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ANDREZZA CHRISTINA FERREIRA RODRIGUES
DRÁCULA, UM VAMPIRO VITORIANO:
O Discurso Moderno no Romance de Bram Stoker
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo - 2008
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ANDREZZA CHRISTINA FERREIRA RODRIGUES
DRÁCULA, UM VAMPIRO VITORIANO:
O Discurso Moderno no Romance de Bram Stoker
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em História sob a
orientação do Prof. Dr. Maurício
Broinizi Pereira.
São Paulo - 2008
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Banca Examinadora
_____________________________
_____________________________
_____________________________
Resumo
Este trabalho pretende fazer a análise de alguns dos discursos historicamente
constituídos pelo avanço da modernidade durante as últimas décadas do século XIX,
tendo como eixo norteador das reflexões o livro Dracula de Bram Stoker, publicado
em 1897. Através do romance de Stoker é possível vislumbrar traços culturais de um
cientificismo triunfante em relação às noções de saúde, em especial no que tange ao
sangue. Na década de 1880, o darwinismo social propôs aos ingleses a cobertura
biológica para a teoria da degeneração hereditária, reforçando a posição da
chamada “idéia sanitária” desenvolvida por Chadwick, encontrando sua expressão
no controle de doenças e na degenerescência através da mistura do sangue. As
teorias médicas investem no sangue como condutor dos gemmules termo adotado
por Darwin significando grânulos -, que interferem no comportamento do corpo e da
mente pela ação hereditária, assim a presença dos antepassados habilitaria o
desenvolvimento de características como a disposição para o trabalho, a loucura, a
promiscuidade, a mendicância, entre outros. Tema que traz preocupação à
sociedade inglesa do período, sendo debatido por estudiosos como Galton, que
inauguraria o conceito de boa linhagem para a sociedade britânica.
Abstract
This work intends to do an analysis of some discourses historically constituted
by modernity progress, during the last decades of XIX century, having as reflections’
main point Bram Stoker’s novel Dracula, first published in 1897. Surrounding Stoker’s
novel, it is possible to glimpse the cultural lines of successful scientism allied health
knowledge, especially concerned to blood. At 1880s social Darwinism opened
through a biological cover hereditary degeneration theory to English people,
reinforcing the “sanitary idea” developed by Chadwick, which has had its expression
through illness control and degeneration by blood connections. The medical theories
see blood as gemmules word adopted by Darwin himself to mean granule which
has influence on body and mind because of hereditary presence made by ancestors,
for example been a worker, been insane, develop promiscuous behavior or became
a beggar. In that moment English people has been concerned about this themes,
which had been debated by Galton who began the idea of good race for British
society.
Agradecimentos
Em primeiro lugar gostaria de agradecer ao Cnpq pelo apoio a pesquisa, o
qual foi fundamental para este trabalho. Quero agradecer também aos funcionários
que eu quase “enlouqueci” durante esses dois anos na PUC-SP, nas buscas
desesperadas por compreender as estruturas burocráticas. Quero agradecer
também a paciência, dedicação e carinho dos professores da PUC, muitos que me
acompanharam desde o primeiro ano de graduação em 2002 a o presente
momento. Quero agradecer aos amigos “puquianos” pelas palavras de estímulo
recebidas ao longo da produção deste trabalho.
Agradeço especialmente as professoras Mirtes de Moraes e Vera Lúcia Vieira
por acompanharem meu trabalho desde o princípio e contribuírem com preciosas
indicações. Ao professor Maurício Broinizi Pereira, meu orientador, pelos “puxões de
orelha” necessários para fazerem-me refletir e estudar cada vez mais e assim,
chegar até aqui.
Aos meus amigos mais próximos: Roberto, com seus comentários sempre
imbuídos de aguçada percepção. Paulo André que mesmo longe está sempre por
perto. Beatriz por ler cada parágrafo do trabalho em plena madrugada com a
atenção que os amigos podem dar; torço por vocês como vocês torceram por
mim. A Patricia e Maria Cecília pela cumplicidade reforçada pelas mesmas angústias
e alegrias compartilhadas no decorrer desses dois anos, pelos intermináveis
diálogos... Muito obrigada pela força! A Roberta que apesar de não ter lido sequer
uma linha do trabalho me fez ver o quanto ele significava para a minha jornada
pessoal de auto-conhecimento e realização. Isolde, minha Deustchelehrerin e seu
filho Alexandre, pelos agradáveis papos dominicais.
E, finalmente, aos meus pais, que são a razão pela qual vocês em estas
páginas agora. Não tenho palavras para expressar minha gratidão e amor por eles,
pelas oportunidades que me foram descortinadas desde sempre, pelo incentivo e
confiança depositados desde a primeira infância e, principalmente, pela paciência.
Esta dissertação é a colheita de todo o esforço de vocês, Claudio e Marete, para que
eu fosse cada vez mais longe. Espero então ansiosamente que apreciem as
próximas páginas. Amo vocês!
“A maneira como esses documentos foram ordenados
ficará evidente em sua leitura. Todos os assuntos irrelevantes
foram eliminados de modo que uma história em virtual conflito
com as possibilidades da crença atual possa surgir como
simples fato. Em toda ela não se faz menção a fatos passados,
a respeito dos quais a lembrança pode se equivocar, pois todos
os registros escolhidos são rigorosamente contemporâneos,
fornecidos a partir do ponto de vista e dentro das possibilidades
do conhecimento de quem os produziu”.
Bram Stoker, Dracula, 1897.
Índice
Introdução, 7
a estratégia narrativa em Dracula, 14
o mito do vampiro moderno, 24
Capítulo 1 Nossos Caminhos não são os Vossos:
Caminhos Modernos em Dracula, 35
1.1 modernidade, tradição, 35
1.2 Londres, 43
1.3 nação, nacionalismos, 48
1.4 de Londres a Transilvânia, 52
Capítulo 2 O Sangue é Vida:
Dracula e o Progresso Científico Vitoriano, 62
2.1 a medicina social inglesa, 62
2.2 o sangue, 68
2.3 saúde mental, 76
2.4 Dr. Abraham Van Helsing, 82
2.5 Drácula, 88
Capítulo 3 Pela Sobrevivência do Mais Forte:
Problemas Sociais na Inglaterra Vitoriana, 99
3.1 saúde pública e conflitos de gênero, 99
3.2 hereditariedade, 116
3.3 o medo do outro, 126
Considerações Finais, 139
Bibliografia, 144
7
Introdução
Durante o período conhecido como fin de siècle termo adotado na Grã-
Bretanha por volta de 1890 para descrever o caráter único do culo XIX –, no qual
Bram Stoker (1847-1912) escreveu Dracula (1897), foi marcado por mudanças sem
precedentes que afetaram quase todos os aspectos da vida humana social,
econômica, intelectual, entre outros. O próprio Stoker era um produto de um mundo
muito mais tradicional. O período que o autor viveu foi o tempo no qual a Inglaterra e
o resto da Europa fizeram a transição, de fato, do mundo tradicional para o moderno.
A vida de Stoker começou então no ápice do Regime Vitoriano
1
e terminou com a
Europa modernizada; como resultado, Stoker possuía familiaridade com ambos.
Londres detinha a avant-garde literária, deres políticos, cientistas e
exploradores de novas tendências e correntes. Logo, não era surpreendente que
romances e contos, gerados nesse período, incluindo nossa fonte, incorporassem,
freqüentemente, elementos tanto tradicionais como modernos; uma característica
marcante do fin de siècle.
Na década de 1890 o império britânico controlava um quarto do mundo e se
consolidava como a maior potência econômica, definindo e ditando o ritmo mundial.
A correnteza moderna invadia o campo dos valores tradicionais, trazia-os para um
universo mais científico, experimental, uma tendência desde o século XVIII.
O povo, no século XVIII, estava sujeito a pressões para “reformar” sua cultura
segundo novas determinações do Estado inglês, que propôs entre outras medidas
1
A Era Vitoriana é considerada o auge da revolução industrial inglesa e do Império Britânico. É
frequentemente definida como o período entre 1837 e 1901, o reino da Rainha Vitória, apesar de
muitos historiadores considerarem a aprovação do Reform Act de 1832 como a marca do verdadeiro
início de uma nova era cultural.
8
regulamentadoras, a alfabetização que suplantava a tradição oral, mantida desde
a Idade Média –; o “esclarecimento” escorria dos estratos superiores chegando aos
inferiores. Pressões em favor da “reforma” sofriam grande resistência, fazendo com
que o século XVIII marcasse a divisão entre a cultura popular e uma “cultura de
elite”. Os problemas do século XVIII eram diferentes dos enfrentados no século
posterior e claramente mais agudos, pois o processo do capitalismo e a conduta não
econômica baseada em fatores tradicionais apareceram em conflito, exemplo claro
surgiu não nas metrópoles, mas nas zonas rurais, onde a resistência ao moderno
era maior. População que seria cativada por um novo costume: a literatura.
Em um momento no qual o hábito da leitura invadia distintas classes sociais
reagrupando fatores culturais constituintes do imaginário inglês esse público fazia
uma exigência: identificar-se com o que lia e, por outro lado, o Estado inglês detinha
uma outra: que o público tivesse conhecimento do quão grandioso o Império
Britânico era e do quanto se avançava em diversos campos; o ideal burguês de se
identificar com o que lia, aos poucos, tomou proporções de “popular” e assim, o
fascínio pelo moderno invadia mentes e corações independente de classe ou
gênero. E, era justamente esse campo que autores, para citar apenas alguns, como
Mary Shelley Frankenstein, Robert Louis Stevenson Dr. Jekyll & Mr. Hyde [O Médico
e o Monstro] e Bram Stoker utilizaram para apontar o moderno dentro do campo
científico, especialmente no que concerne ao médico, tanto em formas de crítica
como de admiração. Conjugando o sobrenatural ao real, os autores tentaram criar
uma atmosfera de transição entre um mundo tradicional e o novo mundo, moderno,
racional.
O mundo racionalizado é caracterizado primeiramente por um relacionamento
de reflexão com determinadas tradições que acabam por perder sua espontaneidade
9
natural; por uma universalização das normas de ação comunicativas de contextos
estreitamente delimitados anteriormente, ampliando assim os horizontes de opções,
ou seja, por formas que tendem a forçar a individualização. “A irresistível velocidade
dos processos aparece como o reverso de uma cultura saturada”
(HABERMAS:2002,60). O uso do termo modern times, para os ingleses,
representava, no século XIX, três séculos precedentes, assim, ainda não havia uma
caracterização do termo moderno para indicar o fenômeno que ocorreu nesse
período; este ainda estava pautado na descoberta do Novo Mundo, nas grandes
navegações; o “presente” ainda se mostrava nebuloso. O rápido avanço das
tecnologias, migração em massa para as cidades e a ciência advinda eram
constantemente discutidas e suplantadas ao passo que o mundo caminhava sem se
dar conta para um momento reconhecido posteriormente como moderno.
No século XIX o desarranjo de organizações vistas como tradicionais – papéis
produtivos dentro do núcleo familiar, a inexpressão da classe camponesa
facilitaram a penetração do moderno, este com o objetivo de dissipar-se por todas as
camadas sociais, no campo e na cidade. À medida que o cotidiano foi tomado por
racionalização cultural e social, dissiparam-se também as formas de vida tradicionais
que no início da modernidade se diferenciaram principalmente em função das
corporações de ofício, mas que aos poucos envolveram outros extratos,
especialmente a dinâmica social, pondo hábitos e maneiras de viver em cheque. O
turbilhão da vida moderna alimentou-se em muitas fontes, dentre elas as grandes
descobertas científicas, a industrialização da produção que transformou
conhecimento científico em tecnologia; abriram-se novos ambientes humanos.
10
Segundo Bresciani
2
, na Londres da metade do século XIX, com dois e meio
milhões de habitantes, projetavam-se com total nitidez a promiscuidade, a
diversidade, ou seja, os considerados perigos da vida urbana; para além do fascínio,
os cidadãos sentiam medo. Os combates do dia se interrompiam, a multidão
trabalhadora repousava e a noite despertavam “os demônios” para preencher o
espaço urbano. Nessas horas escuras surgiam as prostitutas, os escroques atentos
às mesas de jogos, os ladrões em seu trabalho silencioso: essas eram suas
personagens. Na escuridão a multidão renovava cotidianamente o espetáculo da
promiscuidade, da agressão, do alcoolismo; todo o perigo pressuposto como
presença em repouso durante o dia punha-se de tocaia à noite nos becos mal
iluminados. No centro de Londres numerosas ruelas de casas miseráveis
entrecruzavam-se com as ruas largas das grandes mansões e os belos parques
públicos; essas ruelas lotadas de casas “abrigam crianças doentias e mulheres
andrajosas e semimortas de fome” (ENGELS:1998,16).
O inchaço populacional da cidade industrial do século XIX e todos os
problemas decorrentes desse fato constituíam-se como o impulso de novas idéias
para a moderna cidade. A partir da migração campo-cidade de uma população que
buscava trabalho e melhores condições de vida surgiam os primeiros bairros
operários, que em seguida apresentariam problemas de insalubridade e falta de
infra-estrutura. Desde as primeiras propostas revolucionárias elaboradas pelos
chamados pré-socialistas da primeira metade do século XIX – Owen, Fourier, Cabet
3
2
BRESCIANI, M. Stella M. Londres e Paris no Século XIX: O Espetáculo da Pobreza. São Paulo:
Brasiliense, 2002.
3
A crítica a essa “desordem levou-os a propostas de modelos “ordenados” para as cidades
industriais que tiveram como base o próprio tempo: o passado - valores antigos foram perdidos -
assumindo posições nostálgicas ou progressistas e apontando dois modelos principais de
organização espacial da sociedade: o progressista e o culturalista. O modelo progressista, que tem
como principais autores Owen, Fourier, Richardson, Cabet e Proudhon baseiam-se em princípios
racionalistas da filosofia iluminista e determina o indivíduo “típico”, sua habitação, suas necessidades
e prazeres com forte preocupação com a higiene. O espaço do modelo progressista é aberto,
11
existiu uma busca em comum: a de uma cidade que representasse o “espírito da
época”, que respondesse às necessidades, aos anseios do homem da era moderna.
O resultado físico último era uma cidade que se constituiu como um campo livre,
pontuado por edifícios isolados, que levava implícita uma idéia de higiene,
salubridade, banho de sol e velocidade e, era justamente para suprir todas essas
demandas que a ciência trabalhava insistentemente no controle e bem estar
populacional baseando-se nas condições dicotômicas entre saúde e doença, esta,
na Inglaterra, teve o sangue como fio condutor.
As discussões acerca do funcionamento e funções do sangue no corpo
humano apareceram no século XVII, mas ainda com outro sentido: a necessidade
de descobrir o corpo humano, suas particularidades e de quais maneiras o
bombeamento sanguíneo interferia na relação entre saúde e doença corpórea. O
sangue nesse momento ainda estava pautado na condição simbólica, herança
aristocrática que determinava posição social do indivíduo. O funcionamento do
sangue fora satisfatoriamente descoberto por Harvey, que suplantou Galeno e
afastou-se definitivamente da medicina hipocrática; assim, a circulação do sangue
começou a influenciar também o espaço urbano: através de uma política de saúde
pública, a cidade foi reorganizada, suas estruturas repensadas. Desta maneira
também começou a ser repensado o tratamento dado ao pobre; a caridade proposta
pela Lei dos Pobres foi reformada e este passou ser visto como causa das mazelas
sociais.
No século XIX as teorias médicas investiram no sangue como condutor da
carga humana que interferia no comportamento e propensões do corpo e,
principalmente da mente, ou seja, seria como se a mistura sanguínea que um
rompido por vazios e verdes, onde as diversas funções urbanas são separadas em zonas
especializadas, buscando seu máximo rendimento.
12
homem carregava trouxesse as características de seus antepassados e o habilitasse
à desenvolver características ao longo de sua vida, como por exemplo a disposição
para o trabalho, a loucura, a promiscuidade, a mendicância, entre outros.
Em 1859 o naturalista Charles Darwin publicou The Origin of Species [A
Origem das Espécies] que defendia os princípios da seleção natural como o
processo de sobrevivência que governava os seres vivos. A repercussão do trabalho
seria o grande que, somado aos trabalhos de Malthus e Spencer, acabaria por
determinar um conceito novo: o darwinismo social; este influenciaria não apenas às
ciências, mas também iria impor o conceito do mais apto às diversas esferas sociais
e assim abriu caminho à cobertura biológica para a teoria da degeneração urbana
hereditária, reforçando a posição da chamada “idéia sanitária” desenvolvida por
Chadwick, encontrando sua expressão no controle de doenças e na
degenerescência através da mistura do sangue, que ampliada por Galton dividiu a
sociedade em linhagens boa e ruim e, finalmente, cruzou oceanos e chegou a
territórios ocupados e independentes do domínio britânico.
A Estratégia Narrativa em Drácula
Escrever com uma determinada intenção assegura que o leitor a capte? De
forma alguma. Não é a pessoa do “outro” que interessa a quem escreve: é o espaço.
Espaço este que possibilita uma dialética do desejo, de um imprevisível desfrute;
que os dados não estejam lançados para serem captados da mesma maneira, que
haja através do jogo de palavras a interpretação do leitor pelo contexto,
13
reconstrução dos possíveis passos não claros do escritor, mas do momento. Por
mais familiar que seja o autor, ele não está, nem pode estar de fato presente, em
sua atualidade viva. Já se traduz como distante e à medida que tentamos desvendá-
lo, como coloca Walter Benjamin
4
, ele se distancia mais pelo simples fato de que é
impossível reconstituir suas intenções “reais”; pois, o que motivou o autor se
perdeu no tempo, o que restou foi a sua obra e é nela que debruçamos para
esmiuçar o seu contexto.
Para Barthes
5
a Literatura deve indicar alguma coisa, diferente de seu
conteúdo e de sua forma individual e que é justamente o seu próprio fechamento,
aquilo pelo que, precisamente, ela se impõe como Literatura. D então
vislumbramos uma porção de signos dados sem relação com a idéia, com a língua,
nem com o estilo e destinados a definir a solidão de uma linguagem ritual. Essa
ordem sacralizada dos signos coloca a Literatura como uma instituição e assim
tende a abstraí-la da História, pois nenhum fechamento se funda sem uma idéia de
perenidade. A História está então diante do escritor como uma opção necessária
entre várias morais da linguagem, obriga-o a dar significado a Literatura segundo
condições que ele pode não dominar.
A arte clássica o podia sentir-se como uma linguagem, pois ela era em si
linguagem, ou seja, transparência que detinha o espírito universal e um signo sem
espessura. A partir do século XVIII essa transparência começou a anuviar-se; a
forma literária desenvolveu-se através de um outro poder, independente dela; não
se sentia a Literatura como um modo de circulação socialmente privilegiado, mas
como uma linguagem profunda dada como sonho e como ameaça. A unidade
ideológica da burguesia produziu uma escrita única na qual a forma não podia ser
4
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1996. Vol 1.
5
BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
14
maculada, visto que a consciência não era; a partir de 1850 o escritor passou a se
tornar um compromissado com a forma, seja assumindo ou recusando a escrita de
seu tempo; deixou então de ser uma testemunha do universal. Todo o século XIX viu
a emergência deste tipo de Literatura ligada ao compromisso da consciência;
constituiu-se definitivamente a Literatura como objeto pelo então advento de um
valor-trabalho: a forma tornou-se termo de uma significação. A escrita atravessou
assim todos os estados de uma solidificação progressiva: primeiro objeto de um
olhar, depois de um fazer.
O que se quer afirmar então, em relação a uma escrita típica do culo XIX
burguês, especialmente vitoriano, é que existiu uma realidade formal independente
da língua; é mostrar que a dimensão que este tipo de escrita está inserido “amarra,
não sem um elemento trágico suplementar, o escritor a sua sociedade; é finalmente
fazer sentir que não Literatura sem uma Moral da linguagem
(BARTHES:2000,70). Foi no século XIX que as escritas começaram a se multiplicar.
Cada uma reivindicou para si o ato inicial pelo qual o escritor assume ou rejeita sua
condição burguesa. Cada qual era uma tentativa de resposta a essa problemática da
forma moderna da escrita. Cada vez que o escritor traçava um complexo de palavras
era a própria existência da Literatura que era questionada. O que a modernidade
deu a ler na pluralidade de suas escritas foi o impasse de seu tempo.
Dracula foi o romance que inaugurou, através do conjunto de assuntos
explorados em seus capítulos, o gênero de horror
6
moderno. Sustentando uma
narrativa com características que ainda remontavam ao tradicional, abriu espaço
6
Trata-se de horror como gênero, porém talvez pudesse ser usado terror. No entanto, os termos não
significam a mesma coisa. Terror dilata a alma e suscita uma atividade intensa de todas as nossas
faculdades, enquanto que o horror as contrai, congela-as e de alguma maneira as aniquila. Talvez o
horror traga a obscura incerteza, esta permeada dos pavores que os homens possuem dentro de si.
Provavelmente foi por esta identificação com os medos humanos de uma época que Bram Stoker e
os demais escritores tenham popularizado seu século com este gênero.
15
para uma abordagem que trouxe a tendência da modernidade para suas páginas.
Foi considerado pelos críticos como a obra de ruptura com o modelo típico do século
XIX; foi uma obra divisora de águas, inaugurando a estética moderna de literatura.
Segundo J. R.R. Tolkien
7
conjugar o contexto histórico no qual o texto se insere com
elementos fantásticos, o que denominou de sub-criação, seria uma corrente
específica do século XX e sua exceção foi justamente Dracula.
Um dos meios de avaliar as obras da modernidade, como revela Umberto
Eco
8
, seria conseguir triunfar acerca da visão positivista de uma relação autor-texto-
leitor para um valor pautado na sua duplicidade: o leitor de um lado e o quebra-
cabeça montado pelo conjunto de informações do texto, que remete ao seu
momento criativo, de produção, que começa justamente na linguagem. A
desconstrução da língua começa na sua forma gramatical, passa pela análise
comparativa de significante-significado até despejar-se no contexto. Eis então um
estado muito sutil do discurso: a narratividade é quebrada e a história permanece,
no entanto, legível; assim:
os fragmentos da narrativa de Dracula são de uma moldagem
essencialmente moderna. Embora aludam a dispositivos góticos como
manuscritos perdidos e cartas, esses fragmentos são registrados da
maneira mais moderna possível: através de máquina de escrever, em
taquigrafia e em fonógrafo. [...] A modernidade da ambientação do romance
também é assinalada através do status profissional dos homens que se
unem contra o vampiro: com exceção do remanescente aristocrático, Arthur
Holmwood, eles são os advogados e doutores do centro da vida comercial
vitoriana tardia. [...] Van Helsing é uma combinação de professor, médico,
advogado, filósofo e cientista. (BOTTING:1996:147)
7
TOLKIEN, J.R.R. Interviews, Reminiscences, and Other Essays. Londres: Houghton Mifflin, 2006.
8
ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
16
Os leitores familiarizados com as inúmeras versões cinematográficas de
Dracula têm em mente a trama com suas heróicas personagens, as quais se unem
para combater o terrível vampiro que ameaça os seres humanos. Porém, nenhuma
dessas versões foi capaz de passar a simetria ou complexidade da narrativa de
Stoker. Mesmo que o autor tenha preferido dividir Dracula em capítulos ao invés de
dividi-lo em partes, o romance é mais facilmente compreendido em termos de suas
quatro partes ou, de preferência, seções.
A primeira destas seções relata a viagem de Jonathan Harker ao castelo do
excêntrico Conde Drácula, onde uma simples viagem de negócios torna-se um
terrível encontro com quatro criaturas assustadoras dotadas de poderes
sobrenaturais. Na segunda seção, Drácula vai à Inglaterra, onde seduz e destrói
uma inocente jovem inglesa, Lucy Westenra. Esta parte, dotada de mistério acerca
da súbita enfermidade da jovem, faz com que dois médicos não poupem esforços
para entender o que está provocando sua doença, culminando na destruição de
Lucy pelo Dr. Abraham Van Helsing e três jovens homens que há pouco propuseram
casamento a ela. A terceira seção traz um conjunto de personagens na batalha
contra o Conde e a sedução de Mina Harker por ele; também, a decisão de caçar
Drácula até seu castelo. Na quarta e última seção, este grupo consegue cercar e
destruir o vampiro em seu castelo.
Dividir o romance em seções também ajuda o leitor a observar sua simetria:
Existem duas jornadas à Transilvânia, pois o grupo, nas páginas finais, resolve
trilhar o mesmo caminho que Jonathan Harker percorreu nas primeiras páginas; há a
sedução de duas jovens que entraram em contato com o vampiro amigas,
confidentes, porém seus destinos refletem caminhos opostos. Enquanto Lucy
entrega-se ao vampiro, Mina luta para salvar a sua vida.
17
Poucos são os autores que conseguiram unir a extrema subjetividade do
romance epistolar do século XVIII à objetividade da redação jornalística. Enquanto
os demais romancistas vitorianos utilizavam por momentos uma narrativa em
primeira-pessoa – como diários secretos, memórias ou outras formas de auto-
revelação ou em terceira-pessoa, que permite ao autor examinar os pensamentos
e atitudes de suas personagens, Stoker escolheu contar sua história utilizando-se de
um conjunto documental como cartas, diários, análises de casos e recortes de jornal.
Estratégia que faz com que o leitor aja como detetive, juntando as informações
apresentadas e solucionando os mistérios da trama antes que suas personagens a
façam. Também, esses documentos trazem certa carga de veracidade à trama, pois
unem informações públicas (reportagens jornalísticas) e documentos pessoais
pertencentes a diferentes pessoas. Aludem assim à explicação de Claude
Lecouteux
9
, que no trajeto revela: da imaginação à crença e da crença à lenda existe
apenas uma forma de dar autenticidade a ela: conseguir o depoimento de pessoas
que viram ou presenciaram situações que a envolvam; um recurso muito utilizado
por séculos pela Santa Inquisição, por exemplo.
Lendo o romance, revela-se que suas personagens estão claramente
fascinadas com a moderna tecnologia que simplificou a vida da classe-média
burguesa. A tecnologia aqui define algo como ciência prática ou aplicada,
distinguindo-se da chamada ciência pura. Não que esta ciência pura não tenha
conotação de aplicada, mas a tecnologia seria a forma de descrever os recursos que
revolucionaram a vida na Londres do final do século XIX. O universo do romance
está claramente ocupado, obsessivamente moderno e, as evidências incluem
máquina de escrever, fonógrafo, rifles de repetição Winchester, telegramas, trens,
9
LECOUTEUX, Claude. História dos Vampiros: Autópsia de um Mito. São Paulo: Unesp, 2001.
18
câmeras fotográficas Kodak; a própria estrutura narrativa escolhida pelo autor
diários, cartas e memorandos – já expõe todos os recursos modernos disponíveis no
período. Isso pode ser observado logo na primeira página, quando o personagem
Jonathan Harker faz a travessia, por balsa, de Londres até Paris e, por trem, até
Budapeste, passando por Munique e Viena.
Mesmo que Dracula seja narrado por diversas personagens, Stoker elegeu as
vozes de quatro deles com a missão de descrever a maior parte dos
acontecimentos: Jonathan Harker, jovem corretor de imóveis, que através de seu
diário dá detalhes de sua viagem à Transilvânia. Sua noiva, Mina Murray
posteriormente Mina Harker que, além de manter um diário, escreve cartas à sua
amiga de infância Lucy Westenra; esta, para imitar sua amiga, resolve manter
também um diário. Por último, Dr. John Seward, o diretor do Asilo Mental de
Londres, registrando em seu fonógrafo tanto as patologias apresentadas por seus
pacientes como sua vida pessoal. As vozes destas quatro personagens representam
cerca de 80% de Dracula. os narradores com menor participação geralmente
trazem informações que os demais desconhecem; Arthur Holmwood depois Lorde
Godalming –, noivo de Lucy – Juntamente com Drácula, seriam os dois únicos
membros remanescentes da aristocracia. Holmwood é quem financia a luta contra o
vampiro; é também amigo de grandes aventuras de Seward e Quincey P. Morris,
este último americano Texas. Dr. Van Helsing, médico, filósofo, metafísico, foi
mentor de Seward, grande estudioso das artimanhas dos vampiros. É o líder do
grupo na luta contra o Conde e, segundo Carol Senf
10
seria a voz do próprio Stoker,
já que ambos partilham do mesmo nome: Abraham.
10
SENF, Carol A. Dracula: Between Tradition and Modernism. Nova Iorque: Twayne Publishers,
1998.
19
Abraham Stoker, Bacharel em Ciências, trabalhou como funcionário público,
desempenhou também cargos universitários, participava de sociedades científicas e
literárias e colaborava em periódicos. Henry Irving, ator, que o convidou para o cargo
de administrador do Royal Lyceum Theatre de Londres, fazendo com que Bram
Stoker saia de Dublin, onde nasceu, para viver em Londres. Foi também Henry
Irving, com sua voz sibilante, quem serviu de modelo para a descrição demoníaca
de Drácula.
Em 1890 Bram Stoker começou a escrever um livro de horror ainda sem título
definido; em sua viagem para Whitby, um dos lugares que o livro usa de cenário,
passou a cogitar o nome Drácula para seu livro, baseado no contato com a lenda de
Vlad Draculea. Morreu sem ao menos ter a oportunidade de assistir ao notável
sucesso de sua obra, que viria sem dúvida com o filme de F.W. Murnau (1888-1931)
Nosferatu (1922).
Em suas pesquisas, Stoker reuniu informações sobre um vampiro que
possuía todos os atrativos que procurava para seu romance: Vlad Draculea
(1431(?)-1476), príncipe da Valáquia, Romênia, grande gênio na guerra, cruel,
detentor de uma hipersensibilidade à luz solar - devido aos anos que passou preso
pelos turcos e ligado à ordem do Dragão, seita secreta que segundo as lendas
romenas mantinha contato com o demônio e fazia banhos de sangue. Baseia-se
ainda na sintomatologia de algumas anomalias, posteriormente descobertas como
genéticas, ligadas a grupos mediterrânicos e que podiam ser aliviadas com
transfusões de sangue: palidez, crescimento anormal de pêlos, unhas e dentes,
retraimento da gengiva, sensibilidade à luz e, em alguns casos, crises de insanidade
ligadas também às porfirias, doença que denotam uma quantidade anormal de
ferro no sangue. Fez diversas observações em hospitais psiquiátricos onde se sentia
20
atraído por pacientes com intensas identificações com o funesto; penitenciárias,
onde lhe despertaram a atenção alguns detentos obcecados por verter sangue e até
mesmo ingeri-lo – sintoma de uma disfunção metabólica também de origem genética
causada por uma deficiência enzimática que reduz a produção das células
sangüíneas, conhecida posteriormente como Anemia Mediterrânea.
Bram Stoker utilizou-se de sua erudição para desenvolver a trama, sempre
fazendo referências a literatos e teóricos, como por exemplo, Shakespeare, Burdon-
Sãnderson, fisiologista, Charcot, primeiro a utilizar cientificamente a hipnose e a
sugestão, Benjamin Disraeli, estadista britânico e escritor. Este modo de construção
literária abriu espaço para que Dracula fosse uma literatura não apenas de horror,
mas que também passasse para o campo da ficção científica. Porém, por este
segundo gênero ser posterior à obra, datando do século XX, mais apropriado seria
para acompanhar o primeiro, o uso do termo verossimilhança. Por ele entende-se a
conjugação de elementos “reais” do ficcional. É o olhar para determinadas
circunstâncias expostas pela sociedade, mas fazendo o uso do que lhe interessa,
criando o estereótipo londrino do final do século XIX.
Stoker morre em decorrência de uma doença que assolava a Londres de seu
tempo: a sífilis. Não se sabe exatamente como contraiu a doença, no entanto,
segundo Senf
11
, ele teria contraído nas ruas, pois sua esposa, após o nascimento do
filho do casal, recusou-se a manter relações sexuais com ele.
11
Op. Cit.
21
O Mito do Vampiro Moderno
Para Joseph Campbell
12
, no mundo e sob todas as épocas os mitos têm
florescido; da mesma forma esses mitos têm sido a inspiração viva de todos os
produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos. Portanto, poderia
se considerar os mitos como a abertura secreta através da qual as energias do
cosmos penetram nas manifestações culturais humanas:
As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico,
descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos
que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do
mito.(2002,15)
O mito seria, para Mircea Eliade
13
, a tentativa descritiva das origens das
coisas e da existência, o fator capaz de preservar e transmitir paradigmas e
exemplos à natureza humana. Definido como recurso ideológico, o mito não se
constitui a partir da negação, ao contrário, ele penetra em diferentes esferas, como
na linguagem, fornecendo-lhes fundamentação da natureza e a eternidade. O mito
se apresenta como responsável pela indagação do ser humano sobre sua própria
função.
O mito do vampiro moderno, segundo pesquisadores do campo da crítica
literária, é reconhecidamente inaugurado por Bram Stoker, por conter elementos que
o identificam aos dias de hoje. No entanto, além de Stoker, dois escritores podem
ser considerados precursores do mito moderno: Dr. John William Polidori (1795-
12
CAMPBELL, J. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2002.
13
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2002.
22
1821) com seu conto The Vampire A Tale [O Conto do Vampiro] (1819) e Sheridan
Le Fanu (1814-1873) com Carmilla (1872). Polidori e Le Fanu relançaram o
interesse pelo tema do vampiro aproveitando o terreno preparado pelo movimento
Gothic Novel
14
, com seu expoente em Horace Walpole (1717-1797) com Châteu
d’Otrante [Castelo de Otrante] (1764), onde se colocou em voga a paisagem típica
dos romances de vampiros: castelos, capelas, cemitérios, entre outros.
Mortos-vivos, lobos, bruxas, vampiros, comumente tem a noite como
cúmplice; a noite é o cenário onde os inimigos do homem tramam sua ruína, seja
esta física ou espiritual
15
. Como coloca Jean Delumeau
16
, a noite possui lugar no
imaginário como algo temeroso na Bíblia, que definiu simbolicamente o medo na
dicotomia luz e trevas e, conseqüentemente, entre vida e morte; assim, seria preciso
implorar Àquele que criou a noite que proteja os homens contra todos os perigos,
sejam eles sobrenaturais como os vampiros ou ordinários adúlteros, ladrões,
escroques, assassinos.
Delumeau
17
propõe uma explicação física ao medo da noite: a visão do
homem é mais aguçada do que a de muitos animais, desse modo as trevas deixam-
no mais desamparado do que os demais mamíferos. Além disso, a ausência de luz
atenua a capacidade cerebral de reduzir os impulsos da atividade de criar ilusões
confundindo facilmente o que é real e irreal. Dessa maneira o medo na escuridão
14
Movimento Gothic Novel ou “Romam Noir” baseia-se na restauração literária de cenários antigos,
especialmente nos que remontam aos séculos XIII e XIV, ápice da arte gótica. Walpole, seu
precursor, rompeu com o movimento Romantismo criando uma atmosfera repleta de personagens
inverossímeis, utilizando medos sobrenaturais ambientados em castelos arruinados. O estilo fez
sucesso, sendo copiado por vários autores, indo muito além do Romantismo nas formas de Conto
Fantástico, Conto de Terror e, no século XX, enveredando pelo caminho do romance de Ficção
Científica.
15
Espiritual detém duplo significado aqui: o primeiro atribuído pela filosofia, em seu sentido mental,
racional e o segundo dado após 1860, de cunho religioso.
16
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
17
Op.Cit.
23
tornou-se um medo da escuridão e os perigos objetivos confundiram-se com os
perigos subjetivos.
Mas, o que faz de Drácula um vampiro moderno? Segundo Claude
Lecouteux
18
, em Polidori a ambiência criada pelo narrador é fantástica e mais
subentendidos, próprios para excitar a imaginação e verdadeiras descrições que
permitem estabelecer uma tipologia do vampiro; em Carmilla, Le Fanu narra a
existência de um vampiro feminino atraído por mulheres, que se insere em uma
linhagem de crenças e tradições que remonta às bruxas e magas da Antigüidade
Clássica, as quais se reencontram também em obras como La Morte Amourese [A
Morta Amorosa] (1936) de Théophile Gautier (1811-1872) e A Família do Vurdalak
(1847), de Aléxis Tolstoi (1822-1870). O vampiro povoa séculos o imaginário
humano, mas que para se tornar o vampiro de tez pálida, bebedor de sangue, que
teme o alho e a cruz características reunidas pela primeira vez por Stoker
passou por um longo processo.
O personagem do vampiro constituiu-se através de elementos preexistentes,
então é conveniente conhecê-los para entender o que faz de nosso Conde Drácula o
expoente moderno deste. Para alguns pode ser uma surpresa, mas as origens de
nosso vampiro talvez estejam mais próximas, pois todos os elementos refletem o
folclore europeu ocidental.
Se os vampiros provocam a morte dos vivos sugando seu sangue, existem
outras maneiras de matar que dizem respeito a uma “pré-história” desses mortos-
vivos. A primeira e talvez mais antiga seria a evocação, termo tomado à magia que
serve para designar a convocação de um ser sobrenatural: um defunto aparece em
carne e osso pois esses fantasmas serão sempre corpóreos, assumindo a
18
Op.Cit.
24
forma etérea a partir da década de 1860 com o advento do espiritismo – e chama os
vivos pelo nome, o que acarreta incontinente em sua morte. O Evocador esbarra no
que em inglês é chamado de fetch; o vocábulo designa a aparição de um morto que
é tomado geralmente como um aviso como as aparições do pai de Hamlet sempre
seguidas de tragédias. Porém, o fetch é também compreendido como aquele que
vem buscar a pessoa em agonia. Constatamos um leve desvio, que o fetch ajuda
o moribundo na “passagem”, portanto possui um caráter positivo que nos leva, a
partir daqui, para longe do vampiro. Figuras similares ao Evocador são o Batedor
morto que bate à porta, esperando que alguém saia de casa para ser morto e o
Visitante quem recebê-lo morrerá. Devemos lembrar o que diz Dr. Van Helsing: o
vampiro só pode entrar numa residência se for convidado!
Entre os precursores do vampiro existe também o Faminto, este ainda não
especializado em sugar o sangue de suas vítimas, tratando-se de um monstro
devorador. Polidori, em seu conto, relata o encontro de Audrey, seu herói, com uma
jovem grega de nome Ianthe, que lhe falava sobre um vampiro que viveu entre sua
família e amigos, mas que após sua morte precisava devorar uma bela mulher ao
menos uma vez ao ano, prolongando assim sua existência. Para matar o Faminto é
necessário além da degolação, cravar uma estaca em seu corpo, fixando-o assim
em sua tumba.
Existem mortos-vivos similares ao Faminto, como o Nonicida, Neuntöter em
alemão, que significa de forma literal “Nove Mortes”. Fantasma que se limita a
provocar a morte de nove de seus parentes mais amados, morte esta causada pela
mastigação, que o faz um irmão mais velho do Mastigador, que irá aparecer no início
do século XVIII com a seguinte característica: enquanto o defunto mastiga sua
25
indumentária em seu caixão seus parentes começam a morrer - segundo relatos é
possível ouvir o som de seus dentes a mastigar durante a noite
19
.
Até o século XIX uma crença européia fala de um “espírito” que se lança
sobre os homens à noite ao passarem por certos lugares cemitérios,
encruzilhadas, capelas abandonadas, pântanos –, pula em suas costas e só o
deixam no momento que estes chegam em casa. O homem vítima do Aufthocker
20
permanece num estado de fraqueza, como se houvessem sugado sua substância
vital, encontrando-se no liame de vida e morte.
O Aufthocker tem sua “evoloução” propriamente no pesadelo. Este se tornou
uma entidade desde a Renascença que englobava diversas realidades: o duplo de
uma feiticeira que vem pesar sobre o peito de alguém, uma entidade que vem
pisotear o corpo durante o sono ou ainda um morto
21
. Ele sempre domina os que
estão dormindo. Ele estrangula os homens, pesa sobre eles e até suga o sangue
dos vivos. Do fim do século XVIII até o século XIX, o vampiro se comporta como um
pesadelo, sufocando suas vítimas, mas esse detalhe é um tanto vago e não permite
saber sobre seu comportamento e ações. “Vemos como é necessário o estudo
estratigráfico do vampiro, o único que permite ver como se constitui o mito moderno
no qual o vocábulo ‘pesadelo’ é recorrente(LECOUTEUX:2003:91). A sucção do
vampiro provoca na vítima uma sensação de angústia e de dificuldades
respiratórias; a pessoa vampirizada costuma perguntar-se sempre se não é vitima
de um pesadelo. Quando Dr. Seward vela o sono de Lucy, que demonstra receio em
dormir, este lhe diz que ao menor sinal de pesadelo a acordará. Alguns dias antes,
Lucy confiou em seu diário:
19
Cf. LECOUTEUX, Claude. História dos Vampiros: Autópsia de um Mito. São Paulo: Unesp, 2001.
20
Aufthocker, Huckupp no dialeto da Saxônia, termo do alemão antigo, uma das denominações do
pesadelo.
21
Cf. LECOUTEUX, Claude. Das Reich der Nachtdämonen. Angst und Aberglaube im Mittelalter.
Berlim: Artemis & Winkler, 2001
26
I tried to keep awake, and succeeded for a while, but when the clock struck twelve it
waked me from a doze, so I must have been falling asleep. There was a sort of
scratching or flapping at the window, but I did not mind it, and as I remember no
more, I suppose I must have fallen asleep. More bad dreams. I wish I could
remember them. This morning I am horribly weak. My face is ghastly pale, and my
throat pains me. It must be something wrong with my lungs, for I don’t seem to be
getting air enough
22
.
Desde a Idade Média acreditou-se que para afastar os mortos é necessário
usar a cruz, símbolo do sacrifício de Jesus à salvação da humanidade; a água benta
contém toda compaixão de Deus podendo assim transformar solo profano em algo
sagrado; o alho, conhecido como a “mandrágora do pobre”, era usado em sortilégios
para afastar o mal das casas dos assustados camponeses. Stoker reuniu esses três
elementos no combate ao seu vampiro e lhe deu características similares aos dos
mortos-vivos clássicos. Porém, seu romance enveredou por outro caminho, sem
deixar o sobrenatural existe um elemento novo na trama, um aliado importante: a
ciência.
No romance de Bram Stoker o “saber vampirológico” foi teorizado através de
suas personagens amplamente ligadas ao campo dos experimentos científicos e,
expressando claramente essa tendência, vemos o discurso de Abraham Van Helsing
sobre os vampiros:
The nosferatu
23
do not die like the bee when he sting once. He is only
stronger, and being stronger, have yet more power to work evil. This
22
“Eu tentei não ceder ao sono e consegui durante algum tempo, mas as doze badaladas da meia-
noite me acordaram, então eu devo ter adormecido. Parecia-me que algo arranhava a janela ou seria
um batimento de asas, mas não dei muita atenção e, como não me lembro de mais nada, suponho
que voltei a dormir. Mais pesadelos. Eu gostaria de me lembrar deles. Esta manhã sinto-me
terrivelmente fraca. Meu rosto está de uma palidez medonha e sinto dor na garganta. Creio também
que algo de errado com meus pulmões; muitas vezes respiro com dificuldade”. (SOKER, Bram.
Dracula, Londres: Penguin Books, 2001, pág.117).
23
Bram Stoker utiliza o termo Nosferatu que tornou-se célebre no filme de F. W. Murnau (1922),
porém o termo na realidade é uma mistura de dois personagens das crenças romenas: Nosferat que
27
vampire which is amongst us is of himself so strong in person as twenty
men, he is of cunning more than mortal, for his cunning be the growth of
ages
24
.
A presença da imagem do vampiro representa um fator tradicional, pois sua
figura já está incorporada ao folclore e, ao mesmo tempo, é uma figura em constante
mudança justamente pelo fato de sofrer alterações em suas características primevas
para se adequar ao tempo em que se insere. Stoker conseguiu então ligar diversos
pontos do imaginário popular à sua narrativa de ficção, criando assim uma figura que
representou melhor os medos de uma nova época.
Enquanto Polidori e Le Fanu transformaram a crença popular em um ícone
literário, Stoker enfatizou a múltipla natureza do vampiro colocando-o no mundo
moderno, sugerindo uma intersecção do mito com ciência, passado e presente.
Traçando um panorama de seu tempo lançou através de seu vampiro, este como
uma metáfora para descrever o momento em que vive, algumas questões: O
passado teria lugar no presente? O impulso moderno de descartar amplamente
tradições e costumes conseguiria de fato uma vitória? Através da reunião de
múltiplas tradições de diversas regiões da Europa criou um personagem novo que
atormenta os modernos londrinos. Seria assim uma forma de “cutucar” a ferida
aberta pela modernidade? Será que ela dará conta de tudo?
Para uma maior compreensão dos assuntos trabalhados na fonte foi feita a
escolha de dividir o trabalho em três capítulos. O primeiro capítulo, Nossos
Caminhos não o os Vossos: Caminhos Modernos em Dracula aborda quais os
significa fantasma propriamente dito; muitas vezes é uma criança natimorta que depois de enterrada
volta à vida e deixa sua cova para não mais voltar; transforma-se em cão ou gato, quase sempre
preto. Murony, termo valáquio que seria o espírito nefasto, fruto ilegítimo de dois filhos ilegítimos e
vítima de um vampiro.
24
“O Nosferatu não morre, como a abelha, após uma única picada. Ele se torna ainda mais
vigoroso e se tornando mais forte tem um poder maior de fazer o mal. Esse vampiro que está vivendo
entre nós é tão forte quanto vinte homens reunidos; também sua astúcia excede a dos mortais, pois
vem se desenvolvendo há séculos”. (Id-Ibidem, pág. 165).
28
caminhos modernos tomados pela Inglaterra durante o final do século XIX e a
simbologia criada por Stoker para contrapô-la a tradição; estes inseridos na ótica
inglesa, pautado nas relações sociais dadas pela dinâmica da cidade de Londres, na
emergência dos nacionalismos, a lacuna entre a cultura burguesa emergente e a
cultura popular e assim o choque cultural causado pelo encontro do personagem
Jonathan Harker com o Conde Drácula.
Em O Sangue é Vida: Dracula e o Progresso Médico-Científico Vitoriano,
nosso segundo capítulo, enveredamos pelo caminho das ciências médicas
vitorianas, o trabalho volta-se para a análise do discurso científico, entrando no
campo médico, fisiológico social. Ainda, exploramos a questão do sobrenatural e
seus contrapontos com a ciência moderna. Abordando a medicina social inglesa, o
sangue segundo as teorias de Harvey, as questões acerca da sanidade e insanidade
e também a análise da postura de dois personagens frente a essas novas teorias:
Dr. Abraham Van Helsing e Drácula.
O terceiro capítulo intitulado Pela Sobrevivência do Mais Forte: Problemas
Sociais na Inglaterra Vitoriana volta-se para questões sociais no que tange aos
conflitos de gênero e o problema da sexualidade e, como as teorias médico-
científicas inglesas trataram questões como a hereditariedade. Também, analisamos
o medo do outro, reforçado pelo nacionalismo em contraposição à expansão
imperialista inglesa. E, assim, por que Bram Stoker optou por eliminar não apenas
Drácula, mas Quincey P. Morris.
O objetivo principal do trabalho está em demonstrar a maneira como o autor
de Dracula apontou as questões referentes ao avanço da modernidade em seu
período e, dessa maneira, nos legou um material rico para uma análise de ltiplas
vertentes desta modernidade, como os avanços tecnológicos seguidos dos avanços
29
médico-científicos, as questões políticas, econômicas, e, então, elucidando às
questões sociais. Deste modo, podemos vislumbrar a metáfora criada por Stoker
para representar o medo do outro, os múltiplos aspectos da “idéia sanitária” e das
questões de hereditariedade através de Drácula; podemos também analisar a
postura inglesa através do grupo que combate o vampiro e observar o trato com a
mulher através da sexualidade e do imaginário.
Todo o trabalho está ligado, direto ou indiretamente, ao sangue, assim como
em nossa fonte, este perpassava todos os estratos da sociedade inglesa definidas
por essa modernidade pautada no campo científico. Este símbolo que foi usado por
muitos séculos precedentes, ganharia um novo status; sem perder seu prestígio, sua
imagem se modifica, até chegar a ser o regulador social moderno vitoriano.
30
Capítulo 1
Nossos Caminhos não são os Vossos: Caminhos Modernos
em Dracula
Anseio por percorrer as populosas ruas de sua adorada
Londres, estar no centro do redemoinho e da torrente da
humanidade, de compartilhar sua vida, suas mudanças,
sua morte e tudo mais que a faça o que é
25
. (Conde
Drácula)
1.1 modernidade, tradição
muito que se busca uma definição para o significado da modernidade.
Pensadores se debruçaram sobre o tema para defini-lo, mas qual seria o seu
significado neste trabalho? Analisando uma obra rica em conhecimento científico,
especialmente no que concerne ao médico, seria possível abordar exclusivamente o
conceito nele presente de modernidade? Não. Sua grande complexidade e ramos
periféricos fazem com que a trama seja desenvolvida por um método de
contraposição, o que demonstra a incapacidade de discutir o que é moderno sem
apontar seu antônimo: a tradição. Tema recorrente em muitos trabalhos, a dicotomia
lançada entre modernidade e tradição sempre traz pontos comuns, porém o caminho
percorrido envolve diferentes abordagens. Seu emprego é de extrema importância
25
“I long to go through the crowded streets of your mighty London, to be in the midst of the whirl and
rush of humanity, to share its life, its change, its death, and all that makes it what it is”. (Id-Ibidem, pág.
37)
31
ao longo destas primeiras ginas e, sem apontar seus contra-sensos e negações
não se pode chegar de fato à problemática da pesquisa; ambivalência que traça
pano de fundo à sustentabilidade da discussão do próprio autor da fonte.
Independente de intencionalidades representa a grande importância e conflito
desses dois conceitos dentro do contexto de produção da fonte.
Modernidade, vindo do latim Modernus, cuja primeira aparição em registros
data do século V, durante o período de transição da antiguidade romana ao mundo
da cristandade; nesse sentido o vocábulo teria o significado de limite da atualidade,
derivando de modo já, imediatamente, logo, agora mesmo. Modernus não significa
apenas novo, mas também atual; é o termo cuja função é designar exclusivamente a
atualidade histórica presente.
Durante o século XII, o moderno foi experimentado como aperfeiçoamento
novo realça o antigo e antigo sobrevive no novo; Uma obra moderna então seria
reconhecida quando um futuro conferisse a credibilidade de tempos passados. A
criação do substantivo Modernidade é, segundo Jauss
26
, relativamente recente,
situando-se no limite do “horizonte cronológico que separa a percepção do mundo
histórico familiar de um passado que nos é acessível através da compreensão
histórica” (1996,51). Os humanistas do Renascimento olhavam a Idade Média como
período de trevas entre a Antiguidade (antiquitas) passado exemplar e a
modernidade do presente – tempo que segue seu curso ao futuro.
No século XVII haviam dois partidos intelectuais: de um lado os “modernos”,
que adotaram a idéia de progresso contida na ciência de Copérnico
27
e na filosofia
26
JAUSS, Hans Robert. “Tradição Literária e Consciência Atual da Modernidade” in Histórias de
Literatura. Olinto, Heidrun Krieger (org.). São Paulo: Editora Ática, 1996.
27
Nicolau Copérnico (1473-1543) foi um astrônomo e matemático polaco que desenvolveu a teoria
heliocêntrica do Sistema Solar. Foi também cônego da Igreja Católica, governador e administrador,
jurista, astrólogo e médico.
32
de Descartes
28
; do outro os “antigos”, que mantinham a no valor exemplar e
atemporal da Antiguidade. Os “modernos” seguiriam o caminho de ver a sua época
como o início de algo, os “antigos” se viam como a fase mais madura de uma
humanidade, cuja juventude estaria na Antiguidade e a maturidade no
Renascimento; julgavam pertencer ao fim.
O moderno, a partir do final do século XVIII, estava voltado para o futuro, ao
que era “novo”, “bom e “auto-suficiente”. Na recusa do passado como modelo,
deixava aos poucos de se opor à antiquitas e, pelo menos do ponto de vista estético,
escapava ao paradoxo no qual se encerrava. Não se distanciava mais do velho e
sim do clássico, do belo eterno, de um valor que desafia o tempo.
Entende-se por tradição um conjunto de práticas, normalmente regulada por
determinadas regras, em geral abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual
ou simbólica, são valores e normas de comportamento que através da repetição
foram inculcadas em uma determinada sociedade e, automaticamente, seriam uma
continuidade do passado. O que Max Weber
29
descreveu em seu trabalho foi a
profanação da cultura ocidental e o desenvolvimento da sociedade moderna através
da racionalização. À medida que a racionalização cultural e social é absorvida pelo
cotidiano, as formas tradicionais são diluídas pouco a pouco e, ao final, não se
consegue mais distinguir o que antes possuía um espaço sagrado, pois o período
marcado pela finalidade das “coisas” o encobre, varre-o para um quarto escuro de
onde podemos ver apenas alguns lampejos de sua presença passada.
É comum na historiografia a observação dos séculos XVI e XVII como o
princípio do declínio de costumes e o século XVIII como uma época de extinção
28
René Descartes (1596-1650) foi filósofo, físico e matemático francês.
29
WEBER, M. Die protestantische Ethik. Heidelberg: Heidelberg, 2001.
33
destes – juntamente com a magia, a feitiçaria e as superstições. Thompson
30
defendeu a tese de que a consciência e os usos costumeiros eram particularmente
fortes no século XVIII, e que alguns desses costumes eram de criação recente e
representavam reivindicações de novos direitos. Claramente o povo estava sujeito a
pressões para realizar uma reforma cultural, pressões que vinham de estratos
superiores da sociedade, ou seja, o Estado sentia a obrigação de suplantar
costumes antigos – que remontavam muitas vezes ao período medieval – pelo novo.
O esclarecimento escorria de cima à baixo nos estratos sociais, supunha uma
liquidação dos costumes vistos como atrasados, mas apenas o supunha.
As pressões em favor desta reforma de costumes sofreram resistência. Daí
em diante abriu-se uma fissura entre a cultura patrícia e plebéia e uma de suas
conseqüências seria o surgimento do folclore, à medida que esses patrícios
interessavam-se em buscar na tradição plebéia elementos que rememorassem suas
origens, o que será fundamental, no século XIX, às bases dos emergentes
nacionalismos.
Se o costume, como Francis Bacon
31
defendeu, era a principal diretriz
humana e que possuía maior eficácia quando iniciado nos primeiros anos de vida
pela educação, como o povo teria acesso ao bom costume se o negavam a
educação? O povo recorria à tradição oral que muitas vezes estavam registradas
nas mentes já idosas, mas tinham efeito legal. Como observa Thompson
32
:
30
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
31
Francis Bacon (1561-1626) foi um político, filósofo e ensaísta inglês, barão Verulam, visconde de
St. Albans. Como filósofo, destacou-se com uma obra onde a ciência era exaltada como benéfica
para o homem. Em suas investigações, se ocupou especialmente com a metodologia científica e com
o empirismo. É muitas vezes chamado de fundador da ciência moderna. Sua principal obra filosófica
é o Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza. Cf. BACON,
Francis. Essays. Londres: Wordsworth Editions, 2002.
32
Op. Cit.
34
Não há dúvida que no século XVIII ‘costume’ era uma ‘boa’ palavra: a
Inglaterra muito se vangloriava de ser Antiga e Boa. E era também um
termo operacional. Se, de um lado, o ‘costume’ incorporava muitos dos
sentidos que atribuímos hoje à ‘cultura’, de outro, apresentava muitas
afinidades com o direito consuetudinário (2000,75).
Portanto derivam dos costumes os usos habituais do país; ou seja, a Inglaterra era,
em sua essência, um Estado no qual o costume de certa forma pressupõe a
tradição, logo o novo deveria entrar nos estratos sociais em forma de repetição para
que assim possa finalmente tornar-se um costume e, por conseguinte, tradição. Foi
por esse motivo que a Inglaterra possuía um trato muito peculiar na sua relação
entre a tradição e a modernidade tornando-se por vezes delicado encontrar suas
fronteiras. Mais válido seja, talvez, encontrar seus pontos de contato, intersecções
estas que permitiriam, entre outros, trabalhos literários como nossa fonte.
Explorando o livro de Stoker, o elo inglês com a região da Transilvânia estaria
essencialmente embasado nos valores tradicionais, mas os pontos de contato
seriam demonstrados pela oposição formada por estes. Seria como criar um
ambiente familiar ao leitor pela tradição enquanto inseria uma temática com
elementos novos – pela modernidade.
Na década de 1850, enquanto a Inglaterra se consolidava cada vez mais
como uma potência econômica, abrindo espaço para um termo relativamente novo,
o capitalismo
33
, a região da Transilvânia ainda estava ligada a um regime de
servidão e a propriedade da terra continuava altamente concentrada nas mãos da
nobreza rural
34
. Também, a região de nosso Conde ainda fazia parte do Império dos
Habsburgos, estruturado como absolutista. Porém, sem fazer parte desse império, o
medo era de que a região fosse absorvida por algum nacionalismo expansionista
33
O amplo uso do termo data da década de 1860, antes disso aparecendo espaçadamente entre
1835 e 1850.
34
A servidão na Romênia duraria até a década de 1860.
35
emergente desde as revoluções de 1848 –, tornando-se parte do que futuramente
viria a ser a Hungria ou até mesmo da Alemanha.
Não apenas a mudança do Conde Drácula da Transilvânia para Inglaterra
resultou em um conflito entre um mundo ainda pautado em características medievais
com um mundo moderno, industrial, como também confrontou o passado e o
presente e as conseqüências de uma mistura desses dois tempos como um limbo. A
presença aristocrática foi aos poucos perdendo seu valor na Inglaterra democrática,
suas características começaram a ser repelidas, entre estas as relações da
aristocracia e seus serventes. Isso pode ser percebido na postura do Conde, que
acreditaria coordenar os pensamentos e ações das outras personagens e que não
permitia ser comandado por elas. Drácula, em suas próprias palavras recordadas
por seus oponentes, mostrava-se como o mestre de todos, o líder dos homens,
esposo de todas as mulheres e detentor do poder sobre a vida e a morte. seus
oponentes admiravam seu passado de glórias, mas o rebaixaram como algo inferior
a eles próprios, definindo-o como um perigo à sociedade que precisa ser destruído o
mais rápido possível.
Drácula era detentor de um tulo aristocrático e a escolha de situar-se em
Picadilli também o identifica com um particular tipo de aristocrata que ainda ansiava
por receber vantagens. Kline
35
explica que a região de Picadilli era comumente
depreciada em romances, seria a parte de Londres em que:
Jovens e esposas adúlteras rumam com freqüência buscando dinheiro e
luxo [...] Todos os desempregados do West End caminham para lá, em
busca de algum sucesso que não encontram nas fábricas. (1992,57)
35
KLINE, Salli J. The Degeneration of Women: Bram Stoker’s Dracula as Allegorical Criticism of the
Fin de Siècle. Londres: CMZ Verlag, 1992.
36
Sem referências com o comércio sexual em Picadilli, leitores contemporâneos não
conseguem ver a escolha propositada de Stoker por aliar Drácula com os
aristocratas predadores de privilégios. Pela relação do vampiro com a sexualidade
deve-se mencionar que aristocracia e classe trabalhadora eram comumente
associadas nesse período com o sexo desregrado, algo intensamente reprimido
especialmente pela burguesia estamos afinal, tratando de seu século. De forma
geral, Stoker desenhou sua classe trabalhadora como bêbados e covardes, a
mesmo como ladrões. Especialmente reforçando o hábito de beber, Stoker traçou
um paralelo com Drácula que também possui o hábito de beber, tornando assim
ambos, aristocracia e classe trabalhadora algo a ser repelido.
1.2 Londres
Londres era, no final do século XIX, o que Sennet
36
se referiu como “a nova
Roma”. O desenho urbano do período vitoriano tanto promoveu a circulação de
grande número de indivíduos quanto incapacitou o movimento de grupos que
ameaçavam a paz e a ordem, como os surgidos com a Revolução Francesa.
Seguindo uma filosofia que colocava a cidade como artérias e veias, a cidade
deveria respirar e circular. O conjunto de parques e alamedas tinham o propósito de
espalhar os pontos de encontro, praticamente impedindo aglomerações. “A
locomoção em uma rua unifuncional foi o primeiro passo, necessário, na busca das
prerrogativas individuais na multidão” (SENNET:2006,268).
36
SENNET, Richard. Carne e Pedra: o Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental. Rio de Janeiro:
Record, 1997.
37
No final do século XIX, os únicos trabalhadores assalariados que residiam nos
distritos ricos como Mayfair, Knightsbridge e Bayswater eram os serventes
domésticos. Os que viviam entre os ricos patrões misturavam-se a eles nas cenas
domésticas. Londres possibilitava o convívio entre ricos e pobres nesta esfera.
Geralmente os trabalhadores domésticos eram formados por recém-chegados a
cidade, a maioria vinha do campo para seu primeiro emprego longe da zona rural. A
precaução de contratar quem nada sabia sobre a “malícia urbana” era fundamental
para as classes mais ricas que, pelas más condições empregadas aos trabalhadores
urbanos, o medo do outro estava sempre presente. Não apenas o medo do outro,
mas o medo de revoltas: ninguém queria que uma revolução começasse debaixo de
seus narizes, ou melhor, dentro de suas portas.
A expectativa da deferência das classes dominantes gerava inveja, mas não o
conflito com as classes mais baixas. Londres soube muito bem lidar com os
possíveis conflitos de classe. Sennet cita uma observação feita por George Orwell
em 1937, que tratava do pensamento britânico burguês sobre as lutas de classe:
“Não importa para onde você se volte, essas malditas diferenças de classe estão
diante de nós, como um muro de pedra” (2006,263). Assim, os ingleses se
mostravam mais sensíveis a essas idéias, mesmo sem considerá-las ou aos seus
conflitos.
Essa sensibilidade então empurrou Londres para suas reformas urbanas.
Desde a construção das primeiras praças no século XVIII, os urbanistas o
pararam mais de demolir habitações pobres e lojas humildes para erguer casas
destinadas às classes mais favorecidas. A renovação urbana empurrou a pobreza
para locais mais distantes. Esse deslocamento prosseguiu ao longo do século XIX e,
a partir da década de 1850 intensificou-se, pois a cidade não parou de receber
38
novos habitantes. Antes e mais organizado que em Paris, Londres colocou
diferentes classes em locais separados; a cidade então vinculou seu destino ao
destino imperial, pois, sendo capital deste, deveria ter uma infra-estrutura digna do
soberano. Não obstante, deveria servir de modelo para outras cidades, o que não
seria fácil, afinal regiões em seu próprio território como Manchester e Birmingham
estavam muito distantes de possuir um ideal organizacional do espaço urbano como
Londres. No entanto, Londres carecia de uma estrutura de governo central; até 1888
a cidade não dispunha de uma prefeitura. As reformas introduzidas, porém,
mantiveram a centralização burocrática ainda muito frágil.
A economia da cidade misturava atividades portuárias, oficinas, indústria
pesada, finanças e administração imperial, apesar de não possuir um local firme de
exercício do poder burocrático, era muito organizada; o poder era exercido pelos
proprietários de fábricas ao redor da cidade, com casas luxuosas no centro. Londres
tinha mecanismos para fornecer um controle cívico racional, o governo firme tinha a
população na mão. Era de fato impressionante que o desenvolvimento capitalista
nunca tenha sido contestado por uma revolução; o segredo de Londres estava em
seu individualismo, onde cada pessoa agia de forma estranha aos demais; nos
embates do dia todos se misturavam, mas não se viam; existiam apenas em si
mesmos e somente para si mesmos.
O que marca o grande aglomerado urbano, perfil de muitas cidades no
período, era o fato dos homens se assemelharem á figuras fugidias, não palpáveis e
tampouco passíveis de análise além do que se pode observar em sua forma exterior.
Existiu de certa maneira a necessidade de permanecer incógnito, ter enfim, a
identidade individual substituída pela do habitante, do citzen de uma metrópole como
39
Londres. Tocqueville
37
acreditava que isso poderia assegurar a ordem; seria então a
coexistência de pessoas voltadas para si e tolerando-se umas às outras por uma
espécie de indiferença mútua. No espaço urbano o individualismo assumia um
sentido muito particular; as cidades planejadas do século XIX pretendiam abarcar a
livre circulação das multidões e, assim, desencorajar movimentos de grupos
organizados. Foi ali, durante a Revolução Francesa, que Londres viu o que a
multidão poderia fazer; pensou então em mudar a dinâmica de sua cidade. Pensou
para o seu bem.
A velocidade era o fator mais importante da vida moderna e nada mais rápido
do que pôr seus cidadãos para circular de maneira eficaz. Com a Inglaterra ligando
regiões através de suas estradas ferro, com trens a vapor, nada mais justo seria
espalhar esta tecnologia em seu próprio território: de norte a sul as locomotivas
espalhavam-se e traziam consigo a idéia de implementar um novo transporte na
cidade: o metrô. Transportando pessoas à diversas áreas da cidade, o metrô
londrino propiciou uma verdadeira revolução na circulação social. Os engenheiros
que projetaram o metrô evidentemente basearam-se no sistema de redes
desenvolvido por Haussmann
38
em Paris, mas projetaram a via subterrânea para ser
de mão dupla.
A maior parte dos empregados a serviço das casas ricas e também os
escriturários e outros trabalhadores dos setores burocráticos da cidade
amontoavam-se em bolsões de pobreza nas áreas de East End e South Bank, antes
ocupados por paupérrimos cidadãos. Londres havia confinado sua pobreza bem
37
TOCQUEVILLE, A. A Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes,2005. Vol.1.
38
Haussmann levou a cabo o maior empreendimento de redesenho do movimento urbano dos
tempos modernos, destruindo boa parte das ruas medievais e renascentistas existentes em Paris;
dividindo a cidade em três redes, sendo que a primeira abrangia o emaranhado de vielas
remanescentes da antiga cidade medieval, a segunda entre o centro e a periferia e a terceira
consistia em uma ligação da primeira e segunda às principais rotas que davam acesso a região
central da cidade.
40
longe do centro ou em áreas diminutas entre as belas casas. Famílias inteiras
moravam muitas vezes em casas com apenas um cômodo nestas regiões centrais; o
metrô contribuiu para alterar esta situação. Com um transporte mais barato as
pessoas puderam arranjar melhores domicílios em locais mais afastados do centro.
O metrô assim cumpria dupla função: seria impossível imaginar, sem ele, o aumento
do consumo e a distribuição do comércio para diferentes bairros da cidade.
Ainda que o metrô criasse uma cidade mista, suas fronteiras mantinham-se
bastante evidentes através da temporalidade: durante o dia, a cidade fluía por
debaixo do solo em direção ao centro; à noite, esses mesmos tubos – como o metrô
foi e ainda é chamado em Londres – esvaziavam o centro à medida que a população
retornava para casa. O contato diurno não aproximava as classes, pois quem vinha
ao centro a trabalho acabava partindo para longe. Portanto, a cidade se modernizou
e, à medida que isto ocorreu, encontrou também um meio de manter seus habitantes
dispersos: por um lado o receio habitava a relação Estado/multidão, por outro o
medo residia no próprio indivíduo, o medo do outro.
1.3 nação, nacionalismos
Existiu também, nesse período, a emergência dos Estados-nações europeus.
Porém havia uma diferença fundamental entre Estado-nação e nacionalismo; o
primeiro seria como programa para construir um artifício político que dizia basear-se
no segundo:
Os movimentos que representavam a “idéia nacional” cresceram e
multiplicaram-se. Eles não representavam freqüentemente ou
41
normalmente aquilo que o século XX viria a entender como a versão-
padrão (e extrema) de um programa nacional, ou seja, a necessidade para
cada povo de um Estado totalmente independente, homogêneo territorial e
lingüisticamente, laico, provavelmente republicano/parlamentar
(HOBSBAWM:2007,134)
Quão britânicos os britânicos se sentiam? Não muito, apesar da inexistência, na
década de 1860 – momento no qual muitos povos começavam a formar seus
Estados-nação –, de qualquer movimento autonomista irlandês ou escocês; havia
nacionalismo inglês, mas não era compartilhado pelos pequenos povos do conjunto
de ilhas britânicas. Os imigrantes ingleses nos Estados Unidos tinham orgulho de
sua nacionalidade e assim relutavam em tornarem-se cidadãos americanos; por
outro lado, os imigrantes escoceses e irlandeses não tinham tal relutância: eram
imigrantes orgulhosos de suas origens, mas esta não remontava a Inglaterra.
As camadas mais tradicionais, atrasadas ou pobres de cada povo eram as
últimas a tomar partido nos movimentos nacionalistas: trabalhadores e camponeses
que seguiam os caminhos traçados pelas elites. Contudo, eram nas esferas mais
baixas que as elites buscavam argumentos para o movimento nacional: os mitos e
propagandas nacionalistas tiveram sua fase folclórica. Esta foi a base da “idéia
nacional”, divulgada através de jornais e revistas, utilizando-se de argumentos
literários que remontavam regiões mais longínquas destes territórios nacionais,
organizando assim sociedades ligadas a um passado, estabelecendo um currículo
educacional uniforme, engajando-se em atividades políticas. Mas, nesse ponto, o
movimento nacionalista necessitava do apoio popular, das massas; a fase do
nacionalismo de massa estava de alguma forma relacionada com o desenvolvimento
econômico e político.
O nacionalismo de massa era novo e bem diferente do nacionalismo de elite.
Poderíamos então chamar de “nacionalistas” as expressões revoltosas camponesas
42
pela consciência da opressão, xenofobia e uma profunda ligação com a tradição
antiga quando estas apresentavam conexões com os movimentos nacionalistas
modernos. Um desses movimentos era o irlandês.
Terra natal de Bram Stoker, a Irlanda demonstrou um movimento
indiscutivelmente nacional. A Irmandade Republicana Irlandesa (Fenians) com o
Exército Republicano Irlandês (IRA) era “descendente linear das fraternidades do
período pré-1848 e a organização mais duradoura desse tipo de fraternidade”
(HOBSBAWM:2007,138). O apoio em massa aos políticos nacionalistas não era algo
novo, pois a combinação de conquista estrangeira, pobreza, opressão e uma classe
senhorial inglesa protestante imposta ao campesinato católico mobilizava até os que
se consideravam despolitizados. Na primeira metade do século XIX os líderes desse
movimento de massa eram provenientes de uma pequena classe média apoiados
pela Igreja, a única instituição que ligava distintas classes a uma idéia nacional e
pretendiam acordo moderado com os ingleses.
Os fenianos, que apareceram na década de 1850, por sua vez pretendiam
conseguir independência da Inglaterra por meio da insurreição armada; eles eram
completamente independentes dos moderados da classe média e seu apoio vinha
das camadas mais populares da sociedade. Embora o nome da organização fosse
originário da antiga mitologia irlandesa, a ideologia pregada pelo movimento era bem
pouco tradicional, embora seu nacionalismo laico e anticlerical não pudesse
esconder que o critério de nacionalidade fosse a católica. A sua concentração
exclusiva em conseguir uma República através da luta armada substituiu um
movimento dos moderados que previa um programa social, econômico e até de
política doméstica.
43
O movimento tinha como suporte financeiro a massa de trabalhadores
irlandeses levados aos Estados Unidos pela fome e ódio aos ingleses e cujos
“soldados” vinham dos trabalhadores imigrantes para a América e Inglaterra não
haviam quase trabalhadores industriais na Irlanda, a maioria estava ainda ligada ao
cultivo da terra. “O movimento irlandês foi sem dúvida o precursor dos movimentos
revolucionários nacionais nos países subdesenvolvidos no século XX”
(HOBSBAWM:2007,139). No movimento nacional irlandês não se via nada como
uma organização socialista e os fenianos que eram revolucionários sociais
conseguiram apenas tornar explícito o que sempre fora implícito: a relação entre
nacionalismo de massa e descontentamento agrário de massa e isso apenas no final
da década de 1870. O fenianismo era o nacionalismo de massa na época do
liberalismo;
Podia fazer pouco, exceto rejeitar a Inglaterra e reclamar total
independência através da revolução para um povo oprimido, esperando que
isso viesse a resolver todos os problemas de pobreza e exploração
(HOBSBAWM:2007,140)
Eles geraram a força para obter a independência para a maior parte da Irlanda
católica, mas isso; deixaram então o futuro do país nas mãos dos moderados da
classe média, dos fazendeiros ricos e dos mercadores das pequenas cidades de um
pequeno país agrário, que iriam se apoderar do legado feniano.
Apesar de o caso irlandês ser único, não dúvida de que no século XIX o
nacionalismo se tornou, aos poucos, uma força de massa, ao menos nos países
povoados por brancos. A alternativa para a consciência política nacional não era o
“internacionalismo” do trabalhador, mas uma consciência política que operava em
uma escala menor ou até irrelevante a do Estado-nação. O proletariado assim como
44
a burguesia, existiam como fato internacional apenas em conceito; existia de fato
como um agregado de grupos definidos pelos seus Estados nacionais ou diferenças
lingüísticas e étnicas: ingleses, irlandeses, escoceses. E, na medida em que os
conceitos de Estado e Nação coincidiam pela ideologia dos que estabeleciam
instituições e dominavam a sociedade civil, a política para o Estado implicava a
política para a Nação.
1.4 de Londres à Transilvânia
O livro aparentemente começa como um diário de viagem e, aos poucos,
aparecem comentários acerca de questões presentes no período de 1897, ano do
jubileu vitoriano. Questões essas relacionadas ao imperialismo britânico, diferenças
raciais e de gênero, e principalmente o choque cultural causado pelo que era
estrangeiro e conseqüentemente atrasado. O diário de Harker revela certo
preconceito ao desconhecido; o que inicialmente se apresentou como exótico,
pitoresco, logo se transformou em suspeito e por último em algo terrível na medida
em que ele passou de turista a patriota.
A vida de um típico cidadão burguês no final do século XIX estava
completamente ligada ao racional, descartando de seu cotidiano elementos que
fugiam às explicações da lógica e do bom senso. Sendo assim, uma jornada ao
Leste Europeu trazia conflitos que na fonte foram amplamente explorados, pois foi
através da contradição que o autor fez o movimento de mostrar ao leitor a
superioridade de seu império. Portanto, logo que o livro começa há já uma referência
45
à discrepante relação entre Londres e a região inexplorada da Transilvânia, algo que
foi visto como um aprendizado antropológico para o personagem.
Jonathan Harker é o único narrador nas primeiras 70 páginas! Sendo o
representante do sistema legal britânico, ele é o difusor dos valores das leis inglesas
bem como do progresso e moral do século XIX. A cada página fica mais fácil
identificá-lo como moderno, pois cada momento o levou para longe de sua civilizada
Londres. Inicialmente sua impressão de Budapeste foi que “The impression I had
was that we were leaving the West and entering the East
39
e adicionou “it seems to
me that the further East you go the more unpuctual are the trains. What ought they to
be in China?
40
”. Seu diário sempre privilegiaria o Ocidente ao Oriente, o presente
sobre o passado, a razão, o progresso, a modernidade sobre a superstição, a
nostalgia, o primitivo. O ápice da primeira seção do livro está ligado aos longos
diálogos entre Jonathan Harker e o Conde Drácula onde se pôde perceber
claramente o conflito cultural gerado pelo embate entre novo e velho, moderno e
tradicional. Devemos também atentar para a maneira como Stoker construiu os
diálogos entre Harker e o Conde, pois esses são partes do diário de Harker, logo as
impressões de Drácula nos chegaram pela ótica de Harker, consequentemente a
ótica burguesa que muitas vezes repudiou as posturas de seu anfitrião.
Para compreendermos melhor o personagem de Drácula seria necessário
debruçar-se sobre as origens aristocráticas do Conde. Stoker buscou em Vlad III, o
Empalador (1431(?)-1476) Vlad Tepes em romeno as características para dar
vida ao seu vampiro através das páginas do romance. Vlad III, também conhecido
como Vlad Draculea, foi um príncipe (voivoda) da Valáquia de 1456 a 1462 e em
39
“A impressão que tive é que estamos deixando o Ocidente para entrar no Oriente” (Id-Ibidem, pág.
7).
40
Me parece que quanto mais ao Oriente, mais atrasados ficam os trens. Como será que eles fazem
na China?” (Id-Ibidem, pág. 8).
46
1476. O trono da Valáquia era hereditário, mas não seguia a lei do primogênito. Os
nobres tinham o direito de escolher entre os membros da família real quem seria o
sucessor. A família real dos Basarab, fundada por Basarab, o Grande (1310-1352),
dividiu-se por volta do final do século XIV. Os dois clãs resultantes, rivais entre si,
foram formados pelos descendentes do Príncipe Dan e pelos descendentes do
Príncipe Mircea, o Velho (avô de Vlad III). Vlad II, conhecido posteriormente como
Vlad Dracul
41
, teve três filhos: Mircea, Vlad e Radu. Todos os príncipes da Valáquia
eram vassalos do rei húngaro, também, durante esse período, o domínio da região
pelo Império Otomano era intenso, sendo que Vlad III ao assumir o trono ficou
pressionado entre dois tributos. Porém, seu objetivo durante seu governo era liderar
uma política independente em relação aos turcos e, conseqüentemente barrar o
expansionismo islâmico na Europa. Em 1462 Vlad III perdeu o trono para seu irmão
Radu que havia se aliado aos turcos. Exilado na Hungria até 1474, Vlad III morreu
dois anos depois, assim que recuperou o trono.
Entretanto, foram nas lendas sobre Vlad III que Stoker baseou-se para criar
seu personagem. Segundo essas lendas, o Príncipe tinha o hábito de empalar seus
inimigos atravessando-os com uma estaca de madeira; outra lenda a seu respeito
teria surgido depois da invasão da Valáquia pela Hungria, em 1447. Nessa ocasião,
Vlad II e seu filho mais velho Mircea foram assassinados. Em 1456 Vlad III retornou
à região e retomou controle das terras assumindo novamente o trono da Valáquia.
Esse retorno tardio de Vlad III teria confundido os moradores da região que
pensaram ser Vlad II retornando anos depois de sua morte. Isso teria ajudado a criar
a lenda de sua imortalidade.
41
Vlad II era Cavaleiro da Ordem do Dragão, ordenado pelo Sagrado Imperador Romano Sigmundo
de Luxemburgo no ano de 1431. A Ordem do Dragão foi uma instituição católica criada para impedir a
invasão dos turcos otomanos na Europa Oriental. Em romeno, o sufixo "ea" indica um filho. Sendo
assim, Vlad III, como filho de Vlad Dracul, passou a ser chamado "Draculea": "Filho do Dragão".
47
Com essas informações podemos perceber por que Drácula temia perder seu
poder e, ao decidir mudar-se para Londres, não quer passar-se por estrangeiro,
confessando a Harker:
Here I am noble. I am a Boyar
42
. The common people know me, and I am master.
But a stranger in a strange land, he is no one. Men know him not, and to know not is
to care not for. I am content if I am like the rest, so that no man stops if he sees me
[…] I have been so long master that I would be master still, or at least that none other
should be master of me
43
.
O poder que Drácula possui em seus domínios não podia ser levado a outros
lugares. Esse poder era demarcado pelo espaço em que vivia, pois este estava
ligado à tradições próprias de sua cultura que por momentos encontra-se com o
passado inglês, momento este regido pela aristocracia. Porém, a fissura aberta no
século XIX entre o tradicional e o moderno desconectou duas realidades e a
aristocracia perdeu-se no tempo, ficando para trás, vivendo apenas de memórias.
Portanto, a escolha de Stoker em buscar através de Vlad III as características para
seu Conde denota o claro desejo de exprimir a sensação dessa classe decadente.
Também, a questão do tempo era fundamental aqui, pois Drácula, apesar de sua
imortalidade, temia o tempo. Tempo era tudo que lhe restava, porém foi o tempo
também que o matou. Este tempo era claramente representado pelo moderno, pois
este avançava rapidamente, inaugurando tradições completamente desligadas do
passado aristocrático; moderno indicando o caminho às novas tecnologias, às
ciências.
42
Boyar ou Boyardo é nome dado aos nobres na região da Romênia.
43
“Aqui sou um nobre, um boyar, o povo me conhece e me trata como seu senhor. Entretanto, um
forasteiro em uma terra estranha não é ninguém, os homens ignoram sua importância e não conhecer
significa não ter consideração pelo outro. Eu me satisfarei se puder passar por uma pessoa igual
às demais, comportando-me de tal forma que ninguém se detenha a me observar[...] sou senhor a
tanto tempo que prefiro continuar sendo-o ou pelo menos conservar o poder de não permitir que
ninguém se julgue mais importante ao ponto de querer ser superior a mim”. (Id-Ibidem, pág.28).
48
O tempo na modernidade não estava mais baseado em forças naturais, o
progresso iniciado no século XVI deu ao tempo outra dimensão. Este por sua vez
sofreu bruscas mudanças ao longo do século XIX, carregando consigo toda uma
sociedade. O tempo configurou-se em outro tipo de temporalidade, desta vez
medida pelo tempo do trabalho, um tempo que escapava ao controle, tempo que
trouxe uma nova norma, regulamentava os sentidos e os absorvia. Tempo que não
deixava espaço ao que ficou para trás, tempo que trouxe uma dinâmica nova às
relações. Tempo era a fonte do progresso econômico. No tempo moderno não havia
espaço para o passado.
Sem vida, o mais estranho para Harker era a identificação de seu anfitrião
com o passado. Era notável o descontentamento de Drácula com o mundo moderno,
orgulhando-se dos tempos passados, de sua linhagem: “We Szekelys have a right to
be proud, for in our veins flows the blood of many brave races that fought as the lion
fights, for lordship
44
. Retrato de um aristocrata velho de coração cansado por
prantear tantos mortos ao longo da vida e que não se encontra mais em sintonia
com sons da felicidade, tampouco com as inovações que marcaram o nascimento de
uma nova era; o velho parece não encontrar espaço no novo sendo a cada dia
suplantado, sem ter meios de reagir à nova onda que atinge a tradição. E, por outro
lado, o Conde estava mais familiarizado com o mundo bélico pré-renascentista do
que um residente da moderna Europa. Confortável com a cultura de sua terra e
memórias de feitos gloriosos, chegando à conclusão que nada é comparável ao que
antes existia, antes da modernidade fascinante do século XIX: “The warlike days are
44
“Nós os Szekes, temos todo o direito de termos orgulho, pois em nossas veias corre o sangue de
muitas raças audazes, que lutaram como leões lutariam, pela conquista da supremacia de um
senhor”. (Ibidem, pág. 53)
49
over. Blood is too precious a thing in these days of dishonourable peace, and the
glories of the great races are as a tale that is told
45
.
Em certo sentido, na sociedade de Drácula, o sangue constitui um dos valores
essenciais, pois este tem seu poder definido pela hereditariedade (ter o mesmo
sangue) e também pela sua precariedade (derramar o sangue). Já a partir do século
XIX a sociedade deixou de ser uma sociedade do sangue, pois abandonou o modelo
de sociedade onde predominam as alianças, a guerra e o medo das fomes. O poder
não falava mais através do sangue, mas falava através dos Estados.
A Inglaterra enquanto Estado apareceu de maneira um tanto dúbia; por um
lado existiam novas estruturas burocráticas que claramente dão impulso ao novo
modelo econômico-social, seja em seu próprio território ou em suas colônias, porém
a figura do soberano ainda persistiu. Segundo Hobsbawm
46
foi justamente este fator
que fez da Inglaterra um expoente da reforma econômica e não política. O soberano,
detentor de um poder secular, estava nitidamente conectado ao imaginário inglês e,
apesar da ruptura moderna com antigas estruturas esta figura não desapareceu e
tampouco perdeu sua influência, sua imagem seria difundida por todo mundo. E,
também, a perspectiva econômico-global traçada a partir da década de 1860 não
possuía concorrentes: a Inglaterra reinava absoluta no novo império inaugurado pelo
capitalismo. O império vitoriano teria tempo suficiente para impor sua dinâmica à
outras regiões, até que, por fim, descobriria que não está mais sozinho nesse jogo.
45
“Os dias beligerantes passaram. O sangue se tornou algo precioso demais para ser vertido
nestes dias de paz sem honra, e as glórias de grandes raças tornaram-se uma história a ser
contada”. (Ibidem, pág. 55)
46
HOBSBAWM, E.J. A Era dos Impérios, 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
50
Stoker talvez tenha sido um dos poucos autores que produziram, no final do
século XIX, trabalhos que elucidavam as preocupações políticas sobre “o império
onde o sol nunca se põe
47
”, estes descritos por Arata
48
:
O enfraquecimento da influência global britânica, a perda de mercados além
mar[...] A emergência política e econômica da Alemanha e Estados Unidos,
o avanço dos conflitos nas colônias, o descontentamento crescente acerca
das políticas morais do império todos estes fatores combinados fizeram
com que, aos poucos, a confiança no progresso e hegemonia vitorianos
fossem corroídos.(1990,634)
Dracula tomou forma em um período no qual se deu a expansão européia, da
Conferência de Berlim em 1884 às Guerras dos Bôers
49
em 1899, marcada pela
emergência de conflitos armados para detenção de poder territorial.
O desenvolvimento do capitalismo empurrou o mundo inevitavelmente em
direção a uma rivalidade entre os Estados, à expansão imperialista, ao monopólio
econômico e por fim à guerra. A economia mundial começava a deixar de ser, como
diz Hobsbawm, “um sistema solar girando em torno de uma estrela única”
(2003,419), a Grã-Bretanha. Embora as transações financeiras e comerciais
passassem cada vez mais por Londres, a Grã-Bretanha não era mais o “umbigo
do mundo” nem seu principal mercado importador. Certo número de economias
industriais nacionais agora se enfrentavam; a concorrência econômica passou a
estar intimamente ligada a ações políticas, ou em certos casos militar, do Estado.
E, neste momento inseguro, abriu-se uma pequena porta por onde a tradição
pôde passar, expondo-se em locais específicos, para reforçar o poder do Estado.
47
Op. Cit.
48
ARATA, Stephen D. “The Occidental Tourist: Dracula and the Anxiety of Reverse Colonization” in
Victorian Studies 33, Londres: 1990, 621-645.
49
As Guerras dos Bôers foram dois confrontos armados na África do Sul que opuseram os colonos
de origem holandesa e francesa ao exército britânico, que pretendia apoderar-se das minas de
diamantes recentemente encontradas naquele território. A Primeira Guerra dos Bôeres deu-se em
1880-81 e foi ganha pelos boers, mas a segunda, entre 1899 e 1902 levou à anexação das repúblicas
bôers do Transvaal e do Estado Livre de Orange à colônia britânica do Cabo.
51
Mas esta tradição emergente não estava mais ligada ao passado, esta possuía as
características dos novos tempos; passando pelo filtro do direito consuetudinário
sobreviveu e mostrou que tradições não se perdem na noite dos tempos como a
modernidade fez parecer; podem tomar outra forma, ficar em um sono profundo,
mas sempre iriam influenciar de maneira direta ou indireta o percurso dessa
modernidade. Stoker representou isso muito bem e, Harker, durante o tempo que
esteve com Drácula, chegou à conclusão das mais aterradoras para o seu mundo:
“The old centuries had, and have, powers of their own which mere ‘modernity’ cannot
kill
50
”.
50
“Os séculos passados tinham e tem poderes próprios, os quais a mera ‘modernidade’ não é capaz
de matar”. (Ibidem, pág 58)
52
Capítulo 2
O Sangue é Vida: Dracula e o Progresso Médico-Científico
Vitoriano
- Ah, você continua sendo o meu discípulo favorito. Vale
à pena dar-lhe aulas. Agora que se mostra predisposto à
compreensão, deu seu primeiro passo para realmente
entender. Acha que as pequenas incisões encontradas
na garganta das crianças foram produzidas da mesma
forma que as da Srta. Lucy?
- Suponho que sim.
- Então você está errado! ... Oh, quem dera que
fosse assim! Mas, infelizmente, não é o que está
acontecendo. É pior, muito pior!
- Pelo amor de Deus Prof. Van Helsing! O que
está querendo insinuar? ...
- As incisões foram feitas pela Srta. Lucy!
51
. (Van
Helsin e Dr. Seward)
2.1 a medicina social inglesa
O cuidado com o pobre, com a força de trabalho operária, ao contrário do que
possa parecer não foi o primeiro alvo da medicina social, mas sim o último; e este
apareceria justamente na Inglaterra capitalista. O capitalismo não deu passagem de
uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas opostamente socializou o
corpo enquanto força de produção. O controle social sobre os indivíduos deu-se não
somente pela consciência e ideologia, mas pelo corpo. Até metade do século XIX o
51
“’Ah, you are my favorite pupil still. It is worth to Teach you. Now that you are willing to understand,
you have taken the first step to understand. You think then that those so small holes in the children’s
throats were made by the same that made the holes in Miss Lucy?’
‘I suppose so.’
‘Then you are wrong!… Oh, would it were so! But alas! No. It is worse, far, far Worse.’
‘In God’s name, Professor Van Helsing, what do you Mean?’…
‘They were made by Miss Lucy!’” (Id-Ibidem, pág. 347).
53
corpo médico inglês era composto pelos chamados médicos de família. O que
importava ao trabalho médico era a experiência, o conhecimento bibliográfico, a
memória e o “jeito” para lidar com o paciente. A Inglaterra arrastou seu sistema de
saúde precário personificado em “homens de bons modos com caixas de
inutilidades” (PORTER:2004,57) , individualista, voltado para as relações dico-
paciente, enquanto outros países europeus vinham, desde o culo XVIII,
socializando a prática médica; medicina coletiva, para todos. Os precursores e
principais influências para a medicina social inglesa vieram da Alemanha e da
França.
Segundo a classificação de Foucault
52
, pode-se dividir a medicina social em
três etapas de formação: medicina de Estado, medicina urbana e, por último,
medicina da força de trabalho.
A medicina de Estado teve seu expoente na Prússia no começo do século
XVIII. Esta se deveu ainda às preocupações geradas desde o final do século XVI,
devido ao mercantilismo, que se inquietava com o estado de saúde da população
em grau político, econômico e científico. A Alemanha pôde desenvolver uma
medicina regulamentada pelo Estado devido ao fato de ter se tornado um Estado
unitário apenas no século XIX, portanto todas as questões políticas, econômicas e
sanitárias perpassavam o Estado. Enquanto a França e Inglaterra mantiveram uma
estrutura de Estado arcaico, foi em uma das regiões mais pobres da Europa que
surgiu o modelo de Estado moderno. Desta maneira, a Prússia organizou o currículo
dos cursos de medicina e criou um aparelho denominado Medizinpolizei, que
consistia na observação da morbidade pelos dados fornecidos pelos hospitais e
pelos médicos de família, criando um registro amplo, englobando todo o Estado.
52
FOUCAULT, Michel.O Nascimento da Clínicar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
54
Regulamentando os cursos de medicina, o Estado normalizou primeiro sua
medicina, depois seu médico para então chegar ao doente; antes de aplicar a noção
de normal ao doente, esta se aplicou ao médico. Deste modo, enquanto a Inglaterra
normalizou primeiro sua legislação agrária, a França normalizou seu exército e
professores, a Alemanha normalizou seus médicos.
A medicina social francesa não teria como suporte o Estado, mas um
fenômeno chamado urbanização. A cidade se constitui não como uma unidade
territorial, mas como multiplicidades, territórios heterogêneos e diferentes locais de
poder. Na segunda metade do século XVIII se colocou o problema da unificação do
poder urbano; sentiu-se necessidade de constituir a cidade como unidade, de
organizar o corpo urbano de modo homogêneo, dependendo de um poder único e
regulamentado. Após a Revolução Francesa, o medo do camponês se esvai dando
lugar a angústia diante da cidade; o amontoado de casas, ricas e pobres, juntamente
com o medo dos odores e do contato fizeram com que a medicina preocupasse-se
com a disposição e circulação, não de pessoas, mas das coisas e dos elementos,
em especial a água e o ar. Como separar água límpida dos esgotos? Como manter
os odores fétidos dos dejetos e cadáveres longe da população? Essas questões
trariam à medicina proximidade com outras ciências como a física e a química.
Grande parte da medicina científica do século XIX teve origem na experiência desta
medicina urbana desenvolvida no final do século XVIII.
É claro que a Inglaterra, ao voltar-se para a medicina da força de trabalho, iria
utilizar bases das medicinas de Estado e urbana. Edwin Chadwick
53
(1800-1890) se
inspirou na medicina de Estado alemã para a elaboração de seus projetos em 1840
e, em 1846, foi publicado Health and Sickness of Town Populations, que retomou o
53
Edwin Chadwick é notadamente reconhecido por seu trabalho nas reformas da Lei dos Pobres,
além de propor novos caminhos para sanitizar a população, através de uma nova política de saúde
pública.
55
conteúdo da medicina urbana francesa, considerado referência nas propostas de
legislação de sanatórios e estabeleceu um sistema modelo para a polícia médica e
dispensários distritais. Foi na Inglaterra, país em que o desenvolvimento industrial e,
consequentemente do proletariado era mais intenso, que a medicina da força de
trabalho iria vigorar entre as demais. O campo para a emergência deste tipo de
medicina havia sido preparado na segunda metade do século XVI pela Lei dos
Pobres.
A primeira Lei dos Pobres datava de 1572, no período elisabetano, legislação
que previa o recolhimento de impostos em função de amparar o pobre, dando-lhe
roupas, alimento e fé. A segunda Lei dos Pobres de 1834 era, na realidade,
composta por emendas na antiga legislação. Foi essencialmente na Lei dos Pobres
que a medicina inglesa começou a tornar-se social, na medida em que o conjunto
dessa legislação impunha um controle médico do pobre. Portanto, a partir do
momento em que o pobre se beneficiava da legislação deveu então se submeter a
diversos tipos de controle dico. Através da Lei dos Pobres aparece, de forma
dúbia, algo importante para a história da medicina social: a idéia de uma assistência
médica que era tanto uma forma de auxílio ao pobre como um controle sanitário, por
parte da classe rica, sobre o que esses pobres faziam com a sua própria saúde e,
consequentemente, suas vidas, garantindo assim aos ricos uma proteção à
possíveis epidemias. Viu-se, deste modo, a transposição na legislação dica do
grande problema político pelo qual passava a burguesia nesse momento o preço,
condições e a forma de assegurar sua segurança política e também econômica,
afinal doentes não produziam.
Em 1875 surgiria um conjunto de órgãos denominado health services que
englobará diversos sistemas, sendo que seus objetivos principais eram: controle da
56
vacinação, tornando esta obrigatória a todos, catalogação dos diversos tipos de
doença e quais teriam potencial para tornarem-se epidêmicas e, por último,
localização de espaços insalubres dentro da cidade, assim podendo formar
maneiras de intervir nestes lugares. O health services seria o dispositivo que
prolongaria a existência da Lei dos Pobres atingindo não apenas os pobres, mas
toda a população de maneira igualitária e constituído por médicos que dispensam o
tratamento individualista por um geral, social. As medidas preventivas englobavam
todos os estratos sociais, primeiro a cidade e depois o campo, trazendo para dentro
dela características da medicina francesa cuidado com a água, ares, espaços
então públicos e da medicina alemã todos os sistemas do health services eram
regulamentados, ou seja, passavam pelo Estado.
Pode-se então dizer que, diferentemente da medicina francesa e alemã,
apareceu na Inglaterra uma medicina que era propriamente um controle da saúde do
corpo das classes mais pobres para torná-las mais aptas ao trabalho e menos
perigosas às classes ricas e, assim, manter a dinâmica da cidade que era o coração
político-econômico do Estado neste momento. O sistema inglês conseguiu unir três
elementos: uma medicina assistencial destinada ao pobre, uma medicina
administrativa encarregada de problemas gerais como averiguação de locais
insalubres, vacinação, e uma medicina privada que beneficiava quem tinha meios
para pagá-la.
57
2.2 o sangue
Dracula revela um autor com ávido interesse em ciência. Em suas páginas
constantemente referências ao sangue, assunto que fascina cientistas e médicos
no século XIX.
muito o sangue era valorizado como o líquido da vida: era visto como o
alimento do corpo ou causa da inflamação e febre quando perturbado, ou seja, ainda
ligado à teoria dos humores utilizada pelos médicos hipocráticos. O corpo estaria
sujeito a ritmos de desenvolvimento e mudanças determinados por seus fluídos
essenciais ou humores, confinados dentro do envoltório cutâneo; a saúde e a
doença dependiam unicamente dos movimentos destes; esses fluídos seriam a bile
amarela, a fleuma, a bile negra e o sangue. Os quatro serviriam a diferentes
propósitos e o sangue seria a fonte da vitalidade. Mas a medicina hipocrática tinha
seus pontos fracos, pois pouco se sabia sobre anatomia ou fisiologia já que a
dissecação humana seria contra a moral grega e, para compreender o sangue além
da teoria dos humores devemos, portanto, nos voltar à autoridade romana no
assunto: Galeno
54
.
As veias que transportavam o sangue, afirmava Galeno, originavam-se no
fígado, enquanto as artérias provinham do coração; no fígado, o sangue era “cozido”
e depois escoava através das veias para diversas partes do corpo, para onde levava
nutrientes e era “consumido”. O sangue do fígado, ao chegar no coração ia para o
54
Galeno (129-216) foi médico, iniciou seus estudos em filosofia e medicina por volta de 146 em
Pérgamo, sua cidade natal. Após dois anos, achou que nada mais tinha a aprender e partiu para
outros centros como Esmirna, Corinto e Alexandria a fim de se aperfeiçoar. Voltou para Pérgamo em
157, julgando terminada sua instrução. Passou, então, a ocupar o cargo de médico da escola da
gladiadores, especializando-se em cirurgia e dietética.
58
ventrículo direito e daí ramificava-se em duas partes; uma parte passava pela artéria
pulmonar, para alimentar os pulmões, enquanto a outra atravessava o coração
seguindo pelo ventrículo direito onde se misturava ao ar, aquecia-se e prosseguia
para regiões periféricas. Esse modelo da circulação sanguínea prevaleceu por mais
de um milênio, mas depois de 1500, como parte do novo espírito renascentista de
investigação, foi questionado. Quem de fato iria apontar as falhas de Galeno e abrir
caminho para novas abordagens em relação ao sangue seria o inglês William
Harvey (1578-1657).
Harvey nasceu em Kent e estudou medicina no Caius College em Cambridge.
Em 1597, apesar de haver se graduado, ele continuou seus estudos em Pádua.
Durante o período que esteve na Itália, Harvey deu início a suas investigações sobre
o funcionamento do coração e em 1603 afirmou que a movimentação do sangue era
uma constante, agindo de maneira circular e que esta resultava dos batimentos
cardíacos. Em 1628 publicou o Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis
[Meditação Anatômica sobre o Movimento do Coração e do Sangue] no qual
mostrava suas conclusões: o coração funcionava como um músculo com os
ventrículos expelindo o sangue nas contrações sistólicas e não, como se pensava,
sugando-o durante a diástole (relaxamento); as artérias pulsavam em decorrência da
“onda de choque” que vinha da pulsação do coração e não por sua simples e
espontânea “vontade de pulsar”. Discutindo a ação das aurículas e ventrículos
demonstrou o trânsito pulmonar do sangue com base em vivisecções que fizera em
rãs, seguindo então as idéias do cirurgião Realdo Colombo
55
.
Fundamentando-se desta maneira, Harvey anunciou sua descoberta da
circulação que consistia em: o sangue expelido do coração, no período de uma hora,
55
Realdo Colombo (1516-1559) foi professor da anatomia e cirurgia na Universidade de Pádua entre
1544 e 1559. Foi ele quem descobriu o sistema de circulação do ar através dos pulmões. Harvey irá
basear-se em suas pesquisas para desenvolver seu estudo.
59
ultrapassava em muito seu volume no corpo inteiro; centenas de litros de sangue
saíam do coração diariamente, logo se tornava impossível que toda essa quantidade
fosse absorvida pelo corpo e substituída continuamente pelo fígado. Através dessas
constatações ele concluiu que o sangue devia se movimentar constantemente num
circuito, caso contrário, as artérias explodiriam sob a pressão; portanto, o sangue no
corpo permanecia constantemente em movimento. Apesar disso, Harvey não
conseguia ver a olho nu as ligações dos capilares entre as artérias e veias o
microscópio era uma artefato recém-descoberto –, fez então por meio de um
procedimento rudimentar e provou que a ligação deveria existir. Atou de maneira
apertada um antebraço para que o sangue arterial não pudesse fluir através deste e
em seguida afrouxou a atadura para que o sangue arterial fluísse; porém, não
afrouxou o suficiente para que o sangue venoso passasse, mas as veias ficaram
dilatadas como se o sangue descesse pelas artérias e subisse pelas veias; concluiu
assim que devia haver vias não descobertas de ligação entre artérias e veias. Por
último, Harvey descobriu que o movimento circulatório sanguíneo direcionava o fluxo
sempre de volta ao coração; deste modo ele conseguiu explicar vários fenômenos
anteriormente intrigantes, entre eles a rápida disseminação de substâncias
venenosas no sangue.
Richard Lower (1631-1691), parceiro de Thomas Willis
56
, complementou a
teoria de Harvey e, trabalhando em conjunto com Robert Hooke
57
famoso pela Lei
de Hooke demonstrou que era o ar dos pulmões que fazia o sangue venoso
vermelho-escuro transformar-se no sangue arterial vermelho-vivo. Também alcançou
56
Thomas Willis (1621-1675) foi um médico inglês de grande renome, anatomista, neurologista
lembrado por seu estudo pioneiro do cérebro e das doenças do sistema nervoso. Foi um dos
fundadores da Royal Society (1662).
57
Robert Hooke (1635-1703) foi filósofo natural, conhecido pela Lei de Hooke é a lei da física
relacionada a elasticidade de corpos, que serve para calcular a deformação causada pela força
exercida sobre um corpo, tal que a força é igual ao deslocamento da massa a partir do seu ponto de
equilíbrio vezes a característica constante da mola ou do corpo que sofrerá deformação.
60
a imortalidade ao realizar as primeiras transfusões sanguíneas, transferindo o
sangue de um cão para outro e, depois, de uma pessoa à outra.
O movimento do sangue parecia estimular o crescimento saudável dos
tecidos e órgãos também, os experimentos neurológicos levaram à conclusão de
que a energia nervosa cumpria o mesmo papel. Esse paradigma de corrente
sanguínea e cerebral –, saúde e individualidade corporal mudou as relações entre
corpos e ambiente humano, portanto, a cidade que começava a delinear-se a partir
do século XVIII pressupunha uma convivência saudável, esta denominando o
aspecto físico do termo.
Darwin acreditava que o sangue carregava toda a informação de uma
espécie incluindo suas fraquezas, instintos e tendências. “O sangue é a vida de
fato
58
”, pois contém o mapa mental e físico, animal ou humano. Seu primo, Francis
Galton
59
, começava a realizar transfusões sanguíneas em 1870, pondo em prática
as teorias de Darwin, mas as rejeita ao perceber que transpor o sangue de uma
espécie à outra acaba por matar ou não causa qualquer tipo de alteração em seu
comportamento. As quatro transfusões feitas em Lucy falharam sob a influência de
Drácula; Stoker menciona os instrumentos, mas não descreve exatamente que tipo
de aparato Dr. Van Helsing usa nas transfusões. A descrição do procedimento é
vaga, porém, o autor demonstra familiaridade com o tema, pois observa que Van
Helsing não desfibrinou o sangue, ou seja, não o “desproteinizou”. A transfusão
sanguínea se transformou em um tratamento eficaz em 1909 quando o
58
Charles Robert Darwin (1809-1882) foi um naturalista britânico que alcançou fama ao convencer a
comunidade científica da ocorrência da evolução e propor uma teoria para explicar como ela se
por meio da seleção natural e sexual. Esta teoria se desenvolveu no que é agora considerado o
paradigma central para explicação de diversos fenômenos na Biologia. Foi laureado com a medalha
Wollaston concedida pela Sociedade Geológica de Londres, em 1859.
59
Francis Galton (1822-1911) foi antropólogo, meteorologista, matemático e estatístico inglês. Era
primo de Charles Darwin e, baseado em sua obra, criou o conceito de "Eugenia" que seria a melhora
de uma determinada espécie através da seleção artificial.
61
imunologista Karl Landsteiner
60
estabeleceu a existência de diferentes tipos
sanguíneos, apresentando-se assim questões da hereditariedade dos tipos
sangüíneos.
Como afirma Foucault
61
o sangue durante muito tempo constituiu um
elemento importante nas manifestações dos mecanismos de poder. Em sociedades
nas quais predominavam os sistemas de aliança, a política determinada pela
existência do soberano, o valor das linhagens e o valor da hereditariedade -
sociedade beligerante onde a morte era iminente, seja pela violência ou pelas
epidemias - o sangue sem dúvida constitui um dos recursos essenciais, seja em seu
papel instrumental poder em derramar o sangue –, seu papel nos signos
proveniência do sangue, ser do mesmo sangue, arriscar seu próprio sangue –, sua
precariedade – sujeito à extinção, pronto a se misturar, corruptível;
Sociedade de sangue [...] honra da guerra e medo das fomes, triunfos da
morte, soberano com gládio, verdugo e suplícios, o poder de falar através
do sangue; este é uma realidade com função simbólica.
(FOUCAULT:2001,138)
Representa bem a sociedade de nosso Conde Drácula. Quanto à sociedade
vitoriana, os mecanismos de poder voltam-se ao corpo, à vida, ao que reforça a
espécie, sua capacidade de dominar. E para isso seria necessário manter são o que
fazia o corpo são: o sangue deveria estar livre de qualquer tipo de interferências que
causassem seu enfraquecimento, que deixasse o corpo para trás na corrida da
seleção natural.
60
Karl Landsteiner (1868 -1943) foi médico e biólogo austríaco, premiado com o Nobel de Fisiologia
ou Medicina em 1930, por classificação dos grupos sanguíneos sistema A B O, e também, foi o
descobridor do fator RH.
61
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
62
Para os ingleses o sangue não perderia seu poder – sendo talvez pela
presença do soberano e todos os símbolos que derivam deste –, pelo contrário, seus
significados transmutariam; se havia algo que se encontrava do lado da lei, da
morte, da transgressão, do simbólico e da soberania era o sangue; do lado da
norma, da vida, da disciplina estava a sexualidade; porém, tanto o sangue como a
sexualidade confundiam-se no emaranhado de sentidos. Sexualidade, para
sociedade em questão, representava a “porta” por onde se definem os parâmetros
da sangüinidade: a procriação carregava a herança dos antepassados e esta
mistura do sangue determinava o tipo de vida e também o tipo de morte. Fatores
externos estavam intimamente ligados ao sangue e a sexualidade; se pegarmos o
exemplo da sífilis, doença venérea, transmitida pelo sexo, alojada no sangue - esta
no sistema circulatório envenena todo o corpo. Em suma, o sangue absorveu o
sexo.
Sob a influência de tantas nocividades tanto de origem patológica
tuberculose, sífilis, cólera, entre outras quanto sociais urbanização, pobreza,
fome, alcoolismo, prostituição –, as forças do mal triunfaram momentaneamente
sobre o bem e a humanidade, na curva da degenerescência, não teria nada mais a
oferecer do que uma quantidade relevante de frutos “imbecis”, “histéricos”, “tarados”,
“cretinos”: símbolos do mal hereditário.
Esse retrato do apocalipse, como diversos jornais da comunidade científica
designavam, iriam ter um impacto maciço sobre o corpo médico. Em 1894 Dr. Max
Nordau
62
, como explica Darmon
63
, “pinta notadamente uma espantosa
sintomatologia da degenerescência através das tendências artísticas do momento e,
ao termo de um afresco dantesco, anuncia o ‘crepúsculo dos povos’” (1991,43).
62
Max Nordau (1849-1923) foi médico, ativista sionista e co-fundador da organização sionista
mundial.
63
DARMON, P. Médicos e Assassinos na Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
63
Pouco depois o alienista Maudsley em seu Mental Responsability apura a noção de
moral insanity. Segundo ele a loucura moral seria um mal hereditário: É real para o
homem um destino que seus ancestrais lhe legaram, pois compartilham o mesmo
sangue, e ninguém pode escapá-lo;
O celerado não é um celerado por uma escolha deliberada das vantagens
da perversidade, mas por uma inclinação de sua natureza que faz com que
o mal lhe seja um bem e o bem, um mal. (1873,39).
2.3 saúde mental
Até a metade do culo XVIII a questão do insano estava próxima de uma
visão religiosa. Esta por sua vez atribuía aos distúrbios mentais a concepção de
possessão por uma entidade diabólica; muitos dos insanos foram queimados nas
fogueiras da Santa por esse motivo. Porém, aos poucos, com o avanço das
teorias médicas, a insanidade foi medicalizada, criando assim novos paradigmas à
sua compreensão e tratamento.
No século XIX, a insanidade seria investigada de maneira patológica, suas
formas clínicas descritas e classificadas, seu parentesco com as doenças que
atingem o corpo físico reconhecidas com a psiconeurose
64
. Porém, os distúrbios
mentais deveriam ser entendidos não como um fato natural, mas como uma
construção social sustentada por uma linha de práticas administrativo-burocrática e
64
O termo neurose foi criado pelo médico escocês William Cullen em 1769 para indicar "desordens
de sentidos e movimento" causadas por "efeitos gerais do sistema nervoso". Na psicologia moderna,
é sinônimo de psiconeurose ou distúrbio neurótico e se refere a qualquer desordem mental que,
embora cause tensão, o interfere com o pensamento racional ou com a capacidade funcional da
pessoa. Essa é uma diferença importante em relação à psicose, desordem mais severa. Cf. Porter,
Roy. Madness: A Brief History. Oxford: Oxford University Press, 2003.
64
médico-psiquiátrica. A observação da loucura neste momento não estava
propriamente vinculada à doença e seu tratamento, mas a questões de liberdade e
controle, conhecimento e poder; as bruxas não mais encontrariam seu fim nas
fogueiras, mas no asilo.
Durante o século XVIII, a Inglaterra possuía, na maior parte, asilos e casas de
caridade nos setores privados. A maioria dos pacientes era então encaminhado para
setores privados, para uma esfera além do controle do Estado. As condições desses
asilos privados eram muito superiores aos dos públicos - esses marcadamente
provedores de assistência ao pobre. Em 1826 cerca de 900 mil pacientes
encontravam-se em asilos na Inglaterra, sendo que:
“64% deles encontravam-se no setor privado, 36% no público. Os asilos de
Bethlem e St. Luke reuniam juntos cerca de 500 pacientes e
aproximadamente 53 insanos encontravam-se nas prisões desses locais
isto em um país de dez milhões de habitantes” (SHORTER:1997,25).
Com o Madhouse Act de 1774, os asilos foram padronizados sendo que à seu
tamanho era admitido um mero proporcional de pacientes, também, possuíam
inspeção de uma equipe médica do Royal College of Physicians. O asilo, no culo
XIX, era voltado para condutas regularizadas, e assim, teve início a função que se
confiou aos hospitais
65
no século XVIII: permitir a descoberta da “verdade da
doença mental, afastar tudo aquilo que poderia mascará-la, confundi-la, dar-lhe
formas aberrantes, alimentá-la e estimulá-la. Mais que um lugar de observação o
asilo era um lugar de confronto; este choque era produzido pela resistência do
doente em o revelar ao seu médico os segredos de sua paranóia e, deste modo,
levar a vitória de uma das partes: um processo de oposição, de luta e de dominação.
65
Os hospitais, durante um século (1760-1860) foram dominados pelas estruturas de acolhimento da
doença para tornar-se um local de conhecimento e prova, um local onde a doença é experimentada.
65
Desta maneira então se estabeleceu a função do asilo de alienados: “lugar de
diagnóstico e de classificação, retângulo botânico onde as espécies de doenças são
divididas em compartimentos cuja disposição lembra uma vasta horta”
(FOUCAULT:2005,122).
O grande médico do asilo era, ao mesmo tempo, aquele que poderia dizer
sobre a doença através do conhecimento que dela se tem e aquele que podia
produzir conhecimento da doença pela sua influência sobre o paciente. Todos os
procedimentos efetuados no asilo do século XIX isolamento, interrogatório,
punições físicas como a ducha, disciplina rigorosa, trabalho obrigatório, entre outras
tinham por função fazer do médico um sábio no trato da loucura
66
, aquele que a
fazia manifestar-se pelo que ela é ao invés de deixá-la soterrada e silenciosa; aquele
que sabia dominá-la após libertá-la.
O nascimento dessa nova perspectiva clínica não deixou claro, a princípio,
suas fronteiras. Assim, a sociedade ainda a recebeu de maneira insegura; portanto
criou-se no imaginário um medo da loucura e, por sua vez, um medo de estar ou
conviver com um insano, sendo que tudo o que não podia ser explicado pela razão e
bom senso tornou-se parte desta. As fronteiras entre sanidade e insanidade foram
ditadas pelo ritmo desses tempos modernos.
Olhar a insanidade em Dracula nos faz focar em Renfield. Mesmo que o
paciente do Dr. Seward tenha pouca participação na trama, seu desejo em absorver
tantas vidas forem possíveis inicialmente o conecta a Drácula e, por outro lado, seu
sacrifício para proteger Mina o liga a batalha contra o vampiro. Renfield era também
um membro da alta sociedade londrina; seus amigos, ao constatarem que ele
começava a desenvolver uma obsessão por certa teoria para absorver vidas,
66
Cf. FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2005.
66
acreditaram que seu amigo estava mentalmente perturbado e decidiram interná-lo.
Sendo Renfield o personagem insano, a questão da sanidade eventualmente
perpassa a todos: Dr. Van Helsing lamentava sua esposa insana; Harker, por haver
se tornado um prisioneiro do Conde e este o tendo deixado aos cuidados das três
mulheres vampiras perdeu parcialmente o senso de realidade e, por momentos, não
conseguia saber se as experiências pelas quais passou foram fruto de sua
imaginação; após seu ato corajoso de fuga foi salvo e internado em um hospital em
Budapeste com “febre cerebral” e dizendo coisas absurdas, além da compreensão
racional; capítulos inteiros foram dedicados ao asilo dirigido por Dr. Seward e, a
idéia de insanidade ronda os personagens por não acreditarem no que vêem. O
mais importante talvez seja o fato de vários personagens questionarem sua
sanidade, acabou encorajando os leitores a examinarem amplamente o que era
verdade e mentira, tocando os pontos sobre religião, ciência e até mesmo ceticismo
no século XIX.
Quando os leitores são apresentados a R.M. Renfield ele aparenta ser um
novo paciente do Dr. Seward, pois o médico parece estar no começo de seu
tratamento. Quando Mina pediu para vê-lo, Renfield providenciou um pano de fundo,
contando-a que foi internado pois crê que pode prolongar sua vida consumindo o
maior numero de coisas vivas possível. Ele admitiu que sua crença o fizesse
perigoso a outras pessoas; exemplo foi a invasão ao consultório de seu médico,
onde ataca Dr. Seward com uma faca, cortando-lhe o pulso e, depois, lambendo o
sangue derramado no chão. “For the Blood is the Life
67
”; frase que, segundo Senf
68
,
sugeriria advertência à medicina na distinção entre sagrado e secular, legal e ilegal,
67
“Pois o sangue é a vida”. (Id-Ibidem, pág. 134).
68
Op.Cit.
67
pois de acordo com Mort
69
o sangue era a essência do corpo vivo, se este for
infectado acaba por infectar todo o sistema e possivelmente destruir este mesmo
corpo - consideração que desperta para a estratégia médico-moral dos anos 1850 e
1870. Seu desejo por sangue o torna próximo de Drácula, a quem chama primeiro
de mestre e o auxilia a entrar no asilo, onde o Conde atacou Mina; sua redenção
aconteceu quando traiu seu mestre ao descobrir que ele havia sugado o sangue de
Mina e, sendo morto por isso.
Mesmo que Renfield seja identificado como insano ele foi aparentemente
confrontado com a sanidade no momento em que compreendeu o que significava
beber o sangue de outro ser. Esta constatação fez com que ele se alie ao “grupo
racional” da trama. A distinção entre sanidade e insanidade não é sempre clara no
livro, mas tornou-se mais evidente no caso de Renfield. Dr. Seward o descreveu
como um devorador de moscas, aranhas e até pardais, mas Renfield reagiu a este
padrão estudado a fundo por ele em seu caderno de anotações – no momento em
que se descobriu que Drácula sugou o sangue de Mina e que isto poderia destruir a
alma da jovem, argumentando que ele era “a sane man fighting for his soul
70
”.
Nos momentos que antecederam sua morte, Renfield parecia estar são. Dr.
Seward notou a sua diferença de comportamento enquanto seu paciente conversava
com Mina. Neste ponto Renfield compreendeu o outro lado de sua teoria,
desacreditando que consumir outras vidas prolongasse a sua para assim poder
salvar uma outra vida, a vida de um inocente. Vemos então que Renfield também
buscava sua redenção; seu comportamento como insano o levou a uma busca
constante pela sua sanidade.
69
MORT, F. Dangerous Sexualities: Medico Moral Politics in England since 1830. Londres:
Routledge, 2000.
70
“Um homem são lutando por sua alma”. (Id-Ibidem, pág. 138).
68
Aqui então aparece a noção médica de crise: a crise tal como era concebida e
exercida desde o século XVIII era precisamente o momento no qual a natureza da
doença, até o momento escondida em um canto escuro da mente do paciente,
revelava-se; era o momento em que o processo doentio por si se desfazia de suas
barreiras, libertava-se de tudo aquilo que o impedia de completar-se e, de certa
maneira, decidia a ser isto e não aquilo, decidia o seu futuro. Renfield finalmente
compreendeu a teoria que desenvolveu e atentou para o fracasso que esta
acarretaria. Foi no momento em que recuperou sua sanidade que ele obteve sua
redenção, portanto libertou-se e, pôde assim, morrer.
2.4 Dr. Abraham Van Helsing
É claro que Seward foi influenciado por Dr. Van Helsing, seu amigo e
professor, quem produziu evidências convincentes sobre a necessidade de destruir
Drácula:
Even had we not the proof of our own unhappy experience, the teachings
and the records of the past give proof enough for sane people. I admit that at
the first I was sceptic. Were it not that through long years I have trained
myself to keep an open mind, I could not have believed until such time as
that fact thunder on my ear
71
.
71
“Mesmo se não dispuséssemos das provas de nossa infeliz experiência, os ensinamentos e
registros do passado oferecem provas suficientes para pessoas sãs. Admito que, inicialmente, me
mostrei cético. Se eu não tivesse, durante longos anos, treinado para manter minha mente sempre
aberta, jamais teria acreditado, até o dia em que tal fato soou como um trovão em meus ouvidos.” (Id-
Ibidem, 126).
69
Portanto, assim que Van Helsing conseguiu provar para o grupo a existência do
vampiro, Seward foi forçado a aceitar a existência de tal ser, pois a ciência consiste
de elementos que conseguiram ser atestados através da experimentação. Ele
completou que essas evidências podem não satisfazer a maioria dos cientistas: “A
year ago which of us would have received such a possibility, in the midst of our
scientific, sceptical, matter-of-fact nineteenth century
72
”. Porém, mesmo com pontos
de pouca credibilidade, ainda não comprovados satisfatoriamente, a ciência aparecia
como algo maravilhoso, algo que poderia mapear por completo as questões
impostas à humanidade. Por isso, Dr. Seward iniciou sua participação na trama
otimista em relação às descobertas científicas:
Men sneered at vivisection, and yet look at its results today! Why not
advance science in its most difficult and vital aspect, the knowledge of the
brain? Had I even the secret of one such mind, did I hold the key to the
fancy of even one lunatic, I might advance my own branch of science to a
pitch compared with which Burdon-Sanderson’s
73
physiology or Ferrier’s
74
brain Knowledge would be as nothing
75
Todavia, devido ao status fantástico que o vampiro possui, mais adiante Seward
aparecia questionando sua sanidade e a do grupo, apesar de nunca pensar em
deixá-los ou reportar às autoridades as violações éticas que estavam cometendo.
Renfield referiu-se à Seward como “médico-jurista”, por seu amplo conhecimento
72
“Um ano atrás, quem de nós receberia esta possibilidade, no meio de nosso científico, cético e
factual século XIX” (Id-Ibidem, pág. 189).
73
Sir John Scott Burdon-Sanderson (1828-1905). Foi fisiologista, estudando em Paris e também na
Universidade de Edimburgo. Tornou-se membro do Medical Office of Health em Paddington em 1856
e quarto anos depois fisiologista dos hospitais de Middlesex e de Brompton.
74
David Ferrier (1843-1924) foi neurologista e psiquiatra escocês. Especializou-se no estudo do
cérebro humano.
75
“A humanidade rejeitou a vivissecção e hoje vejam os resultados! Por que não abrir caminho à
ciência em seu mais difícil e vital aspecto o conhecimento do cérebro? Se eu possuísse o segredo
de uma única mente perturbada, se tivesse em minhas mãos a chave das fantasias desse cérebro
lunático, encontraria condições de fazer progredir o meu próprio ramo científico até um grau elevado,
comparado com o qual a fisiologia de Burdon-Sanderson ou os conhecimentos psiquiátricos de
Ferrier nada mais significariam.” (Id-Ibidem, 129).
70
legal; ele nunca questionou os métodos experimentais de Dr. Van Helsing mesmo
quando este decidiu mutilar o corpo de Lucy; sua reação neste caso fora muito mais
emocional do que se poderia esperar de um defensor da ciência. Por outro lado, Van
Helsing era um cientista que não acreditava que a verdade esteja sempre ligada à
ciência, constantemente a questionando, pois acreditava no conhecimento
tradicional mais do que em apenas testar teorias novas. Van Helsing era uma
combinação única de cientista e mágico e de acordo com Senf
76
, propunha à ciência
que valide a razão, mas que não desprivilegiasse o sobrenatural:
‘You are a clever man, friend John. You reason well, and your wit is bold,
but you are too prejudiced[…] Ah, it is the fault of our science that it wants to
explain all, and if it explains not, then it says there is nothing to explain[…] I
suppose now you do not believe in corporeal transference. No? No? Nor in
hypnotism…’ ‘Yes,’ I said [Seward]. ‘Charcot
77
has proved that pretty well.’
‘Then you are satisfied as to it. Yes? And of course then you understand
how it act, and can follow the mind of the great Charcot, alas that he is no
more, into the very soul of the patient that he influence. No? Then, friend
John, am I to take it that you simply accept fact, and are satisfied to let from
premise to conclusion be a blank? No? Then tell me, for I am a student of
the brain, how you accept hypnotism and reject the thought reading. Let me
tell you, my friend, that there are things done today in electrical science
which would have been deemed unholy by the very man who discovered
electricity, who would themselves not so long before been burned as
wizards
78
.
76
Op. cit.
77
Jean-Martin Charcot (1825-1893) foi médico e cientista francês; alcançou fama no terreno da
psiquiatria na segunda metade do século XIX. Durante as suas investigações, Charcot concluiu que a
hipnose era um método que permitia tratar diversas perturbações psíquicas, em especial a histeria.
78
“Você é um homem esperto meu caro John. Sempre raciocinou com clareza, mas sua mente é
preconceituosa demais[...] Não crê na existência de muitas coisas que sua percepção não
compreende, e, no entanto estão aí?[...] Ah! Este é o grande defeito da ciência, que quer uma
explicação para tudo e, quando não a encontra, afirma não haver nenhuma[...] Suponho que você
não acredite na transmigração de corpos. Não?[...] Nem na leitura de pensamento. Não? E tampouco
no hipnotismo...
- Nesse, sim – disse eu [Seward] – Charcot o comprovou satisfatoriamente.
- E foi o bastante para satisfazê-lo. Logicamente compreendeu a maneira como tal força atua e está
em condições de acompanhar a mente do notável Charcot, infelizmente morto, para dentro do íntimo
da alma do paciente que ele influencia. Não? Então, meu caro amigo John, sou obrigado a concluir
que você se limita apenas a aceitar os simples fatos e se satisfaz com um vazio entre a premissa e a
conclusão. Então, diga-me, pois sou um estudioso do cérebro, como aceita o hipnotismo e rejeita a
leitura do pensamento? Permita-me lhe informar que, em nossos dias, a ciência da eletricidade
realiza práticas e experiências as quais seriam consideradas um sacrilégio pelos próprios
descobridores, que acabariam queimados como bruxos, se nascessem antes de seu tempo certo.”
(Id-Ibidem, 343).
71
Seu conhecimento denotava superioridade em relação ao conhecimento do grupo
que o seguia, pois sua visão não estava encarcerada nos campos científicos e
jurídicos apenas. Ele era, portanto, o homem ligado ao tradicional, pois não deixava
de lado o que o passado legou à sociedade moderna. Van Helsing também possuía
suas limitações, estas baseadas em diagnósticos que não podem ser comprovados:
There are always mysteries in life. Why was it that Methuselah
79
lived nine
hundred years […] and yet that poor Lucy, with four men’s blood in her poor
veins, could not live even one day? For, had she live one more day, we
could save her
80
Toda a atenção médica prolongou a vida da jovem Lucy, mas seus poderes
eram ainda limitados para solucionar o caso; sendo a jovem a primeira vítima do
vampiro, os dois médicos desconheciam a doença que a ataca tampouco seu
comportamento no corpo humano. no caso com Mina eles descobriram que para
salvá-la deveriam destruir a fonte da doença, o parasita, o próprio vampiro. Mas,
eram justamente suas falhas e limitações que o expuseram como um cientista pouco
cético. Sua busca estava ligada a encontrar os porquês, mesmo que estes
aparecessem de forma pouco crédula para seu culo; para Van Helsing a ciência
deveria experimentar, manter a porta entre passado e presente aberta.
O romance sugere inúmeras vezes que a ciência é tentativa. Renfield, por
exemplo, mostrou-se uma espécie de cientista “manco” como sugeriu Seward, que
fez referência ao livro de anotações no qual seu paciente analisava seus
experimentos onde havia uma teoria impossível de ser provada: a idéia de prolongar
79
Matusalém, Metusalém ou Metusalah (do hebraico), personagem bíblico citado em Gênesis 5:21-
27.
80
“Sempre existiram mistérios na vida. Por que Matusalém viveu novecentos anos [...] ao passo que
a nossa pobre Lucy, mesmo recebendo em suas artérias sangue de quatro homens saudáveis, o
sobreviveu um dia? Porque se tivesse resistido por mais um dia, nós a teríamos salvo.” (Id-Ibidem,
214).
72
a vida por um período indeterminado bebendo sangue de criaturas vivas. Logo, a
ciência mostrava-se em avanço constate e, mesmo os cidadãos o ligados
diretamente à ela sofriam suas influências.
Drácula também era um tipo de cientista. Van Helsing completou que seu
inimigo foi em vida um Alquimista
81
, que era “the highest development of science-
knowledge of his time
82
e que “no branch of knowledge of his time that he not
essay
83
”, e ele continuou “experimenting, and doing it well
84
”. Estas referências
foram reforçadas pelas cinqüenta caixas trazidas da terra natal do vampiro, “cases of
common earth, to be used for experimental purposes
85
”. Drácula falhou como
cientista, pois seus conhecimentos estavam ultrapassados e, ao invés de usar a
razão, fugiu para seu habitat natural à sombra da primeira ameaça.
Aqui se colocou o problema da ciência enquanto verdade. Podemos dizer que
ao longo dos séculos a existência de mecanismos de verdade foi aos poucos
superada pela prática médica e filosófica. A verdade não mais era aquilo que é, mas
aquilo que se dava, ou seja, era o acontecimento; ela não mais era encontrada, mas
suscitada através da produção; ela não se dava por aparatos de intermediação, mas
era provocada, apanhada segundo ocasiões: fez parte de uma estratégia. Logo a
relação não era do objeto ao sujeito do conhecimento, era sim uma relação de
poder. “É claro que esta tecnologia da verdade/acontecimento-ritual/prova parece
muito ter desaparecido. Mas ela permaneceu, núcleo irredutível ao pensamento
81
A Alquimia é uma tradição antiga que combina elementos de química, física, astrologia, arte, metalurgia,
medicina, misticismo, e religião. Existem três objetivos principais na sua prática. Um deles é a transmutação dos
metais inferiores em ouro, o outro a obtenção do Elixir da Imortalidade (ou Elixir da Longa Vida), uma panacéia
universal, um remédio que curaria todas as doenças e daria vida eterna àqueles que o ingerissem. Ambos estes
objetivos poderiam ser atingidos ao obter a pedra filosofal, uma substância mística que amplifica os poderes de
um alquimista. Finalmente, o terceiro objetivo era criar vida humana artificial, os homunculus. É reconhecido que,
apesar de não ter caráter científico, a alquimia foi uma fase importante na qual se desenvolveram muitos dos
procedimentos e conhecimentos que mais tarde foram utilizados pela química.
82
“o maior grau de conhecimento científico de seu tempo”. (Id-Ibidem, pág. 260).
83
“não existe conhecimento produzido em seu tempo que ele não saiba”. (Id-Ibidem, pág. 260).
84
“experimentando e está se saindo muito bem”. (Id-Ibidem, pág. 260)
85
“caixas com terra comum, para serem usadas com propósito experimental”. (Id-Ibidem, pág. 125).
73
científico” (FOUCAULT:2005,115). A importância, por exemplo da alquimia, vem sem
dúvida do fato de ter sido uma das mais elaboradas formas deste tipo de relação de
poder-saber; estava menos interessada em conhecer a verdade do que produzi-la. O
saber alquímico seria vazio se indagarmos em termos de verdade representada;
se o considerarmos como um conjunto de regras, estratégias, procedimentos e
cálculos que permitem obter a produção do acontecimento “verdade”, então seria
pleno. A melhor prova, o indício mais seguro, que de fato repousa sobre toda uma
concepção de verdade como objeto de conhecimento, seria a confissão do indivíduo
acerca de seu próprio erro, ou melhor, de seu sintoma. Teríamos assim a
constatação do que se passa por entre os limites do conhecimento e verdade.
Neste ponto temos uma situação curiosa: Van Helsing era o cientista moderno
que não desprivilegia o passado, que via a verdade não em sua produção, mas
como objeto de conhecimento, ao passo que Drácula, como a maioria dos vitorianos,
privilegiava ainda a verdade como acontecimento, a via em sua produção. Enquanto
Van Helsing acreditava que a ciência pode auxiliar o homem a compreender o
mundo em que vive, Drácula temia o conhecimento como se este pudesse
apreendê-lo.
2.5 Drácula
A ciência por vezes tendeu a mudar rapidamente seu desejo de compreender
o mundo para o desejo de dominá-lo. Como explica Senf
86
, a rápida cena em que
86
Op. cit.
74
Harker observou as mãos do Conde retomava a atenção à classificação científica do
mundo no século XIX:
Hitherto I had noticed the backs of his hands as they lay on his knees in the
firelight, and they had seemed rather white and fine. But seeing them now
close to me, I could not but notice that they were rather coarse, broad, with
squat fingers. Strange to say, there were hairs in the centre of the palm. The
nails were long and fine, and cut to a sharp point
87
.
Sabendo de sua origem aristocrática, Harker encontrou dificuldades em classificar
seu anfitrião que, quando próximo, lembrava um animal. Definitivamente o século
XIX manteve o padrão de trabalho com hipóteses mais bem exploradas e
demonstradas por Darwin, base da ciência experimental inglesa: suas revelações
sobre a origem “animal” humana revisadas pela vitoriana no humanismo. Durante
todo o século, guardiões dos poderes institucionais consolidaram-se catalogando a
humanidade e a controlando, como Drácula acreditava que Van Helsing faria com
ele.
Após serem classificados como aberrações monstruosas, Lucy, Drácula e as
três vampiras, ficou evidente a forma como proceder para aniquilá-los. Harriet
Ritvo
88
observou as relações entre humanos e animais na Inglaterra e argumentou
que o desejo científico em classificar animais a levou ao desejo de controle:
No início do período as pessoas se sentem a mercê das forças naturais; ao
final a ciência começa o processo de deixar a natureza muito mais
vulnerável ao controle humano. Em estágio pragmático avançado, com o
advento da medicina veterinária e tecnologia bélica, fazem com que os
animais fiquem facilmente controláveis (1995,58)
87
“Eu havia notado, aaquele momento, o dorso de suas mãos, que repousavam sobre seus
joelhos... elas me pareceram razoavelmente claras e finas. Agora, vendo-as bem de perto, seria
impossível não perceber quanto eram grosseiras, pesadas e largas, com dedos grossos e curtos.
Entretanto, a mais estranha particularidade residia em insólitos tufos de pêlos no centro da palma das
mãos. As unhas, longas e finas, tinham sido aparadas em um corte pontiagudo.” (Ibidem, pág. 33).
88
RITVO, H. The Animal Estate: The English and Other Creatures in the Victorian Age. Cambridge
(Massachusetts): Harvard University Press, 1995.
75
Drácula e os demais vampiros eram constantemente classificados em seus
aspectos animalescos. Harker observou que a vampira loira do castelo “licked her
lips like an animal
89
e a forma como Lucy reagiu ao ser caçada horrorizou Dr.
Seward: ”When Lucy saw us she drew back with an angry snarl, such as a cat gives
when taken unawares
90
”. Mesmo que as mulheres vampirizadas fossem retratadas
ora de forma animal ora de forma sedutora e promíscua, Drácula era sempre
apresentado pelo grupo como animal; ele mesmo deu indícios de sua afinidade com
outros seres quando, ao ouvir o uivo dos lobos, disse a Harker: “listen to them, the
childrens of night. What music they make
91
”. Van Helsing foi além, comparando o
vampiro a vários animais e até sugerindo que seja um:
he is brute he can, within his range, direct the elements, the storm, the fog,
the thunder, he can command all the meaner things, the rat, and the owl,
and the bat, the moth, and the fox, and the wolf
92
.
Classificar Drácula como algo não humano resolveria uma série de problemas aqui,
pois o fez um ser mais fácil de caçar. Também, o fato do Conde exercer poder sobre
outros animais denotava seu elo com o que havia de mais baixo, sujo, espúrio na
sociedade, ou seja, tudo o que a sociedade burguesa desejava eliminar.
As características do vampiro, como a retração das gengivas, a sensibilidade
à luz do sol, o crescimento anormal de pêlos e unhas, a tez pálida, levemente
arroxeada poderiam associá-lo ao portador de porfiria. Porfirias eram caracterizadas
por distúrbios de ordem física e neurológica. Existiam diferentes tipos de porfirias,
89
“limpa seus lábios como um animal”. (Id-Ibidem, pág. 34).
90
“Ao nos avistar, Lucy deu salto para trás e soltou um rosnado raivoso, como o de um gato acuado”.
(Id-Ibidem, pág. 249).
91
“ouça-os – as crianças da noite. Que música eles fazem”. (Id-Ibidem, pág. 27)
92
Ele é mais que bestial... ele pode surgir segundo sua vontade, quando e onde quiser, em qualquer
das formas que são parte da sua pessoa. Também pode comandar elementos da natureza, como a
tormenta, o nevoeiro e o trovão, ou dominar e dar ordens a maioria dos seres inferiores, como rato, a
coruja, o morcego, a mosca, a raposa, o lobo.” (Ibidem, pág. 327)
76
classificadas de acordo com deficiências enzimáticas específicas no processo de
síntese do heme
93
. O termo porfiria derivava da palavra grega porphura, que
significava “pigmento roxo”; durante um ataque de porfiria o indivíduo afetado pode
apresentar uma coloração arroxeada dos fluídos corpóreos, especialmente do
sangue. As primeiras descrições da doença foram estabelecidas pelos médicos
hipocráticos, mas as causas da pigmentação foram estabelecidas em 1871 pelo
alemão Felix Hoppe-Seyler
94
, e a catalogação das características de cada tipo de
porfiria foram realizadas por B.J. Stokvis
95
em 1889. As porfirias com manifestações
agudas afetavam primariamente o sistema nervoso central, resultando em dor
abdominal, vômitos, convulsões e distúrbios mentais, incluindo alucinações,
depressão, paranóia e ansiedade; se houvesse ataque ao sistema nervoso
autônomo, poderiam ocorrer constipação, elevação ou queda da pressão arterial,
taquicardia e outras arritmias cardíacas. Em casos mais graves, poderia ocorrer
paralisia do bulbo
96
cerebral com parada respiratória e distúrbio psiquiátrico
culminando em suicídio.
Sabemos também que a porfiria e a hemofilia
97
eram doenças comuns na
família real britânica devido à prática de endogamia. A porfiria foi atribuída como
causa da loucura apresentada pelo rei Jorge III (1738-1820) e, sua neta, a rainha
Vitória (1819-1901), possuía os genes da hemofilia, pois seu pai o príncipe Eduardo
Augusto (1767-1820) era portador da doença e seu filho, rei Eduardo VII (1841-
1910) também desenvolveu a doença.
93
Heme é formado por um conjunto de proteínas conjugadas que consistem de um átomo de ferro no centro de
um largo anel orgânico chamado porfirina. O grupo heme possui um átomo de ferro ferroso "Fe++" para exercer
a função de ligação com o oxigênio em células sanguíneas.
94
Ernst Felix Immanuel Hoppe-Seyler (1825-1895) foi fisiologista e químico.
95
B.J. Stokvis (1834-1902) foi médico e químico holandês.
96
Bulbo é a porção inferior do tronco encefálico, juntamente com outros órgãos como o mesencéfalo e a ponte,
que estabelece comunicação entre o cérebro e a medula espinhal.
97
Hemofilia é o nome de diversas doenças genéticas hereditárias que incapacitam o corpo de controlar
sangramentos.
77
A porfiria cutânea tarda era o subtipo mais comum de porfiria; este distúrbio
resultava dos baixos níveis da enzima responsável pelo quinto passo na produção
de heme. Quando os sinais e sintomas ocorriam, eles usualmente iniciava na vida
adulta e resultavam da pele se tornando mais sensível à luz solar. As áreas da pele
expostas ao sol desenvolviam bolhas, cicatrizes, mudanças na pigmentação e
hipertricose aumento da quantidade de pêlos ; também podia dificultar a
cicatrização de feridas e provocar a deformação do corpo, através da ação da
doença nas cartilagens; a pele exposta se tornava frágil e facilmente era lesada. As
pessoas com porfiria cutânea tarda também possuíam níveis altos de ferro no
fígado. Elas possuíam grande risco de desenvolver funções anormais do fígado e
câncer hepático. Os sinais e sintomas deste distúrbio podiam ser desencadeados
por fatores genéticos, mas isso não significava que necessariamente exista um
histórico familiar da doença; pode também ser causada por fatores não-genéticos
como o abuso de álcool, excesso de consumo de ferro, algumas disfunções
hormonais e infecções virais. Por outro lado, a porfiria era uma doença que atingia
uma em cada 25.000 pessoas, sendo uma doença pouco conhecida aos nossos
dias.
Aliada a esta questão, temos também outro ponto explorado pelo autor que
auxilia na captura e destruição do monstro: suas características físicas; portanto
vejamos o Harker nos traz:
His face was a strong, a very strong, aquiline, with high bridge of the thin
nose and peculiarly arched nostrils, with lofty domed forehead, and hair
growing scantily round the temples but profusely elsewhere. His eyebrows
were very massive, almost meeting over the nose, and with bushy hair that
seemed to curl in its own profusion. The mouth, so far as I could see it under
the heavy moustache, was fixed and rather cruel-looking, with peculiarly
sharp white teeth. These protruded over the lips, whose remarkable
ruddiness showed astonishing vitality in a man of his years. For the rest, his
ears were pale, and at the tops extremely pointed. The chin was broad and
78
strong, and the cheeks firm though thin. The general effect was one of
extraordinary pallor
98
.
Isso nos lembra Cesare Lombroso
99
e seu Criminoso Nato.
A maior parte dos precursores de Lombroso tinha se fixado no estudo das
anomalias psíquicas dos delinqüentes criando algo parecido com uma “psicologia
criminal”. Sem ignorar o trabalho de seus colegas, Lombroso priorizou outro ponto: o
inventário sistemático das taras e malformações da organização física dos
criminosos.
O Homem Criminoso, publicado em 1876, reuniu a pesquisa de Cesare
Lombroso feita através da coleta de informações de médicos, antropólogos,
etnólogos, naturalistas, entre outros e autores clássicos da Antiguidade e
Renascimento. Todo esse material o ajudou a remodelar e estabelecer o universo do
crime e sua influência foi enorme em toda Europa.
Na primeira parte discutiu o ato criminoso em dimensão universal. O crime
existia nos reinos vegetal e animal. Paixão ou simplesmente alienação levavam ao
canibalismo, infanticídio ou até mesmo a “associação de malfeitores” nesses reinos.
Os povos primitivos demonstravam também a tendência ao crime, entre eles, o
aborto, o infanticídio, o assassinato de velhos e doentes, assassinato religioso ou
98
“Seu conjunto facial enquadrava-se no tipo aquilino aliás, acentuadamente aquilino graças ao
destaque bastante característico de uma arcada nasal alta e fina, em contraste com os orifícios das
narinas, arqueadas de forma peculiar. A testa era abaulada e os cabelos, muito profusos nas demais
partes visíveis de sua cabeça, mostravam-se escassos, em especial, ao redor das têmporas. As
sobrancelhas formavam um traço compacto, praticamente se encontrando por sobre a arcada do
nariz e com fios longos que pareciam formar anéis, como se tivessem vida própria.
Então, a boca... Até onde permanecia visível debaixo do basto bigode, revelava-se dura e de
aspecto cruel, emoldurando dentes alvos e estranhamente pontiagudos. Na verdade eles pareciam se
projetar sobre os lábios, os quais se mostravam de um tom rubro tão intenso que sugeriam uma
inusitada vitalidade em um homem de tanta idade. Suas orelhas eram extremamente brancas e com
um formato afilado na parte de cima. O queixo era largo e forte, e as faces mostravam-se firmes,
embora um tanto encovadas. O efeito geral causava a impressão de uma profunda e extraordinária
palidez”. (Id-Ibidem, pág. 33).
99
Cesare Lombroso (1835-1909), médico e cientista italiano.
79
canibalismo ritualístico, fazendo parte da vida cotidiana e comparados ao homicídio
colérico na sociedade contemporânea.
Um grande conjunto de vícios e taras cólera, vingança, ciúmes, mentira,
crueldade, violência, vaidade, preguiça, furto, ociosidade, alcoolismo, jogo,
predisposição à obscenidade, a prostituição seriam gerados pela loucura moral
termo aplicado por alienistas e que Lombroso tomou como criminoso nato. Os
primeiros sinais da loucura moral apareceriam, de maneira natural, nos primeiros
anos da vida do homem, ou seja, na infância. Lembramos aqui que, quando Van
Helsing decidiu hipnotizar Mina para descobrir o paradeiro de Drácula, ele observou
que deveria entrar em contato com o cérebro infantil do Conde, pois este era o canal
por onde ele poderia compreender sua maldade e astúcia.
Lombroso concentrou-se na anatomia patológica e na antropometria do crime
na segunda parte de seu trabalho. Por suas mãos passaram crânios de todas as
nacionalidades, de ambos os sexos, de criminosos e pessoas honestas. Fez
também uma análise de todos os trabalhos disponíveis sobre esta questão. Suas
conclusões referiram-se à capacidade, circunferência, semicircunferência, aos arcos,
as curvas ou ao ângulo facial dos crânios “delinqüentes”. Nos dados numéricos,
detalhados por ele, estabeleceu a capacidade craniana de, por exemplo, cúmplices
de estupro, das prostitutas, das assassinas e das ladras.
O criminoso nato era, sem dúvida, dotado de um grau elevado de inteligência,
variando dentro dos parâmetros de sua instrução. Também, boa parte dos
criminosos geralmente canhotos era resistente a dor. De um ponto de vista
psíquico, viviam numa espécie de ponto letárgico, anestesiados. Suas reações a
cenas e objetos constataram que seu único receio estava em ser capturado.
80
Toda essa “antologia do terror” chegou à descrição da fisionomia do
criminoso, encontrada em 95% dos delinqüentes e (acidentalmente) em 2% das
pessoas honestas. Os escroques e falsários apresentavam “um ar clerical”, que
contribui para inspirar a confiança de suas vítimas. Violadores tem fisionomia
“delicada” e pederastas possuem certa “elegância feminina”, com seus cabelos
longos e anelados, pela delicadeza da pele e aspecto.
os assassinos tinham os cabelos negros e crespos, a pele morena, o nariz
aquilino, adunco, disforme, maxilares potentes, caninos muito desenvolvidos,
orelhas de abano volumosas, o crânio achatado (plagiocefalia) ou arcado
(acrocefalia), a fronte deprimida, as arcadas superciliares proeminentes, maçã do
rosto (zigoma) enorme. Os homicidas “habituais” possuíam estrabismo, geralmente
apresentam um “ar suspeito” e o olhar vítreo, frio, imóvel, por vezes injetado de
sangue; nariz aquilino, ou melhor, adunco. O rosto do criminoso nato era sempre
oblíquo.
Drácula, fisicamente se encaixava nas características do criminoso nato. Suas
vítimas, após serem “contaminadas” por ele, desenvolviam algumas das
características acima como o olhar treo, injetado de sangue e até um ar angelical.
Lucy passou a ser identificada por “Dama dos Ardis”, nome dado pelas crianças da
região de Hampstead Hill, onde a jovem costumava atacar, seduzindo as crianças
pela doçura de sua voz e por ter “a beleza de um anjo”.
Então, em suma, Drácula era uma figura extremamente inteligente, dotada de
amplo conhecimento de alquimia, utilizando-os tanto para experimentos como para
fugir de seus inimigos. Traços em sua aparência e comportamento o identificavam
como algo não humano, associado inúmeras vezes a um animal. Sua fisionomia
encaixava-se nas categorias designadas por Lombroso de assassino e homicida.
81
Sua linhagem estava ligada ao sangue, tanto pelos laços de hereditariedade dar
seu sangue, misturar seu sangue quanto pelo quadro patológico sangue
contaminado que passado adiante infectava outro sangue e conseqüentemente
outro corpo. Possui preferência por vítimas do sexo feminino que, após seu contato,
tendem a desenvolver características ligadas à promiscuidade. A figura de Drácula,
portanto, personificava toda a idéia de doença, degenerescência e impureza
propostas pelo Estado vitoriano. Ele era a soma de todos os aspectos discutidos
anteriormente. Como um verme que corroia as entranhas saudáveis, o desejo de
dominá-lo, classificá-lo e eliminá-lo seria para um bem maior. Transitando entre os
medos da herança tradicional aos tempos modernos, o vampiro teria de ser expulso
do império, voltar a seus domínios, ser aniquilado. Stoker construiu um personagem
que caracteriza o lado contrário da norma, esta ligada ao moderno, científico, cético
e saudável.
82
Capítulo 3
Pela Sobrevivência do Mais Forte: Problemas Sociais na
Inglaterra Vitoriana
Mas falhar aqui não é apenas uma questão de
vida ou morte. Trata-se de não nos tornarmos
como ele
100
.(Van Helsing)
3.1 saúde pública e conflitos de gênero
Em Dracula a ciência e o conhecimento estão restritos ao domínio masculino;
Van Helsing e Seward são os cientistas, Harker é corretor de imóveis, um homem de
negócios, Holmwood administra os bens da família ao receber o título de seu pai
Lorde Godalming e Quincey Morris é um explorador. Entre as mulheres, apenas
Mina trabalha como professora, mas até casar-se com Harker, quando passa a
dedicar-se exclusivamente a casa e em auxiliar a carreira do marido, utilizando suas
habilidades como secretária. Seria interessante lembrar que nesse momento as
carreiras científicas não possuíam mulheres as poucas a se diplomar sofreram
grande resistência por parte de seus colegas do sexo masculino; sabe-se que o
papel das mulheres nas universidades teria sucesso após a virada do século. O
100
“But to fail here, is not mere life or death. It is that we become as him” (Id-Ibidem, pág. 287).
83
único papel destinado a uma moça virtuosa era o de dar suporte ao marido. Assim,
as mulheres da fonte foram divididas entre a boa mulher Mina e Lucy, antes da
vampirização e a mulher as três vampiras do castelo do Conde e Lucy após
a contaminação. Sem vida as personagens possuem não uma participação
relevante na trama como também revelaram o trato com a mulher no século XIX,
tanto em relação ao gênero como a sexualidade. A boa mulher ainda estaria
relacionada com uma postura tradicional feminina, enquanto que a mulher seria
a personificação das questões modernas que se levantavam em relação ao
feminismo, pureza, saúde pública; estas perpassavam ao sexo.
Nos séculos que precederam ao XIX, os códigos da obscenidade e do recato
misturavam-se sem incômodo nem escândalo até que, como se alguém apagasse a
luz, a sexualidade fora encarcerada pela máscara da decência. Seu espaço estaria
delimitado ao quarto do casal com a função única de reproduzir, assim impôs-se
como modelo, tornou-se segredo. Às novas normas à compostura, restava encobrir-
se, escondendo os corpos, varrendo dos discursos toda e qualquer menção a ele.
Após anos de livre expressão, a repressão coincidiu com o desenvolvimento do
capitalismo fazendo parte da ordem burguesa. Uma primeira explicação se desenha:
o sexo seria incompatível com a exploração sistemática da força de trabalho; o
trabalho poderia rivalizar com o sexo? Jamais. Porém, se este insistia em
permanecer descoberto, deveria ser tratado como anormal. A odisséia do erotismo
como se conhecia havia chegado ao fim.
Os caminhos do sexo e do amor eram, para os burgueses do século XIX,
linhas paralelas. O amor correu por um caminho oposto ao do sexo, ou seja, para
longe da luxúria. O amor burguês constantemente apresentava-se sob o disfarce
proposto pelas artes, em “sonhos incompreensíveis e em confissões involuntárias”
84
(GAY:2000,31). Eficientes instituições serviam para orquestrar o ensejo à uniões
apropriadas; em um momento em que a privacidade tornou-se algo essencial e que
as expressões públicas de afeto carregaram a mácula da devassidão, o caminho
encontrado para a manifestação do amor foi aquele do sentimento profundo, puro e
sincero.
Os burgueses “corretos”, quando procuravam uma esposa, precisavam
estabelecer-se em uma profissão antes de se arriscarem a “fazer o pedido”. A
instituição matrimonial era uma forma de fazer alianças entre os emergentes “clãs”
burgueses, de firmar assim seu poder econômico, social e político. “Estar amando”
não detinha qualquer relação com o desejo físico; o amor era sensual, mas plácido,
uma paixão civilizada e confessa, formalizada. A sociedade burguesa aceitava o
amor abertamente, mas rejeitava o sexo.
O que não se quer se isola. Como diz Foucault
101
, a casa de saúde e a casa
de tolerância como o próprio nome diz – seriam os lugares disponíveis: a
prostituta e seu cliente, o psiquiatra e sua histérica. Ali, o sexo discretamente foi
autorizado, sempre vinculado a um alto-preço. Fora desses lugares, o puritanismo
moderno impôs-se pelo mutismo, inexistência e embargo. Porém, o que marcou o
sexo no culo XIX era justamente o fato de se falar sobre ele como em nenhum
outro século; o sexo foi estudado e medido e produziu-se uma literatura do sexo
correto, medicalizado. Criou-se em seu entorno uma biologia da reprodução, esta
caindo para um campo de outros poderes vindouros, como o medo do mal venéreo e
deste para higiene.
101
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
85
A medicina, trabalhando em conjunto com os princípios religiosos da
educação moral
102
formou, a partir da metade do século XIX, um plano de resposta
às doenças que agem através da corrente sanguínea, começando com as classes
mais pobres até chegar a outros estratos da sociedade. John Simon
103
via a
necessidade de manter a medicina próxima dos princípios sanitários, uma medicina
preventiva, enquanto Chadwick insistia que a autoridade sanitária ficasse livre da
administração médica. Divergências à parte ambos concordavam no ponto de
partida para “limpar o sangue” da Inglaterra: a prostituição.
A partir da década de 1820, as forças armadas reportaram um incrível avanço
das infecções venéreas nos soldados. Nas décadas de 1850 e 1860 a questão
começava a ser debatida como uma guerra contra o crime, pois a imoralidade
ganhou o status de “grande mal social” e quem a praticasse correria o risco de ser
preso, enforcado ou levado à casa de saúde. Não se pode dizer qual era o pior
destino de todos e o Westminister Review publica um artigo sobre a questão na
década de 1870 com o título “A Nova Caçada as Bruxas
104
”. Na década de 1850, o
princípio sanitário seria usado para justificar demandas de intervenção do Estado
regulando doenças sexuais e imoralidade; o caso de prostitutas doentes ganhou
peso tão grande quanto o combate ao tifo, fazendo com que o órgão sanitário inglês
realizasse um senso entre as prostitutas, este contendo: dias de trabalho,
quantidade de clientes, se eram casadas, tinham filhos... Também, submetendo as
prostitutas a um exame periódico estabelecido por lei.
102
Educação moral pautada nos princípios religiosos anglicanos. A Igreja Anglicana é uma igreja
cristã que adotou os princípios bíblicos da Reforma Protestante do Século XVI. Em seu lema procura
não envelhecer, mas renovar-se continuamente, acompanhando o direito consuetudinário. O chefe
supremo da Igreja Anglicana é o rei da Inglaterra.
103
SIMON, Jonh English Sanitary Institutions Reviewed in the Course of Their Development and in
Some of Their Political and Social Relations, Londres, Cassel, 1890. Wellcome Library.
104
Westminister Review, “The New Witches’ Hunt”. Londres: número 26, 1874.
86
Em 1864 o Parlamento deliberou os primeiros três estatutos que
regulamentavam a inspeção sanitária de prostitutas que trabalhavam em áreas
militares. Os estatutos expandiram-se para a esfera do que se chamava de
“prostitutas comuns
105
que passaram a ser controladas em suas atividades pela
polícia. As que sofriam de gonorréia ou sífilis deveriam ser internadas em um
hospital por um período médio de nove meses. No caso de o recuperação
deveriam ser levadas aos locais de internamento, providos pelos asilos. A oposição
publica às regulamentações proibitivas da prostituição foram, na década de 1870,
formadas especialmente pela classe-média feminista que denominou o tipo de
tratamento aplicado às prostitutas como imoral e inconstitucional. A participação da
classe-média feminista chocou a classe médico-sanitária, sendo vista como uma
rebelião de causa incompreensível.
Os médicos formavam o grupo que mais apoiava a nova legislação.
Numericamente, médicos eram dominantes em elaboração de emendas
parlamentares entre 1867 e 1881, empurrando a extensão da então legislação válida
apenas em Londres para âmbito nacional, para um sistema eficaz de inspeção e
detenção de prostitutas. Em 1867 uma reportagem do comitê do Harveian Medical
Society of London chamou a atenção para que a lei de 1866 fosse aplicada não
em Londres, mas pelo menos nas demais grandes cidades do país. O entusiasmo
formado por essa reportagem resultou na criação da Associação para Promoção da
Extensão dos Autos às Doenças Contagiosas à População Civil
106
. Seus membros
eram afiliados do partido Tory (conservador), clero anglicano e membros intelectuais
105
Segundo Walkowitz é difícil definir o que seriam as prostituas comuns, pois não se sabe ao certo
se existiam outras formas de prostituição a não ser as ocorridas nas ruas e em casas de prostituição.
Cf. WALKOWITZ, Judith R. Prostitution and Victorian Society: Women, Class, and the State.
Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
106
Association for Promoting the Extension of the Contagious Diseases Acts to the Civilian
Population.
87
do corpo médico. Seu slogan consistia em “Preces e lamentações não serão as
arestas da deterioração da fibra nacional
107
”. Para manter a população masculina
saudável e longe das prostitutas o segredo estaria em promover casamentos
urgentes com moças de recato.
Ocorriam casos, por exemplo, nos quais um homem infectado nas ruas por
uma doença venérea, ao passá-la a sua esposa poderia recusar-se a admitir que a
fonte da contaminação familiar fosse ele. Geralmente este homem pediria
legalmente o chamado Termo de Contestação, este contendo um pedido de
internação da esposa por traição e ameaça à saúde e bem estar da família,
alegando que seria a esposa a infiel causadora da doença. O Termo precisaria de
um parecer e assinatura de dois médicos e, caso o juiz aprovasse o pedido, a
esposa seria trancafiada em um asilo. Para o homem era melhor padecer da
vergonha de adultério à vergonha de assumir publicamente que estava contaminado
por outros meios. A mudança então processada na segunda metade do século XIX
foi a visão da prostituição como uma forma perigosa de atividade sexual e
principalmente, a visão sobre a mulher como um ser vil à saúde, portanto, os limites
das experiências femininas ligadas ao sexo deveriam ser controlados pelo Estado. A
divisão entre a boa e mulher deu-se pela sexualidade e dentro desta podemos
observar que as ciências, campo dominado pelos homens, mostravam-se
incansáveis no trabalho de sanitizar o sangue humano através de normas de
controle do sexo, livrando-o das doenças potencialmente epidêmicas. Neste
momento evidenciou-se a misoginia vitoriana apoiada em uma divisão de
comportamento embasado pela medicina social. Como Harker observou a respeito
107
“Prayer and lamentation would not be the arrests the deterioration of national fibre”. Em
A.P.E.C.D.A Books, Londres, número 1, 1867. Wellcome Library.
88
das três mulheres vampiras do castelo do Conde, elas detêm uma mistura de
volúpia e atração:
I lay quiet, looking out from under my eyelashes in an agony of delightful
anticipation. The fair girl advanced and bent over me till I could feel the
movement of her breath upon me. Sweet it was in one sense, honey-sweet,
and sent the same tingling through the nerves as her voice, but with a bitter
underlying the sweet, a bitter offensiveness, as one smells in blood
108
As mulheres também ocuparam espaço significativo no imaginário, não
apenas no período vitoriano, pois no folclore britânico elas apareciam ligadas ao
sobrenatural, através da relação sangue/sexo. La Rocque e Teixeira
109
também
apontaram que a divisão entre a boa e mulher precedia à Era Vitoriana,
atestada no Maleus Maleficarum, este dividindo-as em angelicais e diabólicas. Mas o
grande alcance na Grã-Bretanha deste imaginário é devido a forte influência da
cultura celta no folclore, apropriada, por sua vez, pela cristandade britânica.
As deusas celtas governavam a fertilidade, como os nascimentos e colheitas,
também eram guerreiras e, algumas vezes, o fim dos conflitos dependiam de seus
caprichos. Além das deusas, atribuíam-se poderes as mulheres mortais magas,
feiticeiras e fastasmas. As lendas fazem com que possamos associar as três
vampiras do castelo de Drácula às fah-ri
110
. Estas tomavam forma de mulheres muito
108
“Eu permaneci quieto, observando por sob minhas lentes em uma agonia de deliciosa
antecipação. A pálida jovem avançou ficando onde eu podia sentir seu hálito sobre mim. Em um
sentido, ele me parecia doce, como mel e transmitia aos nervos a mesma percussão de sua voz, mas
com um amargo por detrás do doce, um ofensivo amargo que pode ser sentido no sangue”. (ibidem,
pág. 46).
109
ROCQUE, L.de L. e TEIXEIRA, L.A. “Frankenstein, de Mary Shelley e Drácula, de Bram Stoker:
Gênero e Ciência na Literatura” in História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. 8(1): 10-34, mar.-
jun. 2001.
110
Termo que significa “mulher espírito”, este aparecendo com maior freqüência na Escócia. É
conhecida como baobhan sith, glaistig ou leanan sidhe em outras regiões da Grã-Bretanha e como
les dames blanches na França. Suas características foram imortalizadas, porém, pelo termo fah-ri,
posteriormente fairy [fada].
89
belas, a pele pálida como marfim e, mesmo nas noites de verão, seu lito e toque
eram frios. Durante a noite dançavam sob o luar convidando os passantes a
juntarem-se a elas; nenhum homem recusaria, pois elas possuíam poderes
hipnóticos. Uma vez em seu abraço glacial o homem estaria condenado; ela sugaria
seu sangue e seu corpo seria encontrado às margens da estrada. Podiam também
tomar as feições da amada, para assim seduzir e matar. As características das três
vampiras estariam, portanto, ligadas a um passado tradicional, este voltado para o
imaginário construído em torno da figura feminina no folclore bretão, porém seu
comportamento contrário a moral vigente no período denota o elo com as modernas
questões impostas pelo controle da sexualidade, principalmente a feminina. no
que diz respeito às jovens inglesas Lucy e Mina, as características transitam entre o
passado tradicional pelo seu comportamento subserviente ao sexo masculino e,
também, pelos aspectos da contaminação do vampiro que as ligariam às três
vampiras – às noções políticas e de saúde próprias da modernidade em que vivem –
os sintomas do contágio pelo vampiro, transformação física e de comportamento e
necessidade de emancipação.
Lucy, antes uma jovem onde brilhava a decência, após o contato com vampiro
apresentou uma grave mudança de comportamento:
And then insensibly there came the strange change which I had noticed in
the night. Her breathing grew stertorous, the mouth opened, and the pale
gums, drawn back, made the teeth look longer and sharper than ever. In a
sort of sleep-waking, vague, unconscious way she opened her eyes, which
were now dull and hard at once, and said in a soft, voluptuous voice, such
as I had never heard from her lips, ‘Arthur! Oh, my love, I am so glad You
have come! Kiss me!’ ‘Not on your life!’ he said, ‘not for your living soul and
Hers!’
111
111
“E então ocorreu, de maneira insensível, a estranha mudança que eu havia notado durante a noite.
Sua respiração tornou-se ofegante, a boca se abriu revelando a insólita retração das gengivas sem
cor, o que tornava seus dentes mais longos e pontiagudos. Numa espécie de vaga e letárgica
sonolência ela abriu os olhos, agora com um brilho duro e inexpressivo. Sua voz era leve e
voluptuosa, como eu jamais ouvira soar em seus lábios antes.
- Arthur! Oh, meu amor! Como estou feliz por ter vindo! Beije-me meu amor! ...
90
A jovem estaria notadamente sob influência da patologia transmitida pelo vampiro
que alterou sua postura e características físicas. Lucy, ao ser infectada, começou a
compartilhar das características notadas nas três vampiras. Parece que perdeu
totalmente a consciência de sua vida pregressa, como se a doença fizesse com que
ela fosse outra pessoa, perdendo os laços que a colocavam como a boa mulher. De
certa maneira, Lucy dividiu-se em duas: a jovem burguesa, com todos os predicados
e posturas aceitas pela sociedade vitoriana e a jovem promíscua, predadora, que
espalha doença, representante da misoginia. Porém, esse comportamento duplo que
a personagem exprime pode ser a personificação de um novo tipo de mulher que
começava a aparecer no final do século XIX, que foi chamada pelos intelectuais de
New Woman.
As New Woman pretendiam emancipar-se politicamente, financeiramente e
até sexualmente. Essas seriam capazes de atos audazes como, por exemplo, tomar
a frente e pedir um homem em casamento. Elas reivindicavam o direito de voto, o
direito a herdarem e dirigirem riquezas e bens, poderem ocupar cargos que eram
dominados por homens, entre outros. Stoker demonstra uma postura de repúdio à
essa nova mulher, fazendo referências por vezes críticas quando observa Lucy e
Mina fazendo uma refeição em Whitby: “I believe we should have shocked the ‘New
Woman’ with our appetites
112
”. Em seguida mostra-se irônico em relação as
ambições delas:
Some of the ‘New Women’ writers will some day start an idea that men and
women should be allowed to see each other asleep before proposing or
accepting. But I suppose the ‘New Woman’ won’t condescend in future to
- Não! Não a beije por amor a sua vida! – disse ele [Van Helsing] – Não o faça pela salvação da sua e
da alma dela!”. (Id-Ibidem, pág. 290).
112
“Acredito que nós teríamos chocado as Novas Mulheres com o nosso apetite.” (Id-Ibidem, pág.
96).
91
accept. She will do the proposing herself. And a nice job she will make of it
too! There’s some consolation in that
113
.
A partir da segunda metade do século XIX, o movimento pelos direitos da
mulher ganhou espaço nos debates parlamentares em várias estâncias, entre elas o
sufrágio da mulher, acesso ao pedido de divórcio antes apenas requerido pelo
homem e os direitos da mulher casada sobre os bens do marido proclamado pelo
Married Women’s Property Acts de 1882. O movimento feminista desejava que as
mulheres saíssem da sombra dos homens e deixassem de ter apenas a função de
esposas e mães. As New Woman queriam, acima de tudo, acesso a educação,
oportunidades para trabalhar e direito a união livre não apenas ao casamento. As
New Woman conquistaram muitos desses direitos apenas após a Primeira Guerra
Mundial e, ao final do século XIX seriam vistas como agitadoras, desacreditadas
pela sociedade. Senf
114
ainda conecta as New Woman à Lucy e as três vampiras por
serem predadoras sexuais e afirmando que a intenção seria ligá-las aos problemas
sociais relacionados às prostitutas, pois as mulheres com impulsos feministas
tornaram-se também alvo de preocupação social; as vampiras possuíam o ímpeto
de iniciar uma relação com os homens antes de estes tomarem a iniciativa, também,
por elas possuírem a característica de se alimentarem do sangue de crianças,
preferindo destruí-las a cuidarem delas, ou seja, negligenciando a função sagrada
da mulher. As New Woman, exigindo independência econômica, política e sexual
eram vistas como ameaça a divisões convencionalmente sexualizadas entre os
113
“Algumas das escritoras das Novas Mulheres deveriam algum dia começar com a idéia de homens
e mulheres verem-se dormindo antes de propor ou aceitar um pedido de casamento. Mas eu suponho
que no futuro as Novas Mulheres o serão condescendentes em apenas aceitar o pedido. Elas
próprias farão o pedido. E farão um belo trabalho, com certeza! Existe algum consolo nisso”. (Id-
Ibidem, pág 97).
114
Op. Cit.
92
papéis domésticos e sociais
115
. Repudiar o movimento feminista era um ato de
conservar uma política que envolvia questões de virtude, decência, comportamento
social e pureza; manter a mulher afastada das esferas sociais dominadas
exclusivamente pelos homens era fundamental para cultivar instituições como do
casamento e da família vivas. Na fonte, os valores atribuídos a estas instituições são
expressos através da personagem Mina. A relação de Mina com Harker é
absolutamente pautada no estereótipo do amor vitoriano, também, ela é identificada
como mãe de todos os heróis no combate ao vampiro e posteriormente torna-se
mãe do pequeno Quincey Harker; portanto, Mina seria o expoente do
comportamento feminino tradicional.
Mina, quando atacada por Drácula, recusa a ter o mesmo destino de sua
amiga; ao contrário de Lucy ela ofereceu resistência a sua vampirização. Adquirindo
a “marca da contaminação” a mancha vermelha em sua testa
116
, como um
estigma, após a tentativa de Van Helsing de purificá-la com a hóstia chega a pedir
ao grupo que a mate caso não consigam curá-la. Através de Mina vislumbramos o
que a sociedade esperava de uma mulher, pois sua resistência marca a grande luta
para manter a mulher em seus papéis tradicionais.
115
No afrouxamento dos códigos morais, estéticos e sexuais associados com a decadência do fin-de-
siècle, surgia o espectro do homossexualismo, como narcísico, sensualmente indulgente e, dessa
maneira tornando as feministas e os homossexuais duas faces da mesma moeda. Seriam assim o
reverso do normal. Durante a década de 1880, a medicina criou uma categoria “própria” para os
homossexuais, isolando-os das pessoas “normais”. Logo não foi surpresa que as mudanças de 1885
no código penal criminalizaram os homossexuais pela primeira vez na história e a publicidade acerca
do caso de Oscar Wilde fizeram com que a sociedade fosse cada vez mais favorável as penalidades.
Stoker, grande amigo de Wilde, afasta-se depois do escândalo envolvendo-o, pois temia ser
associado ao grupo. Dracula, porém, evita tratar das questões relacionadas com os homossexuais,
seu autor prefere focar-se nos problemas causados pelo feminismo inglês, onde detém uma postura
favorável à mulher que se mantém subjugada ao marido.
116
A hóstia era vista, desde a Idade Média, como um excelente preventivo a demônios, bruxas e
mortos-vivos. Quando Van Helsing tenta purificá-la, sua pele queima, rejeitando o sagrado Corpo de
Cristo. Não obstante, a marca nos liga a doença algo muito mais moderno e ao ser “marcada”
significaria estar contaminada, como quando uma prostituta era tirada de circulação e sua casa e
pertences eram manchados de vermelho, para poderem ser separados e assim evitar o contágio. Cf.
CURRAN, Bob Vampires: A Field Guide to the Creatures that Stalk the Night. Lagos Franklin: New
Page Books, 2005; MORT, Frank. Dangerous Sexualities: Medico Moral Politics in England since
1830. Londres: Routledge, 2000.
93
Durante a jornada do grupo para destruir o vampiro, Mina, ao se deparar com
as três vampiras do castelo, foi tomada por elas como “irmã”, mas ela não parecia
disposta a ceder aos efeitos de sua mudança; Van Helsing então observou: “The
terror in her sweet eyes, the repulsion, the horror, told a story to my heart that was all
of hope. God be thanked she was not, yet of them
117
”. A jovem, que aos poucos
mostrava os mesmos sintomas que mataram Lucy, aparece então como uma das
figuras mais poderosas na trama. A aparente fragilidade de Mina como mulher
assume, a partir do momento em que começou sua transformação, características
sobrenaturais, apoderando-se da força mágica de Drácula.
Stoker jogou novamente com os aspectos tradicionais da mulher presentes no
imaginário britânico. Aqui, os poderes que Mina desenvolveu não são usados em
favor do vampiro, mas contra ele. Ela então teria ligação com a deusa celta Brighid,
a deusa mãe que regia todas as forças da natureza. O nome significa “luminosa” e
foi incorporada ao cristianismo no ano de 450, passando a ser conhecida como
Santa Bride de Knockbridge. É uma figura de extrema força no folclore, mantendo-se
assim até os dias de hoje. No momento em que Drácula ofereceu a Mina um
vislumbre de seus poderes ela mostrou-se muito mais forte que ele, sendo a única
pessoa na trama que poderia destruí-lo. No instante em que ela apareceu subjugada
ao vampiro foi o momento em que surgiu a possibilidade de eliminá-lo, justamente
por compartilharem dos mesmos poderes. Assim, quando Van Helsing preocupou-se
em proteger Mina das três vampiras ela não se mostrou preocupada: Whereat she
laughed, a laugh low and unreal, and said, ‘Fear for me! Why fear for me? None
safer in all the world from them than I am’
118
”.
117
O terror em seus belos olhos, a repulsa, o horror contou uma história cheia de esperança ao meu
coração. Agradeço a Deus por ela não ser como elas”. (Id-Ibidem, pág. 353).
118
“Quando ela riu, um riso baixo e irreal, e disse: - Medo por mim? Por que medo por mim? Ninguém
no mundo está mais protegida delas do que eu”. (Id-Ibidem, pág. 355)
94
Mina também detém características masculinas, estas foram expressas na
frase de Van Helsing: “Ah, this incredible Mrs. Mina! She has the brain of a Man A
brain of a talent man when the talent appears and a Women’s heart!
119
”; e também
no momento em que Mina e o grupo enfrentam o vampiro: “I got out my revolver
ready to hand
120
”. A jovem então mostrara sua inteligência e sua força para o grupo
de homens, e assim conectou-se parcialmente às mulheres que buscam sua
emancipação; por outro lado, estas características fizeram dela um ser quase
beatificado para o grupo, um exemplo de mulher. Ela utilizou sua força e inteligência
em prol do grupo masculino da trama e, por possuir um coração de mulher, ela ainda
encontra-se absolutamente ligada ao ideal da classe-média burguesa vitoriana,
ligada a família, a tradição. Van Helsing também sugere que a heroína
121
da trama
seja um exemplo de mulher a ser seguido:
119
“Ah, esta maravilhosa senhora Mina! Ela tem o cérebro de um homem um cérebro que um
homem deveria ter se ele fosse muito talentoso – e o coração de uma mulher”. (Id-Ibidem, pág. 267).
120
“empunhei meu revolver pronta para usá-lo”. (Id-Ibidem, pág. 362).
121
Através das páginas do romance desenhou-se a jornada do herói. Um herói essencialmente
humano que precisa, necessariamente, controlar suas paixões, explorar as artes, elaborar as
instituições econômicas e culturais do Estado – isto em um sentido mais amplo. O que se faz
necessário realmente é que o herói tenha um espírito humano perfeito, alerta a todas as
necessidades e esperanças do coração. Neste sentido todos os componentes do grupo no combate
ao vampiro formam a jornada do herói. O grupo de homens seriam os heróis como redentores do
mundo, pois a definição do guerreiro está atrelada à jornada do local de nascimento ou exílio de onde
ele retorna para realizar sua grande tarefa: enfrentar o terrível para assim obter sua redenção; o
trabalho do herói consiste em matar o aspecto obstinado do monstro e libertar, do banimento
promovido por este aspecto, a criatura de acordo com as definições propostas pela moral de sua
sociedade. Todos vêm ou vão para uma terra distante do local de nascimento em busca da reparação
do mal que o vampiro causou em sua sociedade; portanto, no final de sua jornada cumprem a missão
de destruir o monstro e assim recebem sua redenção, deixando para trás seu legado de coragem e
determinação. Mas, a grande figura do herói se desenha pela personagem de Mina, que vista como
uma figura santa obtém sua redenção e perdão na última página do romance. Os estágios da jornada
da personagem iniciam no momento em que ela sofre pelo noivo, Jonathan Harker, desaparecido,
depois encontrado com febre cerebral e tratado pelas freiras carmelitas do convento de Budapeste. O
sofrimento pela doença que atinge sua grande amiga Lucy, que passa para o lado do vampiro.
Quando Mina vê-se contaminada pela mesma doença que matou sua amiga, toma consciência da
importância que ela tem na destruição de Drácula e desta maneira, ao pedir que Van Helsing a
hipnotize para descobrir o paradeiro do conde ela assume o papel principal para a captura e
eliminação da terrível ameaça que o vampiro representa. Nas últimas páginas, ao ser identificada
pelas três vampiras do castelo, ela não se rende a elas e passa no teste. Daí em diante a morte do
vampiro é apenas conseqüência de uma situação posta: ela não se entregará ao mal, ela
permaneceu fiel ao bem, ou seja, ao exemplo de mulher a ser seguido. Não obstante, implicam-se
também a jornada dos personagens rumo a seus destinos, estes por vezes incertos, justamente pela
mudança do mundo deles ser tão rápida, assim, não se pode saber, com o nascimento de Quincey
95
She is one of God’s women, fashioned by His own hand to show us men
and other women that there is a heaven where we can enter, and that its
light can be here on earth. So true, so sweet, so noble, so little an egoist,
and that, let me tell you, is much in this age, so skeptical and selfish
122
Ao se referir às “ambições e o ceticismo”, Van Helsing expressou clara
desaprovação em relação às questões de emancipação da mulher; a descrença
típica do século fizeram com que a racionalidade desse margem a questionamentos
a respeito de posições e posturas muito delimitadas, pois podemos observar
através de Mina que as mulheres tinham definidos papéis sociais no núcleo familiar,
ao cuidarem da criação dos filhos e no suporte à carreira dos maridos. O espaço da
mulher pode muito bem continuar a ser o mesmo sem ser considerado inferior, para
isso temos o exemplo da heroína. Também, o fato do grupo combater o mal
representado pelo vampiro, seguindo-o até seus domínios, significava salvar a jovem
do futuro que está fadada, seja esse pela doença transmitida pelo vampiro ou pelas
incertezas que se desenham através da emancipação feminina. O desejo de possuir
direitos iguais aos dos homens puseram-nas em uma função que não se pode ter
real dimensão, seus papéis estão muito demarcados, ou seja, aqui mostrou-se,
por parte dos personagens mais modernos da obra, a resistência ao novo, moderno.
Fica então uma visão do caráter divino da mulher, que não pode ser negado
tampouco desacreditado, este que remonta ao imaginário tradicional. Mina seria,
portanto, um conjunto de perfeição. Era o que toda mulher deveria e deve ser. Por
isso, Jonathan Harker termina o livro com a seguinte observação sobre sua esposa:
Harker, o que aguardar do futuro. Cf. CAMPBELL, J. O Herói de Mil Faces. São Paulo:
Cultrix/Pensamento, 2002.
122
“Ela é uma mulher eleita por Deus, modelada por Suas próprias e milagrosas mãos para mostrar a
nós homens e a outras mulheres que ainda existe um céu no qual podemos entrar e que Sua
abençoada luz também pode nos guiar na Terra. Tão fiel, o nobre e generosa e, permita-me que o
diga, tantos predicados numa pessoa é realmente demais para as ambições e o ceticismo da
época em que vivemos”. (Id-Ibidem, pág. 188).
96
This boy will some day know what a brave and gallant woman his mother is.
Already he knows her sweetness and loving care. Later on he will
understand how some men so loved her, that they did dare much for her
sake
123
3.2 hereditariedade
Como vimos no capítulo anterior, a Lei dos Pobres do século XVI trouxe uma
forma de auxílio e conforto aos menos favorecidos. A lei no entanto dividia os pobres
em dois grupos: pobres merecedores e pobres indignos. Os pobres merecedores
eram os mais jovens e mais velhos, os enfermos e vítimas de infortúnios e reveses
financeiros o que, de alguma maneira, os impedia de trabalhar. Os indignos
formavam o grupo dos criminosos, autores de assalto a viajantes, batedores de
carteira e mendigos profissionais. Estes indignos eram considerados uma chaga
social e a lei determinava punições a altura de seus crimes. Com o passar dos
séculos, a vadiagem tornou-se crime dos mais graves; dentre as instituições que
recebiam os pobres estavam casas de apoio e hospitais, para tratar dos destituídos
e doentes, mas, para cuidar dos facínoras indignos estava, cada vez mais, o asilo.
Também, a partir do início do século XVII, os custos com o pobre
aumentaram de maneira espantosa, assim os impostos foram ampliados e levados a
cada comunidade. Os pobres então passaram a ser vistos como uma classe de
herdeiros do direito à ajuda e candidatos aos distúrbios sociais. Bairros cada vez
123
“Algum dia este menino saberá admirar a corajosa e galante mulher que é sua mãe. Ele
conhece sua ternura e seu amor. Mais tarde compreenderá por que um punhado de homens
excepcionais a amou tanto a ponto de se arriscar e tudo ousar por seu bem” (Id-Ibidem, pág. 444).
97
mais infestados de lúgubres cidadãos e asilos apinhados fizeram com que a
Inglaterra iniciasse uma reforma em sua legislação. A urbanização da pobreza foi
substancialmente acelerada pela Revolução Industrial, que estabeleceu oficinas e
fábricas escuras e insalubres ao passo que exigia uma mão de obra mal
remunerada. As classes dominantes gradualmente se rebelaram contra as taxações
dos mais ricos para sustentar os mais pobres. Tudo isso, porém, era para assegurar
a estadia em asilos de uma série de paupérrimos cidadãos, tirando-os das ruas,
proibindo-os de circular e principalmente de perturbar a ordem nas cidades. Ser
insano não era o único pré-requisito para o ingresso nestes estabelecimentos. Na
década de 1870 foi criado um “senso da loucura”, este procurava saber quem de
fato era insano nos asilos. Constatou-se que a maioria dos internos nada tinha de
distúrbios mentais, permanecendo ali por não ser “bom” para estar livre; a maioria
era pobre e perigoso. O pobre tinha mal-cheiro, tinha doenças, era portanto, uma
ameaça à sociedade, logo não poderia ficar solto espalhando suas sujeiras.
Enquanto a “praga” social britânica se alastrava, uma nova filosofia se
desenvolvia na Europa. Em 1798 Thomas Malthus
124
publicou uma teoria expondo a
necessidade do controle populacional por restrição e coibição moral, além de alertar
para o tipo de assistência caritativa que, segundo ele, causava mais pobreza,
passando-a de geração em geração, não podendo ser comportada no progresso
humano. Muitos que seguiram Malthus concentraram-se especialmente na questão
do pobre. Não havendo um controle de natalidade, o asilo tornou-se responsável por
controlar a procriação desses seres degenerados, com “sangue ruim”. Tratamentos
124
Thomas Malthus (1766-1834) foi economista. Ficou conhecido por seus estudos sobre população,
inseridos em dois volumes conhecidos como Primeiro Ensaio e Segundo Ensaio. Tanto o Primeiro
Ensaio - que apresenta uma crítica ao utopismo - quanto o Segundo Ensaio - onde uma vasta
elaboração de dados materiais - têm como princípio fundamental a hipótese de que as populações
humanas crescem em progressão geométrica. Segundo ele, esse crescimento populacional é limitado
pelo aumento da mortalidade e por todas as restrições ao nascimento, decorrentes da miséria e do
vício.
98
como a lobotomia frontal e choque eletro-convulsivo eram usados em larga escala
para controlar os internos.
Em 1859 Darwin publicou o volume de A Origem das Espécies, defendendo a
seleção natural como o processo de sobrevivência que governava a maioria dos
seres vivos em um mundo onde os recursos são limitados e sujeitos a alterações
ambientais; dizendo que sua teoria é a doutrina de Malthus aplicada às forças dos
reinos vegetal e animal, assim não poderia haver crescimento artificial de recursos
naturais, tampouco restrições prudentes aos casamentos.
Darwin escrevia sobre as relações naturais no mundo, porém seu trabalho
daria origem a um conceito novo, este nunca usado por ele, que se chamaria
darwinismo social. Assim, pensadores debruçados sobre os problemas sociais
começaram a defender que na luta pela sobrevivência no mundo moderno os fracos
estariam destinados a desaparecer. Preservar o fraco era um ato não natural.
O darwinismo social, aos poucos, ganhou espaço na medicina social e, dessa
maneira, entre 1863 e 1868, a biologia desenvolveria uma teoria da evolução
baseada no que se chamou unidades celulares, identificáveis no sangue,
corroborando para a teoria da hereditariedade. Essas unidades podiam ser vistas
através do microscópio; desta maneira, a biologia inaugura um novo momento para
as ciências proclamando que traços bons e ruins não eram atribuídos por Deus, mas
transmitidos de geração em geração.
Em 1863 o livro Priciples of Biology [Princípios da Biologia] de Herbert
Spencer
125
sugeria que a hereditariedade era controlada por unidades fisiológicas.
125
Herbert Spencer (1820-1903) foi um filósofo inglês e um dos representantes do positivismo.
Spencer foi um profundo admirador da obra de Charles Darwin. É dele a expressão "sobrevivência do
mais apto".
99
em 1866, Gregor Mendel
126
publicou seus experimentos com vagens lisas e
enrugadas constituindo assim uma representação de um sistema hereditário
dependente dos elementos celulares herdados e dividindo-os em recessivos e
dominantes.
Darwin, em 1868, publicou The Variation of Animals and Plants under
Domestication [A Variação dos Animais e das Plantas sob Domesticação], que
postulou a noção de que as unidades celulares expeliam grânulos
127
e estes
transitavam pelo sistema circulatório. Os grânulos seriam compostos de “detalhes”
de cada componente do organismo vivo. Sendo assim, a constituição de um novo
ser era dotada essencialmente de grânulos “doados”, portanto o novo organismo
seria formado por partes dos organismos de seus antepassados. Neste momento
desenhou-se o que muito posteriormente se chamaria genética
128
. Todas essas
teorias, indo ao encontro umas às outras, traziam consigo a idéia de poder melhorar
a raça humana respeitando as leis naturais da seleção agora social, estas não
ditadas pela guerra, pelas epidemias, tampouco pela caridade, mas pela lógica
progressiva das ciências. As teorias advindas do darwinismo social, dentro deste
panorama, chegaram a seu expoente através de um homem, este não um filósofo ou
médico, mas matemático: Francis Galton.
Galton, segundo Black
129
, era um “esperto e compulsivo contador contador
de coisas, fenômenos, de traços, de todas as maneiras de ocorrências, do óbvio e
do obscuro, do verdadeiro e do conjurado” (2003,82). Galton se destacou por sua
capacidade de reconhecer padrões, tornando-o um excepcional observador da
126
Gregor Mendel (1822-1884) foi monge agostiniano, botânico e meteorologista austríaco. Um de
seus maiores trabalhos, o Ensaios com Plantas Híbridas [Versuche über Planzenhybriden], versa
sobre as leis de hereditariedade e a designação de genes recessivos e dominantes conhecidos hoje
como Leis de Mendel.
127
Darwin irá chamá-los de gemmules.
128
Cf. BLACK, E. A Guerra Contra os Fracos, São Paulo, A Girafa, 2003.
129
Op. Cit.
100
natureza; assim acreditava que os reconhecendo poderia superá-los e até
conquistá-los; a xima dele era: sempre que for possível, conte. Entre seus
trabalhos destacaram-se os estudos sobre clima, desenhando os primeiros mapas
climáticos do mundo; também foi ele quem descobriu que os sulcos dos dedos
humanos eram únicos e os chamou de impressões digitais inventou um sistema
para analisar e categorizar os tipos de riscos formados pelos sulcos e assim, com
um pouco de tinta, formar um registro permanente; trabalho extremamente útil para
a criminologia.
Enquanto Darwin, Spencer e Mendel concentravam-se em estudos que
explicassem a hereditariedade das espécies inferiores, Galton começava a observá-
los entre os seres humanos. Em 1869 publica Hereditary Genius [Gênio Hereditário]
onde defendeu que a hereditariedade, além de transmitir feições físicas como a cor
dos olhos, cabelos e altura, passava adiante qualidades mentais, emocionais e
criativas. Sendo assim era possível criar uma raça humana constituída por pessoas
altamente dotadas por gerações a fio, para isso bastava que os casamentos fossem
bem arranjados. Ele chegou a esboçar o que seria uma regulamentação dos
casamentos, mas que na Inglaterra não teria expressão. Através de seus cálculos,
chegou a conclusão de que uma boa linhagem produziria descendentes valiosos,
desde que esta não se misturasse com linhagem inferiores, pois não haveria como
“melhorar” o ruim; isso acarretaria em descendentes biologicamente degradados;
e, se duas pessoas oriundas de linhagens de sangue ruim produzissem
descendentes, estes seriam progressivamente piores. Nossa fonte abrirá margem
para discutirmos sobre esse assunto na figura do pequeno Quincey Harker.
Stoker concluiu sua narrativa no momento da morte de Quincey P. Morris,
mas ele nos legou uma nota escrita por Jonathan Harker sete anos após os
101
infortúnios passados pelos personagens com o vilão Drácula. Esta nota nos informa
do nascimento do filho do casal Harker. A criança, que nasceu no mesmo dia da
morte de Morris, nos traz questões relativas às teorias de hereditariedade. Quincey
Harker seria a personagem que sugeriria a ligação entre os demais personagens da
obra, pois ele compartilha laços de parentesco com todos eles. Mina, a mãe do
menino, em sua experiência com Drácula bebeu seu sangue. O sangue do vampiro
corre pelas veias dela, logo a criança também tem o sangue dele.
Drácula carregava traços de uma linhagem aristocrática ligada a grandes
guerreiros, heróis de um passado longínquo; o próprio Conde afirma que em suas
veias corria sangue de grandes homens, entre eles Átila
130
. Drácula foi, como Van
Helsing afirma, um grande gênio em vida e sua mente permaneceu astuta como
sempre fora. Logo, o pequeno Quincey Harker seria também o herdeiro vivo de
Drácula, não apenas compartilhando suas características físicas e mentais, mas
também sendo por direito, através de uma linhagem de sangue, detentor do título
aristocrático portado pelo vampiro, que o concederia bens e terras. Quando Harker
diz que seu filho nasceu exatamente no dia da morte de Quincey Morris não
menciona que foi neste mesmo dia que Drácula morreu; na mesma data da morte do
Conde, sete anos depois, nasceu seu herdeiro.
Mas, por outro lado, Drácula seria, como vimos no capítulo anterior, o
expoente da doença, degenerescência e impureza, assim a criança poderia muito
bem manifestar as características da doença transmitida pelo vampiro em todos os
sentidos, seja tornar-se como ele ou apenas adotar as características que o
enquadravam no assassino homicida, no criminoso e, desta maneira, possuir
desvios de comportamento rejeitados pela sociedade. Drácula, carregando também
130
Átila (406-453) foi o último e mais poderoso rei dos hunos. Governou o maior império europeu de
seu tempo desde 434 até sua morte. Suas possessões se estendiam da Europa Central até o Mar
Negro e do Danúbio até o Báltico. Foi um dos maiores inimigos do Império Romano.
102
o sangue de suas vítimas, como o sangue das três vampiras de seu castelo, faz com
que o pequeno Quincey Harker compartilhe os atributos bestiais do vampiro, os
quais o caracterizavam como ser inferior.
Drácula também carregava o sangue de Lucy, esta que foi uma boa e
recatada jovem, mas infelizmente continha traços hereditários de fraqueza. Em vida,
Lucy detinha o distúrbio do sonambulismo. Segundo Kline
131
, o sonambulismo era
considerado, no culo XIX, uma forma de neurose degenerativa, como uma das
manifestações da histeria
132
. Também, a família de Lucy detinha um histórico de
doenças cardíacas
133
, pois a jovem comentou que seu pai morreu de infarto e sua
mãe possuía um coração fraco, que a levou a morte no mesmo dia em que Lucy
transformou-se em morta-viva; portanto, a família Westenra seria em certo sentido
corrupta, justamente por manifestar perigosas doenças hereditárias; o filho do casal
Harker herdou também a disposição da família de Lucy a essas moléstias.
Lucy, por sua vez, recebeu inúmeras transfusões sangüíneas – sangue doado
por Van Helsing, Arthur Holmwood, Quincey P. Morris e Seward logo, o sangue
que Mina bebeu do vampiro continha uma parcela das características de cada um do
grupo no combate ao vampiro.
Dr. Seward e Dr. Van Helsing seriam os grandes cérebros da trama. Eles
detêm o conhecimento médico de seu tempo. Neste ponto percebemos que Quincey
131
KLINE, Salli J. The Degeneration of Women: Bram Stoker’s Dracula as Allegorical Criticism of the
Fin de Siècle. Londres: CMZ Verlag, 1992.
132
Histeria é uma neurose complexa caracterizada pela instabilidade emocional. Os conflitos
interiores manifestam-se em sintomas físicos como, por exemplo, paralisia, cegueira, surdez, entre
outros. Pessoas histéricas freqüentemente perdem o autocontrole devido a um pânico extremo. Foi
intensamente estudada por Charcot e Freud. O termo tem origem no termo médico grego hysterikos,
que se referia a uma suposta condição médica peculiar a mulheres causada por perturbações no
útero hystera em grego. O termo histeria foi utilizado por Hipócrates que pensava que a causa da
histeria fosse um movimento irregular de sangue do útero para o cérebro. Episódios de amnésia e
sonambulismo são considerados reações de dissociação histérica. Cf. PORTER, Roy Madness: A
Brief History. Oxford: Oxford University Press, 2003.
133
Os ritmos do coração, apesar de terem sido descobertos por Harvey, não possuem tratamento
para o mau funcionamento do órgão. As primeiras cirurgias datam da década de 1890, assim como
os primeiros tratamentos efetivos.
103
Harker tem predisposição a uma mente sagaz e brilhante em seu futuro. Holmwood
era também uma figura aristocrática, então o menino seria, como com Drácula,
herdeiro de seu título e posição. seu parentesco com Quincey Morris denota a
bravura que a hereditariedade lhe concederia. Portanto, o filho de Harker e Mina
constitui a presença de todos: His bundle of names links all our little band of men
together; but we can call him Quincey
134
”. Stoker então concluiu sua obra lançando a
questão do entrelaçamento de suas personagens através da herança disponibilizada
pelo sangue e, deixou a questão em aberto; o destino do infante é incerto, mas
poderia, de acordo com as teorias emergentes no final do século XIX, típicas da
modernidade, desenvolver qualquer uma destas características. Também, brincou
com o sentido tradicional do sangue, pois assim o filho do casal Harker seria o
herdeiro de todos.
3.3 o medo do outro
As questões que abarcam o âmbito médico-social vieram a ter expressão no
imperialismo britânico. A Inglaterra havia muito dominava territórios em diversas
regiões do mundo, estas com culturas diferentes e assim, através da teoria da
hereditariedade, agora aprimorada por Galton, traziam para dentro de seu próprio
território o medo do outro em seus aspectos culturais, bem como no que tangia ao
desenvolvimento social destas regiões.
134
Seu conjunto de nomes liga, em uma só pessoa, todos de nosso pequeno grupo de homens, mas
nós o chamamos de Quincey” (Id-Ibidem, pág. 444).
104
Os ingleses lançaram-se à conquista do mundo durante o reinado de
Henrique VII (1485–1509), promovendo assim a industria naval como meio de
expandir o comércio para além das ilhas britânicas. As primeiras colônias seriam
fundadas durante o período elisabetano; durante os três séculos seguintes os
ingleses expandiram o seu império a praticamente todo o mundo, incluindo grande
parte da África, quase toda a América do Norte, a Índia e regiões vizinhas, e
diversas ilhas ao redor do mundo.
A partir de 1660, passou a administrar na África entrepostos de captação de
escravos para as platações americanas, apossando-se assim, em 1787, de
inúmeros territórios no continente, estes entre o rio Gâmbia inserido no Senegal
francês e a Nigéria, e finalmente a Costa do Ouro hoje Gana. O século XVIII foi,
portanto, o período de afirmação e maturação do projeto colonial britânico. Com a
perda dos Estados Unidos em 1776, a Inglaterra viu-se compensada pelos novos
territórios no pacífico Nova Zelândia e Austrália para onde enviou, inicialmente,
criminosos, como forma de aliviar o grande contingente em suas próprias terras.
O culo XIX marcou o auge do império colonial britânico, cuja expansão
econômica e humana era favorecida pelo desenvolvimento do capitalismo financeiro
e industrial, bem como pela pressão demográfica elevada. Por outro lado, marcou
uma nova administração e gestão da realidade colonial. Exemplo disso foi o governo
direto da Coroa na Índia. Alí, porém, desencadearia a primeira grande revolta contra
o domínio colonial britânico: a revolta dos sipais
135
, em 1858, que ditaria o fim da
135
A revolta dos sipais de 1858 foi um período prolongado de levantes armados e rebeliões na Índia
setentrional e central contra a ocupação britânica daquela porção do subcontinente. O conflito causou
o fim do governo da Companhia Britânica das Índias Orientais e o início da administração direta de
grande parte do território indiano pela Coroa britânica (Raj britânico) pelos noventa anos seguintes,
embora alguns Estados chamados coletivamente de "Estados principescos" - mantivessem uma
independência nominal e continuassem a ser governados pelos respectivos marajás, rajás, nababos,
entre outros. Cf. HOBSBAWM, E.J. A Era do Capital, 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
105
Companhia das Índias Orientais
136
. Em 1877, a rainha Vitória – num gesto de
coerção às autonomias ou aspirações mais radicais proclamou-se imperatriz da
Índia, que compreendia um extenso território entre a fronteira irano-paquistanesa e a
Birmânia e entre o Oceano Índico e o Tibete. Na China, os ingleses estabeleceram-
se em Xangai. Na África, alimentou-se cada vez mais o sonho de construir um
império inglês entre o Cairo e a Cidade do Cabo, na África do Sul, o que seria
realizado após a Conferência de Berlim (1884) que legitimava a anexação de todos
os territórios ao longo desse corredor africano
137
o império construído seria
dissolvido a partir da Primeira Guerra Mundial. O grande problema gerado neste
momento seria como aplicar os princípios sanitários nas colônias e também como
manter o povo dominado longe das ilhas britânicas. O medo era justamente do
chamado reverso da colonização
138
.
A região da Transilvânia também estava, durante as décadas de 1880 e 90,
associada a Questão do Oriente, pois fazendo parte do Império Austro-húngaro não
poderia ter uma política própria, independente, o que trazia insatisfação e medo para
região que não queria ser anexada à Hungria esta se mostrava com impulsos
separatistas. Também, a região possuía diferentes povos, tornando-se alvo das
preocupações políticas inglesas, devido ao alto número de conflitos políticos
136
A companhia inglesa era uma organização formada por mercadores londrinos e durante dois
séculos e meio transformou os privilégios comerciais na Ásia em um império centrado na Índia.
Licenciada em 1600, a companhia logo perdeu as ilhas Molucas para os holandeses, mas em 1700 já
havia assegurado importantes portos comerciais na Índia, principalmente Madras, Bombaim e
Calcutá. Em meados do século XVIII, as hostilidades anglo-francesas na Europa refletiram-se em
uma luta pela supremacia com a companhia francesa. O comandante inglês Clive foi mais hábil que o
governador francês Dupleix no sul da Índia e interveio na rica província de Bengala, no nordeste. A
vitória sobre o governador de Bengala em 1757 deu início a um século de expansão, e a Companhia
Inglesa das Índias Orientais emergiu como o grande órgão europeu na Índia, apesar da forte disputa
com os franceses. Cf. HOBSBAWM, E.J. A Era das Revoluções, 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2007.
137
Corredor formado pelos territórios do Egito, Sudão, Quênia, Rodésia, Transvaal, entre outros.
138
Cf. HOBSBAWM, E. J. A Era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
106
derivados da rivalidade gerada pelas diferenças raciais
139
. A Inglaterra tinha
interesse em apoiar esses conflitos e fazer o papel de árbitro em negociações de
paz e emancipação da região, nos quais não obteve sucesso
140
. A visão de Harker
quanto ao seu anfitrião reflete que o jovem o via como um monstro e o medo
provocado pela futura presença do Conde na Inglaterra foi ao encontro a questões
referentes ao medo britânico do reverso da colonização. Os Estados europeus
detentores de colônias temiam, nesse período, que o contato com diferentes culturas
em outros territórios à eles subjugados, pudesse levar ao seu próprio território
maneiras inferiores de manifestações culturais. Drácula conta a Harker, por exemplo,
sobre as inúmeras invasões que sua terra natal sofrera ao longo dos séculos,
especialmente ilustradas pelo avanço do Império Otomano na região. When we got
to Bistritz [...] at the very beginning of the seventeenth century it underwent a siege of
three weeks and lost 13,000 people, the casualties of war proper being assisted by
famine and disease
141
”. Stoker também menciona a invasão sofrida pelos ingleses
na região de Whitby, quando a abadia da cidade fora saqueada pelos
dinamarqueses (867). Estas referências à invasão de outros povos marcam no
romance, além do medo, a necessidade que a Inglaterra tem nesse momento de
manter a qualquer custo suas colônias sob vigilância.
O medo do outro foi reforçado por Van Helsing no momento que este
compara a batalha contra Drácula a uma guerra santa na qual eles deveriam destruir
seu oponente de qualquer maneira: “But to fail here, is not mere life or death. It is
139
População que ocupava a região da Transilvânia no século XIX era composta por saxões,
valáquios (descendentes dos dácios), tchecos e magiares (húngaros).
140
Em 1918, com o enfraquecimento gerado pelos conflitos da Primeira Guerra, o Império Austro-
húngaro dissolve-se, sendo que a Hungria proclama república em 16 de novembro e os Estados da
Transilvânia e Romênia se unificam em 24 de dezembro, formando a República da Romênia. Cf.
Hobsbawm, E.J. A Era do Capital, 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
141
“Quando chegamos a Bistriz [...] Bem no início do século XVII, a região permaneceu sitiada por
três semanas e as perdas somaram 13.000 pessoas, as causalidades da guerra somaram-se a fome
e a doença”. (Id-Ibidem, pág. 07).
107
that we become as him; that we henceforward become foul things of the night […]
preying on the bodies and the souls of those we love best
142
”. Assim, Dracula referiu-
se a batalha contra outras culturas e povos, cuja expressão dá-se pelo vampiro
originário da Europa Oriental, que foi associado ao mais baixo tipo de ser humano,
sujo, obscuro, supersticioso, desprovido de moral. Sua praga poderia destruir todas
as crenças e cultura de outra região. A região ameaçada seria a Inglaterra.
Notadamente influenciados pela teoria da hereditariedade, pela medicina da
força de trabalho e pela idéia sanitária, os ingleses apoiaram-se nestes novos
conceitos para organizar suas colônias. No caso indiano, a questão médica foi,
contudo, um grande problema. O que era aplicado em Londres passou a ser
aplicado, no final do século XIX, às principais cidades indianas como uma maneira
de experimentar seus resultados em um lugar deteriorado “sócio-culturalmente”. O
que não se sabia, ainda, era a resistência que seria encontrada nestes territórios. Na
Índia, a estrutura social pautada no regime de castas e a cultura secular provida por
esta trouxeram à Inglaterra problemas para sanitizar a região. A não aceitação das
políticas médico-sanitárias inglesas, pautadas em uma moral anglicana, não seriam
possíveis de serem aplicadas nestes territórios na África e Austrália ainda tiveram
algum sucesso
143
. Os problemas que os cientistas identificavam, os métodos que
utilizavam, os tipos de teorias que usavam, as teorias que consideravam
satisfatórias em geral ou adequadas em particular, as idéias e modelos nos quais se
baseavam para resolvê-los eram de homens e mulheres cujas vidas desenvolveram-
142
“Mas falhar aqui não é apenas uma questão de vida ou morte. Trata-se de não nos tornarmos
como ele; nós nos tornaríamos criaturas da noite rezando sobre os corpos e almas de nossos entes
mais queridos” (Id-Ibidem, pág. 287).
143
Na África e na Austrália, as idéias médico-sanitarias não sofreram resistência por parte da
população nativa”, mas, durante o final do século XIX e início do XX a África do Sul e a Austrália
sofrem os efeitos da teoria da hereditariedade agora aprimoradas na eugenia. A Austrália, a partir de
1930 concluirá seu projeto de esterilização de índios e, as políticas sul-africanas se mostram com
tendências de segregação racial a partir de 1917. Muito pelo contrário, porém, a Inglaterra cria o
termo eugenia e sua teoria, mas não o aplica. Cf. BLACK, E. A Guerra Contra os Fracos. São Paulo:
A Girafa, 2003.
108
se em outros espaços; os problemas que identificavam em seu próprio território não
eram os mesmos dos territórios colonizados.
Houve, contudo, um lado positivo nesse intercâmbio cultural. Os
administradores de negócios, soldados e médicos com “abertura intelectual”,
refletiam sobre as diferenças entre sua sociedade e aquelas que governavam;
produziram então importante material sobre elas, especialmente relacionada ao
império indiano, bem como reflexões que mudariam algumas concepções das
ciências sociais ocidentais. Uma parte substancial do ímpeto do desenvolvimento da
bacteriologia e imunologia devem-se ao imperialismo, uma vez que as regiões
colonizadas ofereciam incentivo ao controle de doenças tropicais, como a malária e
a febre amarela, que prejudicavam os homens brancos nas regiões dominadas.
Porém, boa parte do material produzido era um subproduto do colonialismo ou
dispunha-se a ajudá-lo; a maioria dos trabalhos visava demonstrar a superioridade
do conhecimento ocidental sobre qualquer outro, exceto talvez quando o assunto era
religião. Como afirma Hobsbawm
144
: “O imperialismo ocasionou um aumento notável
no interesse ocidental em formas de espiritualidade derivadas do Oriente ou que
diziam ser, e às vezes conversões a elas” (2003,120).
Uma vez mais, na maior parte do mundo não-branco, a religião ainda
continuava sendo a única linguagem para falar do cosmos, da natureza, da
sociedade e da política. A religião era, ideologicamente, onipresente; foi através dela
que a resistência foi conclamada; tanto a absorção do Ocidente como a sua rejeição
pela classe média “nativista” resistiu dessa forma. O que aparentemente era um
efeito do atraso de um povo, na visão inglesa, foi na realidade onde se deu a
atuação dos mecanismos de poder para varrer as idéias dos colonizadores desses
144
Op. Cit.
109
locais. A Inglaterra, no entanto, via-se cada vez mais dependente desses territórios,
pois nesse momento eram deles que dependia seu imbatível crescimento
econômico.
Com o aumento da mão-de-obra urbana, as regiões rurais inglesas sofreram
aos poucos uma depopulação. O povo rumou cada vez mais para as cidades,
enquanto que muitos também migraram para territórios britânicos além mar e outros
imigraram para os Estados Unidos na esperança de uma nova vida. Nesse sentido,
a emergência das treze colônias como nação em 1783, trouxe para a Inglaterra a
necessidade de conservar as demais colônias com as quais se manteria como o
maior país exportador de produtos manufaturados do período. Com os contratempos
gerados pelo esvaziamento contínuo do campo, os britânicos recorreram as suas
antigas colônias para suprirem essa demanda. Assim, na década de 1840, os
Estados Unidos exportam maciçamente suas produções de grãos para a Inglaterra.
Vemos, no trabalho de Stoker, que a presença de personagens estrangeiros
foi dada por Drácula e por Quincey P. Morris, norte-americano da região do Texas.
O território do Texas, bem como seus vizinhos Califórnia, Novo México,
Nevada, Arizona e Utah, principiaram seus ingressos, lentamente, ao território norte-
americano, sendo antes pertencentes ao México. Entre 1820 e 1830 os norte-
americanos começaram a comprar terras na região do Texas e assim, instalaram-se
pequenas famílias e também latifundiários dispostos a aumentar suas produções.
Porém, criou-se um impasse entre mexicanos e norte-americanos, pois a partir de
1831 o México o reconhecia mais o trabalho escravo e os Estados Unidos sulista
ainda mantinha este regime como mão-de-obra. Devido ao avanço da ocupação
americana, cada vez mais famílias assentavam suas residências na região, no
entanto, recusavam-se a pagar imposto para o governo mexicano. Entre 1835 e
110
1836 a revolução instaurada decidiu pela independência do Texas, tornando-se um
Estado independente e anexado ao território norte-americano em 1845. Região que
pouco tempo depois sofreria os efeitos da Guerra Civil Americana
145
(1861-1865).
Quincey P. Morris, apesar de desconhecermos sua história familiar, seria um
grande explorador, viajando o mundo em expedições aos lugares mais inóspitos e
insólitos, mas o vislumbre de sua origem texana nos mostrou que ele provavelmente
é membro de um grupo que representaria os ricos proprietários da região. Lucy
observou que: “He is such a nice fellow, an American from Texas, and he looks so
young and so fresh that it seems almost impossible that he has been to so many
places and has such adventures
146
”. Também, observa, sobre seus modos: “Mr.
Morris doesn’t always speak slang, that is to say, he never does so to strangers or
before them, for he is really well educated and has exquisite manners
147
”. Temos
então, uma pequena visão das características deste personagem, mas, pela pouca
participação na trama, Stoker nos conferiu poucas referências sobre ele. Quincey P.
Morris evidenciou o modo como os ingleses viam os Estados Unidos, segundo Senf
148
“como um bando de caipiras ingênuos, mas com certo humor” (1998,76). Porém,
pela proximidade entre os dois países dada pelos interesses econômicos,
tecnológico e médico fizeram com que Stoker refira-se a ele.
Claramente, a intenção de Stoker em colocar um texano em sua trama teria
um significado parecido com as intenções de inserir um Conde da Transilvânia:
ambos representariam o exótico. Morris vinha de uma região marcada no imaginário
por ser desértica, cheia de nativos, ou seja, pitoresca; e por ser uma região de que
145
Também conhecida como Guerra de Secessão.
146
“Trata-se de um americano do Texas e dá a impressão de ser tão jovem e sem malícia que parece
quase impossível o fato de ter viajado por tantos lugares e vivido tantas aventuras”. (Id-Ibidem,
pág. 65).
147
“O Sr. Morris nem sempre se exprime em gíria, isto é, ele jamais a emprega falando com estranhos
ou diante deles, pois é realmente bem educado e tem as excelentes maneiras”. (Id-Ibidem, pág. 65).
148
Op. Cit.
111
pouco se conhecia. Stoker também parece conhecer muito pouco da região, ao
contrário da situação com Drácula, pois se percebe o estudo minucioso que o autor
fez para conhecer bem a região do Leste Europeu. No entanto, tanto com Drácula
como com Morris, Stoker mostraria dois tipos distintos de estrangeiro, porém, ambos
causam medo.
No caso com Drácula o medo do outro é incitado pelo que tange ao
tradicional, pela visão deste outro como inferior; com Morris o medo do outro foi
pautado no que não se conhece, pois pela trajetória norte-americana neste
momento, vemos que pouco difere das estruturas modernas adotadas pelos Estados
em emergência no século XIX. Os Estados Unidos era um Estado, no final do século
XIX, essencialmente moderno; um Estado que também se interessava em manter
contato com os países europeus potencialmente parceiros – seja econômico, político
ou científico. Portanto, o que os ingleses produziam de novo sempre interessaria os
americanos. Além da boa parceria econômica entre os dois países, também havia
intercâmbio de diferentes teorias, mas nenhuma teoria chamou tanto a atenção de
uma pequena elite intelectual que as teorias desenvolvidas por Galton.
O campo da medicina, logo após a Guerra Civil Americana, foi o local onde o
Estado mais proveu em recursos, pois sabia que com o aumento da população
muitos desses imigrantes e conseqüentemente das cidades, deveriam exercer
uma política que controlasse esses cidadãos, ou melhor, como esses cidadãos
cuidam de sua saúde e principalmente quem seriam os cidadãos do futuro da nação.
Logo, não demorou muito para que as teorias de Galton espalhassem-se e
trouxessem idéias para um plano de desenvolvimento do corpo social saudável.
Porém, por conta da própria imigração e também das questões sociais referentes
112
aos negros “o que na Inglaterra era uma biologia de classe social se converteu numa
biologia de grupos raciais e étnicos” (BLACK:2003,67).
Também, as pretensões expansionistas dos Estados Unidos alarmaram os
ingleses. Com seu Estado fortificado, depois de passado o assalto da Guerra Civil e
com o corredor comercial livre do Atlântico ao Pacífico, começavam então a
conquistar mercados pelo globo. Estabeleceram-se cada vez mais tratados
comerciais entre a América do Sul, algumas regiões da África, flertaram com
mercados franceses e alemães. No oriente comercializaram com o Japão – ou
melhor, forçaram o Japão a negociação
149
–, além de fazerem oposição ferrenha às
colônias inglesas. Assim, os Estados Unidos começavam a rivalizar com a Inglaterra
na busca de mercados. A Inglaterra então percebeu que sua cria poderia vencê-la
em seu próprio jogo. Sem saída, os britânicos fariam de tudo para manter seu
parceiro por perto e, também, manter suas colônias; o medo do outro se amplia da
esfera social para esfera econômica.
No final de sua narrativa, Stoker matou dois personagens, um pelo fato de
representar o que não se quer. E o outro? Por que Stoker mata Quincey P. Morris?
Por que mata os dois personagens estrangeiros de sua narrativa? Ele seria a
representação do incerto, do que não se conhece; o que não se conhece causava
medo. A Inglaterra temeria o futuro, um futuro onde não mais estaria sozinha, ou
pior, um futuro no qual seria deixada para trás. Este medo do futuro fez a Inglaterra
desenvolver uma espécie de xenofobia político-econômica, indubitavelmente
reforçada pelos nacionalismos. Se Drácula então morreu por ser inferior, sujo e
perigosos, Morris morreu justamente pelo contrário: por ser galante, um cavalheiro
de bons modos e ser um explorador. Ele não possuía as características do que não
149
Cf. HOBSBAWM, E. J. A Era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
113
se quer, mas detinha características que não poderiam ser avaliadas, por ser então
desconhecido. Também era proveniente de um lugar marcado primordialmente pelo
moderno, onde um passado tradicional pouco existia, marcado pela influência de
tradições folclóricas nativas ou dos imigrantes europeus. A presença de um norte-
americano denotaria uma miscigenação não apenas étnica, mas cultural. À medida
que os Estados Unidos evoluíam enquanto nação, formou-se um folclore nacional
em seu entorno – algo típico dos países colonizados, que abandonaram as tradições
dos habitantes nativos.
O mais curioso talvez seria justamente a visão acerca dos Estados Unidos na
trama como marco da expressão moderna. O Estado norte-americano era de fato
moderno. Assim, Morris representaria um adversário à altura de nosso tradicional
Conde, afinal, foi ele quem teve a coragem de desferir o golpe fatal no vampiro.
No final do romance, portanto, o moderno venceu o novo, mas também, uma
parcela do que seria moderno morreu ao matar a parcela tradicional. Ao eliminar a
tradição, a modernidade pecou justamente no movimento para manter-se única:
formou-se assim um conjunto de novas tradições, estas “tipicamente modernas”;
percebeu-se então que não pode haver um mundo moderno sem o suporte dado
pelo tradicional.
Se o passado pode ser suplantado pelo novo, pelo presente, este presente
tornar-se-ia passado em breve e, talvez, os avanços e conquistas da modernidade
viriam a se tornar obsoletas. Daí em diante o se poderia prever o futuro,
restaria aguardar para saber o que o século seguinte reservaria no novo mundo, no
mundo moderno. Como diz Mina no momento da morte de Morris: “And, to our bitter
grief, with a smile and in silence, he died, a gallant gentleman
150
”.
150
E para nossa infinita tristeza, com um sorriso e em silêncio, ele morreu, um galante cavalheiro”
(Id-Ibidem, pág.443).
114
Considerações Finais
A volta dos mortos para aterrorizar os vivos é sem dúvida, uma crença que se
perde no tempo dentro do imaginário humano. Este encontrou maneiras pouco
conhecidas para esse pensamento e, repentinamente, os vampiros em suas
diversas características foram suplantadas pelo vampiro Drácula, pertencente a um
romance que não cessou de ser reeditado, adaptado para o cinema e inspirou
diversos romances ao longo do século XX. Drácula, seguido por Sherlock Holmes,
de Arthur Conan Doyle (1859-1930), é, sem vida, a figura mais popular que um
autor pôde nos legar. Porém, podemos perceber, através da jornada que Bram
Soker nos proporcionou em seu romance e, assim, ao longo dos capítulos deste
trabalho, as implicações geradas pelo avanço da modernidade no período vitoriano.
O vampiro, uma figura mítica, parte de um imaginário proposto a diversas culturas e
povos distintos, é acolhido como uma metáfora eficiente para a compreensão do
momento histórico único que a sociedade inglesa, em particular, passa neste
momento.
A filosofia demonstra que o vampiro se destina a uma recuperação política.
Desde 1741 o termo “vampiro” assumiu na Inglaterra o sentido de “tirano que suga a
vida de seu povo”; Voltaire
151
, depois, afirma que “os verdadeiros vampiros são os
monges, que comem à custa de reis e de povos”. Também, a sociologia explicou o
florescimento do assunto pela reunião de temas “eloqüentes”: doença, morte,
sexualidade e religiosidade. Portanto, a figura do vampiro moderno inaugurada por
Dracula deu subsídios para que outros autores a utilizassem, da mesma maneira
151
François-Marie Arouet (1694-1778), mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, foi um poeta,
ensaísta, dramaturgo, filósofo e historiador iluminista francês. Cf. VOLTAIRE, F.M.A. Philosophical
Dictionary. Londres: Penguin, 1996.
115
que Stoker, de forma a criar um retrato do momento em que viveram. Como
vimos, a Literatura, a partir do século XIX, ganhou a responsabilidade de
compromisso com a consciência de seu tempo; a Literatura pode ter inúmeras
formas de abordagem, porém esta sempre obedece um sentido de seu tempo, seja
como crítica, denúncia, apologia ou realização. Isso não foi abandonado ao longo do
século XX, mas acentuado.
Alguns evidenciariam esta proposta do uso do vampiro como metáfora. Por
exemplo, Hans Heinz Ewers (1871-1943) em Vampiro (1921) identificou Drácula aos
judeus, aliando a figura do monstro às pregações anti-semitas; Hans W.
Geissendorfer (1941-) em seu livro Jonathan, os Vampiros não Morrem (1970)
identificou o Conde a Hitler triunfante, como se as idéias nacionais-socialistas
fossem tão imortais como esses monstruosos seres. Drácula, em virtude de sua
natureza, suscitou inúmeras possibilidades de identificação, passando muitas vezes
a substituir o termo “vampiro” e recebendo por momentos um status de adjetivo e
não mais de nome próprio.
Utilizando o mito do vampiro, Richard Matheson (1926-), em seu conto I am
Legend [Eu sou a Lenda] (1954), mostrou que os avanços tecnológicos de seu
tempo poderiam levar a um destino catastrófico toda a humanidade. O
desenvolvimento da ciência acarretou na aparição de uma bactéria que infecta o
sangue e acaba por transformar as pessoas estas vivas ou mortas – em vampiros.
Estes seriam prejudicados pela luz e alho, mas não apenas a cruz: o artefato
religioso dependeria da crença do vampiro em vida. Porém, estes novos seres
descobriram meios de viver desta maneira e, organizando uma nova sociedade,
saem à caça do último humano da terra, que ao ser capturado:
116
Abruptamente essa percepção juntou-se com o que viu no rosto deles
reverência, medo, horror recolhido -, e soube que estavam com medo dele.
(...) Robert Neville olhou para fora, para as novas pessoas da Terra. Sabia
que não pertencia a elas; sabia disso. Agora, como os vampiros, ele era
uma anátema, um negro terror a ser destruído. (MATHESON:2007,162)
Aqui, ser humano representava uma ameaça, pois veja o que ele pôde fazer com
sua própria espécie! Criou-se então uma nova espécie, esta com fraquezas não
previstas. O padrão que regulava a sociedade inverteu-se e deu poder às novas
criaturas da Terra. Ser normal aqui é ser anormal. Por outro lado, mostrou a incrível
capacidade humana de conviver com as mudanças que o próprio desenvolvimento
humano acarreta. Sem dúvida, mostrou um futuro incerto que a trama se passa
no ano de 1976, portanto, no futuro e foi escrita em um mundo ainda abalado pelo
pós-guerra e inseguro quanto aos caminhos tomados pela Guerra Fria.
Em 1981 Paul Wilson (1946-) renovou o gênero com The Keep [O que
Permanece]. A história conta como uma tropa de soldados alemães foi encarregada
de ocupar uma antiga fortaleza valáquia dominando o desfiladeiro de Dinu, mas os
ocupantes encontraram uma morte horrível uns após os outros. Um erudito romeno,
o professor Cuza, consegue estabelecer contato com o vampiro que revelou ser o
visconde Radu Molasar, que vivia no século XV. Cuza lhe pergunta “Você é um
morto vivo?”, ao que o vampiro responde: “Um morto-vivo? Um Nosferatu? Um
moroiu? Talvez”. O vampiro da trama então se mostra indiferente à tipologia
realizada sobre sua natureza, além de não ser prejudicado pelos meios defensivos
habitualmente postos em ação: a cruz e o alho não têm efeito; mostra-se a quebra
de padrões sociais previamente estabelecidos; há uma mudança nas normas. O
monstro não se mais como anormal, passando a integrar a mesma realidade
dominada pelas normas que a regem.
117
Seguindo esta tendência, em 1984 Anne Rice (1941-) publica Entrevista com
o Vampiro, no qual o personagem principal, Louis, também revela indiferença aos
artefatos utilizados contra sua espécie. A autora revela um universo vampírico onde
estes são atraídos por pessoas do mesmo sexo; com o advento da Aids e, cada vez
mais, o peso dos movimentos pela liberdade sexual dos homossexuais, o livro
retratou um tipo de vampiro específico de um tempo onde o moderno regulamentou
de forma eficiente as posturas sociais e, ser diferente é possível desde que se
respeitem as normas. Quem não se lembra, então, de ter visto a adaptação do
romance para as telas, em 1994, da cena em que Louis vai ao cinema assistir pela
primeira vez, desde que se transformou em vampiro, o nascer do sol? É justamente
ali que o diferente não pode mais resistir; a tecnologia moderna desenvolveu-se
suficientemente para não permitir mais que o anormal tenha espaço como tal: ele faz
parte da mesma dinâmica social, está inserido nela; existe espaço para a diferença e
os avanços tecnológicos permitem isso. No mundo, não existe mais espaço para o
anormal. O mostro não existe mais, o que existe é a diferença regulada através dos
dispositivos sociais de normalização; e só.
118
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