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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
EMERSON DA CRUZ INACIO
A HERANÇA INVISÍVEL:
ECOS DA “LITERATURA VIVANA POESIA DE AL BERTO
RIO DE JANEIRO
2006
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EMERSON DA CRUZ INÁCIO
A HERANÇA INVISÍVEL:
ECOS DA “LITERATURA VIVANA POESIA DE AL BERTO
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito à obtenção do tulo de Doutor em Letras
Vernáculas.
Orientador: Jorge Fernandes da Silveira
Faculdade de Letras da UFRJ
2006
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FOLHA DE APROVAÇÃO
EMERSON DA CRUZ INACIO
A HERANÇA INVISÍVEL:
ECOS DA “LITERATURA VIVANA POESIA DE AL BERTO
Rio de Janeiro, de de 2006.
_____________________________________________________
Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira – Doutor – UFRJ
(Presidente)
_____________________________________________________
Ida Maria Santos Ferreira Alves – Doutora – UFF
_____________________________________________________
Mário Bruno – Doutor – UERJ
_____________________________________________________
Gilda da Conceição Santos – Doutora – UFRJ
_____________________________________________________
Teresa Cristina Cerdeira da Silva – Doutora – UFRJ
_____________________________________________________
João Camillo Penna – Doutor – UFRJ
(Suplente)
_____________________________________________________
Sílvio Renato Jorge – Doutor – UFF
(Suplente)
3
RESUMO
INACIO, Emerson da Cruz. A herança invisível: ecos da “Literatura Viva” na poesia de Al
Berto. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas). Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
Revisão da crítica de José Régio, veiculada na revista PRESENÇA, a partir de tópicos
constantes na contemporaneidade. Para tanto, recorreu-se ao pensamento de Michel Foucault,
capaz de articular, através da genealogia, elementos e conceitos muitas vezes dispersos e
distantes no tempo.
Dessa maneira, a crítica de José Régio revela-se como uma contribuição silenciosa
para a compreensão de elementos da poesia portuguesa do fim do século XX, particularmente
da obra de Al Berto.
4
RESUMEN
INACIO, Emerson da Cruz. A herança invisível: ecos da “Literatura Viva” na poesia de Al
Berto. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas). Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
Revisión de la crítica de José Régio, vehiculada en la revista PRESENÇA, a partir de
tópicos constantes en la contemporaneidad. Para tanto, se recurrió al pensamiento de Michel
Foucault, capaz de articular, a través de la genealogía, elementos y conceptos muchas veces
dispersos y distantes en el tiempo.
De esa manera, la crítica de José Régio se revela como una contribución silenciosa
para la comprensión de elementos de la poesía portuguesa de finales del siglo XX,
particularmente de la obra de Al Berto.
5
ABSTRACT
INACIO, Emerson da Cruz. A herança invisível: ecos da “Literatura Viva” na poesia de Al
Berto. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas). Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
This paper aims at an appreciation of the reviews José Régio published on
PRESENÇA in connection to a relevant contemporary agenda. Statements are supported by
Michel Foucault's ideas, capable of articulating, through genealogy, concepts and elements
which are very often dispersed and distant in time.
Thus, José Régio's reviews have performed understated contribution to the
understanding of late twentieth century Portuguese poetry and particularly the one of Al
Berto's.
6
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA 8
INTRODUÇÃO 12
1 PARA A HERANÇA INVISÍVEL UMA ARQUEOLOGIA E UMA GENEALOGIA ...... 20
2 REVIVENDO A PRESENÇA 38
2.1 A crítica literária e sua abordagem da PRESENÇA ......................................................... 38
2.2 A “Literatura Viva” ........................................................................................................... 49
3 “NA TINTA PERMANENTE DOS CORPOS” 76
3.1 Os outros barões assinalados ............................................................................................. 76
3.2 O corpo, linguagem poética do Modernismo português ................................................... 98
4 “ESCREVO-ME CONTINUAMENTE”: A “LITERATURA VIVA” DE AL BERTO .... 130
CONCLUSÃO 171
BIBLIOGRAFIA 176
7
DEDICATÓRIA
A Régio e Al Berto, pais das minhas dúvidas e das minhas certezas, por este pensar vadio.
Às minhas crianças, que mesmo sem saber o que é uma tese, sabiam da sua importância para mim e
para elas. À minha família, sempre, pelo orgulho com que me vêem e tratam: Belinha (“desde o dia em
que te vi, Juraci, nunca mais tive alegria!”) Lucas, Gabriel, Bia, Carlos, Luciano, Thamires, Tiago,
Aluízio e Cátia.
Às mães e pai de depois de agosto: Neinha, Nancy e Mário, Doca, Tia Edith, Ruth, Simone, Rose,
Vivi. Carinho, preocupações e afetos sem conta e sem par. E aos irmãos de sempre: Alex, pela
companhia a qualquer hora e ao Junior, para quem esta tese se tornou importante. E aos outros, Cia.
Ilimitada de A a Z, sempre companheiros, irmãos e irmãs.
Ao Mário Professor, que um dia, em sala, dedicou a um ainda menino, “a primeira morada do
silêncio” e até hoje Mário dos meus dias, razão dos meus afetos.
Ao Jorge (Salve Jorge! Ogunhê, meu pai!), pai dos caminhos da poesia, simples, admirável e absoluto.
Ao Broto, tronco, ramos e raiz da minha vida, tatuada para sempre em minha pele-memória, sentido
da vida sem a qual esta luta teria sido vã.
8
AGRADECIMENTOS
Aos Professores do Setor de Literatura Portuguesa da UFRJ pela sua relevância como professores e
pelo carinho com que me receberam como aluno, colega e amigo: Clécio Quesado, Ângela Beatriz pela
recepção pontual e carinhosa, em minha banca de ingresso; Maria de Lourdes, pela sincera partilha;
Teresa Cerdeira, pelo esforço empenhado na concessão da minha bolsa e Mônica Figueiredo; a ambas,
pelo sempre intenso carinho e preocupação; Cinda Gonda, que comigo inicia e termina esse percurso;
Márcia Maia e Luci Ruas pelas boas conversas, pelas boas risadas e partilhas; Gilda Santos, pela
abertura à Cátedra, ao Real Gabinete e, de certa forma, às terras de Portugal. À Carmem Tindó, pelas
letras africanas. Ao Jorge Fernandes, simplesmente.
À Ana Alencar e ao João Camillo Penna, professores do Departamento de Ciências da Literatura da
UFRJ, pela minha introdução a um outro pensar literário. Ao Mário Bruno, pela aceitação ao convite.
Aos Professores do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana, da Universidade Federal
Fluminense: Simone Caputo, pela ternura do início; José Carlos Barcellos (avô da criança), Silvio
Jorge, Ida Alves, Dalva Calvão, Maria Lucia Wiltshire e Laura Padilha. Maurício da Silva, Sônia
Monnerat e Jorge de Sá, sempre!
Às “Al Bertianas Fragmentadas”, Tatiana Pequeno e Gustavo Guimarães, pelas trocas e com-
partilhamentos. Ao Maffei e ao Valentin, pelas trocas. À Andréa B. e Cecília Belíssima, pelos resumos.
Aos amigos de todas as horas, de A a Z, incentivadores, confiantes e pacientes na espera por este
trabalho, desde São Gonçalo a São Cristóvão, de Niterói ao infinito.
Aos companheiros da ABEH, desde os encontros de Niterói, parceiros.
À Inocência Mata, pelo carinho africano; Nuno e Manuela Júdice, pela partilha da amizade com Al
Berto e pelo novo O Medo.
Ao programa de Pós-Graduação em Letras da UFRJ, na pessoa de seus coordenadores, ex-
coordenadores e aos funcionários, à Nádia, Fátima e Celi, pela terna colaboração.
À Banca, pela compreensão e leitura atenta e carinhosa.
À Cátedra Jorge de Sena e à Fundação Calouste Gulbenkian pela oportunidade ímpar de me levarem
além-mar.
Ao CNPq, pela concessão da bolsa e pelas oportunidades.
9
A vida é o conjunto das funções que resistem à morte.
Michel Foucault
A História principia onde eles põem: fim.
José Régio
fiquei definitivamente adulto, cansado pelos dias que me obrigo a viver.
consola-me a escrita correndo livre nas imensidões do deserto, o texto-corpo.
mas não nos ouvem Tangerina, não nos amam Nervokid, porque o discurso
deles não nasceu dos desmoronamentos do corpo, nem da fascinante queda de
Ícaro, nem de nenhum acto de sangue.
Al Berto
10
ADVERTÊNCIA
Os artigos de José Régio citados são os que compõem o capítulo “Doutrina” do
volume póstumo Páginas de Doutrina e Crítica da ‘presença’, todos publicados nas
duas séries da revista PRESENÇA.
As citações de O Medo, obra completa de Al Berto, têm como fonte o volume de 1997
da editora Assírio & Alvim, de Lisboa. As notas bibliográficas referentes a esta obra
são expostas no corpo do texto, entre parênteses, com a indicação “M”, seguida do
número da página.
As notas bibliográficas referentes à revista PRESENÇA são indicadas no corpo do
texto entre parênteses por um “P”, seguido do número do periódico e da página, de
acordo com a edição fac-similada da Editora Contexto, de Lisboa, em três tomos, de
1993.
Opta-se pela grafia em maiúsculas dos nomes das revistas ORPHEU, PRESENÇA e
demais periódicos e revistas, seguindo as normas da ABNT, desconsiderando,
portanto, no caso do periódico coimbrão, a grafia original.
11
INTRODUÇÃO
Em conferência oferecida ao público participante do XX Congresso da Associação
Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa, em 23 de Agosto de 2005, realizado na
Universidade Federal Fluminense, a Professora Cleonice Berardinelli expôs o percurso no
Brasil dos estudos de Literatura Portuguesa, assim como o papel de tais estudos na
transformação e influência da crítica literária em Portugal. É mister assinalar que, por
exemplo, o “culto” a Fernando Pessoa tenha se iniciado a partir da famosa antologia
organizada por Cecília Meireles e continuado no trabalho inquestionável da mestra.
A especificidade da Literatura Portuguesa, como também a intensidade de sua
produção, requer que ela e sua crítica estejam em constante revisão, como formas de, a
mesmo, dar contas de sua dinâmica. Necessário é também proceder a retomada de questões
críticas e autores que por variadas razões (circulação, recepção, ou até modismo) foram postos
de lado, passando somente a ocupar um lugar nas estantes das bibliotecas e nas ginas das
histórias literárias. Por sua dinâmica, cabe aos críticos estarem atentos ao fato de que sua
apreensão e compreensão também dependem da reconfiguração de temas postos de lado,
principalmente porque se sabe que o que está em questão é uma Literatura dotada de matrizes
culturais e de uma constituição temática profundamente sui generis.
Lado a lado, motivos literários como o mar, a terra, a nação, a saudade, a casa, o
sebastianismo, paradigmas frontalmente inatacáveis” (LLANSOL, 1985, p.32), e autores do
porte de Luís de Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, totens e tabus de uma cultura e
de uma literatura cuja formação dinâmica e ao mesmo tempo auto-referencial cuidou criar,
estabelecer e sedimentar. Dinâmica, justo porque no seu interior vivem e convivem os mais
diferentes matizes e as mais diferentes abordagens, a começar pela ousadia modernista,
12
subjetivista e fragmentária de ORPHEU, passando pela poética refinada de um Jorge de Sena
e Herberto Helder ou pelo experimentalismo de Mello e Castro e Ana Hatherly,
desembocando em reflexões sobre o mundo contemporâneo, como em Lobo Antunes e
Saramago, para se pinçar alguns exemplos do século XX. Ao mesmo tempo, os temas que
percorrem esta literatura são constantemente revisados e revisitados como forma de manter a
constante atualização dos antigos motivos e objetos, como o fez Fiama Hasse com Joan
Zorro; Vasco Graça Moura, com Camões; Manuel de Gusmão, com Pessoa.
Por outro lado, auto-referencial, no sentido em que um certo conjunto de temáticas,
autores e procedimentos típicos – como os trovadores medievais, Camões, Eça e Pessoa – são
constantemente vistos, revistos e retomados, não de forma repetitiva, mas profundamente
valorativa e por muitas vezes celebrativa. Como também, pensar a nação, o homem português
e o seu “estar-no-mundo”, o estatuto da literatura no interior da vida e da cultura constituem-
se como formas presentes no estabelecimento da série literária portuguesa.
É oportuno afirmar que tanto o feixe temático quanto o feixe autoral contribuem para a
existência, no espaço literário português, de uma articulação emblemática, na qual, positiva
ou negativamente, muitos autores portugueses foram beber” e se “fundar”. Se, por um lado,
pode-se perceber este trabalho de citação” como um aspecto negativo que a citação, a
intertextualidade e o ato polifônico podem em si e através de si designar a volta às mesmas
questões, por outro, -se também nessa atitude a capacidade de bem aos moldes da pós-
modernidade tornar o velho, novo; a tradição, ruptura; a margem, cânone; o esquecido,
rememorado.
Em termos de século XX, não se configuraria como uma tarefa difícil encontrar na
série portuguesa as marcas de tendências criadas, firmadas e seguidas por outros autores, de
outro momento cultural; a herança de ORPHEU, por exemplo, pode ser percebida em autores
da PRESENÇA como José Régio, Miguel Torga e João Gaspar Simões. Ou o Neo-Realismo,
13
que retomou procedimentos do realismo do século anterior. No mesmo primeiro
modernismo
1
, a tentativa de superar Camões implica citá-lo, retomá-lo e suplantá-lo.
Esse constante gesto de retomada, em conseqüência, é também um moto-contínuo da
própria literatura, justo porque se engendra um freqüente reconhecimento de paternidades
estéticas e literárias, como foi o caso tácito da geração de ORPHEU com relação a António
Nobre. O próprio Pessoa declara que “quando ele nasceu, nascemos todos nós”, num artigo
publicado na revista GALERA, intitulado “Para memória da António Nobre” (PESSOA,
1993, p. 344-5). Se por acaso a revista de Fernando Pessoa e Sá-Carneiro não deixou filhos
imediatamente reconhecidos, nem se pretendeu movimento institucionalizado, como afirma
Fátima Freitas Morna, teve uma proveniência no sentido foucaultiano do termo como se
verá mais adiante. Além disso, este modelo poético-cultural pôde ser percebido no trabalho
estético de muitos dos que escrevem e escreveram em Língua Portuguesa. Sobretudo, num
primeiro momento, na contribuição literária da PRESENÇA, sua “herdeira” e reconhecedora
de seu papel como divisora de águas do mar literário português. Muito particularmente
naquilo que foi deixado pela revista coimbrã, em termos de trabalho crítico e cultural, se
pode perceber uma retomada da geração de 1915, como também o aprofundamento e a
revisão de elementos por ela considerados como substanciais para o cumprimento da
“renovação moral” sugerida por Pessoa.
Se ORPHEU faz-se presente na literatura produzida em Portugal após sua circulação,
é possível que este continuum também se aplique à revista coimbrã. Não que se perceba na
Literatura Portuguesa mais contemporânea um “neo-presencismo”; mas, para além disso, a
própria sutileza das questões do movimento podem estar circunscritas de modo inefável
naquilo que foi produzido principalmente no pós-74, particularmente na poesia de Al Berto.
1
Considerando que os da PRESENÇA se autodefinem como pertencentes ao “Segundo Modernismo”, por
inferência resolveu-se considerar ORPHEU, o primeiro.
14
Parte-se aqui dessa idéia por se considerar, por exemplo, que a crítica literária que
relegou a revista a um estágio inferior na literatura do século XX produziu suas considerações
submetida a condições de produção e circulação de discursos pouco favoráveis, notadamente
à ditadura do Estado Novo. Isso se constituiu tanto em termos de formulação do pensamento
crítico quanto em níveis de vinculação dessa crítica a um modelo sócio-político-cultural que,
por seu procedimento, via na atitude presencista algo de pouco relevante. Mais
especificamente, o trabalho teórico de José Régio, mesmo que absorvido pela História da
Literatura Portuguesa, o foi de maneira pouco relevante e submetido a um lugar-comum que
considera este autor um “neo-romântico” desvinculado das questões prementes de sua época e
o gestor de um suposto retrocesso a um momento anterior ao modernismo de ORPHEU.
Em outras palavras, a revista foi sujeita inicialmente à crítica literária ligada a António
Ferro, que tomava como ponto de partida o posicionamento da cultura oficial que não a
entendia como herdeira do pensamento moderno e vanguardista de ORPHEU. É oportuno
esclarecer que uma vez ligado ao projeto cultural do Estado Novo, António Ferro diretor
daquela revista - institucionalizou a vanguarda aos moldes do que ocorrera com o
Futurismo, na Itália. O trabalho crítico de José Régio, por mais que estivesse sintonizado com
a efervescência cultural e crítica que tomava os estudos literários e estéticos de sua época,
nunca obteve a relevância devida ou teve reconhecido o fato de ter tornado acessível” a um
leitor médio o pensamento de Ortega y Gasset, Henry Bérgson, Marcel Proust e Benedetto
Croce. Ou que tenha proporcionado à Literatura Portuguesa uma dimensão moderna do que
então se convencionava chamar “literatura” ou do que se considerava “literário”, como
posteriormente Vitor Manuel de Aguiar e Silva declara ao cotejar os conceitos referentes e
circulantes sobre esta arte (AGUIAR E SILVA, 1983, p.8).
Além disso, polemista declarado e assumido, passou, após o encerramento da
publicação da revista, a desempenhar o papel de crítico tenaz dos “excessos estilísticos”,
15
como o fez sobre alguns neo-realistas, ou das novas experimentações lingüísticas necessárias
à literatura, como ocorreu com os de Poesia 61. Muito pouco compreensiva, aliás, essa atitude
de Régio - um dos artífices da uma contribuição estética relevante como o foi a PRESENÇA –
que defendeu nas suas páginas o princípio básico da originalidade artística, alcançada,
inclusive, pelos jovens da geração de 61, como bem atesta Jorge Fernandes da Silveira (1985,
p. 23 e ss.).
A crítica posterior à PRESENÇA e leitora da contribuição crítica e poética de José
Régio, de certa forma influenciada pela polêmica entre este e Álvaro Cunhal, pela migração
de autores inicialmente presencistas para o movimento neo-realista e pelo “fantasma” da
geração de 1915, terminou por determinar operadores de leitura que de certa maneira
preponderaram discursivamente no pensamento de Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho
e Fernando Guimarães dentre outros, a saber: o descompromisso sócio-político, o
subjetivismo romântico de sua poesia, o retrocesso em termos de enfoque do sujeito, o caráter
sentencioso e judicativo do pensamento da revista e o esvaziamento das questões modernistas
e vanguardistas.
Necessário se faz, pois, considerando as condições de produção de discurso a que
estava sujeita, reler a PRESENÇA e o trabalho crítico de gio nela veiculado, inicialmente
por si mesmos e os submeter a um processo arqueológico de busca e percepção dos sentidos
que quiseram construir e que veicularam. Num segundo momento, deve-se abordar tais
proposições na sua possibilidade de contribuírem para a formação de uma genealogia poética,
notadamente silenciosa. O conceito de “Literatura Viva”, expresso no primeiro número de
PRESENÇA, pode ser resgatado a fim de ser posto a prova em sua extensão e capacidade de
gerar sentido para além de seu tempo. Para tanto é preciso que seja reconfigurado,
operacionalizado e realocado no interior da Literatura Portuguesa, sob um novo signo que não
16
tenha um valor simplesmente periférico. Em outras palavras, que autores podem ser
considerados “vivos” hoje?
Se for possível que as proposições teóricas regianas, expressas nas páginas da revista e
posteriormente em Páginas de Doutrina e Crítica da “presença” (1977), sejam efetivamente
operacionais para além do contexto em que emergiram, procurar-se-á estabelecer como a
“Literatura Viva” de Régio se insere e se revela na contemporaneidade. Dessa maneira, é
preciso percorrer um caminho genealógico, na sentido forte de Michel Foucault, que prevê a
possibilidade de enunciados dispersos no tempo poderem manter uma relação silenciosa entre
si, o que pode indicar, inclusive, relações de releitura, retomada ou de manutenção de
vínculos diversos. No caso em questão, o processo deve indicar o que se configura na
produção contemporânea como exemplo de “Literatura Viva” e como se manifesta.
Vale adiantar que o conceito aqui trazido bordeja questões muito ligadas à expressão
de uma sensibilidade autoral e do revelar da subjetividade (poética e pessoal) do artista no
interior de sua obra e que também toma como exemplo de vivacidade autores inscritos na
História da Literatura como realizadores de uma escrita em que os pressupostos eróticos e
ligados a uma vivência sexual do corpo estão em questão e, por que o dizer, são o objeto
principal de sua arte.
Por extensão, majoritariamente, os exemplos de vida insuflada à literatura e à arte
contemplam artistas que experimentaram esteticamente (e não só) a exposição do corpo, do
homoerotismo e da homossexualidade em suas obras, demonstrando como a forma de
existência dos indivíduos pode interferir ou determinar os discursos que produzem. O que a
arte viva põe em tela é não a esteticização da vida, como também a vivificação da arte,
baseada nas experiências do indivíduo e na sua forma de se colocar no mundo, e que pode ser
acrescida pela sexualidade que o constitui e que pode constituir o seu trabalho estético como
artista.
17
Logo, o conceito sugerido por Régio, se pensado na sua capacidade de se tornar mais
contemporâneo, pode ser utilizado como “protocolo de leitura”, particularmente, da obra
poética de Al Berto, poeta que marcou a poesia portuguesa mais recente justamente pela
exposição poética de sua intimidade, em que “uma existência de papel” se interpõe a sua
inscrição como sujeito, em consonância, portanto, com aquilo que é pressuposto no conceito
pensado pelo autor das Encruzilhadas de Deus.
Outro dado relevante e propiciador da aproximação entre o trabalho teórico do
presencista e a poesia de Al Berto diz respeito ao biografismo atribuído ao fato de a
“Literatura Viva” calcar-se na “parte mais íntima do artista”, ou seja, utilizar como recurso
mimético a realidade mais próxima do artista: a sua própria vida:
as esferográficas sujam as pálpebras das palavras, constelando os textos com
belos gatafunhos.
estamos deitados à espera que se dissipe o sono e despertem, na dobra do
lençol, os fantasmas quotidianos.
o texto autobiográfico irrompe, quase sempre, nos momentos de ócio, nas
paragens. (M, p. 38)
No caso do poeta, a experiência da AIDS, por exemplo, seobjeto de suas constantes
considerações sobre a escrita e sobre a própria existência, constituindo com a morte, com a
melancolia e a condição sexual os três maiores eixos de sua produção.
Em outro sentido, o texto “vivo”, se coloca na medida em que, ao dar voz à intimidade
e insuflar de vida o poema, mostra a capacidade de a vida ser vista e entendida também como
uma manifestação artística, propiciando, assim, uma “cotidianização” da arte, bem aos moldes
das proposições de vanguarda. Numa palavra: a experiência cotidiana torna-se, assim, motivo
para a produção da poesia e razão de sua escrita; e o corpo, lugar em que primeiro se vive, ora
é o próprio organismo biológico, ora é o local dentro do qual a própria poesia reside, ora
aquilo que sustenta a sua existência, num processo metalingüístico constante em que corpo e
escrita se confundem e se correspondem:
18
Assim, a presente tese tem por objetivo principal verificar as contribuições e propostas
críticas de José Régio, construídas em torno da revista PRESENÇA (1927 1940), e suas
relações com a poesia portuguesa do fim do século XX, procurando perceber a existência de
uma possível continuidade, que pode ser assinalada e percebida na obra poética de Al Berto.
O percurso tende a constituir e resgatar uma “herança invisível” capaz de ser reclamada a
partir de alguns tópicos recorrentes da crítica contemporânea (subjetividade, individualidade,
experiência e corpo) e que possam proporcionar a detecção, no poeta referido, de aspectos que
o vinculem, de forma silenciosa, às proposições regianas e que, desta forma, contribuiriam
para a formulação de uma “estética pederástica”, silenciosamente inscrita na tradição
modernista portuguesa e da qual o poeta em questão é o resultado mais recente.
Antes, cabe problematizar, baseando-se no pensamento de Michel Foucault, tanto os
pressupostos críticos em questão, como o papel da Crítica e da História Literárias na
compreensão dos autores e movimentos aqui contemplados e das questões ligadas à
sexualidade e ao erotismo.
19
1 PARA A HERANÇA INVISÍVEL UMA ARQUEOLOGIA E UMA GENEALOGIA
Para a formulação de uma base teórica que segurança à revisão de crítica e
produção literárias consideradas díspares pela flagrante distância temporal, bem como pelas
opções e realizações estéticas, necessário se faz o recurso a um pensamento que não se
sustente sobre as amarras da cronologia que ainda insiste em determinar a linearidade das
Histórias da Literatura. Discurso ainda não totalmente marcado pelas reflexões
historiográficas oriundas da metodologia desenvolvida pela História Nova, a História da
Literatura ainda carece de uma revisão mais profunda, seja para reconfigurar a sua relação
com a História da Cultura, seja para rever a sua organicidade interna, sempre marcadamente
linear, devedora das histórias literárias de cunho historicista do século XIX.
No âmbito da historiografia, o pensamento de Michel Foucault foi fundamental para
que se viesse a perceber que a linearidade histórica era uma organização narrativa que se
pautava numa cronologia sumária, deixando de lado elementos que se mantinham numa
“longa duração” ou numa sucessão de rupturas. Dessa maneira, pode-se perceber a
permanência de fatores dispostos na História da Cultura que, numa perspectiva superficial,
podem parecer inicialmente inéditos, mas que o, na verdade, oriundos de práticas e saberes
muito anteriores e que, por isso, estão inscritos numa “longa duração” ou numa mentalidade,
como indicava Jacques Le Goff.
Busca-se, aqui, compreender uma teia de discursos que se ocultam sob discussões
estéticas, políticas e ideológicas no correr da História da Literatura Portuguesa do século XX
Os conceitos metodológicos fundados por Michel Foucault ao longo de sua obra, para isso,
tornam-se capitais. Tendo eleito o discurso como o objeto fundamental de investigação das
Ciências Humanas, Foucault oferece-lhes - e nesse caso em especial, à Literatura - uma
20
diretriz metodológica funcional capaz de criar a sustentação para a investigação proposta.
Ao se debater com as metodologias correntes das Ciências Humanas, em meados do
século XX, Foucault verificou que estas não eram suficientemente eficazes para darem conta
dos diversos matizes que determinados objetos de investigação apresentavam no interior da
história da cultura. Instituiu, assim, o conceito de arqueologia, estabelecido em História da
Loucura (1963), que oferecia condições mais amplas do que as dadas nos termos do
conhecimento científico convencional. Sobre a arqueologia afirmou que
o arqueólogo deve examinar a estrutura do discurso documental, tomando-o
per si, e como se constitui. O arqueólogo examinaria os elementos que
regem os enunciados e a forma como se regem entre si para constituir um
conjunto de proposições aceitáveis cientificamente e, conseqüentemente,
susceptíveis de serem verificadas ou infirmadas por procedimentos
científicos (FOUCAULT, 1979, p. 4).
Nesse debate, Foucault propôs um modelo historiográfico capaz de reinterpretar as
disciplinas existentes de forma a encontrar uma metodologia mais eficiente para a
compreensão dos objetos pertencentes à história das idéias, usando para tanto um modelo que
dispensasse os pressupostos oferecidos pelo conhecimento científico corrente. Para tanto, o
filósofo deu início a uma perspectiva que atravessasse as disciplinas a partir do encontro da
experiência imediata transcrita pelo discurso, que, percebido na sua proveniência e nas
representações ali demarcadas ou adquiridas, dariam nascimento a novos sistemas e obras
(FOUCAULT, 1972, p. 167 ss). Opondo os recursos arqueológicos às determinações
assentes da história das idéias, Foucault delimita a proposição a partir dos seguintes
contornos: a arqueologia definiria os discursos enquanto práticas que obedeceriam a regras,
considerando que o discurso é específico, não é um documento, mas um monumento, ou seja,
algo que se cristalizou no âmbito da história das idéias. Por outro lado, a arqueologia
definiria ainda os tipos de regras discursivas que atravessariam obras individuais, procurando
estabelecer, de forma descritiva, aquilo que sistematizaria um discurso enquanto objeto,
21
sendo, portanto, um procedimento não-intepretativo. Ao relacionar o pensamento de Foucault
à Psicanálise, Ernani Chaves (1988, p. 12), procurando explicitar sob que circunstâncias a
arqueologia se estabelecia, aponta para o fato de que ela seria uma tentativa de “desmascarar
as condições de existência dos discursos”, dos objetos que os constitui, dos sujeitos que os
enunciam, em especial dos discursos que têm o homem como seu objeto e que habilitam
determinados sujeitos a conhecê-los. Assim, a arqueologia seria um método de investigação
cujo foco seria a percepção do homem como uma nova região do saber moderno e,
particularmente, de como se constituem os saberes sobre esse homem.
Para Roberto Machado, na introdução à obra Foucault: a Filosofia e a Literatura
(2001, p. 9-11), a arqueologia seria uma análise histórico-filosófica das ciências do homem,
que pensaria em seu escopo os conceitos que as permeiam como sendo independentes da
própria ciência definida como um processo histórico. E, ainda, uma análise dos discursos e
dos enunciados relacionados a essas ciências. Essa análise tomaria as formações discursivas, a
positividade do discurso e o arquivo como noções geradoras e teria como domínios os
enunciados, os campos enunciativos e as práticas que constituiriam os discursos. Na prática, a
arqueologia gravitou em torno dos saberes e dos discursos sobre o homem, assim
fundamentando-se como um saber antropológico e humanista. As reflexões que Foucault fará
a respeito do apagamento do indivíduo como sujeito e o reconhecimento do sujeito como
entidade discursiva, serão todas elas sustentadas por esta visão.
Machado considera ainda que a aproximação cada vez mais aparente entre Foucault e
Nietzsche deveu-se em muito às leituras dos filósofos que introduziram o pensamento do
autor de Gaia Ciência em França. Esses autores - Klossowski, Blanchot e Battaille - muito
atentos à produção de um pensar não-dialético e não-fenomenológico como o fora daquele
filósofo. Usaram a Literatura como forma de fazer circular tais idéias, fato que influenciou
fortemente o pensar foucaultiano, sobretudo nos momentos que se seguiram à formulação do
22
conceito em discussão.
Segundo Machado, muito dessa aproximação deveu-se ao desencanto do filósofo de
As palavras e as coisas com a atividade filosófica em si e pelo fato de a mesma ter perdido
prestígio, assim como criticidade enquanto modelo de compreensão do mundo e do homem.
Influenciado por aqueles filósofos, Foucault, baseando-se em muitas das suas proposições,
passa a tomar a linguagem literária como alternativa ao homem considerado como “a priori
histórico dos saberes da modernidade” (MACHADO, 2001, p. 11). Sendo a compreensão
desse artifício da linguagem o ponto gerador das suas pesquisas sobre a psiquiatria (História
da Loucura, Doença mental e Psicologia), a morte (Hölderlin, Raymond Roussel, O
Nascimento da Clínica), a medicina (O Nascimento da Clínica, Sade) e sobre o homem
(Flaubert, Mallarmé), a linguagem literária, passou a ser vista na sua capacidade de ruptura
com os dogmas que aprisionariam o pensamento e que livraria do estatismo a que estava
submetida à reflexão filosófica.
Considerando que a Literatura constituir-se-ia como um tipo de saber específico
sobre o homem - gerado na modernidade, e que a linguagem seria o âmago da linguagem
literária (FOUCAULT, 2001, p. 142), a Literatura complementaria as análises filosóficas na
medida em que a sua valorização como contestação do humanismo científico revelaria o
aspecto positivo do pensamento filosófico e da epistemologia, que até então haviam se
mostrado ineficazes na sua função.
Com Bataille e Blanchot, Foucault pôde focalizar a experimentação da linguagem de
forma independente do sujeito que a produzia e, com isso, durante o seu percurso
arqueológico - mesmo que dispersamente como se observa na sua produção - dedicou-se ao
estudo da literatura na sua relação com a linguagem em si e com a estruturação do modelo
arqueológico. A análise da linguagem literária constituiu-se como um complemento da
arqueologia, na medida em que também contestou a estrutura dos saberes instituídos sobre a
23
Literatura e sobre o homem, o que para Foucault mostrava-se como sendo uma experiência
radical da linguagem e do pensamento.
Da mesma forma, é nos dois filósofos dedicados à causa literária que Foucault irá
encontrar a sustentação teórica para pensar a linguagem de maneira distanciada do modo
fenomenológico. Assim, passa a conceber a linguagem tanto com relação aos sujeitos, como
também com relação à morte (do autor, da própria linguagem e da literatura), assim como a
situa com relação à cultura, aos saberes, ao tipo de normatividade e às formas de
subjetividade.
Em seus artigos “Linguagem e Literatura” (apud MACHADO, 2001) e “Linguagem
ao Infinito” (FOUCAULT, 2002), Foucault teoriza a respeito das implicações da linguagem e
de como esta se articula de maneira a estabelecer o que se convenciona a chamar Literatura.
Para o filósofo, a Literatura - como fenômeno moderno que se constitui como discurso - pode
ser passiva de uma análise arqueológica, já que é fruto do poder disciplinar dos séculos XVIII
e XIX. É esse o período da história moderna em que a vida comum passa a ser
“discursivizada” e a tomar domínios específicos dentro dos discursos vigentes. Assim, é nesse
ínterim que a literatura, como os outros saberes de e sobre o homem, começa a se diferenciar
dos demais textos, articulando-se como um domínio específico da linguagem, por um lado, e
como uma forma de institucionalização da linguagem, por outro.
No primeiro artigo, o filósofo alude ao fato de que a pergunta tão corrente no
momento da produção de seu artigo “o que é a literatura?” é uma questão que está no
cerne da própria literatura, uma vez que nenhuma obra nasce com tal rótulo, mas são as
injunções históricas e culturais que a determinam como um arranjo particular na sua relação
com a linguagem. Para tanto, Foucault toma como pressuposto aquilo que hoje chamamos
literatura grega, por exemplo, que não admitira Eurípides como uma obra pertencente ao seu
cânone, mas que por movimentações dos discursos e saberes sobre a obra e sobre o autor,
24
assim como sua inscrição no panorama estético, passa, portanto, a constituir-se como parte
desse conjunto. O filósofo, logo, aponta para uma discussão bem contemporânea, no que
tange à percepção da obra e do autor dentro de um contexto mais amplo que de forma alguma
depende deles. Ou seja, quer afirmar que o texto não ‘nasce’ literário, mas, torna-se função
das estratégias de leitura, abordagem da crítica e dos discursos que procuram justificar a
presença da obra no interior de um sistema mais restrito.
Aqui, é oportuno pontuar a relação entre o que até aqui foi explicitado sobre o
pensamento de Michel Foucault e a contribuição crítica presencista. No artigo que inaugura o
trabalho da revista, José Régio afirma que a literatura produzida até aquele momento era
marcada pelo mecanicismo das escolas literárias e pelo pedantismo de se querer produzir,
aprioristicamente, obras consideradas literárias em sua origem. O pensamento de Régio o de
Foucault discutido até agora parecem, pois, estar em convergência à medida que ambos
mostram a preocupação com o fato de que é a inserção da obra em seu contexto e a sua
conseqüente leitura que irão conferir-lhe a capacidade ou não de ser tomada como exemplo de
arte literária. Por outro lado, alude-se, também, no artigo da revista ao esgotamento da
linguagem literária e dos procedimentos que nela concorrem, fato que ocasiona, por parte dos
artistas a constante repetição de características que esvaziam a expressão da arte, pelo
“exagerado gosto pela retórica” (RÉGIO, 1977, p. 18). Tal fato é também destacado por
Foucault, quando pontua que o processo de absorção da linguagem literária pelas formas de
poder equivaleu à produção de obras que atendiam a um mesmo procedimento estético. Em
outras palavras: as escolas e estilos nada mais fizeram do que institucionalizar a ruptura
representada pela literatura e, com isso, foram paulatinamente retirando o caráter transgressor
que tal discurso poderia assumir e, conseqüentemente, tornando-se também mais um dos
mecanismos de poder vigentes nas sociedades humanas. Agora, então, baseado no poder de
determinar o que é ou não pertencente ao campo da arte literária.
25
Aliás, emerge no século XIX – durante o Romantismo - a determinação de que o texto
literário deve pertencer a uma série particular, diferenciada dos outros textos e discursos
correntes, ao mesmo tempo em que a literatura aparece como estratégia de legitimação de
uma classe social e artística dentro do mundo burguês de então e que precisa se constituir
com uma história que justifique o seu papel social. Antes disso, porém, nunca houve a
necessidade de tal especificação, visto que ainda o havia uma consciência de que a
literatura era um ato transgressor em si mesmo, mas pelo contrário, era inconsciente de si
como uma arte específica. O desaparecimento da retórica, nesse mesmo momento, contribui
para que a literatura possa estabelecer que signos e campos irão determinar o que é
necessariamente literário, já que agora cabe à literatura toda a responsabilidade pela expressão
do “belo” da linguagem.
O posicionamento de Foucault a esse respeito parece tomar dois rumos que se
complementam: por um lado, enquanto estratégia de poder, a literatura está ao lado dos
discursos privilegiados socialmente, uma vez que ela não se estabeleceu como um discurso
capaz de ser ponto de resistência nos jogos de força do poder, não conseguindo desmarcar-lhe
as relações e, por conseguinte, não sendo algo destinado a desmantelar os dispositivos de
poder; por outro lado, sugere também que o século XX institucionalizou a literatura como o
lugar da transgressão, que o sistema, ao recuperá-la para si, anulou completamente a sua
capacidade de constituir-se como um outro dizer. Importante nesse processo foi a crítica, ao
assumir o seu papel de sistematizadora do universo literário, querendo com isso recuperar o
privilégio político do autor e de si mesma, da mesma forma que com a institucionalização
compromete sua função reformadora e revolucionária.
Aliás, o jogo constante entre transgressão e repetição perfaz o paradoxo que sintetiza a
literatura. Se ela tende a revelar o interdito, leva a linguagem ao limite da expressão e
enclausura a escrita; vai perpetuar também a repetição contínua da linguagem, a constante
26
retomada, a continuidade de temas e procedimentos e a biblioteca como forma de constituir-se
como documento. Nesse último sentido, quando se institucionaliza na repetição, a literatura,
sobretudo no século XIX, é vítima do assassinato de si própria, negando a si mesma,
apagando de sua historicidade os vestígios anteriores e distintos a si, transformando a arte que
encerra em molde, padrão e local dos discursos de poder.
A História da Literatura, decorrência desse processo de institucionalização, tornar-se-á
uma abordagem que recusa a própria literatura, desconsiderando o jogo constante entre
continuidade e descontinuidade como se verá adiante, na perspectiva genealógica. Segundo
Foucault (2001), essa recusa implica quatro estágios: a) recusar a literatura dos outros, criando
um sistema literário fechado e restrito, necessário à legitimação e permanência da literatura;
b) recusar aos outros o direito de fazer literatura e negar que as obras a estes pertencentes
venham a fazer parte dela, como forma, inclusive, de manter a série literária dentro dos
limites estéticos preconizados em cada momento; c) contestar o próprio direito de ser e fazer
literatura, ao engendrar a mudança de valores estéticos e a flutuação dos discursos a respeito
de si; d) recusar a fazer ou dizer, no uso da linguagem literária, outra coisa que o seja
“assassinar” a literatura.
Esses estágios se constituem no fato de que todo ato literário se apresenta e toma
consciência de que é transgressor da essência pura e inacessível da literatura, que, como
indica Foucault, esta “é” no momento da criação, aquele que antecede a página em branco,
momento da consagração da palavra responsável pela existência da obra. Para o filósofo, a
literatura é a essência do drama da linguagem e do vazio que lhe é inerente. Vazio do qual a
literatura emerge; entre a repetição contínua da biblioteca, a existência horizontal da História
Literária, a morte da literatura, e a palavra da transgressão, interdito que apaga toda literatura,
toda filosofia e toda linguagem anterior a si. Espaço de desdobramentos e de simulacros; de
jogos constantes entre a obra que quer encontrar a literatura, sem que jamais a reconheça:
27
Em outras palavras, entre uma linguagem tagarela, que não dizia nada, e uma
linguagem absoluta, que dizia tudo, mas não mostrava nada, bem que era
preciso uma linguagem intermediária que levasse da tagarelice à linguagem
muda da natureza e de Deus: precisamente a linguagem literária.
(FOUCAULT, 2001, p. 152)
É dessa necessidade de se alcançar uma linguagem absoluta que se constitui o ato
literário. Coincidência ou não, a literatura nasce no momento em que Nietzsche declara a
morte de Deus e a primazia do homem. Daí que Foucault também relacione esse surgimento
da literatura como instituição a uma existência póstuma da linguagem, já que a linguagem por
excelência, a palavra de Deus, desfaz-se para em seu lugar nascer um outro dizer capaz de dar
conta da modernidade. Na medida em que se calca num discurso que engendra poder, a
literatura passa a também ser alvo do questionamento foucaultiano a respeito dos objetos que
pertencem à história das idéias, criticada pelo filósofo, como sendo um apagamento dos
saberes postos à margem na formação do pensamento sobre as ciências humanas.
No outro artigo em que também trata da interação entre linguagem e literatura e suas
relações com as ciências do homem, “Linguagem ao Infinito”, Foucault aborda a
possibilidade de uma ontologia da literatura a partir dos fenômenos de auto-representação da
linguagem, de certa forma já aludidos em “Linguagem e Literatura”. Aprofundando a questão
de que a literatura nada mais é que uma “obra” da linguagem, expõe a sua relação com o saber
e a verdade, dois pilares, aliás, do pensamento foucaultiano de então.
Retomando o princípio de que a literatura emerge enquanto discurso em meio às
guerras napoleônicas e revoluções compreendidas na viragem do século XVIII para o XIX, o
filósofo começa a relacioná-la também com a morte (objeto de suas ponderações em O
Nascimento da Clínica), uma vez que a considera como o mais essencial dos acidentes da
linguagem, justo por que intraduzível e não passível de ser transformada em representação. A
partir desse fenômeno (a morte) algo se cria e se retoma continuamente no interior da
linguagem. A aproximação entre uma e outra se na medida em que a linguagem - que se
28
auto-representa e se auto-narra - é metalinguagem pura, um espaço que como a morte tenta se
representar concretamente, mas que não conta de si mesma. Para proteger-se da finitude e
distanciar-se da morte, a linguagem necessita da obra e da palavra escrita, como formas de
sobreviver à própria falta essencial, a sua restrição enquanto forma de representar o real;
resistir ao próprio drama e ao que de trágico traz em si.
Situando em Sade a proveniência da literatura em seu sentido moderno, Foucault
aponta para o fato de que neste autor a linguagem se torna veículo de representação não só de
si e do interdito, mas também é a partir daí que se começa a revelar a inserção da literatura na
modernidade, que, indo ao extremo possível de revelar o indizível pela linguagem até
então, Sade estabelece um novo paradigma baseado na transgressão e na imanência da morte e
da violência na e pela linguagem. Na verdade, o autor de A Vontade de Saberindicaria com
isso a existência de uma outra possibilidade de História da Literatura, na medida em que
observa que em Sade outros aspectos da linguagem literária estão sendo explorados. Em
outras palavras, aquilo a que se chama “literatura” ganha discursividade, matéria da
arqueologia, justamente em Sade.
Num segundo momento do mesmo artigo, Foucault passa a priorizar o processo de
reduplicação da linguagem pela literatura, procurando mostrar como na verdade o que se
observa é que se faz menos arte e cada vez mais se aprofundam as discussões sobre a
literatura, tarefa implementada pela crítica literária, como aqui foi aludido. Mais
preocupada com o processo de mediação entre escrita e leitura, a crítica por vezes assume um
discurso cujo cerne está na positividade da ciência, fato este que cria um paradoxo na tarefa
de análise, já que a literatura, como artifício da linguagem que se lança ao infinito, não possui
as margens necessárias a comportar um juízo que muitas vezes não a está concebendo como
arte ou como representação. Assume assim a crítica o papel de leitor privilegiado, demarcador
da verdade sobre a obra, circunscrevendo-a a um segundo plano e esquecendo-se que a
29
literatura é antes de tudo um simulacro que ganha corpo no livro.
A diluição do pensamento de Foucault a respeito da literatura acontece justamente em
As palavras e as coisas, momento em que deixa de lado suas discussões sobre a linguagem
para começar a preocupar-se com a relação entre discurso (materialidade ou prática, conjunto
de enunciados) e o enunciado, entendendo o primeiro como uma função representativa da
linguagem e o segundo, como o que torna possível relacionar um conjunto de signos com o
domínio dos objetos com os quais se relacionam. Sendo o enunciado vazio, cabe aos
indivíduos preenchê-lo, na linguagem, para se tornarem sujeitos.
Em Nietzsche, a Genealogia e a História” (1979, p.15-38 ), Foucault substituiu a
arqueologia pela genealogia, recusando a categoria de origem, que balizara a arqueologia,
apoiando-se nos conceitos de proveniência e emergência, que encerrariam em si a discussão
acerca da dissolução do sujeito do cogito e, portanto, colocariam o discurso em grave
suspensão na medida em que as categorias formais da História, como o próximo e o
longínquo, a causalidade e a temporalidade, seriam desprovidas de sentido a partir do
momento em que se percebessem apenas as noções de continuidade e descontinuidade. Por
isso, a genealogia coloca o seu próprio discurso em suspenso ao se declarar sempre sob uma
determinada perspectiva parcial e, conseqüentemente, fragmentária. A genealogia pretende
explicar a constituição dos saberes modernos a partir do poder e das relações de força, neles e
por eles representados.
A proveniência, substituindo a idéia de origem, procura ordenar aquilo que se
considera dessemelhante; por não ser diacrônica, não-cronológica e não evolutiva, não
enfatiza o passado como uma marca no presente, mas procura manter a dispersão dos
acontecimentos e sua descontinuidade. Assim, tem lugar a visão das várias vertentes
heterogêneas daquilo que se pensava único e original, em detrimento do fundamento ou o
momento de fundação. Ao não pretender ser objetiva, a proveniência tem origem no corpo e
30
na ligação deste com a vida, pois nele estão inscritos os estigmas, os desejos e os conflitos que
cercam o homem e a própria história; é no corpo que se inscrevem os acontecimentos. A
genealogia, como estudo da proveniência, procura articular a relação entre corpo e história,
percebendo em que medida o primeiro é o “local” aonde aquela se circunscreve.
Cotejando o postulado foucaultiano com o que foi proposto pelo trabalho crítico de
Régio na revista PRESENÇA, pode-se inferir que em certa medida o que se propõe em termos
de “Literatura Viva”- considerando a enumeração feita pelo poeta no que tange aos autores
“vivos” – pode ser também uma história do corpo no espaço literário, uma vez que ao destacar
como exemplo autores como Jean Cocteau e Oscar Wilde o que está sendo discutido também
é a configuração que tais artistas conferiam à corporeidade como forma de traduzir os dramas
humanos e particularmente os pessoais, os desejos eróticos e a existência.
Por sua vez, a emergência constitui-se como o ponto de relevo em que a genealogia
ressalta os jogos de dominação e os sistemas de submissão, sendo o lugar intermédio das
forças em confronto, lugar de afrontamento. Segundo o filósofo, não indivíduo que seja
responsável pela emergência, que ela é um produto dos interstícios que se estabelecem
entre a relação de dominados e dominadores e das regras que esta interação é capaz de
produzir. Dessa forma, Foucault sugere que o “historiador” questione a origem dos fatos e dos
discursos uma vez que a história é feita por quem se apodera das regras e procurando
estabelecer o momento de emergência, aquele será capaz de estabelecer as condições que
levam a uma determinada interpretação dos fatos históricos. É necessário, portanto, encontrar
o lugar em que houve a opção por um discurso e não por outro para a partir daí descontinuar
os saberes históricos constituídos, rearranjando-os sob uma nova perspectiva. A oposição feita
por Foucault à pesquisa da origem deve-se em muito ao fato de que esta procura alcançar a
essência exata das coisas, desvelando uma suposta verdade. A busca pela emergência seria a
tentativa do encontro de uma identidade, primeira, dos acasos do começo, justo no momento
31
em que estes são profundos e não-narráveis e, portanto, não absolutos. Enquanto a origem se
preocuparia com aquilo que se estabelece como uma verdade sobre a qual a história se baseia,
a emergência desfaria a oposição entre verdadeiro e falso, mostrando como um está dentro do
outro e se engendram mutuamente.
A troca de um dos focos de atenção de Michel Foucault, como é o caso do afastamento
das questões sobre a literatura como linguagem, vem em decorrência da necessidade de
compreensão dos discursos anônimos e/ou silenciados, que nunca ultrapassaram os limites
instituídos, pela literatura, por exemplo. A literatura sai do âmbito do pensamento do autor até
por ser, segundo ele, baseada num modo de sujeição (da linguagem): a escrita. Aliás, o
mesmo drama de Régio: a sujeição do dizer à linguagem, “mal necessário”, como bem o
indica a seu respeito Eduardo Prado Coelho (1972, p. 37). Além disso, como que antevendo
as considerações que posteriormente serão feitas a respeito, Régio sabe que a literatura é um
sistema fechado e excludente, submetido à lógica do pertencimento e do beletrismo que
retiram do texto seu caráter original para em lugar disso preconizar a vinculação às escolas e
aos estilos, por si só discursos silenciadores.
Por outro lado, Foucault percebe que a literatura o é um discurso das margens, mas
está ao lado daqueles socialmente privilegiados; e ainda que ela não se estabeleça como um
discurso capaz de ser ponto de resistência nos jogos de força, não consegue desmascarar suas
relações e nem seus dispositivos de poder. A partir daí, seu olhar recai sobre relatos dos
encarcerados, loucos, doentes, sobre a “vida dos homens infames”, como Pierre Rivière, e
sobre o elogio dospoemas-vida”, como Raymond Roussel, enfim, sobre uma literatura viva,
porque reveladora do que é mais pertinente aos sujeitos e indivíduos. Na constituição de seu
método, Foucault levou em consideração a necessidade de se marcar a singularidade daquilo
que era tido como não possuidor de história, operando uma “descoberta exata das lutas e da
memória bruta dos combatentes (FOUCAULT, 1979, p. 171). Ou seja, o
32
encontro de discursos cuja transparência e atuação dos sujeitos neles envolvidos foram de
alguma forma silenciados no processo de constituição das ciências. A genealogia deve,
portanto, acoplar o saber erudito aos saberes pessoais, de forma a eliminar a tirania discursiva.
A ativação desses saberes pessoais e descontínuos, não legitimados, consistiria numa oposição
à unidade teórica que pretende depurar, hierarquizar e ordenar esses discursos tidos como
menores “em nome de um conhecimento verdadeiro e dos direitos de uma ciência detida por
alguns” (FOUCAULT, 1979, p. 171-2). A esse respeito, o teórico declara que a genealogia é
uma anti-ciência, um insurreição dos saberes contra
os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao
funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma
sociedade como a nossa. Pouco importa que esta institucionalização do
discurso científico se realize em uma universidade ou, de modo mais geral,
em um aparelho político com todas as suas aferências, como no caso do
marxismo; são os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como
científico que a genealogia deve combater. (FOUCAULT, 1979, p. 171)
Foucault considera, ainda, que a ciência traz em si a ambição pelo poder;
genealogicamente, o discurso contínuo da ciência é antes um defeito que uma qualidade a ser
alcançada, visto que os saberes, para se justificarem frente aos discursos em circulação -
teóricos e coercitivos - reclamam para si a classificação como ciência. Com relação ao projeto
de inscrição dos saberes na hierarquia científica, a genealogia funcionaria como uma prática
efetiva de libertação dos saberes históricos dos discursos cerceadores das ciências, utilizando
os saberes locais e pessoais como caminho para essa modificação metodológica. Nesse
sentido, o discurso genealógico não se pretende totalizador, mas antes dialógico e
transdiscursivo.
Deve-se frisar aqui que o pensamento do filósofo de As palavras e as coisas recai
sobre as relações entre o poder e o saber, particularmente quando vistas e percebidas no
arranjo sistemático das Ciências que, embora se pretendam “do homem”, esvaziam-no na
33
construção de seus discursos. E mais, de como tais relações corroboram para as reflexões
sobre os sujeitos em sua relação com esses campos de força. Para a descrição de tanto, a
arqueologia e a genealogia se complementariam na medida em que a primeira é um método de
análise para compreensão de discursos específicos, a segunda funcionaria como a ativação de
saberes históricos, de forma a torná-los livres da coerção, do senso unitário e do rigor teórico
típicos da abordagem científica. Em outras palavras: enquanto a arqueologia revelaria as
“camadas” que compõem os discursos perpetuados na história da cultura, a genealogia
tenderia estabelecer-lhes uma proveniência (local de inscrição) e uma emergência (momento
de confronto entre discursos diversos e de constituição de um que prepondere como domínio
num determinado jogo de forças).
Estendendo a perspectiva de tal formulação para o campo da Literatura, podemos
observar que a Crítica Literária tende a atuar na sistematização e hierarquização de saberes
que ela pode ou não considerar como pertencentes ao espaço literário. O poder exercido por
um viés da crítica, assim como a sua prática constante de continuar a série literária, retira do
âmbito daquilo que se considera Literatura autores e obras cujos discursos não coadunam com
o modelo então implementado. Operando em sentido inverso, a crítica às vezes
desgenealogiza certos discursos, que tende a retirar do limbo discursos soterrados que
propositalmente vão soterrar outros ainda não percebidos genealogicamente, ou seja,
recolonizando certas perspectivas e apagando outras. Dando continuidade, Régio, ao propor
um conceito não baseado em aspectos cronológicos e históricos, no sentido lato do termo,
pretende constituir uma crítica eficaz que não fosse submetida às injunções de uma época ou,
melhor, de uma escola ou movimento. De igual maneira, ao se pretender resgatar o conceito
de “Literatura Viva” para a crítica da produção contemporânea, distanciado em quase oitenta
anos, busca-se implodir os modelos críticos que cristalizaram a História da Literatura
Portuguesa do século XX, como será visto no próximo capítulo.
34
Ao se pensar a arqueologia foucaultiana também como um recurso para a
compreensão da Literatura - e de sua articulação portuguesa em particular –, o que se quer na
verdade é tentar estabelecer que discursos subjazem à construção das novas identidades
poéticas aqui representadas por Al Berto, ao mesmo tempo em que se procura vincular os
discursos de e sobre a masculinidade – constituídos na tradição literária portuguesa – às novas
subjetividades representadas pelo material do poeta em questão. Assim, devem-se definir
rotas que conferiram à PRESENÇA o estatuto que hoje tem no interior da literatura
portuguesa. Ao mesmo tempo em que se busca não a origem da subjetividade homoerótica na
poesia portuguesa, mas o ponto de emergência em que ela passou de formação discursiva
transgressora a possível discurso poético. Por outro lado, a Genealogia, aqui, deve perfazer os
vínculos silenciosos entre os elementos da tradição, já circunscritos na história da cultura e da
Literatura, procurando sugerir uma nova constituiçã
Vale como ilustração a esse tipo de prática da crítica o trabalho de Jean Paul Sartre,
sobre Jean Genet, em Saint Genet – comèdien et martyr, em que tentando explicitar a obra e o
processo de criação do referido autor a partir da sua homossexualidade, Sartre acabou por
colonizar a obra de Genet, colocando-a no interior da cultura francesa. Ao implementar esse
procedimento, esvazia o saber local e pessoal do autor de Nossa Senhora das Flores
(homossexual e criminoso), demonstrando como o homem pode escapar dos determinismos
em que as ideologias querem encerrá-lo através de um projeto livremente assumido.
Objetivando dar outra luz à obra de Genet, Sartre ocasiona o silenciamento da obra e do autor,
esvaziando o dado transgressor ali contido, naturalizando o artista, circunscrevendo-o,
portanto, na História da Literatura e da Cultura francesa, transformando seu discurso em uma
forma de poder e dominação por sobre vida do autor. Ao teorizar sobre o que havia de
cotidiano, comum e biográfico e ao mesmo tempo sinceridade insincera na obra e na
existência de Genet, Sartre passa a conferir-lhes um aspecto que não lhes era pertinente: a
35
consciência da transgressão, fato de que o autor das Pompas Fúnebres não se apercebia. Ao
doar sentido ao que por natureza discursiva nada mais era que a exposição de experiências
efetivamente vividas e tornadas arte, Sartre impõe a Genet alternativas que este nega, mas que
o impedem de continuar a dizer-se, que agora fora “abduzido” pela fala acadêmica,
filosófica e, sutilmente, silenciadora (MAYER, 1989, p.271-284).
Direção contrária, por exemplo, deu-se com o romance naturalista O Barão de Lavos,
de Abel Botelho (1891). Situado na História Literária no escopo dos romances de tese e de
discussão das “doenças sociais e morais” do Portugal da época, o romance, ao ser reclamado
nos anos noventa pelo público gay lusitano como o primeiro romance homossexual em língua
portuguesa, teve seu papel cultural reconfigurado, à medida que os movimentos de
emancipação homossexual conferiram-lhe uma história que até então não lhe era atribuída,
mas que corria em paralelo ao que dizia a crítica. Nesse caso, ocorreu a insurreição de
saberes, aludida por Foucault, que o romance passa então a funcionar contra o poder
discursivo até aquele momento atribuído a si (LUGARINHO, 2002, p. 276-300).
Considerando que arqueologicamente os enunciados dispersos no tempo formam um
conjunto se eles se referem a um mesmo objeto, pode-se inferir a existência de um feixe que
liga, na Literatura Portuguesa, as tematizações sobre a homossexualidade e suas implicações
no discurso literário; e que, genealogicamente, pode-se decompor os perfis constituídos pela
História para, a partir de um ponto de emergência, reiniciar a sua escrita. Cabe aqui
estabelecer uma outra leitura daquela literatura, tendo como princípio a questão aqui referida.
Nesse sentido, pretende-se reconfigurar os objetos de forma que, partindo de um novo solo
discursivo, possa-se interferir no processo que constitui a História da Literatura Portuguesa no
século XX.
Ernani Chaves, em seu estudo sobre Foucault e a Psicanálise, declara que a
arqueologia deve “demarcar as condições de existência dos discursos” (CHAVES, 1988,
36
p.12), dos objetos que estes constituem, dos sujeitos que os enunciam, em especial dos
discursos que tomam o homem como seu objeto e que habilitam determinados tipos de
sujeitos para conhecê-los. Ao refletir essa trajetória no interior da Literatura Portuguesa, deve-
se procurar estabelecer como a escrita do corpo, e em especial do corpo erótico e
homossexual, se colocou nesse âmbito e como se pode hoje ler determinados poetas a partir
de uma clave iniciada no alvorecer do Modernismo. Isso deve levar à compreensão da
“herança invisível”, engendrada em ORPHEU, constituída no trabalho crítico da PRESENÇA
e perceptível na poesia contemporânea de caráter homoerótico, particularmente em Al Berto
(1948-1997).
37
2 REVIVENDO A PRESENÇA
2.1 A crítica literária e sua abordagem da PRESENÇA
A revista PRESENÇA - Folha de Arte e Crítica revela-se como manifestação de uma
das correntes literárias portuguesas mais controversas do século XX e talvez a mais
desprezada. Certo tom psicologista, filosófico e, no dizer de alguns, intimista da revista e do
movimento favoreceu a criação de uma atmosfera crítica pouco favorável em seu entorno,
muito baseada no fato de que a revista também não procurou no seu exercício crítico
fazer-se certas perguntas e encontrar certas respostas a seu respeito que muito favoreceriam a
uma melhor abordagem posterior de sua produção.
Críticos de relevo, como Fernando Guimarães, Eduardo Prado Coelho e Eduardo
Lourenço, dentre outros, delegam-lhe o crédito de ter sido a grande veiculadora de toda uma
série de autores que determinariam os “destinos” da Literatura Portuguesa do século XX,
como a geração de ORPHEU, por exemplo. Entretanto, estes mesmos críticos atribuem-lhe
uma posição intersticial entre aquele primeiro modernismo português e a conseqüente arte
programática neo-realista (eufemismo português para o Realismo Socialista que então estava
em voga na Alemanha, no Brasil, na Rússia e na Itália dentre outras ries literárias), surgida
em Portugal no início dos anos quarenta do século XX, considerando, inclusive, que a revista
coimbrã representou um passo atrás na aventura modernista portuguesa.
É corrente na crítica que se faz da Literatura Portuguesa do século XX localizar a
PRESENÇA como um movimento estanque, ou seja, que não teria apresentando dentro do
panorama literário português uma atuação capaz de torná-la um movimento que transcendesse
as próprias questões e se espraiasse pela produção artístico-literária posterior a si. A esse
38
respeito temos as posições clássicas dos críticos aqui aludidos, particularmente a de
Eduardo Lourenço, para não citar outros, que localizam o movimento numa posição aquém
aos avanços implementados pela geração de 1915, por um lado, e como algo incipiente em
termos de colaboração estética, por outro.
Eduardo Lourenço, no polêmico artigo “‘Presença’ ou a Contra-revolução no
Modernismo Português (?)”, aqui em sua segunda versão, declara:
Temos nós a mesma sensação em face dos mais célebres poemas da
“Presença”? Para se ver a distância fabulosa entre um objecto poético
revolucionário e outro que o não é, basta comparar a “Saudação a Walt
Whitmann” ou a “Ode Marítima” ao poema-tipo da audáciapresencista”: o
“Cântico Negro” de Régio, tão celebrado, embora muito longe de outros
poemas do autor de “Jacob e o Anjo”. A diferença de mundos, a diferença de
peso ontológico e formal salta aos olhos. Não verdadeira medida entre a
imprecação lírica adequada a uma revolta de dimensões psicológicas e as
epopéias líricas adequadas à convulsão e ao tumulto de um universo humano
alargado à dimensão do cosmos. A poesia não é o que diz, mas o que é,
segundo uma fórmula célebre. (LOURENÇO, 1987, p. 152)
Ainda que o posicionamento de Lourenço sobre a PRESENÇA seja relativizado nos
30 anos que separam o artigo original (sem o ponto de interrogação) da sua reescritura
definitiva, nos anos 80, ele remete a um ponto de vista que ainda subestima a contribuição
crítico-estética presencista e regiana à empresa literária portuguesa. Como indica Maria
Manuel Batista (BATISTA, 2001, p. 3-4), o posicionamento de Lourenço com relação aos
presencistas e ao periódico deve-se a um rigor extremo na observação da poesia da geração de
27, comparada sempre com relação a Pessoa. Além disso, o filósofo naturalmente formou-se
ante a uma intelectualidade Neo-Realista, fato que por si o “contaminaria” em termos de
abordagem da revista e da poesia de Régio. Este, por sua vez, também teve a sua parcela de
importância na formação desse juízo, em função de suas constantes polêmicas com outros
autores e intelectuais, correntes entre os anos 40 e 60, somando-se a isso o nem sempre
explicitado posicionamento a respeito das questões político-sociais de sua época, momento
em que posições claras contra ou a favor eram oportunas. O artigo de Batista atenta, ainda,
39
para o fato de que a maturidade filosófica foi econômica para que Lourenço constatasse
alguns equívocos que uma leitura acalorada de Régio e da PRESENÇA vieram a provocar,
fato que se comprova na modificação de certos pontos de vista a respeito, principalmente
naquilo que escreve referente à questão a partir dos anos 70, momento em que, inclusive,
troca a pontuação do título do clássico artigo.
Eduardo Prado Coelho é, de certa forma, devedor dessa geração intelectual, visto que
formado numa intelectualidade que paulatinamente reconhecia o inegável valor de ORPHEU
e a da poesia de Fernando Pessoa, em detrimento de outras manifestações poéticas e estéticas.
O fato de ter sido o principal pensador e articulador do Estruturalismo em Portugal pode ter
sido a “causa” de sua postura em relação a Régio, que, ao se ater a aspectos formais e
internos da obra literária, deixava de lado aspectos concernentes à constituição da obra como
um todo. Para além, o fato de o paradigma-Pessoa estar formado e sedimentado na cultura,
provocou as constantes leituras comparativistas, que nesse caso, dando razão aos críticos, é
muito mais elaborada, pensada e acabada em termos de subjetividade e reflexão filosófica que
a de Régio. A constante relação feita por Coelho entre a poesia regiana e as questões ligadas à
Psicanálise, por exemplo, talvez se deva a um juízo epocal um tanto radical, já que, claro está,
as alusões regianas ao psicologismo, ao inconsciente, à intimidade, se deram em um momento
em que não havia com relação a esta área do saber a reflexão que hoje há, principalmente
aquelas vinculadas às relações entre poesia e Psicanálise e o pensamento de Lacan. A respeito
de um aspecto da poesia regiana, declara Eduardo Prado Coelho:
Deste modo, enquanto os “presencistas” se referem a interlocutores, a
aventura de ORPHEU é a experiência da radical ausência de qualquer
Mediador. (COELHO, 1972a, p. 27)
Se considerarmos o que Régio considera expressão vital (o gaguejar da
emoção, as palavras comovidas de um homem, etc.), veremos que não há em
Régio lugar para a expressão quotidiana normal, em que uma pessoa se não
exprime por exprimir (por descontrole, descuido ou abandono), mas se
exprime para se exprimir. Quer dizer, Régio omite pura e simplesmente a
expressão normal que definiremos como expressão ideológica.
(COELHO, 1972a, p. 33)
40
Relativiza-se aqui a postura de Lourenço com relação à revista coimbrã em função de
o mesmo, em nota ao artigo “‘Presença’ ou a contra-revolução do modernismo português (?)”,
salientar que a sua leitura da poesia e da crítica veiculadas na revista é mais positiva e
enaltecedora do que pareceu a alguns presencistas como João Gaspar Simões. E que também
não teria sido ele o motivador da postura “indigesta” que a crítica mais nova (aí cita Prado
Coelho) faz com relação à PRESENÇA. Aproveita o texto-nota-explicativa para justificar a
inclusão, posterior, do ponto de interrogação ao final do título do artigo, justo por não querer
mais causar nenhuma flutuação nos sentidos que ali pudessem ser percebidos.
Essa crítica desfavorável é decorrente da natural visão que se teria de um movimento
que sucedesse a ORPHEU: deveria ser tão impactante quanto o fora aquele movimento eo
necessariamente apresentar um “passo atrás em termos estéticos, como alude Lourenço.
Entretanto, muito da visão da crítica fundamenta-se, talvez, no caráter combativo e muitas
vezes judicativo do próprio movimento, como atesta Eduardo Prado Coelho, em “Situação da
poesia da Presença”. Por outro lado, ao não se perceber na PRESENÇA um caráter de ruptura
com os moldes estéticos, sendo somente um investimento na atitude psicologista e biográfica
do sujeito, reiterou-se uma certa visão de que o movimento era um romantismo tardio e
deslocado de seu tempo e função.
Antes, porém, de se proceder a crítica à leitura da crítica sobre o movimento, é
oportuno assinalar que aspectos constituem a crítica literária nos moldes em que se estabelece
no século XX, de maneira mais ampla.
A crítica sempre implica num julgamento acerca de um determinado objeto, balizado
sempre por horizontes determinados ou por um modelo ou por um conjunto ideológico mais
amplo que irá nortear este juízo. Assim, pretendeu-se que a crítica se tornasse científica e,
porque baseada em métodos, poderia se distanciar do objeto criticado de forma a olhá-lo de
41
maneira objetiva. Entretanto, o juízo de valor e de gosto estético sempre estiveram presentes,
atuando paralelamente à aplicação de possíveis métodos. Dessa forma, muitas vezes a crítica
se estabelece, discretamente, sobre um critério subjetivo, uma vez que vem marcado pela
ingerência de várias questões que subjazem à tarefa crítica: compromissos ideológicos,
políticos, intelectuais, sociais e, até, morais. Criticar, antes de tudo, implica em julgamentos,
baseados nos mais diversos pontos de vista.
Leyla Perrone-Moysés, no prefácio às Altas Literaturas, quando comenta o papel da
crítica, principalmente aquele feita por escritores, não só confirma esse posicionamento,
quanto reitera que esse tipo de crítica é um artifício típico da modernidade. Com o abandono
das regras e valores tradicionais do literário até então preconizados pela Academia e por
outras “autoridades” estéticas, os escritores aboliram certos códigos e em seu lugar
priorizaram a busca das razões de sua escrita e da forma como o fazem. com isso o
estabelecimento de princípios que entenda e atendam a suas próprias obras, a fim de
“esclarecer sua própria atividade e esclarecer o rumo da escrita subseqüente”. (cf. PERONE-
MOISES, 1998, p. 11).
Segundo Terry Eagleton (1991), a crítica literária surgida durante entre os séculos
XVII e XIX, enquanto unificava o discurso cultural da burguesia, visava a revelar à opinião
pública que se colocava contra as imposições arbitrárias da autocracia social e cultural
daquela época. Tratava-se de um ato de crítica cultural, ainda não literária, em que a falta de
abordagem técnica e teórica compunha os mecanismos do humanismo ético-filosófico, moral,
cultural e religioso que determinava e regulava a ideologia. Era a crítica a voz de uma
burguesia emergente e os discursos por aquela veiculados nada mais tinham do que reforçar a
ideologia nesse público-leitor. A crítica moderna nasceu, pois, de um consenso político que
gerou, inclusive, toda uma gama de interdições discursivas e que provocou, no século XIX,
situações como as de Flaubert ou de D. H. Lawrence.
42
No século XX, a crítica passou a ser a própria manifestação do autoritarismo cultural,
em que os discursos são mais profundamente interditados e possíveis dentro da ordem pré-
estabelecida pela nova autocracia cultural (compostapor especialistas), agora travestida em
arte programática do estado ou em modelos de ruptura com as formas tradicionais. Tem-se,
portanto, um grupo de autores-leitores-críticos que promovem a intermediação do que pode e
deve ser dito em termos de literatura, assim como promovem o enaltecimento de autores e
obras julgadas dentro de um mecanismo de valor muitas vezes discutíveis. Tudo o que não
advém dessa dinâmica, é silenciado enquanto possibilidade discursiva e enunciadora; daí que
a crítica seja profundamente auto-referencial.
No caso da Literatura Portuguesa, o mesmo público crítico-leitor é produtor e crítico
de outros críticos-leitores, fato este que não se deu de forma diferente com relação à “Folha de
Arte e Crítica” editada por Régio e nem com ORPHEU, que produziu em decorrência de si
um Pessoa detestado por alguns mecanismos culturais e midiáticos de sua época. De outra
forma, o que aqui se quer discutir é a capacidade que tem a crítica de promover, segundo um
horizonte cultural determinado e muitas vezes restrito, certos autores e movimentos, ao passo
que determina e orienta a leitura de outras manifestações segundo suas premissas, levando tais
obras, autores e movimentos a serem considerados menores dentro de um panorama cultural
mais amplo.
Boa parcela da crítica literária portuguesa afirmou que era impossível haver na
Literatura Portuguesa outra atitude de vanguarda que fosse tão profundamente modificadora
das noções de texto e sujeito, como o fora ORPHEU e, por conseguinte, superar aquilo que
foi emblematizado pelo movimento de 1915 era improvável. Ao se conceber a revista
encabeçada por José Régio como uma continuadora daquela produção modernista, rompe-se,
portanto, com a noção de que os presencistas queriam superar o trabalho de Pessoa e Sá-
Carneiro. Logo, romper não era a palavra de ordem do movimento coimbrão, mas sim,
43
reconhecer que ORPHEU foi uma ruptura capaz de instaurar uma tradição a ser seguida e
valorizada; em outra medida, a PRESENÇA fez aprofundar as concepções de literatura e de
mundo veiculadas pelo primeiro grupo modernista português, no sentido de que pretendeu,
inclusive, tornar-se também um veículo de difusão cultural amplo e retrabalhar algumas das
questões caras a este grupo, como a esteticização da homossexualidade, por exemplo.
Eagleton afirma ainda que a crítica é um mecanismo reformativo, punindo os desvios e
reprimindo a transgressão, porque é justamente formada pelos horizontes culturais,
pedagógicos e estéticos que vigem em seu momento de atuação; cabe ressaltar que afora a
crítica eminentemente universitária, como o caso de António Saraiva e Fidelino de Figueiredo
(e até mesmo essa), boa parte do discurso da crítica portuguesa que particularmente se
preocupou com a análise da PRESENÇA tinha o Neo-Realismo como base discursiva e
intelectual, o que por si a fazia ter um posicionamento muito próximo do que Álvaro
Cunhal teve com relação agio ainda nos anos 40 (VENTURA, 2003, p. 15-22). Isso talvez
se deva principalmente, como ainda alude o autor de Teoria da Literatura: uma introdução,
ao fato de a crítica literária no século XX ter sido superada e sucedida pela crítica da cultura,
na qual a literatura é vista como objeto cultural e /ou pertencente à cultura de massa; nesse
sentido, houve a substituição da análise técnico-teórica (eminentemente literária e estilística,
por exemplo) pela observação da relação do literário com elementos sócio-culturais interiores
à obra ou que com ela mantêm íntima relação. Embora ocorram embates da crítica literária
com a crítica cultural, o posicionamento dos críticos não muda, justo porque apesar de ocorrer
o reconhecimento do novo estatuto da literatura, ainda procedem a um modelo crítico que não
leva esse novo estatuto em questão.
Balizar e determinar os motivos da abordagem que exclui a relevância da PRESENÇA
do processo posterior de entendimento da literatura e da arte portuguesa mostra-se um grande
desafio para os teóricos e estudiosos, o da “causa” presencista, como também da
44
Literatura Portuguesa como um todo. Principalmente porque urge, em tempos de revisões
críticas, como a dos Estudos Culturais e dos Estudos Pós-Coloniais, buscar novas
configurações para aquelas manifestações percebidas como canônicas, não-canônicas ou pára-
canônicas, uma vez que tais correntes metodológicas têm contribuído para a revisão do
estatuto do literário frente às novas abordagens possíveis no escopo da pós-modernidade.
Cabe aqui, pois, entender a PRESENÇA, não a partir do pensamento corrente a seu
respeito, como também a partir de uma outra via possível de proporcionar a sua
reconfiguração dentro do panorama crítico português e em Língua Portuguesa de forma geral;
ou seja, partindo do pressuposto de que ORPHEU e o Neo-Realismo deixam heranças na
tradição literária portuguesa, é bem possível que a revista que aqui se discute também tenha,
de alguma forma, dado sua contribuição para a formação de uma geração de escritores, seja
como leitura de base ou como arcabouço teórico. Ou ainda, enquanto proposição literária e
atitude estética dos que lhe foram posteriores. Daí que o intento aqui estabelecido é o de
perceber, nesse “depois” literário, como pode ser detectada a eletricidade estática deixada
pelas ondas hertzianas” (cf. SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 146) findadas em 1940. A imagem
aqui utilizada parece bem oportuna no sentido de que se quer demonstrar, justamente, uma
herança invisível presente na Literatura Portuguesa contemporânea. E, como nessa
manifestação de energia, há uma percepção, ainda que sutil, do pensamento presencista.
A posição temporal intermediária da PRESENÇA, entre o que seria a inauguração do
Modernismo português de um lado e o aprofundamento no social, no ideológico e histórico
enquanto estratégias do Neo-Realismo de outro, contribuiu em muito para que esta revista-
movimento o recebesse da crítica literária a atenção devida. Talvez o que caiba ainda à
crítica, no que tange ao movimento em questão, é resgatar aspectos que foram ignorados,
esquecidos ou mal interpretados, como também perceber outros valores no trabalho reflexivo-
teórico-estético dos presencistas.
45
A abordagem pouco favorável prevaleceu a recentemente, assinalando o fato de que
fora um movimento alheio às questões político-sociais de sua época. E, mais, uma “não-
vanguarda”, em função não dos quase quinze anos em que foi publicada, o que apagaria o
ideal de que a vanguarda é um “ser para a morte”.
Em seu momento de produção e circulação (1927-1940), a PRESENÇA foi combatida
ostensivamente pela máquina cultural do regime salazarista, sendo questionada a respeito da
validade de seu projeto. A infra-estrutura do Estado Novo viria a determinar e organizar o que
era ou não parte da formação político-cultural do espírito do homem português; para tanto,
criou, em 1932, a Academia Nacional de Belas-Artes, o Conselho Superior de Belas-Artes
(presidido por António Ferro, jornalista, poeta e “ex-editor” da revista ORPHEU) e, no ano
seguinte, o Secretariado de Propaganda Nacional/ Serviço Nacional de Informação
(SPN/SNI), empreendimentos responsáveis por “integrar a população no pensamento moral
que deve dirigir a Nação” (Ó, 1992, p.396).
Através da propaganda institucional do regime, como também da criação de um
imaginário social positivo, como alude José Ramos do Ó em seu artigo sobre a cultura na
ditadura salazarista, estes órgãos foram tutelares para a configuração do papel da revista na
cultura a portuguesa, principalmente por que cuidaram de indiretamente fomentar o embate
entre neo-realistas e presencistas, sobretudo no campo da sua atuação política. Estes
organismos governamentais tinham como principal atribuição a difusão artística nacional,
marcando a impossibilidade de fuga ao esquema clássico através da penetração sistemática
nos espaços culturais, pondo-os em consonância com as exigências do regime:
A propaganda definiu um centro na orgânica do Estado. Porque trataria de
“coordenar”, “organizar”, e “difundir” de forma sistemática” a capacidade
essencialmente reprodutora do poder, o primacial desígnio faria com que o
SPN emergisse como instituição por excelência vinculadora dos restantes
braços da administração (Ó, 1992, p. 391ss).
46
A criação dos três órgãos teve uma influência relevante no processo de entendimento
do material cultural daquele momento em diante, já que de uma forma ou de outra, mesmo
que inconscientemente, estava determinando a medida do que seriam ou não as manifestações
artísticas do regime.
Esta aproximação do regime salazarista com aspectos culturais e artísticos de sua
época frutificou e a nomeação de António Ferro considerado por Mário de Sá-Carneiro “a
ala mais mundanamente escandalosa do grupo de ORPHEU resultou num projeto cultural
que levou a própria ditadura a se auto-intitular como a única portadora dos princípios da
vanguarda artística portuguesa. Com relação ao estatuto da revista de Coimbra por parte dos
meios culturais da época, é oportuno pontuar que António Ferro, que fora “diretor” de
ORPHEU, tenha veementemente negado toda e qualquer vinculação entre os dois
movimentos, pautando-se em muito em razões políticas que posteriormente seriam frisadas
(Cf. SARAIVA, 1986, p. 27).
Assim, a modernidade e a ruptura com os modelos clássicos estavam nas “mãos” do
Estado, que manipulava tais pressupostos visando “proteger” a nação das influências
negativas de uma arte baseada em princípios individuais, que poderiam influenciar
negativamente a “vida saudável” esperada pelo Estado. Logo, presencistas como José Régio e
João Gaspar Simões - sem falar de outros artistas da época - estariam determinados a carregar
a bandeira da arte tradicional, sendo considerados artistas “heréticos”. A coerência os levava a
refletirem um preceito artístico que não coadunava com a arte programática salazarista, já que
sua arte não emanava do interior do regime e nem dos auspícios do Estado Novo. Como
presidente do Secretariado de Propaganda Nacional, António Ferro cuidou promover a
incorporação da arte pelo Estado, mostrando as vantagens de uma estetização da política
47
como um instrumento de manutenção e reconhecimento do poder frente ao público passivo de
manipulação
2
.
A PRESENÇA, neste ínterim, colocou-se como tendência paralela, como uma
“dissidência” ao modelo estatal. Vale ressaltar que pouco se observa nas páginas da revista a
alusão ao próprio movimento como vanguarda, pois, se Ferro caracterizou a arte do estado
como moderna, aproximando-se em muito do que se denominaria vanguarda - e segundo seu
ponto de vista, ninguém ainda tinha assumido tais propostas, nem ORPHEU
3
-, os editores da
revista não poderiam, portanto, usar com abundância o termo porque sofria o risco de ser
arrolada e confundida com a arte estatal. Isso se configura num grande problema que, desta
feita, a crítica a respeito, às vezes, a percebe a partir da construção discursiva que ela mesma
criou; ou seja, ao o se afirmar vanguarda”, abre caminho, inclusive, para sua visão como
movimento organizado, mas desprovido de um compromisso estético maior com a vanguarda
propriamente dita.
Sabe-se que o pensamento das vanguardas tinha como princípio o choque com a
tradição e a destituição de seu valor como modelo artístico, estético, social e moral, com o
intuito de, no seu lugar, criar uma nova linguagem capaz de dar conta da nova realidade
subjacente às necessidades daquela época. Assim, como indica André Bueno (BUENO, 1996,
p. 138), os intelectuais desse momento, sobrepondo-se às vertentes políticas, precisavam
encarar de maneira distinta, paradigmas completamente diferentes dos até então conhecidos.
Ao mesmo tempo, era mister romper com a arte aurática e aproximá-la das vivências
cotidianas do homem.
2
Vale recordar Walter Benjamin, em seu artigoA obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Nele o
filósofo afirma que uma das atividades do fascismo é a esteticização da política, isto é, converte-a em espetáculo
como meio de promover a alienação das massas. Pode-se observar, também, no caso português, os objetivos do
SPN de promover manifestações de caráter cultural que refletissem a magnitude da Ditadura Nacional. Ao
projeto fascista, Benjamin contrapõe a politização da estética pelos comunistas. Assinala-se que em Portugal,
esta resposta veio, principalmente, através da arte neo-realista. (cf. BENJAMIN, 1985, p. 193).
3
Está claro que não se está vinculando ORPHEU ao Estado Novo, mas apenas assinalando o lugar de Ferro,
como criador de um discurso oficial atrelado às vanguardas.
48
A arte deveria refletir a ruptura e promover sua integração e aproximação desejada
com o mundo, como a aponta, quando convoca o artista a expressar vivamente sua
individualidade, não apenas preocupando-se com a representação mimética da realidade, mas
escrevendo aquilo que suas vivências e experiências permitem que produza. O artista, então,
supera a distância entre a arte e a vida e promove a realização quase utópica de aproximá-las
ao utilizar procedimentos estéticos discordantes daqueles que a tradição prezava e estabelecia.
2.2 A “Literatura Viva”
A idéia de vanguarda liga-se diretamente ao ideal do novo. Como assinalam tantos
teóricos a respeito, a emergência da vanguarda é a necessidade de se fundar uma arte nova,
em descontinuidade daquela do século XIX e anteriores; nasce do desejo da existência de uma
arte que refletisse sintomaticamente o novo século XX.
A origem bélica do termo vanguarda denota a postura que aqueles que cuidaram
implementá-la teriam. Reconhecidamente, o termo se aplica aos movimentos estéticos
europeus surgidos em torno do alvorecer do século XX, para a maioria, ou em fins do século
XIX, com indica Anna Balakian, em O Simbolismo (2000). Tais movimentos procuram
romper com os modelos artísticos então existentes. Esta noção vem a reboque da idéia de
modernidade em arte, mostrando-se como uma conseqüência de uma série de reflexões a
respeito, feitas, sobretudo, por Charles Baudelaire ainda no século XIX, quando em seu texto
“O Pintor da Vida Moderna” sinalizava para o fato de que a modernidade era algo transitório,
efêmero e contingente e era a outra metade da arte; antagonizava-se, assim, com a própria
questão da tradição, a outra parte, sintetizada pelo seu caráter eterno e imutável. Baudelaire
49
marcava ao mesmo tempo uma independência da modernidade e sua filiação à tradição, algo
indissociável.
Cabe ressaltar que as assertivas baudelaireanas partiam da análise que o poeta francês
fazia dos objetos culturais de sua época, submetidos a um recorte determinado do tempo;
neste sentido, vinha exemplificar o fato de que a modernidade estava fundamentada na
temporalidade, na efemeridade do momento em questão e, portanto, sempre caminhando para
um fim inevitável. Como conseqüência dessa modernidade anunciada e refletida pelo autor de
“Correspondences”, a vanguarda é o traço mais rtil da finitude do tempo, da apologia da
morte e da mudança contínua. Ela se quer sinônimo de movimento ambíguo de evolução e
involução, algo que surge num recorte do tempo como que para decretar o fim imediato ou
decorrente de tudo aquilo que, de uma forma ou de outra, se coloca na outra face da
modernidade; assim, colada à postura desagregadora da vanguarda, ao lado de sua exploração
de territórios desconhecidos, está o objeto que nega e procura apagar: a tradição, o modelar, o
esteticamente construído e constituído para permanecer, padrão e medida de toda arte.
Mas por que submeter-se a tais regras se havia algo para além delas como uma outra
possibilidade imanente? Eis a questão respondida pelos artistas em forma de manifestos,
obras e atitudes performáticas, que descerraram no século XX uma profusão de
questionamentos sobre a estética que os muitos séculos de arte não conseguiram ter ou fazer.
Neste sentido, a vanguarda tem o seu papel na História demarcado como o momento de se
estabelecerem questões que até então não haviam sido levantadas por falta de exigência da
época, quando os inúmeros precedentes levantados desde meados do século XIX ainda não se
haviam colocado como pressupostos.
A estes antecedentes alude Theodor Adorno (1988) ao relacionar o pensamento e a
atitude de vanguarda à existência e à necessidade do “novo”: o apogeu do capitalismo, que
aborda a obra de arte sob a categoria de mercadoria, propiciando uma mudança na reflexão
50
acerca do mundo e, por conseqüência, da obra de arte, cujo conceito foi logo posto em
questão. Numa relação dialética, surge por exigência do que era “antigo”, que precisa daquele
para se perpetuar e se realizar enquanto modelo negado e ao mesmo tempo restabelecido pelo
“novo” e pela sua idéia de ruptura. Neste jogo, o “novo” é tido como o desejado, mas por sua
alteridade, pela necessidade de mostrar-se diferente e dessemelhante, torna-se também
indesejado que traz consigo uma avalanche que tanto acoberta a tradição quanto lhe nega o
valor e a dissolve.
Conforme o pensamento de Adorno, na Teoria Estética, a obra de arte de vanguarda é
a obra capaz de relativizar toda a história da arte anterior a ela, estabelecendo uma ruptura na
sua continuidade na história da arte e na própria História. Para Adorno, a obra de arte de
vanguarda é o elemento capaz de romper com o processo de alienação do mundo do trabalho,
na medida em que esta é o que leva o indivíduo a reconhecer a necessidade de uma postura
crítica frente à cultura em que se insere, a fim de compreender tanto o lugar histórico da obra
quanto a contrapartida de si, nesse jogo.
Contrapondo os pensamentos de Adorno e Lukács através da forma como ambos os
pensadores enfocavam a questão das vanguardas, Peter Bürger (BÜRGER, 1993, p. 101-111)
sinaliza para o fato de que a de arte vanguardista constitui-se como o objeto de
questionamento, na medida em que precisa destituir o lugar sacralizado da obra no contexto
da tradição. Esta obra de vanguarda negaria uma determinada unidade que o modelo anterior
insistiria em propagar, contribuindo assim para a provocação e para o estranhamento
característicos dos movimentos de ruptura; ao mesmo tempo, estes precisariam liquidar a arte
como entidade separada da prática vital humana.
Para Bürger, Adorno apresentava um valor positivo para a vanguarda na medida em
que a reconhecia como o estágio mais avançado da arte, ao passo que Lukács, atribuindo-lhe
um valor negativo, a reconhecia-a como a decadência da arte em geral. Nessa perspectiva,
51
pode-se observar que Bürger, ao seguir Adorno, está relativizando a conceituação tradicional
formulada pela perspectiva do realismo socialista a obra literária deveria representar
artisticamente a totalidade social, a partir do fundamento dos princípios marxistas. Para
Adorno, o objeto da arte é o que ela produz enquanto obra que traz consigo caracteres
relativos a uma realidade pautada na experiência, de forma a transpô-los, reinterpretá-los e
reconstruí-los a partir da representação a que se propõe. Por este posicionamento e não por
um recorte objetivo, como o faz o realismo socialista, é que a arte é capaz de “conferir à
realidade empírica” o seu real sentido e às transformações que pode empreender (cf.
ADORNO, 1988, p. 289).
Bürger afirma que a finalidade dos movimentos de vanguarda era a de mostrar a
superação da instituição social da arte e de mostrar que arte e vida estabeleceriam uma
continuidade entre si. Não diferentemente procedeu a PRESENÇA: centra o princípio da arte
na individualidade e na originalidade, mostrando que a mesma está além do status que até
então lhe atribuíam; com relação à interação ao segundo aspecto aludido, vale expor as
palavras do próprio Régio a respeito, quando comenta o poeta António Botto:
Chamo viva à Arte de António Botto – porque em toda a sua Obra vibram as
suas experiências pessoais: os seus prazeres ,as suas torturas, os seus
ambientes, os seus juízos. (...) Por ser viva e pura a sua Arte é
profundamente humana e altivamente superior a certa concepção político-
social-moral da humanidade na Arte. (P, 13, 13/06/1928, p. 4-5).
Quanto à abordagem, Adorno e gio convergem e divergem em suas concepções
sobre a obra de arte. A consonância de seus pensamentos se na medida em que ambos a
concebem como uma entidade dotada de profundas referências à vivência do homem e aos
modelos anteriores a ela. Neste sentido, o conceito de Arte Viva estabelecido pelo autor
presencista estaria em diálogo com as indicativas de Adorno quando capacitam o homem a
proceder sobre a arte a análise necessária ao seu questionamento. Régio confere a esse sujeito
questionador da arte o status de Artista, enquanto que Adorno o denominará fruidor, elemento
52
que interage no processo de intelecção e entendimento da arte. Ambos concebem a realidade
como uma entidade exterior à Arte, mas fundamental na construção do objeto artístico: seja
para acentuar a diferença do Artista que a utiliza como pretexto para a exteriorização de sua
genialidade, seja para marcar a distinção clara entre aquela e o mundo capitalista.
Entretanto, divergem categoricamente no que tange à ligação direta entre arte e
história: o português considera que o conteúdo histórico-social é um dado subjacente a
qualquer discurso sobre a estética e, portanto, desnecessário de ser citado explicitamente; o
pensador alemão, por sua vez, crê na constante histórica como um dado exterior, mas que atua
predominantemente na interpretação da obra de arte, aliás, a única capaz de promover a
consciência histórica.
O “novo” presencista estaria se estabelecendo na proporção em que surgira como
propostas de implantação de uma arte fundada na individualidade, na genialidade do artista e
na troca contínua entre vida e arte, resultando na Arte Viva a que Régio e Gaspar Simões
aludem. Por extensão, essa novidade presencista questionaria as formas tradicionais de
representação e a abordagem do objeto artístico, sugerindo um modo transgressor de se
encarar a arte, pautado nas próprias incompletudes e deficiências do Artista. Como vanguarda,
a PRESENÇA propunha mudanças estéticas que deixavam de coincidir com a passagem das
gerações e com a História, para ocorrerem dentro da vida do artista.
Seria este, então, o primeiro caráter vanguardista da revista: a preocupação deste
movimento em instituir um conceito novo de obra de arte, que ao mesmo tempo rompesse
com tudo o que era tradicionalmente estabelecido como padrão e expusesse de forma
individualizada as experiências do artista, mesmo que buscando nessa tradição aqueles que
representavam em seu tempo uma forma diferente de encarar a literatura e as artes.
Desta forma, o movimento de Régio e Branquinho da Fonseca não estaria executando
a transmissão de formas literárias de uma outra geração, como é o próprio da tradição, nem
53
corroborando costumes e estilos, mas relendo obras e autores que marcaram profundamente o
fazer literário de uma época justo porque se punham muito além do padrão estabelecido. A
aposta na interrupção deste processo de perpetuação equivaleria, portanto, à quebra do
mecanismo tradicional e a instauração da vanguarda.
Diferentemente das vanguardas históricas, que, no dizer de Octavio Paz, fundaram a
tradição da ruptura, a PRESENÇA encarava a releitura destes artistas como uma possibilidade
contínua de reinterpretação; negar e romper, somente com aqueles que insistentemente
apelaram para o aspecto livresco, institucional e modelar no seu fazer literário. E o
movimento que ora se discute trouxe o novo, porque se colocou à disposição do inesperado
para aquele momento: não perpetuar a herança órfica, como também ressignificá-la à luz
de uma nova concepção artística de crítica e análise do passado imediato e de interrupção da
continuidade serial da tradição, do antigo.
Sobre esta tensão entre novo e o antigo, Octavio Paz (PAZ, 1984, p. 17-35), numa
outra abordagem, indica o fato de que a modernidade institui uma “tradição polêmica que
desaloja a tradição imperante”, cedendo lugar a uma nova tradição. Muitos críticos partem
desse pressuposto para desconsiderarem a PRESENÇA como vanguarda, que apegado a
esse conceito estaria uma marca clara de finitude, de morte desde o momento de sua
insurgência; se este movimento, segundo eles, não se colocara como natimorto, portanto não
era vanguarda. O que deixam de lado, em suas considerações a respeito, é o fato de este
movimento ter sido durante os anos de publicação da revista - e mesmo depois que ela deixou
de circular - uma tendência claramente paralela ao que era produzido. De qualquer forma, a
PRESENÇA mostrava-se como a leitura portuguesa do mundo cultural europeu e norte
americano que circundava Portugal, da mesma forma que observava na produção de autores
pertencentes a diversas literaturas nacionais aqueles aspectos que demarcavam a existência de
uma “Literatura Viva”.
54
Cabe reiterar que esta postura cosmopolita era um traço do movimento e, como aponta
Paz, da própria vanguarda, uma vez que este não se fechava para o que havia de modernidade
e vanguarda em outros lugares, numa postura bem diferente da preconizada pelo modelo
artístico do Estado Novo e do Neo-Realismo. Estar em Coimbra não significava,
necessariamente, estar alheio ao mundo, como as leituras e referências dos presencistas tão
bem revelam.
A PRESENÇA era, seguindo-se o pensamento do autor de Os Filhos do Barro com
relação aos movimentos de vanguarda, a rebelião contra a razão histórica pretendida pelos
neo-realistas e a tradição nacionalista, moralmente comportada, como seria desejado pelo
projeto cultural salazarista, o que denota o pensamento equivocado de Ferro e dos detratores
da PRESENÇAque o próprio ORPHEU também não encontraria lugar nesta forma simples
de perceber aqueles anos.
Trazendo à baila questões eminentemente novas e outras introduzidas ou
prenunciadas em ORPHEU, a PRESENÇA propunha o conceito de Literatura Viva,
gerador de sua produção e crítica e um ideal entusiasticamente retomado e exemplificado por
Régio no decorrer de suas proposições teóricas, veiculadas nas 54 edições da revista. Régio
entende por Literatura Viva “aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por
isso mesmo passa a viver de vida própria” (RÉGIO, 1977, p.19). Colado incisivamente ao
conceito de obra de arte como originalidade, Régio prossegue na construção do conceito:
Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte
mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A
primeira condição de uma obra viva é, pois, ter personalidade e obedecer-
lhe.
(REGIO, 1977, p. 17).
O conceito de “Literatura Viva” foi apresentado por José gio, no primeiro número
da PRESENÇA (10/03/1927), num artigo de mesmo nome, em que o autor lança as
proposições do movimento inaugurado pela publicação da revista e em que, também, tece
55
comentários a respeito da produção, recepção e crítica da literatura portuguesa dos anos
anteriores ao movimento. Ao mesmo tempo, situa a “Literatura Viva” num patamar de
inacessibilidade e ininteligibilidade dadas pela excessiva atenção que a maioria dos autores
dispensa à reprodução de determinados modelos, que gio considera natimortos, que não
expressam em sua extensão a inventividade do artista e sua originalidade (cf. GUIMARÃES,
1969, p.9-66.). Tal conceito existe em contraposição à “Literatura Livresca”, que aparece no
número nove da revista (09/02/1928), em que os principais nomes de influências e leituras
dos presencistas aparecerão. Se o que de mais original poderia ser representado pela
“Literatura Viva”, a “Literatura Livresca” seria a síntese do que a revista não queria produzir.
Ou, melhor, aquilo que representava uma atitude pensada enquanto formatação aos modelos
literários ou como atitude intencionalmente pensada para estabelecer o choque e a suposta
ruptura, como o era a poeta Judith Teixeira.
Essa atitude foi implacavelmente condenada por José Régio nos dois artigos que
compõem a teorização sobre a “Literatura Viva”, justo porque o autor de “Cântico Negro”
considerava esse posicionamento, descrito por ela mesma como “mera atitude literária”
(RAMOS, 1994, p.662), como o mais cabal exemplo da falta de originalidade do artista frente
a sua obra e ao seu tempo (REGIO, 1977, p. 19-20).
Quanto a isso, cabe a pergunta: a associação da homossexualidade à vanguarda seria
um lugar-comum da época, como no caso de Judith Teixeira, ou uma hipótese a ser pensada
como horizonte significativo e uma atitude de ruptura para os “–ismos” vanguardistas? Isto é,
a homossexualidade como temática seria uma mera atitude de vanguarda, mais um
procedimento de choc, ou seria uma conseqüência de novos sujeitos que emergiam dos
discursos patológicos, recusando-os? Questionamento de difícil resolução, porque implicaria
em pesquisa historiográfica e biográfica intensa. No entanto, pode-se inferir que,
literariamente, o tema circulava entre salões e páginas, sugerindo um novo parâmetro de
56
expressão literária. Se, para gio, era relevante o lesbianismo de Judith Teixeira e a
pederastia de António Botto, ao mesmo tempo, para uma crítica que se paute nas perspectivas
de Michel Foucault, importa sobretudo, a circulação do tema. Além disso, o historiador Rui
Ramos, ao contemplar em seu artigo “Os inadaptados” (1994) a geração de artistas que
gravitavam em torno de ORPHEU, assim como aqueles que produziam paralelamente naquela
altura, menciona o fato de que Judith Teixeira “encenava” uma performance lésbica a fim de
tanto chocar quanto pôr luzes sobre seus poemas.
Percebe-se que o proposto por Régio aproxima-se em muito do conceito de obra de
arte concebido no advento das vanguardas e leva em consideração não os pressupostos tão
em voga no momento de sua escritura, mas algo que se subentende como inerente à obra de
arte: a originalidade e a autenticidade. Para tanto, a PRESENÇA não se privou de
exemplificar que a noção de original se fundava, por exemplo, em Gil Vicente e Sá-Carneiro,
passando pelos “clássicos” da literatura européia, em que arte e vida se fundiam num processo
contínuo e indissociável, como nos exemplos supracitados. Em outras palavras, o âmbito do
termo é amplo, não apontando para a obra de arte em si mesma, mas também para a
postura do artista enquanto ser no mundo. E nessa interação aponta para o resgate da arte e da
literatura, postas em questão na Europa, como forma também de se resgatar uma possível
unidade para o sujeito – já cindido e multifacetado em Freud, Sá-Carneiro e Pessoa.
Cabe aqui procurar restabelecer aquilo que definição/noção de original/originalidade
está em questão nas páginas da revista. Segundo Aurélio Buarque de Hollanda, em seu Novo
Dicionário da Língua Portuguesa (s/d), por original se entende o que
provém de uma origem, o que é primitivo, inédito, novo, primordial; que não
procura imitar ou seguir ninguém; o que foi feito pela primeira vez; aquilo
que por sua peculiaridade, pode ser considerado bizarro, extravagante;
pessoa ou coisa reproduzida ou descrita pela arte, modelo original.
Ainda que a definição do filólogo pareça tautológica, ela fornece alguns índices
capazes de esclarecer como esta noção circula no interior da revista. Partindo do fato de que
57
originalidade e personalidade são dois pontos indissociáveis, a proposição presencista vem
denotar que há, no trabalho artístico, algo sempre novo, no sentido de que se constitui como
irrepetível e, ao mesmo tempo, algo totalmente novo, dentro do paradigma do que foi
produzido num determinado momento; posicionamentos, aliás, bem contemporâneos em
tempos de relativização do material artístico, como o foram os primeiros anos do século XX.
Seguindo esta esteira, atribui-se ao original o fato dele também ser sinônimo de extravagância
e bizarria, mostrando-se, portanto, como algo que foge ao usualmente concebível e criado.
No âmbito da crítica do século XX, não houve adjetivos tão valorizados como “novo”
e “original”. Oriundos da estética romântica, incentivam a valorização da ruptura e a
construção da diferença. Os modernismos priorizaram o original, mas criaram um problema: a
“tradição da ruptura”, como indica Octávio Paz, e a busca contumaz pela diferença, típicas
das vanguardas do século XX, proporcionaram o esvaziamento dos termos “novo” e
“original”, a ponto de se questionar se a novidade e a originalidade são capazes de resistir a
repetição tradicional de sua própria busca (PERRONE-MOISÉS, 1999, p. 10).
Entretanto, para Régio, a essa extravagância pode corresponder um comportamento ou
um produto artístico pensado para sê-lo, não como gesto natural, mas como intento concebido
de forma premeditada, feito justamente para chocar. Essa abordagem, para o crítico, fere o
princípio da originalidade que assim não estaria sendo produzida uma obra de arte fruto de
uma pulsão criadora, mas sim algo pensado para estabelecer o choque no gosto estético ou
nos padrões vigentes. Vale lembrar que a noção de originalidade tem muito a ver com o
princípio de procedimento, formulado por Foucault em seu artigo “Linguagem ao Infinito”, a
saber, técnicas que identificam um autor e o uso que este faz da linguagem. Não conteúdos
novos ou formas novas, há, sim, novos procedimentos que contrariam os códigos estéticos.
A extravagância, nesse sentido, seria defeito e não-originalidade, uma vez que para ser
o contrário, precisaria ter na sua origem a fruição criadora, advinda do interior do artista ou
58
que fosse reflexo daquilo que o Ser-Artista fosse em sua vida cotidiana, esteticizada ou não.
Assim, originalidade extravagante no comportamento e na arte de Pessoa, Sá-Carneiro e
Almada Negreiros, mas não o há em Aquilino Ribeiro e Raul Brandão (P, 9, p. 1-8). Enquanto
que nos primeiros, o gênio e sua arte produzida trazem a público a dramaticidade da vida
(ainda que fingida, como em Pessoa), nos dois últimos o empobrecimento do gênio artístico
compromete o entendimento da obra do artista, uma vez que, pela repetição de formas gastas
e correspondentes a um modelo específico, nada alcançam no campo do novo ou da
originalidade.
A grande problemática do conceito de original, em Régio, é justamente o aspecto
inefável atribuído a essa originalidade, fato este que aponta para dois problemas: primeiro,
como não se atém a aspectos concretos de autores e obras consideradas por ele como não-
originais, sua construção teórica tende a esbarrar na problemática do gosto, aspecto que por si
ou relativiza o conceito regiano ou lhe confere uma agudeza crítica ímpar, como alude
Eduardo Prado Coelho quando afirma que “todo texto teórico é um texto é autobiográfico”
(COELHO, 1987, p. 13ss
). Num segundo momento, essa inefabilidade pode às vezes sugerir
um certo tom autobiográfico, que se o artista tende a insuflar a própria vida na obra que
produz, todo texto ficcional seria então um trabalho de escrita de si próprio no sentido mais
literal possível -, o que esbarraria na questão da mímesis e, dessa forma, tenderia a contribuir
para uma abertura nos sentidos que esta originalidade quer construir.
Por outro lado, esse aspecto original, quando posto em confronto com artistas como
André Gide, Jean Cocteau e Oscar Wilde, ganha um outro relevo, por exemplo, se comparado
ao comportamento homossexual assumido pelos três artistas e de conhecimento público na
época da publicação da revista. Assim, a originalidade presente na obra dos três artistas
poderia, então, ser fruto da observação do fato de que o universo pessoal desses artistas
também é objeto e tema de seus textos, desenhos e peças teatrais. Todos os três, além do mais,
59
ousaram comparecer a suas obras no pleno exercício de suas subjetividades, não formais e
indisciplinadas moralmente para suas épocas, ou seja: ousaram fazer do corpo textual uma
metáfora viva (uma imagem literária) da vida do próprio corpo ou do corpo vivo (social e
histórico), tornando seus corpos textos-imagens a serem lidos.
Aliás, (in)disciplina fora palavra de ordem tanto para o espírito literário pensado pela
PRESENÇA, como também o tinha sido para Pessoa. Este considerava-se um indisciplinador
da cultura e da nação, que as concebia como meios de se atingir a transformação moral do
mundo, do qual também se sentia criador de uma consciência. Para esse poeta, a cultura era
uma negação das formas de identificação individuais vigentes, como o cristianismo, por
exemplo. Sua preocupação não era perspectivista, mas com o seu presente, que concebia
que eram necessárias posturas capazes de modificar o panorama cultural português de então,
alterando as maneiras portuguesas de viver e dando-lhes uma dimensão moral nova. Em
termos de continuidade estética promovida pela PRESENÇA, observa-se que ela retoma
elementos já trabalhados em ORPHEU e por Fernando Pessoa, sobretudo a postura
(romântica) do artista, visto e pensado como um gênio indisciplinado, um ser cuja visão ia
para o além-estabelecido, para adiante do que estava em voga; alguém supersensível (literário,
original e irrepetível) avesso ao vulgo (comum, cotidiano, livresco). Assim, reafirmou-se a
postura artística romântica, em que o a personalidade do artista, sua inadaptação à vida e a
consciência de que ele era um deus exilado na terra, foram as tônicas.
Cabe ressaltar que o conceito de “Literatura Viva” – construído através da
exemplaridade dos casos apresentados como “vivos” e “mortos” em literatura é enfatizado
pela constante referência a artistas conhecidos por produzirem uma obra literária de ruptura
com relação aos moldes recorrentes em seus momentos de produção. A exemplo disso, poetas
como Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire, notórios em sua poética de ruptura com os moldes
tradicionais e, de certa forma, precursores do que no século XX, aparecerão como ilustração:
60
A par de Marcel Proust, André Gide parece pequeno: Crítico traído pelo
demónio crítico, Gide prolonga, continua, desenvolve, complica, desfaz
contrafaz, refaz uma Obra que finalmente se nos impõe! Assimilador de
gênio, ele próprio se nos desvenda caixa de muitas ressonâncias... Sonho de
ser tudo o que o é por ser um pouco de tudo sem nada ser
completamente... senão ele! Porque da sua Obra, é ele que fica. Isto é: o seu
espírito perverso, torturado, labiríntico e feminino no altíssimo grau
vedado às mulheres. (P, 9, 9/02/1928, p. 18)
Interessante se mostra a aproximação e a fusão que José Régio faz entre vida e
produção artística, no sentido em que a grande “Obra” a que alude é a vida do artista, refletida
na própria obra. Assim, a postura claramente transgressora e indefinida que atribui a André
Gide, sobretudo pela relevância que se ao seu comportamento sexual, mostra-se como
exemplo direto e cabal do que seria uma literatura que se mostrasse viva e dissonante dos
padrões estabelecidos e esperados para o seu momento artístico: ser a literatura capaz de
funcionar como um gesto estético da existência do artista, como tão bem aludiu Raul Leal,
freqüentador assíduo da revista, em Sodoma Divinizada (1921). Antes, porém, Almada
Negreiros havia sugerido a substituição da cultura pela experiência como forma de se
alcançar aquilo que o modernismo português esperava como projeto para Portugal e para o
mundo. De certa forma, Régio retomará esta perspectiva ao enunciar a vinculação da obra de
arte com aquilo que foi vivido pelo artista, pelo que foi efetivamente experimentado em sua
vida.
A “Literatura Livresca” é compreendida como sendo a que melhor reflete a
reprodução e a repetição exaustiva dos modelos literários vigentes no momento de sua
produção; ao mesmo tempo em que procura dar conta daqueles artistas com uma mentalidade
e uma sensibilidade insuficientes no que tange à compreensão do momento em que se
inserem. Livresco, portanto, abarca tudo o que de modelado e formatado, no sentido
negativo dos termos. A “Literatura Viva” proposta pelo “texto - manifesto” de José Régio
vem ao encontro do desejo de se perceber as diversas nuances do processo criativo. A criação
literária é vista não como produto de uma determinada escola ou corrente literária, mas como
61
elemento capaz de causar tanto um estranhamento, quanto de demonstrar a potencialidade do
autor como produtor de uma obra de arte literária. Ao mesmo tempo, a criação literária deve
apontar para uma construção de um ideal claramente moderno, não porque nega a tradição,
mas por que nela elementos capazes de tornarem-se clássicos e capazes de se
circunscreverem numa série cultural. Dessa forma, procura-se aproveitar da tradição aqueles
elementos que nela constituíram-se como dinâmicos e inovadores em seu momento de
circulação.
José Régio, no artigo “Literatura Livresca e “Literatura Viva””
4
, assinala que as Artes
em geral possuem um ponto em comum na experiência da emoção estética que procuram
produzir na recepção, o que denota que o editor da PRESENÇA acreditava que as mais
diferentes manifestações artísticas fossem dotadas da mesma categoria que ora discutia, a
saber, um substrato comum que as reunisse sobre um mesmo patamar, salvas as nuances
particulares de cada uma. Mais que a própria noção do que é ou não vivo em literatura, a
questão discutida era o que era ou não vivo em arte. Daí a alusão quase que exaustiva a
personagens artísticas das mais diversas áreas.
Os movimentos vanguardistas também, ainda segundo o autor de Jogo da Cabra
Cega, também dão sua contribuição ao aspecto livresco da literatura justo por teorizarem
muito a respeito do fazer literário, estabelecendo, em certa medida, parâmetros para os artistas
que os seguem. O dogmatismo de certas vanguardas era o combustível para sua absorção
como modelos possíveis de serem seguidos. Embora critique tais movimentos, Régio não
negará sua contribuição para a constituição de uma literatura dita viva, tanto que em artigos
posteriores enaltece o valor das vanguardas européias como fontes de destituição do modelo
literário português.
O próprio exagero dessas escolas [Futurismo, Dadaísmo, Expressionismo]
foi benéfico porque autorizou, animou e encorajou audácias mais
4
Mantém-se neste trabalho a forma com que Régio grafa determinados vocábulos e expressões.
62
duradoiras e menos estrepitosas. Mas limitar-se a uma destas correntes (que
valem, sobretudo, como revelação de tendências) seria para um Artista
incorrer no risco de ficar apenas um caso literário. (P, 2, 28/07/1927, p. 2)
Percebe-se até aqui que as abordagens possíveis para o termo literatura, traçadas por
Régio, têm a figura do artista como princípio, juntamente com a postura que este tem com
relação à sua Obra de Arte. Em artigo publicado no segundo número da revista, intitulado
“Classicismo e Modernismo”, um recorte mais específico a respeito dessa postura. O
teórico da PRESENÇA julga o “clássico” como um estágio a ser alcançado e não meramente
como um modelo a ser seguido, comportando-se como uma característica que supera e se
sobrepõe à história da literatura. Assim, aquelas manifestações artísticas dotadas de uma certa
aura de superioridade, entendida aqui como o reflexo de Arte Viva, o, por conseguinte,
consideradas clássicas por ele: “Onde quer que o motivo inspirador e o meio de expressão se
harmonizem numa realização de Beleza aparece Arte clássica. Este equilíbrio é obra do
Gênio quando o Artista o consegue espontaneamente” (P, 02, 28/07/1927, p.1).
O termo clássico, logo, situar-se-ia não como uma característica somente da obra, mas
sim da atitude do artista, do seunio, de sua inventividade e de seu talento; clássico é o que
se sobreleva a qualquer modelo, dotando-se de perenidade e valor artísticos e algo que no
artista se mostra como “A conjugação harmoniosa, vibrante, de todas as suas faculdades
geradoras” (P, 02, 28/07/1927, p. 1).
Muito mais do que discutir o status relativo da Arte das décadas finais do século XIX
e iniciais do XX, Régio propõe-se a questionar a atitude artística como tal, justificada pela
clara opção que ele mesmo, Régio, faz de seriar artistas que segundo a sua ótica são capazes
de produzir uma obra de arte dotada de diferenciais que a afastam de todo e qualquer modelo.
A obra se fundamenta na noção de individualidade, balizada no seu modo de sentir, pensar e
interpretar motivos subjacentes à criação literária. A crítica literária desloca-se, portanto, da
composição da obra de arte literária para a vida daquele que a produz, importando mais a obra
63
como reflexo da realidade interior do artista. Este poder de representação do mundo interior
do Artista deveria estar intimamente ligado à expressão de sua individualidade, vista como
modo particular de exposição desse mundo. Como que louvando o próprio movimento, José
Régio demarca a compatibilidade entre o modernismo e o classicismo, por enxergar no
primeiro a capacidade de abranger e englobar toda e qualquer estética, mostrando ser um a
conseqüência do outro e entendendo o segundo não na sua perspectiva estilística ou epocal,
mas como um aspecto que perpetua a obra dentro de um contexto cultural mais amplo que o
de seu momento de circulação.
Cabe, ainda, situar como a PRESENÇA entendia na sua prática discursiva as
proposições da “Literatura Viva” e como isso revela características do texto presencista. Tais
princípios podem ser arrolados em grupos temáticos. O primeiro grupo de proposições diz
respeito à postura do Artista: liberdade de criação, não tendo o artista, que se submeter à
reprodução de modelos.
Ressalte-se aqui que a recorrência aos diversos autores da literatura européia se
pelo fato de terem, todos, produzido obras de arte cuja motivação partia da experiência de
cada um com seu objeto literário, vistos como exemplo do que seria chamado por José Régio
de “Arte pela Vida e Vida pela Arte”. Nesse sentido, o que se pode chamar de
“esteticização da vida”, bem no sentido impresso ao termo por Raul Leal e António Botto.
Artistas, por exemplo, em que a aproximação entre a arte produzida e a vida que tiveram,
foram peças-chaves para a percepção da literatura por aqueles produzida; ou, como declara
Foucault, “poemas-vida”
5
.
Em outro sentido, pode parecer, no entanto, que Régio, na composição do conceito,
negue a noção de memória cultural; entretanto, percebe-se que o crítico em questão propõe
5
Expressão retirada do artigo “A vida dos homens infames”, em que o filósofo pretende antologizar os relatos
sobre loucos, encarcerados, doentes e homossexuais, retirados de documentos dos séculos XVII e XVIII. Para o
filósofo, estes relatos eram capazes de lhes causar mais estranhamento do que a Literatura, já que esta, é por si só
uma interdição (MOTTA, 2003. p. 203-222).
64
que os autores do passado não sejam vistos como um molde em termos de poética, mas sim
como um exemplo de procedimento, ou seja, no conjunto de técnicas e marcas que os
identificam e no uso que estes fazem da linguagem. Assim, a memória cultural portuguesa se
inscreve na PRESENÇA na medida em que a revista, ao dar outra legibilidade a Camões e Gil
Vicente, por exemplo, os reconfigura como um recurso possível de ser reclamado pela
vanguarda, como memória voluntária a serviço da perspicácia modernista. Seguindo esse
caminho, a “Literatura Viva” faz da memória cultural não uma vivência, no sentido
benjaminiano do termo, mas experiência a que se recorre como forma de se instaurar uma
nova localização desses autores dentro da Literatura.
O segundo grupo de proposições da PRESENÇA trata da relevância do individual
sobre o coletivo, do intuitivo sobre o racional, do psicológico sobre o social, mostrando a
importância do sujeito e de sua expressão interior sobre quaisquer outros pressupostos.
Entre os presencistas João Gaspar Simões se destacava pelo seu interesse pela
Psicanálise, muito influenciado por Pessoa, que se consultara, em 1907, com Égas Moniz,
médico que introduzira as idéias freudianas em terras lusitanas. José Martinho, num artigo
dedicado à recepção de Freud em Portugal e às implicações do método analítico naquele país
em seus primeiros momentos, declara que este presencista foi um dos primeiros a se dedicar
às relações entre literatura e Psicanálise e que manteve com Pessoa uma constante
correspondência em que ambos alternavam o papel de analisando e analisado. Considerando
que Gaspar Simões fora, com Régio, o idealizador das idéias estéticas norteadoras da revista,
não é inoportuno deduzir que as idéias expressas na revista viessem indiretamente
influenciadas por este novo pensar, ainda que hoje se saiba da incipiência dos conhecimentos
psicanalíticos entre os portugueses àquela altura (MARTINHO, 2004).
65
O terceiro grupo diz respeito à genialidade autoral, liberdade de criação artística,
preponderância da individualidade e da intuição; ênfase na originalidade e na experiência do
artista.
Walter Benjamin, ao tecer no correr da sua obra os conceitos de Experiência e
Vivência, o faz preocupando-se com a manutenção da memória no mundo da modernidade.
Pensa a primeira noção como sendo um modo de vida que pressupõe um mesmo universo de
linguagens e práticas transmitido pelas gerações através de um narrador, que tende a associar
coletivo e particular e que, literariamente se ligaria a uma poética do narrar tradicional. A
Vivência, por sua vez, estaria localizada nas experiências típicas do indivíduo moderno,
incapazes de serem transmitidas de geração à geração, justo porque se revelam como
realizações particulares que expõem o homem aos choques que inviabilizam a transmissão da
memória (BENJAMIN, 1983, p.30-31).
Os presencistas, ao pensarem o conceito de “Literatura Viva”, oscilariam entre os dois
paradigmas propostos por Benjamin, uma vez que ao afirmarem a preponderância do
individual sobre o coletivo, acreditam numa arte baseada em suas vivências, que estas são
capazes de tornarem-se efetivamente originais, portanto, chocantes no dizer do filósofo
alemão. Nesse sentido, ainda se coloca a liberdade de criação artística, típica das vanguardas,
enfatizadoras do discurso vivencial por excelência.
Por outro lado, a genialidade autoral por eles referida nada mais é que um recurso da
experiência sedimentada do Romantismo, em que o Gênio se encarnava num poeta além-
Deus, como também o próprio conceito de experiência em si, calcado numa memória cultural
que a PRESENÇA revisou, mas não negou, como o fizera ORPHEU propondo um Super-
Camões travestido em Pessoa. Assim, por trás de uma postura aguerrida e de um aspecto
judicativo, a revista de Alberto de Serpa e Mario Saa operava na construção dos vínculos
possíveis entre passado e presente, memória e choque modernista, dando um passo à frente
66
(contrário, portanto, ao que conclama a crítica) no modernismo. Esse passo é justamente
marcado pela possibilidade de união de uma tradição literária aliada à tradição da ruptura
instaurada pelos movimentos estéticos das primeiras décadas do século XX, considerados por
Régio, no artigo “Ainda uma interpretação de Modernismo”, anti-modernistas, por que se
querem “escolas estritamente definidas e, portanto, reduzidas pela sua própria definição
restrita”, uma vez que, ao se fecharem em torno de si, esquecem-se de que outros
modernismos já existiram antes de si:
Chamo aqui modernismo a tendência a não aceitar como completa qualquer
afirmação do passado, remoto ou recente, nem como definitiva qualquer sua
negação, nem como perfeita qualquer afirmação da hora presente, nem como
dogmática qualquer afirmação actual – e a esperar sempre mais do futuro e a
dispor sempre de uma atitude de expectativa simpatizante e anti-sectária
(P., 25, dez/1929, p. 2).
O quarto grupo de proposições presencistas diz respeito ao caráter estético do
movimento: princípio da total independência da arte e da crítica em relação a qualquer poder.
A PRESENÇA não se concebia com vínculo a nenhum sistema ou doutrina, tanto que opta
por ser um organismo independente de qualquer instituição cultural e política, adotando uma
postura democrática, particularmente no que tange aos seus colaboradores, em que a
problemática individual e o intimismo se colocavam sobre quaisquer pressupostos
ideológicos.
Numa obra recente, dedicada às relações de Régio com a política de seu tempo,
Antônio Ventura atesta que, diferentemente do que a crítica corrente costuma indicar, o
presencista desempenhava uma atuação política discreta, porém significativa com relação ao
Estado Novo, tendo muitas vezes se pronunciado abertamente contra o regime e suas
imposições, como no caso da defesa de Hernâni Cidade, perseguido pela ditadura. Por outro
lado, reiterava que não avaliava a obra “por partidismos, dogmatismos, exclusivismos e
restrições do autor” (RÉGIO apud VENÂNCIO, 2003, p. 18), mas pelo que de universal e
grande nelas havia. Hoje, entretanto, após o aprofundamento dos estudos da linguagem, sabe-
67
se que o posicionamento de Régio é no mínimo “inocente”, uma vez que claro está que a
ideologia está, mesmo que negada ou travestida.
Um aspecto questionado por muitos críticos a respeito da PRESENÇA é a sua
desvinculação de determinados caracteres exteriores à Obra e ao trabalho do artista, sobretudo
os sócio-históricos. gio compreende que o artista, homem potencialmente inserido nas
vivências de seu tempo, traz consigo, de forma inerente à sua vida no mundo, experiências
de ordem social, política, moral, religiosa, ética etc, não sendo necessário que assuma uma
postura neste sentido em sua Obra, que tais abordagens, como declara, “redemoinham ao
fundo de todas as obras-primas”, estando, portanto, estabelecidas no texto no nível da
enunciação (P, 9, 09/02/1928, p. 3).
O quinto grupo engloba a prática da intransigência com relação a todas as expressões
não autênticas de arte e contra quaisquer reconhecimentos construídos pela ótica da
mediocridade e do padrão instituído.
Talvez seja este o ponto que mais aproxima a PRESENÇA das vanguardas históricas,
particularmente de Dadá (1918), uma vez que esta postura intolerante foi o que demarcou
claramente a existência de um desejo de ruptura deste movimento com o que lhe era
contemporâneo. Não queria produzir uma literatura de literatos como percebia em Aquilino,
Pascoaes ou Judith Teixeira, nem enaltecer as artes que não eram a de Pirandello ou Cézanne,
mas reconhecer que na cronologia das manifestações artísticas havia artistas que, embora não
reconhecidos pela crítica da época, tinham, com seu trabalho, ou ao encontro dela. Entretanto,
ao perceber como “vivos” Gil Vicente, Luís de Camões e Antero de Quental, a PRESENÇA
reescreve o princípio vanguardista de abandono da tradição cultural, justo porque situa tais
autores dentro de um panorama em que suas produções representaram uma contribuição
relevante à série literária posterior, uma vez que “oxigenaram” os modelos estéticos de sua
época.
68
A noção de autenticidade para Régio se assentava naquilo que a Teoria Literária
posterior convencionou chamar “estilo individual”, ou seja, a capacidade de determinados
autores de, mesmo inseridos dentro de um sistema semiótico determinado, imprimir na obra
caracteres que os identificam e marcam a sua singularidade dentro daquele panorama estético.
Por outro lado, na postura assumida pelos colaboradores da PRESENÇA, particularmente
Régio e Gaspar Simões, que mais se dedicam a traçar suas linhas de força, um
posicionamento que muito envolve a relação entre autor, obra e leitor, indicando para uma
direção que posteriormente será tomada pela Teoria da Recepção ao pensar a interação acima
exposta. Embora se saiba que não se pode aplicar o conceito de vanguarda a Gil Vicente,
Camões ou Antero, a leitura que o movimento aqui discutido lhes aplica é capaz de localizar
em suas obras aspectos indicadores de uma cisão estética, uma fuga ao que se esperava que
fosse produzido. Assim, assumindo sua posição de leitora, a PRESENÇA projeta uma outra
perspectiva de interpretação sobre tais obras e autores, modificando-lhes os horizontes de
expectativas e resultando disso novas obras e novos autores ou a capacidade de vê-los como
tal.
Como assume a desvinculação dos caracteres ideológicos concernentes às obras, o
movimento coimbrão torna-se com isso mais apto a aceitar a estrutura básica de compreensão
desses objetos circunscritos na história cultural portuguesa, de seus temas e horizontes, de
forma que torna-se capaz de fugir à leitura induzida que configuraria o passado como algo a
ser negado ou rasurado. Na medida em que se coloca como receptora, a revista reinterpreta
tais autores, torna-os vivos porque exigentes de uma interpretação.
O sexto grupo aponta para a relevância da arte sobre os aspectos políticos e sócio-
culturais. A arte enquanto recuperação do caráter único das coisas e por ser anti-utilitarista e
a-social, era contrária à razão que via utilidade em tudo na vida; para estes artistas, ela valia
69
enquanto forma de apreenderem o mundo e de entenderem o seu estar no mundo; o artista,
porque hipersensível, daria a arte a total compreensão de sua existência solitária.
Essa atitude revolucionária da PRESENÇA, como se procura perceber, provém em
muito como reflexo das vanguardas históricas que estavam em ebulição na Europa nas duas
primeiras décadas do século XX. Mas, de certa forma, é uma interpretação, ao procurar fundar
na individualidade do sujeito essa tendência de abandono dos modelos estabelecidos.
Este contato do conceito presencista com os movimentos de ruptura das primeiras
décadas do século XX parece apontar para o fato de que tal premissa esteja para além de um
construto de um movimento exclusivamente português. Ao procurar entender e criticar
autores pertencentes a outros cânones e séries literárias e de balizar sua literatura por um
aspecto tão generalizante como o é a “Literatura Viva”, a PRESENÇA vincula-se às questões
vanguardistas e modernistas, indicando assim para uma esteticização que extrapola o espaço
da Literatura Portuguesa e de seu momento de produção, circulação e recepção. O conceito se
pretende universal, uma vez que contribui também para reconfiguração dos conceitos de
literatura, de literariedade e autor, capacitando-o a servir como condição para a intelecção de
outras obras literárias no e para além de seu tempo.
Os movimentos históricos de vanguarda trouxeram à arte tanto a capacidade de
questionar a sua vinculação à realidade concreta e à vida prática, quanto à possibilidade de
autocriticar-se e de alienar-se de si mesma. Assim como movimentos como o Dadaísmo
propuseram mais um questionamento sobre o papel da arte dentro do espaço da lógica cultural
do que necessariamente, como o fizera o Futurismo, supor e sugerir a plena destruição,
destituição e substituição dos valores artísticos vigentes e fundamentados na idéia de tradição.
Este processo de autocrítica, conforme propõe Peter Bürger (1993, p.51 s), pode se
constituir plenamente na medida em que o meio artístico passou a ser percebido não como um
sistema composto de categorias estáticas, estanques e presas a um estilo determinado, mas
70
como um percurso cujo ponto de chegada foram as vanguardas, que propunham para isso a
percepção da arte na sua generalidade, em que princípios estilísticos o lugar a forma e ao
meio como essa arte se revela enquanto entidade autônoma.
A crítica literária do século XX se mostra como resultado desse efeito questionador da
vanguarda, uma vez que, diferentemente dos séculos anteriores, passa a perceber o material
literário dentro de um conjunto de relações deste com as artes em geral e como produto liberto
das imposições sociais, políticas e ideológicas, embora ainda se perceba, sob outros moldes,
este tipo de vinculação. A crítica pressupõe o ato de separar, analisar, para que se
estabeleçam, na obra literária, diferenças capazes de conduzir a crítica em si para o interior do
poético, buscando na obra a sua origem como manifestação artística.
A PRESENÇA, seguindo as vanguardas históricas, tanto se firmou no espaço da
crítica, contribuindo para a formação de um pensamento a respeito das principais figuras
artísticas de seu tempo, como colaborou para que uma produção literária, até então
desconhecida pelo público português, ganhasse relevo dentro da Literatura Portuguesa. Tal
acréscimo aponta para o fato de a publicação coimbrã assumir uma postura crítica a respeito
do que era produzido artisticamente em seu momento, sobrepondo-se, nesse sentido, à
geração de ORPHEU não tão preocupada em interagir criticamente com o que era produzido.
Aliás, cabe ressaltar que é a que inicialmente dará ênfase aos autores do movimento de
1915, uma vez que em vários de seus números abrirá espaço tanto para a publicação de
poemas de Fernando Pessoa, quanto de seus heterônimos e companheiros de movimento.
Como folha de crítica que era, exerceu o papel de lugar de encontro da produção artística
contemporânea com o público leitor, mundo embora, às vezes, se colocasse numa perspectiva
afastada da realidade cultural portuguesa imediata. José Régio afirmou que Em Arte, a crítica
serve para ajudar um Artista a descobrir-se e a possuir-se até contra a crítica (P, 5, 4-
06-1927, p. 8.), manifestando assim seu pensamento a respeito da função que ele e o
71
movimento presencista atribuíam à crítica. Nesses termos, talvez o “pecado” do movimento
foi o de centrar seu material crítico em autores considerados “vivos e originais”, o que
demonstra o investimento em um padrão estético pré-determinado, ao invés de procurar
apontar para um espectro maior de sua mundivivência.
O papel de leitores/críticos literários desempenhado pelos membros do grupo
presencista aponta, em certa medida, para uma tentativa do movimento de se adequar à
realidade vanguardista no que dizia respeito ao abandono da escola literária como fonte
geradora de sentido da obra. Tal iniciativa proporcionou, no entanto, o reconhecimento por
parte da revista de que havia uma continuidade poética nos autores que criticava, que tanto os
valorizava, quanto constatava seu contributo, como exemplos, à formação estética da
literatura que ali se configurava.
Mas a grande questão é, justamente, o que torna o texto “vivo”? Os teóricos da
Estética da Recepção, quarenta anos após a formulação do conceito por Régio, afirmavam que
a obra vive na medida em que tem uma recepção e exige para si uma interpretação que atua
em muitos sentidos. Antes de mais, fica clara nas páginas da revista que ela é antes um
instrumento de formação do gosto e da leitura, na medida em que como “folha de Arte e
Crítica” trazia em si elementos favorecedores da criação de um repertório cultural aos seus
leitores: poesia, ensaio, narrativas, grafismos, resenhas cinematográficas etc, formas de se
construir um gosto estético moderno e vanguardista. A preocupação “pedagógica” da revista
em muito se deve à formação de seu corpo: em sua maioria colaboradores advindos de áreas
das Ciências Humanas e com fortes ligações com a literatura. Assim, antes de críticos, poetas
e ensaístas, são leitores e sendo tanto, procuraram sempre disseminar nas ginas da revista
uma perspectiva que os colocava sempre na condição de receptores. A vivacidade da
literatura, nesse sentido, consistiria no fato de que percebiam na História Literária portuguesa
se tornaram escrevíveis em seu todo, ou seja, como nos indica Roland Barthes, em S/Z,
72
aqueles autores que produziram obras que se inscrevem num presente perpétuo e que podem
fazer do leitor produtores, também, do texto, já que essa constante atualidade lhes proporciona
a capacidade de constantemente ser reinterpretado a partir dos novos horizontes que o
disseminam na cultura (cf. BARTHES, 1992, p. 37-40). O rol de autores é extenso, mas é
significativa a presença dos nomes de Camões, Garrett, Antero, Pessoa e Sá-Carneiro. A
“Literatura Viva” estimaria o potencial autoral e textual de certos artistas literários,
conferindo-lhes justamente a habilidade de serem reclamados pela e na leitura, independente
do momento em que produziram.
O “Livresco”, por sua vez, por ser apenas produtos indiferentes dentro do arranjo
literário, tende a ocupar o espaço documental da biblioteca e da livraria, não produzindo,
portanto, sua abertura para além do contexto e das condições discursivas a que estão
submetidas. Viva, nesse sentido, é a literatura (ou o seu recorte) que permanece na história e
na memória cultural sob a forma de um modelo produtivo, não a ser copiado, mas a ser
reinterpretado constantemente no gesto da leitura.
No momento de publicão da revista, embora muitos dos pressupostos da literatura tivessem
sido questionados, o conceito mais vulgar ainda baseava-se no beletrismo, afastado da realidade do
homem comum, numa perspectiva mimética e catártica, ainda muito próxima dos conceitos da ptica
clássica. Ao artista caberia ter um refinamento e uma polidez intelectual para além do compreenvel,
capaz de tor-lo apto a produzir uma obra arstica que representasse o ideal elevado de humanidade.
A Literatura Viva” desfaz este ideal quando renaturaliza o fazer literário e funda no artista
indiduo real e inserido em seu contexto cultural - a capacidade de insuflar na obra que produz
valores originais, sinceros e fundamentados na sua experncia como ser, tal qual pros Walter
Benjamin em seus estudos sobre Charles Baudelaire (BENJAMIN, 1975, p. 37 -
76 )
6
. A tarefa de Régio, portanto, foi a de encontrar, na série literária mais conhecida,
6
A aproximação de Régio com Benjamin se pelo fato de o filósofo judeu observar na obra de Baudelaire a
inauguração, na Literatura, da modernidade, isto é, a fixação literária da vivência, aquilo que seria
73
correspondentes capazes, mesmo em outras literaturas, de darem sustentação à premissa
construída, assim rediscutindo os conceitos operadores da matéria literária.
A partir daí, a “condição provincial” da PRESENÇA, como indica David Mourão -
Ferreira (1977, p.43), talvez possa ser rechaçada, na medida em que os pressupostos
presencistas, vistos numa perspectiva extra-portuguesa, ampliam os horizontes do próprio
movimento, tornando-o capaz de ter suas diretivas aplicadas não a outros momentos
daquela literatura, mas, também, de colaborar para uma compreensão portuguesa da literatura
concomitante ao movimento e anterior a si. Embora um movimento de origem provinciana,
sua leitura sintetizada pela “Literatura Viva” aponta para o entendimento de autores,
textos e experiências que rompem com os espaços geográfico e cultural, marcando tanto uma
mundivivência, quanto o aspecto universal daquelas concepções. Até porque, Jorge Schwartz,
no capítulo introdutório de Vanguarda e Cosmopolitismo chama a atenção para o fato de que
o cosmopolitismo dos movimentos modernos é antes “a abertura de fronteiras culturais e a
conversão desse fator em escritura” (SCHWARTZ, 1983, p. 6), que necessariamente a
vinculação direta de tais movimentos à vida nas metrópoles; vale, logo, a sua capacidade e
vontade de captar aquilo que ocorre no mundo em termos de arte e que é simultâneo a si. Ser
ou não provincial não é a questão, mas, sim estar atento ou não ao que se passa com a arte em
termos universais. Quanto a isso, a revista dos jovens de Coimbra rompe com a pecha
tradicional de interiorana, justo porque tem uma compreensão da literatura e da cultura que
ultrapassam e extravasam os limites portugueses.
É certo afirmar que o caráter biográfico e autoral do conceito de “Literatura Viva
tenha recaído de maneira oportuna sobre a produção literária dos membros da revista
experimentado pelo homem de maneira isolada e irrepetível, incapaz de ser transmitido entre gerações. A
vivência é o aparecimento da percepção de uma realidade por uma individualidade. Para Benjamin, a poesia, na
modernidade, estaria restrita a este espaço individual, refletindo a solidão do choque do novo sem a possibilidade
de compartilhar a impressão sui generis do desconhecido: Ele (Baudelaire) mostrou o preço que custa a
sensação de modernidade: a dissolução da aura na ‘experiência’, o choc. Custou-lhe caro o entendimento com
esta dissolução. Mas esta é a lei da sua poesia que brilha no céu do Segundo império, como ‘um astro sem
atmosfera’” (BENJAMIN, 1983, p. 56).
74
PRESENÇA, como parece óbvia afirmar, o que demonstra que o conceito é amplo e capaz de
atender à Literatura. Entretanto, essa tese pretende priorizar a relação que tal conceito
estabelece com as produções poéticas posteriores ao encerramento dos trabalhos da revista,
por se considerar que, diante dessa modalidade textual, pode ocorrer uma melhor assimilação
e refundição do conceito de “Literatura Viva”, uma vez que na poesia a fusão entre sujeito
poético e indivíduo real, fingimento e realidade – entre vida e arte, portanto – podem se dar de
maneira mais dinâmica e íntima, contribuindo para que o sugerido no conceito se realize em
plenitude. Tal fato justifica-se mais ainda, se se leva em consideração que em termos de
gêneros textuais a revista operou significativamente na produção poética e dispensou uma
atenção um pouco menor à produção ficcional e que muito se baseou na publicação de
material poético de seus autores, ficando a prosa bem determinada ao espaço da crítica, da
resenha literária e dos textos doutrinários.
75
3 “NA TINTA PERMANENTE DOS CORPOS”
3.1 Os outros barões assinalados
Os barões assinalados, proposição e parte do primeiro e consagrado verso de Os
Lusíadas, de Luís de Camões, constituem-se como imagem, identidade e modelo não para
a poesia, mas como horizonte significativo e discursivo para toda uma cultura em língua
portuguesa. Evocar o poeta épico e trazê-lo a uma discussão que propõe repensar
genealogicamente os horizontes que se constituem como novas articulações da subjetividade
masculina, diversas daquelas preconizadas pela cultura institucional e hegemônica, é,
inclusive, também uma tentativa de se procurar perceber um processo de construção
identitária que se perfaz no interior da própria História da Cultura portuguesa. Como
extensão, é tarefa também pensar o cânone literário português a partir de uma outra
perspectiva, não apenas cronológica e historicista, mas também dialógico, no sentido que se
pretende estabelecer vínculos possíveis para o entendimento de aspectos particulares
concernentes à Literatura Portuguesa.
Logo, procurar-se-á estabelecer, por um lado, um percurso que vai da caracterização
tradicional do masculino, efetivada por Camões, passando pela contribuição de Fernando
Pessoa e de poetas seus contemporâneos, até chegarmos, por outro lado, à emergência do
discurso masculino gay, representado pela poesia pós-74 - na e pela poesia de Al Berto -,
lugar em que se articulam novas identidades e subjetividades, fruto não do trabalho da
ficção, como também resultado dos avanços sociais e políticos pós-Stonewall
7
e posteriores à
7
O confronto entre a polícia de Nova Iorque e um grupo de travestis, abrigados no bar Stonewall, no
Village/Nova Iorque (EUA), em 28 de junho de 1969, converteu-se em marco para o início das atividades
políticas dos movimentos de liberação homossexuais espalhados pelo mundo.
76
Revolução dos Cravos.
Partindo desse percurso primeiro, quer-se aqui estabelecer também uma outra proposta
preliminar e possível de se constituir uma nova História da Literatura baseada tanto nos
pressupostos genealógicos e arqueológicos preconizados por Foucault, como também pelas
contribuições que os Estudos Culturais dão à literatura, como uma proposta de resgate de um
interesse histórico descentrado e ao mesmo tempo paralelo ao cânone literário português
tradicional. O eixo a ser seguido é diacrônico. A abordagem, entretanto, procura priorizar
como nessa cronologia se perfazem os discursos a respeito do homem enquanto gênero e as
manifestações de sua subjetividade. Aqui se estabelece o óbvio: pretende-se trazer a este
trabalho o só a imagem de homem pensada pela ficção laudatória e celebrativa do poema
épico, como também aquela que de certa forma se decalca na ficção, que, sendo esta
mímesis, é recurso de representação do real.
A ficção, enquanto estratégia discursiva de e sobre a realidade, faz com que
percebamos como o discurso literário engendra a representação de imagens que virão a se
constituir como “lugares” em que a própria Literatura Portuguesa, posterior à epopéia
camoniana, retornará em busca de modelos, sejam modelos que corroborem com o imaginário
literário e cultural ou outros capazes de, a partir desses moldes tradicionais, constituírem-se
como novas formas de ser; assim, o marinheiro, navegador e o descobridor, e o poeta tornam-
se aqui os exemplos geradores de uma discussão e de um processo de transformação das
subjetividades expostas no texto literário. São esses homens que coabitam no imaginário
português como matrizes masculinas de uma nação, porque figuras copiadas de um modelo
épico clássico. Como nos indica Bourdieu, “as manifestações legítimas (...) da virilidade se
situam na lógica da proeza, da exploração e do que traz honra”. Dessa forma, o típico
português da ficção efetiva exatamente aquilo que, dentro de uma lógica andro-heterocêntrica,
deve constituir o masculino. O novo mito, esperado e sugerido por Camões ao fim do poema
77
não é só a portugalidade, mas aquilo que a manifesta concretamente a virilidade, a altivez, a
energia da nação: o homem. Nota-se que a configuração do herói épico português muito se
afasta das formas clássicas que dominam a epopéia se considerarmos o Gama a encarnação
da portugalidade sugerida por Camões, ele não é o guerreiro implacável como Aquiles ou
Enéias ou astucioso Ulisses, ao contrário, suas características apontam para um herói mais
afeito às exigências da modernidade. Ao invés de guerreiro, um empreendedor, ou seja,
enquanto os heróis clássicos recorrem às armas, o Gama recorre continuamente à diplomacia
e à política, sempre em nome do comércio com as Índias que precisa ser asssegurado. Vale
assinalar, ainda, que na epopéia camoniana a representação do masculino não segue
necessariamente as diretrizes tradicionais do herói épico, não o Gama escapa a esta
observação, ao longo dos cantos vão desfilando exemplos em que os estereótipos da
masculinidade são abrandados. Note-se o episódio de Inês de Castro, em que o Poeta
sobrevaloriza a doçura de Inês em contraponto à ferocidade de D. Afonso; a frágil emoção do
gigante Adamastor; ou, ainda, o Magriço, cuja representação não se submete às formas
corporais do grande herói, apesar da sua afirmação de coragem e determinação; ou mesmo
Lionardo, cuja insegurança na conquista amorosa é flagrante.
Ao lado dessas figuras, os lugares eleitos por esta literatura como panos de fundo para
a encenação ficcional: o mar, a terra, a nação, a praia, o cais; espaços de realização da nação e
que posteriormente servirão como elementos de uma reconfiguração identitária e índices de
que, embora os “motivos” sejam os mesmos, as abordagens, as retomadas e as personagens
neles inseridos já são outros.
Nas figuras de Vasco da Gama, excursos do poeta e no marinheiro Lionardo (Lus.,
XIX, 74-84), de Os Lusíadas estão, não o peso histórico, mas também a capacidade que
têm de representarem socialmente um modelo de homem, de masculinidade e de gênero, na
medida em que encerram uma estratégia político-social muito típica do poema épico:
78
sobrevalorizar aquilo que representa melhor um povo, que o faz diferente e superior aos
outros. Assim, os portugueses são homens, porém mais humanos, os dominadores, porém
cristãos; lutam contra o mouro infiel, vicioso, sodomita e animalizado, ao mesmo tempo em
que promovem a fé. Desta forma, o modelo pretendido de homem é, na verdade, uma
confluência de sentidos advindos da Idade Média - em que convivem o cavaleiro das novelas
e o das cantigas de amor, a exemplo do Amadis de Gaula -, com sentidos mais
contemporâneos a Camões, como o comerciante, o marinheiro e o diplomata.
Ainda que fuja do plano histórico, a epopéia afirma a superioridade masculina no
emblemático episódio da Ilha dos Amores. Nesta passagem temos a representação do prêmio
dado por Vênus aos navegadores portugueses: um banquete, para o corpo, para o espírito e
para o ânimo dos navegadores na volta à terra lusitana. Naquele espaço o percurso de
afirmação da masculinidade ganha um reforço: além disso tudo, são os portugueses nobres
conquistadores também no âmbito erótico.
Em meio à sanha coletivista épica, em que a individualidade do herói traduz-se na
coletividade que representa, destaca-se o marinheiro Lionardo, um dos poucos a ser
denominado e, portanto, constituído de uma individualidade dentre tantos anônimos
conquistadores de ninfas e deusas. Lionardo fora nomeado ao narrar o episódio de “Os
Doze de Inglaterra” aos companheiros de viagem (Lus., VII, 43-69). De “férreo cano erguido”
(Lus., XIX, 74), o marinheiro “soldado bem disposto,/ Manhoso, cavaleiro e namorado”
(Lus., XIX, 75) segue, persegue e conquista a ninfa Efire, reafirmando assim as esferas do
poder masculino no português decalcadas. Potente, ativo, heterossexual, valente, guerreiro e,
principalmente, enamorado; além disso, macho possível e homem esperado, o marinheiro
articula-se como sentido que deve imperar no discurso da epopéia. Camões parece contrapor
“o tenro ramo florescente” do jovem Dom Sebastião, ao férreo cano” do marinheiro,
refundando e difundindo, divinamente, a virilidade portuguesa. No verso androcêntrico do
79
poeta, o discurso falocêntrico da nação. No jogo de conquista da ninfa, Lionardo trará consigo
justamente os anseios de uma sociedade em expansão, que nutria uma profunda auto-estima
em relação à representação de seus marinheiros. Apesar de ele inicialmente demonstrar
insegurança frente à ninfa, é com sua insistência que a conquista, deixando de lado qualquer
demonstração de falta de vigor ou covardia.
O personagem, como aspectos que compõem o mito lusitano proposto no poema, vem,
nesse sentido, constituir-se como exemplo de comportamento dos indivíduos que podem
ascender dentro de uma escala de valor que exclui as diferenças. Ainda assim, os eleva
gradativamente ao encontro da própria identidade portuguesa. O marinheiro, para justificar a
condição futura de mito, precisará confirmar a força, o vigor e a potência que até então
caracterizara o homem português, justificando assim aquilo que está na raiz da masculinidade:
ser viril, forte, corajoso, enérgico e ativo. Conquistar a ninfa, mais do que indicar somente o
merecimento do prêmio divino, revela-se, como nos indica Bourdieu, na relação sexual, como
indício de um jogo social de dominação
porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre
masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria,
organiza, expressa e dirige o desejo o desejo masculino como desejo de
posse, como dominação erotizada, ou mesmo, em última instância, como
reconhecimento erotizado da dominação. (BORDIEU, 1999, p. 31).
O gesto do personagem em questão mostra-se como metáfora do que é encenado pelo
poema: a busca desejante pelas Índias, os revezes da viagem, a conquista e o conseqüente
exercício de poder por sobre o objeto conquistado. A Ninfa, como a Índia, necessita ser
dominada pelo português; penetrar a Ninfa-Índia é uma prerrogativa do masculino a encenar
simbolicamente seu poder e autoridade. Entretanto, o poeta épico, desencantado ao fim do seu
poema, prenuncia/anuncia uma certa crise na identidade portuguesa, fato este que se
perpetua com a Regência Filipina. Entretanto, essa crise está na ordem da nacionalidade e não
necessariamente da identidade de gênero, visto que, ainda que critique os “barões
80
assinalados” e aquilo que fazem da viagem, esta crítica se estabelece ao nível da formação de
um juízo sobre a nacionalidade.
A despeito das relações homossociais perceptíveis nas epopéias clássicas, modelos dos
quais Camões lança mão, cabe ressaltar que relações homoeróticas inexistem em Os
Lusíadas, que, se o poeta toma como base a Ilíada, a Odisséia e a Eneida, não poderia,
como indica Junito Brandão (1989) e K. J. Dover (1994), tematizar essa questão, que a
pederastia é posterior às épicas homéricas e as práticas homossexuais não eram bem toleradas
entre os cidadãos, fossem eles romanos ou helênicos, ainda que determinado senso-comum
diga o contrário.
Enquanto o mar da ficção e os signos a ele ligados desvela-se como o lugar de
encenação da masculinidade, em terra no espaço da não-ficção, à época de Camões, se
podia perceber uma forma de experiência erótica paralela, diversa daquela tão bem
representada por Lionardo e pelos barões marcados com o sinal tradicional do gênero: a
homossexualidade.
Segundo Luiz Mott, havia em Portugal desde pelo menos o século XIII uma subcultura
gay silenciosa, mas não menos visível, que contava entre seus pares desde nobres, padres e
funcionários do reino, até escravos, agricultores e marinheiros. A esse respeito, declara que
Certamente preocupado que Lisboa-Babel não se tornasse uma Lisboa-
Sodoma, D. Sebastião "Rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar
em África, Senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da
Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia etc...", ao promulgar a "Lei sobre o pecado
nefando de sodomia", sugeria claramente que esses maus costumes
presenciados no Reino teriam vindo do além-mar: (...). Em parte o soberano
tinha razão, pois em várias das novas sociedades conquistadas pelos
lusitanos a homossexualidade e o travestismo eram tão freqüentes - como
nos reinos da Guiné, Benin, Congo e Angola, na Índia, entre os aborígenes
americanos, sobretudo os tupinambás, sem falar nas terras dos mouros - que,
nalgumas destas partes, a solução encontrada pelos conquistadores foi
exterminar violentamente dezenas e dezenas de praticantes do "mau
pecado" (MOTT, 1988, p. 120).
Desde antes desse momento via-se a homossexualidade como traição à condição
81
masculina, que pela lógica da inversão sexual, ela ia de encontro à nação, à família e à
estrutura sobre a qual se assenta a sociedade ocidental: o patriarcado. Sendo capaz de tais
transtornos, este comportamento sexual poderia destinar-se a ser mais uma das situações
periféricas que a sociedade, constituída sob a égide da moral católica e inquisitorial, deveria
eliminar.
Entretanto, no século XVIII, Bocage ousa desafiar aquela condição que canonicamente
se estabelecera: em diversos de seus poemas de tom erótico-burlesco, o poeta neoclássico
dedicou-se a pôr às claras não um aspecto de seu comportamento social, como também
práticas que corriam em paralelo a o universo erótico heterossexual. Tem-se, portanto um
poeta que vários poemas dedicou a “paus decifrados”, aos “membros monstruosos”, aos
“caralhos candentes” ou mesmo até as “rachadas partes” que muito lhe apetecem ao cantar um
frade “hermafrodita corcovado”. Segue suas experiências (homo)eróticas denunciando o
“engano de suas fantasias / numa escada enrabando um bom garoto”, que abre mão de
continuar a sustentar as prostitutas lisboetas e goesas (AMARAL, 2003, p. 19). Ainda que
pareça precocemente que o poeta que pretendia ser o “segundo Camões” somente enalteça as
práticas homoeróticas, cabe ressaltar que o seu discurso vem penetrado por um claro
posicionamento masculino, que parece muito mais reafirmador da masculinidade do sujeito
poético frente às prostitutas e homossexuais, do que necessariamente uma valorização de
certas práticas das quais o poeta não se furtava. Em resumo, o poeta mais confirma aquilo que
seu mestre propunha, que necessariamente opera na rasura do modelo de masculinidade
vigente.
À esteira de Camões, as afirmações acerca da masculinidade tradicionalmente
constituída mantêm-se na série literária portuguesa pela retomada histórica e heróica do
homem medieval procedida por Alexandre Herculano e pela denúncia das doenças sociais
procedidas por Eça de Queirós. Eça construíra um Jacintinho afrancesado, moderno e
82
cosmopolita, que, ao chegar à terra portuguesa, retoma a tradição do macho lusitano,
convertendo-se de Jacintinho em Jacintão, varão típico, homem perfeito, exemplo de
masculinidade. Isso somente, para não dar relevo aos inúmeros diminutivos utilizados na
onomástica dos personagens queirosianos e à afirmativa de Antero de Quental em uma carta
trocada com Joaquim de Carvalho: “Seja homem!” (QUENTAL, 1990, p.690).
O modernismo posto em prática pelos de ORPHEU começa a revelar estes outros
que às vezes inefavelmente vão ousar rasurar o estatuto da identidade masculina portuguesa;
autores e personagens, questionadores de uma tradição estética, se lançarão numa
empreitada que se traduz, inclusive, na criação de um novo homem multifacetado, trans-
subjetivo, pluridentitário, como o caso de Mário de Sá-Carneiro, na Confissão de Lúcio e no
jogo heteronímico pessoano.
A narrativa de -Carneiro retrata Lúcio, jovem escritor de teatro português radicado
em Paris, cidade onde conhece Ricardo, poeta, personagem que para perpetuar o desejo
homoerótico de Lúcio e seu, desdobra-se discursivamente em Marta criatura diáfana e
fluida, de cuja existência Lúcio, por fim, duvida. A personagem, que é ao mesmo tempo fuga,
representação e realidade de um desejo do personagem-título que não se pode perpetuar na
figura masculina do poeta Ricardo. Este, por sua vez, lhe confessa suas angústias no que diz
respeito à percepção de si mesmo: não se percebe enquanto um, mas na condição de quem ora
se olha de fora e percebe em si um outro que ora deseja infinitamente ser mulher para que
assim realize seus desejos.
Ver Marta em Ricardo constitui-se para Lúcio como a única possibilidade de encontrar
e justificar seu desejo e seu interesse por aquele, na medida em que o personagem-título já
havia percebido no outro o que de feminino nele existia. Assim, perfaz-se a vontade de não
realizar-se com o outro, mas no outro, uma vez que a saída narrativa de fazer de Ricardo,
Marta, denota tanto o desejo daquele de ser o desdobramento de si, como o de Lúcio de ver na
83
representação “Marta” o elemento mediador. A personagem seria, então, o elemento
viabilizador, o vértice do triângulo-linha no qual, ambos, se encontram e ao mesmo tempo se
reconhecem e se espelham. E o espelhamento se dá no fato de Lúcio ter conhecimento de que
Ricardo se casara com Marta e, portanto, a possui; logo, possuir Marta era refletir o
relacionamento que seu marido travava com "ela" e por extensão, ocupar o papel que Ricardo
ocupava, assim identificando-se com ele. Desta forma, ela se construiria como uma
justificativa para a relação Lúcio-Ricardo, no que René Girard chamaria de "triangulação do
desejo" (cf. ARENAS, 2002a, p. 173-183).
Marta é inúmeras vezes descrita pelo narrador dentro de uma aura de fantasmagoria.
Ela existe na narrativa que Lúcio cria e o na realidade em que ele se insere; sendo, assim,
uma criação do seu desejo interdito por Ricardo e também o contrário: estratégia de Ricardo
para constituir-se afetiva e sexualmente com o amigo. Tal fantasmagoria, se levarmos em
conta a resistência que Lúcio tem no que diz respeito à figura feminilizada do masculino,
como se percebe nas referências que faz no texto aos "meiguinhos" e "açucarados" que via em
Paris, apontaria para uma negação do caráter homossexual de que era dotado e que lhe
rondava a cabeça desde o momento em que percebe a profundidade e a intensidade de sua
relação com Ricardo. Lúcio também aponta para a crise de sua identidade masculina que não
pode ser traída ao desejar outro, encarnando o duplo perseguido por Sá-Carneiro, coloca-se
entre a tradição da masculinidade, fincada na tradição literária e social, e a ruptura proposta
pela vanguarda de destecer os nós do passado.
Sá-Carneiro calca a novela numa realidade pouco palpável, talvez até onírica, bem
marcada no dizer do narrador quando este afirma não saber se Marta "seria apenas um sonho
que tivera e não lograra esquecer, confundindo-o com a realidade (?)" ou quando expõe, em
vários momentos do texto, a tênue diferença entre sonho e realidade, para a qual ele supõe
nunca estar devidamente acordado, fato que posteriormente José Régio, em análise de A
84
confissão..., veio denotar como uma "realidade inverossímil". Mas, decerto, isso é um fato
que se liga indistintamente aos procedimentos da narrativa de vanguarda posta em prática pelo
autor de Céu em Fogo. A novela de Sá-Carneiro, buscando mostrar a relatividade das
personalidades e da própria identidade em si, o multifacetar das sensações e do seres, burla
tanto os modelos românticos e realistas ainda vigentes em 1913 em Portugal, quanto ao que
havia de mais novo no que tangia às formas de se representar, apresentar e escrever em um
dado tempo, no caso, a relação homoerótica e seus possíveis desdobramentos.
A esse respeito pode-se ainda aludir ao fato de Sá-Carneiro estar intimamente
inclinado a, com Fernando Pessoa, construir em Portugal uma vanguarda o contundente
quanto o Futurismo de Marinetti, que dentre outras coisas dizia que cantaria o desprezo pelas
mulheres. Na tentativa empreendida pelo movimento italiano de destituir a memória, a
tradição e os convencionalismos, tal comportamento não seria mais do que a síntese do que se
quer destituir tanto no aspecto moral quanto no social. E Sá-Carneiro, parece, mostrou na
prática da vida que ser homossexual refletia bem o que era ser vanguarda.
Ora, não seria inoportuno afirmar que esta morte da musa aponta para o
reconhecimento do masculino, do homem como matéria literária, um outro que se estabelece
como matéria e como voz discursiva. Pode-se inferir que a atitude de vanguarda comporta,
dentre outras coisas, a inclinação homoerótica e entenderia, portanto, ao desejo homossocial e
de ruptura.
No que tange ao jogo de relações percebidas na novela, pode-se dizer, parafraseando
Eve Kosofsky Sedgwick (1992), que em A confissão de Lúcio teríamos as relações de caráter
homoerótico em continuidade direta com a homossociabilidade e, talvez, ela o homoerotismo
constituísse o seu cerne, nesse caso. Isso se confirma no desfecho trágico da trama: ao
constatar que o objeto de seu desejo na verdade é Ricardo, Lúcio promove a falência dessa
relação, e da representação que faz, atirando em Marta e acertando em Ricardo. Percebe-se
85
que os personagens aqui envolvidos não apresentam, em princípio, o domínio claro e o limite
da relação homossocial: um homem pode tudo, menos relacionar-se sexualmente ou desejar
outro homem; Marta é a destituição desse falso limite e elemento, portanto, catalisador da
crise. E, retomando Marinetti, como possível musa, precisa ser morta para que outros desejos
realmente se revelem e desvelem.
Em Fernando Pessoa, particularmente na voz poética de Álvaro de Campos, o mar e
seus barões desviam-se definitivamente de seu rumo. Entretanto, Pessoa quer refundar o mito
da própria nacionalidade que em Camões fora emblematizado e construído. É necessário
superar o poeta épico, instaurando a nova genealogia poética da modernidade portuguesa
Orpheu – e com isso, revisitando as imagens tão decantadas em Os Lusíadas. Pessoa persegue
o processo, iniciado em Cesário Verde e Camilo Pessanha que viam nos lugares da
heroicidade portuguesa e nos símbolos que a sustentavam a própria concretização de um país
decadente. O poeta da Mensagem trará, então, para o interior da poesia modernista um
conjunto de questões que sinalizam a chegada de um novo tempo em que não mais espaço
nem histórico, nem discursivo para a retomada dos mitos camonianos, nem para a figura
de homem por aquele poeta trabalhada.
Superar Camões é também superar aquilo que por ele era valorizado enquanto modo
de ser português; em lugar do homem camoniano – barão assinalado, insigne conquistador – a
crise da identidade, da subjetividade e a incapacidade de ser o homem do passado.
Diversos críticos apontam esta crise da construção identitária na poesia de Pessoa.
Como se não bastassem cerca de setenta e dois heterônimos, a crítica que lhe é imediatamente
posterior percebia em sua obra que o enigma ontológico tinha mais caracteres que
simplesmente o representar de uma forma de expressão, pela linguagem, dos dramas do
sujeito moderno. Fingimento para alguns, neurose para o próprio Pessoa, refinamento estético
e poético para todos. Jorge de Sena, no prefácio à primeira edição de Poesia I (1988), reitera,
86
a despeito de sua poesia de tom notadamente testemunhal, que o fingimento é a base do ser
poético pessoano, não sendo uma “arte de iludir”,
Mas antes a acentuação muito justa, exposta por uma individualidade
eminentemente analítica, de que as virtualidades que contemos são mais que
o continente, e de que a actividade poética sobreleva o que precariamente a
cada instante nos dispomos ser. Seu “fingimento” valeu como uma lição e
um exemplo (...). (SENA, 1988, p. 25)
Na voz poética de Álvaro de Campos, particularmente na “Ode Triunfal” e na “Ode
Marítima”, vemos encenada a emergência desse novo modelo de masculinidade, estabelecida
sobre a crise dos valores sociais e estéticos portugueses e europeus. Nesses poemas se
concentram um novo sujeito homoeroticamente manifesto, que se não quer ser mulher, como
Sá-Carneiro em “Manicure”, quer ver-se possuído pela força da masculinidade, não
representada por si mesmo, mas pelo mundo moderno. Por outro lado, parece também o poeta
querer negar o modelo de masculino ao qual se vincula a sua formação como artista e ser
humano, denotando com isso não necessariamente querer ser mulher, mas querer ser diferente
do padrão que se conhece.
Na “Ode Triunfal” o sujeito poético, penetrado, em êxtase perene proporcionado pela
máquina, realiza um processo de interação erótica com os mecanismos que manifestam o
mundo moderno. Entretanto, como nos indica Fernando Arenas (2002b), nesse poema,
Campos-Pessoa, ainda não consegue se desvencilhar dos paradigmas que instituem o mundo
masculino, visto que nele reitera as dicotomias típicas de uma realidade patriarcal: o sujeito,
passivo e afeminado, deixa-se submeter por uma máquina masculinizada ao extremo.
Mantém-se, pois, a hierarquização dos gêneros e é exposta uma subjetividade que nos parece
conflituosa na medida em que, no correr do poema, não indica mais nenhuma possibilidade
erótica efetiva e nem afetiva, de acordo com o que se percebe logo no início da Ode:
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria dentro e fora de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
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Por todas as papilas fora do mundo que eu sinto!
(...)
Ah, exprimir-se como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
(PESSOA, 1977, p. 306))
A máquina, assim, se traduz como possibilidade e fetiche e não necessariamente
como elemento capaz de viabilizar os desejos homoeróticos reais do sujeito poético. Ela,
como metáfora de um mundo futurista preconizado por Marinetti, nos indica o
esgarçamento de um ideal manifesto em toda a lírica ocidental, que faz da mulher, musa. No
lugar dessa:
Eh marinheiros, gajeiros, eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! Homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co’o Perigo a espreitar p’las vigias! (...)
(PESSOA, 1977, p. 321)
Em a “Ode Marítima” os impulsos homoeróticos já expostos no poema anterior
ganham um aspecto mais dinâmico no sentido de que passam a existir na esfera das sensações
valorizadas pelo sujeito poético, que quer “sentir tudo de todas as maneiras”. Assim, convoca
de seu imaginário o espaço marítimo e das grandes navegações para a partir daí constituir seu
discurso de canto (de louvor ou de amor?) à herança deixada e até aquele momento ainda
significativa de um passado glorioso. Como na “Ode Triunfal”, o poeta demarca a existência
de um outro que indiretamente revela os desejos do sujeito poético: o eu, homossexual, se
confronta com um outro, se não heterossexual, mas percebido como tal; o primeiro encarna a
visão do sujeito moderno sobre o mundo e sobre as coisas; o outro, a reconfiguração do
sujeito do passado; para esse, reflexo do homem camoniano, é sugerida a mudança nos
paradigmas da própria identidade.
Como aludido aqui, Pessoa se propõe a esvaziar os sentidos circulantes tanto na
88
épica quanto no poeta épico, horizonte significativo de toda uma nação. Para tanto, substitui
no interior do poema em questão a figura do marinheiro português pela do inglês (que desde
Cesário Verde, pelo menos, dominava o imaginário marítimo na Literatura Portuguesa), o
português conquistador de mares, pelo pirata que a tudo toma de assalto, violenta, masculina e
bravamente. Tem-se aí, já, o índice desse esvaziamento, visto que no lugar de endossar o
modelo vigente, Pessoa, se não parodia, rasura e transgride por completo um ideal de honra e
masculinidade residente no imaginário coletivo da nação. Logo, amplia o limite previsto para
a caracterização do homem português heterossexual, para um outro que agora se empenha em
anunciar seu desejo, passando a conferir a experiência da sexualidade uma verdade poética
possível de ser já enunciada.
Aqui, ao invés do marinheiro galanteador, nobre, mas machista - posto que não possui
outra alternativa identitária - que conquista a ninfa, temos um marinheiro ciente dos vícios
que o mar engendra, que penetra o sujeito poético à beira do cais, que o sevicia enquanto a
quilha do navio rasga o oceano:
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu
Que me ensinaste esse grito antiqüíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das águas,
A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar (...)
(PESSOA, 1977, p. 319).
O gesto do marinheiro é antes de tudo um gesto que transgride com o princípio da
masculinidade que sustenta a cultura poética portuguesa. Esse rompimento, dá-se no espaço
da sexualidade, espaço que segundo Foucault em A ordem do discurso constitui, junto com a
política, uma das regiões de maior interdição discursiva.
Note-se que o poema é construído a partir do que o olhar do sujeito poético é capaz de
captar e a partir do que a fluidez da sua imaginação, aliada às sensações de que desfruta, é
capaz de gerar. Ao olhar do cais deserto a foz do Rio Tejo, o enunciador mergulha em
89
experiências que inicialmente são evocadas pela memória histórico-marítima, mas que vão
paulatinamente se tornando elucubrações desejantes. Um “volante começa a girar,
lentamente”, dentro de um eu que vê, a partir disso, crescerem também a volúpia e o desejo de
ter para si, eroticamente, todo aquele mar e os signos que o ratificam. Ao lado da força
semântica que o mar vem representar no interior do poema está também a presença
motivadora do marinheiro, a provocar no sujeito poético uma excitação capaz de descolá-lo
do real:
Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer coisa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.
(PESSOA, 1977, p. 320).
O processo deflagrado pelo girar do volante moto-contínuo de excitação segue
numa dinâmica que culminará na descrição, efetiva, de todo um jogo fetichista em que o
sujeito poético precisa mergulhar; que se quer possuído, quebrado, fustigado, tatuado,
crucificado, para que a “sensação dos postes” lhe entre pela espinha e para que possa sentir
tudo num vasto espasmo passivo”. A descrição do gozo provocado pelas atitudes do
marinheiro, prenúncio de um novo masculino, é sempre viabilizada por algo que lhe entra
pela espinha a dentro, causando um torpor de sensações “nunca dantes navegadas”, até que o
enunciador rende-se à profunda possessão erótica e deseja
Ser o [seu] meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas p’los piratas!
Ser o meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles!
E sentir tudo isso – todas estas coisas de uma só vez – pela espinha! (...)
(PESSOA, 1977, p. 325).
Essa é a culminância do poema e de seu sujeito: a penetração anal, como também
indica uma explicitação da pulsão erótica que os marinheiros motivam no eu poético. A partir
desse ponto, fica patente que o mundo masculino ali representado pelos homens do mar é,
90
claramente, o seu ponto de excitação e provocador das sensações a que está sendo submetido.
Nesse ponto, como diria Camões, “cesse tudo o que a musa antiga canta”, que o objeto de
interesse poético é definitivamente rompido, dando lugar à exposição de um desejo
homoerótico incapaz de ser contido pelo sujeito:
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos de minha imaginação!
Amantes casuais da obliqüidade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de piratas nos sonhos!
(PESSOA, 1977, p. 325)
As figuras masculinas em jogo no desenvolvimento do poema sujeito poético e
marinheiros têm todo o seu processo de subjetividade e de identidade reconfigurados, no
sentido em que o primeiro rompe com a estratégia tradicional do gênero, pressuposta em
Camões, para em seu lugar estabelecer a lógica dos impulsos homoeróticos. Seguindo a lógica
da vanguarda de, inclusive, operar na relativização dos valores culturais e morais e ao mesmo
tempo promover a dessacralização dos modelos tradicionalmente marcados, Pessoa, ao
focalizar a esfera da sexualidade está contribuindo para a renaturalização dos discursos
sobre a sexualidade, particularmente, sobre as novas sexualidades que se querem enunciar.
Assim, o poeta modernista dá início à retirada da sombra das verdades sobre a sexualidade, ao
mesmo tempo em que ousa retirar-lhe o disfarce que lhe circunscrevia ao espaço dos
discursos impronunciáveis. Em seu “Prefácio à Transgressão”, declara Foucault que
O que caracteriza a sexualidade moderna não é ter encontrado, de Sade a
Freud, a linguagem de sua razão ou de sua natureza, mas ter sido, e pela
violência dos discursos, “desnaturalizada” lançada em um espaço onde ela
encontra a forma tênue do limite e onde ela não tem para além nem
prolongamento a não ser no frenesi que a rompe. (FOUCAULT, 2001, p.
31))
Pessoa, ao implementar a tarefa futurista viabilizada em suas “Odes”, busca promover
o restabelecimento da sexualidade, particularmente daquelas que ainda se mostravam
alternativas, no âmbito do discurso opressor da Literatura, forçando a quebra do limites
91
sociais impostos à sua expressão. Nesse caso, Álvaro de Campos, engenheiro, homem
faustiano, dominador da Técnica e adorador do mundo moderno, e, portanto, imagem do
homem esperado no alvorecer do século XX, rasura seu estatuto heterocêntrico para a partir
dele instaurar uma nova subjetividade, através da estética vanguardista a que está ligado,
ultrapassando assim o limite dos discursos instituídos e dando luz ao aparecimento de novos
arranjos estéticos e, por que não dizer, sociais.
Como havia sido dito aqui, é explícita em Fernando Pessoa a necessidade de superar -
estética, poética e politicamente – Luís de Camões; logo, no lugar do masculino heterossexual
camoniano, entra em cena um novo outro capaz de descobrir não um novo mundo externo a
si, mas aquilo que sente como nova possibilidade de ser. Álvaro de Campos, como o sujeito,
constitui-se como uma instância discursiva de Pessoa e dessa forma traduz-se menos como
uma figuração do real e muito mais como uma representação daquelas possibilidades que se
podem constituir na realidade. Pessoa, nesse sentido, funda uma nova lógica de subjetividade
em que aos papéis sociais atribuídos ao masculino somam-se experiências capazes de torná-
lo, não menos homem ou menos português, mas sim um novo homem sintonizado tanto com
os desafios, inclusive eróticos, de seu tempo. É a experiência traduzida por este sujeito que
possibilita a dicção da sexualidade, que não sendo discursivizável e não sendo dialética, deve
constituir-se como um domínio de uma linguagem que busca traduzir-se na experiência do
sujeito poético.
De certa forma, este sujeito que se começa a configurar na voz poética de Campos é
resultado de manifestações silenciosas que se delineiam em Portugal entre os anos 20 e 40 do
século passado. Os poemas de Pessoa não se constituem como fatos isolados, mas compõem
uma série de textos (e talvez a de comportamentos) muito caros aos que participaram da
iniciativa órphica. Assim, percebe-se em Raul Leal, (membro de ORPHEU), por exemplo, a
composição do ensaio Sodoma Divinizada (1923), elogio perene a uma existência
92
esteticizada, cuja base é a vivência intensa do desejo homoerótico. O artigo nasce da polêmica
travada na Revista CONTEMPORÂNEA (n. 3, setembro de 1922), a partir da publicação de
um longo texto de Pessoa, “António Botto e o Ideal estético em Portugal”, em que o autor do
“Epitalamiun” elogia não a qualidade estética das Canções de Botto, como também a sua
capacidade autoral e de reflexo da própria sexualidade deste artista. E mais: sintonizava a
iniciativa poética de Botto como um recurso genuíno do modernismo e de estética em estado
puro, atitude nunca antes alcançada por nenhum artista português. Em resposta ao que
considerou ofensa não à arte como um todo, mas à própria nação portuguesa, no número
seguinte da mesma revista é publicado um artigo-resposta, assinado pelo médico Álvaro Maia
(“Literatura de Sodoma O sr. Fernando Pessoa e o Ideal estético em Portugal”), que
definitivamente abre a polêmica, que persistirá no correr de 1924, arrebanhando para si
partidários fervorosos de ambas as causas, como Raul Leal e a Liga de Acção dos Estudantes
de Lisboa (PESSOA apud FERNANDES, 1989, p. 37-50; 53-68; 105-120).
Sintonizando o seu artigo com as regras dos bons costumes, com as leis cristãs,
filosóficas e médicas e, sobretudo, considerando o que é defendido por Pessoa como uma
atitude antinatural, anti-sanitária e contra os princípios do gênero humano, Maia, condena
veementemente tanto a publicação dos poemas de Botto, quanto o aspecto considerado por ele
inoportuno do texto de Pessoa. Ao relacionar a homossexualidade ao vício trácio”, Pessoa,
segundo Álvaro Maia, comete o erro de estabelecer conexões entre questões que não são
análogas, procurando justificar um gesto torpe a um ideal que regeria, junto com os princípios
cristãos, toda a sociedade ocidental. Para tanto, o médico vai justamente aos filósofos
referidos por Pessoa, demonstrando o quanto a relação feita pelo poeta é perniciosa e
degradante em termos morais, estéticos e literários. Com um ponto de vista que se calca no
discurso científico característico da virada do século XIX para o XX, Maia recorre inclusive a
um discurso que tende a associar os poetas envolvidos na questão à encarnação do arranjo
93
sexual desviante por ele reprovado em seu artigo.
A polêmica entre o poeta e o médico ganha ares de manifestação ético-moral nos
meses seguintes, culminando na ação implementada pela Liga de Estudantes que reclamava
ao Governo Civil de Lisboa uma intervenção mais séria, o que de fato aconteceu sob a forma
de um novo puritanismo que trouxe, inclusive, a censura aos textos da "literatura de Sodoma".
Os modernistas, por sua vez, ou olharam com desdém ou com frieza tais manifestações, como
o fez Pessoa, ou viram na polêmica uma forma de expor seu pensamento sob a grande pedra
de toque modernista: a homossexualidade, atitude esta assumida por Raul Leal com a
publicação de Sodoma Divinizada. Pessoa, por seu turno, preferiu responder ao Sr. Álvaro
Maia apenas com uma nota à sua tradução de uma determinada citação filosófica e, depois,
prefere assinar como Álvaro de Campos os artigos "Aviso por Causa da Moral" e "Sobre Um
Manifesto de Estudantes", em que agora advoga em favor de Raul Leal. Este, por sua vez,
publica novo manifesto ("Uma Lição de Moral aos Estudantes de Lisboa e o Descaramento da
Igreja Católica") num momento em que por si a polêmica já havia se esgotado. (PESSOA, 19
Ressalte-se, aqui, o ensaio Sodoma Divinizada foi “vítima” das mais acaloradas
manifestações de repulsa por parte da sociedade portuguesa, visto que, ao enaltecer o pecado
inominável da sodomia, feria os pressupostos de uma sociedade baseada no
contingenciamento moral vitoriano e no cristianismo. Pessoa é o principal partidário da causa
de Leal, já que o defende publicamente - pessoalmente e através do heterônimo Álvaro de
Campos - não o direito de se poder dizer, como também a validade daquilo que a
“Literatura de Sodoma” defendia. Recorre-se a esta “cena” da vida cultural portuguesa como
forma de assinalar que o heterônimo pessoano em questão a sua contribuição à questão
homoerótica, no sentido em que, defendendo o conteúdo da publicação de Leal, corrobora
significativamente com a possibilidade de estar em seus poemas tematizando, não
esteticamente, as experiências da vida homossexual.
94
O título do opúsculo de Raul Leal é um indicador do que se pretende propor em
termos de ruptura modernista, pois ao dispor lado a lado signos que por sua natureza
semântica e filosófica se opõem e impor um processo deificador ao que se considerava o
“pecado” por excelência, desestrutura a ruptura comum entre estes dois elementos,
instaurando um novo paradigma. Ao compor Sodoma Divinizada, Leal proporia para a
sexualidade ali assente uma aproximação com o espaço místico-religioso, mas que para existir
enquanto linguagem é preciso matar Deus e colocar a cidade da corrupção em seu lugar, já
que Deus e sexualidade não podem dividir o mesmo espaço, como alude Foucault ao
comentar a obra de Bataille. Focalizar a sexualidade denotaria uma transgressão, que esta
autoriza a profanação em si e voltada para si mesma, proclamando a sua não-divindade e a
inexistência de metafísica. Leal, pelo contrário, toma o rumo da transgressão justamente por
propor em seu texto que a realização sexual homoerótica é a via mais possível da ascese
humana; subverte o discurso cristão típico, da castidade, da contenção e da piedade para em
seu lugar recolocar, pelo viés da Vertigem e do “sentir tudo, de todas as maneiras”, defender
que a homossexualidade é a via de salvação da humanidade, forma natural de se viver a
experiência divina.
Pode-se concluir daí que a negação de Deus, herdada de Nietzsche, e a sua
reconfiguração na modernidade, assumida pela vanguarda, particularmente por ORPHEU, faz
com que o homem deixe de ser imagem e semelhança do divino e possa a partir daí dar
oportunidade a outros aspectos de uma sexualidade que se quer nomear, descrever e tornar-se
um ponto de partida possível, para que a partir daí possa efetivamente alcançar a divindade:
É o pederasta que pode sentir Deus na Sua Unicidade essencial e pois na Sua
Omnipotência que dividindo-se, enfraquece. A simples ligação amorosa
entre os sexos não estabelece uma unidade pura, absoluta mas apenas
episodicamente artificial, fictícia e toda de superfície, toda empírica; enfim,
não estabelece metafisicamente a fusão de dois seres num só, por muito
convulsiva e extática que se a luxúria desenvolvida. A unidade pura e
essencial, própria do Infinito, própria de Deus, a pederastia poderá
95
estabelecer. Só então se dará a divina fusão de dois seres num só. (LEAL,
1989, p. 84)
Pode parecer a uma primeira leitura que a questão homoerótica tivesse sido apenas
uma forma escandalosa de "épater les bourgeois", ou seja, chocar o público leitor médio e a
sociedade burguesa em geral. Entretanto, era corrente na época o fato de que Lisboa, como
afirmava Raul Brandão, (BRANDÃO apud RAMOS, 1994, p. 661) era uma "cidade de
pederastas", cujos costumes, desde Dom Sebastião, nada tinham de puritanos. Além disso, era
notório o fato de que uma casta político-intelectual influente era composta em sua maioria por
homossexuais convictos e que tal orientação era de conhecimento público. O que Leal, Pessoa
e Botto fazem não é mais que tornar texto os discursos correntes e recorrentes na sociedade
então. O problema foi fazê-lo de forma objetiva demais para uma sociedade que tolerava o
Baile da Graça
8
ou as excentricidades de um Manuel Teixeira Gomes
9
como atitudes
folclóricas, ainda que reprimidas. O jogo de tolerância é interrompido justo porque Botto
voz positiva ao que antes era uma denúncia das mazelas sociais e morais e Leal insiste em
enaltecer a homossexualidade como vertigem, pluralidade e êxtase divino, em detrimento da
família e dos filhos da pátria portuguesa (cf. LUGARINHO, 2003, p. 133-145). Botto tornaria
a ser escândalo posteriormente, sobretudo porque para a PRESENÇA também será um
exemplo da vida feita literatura.
Esta genealogia também recebeu sua contribuição dos presencistas, pelas mãos de José
Régio, no romance Jogo da Cabra Cega (1934), censurado após sua publicação porque
continha "largas descrições de um realismo assaz escabroso” (AZEVEDO, 1999, p. 637), o
que, pelo jeito, deveria querer descrever o jogo homossocial travado entre os dois personagens
8
“No bairro da Graça uma escola foi alugada para recinto de um baile. O contínuo, de vigilância à porta,
estranhou que entrassem homens. Foi espreitar dentro e descobriu que os cavalheiros chegavam, tiravam os
sobretudos, e – como disse em tribunal ‘ficavam todos mulheres. De brincos até, sr. Juiz’. E ‘falavam como as
mulheres, de grupo para grupo’. A polícia prendeu todos os travestis e Lisboa pôde depois vê-los no dia
seguinte, em tribunal, a serem multados. Um deles protestou. Queria sair com honra. Para gáudio da existência, o
juiz respondeu-lhe sarcasticamente que fosse ao Instituto de Medicina Legal (Diário de Lisboa, 14 de fevereiro
de 1923,p. 8)”. (RAMOS, 1994, p. 660)
9
Sétimo presidente da república portuguesa, entre os anos de 1923e 1925; foi também escritor e participante das
tertúlias literárias dos primeiros anos do século XX. Apesar da posição de destaque social e político, segundo
Rui Ramos, era confessado e conhecido homossexual. (cf. RAMOS, op. cit.)
96
do romance, o que beirava um contato homoerótico nunca descrito (mas talvez sutilmente
sugerido) na narrativa.
Assim, os modernistas portugueses defenderam um pluralismo moral dinâmico capaz de focalizar
a homossexualidade, por exemplo, e de vê-la como uma causa estética para o movimento. O gesto
homoerótico seria mais um dos modos de vida possíveis, numa sociedade que não deveria ser ortodoxa, já
que vivia em puro devenir, segundo o próprio Pessoa. Raul Leal e António Botto foram a efetiva
manifestação dessa existência estética do homossexual e da homossexualidade, resgatando aquilo que
Hans Mayer (1989) já havia sugerido quanto à tolerância à homossexualidade na segunda metade do
século XIX. Além disso, ao lado de Gide, eram considerados por Pessoa como destruidores da moral
cristã, já que ao divinizarem a sodomia como o fazia Leal e naturalizarem o amor entre iguais como o
fez Botto propunham a quebra com os estatutos morais vigentes, rompendo com a tradição ética
portuguesa e vivendo um novo paradigma em que tudo estava certo quando não passava do corpo com
quem se divertia. Fernando Pessoa via em Botto, por exemplo, muito mais uma oportunidade de pôr em
prática suas propostas de renovação moral do que necessariamente um poeta que veiculasse em sua obra
um novo valor estético ou que fosse relevante para a cultura portuguesa, embora tenha sido ele o autor
contemporâneo sobre quem mais Pessoa escreveu. Ao contrário, a proposição de Leal era considerada a
esteticização completa da homossexualidade, já que a tirava da esfera do corpo e a projetava no âmbito de
uma experiência efetivamente espiritual e religiosa, vista como caminho para ascese; era a subversão moral
do valor cristão dado ao amor e à sexualidade, justificado pelo alcance do estético absoluto proporcionado
pela vertigem do delírio erótico, pelo impulso da bestialidade pura - estágio só atingido no amor
entre iguais -, obra divina. A multiplicidade e a pluralidade, segundo a Sodoma Divinizada de
Leal, eram as novas vias da existência, cuja única objeção era reduzir a concepção de vida a
um único modo de ser.
O que se percebe nessa série é que todas as obras aqui referidas são de algum modo
expressões de novos modos de ser frente ao que se pensava estabelecido. Foram obras
97
vitimadas pela repressão aos discursos do corpo, da sexualidade e do erotismo. Talvez o que
tivesse feito as “Odes” pessoanas não terem sido também censuradas fosse o fato de que
encenam o erotismo de um corpo que é textual, mas sem órgãos, enquanto que as demais
alusõs desvelariam uma materialidade erótica que extravasava o campo do meramente
ficcional. Esse silenciamento, esse estado de interdição dos discursos provocado pelo Estado
Novo o apaga, entretanto, outros dizeres que vão sub-repticiamente se constituindo no
interior da Literatura e da cultura portuguesas.
Assim, cabem algumas considerações acerca de como o corpo se institui e constitui
como matéria e temática da Literatura Portuguesa no correr do século, desde a sua ocorrência
modernista até as formulações mais recentes. Deve-se notar que o que estará em discussão é
justamente o processo de instauração de um corpo erótico, sexualizadamente homoerótico e a
crescente esteticização dos discursos literários a seu respeito.
3.2 O corpo, linguagem poética do Modernismo português
A virada do século XIX para o XX, em Portugal, constitui-se como um momento de
significativas transformações no que diz respeito às questões ligadas ao corpo, ao sexo e ao
erotismo. Iniciadas pelo romance O Barão de Lavos (1895), seguido uma década depois pelas
publicações de Egas Moniz sobre psicanálise e sexologia, essas mudanças provocaram na
sociedade portuguesa de então uma gama de reações que, associadas ao conturbado panorama
político das três primeiras décadas do novo século, provocarão manifestações de resistência
por parte dos meios mais conservadores daquela sociedade. Era fato inconteste que Lisboa e o
Porto eram lugares de relativa tolerância aos “avanços” da sexualidade, como também eram
98
cidades em que havia toda uma rede de informações, publicações, encontros e de
oportunidades para os diversos matizes e extravagâncias sexuais. No campo cultural, a
facilidade com que se conseguiam publicações de caráter pornográfico (envolvendo a
homossexualidade, inclusive) era tanta, que, como indicam Rui Ramos e José Mattoso, não
era de se estranhar que cedo ou tarde houvesse uma reação mais violenta a tais práticas e
hábitos.
Foucault, no primeiro volume de sua História da Sexualidade, tece um panorama
acerca de como o século XIX, regido pela moral vitoriana, cerceou os discursos sobre o sexo
e que de certa forma vem atender a perspectiva que aqui se quer discutir:
O segredo do sexo não é, sem dúvida, a realidade fundamental em relação à
qual se dispõem todas as incitações a falar de sexo quer tentem quebrá-lo,
quer o reproduzam de forma obscura, pela própria maneira de falar. (...) O
que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado o sexo a
permanecer na obscuridade, mas sim o terem devotado a falar dele sempre,
valorizando-o como o segredo. (FOUCAULT, 1993, p. 36)
Note-se que o filósofo enfatiza o fato de que o silêncio fundante a que o sexo está
submetido só o faz mais perceptível na interdição a que estava submetido. Assim, falar do
sexo era não só uma necessidade, como também uma forma de sublimá-lo frente aos discursos
a que estava submetido. Por outro lado, o mesmo autor conclama ao abandono da hipótese de
que as sociedades modernas são repressoras quanto ao sexo, que elas mesmas vêem nascer
sexualidades heréticas e disparatadas, juntamente a prazeres específicos (FOUCAULT, 1989,
p. 48). Em lugar da hipótese repressora, o controle dos corpos (o exame médico, a disciplina
escolar ou carcerária) passa a ser a forma encontrada para também exercer uma influência
sobre os discursos e práticas supostamente liberados.
Na Literatura, por exemplo, esse controle dos corpos passa a se constituir à medida
que o discurso médico-patológico assume o lugar preponderante em termos de representação,
como se em Eça de Queirós ou em Abel Botelho. Ali, os corpos, vigiados em suas marcas
99
físicas e estigmatizados pelo vício, vêm traduzir essa visão científica que substitui a lógica
cristã da castidade e da reserva moral. Substitui-se, portanto, a repressão pela doença moral
(como em Luísa) ou física (como o Barão), frutos de uma sociedade normalizadora que tende
a expurgar o corpo não-dócil, fato que posteriormente se confirma na recepção às Canções de
António Botto ou nos poemas de Judith Teixeira, por parte dos meios culturais não-
modernistas.
Quando surge, ORPHEU está inserido em um contexto cultural permissivo em
determinados aspectos. Profundamente presa a um moralismo saudosista e regenerativo,
devedor também de um saber científico, a sociedade portuguesa das primeiras décadas do
século XX não reconheceria seriedade alguma em um movimento cultural que tematizasse e
aprofundasse de maneira mais clara e intensa a sexualidade, o erotismo, o sexo e o corpo.
A grande marca órfica sobre o corpo, sobre o sexo e sobre o erotismo estará
estabelecida numa experiência discursiva sutil, superior e esotericamente espiritual, em que o
sujeito se sobrepõe à concretude do corpóreo. Entretanto, como resultado do pensamento
transgressor da vanguarda,inicia uma insurgência contra certas abordagens que destoam da
renovação moral pretendida pela revista.
Eduardo Lourenço, no artigo “Sobre Régio” (1994, p.136-149), aqui aludido,
considera que Pessoa é um caso único na Literatura Portuguesa cuja obra é perpassada por
uma visão desencarnada da vida, em que o corpo parece não existir. Nesse sentido sua palavra
poética não se apóia na potência do corpo como lugar possível de realização da linguagem,
que é ausente. Quando o há, não tem a transparência necessária à exposição discursiva,
corroborando a tese da “sexualidade branca” defendida por seu biógrafo Robert Brechon,
subjacente não só ao sujeito civil Pessoa, mas extensível à sua companhia heterônima,
também. Estendendo a questão, essa falta capital constrói uma contradição: o fato de toda a
lógica poética pessoana, por exemplo, ser fundamentada numa experiência de interioridade,
100
num hermetismo subjetivista que só se expande na realidade dinâmica heteronímica ou na
certeza de um corpo Outro presente indiretamente em seus poemas, como no caso das Odes
aqui tratadas. Essa relação em ausência é toda pautada na diferença e na alteridade, únicas
vias capazes de se revelarem na linguagem poética e normalmente expressas numa segunda
ou terceiras pessoas enunciadas no poema.
Segundo José Gil, a categoria do “dentro” (espaço interior) constitui-se como a grande
linha de força que diferencia Alberto Caeiro - mestre de todos os heterônimos - dos demais,
inclusive de Fernando Pessoa “ele mesmo”. Esses interiores aonde fundam sua metafísica é
um topos em que são encenadas os dramas específicos de cada identidade poética e a sua
perene busca pela exterioridade ontológica alcançada pelo Guardador de Rebanhos. No
ensaio Diferença e Negação na poesia de Fernando Pessoa (GIL, 2000, p. 114-133), ao
aproximar a metafísica poético-ontológica pessoana do pensamento filosófico de Gilles
Deleuze, o filósofo ainda afirma que Pessoa, como o pensador dos rizomas, pretendia também
construir para si um “corpo-sem-órgãos”, ou seja, um plano específico de imanência, que
implicaria na não separação do espírito do corpo.
Entretanto, é notório o fato de que tal corporeidade, da qual o espírito não se afasta, na
obra de Pessoa, constitui-se preponderantemente na construção de um corpo que é discurso e
linguagem, visto que tais corpos” são identidades/subjetividades construídas a fim de
suprirem uma diversidade estética da qual o autor não seria capaz, de sozinho, dar conta. Se
for desfeita a metáfora deleuziana do corpo-sem-órgãos e, ao mesmo, tempo for utilizada para
a compreensão do artifício pessoano, pode-se inferir que boa parte da obra desse poeta se
constitui na tentativa de traduzir para o poético o drama e o conflito com a impossibilidade de
gerir o corpo. Assim, como poetiza Al Berto, a existência em Pessoa seria feita de papel, justo
porque só se perfaz na escrita.
101
Aqui foi exposto como o aspecto erótico-sexual se fundamenta no trabalho artístico
dos três modernistas, entretanto cabem, ainda, algumas considerações acerca de como esse
caráter se constitui ou não em seus discursos.
Não é exagero considerar que dos modernistas de ORPHEU, somente Raul Leal, e
talvez Almada Negreiros, em Nome de guerra, consiga efetivamente pensar a corporeidade
como uma traço constitutivo de sua prática artística, que Pessoa e Sá-Carneiro ao
aprofundarem as questões relativas à subjetividade e à sua fragmentação, inviabilizam, pelo
não investimento em aspectos mais concretos da existência, a possibilidade de ocorrerem em
seus textos discursos que tematizem o corpo. Côrtes-Rodrigues, por sua vez, nos “Poemas
dum anônimo ou anônima que diz chamar-se Violante de Cysneiros”, publicados no segundo
número de ORPHEU, ensaia a tentativa de denunciar o próprio sexismo heterossexual do
período e, por extensão, dos companheiros de ORPHEU.
Pessoa, se pensado em termos de sua formação pessoal, é resultado de uma política
corporal que tem raízes fincadas num modelo educacional e moral profundamente repressora
e que já fora àquela altura denunciado por Freud e Marx: um modelo de corpo burguês
perpassado pela moral vitoriana, quase inquisitorial, em que os impulsos e desejos devem e
podem ser reprimidos em nome de uma existência condizente com a vida em sociedade. A
docilização dos corpos, aludida por Foucault em Vigiar e Punir (1973), nesse caso se perpetua
como um desígnio moral a compor a dietética do corpo e a traçar a postura do homem frente à
sociedade. Aqui, não é o caso da disciplina imposta pelo hospital, pelo presídio ou pela
escola, mas sim aquela que advém, como no caso da sociedade portuguesa, de um espaço
profundamente marcado por valores religiosos e por um pensamento que visava resgatar o
peso histórico da nação, do qual, inclusive, Pessoa fora entusiasta. Não é de se estranhar, pois,
que o poeta da Mensagem tivesse sido educado em uma colônia inglesa, fincada no extremo
de um continente que precisava ainda aquela altura ser civilizado; daí que o resultado de sua
102
educação fosse diretamente ligado a essa experiência exterior de repressão, o que pode ter
sido, apesar do contato com o pensamento vanguardista, econômica na formação estética do
poeta. O que se coloca em questão não é a repressão do corpo e de seus desejos, mas
também as imposições que a norma social e cultural estabelece sobre aquele.
Além disso, o poeta transforma a questão sexual em problema, como o próprio afirma
em “O problema sexual” (PESSOA, 1993, p. 40) porque não consegue, socialmente, vencer
os atritos entre a sensibilidade feminina e a inteligência masculina, resultando isso em uma
inversão “sexual fruste”, que o desautoriza a entender a complexidade da própria sexualidade.
Assim, não consegue conceber-se fora da matriz heterossexual e da heterossexualidade
compulsória, estereótipo da masculinidade do início do século XX e nem dar aos seus
heterônimos uma dimensão erótico-sexual profunda: tem-se um Campos ambiguamente
eufórico, um mutismo sexual em Reis, a sublimação em Caeiro e a completa assexualização
em Bernardo Soares ou Fausto.o que este pensamento se pretenda síntese da percepção da
sexualidade na poesia de Pessoa, mas aponta linhas de força que constituem a visão de corpo
encerrada em cada um dos heterônimos e para necessidade de compreensão das sexualidades
que transitam, ainda que num flagrante processo de apagamento, por sua obra.
Foucault, ao discorrer sobre a genealogia, declara que uma de suas tarefas é a de expor
um corpo totalmente impresso pela história e por ela destruído. Se forem somadas a essa idéia
as questões posteriormente explicitadas na História da Sexualidade, sobre a hipótese
repressora e sobre a disseminação dos discursos sobre o sexo durante o século XIX, não seria
demais inferir que o corpo contemplado por Pessoa tenha sido cerceado e apagado pelos
próprios termos da história que se inscreve nos corpos. Segundo Judith Buttler (BUTTLER
2003, p. 186-187), a destruição do corpo pela história “é necessária para produzir o sujeito
falante e suas significações”, que, descrito pela linguagem, se enfraquece pela e na
dominação dos discursos sobre si próprio. Assim, considerando essa destituição do corpo de
103
sua importância e o início do domínio da vida e do corpo pela política e pela medicina
implementados no século XIX, o corpo pessoano só pode ser traduzido em linguagem poética
e em discurso, que, como corpo vanguardista, precisa rasurar as disposições e imposições
sociais a que estava submetido. Logo, para dizer-se poeticamente é necessário que o sujeito
abstenha-se de seu corpo físico, de forma a somente assim conseguir produzir um outro corpo
que se perpetue na linguagem, único lugar possível para uma existência supostamente livre.
Entretanto, esse corpo é somente poesia, lugar do drama, interior e tenso com relação ao que
fora condensado no erótico, no sexo.
Não conseguindo dar vazão, portanto, à concretude das experiências corpóreas, do
fora, do extra-consciência, como o faz António Botto (poeta este encarecido muito mais pelo
uso performativo que a sexualidade assume em sua poesia, do que pela qualidade de seus
poemas), Pessoa, como indica José Gil, transforma interior em exterior:
Todas as oposições trágicas se podem condensar numa só: a oposição
dentro/fora. (...) A melhor “técnica”, pois, para sair definitivamente do
dentro que aprisiona a consciência e a vida, consiste em transformar o
interior em exterior. (...) Agora, o espaço interior vai sofrer mutações
radicais que o tornarão exterior. Será ele a matéria-prima da construção de
um corpo-sem-órgãos. (GIL, 2000, p. 113-4)
Como o filósofo aponta, a “saída” encontrada por Pessoa para expressão de um espaço
impossível é justamente invertendo a ordem que se poderia atribuir ao mecanismo da
existência. O lado de dentro é efetivamente aquele onde tudo acontece e sendo o único
possível torna-se, também, o espaço exterior em que a vivência heteronímica se processa. O
dentro, então, se traveste no fora onde atuam as diversas personalidades poéticas, que se
extravasam para a escrita, para ganharem uma identidade que não prescinde do corpo. A
oposição tradicional, nesse sentido, se anula, à medida que os dois espaços (dentro/fora)
passam a uma medição que busca a estabilidade no poema.
Assim, a corporeidade é um instrumento, um meio pelo qual o “sentir tudo de todas as
maneiras” se processa; um veículo tão dispensável na poética pessoana que pode, na “Ode
104
Triunfal” terminar por integrar o corpo à quina e através dela constituir uma possibilidade
de ser enunciado. O corpo-meio precisa ser destruído para engendrar com isso o panorama
cultural futurista, por exemplo. Ou, na “Ode Marítima”, confundir-se, ser e deixar de ser o
navio que também é um corpo pelo qual as sensações trafegam; na fusão corpo-navio, diz o
sujeito poético que “treme em mim toda carne e toda a pele”, que sente-o em si como ao
seu próprio sangue.
Ainda tematizando essa questão, nas “Odes”, particularmente, esse corpo sitiado pelas
injunções culturais, muitas vezes aparece assinalado pelas marcas sociais dos ritos, sejam eles
sexuais - denotados pela lógica do fetiche voyeurista (“Olhar é em mim uma perversão
sexual”) ou da realização erótica masoquista ( “Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-
me!”) -, sejam eles morais (“Perder convosco a noção da moral / Sentir mudar-se no longe a
minha humanidade”) ou, finalmente, identitários, em que se misturam as duas outras
perspectivas: “Ah, não sei que, não sei quanto queria ser eu de vós! / Não era ser-vos a
fêmea, ser-vos as fêmeas, ser-vos as vítimas”) (PESSOA, 1977, p. 322-323). Em todas, a
sensação sempre perpassa um outro corpo, no qual a voz poética se projeta e a partir do qual
efetivamente sente. Entretanto, corroborando a idéia de que em Pessoa o corpo oco é o que
efetivamente se estabelece, todas as experiências acima descritas acontecem com o sujeito
poético num momento de êxtase, de transe provocado pela e na sua fusão com a grande
máquina em que se quer transformar, dando por terminado o enorme fluxo de consciência
implementado pelo sujeito poético, em que se tem a ilusão do desfrute completo do prazer
erótico-marítimo:
Tremo com frio da alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez!
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo.
(PESSOA, 1977, p. 332)
105
Cabe ainda frisar que todo o sentir pessoano, diferentemente da “vertigem” defendida
por Raul Leal, passa pela recusa da carne, aos moldes do pensamento grego, como indica Ieda
Tucherman em Breve história do corpo e de seus monstros (1999), onde embora não tematize
a literatura pessoana, os contornos da constituição do corpo na modernidade. Ao se referir
à concepção pitagórica da corporeidade, observa que nesse momento aparece um corpo
idealizado e modelar, regido por princípios externos a si, que o transformam numa imagem de
valor universal e que, para tanto, precisa recusar a carne para assim pertencer à unidade da
pólis (TUCHERMAN, 1999, p. 33-4). Coincidência ou não, no artigo publicado em defesa de
António Botto e que dera início à polêmica jornalística, social e cultural conhecida como
“Literatura de Sodoma”, Pessoa alude justamente ao ideal helênico de arte e de sua
tematização do corpo como objeto estético, como forma de ilustrar o “avanço” poético
registrado pelo poeta das Canções (PESSOA, 1993, p.348-356). Afirma que este poeta, como
os estetas gregos, muito se preocupou com a exposição da beleza do corpo masculino, dotado
de toda a perfeição que lhe é característica, não estando preocupado com questões externas ao
esteticismo, como a sexualidade; e o prazer priorizado nos poemas de Botto, afirma ainda,
será não o que satisfaz a carne com a alegria do gozo, mas o que intui o fundo trágico de todo
o prazer, distante, portanto, da carnalidade que lhe é associada. Em resposta ao “desvio
patológico” apontado por Álvaro Maia (apud FERNANDES,1989, p. 53-68), Pessoa reitera
ainda que contrário ao que imagina o dico, desvio patológico é ser gênio e esteta numa
cultura em que tais aspectos não têm relevância alguma.
Numa palavra: ao inverter a lógica das proposições de Maia, Pessoa esvazia o sentido
erótico-sexual concernente à poesia de Botto, retirando-lhe o aspecto elucidador de uma
realidade erótica e de uma vivência sexual desviante para os moldes modernistas, inclusive,
caso se leia tal texto tendo por delimitação o que já foi dito acerca do corpo pessoano. Não é
estranho esse fato: ainda que Pessoa quisesse colocar a polêmica essencialmente no âmbito
106
estético, acaba por comprometer ou anular em nome do ideal helênico a carga
homoerótica da poesia de Botto, lendo-a portanto sob o crivo da contenção do corpo, da
esteticização do sexo, elementos os quais já havia disposto sobre sua própria poesia.
Retomando Foucault em “Linguagem e Transgressão”, observa-se que o filósofo
aponta para o fato de que a Literatura é o grande espaço da subversão das linguagens e do
discurso, o que pode ser estendido também à poesia enquanto constitutiva ao literário. Assim,
sendo a poesia transgressora por natureza, será ela lugar também para a encenação poética do
sexo e do corpo, como também espaço propício às várias sexualidades em trânsito,
transgressoras, portanto, do viés masculino que marca a poesia pessoana, como denota Maria
Irene Ramalho, em artigo dedicado à compreensão das intersexualidades assentes na poesia
portuguesa do século XX (RAMALHO, 2002, p. 541-567).
Ramalho indica que desde Camões esse viés masculino está marcado e talvez
definido como objeto da representação poética, ainda que perceba na literatura que separa o
poeta épico de Pessoa alguns sinais de “fraqueza” na identidade masculina. O paradigma
camoniano marca de maneira substancial a obra do poeta aqui discutido e óbvio está na
tentativa de criar um super-Camões. Entretanto, nesse gesto pessoano também a iniciativa
de romper com o modelo de gênero veiculado pelo épica, como se em Campos, mas essa
postura muito revela a tensão existente entre as novas sexualidades nomeadas no século XIX
(a homossexualidade, por exemplo) e esse outro que paira e determina culturalmente as
políticas de gênero no interior do literário. Logo, tem-se um corpo efetivamente submetido, na
sua sexualidade, às normas culturais, o que por si ocasionaria o trânsito identitário já referido,
como também a dúvida em assumir poeticamente a sexualidade como um dado relevante para
a constituição e compreensão da obra e da arte.
Por outro lado, essa necessidade de superar Camões e a identidade nele veiculada pode
também revelar a criação de uma utopia sexual em que o homoerotismo aqui visto como
107
traição/ruptura à condição masculina passe a ser pedra de toque, no sentido de que, como
dito, superar aquele poeta é também superar o binarismo sexual que lhe é possível e,
conseqüentemente particular. A crise instaurada na arte na virada do século XIX para o XX,
da qual Pessoa é devedor, gerará uma crise nos fundamentos culturais que instituem o corpo e
em decorrência disso proporcionará, com as vanguardas, a possibilidade de se pôr em questão
os objetos culturalmente constituídos, como o era o masculino camoniano.
Essa subversão poética da sexualidade, de certa maneira exposta nas “Odes” de
Álvaro e na “Saudação a Walt Whitman” de Campos coroa-se na recente descoberta pela
“Equipa Pessoa” (cf. ZENITH, 2002, p. 35-56) de um heterônimo perceptivelmente
homoerótico. Num poema datado de 1917 e sem nenhuma atribuição heteronímica específica,
inclusive em termos de vínculos poéticos, este inédito pessoano versa acerca de uma
confissão amorosa que parte de um sujeito masculino e que, por dados lexicais do texto,
dirige-se a um outro do mesmo sexo. No poema está em jogo todo um drama corporal e
ontológico por parte de um sujeito poético que se auto-pune em função de não poder realizar
efetivamente seu desejo e seu amor. Numa perspectiva platônica que beira o confessionalismo
ultra-romântico, este sujeito, impedido de dizer-se e de dizer o amor pelo outro, a este outro,
não sabe ao certo como amar o seu objeto: se como homem ou como mulher. Entretanto
reitera que o amor é grande e fere quer procure / De homem ou mulher, mulher ou homem”
(PESSOA apud ZENITH, 2002, p. 49).
O drama do desejo amoroso proibido e inconfessável perpassa todo o poema e é
percebido principalmente pelo fato de declarar que, embora haja aquela confissão amorosa,
dela o interlocutor não toma conhecimento, que não ousa dizer nem para o outro e nem
para si o teor desse amor: “Levo comigo, inútil, confidente / Do meu próprio martírio (...)”
(PESSOA apud ZENITH, 2002, p. 47). E prossegue declarando a impossibilidade de
nomeação do seu desejo:
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Ah, se soubesses com que mágoa eu uso
Este terror de amar-te, sem poder
Nem dizer-te que te amo, de confuso
De tão senti-lo, nem o amor perder.
(...)
Sei eu ao certo, se pudesse ter-te
Que quereria ter-te? Seu eu ousasse
O que sinto por ti um dia dizer-te,
E a tua surpresa amiga o aceitasse,
Seu eu, sim, se não ficaria inerte. (...)
(PESSOA apud ZENITH, 2002, p. 47).
Diverso de Inês de Castro, no Canto III, de Os Lusíadas, que “Aos montes ensinando e
as ervinhas / o nome que no peito escrito tinhas”, declara o amor que tem por Pedro, ainda
que isso implique a sua morte posterior, o sujeito poético assume com clareza que dizer é o
risco que corre, inclusive, consigo mesmo de ser portador “Do vício de Shakespeare”; em
outras palavras: o desejo homoerótico, classificado como uma baixeza da alma pelo próprio
Pessoa, é-lhe tão vergonhoso que o não ousa falar a si mesmo sobre aquilo que sente. Mestria
do amor Camões tem; a voz pessoana nesse poema, não. E o poeta épico o tem, justo porque
domina poeticamente o corpo e o amor que nele se inscreve, como se percebe na Ilha dos
Amores ou no próprio feito português encarecido por nus; enquanto que Pessoa,
poeticamente, é capaz de demarcar a “ausência dolorosa” do corpo, como alude Eduardo
Lourenço, não conseguindo transpor, em função do não-amor, a barreira que separa discurso
de uma vivência - mesmo que poética - efetivamente erótica. (LOURENÇO, 1986, p. 74-5)
O lamento de Adriano pela morte Antinoo (“Antinous”) pode também dialogar com o
que aqui vem sendo explicitado e ajudar na compreensão de como essa visão do amor
homossexual se estabelece na poesia em questão: o imperador chora sobre um corpo morto,
incapaz de corresponder às pulsões erótico-amorosas. E esteja talvez a grande questão
pessoana: a impossibilidade de um corpo vivido no presente imediato e concreto, posto que
sempre está colocado ou no passado, como no caso de Adriano e Antinoo, ou numa utopia do
109
futuro que não pode acontecer, ou, por fim, no plano platônico da consciência. Em todos os
casos, a questão é escamoteada, transformando-se em escrita o jogo erótico-amoroso:
Contigo nada ouso; calo, e fale
Por mim a escrita voz
Mas não tão pouco ouse que me cale
comigo, em escrita voz me não rebele.
Por que vício da mente hei eu vergonha
Em te cantar? Que influxo doutrem vindo
Faz com que eu core a sós quer me suponha
Amando-te ou dizendo-o, ou só sentindo?
(PESSOA apud ZENITH, 2002, p. 49)
A “escrita voz” que não se rebela, contrária ao que se viu na “Ode Marítima”, capitula
frente à ordem social e a normatividade do gênero masculino da qual não pode fugir o sujeito
poético. E essa escrita, respondendo à questão que termina o poema, se processa no
sentimento de todas as coisas, preferencialmente sendo vivida como ficção. A dificuldade de
expressão desse sujeito é, obviamente, em muito decorrente da própria dificuldade do homem
Pessoa em lidar com as questões relativas à sexualidade, seja a sua ou a de outrem, como se
percebe na dessexualização procedida nos poemas de Botto no artigo aqui citado. João
Gaspar Simões, Robert Brechon, Jorge de Sena, Eduardo Lourenço e Fernando Arenas
haviam apontado em seus estudos para o fato de que o dado referente à sublimação,
subordinação ou negação do desejo erótico, e particularmente homoerótico
10
, são tutelares
para a compreensão de sua poesia.
Esse “horror” pessoano à homossexualidade embora confesse o conflito de estar em
zona intermédia entre masculino e feminino anula em sua poesia a experiência do corpo,
que para não realizar a “imersão sexual fruste” que “pára no espírito” e para não ser traído por
sua subjetividade confessadamente conflituosa, o poeta apaga a possibilidade erótica de si,
indo ficcionalizá-la no campo estético do fingimento poético. Assim, o corpo oco, sem órgãos
perceptível na sua poesia é derivado da inteligência pura em que prefere viver, portanto, no
10
Vale assinalar que apenas Arenas (2002) indica o homoerotismo como parte do desejo erótico.
110
âmbito de um masculino racional, cerebral no qual o impulso erótico não tem lugar, que o
prazer, como esfera da sensibilidade, é constantemente negado. O corpo apagado da poesia de
Pessoa acaba por fim, contra toda a perspectiva órfica de promover uma renovação moral e
estética na arte portuguesa, cooptado pela norma sexual e social vigente, indo traduzir-se mais
tarde num canto laudatório à nação que se construíra sob a tríade do estado salazarista:
Deus, Pátria e Família. Em outras palavras: o corpo-que-já-não-há em Mensagem apenas
confirma um grau de submissão já atestado no início dessa discussão: es sitiado por três
valores paradigmáticos não-eróticos.
Tendo sido o primeiro momento modernista português demarcado pelo corpo
pessoano, vazio e ausente; chocado pelo corpo pederástico de Botto e militarizado pela
simpatia de Almada Negreiros pelo futurismo, havia que ser ter, pois, um momento de
descompressão tanto dos discursos sobre o corpo, como do corpo como objeto da arte
literária. Assim, supostamente à esteira do corpo de ORPHEU, o corpo presencista surge num
contexto político pouco favorável a aventuras mais explícitas, mas que, no entanto, consegue
se firmar como uma alternativa à imagem a então veiculada nos poemas de Pessoa,
particularmente.
Segundo Eduardo Lourenço, um dos grandes contributos do pensamento crítico e
literário de José Régio constitui-se como sendo o “início da reconquista do corpo como lugar
de drama, de conflito por excelência”. Como decorrência dessa afirmativa, pode-se perceber
que o conceito tecido por Régio deve abarcar também a dimensão corpórea propriamente dita,
uma vez que é este o lugar do encontro e origem de qualquer experiência do sujeito:
A palavra poética de Régio passa sempre pelo corpo próprio, enquanto a de
Pessoa assinala em termos memoráveis a sua ausência ou impossível
transparência. “Deus” e “Diabo” são duas formas opostas de leitura do corpo
próprio enquanto lugar de transparência miraculosa ou de opacidade
irredutível. É a presença carnal do eu, o eu concreta e dolorosamente
encarnado que confere à obra de Régio a sua primeira originalidade própria,
fazendo dela o primeiro elo significativo do processo de superação do
idealismo característico da nossa literatura. Pela maneira como se situa em
111
relação a si e ao mundo, o eu de Régio conserva o estatuto idealista do
sujeito, típico do espírito moderno, mas, pelo modo como se insere na
vivência corporal, assume a sua parte de inconsciência, de obscuridade, e
abre caminho para uma assunção realista – ao menos em termos psicológicos
– do sujeito. (LOURENCO, 1994, p. 147-8)
A corporeidade atribuída por Lourenço a Régio está muito baseada num suposto
antagonismo que se pode perceber, por exemplo, em Fernando Pessoa. Este, apesar de criar
ou por ter criado sua companhia heteronímica, o faz somente no plano do discurso e do
poético, configurando nessa multiplicidade uns dos lugares possíveis da Modernidade. Por
motivos óbvios, tais personalidades poéticas ficam impossibilitadas de se constituírem no
plano físico, construindo, como Antonin Artaud, um corpo desprovido de órgãos, de
interioridade, de matéria. O mesmo acontecerá com a poesia produzida por aquele e atribuída
aos seus heterônimos: versará sempre sobre um sujeito que pensa sentindo, sente pensando,
mas que efetivamente não se realiza em nenhum plano do corpóreo e erótico.
Mas, onde reside a importância de pensar tal questão na poesia pessoana?
Justo porque, como paradigma do modernismo e da literatura, importa pensar como a
história do corpo e da própria vivência erótica se estabelece na sua poesia e como a
PRESENÇA, continuadora de ORPHEU e leitora desse poeta teoricamente, implementa uma
tarefa, que segundo Lourenço, não o fora feito em 1915. Por outro lado, considerando que
Pessoa se espraia para além de si, no sentido ontológico de sua poesia e em termos de modelo
implementado, não seria demais pensar que o corpo que não inaugura possa gerar implicações
opostas (revelar, inaugurar, expor) nos poetas que o sucedem ou no pensamento estético que
lhe é imediatamente posterior.
Régio, ao reconfigurar as proposições modernistas expostas por ORPHEU, traz ao
texto poético o corpo como efetivo lugar de existência do indivíduo, lugar de “freqüência” do
sujeito. Aliás, reside aí uma das grandes questões críticas a respeito da produção poética de
José Régio: o constante drama da linguagem, na qual se constrói a possível convergência e
112
encontro entre o indivíduo e arte, e destes com o sujeito, como se pode perceber tanto nas
assertivas da PRESENÇA, como em textos “clássicos” de Régio como “O fado português” ou
no romance Jogo da Cabra Cega.
Este sujeito que surge realisticamente, segundo o pensamento de Lourenço, vive, na
poesia de Régio, por exemplo, sobretudo naquelas que compõem os Poemas de Deus e do
Diabo. O lugar entre o profano e o sagrado teatraliza uma religiosidade ancestral que perpassa
a obra regiana. O corpo, por sua vez, se coloca como manifestação desses dois aspectos da
religiosidade, não conferindo ao humano um caráter sagrado, mas reafirmando nesse jogo a
sua humanidade e sua contraposição com o divino.
O corpo é o sentido da existência e o sentido da arte de José Régio e se expressa no
próprio conceito de Literatura pensado pelo presencista. Esta por sua vez assume a condição
de viva, orgânica, expressão da corporeidade não do autor do Cântico Negro”, mas
daqueles que ele considera como exemplos dessa Literatura: os indicados André Gide,
Marcel Proust, Oscar Wilde, Jean Cocteau. Todos são exemplos de como o corpo nas suas
potencialidades pode invadir o espaço do literário e nele se constituir como mais uma, senão a
única, forma de expressão artística. A arte, enquanto nova categoria ontológica desvela a
imagem de Deus e recoloca numa perspectiva quase romântica o indivíduo e o corpo no
lugar que até então era considerado sagrado.
Percebe-se a procura de um lugar onde este corpo possa estacionar e resolver a sua
necessidade de expressão. A tensão entre pólos aparentemente opostos tende a revelar a busca
por uma forma de expressão possível. O drama da linguagem, apontado por muitos dos
críticos de Régio Eduardo Lourenço, Prado Coelho, Fernando Guimarães é, pois, o drama
do indizível corpo, “vergado à violência suicidaria”, não das cidades como o dirá Al Berto,
mas sim de um corpo erótico, construído entre a moral cristã e o puro movimento, demoníaco,
das vanguardas. É preciso encontrar uma forma de dizer, um possível discurso, um texto do
113
desejo, capaz de solucionar os dramas trágicos tematizados em gio. Entretanto, interessa
aqui não a corporeidade específica da poesia regiana, mas sim como implicitamente se
desenvolve no pensar crítico do presencista a temática erótico-corporal.
Embora em Pessoa não ocorra de forma mais concreta a tematização dessa questão,
sendo, pois, um discurso não apoiado numa realidade palpável do corpo, Pessoa consegue
via Álvaro de Campos e de seu heterônimo homossexual ainda textualizar certas questões.
Régio, por sua vez, o fará, mas de forma enviesada. Em outras palavras: para construir uma
identidade para o corpo, dizer o que e quem ele é, buscará fora de si, num outro da literatura e
da arte, os exemplos necessários à construção de um corpo possível para si e para a
PRESENÇA. O discurso do eu, próprio do arranjo presencista, é substituído pela fala de uma
alteridade: paradigmas literários, realidades literárias, conflitos existenciais, dramas sexuais,
elementos estes que vêm compor, ou melhor, ilustrar os corpos-exemplos na crítica regiana.
Daí, de Camões a Rodin, de Gil Vicente a Pirandello, de Rimbaud a Rodin, tem-se a
exposição não do próprio corpo, mas do corpo-outro, visto assim como aquilo que se quer
construir como imagem na literatura. São corpos arquitetados e impressos na cultura européia,
indiscutíveis em sua forma de representar o desejo.
Típica em Régio é a tensão freqüente, comodito, entre elementos distintos, às vezes
díspares, ora complementares. É assim na sua poesia, na oposição dentro/ fora, interior/
exterior, sujeito/ indivíduo, ficção/ biografia, cristianismo/ paganismo, loucura/ sinceridade,
masculino/ feminino. Esse último par notadamente também está em questão na composição
do conceito de “Literatura Viva” e constituir-se-ia como mais um dos axiomas do texto
regiano: a herança misógina vinda de ORPHEU, em que se atribui sempre um caráter
feminino pouco representativo ou ausente como prefere Eduardo Lourenço -, mas não sem
críticas internas, como o fez Côrtes-Rodrigues com sua Violante de Cysneiros.
114
Inclusive em termos de valor literário, Régio, a respeito de Judith Teixeira, como já foi
apontado, dirá: “todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de
António Botto” (RÉGIO, 1977, p. 20). Quanto à participação feminina em PRESENÇA,
somente Irene Lisboa, Cecília Meireles e Alice Gomes tomarão parte dos mais de cinqüenta
números da revista, isso descontando-se um(a) certo(a) “MARA”, de identidade indefinida,
amante de um universo literário à Gide. A presença feminina na publicação ocorre num
momento avançado da primeira série da revista (1933), etapa em que os números eram cada
vez mais esparsos e as contendas e polêmicas presencistas muitas, assim como as muitas
deserções ocorridas
11
. Cabe lembrar que o recurso à misoginia não era um aspecto
característico do modernismo português, mas uma tendência na escrita finissecular,
continuada depois, por exemplo, pelo “Manifesto Futurista de Marinetti e também expressa
em autores da predileção de Régio.
Seguindo esta ótica, a do embate entre os elementos e entidades opostas e/ou
complementares, em “Cântico Negro, por exemplo, estabelece-se a tensão entre Deus e o
Diabo, capaz de gerar no eu poético um duplo/dúbio posicionamento quanto a seu estar no
mundo. Percebe-se aqui o confronto de entidades cujo princípio ontológico as estabelece
como antagônicas: Deus (a fundação, a criação, a Vida, o unitário-trinitário, o Ser, Aquele que
é, Pai, Todo-Poderoso, o masculino) e de outro lado, o Diabo (a revolta contra ordem, o
encerramento, a queda, a Morte, as forças desintegradoras do ser, a divisão e dissolução, a
força fundamental da libido, a dinamismo, a androginia). Observe-se que o eu poético
11
Irene Lisboa é das três, a primeira a publicar e quem mais publica: saem textos seus nos números 33, que
compreende os meses de julho a outubro de 1931; 39, de julho de 1933; 41-42, de maio de 1934, e no n. 50, de
dezembro de 1937, em que, embora escreva no feminino, assina João Falco. Todos os seus textos são de tom
marcadamente feminino, inclusive uma defesa da personagem Lady Chartterley, de O Amante de Lady
Chartterley, D.H Laurence. Alice Gomes, nos números 38, de abril 1933, e 41-42, de maio de 1934. Nessa tríade
é a que apresenta um texto baseado na vivência do corpo feminino e em seu desejo. Cecília Meirelles sai nos
números 45, de junho de 35, e 53-54, de novembro de 38, com um texto de tom erótico muito sutil. A despeito
de uma ironia ou chiste por parte dos diretores da revista, esse número em que aparece a poeta brasileira traz na
primeira capa o anúncio “Deseja-se mulher”, em letras garrafais e em tipos sensivelmente menores a explicação:
“por José de Almada Negreiros – TEATRO - um prólogo e sete atos”.
115
fundamenta o desejo entre esses dois pontos como princípio de si; desta forma, o resultado
dessa convergência tão antagônica seria a tomada, como ponto de partida, de princípios
artísticos tradicionais (Deus), que promovendo com a ruptura da ordem (Diabo) a exata união,
teria como conseqüência o Artista.
Vale pontuar que ao relacionar sua origem a estas entidades, o eu poético estaria
aludindo, em certa medida, a tensão existente entre os gêneros masculino e feminino e a
androginia. Sendo o demônio um princípio que supõe a ocorrência de um pansexualismo, o
que estaria ao lado desse confronto seria também a cisão que as vanguardas vão empreender
no que tange aos gêneros, uma vez que partindo do rompimento com o social e com a moral
burguesas, estaria de certa forma rompendo com os papéis sociais atribuídos ao homem e à
mulher e promovendo uma referência, como horizonte de sentido possível, ao único
comportamento capaz de traduzir os anseios vanguardistas: a homossexualidade.
Particularmente, em “Cântico Negro”, engendram-se muitas das questões que
configuram esse “novo” corpo trazido por Régio: ao se pensar o poema à luz das questões
estéticas vanguardistas e tendo como horizonte o conjunto de artistas, homossexuais,
encarecidos pelo poeta no decorrer de seu trabalho crítico, não seria demais pensar que ali
também se encerra um conflito de ordem erótica, mas que é capaz de ser um indicador da
imagem de corpo que se quer construir. Observa-se neste poema uma impassibilidade e uma
recusa em seguir os modelos instituídos, sintetizadas pela retomada da expressão “não vou
por aí” e similares pulverizadas no decorrer do poema. Enquanto os heterônimos pessoanos
corroboram a norma de gênero, por não poder criar uma alternativa a ela, o poeta de
“Narciso” vai além, propondo uma ruptura no paradigma e propondo um lugar “entre” ao se
declarar “filho de Deus e do Diabo”. Aquele drama que impede que masculino e feminino de
ocupem o mesmo espaço em Pessoa, aqui é substituído pela opção por uma via alternativa,
116
toda ela dimensionada pelo próprio desejo do sujeito poético. Logo, tem-se aí um primeiro
sinal de um corpo rebelado contra a política tradicional do gênero.
Essa outra via constitui-se na necessidade de se seguir um caminho diferente daquele
esperado e sugerido pelo Vem por aqui”. A negação dada à sugestão da norma mostra-se
como uma postura transgressora, “outsider”, em que a rebeldia traduz-se como marca de uma
individualidade, enfatizada pela visão particular do artista frente à arte, elemento esse aludido
por Lourenço em citação anterior e como um dos princípios de todas as vanguardas.
consoante a isso a crença do eu poético no destino do artista de vanguarda, na
medida em que precisa empreender a tarefa de “escorregar nos becos lamacentos,/
Redemoinhar aos ventos”, ou seja, descortinar experiências artísticas originais, autênticas e
inéditas, dispersas da arte burguesa cujo padrão estético não é capaz de dar conta dos
objetivos de seu fazer artístico. O sujeito poético encerra a sua profissão de vanguardista
aludindo claramente à genialidade incontida do Artista, que não pode ser limitada a um
padrão em que a liberdade, a originalidade e o esteticismo não são prioritários, daí não seguir
os caminhos da arte academicista então em voga em Portugal, assim como não querer ocupar
os lugares tradicionais que lhe são sugeridos. E nos textos que compõem a teorização sobre
“Literatura Viva” essa perspectivação de uma via alternativa fica bem caracterizada, que
nos seus exemplos a postura transgressora e balizada pela diversidade é o elemento
caracterizador daquilo que é considerado vivo em arte.
Visto que é perceptível no conceito de Literatura Viva” a abertura para a construção
de novos signos em torno de si, justo porque ao dar relevo à experiência como um ideal
estético, abre também espaço para a tematização das questões que cercam o corpo e a
sexualidade, não seria demais afirmar que, considerando a tensão masculino/feminino e a
herança misógina, assim como uma radical visão de mundo, que gera no sujeito tematizado
uma postura transgressora como perceptível em “Cântico Negro”, Jogo da Cabra-Cega e
117
em diversos textos de Régio não seria demais propor que a homossexualidade constituir-se-
ia como um ideal estético a ser valorizado pelo aspecto vanguardista do movimento
presencista. Principalmente quando se coloca lado a lado as teorizações sobre aquele conceito
e textos como “António Botto” e “Marcel Proust”, por exemplo, em que as vivências
homoeróticas são para Régio ponto fulcral da proposição estética desses autores. Soma-se a
isso, a afirmação do historiador Rui Ramos de que Botto, particularmente, foi a grande causa
do modernismo português (cf. RAMOS, 1994, p. 660-1).
Um leitor menos atento pode classificar, por exemplo, o texto de Álvaro Maia
condenando as Canções de Botto (1989), somente como um gesto de repulsa por parte de um
representante da sociedade lisboeta dos anos vinte e as conseqüentes manifestações da Liga
dos Estudantes de Lisboa, uma tentativa de resgate da moral e da ética, aos moldes do
Saudosismo. Entretanto, por que razões até então não havia nenhuma censura sobre opúsculos
intitulados Sáficas, Lúbricas, Sr. Ganimedes: psicologia de um efebo, ou sobre até mesmo O
Barão de Lavos, de Abel Botelho, atitude tomada depois do “Aviso por causa da moral”,
de Maia? Certamente por que a questão modernista apontada por Ramos Botto teria sido
bem mais impactante cultural e socialmente do que obras que circulavam de mão em mão ou
que eram vendidas de maneira escamoteada, às vezes sem conhecimento de seus donos, até
mesmo nas livrarias Bertrand, de Lisboa, ou Lello, do Porto. E mais: Pessoa, ao defender
Botto, justificava a atitude deste poeta como a atualização do ideal helênico de beleza e, de
maneira menos emblemática, considerava que como Gide, Botto teria tido a “coragem” de se
colocar contra a moral cristã e os princípios da família portuguesa. Este poeta, por sua vez,
envaidecido pela polêmica em torno de si, à qual assistiu muito mais como espectador,
continuava sendo “comprometedor” em suas atitudes, ao andar por Lisboa em calças
apertadas e de sobrancelhas feitas. À sua arte, Régio dedica algumas páginas da PRESENÇA
n. 13, nas quais defende que
118
A preferência estético-sexual de alguns homens [António Botto] pela beleza
masculina ainda não foi explicada; apesar das várias hipóteses. Mas é facto
existir, e ser tão natural a esses homens como à generalidade deles a
preferência oposta. Em uns e outros, o desejo sexual perturba a sensualidade
puramente estética. (...) Chamo viva a arte de Botto porque em toda a sua
Obra vibram as suas experiências pessoais: os seus prazeres, as suas torturas,
os seus ambientes, os seus juízos. (RÉGIO, 1977., p. 75, 78)
Exemplo cabal do que é Vivo em arte, Botto não publicou poemas inéditos nas
páginas da revista, como foi contemplado diretamente com três artigos escritos por Régio e
João Gaspar Simões. A esse respeito, declara Rui Ramos que António Botto foi a principal
causa dos modernistas em Portugal. Por quê esse interesse? Evidentemente que isto tem a ver
com o facto de a homossexualidade ser um dos principais tópicos do modernismo português”
(RAMOS, 1994, p. 661).
Nesse caso, querendo a PRESENÇA seguir determinados avanços das vanguardas
históricas, não seria demais afirmar que não é coincidência o fato de Botto, Leal, Sá-Carneiro,
Wilde, Gide e Cocteau serem postos lado a lado nas páginas da revista: todos homossexuais
confessos e produtores de uma arte em que o homoerotismo corre paralelamente aos outros
aprofundamentos estéticos; nem o fato de o Futurismo ser das novas estéticas aquela melhor
defendida por Régio. O crítico, inclusive, aventura-se na temática homoerótica em seu
romance, Jogo da Cabra Cega (1934) - em que o personagem principal afirma ter por um
outro uma fixação que ultrapassaria a esfera intelectual e a simples amizade e em poemas
como “Soneto de Onan”, “Beleza Humana” ou em vários outros em que um pecado inefável é
sempre referido como marca do qual o sujeito poético o consegue se livrar. Ou ainda, na
constante recorrência ao tema do “duplo”, recurso utilizado por Sá-Carneiro em A Confissão
de Lúcio, por Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray, duas oportunidades de, através dos
delírios dos personagens, apresentar de maneira sutil, pela linguagem, a forma como
orientavam a sua sexualidade, no caso múltipla, visto que ambos os personagens derivam
entre o espaço heterossexual e o fascínio pelo universo masculino homossocial. A
119
homossexualidade constiuir-se-ia numa imagem formulada e não necessariamente num
conjunto de práticas sociais caracterizadoras de uma identidade específica.
Preocupado em fazer da PRESENÇA efetivamente uma continuação de ORPHEU em
seus propósitos de ruptura com os valores estéticos tradicionais e de renovação moral, Régio
deveria, pois, aprofundar algumas questões defendidas pelos de ORPHEU, assim como
quis também dar dimensão a aspectos não priorizados por esta revista. Não será à toa que
Álvaro de Campos, heterônimo pessoano mais inclinado ao “vício trácio”, seja, a partir do
número cinco da revista, presença freqüente, inclusive com seus textos mais emblemáticos,
juntamente com Raul Leal e a sua política pessoal de vertigem, diversidade e elogio (e
prática!) da sodomia.
A grande questão que circunda a defesa de Botto implementada por Pessoa e Leal e o
uso exemplar que Régio faz de sua poesia e sua vida, constitui-se justamente pela capacidade
que teve este poeta de esteticizar a sua existência, ou seja, assumir uma atitude estética
perante a vida, tornando a “beleza plástica do corpo masculino uma forma clara de cantar
ficcionalmente aquelas experiências que vivia cotidianamente.
Outro caso que pode ilustrar a associação entre “Literatura Viva” e homossexualidade
diz respeito à fixação que Mário de Sá-Carneiro e José Régio tiveram pela obra de Oscar
Wilde e, particularmente o segundo, pela vida do autor de O retrato de Dorian Gray. Yara
Frateschi Vieira, em Níveis de significação no romance (1974), aponta para o fato de que
Régio intentara, com o Jogo da Cabra-Cega, compor um romance à luz do modelo
finissecular de Wilde, principalmente pela tematização do duplo, exposto no autor inglês
através do par quadro/personagem. Considerando que os duplos normalmente vêm
constituídos por caracteres opostos, todo duplo seria então composto, em termos de gêneros
sexuais, de elementos masculinos e femininos ou, pelo menos, pela tensão entre estes dois
opostos. Considerando a lógica do século XIX que atribuía ao homossexual a classificação de
120
invertido sexual - conforme indica Foucault em História da Sexualidade 2 (1988) e 3 (1985),
e Elizabeth Badinter, em XY (1992) - e a partir da teoria de o pederasta seria uma mulher
aprisionada num corpo de homem, pode-se estabelecer que o duplo, representado em Dorian
Gray trouxesse em si esta tensão: o lado masculino e feminino em crises constantes, tendo
como resultado um sujeito homoeroticamente inclinado. Entretanto sabe-se que Dorian, como
o próprio Wilde, é resultado de um regime tenso de esteticização da vida, que consiste numa
visão de mundo como uma totalidade pura e simplesmente estética. A isso se soma o fato de
que o protagonista é um dândi, forma moderna da estética da existência associada aos gregos
e romanos em História da Sexualidade 3: o cuidado de si (1985). Walter Benjamin, em
Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (1985) declara que este personagem
típico do século XIX é o “último vestígio heróico em tempos de decadência e Dorian Gray,
em nome de uma existência estética e, culpado pela idolatria da beleza, sucumbirá num
desfecho supostamente moralizante, mas que encena uma morte, que pelo efeito na economia
da narrativa, é por si só estética.
O dândi se constituiria como uma forma consciente e elaborada de recusa da vida
burguesa, cuja essência aristocrática exacerba a diferença do ser e de ser, numa sociedade
tendente a imposição de padrões e a massificação de modelos. Seu posicionamento apolítico
advém do fato de se achar superior aos demais membros do corpo social, não tendendo a um
comportamento influenciado pela esquerda, mas, por sua postura alheia, compartilha com o
pensamento direitista e reacionário; neste sentido, o dândi nega a família, a paternidade, a
procriação, uma vez que esses são princípios de uma igualdade e de uma mediocridade que
não quer compartilhar. Exalta o celibato, o ócio e a vagabundagem e os eleva a um patamar de
resistência consciente. Assim, quer destacar-se no vestir, no pensar e no uso ostensivo que faz
de suas posses como marca de uma identidade superior a tudo que o rodeia. Michele Perrot
(1991. p.2 76-98) aponta para o fato de que o dandismo se configura como uma atitude
121
eminentemente masculina para quem a mulher se mostrava como um instrumento de
escravidão para o homem, sendo concebida somente como instrumento carnal de prazer, um
objeto a ser desfrutado. Para a realização do eros, somente o universo masculino bastava.
Desta feita, não seria inoportuno aproximar a postura do dândi de um aspecto
caracteristicamente homoerótico e espernógino, na medida em que a circunscrição de seu
desejo somente abarcava o ideal masculino, desprezando ou reificando o outro gênero. O
universo do dândi configura-se como um traço pertinente à homossociabilidade masculina e
que pode se colocar para além das simples relações de parceria, companheirismo ou
rivalidade anteriormente apontadas por Ewe Kosofsky Segdwik, denotando-se como uma
forma possível de manifestação homoerótica, mas que de qualquer forma aponta para a
manutenção da lógica do patriarcado.
Sobre Wilde,gio, em artigo dedicado à apreensão da realidade imediata pelo artista
moderno, expõe o seguinte pensamento:
O Homem + o Artista + a Realidade = a Arte
(...)
Para que obedeçam a esta tendência, não será o esteticismo de Wilde que
vale, mas um Homem que se chamou Oscar Wilde. As qualidades pessoais,
humanas, de Wilde aparecer-lhes-ão muito superiores às suas qualidades
convencionalmente chamadas artísticas (REGIO, 1977, p. 36-7)
Note-se que a ênfase dada pelo crítico difere diametralmente daquilo que em literatura
se convencionou: a obra aqui é menor se comparada à vida do artista. Ou melhor: só será uma
grande obra porque insuflada de vida, como o dirá o poeta em artigo aqui aludido. O que
valoriza a obra, nesse caso, é o fato humano do artista que desempenha em vida uma
personagem, portanto, mimetizando esteticamente a realidade. Em outras palavras, no caso de
Wilde o ponto fundante de sua obra, está, pois, na sua homossexualidade e na capacidade que
teve de torná-la um recurso estético e Régio reconhece isso na sua formulação. É no corpo
homossexual, portanto, que se encerra a vida feita arte e a arte feita vida, perifraseando Régio.
Wilde, por exemplo, no alentado De Profundis (1996), revela não a angústia da
122
prisão, como também lamenta-se pela ausência física e afetiva do amado Bosie (Sir Alfred
Douglas), de quem seu corpo necessita. Mesmo em O Retrato de Dorian Gray, malgrado as
diversas leituras com relação ao duplo, uma discussão sobre a beleza física e da sua
importância no interior da sociedade finissecular, sendo, portanto, também, exposta, por
extensão, o drama do corpo que se corrompe frente à inexorabilidade do tempo e a fugacidade
do belo. Confirmando a hipótese levantada por Régio de que arte viva é aquela em que a vida
do artista se faz presente, Wilde afirma ainda, na introdução a Dorian Gray que “Uma obra de
arte é o resultado excepcional de um temperamento excepcional”, ainda que logo a seguir
afirme que o objetivo da arte é se auto-revelar e ocultar o artista o que parece anular a
questão aqui defendida. Entretanto, é fato que muitas vezes o jogo retórico da autoria tende a
construir hipóteses que tem por objetivo único estabelecer um novo pacto deste com o leitor.
Seria tarefa corriqueira ler O retrato de Dorian Gray tendo como horizonte de expectativa a
vida de Wilde; o que o autor faz, pois, é apagar este ponto de partida, a fim de orientar a
leitura do receptor, focalizando-a sobre a própria obra. Eni P. Orlandi, em Terra à vista
(1996), apontara que os discursos que subjazem às introduções, prefácios, epígrafes, notas
de rodapé, notas explicativas e assemelhados têm por objetivo orientar os sentidos a serem
construídos no ato da leitura, pelo leitor, desviando e direcionando a sua leitura e
conseqüentemente a produção de sentidos ali envolvida. O que Oscar Wilde pretende evitar é
justamente o contrário: que se leia a sua obra por um único crivo – o autobiográfico.
Outro exemplo presencista emblemático diz respeito a André Gide, outra figura tutelar
da “Literatura Viva”, que embora tenha somente dedicado quatro de suas obras à questão
homoerótica, o faz de forma a tornar-se paradigmático ao tratar da questão. Em 1920 publica
o Córidon, uma explicação e defesa da pederastia e, cinco anos depois, o romance Os
moedeiros falsos. No ensaio dedicado ao “vício grego”, o autor, além de defender a pederastia
como recurso estético e forma de vida, também legisla em causa própria, que embora
123
associado a grupos vanguardistas, tivera problemas com a sua orientação sexual e para si a
pederastia constituir-se-ia como um projeto a que se impôs deliberadamente (cf.
RODRIGUES, 2004, p. 58-9). Além de esclarecer a pederastia como uma forma pedagógica e
formadora da identidade do cidadão grego, demarca que antes de tudo ela pertencia a um
ritual iniciático necessário à vida de qualquer homem livre e que, sobretudo, construía-se
sobre uma noção ético-estética, que visava ao processo de formação do caráter, da
identidade masculinas e da cidadania, proporcionando construção de uma vida baseada na
beleza e no equilíbrio (GIDE apud MAYER, 1989, p. 247). No mesmo texto, afirma ainda
que não se considera homossexual, mas pederasta, que ao contrário do homossexual
comum, ele dava valor à beleza e não aos homens belos, bem ao estilo da consideração que
Régio faz sobre ele: “Então Gide canta a sua Ânsia porque também é poeta: prega a
superioridade do Desejo sobre a Posse; e funde, engloba todas as nuances, diferenças,
contradições e solicitações conflituosas na idéia da aceitação consciente e voluntária delas”
(REGIO, 1977, p. 32).
A associação de Jean Cocteau, por exemplo, ao postulado presencista talvez se deva
em muito a quase exaustiva representação plástica de seu desejo homoerótico, revelado em
desenhos e pinturas que retratam corpos masculinos e que, à época da circulação da revista
coimbrã, já eram conhecidos e comentados nos salões parisienses. A arte do autor de “Sangue
do Poeta” é uma espécie de escândalo, intencionalmente produzida para demarcar sua
orientação estética e sexual, demonstrando pelo viés artístico, a necessidade de se quebrar os
paradigmas institucionalizados e estabelecer um outro caminho possível. No primeiro número
da revista, na coluna “Opiniões”, a reprodução de um pensamento de Cocteau muito
elucidador da escolha do poeta como exemplo de “Literatura viva”: “La personnalité ne réside
pas dans la répetition d’une audace, mais, au contraire, dans l’independence que l’audace
permet”. (PRESENÇA n. 1, p. 3,). Eis no pensamento do francês a síntese do desejo
124
presencista: sobrepor-se às convenções culturais e artísticas de sua época, transformando a
ruptura num elemento capaz de propiciar novas rupturas, sejam elas estéticas, artísticas,
morais ou religiosas. Se for pensada a proposição de Jean Cocteau à luz da intenção
presencista de retormar ORPHEU, pode-se perceber que isso indica uma continuidade de
projeto, baseado em outra perspectiva e contexto cultural, a partir justamente do ponto em que
o movimento de 1915 parou. Ou seja: sendo o movimento de Pessoa uma audácia, a tarefa
presencista consistiria, enquanto sua continuadora, não repetir a audácia, mas tornar-se
independente para a estruturação de uma nova audácia.
Nos artigos “Da geração modernista”, “Marcel Proust”, “Lance de vista”, “Literatura
Livresca e Literatura Viva” e António Botto”, Régio recorre a outros exemplos que ilustram
o que é fazer literatura ‘verdadeira’ naqueles tempos, entendendo aqui o adjetivo no sua
vinculação com elementos biográficos e/ou ligados à realidade do artista:
Se em França um Marcel Proust, um André Gide, um Appolinaire, um Jean
Cocteau, um Max Jacob, um André Salmon, um Reverdy quantos outros?
Renovaram o romance, a poesia, a crítica, o teatro, Portugal hoje tem
também os seus renovadores [Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa,
Almada Negreiros, Raul Leal, Mario Saa] cujo talento ou gênio se não me
proponho a comparar aos daqueles, mas cujo papel, sim, comparo. (RÉGIO,
1977, P. 25)
À exceção de Shakespeare, Oscar Wilde e Raul Leal, contemplados em outros
momentos do trabalho crítico de Régio, na citação em tela percebe-se o fato de que todos os
autores elencados, em algum grau, serem reconhecidos pela orientação homoerótica
biográfica ou estética e tematizarem em suas obras o corpo, o homossexual e a experiência
erótica de maneira exacerbada. Daí que a vivacidade que lhes é atribuída decorra, em muito,
também dessas vivências que são expostas no texto, sem que o corpo seja um lugar dramático,
primeiro, no sentido aqui utilizado com relação a Pessoa, e, posteriormente, como foco da
tensão entre masculino e feminino. Por outro lado, a esteticização da vida, implementada por
muitos dos artistas focalizados por Régio pode apontar, na constituição do conceito de
125
“Literatura Viva”, para a tentativa de se criar com esse conceito uma “estética pederástica”.
Há, pois, em Régio a detecção de que o seu conceito de literatura abre-se também à
compreensão estética da homossexualidade, convertida em pederastia pela esteticização da
vida e do corpo, feita pelo crítico para clarificar o fato de que a “Literatura Viva” é um texto
escrito com as palavras da vida que reside no corpo e também um texto do desejo, sendo, por
conseqüência, um texto que revela sexualidades e formas de erotismo.
Entretanto, é recorrente na crítica de gênero que um conceito como o de
homossexualidade tenda a apontar a formação de uma identidade masculina específica. Como
não se pode afirmar a princípio a formulação de uma identidade sexual homoerótica, em
termos modernos, na crítica ou na poesia de Régio, e sim de um modelo de ordem estética,
opta-se, pois, pelo uso de pederastia, visto que esta, em seu arcabouço pedagógico e moral,
pode melhor caracterizar o ideal implementado através da “Literatura Viva”.
Decorrente do conceito gerador da crítica regiana, a “estética pederástica” constituir-
se-ia como um somatório de aspectos biográficos, ficcionais e estéticos. Seria, também,
baseado na experiência homoerótica, seja na ordem do vivido, seja na ordem do literário,
contribuindo para a caracterização da pederastia enquanto recurso estético e forma de vida.
Seus princípios basilares constituir-se-iam a partir da esteticização da vida e a cotidianização
da arte, propiciados pelo confronto das experiências dos artistas com aspectos de suas obras e
da sua ética, como sujeitos em sua relação com o mundo e com a arte. Cabe ressaltar que o
postulado se estabelece a partir de uma concepção genealógica, podendo, com isso, ser
aplicado e utilizado na compreensão de outras manifestações literárias que atendam a
perspecitivação, tanto do homoerotismo, como de sua realização artística.
É oportuno resgatar, mais uma vez. Raul Leal e sua Sodoma Divinizada para
aproximar a proposição de uma estética da existência, no sentido do modelo de experiência
contemplado por Michel Foucault e aquele ora percebido implícito no conceito de “Literatura
126
Viva”. Como dito, Leal defendia em seu ensaio que a pederastia consistiria numa forma
moderna, de pela bestialidade pura e pela diversidade das sensações, alcançar a integração do
homem com o cosmos; o universo, todo ele “vertigem”. Tinha na sodomia o meio mais curto
e certo de proporcionar ao indivíduo, pederasta, a ascese. Régio o chega a tanto na sua
composição do conceito de “Literatura Viva”, entretanto ao tomar como princípio de que a
vida precisa traduzir a vida e a vida, a arte, parece entender que estas também são uma forma
de tornar o artista mais próximo de uma experiência ímpar consigo mesmo e na sua relação
com aspectos transcendentes, como percebido no “Cântico Negro”.
Foucault, em suas formulações sobre a estética da existência - em História da
Sexualidade 2: o uso dos prazeres (1988) e de maneira dispersa em artigos de seus últimos
anos de vidae já tendo deslocado o foco do método genealógico do jogo poder-saber para o
âmbito da subjetivação –, passa a pensar como os sujeitos se constituem em relação ao prazer
e ao desejo. Para tanto, vai buscar na Antigüidade clássica, na filosofia pagã, pré-socrática,
socrática e cristã as condições necessárias para o entendimento desses aspectos na
modernidade, a fim de balizar uma possível história da moral e de seus códigos no mundo
ocidental. Por outro lado, preocupou-se também com o tipo de relação ética que o sujeito
estabelece consigo e a maneira como se constitui como tal em sua relação com a moral. A esta
proposição denominou “cuidado de si”. É uma esteticização do sujeito, e sua elaboração e
constituição por meio de tecnologias que envolvem o saber, o poder e a si próprio.
No correr de suas análises do pensamento sobre a moral na Antigüidade, percebeu que
em torno desse cuidado estavam preocupações particulares dos homens com a saúde, com a
formação da família, com a dieta alimentar e, obviamente, com o prazer. Conclui que se
tratava de um posicionamento pessoal do sujeito a forma como ele governava a sua própria
vida, não estando, portanto, submetido à normalizações de ordem social e cultural mais
genéricas. A preocupação final dessa tecnologia de si estava justamente em tornar a vida mais
127
bela para o sujeito. A estética da existência, seria, pois, essa tecnologia de si estabelecida
sobre uma matriz moral que tem a ética como princípio que permite ao sujeito escolhas
pessoais, próprias da vida como obra de arte, possibilitada e limitada pelo saber e pelas
normas e condições que tornam o indivíduo sujeito e objeto de saberes e poderes. É um modo
de ver a ética, caracterizado pela crítica e pela experiência, em que esta última questiona os
limites de ordem social e histórica que lhe são impostos.
Assim, pode-se também entender a estética da existência como uma fuga, baseada na
ética, aos modelos claramente instituídos de limitação do sujeito, em que este, administrando
a própria liberdade de escolha, consegue recontextualizar os dispositivos de poder e saber e os
discursos engendrados por estes no correr da história.
Cotejando as duas perspectivas de estética da existência, pode-se perceber que em
ambas a preponderância do dado ético na constituição de um modo de vida particular do
sujeito – literário ou histórico – na sua relação com a própria experiência. Em outras palavras,
quando Régio e Leal defendem a liberdade do indivíduo frente às imposições estéticas e/ou
sociais, põem em questão as normas sócio-culturais que lhe são impostas, questionando o seu
estatuto, sua validade como modelo totalitário e seu arranjo dentro dos mecanismo
discursivos vigentes. Leal, ao propor como meio de elevação pessoal a prática da sodomia, e
Régio, defendendo um princípio de liberdade e revolta frente à vida, colocam também em
xeque o paradigma do gênero binariamente fechado, atribuindo aos sujeitos a possibilidade de
“serem” para além daquilo que lhes é esperado.
Foucault, teorizando no final de sua vida sobre a Amizade, o faz tendo como objetivo
resgatar nos dias atuais uma estética da existência que consistiria na invenção de um modo de
vida em que sujeitos decidiriam sobre a sua própria sexualidade e fariam dela a forma de
percepção da própria vida, tendo como princípio as técnicas de si aqui aludidas. Tais
tecnologias deveriam contribuir para a criação de um estilo de vida gay, particularmente, visto
128
que o filósofo considerava que esse tipo de relação era na contemporaneidade a forma mais
complexa de experimentação de novas formas de prazer e de relação entre os sujeitos, que por
conseqüência proporcionaria a ascese, considerando-a como uma auto-realização do indivíduo
(cf. ORTEGA apud FOUCAULT, 1999, p. 155).
Assim, a “estética pederástica”, nesse sentido, seria uma rearticulação da
perspectivação de gênero, particularmente da homossexualidade, no interior da Literatura
Portuguesa até aquele momento e propiciadora de uma descompressão no silenciamento da
(homo)sexualidade enquanto paradigma possível e novo protocolo de leitura, particularmente
da poesia portuguesa. Sua observação permite a constituição de sujeitos homossexuais, assim
como de uma homotextualidade baseados em aspectos da obras ou concernentes à vivência do
artista.
Esse corpo expressivo manifesto na escrita, oco em ORPHEU e dramatizado em
PRESENÇA e por estar inserido na cultura, será, a partir desse momento um objetivo cada
vez mais perseguido pela poesia portuguesa. Retomando aqui a proposição inicial de
Lourenço, efetivamente Régio traz o corpo ao espaço da Literatura Portuguesa, seja esse
corpo necessariamente masculino ou rearranjado na esteticização da pederastia. A partir desse
momento, abrem-se novas perspectivas para o corpo, que começa a dizer-se e a constituir-se
em sujeitos cada vez mais conscientes de que não estão a priori dos discursos, mas são
constituídos por eles. E contra esses discursos, novos corpos se levantam.
129
4 “ESCREVO-ME CONTINUAMENTE”: A “LITERATURA VIVA” DE AL BERTO
Caso se pense em termos de semelhança, poder-se-ia dizer que além de serem poetas
preocupados com o lugar do sujeito na modernidade, José Régio e Al Berto compartilham
também um panorama político assinalável: o primeiro inicia sua vida literária sob o trauma da
ditadura nascente e Al Berto, num momento em que, “caído da cadeira”, o regime de Salazar
e Marcelo Caetano sucumbia ante a uma mítica revolução sem armas, embalada pelas canções
de José Afonso. Se a revolução não fora “flor branca”, como a Tangerina de Al Berto, era
pelos cravos vermelhos urdida.
O presencista, por não dizer, vai buscar na vida e na arte as razões de sua poesia. O
outro, podendo dizer, irá experimentar poeticamente todos os limites da vida feita arte.
Viver, pois, é o que se quer, mas o viver de vida livre, em que se possa dizer frente à vida as
palavras do corpo e do poético.Divirjam, talvez, tanto no objetivo de sua escrita, quanto na
forma como se inserem no cânone literário.
Régio, ao reivindicar para ORPHEU o estatuto que hoje tem, circunscreveu-se,
também, como um crítico de posições radicais e como um poeta cuja relação com a
linguagem remarque, segundo Eduardo Lourenço e Prado Coelho, um dos maiores dramas
ontológicos no nível da expressão. Régio, poeta, escreve para dar voz a um sujeito em perene
confronto consigo, com o mundo e com a linguagem, mal necessário. (cf. COELHO, 1972, p.
37).
Al Berto escreve porque precisa dar voz ao Narciso que tem dentro de si, que se mira
constantemente em busca de seu duplo e equivalente, demarcados ambos por sua orientação
sexual. Tornou-se canônico pela capacidade de sua poesia trabalhar com pressupostos
perpetuados, associando-os às vivências de uma subjetividade em constante deriva.
130
Ambos, crítico e poeta, são vozes que dão voz aos corpos, antes submetidos a um
regime não de silenciamento político, como cultural e discursivo, em Régio, e de abertura
às vozes outras, dadas a ouvir por Al Berto. Antes apagadas e murmurantes como em Eugénio
de Andrade ou Mário de Cesariny, como bem comenta Eduardo Pitta (PITTA, 2003, p. 9-10).
Somente após a Revolução dos Cravos começam-se a articular e a tornarem-se
audíveis vozes que ousam nomear o desejo homoerótico, ainda que possam ser percebidas
tentativas, entre o término da PRESENÇA e o surgimento da poesia pós-74, que
prenunciariam uma nova abordagem da questão. Ocorrem de maneira muito silenciosa, em
termos de produção e tematização, e, quando ocorrem, não constituirão para alguns críticos
um sema necessário à compreensão de poesia cuja tematização gire em torno dessa questão.
Cabe ressaltar que a emergência de novos discursos literários acerca da masculinidade,
do gênero e das questões homossexuais nada mais são que reflexos na cultura portuguesa de
um conjunto de processos que já havia tomado outras culturas que trouxeram para a Literatura
novos modos e objetos.
Assim, acompanhando os movimentos de emancipação da mulher, a descolonização
dos anos setenta e os ecos, mesmo longínquos, de Stonewall, a cultura portuguesa começava a
dar lugar a expressões que não corroboravam com o estatuto tradicional do (gênero)
masculino. É operada uma reconfiguração deste mesmo masculino, adaptando-o, inclusive, às
velhas formas de expressão erótica.
Soma-se a isso o fato de que é possível haver na Literatura Portuguesa um conjunto
estético representado genericamente pela “Literatura Viva”. Tal conjunto pode vir a contribuir
na compreensão não de autores seus contemporâneos, como também pode ser uma outra
forma de ler a literatura fixada no passado e de entender a produção mais contemporânea,
particularmente aquela surgida ou emergida no período pós-1974, resultado da descompressão
discursiva, lingüística, política e cultural, trazida pela Revolução de Abril.
131
Como percebido na formulação da “estética pederástica”, pode haver paralela à
construção literária a priorização de elementos que constituam uma cultura baseada na
experiência homoerótica, já que tais vivências são retiradas da trama paralela para tornarem-
se enredo central, resultado de novas tecnologias culturais e de sexualidade. A grande
questão, nesse sentido, é que ganha luz, pela e na literatura, um conjunto de vivências e
experiências sociais até então silenciadas, mas não apagadas pela máxima salazarista “Deus,
Pátria e Família”.
Considerando que tais vivências constituem-se como um rompimento à tradição
(literária, cultural, social), pela revisão do conceito de família, a ofensa à pátria construída
sobre homens escolhidos e marcada com um sinal divino e, por fim, o rompimento com o
princípio de que o homem fora concebido para viver para a mulher, pode-se afirmar que o
homoerotismo passa a se constituir um corpo estranho dentro da própria literatura portuguesa.
A crítica literária sutilmente o desconsiderou por muito tempo, cada vez mais crescente e
reclamando um lugar dentro desse panorama - se a crítica o leu, optou por não dizê-lo.
Esta produção artística que marca o surgimento em Portugal de uma nova identidade
masculina aliada a uma nova subjetividade não aparece alheia ou diversa daquilo que vem
acontecendo em termos de movimentos de emancipação sexual, ainda que não seja de forma
alguma panfletária ou defensora de um posicionamento político-sexual autônomo.
Até aqui se cuidou refletir sobre como se articularam, no interior da cultura
portuguesa, certos temas que sinalizam e demarcam aquilo a que chamamos masculino,
particularmente a homossexualidade. Percebeu-se, pois, que uma possível genealogia
capaz de indicar a emergência em Portugal das discussões acerca de um modelo de homem e
das conseqüentes transformações pela qual esta subjetividade passa no decorrer da História.
As identidades se transformaram e os sujeitos foram se constituindo na percepção das
diferenças e com relação ao aparecimento de novas alteridades e de discursos capazes de
132
darem conta dos avanços e da emergência da subjetividade homoerótica pós-Stonewall.
Uma vez que a História da Literatura tende a seguir o modelo historiográfico
preconizado nos fins do século XIX, ou seja, enumera fenômenos, autores, marcando tudo
pelo viés cronológico e pela explicação às vezes meramente casual das especificidades do
material literário, não tende a comportar uma relação mais íntima com determinados materiais
culturais (JAUSS, 1994, p.6ss). No caso da Literatura Portuguesa, a priorização das formas e
de aspectos como o sentido de nacionalidade e imagem da nação provocaram, muitas vezes, a
não percepção dos aspectos aqui aludidos ou a sua configuração como algo circunstancial
dentro do arranjo maior da série literária. Não podendo priorizar certos aspectos ou sintonizar
a Literatura num contexto mais amplo da história cultural, a cronologia literária passa a
depender de outros aspectos que lhe são paralelos para compreender objetos determinados,
dentro da produção estética de uma época.
O conceito de “Literatura Viva”, estabelecido por José Régio no correr dos primeiros
números da revista PRESENÇA e reafirmado direta ou indiretamente em diversos artigos e
ensaios a o fim da publicação, em 1940 -, construiu-se pela e na percepção que seu
formulador tem a respeito de um conjunto de artistas europeus que tiveram e têm suas obras
freqüentemente relacionadas com sua identidade sexual e com a experiência que têm do
corpo. Artistas todos ligados de alguma forma, vale repetir, aos movimentos de vanguarda
primeira metade do século XX ou do fim do século XIX. A adjetivação dada por Régio à idéia
"Literatura" passa a conferir a esta arte, conseqüentemente, uma vinculação com princípios de
vivência, experiência e autoria, de maneira que tais conceitos se articulam expondo, nas obras
dos referidos autores, a realidade da vida destes como indivíduos, sujeitos e artistas, e a
conseqüente sobreposição da vida sobre a arte. E ainda, ao estabelecer que "em Arte é vivo
tudo o que provém da parte mais íntima da personalidade do artista", Régio questiona o
133
estatuto moderno que propõe a cisão entre o indivíduo e sujeito, eu-poético/narrador e autor,
indicando na obra o ponto de convergência dessas entidades.
Em outro sentido, Eduardo Lourenço afirma que a PRESENÇA foi o primeiro grande
movimento português a focalizar corpo e a demarcar sua emergência como centro na e para a
literatura:
Não na literatura portuguesa, apesar de sua longa tradição ascética e
espiritualista, visão mais desincarnada que a de Pessoa. Com Régio inicia-se
(precedido noutros registos por Fialho e Aquilino) a reconquista do corpo
como lugar de drama, de conflito por excelência. A palavra poética de Régio
passa sempre pelo corpo próprio, enquanto a de Pessoa assinala em termos
memoráveis a sua ausência e impossível transparência. (LOURENÇO, 1994,
p. 147-8, grifos do autor).
A afirmativa de Lourenço, por seu posicionamento a respeito da PRESENÇA e
particularmente de Régio, ganha contornos relevantes, visto que, como aqui já foi proposto, o
corpo-sem-órgãos de Pessoa - obstáculo à vivência plena da intelectualidade, sobretudo
poética não é o espaço de encontro entre sujeito poético e poesia, autor e obra, que não
existe para ser tanto. Régio, ao superar o ascetismo espiritual pessoano e substituí-lo por uma
ascese baseada na vivência estética da vida, recoloca esse corpo no lugar poético, ainda que
nele ainda residam os dramas que a linguagem revela e provoca.
Estendendo a questão, não seria demais pensar que o corpo também é o lugar de
encontro entre sujeito e indivíduo na medida em que aquele restabelece a ordem perdida, ao
mesmo tempo em que se coloca como exemplo de vivacidade e também da sexualidade.
A proposição presencista - pensada à luz dos estudos mais recentes sobre
subjetividade, assim como dos estudos que norteiam a compreensão das estratégias de gênero
e sexualidade pode contribuir para o entendimento da poesia portuguesa pós-74, na medida
em que nessa produção se pode perceber a emergência de uma autoria homossexual, marcada
pelos discursos sobre o corpo, sobre a sexualidade e sobre o desejo homoerótico. Essa autoria
"homossexual", pelo viés do corpo, perfaz - como a "Literatura Viva" - o caminho que
134
circunscreve o reencontro entre sujeito e individualidade, na medida em que tal trabalho
autoral reflete as experiências íntimas vividas por seus emissores e estes, por sua vez,
traduzem-nas em trabalho poético cuja base principal constitui-se principalmente no revelar
de tais intimidades homossexuais e/ou homoeróticas, como se verá adiante em Al Berto.
Em outra medida, esta “outra poesia”, como a trata Fernando Guimarães (1989, p.
135-145), seria também o coroamento do cuidado de si revelado na escrita da própria
intimidade e no projeto de tornar a homotextualidade uma linha de leitura. Cabe esclarecer
que a noção de “homotextualidade”, foi cunhada pelo crítico Denílson Lopes, no artigo
“Escritor, Gay” para se referir-se às questões que envolviam a escrita homossexual. Aqui,
amplia-se o conceito e passa-se a entendê-lo também como um conjunto de recursos que
envolvem a autoria, o conteúdo expresso pela obra, leitor-modelo, sentidos construídos e até
marcas como dialeto, sendo entendida como uma unidade de sentido para o texto
homoerótico. (LOPES, 2002, p. 19-42).
Dessa forma, o conceito de "Literatura Viva" ganha um caráter "universal" e mais
dinâmico, na medida em que pode ser uma estratégia de compreensão de uma produção
poética posterior a si e que de alguma forma remarca os ideais propostos por Régio nas
páginas do periódico literário. Esta proposição, enquanto ideal de vanguarda e de um segundo
modernismo, pode ser percebida como uma possível continuidade no trabalho poético de
alguns poetas portugueses contemporâneos, o que contribuiria para a percepção de uma
tradição (invisível) na poesia contemporânea portuguesa em função da importância dada ao
conteúdo pessoal e biográfico do poeta na arte que produz. Essa nova perspectiva dada aos
estudos referentes à PRESENÇA, superaria assim àquilo que tem sido visto como dizer
recorrente da crítica literária portuguesa, de que o movimento/revista não é mais que uma
fronteira entre dois grandes momentos da Literatura Portuguesa do século XX, a saber,
Orpheu e o Neo-Realismo.
135
Assim, a leitura, empreendida por José Régio, de autores como António Botto,
Frederico García Lorca, Mário de Sá-Carneiro, André Gide, Jean Cocteau, dentre outros, e
conseqüentemente a homossexualidade de tais autores, mostrou-se como um ponto relevante
para a construção da noção de uma “estética pederástica” apresentada. Cabe, agora,
verificar se as proposições regianas conseguem estabelecer uma tradição invisível na poesia
portuguesa, com a permanência do conceito de “Literatura Viva”, através de um autor que
ganhou relevância nos últimos anos: Al Berto.
A noção de “Literatura Viva” torna-se operacional para a compreensão da poesia
moderna, também, se é considerado que o conceito em questão se fundamenta em exemplos
cuja vinculação com a experiência homossexual lhes era patente no momento de circulação
dos artigos da revista. Em outras palavras: de forma ainda que transversa, a “Literatura Viva”
de Régio, ao pensar a vivência homossexual como um fator determinando na recepção da
obra, promove o encontro entre arte e vida e propõe que a esteticização das experiências
passem a denotar uma forma de ler e dar a compreender o valor estético de uma obra.
Para iniciar, pois, a discussão a respeito de como essa herança invisível se traduz na
mais recente poesia, seria oportuno pontuar como essa “tradição” literária canônica alguns
aspectos presencistas, regianos e albertianos. Anteriormente aqui se frisou que o problema
que envolvia parte da crítica literária portuguesa do século XX e a PRESENÇA era também
uma questão de constituição da História Literária e dos discursos que sustentam a formação
dessa história, muitos deles balizados por pressupostos filosóficos e por uma concepção do
literário que por si só dificultariam a compreensão de determinados aspectos específicos dessa
literatura. A crítica de formação filosófica tendeu a valorizar o Neo-Realismo em detrimento
da PRESENÇA e, após os anos sessenta, aquela de fundamentação estruturalista, a avalizar
uma poesia diversa daquela propugnada pelos presencistas.
136
Por outro lado, a crítica que contempla a poesia das últimas décadas do século XX,
encabeçada por Fernando Pinto do Amaral (1991) e Fernando Guimarães (1989), aponta o
fato de que alguma nova poesia surgida entre os anos 70 e 90 pode ser caracterizada por
aquilo que se poderia chamar de neo-romantismo, visto que se funda numa exacerbação da
subjetividade, num excesso de lirismo, numa postura de embate ou de mal-estar entre sujeito e
mundo e na ênfase de uma liberdade poética e estética, típicas da modernidade, do
romantismo e do modernismo, idéia rechaçada por Luís Miguel Nava nos dois artigos escritos
acerca de Al Berto (cf. NAVA, 2004, p. 306-311). Aliás, perspectiva na qual inserem Al
Berto como exemplo melhor acabado. Note-se que Al Berto, como a poesia presencista,
também tem sido lido pelo crivo de um suposto neo-romantismo que, segundo a crítica
principalmente a de Amaral e Guimarães -, parece ser a tônica de uma poesia centrada no
sujeito e/ou na exposição de si (recorde-se, como o foi a de Régio).
Dizer “eu” parece estabelecer um pacto entre texto e leitor, o qual a crítica tradicional,
de base filosófica, e estruturalista talvez não queira ver celebrado, visto que recuperaria
procedimentos que seriam percebidos como oriundos da poesia lírica portuguesa tradicional, o
que desmentiria aquilo proposto em Pessoa: promover a diluição dessa subjetividade e a
desidentificação entre autor, sujeito da enunciação, sujeito do enunciado e leitor, tal qual
propusera em sua “Autopsicografia”. Ler é ler-se no texto lido, participar, portanto, na
enunciação desse “eu” que se diz no poema. Ler-se no Régio dito apolítico, defensor da “Arte
pela Vida”, suposto condutor do modernismo ao estágio pré-pessoano, ou em Al Berto, a
homossexualidade, o estigma da AIDS ou exílio em Bruxelas durante o fim do Estado Novo,
não deve ser o desejo de uma crítica que celebrou a ruptura, o engajamento, os outros
pessoanos. Uma leitura como essa implicaria a aceitação de poéticas e modelos estéticos
considerados ultrapassados por ela mesma e pela maior parte da lírica moderna.
137
Como diz Lourenço, a crítica sempre esteve desarmada diante da obra (LOURENÇO,
1994, p. 16). Ou se desarma porqueo reúne condições de estabelecer uma hermenêutica ou
porque, mesmo negando, sustentada pela política do gosto, do belo, do sublime, faz do gosto
particular um critério de valor inquestionável.
A obra de Al Berto tem como principal característica o fato de seus poemas denotarem
a manifestação inequívoca de um discurso poético homoerótico em Língua Portuguesa, além
de operar em seu exercício poético a vivência homossexual como fato inerentes a sua poesia.
Além disso, cabe serem destacadas algumas linhas de força que configuram as principais
recorrências de sua obra, visto que a poesia de Al Berto, pela própria dinâmica compreende
aspectos variados que vão desde a écfrase até a releitura de poetas clássicos, assim como o
diálogo constante com a contracultura e a subcultura homossexual contemporânea.
Antes, porém, cabe um breve intróito que dimensione a fortuna crítica a respeito da
obra de Al Berto. A primeira referência significativa a respeito é registrada em Joaquim
Manuel Magalhães numa crônica intitulada “Alguns aspectos dos últimos anos”, em que
enumera as mais recentes aquisições da poesia portuguesa, a que considera um conjunto
ignorado”. Seu elenco compõe-se de Grabato Dias, João Miguel Fernandes Jorge, Hélder
Moura Pereira, Nuno Júdice, os poetas de “Cartucho” e um certo projeto editorial de Alberto
Pidwell Tavares (nome civil de Al Berto), cuja poesia Magalhães classificava como não sendo
uma “literatura de repouso de senhores”, já detectando o “incômodo” a que se seguiria a
perpetuação do poeta nos anos que se subseqüentes (MAGALHÃES, 1981, p. 270).
A década aberta por Os Dois Crepúsculos marcará a atenção da crítica mais acadêmica
e destacada da época, como também daquela feita por outros poetas que surgem no mesmo
período. Destacam-se nesse interregno crônicas jornalísticas, resenhas e ensaios de Eduardo
Prado Coelho, E. M. Melo e Castro, Maria Lúcia Lepecki, António Guerreiro e António
Ramos Rosa, sem contar com intervenções de críticos emergentes, como Luís Miguel Nava.
138
Em 1991, ocorre a publicação de O Mosaico Fluido, extenso estudo de Fernando Pinto do
Amaral que contemplava a modernidade e a pós-modernidade marcadas pela poesia dos anos
70 e 80, com destaque para alguns dos poetas aludidos por Joaquim M. Magalhães. Dedica
o crítico um capítulo exclusivo à poesia de Al Berto, agora alentada pela publicação de O
Medo, em 1987, obra completa, e que colabora significativamente para uma hermenêutica
mais intensa a respeito daquilo que foi produzido entre 1974 e 1987 (que compreende desde À
procura de um vento num Jardim d’Agosto até Uma existência de papel
12
).
Fernando Pinto do Amaral, municiado pela idéia de conjunto, agora proporcionado
pela obra completa, o que permite a percepção dos avanços, das recorrências, das
modificações e dos recursos estilísticos do poeta, traça um panorama que servirá como uma
significativa chave de leitura e intelecção da obra de Al Berto, em que se destaca
principalmente a afirmação de que a sua poesia ancorava-se a uma exposição confessional do
cotidiano do qual brota uma escrita consciente de si e um sujeito que deriva entre vários
sujeitos textuais focalizados na e pela perspectivação da sexualidade como forma de uni-los a
todos. Embora destaque que o caráter homoerótico é uma linha de força e de significado na
12
As obras completas de Al Berto circulam, na verdade, em cinco edições: a pela Contexto e a pela
associação Contexto/Círculo de Leitores. Ambas traziam fotos do autor na capa, grande característica, inclusive,
dos livros de Al Berto: uma fotografia do autor, feita por Paulo Nozolino, inspirada em Caravaggio, uma espécie
de referência a vários quadros do artista italiano. A edição, de 1991 inclui O livro dos regressos e Finita
Melancolia, produzidos entre 1986 e 1989. Em 1997, na Assírio & Alvin, são adicionados Luminoso Afogado
e Horto de Incêndio e “Últimos poemas” e o design da edição póstuma é considerado bastante fúnebre, embora
respeite o projeto gráfico da editora, fato este comentado por Prado Coelho em resenha ao novo volume: capa
preta e lombada das folhas em roxo, sem nenhuma foto do poeta, fato que se repete na edição de 2000. O gosto
“fúnebre” da capa pode ser um sentido atribuído, a mais, à obra do poeta, que embora não se manifestasse na
capa, manifestava sua ausência no uso de cores relacionadas ao luto. Ou, como se prefere, à captação da idéia de
“assinatura” do poeta em todas as suas obras: a ausência física é marcada pela alusão a sua morte, o que manteria
a eloqüência do autor na capa do livro e a sua intervenção, que a capa preta é clara alusão ao verso “as
paisagens soltaram-se do caderno de capa preta”, de “Equinócios de Tangerina”. Recentemente, em maio de
2005, foi publicada a edição, na qual se funde o design da Assírio & Alvim com a fotografia de Paulo
Nozolino utilizada nas edições da Contexto e da Círculo de Leitores. A nova edição traz modificações,
notadamente na ordem de alguns textos, assim como a inclusão de sete novos poemas. A organização do novo
volume deve-se a Luís Miguel Gaspar e Manuel de Freitas e inclui um índice a partir dos incipt, notas de
referência, biografia do poeta e relação de artigos e obras a ele relacionados. Ressalte-se o fato de que o poeta,
em Segundo Equinócio (de Tangerina) reitera que não deixará inéditos, justo para protegê-los dos pequenos
abutres”. Em comentário à amiga Manuela Júdice, o poeta declara não querer sofrer, depois de morto, aquilo que
hoje se processa com o “baú” de Fernando Pessoa. Daí que tenha deixado tudo sempre muito organizado em
função do iminente risco de morte por AIDS.
139
obra de Al Berto, o crítico opta por não aprofundar a questão, visto que considera que
elementos, como a constituição da subjetividade, que ainda precisam ser mais bem
investigados.
A consagração do poeta, nos anos 90, proporcionada pela sua absorção pelo cânone
crítico foi capaz de produzir uma quantidade estudos que priorizam os mais amplos aspectos
de uma obra cuja diversidade é capaz de gerar as leituras das mais variadas e que colocam Al
Berto em consonância com a mais tradicional poesia produzida em língua portuguesa.
Dessas leituras mais recentes destacam-se as de Jorge Fernandes da Silveira, Simone
Caputo Gomes (2002), Mário César Lugarinho (2002, 2004) e Mark Sabine (2004). Aos
primeiros, cumpre o papel não só de críticos-leitores, como também de divulgadores no Brasil
da poesia surgida nos anos 60, pelos trabalhos de Luiza Neto Jorge e Gastão Cruz e da
geração subseqüente, na qual se insere Al Berto, o que provocou também no Brasil interesse
que muito tem a acrescentar, por que não dizer, as leituras dos poetas tematizados. Procurando
teorizar a respeito das interações entre as novas teorias de Gênero, os Estudos Gay e Lésbicos
e a Teoria Queer, os dois últimos pesquisadores, Lugarinho e Sabine, têm contribuído à
fortuna crítica da obra de Al Berto à luz de tais estudos, pontuando o fato de que o poeta
oferece subsídios para a compreensão de uma cultural gay se não apenas lusitana, ocidental.
Por último, os recentes trabalhos de Manuel de Freitas (1999 e 2005) que buscam
investigar as imbricações da poesia de Al Berto com outros elementos extratextuais com os
quais mantém estreitos laços intertextuais, como a música, a pintura, as referências literárias e
estéticas mais claras e a aproximação do poeta da geração beatnick. Seu último ensaio
contempla a subjetividade exacerbada do poeta e o imobilismo provocado pela escrita, assim
como o tom testemunhal de sua poesia.
140
Dados os créditos necessários à conjugação do poeta no cerne do cânone literário,
convém, agora dar luz a sua poesia em vista a depois ser estabelecido aqui os prováveis
vínculos com a “Literatura Viva” de Régio.
O poema que hoje inaugura O medo, de Al Berto, “atrium”, revela os sentidos
diretores de sua obra, funcionando como uma espécie de ars poetica que encerra os conjuntos
temáticos, estilísticos e estéticos que a sustentam. Na primeira edição de À procura do vento
num Jardim d’Agosto (1977), o poema em questão ocupava a última posição, fato este que
gera certa curiosidade por parte dos cultores do autor. Considerando que o sujeito poético
afirma em “Segundo Equinócio” (de Tangerina), que “os textos que nunca publiquei guardei-
os rasgados numa gaveta. estão bem protegidos do pó, dos cheiros, dos ruídos e dos pequenos
abutres de inéditos. hei-de oferecê-los ao fogo”, pode se considerar uma significativa
intervenção do poeta em sua obra, de forma a manter sua integridade orgânica e contextual,
fora, pois, do âmbito da crítica genética. Ao lado disso, o fato de deslocar o poema de seu
lugar pode denotar também o interesse do poeta em orientar a leitura dos demais textos,
preconizando a existência de um leitor não-modelo, conforme a perspectiva de Umberto Eco,
em Lector in fabula (1986). Além disso o fato do poema ter estado no final do livro de estréia
do autor poderia sugerir numa leitura mais apressada que ele compusesse o último dos
extensos poemas do livro, “O pranto das mulheres sábias”, sem que com isso mantivesse um
vínculo semântico mais estreito com o que ali é focalizado. Note-se que Al Berto poderia
pretender com isso manter o mínimo de domínio sobre a obra, visto que em termos de
construção de sentidos, nada poderia fazer, já que estes se configuram no ato da leitura.
O poema inicia-se com uma metaforização do que parece ter sido a descrição de um
intercurso sexual entre sujeitos que parecem estar sendo observados, de maneira ainda
distanciada, pelo enunciador, que no ritual descrito parece estar desprendido de sua
corporeidade:
141
luta de sonâmbulos animais sob a chuva. insectos quentes escavam
geometrias de baba pelas paredes do quarto. em agonia, incham, explodem
contra a límpida lâmina da noite. são os resíduos ensangüentados do ritual.
na cal viva da memória dorme o corpo. vem lamber-lhe as feridas as
pálpebras um cão ferido. acorda-o para a inútil deambulação da escrita.
abandonado vou pelo caminho de sinuosas cidades. Sozinho, procuro o fio
de néon que me indica a saída.
Eis a deriva pela insónia de quem se mantém vivo num túnel da noite. Os
corpos de Alberto e Al Berto vergados à coincidência suicidária das cidades.
(M, p. 11)
A exposição de um real cotidiano em que o sujeito olha para si como se fosse um
outro fora de si, somente um corpo desprovido de subjetividade, denota uma poetização
daquilo que brota das experiências vividas e banais. Entretanto, esse real não é suficiente à
existência e passa a ser compensado pelo mergulho em um espaço onírico, talvez, como se
perceberá posteriormente, proporcionado pela enunciada experiência com substâncias
químicas que promovem o deslocamento da realidade pelo enunciador.
Esse investimento no dado imagético que transcende à realidade imediata, é o estopim
de um processo melancólico que demarcará toda a poesia de Al Berto, que aqui é gerada pela
condição de abandono a que está submetido o sujeito, expressa pelo cão que lambe suas
feridas e seu o rosto, gerando-lhe o questionamento sobre qual é o papel e a função da escrita,
visto que ela não tem uma função imediata na vida. Esse vagar pela escrita, gerado por este
“estar consigo”, tende a indicar um mal-estar com relação ao mundo, uma inadaptação que
se quer superar pelo encontro de uma saída. Sair é antes reconhecer a coincidência entre dois
corpos submetidos à solidão noturna: o corpo de quem olha, o enunciador do poema, e outro
corpo dele separado, mas coincidente, o autor.
Essa separação coincidente entre Alberto e Al Berto denota a distância aqui já aludida
em que se colocam o sujeito com relação à si próprio: é o olhar-se de fora originado no olhar
do outro. Diferentemente de Álvaro de Campos, o olhar em Al Berto não indica um
voyeurismo, mas sim a consciência de si como estrutura fragmentária que pode ser percebida
142
como um outro do discurso, não necessariamente interlocutor, mas sim uma alteridade que se
marca na linguagem.
Esse jogo de alteridades na seqüência inicial da obra de Al Berto, particularmente
naquela compreendida pelas obras dos anos 70 e Lunário (1988), é econômica para a
compreensão de sua poesia, visto que aponta para as diversas “figuras” que comporão um
quadro de multiplicações do “eu” que se enuncia ao mesmo tempo em que enuncia outros que
são imagens de si. Esses “eus” todos assumem uma função e terão um significado no interior
da obra, não sendo necessariamente personagens da encenação da subjetivante do poeta. São
entidades que cumprirão papéis distintos ao revelar a relação do poeta com a escrita
(Tangerina), com a sexualidade (Nervokid), com sua identidade (Beno), com seu desejo de
travestismo (Kiki Proleta da Pivia), que ele é “aquele que se transmuda em milhares de
máscaras e não é ninguém” (M, p.15).
Aqui se aludiu ao corpo-sem-órgãos como recurso de percepção do corpo encenado
em Fernando Pessoa. Contrariamente a essa tendência em negar o corpo, Al Berto trabalha-o
na certeza de que ele não é composto por uma interioridade que comporta outros corpos
eroticamente falando, inclusive como também se faz presente no discurso poético pelos
fluidos que dele emanam: “no escuro beco do mundo segrego abelhas de esperma, a luz do
mar onde teço corpos de água, a escrita que vem da treva, lembro-me: um corpo voltou a
mover-se no interior do meu” (M, p. 12). O traço estruturador da poesia de Al Berto constitui-
se pela e na necessidade de pensar como o sujeito se coloca diante do poético e de como se
constitui como sujeito poético, frente à linguagem, à literatura, à cultura, ao mundo e à própria
poesia. Ciente de que o sujeito não é uma condição a priori, mas que se perfaz nos
discursos sobre si, o poeta estabelece como eixo dessa subjetividade a sua condição
homossexual. Assim, ela torna-se a via escolhida para percorrer o rumo de afirmação de uma
identidade poética, ao mesmo tempo em que é a forma que o poeta encontra de promover uma
143
hermenêutica do mundo e dos paradigmas culturais, usando os recursos da lirismo para
renunciar à individualidade e objetivar o “eu”.
O mais intenso nessa questão diz respeito justamente ao fato de que são tais
emanações que proporcionam à escrita, que ela está condicionada a expressão/expulsão
desses “sumos” poéticos. Isso gera a consciência de que a escrita se encerra no corpo e
somente por ele pode existir, não havendo, portanto, uma cisão entre o ato corpóreo de
escrever e a expressão poética da linguagem, sabendo que não escrita sem a localização do
próprio corpo como origem desse dizer, como visto em Pessoa-Álvaro de Campos, por
exemplo. Entretanto, embora pergunte-se sobre a utilidade de escrever e sobre o que implica
uma “existência de papel”, o sujeito poético reconhece que sem a escrita o corpo é vazio, é
ausência, composto de uma falta essencial que mais que impedir de dizer o corpo, silencia o
próprio sujeito e pode até resultar na sua morte:
As canetas secaram, os lábios ficaram esquecidos não sei onde. As borrachas
não apagam a melancolia das palavras. A escrita que inventamos evadiu-
se do corpo. O vazio devora-nos. Onde estivemos este tempo todo?
Voltaremos a encontrar e a tocar nossos corpos? (M, p. 12)
A escrita, pois, se faz no plural, na medida em que nasce da tensão entre Al berto e
Alberto, que escutam o que seus corpos dizem, apagam-se da memória e constatam que o
podem esquecer-se, já que sendo o mesmo, fundando-se numa ubiqüidade autoral e subjetiva ,
estabelecem um jogo de espelhamento e reflexo entre si, no qual não se sabe quem é reflexo,
quem é espelho, quem ou o que é imagem ou sujeito que se reflete, visto que a deriva
identitária tem termo justo pela “coincidência suicidaria” a que estão submetidos. A arte que
passa a viver de vida própria, a que alude Régio, não pode dispensar o sujeito da autoria,
mantendo-se vinculada a ele para poder existir.
O corpo, inclusive, constitui-se numa concretude pela certeza de que nele reside a
memória, elemento que alinhavará, junto à questão homoerótica e o enigma da construção dos
sujeitos, toda a obra de Al Berto. O jogo entre lembrar e esquecer, memória e reminiscência
144
se perfaz em “atrium como forma de estabelecer os vínculos entre um passado e um presente
que se constrói na presentificação daquilo que é narrado no poema. Mais que uma sensação da
mente, a memória é sensação do corpo que escreve, uma necessidade que se apresenta ao
sujeito:
para sobreviver à noite decidimos perder a memória. cobríamo-nos
com musgo seco e amanhecíamos num casulo frio, perdidos no tempo. mas,
antes que a memória fosse apenas uma ligeira sensação de dor, registámos
inquietantes vozes, caminhamos invisíveis na repetição enigmática das
máscaras, dos rostos, dos gestos desfazendo-se em cinza. escutamos o que há
de inaudível em nossos corpos.
era quase manhã no fim deste cansaço. despertava em nós o vago e
trêmulo desejo de escrever.
passaram doze anos e esquecer-te seria esquecer-me. repara no
estremecimento do sangue, a morte rendilhando peste nos ossos, os dedos
paralisados, a fala, os espelhos. (M, p. 11)
Esse espelho, tema recorrente da poesia albertiana, evoca o mesmo e simultaneamente
em que cria o seu outro; executa a cópia e a colagem entre os dois sujeitos, porque sabe que a
origem e a localização mnemônica e histórica que comparecem a seu texto. Para isso, a
enumeração de fatos vai sendo apresentada como uma narrativa em que as suas experiências
cotidianas são relacionadas, a fim de serem rememoradas, lembradas, não esquecidas. O
próprio aspecto testemunhal do poema promove a memória como procedimento narrativo:
não como rememoração e lembrança, somente, mas como, sobretudo, reminiscência. O texto
recuperado pelo procedimento da memória aponta para todo o arcabouço cultural, literário,
musical, das experiências escatológicas, do ato da escrita, que convergem para o ponto em
que só a memória pode dar sentido e permitir que o texto seja construído.
Num outro sentido, percebe-se que esta memória comparece no texto sob formas
preliminares, previstas por Bergson (BERGSON, 1990), ao discorrer sobre as relações da
memória com o passado e o presente e de como esta interfere no processo de representações.
Para este, a memória, como conservação espiritual do passado, é uma força espiritual prévia
que se opõe a substância material, seu único limite; a matéria seria a fronteira com a qual o
145
espírito poderia enfrentar e o levar ao esquecimento, bloqueando o curso natural da memória,
que teria "uma função prática de indeterminação (do pensamento e da ação) e de levar o
sujeito a reproduzir formas de comportamento que deram certo”, como indica Ecléa Bosi
(BOSI, 1987, p. 10-11).
Para Bergson, duas memórias estariam em jogo sempre: uma de características
notadamente motoras, balizada pelo corpo como morada de esquemas de comportamento, de
repetições de gestos, palavras e atitudes, que compõem o nosso adestramento cultural. Trata-
se da memória-hábito, adquirida pelo esforço da atenção e pelas exigências da socialização,
necessárias a existência e sobrevivência dos sujeitos modernos (“as paisagens sucedem-se
semelhantes às que conheço desde a infância) (M, p. 12). Oposto ao tipo de memória
trabalhado até aqui, tem-se um outro que parte do pressuposto de que lembranças são
apartadas de quaisquer hábitos, isoladas, singulares e verdadeiras enquanto forma de se
reviver o passado. A imagem-lembrança funciona como a consciência de um momento único,
ímpar e individual, de caráter evocativo, calcado no passado. As lembranças do sujeito
poético que se expõe no poema em questão colocam-se entre estas duas perspectivas
mnemônicas, uma vez que tanto se remetem ao processo cultural da escrita, quanto a
consciência do irrepetível que se fixa na memória e que gera, também, o poema
13
.
Agora, em “Equinócios de Tangerina”, tem-se a exposição do descentramento do
sujeito, percebido aqui na leitura de “atrium”. O sub-título constrói-se em torno da palavra
“equinócio”, momento em que o sol percorre no sentido do comprimento a linha do Equador,
dividindo exatamente o dia em duas partes de duração idêntica. A norturnidade assente à obra,
a que se refere Fernando Pinto do Amaral, parece nesse poema ser submetida a um equilíbrio
com outros aspectos mais diurnos. Entretanto, só se afigura na ordem da tentativa, visto que o
13
Faz-se necessário destacar que aqui se toma a obra de Al Berto em sua perspectiva poética, não se querendo,
portanto adentrar uma discussão a respeito dos gêneros textuais implementados pelo poeta e se balisando, para
tanto, na própria afirmativa do poeta: “isto não é um romance”, o que parece indicar o rumo interpretativo
pensado pelo poeta.
146
processo de escrita em si, no sujeito enunciador, ocorre durante a noite ou a madrugada,
momentos em que se somam à solidão e à melancolia, o consumo das drogas e o apreciar de
grupos musicais indicadores de uma cultura urbana depressiva e introspectiva, como Joy
Division e Velvet Underground, ou a leitura de Bourroughs, Rimbaud, Genet e Mallarmé.
A incidência de uma cultura considerada underground e marginal sobre Al Berto
torna-se flagrante, justo porque ela se constrói numa perspectiva noturna, momento em que
pode aflorar da condição silenciosa em que vive durante o dia.
Intencionalmente o poeta aqui apresenta Tangerina (alusão ao grupo de rock
progressivo Tangerine Dream), Nervokid e Nému, envoltos num vapor que indefine os
limites entre si. Concomitante a esse “surgimento”, está a criação de uma ambiência capaz de
criar condições para a vinda dos personagens, ambiente este proporcionado por uma
atmosfera lisérgica. O longo poema, de aspecto narrativo, vai sendo alinhavado pelo verso
anafórico “um vapor lilás imenso e transparente” e suas variações, que parecem indicar uma
gradação que culmina no aparecimento de todos os personagens, que vão se descolando de
um “espião, um depredador de noites e solidões alheias” (M. 15), que transmuda-se em
milhares de máscaras, dentre as quais estão as de Tangerina e Nervokid:
um vapor lilás imenso e transparente
as paisagens sucedem-se semelhantes às que conheço desde a
infância. o acido vôo é translúcido e mole, afia a memória, vai a lugares
insuspeitos, atinge remotas camadas do corpo e do pensamento. no início
tangerina é uma flor branca, nasce do corpo e nele se alimenta e envenena.
nele vive e cresce lentamente, transborda, sufoca e morre. morre.
alguém loiro, esbelto, como um bife apimentado. colarinho mole,
usado, pescoço liso, sem fios de ouro nem pedrarias. dedos esguios, serenos
gestos delicados, quase esquecidos por ninguém os olha. é Nervokid, é
Tangerina ou Nému, perdendo-se na sombra do restaurante. (M, 9. 16)
Al Berto constitui-se como um dos poetas que tem como forma de percepção do
mundo a própria identidade sexual, reveladando em sua escrita todas as múltiplas
subjetividades que sustentam a existência homoerótica; o outro, ao expor do corpo suas
147
particularidades, procede à realização de um Eros notadamente homossexual. Investe na
deriva de uma identidade masculina, que ora tende ao resgate da estrutura de gênero
tradicional, ora estabelece esse novo ser desejante de um igual, ora vaga por novas
identidades, quase femininas, a emanarem de si; conscientes dos jogos da alteridade, perfazem
o caminho da nova identidade homoerótica,:
invento-o e mordo-o, como sempre fiz. Esfrego o sexo nas palavras, meto-lho nas
mãos sujas da literatura, viro-a, enrabo Tangerina ainda mal acordada no fundo da
memória. (M, p. 18)
(Nervokid nasceu da insónia, Tangerina do silêncio da alba e eu sou a fusão viva
dos dois. (M., p. 24)
Em alguns momentos parece evocar um roteiro de cinema cujo tema é a própria vida
do sujeito poético, encenada aparentemente, num espaço fora de Portugal, em função das
várias referências lingüísticas ali colocadas. Esse fato aqui parece relevante uma vez que à
proporção que os poemas de Al Berto tornam-se localizáveis” em termos de toponímia
(Lisboa – Horto de Incêndio; Quinta de Santa Catarina / Sines Salsugem) tais figuras vão se
amiscuindo no texto, até “desaparecerem”, só retornando em Lunário, cuja datação e
contextualização dentro do todo poético parece indicar que foi produzido em algum momento
dos anos setenta e oitenta, visto que imagens ali recorrentes são facilmente localizáveis nos
poemas compreendidos entre 1974 e 1985, segundo a leitura de Manuel de Freitas. Isso tende
a revelar as Transumânsias a que alude o poeta, em função das constantes mudanças de casa,
de corpo, de identidade ou de subjetividades. A deriva, portanto, é um traço constitutivo e
revela vários sentidos no interior da obra, como se pode perceber, o indicando o fato de
que o poeta deriva em sua subjetividade, como também aponta uma deriva da escrita e das
redes de significação que engendra.
Mais uma vez ocorre a consciência de uma alteridade que se demarca na escrita, já que
o primeiro “personagem” apresentado, (Nervo)Kid, embora oportunamente no poema seja
identificado com a voz enunciadora, está claramente sendo focalizado de fora, por um efeito-
148
câmera proporcionado pela narrativa poética e marcado textualmente pelo uso do itálico na
reprodução de suas falas. Essa diversidade de identidades assumidas e tematizadas no interior
do poema será uma especificidade do primeiro livro de Al Berto. Diferentemente de Pessoa,
essas vozes começam e terminam dentro de um único poema, não se espraiando pelo obra.
Assim, a “morte” de Nervokid e Tangerina se dão no interior mesmo do longo poema. A
recorrência do verso “um vapor lilás imenso e transparente” indica justamente esse desdobrar
de subjetividades, como também indicará a reunião daquilo que estava disperso: o poema
finda com a expressão “um”, isto é, a convergência de todas as scaras, para a
idealização/realização de uma unidade possível para sujeito:
um vapor
Tangerina, sem gomos nem miolo, sem caroço, a esvaziar-se das palavras
em labirintos e travessias complicadas. mares, ventos, borrascas, cidades,
luzes, eclipses, corpos, é nas sarjetas da noite que tangerina... bye bye, nos
esgotos que Nervokid adormeceu. e eu, outra vez vivo, sem memória,
escrevo.
um (M, p. 29)
Num dos artigos que compõem o conjunto teórico em que versa sobre as questões em
torno da “Literatura Viva”, intitulado “Da Geração Futurista” em que contempla justamente
os membros de ORPHEU, gio alude ao fato de que essa geração demarca-se pela
“tendência vincada e confessa para a multiplicidade de personalidade”, característica
considerada por ele tutelar na diferenciação da arte moderna daquela até então produzida e
por ele considerada “livresca”. Ainda que Al Berto não tenha investido, como Fernando
Pessoa, na criação de personalidades poéticas distintas, ele por si configura essa
“dispersão” referenciada por aquele crítico, que aponta o desdobramento do corpo de
Alberto em Al Berto. Além disso, as vozes poéticas que se enunciam como personagens
associados à identidade do sujeito poético, que com o poeta compartilham a experiência
sexual, artística ou autoral são indicadoras do “rodopio do Poeta sobre si próprio, confusão da
sua verdadeira personalidade com as suas semiatitudes, naufrágio na dispersão, na
149
incoerência, no delírio” (RÉGIO, 1977, p. 27), palavras que Régio utiliza para ilustrar o que
de vivo havia em Sá-Carneiro, mas que poderiam ser tranquilamente aplicadas à leitura de Al
Berto e de sua obra.
na obra de Al Berto um constante gesto metalingüístico, de reflexão sobre a
própria escrita e sobre a literatura, aliada do jogo de multiplicação de identidades, num
primeiro momento; posteriormente, nos poemas mais recentes, relacionado à própria
existência como sujeito: escreve para manter-se vivo ou para que a sua escrita sobreviva à
morte do autor. A escrita é a condição de sua existência, já que o sujeito, em Al Berto, “é” no
corpo que escreve, está na escrita que brota do corpo e de seus fluidos.
Em Régio, a linguagem era um mal necessário, a qual se recorria para expressar aquilo
que poderia ser dito, mas que ficava a dever ao inexprimível, ao que não poderia ser nomeado,
dito. Al Berto tem a noção de que a escrita é algo que circula no corpo, necessária à vida e a
ela intimamente ligada. Os textos são incuráveis porque surgem num corpo doente,
contaminado por aquilo que precisa ser dito e que não cessa jamais, que tudo é material
para o poético, afirmando essa poética do cotidiano que marca sua poesia:
sempre tive medo quando começo a escrever. o sangue, o ranho, o suor,
têm verdadeira dignidade de tinta. tenho medo de aperceber a nódoa de tinta
permanente presa aos dedos, como se fosse um sinal indelével de doença
incurável, vertiginosa. medo das feridas que alastram pelo interior do corpo,
invisíveis, incuráveis como os textos. (M, p. 19)
A função da escrita na poesia de Al Berto é outra das várias questões que
constantemente levanta, assim como seu papel como poeta. A única certeza é a de que escreve
para viver e que na escrita está a sua única forma de vida. Entretanto, sabe que a escrita
adoece, mata o corpo que não escreve, da mesma forma que mata o que escreve. É um drama,
portanto, saber que só sabe escrever, não tendo outra função ante a vida:
detesto escrever. não sou escritor pertencendo a qualquer turva academia de
café. faço mais nada senão escrever e não estou a preparar as mortais obras
completas. vegeto por dentro da minha escrita. assumo a produção e a gestão
150
do meu próprio lixo. de qualquer maneira sei escrever não sei fazer mais
nada. (M, p. 44)
Aqui se revela em Al Berto o outro aspecto que permite vinculá-lo aos ideais da
“Literatura Viva”: o medo de ser absorvido pela “turva academia de café”, que o tornaria,
portanto, pertencente a um cânone literário do qual talvez não tenha querido fazer parte.
Régio, em “Literatura Livresca e Literatura Viva” e “Classicismo e Modernismo”
denunciava o academicismo que imperava na literatura, absorvendo somente aqueles autores
vinculados a uma corrente específica ao mesmo tempo em que transformava tais artistas em
“apenas um caso literário”.
Al Berto, fundando-se numa originalidade que seria vista por Régio como um dado
positivo a sua obra, nega a escrita que se constrói no ideal de grupos específicos que
determinam que rumos a arte deve tomar. Detesta escrever? Talvez deteste, sim, a escrita
“escolarizada” de determinadas correntes e grupos, dado este perceptível no fato de que em
toda a vida literária do poeta, nunca esteve presente em nenhum grupo de poetas ou
movimento específico, tendo organizado em companhia de Rui Baião, a antologia Sião, de
que não fez parte como poeta. Régio caracterizava a “Literatura Livresca” como literatura de
literato: da pantufa e manta nos joelhos (RÉGIO, 1977, p. 54).
Joaquim Manuel Magalhães, ao distinguir a poesia de Al Berto do que vinha sendo
publicado e lido, dizia que não era destinada aos senhores em férias, como dito. Ambos
aludem ao fato de que a não vinculação dos poetas aos valores epocais é capaz de dar-lhes
independência frente ao modelo estético vigente, sendo, por isso, incômodos a alguma parcela
do universo de leitores. Al Berto seria “Literatura Viva”, hoje, justamente por isso: representa
a individualidade artística, em todos os sentidos do termo, ao ter como resultante estética
justamente o fato de apresentar um estilo seu, espontâneo e dinâmico.
151
A obra de Al Berto é pontuada por alusões claras, ou não, à poesia de Rimbaud,
Mallarmé, Gide, dos poetas da geração beatnick norte-americana, sem contar às alusões à
poesia de Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, em “Três Cartas da Memória das Índias”, por
exemplo. Além da influência poética, colocam-se muitos desses autores como personagens
que cruzam seus poemas, como o caso de William Burroughs (Willy B, de “A Sombra de
Willy B” / “Teus dedos de noite açucarada”).
Harold Bloom, em A angústia da influência (1991), livro dedicado ao estudo das
relações intertextuais, de influência e de leitura promovida entre os poetas de diferentes
épocas, pontua que tal processo é parte do ciclo vital do “poeta-como-poeta”, ou seja, parte de
sua formação como artista que reconhece em sua obra a contaminação estética ou estilística
de outro poeta. Tal influência não acarreta a diminuição da originalidade, mas, pelo contrário,
fortalece o caráter particular de sua poesia. Para tanto, cria a teoria do “poeta forte”, que é
justamente o poeta influenciado na sua persistência em combater seus precursores, deslendo-
os a fim de criar seu espaço próprio. (BLOOM, 1991, p. 33).
Considerando que os poetas são antes de tudo leitores, cuja especificidade os
diferencia de qualquer outro leitor, mesmo dos críticos, Bloom declara que:
Os poetas não são leitores nem ideais nem comuns, nem arnoldianos, nem
johsonianos. Quando lêem, não tendem a pensar: “isto é morto, isto é vivo
na poesia de X”. Os poetas, à medida em que se tornam fortes, não lêem
mais a poesia de X, porque os poetas realmente fortes são capazes de se
ler a si mesmos. (BLOOM, 1991, p. 49)
Emblemática, nesse caso é a postura de Al Berto a esse respeito:
às vezes, escrevo coisas assim, unicamente para ter o prazer de me
reler. saborear o que sobejou da noite, duma realidade qualquer, talvez para
avaliar o meu próprio lixo e amar-me um pouco mais. outras vezes, modifico
essa realidade, emendo-a, sublimo-a, rasgo-a, expulso-a da memória.
descubro que sou o meu primeiro leitor. (M, p. 16)
Além da marca narcísica e de autocentramento do sujeito, soma-se a isso a alternância
de subjetividades, a de autor e a de leitor, tencionado e dialogando, na leitura de próprios
152
poemas, ainda que a sua escrita seja aquilo que de si é descartado, lixo, num processo claro de
autocensura, proporcionada por esse jogo de alteridades. Aqui, Bloom e Al Berto podem
estabelecer um claro diálogo, na medida em que o poeta executa exatamente o que o crítico
propõe: a leitura contínua de si mesmo e a própria revisão como intelectual e com poeta.
Al Berto, ao referir-se ao imoralismo de Gide, à morte de Rimbaud, ou mesmo de
maneira transversal a Pessoa e a Camões, promove a desleitura da influência que todos esses
poetas têm sobre si ao naturalizá-los, transformando-os em temas e personagens de seus
poemas, diminuindo assim a força que teriam enquanto “modelos”. Ao tranformá-los em
objetos de sua poesia, submete-os a sua manipulação como poeta, ao mesmo tempo em que
toma para si aquilo que estes poetas lhe trouxeram, revisando os paradigmas poéticos de
forma a adaptá-los a sua realidade poética. Por outro lado, o fato de estar impresso à poesia de
Al Berto tais influências, que não se revelam necessariamente com o grau de angústia
apresentado pelo crítico norte-americano, faz com que se tenha hoje a dimensão adequada de
sua poesia, justamente pela valor que estas influências representaram para sua formação como
poeta, da mesma forma que altera a visão que se tem dos poetas-influência.
A localização desses poetas no interior da obra de Al Berto provoca, em conseqüência
disso, a mudança na forma como suas obras são abordadas, provocando uma contra-
influência, ou seja, o poeta homossexual, da deriva do sujeito e da escrita do corpo altera a
forma como se os poetas seus anteriores, visto que tais aspectos passam a constituir uma
chave de leitura de suas obras. O poeta, pois, “resolve” a questão tornado a influência natural
e assim, imperceptível em sua obra.
Rimbaud, Mallarmé, Gide, por exemplo, foram autores considerados vivos por Régio
não pelo reflexo de suas vidas em suas obras, como também porque foram renovadores da
arte que fizeram, não porque representavam necessariamente uma influência a ser perseguida
em arte pela sua geração. Não que este crítico considerasse, em tempos de Freud e Marx,
153
que o artista fosse algo totalmente independente do contexto cultural em que vivia, visto que
tal “liberdade” era impossível de ser alcançada. Régio tenderia a propor justamente que tais
poetas constituem textos inscritos na história cultural européia, mas que nem por isso deverão
ser seguidos à risca, já que dados como originalidade da obra e sinceridade do artista
independe das influências que têm. Nesse sentido, Al Berto retomaria o ideal presencista na
forma como procede a relação com suas supostas influências, admitindo-as como pertinentes
à sua poesia, mas superando pela revisão que delas faz.
Na poesia de Al Berto
14
vê-se o coroamento de uma nova maneira de ser homem, uma
nova masculinidade, uma nova subjetividade, bem de acordo com os novos anseios de novos
sujeitos, que se não dizem os nomes, dizem a própria sexualidade, dizem o homoerotismo e
dizem o desejo pelo corpo igual, espelho em que se navega, como diria Renato Russo.
Destaca-se nessa nova poesia, justo por que engendra em sua escrita poética o trabalho de
apresentação e construção dessas novas identidades aqui aludidas. Esse poeta opera no sentido
de retornar às imagens tradicionais do masculino, dando-lhes as diversas dimensões que a
subjetividade homoerótica pode assumir na modernidade.
Al Berto se situa numa perspectiva em que o homoerotismo aparece como experiência
que antecede à escrita; é uma condição da produção literária deste poeta e prosador. Esta
estratégia de gênero funciona como a entidade geradora de sentidos em sua obra. O corpo,
palimpsesto vivo, é o texto do desejo e da identidade de duas existências plenamente pautadas
no universo homoerótico e onde continuamente se reescrevem. Os sentidos silenciados em
tantos outros, neste autor se mostram evidenciados numa escrita que é o próprio silêncio dos
sentidos, mas que de forma alguma é a ausência de significação:
a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
14
Tais aspectos podem ser percebidos ainda que mais sutilmente na produção poética de João Miguel Fernandes
Jorge, Paulo Teixeira, Guilherme de Melo, Luís Miguel Nava, dentre outros.
154
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada
esta paixão pelos objectos que guardastes
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos
espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu persegui teu rasto de esperma à beira-mar
outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo (p. 252)
No dizer de Fernando Pinto do Amaral, a escrita de Al Berto estaria situada numa
"tradição do interdito como fundamento do impulso erótico", e talvez, além disso: na
categoria da transgressão que a sua geração, aquela dos expatriados pelo regime salazarista e
silenciados no seu ser por uma política e por uma realidade social que não admitia o diferente,
teve que propor para sobreviver à estrutura política que a cercava. De outra forma, Al Berto,
ao surgir como autor num momento em que as estruturas do regime salazaristas estão
caducantes e uma nova experiência se instala, inaugurada pela Revolução dos Cravos, precisa
transgredir com as interdições discursivas e com os discursos recorrentes, para que sua poesia
possa existir; mais do que isso: sua poesia é a própria transgressão de todos os interditos
sócio-históricos e com certeza com os literários também.
Ao lado de um retratar do universo homoerótico e de todas as suas nuances, Al Berto
submete-se ainda a uma postura profundamente iconoclasta e por muitas vezes niilista, ao
abordar de maneira notadamente pessimista o seu macrocosmo - o seu país - e seu
microcosmo: o mundo guetificado da homossexualidade. O seu país já não é o das grandes
navegações, nem o dos barões assinalados camonianos; nem o seu amor, o amor romântico,
mas o sentimento em crise, fragmentado.
(...)
eu vi
a sereia de plástico construir um país
e um veleiro para se evadir na direcção de outras ilhas
levando por bagagem os detritos dados-à-costa: garrafas brancas de gin nocturno
sapatos inchados panos preservativos usados cacos de louça embalagens
155
carcomidas cartões de caixas ao vento velas de imensa jangada vestígios de comida
rápida pentes vidros filmes madeiras fotografias que o tempo recusou morder
e navegou
navegou demoradamente conheceu a sede e a fome
o frio a neve de flutuantes ilhas a alucinação
eu vi
a sereia embriagada abrir garrafas de cerveja com os dentes
e oferecer flores envenenadas aos amantes
dobrada sobre as dores da velhice deixava-se cair
na vertigem fortíssima da aguardente
roía as unhas e a ferrugem dos brinquedos
desenterrava da memória colheres delirantes
restos de rostos carbonizados
areias cobertas de ouro e de peçonha
eu vi (M, p. 86)
O autor de “Equinócios de Tangerina’ traz ao seu texto sempre um universo onde as
relações são passageiras, circunstanciais, porém não menos prazerosas, somadas a uma cidade
e a um país que beiram o caos, o esfacelamento, onde os paradigmas sociais e míticos não
correspondem à realidade, mas são a seu modo revistos e destituídos. Sua preocupação com a
exterioridade e seu sentimento de mal-estar no mundo, lembrando em alguns momentos o tom
camoniano, leva-o a repensar a relação de amor entre iguais. O mar são restos de uma
existência grandiloqüente; a Vênus condutora, uma sereia de plástico qualquer; os homens
modelo de masculinidade, fugidios rapazes de programa; os amores inexistentes, compensam-
se na experiência dos engates realizados à beira do cais, nas praias, nos mares.
O corpo, como nos indica Foucault, é constituído pelos discursos existentes sobre ele.
Al Berto tem justamente na experiência corpórea o sinal motivador de sua escrita. E esse
corpo, transpassado de História e memória, reclama para si um sujeito capaz de buscando as
experiências que o combustíveis da sua vivência, restabelecer o discurso possível sobre o
corpo homoerótico ligando-se ao passado. O corpo de Al Berto é aquele exposto em suas
entranhas e nas suas excrecências, virado do avesso pelo mar, pelas ondas, pela tempestade,
marcado pelas cicatrizes da memória. Corpo com órgãos que explodem da interioridade para
o estabelecimento de uma existência que tem por necessidade expandir-se para além daquilo
que o sujeito consegue balizar. Diferente de Pessoa, cujo dizer poético perpassa sempre uma
156
questão ontológica que muitas vezes silencia a própria identidade, o poeta agora discutido faz
justamente desse questionamento aquilo que estabelece a sua perspectiva identitária. O mar de
Pessoa, onde os desejos do sujeito se revelam, agora é a máscara que traveste o poeta, que o
faz por trás das ondas que rebentam ligar-se ao mundo, como o próprio diz em Salsugem:
o mar arrasta
depois atira o corpo para fora do sonho que me roubou
e a noite
a violenta noite das marés arremessa contra a cama
velhas madeiras restos de vestuários pedaços de corpos
envoltos em coral... rostos
órgãos corroídos pela ferocidade dos peixes (M, p. 303)
Em Três Cartas da memória das Índias, particularmente, tem-se exatamente essa
encenação. Tomando a memória cultural e histórica como ponto fundador, o poema, de
caráter eminentemente narrativo, é construído em torno de três cartas, endereçadas a três
diferentes interlocutores: a mulher (“Carta da Árvore Triste”), ao pai (“Carta da Região mais
Fértil) e ao amigo (“Carta da Flor do Sol). A primeira das três cartas que compõem o tríptico
é antecedida pelo poema “Lápide”, em que o sujeito poético, à moda de Machado de Assis em
Memórias póstumas de Brás Cubas, fala de si mesmo como um morto, mergulhado em
infernos que o consomem e de onde brota a escrita, resultado de uma experiência da qual nada
resta, a não ser aquilo que pode ser transformado em poema.
O tom do poema prenuncia a lamentosa descrição do cotidiano ao lado de uma
mulher cuja identidade flutua entre uma clara identificação como mãe e outra, como mulher
com quem o sujeito poético esteve envolvido. Os signos aplicados à descrição da mulher
são notadamente negativos e tendem a revelar as razões pelas quais o sujeito parte,
abandonando-a, em busca de “ver se ainda existem Índia por descobrir” (M, p. 387). Fica
clara a falta de afeto que cerca a relação entre ambos e a necessidade de distanciamento do
sujeito, já que ela não possui aquilo de que precisa para a própria existência:
Olho as fotografias de antigos desertos
Corpos coerentes que fomos
157
Bocas de papel amarelecido
Onde a sede nunca encontrou sua água
E às vezes ainda tenho sede de ti
Mas na vertigem da viagem o coração galopa desordenamente.
(M, p. 83)
Frise-se o fato de que o enunciador alude à coerência de seus corpos, mas indica a
seguir que isso é apenas uma imagem de um passado que quer abandonar, prenunciando o
que vai expor na terceira carta, ao amigo. A perda dessa equivalência entre os corpos denotará
a mudança do foco do seu desejo, ainda que ela ainda lhe faça falta física e não erótica, visto
que somente a metonímia do corpo do sujeito, a boca amarelecida (“ainda tenho sede de ti”),
deseja reencontrá-la, ainda sim, por uma necessidade física, a sede.
No segundo momento do poema, “Carta da região mais fértil”, destinada ao pai, o
sujeito fixa-se na recorrência clara à uma memória cultural positiva, marcada na figura do pai,
opondo o lugar ocupado pelo pai, lento, “aonde o tempo custa a passar” (M, p. 391) à sua
aflição “com a velocidade desse mesmo tempo”, novamente acentuando a distância, o
afastamento entre os dois sujeitos, separados pelo tempo, pela memória, pelo convívio e pelos
afetos. A falência de sua relação com a mulher/mãe fica acentuada no testemunho da
resistência que sente pela vida cotidiana, ao mesmo tempo em que reitera um crescente ódio
pela vida cotidiana que junto a ela levava e a crise deflagrada por não conseguir amá-la. A
existência de uma outra possibilidade afetiva, em companhia de um amigo, mostra-se como
compensação àquela vida afundada na loucura, na solidão, elementos que motivam a fuga do
sujeito poético, seja para um país que ainda não tem nome, seja para uma outra realidade,
onírica, dentro de si ou em um outro: “mas é certo que arranjei outras compensações / a
amizade segura de um amigo” (M, 392).
O sujeito poético consciente de que a compensação a que se entrega estará submetida
às interdições a que um relacionamento, na ordem da “segura amizade”, está; aqui tem início
o longo trecho testemunhal em que o sujeito confessará o desejo homoerótico, sublimado,
158
porque interdito pela lógica familiar, social e cultural.
Talvez seja melhor não revelar grande coisa sobre este assunto
Poderia chocar o pai por demasiado íntimo e delicado
Duvido mesmo que conseguisse entender a amizade como eu a entendo que
quer
Sempre gostei da travessia das noites e das pessoas (M, p. 392)
Essa travessia talvez seja a grande questão que alinhave o longo poema em três partes,
que ela tende a indicar o processo ao qual o sujeito enunciador está submetido: precisa
atravessar a memória do passado histórico, indicado no titulo; atravessar a estrutura de gênero
marcada nos homens que construíram esse passado e, por último, atravessar a fronteira da
subjetividade, para aí sim constituir-se, ao nível do discurso, em sua homossexualidade.
Toda a terceira carta versará sobre a confissão do sujeito ao seu amigo, a quem revela
o desejo especial que o toma, mas que, no entanto, ficará abandonado, já que não há um lugar
certo para a vivência desse amor. Daí que opte por partir, ir para longe “muito longe desta
inocente memória das Índias”. O poema, nesse ponto, abre a uma outra questão acerca dessa
identidade que aos poucos nele se coloca: a inocência da memória indica, como possibilidade,
a clandestinidade das relações a que os descobridores estavam envolvidos, intercursos estes
não narrados e não fixados como discurso na imagem que se tem das navegações e dos
navegantes. A inocência está justamente no fato de que a busca por “sinuosos mistérios da
seda e da pimenta das grandes rotas” (M, p. 406) talvez também engendrasse relações
amorosas que não se tornaram memória, não foram inscritas nos corpos dos navegantes.
Cada uma das cartas, ainda, é antecedida por uma epígrafe/citação de Francisco Pyrard
de Laval, navegador e explorador francês do século XVII, em que se descreve brevemente
aspectos das Índias Orientais: uma árvore que floresce à noite, relacionada à mulher; a
abundância de uma determinada região, relacionada ao pai; e, por fim, outra árvore, a da flor
do sol, cuja beleza e especialidade são ímpares e que, não gratuitamente, remete-se ao amigo.
As três descrições feitas pelo navegador francês, na economia do poema, tende a revelar a
159
especificidade dos conteúdos das cartas que introduzem, assim indicando na última a sua
especificidade: é uma carta de confissão amorosa, de explicitação do desejo homoerótico, em
que as memórias vêm para acentuar o sentimento de perda e afastamento do corpo do amado.
Os diálogos entre fotografia, cinema, pintura, música e poesia constituem outro traço
de força na obra do poeta ora discutido. A cultura underground do final dos anos 60,
associados a pressupostos contraculturais dos anos 70, como o movimento punk, por
exemplo, irão contribuir para que Al Berto componha uma genealogida de poetas tidos como
malditos ou marginais. A tematização das transgressões sexuais, do consumo de drogas, da
atitude pessimista e o senso de desterritorialização comporão um quadro que orienta boa parte
da obra do poeta, pelo menos até Salsugem, quando acontece uma mudança de rumos,
passando a priorizar, por exemplo, a reconcepção de elementos comuns da Literatura
Portuguesa, como o mar e as navegações. Por outro lado, um investimento profundo na
sensorialidade, sobretudo naquilo que pode ser apreendido pelo olhar, elemento esse
perceptível desde push here com uma Polaroid”, Trabalhos do olhar e “paulo nozolino / 4
visões. two friends e uma paixão” e que se perpetua em Secreta Vida das Imagens, todo ele
composto por poemas ecfrásticos, dialogantes, portanto, com quadros de Kandinsk, Klee,
António da Costa, Modigliani, Andy Warhol, dentre outros.
Os anos oitenta marcam também, em termos de uso da linguagem, a concepção de
poemas mais orgânicos no nível da expressão, em que diminuem as enumerações, as
construções em abismo, a criação de palavras e a recorrência a outras línguas. Da mesma
forma, opta-se pelo aprofundamento das questões que cercam o sujeito e a sua existência
como poeta. Nessa fase, pode ser percebida uma constante recorrência ao corpo como lugar
de onde nasce a escrita, imagem de certa maneira recorrente desde À procura de um vento
num jardim d’Agosto. As subjetividades, múltiplas até então, vão sendo substituídas por um
desejo de querer constituir uma unidade para si.
160
Os anos noventa são a fase em que, estando o autor acometido pela AIDS, se
intensificam no poema às recorrências à morte, à loucura, à escatologia, assim como os
elementos autobiográficos, como a alusão à doença que consome o corpo, tornam-se cada vez
mais constantes:
VESTÍGIOS
noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenavamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas – noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras (...) (M, p. 578)
SIDA
aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem – partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior de uma inútil dor muda
voraz (...) (M, p. 592)
A fusão entre realidade e ficção, entre obra de arte e vida do artista, aqui aludida,
geralmente aponta para a esteticização da vida. No caso de Al Berto, os limites entre
verossimilhança e verdade, realidade e ficção sempre são duvidosos, visto que no correr de
quase trinta anos de produção poética a ficcionalização da própria vida sempre foi uma tônica.
A experiência de exílio, por exemplo, focalizada nos poemas de À procura de um vento num
jardim d’Agosto a O mito da sereia em plástico português se situa sempre entre os dados
biográficos, a metaforização e a ficção sobre si mesmo, não dando margens ao
estabelecimento de quaisquer limites precisos. O mesmo acontece em Quinta de Santa
Catarina (1978/79) e “quinta de santa catarina fragmentos de um diário” (1979/80)”, em
que a clara referência ao local de sua infância é acompanhada pelas referências aos encontros
sexuais de uma fase mais madura de sua vida. A grande questão da autobiografia é a relação
tempo-escrita, visto que o primeiro não pode ser completamente recuperado pela linguagem,
faltando-lhe sempre algum elemento capaz de vinculá-lo de forma mais intensa ao que
161
realmente foi vivido. A escrita, por sua vez, porque estratégia de representação, nunca será
capaz também de dar a completude do fato narrado, que tem por característica uma falta
essencial.
Clara Rocha, em Máscaras de Narciso, declara que o texto intimista / autobiográfico
ambiciona a fundação do sujeito através da escrita, ao mesmo tempo em que marca a
dispersão e a coerência do eu, em diálogo consigo e com outros (ROCHA, 1992, p. 27). Ora,
a poesia de Al Berto muito se calca na necessidade de, ao contrário de Pessoa, buscar uma
unidade possível para o sujeito, ao mesmo tempo em denota a sua fragmentação. A questão
autobiográfica na poesia de Al Berto é crucial, já que ao mesmo tempo em que parte à procura
da unidade perdida, cria vários outros sujeitos que vêm denotar a impossibilidade de, ao
dizer sobre a própria vida, dizê-lo por completo ou dizer toda a verdade. A autobiografia e o
diário têm, pois, um movimento ambíguo, porque obriga o sujeito a falar de si com o
distanciamento temporal de quem olha de fora, ao mesmo tempo em que torna o privado,
público e ficcionaliza a verdade, tornando-a verossímil com as vivências do sujeito.
Para Al Berto acontece o inverso do que se imagina: o trabalho poético não é
essencialmente um trabalho autobiográfico em vistas somente da coincidência entre sujeito
civil, Alberto, e sujeito autoral, Al Berto, ou ainda entre suas diversas “máscaras”: Tangerina,
Nemú, Nervokid, Kiki. O texto autobiográfico é resultado das “paragens”, do ócio, dos
momentos em que o “trabalho” com a poesia está em suspenso.
Outro dado a que Rocha alude é o fator contínuo que caracteriza a autobiografia, não
fragmentada pela cotidianização típica do diário, que parece transformar a vida em pequenos
fragmentos que aparentemente podem não ter um vínculo mais imediato, a não ser o fato de
narrar a própria vida. A autobiografia, por sua vez, constituir-se-ia como uma tentativa linear
de reconstituir o vivido, cuidando cumprir uma catarse necessária ao sujeito, até como revisão
de sua vida. Ela aconteceria ou porque o autor quer responder a uma expectativa do leitor,
162
mantendo o mito existente sobre si, ou porque tem como objetivo dar-se a conhecer,
revelando suas idiossincrasias. De qualquer forma, autobiografar-se visa também humanizar-
se e estabelecer um pacto com o leitor e buscar nele uma identificação, criar uma
exemplaridade.
Para Al Berto, tudo é mímesis, representação do que não é, mas sim daquilo que o
sujeito gostaria que tivesse sido; não revelação a ser feita, a não ser aquela que confunde o
leitor quanto às semelhanças em entre vida e obra:
escrevo-te para não me sentir só. risco a palavra capaz de revelar o meu
segredo. terei segredos? revelar o quê? se posso rir de mim mesmo sem que
isso me doa. apago rapidamente o texto que me reflete. esfaqueio o rosto que
me simula.
(M. 41)
Ainda que não se possa afirmar a interferência entre os dados biográficos por sobre a
poesia de Al Berto, é cito assinalar que é este mais um ponto de contato com ideal da
“Literatura Viva”, circunscrita no poeta agora referido na medida em que ao se pautar na
exposição poética de uma subjetividade que se confunde com a sua própria existência
biográfica, mostra literariamente a vida sendo exposta no texto enquanto tema e
procedimento. Régio afirmava que a vivacidade literária está na parte mais íntima do artista.
Por parte íntima entende-se aqui a individualidade, as motivações pessoais da escrita, a
coincidência entre elementos que constituem o sujeito poético e a própria vida do indivíduo,
como no caso da tematização da AIDS ou da questão sexual homoerótica, sobre as quais a
poesia de Al Berto se apóia.
Por outro lado, considerando que o conceito formulado na PRESENÇA é também uma
forma de tornar os textos legíveis e escrevíveis na tradição que constituem, no sentido de
Roland Barthes, Al Berto se colocaria sob esta perspectivação uma vez que tanto relê a
tradição cultural portuguesa quanto a reescreve, tendo o corpo erotizado como nova medida e
novo paradigma.
163
A “Literatura Viva” se torna perceptível na poesia de Al Berto porque nela observam-
se a encenação de muitos dos aspectos elencados por Régio no correr dos artigos que
compõem a doutrinação estética da PRESENÇA. O primeiro de todos eles, claro, diz respeito
ao domínio da vida e de sua relação com a Obra: vê-se no texto desse poeta uma necessidade
de o sujeito firmar-se em relação à vida e como ela prepondera na realidade da escrita. Assim,
tem-se uma escrita da vida, a tessitura de um texto em que ela se coloca para além da morte
do autor e do sujeito e se constrói como perpetuação da própria escrita - Tangerina, realizada
e sentida no corpo de Nervokid órgão genital do poeta, contato seu com a vida, via de
contato físico entre sujeito poético e mundo.
Outro local de convergência diz respeito à originalidade do artista e da obra. Talvez a
tese mais discutida da “Literatura Viva” relacione-se a esse aspecto, visto de todos é o que
mais se funda num dado subjetivo e dependente da leitura. Óbvio é o fato de que se a obra não
é um plágio, ela traz em si algum traço de acontecimento original. Mesmo o clássico de
Jorge Luis Borges, “Pierre nard, autor do Quixote”, fundamentado numa concepção
moderna de metalinguagem, já mostra como a obra de arte não é mesma, visto que a leitura, a
abordagem, as condições de produção do sentido são distintas do “original”, ainda que as
palavras textuais sejam as mesmas.
Afora isso, o recurso intertextual, subjacente em algum grau em toda e qualquer obra
de arte literária, põe em xeque o estatuto de uma originalidade absoluta ou de um
ineditismo temático mais estrito. Não se afirma aqui que não haja originalidade numa obra,
mas sim, o que se quer é relativizar o pensamento de Régio à luz de proposições teóricas que
lhe foram posteriores e que são necessárias para a compreensão de outro objeto cultural
deslocado no tempo, com relação à PRESENÇA, como é o caso da poesia de Al Berto.
As Teorias da Leitura e da Recepção, por exemplo, ao conferirem ao leitor papel
relevante na circulação e formulação dos sentidos do texto podem servir, agora, como
164
horizonte possível para ilustrar essa questão. Régio declara que original é o que provém da
parte mais íntima do artista, portanto, da sua subjetividade e dos arranjos que o constituem
como sujeito. Nesse sentido, toda obra de arte é original porque fruto da realização inventiva e
imagética de um sujeito que ocupa um determinado papel social que o aproxima da arte e que
a insere na história.
Por fim, deve-se dar relevo à constituição da estética pederástica”, marca estilística
que liga boa parte dos autores contemplados pela “Literatura Viva”. Percebeu-se que esta
noção tinha como base a vivência estética da homossexualidade e as conseqüentes
implicações deste dado sobre a obra literária e sobre a leitura posterior que se faz do texto. Tal
processo em Al Berto se revela à medida que vai reconstruindo na cultura o corpo
homossexual, na forma como vai transformando a vida em matéria da literatura, na forma
como imprime sua existência à arte que produz. A subjetividade homossexual é antes de tudo,
no poeta, uma forma de ser esteticamente frente ao mundo, de tornar a vida bela, como diria
Foucault. E o poeta afirma: “quero morrer / com uma overdose de beleza” (M, p. 519).
Morte de Rimbaud talvez seja o melhor exemplo dessa fusão entre vida e arte, ou
melhor, da intervenção da arte sobre a vida. Recapitulando os passos de Rimbaud, desde a
relação com Verlaine, até a sua morte e enfatizando sua experiência de “deserto”, metáfora
tão cara a Al Berto, o sujeito poético tende a revelar a fusão entre ele e Rimbaud. Tendo em
vista a morte do autor, menos de um ano depois da publicação de “Horto de Incêndio”, pode-
se ler o poema como um testamento poético, em que as instâncias da subjetividade dos poetas
se fundem, frente à certeza da morte iminente, provocada seja pelo câncer que consumiu o
francês, seja pela SIDA que “acometeu” o sujeito poético:
III
os dias estão cheios de cartas e de recomendações, de amigos que partem
para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas, de contas intermináveis,
de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios.
de morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação. (M, 613)
165
Assim, “afastados, o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro” (M, p. 611),
a fim de recuperar, ainda, algum sentido para a vida restante. É o encontro das duas
“realidades” vividas, marcadas pela deriva e pela transumância de dois sujeitos
desterritorializados, cujo único lugar é a existência estética, poética, artística. O encontro das
imagens poéticas pertencentes a um e a outro poeta vão criando um outro universo de
metáforas, agora, fundadas na vida.
O confessionalismo arriscado a que Fernando Pinto do Amaral faz referência adquire,
ainda, mais riscos a partir daquilo que se expõe em a Morte de Rimbaud. Clara Rocha
(ROCHA, 1992, p. 39), ao estudar o fenômeno do intimismo autobiográfico na Literatura
Portuguesa, destaca que o confessionalismo é marcado pelo pensamento cristão e se
assemelha a um ato de purificação, cuja função ascética visa obter, por parte do sujeito que
confessa, a absolvição divina. Esse caráter na obra de Al Berto, embora marcante, é também
sinal de mais uma das transgressões que opera na ordem do discurso poético: destitui o lugar-
Deus, responsável por remi-lo, e em seu lugar aloca o leitor que consigo compactua com seus
atos de ruptura; não visa a absolvição e sim a cooptação, visto que traz o leitor a um processo
de identificação consigo, dividindo com ele os “pecados” cometidos, seja na vida-arte ou na
escrita. Até porque o cristianismo em sua obra, aspecto esvaziado ou reconfigurado em seu
sentido primeiro, se revela, quando detectado, como uma teologia da vida, em que o sujeito
não assume sua relação com o divino, que Deus não para tanto
15
. Daí que embora se
perceba em desencanto com o humano - um certo tom individualmente localizado na
perspectiva do gênio Al Berto opte claramente em crer que é no homem e nas
subjetividades que se lhe atribui que está a divindidade: esse outro com quem dialoga e a
quem se soma ou em quem se divide.
A ascese prevista na confissão, no caso de Al Berto, está na literatura, no poético, na
15
A esse respeito, vide Sete poemas do regresso de Lázaro e Eremitério, dentre outros menos representativos da
questão.
166
vivência do corpo e da sexualidade, locais aos quais eleva a vida comum, seus delírios, sua
melancolia. Rimbaud é seu interlocutor, o “fantasma” com que se põe a falar, aquele que será
responsável pela sua integração com o Todo maior da linguagem.
A confissão sempre pressupõe duas atitudes contraditórias ou, porque não,
complementares: a contrição e a exibição do próprio erro. No poema em questão as duas
perspectivas se entrecruzam, na proporção em que o gesto narcísico se coloca como a grande
questão que liga os dois poetas: por um lado, se contrita, porque ciente das regras que
transgrediu e que, portanto, o leva a exilar-se de si e dos outros. O desejo de auto-realizar-se,
nesse sentido, decorre da contrição:
a verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um
sussurro cortante nos lábios.
e atravessei cidades e ruas sem nome, estradas pontes que ligam uma
treva a outra treva.
caminho como sempre caminhei, dentro de mim rasgando
paisagens, sulcando mares, devorando imagens. (M, p. 609)
Por outro lado, o caráter exibicionista de sua confissão tende a demonstrar que,
justamente, está arrependido significa exibir o sinal de seu narcisismo: se arrepende por
aquilo que não fez; logo, não há culpa a sentir:
e embarquei num cargueiro, desertei em java, pensei mesmo construir
uma casa.
mas não foi possível. (...)
e digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs, que tudo
silencie... e uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei. (M, p.
612)
A lógica do poema se estabelece a partir da objetivação de um auto-retrato, que nesse
caso, é um jogo duplo de pintura de si e do outro, fundidos num espelho de escrita. A
descrição, gesto estático, de si e de sua história, a reflexão que faz de um passado de fugas e
perdas, contrasta com a velocidade do poema-narrativa, que prenuncia a morte de Narciso e
seu espelho, Rimbaud: única imagem que consegue ver além de si, já que
os olhos fecham-se com o peso das paixões desfeitas.
imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras imagens
de neve e de miséria, de cidades obsessivas, de fome e de violência, de
167
sangue, de aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos...
talvez... talvez uma voz. (...) (M, p. 612)
um espelho onde não me reconheço, mas o pior é que nunca
acreditei no que me disseram, e parti o espelho. (M, p. 614)
E não se reconhece porque a essa altura o reflexo é Rimbaud e não mais o seu. E como
o poeta francês diz: “eu sou num outro”
16
. O jogo narcísico de fuga/reflexo que compõe o
poema também pode indicar a deriva da subjetividade a que Al Berto recorre em boa parte de
sua obra. Em “um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de mim” (M, p. 611), essa
quebra na unidade do eu, imaginado como centro do corpo ou do qual o corpo é o único
centro, início à tentativa de ordenação da existência de ambos voz enunciadora e
Rimbaud até então dispersos discursivamente no poema e como imagens literárias distintas,
marcadas pelo tom dialógico do texto.
Na parte “III”, a coincidência entre as duas vozes torna-se mais flagrante à medida que
elementos que constituem a poética de ambos passam a dividir um mesmo espaço. E é nesse
momento em que a vida se torna a grande metáfora do texto, expressa pela imincia da morte do
sujeito poético, denotada pela referência a uma noite que chega e pela alusão ao poema “SIDA”.
E de Rimbaud, indicada pela referência ao veneno, às águas inquinadas, à perna amputada em
fuão do ncer e as merias de África. Ambas as mortes passam a constituir a configuração
da vida em metáfora ou a criação de uma metáfora “viva” Rimbaud em torno da qual a
existência do enunciador vai se estabelecendo. A construção das meforas viva e da vida de
Rimbaud é o que vai possibilitar, na conclusão do poema, a morte do poeta, amiscuindo-se na
volatividade do vento que sopra e o absorve. Morte, aliás, vislumbrada em A Confissão de Lúcio,
de Sá-Carneiro.Integra-se, assim, ao Cosmos, tentando restabelecer a ordem perdida, só possível
na morte, qual Narciso ao afundar-se no lago em busca da própria imagem. Isso superaria o
desejo de erncia exposto em Al Berto no correr de sua obra e imanente à vida de Rimbaud;
16
Livre tradução do verso de Rimbaud Je est un autre”, considerada aqui mais oportuna à aproximação feita
entre os dois poetas.
168
superaria a errância existencial exposta no constante fingimento de si e na metaforização da
própria melancolia. Superaria sua falência total como homem de seu tempo.
A vida de Rimbaud torna-se com isso, elemento estético, imagem literária, corpo a ser
visto e lido como poema, como grito da própria vida que se encerra. É o corpo que se
reinscreve na ordem do poético, da cultura e da história, demarcando-se como existência
esteticizada, realização de uma vida pederástica , corpos- escrita a serem lidos, poemas-vida
que se tocam na urgência da morte e isso silencia o sujeito. Não há mais o que cantar, já que a
vida, nesse sentido, torna-se o grande motivo literário, se discursiviza pela existência que se
quer estética, que ser quer bela: “quero morrer / com um overdose de beleza” (M, p. 519).
Agora, “todos os pássaros sossegaram”(M, p. 609).
Complementando a leitura do poema, se se considera as postulações a respeito da
escrita autobiográfica, de que nesse subgênero o eu é sujeito e objeto da enunciação e,
portanto, motivo para especulação ontológica, pode-se concluir que, no jogo entre a alteridade
e identidade implementado em Al Berto, se tem o primeiro sinal de esteticização da
existência, nesse caso, fundado no fato de que o sujeito ficcionaliza a própria vida, tornando-
se objeto a ser trabalhado como matéria poética. Essa escrita de si, assim, é o resultado do
encontro da memória, da imaginação, da experiência, da vivência e da ficção, em que o
sujeito que poetiza sobre a “própria” vida o faz como um duplo de si mesmo. No caso em
questão, a existência histórica de Alberto e a estética de Al Berto resultariam na
transformação da vida em objeto de arte, lançando mão das tecnologias de si proporcionadas
pelos novos discursos sobre o corpo a que alude Foucault em vários momentos de sua obra.
(LEJEUNE, 1973, 1980; ROCHA, 1991).
Em Al Berto, essa existência homossexual tematizada por Foucault torna-se centro de
sua “existência de papel”, razão de sua escrita, condição que o constitui como sujeito. O fato
de essa experiência homossexual vir a ser também tônica (às vezes imersa) do poético e no
169
poético se torna motivo estético, vem apontar, como percebeu-se em “Morte de Rimbaud”,
para a “Estética Pederástica” a que aqui se referenciou: uma autoria homossexual,
perspectivando um universo homossexual, tendo a subjetividade homossexual como efetivo
elemento a ser exposto no texto. Coincidir-se em Rimbaud reafirma o princípio que ora
vincula Al Berto à “Literatura Viva”, a despeito do fato de ser o poeta francês também
exemplo “vivo”. O poema-vida revelado na “morte” de Rimbaud / Al Berto consistiria, sim,
aquele exemplo de vivacidade, de ser e compor o autêntico e o original a que se remetia
Régio. Essa escrita “onanista” de Al Berto, toda ela mediada pelo erótico e pelo prazer do
texto poético viria, nesse sentido, a constituir hoje, ou melhor, se constituiria na época da
PRESENÇA a medida bem pesada da “Literatura Viva”.
170
CONCLUSÃO
Cuidou-se aqui implementar uma revisão crítica de aspectos da Literatura Portuguesa
que demandavam uma reconfiguração dentro das novas perspectivas abertas pelo ato de
repensar a História da Literatura a partir de pressupostos diferentes dos que comumente são
empregados na sua constituição.
A revista PRESENÇA, resultado da atitude modernista de intelectuais novos e
sintonizados às questões relevantes de sua época, durante boa parte do século XX foi
submetida a uma crítica nos sentidos judicativo e literário do termo que não percebeu a
profundidade de algumas de suas propostas e nem o alcance de suas formulações teóricas. A
postura intelectual distinta e tutelar de José Régio, principal teórico da revista, muita das
vezes foi tida como uma atitude revanchista e reacionária frente ao choque cultural
representado por ORPHEU. Assim, criou-se a cil oposição entre dois momentos que são
evidentemente particulares, mas que compreendem um universo modernista vizinho e de
avanços estéticos e literários necessários à criação de uma base cultural que possibilitaria o
aparecimento do Neo-Realismo, nos anos 40.
Quis-se aqui deixar claro que ambas as publicações formam um continuum modernista
capaz de criar depois de si uma tradição de retomadas e releituras. Fixa-se ORPHEU, porque
foi tutelar, no sentido em que o movimento se circunscreve como um dos mais importantes
momentos estéticos e poéticos do século XX e, na figura de Pessoa, cria um modelo, uma
forma de estar na Literatura, um horizonte notadamente perceptível na Literatura Portuguesa
do século XX. A PRESENÇA fixa-se porque, pela atitude crítica, foi capaz de sedimentar não
o movimento de 1915 no panorama cultural português, como foi responsável por dar
espaço ao novo, ao diverso, ao diferente e aos valores que foram surgindo e que depois se
171
firmam nas décadas posteriores. Reitere-se aqui que esta tese procura mostrar que mais de
um paradigma possível para a cultura portuguesa do século XX, dentre os quais ORPHEU e
PRESENÇA se inscrevem, cada um por sua contribuição particular, quer no campo da crítica,
quer no campo da criação poética.
Para esse percurso foi necessário reler a contribuição crítica de Régio, assim como
suas formulações a respeito da Literatura Viva”, de forma a tornar sua proposição teórica
eficaz para a compreensão da poesia que lhe fora posterior e perceber, em conseqüência, se o
conceito qualificador da arte modernista funcionaria para além da revista ou seria um
operador contextualizado e restrito. Para tanto, expôs-se inicialmente as teorizações de Michel
Foucault, priorizando os métodos arqueológico e genealógico, pontos que alinhavam o seu
pensamento. Tal apropriação deveu-se ao fato de se intentar trabalhar nesta tese com objetos
culturais distanciados e separados por diversas implicações históricas e discursivas e que, por
isso, demandavam um arranjo teórico capaz de aproximá-los, sem que com isso se incidisse
num problema epistemológico. Inicialmente buscou-se um solo teórico-discursivo capaz de
operacionalizar a discussão e uma lógica possível a ser construída, a partir de elementos
descontínuos na história e no discurso, apagados e silenciados pelas inúmeras injunções do
poder (discursos, Literatura, crítica literária, domínio dos corpos).
O passo seguinte tinha por objetivo problematizar a PRESENÇA, Régio e a crítica de
e sobre eles, de forma a recontextualizá-los, condição sem a qual as considerações sobre a
poesia de Al Berto não poderiam ser feitas. Para esse restabelecimento, fez-se necessário o
uso de um arcabouço teórico que pudesse tanto demonstrar o potencial estético do conceito de
“Literatura Viva” quanto vinculá-lo a um momento posterior. Observou-se o papel da crítica
literária, sobretudo a de Eduardo Lourenço e Eduardo Prado Coelho, na formação de um
pensamento crítico que em muito desfavorecia a revista e o seu principal teórico, criando-se
172
assim a conseqüente necessidade de se rever sob que circunstâncias tal crítica se deu e que
implicações ela foi capaz de gerar.
Na definição da “Literatura Viva” pode-se observar como o conceito tecido por Régio
pode ser cotejado com teorias mais contemporâneas, como as de Walter Benjamin (vivência e
experiência) e com a perspectiva semiológica de Roland Barthes (textos legíveis e
escrevíveis), à medida que ambas as propostas teóricas perpassam o texto literário,
priorizando sua interligação com a história cultural que lhes serve de apoio, como exposto no
segundo capítulo da tese. Tais confrontos proporcionaram, dentre outras conclusões, a
percepção de que a proposição regiana estava atenta ao papel da obra de arte literária na
modernidade, ao mesmo tempo em que também demonstrava uma antecipação de aspectos
que somente as abordagens propiciadas pelo aprofundamento dos estudos literários iriam
depois melhor definir.
O capítulo três cuidou entender como o masculino foi tematizado na série literária
portuguesa desde Camões até o modernismo presencista e intentou demonstrar como a crise
da masculinidade inaugurada em ORPHEU propiciou o surgimento de discursos sobre o
corpo e a sua decorrente emergência no interior da Literatura Portuguesa. Tal surgimento e a
percepção de que nele residiam outros desejos, diferentes daqueles percebíveis no masculino
tradicional, proporcionaram o confronto do conceito de “Literatura Viva” com os exemplos
utilizados por Régio para ilustrar sua proposição. Disso decorreu a conclusão de que a
proposta regiana apontava para a construção de uma “Estética Pederástica”, baseada na crise
do masculino, no discurso sobre o corpo e na instauração da homossexualidade como
horizonte a ser tematizado na Literatura. Foi possível, com isso, proceder à leitura não dos
vínculos entre aquela revista e a poesia de Al Berto, como também propor a reescritura da
história literária tendo, agora, o corpo, como limiar e limite de uma poesia como a do poeta
agora referido.
173
A análise da obra completa de Al Berto, O Medo, implementada no último capítulo,
possibilitou o confronto das teorizações de Régio com a poesia mais contemporânea, assim
como também proporcionou o estabelecimento de paradigmas acerca de sua poesia, toda ela
pautada na evocação de um o eu que simultaneamente cria o seu outro, executando a cópia e a
colagem entre os vários sujeitos que buscam uma unidade possível. Percebeu-se também que,
como Pessoa, Al Berto investiu em “eus” múltiplos que atuam na sua poesia, mas que não
configuram um exercício heteronímico, visto que são confessadamente vozes de um mesmo
sujeito, que assume diversas personalidades de acordo com os objetivos que quer expor em
seu texto. Soma-se a isso o fato de que a poesia de Al Berto concentra os caracteres aludidos
por Régio na tematização da “Literatura Viva”, ou seja, sua poesia vem marcada pelo intenso
confessionalismo, pela criação de uma ficção biográfica sobre si, pelo compromisso com a
exposição da própria vida no texto, pela constante busca por uma autenticidade e por uma
originalidade que tornam seu texto vivo, visto que tudo isso só serve para refletir a vida e uma
existência esteticizada, tornada texto. Além disso, à esteira das proposições acerca da
“Estética Pederástica”, percebeu-se que a questão homoerótica alinhava os principais aspectos
da poesia de Al Berto, sendo, porque não dizer, o grande motivo de sua escrita.
Observou-se que o percurso aqui concluído revelou-se um instrumento capaz de
entender a poesia de caráter homoerótico surgida nos anos setenta, notadamente a de Al
Berto. Logo, a tarefa era reconstruir o vínculo silencioso que ligava dois momentos distintos
da Literatura Portuguesa, pondo em diálogo uma perspectiva sedimentada na base estética
do século XX, com outra que resultou dos avanços culturais e sociais alcançados pela
sociedade portuguesa no pós-74. Assim, a relocalização da revista de Coimbra no escopo da
Literatura Portuguesa foi feita pela aplicação de uma abordagem diversa, possível não pela
condição imputada à PRESENÇA, pelo cânone, como também pelas suas relações com os
discursos marginais e periféricos de sua época.
174
No que diz respeito à atenção futura ao caráter homoerótico em manifestações poéticas
mais recentes, observa-se que outros autores podem ser lidos através desse ponto de vista,
atualíssima contribuição operacional proporcionada pelo pensamento foucaultiano.
Por termo, deve-se considerar que se cumpriu aqui a proposta de lançar luz sobre
autores cuja abordagem canônica ainda não é satisfatória ou necessitam que suas obras sejam
analisadas sob aspectos ainda escondidos na pele-memória da Literatura Portuguesa.
175
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