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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
Marta Ribeiro Ramos
A GRAMÁTICA NA REDE PARTICULAR: REPRESENTAÇÕES
DOCENTES QUANTO AO ENSINO DA LÍNGUA MATERNA
Dissertação apresentada para obtenção do
Certificado de Título de Mestre pelo Programa
de Lingüística Aplicada do Departamento de
Ciências Sociais e Letras da Universidade de
Taubaté.
Área de concentração: Língua Materna.
Orientadora: Profa. Dra. Elisabeth Ramos da
Silva
Taubaté – SP
2007
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FOLHA DE DEDICATÓRIA
Ao meu querido pai Manoel ( In Memoriam ), com todo meu amor,
por todo seu esforço e trabalho para educar suas filhas. Quando crianças,
ela nos apresentou a riqueza que a aprendizagem garante e, através de
seu exemplo, nos ensinou o gosto por aprender como sinônimo de vida, o
que nos leva a querer aprender sempre mais.
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AGRADECIMENTOS
Ao concluir um trabalho, são inúmeros os agradecimentos. Para algumas
pessoas, de modo especial, por estarem mais próximas neste período, e outras,
que em vários lugares e situações fizeram parte de meu aprendizado na vida e
que contribuíram para cada reflexão que foi compondo o desejo do curso de
doutorado e os caminhos dessa dissertação. A todos meu obrigada e carinho, e
particularmente agradeço às professoras e colegas.
À minha orientadora Profª. Dra. Elisabeth , agradeço profundamente toda a
atenção e acolhida dispensadas durante a longa orientação deste trabalho.
Mesmo tendo a sua agenda de trabalho repleta, sempre dedicava à orientação um
tempo que parecia sagrado” como se nada mais existisse. Foi bom sentir que
aqueles momentos eram de partilha e crescimento. Obrigada, por ter aprendido
tanto com você, através da orientação competente e segura. Agradeço, também,
por sua disponibilidade para me aceitar inicialmente como orientanda, e pelo
vínculo construído na escuta atenta e carinhosa, e na agradável descoberta de
tantos gostos pessoais em comum que consolidaram uma bela amizade.
Às minhas sempre mestras, Profª. Dras. Elzira e Claudete, são inúmeros os
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obrigados, com toda amizade e gratidão: pelo incentivo para o início do mestrado,
por suas valiosas e preciosas contribuições ao longo de toda minha formação
acadêmica; em particular, agradeço por suas importantes reflexões sobre este
estudo, suas palavras e posições ressignificam para mim a importância da
docência, e de modo especial, realçam mais ainda o orgulho que tenho de todo e
da UNITAU. Aos professores do Centro de Ensino Educàre pela colaboração com
a pesquisa e a todos aqueles que conhecem a minha trajetória e que, direta ou
indiretamente, contribuíram para que essa dissertação se tornasse realidade.
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Marta Ribeiro Ramos
A GRAMÁTICA NA REDE PARTICULAR: REPRESENTAÇÕES
DOCENTES QUANTO AO ENSINO DA LÍNGUA MATERNA
Dissertação apresentada para obtenção do
Certificado de tulo de Mestre pelo Programa
de Lingüística Aplicada do Departamento de
Ciências Sociais e Letras da Universidade de
Taubaté.
Área de concentração: Língua Materna.
Orientadora: Profa. Dra. Elisabeth Ramos da
Silva
Data:_____________________________________________________
Resultado:_________________________________________________
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Elisabeth Ramos da Silva
Assinatura:________________________________________________
Profa. Dra. Elzira Yoko Yueno
Assinatura:________________________________________________
Profa. Dra. Claudete Ghiraldelo Moreno
Assinatura:_______________________________________________
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“Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se
haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por
que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou
as razões. Ambos tinham razão. Não era que um via uma coisa e outro
outra, ou que um via um lado das coisas e outro um outro lado diferente.
Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um
as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa
diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla
existência da verdade.”
FERNANDO PESSOA
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SUMÁRIO
Resumo ------------------------------------------------------------------------------------ 10
Abstract ------------------------------------------------------------------------------------- 11
Apresentação da pesquisa ------------------------------------------------------------ 12
Capítulo I Dispositivos de análise ---------------------------------------- 21
1.1 O Discurso -------------------------------------------------------------------- 22
1.2 Alguns conceito -------------------------------------------------------------- 27
1.2.1 Ideologia --------------------------------------------------------------------- 27
1.2.2 Formação Discursiva em Foucault ------------------------------------ 31
1.2.3 Memória discursiva -------------------------------------------------------- 38
1.2.4 O Interdiscurso -------------------------------------------------------------- 43
1.2.5 O Sujeito ---------------------------------------------------------------------- 45
Capítulo II. Reflexões sobre a gramática -------------------------------------- 47
2.1 O percurso histórico ------------------------------------------------------------ 47
2.2 Que gramática ensinar na escola? ------------------------------------------ 50
2.3 A utilidade do ensino da gramática ------------------------------------------ 62
8
2.4 O papel da gramática no ensino da Língua Portuguesa --------------- 68
Capítulo III.As representações docentes quanto ao ensino da língua
materna -------------------------------------------------------------------------------- 77
3.1 O universo da pesquisa ------------------------------------------------------- 77
3.2 Constituição do corpus e a coleta de dados ------------------------------------- 79
3.3 Constituição do corpus e a coleta de dados ---------------------------------- 81
3.3.1 Análise do corpus referente ao discurso do Sujeito 1 (fala do professor
da área do ensino médio, não profissionalizante) ---------------------- 83
3.3.2 Análise do corpus referente ao discurso do Sujeito 2
(fala do professor do ensino médio e da área técnica) ------------------- 88
3.3.3 Conclusão ------------------------------------------------------------------- 93
Considerações finais -------------------------------------------------------------- 94
Referências -------------------------------------------------------------------------- 97
9
Anexos --------------------------------------------------------------------------------
102
10
RESUMO
Este trabalho consiste em uma pesquisa realizada com professores que
trabalhavam no CEFAM – Centro de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério –
escola pública situada no município de São Jo dos Campos e no Centro de
Ensino Educàre, escola da rede privada do mesmo município . Nosso objetivo era
investigar o ensino de Gramática Normativa na escola, no nível médio, suscitando
uma reflexão acerca do seu ensino na escola, tendo como base o processo
histórico que o institucionalizou. Para tanto, colhemos depoimentos e os
analisamos de acordo com alguns conceitos da Análise do Discurso,
principalmente pelo viés da formação e memória discursiva, pois julgamos que tais
pressupostos seriam adequados para observar, no discurso docente, os efeitos de
sentido subjacentes à materialidade lingüística dos enunciados. Dessa forma,
seria possível identificar mais criticamente quais imagens permearam a decisão de
ensinar a gramática, considerando-se o aspecto da memória, construída ao longo
das respectivas trajetórias sócio-históricas, sob determinadas condições de
produção. Nossas análises concluíram que, embora haja os discursos atuais
contrários à utilidade do ensino da gramática, o discurso dos docentes evidenciou
que os docentes valorizam o ensino da Gramática nos cursos de Ensino Médio.
Palavras-chave: 1.Gramática 2. Imagens docentes.
11
ABSTRACT
This work consists of a research carried through with professors who
worked in the CEFAM - Centro de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério -
situated public school in the city of São José dos Campos and in the, e no Centro
de Ensino Educàre school of the private net of the same city. Our objective age to
investigate the education of Normative Grammar in the school, in the average
level, exciting a reflection concerning its education in the school, having as base
the historical process that institutionalized it. For in such a way, we harvest
depositions and we analyze them of agreement with some concepts of the Analysis
of the Speech, mainly for the bias of the formation and discursive memory,
therefore we judge that such estimated would be adjusted to observe, in the
teaching speech, the underlying effect of direction to the linguistic materiality of the
statements. Of this form, it would be possible to identify more critically which
images permearam the decision to teach to the grammar, considering itself the
aspect of the memory, constructed throughout the respective partner-historical
trajectories, under determined production conditions . Our analyses had concluded
that, even so it has the contrary current speeches to the utility of the education of
the grammar, the speech of the professors evidenced that the professors they
value education of the Grammar in the courses of Average Education
Word-key: 1.Grammar 2.Teaching images.
12
Apresentação da pesquisa
“o professor não pode alijar o ensino da norma-padrão das aulas de ngua
portuguesa. É preciso que todos tenham a oportunidade de conhecê-la e de saber
empregá-la, já que esta é o suporte para a elaboração de textos formais”.
Silva e Gurpilhares (2006)
O estudo realizado emergiu de inquietações da minha prática profissional
com os alunos do curso de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério - CEFAM -
da Rede Estadual do estado de São Paulo e com os professores da rede
particular, a partir da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o
ensino da Língua Portuguesa da à série do Ensino Fundamental e Ensino
Médio, no Estado de São Paulo. A implantação, no Estado, desses Parâmetros
para os Ensinos Fundamental e Médio se deu no ano de 1998. Esses mesmos
Parâmetros passaram a ser utilizados também nas escolas particulares
supervisionadas pela Secretária de Educação do município, também a partir desse
mesmo ano. Sua implantação provocou, entre os professores de Língua
Portuguesa, uma série de discussões polêmicas, debates e críticas.
Desde a implantação do Programa no município, procuramos acompanhar
sua repercussão nas práticas dos professores, através de cursos e seminários nas
práticas de alguns professores, por meio dos relatórios de Prática de Ensino
(Estágio) das alunas do curso de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério
13
CEFAM - da Rede Estadual do estado de São Paulo e de uma escola particular,
onde eu exercia a docência e Coordenação Pedagógica.
Na época da implantação do Programa no município, foram promovidos
alguns cursos para os professores. O primeiro curso oferecido aos professores de
Língua Portuguesa teve por objetivo discutir os pressupostos teóricos do
programa. Os professores, vindos da faculdade de Letras, apresentaram dúvidas e
questionamentos de toda ordem. Durante as discussões sobre os textos
apresentados, muitas questões foram sendo levantadas, tais como: “E agora,
‘como’ e ‘o que’ nós vamos ensinar?”, “É ler e escrever textos?”, “Eu não vou
dar conta de trabalhar desse jeito”. “Como corrigir os textos dos alunos?”; “O que
se pode corrigir?”; “Será que a caneta vermelha inibe mesmo o aluno, e é por isso
que agora estão sugerindo que a correção seja feita a lápis?”. Outros
questionamentos foram surgindo, e outros equívocos, como: “Dar aula de Língua
agora ficou fácil, é só trabalhar leitura e interpretação”. “Não se poder mais corrigir
os textos dos alunos, porque eles vão se inibir, e não vão querer escrever mais”.
Uma professora, enquanto ministrava o curso, dizia: “Pra que serve a gramática,
joguem ela no lixo!”; “Pra que ficar decorando regras, que não adiantam em
nada?”. Diversas outras questões e equívocos se fizeram ouvir ao longo do curso,
entre os professores em formação. Questionamentos idênticos também eram
feitos ao longo das Horas de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) que eram
cumpridas, obrigatoriamente, na escola.
14
Quando retornaram para suas salas de aula, alguns professores se diziam
“perdidos, sem saber direito o que fazer”. O que mais se ouvia era: “E agora, o
que fazer?”, “Eu não sei dar aulas como eles querem”. A impressão que tive, na
época, foi a de que o curso, além de contribuir para discussões acerca do ensino,
serviu também para criar nos professores de Língua Portuguesa um sentimento de
impotência. Essas questões apresentadas acima e outras foram, ao longo dos
anos, gerando polêmicas e fazendo com que as discussões e os debates
provocassem, nas escolas, uma divisão dos professores em dois grupos, em
alguns casos dentro da mesma escola: o grupo dos “gramatiqueiros” ou
“tradicionais”, que defendiam a tradição do ensino gramatical, e o grupo dos
“progressistas”, aqueles que, por diferentes razões, defendiam a modificação na
forma de se ensinar gramática de uma maneira contextualizada, ou o abandono
definitivo do seu ensino.
Batista (1997, p.145) afirma que, quando se ensina Língua Portuguesa na
escola, "ensina-se, fundamentalmente, a disciplina gramatical". Embora os
professores trabalhem com diversos saberes (conteúdos gramaticais, elementos
da teoria da comunicação, leitura, escrita, vocabulário, linguagem oral, valores
morais e ideológicos), o que é priorizado é o ensino da gramática tradicional.
Porém, considerando o nosso convívio com os professores, nós nos
perguntávamos: não estaria ocorrendo talvez devido ao impacto provocado pelas
polêmicas acerca das novas tendências sobre o ensino da disciplina, uma
15
tendência inversa, que consistiria em abandonar totalmente o trabalha sistemático,
com conhecimentos gramaticais, em favor de um trabalho assistemático
priorizando a leitura e a produção de textos.
Buscamos, também, conhecer os discursos oficiais e acadêmicos,
difundidos a partir do final da década de 70 e início da década de 80, sobre o
ensino da Língua Portuguesa e sua repercussão no discurso e nas práticas dos
professores, em sala de aula, por se pressupor que foram esses discursos que
provocaram uma desestabilização no ensino da disciplina, particularmente na
tradição do ensino gramatical.
Com a difusão dos resultados de pesquisas lingüísticas no País, vários
trabalhos questionam o ensino da gramática. De acordo com Soares (1986, p.86):
"... a Lingüística foi introduzida nos cursos superiores de Letras, no Brasil, nos
anos 60; é, pois, nos anos 80 que os efeitos de seu ensino e da pesquisa
lingüística portuguesa começam a manifestar-se no ensino do Português".
Questionamentos foram surgindo relacionados com a concepção de língua
em que os gramáticos se baseiam ao publicarem seus compêndios. O conceito
utilizado por eles é aquele que toma o termo língua como algo que engloba
apenas uma das variantes lingüísticas, isto é, a chamada língua padrão ou norma
culta. Essa definição é preconceituosa e excludente, pois não leva em conta as
outras formas de falar, que são consideradas erradas, como não-pertencentes à
16
língua.
Um outro questionamento estava vinculado à concepção de linguagem em
que se baseia o ensino da Língua Portuguesa centrado na gramática. A linguagem
é resumida à dimensão formal, a um conjunto de regras e normas, e a uma
metalinguagem.
E finalmente questionamos a respeito da concepção de aprendizado da
língua manifestada pelas gramáticas normativas e por seu ensino. As pesquisas
lingüísticas mostram que o falante aprende a língua no próprio uso, construindo
um conjunto de regras, que constituíra a sua gramática interna. Desconsiderando
essa forma, pela qual o falante adquire sua competência lingüística, o ensino
proposto nas gramáticas faz o caminho inverso, ou seja, parte das regras para o
uso.
De maneira sintética, discutiremos o ensino da Língua Portuguesa de forma
que este se organize em torno do uso da língua: do ensino da “gramática”,
compreendida esta como uma prática de reflexão sobre a língua e seus usos,
necessária para a instrumentalização dos alunos na leitura e na produção de
textos. Para isso, conceituaremos alguns dispositivos da análise do discurso, uma
vez que ideologia, as formações discursivas, o interdiscurso ou a memória
discursiva e sujeito subsidiaram a análise dos depoimentos dos professores que
nos ajudaram para que essa pesquisa fosse levada a termo.
17
Quanto à forma de trabalhar a gramática na escola, parece oportuno
enfatizar a necessidade de mudanças. O estudo gramatical deveria ser
transformado em um processo de reflexão que levasse à melhor compreensão de
fatos lingüísticos encontrados no texto. Para que essa compreensão seja obtida é
necessário, certamente, que o estudo gramatical seja feito através de uma
metodologia nascida da própria natureza da língua “(MEC, 1998)”.
Esta pesquisa constituiu-se de vários momentos: o período inicial, no qual
buscamos selecionar os sujeitos; a coleta e organização dos dados; a descrição e
análise dos dados e a redação desse trabalho.
Na primeira etapa, estabelecemos alguns contatos com os professores,
participamos da semana de planejamento da área de Língua Portuguesa realizada
pelas redes estadual e particular de ensino.
Inicialmente, o nosso objetivo era investigar o porquê das dificuldades dos
professores de se adequarem às novas propostas para a o ensino da Língua
Portuguesa. Considerando os desdobramentos propostos ao ensino da disciplina,
assim como as dificuldades reveladas pelos professores para responder às novas
exigências em relação ao ensino de gramática, esta pesquisa tem como principal
objetivo: descrever práticas de professores de Língua Portuguesa, tendo em vista
o ensino dos "conteúdos gramaticais".
Assim, solicitamos a alguns professores que elaborassem depoimentos
18
sobre o trabalho que desenvolviam nas salas de aula, paralelamente a entrevistas
com a professora coordenadora, o que nos permitiu identificar, nos docentes,
alguns traços pertinentes ao seu discurso no âmbito escolar, sala de aula e sala
dos professores e, desse modo, selecionar os professores que viriam a se
constituir nos sujeitos da pesquisa.
Para a análise dos dados a opção abraçada foi a da Análise do Discurso
(AD) de linha francesa, pois essa nos pareceu encaixar-se, adequadamente, aos
nossos propósitos, pois pretendíamos compreender de forma mais profunda e
significativa os caminhos relativos à decisão de ensinar a gramática teórica.
Para tal empreitada, recorremos a autores, como: Foucault (1969) Brandão
(1997), Althusser (1970), Orlandi (1986), Pêcheux (1990) e Chauí (2006) dentre
outros.
De posse dos dados obtidos selecionamos professores considerados
relevantes para a pesquisa e começamos a análise dos dados.
No primeiro capítulo nos deteremos na análise e esclarecimentos dos
instrumentos de análise. Temos percebido que a memória discursiva e as
formações ideológicas embutidas nos depoimentos dos professores revelam, sem
maior juízo de valor, a real intenção em ensinar gramática.
Queremos enfatizar que a AD de linha francesa foi o procedimento de
19
análise escolhido pelo fato de entendermos que se trata de uma área privilegiada
no âmbito das Ciências Humanas. Para nós, a AD constitui um contributo
extremamente valioso, pois ao considerarmos que o sujeito se faz no encontro
entre língua e história, permite identificar quem é esse sujeito que se posiciona
favorável ou contrariamente ao ensino da gramática. Tal identificação é possível
mediante a análise das marcas lingüísticas que materializam o seu discurso,
permitindo, assim, verificar o “não-dito, naquilo que é dito(ORLANDI, 1986). Em
outras palavras, um discurso sempre é a manifestação de outros discursos. Dessa
forma, o discurso favorável ou contrário à gramática somente pôde constituir-se da
sua relação com a memória discursiva.
No segundo capítulo ofereceremos alguns subsídios para esclarecer
dúvidas que sempre surgem quando os professores discutem o assunto
gramática. Dessa forma, nos valeremos de alguns fundamentos teóricos, tais
como: Vygotsky (2005), com o intuito de demonstrar que o ensino da gramática
favorece o domínio e a consciência das regras da norma-padrão, Neves (2003),
Possenti (2006), Bechara (2007), Travaglia (2003) entre tantos outros, os quais
evidenciam a exigência do ensino da norma-padrão no universo da pesquisa, tal
ensino não relegado à escola, mas à família também, uma vez que os nossos
alunos são egressos da classe média e média alta onde é comum o seu uso.
No terceiro capítulo, procederemos à apresentação da pesquisa, cujo
objetivo foi investigar quais as representações docentes quanto à utilidade da
20
gramática na escola particular, universo da pesquisa.
21
Capítulo I Dispositivos de análise
”O dizer não é propriedade particular. As palavras não são nossas. Elas significam
pela história e pela língua.”
ORLANDI, 1998
O fato de as relações de ensino-aprendizagem serem mediadas sempre
pela linguagem exige que as pesquisas em contextos educacionais detenham-se
sobre as perspectivas de análise abertas pelas áreas de estudos da linguagem. A
Análise do Discurso tem sido uma das áreas a que se recorre freqüentemente por
considerar, ao mesmo tempo, a dimensão social e histórica da linguagem, bem
como uma teoria da subjetividade. As perspectivas desta área, no entanto,
pressupõem conhecimento das diferentes abordagens de textos e discernimento
entre o que se pode inferir da materialidade textual e de seu conteúdo explícito e o
que compõe o discurso. Assim, justifica-se a escolha pela Análise do Discurso
(AD) à medida que esta se propõe a fornecer a pesquisadores condições básicas
para a compreensão dos pressupostos teóricos, das noções fundamentais, bem
como para a operacionalização destes, contribuindo para que se possa verificar a
produtividade destes conceitos para o entendimento da constituição da
subjetividade em situação de ensino-aprendizagem.
22
1.1 O Discurso
O objeto da Análise do Discurso; teoria fundada por Michel Pêcheux, na
França, em 1969, é o discurso, que é entendido, segundo Pêcheux, como efeito
de sentido entre locutores. O discurso não é apenas um texto, mas um conjunto
de relações que se estabelecem nos momentos antes e durante a produção desse
texto e também dos efeitos que são produzidos após a enunciação desse texto. O
texto é concebido como a materialidade lingüística através da qual se pode chegar
ao discurso, é a relação da língua com a história (historicidade). Os discursos
produzidos são determinados pelos discursos anteriores e também determinam os
discursos que poderão surgir dele.
A Análise do Discurso entende que os sentidos não são postos e que as
palavras não possuem um sentido único, mas um dominante. Para a Análise do
Discurso, a enunciação de uma mesma materialidade lingüística, em condições
diversas, pode gerar diversos efeitos de sentido. A língua, sob a ótica teórica da
AD, é incompleta, é heterogênea, que afetada pela história. A linguagem está
sempre propícia aos deslizes, aos ltiplos sentidos, à ambigüidade. A linguagem
é entendida como uma forma material de chegar ao sujeito, pois é através da
linguagem que o sujeito do inconsciente mostra sua incompletude e é através da
linguagem também que esse sujeito procura preencher as lacunas próprias da
23
sua constituição.
Partindo dessa definição clássica de discurso, prática social de produção de
textos, enveredamos por um tortuoso e desconhecido caminho para análise de um
problema que muito nos acompanhava - o ensino da gramática na escola
objeto desta Dissertação de mestrado. Partimos do pressuposto que discurso é
uma construção social, não individual, e que poderá ser analisado
considerando seu contexto histórico-social e suas condições de produção, ainda
que o discurso reflita uma visão de mundo determinada, vinculada à do seu autor
e à sociedade em que vive.
O objeto da Análise do Discurso é o “discurso”. Dito assim parece uma
colocação repetitiva. Mas é preciso antes de tudo definir no que consiste esse
discurso. A noção elementar que se tem de discurso como sinônimo de
mensagem, informação, pronunciação de meras palavras combinadas em frases,
não corresponde ao interesse básico da AD. Podendo estar relacionada tanto à
História quanta à Sociologia, a AD vai buscar, na verdade, o sentido ou sentidos
produzidos pelo sujeito ao elaborar um discurso, as suas intenções e a forma
como é recebido por quem ouve ou suas palavras. Por isso cheux (1990)
define discurso como “efeito de sentidos entre interlocutores”.
Nosso propósito com este questionamento não é o de analisar os tipos de
gramáticas ou pseudogramáticas atualmente existentes e expostas nas escolas
24
brasileiras, mas fazer ou suscitar uma reflexão acerca do ensino de gramática na
escola, tendo como base, além do estágio atual, todo o processo histórico que o
institucionalizou, o que tematizou nossa pesquisa e dissertação de mestrado.
Ancorados em Pechêux (1990), decidimos trilhar em nossa pesquisa os
caminhos da análise do discurso, pois julgamos que, dessa forma, seria possível
compreender de forma mais clara e profunda, e mais significativa, os “meandros
dialógicos” relativos à decisão de ensinar, ou não, a gramática. Assim sendo,
passaremos a expor breves explicações acerca de alguns elementos relativos a
analise do discurso que orientaram nossas análises, tais como: conceito de
ideologia, formação discursiva, interdiscurso ou memória discursiva e a definição
do sujeito.
Michel Pêcheux início à Análise do Discurso na França, em fins dos
anos 60, como seu principal articulador. Não é à toa que a fundação da Análise do
Discurso coincide com o auge do estruturalismo na Europa, sobretudo na França,
figurando como verdadeiro paradigma de formatação do mundo, das idéias e das
coisas para toda uma geração de intelectuais. O preço a pagar pelos defensores
do paradigma estrutural foi a constante e deliberada exclusão do sujeito, visto
como o elemento suscetível de perturbar a análise do objeto científico. O
movimento de maio de 68 na França e as novas interrogações que surgiram no
âmbito das ciências humanas foram decisivos para subverter o paradigma então
25
reinante e trazer o sujeito para o centro do novo cenário.
A Análise do Discurso (AD) nasce, assim, na perspectiva política de uma
intervenção, de uma ação transformadora que visa combater o excessivo
formalismo lingüístico vigente, então considerado como uma nova facção de tipo
burguês. Tendo como marco inaugural o ano de 1969, com a publicação de Michel
Pêcheux “Análise Automática do Discurso”, além do lançamento da revista
“Langages”, organizada por Jean Dubois, a AD vai em busca desse sujeito até
então descartado. E vai encontrá-lo na psicanálise e no materialismo histórico
althusseriano. Da Psicanálise, interessa trabalhar esse sujeito desejante,
inconsciente, descentrado, afetado pela ferida narcísica; do Materialismo Histórico,
interessa o sujeito assujeitado, materialmente constituído pela linguagem e
interpelado pela ideologia. O sujeito do discurso não é, então, apenas o sujeito
ideológico marxista-althusseriano, nem apenas o sujeito do inconsciente freudo-
lacaniano; tampouco uma junção entre essas duas partes. O que vai representar a
diferença desse sujeito, a sua marca discursiva, é o papel de intervenção da
linguagem na perspectiva lingüística e histórica que Análise do Discurso lhe
atribui.
A ADF, caracterizou-se, desde seu início, por um viés de ruptura com toda
uma conjuntura política e epistemológica, e por uma necessidade de articulação
com outras áreas das ciências humanas, especialmente a lingüística, o
materialismo histórico e a psicanálise. A cada prática de análise se põe em
26
questão a natureza de certas noções teóricas e se redefinem seus limites, o que
faz com que a Análise do Discurso tenha um estatuto diferenciado entre as demais
disciplinas, mantendo com elas zonas de interface e de tensão constante.
Portanto, o discurso constitui-se no verdadeiro ponto de partida de uma
“aventura teórica”, para referir-se à verdadeira obsessão de Michel Pêcheux
(1990, p.38) por essa noção. É no discurso e na trama de seus fios que se
encontram os nós que amarram essa rede discursiva e a sustentam. Por isso, não
se pode falar em discurso sem mobilizar outros sentidos, sem acionar outros
conceitos que lhe são constitutivos, como língua, sujeito e história. Assim, o
discurso foi para Pêcheux e continua sendo para nós, analistas de discurso dessa
vertente teórica, o objeto de uma busca infinita que nos instiga a prosseguir a
pesquisa nesse complexo e infindável campo de estudos. Ao tematizar o discurso
como objeto-fronteira que trabalha nas grandes divisões disciplinares, a Análise do
Discurso lhe confere uma materialidade lingüística e histórica, o que vai distingui-
lo do modo imanente de como a lingüística trata a língua e do modo exterior como
as ciências humanas usam a língua como instrumento para explicação de textos.
Vale lembrar que alguns autores consideram a AD como uma corrente da
Lingüística e há outros, que a consideram como uma nova disciplina. O discurso é
tanto um lugar privilegiado de observação das relações entre língua e ideologia,
como é também um lugar de mediação, de imbricação dentro do dispositivo
teórico-analítico, permitindo que se visualizem em seu funcionamento os
27
mecanismos de produção de sentidos desse material simbólico. O discurso é
também, de certa maneira, uma mefora viva, pulsante, que requer, a cada
construção, um transporte de um campo a outro. A noção de discurso que nos
interessa investigar em nossos projetos apresenta-se como um objeto teórico, sem
compromisso com qualquer evidência empírica. O discurso vai trazer indícios de
ruptura que o trabalho do analista procura desvendar, compreender, interpretar,
através de gestos de interpretação que tentam flagrar o exato momento em que o
sentido faz sentido. O sujeito constituído pela linguagem, enquanto contradição e
desejo, a história como processo de produção de sentidos e a língua como um
corpo espesso e denso atravessado de falhas são noções que em Análise do
Discurso só podem prosperar e florescer, se remetidas à perspectiva do discurso.
1.2 Alguns conceitos:
1.2.1 Ideologia
A liberdade do homem para produzir e criar elevou seu papel para uma
condição de produtor de conceitos, de produtos e de discursos que faz com que
ele busque influenciar pessoas para que tomem partido favorável à sua produção.
Este ponto positivo, à vista de quem produz um bem ou serviço, pode significar
comercialização, aumento de produção, necessidade de mão-de-obra, lucro.
para quem está diretamente envolvido com o processo produtivo, realizando o
28
trabalho, seja ele físico ou intelectual, significará uma troca do seu esforço de
trabalho por uma remuneração estabelecida a partir de sua função exercida, esta
determinada por fatores inerentes ao local onde o processo produtivo acontece.
Assim poder-se-ia analisar, de forma breve, a divisão social do trabalho,
base para o funcionamento do sistema capitalista, de onde se originam as classes
sociais e o conceito marxista de ideologia como falsa consciência. Esta é a
definição que trata a ideologia como algo pejorativo, devendo unicamente ser
aceita pelos assalariados, ao mesmo tempo em que demonstra os interesses
particulares das classes dominantes como sendo os interesses universais. Apenas
reforçando o valor temporal e histórico, Ideologia foi o termo primeiramente
apresentado na França, no início do século XIX, por Destrutt de Tracy, que
juntamente com um grupo que posteriormente foi conhecido como os ideólogos
franceses, sendo eles materialistas, “admitiam apenas causas naturais físicas (ou
materiais) para as idéias e as ações humanas e aceitavam conhecimentos
científicos baseados na observação dos fatos e na experimentação”. (CHAUÍ,
2006, p.25)
Pensar o conceito de ideologia somente pelos pressupostos de Marx,
embora seja um dos teóricos mais explorados e estudados, é esquecer que ele
“não separa a produção das idéias e as condições sociais e históricas nas quais
são produzidas (tal separação, aliás, é o que caracteriza a ideologia).” (CHAUÍ,
2006, p.34). Para melhor entender as críticas de Marx, também é necessário
saber a que tipo de pensamento determinado ele está se referindo, que é o de
29
Hegel. A ligação de Marx com Hegel foi um fator importante para cunhar sua visão
de ideologia, pois ele critica os ideólogos alemães, como Stirner, Bauer, F. Strauss
e Feuerbach, dizendo que eles tiveram a pretensão de destruir o sistema
hegeliano, pois criticariam apenas um aspecto ideológico da filosofia de Hegel, em
lugar de abarcá-la como um todo. Marx também critica estes ideólogos porque
cada um deles “tomou um aspecto da realidade humana, converteu esse aspecto
numa idéia universal e passou a deduzir todo o real a partir desse aspecto
idealizado”. (CHAUÍ, 2006, p.35)
Nota-se que algumas das definições de ideologia são amplamente
compatíveis, enquanto outras se contradizem, como, por exemplo, “se ideologia
significa qualquer conjunto de crenças motivadas por interesses sociais, então não
pode simplesmente representar as formas de pensamento dominantes em uma
sociedade”. (CHAUÍ, 2006, p.14-15)
O conceito de ideologia revela-se como uma questão de suma importância
nesse trabalho. Trata-se de um termo complexo, uma vez que, de acordo com
Brandão (1997), a linguagem enquanto discurso não se constituiria apenas como
um instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a autora compreende
a linguagem como interação, e um modo de produção social, ela o é neutra,
nem imparcial ou inocente, à medida que transmite uma intencionalidade
manifestaria a face da ideologia: “a linguagem é lugar de conflito, de confronto
ideológico, não podendo ser analisada fora da sociedade uma vez que os
processos que a constituem são histórico-sociais”. (BRANDÃO,1997,p.12).
30
Um breve percurso histórico deve ser abordado e nos auxiliará a esclarecer
alguns contornos do fenômeno ideológico. A palavra ideologia foi criada no
começo do século XIX para designar uma “teoria geral das idéias”. Foi Karl Marx
quem começou a fazer uso político dela quando escreveu um livro junto com
Friedrich Engels intitulado A ideologia alemã. Nessa obra, os autores mostram
como, em toda sociedade dividida em classes, aquela classe que domina as
demais faz tudo para não perder essa condição. Uma forma de manter-se no
poder é usar a violência contra todos aqueles que forem contrários à classe
dominante. Mas a violência pode voltar-se também contra ela: a violência pode
gerar a revolta do povo. É, então, muito mais cil e mais eficiente dominar as
pessoas pelo convencimento.
É que entra a ideologia: ela constituirá um corpo de idéias produzidas
pela classe dominante que será disseminado por toda a população, de modo a
convencer a todos de que aquela estrutura social é a melhor ou mesmo a única
possível. Com o tempo, essas idéias se tornam as idéias de todos; em outras
palavras, as idéias da classe dominante tornam-se as idéias dominantes na
sociedade. (BRANDÃO, 1997, 16).
Na seqüência, Althusser 1970 (In MUSSALIM, 2001, p.102) atribui ao
Estado o papel de detentor dos Aparelhos Repressores do Estado (ARE: o
governo, o exército, a polícia, as prisões, etc) e dos Aparelhos Ideológicos (AIE:
instituições como a religião, a escola, a família, o direito, a política, o sindicato, a
31
cultura e a informação), cuja função é operar, quer pela repressão, quer pela
ideologia, o controle contínuo da classe dominante.
O aparelho ideológico escolar assume, para Althusser (1970 In Mussalim,
2001, p.103), papel de destaque, que a escola congrega crianças de todas as
classes sociais, desde os primeiros anos da infância, durante um longo período de
tempo, podendo, assim, impingir as idéias da ideologia dominante.
Embora de forma sucinta, tais considerações permitem evidenciar o quanto
a ideologia pode atuar nas escolhas docentes acerca do ensino da gramática,
objeto dessa pesquisa. A seguir, algumas considerações sobre a formação
discursiva, outro aspecto teórico fundamental a nossas análises.
1.2.2 Formação Discursiva em Foucault
A década de 60 foi um momento de grandes debates teóricos no escopo
das ciências humanas e o auge da chamada “crise do paradigma marxista”. Nesse
momento, começaram a vir à tona as denúncias dos opositores do regime que se
instalou na URSS após a morte de Lênin. Notícias de Moscou assombravam o
mundo, por conta dos famosos “expurgos stalinistas”. A mão de ferro da
perseguição aos antigos deres da revolução, os gulags, etc, lançaram profundos
questionamentos na esquerda em nível mundial. Michel Pêcheux pertencia ao
32
Partido Comunista Francês e estivera ligado ao “grupo em torno de Althusser”,
influente filósofo do marxismo francês, antes do trágico desfecho de sua vida
pessoal. Althusser opera uma releitura de Marx, no tocante à questão da
ideologia, concebida em Marx como “falsa consciência”. Na primeira parte de
Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado (1970), Althusser afirma que, numa
sociedade de classes, para manter a sua dominação, a classe dominante gera
mecanismos de perpetuação ou de reprodução das condições materiais,
ideológicas e políticas de exploração. Essa dominação se efetiva, pois, através de
dois mecanismos, os quais, em síntese, dizem respeito aos mecanismos de
operação da ideologia: os ARE e os AIE, conforme citado anteriormente.
Assim, para Althusser, “a ideologia exprime sempre, seja qual for a sua
forma (religiosa, jurídica, política) posições de classe” (1970, p.23). Foi, portanto,
com base na concepção althusseriana de ideologia que Pêcheux elaborou a sua
teoria do discurso. Entretanto, em vários dos seus textos, Michel Pêcheux afirma
que o conceito de formação discursiva com o qual trabalha é emprestado de
Foucault.
No entanto, para Marx, a construção de uma sociedade comunista
(sociedade sem classes, portanto, sem exploração do homem pelo homem) seria
o grande desafio (fim) histórico da classe trabalhadora. Obviamente, essa é uma
simplificação, grosso modo, da teoria marxista da história e da luta de classes com
todos os problemas que qualquer simplificação implica. Foucault, por sua vez,
33
contesta essa concepção de história como continuidade, discorda da idéia de
ruptura, concebendo a idéia de acontecimento histórico não como “ruptura”, mas
como “irrupção”. Em vez de ideologia, ele trabalha com a constituição de
saberes/poderes, os quais, segundo ele, não passariam necessariamente pela
questão das classes sociais e não estariam necessariamente determinados, nem
mesmo em “última instância” pelos fatores econômicos:
“A noção de ideologia me parece mal usada por três razões. A primeira é que,
querendo ou não, está sempre em oposição virtual a algo que seria a verdade.
Entretanto, eu creio que o problema não está em fazer a divisão entre o que um
discurso evidencia, a cientificidade, e a verdade que evidencia outra coisa, senão
ver historicamente como se produzem os efeitos da verdade no interior dos
discursos que não o: nem verdadeiros, nem falsos. Segunda desvantagem, é
que a se refere, necessariamente a algo como um assunto. E terceiro, a ideologia
está em posição secundária a respeito de algo que deve funcionar para ela como
infra-estrutura, o determinante econômico, material, etc. Por estas três razões,
creio que é uma noção que não pode ser utilizada sem precaução” (FOUCAULT,
1987,p. 181,182),
Assim, Foucault concebe as formações discursivas não em termos de
ideologia, termo profundamente marcado pelo viés marxista de posições no
tocante à luta de classes, mas em termos de saberes/poderes.
Dessa forma, um dos aspectos mais importantes legados pela Análise do
Discurso de linha francesa às ciências humanas talvez seja a noção de “formação
34
discursiva”, visto que esta se relaciona diretamente com a problemática do sujeito,
um dos temas sempre pulsantes nesse campo do saber. Partindo desse
pressuposto, objetivo discutir a noção de formação discursiva pela via de um
cotejo entre as abordagens desses dois teóricos basilares dessa disciplina: Michel
Foucault e Michel Pêcheux, na perspectiva de verificar a atualidade e a pertinência
de tal conceito, tentando apontar alguns elementos que se afastam da aura de
evidências criadas em torno da questão, principalmente no tocante à relação entre
formação discursiva e formação ideológica. Michel Pêcheux traz para a Análise do
Discurso o conceito de formação discursiva de Foucault, mas não na forma de
uma transposição linear. Ele a ressignifica de acordo com as questões políticas e
teóricas nas quais estava envolvido.
Tratava-se, segundo o próprio Pêcheux, de extrair da noção de Foucault o
que “ela tinha de materialista”. Ao definir formação discursiva como “aquilo que,
numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o
que pode e deve ser dito articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de
um panfleto, de uma exposição, etc.”. (PÊCHEUX, 1990 a), o autor aponta duas
bases epistemológicas: a primeira, o pertencimento às teses althusserianas de
luta de classes e ideologia, e a segunda, o fulcro na Lingüística, acentuando a
questão dos gêneros do discurso.
Como a apreensão do social histórico implica captar simultaneamente o
acidente, contingente e efêmero - gerador de novos fatos e de novas e singulares
35
significações sociais - e a estrutura, mais ou menos permanente, contínua e
determinada, a noção de formação discursiva, proposta inicialmente por Michel
Foucault (1987) e modificada por Michel Pêcheux (1990 b) no âmbito da análise
do discurso, torna-se teórica e metodologicamente pertinente.
Caso se amenizem, na noção de formação discursiva, o caráter
determinista, muito acentuado por Foucault, e o caráter estrutural, pontificado por
Pêcheux em suas primeiras análises do discurso, a noção abre uma perspectiva
teórica para a apreensão do domínio social histórico e, ao mesmo tempo, fornece
um instrumento de pesquisa hoje consolidado, a análise do discurso.
Curiosamente, datam do mesmo ano, 1969, a noção foucaultiana de formação
discursiva, contida em A arqueologia do saber, e a criação da análise automática
do discurso por Michel Pêcheux (1990 a).
A definição de formação discursiva implica: ”Um conjunto de regras
anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram,
em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica
ou lingüística as condições de exercício da função enunciativa.” (FOUCAULT,
1987, p. 136). A noção foucaultiana de discurso se refere ao conjunto de
enunciados provenientes de uma mesma formação discursiva.
Pêcheux levou a noção para a análise do discurso, inicialmente construída
no âmbito de uma tomada de posição puramente estruturalista e cujo objeto fora
36
definido como as relações entre “máquinas” discursivas estruturais. Segundo
Pêcheux:
A noção de formação discursiva tomada de empréstimo a Michel Foucault
começa a fazer explodir a noção de máquina estrutural fechada [...]:
“uma formação discursiva não é um espaço estrutural fechado, pois é
constitutivamente “invadida” por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de
outras formações discursivas (PÊCHEUX, 1990 b, p. 314).”
A noção de interdiscurso foi, então, introduzida na análise do discurso para
designar o espaço exterior específico de uma formação discursiva. Pouco mais
tarde, cheux (1990 b) modificou os procedimentos de análise do discurso que
vinha utilizando, reconhecendo que as palavras mudam de sentido quando
passam de uma formação discursiva a outra. Análoga à imagem do cosmos, cuja
estrutura traz consigo sua história e é a sua história, a formação discursiva do
discurso da eqüidade e da desigualdade sociais pode ser apreendida
imediatamente, sem que sua pesquisa se confunda com o trabalho do historiador
e sem que cronologia e evolução instrumentos, entre outros, do pensamento
herdado sejam essenciais. Importa, especialmente, a criação de dispositivos
para a apreensão simultânea das dimensões sincrônica e diacrônica e das
significações imaginárias sociais, além das determinações sociais, econômicas,
geográficas, lingüísticas.
37
Discursos o produzidos a partir de lugares definidos na organização e
estruturação sociais e endereçados a interlocutores que, supostamente,
compartilham a mesma comunidade discursiva e uma mesma história coletiva. O
“deds”, ou seja, a enumeração de Charaudeau e Mainguenau (2004) para os
conjuntos enunciativos do discurso da eqüidade e da desigualdades sociais, está,
pois, inscrito no contexto social histórico que o produz, reflete concepções
correntes de sua época e pode ser compreendido integralmente tendo essas
concepções como pano de fundo. Por isso, a partir dele, é possível conhecer
também acontecimentos macrossociais reais e os vínculos de eqüidade e
desigualdade que congregam e separam indivíduos reais. Em síntese, o deds
reflete e, ao mesmo tempo, cria os lugares sociais históricos, não apenas de
enunciação, mas também de vida real.
Em outras palavras, é possível afirmar que as “significações”, assim
marginalizadas (como também ocorre a marginalização da noção de “sentido
literal”), constituem, por sua formatação em termos temporais e situacionais, parte
componente da memória discursiva: Estas significações não são eternas, nem
sem movimentos. Elas se fragmentam, se desconstroem, se rompem e mudam
por “fermentação”, são imprescindíveis como fundação; como memória, são
verdadeiramente as condições de legibilidade.
1.2.3 Memória discursiva
38
Analisando a construção discursiva do sentido e o funcionamento dos
implícitos, Achard (1999, p. 8) esclarece: “a memória não pode ser provada, não
pode ser deduzida de um corpus, mas ela trabalha ao ser reenquadrada por
formulações no discurso concreto em que nos encontramos.”
Achard (1999, p.16) afirma que: “a regularização se apóia necessariamente
sobre o reconhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é de ordem do
formal, e constitui um outro jogo de força, este fundador. E é dessa forma que
analisaremos o discurso de nossos professores, tentando dar conta do fato de que
a memória suposta pelo discurso é sempre reconstruída na enunciação.”
Dessa forma, dentro dos postulados da AD Francesa, cada sujeito, na
produção de um discurso, promove uma relação deste discurso em formulação
com o interdiscurso ou memória discursiva, ou seja, com todos os dizeres que
foram, de fato, ditos. Pêcheux (1990, p.52) afirma que:
“A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como
acontecimento a ser lido, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao
próprio legível.”
Isso ocorre naturalmente, mesmo que o falante o tenha sequer
consciência dessa operação discursiva. Sendo assim, em seu discurso o sujeito
fala uma voz sem nome, consideravelmente atravessada e levada ao sabor da
39
ideologia e do inconsciente. Por este motivo, a AD postula que esse “saber”, que
não é ensinado (nem pode ser), produz significativos e importantes efeitos nos
discursos produzidos. Assim sendo, essa leitura discursiva acaba por considerar o
que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que é dito de uma maneira e
o que é dito de outra maneira, procurando entender e escutar o não-dito,
exatamente na materialidade do que foi dito, considerando esta ausência como
algo significativo.
Tomo como referências para a fundamentação dessa análise a
heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma
abordagem do outro no discurso, de Authier-Revuz (1990), publicado em Entre a
transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido, devidamente
referido ao final do trabalho.
Para tratar do tema da heterogeneidade discursiva, a autora estabelece
entre as formas de heterogeneidade presentes no discurso, que dependem da
descrição lingüística, e aspectos da heterogeneidade constitutiva, não localizáveis
no fio discursivo. Falar de heterogeneidade constitutiva é falar daquilo que o
constitui enquanto tal. É olhar para a constituição do tecido discursivo. Afirmando
a supremacia do outro no discurso – terceira fase da AD
.
Para uma melhor compreensão desse processo lançamos mão do conceito
de memória discursiva. Tal conceito diz respeito à recorrência de enunciados,
40
separando e elegendo aquilo que, de fato, dentro de uma contingência histórica
específica, pode surgir sendo atualizado no discurso ou rejeitado em um novo
contexto discursivo essa ocorrência é capaz de produzir peculiares efeitos. A
esse respeito, Achard (1999, p.19) comenta: “A noção de memória discursiva
exerce, portanto, uma função ambígua no discurso, na medida em que recupera o
passado e, ao mesmo tempo, o elimina com os apagamentos que opera”.
É justamente na memória discursiva que nasce a possibilidade de toda
formação discursiva produzir e operar formulações anteriores, que foram feitas,
que foram enunciadas. Em outras palavras, a memória discursiva permitirá na
infinita rede de formulações (existente no intradiscurso de uma formação
discursiva) o aparecimento, a rejeição ou a transformação de enunciados que
pertencem a formações discursivas posicionadas historicamente. Dessa forma, os
sentidos são condicionados pelo modo com que os discursos se inscrevem na
língua e na história, conseguindo, assim, significar. Ou seja, o discurso significa
por sua inscrição e pertencimento a uma dada formação discursiva historicamente
constituída e não pela vontade do enunciador. Prova disso é o fato de que, ao
nascermos, o discurso já está em processo, sendo nós que entramos e nos
ajustamos nesse processo. Portanto, podemos entender que a própria
“incompletude” é condição e característica da linguagem. Os sujeitos, os sentidos
e os discursos nunca estão prontos e muito menos acabados.
Nesse mecanismo de funcionamento, o discurso repousa em formações
41
imaginárias. Essas formações de imagens permitem a passagem de situações
empíricas para as posições ocupadas pelos sujeitos no discurso. O que significa
no discurso são exatamente essas posições. E elas, necessariamente, significam
em relação ao contexto sócio-histórico e à memória, ao dito (ao saber
discursivo). Assim, o sujeito falante compõe a imagem de seu interlocutor para
dizer-lhe o que diz, podendo até mesmo antecipar o que ele pensadiante do
que é dito. Dessa forma, ele organiza o seu discurso, antecipando contra-
argumentações a seu favor. Neste jogo de dizeres se manifesta o discurso,
enquadrando-se em um outro característico jogo: o de forças, as quais estão,
presentes em toda e qualquer sociedade hierarquizada que promove contínuas
antecipações de imagens.
Como pontuamos anteriormente, de forma genérica entendemos que
memória discursiva se define aproximadamente como uma espécie de
“interdiscurso”, ou seja, trata-se de um saber discursivo que possibilita que as
nossas palavras façam sentido. Isto ocorre porque algo fala antes, em outro lugar,
de forma independente do discurso que é proferido na atualidade. O saber, a que
nos referimos acima, corresponde a palavras ditas e esquecidas, mas que
continuam presentes e nos afetam em sua qualidade de “esquecimento”.
O mecanismo que regula a argumentação presente nos discursos, quando
procedemos à análise a partir dos postulados de memória discursiva, nos remete
à compreensão de que os sentidos são escolhidos e presumidos por antecipação
42
de interpretação, são produzidos por relações parafrásticas e disponibilizados para
discursos futuros. Portanto, encontramos um sujeito capaz de deslocar-se, tornar-
se observador, ao mesmo tempo que diz (de uma forma ou de outra) conforme
intenciona na produção de efeitos no interlocutor.
que um discurso é sustentado por outros e aponta para o futuro, os
sentidos são produzidos a partir de posições. Nesse contexto, a memória
discursiva é presumida a partir de um momento sócio-histórico, fazendo que o
sujeito “migre” de uma situação empírica para uma posição discursiva.
Na relação discursiva é que as imagens constituem as diferentes posições
e assim fazem de fato algum sentido. Vale ressaltar que este sentido não está nas
palavras, mas antes delas e depois delas, simplesmente porque palavras remetem
a palavras. Além do que os sentidos o estão irrevogavelmente dependentes
das intenções, mas permeados e atravessados pelas suas próprias relações com
uma formação discursiva peculiar e com uma meria. Portanto, não existe
sentido em si: ele nasce de colocações de caráter ideológico fazendo com que as
palavras mudem de sentido de acordo com as posições em que são enunciadas,
apreendidas a partir do exterior do discurso.
Nesta compreensão, conceituamos memória discursiva conforme Ferreira
(2005, p.20);
“A memória discursiva faz parte de um processo histórico resultante de uma
43
disputa de interpretações para os acontecimentos presentes ou ocorridos
(Mariani, 1996). Coutine & Haroche (1994) afirmam que a linguagem e os
processos discursivos são responsáveis por fazer emergir o que, em uma memória
coletiva, é característico de um determinado processo histórico. Orlandi (1993) diz
que o sujeito toma como suas as palavras de uma voz anônima que se produz no
interdiscurso , apropriando-se da memória que se manifestará de diferentes formas
em discursos distintos.”
Assim, presentes em cada discurso, alguns elementos que não podem
surgir na superfície discursiva, tão-somente porque, se eles aparecerem,
representarão um perigo real e um considerável desequilíbrio para o discurso em
questão.
1.2.4 O Interdiscurso
O interdiscurso é um dos conceitos fundamentais da Análise de Discurso
(AD) filiada aos trabalhos fundadores de M. Pêcheux e seu grupo de
colaboradores. Este é um dos conceitos que permitem caracterizar a AD nesta sua
linha de filiação e a distingue de outras abordagens ditas discursivas e de outros
campos de saber. Definido através de um esforço contínuo de elaboração e
reelaboração conceitual, o interdiscurso se apresenta como o pivô teórico que
permite articular os outros conceitos da teoria, configurando, assim, um corpo
sólido e articulado de reflexões sobre a relação entre língua, sujeito, história e
44
ideologia.
Ao mesmo tempo, o interdiscurso é um dos conceitos mais banalizados por
sucessivas reapropriações, freqüentemente em prol de sua operacionalização, o
que permite reduzir um conceito articulador de forte investimento teórico em uma
simples metodologia de análise, aplicada com fins puramente instrumentais.
As determinações sobre a trajetória social da palavra feitas pelo
interdiscurso são ignoradas pelos sujeitos via interpelação ideológica os quais
acreditam ser a fonte do seu discurso, quando são apenas o seu suporte e o
efeito.
Pêcheux (apud AUTHIER-REVUZ, 1990, p.270) alude a esse fato
esclarecendo que a função de toda formação discursiva é escamotear, através do
sentido de que é revestida, a materialidade objetiva do interdiscurso que a preside
e que corresponde ao fato de que o que fala, fala “sempre antes, alhures e
independentemente” (grifos do autor).
Em função disso, a AD visa oferecer subsídios para a assimilação criteriosa
dessa nova prática de leitura, que consiste em considerar aquilo que é dito em um
discurso e o que é dito em outro, tanto quanto as maneiras de dizer de ambos,
para poder ouvir o “não-dito naquilo que é dito, como a presença de uma ausência
necessária” (ORLANDI, 1986, p. 105-126).
45
1.2.5 O Sujeito
Para Orlandi (1986), o sujeito lingüístico é um sujeito-de-direito, isto é,
um juridismo tal na constituição desse sujeito que faz com que ele interiorize a
idéia de coerção ao mesmo tempo que toma consciência de sua autonomia. Essa
forma-sujeito, enquanto personalidade jurídica abstrata, é possível com o
capitalismo e resulta de lutas que se dão pelo desenvolvimento de uma longa
história.
A AD procura apreender esse efeito. Para tal, inclui em seu quadro teórico a
consideração necessária da ideologia. É necessária, pois, caso não seja levada
em conta, as aparentes transparências do sujeito e do sentido ocultam o processo
pelo qual tanto o sujeito quanto o sentido se constituem. Em suma, sem a
consideração da ideologia, se torna-se o sujeito como causa de si, não se levando
em conta nenhuma história de sua constituição, nem a historicidade do sentido.
Finalizando, Pêcheux (1969 apud ORLANDI, 1986) declara: “não existe
discurso sem sujeito, e não existe sujeito sem ideologia”.
Já Lacan (apud MUSSALIN, 2001), centrado na noção de sujeito, visa
estabelecer os fundamentos de um saber sobre o subjetivo, realizando uma
revolução comparável à kantiana, sendo que aqui o transcendental é substituído
46
pela linguagem, que define o Outro como sendo, para o sujeito, “o lugar de onde
pode ser colocada, para ele, a questão de sua existência”, no cerne mesmo do
sujeito – designada pela própria ambigüidade deste termo: autonomia e servidão.
Partindo desse princípio, Lacan (apud MUSSALIN, 2001), ao fazer uma
releitura de Freud, afirma que o inconsciente é estruturado por meio da linguagem,
pela qual circulam os outros discursos no discurso efetivo, como se a palavra
sempre trouxesse consigo outras palavras, como se fossem indícios de outros,
tais como: o discurso do inconsciente, do estranho, de onde emana o discurso do
pai, da família, da lei, enfim do Outro e em relação ao qual o sujeito se define,
ganha identidade. ”
No mesmo sentido, Brandão (1997) tratava do descentramento do sujeito
como “entidade homogênea”. Segundo a autora, a questão não se restringe mais
e tão-somente a visualizar esse outro como elemento que fundamenta a
possibilidade de existência do discurso pela natureza social de interação entre
sujeitos, mas segundo uma outra forma de interação, que se faz entre o sujeito e o
inconsciente. Nesse processo em que “o inconsciente é o discurso do outro”, o
sujeito se constitui como um efeito da linguagem, ele figura como simbolização
através dos modos de linguagem que ele enuncia e que, em contrapartida,
acabam por enunciá-lo.
Embora a AD apresente outros aspectos que mereceriam ser mencionados,
47
por ser um complexo campo de estudo, cremos que os esclarecimentos acima são
suficientes para empreendermos a análise dos discursos dos sujeitos da pesquisa.
Capítulo II. Reflexões sobre a gramática.
2.1 O percurso histórico
Segundo Neves (2004), toda vez que se fala em gramática é necessário
especificar-se muito claramente de que é que se está falando, exatamente. É
possível ir desde a idéia de gramática como “mecanismo geral que organiza as
línguas” até a idéia de gramática como “disciplina”, e, neste último caso, não se
pode ficar num conceito único, sendo necessária uma incursão por múltiplas
noções, que são múltiplos os tipos de lições que a gramática da língua pode
fornecer: no modelo normativo puro, a gramática como o conjunto de regras que o
usuário deve aprender para falar e escrever corretamente a língua; no modelo
descritivo ou expositivo, a gramática como conjunto que descreve os fatos de uma
dada língua; no modelo estruturalista, a gramática como descrição das formas e
estruturas de uma língua; no modelo gerativo, a gramática como o sistema de
regras que o falante aciona intuitivamente ao falar ou entender sua língua; e assim
por diante.
A linguagem está presente em toda parte, permeando nossos pensamentos,
mediando nossas relações com os outros. Seu estudo tem uma longa trajetória,
48
embora a ciência que se ocupa em estudá-la tenha se estruturado como área de
conhecimento autônoma e independente apenas na metade do século XIX. Nas
sociedades primitivas, a inexistência de estudos lingüísticos é fato. À medida que
as sociedades foram se tornando mais complexas, surgiram condições favoráveis
para o estudo da linguagem, sobretudo a partir da invenção da escrita. Esta
propiciou a percepção dos diferentes fenômenos lingüísticos. A tradição
gramatical no ocidente remonta aos gregos da Grécia Antiga.
Codificação da gramática no Ocidente
Ainda segundo Neves (2004, p.33), voltando ao cenário da codificação da
gramática no Ocidente, podemos com clareza, encontrar, no que nos restou como
obra desse processo, todas as marcas da época.
Neves (2004, p. 33) afirma que:
”toda a gramática tradicional ocidental está afeiçoada à trajetória que culminou na
sua instituição. Vista na sua vertente grega, a instituição dessa gramática exibe
características centrais que ainda hoje se configuram em obras gramaticais
disponíveis.”
Ligadas ao uso lingüístico, existem sempre, ao lado de uma modalidade
considerada a norma-padrão, à qual se atribuem qualidades “superiores”: ela seria
mais regular, modelar, e, portanto, deveria ser seguida e perseguida. Isso é
particularmente notável na codificação inicial da gramática ocidental, época em
49
que a ameaça de sobrepujamento da língua grega pelos falares “bárbaros”,
“corrompidos”, ou seja, não gregos, conduziu determinantemente nesse sentido
toda a feitura das lições que os gramáticos produziam:
Comprometidas com a existência de uma língua comum (koiné) que se
distribui por todas as cidades, as noções gramaticais que se codificam associam-
se à noção de norma. Levantam-se os quadros de flexão como paradigmas e,
paralelamente, levantam-se os desvios e irregularidades que o uso determinou
(Neves,2004, p.244).
Estudos sintáticos revelavam a influência dos trabalhos de Dionísio da
Trácia e a influência mentalista dos estóicos. Tais estudos compreendiam
diferentes níveis da língua fonemas, sílabas, palavras uma vez que
consideravam “uma série de elementos relacionados” e “o conjunto de regras que
regem a sintaxe dos elementos” (NEVES, 2004, p. 63). Apolônio foi “o único
gramático antigo que escreveu uma obra completa e independente sobre sintaxe”,
segundo Neves (2003).
Os estudos de Dionísio da Trácia e de Apolônio Díscolo não
influenciaram significativamente o ensino do grego, como despertaram o interesse
para o estudo dessa língua em momentos históricos posteriores. Concluímos
então que, ao longo dos séculos, a gramática tem sido vista de diferentes
maneiras. Etimologicamente, gramática é um vocábulo grego que significa “a arte
de escrever.” No Crátilo, com Platão, a gramática era definida como a téchne
50
(arte), cuja função seria o de “regular a atribuição das letras na formação dos
nomes” (NEVES, 2003). Na época helenística , uma grammatiké seria um “exame
dos textos escritos” com a finalidade de resguardar as obras que representavam o
espírito grego, constituindo-se em uma disciplina de cunho didático. Ela é, então,
definida por Dionísio da Trácia como empeiriá (conhecimento empírico).
Concluindo, podemos afirmar que os PCNs de Língua Portuguesa (1998,
p.18) asseguram que, embora seja ainda perceptível uma atitude corretiva e
preconceituosa em relação às formas de expressão lingüística, as propostas de
transformação do ensino de Língua Portuguesa consolidaram-se em práticas de
ensino que privilegiam o uso da linguagem. Pode-se dizer que hoje é praticamente
consensual que as práticas devem partir do uso para permitir a conquista de
novas habilidades lingüísticas, particularmente daquelas associadas aos padrões
da escrita.
2.2 Que gramática ensinar na escola?
A análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais nos revelam que existe
muito preconceito decorrente do valor atribuído às variedades não-padrão,
consideradas “inferiores” ou “erradas” pela gramática normativa. Essas diferenças
não são imediatamente reconhecidas e, quando são, são objetos de avaliação
negativa.
Possenti (2006, p.87) afirma que: “sendo a língua uma realidade essencialmente
variável, em principio não há formas intrinsecamente erradas”. No entanto, na
51
situação peculiar da escola, onde o aluno está para aprender uma variedade que
não domina, ocorrem dois tipos de situação que poderiam ser caracterizados como
"erros escolares". Em primeiro lugar pode ocorrer que o aluno utilize variantes que
fogem da norma-padrão, em situações nas quais esta seria exigida.
Luiz Costa Pereira Júnior, editor da revista Língua Portuguesa, afirma que
"muitas vezes, uma expressão ou situação de linguagem vira o centro de
determinado debate. Em outras, entender a história e o manejo da língua revela a
importância da Língua Portuguesa, não apenas como ferramenta de comunicação,
mas como chave para a alma brasileira. Ao falar, o brasileiro expressa sua
identidade, que nunca é uniforme, e o país respira sua diversidade que insiste em
nos unir". (Revista Língua Portuguesa, 2005).
Quando o autor afirma que a identidade do brasileiro nunca é uniforme, ele
está se referindo às diferenças da linguagem existentes no país. Crê que todas as
camadas populacionais têm direito de apropriar-se do dialeto de prestígio, portanto
o objetivo da escola é o de levar todos os alunos a possibilidade de aprender o
dialeto de prestígio e de dominá-lo para que adquiram um instrumento
fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.
Para Soares (1986, p.78), um ensino de língua materna que pretenda
caminhar na direção desse objetivo tem de levar o aluno a perceber o lugar que
ocupa o seu dialeto na estrutura de relações sociais, econômicas e lingüísticas e a
compreender as razões por que esse dialeto é socialmente estigmatizado. O
52
professor tem de apresentar as razões para ensinar ao aluno um dialeto que o
é do seu grupo social e propor-lhe um bialetismo, não para sua adaptação, mas
para a transformação de suas condições de marginalidade. O aluno precisa ter o
conhecimento da língua culta, não para mudar a sua maneira de falar, mas para
adequá-la ao contexto do momento. Como já foi citada, a linguagem utilizada com
uma pessoa do meio rural não é a mesma utilizada com uma pessoa "culta". Para
isso, é preciso que o aluno tenha conhecimento que existem diferentes dialetos,
mas o dialeto de prestígio é norma culta, a qual é ensinada nas escolas. É
necessário que o aluno saiba quais variedades e registros da língua oral são
pertinentes, em função da intenção comunicativa, do contexto e dos interlocutores
a quem dirige.
Continuando em sua afirmação a autora preconiza:
“a questão não é de correção da forma, mas de sua adequação às circunstâncias
de uso, ou seja, de utilização eficaz da linguagem falar bem é falar
adequadamente, é produzir o efeito pretendido” (SOARES, 1986).
A escola pública se encontra em crise, e esta é desencadeada por muitos
fatores, tais como: descaso das autoridades competentes, que não se empenham
mais com a educação, falta material didático e espaço físico inadequado para
atender às reais necessidades dos educandos. Soares (1986) julga ser o
despreparo dos educadores o fator que desmotiva os alunos a freqüentar a
53
escola. (SOARES, 1986, p. 79).
Vale lembrar que essa afirmação da autora refere-se à escola pública e não
à escola particular, o nosso universo de pesquisa. As instituições privadas foram
apenas resvaladas por essa crise, pois se mantêm com recursos próprios. Além
disto, não sofrem com o despreparo dos educadores, pois estes devem
corresponder às expectativas tanto da escola como dos alunos.
Segundo Bechara (2007, p.5), a crise com que a escola se defronta tem
raízes mais profundas do que uma simples escassez de recurso, ou o
desinteresse das autoridades competentes, ou do despreparo do corpo docente e
discente. O autor afirma que:
“a nosso ver, uma análise mesmo superficial permite apontar três ordens de crises
independentes, mas estreitamente relacionadas, que acabam desaguando na ação
da escola [...]. "A primeira crise é na ordem institucional, na própria sociedade que
de uns tempos para cá, seguindo as pegadas de uma tendência mundial de s-
guerra, privilegiou o coloquial o espontâneo e o expressivo, renovando
consideravelmente a língua popular".
Essa tendência influenciou decisivamente os costumes lingüísticos de tal
modo que, na Língua Portuguesa falada no Brasil, a distância entre o nível popular
e o nível culto ficou tão marcada que, se assim prosseguir, acabará chegando a se
parecer com o fenômeno verificado no italiano ou no alemão, por exemplo, com a
54
distância entre um dialeto e outro.
Continuando em suas afirmações o autor segue:
“o coloquialismo, que no trabalho de muitos cronistas modernos resulta de um
elaborado e consciente artesanato expressivo, nem sempre tem sido visto como tal
no dia-a-dia de sala de aula. O resultado é que os alunos, não sendo alertados
para o propósito estilístico que inspira a opção lingüística, limitando-se a essa
leitura, têm perdido o contacto com os tradicionais textos “clássicos” e, com isto, a
oportunidade de extrair deles subsídios para o seu enriquecimento idiomático,
especialmente no campo da sintaxe e do léxico.”
E assim a escola, de uma maneira geral, perde o apoio que lhe poderia dar
a literatura no aperfeiçoamento da educação dos seus alunos; apenas na escola
particular ainda se cultuam “as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma”
(Machado de Assis apud BECHARA, 2007, p.6).Uma escola realmente
comprometida com seus alunos respeita a diversidade de linguagem existente em
nosso país, sem privar o educando de se apropriar da norma culta, o que deixaria
preso a seu dialeto de origem. É preciso respeitar o conhecimento prévio do aluno
transformando-o num poliglota dentro de sua própria língua, propiciando-lhe a
oportunidade de escolher a língua funcional adequada ao contexto do momento.
Continuando, o autor afirma que:
"A segunda crise é na universidade, já que a lingüística ainda não conseguiu
constituir-se definitivamente desdobrando-se em diversas lingüísticas que discutem
55
seu objeto, suas tarefas e suas metodologias. Apresentadas ora paralela ou
conflitantemente, a verdade é que as teorias lingüísticas ainda não chegaram a
consolidar um corpo de doutrina capaz de permitir uma descrição funcional-integral
do saber elocucional, do saber idiomático e do saber expressivo””. (BECHARA,
2007, p. 7).
Finalizando seu pensamento, o autor identifica como a terceira crise aquela
que instala na escola:
“na medida em que não se fazendo as distinções necessárias entre gramática
geral, gramática descritiva e gramática normativa, a atenção do professor se volta
para os dois primeiros tipos de gramática, desprezando justamente a gramática
normativa que deveria ser o objeto central de sua preocupação" (BECHARA, 2007,
p.7).
Como conseqüência disso, a escola despreza toda uma série de atividades
que permitiriam levar ao educando a educação lingüística necessária ao uso
efetivo do seu potencial idiomático. Não que as duas primeiras sejam
desnecessárias, pois a normativa/descritiva tem como preocupação central
valorizar as regras que o falante de fato utilize a gramática geral valoriza tudo que
o falante consegue expressar desde que haja comunicação, ou seja, desde que
seja compreendido.
Segundo Bechara, o privilegiamento da língua oral, espontânea em relação
à língua escrita deveu-se a duas ordens de fatores: uma de natureza lingüística,
outra de natureza política (2007, p.9). As ciências da linguagem vieram patentear
56
que as línguas históricas o fenômenos eminentemente orais, e que o código
escrito outra coisa não é senão um equivalente visível do código real que, falado e
ouvido, passa a ser escrito e lido. Devido a esse privilegiamento da língua oral em
relação à língua escrita, na década de 60 muitos professores aboliram o ensino da
gramática em sala de aula.
A respeito da segunda ordem, a política, o autor continuando em sua
argumentação, ou para não desmerecer uma atividade nobre, de certas teses
populistas, especialmente no que concerne à educação de adultos, segundo as
quais devem os “oprimidos” ficar com a própria língua e não aceitar a da classe
dominante, afirma:
"A educação lingüística põe em relevo a necessidade de que deve ser respeitado o
saber lingüístico prévio de cada um, garantindo-lhe o curso na intercomunicação
social, mas também não lhe furtar o direito de ampliar, enriquecer e variar esse
patrimônio inicial. As normas da classe dita "opressora" e dominante não serão
melhores e nem piores do que as usadas na língua coloquial" (BECHARA, 2007,
p.11.12).
Cabe-nos lembrar que a escola particular o viveu esse momento em sua
essência, pois o seu objetivo sempre foi atender a uma pequena população mais
favorecida economicamente e prepará-la para o acesso a uma educação superior
de qualidade, conforme afirma Piletti (2005, p 148).
57
Continuando em seus esclarecimentos, o Bechara afirma:
“que o ensino da gramática normativa resulta da possibilidade de que dispõe o
falante de optar, no exercício da linguagem, pela ngua funcional que mais lhe
convém à expressão. Resulta, portanto da "liberdade" de escolha que oferece uma
língua histórica considerada em sua plenitude. É uma língua “adquirida” cuja
técnica histórica deve ser ensinada” (BECHARA, 2007, p.17).
A língua materna é aquela que aprendemos espontaneamente nos
primeiros anos de vida, e aprimoramos com o tempo.Já a língua culta é aquela
aprendida na escola.
Corroborando as idéias de Bechara quanto ao ensino gramática normativa,
Travaglia (2003, p.230) acredita que este deve ser feito sempre porque representa
desenvolver a competência comunicativa do aluno de forma que ele seja capaz de
utilizar adequadamente também a variedade padrão culta da língua, por seu papel
e status social, inclusive de veículo, no modo escrito, de toda a produção cultural.
O aluno precisa conhecer a norma culta, assim como conhece a língua da qual é
falante, e isso não deve gerar nele preconceito em relação às variantes
lingüísticas características da oralidade das pessoas das diversas regiões. Uma
vez que a gramática distingue o correto do incorreto na linguagem padrão, é
preciso um cuidado especial para não incutir nos alunos a obsessão pelo medo do
erro, e sim ajudá-los a liberar e aprimorar a capacidade comunicativa.
Finalizando as considerações sobre a gramática normativa, Neves (2003)
58
manifesta-se da seguinte maneira:
O mínimo que se espera da escola é que ela se esforce para prover a criança toda
a apropriação de vivência e de conhecimentos que lhe assegure um domínio
lingüístico capaz de garantir a produção de textos adequados às situações, de
modo que ela possa ocupar posições na sociedade. Por outro lado, também se
espera da escola que ela não crie um cotejo entre registros que constitua
estigmatização e banimento para o lado do aluno (NEVES, 2003, p.231)
A chamada gramática descritiva corresponde a um conjunto de regras
baseado no uso da língua. “É a que orienta o trabalho dos lingüistas, cuja
preocupação é descrever e/ou explicar as línguas tais como elas são faladas.”
(POSSENTI, 2006, p.65). Ao contrário do que acontece no modelo gramatical
normativo, a análise feita pela gramática descritiva não faz prescrições e concebe
um conjunto de formas de expressão características de qualquer variedade
lingüística.
Esse modelo gramatical é utilizado para observar as regularidades que
caracterizam as mais diversas variedades lingüísticas, ou seja, descreve ou
explica as línguas a partir da maneira como elas são faladas (POSSENTI, 2006).
Sob a perspectiva da gramática descritiva, o erro gramatical não existe, ou, melhor
explicando, caracterizam-se como um “erro” apenas as formas ou estruturas que
fogem ao funcionamento das diversas variedades de uma língua. Assim, usos da
língua que não eram aceitos pela gramática normativa passam a ser aceitos pela
gramática descritiva. Aceita-se, por exemplo, o uso do pronome “você” juntamente
59
com “te” ou “tua”, ou ainda a substituição de “nós” por “a gente”. Ou seja, a
gramática descritiva trata os “erros” de maneira diferente: utiliza um critério social,
não lingüístico, para a correção (POSSENTI, 2006, p.69).
Câmara Jr. (1984) nessa data, adverte que uma inadmissível
“confusão entre duas disciplinas correlatas, mas independentes”: a gramática
descritiva e a gramática normativa. A gramática normativa é considerada como a
gramática pedagógica. Para ele:
[...] a gramática normativa tem o seu lugar e não se anula diante da gramática
descritiva. Mas é um lugar à parte, imposto pelas injunções de ordem prática
dentro da sociedade. É um erro profundamente perturbador misturar as duas
disciplinas e, pior ainda, fazer lingüística sincrônica com preocupações normativas
(CÂMARA JR, 1984, p.15).
Finalizando, cumpre-nos definir a gramática internalizada, que segundo
Possenti (2006, p. 69): é um “conjunto de regras que o falante domina.” Refere-se
ele aqui a hipóteses sobre os conhecimentos que habilitam o falante a produzir
frase ou seqüências de palavras de maneira tal que essas frases ou seqüências
são compreensíveis e reconhecidas como pertencendo a uma língua. Diante de
frases como “Os meninos apanham as goiabas” ou “Os menino (a)panha as
goiaba”, qualquer um que fale português sabe que são frases do português, isto é,
que não são frases do espanhol ou do inglês.
Travaglia (2003) denomina a gramática internalizada como gramática de
60
uso. Para ele, os exercícios de gramática de uso são aqueles que buscam fazer
com que o aluno internalize recursos da língua de tal modo que adquira uma
gramática implícita para uso efetivo nas situações concretas e específicas de
interação comunicativa. Nas palavras do autor:
No ensino ela se estrutura em atividades que buscam desenvolver
automaticamente de uso das unidades, regras e princípios da língua (ou seja, de
mecanismos desta), bem como os princípios de uso dos recursos das diferentes
variedades da língua. Essas atividades, portanto, são especiais para a finalidade
de alcançar a internalização de unidades lingüísticas, construções, regras e
princípios de uso da língua para que estejam sempre à mão do usuário, quando
deles necessitar para estabelecer a interação comunicativa em situações
específicas [...] a gramática de uso pode e deve ser trabalhada a partir de
produções orais e/ou escritas de alunos e de outros produtores de textos de todos
os tipos (inclusive os literários, mas não só eles) (TRAVAGLIA, 2003, p.111).
Como profissionais da escola particular, nesse momento cumpre-nos
esclarecer que entendemos que cabe à escola ensinar ao aluno a língua
portuguesa para que desenvolva a capacidade comunicativa e se torne apto a
adequar a sua fala e a sua escrita a toda e qualquer situação de uso da língua. A
escola deve, também, ensinar sobre a língua, para que o aluno, conhecedor da
gramática, seja capaz de analisar e refletir sobre os fatos do seu idioma. Em
conformidade com Silva (2006), acreditamos que:
“o professor não pode alijar o ensino da norma-padrão das aulas de língua
61
portuguesa. É preciso que todos tenham a oportunidade de conhecê-la e de saber
empregá-la, já que esta é o suporte para a elaboração de textos formais”.
Continuando, as autoras colocam que é preciso discutir com urgência como
ensinar essa modalidade da gramática e como torná-la efetivamente útil ao aluno.
“É nesse sentido que a Lingüística se mostra sobremaneira útil, pois os novos
estudos podem contribuir para dilatar a compreensão de certos aspectos da língua,
provocando a reflexão e o entendimento necessário à produção textual. Esses
acréscimos precisam ser incorporados ao ensino da gramática” (SILVA , 2006).
Essa idéia é corroborada por Bechara (2007, p.60) quando vislumbra a
necessidade de lingüistas e os gramáticos colaborarem entre si, pois “a gramática
de tipo tradicional também se insere nesse rol de disciplinas que necessitam de
ser complementadas por não poderem resolver problemas que ultrapassam seus
fundamentos e critérios”. Assim, os aspectos semânticos, estéticos, discursivos e
pragmáticos presentes em um texto, que necessitam da compreensão das pistas
lingüísticas e extralingüísticas, podem não ser totalmente explicadas pela
gramática tradicional. Somente uma atitude integradora entre o conhecimento
gramatical e o conhecimento lingüístico é que pode levar a um bom resultado.
Bechara finaliza a idéia afirmando:
“acredito que nos esfaltando a ATMOSFERA UNIVERSITÁRIA, vale dizer, um
conjunto de condições favoráveis que permitam o sucesso no desempenho da
ação universitária, no estudo, na pesquisa e nos seus reflexos na pedagogia do
62
ensino de línguas.” (BECHARA, 2007, p.63).
2.3 A utilidade do ensino da gramática
Vygotsky foi um psicólogo russo, com formação em medicina e direito,entre
outras, Nasceu em Orsha, em 1896, e se radicou em Gomel, ambas as cidades da
Bielo-Rússia, sendo que Gomel situava-se em território de confinamento de judeus
na Rússia czarista. Desenvolveu sua produção psicológica basicamente em
Moscou, onde faleceu em 1934, com 38 anos de idade. Esse contexto ajuda a
entender o trabalho de Vygotsky, voltado para a demonstração do caráter histórico
e social da mente humana e da possibilidade de intervir em seu desenvolvimento.
Entre suas principais obras, e de maior repercussão no Brasil, pode-se citar:
Formação social da mente (1984), Pensamento e linguagem (2005) e A
Construção do pensamento e da linguagem (2001), esta última consiste na
tradução completa do “Pensamento e linguagem”.
Em suas pesquisas, Vygotsky buscava elaborar categorias e princípios para
desenvolver uma teoria psicológica que esclarecesse o psiquismo humano,
fundamentando-se na dialética. Uma preocupação inicial, nessa busca, era a de
estabelecer interlocução com os psicólogos russos da época, demonstrando que a
consciência e o comportamento, objetos da investigação psicológica, não
poderiam ser entendidos separadamente, mas como uma totalidade unificada.
Sendo assim, tinha como motivação em sua obra identificar o mecanismo do
63
desenvolvimento de processos psicológicos no indivíduo (formação da
consciência) por meio da aquisição da experiência social e cultural.
Vygotsky distingue os conhecimentos construídos através da experiência
pessoal, concreta e cotidiana das crianças conceitos espontâneos e aqueles
apreendidos por meio do ensino sistemático na escola conceitos científicos. Os
primeiros são construídos a partir da observação, manipulação e vivência direta.
Os segundos referem-se aos conhecimentos sistematizados na escola.
A partir de suas investigações sobre o processo de formação de conceitos,
Vygotsky acredita que os conhecimentos científicos não são absorvidos prontos
através de um processo de compreensão e assimilação. Ao contrário, a formação
de um conceito é resultante de um processo ativo e criativo. Um conceito:
...é um ato real e complexo de pensamento que não pode ser ensinado por meio
de treinamento, podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento
mental da criança tiver atingido o vel necessário. (...) A experiência prática
mostra também que o ensino direto de conceitos é impossível e infrutífero. Um
professor que tenta fazer isso geralmente não obtém qualquer resultado, exceto o
verbalismo vazio, uma repetição de palavras pela criança, semelhante à de um
papagaio, que simula um conhecimento dos conceitos correspondentes, mas que
na realidade oculta um vácuo. (VYGOTSKY, 2005, p.104)
Nessa direção, Silva (2006 p.3) corrobora as idéias acima na medida em
que afirma:
64
“Vygotsky (1987) afirmava que o papel da escola é muito importante para o ser
humano, pois ela propicia o desenvolvimento dos conceitos científicos”.
Podemos de essa forma dimensionar a utilidade do ensino da gramática
nas escolas, sejam públicas ou particulares; em seus estudos, Vygotsky (2005)
conferiu importante papel ao assunto. Para ele, “o aprendizado geralmente
precede o desenvolvimento”. A criança já domina a língua materna muito antes de
ir para a escola; entretanto, esse domínio não é consciente. Prova disso é que,
ainda que saiba usar corretamente muitas construções gramaticais, inclusive
alguns verbos, não será capaz de conjugar ou declinar as palavras
intencionalmente antes que isso lhe seja ensinado pela gramática. Isto significa
que, somente quando a criança toma consciência dos aspectos gramaticais da
língua, é capaz de ter domínio deliberado sobre eles.
A criança domina, de fato, a gramática de sua língua materna muito antes de entrar
na escola, mas esse domínio é inconsciente, adquirido de forma puramente
estrutural [...] graças ao aprendizado da gramática e da escrita, realmente torna-se
consciente do que está fazendo e aprende a usar suas habilidades
conscientemente [...] A gramática e a escrita ajudam a criança a passar para um
nível mais elevado do desenvolvimento da fala (VYGOTSKY, 2005
, p.125).
Ao declarar a impossibilidade de um conceito ser transmitido ao aluno
através de atividades mecânicas e descontextualizadas, Vygotsky (2005, p.104)
chama a atenção para o importante papel da escola no desenvolvimento
intelectual do aluno. Para ele, a sala de aula deve ser o lugar, por excelência, de
65
desafio, de estímulo, apresentando ao aluno sempre novas possibilidades de
atingir estágios mais elevados de desenvolvimento. De acordo com a perspectiva
vygotskiana, a escola exerce um papel fundamental na formação de conceitos,
sobretudo os científicos, visto que tal formação depende não só da atividade
mental do indivíduo, mas também do contexto no qual se insere. Desafiar,
estimular, exigir, problematizar, orientar eis a tarefa do educador sob o ponto de
vista de Vygotsky. (2005).
Embora o sujeito participe ativamente na construção dos conceitos
científicos, estes são influenciados pelo adulto. Por considerar a construção do
conhecimento um processo dialógico, Vygotsky considera imprescindível a
participação do adulto no processo de aprendizado do aluno:
“Com o auxílio de uma pessoa, toda criança pode fazer mais do que faria sozinha
(...) O que a criança é capaz de fazer hoje em cooperação, será capaz de fazer
sozinha amanhã”. (VYGOTSKY (2005, p.129)
O autor chama a atenção para a zona de desenvolvimento proximal, (ZDP)
(зона ближайшего развития), conceito que define a distância entre o nível de
desenvolvimento real, determinado pela capacidade de resolver um problema sem
ajuda, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado pela capacidade de
resolver um problema sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
outro companheiro.
66
Vygotsky (2005, p.50) afirma que:
"A formação de conceitos é o resultado de uma atividade complexa, em que todas
as funções intelectuais básicas tomam parte. No entanto, o processo o pode ser
reduzido à atenção, à associação, à formação de imagens, à inferência, ou às
tendências determinantes. Todas são indispensáveis, porém insuficientes sem o
uso do signo, ou palavra, como meio pelo qual conduzimos as nossas operações
mentais, controlamos o seu curso e as canalizamos em direção à solução do
problema que enfrentamos".
Para que se torne compreensível a perspectiva de Vygotsky (2005) sobre o
desenvolvimento de conceitos, é necessário entender que o significado da palavra
transforma-se ao longo do desenvolvimento do sujeito; o significado da palavra
evolui, posto que interagem novos sentidos, novas conotações.
Assim, o desenvolvimento conceitual não se de forma definitiva, mas
gradual, porque também, gradativamente, evolui o significado da palavra. Se,
inicialmente, a criança formula conceitos a partir de uma relação direta que
estabelece com a realidade concreta, aos poucos ela vai isolando determinados
atributos do objeto, rumo a abstrações e generalizações cada vez mais
complexas.
Finalizando, Vygotsky afirma que é papel da escola favorecer o
aprendizado dos alunos, encorajando-os a aproveitar os momentos em que estão
mais receptivos ao processo de aprender. Segundo ele:
67
Por algum tempo, as nossas escolas favoreceram o sistema “complexo” de
aprendizado que, segundo se acreditava, estaria adaptado às formas de
pensamento da criança. Na medida em que oferecia à criança problemas que ela
conseguia resolver sozinha, esse método foi incapaz de utilizar a zona de
desenvolvimento proximal e de dirigir a criança para aquilo que ela não era capaz
de fazer. O aprendizado voltava-se para as deficiências das crianças, ao invés de
se voltar para os seus pontos fortes, encorajando-as a permanecer no estágio pré-
escolar do desenvolvimento. Para cada matéria escolar um período em que a
sua influência é mais produtiva, porque a criança é mais receptiva a ela
(VYGOTSKY, 2005, p.125).
Esta afirmação é endossada por Bechara quando defende a idéia de que é
preciso respeitar o momento adequado para o trabalho com certas generalizações
e abstrações, tão necessárias no estudo de certos conteúdos gramaticais:
Com o passar dos tempos, a gramática se foi enriquecendo com os dados novos
trazidos pelos progressos da ciência, da linguagem, e a sala de aula se foi
transformando num palco de erudição que acabava por definhar aqueles jovens
alunos ainda não amadurecidos para as preleções universitárias a que os
submetem seus professores (BECHARA, 2007, 36).
Finalizando , SILVA (2006) esclarece que:
“Da mesma forma, a aprendizagem da gramática permite a tomada de consciência
dos aspectos formais da língua aprendida de forma espontânea, bem como a
compreensão de que a língua constitui um sistema. Por isso, aprender gramática é,
segundo Vygotsky (1987, p.86), muito útil para o desenvolvimento mental da
68
criança” (SILVA,2006 p. 5-6).
2.4 O papel da gramática no ensino da Língua Portuguesa
Por longos e percorridos anos, a História da Educação no Brasil, desde o
descobrimento, não registra Leis que regulem e sistematizem o ensino no país.
Com o intuito de minimizar os problemas, em 1961, é promulgada a Lei 4024, a
qual cria os Conselhos Estaduais de Educação, cuja tarefa será tentar melhorar a
qualidade do ensino. A referida lei em sua estrutura procurava estruturar o ensino
brasileiro.
Celso Cunha gramático por excelência realiza no MEC, em dezembro de
1964, conferência sobre o tema ”O ensino da língua nacional” . Palestra essa que
foi publicada no Rio de Janeiro com uma abordagem corajosa a defesa da língua.
Na década de 60, quando se firma o processo de democratização da
escola, em conseqüência de um novo modelo econômico. Não se trata, pois, de
uma mudança educacional, mas, sim, de novas condições sociopolíticas. O país
vive uma metamorfose. Com a ditadura militar, a partir de 1964, passa-se a buscar
o desenvolvimento do capitalismo, mediante expansão industrial. A proposta
educacional, agora, passa a ser condizente com a expectativa de se atribuir à
escola o papel de fornecer recursos humanos que permitam ao Governo realizar a
69
pretendida expansão industrial.
Em conseqüência dessa mudança, a qualidade do ensino perdeu a
relevância, buscando-se uma adequação ao novo momento. E as classes mais
privilegiadas começaram a abandonar a escola pública e a procurar as instituições
particulares, notadamente as de formação religiosa.
No ano de 1963, foi introduzida nos currículos da Universidades a disciplina
Lingüística no Curso de Letras, o que veio a causar grandes problemas, pois
sequer havia professores preparados para tal.
Na cada seguinte, a de 1970, é sancionada a Nova Lei de Diretrizes e
Bases, a 5692/71, que estabelece a língua nacional como instrumento de
comunicação e expressão da cultura brasileira. A partir de então, a disciplina
Língua Portuguesa passa a ser Comunicação e Expressão no que foi considerado
segmento do grau (1ª à série); Comunicação e Expressão em Língua
Portuguesa, no segmento (5ª à série), se configurando como Língua
Portuguesa e Literatura Brasileira no 2º grau.
Dava-se ênfase, então, apenas a textos jornalísticos e publicitários,
praticamente ignorando-se os literários. Havia, ainda, destaque para textos não-
verbais, charges e histórias em quadrinhos. Não são um mal, certamente, mas
70
não devem ser a exclusividade.
Diante da posição assumida pelos autores da maioria de livros didáticos,
alguns professores preocupavam-se em selecionar livros que ainda atendessem
às suas expectativas, como os de Magda Soares, ou seja, livros utilizados
didaticamente na sala de aula e não meramente didáticos, ou seja, não utilizados
como o excelente apoio que devem ser.
O caos se estabelecera no ensino. No final do anos 70 decidiu-se pela
inclusão de redações em provas e exames vestibulares, acreditando-se que
haveria uma solução para a crise. Colégios tradicionais e escolas particulares
aumentam a carga horária de Língua Portuguesa. Em cursos pré-vestibulares,
cria-se a disciplina Técnica de Redação, cujo objetivo é preparar os alunos para
as dissertações dos exames vestibulares, as quais devem apresentar coesão e
coerência, além de parágrafos definidos com o propósito de se estabelecer
introdução, desenvolvimento e conclusão. À criatividade, sobrepunha-se a
apologia pura e simples da forma (PILETTI, 2005).
Evanildo Bechara, nesse momento posicionando-se contra o
glotocentrismo e a opressão lingüística. Destacamos como de alta importância no
momento histórico de reflexão sobre ensino de língua materna a obra Ensino da
gramática. Opressão? Liberdade? (2007), que sempre provocou muita discussão
em torno dos temas focalizados, desencadeando uma série de outras produções,
71
de diferentes autores.
Após um levantamento histórico do comportamento pedagógico, em relação
ao ensino de gramática normativa, nas décadas de 70 e 80, o autor conclui que a
“perseguição” à gramática normativa, tradicional, é tão errada quanto o privilégio
dedicado ao código oral, coloquial, em detrimento do dialeto padrão. Segundo o
autor, o desprezo pelas outras variantes ou, ao contrário, o desprezo pelo ensino
da norma padrão são atitudes “de natureza monolíngüe” e desprezam o fato de
que “cada falante é um poliglota na sua própria língua”.(BECHARA, 2007, p.12-
13).
Celso Pedro Luft destaca-se nessa mesma década de 80 com a publicação,
em 1985, de Língua e liberdade: por uma nova concepção da língua materna.
Nessa obra, Luft afirma o ser contra a gramática. O que, na verdade, o
preocupa é o ensino opressivo das regras. Segundo Luft, o que falta ao educando
é considerar a língua que o aluno conhece e, certamente, ampliar suas
capacidades através de uma “prática sem medo, um ensino sem opressão( LUFT,
2006, p.12).” Continuando em sua defesa defesa apaixonada em sua
palavras, Luft diz que:” o que me preocupa profundamente é a maneira de se
ensinar a língua materna, as noções falsas de língua e gramática, a obsessão
gramaticalista, a distorcida visão de que ensinar uma língua seja ensinar a
escrever “certo”, o esquecimento a que se relega a prática da língua ... (LUFT,
72
2006, p.12).
Faltava, todavia, uma posição metodológica, que chega até nós, sob o
enfoque lingüístico-descritivo de autores como Franchi (2006), Travaglia (2003), e
Geraldi (1999), que defendem a gramática reflexiva como a melhor opção de
ensino.
Todo esse movimento em torno do ensino de língua materna leva o
Conselho Federal de Educação a estabelecer a medida de retorno da disciplina
Língua Portuguesa, eliminando as denominações relativas à Comunicação. Não
se trata somente de substituir uma denominação, mas de uma nova atitude que se
esperava obter frente ao ensino de língua materna.
Na década de 90, assiste-se a uma evolução. A UFRJ e a UNICAMP
começam a mudar a forma de seus vestibulares. Provas discursivas assumem o
lugar das provas objetivas, tudo isso com o intuito de melhorar o nível das
mesmas.
O mesmo se estende às redações que serão tematizadas por diferentes
formas de linguagens: escrita, gráfica e assim por diante. Tal procedimento sua
modernização.propiciará ao aluno novas oportunidades de produzir seu próprio
texto.
O Ensino da Língua Materna passa a ser objeto de discussão nas
73
Universidades. Não se modifica, substancialmente, as estruturas do ensino
brasileiro, mas esse será o princípio de
Mais recentemente, o MEC implantou, em nível nacional, O “Porvão”, ou
seja o Exame Nacional de Cursos. Seu objetivo primordial era o de avaliar os
cursos de graduação do Ensino Superior, tendo-se dessa forma elementos para
discutir o processo de ensino-aprendizagem.
Em 20 de dezembro de 1996 entra em vigor a terceira Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, a de nº 9394/96 e estabelece, em seu Art.36, que a
língua portuguesa será encarada como instrumento de comunicação, acesso ao
conhecimento e exercício da cidadania, contemplando, assim, todas as
modalidades expressivas, sem encará-las de forma privilegiada ou não.
Nomenclaturas serão alteradas. Temos então, a educação básica composta pelo
Ensino Infantil, Fundamental e Médio.
O ensino da gramática no ensino da Língua Portuguesa nas escolas, em
geral, continua gerando polêmica. Muitas vezes nos perguntamos: Devemos
utilizar ou o gramática no ensino de Língua Portuguesa? E de maneira clara
acreditamos que devemos utilizar a gramática, pois segundo vários autores,
dentre eles Bagno:
"A gramática deve conter uma boa quantidade de atividades de pesquisa, que
possibilitem ao aluno a produção de seu próprio conhecimento lingüístico, como
74
uma arma eficaz contra a reprodução irrefletida e acrítica da doutrina gramatical
normativa" (BAGNO, 2006, p. 87).
Luft (2006) afirma que a "língua deve ser vista, analisada e ensinada como
entidade viva." A partir desta concepção, entendemos que a língua a todo o
momento está se modificando. Ela, como objeto histórico, está sujeita às
variações lingüísticas e sofre mudanças tanto na escrita como na fala. Em
constante evolução e empregando mecanismos de muita criatividade, uma língua
não pára de anexar novos termos, enquanto outros caem no esquecimento As
pessoas que a utilizam estão sempre "criando" situações que exigem inovações.
Um exemplo nos dias atuais é a palavra secutirização que foi "criada" para
explicar algo que significa (securities em inglês): a conversão de empréstimo
bancário e outros ativos, em títulos para vendê-los a investidores.
No momento que os alunos entenderem que também as regras da norma
padrão podem variar e que o emprego de uma forma pode ser normal numa
determinada situação e raro em outra, o rendimento escolar será eficiente. Para
Possenti, "o objetivo da escola é ensinar o Português padrão, ou talvez, mais
exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido" (2006, p. 17). E
isso implica discutir os diferentes conceitos de gramática: normativa, descritiva e
internalizada. O aluno deve ser preparado para reconhecer e utilizar a língua de
forma adequada a diferentes situações e contextos.
A função da gramática no ensino de Língua Portuguesa é ampliar a
75
capacidade de o aluno usar a sua língua, desenvolvendo competência
comunicativa por meio de atividades com textos utilizados nas diferentes situações
de interação comunicativa . Os níveis e registros serão múltiplos e, mas às vezes
é preciso obedecer a determinadas regras, uma vez que a norma padrão é uma
exigência social e assim deve ser aprendida. Para Silva, (2006) a escola tem a
responsabilidade de ensinar a norma padrão aos alunos, pois é esse o seu papel
fundamental na sociedade. Para a autora, conforme Vigotsky (apud Silva, 2006,
p.4):
“Já se chegou mesmo a dizer que o ensino de gramática na escola poderia ser
abolido. Podemos replicar que a nossa análise mostrou claramente que o estudo é
de grande importância para o desenvolvimento da criança. [...] Ela pode adquirir
novas formas gramaticais ou sintáticas na escola, mas, graças ao aprendizado da
gramática e de escrita, realmente torna-se consciente do que está fazendo e
aprende a usar as habilidades conscientemente. [...] A gramática e a escrita
ajudam a criança a passar um nível mais elevado do desenvolvimento da fala.
(grifo nosso).”
Reafirmamos que o ensino da gramática normativa tem a sua razão de ser.
Não se pode ignorá-la em nome de "uma nova teoria lingüística". O que é preciso
é saber onde, como e por que ensiná-la. O que deve ser enfatizado é a forma de
trabalhar a gramática na escola. Parece oportuno fazer uma mudança adequada
no modo de ensiná-la. O estudo da gramática deveria ser transformado em um
76
processo de reflexão que levasse à melhor compreensão de fatos lingüísticos
encontrados no texto. Para que aconteça essa compreensão é preciso que o
estudo gramatical seja feito através de uma metodologia que leve em conta os
usos consolidados da língua.
O ensino de gramática não deve permanecer na base da regra pela regra,
explicada e exercitada com palavras e frases soltas. o adianta também utilizar
textos apenas como pretextos, ou seja, apenas retirando-se deles palavras ou
frases e perpetuando um ensino meramente normativo e classificatório. preciso
atentar para que esse ensino mais sistematizado da gramática seja visto em uso e
para o uso, constatando-se sua funcionalidade e procurando-se inseri-lo em
situações reais ou que se aproximem o máximo possível dessa realidade
(SOARES, 1986, p. 46).”
Resumindo, aquilo que o aluno sabe consiste na gramática internalizada;
a comparação, sem preconceito, das formas possíveis de serem produzidas é
tarefa da gramática descritiva; a explicitação da aceitabilidade ou rejeição de tais
formas, bem como o domínio da adequação de uso dessas formas na escrita é
tarefa da gramática normativa.
Para tal, é preciso superar a visão do ensino da língua como sendo apenas
ensino da gramática, e do ensino de gramática como ensino apenas de regras. Há
que se acrescentar algo novo: "ensinar gramática é ensinar a língua em todas
77
as suas variedades de uso, e ensinar regras é ensinar o domínio do uso"
(POSSENTI, 2006, p. 86).
Capítulo III. As representações docentes quanto ao ensino da língua
materna.
3.1 O universo da pesquisa
A instituição escolhida para a realização da pesquisa foi criada 15 anos
e tem pouco mais de 200 alunos. Os alunos, de classe média alta, residem em
bairros nobres da cidade. São filhos de profissionais liberais, funcionários da Força
Aérea Brasileira e de indústrias locais, onde exercem cargos de chefia.
O conteúdo das atividades oferecidas por essa instituição foi estruturado a
fim de criar condições para preparar os adolescentes para o ingresso em cursos
técnicos profissionalizantes e/ou Universidade.
Essa estrutura foi desenvolvida a fim de atender os adolescentes de ambos
os sexos, na faixa etária de 14 a 18 anos. A situação socioeconômica familiar dos
alunos é a seguinte: 80% possuem casa própria e 65% trabalham são
profissionais liberais e/ou empresários.
0
20
40
60
80
100
c
a
s
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p
r
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a
m
78
Quanto ao nível cultural: quanto ao nível de escolaridade dos pais a
pesquisa mostrou que 35% dos pais possuem curso superior, 30% possuem o
ensino médio, 30% o ensino fundamental e apenas 5% são analfabetos.
A faixa etária dos alunos é a que se segue: Ensino Médio
Ensino Profissionalizante
0
10
20
30
40
50
60
70
80
15 - 21 anos 19 -30 anos
Faixa Eria - período diurno
Ensino Médio Ensino Profissionalizante
0
5
10
15
20
25
30
35
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Nível de Escolaridade dos pais
79
Para garantir a formação desejada, ou seja, ensino médio, prioritariamente,
ou ensino técnico, quando solicitado, são desenvolvidas matrizes diversas, isto é,
os cursos são autônomos e independentes. Podem ou não ser cursados
concomitantemente.
3.2 Constituição do corpus e a coleta de dados
Todas os professores participantes da pesquisa são formadas em Letras
por universidades locais.
Os professores participam de uma reunião quinzenal obrigatória para
estudo e para integração das áreas de ensino das diferentes séries, embora
enfatizem a necessidade de mais tempo para se reunirem com os demais
professores da área de língua portuguesa.
Os alunos da instituição estudam nos turnos matutino e noturno. São
adolescentes de classe alta e média alta, cuja idade varia de 14 a 16 anos. Eles
têm um nível de leitura muito bom, em decorrência de a escola valorizar a prática
de leitura de textos e de diferentes gêneros discursivos. Enquanto eles realizam
alguma atividade, os professores verificam a realização da tarefa de casa. A
maioria dos alunos a faz e sua correção é feita em sala, mediante a participação
de todos os alunos. As atividades de leitura são realizadas em grupo. Os alunos
demonstram boa disciplina para a realização de tarefas em grupo e todos se
80
mostram comprometidos com a realização de suas atividades.
O corpus dessa pesquisa foi constituído de depoimentos escritos e,
posteriormente, por questionários.
A seguir, serão caracterizados os sujeitos que fizeram parte da pesquisa, uma
vez que se trata de um estudo do corpus à luz da análise do discurso de linha
francesa, a partir da noção da memória discursiva pelo viés da abordagem de
Foucault, cujas elaborações deixaram marcas indeléveis nesse campo do saber, à
medida que pensou a relação entre o discurso, o sujeito, o poder e a história.
São eles pela ordem:
a) S1: sexo masculino, faixa etária de 50 anos ; 30 anos de magistério, leciona
na área do ensino médio, propedêutico;
b) S2: sexo feminino, faixa etária de 45 anos; 15 anos de magistério, leciona
nas áreas do núcleo profissionalizante (curso técnico) e ensino médio,
propedêutico. É também, a coordenadora da área de Língua Portuguesa.
A análise do discurso de linha francesa ofereceu uma contribuição decisiva
a este trabalho, pois permitiu que as análises levassem em consideração não as
orientações textuais dos depoimentos em si mesmos, mas os procedimentos
discursivos dos textos por remissão a outros discursos, a partir das condições
de produção desses discursos. Foi desse modo que foi analisado o corpus,
bem como pelo processo de construção de imagens, inerente a toda forma de
81
constituição do discurso.
3.3 Constituição do corpus e a coleta de dados
O corpus de dados
O corpus da presente dissertação de mestrado constitui-se de dados
coletados a partir de entrevistas estruturadas e semi-estruturadas gravadas,
questionários, notas de campo, e observação das orientações para o ensino de
língua no ciclo do ensino fundamental dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
As entrevistas constituem-se no principal instrumento de análise, os demais
materiais dão apenas um suporte à interpretação dos dados.
Os dados foram coletados em uma escola situada na cidade de o Jo dos
Campos, da rede particular de ensino.
Foram dedicados três meses à coleta de dados desde o primeiro contato
com os professores – setembro a dezembro de 2006.
A presente pesquisa é de natureza interpretativista, cujo corpus é formado
de:dados do discurso oral:
2 entrevistas com as representantes das escolas sendo que, no Centro de
Ensino Educàre, foi entrevistada a coordenadora da área de língua
82
portuguesa e, a professora do 4º Termo do Ensino Fundamental.
dados do discurso escrito:
Diário de pesquisa: 2 depoimentos de dois professores informantes
professores das 1ª, e séries do Ensino Médio e 1ª série do Ensino
Técnico Profissionalizante.
Notas de campo: 1 questionário com os professores sujeitos da pesquisa e
1 questionário sócio-econômico com os alunos que ingressam na escola a
cada ano letivo.
Por pressuposto, a análise do discurso de linha francesa ofereceu-nos uma
contribuição decisiva, pois nos permitiu que as análises levassem em
consideração não as orientações textuais dos depoimentos em si mesmos, mas
os procedimentos discursivos dos textos por remissão a outros discursos, a
partir das condições de produção desses discursos. Foi desse modo que
buscamos analisar o corpus, bem como pelo processo de construção de
imagens, inerente a toda forma de constituição do discurso.
83
3.3.1 Análise do corpus referente ao discurso do Sujeito 1 (fala do professor
da área do ensino médio, não profissionalizante);
”Cabe lembrar ainda, que o ensino da gramática normativa não é apenas para
proteger ou conservar a composição da língua, como denunciam alguns
teóricos e afins, mas, sobretudo, para subsidiar o usuário em suas
necessidades textuais e orais, garantindo ainda que esse usuário e falante da
língua conheça o funcionamento de sua própria língua materna,
possibilitando a total noção de características essenciais que pertencem à
sua cultura. Pois eu sou de uma geração em que a gramática teórica era
ensinada e aprendida.”
O segmento acima designa o quanto um evento social pode ter o seu
sentido modificado ao longo do tempo, dependendo de como estão organizadas
as condições de produção que o definem, sendo estas, então, o fator de
condicionamento do objeto referido no discurso.
Situando a análise no material lingüístico acima, percebe-se que o
enunciado não deixa dúvidas quanto ao fato de que o referente “gramática”
atravessou determinado período de tempo com sentidos cio, histórica e
ideologicamente opostos aos sentidos construídos atualmente.
Esse período aparece marcado na superfície lingüística por “geração”
palavra que é representativa de um espaço/tempo correspondente à formação do
S1 (formado há mais de 20 anos). Nessa “geração”, a gramática tinha uma
84
conotação supervalorizada: “era ensinada e aprendida”. A gramática é aqui
acentuada de forma positiva e mensurada a partir do confronto que o sujeito do
discurso faz entre a gramática de sua época e a imagem da desvalorização que se
faz da gramática atual.
Marcadamente o discurso de S1 traz embutido a constituição de
saberes/poderes de Foucault (1987), os quais, segundo ele, não passariam
necessariamente pela questão das classes sociais e o estariam
necessariamente determinados, nem mesmo em “última instância” pelos fatores
econômicos. Para o autor, para a determinação dos processos históricos
justapõem-se elementos tanto de ordem econômica, como sociais, políticas,
culturais, etc, não concorrendo, pois, necessariamente, o primado do fator
econômico.
Assim, Foucault concebe as formações discursivas não em termos de
ideologia, termo profundamente marcado historicamente pelo viés marxista de
posições no tocante à luta de classes, mas em termos de saberes/poderes.
Contudo, a maioria concorda que é o método de ensino que precisa ser
mudado, pois acredita que, partindo de sua relevância, a gramática não pode
ser “omitida”, devendo ser conhecida pelos usuários da língua, pois assim
evitarão que, amanhã, o aluno pergunte: gramática? O que é isso?”
Nesse trecho do depoimento, fica evidente na formação discursiva do S1:
discurso alicerçado na gramática textualizada, equilibrada com a prática, embora
85
dúvidas sejam presentes em seu discurso.
Segue-se uma segunda formação discursiva onde evidencia-se um discurso
estruturalista mesclado com o conservador, o que vale dizer que um equilíbrio
na teoria. A heterogeneidade constituída revela-se no discurso do sujeito.
“Contudo, a maioria concorda que ...” evidencia-se o seu momento de dúvida.
O S1 oscila entre o ensino da gramática textualizada e o ensino da tradicional.
Não há uma definição nítida entre o que usar.
“Para essa parcela de professores a questão é muito simples: o ensino da
língua portuguesa deve ser harmonioso na relação entre o ensino da
gramática normativa e a contextualizada, sem descartar completamente as
terminologias e regras gramaticais, que são fundamentais para o
desenvolvimento cultural e social dos alunos. Renascentista por meio da
normatização, os intelectuais da época apostavam nisso motivados por
fatores ligados a interesses que não faziam, necessariamente, parte da
classe dominante.”
Continuando o seu discurso percebe-se, claramente, o discurso conciliador
entre o ensino da gramática tradicional e a contextualizada. Nos últimos tempos,
com os avanços das ciências relacionadas à linguagem, muito se tem discutido e
pesquisado quanto ao ensino de gramática. Num primeiro momento, chegou-se
até a questionar sobre ensiná-la ou não. Atualmente, a idéia que se tem é de que
ela deve ser trabalhada na escola, e o que se questiona é como se deve fazê-lo.
86
um consenso, de certo modo generalizado, de que esse ensino deve ser feito
através de textos. Encontra-se um bom número de materiais teóricos sobre o
assunto, mas ainda é incipiente o número de trabalhos, mesmo em gramáticas
pedagógicas ou em livros didáticos, que tentam colocar essas questões em
prática. É lógico que, numa perspectiva textual, o professor deve trabalhar com
textos de tipologias variadas e adequados às diferentes situações que estejam
sendo vivenciadas pelos alunos. É lógico também que não há um único modelo a
ser seguido por todos, mas se faz necessário mostrar como o professor pode
explorar esses textos para ensinar gramática.
“Partindo disso podemos entender que o ensino de gramática, oferecido hoje
pelas escolas, esbarra num equívoco político e pedagógico, ocasionado pelo
exposto anterior. No entanto, essa questão do equívoco não está
vinculada aos fatos históricos, e sim em hipóteses que vão desde valores
sociais dominantes, estratégias escolares discutíveis, até sobre preconceitos
e mitos acerca do ensino da norma padrão em relação à classe dominada.
Em resumo, a complexidade de abordagens como essa é bastante alta, visto
que levaram a caracterizar o atual ensino da norma que rege a língua
portuguesa.”
Continuando a análise do discurso de nosso S1: No entanto, essa
questão” ... percebemos que o sujeito da pesquisa questiona os determinismos
exteriores `a gramática. A vida entre a gramática contextualizada e a normativa
persiste. S1 encaminha-se aqui para os anos 80 e com o advento das teorias do
87
texto e do discurso, chegou-se até a cogitar não ensinar gramática. Houve quem
postulasse que a leitura e a análise de textos, por si só, sem nenhuma
sistematização quanto à gramática, seriam suficientes para que ela fosse
aprendida. É lógico que a essência dessa gramática, que se aprende na vivência
do dia-a-dia como falante nativo, é o que basta para um mínimo necessário à
comunicação em uma sociedade. Entretanto, não há como negar que, nessa
mesma sociedade, há situações em que só comunicar não basta: é preciso fazê-lo
de acordo com certas convenções consideradas mais “corretas”, obedecendo a
certas normas que são consideradas “padrão”. Eis aí, o grande motivo da dúvida.
O S1 chega a uma encruzilhada na sua vida profissional e bem sabemos que toda
ruptura é dolorosa. Os questionamentos aparecem e o uso freqüente das
adversativas, pressupõem pelo menos duas vezes, o entrecruzamento de
formações discursivas diferentes, o que nos leva a crer na heterogeneidade
constitutiva do discurso.
A análise permitiu fazer as seguintes inferências: todo discurso é
atravessado por ouros discursos. O sentido do texto decorre desse
entrecruzamento de textos, de vozes;como Authier-Revuz (1990) observa, a
análise da heterogeneidade constitutiva escapa à lingüística, pois é inoperante
buscar marcas desse tipo de diálogo. Ao explicitar o dialogismo, apoiada também
na psicanálise, tem-se a exterioridade como constituição do texto. O dito do outro
na sua fonte não existe. o outro do inconsciente que é apagado
88
necessariamente; ainda que exterior à lingüística, como o analista detectar a
presença do outro quando emerge como modo de negociar com a constitutiva,
pois a língua permite tais recursos. O que se fez foi exatamente examinar essas
presenças que dependem da forma lingüística. O dizer se faz com essas marcas.
É na dispersão, na heterogeneidade que o sujeito se representa no discurso e se
faz ouvir.
Mesmo no epicentro desse grande conflito S1 opta pelo ensino da
gramática, pois assim está determinado dentro do que considera correto, no
contexto da escola onde trabalha e nos traços que carrega de sua memória
discursiva.
3.3.2 Análise do corpus referente ao discurso do Sujeito 2 (fala do professor
do ensino médio e da área técnica)
O Sujeito 2 é um professor do ensino médio e da modalidade técnica e
prepara alunos para o mercado de trabalho, prioritariamente, e eventualmente
para o ingresso na universidade.
Todos nós passamos por essa a fase de fidelidade incondicional à
gramática tradicional. Afinal, por muito tempo após nossa formação
universitária, a gramática era a única coisa que tínhamos.. Vamos,
porém, amadurecendo com o tempo, bem como uma atualização
89
pedagógica nos ajudam a optar por novas práticas em sala de aula.
Esse segmento traz a representação relativa ao valor que o conhecimento
gramatical tem para o S2, e está de acordo com o modo como este sujeito
significa o ensino da gramática, a partir de sua imagem da profissão em face do
ensino da língua portuguesa.
Pelo viés da memória discursiva, S2 tem uma imagem de valorização
positiva, que se constrói em torno da gramática pelas condições sócio-históricas
da sua existência, legitimando-a como única representante da língua nacional.
Nesse sentido, Agustini (2004, p.66) afirma que:
A regulação-controle posta pela dominação da língua nacional no espaço de
enunciação brasileiro interdita uma projeção social para o “seu” dizer formulado,
relacionando a ele uma denominação negativa, em que a imagem de não-saber a
língua nacional significa deslegitimar a enunciação.”
É, pois, em meio a essa atmosfera da unidade nacional que gravita a
gramática. A ela é conferido o sentido de carro-chefe que é significada sócio-
historicamente como a que representa forma de prestígio entre as variantes da
língua portuguesa falada no Brasil. Justamente por evocar esse sentido de
unidade nacional.
“Vamos, porém, amadurecendo com o tempo, bem como uma atualização
pedagógica nos ajudam a optar por novas práticas em sala de aula.
90
Começando a questionar os métodos tradicionais de ensino, encontrei nos
cursos livres um espaço em que podia criar e desenvolver meu próprio
método. Achava absurdo que o aluno tivesse de decorar conteúdos
programáticos, de lidar com coisas que nunca chegavam a entender
realmente, de não obter explicações satisfatórias para o que perguntava.
Esse recorte é representativo da preocupação do S2 acerca da necessária
busca coletiva por um aprendizado lingüístico que esteja afinado com um método
mais prático do ensino da língua. A educação lingüística, nesses termos, é
significada institucionalmente como a que deve garantir o máximo de contato entre
informação teórica e o universo de compreensão empírica do educando: “ é
necessário fazer sentido”.
Objetivamente, a materialidade lingüística é reveladora da influência que S2
recebeu das concepções da Lingüística (BECHARA, 2007, p.58) no plano da
memória discursiva. Segundo a constituição interdiscursiva, essa proposta
significou para S2 a idéia de que a linguagem deve ter como função prioritária a
composição harmônica do binômio signo-mundo, o que faz gerar o deslocamento
do binômio signo-signo, que corresponde ao ensino da metalinguagem, ou seja, a
propriedade que tem a língua de voltar-se para si mesma.
Percebemos que a imagem “tradicional” (de gramática tradicional)
contrapõe-se ao sentido do novo, interditado pelas novas concepções da
Lingüística. Esse equívoco prova o imaginário do S2, fazendo-o crer numa forma
91
de ensinar a gramática teórica que se distancie do ensino da gramática tradicional.
“O ano de 1992 foi um ano importante para mim. Foi o ano em que rompi
com o modo tradicional de sempre ensinar gramática. Como eu mesmo
começara a examinar a gramática de modo crítico, resolvi que o aluno
de cursinho podia entender os conteúdos estudados, em vez de apenas
memorizá-los.”.
O recorte acima foi selecionado por identificar S2 como produtor onipotente
do seu discurso sobre o que o ensino da gramática representa, simbolicamente,
para ele. Na introdução desse segmento, emerge um sujeito identificado pela
ilusão de autonomia que o professor tem sobre o conteúdo a ser trabalhado com
seus alunos, bem como sobre o método a ser implementado.
S2, desse modo, parece ter a solução para os problemas concernentes ao
ensino da língua portuguesa: a causa estaria na insistência pelas formas de
ensino no estilo “descontextualizado”.
Essa interprelação adquire uma intensidade ainda maior se considerada a
presença do advérbio de tempo “sempre” em “sempre ensinar gramática...”,
conferindo ao enunciado uma continuidade atemporal, portanto ”a-histórica”.
Assim, depreende-se que as comparações do S2 diante do ensino da gramática
ocorrem alheias às imagens construídas socialmente.
92
Sabe-se, no entanto, que esse fenômeno foi denominado por Pêcheux
(1975, apud ORLANDI, 2002) de esquecimento número um, ou ideológico, de
modo a produzir a ilusão de que o que S2 diz, do modo como diz, tem origem
nele. Esse “esquecimento” apaga as formas de interiorização do objeto simbólico
ensino da gramática , como se este não tivesse sido construído por meio de sua
inscrição na história, isto é, S2 acredita que os sentidos construídos sobre o
referente estão “sempre já-lá” (ORLANDI, 2002).
93
3.3.3 Conclusão
Da análise do discurso dos sujeitos objeto da pesquisa percebemos
claramente que ambos se inscrevem na formação discursiva favorável ao ensino
da gramática, conforme se pode verificar pela regularidade da materialidade
lingüística dos enunciados. Investem na competência gramatical de seus alunos. A
família também preconiza a importância da competência gramatical que é
reconhecida e desejada pelos alunos, ao lado da competência discursiva. A
importância dada ao desenvolvimento da competência gramatical é reconhecida
pelas professoras e pelas famílias por acreditarem que este tipo de competência
possibilita a correção na fala e na escrita e aumenta a possibilidade de se
conquistar sucesso profissional. A gramática, assim, assume ares de senhora
absoluta e indispensável ao domínio da Língua Portuguesa.
Concluímos que todos os enunciadores o favoráveis ao ensino da
gramática, e têm a crença numa metodologia de ensino de gramática em que sua
metodologia siga a padrões modernizados dentro do contexto em que nos
situamos no momento.
94
Considerações finais
No primeiro capítulo, nos detivemos na análise e esclarecimentos dos
instrumentos de análise. Temos percebido que a memória discursiva e as
formações ideológicas embutidas nos depoimentos dos professores revelam, sem
maior juízo de valor, a real intenção em ensinar gramática.
O segundo capítulo desse trabalho foi organizado de modo a esclarecer
alguns subsídios para esclarecer dúvidas que sempre surgem quando os
professores discutem o assunto Gramática.
O intuito da pesquisa era demonstrar que o ensino da norma padrão
favorece o domínio da consciência das regras da norma-padrão e seu uso. Dessa
maneira dividindo a importância e responsabilidades desse processo entre a
família e a escola.
É claro que o purismo de alguns gramáticos não se justifica, já que a língua
é dinâmica e que o critério de correção deve ser o da “aceitabilidade”, isto é, a
linguagem deve estar de acordo com as exigências do momento. Assim, se o
contexto é informal, a linguagem adequada deve ser a informal. Do mesmo modo,
é preciso empregar a linguagem formal em situações formais, sendo essa
aprimorada pela escola.
95
Dessa forma, nos valemos de alguns fundamentos teóricos, tais como:
Vygotsky (2005), com o intuito de demonstrar que o ensino da gramática favorece
o domínio e a consciência das regras da norma-padrão, Neves (2003), Possenti
(2006), Bechara (2007) entre tantos outros, os quais evidenciam a exigência do
ensino da norma-padrão.
Queremos enfatizar que a AD de linha francesa foi o procedimento de
análise preferido pelo fato de entendermos que se trata de uma área privilegiada
no âmbito das Ciências Humanas. Para nós, a AD constitui um contributo
extremamente valioso; pois, ao considerar quem é o sujeito que se posiciona
favorável ou contrariamente ao ensino da gramática teórica, nos permitiu analisar
suas falas e, sem maior juízo de valor, emitir algumas opiniões sobre o seu
posicionamento sobre o ensino da gramática. Tal identificação é possível
mediante a análise das marcas lingüísticas que materializam o discurso dos
nossos sujeitos da pesquisa, os professores da escola particular, permitindo,
assim, verificar o “não-dito, naquilo que é dito (ORLANDI, 1998). Em outras
palavras, um discurso sempre é a manifestação de outros discursos. Dessa forma,
o discurso favorável ou contrário à gramática teórica somente pôde constituir-se
da sua relação com a memória discursiva.
Isto nos permite concluir que os discursos dos professores que trabalham
no Centro de Ensino Educàre com o ensino de Língua Portuguesa para
adolescentes apresentam características favoráveis ao ensino da gramática,
96
dentro da mesma formação discursiva, pelo viés da memória discursiva. E através
desse plano interdiscursivo, compreendido como “espaço onde se a
constituição dos sentidos” (ORLANDI, 2002), o discurso da gramática está muito
relacionado a uma “ordem social” (AGUSTINI, 2004), como vimos. Essa
representação resvala um sentido do ensino da gramática muito relacionado à
memorização do arcabouço teórico, o qual muitas vezes é imposto ao aluno.
Trata-se, portanto, de uma crítica direcionada mais à metodologia “tradicional” que
ao ensino da chamada Gramática Tradicional.
Finalmente, podemos afirmar que, embora haja os discursos atuais
contrários à utilidade do ensino da gramática, os quais na realidade funcionam no
imaginário coletivo como verdadeiras campanhas contra a gramática nas aulas de
língua portuguesa, o discurso dos docentes que analisamos nesta pesquisa
mostrou que cabe à comunidade universitária somar esforços para o ensino da
Gramática se torne realmente útil ao aluno, isto é, é necessário que as regras
gramaticais se tornem critérios para a adaptação da linguagem às diversas
situações do cotidiano..
97
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