições de produção é um
deslocamento que se em “quando” o casamento deve ocorrer. Surgem novas
temporalidades, o que poderá ser observado no enunciado a seguir também:
Enunciado 12:
Quero casar, mas não tão cedo. (P.P.B., 15 anos).
O enunciado 12 reflete essa mesma ideologia e ainda está presentificando um
interdiscurso que afirma que até algum tempo atrás as mulheres deveriam se casar
cedo, do contrário seriam vergonhosamente tachadas de “solteiras” ou “solteironas”.
Outro enunciado continua trabalhando com a questão da temporalidade:
Enunciado 13: Quero, mas quando encontrar o homem
certo. (M.S., 30 anos).
No funcionamento do enunciado 13, casar é algo importante, entretanto não é
algo desrelacionado de algumas condições. Essas condições introduzem uma
temporalidade. A mulher quer sim se casar, mas apenas
quando
encontrar o
homem certo”. O casamento já não basta por si mesmo, como numa ideologia
machista originária da Idade Média, a mulher não quer mais casar com qualquer
pessoa. A utilização de “homem certo” está ancorada na paráfrase “homem errado”,
bastante difundida na fala feminina. Se há um “homem certo” para se casar, é
porque também “homem errado”. Isso denota também que a mulher tem direito à
escolha, o que demonstra a interpelação por outra ideologia, intermediária entre o
machismo e o feminismo. Contudo, a predicação ao homem “certo” não fica clara.
Quem seria esse homem certo? O sentido de “certo” repousaria no pré-construído
da sociedade cristã-ocidental-machista? Ainda um discurso bastante difundido
que faz frente a essa formulação: “homem é tudo igual”. Sendo assim, dialogam
discursos oponentes, contraditórios, instaurando o lugar da heterogeneidade.
O próximo enunciado trabalha com esse mesmo efeito do “homem certo”.
Entretanto, aparece um discurso contrário ao discurso romântico, pautado na prática
e nos conselhos maternos:
77
Enunciado 14:
Sim, gostei muito de ser casada, mas tem
que ser com alguém que você se dê bem, amor só não basta
(R.M.S., 51 anos).
A frase “amor não basta”, enunciado do senso comum, atualiza uma voz
imemorial que se reproduz na fala dessa mulher como se nela fosse originado. É o
eco do senso comum, legitimado. Surge ainda no interdiscurso uma fala que se
ancora em uma formação discursiva capitalista, a qual afirma que, para se casar, é
preciso também ter dinheiro, segurança financeira.
Outro ponto interessante aparece no enunciado 14. Um deslocamento ocorre
quando se utiliza o significante “alguém”, ao invés de “homem”, como aparece em
outros enunciados. Essa “escolha” lingüística parece dar lugar ao equívoco. Se
observarmos os enunciados anteriores, quando se utiliza “homem”, esse significante
funciona na relação de casamento e dependência financeira. quando aparece
“alguém”, ele significa diferentemente. Abre espaço para outras pessoas estarem
nesse lugar, que não apenas um companheiro do sexo masculino. O mesmo
funcionamento de “alguém” também se manifesta no enunciado seguinte:
Enunciado 15:
Quero me casar e ter filhos. Essa o é exatamente uma
necessidade, mas acho importante ter alguém para se dividir a vida, as
coisas boas e ruins. E ser mãe é uma coisa maravilhosa, o quero me
privar disso (N.F.L., 27 anos).
As ocorrências de “alguém” nos enunciados 14 e 15 deslocam o discurso
machista que coloca apenas o homem como provedor. Tudo isso porque, nas novas
condições de produção da sociedade capitalista a mulher também trabalha, estuda e
há outras possibilidades de constituições familiares.
“Casar”, no enunciado 15, vem relacionado a “ter filhos”. Na segunda frase,
quando a entrevistada diz “essa não é exatamente uma necessidade”, refere-se ao
casamento como ritual, legitimado pela ideologia cristã ocidental. O conceito de
casamento, portanto, está atrelado aos moldes tradicionais, contudo um
deslocamento no que se refere ao desejo dessa mulher: ela quer “ter alguém pra
78
dividir a vida”, o que é algo necessário, mas não é propriamente “casamento”,
conforme o conceito por ela mencionado.
Na fala seguinte aparece a desilusão com o casamento, aqui conceituado
de outra forma, que o sujeito fala do lugar de alguém que passou pela
experiência e não foi bem sucedido.
Enunciado 16:
Sim, eu queria, mas se fosse hoje, não
casaria novamente. É muito difícil, não é o sonho que a gente
imagina quando é jovem e está apaixonada (T.V., 44 anos).
Se observarmos, as adjetivações utilizadas para “casamento” são ruins: “é
difícil”, “não é o sonho”. Nesses enunciados perpassam outros que vêm o
casamento como algo bom, sonho de qualquer mulher, o que é negado nesse
momento. A palavra “sonho” carrega uma ambigüidade de sentidos, que é dada pela
filiação a duas redes discursivas: uma positiva, que o sonho como “algo que se
deseja”; e outra negativa que o sonho como sinônimo de ilusão. No enunciado
analisado, a palavra “sonho” se investe desses dois sentidos, significando no deslize
entre um e outro.
Na próxima fala aparece um dado interessante a respeito do casamento: uma
mulher que afirma estar afetada pela ideologia da época e, por isso, por questões
contextuais, resolveu se casar.
Enunciado 17:
Na verdade eu não sei exatamente se era
tanta vontade mesmo de casar. Acho que na época, no
contexto em que eu vivia, zona rural, não tínhamos muitas
opções, todas as moças se preparavam, eram educadas
para casar, e comigo não foi diferente (E.C.B., 34 anos).
A entrevistada que produziu o enunciado 17 o casamento como um
caminho inevitável, dadas as circunstâncias históricas que determinavam a forma
como as meninas deveriam ser educadas e o caminho que deveriam seguir.
Por fim, temos um exemplo diferente de concepção de casamento:
79
Enunciado 18:
Não sei, acho que quero, mas não agora.
Casamento é estar atado, e para se atar com alguém precisa
ser alguém que te compreenda, e que feche com o seu modo
de levar a vida. O meu é bem complicado, então não sei se
vou encontrar alguém. Mas não tenho medo de ficar sozinha
(C.S., 21 anos).
Aqui, o conceito de casamento muda, significa: “estar atado”, “atar com
alguém”, uma privação da liberdade. Aparece ainda o contrário de casamento: “ficar
sozinha”, o que produz o efeito de sentido de que não outra possibilidade para a
mulher. É importante ressaltar que aqui o conceito de casamento não é o mesmo de
alguns excertos anteriores. Casar, para essa entrevistada é viver junto com alguém,
não necessariamente um ritual, uma cerimônia religiosa ou civil.
O verbo que ela utiliza ainda para falar do relacionamento a dois é bastante
interessante: “fechar”, alguém que “feche” com o seu modo de levar a vida. Parece
surgir um equívoco aqui, que podemos perceber através da “escolha lingüística” da
entrevistada. No enunciado 18 temos:
Casamento= estar atado
E, a condição para “atar-se” com alguém é:
“ser alguém que te compreenda” e
“que ´feche´com seu modo de levar a vida”.
As duas últimas frases mencionadas acima são complementares. São
paráfrases “alguém que te compreenda” e “alguém que feche com seu modo de
levar a vida”.
O final da fala da entrevistada a respeito de casamento -“mas não tenho
medo de ficar sozinha”- está ancorado num enunciado anterior, que circula pelo
interdiscurso, enunciado esse que afirma que as mulheres têm medo de ficar
sozinha, daí a marca de negação, articulada com o operador argumentativo “mas”,
que inverte a direção argumentativa no processo de produção de sentidos sobre o
“ficar sozinha”. Vejamos como funciona o discurso e os enunciados que dialogam
nessa produção de sentido:
80
E1: Não sei se vou encontrar alguém
E2: Isso é ruim, tenho que casar, tenho medo de ficar só
E3: (mas) não tenho medo
E2 decorre de E1 e é o interdiscurso que circula de uma posição ocidental
cristã, originário de um discurso religioso. E3 é o enunciado trazido pela
entrevistada, enunciado que nega os anteriores, o que é possível discursivamente
pelas condições de produção e pela existência dos discursos anteriores (E1 e E2); e
é possível lingüisticamente pela inversão argumentativa interposta pelo “mas”.
O “mas” é um operador bastante interessante do ponto de vista discursivo.
Ele marca o lugar da heterogeneidade, é o indício do “outro” no texto, já que
materializa a presença de mais de uma voz, mais de um discurso que dialoga na
construção do enunciado. Na maioria das respostas à questão do casamento
aparece o “mas” (enunciados 10,11, 12, 13, 14, 15, 16 e 18). Isso ocorre porque
essas respostas situam-se entre uma posição tradicional (de origem machista) a
respeito do casamento e novas possibilidades de concepção de casamento que
surgem na contemporaneidade. Dialogam vozes machistas, feministas e ainda uma
outra voz que situa-se entre os dois pólos, produzindo um discurso outro da mulher
contemporânea, que vem trabalhando com as duas FD´s.
Como pudemos observar pelas falas das mulheres em relação ao casamento,
temos muitos conceitos, dependendo do “lugar” de onde fala essa mulher. Ele
aparece como instituição religiosa, social, união com um cônjuge do sexo oposto,
“atamento”, algo “eterno” ou não, enfim, várias são as maneiras de se representar o
casamento. Da mesma forma, as adjetivações variam entre algo bom, ruim,
necessário, inevitável, obrigação, caminho para a felicidade, caminho para o ficar
sozinha, etc.
Casamento parece ser algo do nível do “evidente”. Entretanto alguns
deslocamentos são possíveis e aparecem na fala da mulher. Ela não reproduz
somente um discurso machista-religioso- cristão. Apesar dele estar muito presente
nas falas, surge ainda um discurso feminista e um discurso feminino da mulher
contemporânea, o que possibilita outros efeitos de sentido dadas as novas
configurações nos relacionamentos e dos papéis de homens e mulheres.
81
4.2.3
VOCÊ QUER SER MÃE?”
O outro questionamento que fizemos foi a respeito da
maternidade.
Vejamos
os enunciados que surgiram:
Enunciado 19:
Sim, quero ter filhos, mesmo que não case (
P.P.B., 15 anos);
Enunciado 20: Não vejo problema em ficar solteira, mas
quero ter um filho, meu ou adotivo, não importa (M.M., 22
anos);
Enunciado 21:
Quero ter um filho sim, mas gostaria que
fosse tudo direitinho, depois que estivesse casada e bem
estabelecida financeiramente (V.C., 19 anos);
Enunciado 22:
Claro! Meus filhos são a melhor coisa que eu
tenho, quando encontrar alguém legal, quero ter outro filho,
os meus filhos são a única coisa boa que sobrou do meu
casamento ( M.S., 30 anos);
Enunciado 23:
Sim, ser mãe é muito bom, é por causa dos
meus filhos que hoje eu não estou sozinha no mundo
(R.M.S., 51 anos);
Enunciado 24:
Sempre quis e não me arrependo. Adoro
meus filhos (T.V., 44 anos);
Enunciado 25:
Sim, ser mãe era algo que eu sempre quis.
Mas agora já chega, já tenho dois filhos e é o suficiente
(E.C.B., 34 anos);
82
Todos os enunciados produzidos pelas mulheres entrevistadas revelam o
desejo de ser mãe. Uma coisa interessante é que em nenhum deles apareceu o
discurso religioso. Apenas na fala de uma senhora, que analisaremos
separadamente no item 4.2.5. Materializa-se nas falas um desejo de ser mãe não
justificado. Todas querem ter filhos, não explicam os motivos, como se fosse algo da
“essência” feminina.
Os enunciados 19 e 20 apresentam um discurso diferente do 21. Neles, a
maternidade não está necessariamente ligada ao casamento, aliás é um desejo que
se sobrepõe a esse último. No enunciado 20, o conceito de ser mãe não está restrito
a “gerar um filho”, que a entrevistada afirma querer ter um filho, seja ele seu ou
adotivo. o enunciado 21 revela que algumas mulheres ainda esperam casar para
depois terem filhos, discurso originário de uma FD machista:
A maternidade em 21 depende de um casamento e também de
independência financeira. Essas seriam as condições “ideais” para se ter um filho,
sentido produzido por uma FD cristã e também uma FD capitalista. Essas
“condições”, que na verdade são externas, passam a compor o “desejo” feminino, o
que se denota da utilização do verbo “gostaria”. O fato de o verbo estar no futuro do
pretérito pode configurar um equívoco. Será esse um desejo que não vem mais se
realizando na contemporaneidade?
Contraditoriamente a esse discurso originário de uma FD machista, o discurso
da mulher liberal, que quer ter uma profissão, bem aos moldes do discurso feminista
aparece no próximo enunciado sobre a maternidade que, entretanto, não se compõe
apenas de um discurso feminista, considerando que o discurso
feminino
de querer
ser mãe ainda é preponderante.
Enunciado 26:
Quero, mas esse é um plano para um futuro
ainda distante, penso em ter um filho sozinha, talvez, daqui a
alguns anos, quando eu tiver uma profissão definida e possa
cuidar bem dele (C.S., 21 anos).
Vemos aqui a maternidade totalmente desvinculada de casamento, entretanto
a utilização de “talvez” em: penso em ter um filho sozinha, talvez, daqui a alguns
anos” deixa a vida sobre ter um filho sozinha: o “talvez” refere-se a ter um filho
83
sozinha ou a “daqui alguns anos”? Parece que as duas coisas. O que margem,
mais uma vez, a um equívoco na fala dessa mulher.
Considerando os pressupostos da AD em relação à heterogeneidade do
sujeito e sua constituição pela falta, o que esses equívocos nos dizem acerca do “ser
mulher” na contemporaneidade? A dúvida, a ambigüidade, a transição entre
discursos contraditórios parecem constituir essa (nova?) mulher. A fixidez das
identificações possíveis para uma mulher parece se deslocar, o que se evidencia
pelos equívocos e faltas que configuram o discurso feminino.
Bem, depois da análise desses enunciados sobre a maternidade e o
casamento, podemos dizer que as formas são diversas, mas a maioria das mulheres
afirma querer se casar e foi unânime a opção por ter filhos.
A Psicanálise fala da maternidade como a forma mais clara de reaver o falo
que se descobriu perdido durante a passagem pelo Complexo de Édipo. É na
maternidade que a mulher, enfim, tem acesso ao falo, presentificado na figura do
filho, daí sua importância na vida de uma mulher. “Do édipo a mulher herdará, na
melhor das hipóteses, a feminilidade e a promessa de receber (de volta?) o falo
paterno na forma da maternidade(KEHL, 1996: 45). O casamento é, também, uma
forma de possuir o falo (através de um homem) do qual se abriu mão ao saber
impossível a relação com o pai.
Apesar de heterogêneos os discursos aqui apresentados, tendo em vista a
presença de discursos “outros” que os constituem, acreditamos que essas falas
materializam o que chamamos anteriormente de “efeito-mulher”. Dizemos isso
porque nesses enunciados falam vozes oriundas de FD´s bastantes arraigadas
sobre o que é ser mulher. Temos nos excertos apresentados materializações do
discurso machista, do discurso feminista, dos dois intercalados, entretanto todos
dizem respeito a uma imagem bastante delineada sobre o que é ser mulher que
se refaz na fala dessas mulheres. Entretanto, percebemos que dentro mesmo
desses enunciados e em outros que apresentaremos na seqüência habita uma fala
que falha em muitos momentos, uma fala que denuncia que o “efeito” não ocorre
perfeitamente, ou seja, o assujeitamento não se completamente sem falhas. É o
ponto que retornaremos na seqüência:
84
4.2.4 O QUE FALHA NESSE TAL DISCURSO FEMININO
Como vimos nos dois itens anteriores, mesmo em temas como a maternidade
e o casamento, bastante sedimentados como pertencentes ao universo feminino,
algo falha na reprodução das ideologias que regem os discursos sobre tais
temáticas. Neste tópico pretendemos discutir especificamente o que falha nesse
discurso produzindo o equívoco que denuncia a falta constitutiva do sujeito. Eles são
a marca de um desejo e a presença do inconsciente, que não deixa de comparecer,
a despeito da vontade do sujeito.
É na demanda endereçada ao Outro que circula o desejo,
escamoteado, escondido, disfarçado na enunciação e nos intervalos
do enunciado, nas pausas, nas exclamações e reticências; em
suma, é na modalização da fala do sujeito que cabe avalizar a
presença do desejo e a verdade que ele oculta (DIAS, 2006: 5).
A afirmação de Dias nos permite refletir sobre o que mencionamos no início
deste capítulo (item 4.1) acerca das formas de investida no discurso feminino. É no
decorrer da fala de um sujeito interpelado ideologicamente que percebemos
algumas falhas, marcas lingüísticas que nos permitem visualizar uma falta, oriunda
de um sujeito desejante que tem como dispositivo apenas uma língua que não
conta de um Real que está latente.
diz a Psicanálise sobre a constituição do significante que ele nada mais é
do que algo que remete a outro significante, portanto, algo se perde no entremeio
desses dois significantes: “entre dois significantes um furo” (MELMAN, 2005: 21),
que revela a presença do “Outro”. São esses furos, esses momentos de lapsos que
pretendemos observar como segundo ponto da nossa análise, entretanto
observaremos esses acontecimentos segundo a noção discursiva de equívoco e de
silêncio. Como já vimos anteriormente, “equívoco” é aquilo que falha no âmbito
discursivo e o “silêncio” é visto por Orlandi (2002) como uma forma de significar: não
dizer também é produzir sentido.
Começamos com um enunciado que se repetiu por duas vezes, o qual traz
em sua formulação um furo visível da ordem do não dito:
85
Enunciado 27:
Eu gosto! Ser mulher tem muitas vantagens
(não enumerou quais). Mas se eu pudesse nascer de novo,
acho que preferia ser homem (M.S., 30 anos);
Enunciado 28:
Gosto. Ser mulher é muito bom... (não soube
dizer por quê). Há..sei lá..(T.V., 44 anos).
Enunciado 29:
Eu gosto. Não sei porque, mas é bom ser
mulher. (R.M.S., 51 anos).
A primeira entrevistada (enunciado 27) responde (pelo que nos lembramos da
entrevista) enfaticamente que gosta de ser mulher. A falta instaura-se quando ela é
incitada a falar sobre as tais vantagens decorrentes do fato de ser mulher. E o
encaminhamento do enunciado 27 soa estranhamente quando a entrevistada afirma
que se pudesse nascer outra vez preferiria ser homem. No enunciado 28 ocorre a
mesma coisa. A afirmação sobre gostar de ser mulher é seguida também por um
silêncio a respeito dos motivos (“é muito bom” por quê? Quais as vantagens? Isso
não é formulado). No enunciado 29 o “não saber” o(s) motivo(s) está formulado: “não
sei porque”, mesmo assim a falta está presente constituindo o dizer e o sujeito e
funcionando contraditoriamente à afirmação “é bom ser mulher”.
O silêncio é constitutivo do dizer, conforme nos ensinou Orlandi (2002). A
partir da pista deixada por ele, podemos nos remeter à estrutura da mulher segundo
a teoria psicanalítica: ela passa pelo Complexo de Édipo, abandona seu amor
edípico sem ter um motivo palpável, a não ser o fato de obter sua feminilidade e o
amor de um homem. “Seu falo é a feminilidade mesma, e podemos dizer que na
rivalidade edípica ela não tem nada a perder a não ser...a feminilidade. Nada a
perder a não ser tudo o que faz dela uma mulher” (KEHL, 1996: 45). Então se ela
“escolheu” esse caminho, é porque crê de alguma forma que é bom ser mulher,
entretanto falta a ela uma forma de simbolizar essas características que tornariam o
fato de “ser mulher” agradável. Isso ocorre por estarmos sobre a égide de uma
ordem fálica, onde o que é valorizado é justamente o que pertence ao masculino,
pela identificação do falo, símbolo do poder, com o pênis.
86
Assim, não está na ordem do dizível a continuação do enunciado que foi dito.
Contudo, a afirmação de que é bom ser mulher revela uma preferência pela
feminilidade. A mulher não mente quando diz que gosta de ser mulher. O prazer está
presente, mas denuncia uma falta, uma impossibilidade de simbolização pela
linguagem, já que essa é decorrente da inscrição da mulher numa lógica fálica.
A maioria das respostas para o questionamento “você gosta de ser mulher?”
foi afirmativa, como é o caso das suas respostas apresentadas acima. Entretanto,
apesar de afirmativas, essas respostas são produzidas por enunciados ou faltantes,
ou ambíguos, como é o caso do seguinte:
Enunciado 30:
Não gosto, quer dizer, às vezes sim às vezes
não (V.C., 19 anos).
A primeira resposta do enunciado 30 é a negação à pergunta sobre gostar de
ser mulher, que vem seguida de uma retificação: “quer dizer”, e de um enunciado
ambíguo: “às vezes sim às vezes não”. A incerteza da resposta parte de uma
incerteza da mulher em relação mesmo a sua condição. Se a feminilidade às vezes
parece algo positivo, em muitos momentos também parece um destino difícil pela
determinação de uma formação ideológica patriarcal.
Alguns enunciados trazem uma característica bastante atribuída à mulher: o
fato dela ser sentimental, mais ligada ao aspecto emocional, o que é uma construção
balizada no discurso da essência feminina.
Enunciado 31:
Gosto, mulher é mais sentimental e também
mais respeitada (P.P.B., 15 anos).
Algo se estilhaça no enunciado acima. As características atribuídas à mulher
parecem estar numa disposição de complementariedade, mas não há nenhuma
explicação razoável para isso: “mulher é mais sentimental e também mais
respeitada”. Ela é respeitada porque é sentimental? Ou são duas características
distintas? Que mulher é respeitada? Apenas aquela que é sentimental? Essas
questões parecem circular, mas ficam no ar, em decorrência da fala dessa mulher,
abrindo espaço para um equívoco que é constitutivo da mulher e da sua fala que se
apresenta como lacunar. Também podemos pensar que as características
87
“sentimental” e “respeitada”, unidas pelo operador “e também”, estão colocadas
cumulativamente. uma relação lógica que aparece como efeito de sentido: O
significante “mulher” é predicado através de um modo de subjetivação do discurso
universal: toda mulher é “sentimental” e “mais respeitada”, portanto, se você é
mulher será “sentimental e também mais respeitada”.
Apenas uma das entrevistadas disse o gostar de ser mulher. Entretanto,
não deu prosseguimento ao assunto, apenas afirmou que preferiria ser homem.
Enunciado 32:
Não, preferia ser homem (C.S., 21 anos).
No enunciado 32 parece assentar-se um interdiscurso bastante divulgado
após o advento do feminismo, que revela as vantagens de ser homem e, sobretudo,
as desvantagens da mulher em relação ao homem. É pela presença desse
interdiscurso que um enunciado como esse faz sentido e basta a si mesmo,
dispensando maiores explicações, que um pré-construído sobre as vantagens
masculinas na configuração da sociedade desde muito tempo.
Esse discurso da superioridade feminina vem ancorado ainda na produção de
uma formação discursiva machista e patriarcal, segundo a qual tudo o que pertence
ao masculino é considerado melhor. Para a mulher a assimilação de qualquer
atributo masculino é tida como um ganho, que sua feminilidade é um destino
assegurado, e a bissexualidade é um traço mais marcante na mulher. Em
contrapartida, para um homem a assimilação de qualquer atributo feminino é tido
como uma perda, uma perda da sua masculinidade. Sobre isso afirma Kehl (1996):
Sabemos que a mulher sente a conquista de atributos “masculinos”
como um direito seu, reapropriação de algo que de fato lhe pertence
e há muito lhe foi tomado. Por outro lado, a uma mulher é impossível
se roubar a feminilidade: se a feminilidade é máscara sobre um
vazio, todo atributo fálico virá sempre incrementar essa função.
para o homem toda feminização é sentida como perda- ou como
antiga ameaça que afinal se cumpre (KEHL, 1996: 26).
Um discurso interessante para se pensar os equívocos decorrentes de uma
interpelação da mulher pela ideologia dominante se através da duplicidade dos
discursos presentes nos enunciados sobre a suposta emancipação da mulher nos
dias atuais que analisamos em 4.2.1. Isso pode ser percebido no nível mesmo da
88
formulação: ao dizer que a mulher pode fazer quase tudo” (enunciado 3), uma falta
é instaurada, afinal ela pode fazer “quase”, mas não tudo, sem falar no silenciamento
sobre o que efetivamente ela não pode fazer.
No enunciado 4- Não sei, acho que pode fazer tudo. É claro que não pode
ser como os homens, mas hoje em dia a mulher tem muito mais liberdade do que
até um tempo atrás”- podemos observar a materialidade desses discursos
contraditórios através das “escolhas” lingüísticas feitas, como na oposição: é claro
e “mas”. “É claro” insere algo dado como verdade inquestionável: o fato da mulher
não poder ter a mesma liberdade que o homem; contraditoriamente, o “mas”, em seu
papel adversativo, faz uma ressalva, afirmando a “liberdade” atual conquistada pelas
mulheres.
Parece um paradoxo, mas o nosso dizer se constitui pela falta. É a não
completude característica da linguagem e característica também do sujeito, que, por
sua vez, ao utilizar a linguagem e “falhar” constantemente, demonstra essa falta
constitutiva. A interpelação do sujeito pela ideologia e o atravessamento pelo
inconsciente o tornam dividido, o que se materializa na sua fala. É isso que pudemos
observar nos exemplos que analisamos neste tópico. Entretanto, é importante
ressaltar, que a fala da mulher como um todo é composta através dessa constituição
faltante, ou seja, o discurso feminino é, constitutivamente, composto de muitos
“outros” discursos.
4.2.5 “UM CASO EXEMPLAR”:
No corpus que fomos constituindo para este trabalho, surge uma entrevista
que consideramos merecer uma análise pormenorizada.
Trata-se de uma entrevista realizada com uma senhora de 83 anos
29
, que
materializa em sua fala uma contradição bastante visível, que apresenta discursos
oriundos de FD´s divergentes. A senhora entrevistada viveu efetivamente dois
períodos bastante distintos no que diz respeito ao trato com a mulher em nossa
sociedade, fato esse extremamente relevante na constituição do seu discurso que,
sendo veiculado num momento de transição, em que as práticas discursivas
femininas apontam para uma “libertação” da mulher, atualiza-se, mas ainda mantém
29
Entrevista gravada e transcrita (transcrição em anexo).
89
muito firme um discurso de tradição patriarcal que entra em conflito com o outro
discurso (de base feminista).
Sendo assim, acreditamos que os enunciados analisados servem como
exemplo extremo da contradição das práticas discursivas que compõem a fala da
mulher atual e que a constituem de forma heterogênea e “faltosa”. Procuraremos
demonstrar na análise que se segue de alguns fragmentos da entrevista as práticas
discursivas opostas que constituem a fala dessa mulher. Consideramos que essa
fala não é apenas um acontecimento individual, mas exemplo das práticas
discursivas que circulam a respeito da mulher e que, por isso, pode ser estendida ao
discurso feminino da contemporaneidade como um todo.
Sabemos que a nossa memória discursiva é composta por discursos que
circulam desde muito tempo e nos vêm como herança, como um saber discursivo
herdado: “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma
do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada
de palavra” (ORLANDI, 2003: 31). Ocorre que essa memória compõe-se de muitos
discursos que se contrapõem e se colocam de forma contraditória, que as
formações discursivas (FD´s) perpassam uma a outra. “relações entre
enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem inteiramente
diferente” (FOUCAULT, 2004: 32), portanto os enunciados que podem ser reunidos
em uma mesma FD estão sempre “dialogando” com outros, pois não podemos
pensar as FD´s como “blocos homogêneos funcionando automaticamente. Elas são
constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas mesmas e suas fronteiras são
fluidas, configurando-se e reconfigurando-se continuamente em suas relações”
(ORLANDI, 2003: 44).
Dessa maneira, o discurso feminino se constitui de maneira heterogênea e,
podemos dizer, muitas vezes de maneira contraditória, dada a sua constituição
histórica, em que se digladiam discursos como o patriarcal e o feminista. Isso se
em razão das tantas reconfigurações pela qual a mulher vem passando, “das
contradições que sentimos entre as diferentes maneiras em que fomos
representadas até para nós mesmas, das injustiças que temos há tanto tempo
suportado em nossas situações” (Newton, J. apud SCOTT, 1992: 91-92).
Outro aspecto interessante é a questão da “falta”, do “equívoco” que percorre
todo o discurso e a constituição do próprio sujeito. Quando pensamos no discurso de
uma senhora de 83 anos, provavelmente acreditemos que se trata de um discurso
90
constituído de práticas discursivas oriundas de uma ideologia de base patriarcal,
tendo em vista pressupor seu assujeitamento a essa FD nas condições sócio-
históricas dadas. Entretanto, ao observarmos sua fala, percebemos que esse
assujeitamento não se sem falhas. Em sua fala perpassam enunciados
divergentes em relação a um discurso de base patriarcal ou machista.
Por outro lado, poderíamos pensar que o discurso de uma mulher que vive no
século XXI (caso da entrevistada), ano de 2006, se constitua a partir de falas
recortadas da memória de um discurso feminino, com base num discurso açor eos mco2.80762(1)-1.405119
91
pauta sua fala: o “agora” e o tempo em que se casou. De qualquer forma,
materializa-se nessa fala o fato de que a entrevistada passou efetivamente em sua
vida por períodos bastante diferenciados no que diz respeito à posição da mulher e
do homem na sociedade.
Separamos em seguida enunciados recortados da entrevista em três sessões:
o discurso em que aparece predominantemente uma FD feminista, depois a
machista e, por último, enunciados em que ambas as FD´s estão em de
igualdade, configurando (talvez?) uma NOVA FD. Esses discursos (machista e
feminista) o aparecem reproduzidos exatamente da mesma forma na fala dessa
mulher, mas retornam como simulacro, uma vez que representam outros
acontecimentos discursivos.
Faz-se necessário esclarecer a diferença que estabelecemos nesta análise
entre discurso feminino e discurso feminista: tomamos por discurso feminino todo
discurso que se origina de uma posição discursiva feminina, os discursos
logicamente estabilizados no imaginário social ocidental como produzidos por
mulheres. Esses discursos, não necessariamente veiculado por mulheres empíricas,
do sexo feminino, mas produzidos numa posição discursiva feminina, funcionam de
tal forma que conduzem à formação de uma prática discursiva reconhecida como
feminina, portando conteúdos como: maternidade, casamento, beleza,
relacionamentos etc., discursos considerados como típicos femininos. quando
falamos em discurso feminista, estamos nos remontando a discursos que se
originam ou reproduzem o discurso feminista clássico, do movimento feminista,
tomado numa acepção mais radical.
4.2.5.1 UM DISCURSO FEMINISTA?
O movimento feminista é um marco na mudança de paradigmas da
representação feminina. Com a máxima da igualdade, “o feminismo assumiu e criou
uma identidade coletiva de mulheres, indivíduos do sexo feminino com um interesse
compartilhado no fim da subordinação, da invisibilidade e da impotência” (SCOTT,
1992: 67-68). Depois de algum tempo, as denominadas como “feministas radicais”
foram aquelas que passaram a divulgar um discurso de superioridade feminina e
tomada de lugar do homem, em resposta aos anos de subordinação. É claro que
hoje em dia, sobretudo na fala de uma mulher que não está e nem esteve engajada
no movimento feminista, esse discurso chamado feminista retorna de formas
92
diferentes. Todavia, o movimento feminista “não desapareceu, seja como uma
presença na academia ou na sociedade em geral, ainda que os termos de sua
organização e de sua existência tenham mudado” (idem, ibidem: 65).
Resquícios de um discurso “feminista”, portanto, podem ser verificados na fala
da nossa entrevistada em momentos como o seguinte, em que se reproduz (apesar
de haver um deslocamento que explicitaremos na seqüência) um discurso de
sobreposição da mulher em relação ao homem:
Enunciado 34:
- Negativo? Pois... na minha opinião acho
que não, acho que não tem nada negativo porque a gente
que faz tudo né, a gente pensa bem, faz bem, não pode
deixar pra trás essa missão. Ser mulher é coisa louca de
boa!
No enunciado seguinte ainda aparece uma demonstração de orgulho de ser
mulher, inconcebível em qualquer discurso de base patriarcal, em que a mulher fica
sempre em segundo plano, relegada à invisibilidade:
Enunciado 35: Gosto bastante, ser mulher é tudo na vida,
sabe? Na minha opinião é o esteio da casa, assim, é mulher.
A questão que aparece nos enunciados 34 e 35 é que um deslocamento
em relação a uma FD machista no que diz respeito ao modo de predicar a mulher:
“faz tudo”, “missão”, “esteio da casa”. Tudo isso é predicado positivamente: “Ser
mulher e coisa louca de
boa
”, “ser mulher é
tudo na vida
”, No discurso machista a
mulher deveria fazer tudo: educar filhos, cuidar da casa, etc., fazer tudo em relação
ao espaço familiar/doméstico/da intimidade, de modo submisso, sem reivindicar
direitos iguais. Dessa forma, pelo efeito ideológico, isso parecia “natural”, o “tudo
assim significado era o universo feminino.
Ao mesmo tempo que esse discurso apresentado pela entrevistada se
constitui pelo discurso machista, portanto, ele faz frente, “rearranja-se”, atualiza-se
em relação ao discurso feminista (que predica negativamente as atividades do
ambiente doméstico). Assim teríamos:
- Discurso feminino constituído na relação com discurso machista: sem predicação
(algo natural, da ordem do dever)
93
“é tudo na vida”
“a gente faz tudo”
“essa missão “
Esses enunciados, dentro de uma ideologia machista apontariam para um
efeito de normalidade: o lugar da mulher é esse mesmo. Tudo” é igual:
missão/casa, que é igual: atividade doméstica, que é igual: espaço privado.
o discurso feminino constituído na relação com o discurso feminista
“radical“ traria uma predicação negativa: isso é ruim, ”tudo” = esteio da casa = lugar
doméstico é visto como algo menor, desvalorizado, que deve ser suprimido.
Entretanto, tal como se apresenta o discurso feminino, temos uma formulação
em relação a um discurso feminista que possibilita uma predicação positiva:
- “gosto
bastante”
- “coisa louca de
boa”
O lugar doméstico é considerado algo importante, bom, a ser preservado.
Percebe-se, então, nesse enunciado, um deslocamento em relação ao discurso
machista, e também um deslocamento em relação ao discurso feminista clássico.
Ainda é relevante descrever que esse funcionamento se realiza sob o duplo
efeito: o do pré-construido e o de sustentação, condição da presença do
interdiscurso e, portanto, de sua constituição heterogênea. O “tudo” trabalha, na
primeira .seqüência, sob o efeito do pré-construido machista- faz tudo o quê? Faz
bem o quê?- considerando como algo já dado e do conhecimento de todos as
atribuições designadas à mulher. Em “tudo na vida”, dessa mesma perspectiva, a
falta do significante completa-se no pré-construído como aquilo relativo ao campo
doméstico, mas também pode ser o lugar de possibilidade do deslocamento. No
segundo enunciado, essa interpretação é preenchida/saturada: “esteio da casa”,
reescrevendo esse pré-construído no nível da formulação.
Se partimos de uma FD feminista, entretanto, no enunciado 35 alguma coisa
falha, pois se observarmos a segunda parte destacada do enunciado, a mulher é o
“esteio”, entretanto é o “esteio
da casa
, espaço reservado à mulher dentro de uma
ideologia patriarcal e não feminista!
Cremos que esses enunciados estejam, portanto, na tensão entre os
discursos feminista e machista, constituindo-se como um discurso feminino afetado
94
por um discurso feminista, mas que se constitui por um deslocamento, pelo menos
no que diz respeito ao discurso feminista clássico.
Numa outra questão, quando perguntamos se a mulher tem mais liberdade, a
entrevistada afirma que a mulher tem mais “apoio”, ou seja, não necessariamente
liberdade. Reconhece que o tratamento entre homens e mulheres mudou, afinal
agora “cada qual cuida de si e pronto”, o que reflete uma postura feminista de não
depender e nem dar satisfação ao homem.
Enunciado
36
: Pesquisadora: A senhora acha que a mulher
tem mais liberdade com isso?
- Sabe ,eu acho que a mulher tem mais apoio né, porque
assim antigamente eles eram muito como é que se diz, muito
rigidamente, a vida entre um e outro né. Eles eram assim,
um observava o outro, agora não, eles tem uma vida, cada
qual cuida de si e pronto né e também, é bem bom isso.
Há nessa fala um deslocamento visível em relação ao papel do homem
também. Ela um lugar positivo para ele nessa nova conjuntura temporal.
Vejamos:
- “Antigamente”:
- “muito rigidamente’
- “um observava o outro”
Temos aqui nesse tempo “antigamente” um efeito de que isso não era bom
para o homem também, afinal a liberdade de ambos estava cerceada. No segundo
momento “agora”, uma mudança ocorre:
- “eles têm uma vida
Entende-se o complemento dessa “vida” como vida íntima, espaço privado em
relação ao espaço público, e relação ao espaço do trabalho, uma vida em que “cada
um cuida de si”, o que é predicado positivamente: “bem bom”, o que significa que a
mudança é positiva tanto para a mulher quanto para o homem.
Também é interessante que ela não fala “casal”: utiliza o pronome “eles”,
tanto para o passado (eles-“vida entre
um
e
outro
”), quanto para o presente (eles-
95
cada
qual cuida de
si
), o que produz um efeito, da perspectiva da fala dessa
mulher,de que em nenhum dos tempos, eles se constituem como “casal”.
Entendemos que esses enunciados (34 a 36) trazem algo do discurso de
base feminista, mesmo não tendo a força do movimento feminista em si, sobretudo
por considerarmos quem é o sujeito locutor, uma senhora de 83 anos, da qual se
poderia esperar apenas um discurso de base machista.
4.2.5.2 UM LUGAR PARA UM DISCURSO MACHISTA NA FALA DE UMA
MULHER DO SÉCULO XXI
O discurso machista perpassa toda a fala da entrevistada, em muitos
momentos de forma velada, em outros de forma explícita. Entendemos que isso
ocorre em função de uma dominação muito forte e ainda presente na vida da mulher.
Mesmo que não tenhamos vivido uma situação real de submissão em relação ao
homem, os discursos sobre essas práticas ainda nos constituem e determinam o que
chamamos de discurso feminino. A própria mulher, mesmo sem ter consciência
disso, reproduz enunciados machistas, oriundos de uma ideologia patriarcal que por
muito tempo dominou as práticas sociais e determinou as diferenças entre os
gêneros.
Um primeiro ponto que aparece na entrevista é o fato de que a mulher deve
estar sempre satisfeita, “feliz”, trabalhando. Não nenhuma justificativa para tal
satisfação e felicidade, parece ser simplesmente seu dever. O homem deve
encontrar a mulher sorridente em casa, afinal ela não tem do que reclamar:
Enunciado 37:
E pra isso a gente está sempre feliz,
satisfeita, trabalhando né? Querendo trabalhar, e quem
trabalha melhor ainda né, porque bastante valor, cuida
dos afazeres, cuida dos filhos, cuida do trabalho, a vida
assim, será mais interessante.
Há, contudo, um deslocamento em relação a uma ideologia patriarcal, quando
a entrevistada fala da questão do trabalho: “e quem trabalha melhor ainda né?”.
Nesse discurso materializa-se a possibilidade da mulher trabalhar fora de casa, o
que se torna visível (mesmo que não explícito na sua fala) a partir de um
interdiscurso da atualidade baseado na prática da mulher atual trabalhar fora de
96
casa. Esse discurso abre uma outra possibilidade de interpretação em que o
trabalho pode significar duplamente: como trabalho fora de casa ou a consideração
das atividades domésticas como “trabalho”. Constrói-se um espaço de ambigüidade
para o significante “trabalho”, que pode ser completad762( )-232.1021(ü)1co2219(a)13.4459(çã)2.8076(t)1.40511(eo)2.80762(r)-94.3396(c)2.80762(o)13.4459ele seD(o)13.44596(c)2.80762(o)13.4459(çã)2.8331(eo)2.85799(a)13.4485(vi)-15892(b)2.21019(a)13.4485c(b)2.21019lvi da fil Ei s ivie s2.807432(o)2.80892e s2.80739(t)1.40381(r)3.21279(a)2.81462a çãhoçã c2.807399(i[(d87159(u)2.80762(a)2.80762( )-370.935(p2.80739(e)13.4459( )-360.297(i2.807392(sa)2.81021( )-821279(,)1.40511( )-232.637(q2.80739(u)13.4459(e)2.80762( )-821279(t)1.40511(e)2.807621)3.21285.3642m)-7.47(c2.80739po)2.80762( )-104.97(e)13.4459( )-360.297(i2.807391(n)2.80762(t)1.40511c(u)2.80762(a)2.80762(o)2.80762(ssi)9.233(a)2.80762( )-370.93( )-232.637(c622.8479(t)1.40381(b)2.21019(eo)2.80762(d)2.81021v1(d)2.81021(a)13.4485(d)2.81021(e)2.81021( )277.998s]TJ-278.16 -1985.364[(t)-9.2338(a)2.80827oa)2.808271(é)2.80892(st)1.40381(i)-1.40381(ca)13.4485(s )-94892s” )-232.637(c1.44 94(( )-232.632(r)3.21279(vi)-1.403(e)2.80892( )-232.639(o126.2563(e)2.80892( )-243.27s9(o126.2542( )-232.639(i)-1.4038( )-232.63z)1080783((r)3.21279( e)2.80762(n)3.21279s,( )-94.3396(c126.2542feo)2.80762(dl)9.23319(ih)13.4459(o)2.80762( )-104.97s) )-232.637(c126.2542c(u)2.807621(o)2.80762( )-83.7013(“126.2542(r)3.21279(ó)2.85382a )-232.63bo)2.80762( )-8212791(h)13.4459(o)2.80762( )-104.978(f)26.2542c(u)2.807621(o)2.807628(f)26.2542.16 0 314[(a)2.80762(m)-7.42811( )-360762uçã)2.8076(t)1.40511(r)3.21279(p)2.80762(ço)2.80762ão)2.80762( )-104.97( )-232.637(q)26.25421(h)13.403ud)2.81021ga)13.4485(d)2.21019(a)13.44857(q)15.6121(e)2.81021( )277.998]TJ-336.84 -1914[(a)[(t)-9.2338ha)2.80827oaé ic613.4472(o)2.80892(d)2.80892rtr ted E613.4472A(sse)2.8087(E5o)2.819(a)13.8076e s edl E613.4489(e)2.80762a E613.44899(o)2.80762(r)]TJ278.1sea i613.44891(h)13.44591(n)2.80762(t)2.81021gaedlE5otrab6 0 3168 Tm2.80762(a)2.80762(l)9.23319(h)2.80762(o)2.80762(”)3.21279(.)1.40511: q5ota çãdde J-336.84 -19168 Tm[(t)-9.2338(t)-9.23319(r)3.21279(a)2.80827(b)13.4485(r)3.21892(l)-1.40381(h)13.4472(o)2.80892(r)3.21279( )-94.340(,)1.40511( )-230.937(E158.1719(t)1.40381(r)3.21279(a)2.80892(b)2.81021(a)2..4472(d)2.808921(h)13.4472(o)2..4472(d)2.80892” )-232.637(c158.1719(t)1.40381(r)3.21279(a)2.80892(b)2.7.998(a)2..4472(d)2.803391(h)13.4459(o)13.4459(u)2.80762”,)1.40511( i)-1..3396(c1.44 939(e)2.80892( )-37J323.7)13.4459( )-36068(c(eo)2.80762(d)2.80762v(m)-7.42551(e)2.80762(n)13.4459(t)-9.23319(e)13.4459(:)-9.23316(c147.5362(n)13.4459(t3.2126)2..42m)-7.49(i[(d87159at)-9.23319(e)13.4459(d)2.80762z)1080783((m)-7.42551(e)2.807626(c1.44 939(sa)2.810216(c147.53621(e)2.80762úd)2.803391(h)13.4459(e)2.80762(dl)9.23319(l)9.23319(a)2.80762(m)-7.4255s6(c1.44 939(t)1.40511(re)13.4459(d)2.85799l(d)2.810211(d)2.81021z)1080783((mã)2.81021õe)2.81021( )277.998s]TJ-278.16 -196)2..4[(t)-9.2338ea)2.808276(c)75.1992e )-243.279(i)-1.4038e vii ces c ivie E264.55429(sse)218089sa E253.9149(o)13.4459(dl)9.23319(l)2.80339ótrr uec264.5529ati[(d87159at)-9.2331z(r)2.21019(a)13.0892( )-37J323(u)264.5529(e)2.80762oméstrdluue4 0 Td7E253.9149c(m)-7.42551(e)2.80762(o)13.4459(d)2.80762(u)264.5562(o)2.21019(a)13.44851(d)2.81021v(d)2.81021(e)2.81021( )277.998]TJ-336.84 -19.7ur
97
vozes masculinas desde muito tempo e incorporada à fala da mulher por reproduzir
a ideologia dominante. Segundo Emanuel Araújo, no Brasil do período colonial, a
educação feminina era “dirigida exclusivamente para os afazeres domésticos”
(ARAÚJO, 2000: 50). Assim, muitas vezes a “conquista” do mercado de trabalho
pela mulher parece na verdade ter surgido como a incorporação de uma dupla
jornada de trabalho, que o serviço doméstico ainda continua destinado a ela e
tomado como sua “obrigação”.
ainda a expressão “continua assim”, vestígio de um discurso machista,
que revela interpelação à ideologia machista, tendo em vista a falta de outra forma
de se subjetivar. Quando o marido estava presente, ela precisava cumprir suas
“obrigações”, agora que ele não está mais com ela, ela não outra forma de
levar sua vida, então ela “continua assim”, como se esse fosse o único modo
possível de se subjetivar como mulher.
Alia-se ao discurso machista, em muitos momentos, um discurso religioso.
Sabemos que, historicamente, eles sempre estiveram ligados. O discurso cristão,
mais especificamente, reproduz um discurso machista bastante latente: o casamento
está ligado à procriação e ambos são “obrigações” femininas. Conforme Emanuel
Araújo, “Na visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice da vida
da mulher. Doravante, ela se afastava de Eva e aproximava-se de Maria, a mulher
que pariu virgem o salvador do mundo” (idem, ibidem: 52).
Ainda compõe o discurso machista de que a mulher deve ser submissa, mãe,
frágil, um discurso médico-biológico:
Na tentativa de isolar os fins aos quais a natureza feminina deveria
obedecer, os médicos reforçavam tão-somente a idéia de que o
estatuto biológico da mulher (parir e procriar) estaria ligado a um
outro, moral e metafísico; ser mãe, frágil e submissa, ter bons
sentimentos, etc.”(DEL PRIORE, 2000: 83).
Um enunciado como o seguinte, por exemplo, é composto de todos esses
discursos que mencionamos e que se ressignificam na fala da mulher:
Enunciado 39:
De ser mãe, também, sabe, porque ser e
é bem importante porque a gente luta bastante pra
cumprir as obrigações e é uma coisa divina né? Então temos
que jamais deixar de ter a sua prole.
98
Essa posição da mulher como mãe aparece como lugar “eterno”, o que
podemos verificar a partir das pistas lingüísticas que se repetem e formam essa
discursividade: “luta” (significando que sempre lutou, é uma prática contínua);
“jamais deixar”, “coisa divina”. Todas essas expressões produzem o sentido da
maternidade como algo eterno, que não se tira, algo da essência da mulher.
Se observarmos, no enunciado 38 também aparecem expressões do mesmo
campo semântico: “continua e “sempre”, o que vai delineando o papel da mulher
sob um efeito de estabilização, continuidade, ligado à essência feminina. Esse
discurso está arraigado desde muito tempo, conforme mencionamos no primeiro
capítulo sobre a história da mulher.
No excerto seguinte, a senhora fala da mudança do homem e aparece um
enunciado estereotipado como machista que soa estranhamente numa fala feminina,
considerando que a senhora que fala não o faz em tom irônico:
Enunciado 40
: Pesquisadora: A senhora acha que mudou
bastante coisa?
- Mudou, mudou, bastante eu acho que agora o homem está
num caminho muito importante. Ele faz de tudo, cuida da
casa, cuida dos filhos, cuida do serviço e o homem que,
afinal de contas é o chefe né? É o chefe que tem que se
impor bastante, não deixar a mulher passar muito na frente
dele né? Tem que partilhar de tudo né?
Mais uma vez, a sombra do discurso machista constitui a fala dessa mulher
que reconhece a mudança pela qual o homem vem passando, entretanto ainda o
numa posição de superioridade, resquício de uma ideologia patriarcal. Veja-se que
marcas lingüísticas que materializam a superioridade do homem em relação à
mulher: “muito importante”, “de tudo”, “bastante”. A memória desse discurso
machista é permeada mais uma vez por um discurso religioso, originário do período
medieval: “o fundamento escolhido para justificar a repressão da mulher era simples:
o homem era superior, e portanto cabia a ele exercer a autoridade” (ARAÚJO, 2000:
46).
Ocorre, entretanto, um equívoco na última linha do excerto. Na frase “não
deixar a mulher passar
muito
na frente dele né?”, o advérbio “muito” denota um
99
saber compartilhado (o que se materializa pela presença do “néno final da frase”)
de que a mulher vem passando na frente do homem. Vejamos: o homem é o chefe,
assim afirma a entrevistada, entretanto, ao dizer que ele não pode deixar a mulher
passar “muito” na frente dele, escapa uma fala que afirma esse acontecimento,
mesmo que ainda se silencie de que forma ou em que aspectos a mulher vem
tomando frente em relação ao homem.
O mesmo ocorre no próximo enunciado:
Enunciado
41
: Pesquisadora: A senhora acha que a mulher
tem passado às vezes na frente do homem?
- Muitos tem a mulher é tudo, tem mulher até assim já, que
dirige carro, dirige ônibus, dirige caminhão, então o homem
tem que se impor, que isso era serviço deles só, né? Agora
as mulheres já estão se equiparando, estão indo carreira
junto né?
Temos aqui a paráfrase discursiva: “e o
chefe
que tem que se impor”, e “o
homem
tem que se impor”, em que são tomados como sinônimos “chefe” e
“homem”, o que garante sentido de superioridade, de autoridade para o homem. Isso
é complementado pelo espanto da entrevistada em relação às atividades realizadas
pelas mulheres hoje em dia, o que reflete uma ideologia pautada num discurso
machista, principalmente quando ela afirma que o homem precisa se impor.
A questão do trabalho, que aparece no enunciado analisado, é algo que
sempre causou tumulto nas relações entre homens e mulheres e causa da grande
divergência do movimento feminista que, por muito tempo, defendeu a igualdade nas
condições de trabalho e a capacidade da mulher de realizar com a mesma ou até
maior eficácia os trabalhos considerados “masculinos”. Contraditoriamente a essa
postura feminista, o machismo, balizado numa ideologia patriarcal e também
religiosa, a mulher como ser frágil e incapaz, e, por isso, destinado apenas aos
afazeres domésticos e à criação dos filhos. Nessa fala materializa-se a questão de
que “serviço” de homem e serviço de mulher; e um efeito do sentido da essência
e do eterno em relação aos gêneros.
100
4.2.5.3 DISCURSOS FEMINISTA E MACHISTA INTERCALADOS:
HETEROGENEIDADE
A análise dos enunciados anteriores deixa claro que ambos os discursos-
machista e feminista- constituem a fala da mulher. Em alguns momentos um se
sobrepõe ao outro, mas algo sempre “escapa” e fura a interpelação ideológica. Em
outros momentos, porém, percebemos que os discursos machista e feminista
aparecem num mesmo enunciado de forma explícita, o que nos leva a supor que
eles realmente compõem a fala da mulher de maneira contraditória. O enunciado
seguinte materializa bem esse acontecimento:
Enunciado 42: Porque agora eles partilham da afinidade da
casa, eles ajudam criar os filhos diferente. Tem homens aí,
que eu vejo por que fazem de tudo, até tinha, até pra uma
mulher era difícil botar uma fralda, tenho visto homem em
atividade bem assim, sabe? Então é importante que o
homem agora está bem no caminho de entender aquilo
que está imposto pra ele, não é de correr, não quero ser isso,
não quero ser aquilo porque é feio, não senhor, ele partilha
de tudo, e é muito bom.
Ao mesmo tempo em que a entrevistada apresenta surpresa ao falar dos
homens que “até” já trocam fralda, ela deixa claro que o homem deve ter as mesmas
“obrigações” da mulher, “partilhar do cuidado da casa e dos filhos. Esse “até” é
atribuído também à mulher na fala “até pra uma mulher era difícil botar fralda”, e,
nesse caso, a interpretação é diferente: se nem a mulher, que seria a responsável
por fazê-lo (conforme os pressupostos de uma ideologia de base
patriarcal/machista), não conseguia muito bem, o homem tem feito isso: “já tenho
visto homem em atividade bem assim”. Afinal o homem é superior, não era nem a
função dele e ele faz. Aqui temos um discurso feminino, podemos dizer.
A palavra “obrigações” (baseada numa FD machista com origem na Idade
Média) no jogo parafrástico aparece em relação com “imposto”, constituindo uma
ligação que pontua a possibilidade de se escapar do eterno/daquilo que é destinado
(o destino) para o homem e para a mulher. Aqui o sentido de “obrigaçãose mobiliza
101
em relação à enunciação “o homem está no caminho de entender o que esta
imposto
pra ele”; suas “funções” se modificam e as obrigações domésticas e em
relação aos filhos também passam a fazer parte do universo masculino. Aparece
uma FD machista advinda da expressão “obrigações” e uma feminista, quando a
mulher utiliza o significante “imposto”, para designar as atividades que o homem
deve realizar neste momento.
Surge ainda a negação de uma fala masculina machista, colocada em forma
de discurso relatado direto: “não quero ser isso, não quero ser aquilo por que é feio”,
ao qual a mulher responde, como num diálogo: “não senhor!”. Ou seja, aqui a
contradição que perpassa a formação identitária da mulher da nossa época, coloca-
se em forma de diálogo, coexistindo no mesmo espaço e constituindo
contraditoriamente esse sujeito mulher que fala nesse momento. A mulher ao
mesmo tempo fala COMO o homem e fala COM o homem.
Esse ponto é extremamente relevante para nossa reflexão sobre a mulher
atual porque marca explicitamente, via heterogeneidade mostrada, a
heterogeneidade constitutiva da mulher. É ainda o lugar que materializa um NOVO
discurso, decorrente de uma nova posição possível para a mulher na
contemporaneidade. Antes ela não podia falar COM o homem, tinha apenas que
ouvi-lo e obedecê-lo; também não podia falar COMO ele, pois seu lugar de mulher
não permitia, porque sua “essência” era outra (dada pela “verdade” da época). Agora
os papéis se deslocam e a relação homem e mulher também, o que permite
deslocamentos na fala da mulher que produz um discurso “outro”, diferente da FD
machista e da feminista.
A análise, ainda que sumária, que fizemos da fala dessa senhora de 83 anos
permite que reflitamos acerca da identidade feminina. Pensamos que a identidade
não pode mais ser vista sob o signo da homogeneidade, mas justamente pela
heterogeneidade, pela presença inquietante de um “Outro” no Um, e ainda pela
quebra de paradigmas trazida pela contemporaneidade.
A sombra de um discurso machista, de base patriarcal, ainda fala em nós,
assim como o discurso feminista clássico retorna ressignificado em nossa fala.
Ambas as práticas discursivas, embora contraditórias, compõem o que unitariamente
chamamos de discurso feminino, discurso esse que não é fechado, homogêneo,
mas conjuga várias fontes, por vezes oponentes, em sua composição.
102
Dessa forma, a identidade feminina não pode ser tomada como um conceito
fechado, dadas as condições do sujeito na contemporaneidade. Podemos dizer que
ela vem sendo (des) construída, já que constituída de forma heterogênea, com base
num sujeito atravessado pela memória discursiva (ou interdiscurso) e pelo
inconsciente. Se a mulher se constitui justamente pela “falta”, pela contradição, é a
partir daí que precisa ser vista, justamente pelo que “falha” na sua pretensa
homogeneidade identitária.
4.3 JUNTANDO OS PEDAÇOS: FECHAMENTO DE UMA ANÁLISE INCOMPLETA
As palavras por vezes nos faltam, aprendemos isso na própria análise
realizada e no contato com a AD e a Psicanálise. Pêcheux sabia disso, ao falar da
heterogeneidade e Lacan também o sabia, ao construir uma teoria a partir de
matemas para tentar dizer o indizível.
A linguagem, lacunar que é, não foi diferente conosco. Os efeitos de sentido
deslizam e às vezes parece que um fechamento nos é impossível. Temos uma
análise fragmentada. Um sentimento de angústia decorre disso, entretanto não
como fugir dele sendo nós seres incompletos, desejantes. Considerando isso, e
sabendo da impossibilidade da completude, resolvemos fechar esta análise através
de uma outra forma de simbolização. Pensamos com isso possibilitar uma
visualização (no sentido concreto do termo) do discurso feminino, juntando-o em sua
constituição heterogênea através de um fluxograma.
Quando falamos do discurso feminino na contemporaneidade e sua
constituição heterogênea, o vislumbramos a partir dos discursos que o compõem e
podem ser nomeados: como a FD machista e a FD feminista. Essas duas FD´s
coexistem no discurso feminino numa relação de dominância em relação a outros
discursos. Também consideramos o afetamento do discurso feminista e machista
pelas FD´s médico-biológica e religiosa, sendo que essas FD´s aparecem com
bastante freqüência (por isso as ressaltamos no fluxograma), significando
diferentemente conforme o lugar em que comparecem. Junto com essas FD´s
ainda várias outras possíveis que compõem o discurso feminista, machista e,
portanto, o discurso feminino, daí os balões em branco, que representam essas
possibilidades.
103
Aliado a toda essa formação heterogênea ainda o Outro, que atravessa
toda formulação por ser intrínseco à constituição do sujeito falante. Dessa
determinação pelo “Outro” decorrem os equívocos, que corporificam a presença do
desejo, dada a interposição de um sujeito faltante. O equívoco se coloca na tensão
que se constrói pela própria constituição do sujeito mulher: a
mulher-efeito
produz
uma dicotomia dada pelo assujeitamento e pela falha que ele mesmo produz. Daí
resulta um sujeito feminino que corporifica ao extremo a heterogeneidade.
Se não é possível fechar sem falhas, vamos tentar unir os fragmentos que
conseguimos juntar.Sem mais delongas, que o fluxograma explique-se por si
mesmo. A falta? As lacunas? São necessárias!
104
105
FALTA AINDA ALGUMA COISA... CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mulher, mulheres, discurso feminino, identidade, mulher-efeito, sintoma.
Significantes que latejaram durante toda a realização desse trabalho. Concluir? Não
sabemos se é possível concluir alguma coisa, entretanto alguns pontos foram
lançados para se pensar a identidade da mulher nesse período contemporâneo, por
isso preferimos falar em “considerações finais”.
Nosso objetivo neste estudo era refletir sobre a identidade da mulher no
cenário contemporâneo. Para isso, resolvemos trabalhar com o discurso oral
feminino, considerando que essa modalidade do discurso, sendo mais desprovida de
planejamento, era o lugar de onde poderia emergir um material lingüístico que
pudesse ser representativo da fala feminina. Escolhemos mulheres de perfis
diversificados, ao todo 10 (dez) entrevistadas, para as quais colocamos a seguinte
questão: “Você gosta de ser mulher? Por quê?”. Com esse questionamento
pensamos dar vazão à fala da mulher, seguindo o princípio psicanalítico da
associação livre, que gostaríamos de observar o discurso produzido por posições
discursivas femininas.
Dessa forma, acreditamos contribuir para os estudos sobre a identidade
feminina, tendo em vista que a maioria dos estudos existentes enfocam a questão
da construção da identidade feminina por outros meios, via dia ou discurso
masculino, por exemplo. Se o indivíduo se constitui em sujeito ao tornar-se um
sujeito falante e, então, ser interpelado pela ideologia e pelo inconsciente, é
justamente pela SUA fala que poderemos observar sua constituição como sujeito e,
em decorrência disso, as possibilidades de identificação.
A hipótese inicial do projeto era de que a mulher reproduziria em suas falas
discursos de origem machista. Isso não se revelou totalmente falso. Entretanto,
percebemos que aparecem outros discursos que também constituem a fala feminina,
como o discurso feminista, contraditório ao discurso machista. Pensado desse modo,
a interpelação da mulher como sujeito se dá não através de uma FD fechada,
balizada numa FI única, mas justamente na tensão entre várias FD´s, por vezes
oponentes, como é o caso da FD machista e feminista. As mulheres do nosso tempo
106
são constituídas em sujeitos falantes, o que chamamos de
efeito-mulher
, através da
interpelação de FI distintas, que as perpassam concomitantemente.
Outro ponto importante das nossas considerações acerca da formação
subjetiva da mulher é o atravessamento pelo inconsciente. A insistência de uma
instância “Outra”, que não deixa nunca de se inscrever, perpassa toda essa
formação do sujeito, deixando uma falta que se materializa na linguagem, o que
verificamos nos equívocos.
A partir dessas “falhas”, faltas do discurso feminino, consideramos
importante uma reflexão psicanalítica acerca da constituição da mulher. Daí a noção
de sintoma, discutida no segundo capítulo, que nos permite pensar a estrutura da
mulher, o que se verifica no seu discurso.
Trabalhamos com a constituição da mulher a partir do mesmo “efeito”
ilusório de constituição do sujeito, pelo qual ele se pensa completo e dono do que
diz- efeito-sujeito-. Tornar-se mulher é assimilar um conceito que vem junto com o
significante “mulher”, conceito esse imaginário e produzido historicamente pelas
práticas discursivas. Esse significante só produz o efeito de interpelação do indivíduo
pela noção de nero à medida que está investido de sentido pela determinação das
posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico de (re) produção
das palavras e dos discursos sobre o que é ser mulher. A esse fenômeno chamamos
“efeito-mulher”.
Considerando o efeito-sujeito, ou “efeito-mulher”, podemos afirmar que, ao
nomear um indivíduo “mulher”, o significante carrega o peso da história, os sentidos
e atribuições do que as práticas discursivas construíram como o que é ser mulher e,
portanto, o sujeito estará sob esse efeito, que entendemos como histórico e
imaginário. Mesmo que, como afirmou Lacan, A Mulher não exista”, ou melhor, não
exista como conjunto, existe um efeito homogeneizante do que é ser mulher, o que é
construído via palavra do homem.
Contudo, ao observarmos o funcionamento do discurso feminino, percebemos
que esse efeito nem sempre funciona, porque sempre um espaço para a falta.
entram os pressupostos psicanalíticos de constituição do sujeito. A materialização da
falta no discurso feminino revela-se nos equívocos produzidos, o que denuncia uma
falta que é constitutiva de todo sujeito e ainda mais evidente no caso da mulher.
Assim, ao mesmo tempo em que a mulher é interpelada pela ideologia e pelo
discurso dominante (masculino) -efeito-sujeito-, ela também carrega o fado de ser
107
sintoma, ou seja, portar uma verdade negada, uma falta que nos é impossível de ser
simbolizada. A impossibilidade do ser unificado, revelado pela falta constitutiva,
afirma um sujeito heterogêneo, em que falam vozes “outras” (interdiscurso) e ainda
o afetamento pelo grande “Outro”, negligenciado ao entrarmos no nível simbólico,
mas constitutivo e, portanto, sempre existente e resistente, interpondo-se onde a
linguagem falha.
Como pensar, então, essa noção de heterogeneidade do sujeito em relação à
mulher? Acreditamos que, ao situarmos a mulher como “efeito”, mas um efeito que
falha, a colocamos na tensão entre dois pólos: um regido pela determinação
histórico-ideológica e outro que se coloca a partir do desejo, da falta que constitui
todo sujeito. Pensando nessa bipolaridade, situamos o sujeito sob o signo da
heterogeneidade. Se considerarmos ainda a questão da constituição feminina,
podemos afirmar que a mulher apresenta de forma mais clara, em função da sua
estrutura, essa manifestação heterogênea.
As identidades são efeitos construídos a partir dos discursos. Dessa maneira,
observamos que as mulheres, como não poderia deixar de ser, estão sob esse
“efeito identitário” que é dado pelas práticas discursivas sobre o que é ser mulher e
que elas (re) produzem em suas falas, mas também “escapam” a essa
determinação, caminhando para outras possibilidades de identificação, o que
configura os desdobramentos em relação ao “efeito-mulher”.
Dessa forma, as mulheres que entrevistamos ainda estão determinadas pelo
“efeito-mulher”. Suas falas (re) produzem discursos de uma interpelação com base
no que circula sobre o que é ser mulher. Ainda dão extrema importância ao
casamento, à maternidade, querem trabalhar, estudar, ter “mais” liberdade, ainda
são conservadoras em relação à liberdade sexual, ainda vivem a partir de uma FI
patriarcal, ou seja, valorizam muito tudo que diz respeito ao mundo masculino.
Entretanto, o discurso feminista que produz deslocamentos, entre muitos
outros discursos que constituem a fala da mulher. Mais que isso, há algo que
“desestabiliza” dentro do discurso da mulher, que é a presença do discurso do
“Outro”, que se faz via atos falhos, conteúdos reticentes, pausas, escolhas
lingüísticas que soam estranhamente, dentre outros equívocos.
A mulher de hoje se constitui, pelo que pudemos perceber através das nossas
análises, pela mascarada da heterogeneidade. Explicamos: leva ao máximo o
princípio da constituição do sujeito como heterogênea. Assim, a mulher parece
108
corporificar a heterogeneidade, que faz surgir com mais freqüência a presença de
um discurso repleto de equívocos, discurso que não é somente seu, mas reflete o
posicionamento de uma sociedade em vias de mudança e em fase de
desestabilização.
109
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112
ANEXOS
113
ANEXO 01
31
1. Entrevista: M.M. , estudante universitária , 22 anos, solteira, Irati-PR
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Não sei, pergunta difícil.. (...) Eu queria ser meu irmão, pra poder ter mais
liberdade...viajar, pode fazer muitas coisas. Meu irmão desde cedo saiu de casa pra
trabalhar, mas pra mulher já é mais complicado, mulher não pode trabalhar em
qualquer coisa, então eu fui ficando”.
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
Tudo tem um limite...tem muitas loucas que fazem.mas.não é permitido e
não é fácil. (...) eu posso fazer o que eu quiser, mas as conseqüências o mais
graves”
Você ficaria com dois homens (garotos) numa noite só?
“Ficaria. Eles pensam que usam a gente, vamos usar eles também...” Mas não
transaria com dois...”
Você quer se casar?
Não me vejo cuidando de uma casa, mas tenho umas pira de me vestir de noiva...”
Não quero casar, quero ter alguém..., mas não quero depender de homem..” “Minha
mãe sempre diz que não posso me casar porque sou muito bagunceira, não seria
uma boa dona de casa”
Você quer ser mãe?
Não vejo problema em ficar solteira, mas quero ter um filho, meu ou adotivo, não
importa..”
2. Entrevista: V. C., estudante universitária , 19 anos, solteira, Irati-PR.
31
As entrevistas que apresentamos a seguir são fragmentos, porque não fizemos anotações enquanto
conversamos com as entrevistadas. Fizemos este relato a posteriori, priorizando apenas as questões principais
dentro da entrevista, entretanto procuramos manter o máximo de fidedignidade ao conteúdo e forma da fala das
entrevistadas.
114
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Não gosto, quer dizer, às vezes sim às vezes não”, “mulher é proibida de fazer
muitas coisas, tudo não pode, enquanto homem pode tudo”, “o único lado bom é
que, por isso o homem tem mais responsabilidades”
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
A mulher hoje pode trabalhar, escolher se quer ficar com alguém ou não, mas
não pode fazer muitas coisas... ”
Você ficaria com dois homens (garotos) numa noite só?
“ Não, acho complicado, falariam muito, só se fosse bem escondido...”
Você quer se casar?
Quero, mas não agora. Quero estudar primeiro, me formar, para depois pensar em
ter alguém
Você quer ser mãe?
“Quero ter um filho sim, mas gostaria que fosse tudo direitinho, depois que estivesse
casada e bem estabelecida financeiramente”.
3. Entrevista: P. P. B., estudante, ensino médio incompleto, 15 anos,
solteira, Guarapuava-PR.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Gosto, mulher é mais sentimental e também mais respeitada”
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“Mulher não pode ficar com muitos parceiros, é feio. Pra homem não é tão feio, mas
pra mulher é”.
Você ficaria com dois homens (garotos) numa noite só?
“Ficaria, se fosse escondido e tivesse chance.”
O que você faz quando leva um fora?
“Fico nervosa, choro, desconto nos outros, principalmente na minha mãe.
Você quer se casar?
“Quero casar, mas não tão cedo”.
Você quer ser mãe?
“Sim, quero ter filhos, mesmo que não case”.
115
4. Entrevista: M. S., empregada doméstica, 30 anos, separada, 2 filhos,
ensino fundamental incompleto, Guarapuava-PR
32
.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Eu gosto!” (enfaticamente). Ser mulher tem muitas vantagens (não enumerou
quais). Mas se eu pudesse nascer denovo, acho que preferiria ser homem”.
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“Mulher não pode sair fazer o que quiser”.
Você ficaria com dois homens numa noite só e/ou trairia durante uma relação?
“Não traio nunca, durante o meu casamento nunca trai o meu marido. Ficar com dois
na mesma noite eu até ficaria, mas não transaria com dois, aí já é demais”
O que você faz quando leva um fora?
“Há...depende, quando terminou meu casamento, por exemplo, eu fiquei triste, mas
ao mesmo tempo foi um alívio, porque meu marido era ruim pra mim. Agora quando
levo um fora de algum namorado, fico meio pra baixo por algum tempo”.
Você quer se casar novamente?
“Quero, mas só quando encontrar o homem certo”.
Você sempre quis ser mãe?
“Claro! Meus filhos são a melhor coisa que eu tenho, quando encontrar alguém legal,
quero ter outro filho, sos meus filhos são a única coisa boa que sobrou do meu
casamento”.
5. Entrevista: R.M.S., 51 anos, aposentada, viúva, 3 filhos, ensino
fundamental incompleto, Guarapuava-PR
33
.
32
“M” tem uma história muito interessante que me contou. Ela “fugiu” aos 14 anos com um homem
bem mais velho, que conhecia por carta. Essas cartas eram escritas e lidas por uma parente sua
que a encorajou a “fugir” com o “namorado”, que seu pai era muito rígido. Com esse homem
conheceu o sexo e a rotina de um relacionamento a dois bastante tradicional, em que a mulher deve
ser totalmente submissa ao homem. “Você não imagina as coisas que eu tinha que fazer”, diz “M”,
referindo-se à prática sexual, que afirma ter sido uma experiência horrível no início. Depois, fala que
“aprendeu” a gostar do marido, mas ele batia nela, tentou por várias vezes matá-la, tudo isso porque
tinha ciúmes e imaginava que ela pudesse ter outro homem, sobretudo quando ela não queria manter
relações sexuais com ele.
116
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Eu gosto. Não sei porque, mas é bom ser mulher”.
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“Mulher pode fazer quase tudo, algumas coisas não pode fazer, se não fica suja,
mal falada”(referindo-se a questões sexuais).
Você ficaria com dois homens numa noite ou teria um amante se fosse
casada?
“Não, de jeito nenhum.Não teria um amante (nunca tive) e também o ficaria com
dois homens na mesma noite. Eu até fico com vários, mas um de cada vez”.
O que você faz quando leva um fora?
“Fico chateada, bebo, mas não choro”.
Você sempre quis se casar, se casaria novamente?
“Sim, gostei muito de ser casada, mas tem que ser com alguém que você se
bem, amor só não basta”.
Você sempre quis ser mãe?
“Sim, ser mãe é muito bom, é por causa dos meus filhos que hoje eu não estou
sozinha no mundo”.
6. Entrevista: T.V, funcionária pública, 44 anos, casada, 2 filhos, ensino
médio completo, Guarapuava-PR.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Gosto. Ser mulher é muito bom...” (não soube dizer por quê) “Há..sei lá...”
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“Não sei, acho que pode fazer tudo. É claro que não pode ser como os homens, mas
hoje em dia a mulher tem muito mais liberdade do que até um tempo atrás”.
33
R” é uma senhora um pouco divergente dos padrões, apesar do seu discurso não denunciar isso.
Ela sai com muita freqüência, tem romances ocasionais, “aproveita a vida”, conforme ela mesmo
disse. Outro detalhe é que ela bebe bastante, foi alcoólatra. Hoje, toma uns “pileques” de vez em
quando. O fato de beber e sair com freqüência faz com que não seja muito bem vista na sociedade,
conforme pude averiguar com outras pessoas que a conhecem. Apesar disso, sua postura não é
promíscua ou desequilibrada, pelo menos foi o que percebi durante a conversa que tivemos.
117
Você trairia o seu marido, teria um amante?
“Não, não faria isso. Apesar de eu ser “viúva de marido vivo”, já que ele trabalha fora
e nos vermos só de vez em quando. Mesmo assim não teria um amante não”.
O que você faz quando leva um fora?
“Não sei, não me lembro de ter acontecido. Também já faz tempo que eu sou
casada, que já não penso nessas coisas. Quando me decepciono ou brigo com meu
marido fico triste, às vezes choro, mas tem os filhos e é preciso não demonstrar
instabilidade para eles”.
Você sempre quis se casar?]
“Sim, eu queria, mas se fosse hoje, não casaria novamente. É muito difícil, não é o
sonho que a gente imagina quando é jovem e está apaixonada”.
Você sempre quis ser mãe?
“Sempre quis e não me arrependo. Adoro meus filhos”.
7. Entrevista: N.F.L, professora, 27 anos, solteira, ensino superior
completo, Maringá-PR.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Nunca pensei sobre isso, mas acho que gosto sim. Ser mulher é bom nós somos
mais sensíveis, temos nossas dores, mas é bom...”
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“A mulher é privada de muitas coisas, é claro que isso vem diminuindo muito, mas
mesmo assim ainda estamos em desvantagem em relação aos homens,
principalmente no que diz respeito ao aspecto sexual”.
Você ficaria com dois homens (garotos) numa noite só?
“Não sei porque teria motivos para ficar com dois garotos, acho que não. Prefiro
qualidade e não quantidade”.
O que você faz quando leva um fora?
“Fico deprimida, se for de namorado. Fora de alguém em uma noite acho que nunca
levei, não lembro, a gente sempre espera que o homem chegue, por isso não
corremos muito esse risco”.
118
Você quer se casar? Você quer ser mãe?
“Quero me casar e ter filhos. Essa não é exatamente uma necessidade, mas acho
importante ter alguém para se dividir a vida, as coisas boas e ruins. E ser mãe é uma
coisa maravilhosa, não quero me privar disso”.
8. Entrevista: E.C.B., 34 anos, professora univesitária, casada, 2 filhos,
ensino superior completo, Maringá-PR.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Não sei. Na verdade não sei como é ser homem, mas imagino que talvez seja
melhor, sei lá”.
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“Ah, a mulher é privada de muitas coisas. Ela não tem de jeito nenhum, apesar de
toda a evolução, a mesma liberdade do homem. O homem desde cedo tem
privilégios, pode sair de casa mais cedo, não tanta vigilância por parte dos pais;
pode se envolver com quantas mulheres quiser ou puder” (risos). “Para a mulher
tudo já é mais cheio de regras, temos que manter um certo padrão moral”.
Você ficaria trairia o seu marido, teria um amante?
“Não, Não vejo necessidade. Amo meu marido e o dia que sentir que quero traí-lo,
acho que está na hora da separação. Gosto das coisas muito bem claras, sem
mentira. Traição é sacanagem”.
O que você faz quando tem uma decepção amorosa?
“Não sei, faz tempo que não tenho, que sou casada 15 anos. Mas acho que
todo mundo fica chateado, depressivo, depois passa, tudo passa”.
Você sempre quis se casar?
“Na verdade eu não sei exatamente se era tanta “vontademesmo de casar. Acho
que na época, no contexto em que eu vivia, zona rural, não tínhamos muitas opções,
todas as moças se preparavam, eram educadas para casar, e comigo não foi
diferente”.
Você sempre quis ser mãe?
Sim, ser mãe era algo que eu sempre quis. Mas agora já chega, já tenho dois filhos
e é o suficiente”.
119
9. Entrevista: C.S. , estudante, 21 anos, solteira, ensino superior
incompleto, Maringá-PR.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Não, preferia ser homem”.
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“A mulher na verdade pode fazer tudo o que quiser, o problema são as
conseqüências, nosso meio ainda é muito conservador, a mulher é privada de
muitas coisas”.
Você ficaria com dois homens (garotos) numa noite só?
“Sim, sem problema, se estivesse com vontade e surgisse oportunidade, acho que
temos que aproveitar a vida, momentos em que não se pode se deixar de fazer
algo por se preocupar com o que os outros pensam”.
O que você faz quando leva um fora?
“Fico um pouco triste, mas logo parto pra outra, se tem uma coisa que não fico é
curtindo fundo-de-poço, prefiro sair numa balada e esquecer”.
Você quer se casar?
“Não sei, acho que quero, mas não agora. Casamento é estar atado, e para se atar
com alguém precisa ser alguém que te compreenda, e que feche com o seu modo
de levar a vida. O meu é bem complicado, então não sei se vou encontrar alguém.
Mas não tenho medo de ficar sozinha”.
Você quer ser mãe?
“Quero, mas esse é um plano para um futuro ainda distante, penso em ter um filho
sozinha, talvez, daqui a alguns anos, quando eu tiver uma profissão definida e possa
cuidar bem dele”.
120
ANEXO 2
Transcrição de entrevista:
“Iracema” 83 anos, dona de casa, viúva, 2 filhos.
Pesquisadora:
É, então, o que a senhora pensa sobre ser mulher, a senhora gosta
de ser mulher?
- Gosto bastante, ser mulher é tudo na vida, sabe? Na minha opinião é o esteio da
casa, assim, é mulher. E pra isso a gente está sempre feliz, satisfeita,
trabalhando né? Querendo trabalhar, e quem trabalha melhor ainda né, porque aí
bastante valor, cuida dos afazeres, cuida dos filhos, cuida do trabalho, a vida assim,
será mais interessante.
Pesquisadora:
É...A senhora foi casada?
- Sim, sim, casada 36 anos.
Pesquisadora:
E depois a senhora não casou mais?
- Não, não, não casei mais .Eu não acho que não ...dizem assim que ninguém é
insubstituível, mas eu acho assim que meu marido foi, é insubstituível, foi, será. Eu
tenho impressão assim que ele não morreu, sabe como é? Que eu ainda estou
casada, que ele está viajando, está me esperando, espere que qualquer dia eu
chego. Se Deus quiser, porque a minha vida aqui foi depois dele, além da tristeza
né, foi bastante batalhada. Sozinha, eu tinha dois filhos, casados já, eu tive que
me virar e estou me virando até hoje.
Pesquisadora:
Quantos anos a senhora tem?
- 83 .
Pesquisadora:
83? E como é o seu dia a dia assim, o que que a sra faz?
- O meu dia a dia agora que estou sozinha continua assim: levantar bem cedo, fazer
minhas obrigações, fazer comidinha pra meu filho, sair dar umas voltinhas por aí,
plantar meu jardinzinho, assim por diante.
Pesquisadora:
A senhora tem quantos filhos?
- Dois, casados.
121
Pesquisadora:
E, a senhora acha que existe algum ponto negativo no fato de ser
mulher? Alguma coisa que seja ruim em ser mulher.
- Negativo? Pois... na minha opinião acho que não, acho que não tem nada negativo
porque a gente que faz tudo né, a gente pensa bem, faz bem, não pode deixar pra
trás né essa missão. Ser mulher é coisa louca de boa!
Pesquisadora:
E qual é essa missão, o que a senhora entende como missão?
- Como missão é assim, né: viver, trabalhar, respeitar e ser respeitada, sabe? Tudo
isso eu acho importante pra uma mulher.
Pesquisadora:E o fato de ser mãe?
- De ser mãe ,também, sabe, porque ser mãe é bem é bem importante porque a
gente luta bastante pra cumprir as obrigações e é uma coisa divina né? Então
temos que jamais deixar de ter a sua prole.
Pesquisadora:
A senhora sempre quis ser mãe?
- Sempre quis, não de prole grande, eu pensava sempre mais ou menos assim e fui,
assim como se diz é, atendida, porque eu queria uns dois, três assim, tive dois, bem
criados, bem educados e assim por diante.
Pesquisadora:
E como a senhora o homem, que que a sra acha, qual que é o
papel do homem na sociedade, como é que ele está hoje, qual que é a diferença
com a mulher...
- Você sabe, homem pra mim, eu acho que agora eles já são bem mais diferentes do
que no tempo que eu casei assim, né? Porque agora eles partilham da afinidade da
casa, eles ajudam criar os filhos diferente. Tem homens aí, que eu vejo por que
fazem de tudo, até tinha, até pra uma mulher era difícil botar uma fralda, tenho
visto homem em atividade bem assim, sabe? Então é importante que o homem
agora está bem no caminho de entender aquilo que está imposto pra ele, não é de
correr, o quero ser isso, não quero ser aquilo porque é feio, não senhor, ele
partilha de tudo, e é muito bom.
Pesquisadora:
A senhora acha que a mulher tem mais liberdade com isso?
122
- Sabe ,eu acho que a mulher tem mais apoio né, porque assim antigamente eles
eram muito como é que se diz, muito rigidamente a vida entre um e outro né. Eles
eram assim, um observava o outro, agora não, eles tem uma vida, cada qual cuida
de si e pronto né e também, é bem bom isso.
Pesquisadora:
A senhora acha que mudou bastante coisa?
- Mudou, mudou, bastante eu acho que agora o homem está num caminho muito
importante. Ele faz de tudo, cuida da casa, cuida dos filhos, cuida do serviço e o
homem que, afinal de contas é o chefe né? É o chefe que tem que se impor
bastante, não deixar a mulher passar muito na frente dele né? Tem que partilhar de
tudo né?
Pesquisadora:
A senhora acha que a mulher tem passado às vezes na frente do
homem?
- Muitos tem a mulher é tudo, tem mulher até assim já, que dirige carro, dirige
ônibus, dirige caminhão, então o homem tem que se impor, que isso era serviço
deles só, né? Agora as mulheres estão se equiparando, estão indo carreira junto
né?
Pesquisadora:
E isso é bom ou é ruim será?
- Eu acho que é bom, eu acho que é bom.
Pesquisadora:
Ta bom, a senhora quer falar mais alguma coisa?
- Pois eu acho que não, nós já falamos tudo né? Eu achei tão bom, a gente nunca
conversou assim , a não ser...ainda mais assim você bonitinha, vizinha da gente ,
é prazer estar conversando né? Conversando a verdade...
Pesquisadora:
Claro. É...A sra autoriza a usar o que a senhora falou pra minha
pesquisa, posso utilizar o que a senhora falou, sem divulgar a sua identidade claro.
- Pode, pode, não tem problema. É tudo verdade né?
Pesquisadora:Muito obrigada, então.
- Não tem de que.
123
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127
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129
130
UMA MULHER VAI FALAR: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Mais um trabalho a versar sobre a identidade feminina, questão bastante
debatida na academia neste período contemporâneo em que vêm sendo colocadas
em pauta as identidades possíveis para o homem desse tempo. Uma ressalva faz-se
necessária, entretanto. Não queremos aqui “construir” nada, considerando que
tomamos como pressuposto a existência de identidades plurais para a mulher atual.
Talvez a palavra seja “desconstruir”. Não no sentido de jogar tudo fora, mas de
repensar, decompor ou entender como se compôs o que chamamos atualmente de
identidade feminina.
Como se trata de um trabalho em Análise do Discurso (doravante AD),
pretendemos observar como as práticas discursivas foram construindo os discursos
que norteiam o processo identitário da mulher. A fundamentação teórica parte da
fase da Análise do Discurso, alguns textos de Michel Foucault e De Certeau, e a
Psicanálise, que nos auxilia a pensar um sujeito descentrado e individualizado.
Buscamos compreender de que maneira foi se constituindo um imaginário social que
cristaliza uma idéia de mulher homogênea, criando um efeito de naturalização do
que é ser mulher, o que é um efeito ideológico que se faz via simbólico (linguagem).
A concepção de discurso que tomamos como ponto de ancoragem é o de discurso
como prática discursiva, como heterogêneo, perpassado pelo interdiscurso e pelo
inconsciente. Bem, isso é discussão para a metade do trabalho. Vamos partir do
começo, de onde tudo começou:
O interesse pela temática da mulher encontra-se no simples fato da
pesquisadora SER mulher. Parece bastante razoável, não? Talvez não. Nem todas
as mulheres interessam-se pelo fato de como ou por que se tornaram mulheres ou
mesmo pelo que é ser mulher. Vejamos, então, outra alt
131
presente trabalho configura-se em mais uma contribuição no âmbito da linguagem,
que trabalha com um registro específico de linguagem (oral), um público específico
(feminino) e busca investigar o processo identitário que se via linguagem na sua
relação com a ideologia, história e inconsciente. Dessa forma, a pesquisa é
pertinente e coerente com a linha de pesquisa, bem como se presta ao diálogo tão
necessário entre os trabalhos produzidos na academia e, mais precisamente, neste
programa de mestrado, na esteira de outros trabalhos também produzidos na
perspectiva na Análise do Discurso, área que vem sendo reforçada nesse contexto.
Primeiramente a idéia do projeto era comprovar a presença recorrente do
discurso machista na fala da mulher. Essa era a questão que me instigava: como
pode a própria mulher carregar em seu discurso uma fala essencialmente machista?
Essa hipótese surgiu da observação das falas das mulheres que me cercavam e,
sobretudo, num hábito bastante peculiar a nós que é o de criticar umas às outras.
Diante da inquietação e das leituras que realizamos, o percurso da pesquisa
começou a ser alterado. Durante o encaminhamento do trabalho, o próprio corpus
acabou nos levando por outros caminhos: percebemos que a hipótese inicial era
falha. O discurso de origem machista até aparecia na fala das mulheres, mas não
era essencialmente o que o constituía. A assimilação desse discurso dominante não
se fazia do modo perfeito como imaginávamos. A hipótese foi sendo redefinida em
relação às primeiras impressões e em função dos recortes do corpus. Muitos outros
discursos compunham a fala da mulher, inclusive o feminista. O ponto central,
todavia, foi a descoberta da constituição por um discurso “outro”, algo do nível do
inominável, os equívocos de linguagem, o que observamos a partir dos
apontamentos da AD da terceira fase que se embasa nos princípios da Psicanálise.
O contato com a
Análise do Discurso
de linha francesa, área da qual nos
valemos para fundamentar teoricamente este trabalho, deu-se ainda na graduação
em Letras. Fascinação imediata. Pensar os processos de significação para além da
língua por ela mesma, considerar o papel da ideologia, da história, parecia-nos um
caminho interessante. A descoberta de um sujeito descentrado, o-dono do seu
dizer desestabilizava a nossa ilusão de sujeitos completos. Mas era exatamente
essa desestabilização que explicava muitos fatos, fazia surgir novos
questionamentos e desobrigava a relação com uma lingüística imanente, e uma
lingüística das intenções.
132
Transitar por outras áreas também se fazia necessário. Pensar a constituição
da mulher enquanto sujeito exigia uma leitura para além da lingüística. O que torna
uma mulher uma mulher: seria a anatomia, a história, a cultura? Dentro da
graduação em Psicologia encontramos um caminho na Psicanálise: ser mulher era
também conter uma ESTRUTURA de mulher, o que se via linguagem. Na nova
história também vimos um caminho necessário e determinante para entender a
constituição da mulher atual.
Intercâmbio teórico concluído, começa a dura trilhagem por três áreas do
conhecimento. O ponto comum: a linguagem, ou neste caso: o discurso, apesar de
sabermos que cada uma das áreas tem uma concepção de discurso diferente.
Tomamos esse ponto de ancoragem como material fértil para pensar a identidade
feminina.
Com esse projeto em mãos, pretendemos tomar o discurso feminino,
analisando-o segundo os pressupostos da AD. Para isso acreditávamos que a
maneira mais adequada seria tratar da identidade feminina via discurso produzido
por posições discursivas femininas
35
, considerando que nos tornamos sujeito via
linguagem. Tendo isso em vista, passamos a coletar entrevistas com várias
mulheres. Perguntávamos sobre a questão: “você gosta de ser mulher?“por quê”.
Escolhemos esse questionamento porque acreditávamos que ele daria margem à
discussão do que era ser mulher e as implicações desse fato, como a relação da
mulher com o homem, o que seria pertinente, portanto, para discutir a nossa questão
central de análise que, no início, era a presença do discurso machista na fala da
mulher.
A constituição do corpus foi feita em função das recorrências e também das
dissonâncias que apareceram nas falas das mulheres. Dessa forma produzimos
recortes que se transformaram em registros discursivos e objetos de análise,
produto, portanto, do nosso gesto de interpretação. Todo esse percurso de leituras e
composição do corpus nos permitiu organizar nosso texto da seguinte forma:
No primeiro capítulo, “O efeito-mulher: construção histórica do sujeito mulher”,
fazemos uma retrospectiva da história da mulher no Ocidente desde a Idade dia
até a atualidade e lançamos ainda o conceito da mulher como “efeito”, com base na
35
Falamos em posições discursivas femininas” ou posição discursiva de mulher”para designar o
lugar discursivo que produz um discurso feminino. Evitamos o termo “discurso de mulheres” ou
“produzido por mulheres” por entendermos que essa posição discursiva não diz respeito
necessariamente à produção discursiva de um sujeito empírico do sexo feminino.
133
proposta pêcheuxtiana de interpelação do indivíduo em sujeito: “forma-sujeito”. No
segundo capítulo, “A Mulher na Psicanálise: uma questão de estrutura”, procuramos
situar alguns pontos da teoria psicanalítica que possam auxiliar na compreensão da
constituição da mulher da contemporaneidade. Partimos do conceito lacaniano da
mulher como sintoma do homem, o que nos permitiu compreender a mulher-efeito
como um conceito que não recobre a mulher como um todo, mas vazão a uma
falta que nos é constitutiva. Feito isso pudemos passar ao conceito de
heterogeneidade, cunhado na terceira fase da análise do discurso. É o que
discutimos no terceiro capítulo. No quarto capítulo justificamos nossa coleta de
dados: as entrevistas que tomamos como corpus representativo do discurso
feminino. Por último, analisamos os recortes das entrevistas coletadas segundo os
pressupostos da AD, considerando, sobretudo, a constituição da mulher pela falta,
segundo o princípio da heterogeneidade. A conclusão... deixamos para a conclusão,
se é que alguma possível de70892(o459(s )-51.7864(p)2.23319(o)13.459(s )-158.171(i)-1.40511(nc)2.80892(o)13.4459(m)-83.7013(p)2.80762(l))3.21279(e)2.80762(t)1.40511(u)2.80762(u)13.4459(e)2.o459(s )-51.7864(p)2.23319(o)13.198]T1ál
134
CAPÍTULO 1:
O EFEITO-MULHER: CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO SUJEITO MULHER
A chamada história das mulheres, ou seja, a história que não foi dita pela
história oficial (e patriarcal), vem se colocando de maneira bastante visível nas duas
últimas décadas (SCOTT, 1992: 63), sobretudo depois do advento do movimento
feminista, na década de 60. Essa história se faz a partir de práticas discursivas
36
que
a constituem, ou seja, dos discursos que circulam sobre a mulher, dos quais deriva
um “efeito” de identidade para ela, bem como um lugar dentro da disciplina “história”
e na memória dos falantes. Esse olhar sobre a história das mulheres, negligenciado
por muito tempo pela história oficial, vem se mostrando de grande importância
dentro do movimento da história geral, tendo em vista a crítica destinada à validade
da disciplina, dos seus dados, por “excluir” dos feitos históricos a participação
feminina e de outras minorias também sem direito a voz.
A negligência em relação à história da mulher ocorreu em grande parte em
função de o ponto de vista dominante ter sido predominantemente o masculino. O
fato é que a história da mulher como prática discursiva que é, tanto na academia
como no senso comum, emerge em meio à história geral (e o separadamente) e
carrega a memória de outros discursos que o circundam e que com ele se
relacionam, possuindo, portanto, uma historicidade. Afinal, “A história das mulheres
não é delas, é também aquela da família, da criança, do trabalho, da mídia, da
literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e
que praticaram, da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos” (DEL
PRIORE, 2000: 7).
Considerando a intrínseca relação entre discurso e história, para trabalhar
com o discurso feminino, é preciso levar em conta as suas condições de produção,
36
Compreendemos “prática discursiva” no sentido dado pela AD. Conforme o Dicionário de Análise do
Discurso (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU): Noção freqüentemente empregada na AD francófona
desde o final dos anos 60, fazendo convergir o vocabulário marxista da ´práxis´e o de Foucault. Ela
funciona seja com um sentido pouco específico, seja no interior de redes conceituais” (2004: 396).
Utilizamos a noção de prática discursiva conforme a noção geral que, conforme o mesmo dicionário,
“tem aproximadamente as mesmas zonas de emprego que ´discurso´ (...) Na verdade, quando se diz
´prática discursivem vez de ´discurso´, efetua-se um ato de posicionamento teórico: sublinha-se
obrigatoriamente que se considera o discurso como uma forma de ação sobre o mundo produzida
fundamentalmente nas relações de forças sociais (idem).
135
especialmente o contexto sócio-histórico e a memória que esse discurso hoje retoma
e atualiza.
Tendo como foco a questão identitária vista a partir do discurso, precisamos
considerar o momento de realização deste trabalho, as condições que
circunscrevem a produção do discurso feminino e da própria produção deste
trabalho acadêmico. Pensado desse modo, acreditamos que se faz pertinente,
então, refletir sobre a contemporaneidade para, logo em seguida, buscar dentro do
discurso histórico a memória
37
que se tem sobre a história da mulher.
Pensar nas questões identitárias num período que ainda busca uma
designação precisa, e que chamaremos de “contemporaneidade”, é tocar num ponto
bastante nebuloso e móvel, dadas as novas configurações dos conceitos, o modo de
pensar a constituição do sujeito como heterogênea e as mudanças e crises dos
gêneros. No presente contexto começam a emergir novas configurações identitárias,
renunciando a alguns paradigmas, inaugurando outros. Nesse sentido é que
também a questão dos gêneros começa a se colocar, e os papéis de homem e
mulher começam a passar por profundas modificações.
No auge da ideologia patriarcal era muito simples identificar o que era ser
homem e o que era ser mulher: as práticas discursivas produziam somente essas
duas possibilidades de identificação. Paulatinamente essa estabilidade foi sendo
quebrada e observamos que homens e mulheres vivem um momento de
desestabilização em relação aos modos de subjetivação anteriores, o que modifica
sobremaneira o processo de constituição das identidades.
Sendo assim, “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o
mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o
indivíduo moderno...” (HALL, 2000: 07). As mudanças produzidas a partir do final do
século XX, com o advento da Psicanálise, do feminismo e outros movimentos que
modificaram a forma de viver e de se subjetivar, vêm causando a fragmentação dos
sujeitos, visto que a noção unitária de sujeito tem perdido espaço face ao paradoxo
das múltiplas formas de identificação e, ao mesmo tempo, à perda de identificação, o
que instaura o colapso pelo qual passam os indivíduos da contemporaneidade.
37
O conceito de memória pode ser tomado em muitas acepções. Eni Orlandi (2003) separa dois tipos
de memória: a institucionalizada, que corresponde ao arquivo; e a memória discursiva, que
corresponde ao conceito de interdiscurso, sendo “o trabalho histórico da constituição do sentido (o
dizível, o interpretável, o saber discursivo) (2003: 48). Neste momento estamos tratanto de memória
enquanto arquivo, arquivo histórico sobre a mulher.
136
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as
sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando
as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão
também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia
que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de
um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento ou descentração do sujeito. (HALL, 2000: 09).
Hall (2000) ainda afirma que três concepções de identidade: a do sujeito
do Iluminismo, no qual temos uma identidade fixa, imutável e individual; a do sujeito
sociológico, que a identidade do sujeito na sua relação com a sociedade, ou seja,
na interação com o outro; e, por fim, a identidade do sujeito pós-moderno, que migra
da identidade unificada e estável para tornar-se fragmentado
38
.
Assim, o sujeito atual, ou pós-moderno, como designa Hall, fragmenta-se, isto
é, assume várias identidades em diversos momentos, identidades por vezes
contraditórias, que não possui “uma identidade fixa, essencial ou permanente”
(HALL, 2000: 12).
À medida em que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada
uma das quais poderíamos nos identificar- ao menos
temporariamente. (HALL, 2000: 13)
que se mencionar ainda que essa (s) nova (s) identidade (s) do homem
pós-moderno ainda dialoga com as identidades anteriores, sejam eles os sujeitos do
Iluminismo e/ou sociológico. Ainda podemos dizer, levando em conta os postulados
da AD, que o sujeito não “deixou” de ser sociológico para ser “pós-moderno”, tendo
em vista que ele ainda se constitui na relação com o “outro”.
Considerando esses postulados sobre a(s) identidade(s) no cenário
contemporâneo, pretendemos, neste capítulo, pensar a identidade feminina, ou as
possibilidades de identificação com os discursos que produzem o que rotulamos
como “feminino”. Para isso faremos uma rápida apresentação da condição da mulher
na Idade Média, as mudanças que vêm ocorrendo desde então, o rompimento
ocorrido com o movimento feminista na década de sessenta e, por fim, o “efeito” que
38
Apesar de não estarmos trabalhando com a categoria “pós-moderno”, tomamos o texto de Hall por
considerarmos pertinentes suas afirmações sobre a mudança que se processa na sociedade atual,
que,como já mencionamos, chamaremos “contemporaneidade”.
137
se constrói historicamente do que é “ser mulher”. Com isso pensamos poder dar
sustentação a uma investida na questão da identidade feminina atual, via discurso.
Um aspecto que é importante deixar claro é que não pretendemos fazer um
estudo de gênero, tal como tem sido entendido, ou seja, como estudos em defesa do
gênero feminino, pois acreditamos, juntamente com Magali Engel, que
se queremos mesmo dar uma guinada na história das mulheres,
deslocando-as para um campo mais fértil e instigante da história dos
gêneros, é preciso que, entre outras coisas, abandonemos
definitivamente essa obsessão em buscar comprovar que a mulher é
mais discriminada, é mais explorada, é mais sofredora, é mais
revoltada, etc, etc. Nem mais, nem menos, mas sim diferentemente.
Diferenças cujos significados não se esgotam nas distinções
sexuais, devendo, portanto, ser buscados no emaranhado múltiplo,
complexo e, muitas vezes, contraditório, das diversidades sociais,
étnicas, religiosas, regionais, enfim, culturais (ENGEL, 2000: 334).
Feitas essas considerações, vamos dar um passeio pela conhecida (e
esquecida) história da mulher.
1.1 UMA HISTÓRIA PARA A MULHER
Impossível pensar numa história da (ou para) a mulher sem retomar Foucault.
Apesar de trabalharmos numa linha da Análise do Discurso que não parte do
método foucaultiano, o filósofo francês é indispensável quando se trabalha com
discurso, subjetividade e, como é o nosso caso, construção de identidade,
identidade feminina.
Faz-se necessário explicitar, entretanto, que a noção de subjetividade trazida
por Foucault e as formas de subjetivação (Foucault, 2001) não serão operatórios na
análise que se fará neste trabalho. Acreditamos numa possibilidade de articular essa
perspectiva teórica à de forma-sujeito de Pêcheux, com a qual trabalharemos,
contudo isso é atividade para outro trabalho. Ficamos com a noção de subjetividade
trazida por Eni Orlandi (2001) que afirma ser o processo pelo qual o indivíduo torna-
se sujeito. A subjetividade estrutura-se no acontecimento do discurso (ORLANDI,
2001: 99), sendo, pois, o fenômeno que desloca o lugar/situação empírica para a
posição no discurso. Subjetivar-se, portanto, é submeter-se à língua, ao simbólico e,
por isso, estar submetido também à história e à ideologia. A subjetividade é a
138
condição primeira, portanto, que conduz ao efeito de identidade, o que trataremos no
final desse capítulo.
Explicitada essa questão, voltemos a Foucault:
Foucault (2001) em sua “História da Sexualidade nos pressupostos
históricos que funcionam como pano de fundo na construção da sexualidade em
nossa sociedade, desde a Grécia antiga, passando pelo advento do Cristianismo,
construindo no seu primeiro volume, publicado em 1976, a genealogia da
sexualidade na modernidade. Além disso, trata das contribuições da medicina,
pedagogia e outras áreas do saber que interviram nessa construção de sentido da
sexualidade. O autor apresenta a sexualidade como uma das formas mais
recônditas de constituição do indivíduo em sujeito. “Foucault volta-se para a
experiência da sexualidade, região em que certos saberes, normas e formas de
subjetividade permitem que os indivíduos se reconheçam como sujeitos” (ARAÚJO,
2000: 123), além disso, afirma que essa noção que temos de nós mesmos enquanto
seres sexuados é, na verdade, uma construção histórica.
A reflexão acima é bastante importante para nosso estudo, pois se
considerarmos que a história é feita de práticas discursivas, conforme afirma o
mesmo autor, é pelo discurso que se constituem as identidades. Quanto à noção de
gênero, tão diretamente relacionada à biologia, nessa perspectiva, passa a ser vista
também como uma construção histórica. É um passo bastante significativo na
compreensão da formação da identidade da mulher. Mais do que isso, a contribuição
de Foucault estende-se ainda à concepção da sexualidade enquanto mecanismo de
poder. Ele propõe “analisar a formação de um certo tipo de saber sobre o sexo, não
em termos de repressão ou de lei, mas em termos de poder(FOUCAULT, 2001:
88), entendendo “poder” como a “multiplicidade de correlações de força imanentes
ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização” (idem, ibidem)
39
.
Historiadores que trabalham ou não com a temática dos gêneros,
notavelmente Michelle Perrot (conforme RAGO, 1998: 21), colocam a necessidade
de haver uma produção acadêmica que problematize as relações entre os sexos,
sem que se privilegie um dos sujeitos sexuados (homens ou mulheres). A mesma
autora questiona se existiria uma maneira feminina de fazer história ou mesmo uma
memória histórica feminina. A questão se complica quando pensamos nas fontes
39
Essa concepção foucaultiana da construção histórica da sexualidade é pertinente para o que, ao
final do capítulo, designaremos como “efeito-mulher”.
139
que temos: poucos registros do que as mulheres falavam. Registros escritos por
mulheres, menos ainda. Os documentos e fontes oficiais costumam ser
extremamente ligados ao mundo masculino. Sendo assim, o que resta? Os
discursos sobre as mulheres que permaneceram na memória das pessoas, que
foram passando de geração a geração, atualizando-se e constituindo o que hoje
sabemos sobre as mulheres e sua história.
Dentro da memória histórica que nos perpassa, o período mais marcante na
história das mulheres é, sem vida o movimento feminista. Margareth Rago (1998)
coloca o movimento feminista como marco de uma mudança de pensamento na
história da mulher, nos rumos da própria história e ainda na concepção de
cientificidade. Segundo ela, o movimento feminista traz, juntamente com a
Psicanálise, o Marxismo, o Desconstrutivismo e o Pós-Modernismo, uma crítica às
categorias dominantes que se impõem como universais: padrão burguês-masculino-
ocidental (RAGO, 1998: 24). Essa crítica propõe pensar a diferença, considerar a
crise do sujeito, aliando-se ao pensamento do s-modernismo e indo ao encontro
de pensadores como Derrida, Foucault, Lyotard, entre outros. Uma das vertentes
desse deslocamento da história oficial é chamada de “História Cultural”, movimento
ao qual se filia a autora mencionada que trabalha com a história das mulheres. Entre
as críticas que se colocam a partir disso, uma das mais importantes é a oposição de
origem sexista entre o público e o privado, objetivo e subjetivo, entre outras
dicotomias que foram sendo construídas no decorrer da história e que, por isso,
desde muito tempo tomamos como naturais.
Assim, pensar uma história para a mulher é desconstruir os valores
sedimentados a partir da ótica masculina. A crítica feminina sugere que não se parta
do sujeito, mas que ele passe a ser visto como efeito das determinações histórico-
culturais. Dessa forma, a mulher também “não deveria ser pensada como uma
essência biológica pré-determinada, anterior à História, mas como uma identidade
construída social e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais, pelas
práticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes” (RAGO, 1998: 27). É
importante mencionar ainda que, nesse momento, com o advento da História
140
Cultural, o
discurso
, passa a ser visto como principal matéria-prima do historiador,
ponto de partida para se perceber as relações sócio-histórico-culturais
40
.
A História Cultural, a Psicanálise, o Marxismo, o Pós-modernismo e o
Feminismo foram movimentos que permitiram repensar a constituição da história
geral e ainda pensar uma nova forma de se fazer ciência. Rago (1998: 32) acredita
que o feminismo “trouxe a subjetividade como forma de conhecimento”, permitindo
uma “epistemologia feminista” e, portanto, a possibilidade de uma história da mulher
ou, pelo menos, uma história que contemple a presença da mulher na sociedade.
1.1.1 IDADE MÉDIA: TOMA CORPO UM DISCURSO PATRIARCAL
Considerando a possibilidade mencionada acima da inserção da mulher na
história, procuraremos, através de alguns achados teóricos que trabalham com a
história da mulher, falar da sua história na Idade Média e nos períodos
subseqüentes anteriores ao advento do movimento feminista. A tomada do peodo
em questão como ponto central da nossa exposição sobre a história da mulher (a
Idade Média) se justifica por ser justamente um momento contraditório ao
Feminismo, por ser o período em que se materializou com bastante força um
discurso patriarcal que se manteve vivo até os dias de hoje, sendo ressignificado
através do que chamaremos de “discurso machista”.
Conforme José Rivair Macedo (1992: 10), a mulher dispôs de liberdade
relativa
41
em algumas civilizações antigas, como entre os celtas e os eslavos, mas,
com a entrada do Cristianismo, ela perdeu muito dos seus direitos jurídicos. Durante
a Idade Média, as relações familiares (instituição a partir da qual poderemos
observar o papel da mulher) eram meros “negócios”. A relação feudal, sistema que
sustentava as relações econômicas da sociedade nesse período, era transposta
para a relação matrimonial. Assim, as mulheres donas de posses tinham mais
direitos do que as que não detinham, mas, de qualquer forma, o papel da mulher era
de mercadoria: “O casamento era, antes de tudo, um pacto entre duas famílias.
40
O conceito de discurso nessa perspectiva teórica é diferente do discurso da Análise do Discurso,
portanto não trabalharemos com ele. A utilização da história cultural para nosso estudo centraliza-se
na visão que ela apresenta acerca da história da mulher.
41
Não se trata de discutir aqui o conceito de liberdade, o utilizamos dentro da acepção do senso
comum. Dizemos “liberdade relativa” por considerar que os direitos da mulher em relação aos
homens eram maiores do que na Idade Média, mas também o podem ser considerados direitos
iguais aos dos homens.
141
Nesse ato, a mulher era ao mesmo tempo doada e recebida, como um ser passivo.
Sua principal virtude, dentro e fora do casamento, deveria ser a obediência, a
submissão” (MACEDO, 1992: 15).
A mulher era considerada “naturalmentemenor do que o homem, ser frágil,
incapaz de responder por si mesma. Não era sequer nomeada. Na sociedade era
sempre filha de alguém, esposa ou irmã, nomeada sempre em referência ao homem
a que estava sujeita. Podemos observar que o modo de produção da sociedade
fomenta os discursos que circulam e, por sua vez, produz as identidades dos
sujeitos (homens e mulheres), resultado de uma ideologia
42
que era basicamente
Cristã e feudal.
Essa representação da mulher foi muito divulgada pela Igreja Católica, que
sacramentalizou o casamento (antes apenas “negócio” entre famílias) a fim de
controlar a sexualidade. Vejamos o que afirma Macedo, ao reproduzir o discurso da
Igreja sobre a mulher nessa época:
A mulher era vista pelos religiosos como “naturalmente” inferior ao
“sexo viril”. Deus havia criado primeiro o homem. Ele foi criado à
imagem e semelhança do Todo-Poderoso. Ela era meramente um
reflexo da imagem masculina, uma imagem secundária. Sexos
diferentes, ambos uniam-se pelo casamento. Contudo, não se
tornavam iguais. Considerada a responsável pela queda da
humanidade no pecado, a dominação do esposo sobre ela e as
dores do parto eram vistos como o seu castigo (MACEDO, 1992:
19).
Com esses argumentos a Igreja Católica atestava a inferioridade da mulher e
sua subordinação na relação com o homem. Aspectos biológicos como as dores do
parto e a menstruação eram tomados como castigos divinos por ser a mulher um ser
originalmente pecador. Além disso, “a inferioridade feminina provinha da fragilidade
do sexo, da sua fraqueza ante os perigos da carne” (MACEDO, idem, ibidem: 19).
Note-se que aqui se mesclam os discursos religioso e médico-biológico, ambos
coadunados funcionam como forte argumento para a afirmação da natureza (seja
ela divina ou biológica) inferior atribuída ao sexo feminino. O texto bíblico usufrui do
42
O conceito de ideologia é central para a AD, contudo ele não é entendido conforme os sentidos que
se divulgam de inversão ou ocultação da realidade. A ideologia é ressignificada pela Análise do
Discurso, ela é vista em relação à linguagem, numa definição discursiva. (Orlandi, 2003: 43). È
considerada o que interpela os indivíduos em sujeitos, o que produz as evidências e naturaliza o que
é construído na relação do histórico com o simbólico (linguagem). Sendo assim, a ideologia para a
AD, “não é ocultação, mas função da relação necessária entre linguagem e mundo” (idem, ibidem:
47).
142
discurso médico-biológico para demonstrar a “natureza” sórdida da mulher. Neste
sentido, os textos bíblicos materializam os discursos cristão e biológico, e, ao circular
na sociedade, produziam os efeitos de identidade da mulher como ser castigado e
inferior.
A Igreja ainda incutiu a maternidade como missão primordial da mulher.
Assim, ela podia transitar entre três posições dentro da família: esposa, mãe e
viúva, sendo que era imprescindível ser mãe em qualquer uma das outras situações.
A mulher que não podia ter filhos sofria discriminação do marido (que podia
abandoná-la), da Igreja, que a via como pecadora e castigada por Deus, e da
sociedade como um todo por não poder desempenhar o que era considerado o
principal papel da mulher: o da procriação.
Isso não quer dizer, porém, que as mulheres ocidentais e cristãs (das quais
estamos tratando) não tinham nenhum outro papel na sociedade. Com relação ao
trabalho, elas, além de desempenhar o trabalho doméstico e cuidar dos filhos,
exerciam funções na agricultura (ao lado dos maridos ou sozinhas, quando viúvas),
trabalhavam como servas na casa dos senhores feudais, também se destacaram no
artesanato e na confecção de tecidos no período da alta Idade Média e registros
de algumas mulheres mercadoras (MACEDO, 1992: 28). Mesmo as que não se
dedicavam a nenhum desses trabalhos, e vinham das classes mais abastadas (e,
portanto, não eram nem escravas nem servas), tinham que administrar a família, e
administrar um núcleo familiar na Idade Média não era coisa muito simples,
conforme atesta o mesmo autor. Como esses núcleos eram compostos por várias
pessoas (parentes e agregados), as donas-de-casa tinham que ter um alto senso de
organização para dar conta da alimentação, vestimenta e sobrevivência em geral da
família.
Durante a Idade Média, conforme Alves e Pitanguy (1985), na obra O que é
Feminismo?, destaca-se na literatura a mulher “castelã”, aquela a quem se
dedicavam as cantigas de amor dos trovadores. O estereótipo era de uma mulher
bela e cheia de ornamentos, mulher idealizada, frágil, delicada, romântica, mas sem
papel ativo na sociedade. Contudo, os autores também mencionam que as mulheres
das classes mais baixas trabalhavam, por exemplo, com tapeçaria, e participavam
das chamadas “Corporações de Ofício”, comunidades compostas por pequenos
artesãos. Ainda desempenham atividades de parteiras e curandeiras. Essas últimas
pareciam ser as mais perigosas, pois desafiavam a Igreja e a ciência. Surge, então,
143
a “mulher-bruxa”, queimada em grandes fogueiras pela inquisição, por conta de seus
“poderes”. É interessante observar que as instituições é que legitimavam essas
práticas de exclusão à mulher: o Estado, a Igreja, a Medicina e o Direito.
Em relação a isso, Macedo nos apresenta a etimologia da palavra “mulher”, a
qual corrobora para a identificação negativa do sexo:
A atitude de desprezo dos homens pelas mulheres, consideradas ao
mesmo tempo perigosas e frágeis, era justificada por todos os
meios, até pela etimologia da palavra que as designava. Para os
pensadores da época, a palavra latina que designava o sexo
masculino,
Vir,
lembrava-lhes
Virtus
, isto é, força, retidão, enquanto
Mulier
, o termo que designava o sexo feminino lembrava
Molitia
,
relacionada à fraqueza, à flexibilidade, à simulação (MACEDO,
1992: 21).
Apesar de tudo isso, é importante observar, conforme o faz Macedo (1992:
26) que as mulheres não eram um grupo homogêneo oprimido pelos homens. A
diferença sexual era tão forte quanto a diferença social. “Não é possível alinhar, num
mesmo plano, condessas e castelãs com servas e camponesas livres, ricas
burguesas com artesãs, domésticas ou escravas” (idem, ibidem: 26). Eis aqui o
primeiro ponto, levantado pelo discurso da história para pensarmos a mulher a
partir de um ”efeito” homogeneizador, a fim de chegarmos a uma constituição que é,
essencialmente, heterogênea. Constituição do sujeito, conforme a AD da terceira
fase, e constituição da “mulher” como significante generalizador.
Quando falamos em “efeito”, estamos tomando esse termo dentro da
perspectiva da AD, entendendo-o como “efeito de sentido”, ou seja, construção que
se dá a partir do discurso e sua relação com a ideologia de uma naturalização de
fatos que são produzidos pela história e que são discursivizados. “As relações da
linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e
variados. D a definição de discurso: o discurso é efeito de sentido entre
interlocutores” (ORLANDI, 2003: 26). Sendo a linguagem opaca, não temos,
portanto, uma relação direta língua/sentido, mas sim um “efeito” que se processa na
relação da linguagem (simbólico) com o ideológico.
Assim, por esse “efeito”, a ambigüidade da mulher: doce, submissa, frágil,
mas ao mesmo tempo, sedutora, má, era considerada algo “natural”. A natureza a
havia feito portadora do bem e do mal. A mulher era identificada com a natureza,
portanto, enquanto o homem identificava-se com a cultura. A Psicanálise traz
144
importantes considerações a respeito dessa dicotomia. Discutiremos um pouco
sobre isso no segundo capítulo. A formação discursiva
43
(FD) religiosa cristã, sob
esse aspecto, faz circular um discurso que naturaliza o ambiente da mulher como o
doméstico, privado. Auxilia na produção de uma prática do papel da mulher na
sociedade como a responsável por cuidar da casa e dos filhos, enquanto ao homem
cabe estar em contato com a civilização, habitar o espaço público.
“A valorização do pensamento burguês teve influência decisiva na
deteriorização da imagem feminina. A misoginia, antes subjacente, tornou-se
explícita. (MACEDO, 1992: 55). Conforme o mesmo autor (1992), várias obras
literárias atestam o fato de que a imagem da mulher passa a ser denegrida nesse
período, sendo que passam a ser vistas pelo seu caráter pecador, como traidoras,
fúteis e más, sobretudo dentro da instituição do casamento, que também aparece de
forma negativa. Macedo (1992) acredita que esse fato possa ter se originado por
alguma forma de insubordinação das mulheres perante as condições do casamento.
Apesar disso
145
eliminação de um grupo arbitrariamente considerado indesejável e pernicioso” (idem,
ibidem: 59), grupo esse formado por magas, curandeiras, adivinhas, etc. Na
verdade, o combate feroz, iniciado pela Inquisição contra as ´maléficas´, reprimia a
sexualidade feminina(idem, ibidem: 66).
Passamos nessa nossa aventura teórica pela história da mulher por dois
períodos distintos: a Idade Média e o período burguês. Podemos observar alguns
deslocamentos nos discursos sobre a mulher em ambos os períodos. Primeiro
tínhamos uma mulher discursivizada pela Igreja que surge sob o efeito dicotômico da
santa (mãe) ou da bruxa. O Cristianismo “identificou afigurada mulher com a
experiência do pecado, baseando-se para isso no mito da sedução de Adão por
Eva” (BIRMAN, 1999: 62). O papel da mulher valorizado era o da maternidade, que a
redimia dos seus pecados “naturais”. Com a burguesia esse discurso se desloca,
atualizando o papel da mulher na relação com a família e, portanto, com as
transações comerciais também. As de baixa renda podiam (e deveriam) atuar
vendendo sua força de trabalho, as mulheres das classes mais altas deveriam
zelar pela imagem da família, empreendimento que era essa instituição. Daremos
continuidade à discussão sobre a mulher no período burguês quando tratarmos da
mulher no Brasil, no próximo tópico.
Outro importante deslocamento na rede de discursos sobre a mulher ocorre
com o advento do Iluminismo, entretanto passaremos rapidamente por ele. Com o
Iluminismo surge a proposta da “igualdade para todos”, contudo a categoria “todos”
não incluía a mulher, considerada como possuidora de uma razão inferior. Podemos
observar que aqui a inferioridade da mulher, atestada pelo discurso religioso,
desloca-se para o discurso científico, que a toma como possuidora de uma razão
inferior à masculina
44
. Durante a
Revolução Francesa
muitas mulheres se
destacam e participam ativamente, entretanto esse fato é silenciado pela história que
é construída ainda por e para os homens. Na
II Guerra Mundial
, a mulher acaba
sendo obrigada a assumir o lugar dos homens, enquanto esses estão em batalha,
mas com o término da guerra acabam sendo depostas do lugar que conquistaram e
devolvidas à posição subalterna de “rainha do lar”.
44
Sobre isso ver Rosseau: “Emílio ou Da Educação” e "Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens", textos em que percebemos que o pensamento filosófico iluminista
fundamenta os ideários que sustentam uma educação e uma moral diferentes para homens e
mulheres.
146
Um aspecto importante em meio a essa história da mulher é a sedimentação
de duas identidades possíveis para ela: sua periculosidade e ligação ao mal,
característica divulgada pelo discurso cristão acerca do erotismo da mulher; e sua
santidade pela via da maternidade. Esse aspecto diferencia essencialmente a
mulher do homem. Entretanto, conforme Birman (1999)
desde o século XVIII, pelo menos, se forjou um conjunto de
discursos- médico, filosófico e moral- que pretendiam delinear uma
diferença de
essência
entre o masculino e o feminino. Antes disso
não havia absolutamente uma fronteira essencial entre as figuras do
homem e da mulher, pois desde Galeno, no início da era cristã, a
mulher era considerada como um homem
imperfeito
,a quem faltava
calor suficiente para ser um homem” (BIRMAN,1999: 85-86).
Conforme a afirmação acima, o discurso da diferença essencial entre homem
e mulher foi sendo construído a partir do século XVIII, dialogando com um outro
discurso, aparentemente contraditório, de que a mulher seria uma espécie de
homem diminuído. Dessa prática discursiva anterior ao século XVIII mantém-se o
discurso que afirma a inferioridade da mulher em relação ao homem.
Com o discurso da diferença entre os sexos, regulamenta-se e justifica-se a
alocação da mulher com o espaço privado e do homem com o espaçoblico,
dadas as diferenças “essenciais” existentes.
Vamos dar prosseguimento a nossa história, afunilando um pouco os seus
rumos para o nosso país.
1.1.2 O DISCURSO PATRIARCAL NO BRASIL
Durante o Brasil-Colônia, a conduta feminina parece seguir os mesmos
padrões da Europa na Idade Média. Entretanto, a literatura existente sobre a mulher
desse período atesta que nem sempre o estereótipo da mulher boa esposa e mãe,
submissa e fiel era o retrato da mulher brasileira. Muitos registros existem de
modelos que desvirtuam esse tipo de conduta: mulheres adúlteras, prostitutas,
lésbicas, mães solteiras, enfim, todo tipo de “desregramento” em relação à
sexualidade feminina ocorria nesse período segundo observamos nos relatos da
obra História das mulheres no Brasil (2000), organizada por Mary Del Priore. Os
capítulos utilizados da obra em questão são os seguintes: “Maternidade Negada”,
R.P. Venâncio; “Mulheres pobres e violência no Brasil urbano”, R. Soibet; “Trabalho
147
feminino e sexualidade”, Margareth Rago; “Magia e medicina na colônia: o corpo
feminino”, Mary Del Priore; “Psiquiatria e feminilidade”, Magali Engel; “A mulher e a
família burguesa”, M. D´Incão; “Mulheres dos anos dourados”, C. Bassanezi; “A arte
da sedução: sexualidade feminina na Colônia”, Emanuel Araújo. Esses capítulos
dessa obra, que tomaremos por base, carregam em seu discurso uma preocupação
em trazer a história de mulheres reais, que foram pouco contempladas pela história
oficial. Dessa maneira a obra põe em evidência um discurso divergente em relação à
história oficial a respeito da mulher do Brasil-Colônia até a década de 80, relatando a
existência e a atuação de mulheres reais desse período, mulheres essas que
desvirtuavam o padrão feminino que compõe a nossa memória.
No Brasil, assim como na Europa, a mulher era “domesticada” e sempre em
relação a algum homem: “o adestramento da sexualidade (...) pressupunha o desvio
dos sentidos pelo respeito ao pai, depois ao marido, além de uma educação dirigida
para os afazeres domésticos” (ARAÚJO, 2000: 49-50).
O matrimônio também era uma forma de reprimir os impulsos femininos
próprios da adolescência, por isso os pais arranjavam bem cedo casamentos para
suas filhas, “assim, desde muito cedo a mulher devia ter seus sentimentos
devidamente domesticados e abafados” (idem, ibidem: 51). A menina, então,
casava-se, normalmente com alguém bem mais velho e tornava-se mãe, pois “na
visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice da vida da mulher.
Doravante, ela se afastava de Eva e aproximava-se de Maria, a mulher que pariu
virgem o salvador do mundo (idem, ibidem: 52).
Mesmo com a maternidade, a mulher não se livrava da dominação masculina,
porque surgia o médico, para desmentir a beleza e a naturalidade da
maternidade, prescrevendo fórmulas, inventando explicações para coisas que as
mulheres já sabiam e praticavam e ainda interpretações para os “males” que afligiam
o corpo feminino. A maternidade, todavia, não foi vista por todas as mulheres como
“missão”, algo divino, etc. Como atesta o texto de Renato Pinto Venâncio,
Maternidade Negada (2000: 189-222), muitas mulheres durante o período colonial
abandonavam seus filhos ou praticavam aborto por diversos motivos. Uma afirmação
como essa, sendo veiculada num texto científico, vem negar um discurso
consagrado e arraigado em nossa memória discursiva
45
: a maternidade, tida como
45
Conceito discutido em nota anterior, diz respeito ao que também é chamado de interdiscurso: o eixo
do dizível, o saber discursivo.
148
missão e/ou desejo de toda mulher. Mais um ponto de divergência em relação à
construção identitária da mulher veiculada pelo discurso histórico.
Durante o advento da burguesia no Brasil, no século XIX, um
deslocamento nos discursos sobre a mulher:
O nascimento de uma nova mulher nas relações da chamada família
burguesa, agora marcada pela valorização da intimidade e da
maternidade. Um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos
educados e esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada
de qualquer trabalho produtivo representavam o ideal de retidão e
probidade, um tesouro soc6(i)2.2896(d)0.940121i1(d)0678(d)0.937298(ã)0.9370678(d)0.937298(ã)0.937060.938709(b)0.938709(b0.468649(fv.940121(p)0.940121(r(a)0.94012n)0.940121((d)0.937298D.940121(e´d)0.937298I)0.940121(N.940121(eC.940121(eÃ)-138.44.0)-242.371/R9 10.405)0.940121(d)0.9.940121(20.940121(r00.940121(r00940121(m0.937298(ã):0.938709(a)0.940121(d2.937298(ã)2.937298(ã)3.937298(ã))d)0.937298.0.938709(a)0.940952719(h)2.84 Td[(148)533333 0 032.810532.4 cm BT/R223319(cLT*[(A )-594.34(l0762(.)1.é2.80827(e)2.80827(sl0.9475.192( )-9.23449(n762(.)1.s)2.80892(i),)13.4472(0.9475.192(u2.80827(e)2.80827(sla)-7.42551(e)475.192(9(e)2.80762( )1.40511 )-190.0849(b)2.8076e)2.80762(çg)2.80762(u)1264.21( 9(e)2.80762( )1.40511)-583.701(B( )-190.084(p)2.81021(o40121141)-583.701(B9(e)2.807621(a)13.445o2.80762( )1.40511(dt.40381(scug)2.80762(m)-7.42551( )-190.08(t)1.40511(o)264.21( e)2.80502(co2.80762( )1.40511(d)2.80892(s )-9.23319u(p)2.81021(o40121141(st)1.40511)2.80827(sl0.9464.21( 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149
Todas essas mudanças no comportamento da mulher burguesa trazem-lhe
uma nova função: dela dependia a “imagem” da família perante a sociedade, o que
influenciava decisivamente nos negócios da família. Os valores burgueses
assumiram tal importância na vida das mulheres que sua conduta passou do
domínio alheio (sociedade, pais, marido) para ela mesma. Houve um movimento de
auto-vigilância no decorrer do século XIX: as mulheres “aprenderam a se comportar”
(idem, ibidem: 236), ou seja, incorporaram os valores impostos como seus.
Acreditamos que nesse momento os discursos de crítica em relação ao
comportamento feminino passaram a fazer parte do repertório da própria mulher.
Além de se auto-vigiar, ela vigia e fala sobre o comportamento das outras mulheres.
O “código” de conduta feminina foi discursivizado excessivamente em textos
escritos: os jornais, que ocupavam suas páginas com mandamentos de conduta
feminina, bons costumes, etc.; a literatura, que também se ocupava de extensas
descrições dos comportamentos femininos. Através desses e outros textos, além dos
textos divulgados na oralidade, o ideal burguês foi naturalizando o trabalho
doméstico como afazer propriamente feminino, um dos principais pontos do “bom
comportamento” da mulher burguesa.
É importante mencionar que também aqui em terras brasileiras,
principalmente durante o projeto de higienização das cidades, “a medicina social
assegurava como características femininas, por razões biológicas: a fragilidade, o
pecado, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação
da sexualidade à vocação maternal” (SOIBET, 2000: 363).
No século XIX, a medicina e, sobretudo, a psiquiatria fizeram divulgar uma
concepção de sexualidade feminina como diretamente ligada à sanidade mental, o
que passa para o campo da moral e aparece nos discursos sobre a sexualidade
feminina até hoje. “Assim, a sexualidade só não ameaçaria a integridade física,
mental e moral da mulher, caso se mantivesse aprisionada nos estreitos limites entre
o excesso e a falta e circunscrita ao leito conjugal (ENGEL, 2000: 342). Dessa
produção de sentido, resulta uma prática da sexualidade feminina tida como ideal: a
mulher tinha de cumprir suas “obrigações” conjugais no que diz respeito ao sexo,
entretanto não poderia demonstrar disposição excessiva, até as posições do coito
eram determinadas. Práticas sexuais mais ousadas eram direito exclusivo das
prostitutas.
150
Dos relatos sobre a vida da mulher em terras brasileiras, pudemos perceber
que nem sempre a dominação masculina, normalmente feita através da família, da
Igreja e da medicina, conseguiu adestrar completamente as mulheres, contudo
“parece que o normal era a introjeção, por parte das próprias mulheres, dos valores
misóginos predominantes no meio social” (ARAÚJO, 2000: 53).
É preciso pensar de outra forma ainda a conduta das mulheres das classes
menos abastadas. “Apesar da existência de muitas semelhanças entre mulheres de
classes sociais diferentes, aquelas das camadas populares possuíam características
próprias, padrões específicos, ligados às suas condições concretas de existência”
(SOIBET, 2000: 367). A mulher das classes populares, ao que parece, gozavam de
maior liberdade sexual, não necessariamente tendo que casar formalmente,
podendo separar-se, portanto, com mais facilidade. Por outro lado, a
responsabilidade pelos filhos muitas vezes recaía exclusivamente sobre ela, a qual
tinha que trabalhar duramente para sustentá-los. O homem, nessas condições, nem
sempre desempenhava o papel de mantenedor da casa e, conseqüentemente, não
poderia também ser dominador, conforme rezava a ideologia dominante (burguesa).
Assim, a questão do trabalho feminino vai se colocando como uma
necessidade para as classes mais pobres e, mais tarde, com a industrialização do
país, no início do século XX, a mulher passa a atuar também nas fábricas, apesar de
ser tratada diferentemente e conviver com o risco de ser considerada uma mulher
imoral por estar fora do lar. Aos poucos surgem outras áreas para o trabalho
legitimado feminino: as fábricas têxteis, o ambiente escolar, entre outros. (RAGO,
2000: 603). Nos anos 20 surgem muitas mulheres militantes, adeptas do anarquismo
ou feministas liberais, que defendem a participação da mulher no espaço público.
Conforme Carla Bassanezi (2000: 607-639), no Brasil dos anos 50 houve uma
ascensão da classe média, um grande crescimento urbano e industrialização pós
Segunda Guerra Mundial, entretanto, os papéis feminino e masculino continuavam
distintos, a moral sexual ainda apontava com maior rigor para a mulher e o trabalho
feminino ainda era visto como inferior e subsidiário do masculino. “Ser mãe, esposa
e dona de casa era considerado o destino natural das mulheres. Na ideologia dos
Anos Dourados, maternidade, casamento e dedicação ao lar faziam parte da
essência feminina; sem história, sem possibilidades de contestação” (idem, ibidem:
609).
151
Todavia, nesse momento, não estava mais em voga o casamento
arranjado: os pais deveriam ser menos rígidos com as filhas. Por isso mesmo a
vigilância sobre as moças deveria ser garantida, afinal elas deveriam auto-controlar-
se para serem consideradas “moças de família” (designação comum da época- anos
50) e, portanto, dignas de um bom casamento. O código de conduta moral feminino
era bastante divulgado e conhecido, enquanto às mulheres era proibido qualquer
envolvimento sexual antes do casamento, sob pena de não casar mais, aos homens
a sexualidade era incentivada como prova de sua virilidade.
Apesar da popularização do trabalho feminino (no comércio, hospitais,
escolas, escritórios, etc.), a mulher que trabalhava ainda era estigmatizada na
década de 50, pois não poderia ser boa mãe e dona de casa se trabalhasse fora. De
qualquer forma, os afazeres domésticos continuam a ser exclusividade feminina:
“tarefas domésticas como cozinhar, lavar, passar, cuidar dos filhos e limpar a casa
eram consideradas deveres exclusivamente femininos. Dentro de casa, os homens
deveriam ser solicitados apenas a fazer pequenos reparos” (BASSANEZI, 2000:
626). Era a “divisão tradicional dos papéis”, que não poderia ser questionada, à
mulher cabia sempre “agradar” ao homem, sendo boa esposa, “rainha do lar”,
estando sempre contente, disposta a manter a paz e a felicidade da família (sem
pensar em interesses próprios).
A partir do relato sobre os discursos que circulavam sobre a mulher no Brasil
nos períodos que comentamos podemos observar (o que faremos posteriormente)
nas análises das falas femininas atuais a presença de discursos que reproduzem
essas práticas em relação à maternidade, casamento, moral feminina, etc.
Estendemo-nos no período da Idade Média, da burguesia e a os anos 50
para podermos deixar bem sedimentada a origem de um discurso que ainda produz
efeitos na fala de mulheres e homens e que chamaremos de “discurso machista
originário da Idade Média”. Nossa hipótese é de que essas práticas discursivas
sobrevivem reatualizando-se e compondo contraditoriamente a fala da mulher atual.
Juntamente com essa prática discursiva, aparece ainda o discurso originário do
discurso feminista clássico. Por isso julgamos pertinente trabalhar esse outro ponto
dentro da história da mulher.
152
1.1.3 MOVIMENTO FEMINISTA E FEMINISMO
O segundo ponto que consideramos importante dentro da história das
mulheres, por constituir de maneira bastante marcada o discurso feminino
contemporâneo, é o movimento feminista.
Segundo Louro (2000), o feminismo põe em evidência o conceito de gênero,
ele está “ligado diretamente à história do movimento feminista contemporâneo”
(LOURO, 2000: 14). Conforme a autora, o Sufragismo (movimento que reivindicava
o direito de voto à mulher) fcia ovimra co r)(n)2.81021e-94.3352(()]TJ285(e)13.4459(n)2.80762(t)1.40511(r)3.21279(o)20.5115((n)2.42551(p)2.80762(o)20.5115(q)-94.3396(a)13.4459ep)2.80762(o)20.5115(sep)2.80762(o)20.5115(ch)-562.426(r-7.42551(a)13.4459(m)-7.42551up)2.80762(o)20.5115((a)13.4459(m)-7.42551v(d)2.81021(e)13.4485((r)3.21279vi)9.23059(n)2.82579(n)2.81021(o)2.81021( )2352(()TJ-285.36 - )-30.5111(m)-19.8669(e)13.4459(m)-7.42892((u)2.80892l)-1.40381svoa.(I)1.40381( )-328.383(s(d)2.80892(e)9.23449( )-562.426(co)2.80892(n)2.80892(t)1.40381x(u)2.80762(t)1.44472(o)2.80892(,)9.23449( )--7.42551(a)13.4459(ep)2.80762ç(r)3.21279(e)13.4459(m)-13.4459( )-94.3396(a)13.4459(s-1.40511(scu)2.80762g)-19.8726f)-9.23319(e)2.80762( )-104.978(i)9.23319(suo)2.80762 osscude o d(
153
públicos, começa a se colocar enquanto sujeito dentro de uma sociedade
essencialmente patriarcal, sua voz começa a ecoar, apesar dos muitos rumores e
opiniões contrárias.
O movimento feminista, conforme Hall (2000: 49-50) é um dos marcos
responsáveis pelo descentramento do pensamento do século XX, descentramento
da própria identidade do sujeito moderno. Esse movimento questiona a distinção
dentro versus fora, privado versus público; coloca em pauta ainda questões até
então negligencnte Ha a7.998]Tv7.e0ab(e)13.4459(m)0511(9( )-253.9í(a)2.807611(i)9.23319(co)2.8072(,)1.40511( )-381.574()2.80472(0ab)2.80472s2(n)13.445x9(a)2.80762( )-158.111(i)9.23319(co)2.8072(a)13.4459(2)2.81021(e)2.80762(r)3.21271( )-381.574()2.80472o0ab)2.804721(r)3.21279(.4 -28.68 T)2.80762( )-541.1b(a)13.4459( )-253.911(i)9.2331h(o)2.80762( )-179.446()2.804729(o)2.80762(s )-370.(9( )-253.92( )-370.911(a)2.807611(m)-7.42559(a)2.8076,(e)13.474()2.80472(0ci)-1.4074()2.807321(i)-1.40251(st)1.40249(m)-7.448s1(o)2.81021( )277.998]TJ-304.44 -28.68 Td[(d)2.80827(e)2.80827(p)2.8082(9( )-253.92( )-3(H)-11(i)-1.40381(d)2.8089c2( )-222(i)-1.)-9.2342(o)13.4485( )-222(i)-1.)-9.2341(r)3.21279(o)2.808981.574(H)-b4459( )-381.574(H)-9(i)-1.403h(o)2.80892( )-62.421( )-168.809(co)2.8075( )-222(i)-1.lma o col po pivaed ptme24i vodmento
154
ainda que os termos de sua organização e de sua existência tenham mudado”
(SCOTT, 1992: 65).
Bardwick (1981) afirma que o início do movimento feminista nos Estados
Unidos foi marcado por uma assimilação do “discurso do macho”. Dessa forma, as
feministas sem o saber assimilavam um discurso sexista, ou seja, de que as
coisas referentes ao “masculino na cultura é que são boas e desejáveis. Dessa
forma, “minimizavam suas próprias realizações e desvalorizavam suas próprias
características, imitando o desdém da sociedade machista pelo ´feminino´”
(BARDWICK, 1981: 2-3). A autora ainda fala em três correntes dentro do movimento
denominado “Feminismo”: as feministas conservadoras, que apenas requisitavam
algumas poucas mudanças no sistema como a divisão dos trabalhos domésticos e
pagamento de salários iguais entre os sexos; as feministas moderadas, que lutavam
por mudanças de leis, reformas em geral que visavam a justiça para com as
mulheres, mas não a destituição das instituições; e as feministas radicais, que
queriam destruir algumas instituições americanas, mudar as estruturas básicas e
não apenas “reformar” a sociedade, essas são as que parecem ter uma visão
sexista, conforme já mencionamos.
Entretanto, apesar da ampla divulgação das feministas radicais, que
pregavam o fim do capitalismo, do casamento, defendiam o homossexualismo, entre
outros aspectos que chocavam o público em geral, havia as feministas moderadas
que reivindicavam medidas mais viáveis a curto prazo, como a assistência à mulher
no trabalho, condições de igualdade salarial, oportunidades igualitárias de estudo,
etc. Todavia, parece que o “discurso feminista” que prevaleceu, e hoje conhecemos
por esse rótulo é o das radicais, um discurso da mulher que quer inverter valores e
chocar.
De qualquer forma, “o feminismo tornou-se um grande movimento porque as
feministas, radicais ou moderadas, expressaram a frustração e o desejo latente de
mudanças existentes numa porcentagem significativa de mulheres” (BARDWICK,
1981: 17). E essa mudança, que ainda hoje é lenta e gradual, perpassa o discurso
da mulher (e não dela, mas também do homem) da contemporaneidade, que
esse movimento da história (do patriarcalismo introjetado ao feminismo) nos constitui
e constitui nossa prática discursiva.
155
Para fechar esse passeio teórico pela história da mulher, trazemos a reflexão
de Joel Birman (1999: 183-184), que fala das mudanças produzidas na subjetivação
da mulher ao longo do tempo no Ocidente. O autor afirma (e concordamos com ele)
que duas mudanças significativas na história da mulher ocidental: “a primeira se
processou entre a denominada Idade Clássica e a modernidade, enquanto a
segunda indica uma descontinuidade entre esta e a pós-modernidade (idem, ibidem:
184). Dizer que houve uma “evolução” em relação à Idade Clássica e a
contemporaneidade talvez não seja a melhor opção. O que houve foram mudanças,
rupturas. Os papéis e discursos sobre as mulheres deslocaram-se, foram
perpassados por outros discursos oriundos de novas ideologias e mudanças
históricas. Assim, observamos o papel da ideologia e da história
46
produzida pelos
historiadores na construção da identidade feminina, o que se materializa nos
discursos SOBRE a mulher e produzidos PELA mulher também. Falemos agora, a
partir do lugar teórico que nos colocamos- a AD- na constituição da mulher como
sujeito.
1.2 O EFEITO-MULHER
A partir dessa revisão teórica podemos pensar como a mulher vem se
constituindo historicamente. É pelas práticas discursivas, ou seja, pelos discursos
que circulam sobre a mulher e que a mulher faz circular sobre si mesma desde muito
tempo que podemos construir o que entendemos por “mulherhoje. Que significante
é esse “A mulher”? Será que ele é mesmo constituído a partir da palavra do homem,
já que o discurso masculino se configurou (e configura ainda?) como dominante?
Propomos pensar essa construção do efeito (que entendemos como
imaginário) “mulher” a partir do conceito pêcheuxtiano de forma–sujeito.
Embasado na tese central de Althusser de interpelação dos sujeitos pela
ideologia, Pêcheux (1997) postula a relação entre ideologia e inconsciente na
construção do sentido e do sujeito. Segundo ele, é no “complexo das formações
ideológicas” (PÊCHEUX, 1997: 160) que a evidência do sentido e do sujeito se dá.
No caso que analisamos, a evidência do que é “ser mulher” se justamente nesse
complexo das formações ideológicas.
46
A história que tratamos nesse momento é a história como “historicidade”, ou seja, não o fato em si,
mas a produção de uma verdade histórica construída pelos historiadores.
156
Conforme Orlandi, o papel da ideologia é “produzir evidências” (2002: 46).
Dessa maneira, a evidência da existência do sujeito é produzida ideologicamente,
através da filiação do indivíduo a uma dada formação ideológica que, por sua vez,
materializa-se numa formação discursiva. “A ideologia faz parte. Ou melhor, é a
condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em
sujeito pela ideologia para que se produza o dizer” (idem, ibidem: 46.).
Pêcheux passa a construir seu conceito de
forma-sujeito
, explicitado em
Semântica e Discurso
47
(1975), para isso recorre a outros campos fora da
Lingüística, a saber à releitura de Marx por Althusser e de Freud por Lacan, para dar
conta de uma teoria não subjetiva do sujeito, tal como algumas noções filosóficas da
época acentuavam. Assim sendo, a forma-sujeito é justamente a interpelação dos
indivíduos em sujeitos falantes a qual se faz via ideologia e inconsciente, um passo
dado para se chegar ao conceito de heterogeneidade. A esse efeito ilusório, pelo
qual todo sujeito é um já-sujeito, e não fruto de um processo de interpelação, o autor
denomina “Efeito Münchhausen”, ilusão necessária para que os indivíduos tomem-se
como “causa de si”. “É exatamente para superar essa visão do sujeito como ser
transparente a si mesmo que ele empreende o esforço de conferir à subjetividade
uma dimensão ao mesmo tempo ideológica e psicanalítica, através do conceito de
forma-sujeito” (TEIXEIRA, 2005: 45)
Forma-sujeito é, portanto, o conceito utilizado para tratar da constituição do
sujeito do discurso, através das propriedades discursivas que o posicionam histórico
e socialmente. Pêcheux trabalha nesse conceito baseado nas noções de
constituição do sujeito em Lacan e Althusser:
Ao dizer que o EGO, isto é, o imaginário no sujeito (lá onde se
constitui para o sujeito a relação imaginária com a realidade) não se
pode reconhecer sua subordinação, seu assujeitamento ao
Outro
,
ou ao sujeito, que esta subordinação- assujeitamento se realiza
precisamente no sujeito
sob a forma de autonomia
, não estamos
pois fazendo apelo a nenhuma “transcendência” (um Outro ou um
Sujeito reais), estamos simplesmente retomando a designação que
Lacan e Althusser- cada um a seu modo- deram (adotando
deliberadamente as formas travestidas e “fantasmagóricas”
inerentes à subjetividade) do processo natural e sócio histórico pelo
qual se constitui- reproduz o efeito-sujeito como interior sem
exterior, e isso pela determinação do real (exterior) e
especificamente- acrescentaremos do interdiscurso como real
(exterior) (PÊCHEUX, 1997: 163).
47
Título original Les vérités de la Palice.
157
Esse “efeito-sujeito”, resultado de uma ilusão imaginária que se origina na
forma-sujeito, é justamente o sujeito “sempre-já-lá” Um efeito que se cria através dos
processos ideológicos que tornam evidentes a (s) identidade(s) com as quais o
sujeito se afirma.
Posteriormente, contudo, Pêcheux percebe que, ao cercar um sujeito plenamente
interpelado, algo parece furar essa estabilidade. Assim corrige-se em auto-crítica
impressa em fevereiro de 1978, quando apresenta seu artigo causa do que
falha: “levar demasiadamente a sério a ilusão de um eu-sujeito-pleno em que nada
falha, eis precisamente algo que falha em Les Vérités de La Palice (PÊCHEUX,
1997: 300).
Pensamos que ocorre com a mulher o mesmo “efeito” ilusório do sujeito.
Assimilar o que é “ser mulher” é pautar-se num conceito imaginário produzido
historicamente pelas práticas discursivas: o que chamamos de “efeito-mulher”. O
significante “mulher” em si mesmo não carrega sentido algum, mas se investe de
sentido pela determinação das posições ideológicas que estão em jogo no processo
sócio-histórico de (re) produção das palavras e dos discursos sobre a mulher. Isso
ficará mais claro quando procurarmos estabelecer, no próximo capítulo, a relação
com a psicanálise, considerando que, ao nomear um indivíduo de “mulher”, o
significante carrega o peso da história, os sentidos e atribuições do que as práticas
discursivas construíram como o que é ser mulher e, portanto, o sujeito estará sob
esse efeito, que entendemos como histórico e imaginário.
Se nos voltarmos para o questionamento que colocamos no início desse
tópico: será que a construção do efeito-mulher se deu por práticas discursivas
masculinas (e, na maioria das vezes, machistas)? E se considerarmos (pelo menos
provisoriamente) como verdade essa pergunta teremos de nos fazer outros
questionamentos neste trabalho: como pensar a identidade feminina, via discurso
(como estamos nos propondo) na contemporaneidade? Vejamos: a construção do
próprio período que estamos vivendo é um passo na caminhada histórica.
Acreditamos que não como estar isento das práticas discursivas que constituíram
e constituem a mulher de hoje. Considerando esse fato, achamos melhor não
problematizar nossa suposta constituição através da palavra do homem, mas
simplesmente ver a mulher contemporânea pela sua palavra, pelo seu discurso. Se
os discursos que a compuseram são ou não masculinos e/ou machistas, o fato é que
eles a compõem e é isso que ora nos interessa. Não havendo como voltar na história
158
(e assim descobrir qual era o discurso da mulher nas épocas em que a literatura
159
CAPÍTULO 2:
A MULHER NA PSICANÁLISE: UMA QUESTÃO DE ESTRUTURA
Depois de trabalharmos com a noção de efeito-sujeito, estendido para “efeito-
mulher”, pensamos que a designação “mulher” implica, para qualquer sujeito, além
da questão histórico/ideológica, algo que é de estrutura e que se via linguagem.
Daí a necessidade de trabalharmos com alguns pressupostos psicanalíticos, mesmo
que não os tomemos posteriormente como dispositivo analítico.
Abordamos a questão da identidade feminina a partir da ótica da Análise do
discurso de linha francesa (AD), acrescentando alguns textos da Psicanálise, que
na terceira fase da AD ela tem papel fundamental. Ambas as teorias partem da
linguagem como elemento fundamental na constituição do sujeito. O sujeito é para a
Psicanálise um sujeito desejante, constituído pela falta e, para a AD, um sujeito
heterogêneo e interpelado pela ideologia. Considerando, então, que o sujeito se
constitui pela palavra, partimos do pressuposto de que “As formações da linguagem
precedem os indivíduos e os inscrevem em determinadas posições na ordem
simbólica; assim, ´home e ´mulher´ são os primeiros significantes que nos
designam” (KEHL, 1998: 11). Conforme essa designação, é a palavra do “outro” que
palavra ao sujeito que, então, constitui-se. É, portanto, o discurso alheio que nos
permite o acesso ao simbólico e, a partir daí, as possibilidades de identificação.
Freud afirma em seu artigo sobre a feminilidade (1976: 153), que “anatomia é
destino”, ou seja, nascer anatomicamente homem ou mulher implica
necessariamente a transposição de UM dos caminhos do Édipo. Já para Lacan
“linguagem é destino” (apud KEHL, 1996: 13), portanto, o “tornar-se” sujeito e, mais
precisamente, tornar-se um sujeito mulher, depende necessariamente da linguagem,
da simbolização. Considerando esse aspecto, “é a cultura que nos designa destinos
diferenciados como homens ou mulheres” (idem, ibidem: 13), além disso, “Do ponto
de visa do inconsciente, a diferença -embora fundamental- também é mínima:
depende do modo de inscrição dos sujeitos, homens ou mulheres, sob a ordem
fálica que organiza o desejo, mas que o fixa necessariamente o gênero à
sexualidade” (idem, ibidem: 13). Assim, o percurso pelo Édipo e a inscrição na
ordem fálica é que irão determinar a questão da feminilidade ou masculinidade no
indivíduo, seja qual for sua constituição biológica.
160
Para a Psicanálise, a constituição do indivíduo em sujeito se no momento
da passagem do estado polimorfo infantil
48
, quando a criança ainda identifica-se com
o falo e, por isso, vê-se onipotente, ainda não discriminada da mãe, para a
organização genital sexuada. Esse processo ocorre pela recusa do amor edípico e
pela identificação ao objeto parental dado pela cultura.
Assim sendo, o sujeito origina-se, primeiramente, do desejo dos pais, depois
a criança torna-se o falo, no registro imaginário, inscrevendo-se, pois, no narcisismo
primário. É preciso, então, que ocorra a castração para que o sujeito se desloque
para o narcisismo secundário, quando assimila a figura do “outro”, deslocando,
então, o amor de si mesmo para outros objetos (BIRMAN, 1999: 44). A partir dessa
passagem pelo Complexo de Édipo é que o sujeito sai da sua arrogância primária de
completude para a noção de si enquanto incompleto, faltante, desejante e sexuado.
2.1 SUJEITO PSICANALÍTICO
várias concepções que recobrem o conceito de sujeito. Trabalharemos
com a noção de sujeito mobilizada na terceira fase da AD, baseados na leitura de
Authier (1990), o que será desenvolvido no próximo capítulo. No entanto, como a
autora parte de uma noção da teoria psicanalítica do sujeito, consideramos
importante discutir as bases teóricas da constituição do sujeito psicanalítico, mesmo
porque depois ela será ressignificada pela AD.
O Sujeito da Psicanálise é um sujeito desejante, interpelado pelo inconsciente
e, portanto, um sujeito cindido, descentrado (contrário ao sujeito cartesiano), através
do qual fala o Outro, sujeito do inconsciente. O Outro pode ser considerado a
dimensão de alteridade que preexiste a todo sujeito. Lacan (1998) distingue no seu
Seminário II uma dupla dimensão de alteridade: o outro e o Outro.
O Outro, é dele que se trata na função da fala. O Outro é, em
primeiro lugar, a mãe, objeto perdido devido à proibição do incesto,
mas constitui sobretudo o lugar onde os significantes já estão, antes
48
Segundo Birman (1999: 31), “afirmar que a sexualidade é polimorfa implica enunciar que ela tem
diversas formas de existência e de apresentação, se materializando pois em diferentes modalidades
do ser”. Desse modo, o estado polimorfo é aquele em que ainda não se tem uma definição do objeto
de desejo sexual, que primordialmente pode ser múltiplo.
161
de todo o sujeito, sendo daí que ele recebe sua determinação maior.
(TEIXEIRA, 2005: 80).
O Sujeito lacaniano é constituído pelo real, simbólico e imaginário.
Essas são as instâncias determinantes na formação do sujeito. “O imaginário está
ligado ao nascimento do eu, o simbólico, ao registro da castração e o real, à
impossibilidade de formalização pela linguagem” (TEIXEIRA, 2005: 87). São três
anéis indissolutos que nos constituem psiquicamente como sujeitos. Pela instância
do imaginário temos a criação de um “eu” unificado, ou seja, é a instância que nos
permite a ilusão de que somos completos, ilusão narcísica de domínio sobre nossos
corpos e mentes. O simbólico, que é a instância que nos interpela via contato com a
linguagem, quebra essa completude imaginária, permitindo-nos o acesso ao Real
por meio de um “filtro”, que é a linguagem. Quanto ao Real é o que não cessa de
não se escrever” (idem, ibidem: 89), ou seja, justamente a dimensão que não pode
ser simbolizada, e que, por isso mesmo, escapa ao sujeito. O Real é o todo e, ao
mesmo tempo, o resto: é o registro que compreende o “todo psíquico, inclusive
aquilo que não é simbolizado; e é também o restante, aquilo que denota a existência
de um vazio, o buraco instaurado pelo simbólico.
Como o sujeito lacaniano se constitui pela linguagem, a ordem simbólica é
que irá mediatizar sua relação com o real, entrelaçando este e o imaginário. O
sujeito entra na ordem do simbólico através do estágio do espelho (quando
reconhece seu corpo no espelho como símbolo de si mesmo) e da metáfora paterna
(significante Nome do pai, instância da lei, ordem simbólica, a própria linguagem)
que leva à divisão do sujeito que precisa recalcar o desejo materno à ordem do
inconsciente. O eu (moi, na terminologia lacaniana) se constitui no imaginário como
uma identidade unificada, entretanto, o sujeito como um todo é o efeito clivado,
faltoso e desejante do inconsciente que, para Lacan, pertence ao simbólico e
também à ordem imaginária.
Assim, a concepção de sujeito de Lacan trata de um sujeito concebido como
efeito do discurso, que “um significante é o que representa um sujeito para outro
significante” (Lacan, 1998). Dessa forma, o sujeito está na esfera de dois
significantes e se coloca, portanto, no espaço de deslizamento da enunciação. Mas,
diferentemente das concepções subjetivistas, o sujeito psicanalítico na enunciação é
o sujeito da instância do imaginário e, portanto, um efeito.
162
Tendo observado alguns pontos da teoria psicanalítica lacaniana de
constituição do sujeito, consideramos pertinente explicitar melhor a questão do
163
Considerando esses aspectos, percebemos que a maturação sexual feminina
se de forma diferente da masculina, constituindo-se num processo mais
complexo. Se relacionarmos a isso as imposições de natureza social, que complicam
ainda mais o papel da mulher, veremos que na conjuntura atual o “tornar-se mulher”
parece passar por um processo de antítese: ao mesmo tempo que algumas
tendências a empurram para o “desejo masculino”, em que a mulher precisa ser
dócil, submissa, etc , ela parece precisar fugir desse padrão para sublimar-se.
Ocorre que a mulher atual defronta-se com um paradoxo: algo do nível da estrutura-
a feminilidade- determina para ela algumas características regidas pelo desejo;
entretanto, ela se constitui imersa numa ordem fálica, que requisita características
divergentes para que ela possa saciar, então, o desejo masculino. As características
que dizem respeito à feminilidade propriamente dita, são características outras
(diferentes das exigidas pelo desejo masculino do que é ser mulher, numa ordem
fálica) que de alguma forma foram renegadas pela cultura. É o que discutiremos no
próximo tópico através da noção de sintoma, cunhada por Lacan.
2.2 A MULHER ESTRUTURADA COMO SINTOMA
Depois de termos dado uma noção geral da constituição do sujeito mulher
pela psicanálise, para discutirmos a questão da estrutura da mulher partiremos de
um conceito nuclear nesse sentido: a noção de “sintoma”, oriunda do axioma
lacaniano: “a mulher é sintoma do homem
49
Segundo Laurent (2006: 1), Lacan formula, primeiramente, nos anos
sessenta, a proposição da mulher vista como fantasma
50
do homem, numa relação
imaginária. Nos anos setenta, desloca essa proposição para a noção de sintoma, e a
mulher passa a ser em relação ao homem o seu “sintoma”. Ele explica, em
Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (1998), que não identificação
possível ideal com o papel masculino, porque existe a castração. Em decorrência
disso, os homens estariam sempre à procura da parte perdida, que supostamente os
completaria, e encontram essa parte no parceiro sexual, no “outro”. Assim “a fórmula
49
Esta formulação aparece em : LACAN, J. “RSI”. Semináire du janvier 1975.
Ornicar?
N.3. Paris:
Lyse, 1975, p. 108.
50
A noção de “fantasma” diz respeito à fantasia. O fantasma é a produção no imaginário no sentido
de dar corpo ao desejo, um caminho possível em direção ao gozo. Nas palavras de Lacan, “a fantasia
torna o prazer apropriado ao desejo” (LACAN, 1998, p. 785).
164
do desejo do macho designa o lugar da mulher como sendo o do objeto a
51
do
fantasma” (LAURENT, 2006: 2).
a inscrição do desejo da mulher não estaria necessariamente no “outro”.
Ela está à procura do falo, que verdadeiramente nunca recusou, mesmo na
passagem pelo Édipo, mesmo sendo ela própria o objeto que está à procura. Em
Mais Ainda (1996), Lacan postula a fórmula “A Mulher não existe”, afirmando que
não um significante que designe esse conjunto geral que seria “A mulher”. Elas
existem apenas na singularidade, que “as mulheres se organizam como não-todas
na função fálica” (idem, ibidem: 2). O “A” barrado da fórmula “A mulher” indica que
não inscrição possível para ela, esse significante é algo do nível do não-
simbolizável.
Lacan reformula a diferença entre os sexos postulando a oposição de duas
lógicas: a do “todo fálico” para o homem e “não-todo fálico” para as mulheres; ainda
fala em dois tipos de gozo: gozo fálico para os homens e um gozo suplementar para
as mulheres(SOLER, 2005: 17).
Voltando à noção de “sintoma”, para compreendermos como
165
princípio, absurda. É a irrupção do conteúdo recalcado e do nível do desejo do
sujeito.
Essa apresentação da noção de sintoma, mesmo que sumária, permite-nos
pensar a mulher enquanto sintoma Temos consciência de que a máxima lacaniana
da mulher como sintoma está relacionada ao corpo do homem, que o homem
coloca a mulher como causa do seu desejo, conteúdo esse que, não podendo ser
verbalizado, pode ser recuperado na terapia. Dessa forma o gozo feminino não
passa pela linguagem, tendo caráter místico- o gozo suplementar-. O que seria,
então, esse conceito “mulher-sintoma”? Mulher sintoma do homem? O enunciado
literal da máxima lacaniana parece ressoar alguma submissão (efeito de sentido
dado pelo interdiscurso), contudo, ao tomarmos a noção de sintoma, percebemos
que é exatamente o contrário. A mulher sintoma (do homem e da sociedade, que por
sua vez é predominantemente masculina, tendo em vista ser a voz masculina a
dominante) é o reflexo de tudo que o homem recalca, tudo que o homem deseja e
não pode simbolizar, ou seja, não pode discursivizar.
É importante mencionar ainda que esse conceito de sintoma o pode ser
operatório
53
no que diz respeito ao dispositivo analítico, que estamos trabalhando
nos domínios da Análise do Discurso e os objetos são diferentes. A área na qual nos
situamos recobre o que diz respeito apenas ao
discurso
, à materialidade lingüística.
Contudo, entendemos que essa noção da estrutura feminina pode nos levar a
compreender a constituição do discurso feminino, o efeito-mulher que nos recobre e
produz nossa identidade e ainda seus desdobramentos. É o que procuraremos fazer
na análise dos enunciados femininos.
A questão da mulher atual poder ou não ser considerada como sintoma do
homem foi discutida por Charles Melman (2005), numa conferência ocorrida no
Brasil intitulada Será que podemos dizer, com Lacan, que a mulher é o sintoma do
homem?. Nesse texto, o autor diz que a questão da diferença (e até da
impossibilidade da relação entre um homem e uma mulher) é algo do nível da
estrutura
54
(p. 16). Afirma ainda que é a mulher quem decide sobre a validade da
53
Essa observação foi sugerida pela professora Dra Glacy Roure na qualificação que, da posição de
psicanalista e analista do discurso, compreende que são objetos diferentes de análise de cada área,
o que nos obriga a enveredar por UM dos caminhos, pelo menos neste momento, que o trabalho é
em Análise do Discurso.
54
Entenda-se estrutura aqui dentro de uma concepção psicanalista: como estrutura de configuração
do sujeito: a forma como ele passa pelo complexo de Édipo, segundo a leitura freudiana, e a forma
166
figura paterna (ou melhor, do Nome-do pai, instância da lei)
55
, pelo fato dela não ser
toda-fálica como o homem e ter em sua estrutura, portanto, características que
permitem a ela recusar algo da lei paterna, do poder masculino. Ela instaura dessa
maneira o lugar do “Outro”, que é justamente a instância do desejo, o que escapa ao
poder do pai.
Melman faz ainda uma ressalva importante sobre a máxima lacaniana:
Ele não disse “uma mulher é o sintoma do homem”. É
A Mulher
que
não existe e que, como somos todos aprendizes-mestres, nós
queremos todos fazê-la existir, porque se nós conseguirmos fazê-la
existir, então, nós podemos capturá-la completamente,
perfeitamente e, assim, seremos todos iguais.(MELMAN, 2005: 22).
A partir da fala de Melman, podemos compreender que Lacan está tratando
não de uma mulher específica, que seria o sintoma do homem, mas exatamente do
conjunto A Mulher, significante que não existe, que não está no nível do simbólico e,
por isso, revela a presença de um Outro que se interpõe, oriundo do registro do
Real. É isso ainda que permite a singularidade das mulheres, de cada mulher, já que
elas enquanto conjunto, não existem. O que existe é um efeito de homogeneidade
do conjunto, do qual tratamos no capítulo anterior, que chamamos de “efeito-
mulher”, efeito esse que, ao interpelar as mulheres como sujeito, as homogeinizam,
já que permitem para elas a apropriação de um discurso do que é ser mulher,
configurado por práticas discursivas pautadas em uma ideologia dominante que é
machista.
Mas voltemos ao desejo, instância corporificada pela mulher. A questão do
desejo está diretamente ligada à questão da perda. Vejamos como isso se processa.
Ser um sujeito desejante é ser um sujeito em que algo falta, um sujeito que perdeu
algo. E por haver algo perdido, passamos a vida a procurar essa parte perdida de
nós. Isso explica outra máxima lacaniana: “não relação sexual”. Melman explicita
essa questão afirmando que Lacan quer com isso dizer que a relação sexual não
existe porque ela se não pelo desejo do “todo” do outro sujeito, mas por alguma
“parte” do seu corpo (2005: 24). “A parte do corpo do homem que interessa à mulher
como ele organiza as três instâncias psíquicas: Real, Simbólico e Imaginário, conforme a psicanálise
lacaniana.
55
O Nome-do-pai é a metáfora paterna ou “função paterna”, aquilo que inscreve para o sujeito a lei
que o proíbe do incesto e instaura a linguagem. Pode ou não ser identificada com a figura paterna,
mas funciona em termos de registro imaginário, não exatamente de uma figura empírica (o pai).
167
é evidente” (MELMAN, 2005: 25), entretanto o que em nós causa o desejo dos
homens é algo que não sabemos exatamente. Por que estamos mencionando esse
fator? Para falar de um aspecto muito recorrente nas mulheres e que se manifesta
nas suas falas: a insegurança. A mulher vive angustiada sem saber o que tem que
fazer para conquistar um homem. Já neles, essa característica é menos freqüente, já
que possuem (e sabem que possuem) o que uma mulher procura. “A questão do que
torna o corpo de uma mulher desejável para um homem se encontra naquela escrita
de Lacan que sustenta que, para um homem, a imagem de uma mulher é o suporte
desse objeto pequeno a, quer dizer, do objeto de sua fantasia” (idem, ibidem: 25).
Segundo esse raciocínio, o que o homem procura numa mulher é algo que
está perdido nele e que pertence ao pequeno a, ou seja, à dimensão do Real, do
impossível, do que foi recalcado, e aqui voltamos ao fato da mulher ser sintoma do
homem. Não uma mulher individual, mas o conjunto das mulheres “A mulher” (que
não existe), é sintoma em relação ao conjunto dos homens, que podemos relacionar
com a própria civilização.
Ao afirmar que “A mulher é sintoma do homem”, estamos tratando de uma
categoria que está fora do registro do simbólico: sendo da instância do Real,
portanto, que ela não “ex-siste”. Dessa forma, ela é sintoma do homem, enquanto
categoria generalizada, não de um homem, ou de alguns homens. É sintoma de “O
homem” enquanto humanidade, ou sociedade em geral, não especificamente do
gênero masculino.
Por isso Freud afirmava em Feminilidade (1976) ser a mulher a
desestabilizadora do pacto civilizatório, porque ela quebra com mais facilidade do
que os homens a questão da lei paterna instituída. Tudo isso porque durante o
Complexo de Édipo feminino, o superego forma-se diferentemente em relação ao
homem, de forma mais branda, o que, assinalaria muitos efeitos “sobre o caráter
feminino em geral” (FREUD, 1976: 159). A mulher vazão ao desejo, e o desejo
sempre está fora da lei. Esse “poder” atribuído à mulher- de conseguir fugir da lei-
pode ser considerado um ponto extremamente positivo. Entretanto, sabemos que
Freud tinha opiniões bastante preconceituosas em relação à mulher. Entretanto, é
preciso considerar o lugar de onde fala Freud, que talvez não permitisse outra forma
de conceber a mulher dentro da sociedade do século XIX.
168
Para Freud, é que uma mulher é simplesmente um homem
diminuído, uma vez que ela renunciou a uma parte de sua virilidade.
Seu gozo é deslocado para um outro lugar anatômico, mas
permanece um gozo inteiramente fálico. Ou seja, Freud cai em cheio
em nosso sintoma, que quer que a mulher seja de um falicismo ao
menos igual àquele do homem. (MELMAN, 2005: 15).
Não vemos o fato de a mulher constituir-se diferentemente do homem em
relação à lei de forma negativa, como o fez Freud. Ao contrário, o vemos
positivamente, entendendo-o como um fator estrutural que nos permite uma
transposição maior à lei e, portanto, uma abertura maior em direção ao desejo e ao
gozo, característica da feminilidade.
Maria Rita Kehl (1996) também nos traz algumas contribuições sobre a
formação do “sujeito-mulher”, conforme a Psicanálise. Ela afirma, com base na
leitura freudiana inicialmente, que as mulheres são seres pouco éticos por conta de
uma “falha” na formação do superego. Vejamos:
O superego é o herdeiro do complexo de Édipo. Instância que se
forma a partir de um duplo movimento psíquico: a renúncia às
pretensões eróticas do amor edípico e o retorno de uma parte da
libido sobre o próprio eu, na forma das identificações paterna e
materna, e da formação dos ideais. Representa ao mesmo tempo
um substituto para as pretensões do amor edípico e uma formação
reativa contra ele (KEHL, 1996: 38)
Assim sendo, é pelo complexo de castração que o menino sai do Édipo,
quando descobre a falta no sexo feminino, no entanto, a menina entra no complexo
de Édipo justamente nesse momento, pela descoberta da castração, “reorientando
seu amor da mãe castrada para o pai fálico” (idem, ibidem: 39). Dessa forma, ela,
diferentemente do menino, entra no complexo de Édipo com a descoberta da sua
castração. A pergunta é: o que a faz sair, então, que não tem nada a perder?
Freud nos responde da seguinte maneira: “Na ausência do temor da castração, falta
o motivo principal que leva o menino a superar o complexo de Édipo. As meninas
permanecem nele por um tempo indeterminado; destroem-no tardiamente e, ainda
assim, de modo incompleto” (1976: 159).
Kehl responde da seguinte forma o mesmo questionamento: “É a ameaça da
perda do amor, e não do pênis, que sinaliza a necessidade da renúncia feminina ao
Édipo. É para não ser eliminada pela e rival e para poder ser amada de algum
jeito pelo pai que a menina aceita a feminilidade como destino (KEHL, 1996: 60).
169
A questão do amor é colocada por Lacan como determinante na formação
feminina. A mulher é caracterizada pelo “ser castrada” e, partindo desse destino, a
falta fálica faz com que ela se volte para o amor de um homem (SOLER, 2005: 26),
mas isso o é visto de forma pejorativa, e sim essa falta “é positivada” por Lacan.
“Na impossibilidade de ser A mulher, resta ser ´uma´mulher, a eleita de um homem”
(Idem, ibidem: 57).
Dessa forma, a segunda resposta à questão da saída do Édipo aponta não
somente para uma “falha” no superego em função de uma castração evidente
para a menina. Kehl, assim como outros psicanalistas recentes, compreende que a
mulher tem sim muito a perder se não sair do Édipo: tem a perder sua própria
feminilidade. Tem a perder o que a faz tornar-se uma mulher.
O que nos interessa dessa discussão sobre a passagem da mulher pe.80777.4279(.)-9277.998]C-19.56 TdJ-357.96 -19.44 Td[6(i)-1.403l]TJ33.36 -19.44 Tdx2(st)1.40381(ã126.25681(d)2.80892(a)13.4481(ã126.25680762(o)2.81021( 2.639(m)-7.42559(a)13.4472(st)1.40381(ã)2.80892(r)3.21279( )-126.25(A)-3.21279( )-19.3422(q).21279(m)-7.42551(a)2.81021(,)1511(scu)2.80762(ssa)2.80761(a)13.4459( )-285.829(d)2.807628(“)3.21279(se)2.807662(e)2.80762(r)3.21229(d)2.80762(e)e)2.80762(a)13.4459( )-275.191(9.44 Td[2( )-6538((d)2.80762(e)e)2.8076(d)2.80762(e)2.80762(79(e)2.807-1.40511(scu)2.80762(sse)2.807662a)13.4459( )-285.82(m)-7.44.882(i)9.23319(p)]TJ( )-9.2331 )-115.616(ca)13.4459(st)-9.23316(e)]TJ289.92 0 Td[éd)2.80762(e)e)2.80769(o)13.4459( )-9.23319(q)13.4459 sasu(ca)2.80762a
170
A mulher é o sintoma do homem porque se coloca como “objeto de desejo”
dele, já que se defronta com a falta do falo. Entretanto, como para ela não
castração, que
é
castrada, não nada a perder, o que faz com que ela,
contraditoriamente, seja dotada de uma ilimitação fálica (ou SEJA o próprio falo
56
).
Essa estruturação leva a uma
falta
que não é jamais preenchida. Como sempre foi o
homem que historicamente deteve a palavra (KEHL, 1998), é ele quem vai produzir
o desejo que vai habitar a mulher, por isso ela é o sintoma, posto que corporifica as
angústias e conflitos, o que o é verbalizado, o que foge à lei instaurada pela
linguagem.
A mulher é, portanto, sintoma do homem, e não somente dele, mas da própria
cultura em que estamos inseridos. Assim, “não estarão as mulheres (...) tentando dar
conta também dos aspectos da problemática masculina de que elas, receptivas,
devoradoras, acabam por se ´encarregar´?” (KEHL, 1996: 59). O questionamento
colocado por Kehl (1996) progride para a afirmação de que a existência dessa
mulher, que não existe para o inconsciente como preconizou Lacan, vem
funcionando, portanto, como o inconsciente do mundo masculino, que traz de
volta alguns pontos recalcados, via sintoma.
Assim, se é pelas práticas discursivas, ou seja, pelos discursos que circulam
sobre e pela boca da mulher que podemos construir o que entendemos por “mulher”
hoje, que significante é esse “A mulher”? Será que ele é mesmo constituído a partir
da palavra do homem, já que o discurso masculino se configurou (e configura
ainda?) como dominante? Ou vem havendo uma subversão quando a mulher acaba
verbalizando o que no homem não encontra simbolização? São pontos da
construção do sujeito mulher na contemporaneidade que gostaríamos de discutir
para pensar a
heterogeneidade
.
Articulando a noção de efeito-sujeito, ou “efeito-mulher”, com os pressupostos
psicanalíticos, podemos dizer que, ao nomear um indivíduo “mulher”, o significante
carrega o peso da história, os sentidos e atribuições do que as práticas discursivas
construíram como o que é ser mulher e, portanto, o sujeito estará sob esse efeito,
que entendemos como histórico e imaginário. Mesmo que, como afirmou Lacan, A
Mulher o exista, ou melhor, não exista como conjunto, existe um efeito
homogeneizante do que é ser mulher, o que é construído via palavra do homem.
56
Elizabeth da Rocha Miranda, apud Kehl, (1996: 74), afirma que se o homem possui o suporte
imaginário do falo, à mulher é mais acessível a SÊ-LO.
171
Contudo, esse efeito nem sempre funciona, porque sempre um furo, daí a
mulher se constituir como sintoma.
Quando uma mulher se constitui como objeto causa do desejo para
o homem, se alojando dessa forma no fantasma masculino, ela se
faz, então, objeto de gozo para este homem. Ao ser
objeto a
, ou o
sintoma que o homem recupera no seu corpo ao preço do Falo na
relação sexual, a mulher localiza o gozo fálico deste homem.
(LAURENT, 2006: 1)
Essa relação corpórea da mulher como sintoma em relação ao homem produz
uma relação simbólica da mulher e sua constituição identitária. A falta está colocada
e torna-se fato, fato esse simbolizável via linguagem.
Assim, ao mesmo tempo em que a mulher é interpelada pela ideologia e pela
palavra do homem -efeito-sujeito-, também carrega o fado de ser sintoma, portar
uma verdade negada, ou seja, ser aquilo que, como diz a gasta metáfora para
designar sintoma, “ao ser jogado pela porta, retorna pela janela”.
Kehl (1996) nos oferece uma reflexão bastante significativa quando pensamos
na transição por que passa a mulher contemporânea:
Que a mulher tenha se tornado plenamente- não, plenamente talvez
seja exigir demais até para um homem!- capaz de amar e trabalhar,
é essa a revolução na natureza humana que ainda não sabemos
simbolizar, pois acena para a possibilidade de retraçar as vias de
circulação dos valores fálicos em nossa cultura. Que tenhamos nós,
mulheres, conquistado o
falo da fala
, preparando caminho para
nossa própria existência, criando a possibilidade de inscrever no
inconsciente da espécie, nem que seja daqui a duzentos anos, os
signos da nossa subjetividade- ambígua, sim; bissexual, sim;
incestuosa, também-, tudo o que a mulher parece-que-é-mas-não-
pode-ser se torna possível na medida em que adquirimos existência
também sublime, sublimada, acesso ao simbólico, substituindo as
possibilidades concretas, limitadas, destinadas em grande parte ao
recalque (KEHL, 1996: 66)
Com isso fechamos/abrimos a discussão sobre a mulher sintoma, que
corporifica e externaliza a falta, mas ainda carrega o “efeito” de ser mulher conforme
a gica masculizadora e, por isso, está sob o signo da heterogeneidade. Deixamos
as previsões futuras para o futuro. Por enquanto tratemos da mulher heterogênea e
desse conceito de heterogeneidade processado na terceira fase da AD.
172
CAPÍTULO 3:
A MULHER VISTA SOB O SIGNO DA HETEROGENEIDADE
Antes de ponderarmos sobre a mulher vista pela heterogeneidade, é
importante discutir como esse conceito foi desenvolvido pela Análise do Discurso,
vamos às bases teóricas, portanto.
Na terceira fase da Análise do Discurso, Pêcheux reformula grande parte da
sua teoria. De uma análise automática do discurso (AAD-69) passa-se para a
consideração do discurso e do sujeito visto sob o signo da heterogeneidade.
Ao enunciar o conceito de forma-sujeito, Pêcheux (1975) descreve a forma
pela qual o indivíduo é interpelado em sujeito ao assumir, no complexo das
formações ideológicas
57
, sua posição como EU imaginário, entrando, assim, na
evidência das significações. Dessa forma, ele aceita como sua “realidade” parte
desse universo ideológico materializado nas formações discursivas para tornar-se
sujeito do discurso. Vejamos nas palavras de Pêcheux:
O funcionamento da Ideologia em geral como interpelação dos
indivíduos em sujeitos (e, especificamente, em sujeitos de seus
173
A chamada terceira fase da AD é o fruto do amadurecimento dos conceitos
enunciados por Pêcheux, o que se acentua pelo encontro teórico com a lingüista J.
Authier-Revuz, que propõe a teoria da heterogeneidade enunciativa, a partir de
estudos sobre o discurso relatado.
O princípio da heterogeneidade é apresentado por J. Authier em 1981, no
colóquio Materialidades Discursivas, do qual Pêcheux participa. As idéias debatidas
nesse colóquio levarão Pêcheux a romper com a noção de formação discursiva,
inaugurando o termo “discursividade” e vendo o discurso e o sujeito como
heterogêneos.
O que a autora apresenta como “heterogeneidades enunciativas” compreende
a
heterogeneidade constitutiva
, aquela pela qual o “eu pensa falar- ilusão
narcísica- que se constitui basicamente pela interferência do interdiscurso e do
inconsciente; e a
heterogeneidade mostrada
, que é a presença do “outro” no texto,
marcada explicitamente, através de aspas, discurso direto e indireto livre, glosa,
citações, ironia etc.
A noção de
heterogeneidade constitutiva
nos interessa sobremaneira,
que é ela que novo estatuto ao sujeito discursivo, inaugura a presença
determinante do “outro” no mesmo e apresenta essa como condição fundamental, ou
melhor, constitutiva. Contudo, a heterogeneidade mostrada é precisamente a que
confirma o assujeitamento, pois, ao se demarcar o discurso “alheio”, o sujeito afirma
que o restante é autenticamente SEU, de sua autoria e propriedade. É, portanto, a
heterogeneidade mostrada que nos leva à constitutiva.
A partir dos estudos sobre a presença manifestada do “outro” nos textos,
pode-se pensar diferentemente a constituição do sujeito, agora não mais somente
uma posição, um indivíduo plenamente assujeitado por uma ideologia. A Psicanálise
contribuiu muito para essa designação de sujeito da terceira fase da AD, segundo a
qual não falamos sempre o que queremos, como e da maneira que queremos, mas
estamos “sujeitos” a inúmeros fatores e um deles é a manifestação do inconsciente e
isso é que faz com que passemos de indivíduos a sujeitos.
Entendendo o sujeito como um efeito de linguagem, a Psicanálise busca
as formas de constituição desse sujeito não no interior de uma fala
homogênea, mas na diversidade de uma fala heterogênea, que é
conseqüência de um sujeito dividido. (BRANDÃO, 1998: 43).
174
À abordagem psicanalítica, J. Authier (1990) conjuga a teoria bakhtiniana.
Dessa teoria a autora considera o princípio dialógico constitutivo da linguagem e a
afirmação de que todo dizer é atravessado por outras vozes- teoria polifônica-, o que
significa que nenhum dizer é original e, mais que isso, toda palavra é carregada
ideologicamente
58
. Vejamos o que afirma a autora sobre sua filiação teórica às duas
correntes:
Para propor o que chamo de heterogeneidade constitutiva do sujeito e de
seu discurso, apoiar-me-ei, de um lado, nos trabalhos que tomam o
discurso como produto de interdiscursos ou, em outras palavras, a
problemática do dialogismo bakhtiniano; de outro lado, apoiar-me-ei na
abordagem do sujeito e de sua relação com a linguagem permitida por
Freud e sua releitura por Lacan (AUTHIER-REVUZ, 1990: 25)
Das concepções de Bakhtin e Lacan, a autora retira, portanto, elementos para
formular a sua teoria da heterogeneidade enunciativa. Apesar de pontos de vista
bastante divergentes, ambas as correntes
têm em comum o fato de terem oferecido para a concepção de sujeito, de
linguagem, de sentido e da relação estabelecida entre essas posições, a
idéia de não homogeneidade, de alteridade constitutiva, de
heterogeneidade constitutiva, de relação não separável um-outro. É o
conceito de ´outro constitutivo do eu/discurso´, portanto, que sustenta a
originalidade e a contribuição decisiva dessas duas teorias para os
estudos do sujeito e da linguagem.”(BRAIT, 2001: 9).
Authier critica a posição dos estudos pragmáticos e enunciativos que
consideram a noção de intenção do sujeito, a autora menciona o trabalho de Ducrot,
ao qual se apóia que ele dedicou-se aos casos do discurso relatado, entretanto
considera o estudo desse teórico uma abordagem intralingüística do sentido. Critica
os estudos pragmáticos pela não consideração da presença do inconsciente na
linguagem, tal como enuncia a Psicanálise, encerrando-se na “categoria lacaniana
do imaginário que é colocada em jogo, e a ´função de desconhecimento´assegurada
estruturalmente no sujeito por um ´ego´[´moi´] ocupado em anular, no imaginário, a
divisão que afeta o eu´[´je´]” (AUTHIER-REVUZ, 1998: 17).
58
Sobre isso ver BAKHTIN, M.
Marxismo e Filosofia da Linguagem:
problemas fundamentais do
método sociológico na Ciência da Linguagem. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
175
Considerando o trabalho da autora acima mencionada, Pêcheux, como
teórico inquieto que sempre foi, passou a reformular sua própria teoria. Com
Semântica e Discurso ele “resolve” o problema da máquina discursiva que
homogeneizava os discursos e absorvia completamente o sujeito
176
já que a linguagem não conta de reproduzir um Real que é insuportável ao
sujeito.
Todas essas inquietações são colocadas em pauta no colóquio
“Materialidades Discursivas”, de junho de 1979, quando M. Pêcheux entra
efetivamente em contato com J. Authier. Esse contato foi decisivo e colocou de uma
vez por todas o discurso, e por conseguinte o sujeito, sob o signo da
heterogeneidade. Como afirma Pêcheux (apud MALDIDIER, 2003: 74): “o primado
do outro sobre o mesmo se impôs”. Authier, na posição de lingüista, que insiste em
manter, fornece pressupostos materiais lingüísticos para a problemática da
heterogeneidade no discurso.
O conceito de heterogeneidade constitutiva de J. Authier vinha em
consonância ao conceito de interdiscurso, aliás, a própria autora em seu trabalho
fala da ligação à AD e aos trabalhos de Althusser e Foucault (AUTHIER, 1990: 27).
E a heterogeneidade mostrada, além de levar à constitutiva, também pode ser
relacionada ao intradiscurso da teoria pêcheuxtiana. Intercâmbio teórico perfeito.
Pêcheux, ao comentar sobre os novos caminhos da AD em sua terceira fase,
fala da consideração do discurso-outro, que se faz pela presença da
heterogeneidade mostrada (as marcas do discurso alheio colocado em cena pelo
sujeito), mas, sobretudo, pela heterogeneidade constitutiva, condição primeira do
discurso, que se faz pela “insistência de um ´além´ interdiscursivo que vem, aquém
de todo autocontrole funcional do ´ego-eu´, enunciador estratégico que coloca em
cena ´sua´seqüência” (In: GADET; HAK, 1993: 316-317). O que ele chama de um
“além” interdiscursivo, podemos entender como o Outro, o inconsciente, que se
estrutura via discurso identificando-se com o sujeito, ao mesmo tempo que o
desestabiliza “nos pontos de deriva em que o sujeito passa no outro, onde o controle
estratégico de seu discurso lhe escapa” (Pêcheux, In: GADET; HAK, 1993: 317). A
partir daí, a AD “interessa-se em fazer emergir novos procedimentos de análise a
partir da consideração da heterogeneidade/equivocidade do sujeito e do sentido
(TEIXEIRA, 2005: 16).
Considerando que a heterogeneidade constitutiva é condição de todo
discurso, assumimos uma concepção de discurso como materialidade lingüística
constituída pelo interdiscurso e também pelo inconsciente.
177
Esta concepção do discurso atravessado pelo inconsciente se articula
àquela do sujeito que não é uma entidade homogênea exterior à linguagem,
mas o resultado de uma estrutura complexa, efeito de linguagem: sujeito
descentrado, dividido, clivado, barrado” (AUTHIER-REVUZ, 1990:28).
Ao chegar à especificidade de um sujeito heterogêneo que se constitui como
tal à medida que fala e falha, Pêcheux ocupa um lugar original dentro dos estudos
lingüísticos, tendo em vista que não se opõe simplesmente a um sujeito intencional,
egóico, mas o situa através do assujeitamento como sujeito ideológico e afetado
pelo inconsciente, e o faz relacionando esse sujeito à materialidade específica da
língua, que a própria língua é sintoma: “a língua que todo o locutor toma como
´instrumento de comunicação´, freqüentemente escapa a ele” (TEIXEIRA, 2005: 16).
A língua, o sujeito e o sentido passam, portanto, pelo crivo da heterogeneidade.
A noção de heterogeneidade abarca principalmente o postulado de que o
discurso e o sujeito são constituídos também por uma falta, legado que nos é dado
pela Psicanálise. Entretanto, como operaremos segundo os mecanismos de análise
da AD, é preciso compreender como essa falta se manifesta na linguagem.
Acreditamos que uma noção que nos pode ser útil em termos de análise é a noção
de
equívoco
. O equívoco é procedente da falha, que se origina na língua, ou seja, a
língua está sujeita a falhas. No discurso é que percebemos o equívoco, pois é pela
inscrição da língua na história que ele se produz, no funcionamento da ideologia
e/ou do inconsciente (ORLANDI, 2001: 102-103). Pelo equívoco, portanto,
materializado no discurso das mulheres, podemos nos voltar à falta que é
constitutiva de todo sujeito e que atesta a heterogeneidade.
Como pensar, então, essa noção de heterogeneidade do sujeito em relação à
mulher? Acreditamos que ao situarmos a mulher como “efeito”, mas um efeito que
falha, que produz equívocos no discurso, a colocamos na tensão entre dois pólos:
um regido pela determinação histórico-ideológica e outro que se coloca a partir do
desejo, da falta que constitui todo sujeito. Pensando nessa bipolaridade, situamos o
sujeito sob o signo da heterogeneidade. Se considerarmos ainda a formação da
estrutura feminina pela Psicanálise, podemos afirmar que a mulher apresenta de
forma mais clara essa manifestação heterogênea, posto que corporifica a falta e a
externaliza via sintoma. A materialização dessas posições acerca da identidade
feminina é o que procuraremos demonstrar a partir do discurso feminino que
analisaremos na seqüência.
178
CAPÍTULO 4:
ENFIM, O DISCURSO FEMININO!
A incursão pelo discurso feminino e as leituras que procedemos acerca da
mulher vista pela história, da mulher vista pela psicanálise, e da constituição do
sujeito pela heterogeneidade, segundo a AD, foram delimitando um percurso teórico-
analítico que mobilizou conceitos requisitados pelo corpus, o qual foi também foi se
delimitando. Dessa forma foi-se construindo, como denominou Orlandi um
“dispositivo de interpretação” (2002: 59). Esse dispositivo se fez por uma via de mão
dupla: as questões surgidas no corpus “pediam” o trabalho de algumas categorias
teóricas e essas categorias teóricas foram fazendo com que o corpus para a análise
fosse se compondo. Antes de iniciarmos a análise propriamente dita, é preciso
explicitar esse gesto de composição do corpus.
4.1 CONVERSANDO COM MULHERES SOBRE SER MULHER: CONSTITUIÇÃO
DO
CORPUS
Neste tópico procuraremos justificar a coleta de corpus, talvez nem tanto
convencional. Nos ancoramos nas teorias das quais partimos: a AD, que prevê uma
constituição do corpus não a partir da teoria, mas um trabalho de análise em que as
questões teóricas surjam do corpus, o qual vai se delineando conforme o andamento
da pesquisa; e a Psicanálise, que trabalha com o elemento verbal pautado no
princípio da associação livre.
O material sobre o qual nos debruçamos – a materialidade lingüística- permite
transitar entre as várias áreas teóricas nas quais nos apoiamos, contudo, temos em
vista que são diferentes as noções de discurso em cada uma das áreas, assim como
outros conceitos, tais como feminilidade.
Não pretendemos tecer considerações sobre a articulação da AD e a
Psicanálise, terreno bastante conflituoso e ainda em desenvolvimento. Sabemos que
a relação entre ideologia e inconsciente é o ponto de encontro entre as duas teorias,
mas também ponto de divergência. Considerando isso, pretendemos tomar alguns
pontos da Psicanálise como base para se pensar a constituição do sujeito mulher e
a produção da(s) sua(s) identidades, tendo em vista a brecha teórica da constituição
heterogênea do sujeito em sua dupla interpelação: pela ideologia e pelo
179
Inconsciente. Todavia, a Psicanálise não será tomada para fins analíticos,
problemática que mencionaremos na seqüência.
A análise do discurso feminino será feita, então, a partir dos pressupostos da
Análise do Discurso de linha francesa da terceira fase, a qual parte de alguns
princípios psicanalíticos. Trabalharemos com a fala de mulheres, voltando nosso
olhar a um mater80762(m)-7.40511(a)556]TJETQN40381( )-57qT(o)2.81021(sso)2.813s-1.40511(t)1.405813sotem tentrevitas-785.829(t)1.40511(e 2.80762(t)13.4459(r)3.21279(eco2.80762(a)13.4459(r)3.21279(t)a2.80762(n)13.4459(d)2.80511(e 2.212780.]TJ352.0p13.4459(d)2.80511(e)13.4472(r)380762(s )1.40511(nó3.21279(e).TJETQ0(.)1.404.81769.0-269.04 -19-253.915(T)4.6119(r)3.21251(á)2.80892(ta.40381(se-2.80892(r)sso)2.813s)2.80892(,)1.83.7026)-253.915(p9.23449(co)13.4459(r)3.21279( )-9.23449(a)13.4472(n)2.80892(toso)2.813s)2.80892(,)1.83.7026))-285.83(d)2.80892(a)1383.7013o)2.80762(m)-7.42551(a)9.23319(i)-emrg1.40511(h)2.80762(es)3.21279(t)o2.80892(a)1383.7013o-243.276(d)2.80762(e)2.83.7013o-7.42551(i)9.23319(n-285.829(t)1.40511(e)2.80762(r)-73.063(p)2.80762(r)3.21279(e)3.21279(t)a2.80762(nç)13.4459(ã)2.801(sso”2.21278]TJ321.72.80762(s,)1.83.7013o-243.276(co)2.80762(m)o2.80892(a)1380762( )-73.063(se)3.21279( )-21279(ce)2.80762(iz)1051(5( )3.2127956t)1.401(sso)2.807682(,)1.4051156t.32 Td66(rD2.81021(l13.4485(s,)-9.23579( )277.15( )]TJ39.04 -19a1.40446(h)1.1739.7 )-73.0632l)-1.40381(i)13.4459(m))13190.086 )-285.83(d9.23449(se)2.1739.7 p-285.83(d)2.42551(e)2.80892(nsa.23449(co)13.4459(r)2.1739.7 a.23449(cos)2.1739.7 p-285.83(d)13.4485(r)3.212813s-1.40511(t)1.40381(i)-1.40381(cas)13190.084e)2.80762(i-243.276(d)2.80762(en3.21279(e)3.21279(t))2.80762(i)3.21279(t)á2.80762(a)13.4459(r2.80762(ci)-1.40511(as)2.1739. )-243.276(co)2.80762(m)o2.80892(a)13190.084e)2.80892(e)-73.063(f)-19.8715(e)13.4459(i)-1.40511(to1.40511(as)2.1739. ))13.4459(qu1.40511(h)2.80762(e)1.40420421.7J321.7s)2.80892(a)131739. pro1.40511(ad13.4459(qu1.80892(az)1051(5( )1.40511(e)13.4472(m)-731739. ))1.40511(n)2.80762(e)2.1739.9t)1.401(sso)2.168.(cí)1.401(sso)2.80892(e)2.81021(l)a lihg9.23449(q)13.4472(ua.23449(cog-285.83(d9.23449(se)13.4472(m))2.80892(.)1.349.15(F253.915(762(m)-7.40511(a)556a.23449(se)13.4472(m))9.23449(o)2.8323335( )1.4059(se)13.4474sso)2.323335( “13.4459(rg1.40511(h)2.80762(es)3.21279(t)o2.80892(a)133398](a)2.80762(d-73.063(se)3.3398](a-7.42551(i)9.23319(n-285.829(t)1.40511(e)2.80762(r)-73.063(p)2.80762(r)3.21279(e)3.21279(t)a2.80762(nç)13.4021(ao1.40511(a”2.80762(r2.80762(s,)1.32333520p13.4459(d)2.80511(e)13.4472(rq13.4459(qu1.80892(ae1.404205.5]TJ321.7)1.32333520-9.23319(a)2.80762(l)é3.21279(e)13.4459(m))133398](a)2.80762(d)2.807697)1.323335208 0 Td[(i)-1.40511(nv)3.21279(e)-9.23579(t)1.40251(i))-73.063(d)2.81021(a)2.3233355)-62.4273(d.81021(sso)2.81021( )277205.5]TTJ39.04 -19a1.40446(h-1.40446(h762(m)-7.40511(a)556)9.23449(i)-)2.80892(ta.40381(se)2.190.086 )sso)2.813s)13.4459(r)2.190.086 u.23449(se)13.4472(m)-9.23449(a)132008]T4)-253.915(p9.23449(cos)13.4472(si)b-73.063(d13.4472(si))-285.83(l)-1.40381(i)13.4472(d)2.80851(a)2.80762(d-73.063(se)3.1739. )-243.276(d)2.80762(e)2.1739. ))2.80762(l)-19.8715(e)13.4459(i)-1.40511(tu2.80511(e)13.4472(r)1.40511(a)2.80762(,)1.1739. ))-73.063(p)2.80762(r)3.21279(ec)9.23319(i)-a3.21279(e)13.4459(m)o1.40511(as)2.1739. )-243.276(co-1.40511(n))2.80762(i-2.4042.21]TJ321.7)1.40511(e)2.80762(r)2.80762(a)13.4459(r)13190.084eq2.80762(au243.276(d)2.80762(e)2.1739. )o1.40511(as)2.1739. ))-21279(ce)2.8077697-1.40381(ssoT)4.6166(r2.81021(sso)2.81021(s )277..21]T-321.72 -19a1.40446(h-1.40446(h762(m)-7.40511(a)556)9.23449(i)-)1.405813s)2.80765(p9.23449(cos)2.392.61( )ã.23449(co3.21279(so)13392.61( p-285.83(d)13.4485(ro1.405813s)2.405813s-9.23449(uz)1051(5( )1.40251(i))-23449(co3.21279(sos)2.392.6120p13.4459(d)2.80511(e)13.4472(r)2.392.6120u3.21279(e)13.4459(m))13392.6120g2.80511(e)13.4472(r3.4459(ssu)2.40511(n)13.4459(o)2.392.6120)13.4459(qu1.40511(h)2.80763(d)13.4459(,)-9.9(i.574u)2.40511(n)13.4459(o)13.4472(r)2.3(i.574us2 0 Td[(u)2.80892(a)13392.6120ve1.80892(az)1051(5( )13.4459(,)-9.404258.1.7J321.7é2.80892(a)133(i.574u)2.40511(n)2.80762(a)2.80762(r)385.829(t)1.40511(e 233(i.574ud2.80762(e)2.80892(e)133(i.576g)13.4485(u)2.807682(,)2.81021(a)2.81021( )277.58.1.7J-311.4 -19d1.40446(he1.40446(h)385.89. )sso)2.813s)13.4459(r)2.80762(m)-7.23449(i))2.80892(na1.405813s)2.405813s-9.23449(a)13370.937p)2.80762(r)3.21272(ua.23449(co)-285.83(l)-1.40381(i)13.4472(d)2.808813s)2.80765(p9.23449(se)2.370.937pso1.405813s)2.80762(ci)-1.42551(u)13.4459(l)2.80762(s,)1.370.935n)13.4459(o)2.370.935n)13.4459(qu1.40511(h)2.80762(e)1.370.935n)-73.063(f)a1.80892(az)1051(5( )1.370.935n-243.276(co)2.80762(m)-7.370.933n)13.4459(qu1.40511(h)2.80762(e)1.360.29 )-232.637(a)2.360.29 ))2.80762(r)3.21279(e)-73.063(f)-9.4042.1.1.7J321.7)13.4459(r2.80762(ci))2.80762(d)13.4459(a)2.360.29 hasq2.80762(au243.276(d)9.23319(i)-a3.21279(e-7.370.938)-9.23579(o)-73.0634so)2.80892(e)13.4472(r)3.21021(aç)2.81021(a)2.81021( )277.9981
180
Os autores tomam “vozes de mulheres” comuns, espécies de conversas”,
com o intuito apenas de ouvir essas mulheres, que em geral não são
ouvidas.Trabalharam nessa coleta de dados com mulheres comuns, do rculo de
amizades de uma conhecida, mas não da família da pesquisadora por razões óbvias
de interferência por conta do contato muito íntimo e de possíveis conflitos familiares.
Outro aspecto importante, conforme as próprias palavras da autora, é que “cada
entrevista foi feita de acordo com um plano bem flexível, dando lugar a muita
liberdade e espontaneidade à entrevistada, inclusive para dar vazão às suas
associações de idéias” (CERTEAU et al, 1998: 223).
Dessa forma também procuramos proceder nas entrevistas que realizamos:
colocando algumas questões para iniciar a conversa, mas deixando, sobretudo, a
mulher “livre” para falar.
Tendo justificado teoricamente nosso objeto de análise, vejamos como isto se
deu concretamente. A constituição do corpus de análise, conforme mencionado,
parte de entrevistas realizadas com mulheres de perfis diversificados. Tendo em
vista que a pesquisadora é também uma mulher, podemos dizer que a coleta de
dados foi constante, pois o tempo todo estamos conversando com mulheres de
vários espaços e níveis sociais. Entretanto, formalmente, foram feitas 10 (dez)
entrevistas, com mulheres entre 15 e 83 anos, de níveis sociais diferentes e
profissões diversas, nos municípios de Guarapuava, Irati e Maringá, no Paraná.
A escolha da amostra foi aleatória e contou com a disponibilidade dos
sujeitos. Não partimos de segmentos ou estratificações sociais para determinar o
público pesquisado, pois gostaríamos de compor um quadro de mulheres que
pudesse ser representativo da mulher “em geral” no período contemporâneo, e não
de uma classe específica de mulheres. Assim, selecionamos as mulheres em função
das práticas discursivas femininas mais ou menos regulamentadas que
acreditávamos que poderiam apresentar mulheres de determinada faixa etária, por
exemplo, ou classe social.
Dessa forma, procuramos compor um quadro diversificado de mulheres,
partindo do pressuposto de que elas poderiam mostrar práticas discursivas diversas,
tendo em vista o afetamento por alguns discursos (como o feminista ou machista,
por exemplo), dependendo da idade, escolaridade e/ou profissão. Assim, fizemos
entrevistas com dez mulheres, escolhidas em função de sua idade, profissão e
181
escolaridade. Quanto à idade, optamos por ter representantes das seguintes faixas
etárias: dos 15-25 anos; 25-45 e acima de 45 anos; quanto à profissão, procuramos
contemplar ao menos uma dona de casa e uma mulher considerada bem sucedida
profissionalmente; quanto à escolaridade, selecionamos pelo menos uma mulher de
cada nível: até ensino fundamental, ensino médio e ensino superior acima.
Pretendemos com essa escolha dos sujeitos pesquisados conseguir uma amostra de
práticas discursivas diversas a fim de obter um perfil da mulher em geral, e o
estratificado, conforme já mencionamos.
Sabemos da impossibilidade de homogeneizar a mulher, tornando-a uma
mulher genérica abstrata, talvez esse efeito possa ocorrer quando se fala em
analisar o discurso feminino. Nossas mulheres são reais, indivíduos interpelados em
sujeito, e, para que isso fique registrado, acreditamos ser importante apresentar o
perfil das 10 (dez) entrevistadas.
Ao tratar disso, estamos falando de condições de produção (CP).Conforme
Orlandi (2003) as CP compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Em
sentido amplo diz respeito ao contexto sócio histórico e ideológico. Cremos que
tratamos disso no primeiro capítulo deste trabalho. as CP em sentido estrito
dizem respeito ao contexto imediato. Partiremos primeiramente dos sujeitos
pesquisados: das dez entrevistadas cinco eram solteiras, duas casadas, duas viúvas
e uma separada; duas eram professoras, quatro estudantes (três universitárias e
uma do Ensino Médio), uma empregada doméstica, uma funcionária pública, uma
aposentada e uma dona de casa. Em relação ao grau de escolaridade,
adiantamos que três eram estudantes universitárias, uma estudante do ensino
médio, duas professoras pós-graduadas (uma com nível de mestrado e a outra com
especialização); duas com ensino fundamental incompleto, uma com ensino
fundamental completo e uma com ensino médio completo. Os locais onde vivem
essas mulheres são cidades do interior do Paraná (Guarapuava, Irati e Maringá) e a
escolha se deu em função de serem os locais por onde a pesquisadora transitava. O
cruzamento desses dados pode ser observado no quadro a seguir, que apresenta os
sujeitos pesquisados:
182
Iniciais estado civil
idade Profissão escolaridade
Local
M.M. solteira 22 anos Estudante superior inc. Irati-PR
V.C. solteira 19 anos Estudante superior inc. Irati-PR
P.P.B solteira 15 anos Estudante
ensino médio
incompleto
Guarapuava-
PR
M.S. separada 30 anos Empregada
doméstica
ens. fund.
incompleto
Guarapuava-
PR
R.M. S. viúva 51 anos aposentada
ens. fund.
incompleto
Guarapuava-
PR
T.V. casada 44 anos funcionária
pública
ens. médio
completo
Guarapuava-
PR
N.F.L. solteira 27 anos professora
sup. Comp.
Pós- Grad.
Maringá-PR
E.C.B. casada 34 anos Profesora
universitaria
sup. Comp.
Pós- Grad.
Maringá-PR
C. S. solteira 21 anos estudante superior Inc. Maringá-PR
I. M.S. viúva 83 anos
dona de
casa
Ens. fund.
completo
Irati-PR
O procedimento das entrevistas ocorreu da seguinte maneira: abordamos as
entrevistadas dizendo que estávamos fazendo uma pesquisa sobre o
comportamento feminino e gostaríamos de conversar, fazer algumas perguntas.
Fomos bem recebidas por todas as mulheres, todas se mostraram bastante
dispostas a falar. A impressão que tivemos é de que não um espaço de reflexão
na vida dessas mulheres sobre o fato de ser mulher, daí o interesse em falar sobre o
assunto.
A entrevista partia do seguinte questionamento:
Você gosta de ser mulher? Por quê?
Outras questões que foram colocadas durante as entrevistas pela
entrevistadora foram:
183
O que a mulher pode ou não fazer?
Qual a diferença entre ser homem e ser mulher? Quais os pontos positivos
e/ou negativos no fato de ser mulher?
Você quer (ou sempre quis) se casar?
Você quer (ou sempre quis) ser mãe?
Daí em diante, foram surgindo muitos assuntos dependendo da entrevista,
mas contemplamos na análise principalmente a resposta a essas questões.
Outro dado importante é que nove das dez entrevistas que realizamos não
foram gravadas. Foram feitas anotações pela pesquisadora durante as entrevistas e
logo depois delas. Contudo, a riqueza do material coletado fez com que
considerássemos que ele não poderia ser desperdiçado e, materialidade lingüística
que é, poderia e deveria ser analisado. Ainda é importante mencionar que o material
dessas nove entrevistas, mesmo não tendo sido gravado, é a reprodução das falas
das entrevistadas, procuramos não alterar nada do seu conteúdo e forma original. As
frases que nos “soaram” mais importantes foram anotadas na íntegra. O material
que não lembrávamos e que não foi anotado descartamos, priorizamos as respostas
de questões que foram feitas para todas as entrevistadas. Compreendemos que a
“traduçãodesses textos orais produzidos pelas mulheres significa, faz diferença,
que se configura como outra materialidade lingüística. O recorte que fizemos já é um
gesto de interpretação, sem falar da diferença que entre o registro oral e o
escrito. Os sentidos produzidos, portanto, se colocam nessa relação pelo modo
como o corpus foi sendo constituído, entre a fala propriamente dita das entrevistadas
e a transcrição feita pela pesquisadora.
A última entrevista, realizada com uma senhora de 83 anos, foi gravada e
transcrita. Nela detemos grande parte da nossa análise, considerando a quantidade
e qualidade do material coletado.
Uma outra ressalva ainda faz-se necessária antes de nos dirigirmos para a
análise. Apesar de ter dado algumas características das entrevistadas, estamos as
“homogeneizando no processo de análise. Explicamos: no início do projeto deste
trabalho acreditávamos ser importante mencionar idades, profissões, escolaridades,
etc., por conta da hipótese de que o discurso feminino se manifestaria
diferentemente conforme essas categorias. Todavia, no processo de descrição dos
discursos, observamos que o discurso feminino, mesmo heterogêneo, era um só,
184
independentemente de quem falava. Em decorrência dessa constatação, em nosso
gesto de interpretação não tomamos as mulheres individualmente, especificamos
quem fala, mas não tomamos esses dados como categorias de análise.
Consideramos a fala das entrevistadas como reflexo de suas posições-sujeito, ou
seja, dadas as condições, elas estão nesse momento na posição de mulheres,
respondendo pela condição “mulher”. Além disso, o objetivo do trabalho é observar
via discurso a identidade feminina e não a identidade particular das entrevistadas.
À análise, então:
4.2 UM PERCURSO DE ANÁLISE:
Depois de termos lançado algumas hipóteses teóricas acerca da identidade
da mulher na contemporaneidade, hipóteses que partiram do próprio corpus,
procuraremos situar agora, na fala das entrevistadas, os pontos que mencionamos
na revisão teórica, sejam eles principalmente: o “efeito-mulher” e a questão da
heterogeneidade.
De que maneira essas questões se materializam no discurso de mulheres
comuns, como é o caso das entrevistadas? Elas falam em ser “efeito” ou mulheres
heterogêneas? Obviamente que não. Porém, procuramos pistas nas suas falas,
indícios dentro da materialidade lingüística que essas mulheres nos trazem para
verificar como elas se compreendem enquanto mulher. Que efeito de sentido
produzem ao falar sobre o que é a mulher hoje? Essa é a nossa questão central.
Do conteúdo das falas das entrevistadas, fomos selecionando aquilo que
latejava nos seus discursos. Não partimos de nenhum critério dado a priori, mas
buscamos observar nas falas o que “saltava aos olhos”. Dessa maneira, é no
conteúdo reiterante e também reticente e até negligenciado que procuramos ver o
discurso feminino. Buscamos vê-lo ainda na relação com o exterior que o determina
(contexto histórico-ideológico) e ainda observar os lapsos, as faltas, os resquícios de
um discurso de um sujeito desejante que põe em utilização uma língua que, como
mencionamos, é lacunar tanto quanto o sujeito.
Para iniciar de algum ponto a nossa análise, partimos das regularidades
discursivas, ou seja, dos pontos em comum dentro da fala das entrevistadas. O
primeiro deles diz respeito ao “poder”.
185
4.2.1 O QUE É SER MULHER?: MULHER “NÃO PODE”
No primeiro tópico da nossa análise trazemos enunciados que surgiram do
questionamento feito às entrevistadas: “Você gosta de ser mulher?”. As respostas a
esse questionamento trouxeram enunciados em que o “ser mulher” foi predicado
através do verbo “poder”, ou melhor, “não poder”. Em decorrência disso
perguntamos o que, então, a mulher pode ou não fazer. Disso surgiu uma
discursividade que coloca em cena o “poder” versus “não poder” para designar
respectivamente o masculino e o feminino.
A forma negativa
“não poder
apareceu em maior mero, o que marca a
questão do
interdito
que surge na fala das entrevistadas. Mulher não pode fazer
certas coisas
59
”. Não conseguiram explicar os motivos, algumas diziam por que
não”, acentuando uma verdade absoluta, apesar de totalmente arbitrária, sinalização
de um pré-construído no espaço interdiscursivo
60
. Outro fator digno de nota é que a
questão do interdito aparece por duas vias: pela negação (o que a mulher não pode
fazer) ou ainda pelo silenciamento demonstrado na impossibilidade de explicitar o
que exatamente o se pode fazer. Isso se faz pela falta de predicação: mulher não
pode...”. “Não pode” o quê? Ou ainda pela indeterminação do objeto, quando
aparece nas falas o vazio, o lugar do impossível de ser verbalizado: mulher não
pode fazer certas coisas”; “ algumas coisas” “muitas coisas”, etc.
Os principais interditos do tipo 1 (negação) explicitados pelas mulheres giram
em torno de sair sozinha (tanto para viajar, quanto sair à noite, ir a um bar, etc.);
alguns interditos sexuais também, e outros de ordem financeira: meninas dependem
mais dos pais financeiramente e têm dificuldade para encontrar um emprego.
Nesse último caso, em relação a emprego, surge um fator bastante
interessante que nos remete à divisão do trabalho (manual e intelectual) vista de
forma naturalizada: a via única apresentada é estudar para, depois, ter
independência financeira. Entretanto o “ideal é que isso ocorra através de
profissões intelectuais, afinal mulher não pode trabalhar em qualquer coisa” (M.M.
22 anos). Nesse enunciado a questão ideológica é muito marcada: a divisão do
trabalho e o interdito são questões sociais arraigadas por uma ideologia capitalista e
59
Colocaremos em itálico e entre aspas todas as citações retiradas das transcrições das entrevistas.
60
O conceito de interdiscurso é equivalente ao de memória discursiva mencionado anteriormente e
será discutido na seqüência.
186
patriarcal, mas que se encontram legitimadas, que discursivizadas sem o peso da
história. Queremos dizer com isso que a memória histórica desses “fatos”
discursivizados: a divisão do trabalho e o interdito em relação ao sexo feminino,
parece ter sido “apagada”. Esse “apagamento” ocorre pelo esquecimento 1
61
, de
ordem ideológica, que, via interpelação/assujeitamento, produz a ilusão da
transparência da linguagem e da forma-sujeito, ou seja, a ilusão que permite a todo
indivíduo identificar-se como sujeito do discurso, ou melhor, como EGO, instância
produzida pelo imaginário (no sentido lacaniano do termo).
Pela assimilação do discurso como “seu”, aparece aqui a mulher “efeito”, a
que se constitui via discurso histórico-ideológico dominante. Essa mulher, ao
produzir um enunciado como esse, assimila como seu um discurso de origem
capitalista (divisão do trabalho intelectual e manual) e também um discurso de
origem machista acerca dos tipos de trabalho que podem ser executados por
mulheres.
Vejamos algumas outras ocorrências do verbo “poder” em que a interpelação
ideológica se materializa via discurso:
Enunciado 1: Eu queria ser meu irmão, pra poder ter mais
liberdade...viajar, poder fazer muitas coisas (M.M., 22 anos)
Enunciado 2: “mulher é proibida de fazer muitas coisas, tudo
não pode, enquanto homem pode tudo”. (V.C., 19 anos).
Nos dois enunciados acima, aparecem ocorrências do tipo 2: o interdito que é
silenciado. Nesses casos, a mulher é interditada de dizer quem a interdita ou mesmo
de que tipo
de coisas ela está interditada. “Poder”, nesse momento, o é utilizado
no sentido de “possibilidade”, mas como interdito social. O interessante é que, da
forma como aparece nas falas, o efeito de sentido é de um interdito natural. Nessas
falas sobre o que a mulher pode ou não fazer, está inscrito um discurso que é social,
imemoriável, pertencente ao que podemos chamar de uma formação ideológica (FI)
61
Sobre esse conceito ler Semântica e Discurso de Michel Pêcheux ou Análise do Discurso:
Princípios e Procedimentos, de Eni Orlandi.
187
patriarcal originária na Idade Média. Esse discurso reproduz uma lógica assentada
ideologicamente desde muito tempo e que acaba cerceando a ação da mulher na
sociedade. Transparece no discurso que o que pertence ao “poder” está relacionado
ao homem, enquanto o “não poder” diz respeito à mulher.
O enunciado 1 trata ainda da questão da divisão do espaço público e privado.
À mulher cabe o espaço privado, “viajar” é coisa para homem. Para poder viajar é
preciso ser homem e isso é naturalizado. O conceito de liberdade diz respeito à
liberdade para ir e vir, o que vem explicitado no enunciado 1, quando a entrevistada
equivale os termos “ter mais liberdade” e “viajar”. Essa liberdade para ir e vir é um
direito que a mulher não possui, pelo menos completamente: seu “ir e vir” está
cerceado por fatores inúmeros que a impedem de exercer sua “liberdade”.
No enunciado 2 temos além da questão do interdito silenciado, a questão da
“completude advinda das expressões “tudo não pode” e “homem pode tudo”. O
significante “tudo” remete à ilusão da completude imaginária do sujeito. O efeito de
sentido desliza em “tudo não pode”, que o “tudo” pode corresponder a tudo que o
homem pode fazer e a mulher não, mas também pode designar a totalidade
impossível a todo sujeito, a incompletude que nos constitui. O “tudo” é o impossível,
o pertencente ao Real. Também podemos pensar na organização das ocorrências.
Na primeira o “tudo” vem no inicio: “tudo não pode”, sendo sujeito da oração. Na
segunda ocorrência o “tudo” vem no final, como elemento adverbial, enquanto o
sujeito é o homem. Esse fator possibilita uma leitura diferente. O efeito de sentido
decorrente dessa organização frasal é que o “tudo” da segunda ocorrência diz
respeito ao conjunto de coisas que o homem pode fazer, enquanto na ocorrência
anterior o “tudo” diz respeito à totalidade que o sujeito renuncia na passagem pelo
Édipo, quando do abandono do narcisismo primário. Manifestação do inconsciente?
Talvez. Acreditamos que esse equívoco (da ordem do discurso) interposto pela
ambigüidade de sentido do significante “tudo” margem ao vislumbramento da
condição heterogênea de constituição do sujeito.
Como podemos perceber nessa pequena amostra das falas femininas, o
discurso se compõe de discursos outros oriundos de muitas formações discursivas.
Ao compor sua fala com um discurso “naturalizado” de que a mulher
não pode
fazer
coisas que o homem pode, ecoam na fala da mulher vozes que remetem a um
discurso outro que constitui o discurso feminino de forma contraditória, que está
188
ancorado num interdiscurso de base machista. O
interdiscurso
“designa o espaço
discursivo e ideológico no qual se desdobram as formações discursivas em função
de relações de dominação, subordinação, contradição” (MALDIDIER, 2003: 53); é
ainda o que Orlandi (2002) chama de o “eixo do dizível”, ou seja, o que rege o dizer.
Nesse caso, temos um discurso machista, não associado empiricamente a nenhum
indivíduo, mas que ressoa, possibilitando o dizível e se materializando na fala das
mulheres por conta de uma dominação ideológica que as assujeita. Na verdade não
é propriamente o discurso machista que aparece na fala da mulher, ele retorna sob a
forma do simulacro, resignificado e, além disso, transformado numa voz imemorial,
que reproduz uma ideologia arraigada que nos interpela, mas ao mesmo tempo
nos dá a ilusão de sermos sujeitos, donos do que dizemos.
Pêcheux, na terceira fase da AD, fala da consideração do discurso-outro, que
se faz pela presença da heterogeneidade mostrada (as marcas do discurso alheio
colocado em cena pelo sujeito), mas, sobretudo pela heterogeneidade constitutiva,
condição primeira do discurso, que se faz pela “insistência de um ´além´
interdiscursivo que vem, aquém de todo autocontrole funcional do ´ego-eu´,
enunciador estratégico que coloca em cena ´sua´seqüência” (In: GADET; HAK,
1993: 316-317). O que ele chama de um “além” interdiscursivo, podemos entender
como o Outro, o inconsciente, que se estrutura via discurso identificando-se com o
sujeito, ao mesmo tempo que o desestabiliza “nos pontos de deriva em que o sujeito
passa no outro, onde o controle estratégico de seu discurso lhe escapa” (Pêcheux,
In: GADET; HAK, 1993: 317).
Considerando que a heterogeneidade constitutiva é condição de todo
discurso, assumimos uma concepção de discurso como prática discursiva e
constituído pelo interdiscurso e também pelo inconsciente. “Esta concepção do
discurso atravessado pelo inconsciente se articula àquela do sujeito que não é uma
entidade homogênea exterior à linguagem, mas o resultado de uma estrutura
complexa, efeito de linguagem: sujeito descentrado, dividido, clivado, barrado”
(AUTHIER-REVUZ, 1990: 28). É a partir desse prisma que a questão da identidade
vai se colocando: sob a égide do descentramento, da divisão, do Um que é
atravessado pelo outro e pelo Outro.
Também aparece nas falas das entrevistadas um discurso um pouco mais
atualizado, mas não menos ilusório, de que a liberdade da mulher está muito
189
ampliada hoje. Esse tipo de discurso traz de uma certa forma um consolo para as
mulheres, o que acaba viabilizando um conformismo perante a situação atual.
Vejamos as redes parafrásticas desse enunciado nas falas:
Enunciado 3:
Mulher pode fazer quase tudo, só algumas
coisas não pode fazer ( R.M.S, 51 anos);
Enunciado 4:
Não sei, acho que pode fazer tudo. É claro
que não pode ser como os homens, mas hoje em dia a
mulher tem muito mais liberdade do que até um tempo atrás
(T.V., 44 anos).
Nesses enunciados está clara a presença do interdiscurso que se atualiza
nessas falas graças às condições específicas de produção, ou seja, somente pode
ser dito e compreendido um discurso como esse porque o momento histórico e as
questões ideológicas assim o permitem. um discurso extremamente machista
que afirma que a mulher não possui igualdade de direitos em relação aos homens;
ainda um outro discurso que nega o primeiro e é esse discurso que aparece no
momento atual. Interessante perceber que, como ele aparece para negar um
discurso primeiro, ambos são interdependentes e só existem um em função do outro.
A atualização do discurso machista nos enunciados 3 e 4 produz um efeito
de sentido de libertação da mulher: ela pode “quase” tudo, está “quase” em de
igualdade com o homem; e ainda um outro efeito de conformidade, que “hoje em
dia ela tem muito mais liberdade do que até um tempo atrás”, enunciado que traz no
seu interdiscurso um outro que afirma: “vocês já evoluíram muito, vamos com calma,
não está bom assim?”. A produção de enunciados como o 3 e o 4 apresentam um
lugar de transição do discurso feminino, dadas as novas condições de produção.
Vejamos:
Para uma FD machista originária da Idade dia o discurso possível seria:
“mulher não pode tudo”;
Numa FD feminista: “mulher pode tudo”;
E no enunciado 1 temos um lugar de deslocamento: “mulher pode quase
tudo”.
190
O deslocamento ocorrido é decorrente das condições de produção atuais que
trazem práticas do comportamento feminino regulamentadas pelos discursos que a
mulher faz circular sobre si mesma. O “quase” também espaço ao “resto”, que
não é verbalizado, mais uma vez a questão da incompletude. Dupla indeterminação:
uma decorrente do “quase” e outra decorrente do “tudo” que não é especificado.
Outro ponto relevante nas falas é a questão do
interdito sexual,
que é
trazida sob a forma do mesmo verbo “poder”. Como sabemos, a sexualidade da
mulher sempre foi alvo de preocupação: da igreja, dos pais, do marido. Os “desvios”
sexuais sempre foram punidos através de, no mínimo, discriminação social,
conforme discutimos no primeiro capítulo. Com o advento do Feminismo e também o
surgimento da pílula anticoncepcional, começa a circular um discurso a respeito da
liberdade sexual da mulher. Contudo, ainda o discurso da moral, que se soma a
essa discursividade acerca da sexualidade feminina. O discurso moralista dialoga
com o discurso machista originário da Idade Média e está presente muito tempo
na história da mulher. Dessa forma, ele ainda se apresenta fortemente na fala das
mulheres, o que podemos observar nos enunciados a seguir:
Enunciado 5: mulher não pode ficar com muitos parceiros, é
feio (P.P.B., 15 anos).
A expressão utilizada “é feio”, enunciado bastante comum para designar
conduta reprovável pela sociedade, remete a uma formação discursiva (FD) que alia
a questão estética ao padrão moral. Um outro trecho de uma outra entrevistada
revela também a oposição limpeza versus sujeira:
Enunciado 6:
mulher pode fazer quase tudo, só algumas
coisas não pode fazer, se não fica suja, mal falada (R.M.S.,
51 anos).
A divergência do enunciado 6 é que a questão sexual fica subentendida, mas
não aparece literalmente. O que nos faz compreender que se trata dessa temática é
191
justamente o final do enunciado: “fica suja, mal falada”. O termo “suja” aparece
estranhamente nessa fala, por ser oriundo de uma formação discursiva da saúde, da
higiene, que se desloca para o campo da sexualidade, o que até então não havia
sido mencionado. O fato também de a entrevistada juntar os adjetivos “suja” e “mal
falada” numa mesma formulação, faz com que o efeito de sentido deslize para uma
equivalência dos termos: a sujeira é do corpo e/ou da palavra? Talvez a
ambigüidade seja mesmo o efeito prevalecente. Por esse efeito, tudo que está fora
dos padrões morais impostos socialmente é visto com maus olhos, aliado mais do
que ao reprovável, ao esteticamente não aceito. E quem deseja estar fora dos
padrões de beleza? Instrumento bastante eficaz de controle, portanto.
Ainda uma informação importante quanto à produção desses enunciados.
As mulheres que os produzem têm, respectivamente, 15 e 51 anos, o que nos leva a
crer que esse posicionamento não diz respeito a uma idade mais avançada, ao
afetamento por FD´s machistas mais divulgadas entre mulheres mais velhas. Esse
discurso, portanto, ainda circula mesmo entre as mulheres mais jovens.
Outra entrevistada assim diz:
Enunciado 7: A mulher é privada de muitas coisas. Ela o
tem de jeito nenhum, apesar de toda a evolução, a mesma
liberdade do homem. O homem desde cedo tem privilégios:
pode sair de casa mais cedo, não tanta vigilância por
parte dos pais; pode se envolver com quantas mulheres
quiser ou puder (risos). Para a mulher tudo já é mais cheio de
regras, temos que manter um certo padrão moral (E.C.B, 34
anos).
No enunciado 7 podemos separar nitidamente as predicações atribuídas aos
homens e às mulheres:
Mulher: “é privada”; “tudo já é mais cheio de regras”; “manter um certo padrão
moral”;
Homem: “tem privilégios”; pode sair”; “não há tanta vigilância”, “pode se envolver..”.
192
A oposição das predicações para homem e para mulher produz um efeito
dicotômico de que há uma divisão nítida entre o comportamento de ambos. Há ainda
a intercalação de um discurso bastante divulgado sobre a “evolução da mulher.
Contudo, essa fala é negada de forma veemente quando a entrevistada insiste: “ela
não tem de jeito
nenhum
(..)
a mesma liberdade do homem
”.
Esse fragmento junta-
se àquele do enunciado 2: “tudo não pode”, o que denota a impossibilidade da
completude, sobretudo no que diz respeito à mulher. Vejamos ainda mais um
atributo dado ao homem: a liberdade, que é
dele
: “liberdade
do
homem”.
Uma outra entrevistada ainda afirma:
Enunciado 8:
A mulher na verdade pode fazer tudo o que
quiser, o problema são as conseqüências, nosso meio ainda
é muito conservador, a mulher é privada de muitas coisas
(C.S., 21 anos).
Nos enunciados acima (7 e 8), a palavra “privada” é recorrente e aparece sob
outras formas como o é permitido”. É interessante notar que a origem dessa
privação não é mencionada, como se fosse dada a priori. Na verdade, é exatamente
isso que ocorre: as condições para que esses discursos sejam veiculados,
pertençam ao eixo do dizível, são mesmo dadas anteriormente a qualquer fala e,
portanto, já estão arraigadas de tal forma na nossa memória discursiva que se
colocam de forma naturalizada. No “nosso meio” a “privação” aparece como algo no
âmbito social, mas esse social que priva é naturalizado e sedimentado no genérico:
“a mulher é privada de
muitas
coisas”.
Ao afirmar que “o nosso meio ainda é muito conservador”, a entrevistada se
filia a uma FD feminista, já que adjetiva essa posição a respeito do código de
conduta feminina ditada por uma FD machista como “conservadora”.
Diferentemente, no enunciado a seguir temos apensa uma fala oriunda de uma FD
machista:
Enunciado 9:
Tudo tem um limite...tem muitas loucas que
fazem, mas não é permitido e não é fácil.. Eu posso fazer o
193
que eu quiser, mas as conseqüências são mais graves
(M.M., 22 anos).
A construção desse enunciado e as “escolhas” lingüísticas feitas pela
entrevistada denotam um pertencimento a uma FD machista. Em primeiro lugar, a
questão dos limites: “tudo tem um limite” é dada sem nenhum complemento,
pautada, portanto, num pré-construído sobre os limites impostos para as mulheres.
Depois ainda a utilização da palavra “loucas” para designar as mulheres que
transgridem esses “limites” estabelecidos por uma lógica machista e assimilada
como prática feminina. Essas mulheres são relegadas a um grupo em separado, que
foge à normalidade, daí a designação. Ainda na seqüência aparece a falta de
predição em “tem muitas loucas que fazem”: “fazem” o quê? Isso é silenciado. O que
as denominadas “loucas” fazem não pode (ou não deve) ser nominado, pertence à
ordem do que não deve ser dito, do não simbolizável, mas que é sabido por todos,
inclusive pelas mulheres que, mesmo não verbalizando esses assuntos
explicitamente nas suas falas, o utilizam, através das lacunas.
Sendo assim, o que a mulher
pode
ou
não pode
fazer (e falar, sobretudo,
que falar é uma prática que nos constitui identitariamente) diz respeito a toda uma
construção social de conduta feminina legitimada pela história e pela ideologia e que
se mantém graças aos discursos que a materializam e regulamentam. Dessa forma,
podemos perceber a estreita relação entre história, ideologia e discurso como
unidades que se intercalam e não podem, por isso, ser consideradas isoladamente.
Atravessando todos esses aspectos, ainda a presença quase fantasmagórica do
inconsciente, instância estritamente ligada à ideologia e igualmente constitutiva do
discurso e do próprio sujeito. Daí a heterogeneidade de ambos.
Através dos enunciados construídos pelo verbo “poder” a mulher fala de
interditos ditados por uma formação ideológica machista. Por vezes ela reproduz
esses discursos e produz um efeito de naturalidade; outras vezes ela se coloca em
outra FI, dizendo-se submetida a essas regras de conduta feminina, mas não
concordando com elas. Ainda o lugar do equívoco nessas falas que se coloca
sob a forma das indeterminações, ambigüidades, etc. A presença do “Outro”
inconsciente parece se materializar nas falas, denotando um sujeito faltante,
incompleto.
194
4.2.2 “VOCÊ QUER SE CASAR?”
Um ponto que consideramos importante destacar na nossa análise diz
respeito ao casamento e à maternidade. Como pudemos observar no primeiro
capítulo, essas questões são desde muito tempo imputadas como constitutivas e
determinantes no papel da mulher na sociedade, segundo preceitos de uma
ideologia patriarcal de base religiosa que se manteve viva, mesmo que deslocada,
quando do surgimento de uma ideologia burguesa.
Paralelamente a isso, temos um discurso feminista que vem trazer à mulher a
opção (pelo menos imaginariamente) entre querer casar e ter filhos ou não, que
neste momento ela pode trabalhar e, portanto, assumir outras identidades e/ou
formas de sublimação, como diria a Psicanálise.
Entretanto, o que percebemos na fala das mulheres com as quais tivemos
contato é que a mulher ainda está bastante afetada por esse discurso de origem
patriarcal. É claro que agora as identidades possíveis para a mulher não são
somente a de esposa e mãe. Houve a assimilação de novos papéis, contudo esse
fato não fez com que a mulher abandonasse as identidades anteriores, mas sim
acrescentasse outras. Observemos esse tipo de funcionamento na fala das
entrevistadas diante da pergunta: “você quer se casar?”.
Enunciado 10:
Não me vejo cuidando de uma casa, mas
tenho umas pira de me vestir de noiva. (...) Não quero casar,
quero ter alguém, mas não quero depender de homem (...)
Minha mãe sempre diz que não posso me casar porque sou
muito bagunceira, não seria uma boa dona de casa (M.M., 22
anos)
No enunciado 10, o conceito de casamento está definido como cerimônia
(religiosa), ritual, e não a união estável de duas pessoas. Tem-se em vista um
casamento nos moldes tradicionais, o que pode ser confirmado pelo elemento
símbolo do vestido de noiva e ainda pela oposição trazida em “mas não quero
depender de homem”. O verbo “depender” é completado pelo pré-construído oriundo
de uma ideologia machista de origem burguesa, configurando-se como “depender
195
financeiramente”, fato esse constitutivo do casamento tradicional, conforme significa
a fala dessa mulher a respeito de casamento. Surge um lugar da falta instaurado
pelo verbo “depender” que se completa por “financeiramente”, convocando uma
memória do discurso machista nesse lugar vazio de significante.
Outro lugar considerado um vazio se na última seqüência do enunciado
10, quando aparece uma construção heterogênea pela forma do discurso relatado:
“minha mãe sempre diz..”, predicado da seguinte forma:
“que não posso me casar”;
“porque sou muito bagunceira”;
“não seria boa dona de casa
É um discurso indireto livre em que a ambigüidade de vozes e tomada de
posição. Não podemos determinar até onde vai a voz da mãe ou da entrevistada. A
mistura das vozes demonstra a presença de um discurso “outroque não pode ser
controlado, já que a heterogeneidade do discurso é constitutiva.
A voz da mãe ou da entrevistada aponta para predicações ideais para que
uma mulher seja uma boa esposa: é preciso que ela não seja “bagunceira”, mas sim
saiba dar conta dos deveres de uma boa dona de casa. Tudo isso remete a uma
ideologia machista originária na Idade Média, conforme descrevemos no primeiro
capítulo. Segundo essa ideologia à mulher está destinada a prática dos afazeres
domésticos, as prendas do lar, o que se constitui como característica elementar na
identidade feminina.
Se observarmos o enunciado 10 como um todo, verificamos a composição
heterogênea explícita do mesmo: ao enumerar as atribuições de uma “boa dona de
casa” (fala da mãe?) temos um discurso machista. em “não quero depender de
homem”, temos um discurso feminista. Como vemos, ambos os discursos, mesmo
que contraditórios, podem e constituem a fala da mulher: uma fala heterogênea.
O enunciado a seguir, traz a questão da educação formal como fator
importante na vida da mulher:
Enunciado 11:
Quero, mas não agora. Quero estudar
primeiro, me formar, para depois pensar em ter alguém (V.C,
19 anos).
196
A justificativa é composta de um discurso sobre a educação como via de
acesso a uma vida melhor e o casamento aqui é concebido como uma etapa
posterior ao término dos estudos. A ideologia aqui o é mais a da Idade Média,
mas da modernidade, quando a mulher tem direito aos bancos escolares mais
avançados (como a universidade). Nessas novas condições de produção, contudo,
ainda se mantém presente a importância e a necessidade do casamento na vida de
uma mulher. A questão do casamento ainda é algo do nível do
“evidente”/naturalizado pelo imaginário. Não necessariamente nesse momento se
coloca isso em questão, o que ocorre nessas novas condições de produção é um
deslocamento que se em “quando” o casamento deve ocorrer. Surgem novas
temporalidades, o que poderá ser observado no enunciado a seguir também:
Enunciado 12:
Quero casar, mas não tão cedo. (P.P.B., 15 anos).
O enunciado 12 reflete essa mesma ideologia e ainda está presentificando um
interdiscurso que afirma que até algum tempo atrás as mulheres deveriam se casar
cedo, do contrário seriam vergonhosamente tachadas de “solteiras” ou “solteironas”.
Outro enunciado continua trabalhando com a questão da temporalidade:
Enunciado 13:
Quero, mas quando encontrar o homem
certo. (M.S., 30 anos).
No funcionamento do enunciado 13, casar é algo importante, entretanto não é
algo desrelacionado de algumas condições. Essas condições introduzem uma
temporalidade. A mulher quer sim se casar, mas apenas
quando
encontrar o
homem certo”.
O casamento já não basta por si mesmo, como numa ideologia
machista originária da Idade Média, a mulher não quer mais casar com qualquer
pessoa. A utilização de “homem certo” está ancorada na paráfrase “homem errado”,
bastante difundida na fala feminina. Se há um “homem certo” para se casar, é
porque também “homem errado”. Isso denota também que a mulher tem direito à
escolha, o que demonstra a interpelação por outra ideologia, intermediária entre o
machismo e o feminismo. Contudo, a predicação ao homem “certo” não fica clara.
197
Quem seria esse homem certo? O sentido de “certo” repousaria no pré-construído
da sociedade cristã-ocidental-machista? Ainda um discurso bastante difundido
que faz frente a essa formulação: “homem é tudo igual”. Sendo assim, dialogam
discursos oponentes, contraditórios, instaurando o lugar da heterogeneidade.
O próximo enunciado trabalha com esse mesmo efeito do “homem certo”.
Entretanto, aparece um discurso contrário ao discurso romântico, pautado na prática
e nos conselhos maternos:
Enunciado 14: Sim, gostei muito de ser casada, mas tem
que ser com alguém que você se dê bem, amor só não basta
(R.M.S., 51 anos).
A frase “amor não basta”, enunciado do senso comum, atualiza uma voz
imemorial que se reproduz na fala dessa mulher como se nela fosse originado. É o
eco do senso comum, legitimado. Surge ainda no interdiscurso uma fala que se
ancora em uma formação discursiva capitalista, a qual afirma que, para se casar, é
preciso também ter dinheiro, segurança financeira.
Outro ponto interessante aparece no enunciado 14. Um deslocamento ocorre
quando se utiliza o significante “alguém”, ao invés de “homem”, como aparece em
outros enunciados. Essa “escolha” lingüística parece dar lugar ao equívoco. Se
observarmos os enunciados anteriores, quando se utiliza “homem”, esse significante
funciona na relação de casamento e dependência financeira. quando aparece
“alguém”, ele significa diferentemente. Abre espaço para outras pessoas estarem
nesse lugar, que não apenas um companheiro do sexo masculino. O mesmo
funcionamento de “alguém” também se manifesta no enunciado seguinte:
Enunciado 15:
Quero me casar e ter filhos. Essa o é exatamente uma
necessidade, mas acho importante ter alguém para se dividir a vida, as
coisas boas e ruins. E ser mãe é uma coisa maravilhosa, o quero me
privar disso (N.F.L., 27 anos).
198
As ocorrências de “alguém” nos enunciados 14 e 15 deslocam o discurso
machista que coloca apenas o homem como provedor. Tudo isso porque, nas novas
condições de produção da sociedade capitalista a mulher também trabalha, estuda e
há outras possibilidades de constituições familiares.
“Casar”, no enunciado 15, vem relacionado a “ter filhos”. Na segunda frase,
quando a entrevistada diz “essa não é exatamente uma necessidade”, refere-se ao
casamento como ritual, legitimado pela ideologia cristã ocidental. O conceito de
casamento, portanto, está atrelado aos moldes tradicionais, contudo um
deslocamento no que se refere ao desejo dessa mulher: ela quer “ter alguém pra
dividir a vida”, o que é algo necessário, mas não é propriamente “casamento”,
conforme o conceito por ela mencionado.
Na fala seguinte aparece a desilusão com o casamento, aqui conceituado
de outra forma, que o sujeito fala do lugar de alguém que passou pela
experiência e não foi bem sucedido.
Enunciado 16:
Sim, eu queria, mas se fosse hoje, não
casaria novamente. É muito difícil, não é o sonho que a gente
imagina quando é jovem e está apaixonada (T.V., 44 anos).
Se observarmos, as adjetivações utilizadas para “casamento” são ruins: “é
difícil”, “não é o sonho”. Nesses enunciados perpassam outros que vêm o
casamento como algo bom, sonho de qualquer mulher, o que é negado nesse
momento. A palavra “sonho” carrega uma ambigüidade de sentidos, que é dada pela
filiação a duas redes discursivas: uma positiva, que o sonho como “algo que se
deseja”; e outra negativa que o sonho como sinônimo de ilusão. No enunciado
analisado, a palavra “sonho” se investe desses dois sentidos, significando no deslize
entre um e outro.
Na próxima fala aparece um dado interessante a respeito do casamento: uma
mulher que afirma estar afetada pela ideologia da época e, por isso, por questões
contextuais, resolveu se casar.
Enunciado 17: Na verdade eu não sei exatamente se era
tanta vontade mesmo de casar. Acho que na época, no
199
contexto em que eu vivia, zona rural, não tínhamos muitas
opções, todas as moças se preparavam, eram educadas
para casar, e comigo não foi diferente (E.C.B., 34 anos).
A entrevistada que produziu o enunciado 17 o casamento como um
caminho inevitável, dadas as circunstâncias históricas que determinavam a forma
como as meninas deveriam ser educadas e o caminho que deveriam seguir.
Por fim, temos um exemplo diferente de concepção de casamento:
Enunciado 18:
Não sei, acho que quero, mas não agora.
Casamento é estar atado, e para se atar com alguém precisa
ser alguém que te compreenda, e que feche com o seu modo
de levar a vida. O meu é bem complicado, então não sei se
vou encontrar alguém. Mas não tenho medo de ficar sozinha
(C.S., 21 anos).
Aqui, o conceito de casamento muda, significa: “estar atado”, “atar com
alguém”, uma privação da liberdade. Aparece ainda o contrário de casamento: “ficar
sozinha”, o que produz o efeito de sentido de que não outra possibilidade para a
mulher. É importante ressaltar que aqui o conceito de casamento não é o mesmo de
alguns excertos anteriores. Casar, para essa entrevistada é viver junto com alguém,
não necessariamente um ritual, uma cerimônia religiosa ou civil.
O verbo que ela utiliza ainda para falar do relacionamento a dois é bastante
interessante: “fechar”, alguém que “feche” com o seu modo de levar a vida. Parece
surgir um equívoco aqui, que podemos perceber através da “escolha lingüística” da
entrevistada. No enunciado 18 temos:
Casamento= estar atado
E, a condição para “atar-se” com alguém é:
“ser alguém que te compreenda” e
“que ´feche´com seu modo de levar a vida”.
200
As duas últimas frases mencionadas acima são complementares. São
paráfrases “alguém que te compreenda” e “alguém que feche com seu modo de
levar a vida”.
O final da fala da entrevistada a respeito de casamento -“mas não tenho
medo de ficar sozinha”- está ancorado num enunciado anterior, que circula pelo
interdiscurso, enunciado esse que afirma que as mulheres têm medo de ficar
sozinha, daí a marca de negação, articulada com o operador argumentativo “mas”,
que inverte a direção argumentativa no processo de produção de sentidos sobre o
“ficar sozinha”. Vejamos como funciona o discurso e os enunciados que dialogam
nessa produção de sentido:
E1: Não sei se vou encontrar alguém
E2: Isso é ruim, tenho que casar, tenho medo de ficar só
E3: (mas) não tenho medo
E2 decorre de E1 e é o interdiscurso que circula de uma posição ocidental
cristã, originário de um discurso religioso. E3 é o enunciado trazido pela
entrevistada, enunciado que nega os anteriores, o que é possível discursivamente
pelas condições de produção e pela existência dos discursos anteriores (E1 e E2); e
é possível lingüisticamente pela inversão argumentativa interposta pelo “mas”.
O “mas” é um operador bastante interessante do ponto de vista discursivo.
Ele marca o lugar da heterogeneidade, é o indício do “outro” no texto, já que
materializa a presença de mais de uma voz, mais de um discurso que dialoga na
construção do enunciado. Na maioria das respostas à questão do casamento
aparece o “mas” (enunciados 10,11, 12, 13, 14, 15, 16 e 18). Isso ocorre porque
essas respostas situam-se entre uma posição tradicional (de origem machista) a
respeito do casamento e novas possibilidades de concepção de casamento que
surgem na contemporaneidade. Dialogam vozes machistas, feministas e ainda uma
outra voz que situa-se entre os dois pólos, produzindo um discurso outro da mulher
contemporânea, que vem trabalhando com as duas FD´s.
Como pudemos observar pelas falas das mulheres em relação ao casamento,
temos muitos conceitos, dependendo do “lugar” de onde fala essa mulher. Ele
aparece como instituição religiosa, social, união com um cônjuge do sexo oposto,
“atamento”, algo “eterno” ou não, enfim, várias são as maneiras de se representar o
201
casamento. Da mesma forma, as adjetivações variam entre algo bom, ruim,
necessário, inevitável, obrigação, caminho para a felicidade, caminho para o ficar
sozinha, etc.
Casamento parece ser algo do nível do “evidente”. Entretanto alguns
deslocamentos são possíveis e aparecem na fala da mulher. Ela não reproduz
somente um discurso machista-religioso- cristão. Apesar dele estar muito presente
nas falas, surge ainda um discurso feminista e um discurso feminino da mulher
contemporânea, o que possibilita outros efeitos de sentido dadas as novas
configurações nos relacionamentos e dos papéis de homens e mulheres.
4.2.3
VOCÊ QUER SER MÃE?”
O outro questionamento que fizemos foi a respeito da
maternidade.
Vejamos
os enunciados que surgiram:
Enunciado 19:
Sim, quero ter filhos, mesmo que não case (
P.P.B., 15 anos);
Enunciado 20:
Não vejo problema em ficar solteira, mas
quero ter um filho, meu ou adotivo, não importa (M.M., 22
anos);
Enunciado 21:
Quero ter um filho sim, mas gostaria que
fosse tudo direitinho, depois que estivesse casada e bem
estabelecida financeiramente (V.C., 19 anos);
Enunciado 22:
Claro! Meus filhos são a melhor coisa que eu
tenho, quando encontrar alguém legal, quero ter outro filho,
os meus filhos são a única coisa boa que sobrou do meu
casamento ( M.S., 30 anos);
202
Enunciado 23:
Sim, ser mãe é muito bom, é por causa dos
meus filhos que hoje eu não estou sozinha no mundo
(R.M.S., 51 anos);
Enunciado 24:
Sempre quis e não me arrependo. Adoro
meus filhos (T.V., 44 anos);
Enunciado 25:
Sim, ser mãe era algo que eu sempre quis.
Mas agora já chega, já tenho dois filhos e é o suficiente
(E.C.B., 34 anos);
Todos os enunciados produzidos pelas mulheres entrevistadas revelam o
desejo de ser mãe. Uma coisa interessante é que em nenhum deles apareceu o
discurso religioso. Apenas na fala de uma senhora, que analisaremos
separadamente no item 4.2.5. Materializa-se nas falas um desejo de ser mãe não
justificado. Todas querem ter filhos, não explicam os motivos, como se fosse algo da
“essência” feminina.
Os enunciados 19 e 20 apresentam um discurso diferente do 21. Neles, a
maternidade não está necessariamente ligada ao casamento, aliás é um desejo que
se sobrepõe a esse último. No enunciado 20, o conceito de ser mãe não está restrito
a “gerar um filho”, que a entrevistada afirma querer ter um filho, seja ele seu ou
adotivo. o enunciado 21 revela que algumas mulheres ainda esperam casar para
depois terem filhos, discurso originário de uma FD machista:
A maternidade em 21 depende de um casamento e também de
independência financeira. Essas seriam as condições “ideais” para se ter um filho,
sentido produzido por uma FD cristã e também uma FD capitalista. Essas
“condições”, que na verdade são externas, passam a compor o “desejo” feminino, o
que se denota da utilização do verbo “gostaria”. O fato de o verbo estar no futuro do
pretérito pode configurar um equívoco. Será esse um desejo que não vem mais se
realizando na contemporaneidade?
Contraditoriamente a esse discurso originário de uma FD machista, o discurso
da mulher liberal, que quer ter uma profissão, bem aos moldes do discurso feminista
aparece no próximo enunciado sobre a maternidade que, entretanto, não se compõe
203
apenas de um discurso feminista, considerando que o discurso
feminino
de querer
ser mãe ainda é preponderante.
Enunciado 26:
Quero, mas esse é um plano para um futuro
ainda distante, penso em ter um filho sozinha, talvez, daqui a
alguns anos, quando eu tiver uma profissão definida e possa
cuidar bem dele (C.S., 21 anos).
Vemos aqui a maternidade totalmente desvinculada de casamento, entretanto
a utilização de “talvez” em: penso em ter um filho sozinha, talvez, daqui a alguns
anos” deixa a vida sobre ter um filho sozinha: o “talvez” refere-se a ter um filho
sozinha ou a “daqui alguns anos”? Parece que as duas coisas. O que margem,
mais uma vez, a um equívoco na fala dessa mulher.
Considerando os pressupostos da AD em relação à heterogeneidade do
sujeito e sua constituição pela falta, o que esses equívocos nos dizem acerca do “ser
mulher” na contemporaneidade? A dúvida, a ambigüidade, a transição entre
discursos contraditórios parecem constituir essa (nova?) mulher. A fixidez das
identificações possíveis para uma mulher parece se deslocar, o que se evidencia
pelos equívocos e faltas que configuram o discurso feminino.
Bem, depois da análise desses enunciados sobre a maternidade e o
casamento, podemos dizer que as formas são diversas, mas a maioria das mulheres
afirma querer se casar e foi unânime a opção por ter filhos.
A Psicanálise fala da maternidade como a forma mais clara de reaver o falo
que se descobriu perdido durante a passagem pelo Complexo de Édipo. É na
maternidade que a mulher, enfim, tem acesso ao falo, presentificado na figura do
filho, daí sua importância na vida de uma mulher. “Do édipo a mulher herdará, na
melhor das hipóteses, a feminilidade e a promessa de receber (de volta?) o falo
paterno na forma da maternidade(KEHL, 1996: 45). O casamento é, também, uma
forma de possuir o falo (através de um homem) do qual se abriu mão ao saber
impossível a relação com o pai.
Apesar de heterogêneos os discursos aqui apresentados, tendo em vista a
presença de discursos “outros” que os constituem, acreditamos que essas falas
204
materializam o que chamamos anteriormente de “efeito-mulher”. Dizemos isso
porque nesses enunciados falam vozes oriundas de FD´s bastantes arraigadas
sobre o que é ser mulher. Temos nos excertos apresentados materializações do
discurso machista, do discurso feminista, dos dois intercalados, entretanto todos
dizem respeito a uma imagem bastante delineada sobre o que é ser mulher que
se refaz na fala dessas mulheres. Entretanto, percebemos que dentro mesmo
desses enunciados e em outros que apresentaremos na seqüência habita uma fala
que falha em muitos momentos, uma fala que denuncia que o “efeito” não ocorre
perfeitamente, ou seja, o assujeitamento não se completamente sem falhas. É o
ponto que retornaremos na seqüência:
4.2.4 O QUE FALHA NESSE TAL DISCURSO FEMININO
Como vimos nos dois itens anteriores, mesmo em temas como a maternidade
e o casamento, bastante sedimentados como pertencentes ao universo feminino,
algo falha na reprodução das ideologias que regem os discursos sobre tais
temáticas. Neste tópico pretendemos discutir especificamente o que falha nesse
discurso produzindo o equívoco que denuncia a falta constitutiva do sujeito. Eles são
a marca de um desejo e a presença do inconsciente, que não deixa de comparecer,
a despeito da vontade do sujeito.
É na demanda endereçada ao Outro que circula o desejo,
escamoteado, escondido, disfarçado na enunciação e nos intervalos
do enunciado, nas pausas, nas exclamações e reticências; em
suma, é na modalização da fala do sujeito que cabe avalizar a
presença do desejo e a verdade que ele oculta (DIAS, 2006: 5).
A afirmação de Dias nos permite refletir sobre o que mencionamos no início
deste capítulo (item 4.1) acerca das formas de investida no discurso feminino. É no
decorrer da fala de um sujeito interpelado ideologicamente que percebemos
algumas falhas, marcas lingüísticas que nos permitem visualizar uma falta, oriunda
de um sujeito desejante que tem como dispositivo apenas uma língua que não
conta de um Real que está latente.
diz a Psicanálise sobre a constituição do significante que ele nada mais é
do que algo que remete a outro significante, portanto, algo se perde no entremeio
desses dois significantes: “entre dois significantes um furo” (MELMAN, 2005: 21),
205
que revela a presença do “Outro”. São esses furos, esses momentos de lapsos que
pretendemos observar como segundo ponto da nossa análise, entretanto
observaremos esses acontecimentos segundo a noção discursiva de equívoco e de
silêncio. Como já vimos anteriormente, “equívoco” é aquilo que falha no âmbito
discursivo e o “silêncio” é visto por Orlandi (2002) como uma forma de significar: não
dizer também é produzir sentido.
Começamos com um enunciado que se repetiu por duas vezes, o qual traz
em sua formulação um furo visível da ordem do não dito:
Enunciado 27:
Eu gosto! Ser mulher tem muitas vantagens
(não enumerou quais). Mas se eu pudesse nascer de novo,
acho que preferia ser homem (M.S., 30 anos);
Enunciado 28:
Gosto. Ser mulher é muito bom... (não soube
dizer por quê). Há..sei lá..(T.V., 44 anos).
Enunciado 29:
Eu gosto. Não sei porque, mas é bom ser
mulher. (R.M.S., 51 anos).
A primeira entrevistada (enunciado 27) responde (pelo que nos lembramos da
entrevista) enfaticamente que gosta de ser mulher. A falta instaura-se quando ela é
incitada a falar sobre as tais vantagens decorrentes do fato de ser mulher. E o
encaminhamento do enunciado 27 soa estranhamente quando a entrevistada afirma
que se pudesse nascer outra vez preferiria ser homem. No enunciado 28 ocorre a
mesma coisa. A afirmação sobre gostar de ser mulher é seguida também por um
silêncio a respeito dos motivos (“é muito bom” por quê? Quais as vantagens? Isso
não é formulado). No enunciado 29 o “não saber” o(s) motivo(s) está formulado: “não
sei porque”, mesmo assim a falta está presente constituindo o dizer e o sujeito e
funcionando contraditoriamente à afirmação “é bom ser mulher”.
O silêncio é constitutivo do dizer, conforme nos ensinou Orlandi (2002). A
partir da pista deixada por ele, podemos nos remeter à estrutura da mulher segundo
a teoria psicanalítica: ela passa pelo Complexo de Édipo, abandona seu amor
edípico sem ter um motivo palpável, a não ser o fato de obter sua feminilidade e o
206
amor de um homem. “Seu falo é a feminilidade mesma, e podemos dizer que na
rivalidade edípica ela não tem nada a perder a não ser...a feminilidade. Nada a
perder a não ser tudo o que faz dela uma mulher” (KEHL, 1996: 45). Então se ela
“escolheu” esse caminho, é porque crê de alguma forma que é bom ser mulher,
entretanto falta a ela uma forma de simbolizar essas características que tornariam o
fato de “ser mulher” agradável. Isso ocorre por estarmos sobre a égide de uma
ordem fálica, onde o que é valorizado é justamente o que pertence ao masculino,
pela identificação do falo, símbolo do poder, com o pênis.
Assim, não está na ordem do dizível a continuação do enunciado que foi dito.
Contudo, a afirmação de que é bom ser mulher revela uma preferência pela
feminilidade. A mulher não mente quando diz que gosta de ser mulher. O prazer está
presente, mas denuncia uma falta, uma impossibilidade de simbolização pela
linguagem, já que essa é decorrente da inscrição da mulher numa lógica fálica.
A maioria das respostas para o questionamento “você gosta de ser mulher?”
foi afirmativa, como é o caso das suas respostas apresentadas acima. Entretanto,
apesar de afirmativas, essas respostas são produzidas por enunciados ou faltantes,
ou ambíguos, como é o caso do seguinte:
Enunciado 30:
Não gosto, quer dizer, às vezes sim às vezes
não (V.C., 19 anos).
A primeira resposta do enunciado 30 é a negação à pergunta sobre gostar de
ser mulher, que vem seguida de uma retificação: “quer dizer”, e de um enunciado
ambíguo: “às vezes sim às vezes não”. A incerteza da resposta parte de uma
incerteza da mulher em relação mesmo a sua condição. Se a feminilidade às vezes
parece algo positivo, em muitos momentos também parece um destino difícil pela
determinação de uma formação ideológica patriarcal.
Alguns enunciados trazem uma característica bastante atribuída à mulher: o
fato dela ser sentimental, mais ligada ao aspecto emocional, o que é uma construção
balizada no discurso da essência feminina.
Enunciado 31: Gosto, mulher é mais sentimental e também
mais respeitada (P.P.B., 15 anos).
207
Algo se estilhaça no enunciado acima. As características atribuídas à mulher
parecem estar numa disposição de complementariedade, mas não há nenhuma
explicação razoável para isso: “mulher é mais sentimental e também mais
respeitada”. Ela é respeitada porque é sentimental? Ou são duas características
distintas? Que mulher é respeitada? Apenas aquela que é sentimental? Essas
questões parecem circular, mas ficam no ar, em decorrência da fala dessa mulher,
abrindo espaço para um equívoco que é constitutivo da mulher e da sua fala que se
apresenta como lacunar. Também podemos pensar que as características
“sentimental” e “respeitada”, unidas pelo operador “e também”, estão colocadas
cumulativamente. uma relação lógica que aparece como efeito de sentido: O
significante “mulher” é predicado através de um modo de subjetivação do discurso
universal: toda mulher é “sentimental” e “mais respeitada”, portanto, se você é
mulher será “sentimental e também mais respeitada”.
Apenas uma das entrevistadas disse o gostar de ser mulher. Entretanto,
não deu prosseguimento ao assunto, apenas afirmou que preferiria ser homem.
Enunciado 32:
Não, preferia ser homem (C.S., 21 anos).
No enunciado 32 parece assentar-se um interdiscurso bastante divulgado
após o advento do feminismo, que revela as vantagens de ser homem e, sobretudo,
as desvantagens da mulher em relação ao homem. É pela presença desse
interdiscurso que um enunciado como esse faz sentido e basta a si mesmo,
dispensando maiores explicações, que um pré-construído
208
se roubar a feminilidade: se a feminilidade é máscara sobre um
vazio, todo atributo fálico virá sempre incrementar essa função.
para o homem toda feminização é sentida como perda- ou como
antiga ameaça que afinal se cumpre (KEHL, 1996: 26).
Um discurso interessante para se pensar os equívocos decorrentes de uma
interpelação da mulher pela ideologia dominante se através da duplicidade dos
discursos presentes nos enunciados sobre a suposta emancipação da mulher nos
dias atuais que analisamos em 4.2.1. Isso pode ser percebido no nível mesmo da
formulação: ao dizer que a mulher pode fazer quase tudo” (enunciado 3), uma falta
é instaurada, afinal ela pode fazer “quase”, mas não tudo, sem falar no silenciamento
sobre o que efetivamente ela não pode fazer.
No enunciado 4- Não sei, acho que pode fazer tudo. É claro que não pode
ser como os homens, mas hoje em dia a mulher tem muito mais liberdade do que
até um tempo atrás”- podemos observar a materialidade desses discursos
contraditórios através das “escolhas” lingüísticas feitas, como na oposição: é claro
e “mas”. “É claro” insere algo dado como verdade inquestionável: o fato da mulher
não poder ter a mesma liberdade que o homem; contraditoriamente, o “mas”, em seu
papel adversativo, faz uma ressalva, afirmando a “liberdade” atual conquistada pelas
mulheres.
Parece um paradoxo, mas o nosso dizer se constitui pela falta. É a não
completude característica da linguagem e característica também do sujeito, que, por
sua vez, ao utilizar a linguagem e “falhar” constantemente, demonstra essa falta
constitutiva. A interpelação do sujeito pela ideologia e o atravessamento pelo
inconsciente o tornam dividido, o que se materializa na sua fala. É isso que pudemos
observar nos exemplos que analisamos neste tópico. Entretanto, é importante
ressaltar, que a fala da mulher como um todo é composta através dessa constituição
faltante, ou seja, o discurso feminino é, constitutivamente, composto de muitos
“outros” discursos.
4.2.5 “UM CASO EXEMPLAR”:
No corpus que fomos constituindo para este trabalho, surge uma entrevista
que consideramos merecer uma análise pormenorizada.
209
Trata-se de uma entrevista realizada com uma senhora de 83 anos
62
, que
materializa em sua fala uma contradição bastante visível, que apresenta discursos
oriundos de FD´s divergentes. A senhora entrevistada viveu efetivamente dois
períodos bastante distintos no que diz respeito ao trato com a mulher em nossa
sociedade, fato esse extremamente relevante na constituição do seu discurso que,
sendo veiculado num momento de transição, em que as práticas discursivas
femininas apontam para uma “libertação” da mulher, atualiza-se, mas ainda mantém
muito firme um discurso de tradição patriarcal que entra em conflito com o outro
discurso (de base feminista).
Sendo assim, acreditamos que os enunciados analisados servem como
exemplo extremo da contradição das práticas discursivas que compõem a fala da
mulher atual e que a constituem de forma heterogênea e “faltosa”. Procuraremos
demonstrar na análise que se segue de alguns fragmentos da entrevista as práticas
discursivas opostas que constituem a fala dessa mulher. Consideramos que essa
fala não é apenas um acontecimento individual, mas exemplo das práticas
discursivas que circulam a respeito da mulher e que, por isso, pode ser estendida ao
discurso feminino da contemporaneidade como um todo.
Sabemos que a nossa memória discursiva é composta por discursos que
circulam desde muito tempo e nos vêm como herança, como um saber discursivo
herdado: “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma
do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada
de palavra” (ORLANDI, 2003: 31). Ocorre que essa memória compõe-se de muitos
discursos que se contrapõem e se colocam de forma contraditória, que as
formações discursivas (FD´s) perpassam uma a outra. “relações entre
enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem inteiramente
diferente” (FOUCAULT, 2004: 32), portanto os enunciados que podem ser reunidos
em uma mesma FD estão sempre “dialogando” com outros, pois não podemos
pensar as FD´s como “blocos homogêneos funcionando automaticamente. Elas são
constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas mesmas e suas fronteiras são
fluidas, configurando-se e reconfigurando-se continuamente em suas relações”
(ORLANDI, 2003: 44).
62
Entrevista gravada e transcrita (transcrição em anexo).
210
Dessa maneira, o discurso feminino se constitui de maneira heterogênea e,
podemos dizer, muitas vezes de maneira contraditória, dada a sua constituição
histórica, em que se digladiam discursos como o patriarcal e o feminista. Isso se
em razão das tantas reconfigurações pela qual a mulher vem passando, “das
contradições que sentimos entre as diferentes maneiras em que fomos
representadas até para nós mesmas, das injustiças que temos há tanto tempo
suportado em nossas situações” (Newton, J. apud SCOTT, 1992: 91-92).
Outro aspecto interessante é a questão da “falta”, do “equívoco” que percorre
todo o discurso e a constituição do próprio sujeito. Quando pensamos no discurso de
uma senhora de 83 anos, provavelmente acreditemos que se trata de um discurso
constituído de práticas discursivas oriundas de uma ideologia de base patriarcal,
tendo em vista pressupor seu assujeitamento a essa FD nas condições sócio-
históricas dadas. Entretanto, ao observarmos sua fala, percebemos que esse
assujeitamento não se sem falhas. Em sua fala perpassam enunciados
divergentes em relação a um discurso de base patriarcal ou machista.
Por outro lado, poderíamos pensar que o discurso de uma mulher que vive no
século XXI (caso da entrevistada), ano de 2006, se constitua a partir de falas
recortadas da memória de um discurso feminino, com base num discurso feminista
talvez, o que também não ocorre totalmente. Assim, o que nos parece é que a fala
dessa mulher não está presa a nenhuma única constituição, mas é heterogênea,
faltosa, assim como o próprio sujeito, que é interpelado, mas sempre resiste de
alguma forma.
A teoria psicanalítica nos substrato, sobretudo, ao tratar da constituição do
sujeito “para discutir a complexidade e a instabilidade de quaisquer identificações de
sujeito. A masculinidade e a feminilidade o encaradas como posições de sujeito,
não necessariamente restritas a machos ou fêmeas biológicos” (SCOTT, 1992: 89).
Entretanto não discutiremos esse aspecto, como afirmamos em outro momento,
mas tão somente nos remontaremos à psicanálise para pensar o “assujeitamento” e
ainda considerar a influência de um “outro”, que pode a nossa memória discursiva,
ou ainda um “Outro inconsciente, condição necessária para toda simbolização e,
portanto, para toda a utilização da linguagem.
A entrevistada passou efetivamente por duas fases distintas no que se refere
ao trato com a mulher na sociedade, o que vem marcado em sua fala:
211
Enunciado 33:
Você sabe, homem pra mim, eu acho que
agora eles são bem mais diferentes do que no tempo que
eu casei assim, né?
63
A diferença de que a senhora trata é dividida, conforme sua fala, entre o
tempo em que ela se casou e o tempo atual, e toma como ponto de referência o
homem: o efeito de sentido que se constrói é de que foi o homem que mudou e, por
isso, as condições para a mulher também. dois tempos a partir dos quais ela
pauta sua fala: o “agora” e o tempo em que se casou. De qualquer forma,
materializa-se nessa fala o fato de que a entrevistada passou efetivamente em sua
vida por períodos bastante diferenciados no que diz respeito à posição da mulher e
do homem na sociedade.
Separamos em seguida enunciados recortados da entrevista em três sessões:
o discurso em que aparece predominantemente uma FD feminista, depois a
machista e, por último, enunciados em que ambas as FD´s estão em de
igualdade, configurando (talvez?) uma NOVA FD. Esses discursos (machista e
feminista) o aparecem reproduzidos exatamente da mesma forma na fala dessa
mulher, mas retornam como simulacro, uma vez que representam outros
acontecimentos discursivos.
Faz-se necessário esclarecer a diferença que estabelecemos nesta análise
entre discurso feminino e discurso feminista: tomamos por discurso feminino todo
discurso que se origina de uma posição discursiva feminina, os discursos
logicamente estabilizados no imaginário social ocidental como produzidos por
mulheres. Esses discursos, não necessariamente veiculado por mulheres empíricas,
do sexo feminino, mas produzidos numa posição discursiva feminina, funcionam de
tal forma que conduzem à formação de uma prática discursiva reconhecida como
feminina, portando conteúdos como: maternidade, casamento, beleza,
relacionamentos etc., discursos considerados como típicos femininos. quando
falamos em discurso feminista, estamos nos remontando a discursos que se
originam ou reproduzem o discurso feminista clássico, do movimento feminista,
tomado numa acepção mais radical.
63
Todo o texto apresentado em itálico são recortes da entrevista analisada. A transcrição da
entrevista completa encontra-se anexada no final do texto.
212
4.2.5.1 UM DISCURSO FEMINISTA?
O movimento feminista é um marco na mudança de paradigmas da
representação feminina. Com a máxima da igualdade, “o feminismo assumiu e criou
uma identidade coletiva de mulheres, indivíduos do sexo feminino com um interesse
compartilhado no fim da subordinação, da invisibilidade e da impotência” (SCOTT,
1992: 67-68). Depois de algum tempo, as denominadas como “feministas radicais”
foram aquelas que passaram a divulgar um discurso de superioridade feminina e
tomada de lugar do homem, em resposta aos anos de subordinação. É claro que
hoje em dia, sobretudo na fala de uma mulher que não está e nem esteve engajada
no movimento feminista, esse discurso chamado feminista retorna de formas
diferentes. Todavia, o movimento feminista “não desapareceu, seja como uma
presença na academia ou na sociedade em geral, ainda que os termos de sua
organização e de sua existência tenham mudado” (idem, ibidem: 65).
Resquícios de um discurso “feminista”, portanto, podem ser verificados na fala
da nossa entrevistada em momentos como o seguinte, em que se reproduz (apesar
de haver um deslocamento que explicitaremos na seqüência) um discurso de
sobreposição da mulher em relação ao homem:
Enunciado 34:
- Negativo? Pois... na minha opinião acho
que não, acho que não tem nada negativo porque a gente
que faz tudo né, a gente pensa bem, faz bem, não pode
deixar pra trás essa missão. Ser mulher é coisa louca de
boa!
No enunciado seguinte ainda aparece uma demonstração de orgulho de ser
mulher, inconcebível em qualquer discurso de base patriarcal, em que a mulher fica
sempre em segundo plano, relegada à invisibilidade:
Enunciado 35: Gosto bastante, ser mulher é tudo na vida,
sabe? Na minha opinião é o esteio da casa, assim, é mulher.
A questão que aparece nos enunciados 34 e 35 é que um deslocamento
em relação a uma FD machista no que diz respeito ao modo de predicar a mulher:
“faz tudo”, “missão”, “esteio da casa”. Tudo isso é predicado positivamente: “Ser
213
mulher e coisa louca de
boa
”, “ser mulher é
tudo na vida
”, No discurso machista a
mulher deveria fazer tudo: educar filhos, cuidar da casa, etc., fazer tudo em relação
ao espaço familiar/doméstico/da intimidade, de modo submisso, sem reivindicar
direitos iguais. Dessa forma, pelo efeito ideológico, isso parecia “natural”, o “tudo
assim significado era o universo feminino.
Ao mesmo tempo que esse discurso apresentado pela entrevistada se
constitui pelo discurso machista, portanto, ele faz frente, “rearranja-se”, atualiza-se
em relação ao discurso feminista (que predica negativamente as atividades do
ambiente doméstico). Assim teríamos:
- Discurso feminino constituído na relação com discurso machista: sem predicação
(algo natural, da ordem do dever)
“é tudo na vida”
“a gente faz tudo”
“essa missão “
Esses enunciados, dentro de uma ideologia machista apontariam para um
efeito de normalidade: o lugar da mulher é esse mesmo. Tudo” é igual:
missão/casa, que é igual: atividade doméstica, que é igual: espaço privado.
o discurso feminino constituído na relação com o discurso feminista
“radical“ traria uma predicação negativa: isso é ruim, ”tudo” = esteio da casa = lugar
doméstico é visto como algo menor, desvalorizado, que deve ser suprimido.
Entretanto, tal como se apresenta o discurso feminino, temos uma formulação
em relação a um discurso feminista que possibilita uma predicação positiva:
- “gosto
bastante”
- “coisa louca de
boa”
O lugar doméstico é considerado algo importante, bom, a ser preservado.
Percebe-se, então, nesse enunciado, um deslocamento em relação ao discurso
machista, e também um deslocamento em relação ao discurso feminista clássico.
Ainda é relevante descrever que esse funcionamento se realiza sob o duplo
efeito: o do pré-construido e o de sustentação, condição da presença do
interdiscurso e, portanto, de sua constituição heterogênea. O “tudo” trabalha, na
primeira .seqüência, sob o efeito do pré-construido machista- faz tudo o quê? Faz
bem o quê?- considerando como algo já dado e do conhecimento de todos as
214
atribuições designadas à mulher. Em “tudo na vida”, dessa mesma perspectiva, a
falta do significante completa-se no pré-construído como aquilo relativo ao campo
doméstico, mas também pode ser o lugar de possibilidade do deslocamento. No
segundo enunciado, essa interpretação é preenchida/saturada: “esteio da casa”,
reescrevendo esse pré-construído no nível da formulação.
Se partimos de uma FD feminista, entretanto, no enunciado 35 alguma coisa
falha, pois se observarmos a segunda parte destacada do enunciado, a mulher é o
“esteio”, entretanto é o “esteio
da casa
, espaço reservado à mulher dentro de uma
ideologia patriarcal e não feminista!
Cremos que esses enunciados estejam, portanto, na tensão entre os
discursos feminista e machista, constituindo-se como um discurso feminino afetado
por um discurso feminista, mas que se constitui por um deslocamento, pelo menos
no que diz respeito ao discurso feminista clássico.
Numa outra questão, quando perguntamos se a mulher tem mais liberdade, a
entrevistada afirma que a mulher tem mais “apoio”, ou seja, não necessariamente
liberdade. Reconhece que o tratamento entre homens e mulheres mudou, afinal
agora “cada qual cuida de si e pronto”, o que reflete uma postura feminista de não
depender e nem dar satisfação ao homem.
Enunciado
36
: Pesquisadora: A senhora acha que a mulher
tem mais liberdade com isso?
- Sabe ,eu acho que a mulher tem mais apoio né, porque
assim antigamente eles eram muito como é que se diz, muito
rigidamente, a vida entre um e outro né. Eles eram assim,
um observava o outro, agora não, eles tem uma vida, cada
qual cuida de si e pronto né e também, é bem bom isso.
Há nessa fala um deslocamento visível em relação ao papel do homem
também. Ela um lugar positivo para ele nessa nova conjuntura temporal.
Vejamos:
- “Antigamente”:
- “muito rigidamente’
- “um observava o outro”
215
Temos aqui nesse tempo “antigamente” um efeito de que isso não era bom
para o homem também, afinal a liberdade de ambos estava cerceada. No segundo
momento “agora”, uma mudança ocorre:
- “eles têm uma vida
Entende-se o complemento dessa “vida” como vida íntima, espaço privado em
relação ao espaço público, e relação ao espaço do trabalho, uma vida em que “cada
um cuida de si”, o que é predicado positivamente: “bem bom”, o que significa que a
mudança é positiva tanto para a mulher quanto para o homem.
Também é interessante que ela não fala “casal”: utiliza o pronome “eles”,
tanto para o passado (eles-“vida entre
um
e
outro
”), quanto para o presente (eles-
cada qual cuida de si), o que produz um efeito, da perspectiva da fala dessa
mulher,de que em nenhum dos tempos, eles se constituem como “casal”.
Entendemos que esses enunciados (34 a 36) trazem algo do discurso de
base feminista, mesmo não tendo a força do movimento feminista em si, sobretudo
por considerarmos quem é o sujeito locutor, uma senhora de 83 anos, da qual se
poderia esperar apenas um discurso de base machista.
4.2.5.2 UM LUGAR PARA UM DISCURSO MACHISTA NA FALA DE UMA
MULHER DO SÉCULO XXI
O discurso machista perpassa toda a fala da entrevistada, em muitos
momentos de forma velada, em outros de forma explícita. Entendemos que isso
ocorre em função de uma dominação muito forte e ainda presente na vida da mulher.
Mesmo que não tenhamos vivido uma situação real de submissão em relação ao
homem, os discursos sobre essas práticas ainda nos constituem e determinam o que
chamamos de discurso feminino. A própria mulher, mesmo sem ter consciência
disso, reproduz enunciados machistas, oriundos de uma ideologia patriarcal que por
muito tempo dominou as práticas sociais e determinou as diferenças entre os
gêneros.
Um primeiro ponto que aparece na entrevista é o fato de que a mulher deve
estar sempre satisfeita, “feliz”, trabalhando. Não nenhuma justificativa para tal
satisfação e felicidade, parece ser simplesmente seu dever. O homem deve
encontrar a mulher sorridente em casa, afinal ela não tem do que reclamar:
216
Enunciado 37:
E pra isso a gente está sempre feliz,
satisfeita, trabalhando né? Querendo trabalhar, e quem
trabalha melhor ainda né, porque bastante valor, cuida
dos afazeres, cuida dos filhos, cuida do trabalho, a vida
assim, será mais interessante.
Há, contudo, um deslocamento em relação a uma ideologia patriarcal, quando
a entrevistada fala da questão do trabalho: “e quem trabalha melhor ainda né?”.
Nesse discurso materializa-se a possibilidade da mulher trabalhar fora de casa, o
que se torna visível (mesmo que não explícito na sua fala) a partir de um
interdiscurso da atualidade baseado na prática da mulher atual trabalhar fora de
casa. Esse discurso abre uma outra possibilidade de interpretação em que o
trabalho pode significar duplamente: como trabalho fora de casa ou a consideração
das atividades domésticas como “trabalho”. Constrói-se um espaço de ambigüidade
para o significante “trabalho”, que pode ser completado tanto pela FD patriarcal,
machista, no sentido de “trabalhar fora de casa”, quanto pode incorporar “atividades
domésticas” (cuida dos afazeres, filhos) como trabalho com remuneração, lugar do
homem, portanto. A repetição da forma lingüística “trabalho”: “trabalhando”
“trabalhar”, “trabalha “trabalho”, respectivamente enfatizam as múltiplas utilizações
e efeitos de sentido. Essa hipótese dos afazeres domésticos do campo privado
serem vistos como trabalho, se for correta, configuraria um deslocamento em
relação a um discurso machista de ideologia patriarcal. É interessante, ainda, que
quando ela afirma “ bastante valor” há um lugar vazio de interpretação a ser
preenchido no interdiscurso o sujeito- quem dá bastante valor? O homem? E então
as expressões “valor”, “interessante”, “trabalha” designariam a posição da mulher
que já reconhece a importância daquilo que faz.
Ainda é importante salientar, em relação a esses enunciados, a recorrência
de expressões de intensidade, que significam o trabalho fora de casa como
hierarquicamente superior (o que revelaria uma posição machista), o que é
materializado lingüisticamente através das expressões: “melhor”, “bastante”, “mais”.
O que observamos, é que a tentativa na fala da mulher de escapar do discurso
machista, mas ao mesmo tempo ela se constitui determinada por ele. Assim, mesmo
217
Na seqüência dos discursos que reproduzem um assujeitamento da mulher
ao discurso machista, aparece nos enunciados produzidos por essa senhora, as
“obrigações” da mulher:
Enunciado 38: O meu dia a dia agora que estou sozinha
continua assim: levantar bem cedo, fazer minhas obrigações,
fazer comidinha pra meu filho.
47.5341p9aobso80892(ssi)9.v2.80892(ch1.40511(e)2.807662(e)13.94.(n))2.80892(a)2.802.80762(rc 11.28 Tf50.76 -13.04459(r)3.28511(:)-9.a.807662(e)13.94.(n))2d-9.233Enu85(13.94.(n))2.80892(a)2.3.4472lda83.70132(,)1.40511(e(,)1.4051.80892(a)2.p9a)2.8076o83.7013240511(a)2.80783.701324459(a)2.80762(çõ)2.8c80762(u)13.4459( )-2p9a53862(,)1.40518]TJ-369.6 -19.051162(83.70132à0511(a)2.80783.70132f2(o)2.80762(6(e)]TJ1( )-t)1.402( )277.9980783.701328]TJ-369.6 e)2.8 co 6(e)]TJ1( )-t,a3.063(f)1.40511( )-73.06eobo85(27( )-243.341.88 0 Td9.234228180827(b)2..21279(so)2.808 )26(c-232.639(m)-7.42551(a)445)-7.425Td9.234.445.80892(4.808(u)2.a)2o11.28 Tf50.76 -13.0o11.28 Tfg.23449(st)-9.234(q)2.80762(u)13.479.446(q)20892(u)1o4472(sa)2.80892(a)2.3.0643(l)9.23449(e)2.a(u)2.873.8511(:)-9.23449( )-73.21279(n).3449( )-73.479.446(qSa)2.80892(08(u)2.a)249a6(e)]TJn(,)1.40518]TJ-369.oda2.80762(a1(i)-1.40511n(,)1.40511.40511(n)2.80762(h)l762(e)2.8445)-7.4255Aa so459(vrú.80762(h)j11.96 TL(8so459(vr,2( )-222(d)2.d)13.445n9a)2scu)221emso459(vrsLT*[( )1.403-Cf(n)13.445)
218
Na tentativa de isolar os fins aos quais a natureza feminina deveria
obedecer, os médicos reforçavam tão-somente a idéia de que o
estatuto biológico da mulher (parir e procriar) estaria ligado a um
outro, moral e metafísico; ser mãe, frágil e submissa, ter bons
sentimentos, etc.”(DEL PRIORE, 2000: 83).
Um enunciado como o seguinte, por exemplo, é composto de todos esses
discursos que mencionamos e que se ressignificam na fala da mulher:
Enunciado 39:
De ser mãe, também, sabe, porque ser e
é bem importante porque a gente luta bastante pra
cumprir as obrigações e é uma coisa divina né? Então temos
que jamais deixar de ter a sua prole.
Essa posição da mulher como mãe aparece como lugar “eterno”, o que
podemos verificar a partir das pistas lingüísticas que se repetem e formam essa
discursividade: “luta” (significando que sempre lutou, é uma prática contínua);
“jamais deixar”, “coisa divina”. Todas essas expressões produzem o sentido da
maternidade como algo eterno, que não se tira, algo da essência da mulher.
Se observarmos, no enunciado 38 também aparecem expressões do mesmo
campo semântico: “continua e “sempre”, o que vai delineando o papel da mulher
sob um efeito de estabilização, continuidade, ligado à essência feminina. Esse
discurso está arraigado desde muito tempo, conforme mencionamos no primeiro
capítulo sobre a história da mulher.
No excerto seguinte, a senhora fala da mudança do homem e aparece um
enunciado estereotipado como machista que soa estranhamente numa fala feminina,
considerando que a senhora que fala não o faz em tom irônico:
Enunciado 40
: Pesquisadora:
A senhora acha que mudou
bastante coisa?
- Mudou, mudou, bastante eu acho que agora o homem está
num caminho muito importante. Ele faz de tudo, cuida da
casa, cuida dos filhos, cuida do serviço e o homem que,
afinal de contas é o chefe né? É o chefe que tem que se
impor bastante, não deixar a mulher passar muito na frente
dele né? Tem que partilhar de tudo né?
219
Mais uma vez, a sombra do discurso machista constitui a fala dessa mulher
que reconhece a mudança pela qual o homem vem passando, entretanto ainda o
numa posição de superioridade, resquício de uma ideologia patriarcal. Veja-se que
marcas lingüísticas que materializam a superioridade do homem em relação à
mulher: “muito importante”, “de tudo”, “bastante”. A memória desse discurso
machista é permeada mais uma vez por um discurso religioso, originário do período
medieval: “o fundamento escolhido para justificar a repressão da mulher era simples:
o homem era superior, e portanto cabia a ele exercer a autoridade” (ARAÚJO, 2000:
46).
Ocorre, entretanto, um equívoco na última linha do excerto. Na frase “não
deixar a mulher passar
muito
na frente dele né?”, o advérbio “muito” denota um
saber compartilhado (o que se materializa pela presença do “néno final da frase”)
de que a mulher vem passando na frente do homem. Vejamos: o homem é o chefe,
assim afirma a entrevistada, entretanto, ao dizer que ele não pode deixar a mulher
passar “muito” na frente dele, escapa uma fala que afirma esse acontecimento,
mesmo que ainda se silencie de que forma ou em que aspectos a mulher vem
tomando frente em relação ao homem.
O mesmo ocorre no próximo enunciado:
Enunciado
41
: Pesquisadora: A senhora acha que a mulher
tem passado às vezes na frente do homem?
- Muitos tem a mulher é tudo, tem mulher até assim já, que
dirige carro, dirige ônibus, dirige caminhão, então o homem
tem que se impor, que isso era serviço deles só, né? Agora
as mulheres já estão se equiparando, estão indo carreira
junto né?
Temos aqui a paráfrase discursiva: “e o chefe que tem que se impor”, e “o
homem
tem que se impor”, em que são tomados como sinônimos “chefe” e
“homem”, o que garante sentido de superioridade, de autoridade para o homem. Isso
é complementado pelo espanto da entrevistada em relação às atividades realizadas
pelas mulheres hoje em dia, o que reflete uma ideologia pautada num discurso
machista, principalmente quando ela afirma que o homem precisa se impor.
220
A questão do trabalho, que aparece no enunciado analisado, é algo que
sempre causou tumulto nas relações entre homens e mulheres e causa da grande
divergência do movimento feminista que, por muito tempo, defendeu a igualdade nas
condições de trabalho e a capacidade da mulher de realizar com a mesma ou até
maior eficácia os trabalhos considerados “masculinos”. Contraditoriamente a essa
postura feminista, o machismo, balizado numa ideologia patriarcal e também
religiosa, a mulher como ser frágil e incapaz, e, por isso, destinado apenas aos
afazeres domésticos e à criação dos filhos. Nessa fala materializa-se a questão de
que “serviço” de homem e serviço de mulher; e um efeito do sentido da essência
e do eterno em relação aos gêneros.
4.2.5.3 DISCURSOS FEMINISTA E MACHISTA INTERCALADOS:
HETEROGENEIDADE
A análise dos enunciados anteriores deixa claro que ambos os discursos-
machista e feminista- constituem a fala da mulher. Em alguns momentos um se
sobrepõe ao outro, mas algo sempre “escapa” e fura a interpelação ideológica. Em
outros momentos, porém, percebemos que os discursos machista e feminista
aparecem num mesmo enunciado de forma explícita, o que nos leva a supor que
eles realmente compõem a fala da mulher de maneira contraditória. O enunciado
seguinte materializa bem esse acontecimento:
Enunciado 42:
Porque agora eles partilham da afinidade da
casa, eles ajudam criar os filhos diferente. Tem homens aí,
que eu vejo por que fazem de tudo, até tinha, até pra uma
mulher era difícil botar uma fralda, tenho visto homem em
atividade bem assim, sabe? Então é importante que o
homem agora está bem no caminho de entender aquilo
que está imposto pra ele, não é de correr, não quero ser isso,
não quero ser aquilo porque é feio, não senhor, ele partilha
de tudo, e é muito bom.
Ao mesmo tempo em que a entrevistada apresenta surpresa ao falar dos
homens que “até” já trocam fralda, ela deixa claro que o homem deve ter as mesmas
221
“obrigações” da mulher, “partilhar do cuidado da casa e dos filhos. Esse “até” é
atribuído também à mulher na fala “até pra uma mulher era difícil botar fralda”, e,
nesse caso, a interpretação é diferente: se nem a mulher, que seria a responsável
por fazê-lo (conforme os pressupostos de uma ideologia de base
patriarcal/machista), não conseguia muito bem, o homem tem feito isso: “já tenho
visto homem em atividade bem assim”. Afinal o homem é superior, não era nem a
função dele e ele faz. Aqui temos um discurso feminino, podemos dizer.
A palavra “obrigações” (baseada numa FD machista com origem na Idade
Média) no jogo parafrástico aparece em relação com “imposto”, constituindo uma
222
A análise, ainda que sumária, que fizemos da fala dessa senhora de 83 anos
permite que reflitamos acerca da identidade feminina. Pensamos que a identidade
não pode mais ser vista sob o signo da homogeneidade, mas justamente pela
heterogeneidade, pela presença inquietante de um “Outro” no Um, e ainda pela
quebra de paradigmas trazida pela contemporaneidade.
A sombra de um discurso machista, de base patriarcal, ainda fala em nós,
assim como o discurso feminista clássico retorna ressignificado em nossa fala.
Ambas as práticas discursivas, embora contraditórias, compõem o que unitariamente
chamamos de discurso feminino, discurso esse que não é fechado, homogêneo,
mas conjuga várias fontes, por vezes oponentes, em sua composição.
Dessa forma, a identidade feminina não pode ser tomada como um conceito
fechado, dadas as condições do sujeito na contemporaneidade. Podemos dizer que
ela vem sendo (des) construída, já que constituída de forma heterogênea, com base
num sujeito atravessado pela memória discursiva (ou interdiscurso) e pelo
inconsciente. Se a mulher se constitui justamente pela “falta”, pela contradição, é a
partir daí que precisa ser vista, justamente pelo que “falha” na sua pretensa
homogeneidade identitária.
4.3 JUNTANDO OS PEDAÇOS: FECHAMENTO DE UMA ANÁLISE INCOMPLETA
As palavras por vezes nos faltam, aprendemos isso na própria análise
realizada e no contato com a AD e a Psicanálise. Pêcheux sabia disso, ao falar da
heterogeneidade e Lacan também o sabia, ao construir uma teoria a partir de
matemas para tentar dizer o indizível.
A linguagem, lacunar que é, não foi diferente conosco. Os efeitos de sentido
deslizam e às vezes parece que um fechamento nos é impossível. Temos uma
análise fragmentada. Um sentimento de angústia decorre disso, entretanto não
como fugir dele sendo nós seres incompletos, desejantes. Considerando isso, e
sabendo da impossibilidade da completude, resolvemos fechar esta análise através
de uma outra forma de simbolização. Pensamos com isso possibilitar uma
visualização (no sentido concreto do termo) do discurso feminino, juntando-o em sua
constituição heterogênea através de um fluxograma.
Quando falamos do discurso feminino na contemporaneidade e sua
constituição heterogênea, o vislumbramos a partir dos discursos que o compõem e
223
podem ser nomeados: como a FD machista e a FD feminista. Essas duas FD´s
coexistem no discurso feminino numa relação de dominância em relação a outros
discursos. Também consideramos o afetamento do discurso feminista e machista
pelas FD´s médico-biológica e religiosa, sendo que essas FD´s aparecem com
bastante freqüência (por isso as ressaltamos no fluxograma), significando
diferentemente conforme o lugar em que comparecem. Junto com essas FD´s
ainda várias outras possíveis que compõem o discurso feminista, machista e,
portanto, o discurso feminino, daí os balões em branco, que representam essas
possibilidades.
Aliado a toda essa formação heterogênea ainda o Outro, que atravessa
toda formulação por ser intrínseco à constituição do sujeito falante. Dessa
determinação pelo “Outro” decorrem os equívocos, que corporificam a presença do
desejo, dada a interposição de um sujeito faltante. O equívoco se coloca na tensão
que se constrói pela própria constituição do sujeito mulher: a
mulher-efeito
produz
uma dicotomia dada pelo assujeitamento e pela falha que ele mesmo produz. Daí
resulta um sujeito feminino que corporifica ao extremo a heterogeneidade.
Se não é possível fechar sem falhas, vamos tentar unir os fragmentos que
conseguimos juntar.Sem mais delongas, que o fluxograma explique-se por si
mesmo. A falta? As lacunas? São necessárias!
224
225
FALTA AINDA ALGUMA COISA... CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mulher, mulheres, discurso feminino, identidade, mulher-efeito, sintoma.
Significantes que latejaram durante toda a realização desse trabalho. Concluir? Não
sabemos se é possível concluir alguma coisa, entretanto alguns pontos foram
lançados para se pensar a identidade da mulher nesse período contemporâneo, por
isso preferimos falar em “considerações finais”.
Nosso objetivo neste estudo era refletir sobre a identidade da mulher no
cenário contemporâneo. Para isso, resolvemos trabalhar com o discurso oral
feminino, considerando que essa modalidade do discurso, sendo mais desprovida de
planejamento, era o lugar de onde poderia emergir um material lingüístico que
pudesse ser representativo da fala feminina. Escolhemos mulheres de perfis
diversificados, ao todo 10 (dez) entrevistadas, para as quais colocamos a seguinte
questão: “Você gosta de ser mulher? Por quê?”. Com esse questionamento
pensamos dar vazão à fala da mulher, seguindo o princípio psicanalítico da
associação livre, que gostaríamos de observar o discurso produzido por posições
discursivas femininas.
Dessa forma, acreditamos contribuir para os estudos sobre a identidade
feminina, tendo em vista que a maioria dos estudos existentes enfocam a questão
da construção da identidade feminina por outros meios, via dia ou discurso
masculino, por exemplo. Se o indivíduo se constitui em sujeito ao tornar-se um
sujeito falante e, então, ser interpelado pela ideologia e pelo inconsciente, é
justamente pela SUA fala que poderemos observar sua constituição como sujeito e,
em decorrência disso, as possibilidades de identificação.
A hipótese inicial do projeto era de que a mulher reproduziria em suas falas
discursos de origem machista. Isso não se revelou totalmente falso. Entretanto,
percebemos que aparecem outros discursos que também constituem a fala feminina,
como o discurso feminista, contraditório ao discurso machista. Pensado desse modo,
a interpelação da mulher como sujeito se dá não através de uma FD fechada,
balizada numa FI única, mas justamente na tensão entre várias FD´s, por vezes
oponentes, como é o caso da FD machista e feminista. As mulheres do nosso tempo
são constituídas em sujeitos falantes, o que chamamos de
efeito-mulher
, através da
interpelação de FI distintas, que as perpassam concomitantemente.
226
Outro ponto importante das nossas considerações acerca da formação
subjetiva da mulher é o atravessamento pelo inconsciente. A insistência de uma
instância “Outra”, que não deixa nunca de se inscrever, perpassa toda essa
formação do sujeito, deixando uma falta que se materializa na linguagem, o que
verificamos nos equívocos.
A partir dessas “falhas”, faltas do discurso feminino, consideramos
importante uma reflexão psicanalítica acerca da constituição da mulher. Daí a noção
de sintoma, discutida no segundo capítulo, que nos permite pensar a estrutura da
mulher, o que se verifica no seu discurso.
Trabalhamos com a constituição da mulher a partir do mesmo “efeito”
ilusório de constituição do sujeito, pelo qual ele se pensa completo e dono do que
diz- efeito-sujeito-. Tornar-se mulher é assimilar um conceito que vem junto com o
significante “mulher”, conceito esse imaginário e produzido historicamente pelas
práticas discursivas. Esse significante só produz o efeito de interpelação do indivíduo
pela noção de nero à medida que está investido de sentido pela determinação das
posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico de (re) produção
das palavras e dos discursos sobre o que é ser mulher. A esse fenômeno chamamos
“efeito-mulher”.
Considerando o efeito-sujeito, ou “efeito-mulher”, podemos afirmar que, ao
nomear um indivíduo “mulher”, o significante carrega o peso da história, os sentidos
e atribuições do que as práticas discursivas construíram como o que é ser mulher e,
portanto, o sujeito estará sob esse efeito, que entendemos como histórico e
imaginário. Mesmo que, como afirmou Lacan, A Mulher não exista”, ou melhor, não
exista como conjunto, existe um efeito homogeneizante do que é ser mulher, o que é
construído via palavra do homem.
Contudo, ao observarmos o funcionamento do discurso feminino, percebemos
que esse efeito nem sempre funciona, porque sempre um espaço para a falta.
entram os pressupostos psicanalíticos de constituição do sujeito. A materialização da
falta no discurso feminino revela-se nos equívocos produzidos, o que denuncia uma
falta que é constitutiva de todo sujeito e ainda mais evidente no caso da mulher.
Assim, ao mesmo tempo em que a mulher é interpelada pela ideologia e pelo
discurso dominante (masculino) -efeito-sujeito-, ela também carrega o fado de ser
sintoma, ou seja, portar uma verdade negada, uma falta que nos é impossível de ser
simbolizada. A impossibilidade do ser unificado, revelado pela falta constitutiva,
227
afirma um sujeito heterogêneo, em que falam vozes “outras” (interdiscurso) e ainda
o afetamento pelo grande “Outro”, negligenciado ao entrarmos no nível simbólico,
mas constitutivo e, portanto, sempre existente e resistente, interpondo-se onde a
linguagem falha.
Como pensar, então, essa noção de heterogeneidade do sujeito em relação à
mulher? Acreditamos que, ao situarmos a mulher como “efeito”, mas um efeito que
falha, a colocamos na tensão entre dois pólos: um regido pela determinação
histórico-ideológica e outro que se coloca a partir do desejo, da falta que constitui
todo sujeito. Pensando nessa bipolaridade, situamos o sujeito sob o signo da
heterogeneidade. Se considerarmos ainda a questão da constituição feminina,
podemos afirmar que a mulher apresenta de forma mais clara, em função da sua
estrutura, essa manifestação heterogênea.
As identidades são efeitos construídos a partir dos discursos. Dessa maneira,
observamos que as mulheres, como não poderia deixar de ser, estão sob esse
“efeito identitário” que é dado pelas práticas discursivas sobre o que é ser mulher e
que elas (re) produzem em suas falas, mas também “escapam” a essa
determinação, caminhando para outras possibilidades de identificação, o que
configura os desdobramentos em relação ao “efeito-mulher”.
Dessa forma, as mulheres que entrevistamos ainda estão determinadas pelo
“efeito-mulher”. Suas falas (re) produzem discursos de uma interpelação com base
no que circula sobre o que é ser mulher. Ainda dão extrema importância ao
casamento, à maternidade, querem trabalhar, estudar, ter “mais” liberdade, ainda
são conservadoras em relação à liberdade sexual, ainda vivem a partir de uma FI
patriarcal, ou seja, valorizam muito tudo que diz respeito ao mundo masculino.
Entretanto, o discurso feminista que produz deslocamentos, entre muitos
outros discursos que constituem a fala da mulher. Mais que isso, há algo que
“desestabiliza” dentro do discurso da mulher, que é a presença do discurso do
“Outro”, que se faz via atos falhos, conteúdos reticentes, pausas, escolhas
lingüísticas que soam estranhamente, dentre outros equívocos.
A mulher de hoje se constitui, pelo que pudemos perceber através das nossas
análises, pela mascarada da heterogeneidade. Explicamos: leva ao máximo o
princípio da constituição do sujeito como heterogênea. Assim, a mulher parece
corporificar a heterogeneidade, que faz surgir com mais freqüência a presença de
um discurso repleto de equívocos, discurso que não é somente seu, mas reflete o
228
posicionamento de uma sociedade em vias de mudança e em fase de
desestabilização.
229
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230
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232
ANEXOS
233
ANEXO 01
64
10. Entrevista: M.M. , estudante universitária , 22 anos, solteira, Irati-PR
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Não sei, pergunta difícil.. (...) Eu queria ser meu irmão, pra poder ter mais
liberdade...viajar, pode fazer muitas coisas. Meu irmão desde cedo saiu de casa pra
trabalhar, mas pra mulher já é mais complicado, mulher não pode trabalhar em
qualquer coisa, então eu fui ficando”.
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
Tudo tem um limite...tem muitas loucas que fazem.mas.não é permitido e
não é fácil. (...) eu posso fazer o que eu quiser, mas as conseqüências o mais
graves”
Você ficaria com dois homens (garotos) numa noite só?
“Ficaria. Eles pensam que usam a gente, vamos usar eles também...” Mas não
transaria com dois...”
Você quer se casar?
Não me vejo cuidando de uma casa, mas tenho umas pira de me vestir de noiva...”
Não quero casar, quero ter alguém..., mas não quero depender de homem..” “Minha
mãe sempre diz que não posso me casar porque sou muito bagunceira, não seria
uma boa dona de casa”
Você quer ser mãe?
Não vejo problema em ficar solteira, mas quero ter um filho, meu ou adotivo, não
importa..”
11. Entrevista: V. C., estudante universitária , 19 anos, solteira, Irati-PR.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
64
As entrevistas que apresentamos a seguir são fragmentos, porque não fizemos anotações
enquanto conversamos com as entrevistadas. Fizemos este relato a posteriori, priorizando apenas as
questões principais dentro da entrevista, entretanto procuramos manter o máximo de fidedignidade ao
conteúdo e forma da fala das entrevistadas.
234
“Não gosto, quer dizer, às vezes sim às vezes não”, “mulher é proibida de fazer
muitas coisas, tudo não pode, enquanto homem pode tudo”, “o único lado bom é
que, por isso o homem tem mais responsabilidades”
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
A mulher hoje pode trabalhar, escolher se quer fica 0 0 0.12 0 0 cmd.084 0 Td[( )-136.893c(o)2.80762(m)-7.42551( )-26.2549(a)2.80762(l)-1.40511gqum u não, ma
o poe azer muia oisa
235
13. Entrevista: M. S., empregada doméstica, 30 anos, separada, 2 filhos,
ensino fundamental incompleto, Guarapuava-PR
65
.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Eu gosto!” (enfaticamente). Ser mulher tem muitas vantagens (não enumerou
quais). Mas se eu pudesse nascer denovo, acho que preferiria ser homem”.
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“Mulher não pode sair fazer o que quiser”.
Você ficaria com dois homens numa noite só e/ou trairia durante uma relação?
“Não traio nunca, durante o meu casamento nunca trai o meu marido. Ficar com dois
na mesma noite eu até ficaria, mas não transaria com dois, aí já é demais”
O que você faz quando leva um fora?
“Há...depende, quando terminou meu casamento, por exemplo, eu fiquei triste, mas
ao mesmo tempo foi um alívio, porque meu marido era ruim pra mim. Agora quando
levo um fora de algum namorado, fico meio pra baixo por algum tempo”.
Você quer se casar novamente?
“Quero, mas só quando encontrar o homem certo”.
Você sempre quis ser mãe?
“Claro! Meus filhos são a melhor coisa que eu tenho, quando encontrar alguém legal,
quero ter outro filho, sos meus filhos são a única coisa boa que sobrou do meu
casamento”.
14. Entrevista: R.M.S., 51 anos, aposentada, viúva, 3 filhos, ensino
fundamental incompleto, Guarapuava-PR
66
.
65
“M” tem uma história muito interessante que me contou. Ela “fugiu” aos 14 anos com um homem
bem mais velho, que conhecia por carta. Essas cartas eram escritas e lidas por uma parente sua
que a encorajou a “fugir” com o “namorado”, que seu pai era muito rígido. Com esse homem
conheceu o sexo e a rotina de um relacionamento a dois bastante tradicional, em que a mulher deve
ser totalmente submissa ao homem. “Você não imagina as coisas que eu tinha que fazer”, diz “M”,
referindo-se à prática sexual, que afirma ter sido uma experiência horrível no início. Depois, fala que
“aprendeu” a gostar do marido, mas ele batia nela, tentou por várias vezes matá-la, tudo isso porque
tinha ciúmes e imaginava que ela pudesse ter outro homem, sobretudo quando ela não queria manter
relações sexuais com ele.
236
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Eu gosto. Não sei porque, mas é bom ser mulher”.
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“Mulher pode fazer quase tudo, algumas coisas não pode fazer, se não fica suja,
mal falada”(referindo-se a questões sexuais).
Você ficaria com dois homens numa noite ou teria um amante se fosse
casada?
“Não, de jeito nenhum.Não teria um amante (nunca tive) e também o ficaria com
dois homens na mesma noite. Eu até fico com vários, mas um de cada vez”.
O que você faz quando leva um fora?
“Fico chateada, bebo, mas não choro”.
Você sempre quis se casar, se casaria novamente?
“Sim, gostei muito de ser casada, mas tem que ser com alguém que você se
bem, amor só não basta”.
Você sempre quis ser mãe?
“Sim, ser mãe é muito bom, é por causa dos meus filhos que hoje eu não estou
sozinha no mundo”.
15. Entrevista: T.V, funcionária pública, 44 anos, casada, 2 filhos, ensino
médio completo, Guarapuava-PR.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Gosto. Ser mulher é muito bom...” (não soube dizer por quê) “Há..sei lá...”
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“Não sei, acho que pode fazer tudo. É claro que não pode ser como os homens, mas
hoje em dia a mulher tem muito mais liberdade do que até um tempo atrás”.
66
R” é uma senhora um pouco divergente dos padrões, apesar do seu discurso não denunciar isso.
Ela sai com muita freqüência, tem romances ocasionais, “aproveita a vida”, conforme ela mesmo
disse. Outro detalhe é que ela bebe bastante, foi alcoólatra. Hoje, toma uns “pileques” de vez em
quando. O fato de beber e sair com freqüência faz com que não seja muito bem vista na sociedade,
conforme pude averiguar com outras pessoas que a conhecem. Apesar disso, sua postura não é
promíscua ou desequilibrada, pelo menos foi o que percebi durante a conversa que tivemos.
237
Você trairia o seu marido, teria um amante?
“Não, não faria isso. Apesar de eu ser “viúva de marido vivo”, já que ele trabalha fora
e nos vermos só de vez em quando. Mesmo assim não teria um amante não”.
O que você faz quando leva um fora?
“Não sei, não me lembro de ter acontecido. Também já faz tempo que eu sou
casada, que já não penso nessas coisas. Quando me decepciono ou brigo com meu
marido fico triste, às vezes choro, mas tem os filhos e é preciso não demonstrar
instabilidade para eles”.
Você sempre quis se casar?]
“Sim, eu queria, mas se fosse hoje, não casaria novamente. É muito difícil, não é o
sonho que a gente imagina quando é jovem e está apaixonada”.
Você sempre quis ser mãe?
“Sempre quis e não me arrependo. Adoro meus filhos”.
16. Entrevista: N.F.L, professora, 27 anos, solteira, ensino superior
completo, Maringá-PR.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Nunca pensei sobre isso, mas acho que gosto sim. Ser mulher é bom nós somos
mais sensíveis, temos nossas dores, mas é bom...”
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“A mulher é privada de muitas coisas, é claro que isso vem diminuindo muito, mas
mesmo assim ainda estamos em desvantagem em relação aos homens,
principalmente no que diz respeito ao aspecto sexual”.
Você ficaria com dois homens (garotos) numa noite só?
“Não sei porque teria motivos para ficar com dois garotos, acho que não. Prefiro
qualidade e não quantidade”.
O que você faz quando leva um fora?
“Fico deprimida, se for de namorado. Fora de alguém em uma noite acho que nunca
levei, não lembro, a gente sempre espera que o homem chegue, por isso não
corremos muito esse risco”.
238
Você quer se casar? Você quer ser mãe?
“Quero me casar e ter filhos. Essa não é exatamente uma necessidade, mas acho
importante ter alguém para se dividir a vida, as coisas boas e ruins. E ser mãe é uma
coisa maravilhosa, não quero me privar disso”.
17. Entrevista: E.C.B., 34 anos, professora univesitária, casada, 2 filhos,
ensino superior completo, Maringá-PR.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Não sei. Na verdade não sei como é ser homem, mas imagino que talvez seja
melhor, sei lá”.
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“Ah, a mulher é privada de muitas coisas. Ela não tem de jeito nenhum, apesar de
toda a evolução, a mesma liberdade do homem. O homem desde cedo tem
privilégios, pode sair de casa mais cedo, não tanta vigilância por parte dos pais;
pode se envolver com quantas mulheres quiser ou puder” (risos). “Para a mulher
tudo já é mais cheio de regras, temos que manter um certo padrão moral”.
Você ficaria trairia o seu marido, teria um amante?
“Não, Não vejo necessidade. Amo meu marido e o dia que sentir que quero traí-lo,
acho que está na hora da separação. Gosto das coisas muito bem claras, sem
mentira. Traição é sacanagem”.
O que você faz quando tem uma decepção amorosa?
“Não sei, faz tempo que não tenho, que sou casada 15 anos. Mas acho que
todo mundo fica chateado, depressivo, depois passa, tudo passa”.
Você sempre quis se casar?
“Na verdade eu não sei exatamente se era tanta “vontade” mesmo de casar. Acho
que na época, no contexto em que eu vivia, zona rural, não tínhamos muitas opções,
todas as moças se preparavam, eram educadas para casar, e comigo não foi
diferente”.
Você sempre quis ser mãe?
Sim, ser mãe era algo que eu sempre quis. Mas agora já chega, já tenho dois filhos
e é o suficiente”.
239
18. Entrevista: C.S. , estudante, 21 anos, solteira, ensino superior
incompleto, Maringá-PR.
Você gosta de ser mulher? Por quê?
“Não, preferia ser homem”.
O que você acha que a mulher pode ou não pode fazer?
“A mulher na verdade pode fazer tudo o que quiser, o problema são as
conseqüências, nosso meio ainda é muito conservador, a mulher é privada de
muitas coisas”.
Você ficaria com dois homens (garotos) numa noite só?
“Sim, sem problema, se estivesse com vontade e surgisse oportunidade, acho que
temos que aproveitar a vida, momentos em que não se pode se deixar de fazer
algo por se preocupar com o que os outros pensam”.
O que você faz quando leva um fora?
“Fico um pouco triste, mas logo parto pra outra, se tem uma coisa que não fico é
curtindo fundo-de-poço, prefiro sair numa balada e esquecer”.
Você quer se casar?
“Não sei, acho que quero, mas não agora. Casamento é estar atado, e para se atar
com alguém precisa ser alguém que te compreenda, e que feche com o seu modo
de levar a vida. O meu é bem complicado, então não sei se vou encontrar alguém.
Mas não tenho medo de ficar sozinha”.
Você quer ser mãe?
“Quero, mas esse é um plano para um futuro ainda distante, penso em ter um filho
sozinha, talvez, daqui a alguns anos, quando eu tiver uma profissão definida e possa
cuidar bem dele”.
240
ANEXO 2
Transcrição de entrevista:
“Iracema” 83 anos, dona de casa, viúva, 2 filhos.
Pesquisadora:
É, então, o que a senhora pensa sobre ser mulher, a senhora gosta
de ser mulher?
- Gosto bastante, ser mulher é tudo na vida, sabe? Na minha opinião é o esteio da
casa, assim, é mulher. E pra isso a gente está sempre feliz, satisfeita,
trabalhando né? Querendo trabalhar, e quem trabalha melhor ainda né, porque aí
bastante valor, cuida dos afazeres, cuida dos filhos, cuida do trabalho, a vida assim,
será mais interessante.
Pesquisadora:
É...A senhora foi casada?
- Sim, sim, casada 36 anos.
Pesquisadora:
E depois a senhora não casou mais?
- Não, não, não casei mais .Eu não acho que não ...dizem assim que ninguém é
insubstituível, mas eu acho assim que meu marido foi, é insubstituível, foi, será. Eu
tenho impressão assim que ele não morreu, sabe como é? Que eu ainda estou
casada, que ele está viajando, está me esperando, espere que qualquer dia eu
chego. Se Deus quiser, porque a minha vida aqui foi depois dele, além da tristeza
né, foi bastante batalhada. Sozinha, eu tinha dois filhos, casados já, eu tive que
me virar e estou me virando até hoje.
Pesquisadora:
Quantos anos a senhora tem?
- 83 .
Pesquisadora:
83? E como é o seu dia a dia assim, o que que a sra faz?
- O meu dia a dia agora que estou sozinha continua assim: levantar bem cedo, fazer
minhas obrigações, fazer comidinha pra meu filho, sair dar umas voltinhas por aí,
plantar meu jardinzinho, assim por diante.
Pesquisadora:
A senhora tem quantos filhos?
- Dois, casados.
241
Pesquisadora:
E, a senhora acha que existe algum ponto negativo no fato de ser
mulher? Alguma coisa que seja ruim em ser mulher.
- Negativo? Pois... na minha opinião acho que não, acho que não tem nada negativo
porque a gente que faz tudo né, a gente pensa bem, faz bem, não pode deixar pra
trás né essa missão. Ser mulher é coisa louca de boa!
Pesquisadora:
E qual é essa missão, o que a senhora entende como missão?
- Como missão é assim, né: viver, trabalhar, respeitar e ser respeitada, sabe? Tudo
isso eu acho importante pra uma mulher.
Pesquisadora:E o fato de ser mãe?
- De ser mãe ,também, sabe, porque ser mãe é bem é bem importante porque a
gente luta bastante pra cumprir as obrigações e é uma coisa divina né? Então
temos que jamais deixar de ter a sua prole.
Pesquisadora:
A senhora sempre quis ser mãe?
- Sempre quis, não de prole grande, eu pensava sempre mais ou menos assim e fui,
assim como se diz é, atendida, porque eu queria uns dois, três assim, tive dois, bem
criados, bem educados e assim por diante.
Pesquisadora:
E como a senhora o homem, que que a sra acha, qual que é o
papel do homem na sociedade, como é que ele está hoje, qual que é a diferença
com a mulher...
- Você sabe, homem pra mim, eu acho que agora eles já são bem mais diferentes do
que no tempo que eu casei assim, né? Porque agora eles partilham da afinidade da
casa, eles ajudam criar os filhos diferente. Tem homens aí, que eu vejo por que
fazem de tudo, até tinha, até pra uma mulher era difícil botar uma fralda, tenho
visto homem em atividade bem assim, sabe? Então é importante que o homem
agora está bem no caminho de entender aquilo que está imposto pra ele, não é de
correr, o quero ser isso, não quero ser aquilo porque é feio, não senhor, ele
partilha de tudo, e é muito bom.
Pesquisadora:
A senhora acha que a mulher tem mais liberdade com isso?
242
- Sabe ,eu acho que a mulher tem mais apoio né, porque assim antigamente eles
eram muito como é que se diz, muito rigidamente a vida entre um e outro né. Eles
eram assim, um observava o outro, agora não, eles tem uma vida, cada qual cuida
de si e pronto né e também, é bem bom isso.
Pesquisadora:
A senhora acha que mudou bastante coisa?
- Mudou, mudou, bastante eu acho que agora o homem está num caminho muito
importante. Ele faz de tudo, cuida da casa, cuida dos filhos, cuida do serviço e o
homem que, afinal de contas é o chefe né? É o chefe que tem que se impor
bastante, não deixar a mulher passar muito na frente dele né? Tem que partilhar de
tudo né?
Pesquisadora:
A senhora acha que a mulher tem passado às vezes na frente do
homem?
- Muitos tem a mulher é tudo, tem mulher até assim já, que dirige carro, dirige
ônibus, dirige caminhão, então o homem tem que se impor, que isso era serviço
deles só, né? Agora as mulheres estão se equiparando, estão indo carreira junto
né?
Pesquisadora:
E isso é bom ou é ruim será?
- Eu acho que é bom, eu acho que é bom.
Pesquisadora:
Ta bom, a senhora quer falar mais alguma coisa?
- Pois eu acho que não, nós já falamos tudo né? Eu achei tão bom, a gente nunca
conversou assim , a não ser...ainda mais assim você bonitinha, vizinha da gente ,
é prazer estar conversando né? Conversando a verdade...
Pesquisadora:
Claro. É...A sra autoriza a usar o que a senhora falou pra minha
pesquisa, posso utilizar o que a senhora falou, sem divulgar a sua identidade claro.
- Pode, pode, não tem problema. É tudo verdade né?
Pesquisadora:Muito obrigada, então.
- Não tem de que.
243
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