seriamente com o rapaz, visto como nem por sonhos cogitara nem cogitaria nunca de confiar a sorte de
sua filha a um forasteiro sem eira nem beira. Ameaçado no íntimo, então sim, o doutor começou a tramar
surda guerra. O Secundino papocou-lhe na rosca da venta, à propósito de uma questão do Capitão
Chiquino sobre o furto de uma besta, que Sua Senhoria se vendera aos Tubibas por uma manta de carne e
duas terças de farinha. Foi uma alteração, que se fora entre gentinha, era logo cadeiame velho com ambos,
segundo comentou o borracho do negro Catolé, veterano das prisões de correção.
Secundino foi chamado à responsabilidade por injúrias verbais. Mas a Guida, com uma palavra,
fez o juiz desistir da ação.
Ah! Em que angústias não se viu o mancebo repartido, bipartido entre o seu ódio e o seu bem-
querer! Lalinha vivia triste, cada vez mais simpática, mais alva, com uma suavidade de traços que era
todo um segredo de seduções.
Houve uma missa de visita de cova no São Bom Jesus, que ficava num alto, ao entrar do
povoado. No fim, os convidados foram espargir água benta. Secundino passou o hissope à Lalinha, e dela
recebeu um longo olhar cheio de intenções. Que felicidade! Qual claridade diurna, esse instante,
pequenino foco solar, espalhou-se pelo universo criado por aquelas duas fantasias.
Ao sair da ermida, a donzela esteve um pedaço na porta, à espera dos mais. A sua tez ia tão bm
com o vidrilho preto! Olhava para o sertão. O sol acordava na terra as primeiras quenturas da estação
tórrida. Ao lançante, estendiam-se as corcovas de catingas já pintando.
Para a baixa do rio, a fita de vegetação tornava-se verde-negra. Por toda parte as frondes caducas
iam amadurecendo, e as pertinazes, muito raras, preparavam-se para a vida do verão. O umari, do meio
das vazantes, suspendia cada vez mais a perene copa como que espartilhada. Um paraíso de pássaros a
cantar. Já era por entre o pasto, já era nas cercas, nos pendões de milho, nos oitões erguidos das casas
caídas, distantes já, nas grandes árvores sozinhas. Uma infinidade de avezitas, sobretudo, a esfuziar por
entre as gramíneas, por entre os capinzais, que se embastiam por todo o terreno como o pêlo no couro,
uma abundância de rolinhas e quanta espécie de pombas arrulhantes.
No rio, ainda o vôo branco da garças e a risadinha constante dos maçaricos.
Aquele amor do Secundino estava no meridiano; e, estrangulada de dor, a moça o viu descer para
o ocaso, chegado o dia da partida, caminho do Poço da Moita. Olhava tristemente, dia por dia, para
aquelas duas portas mudas, fechadas, da casa onde ele tivera a venda.
Mordia-a a saudade. Mas é um engano querer-se que sejam veementes, vulcânicos,
assoberbantes, certos sentimentos. As afeições verdadeiras, legítimas, têm por cunho a brandura, um certo
estado crônico; são como uma doença que se sofre em um órgão essencial à vida, mas que não nos
perturba essa mesma vida, que não no-la impede, que às vezes parece até não existir, e que só uma vez
por outra nos avisa de que estamos minados por ela, sem remédio.
Ninguém pode avaliar o grau de afeição em que tem a outrem. Amicus certus in re in certa
cernitur. A afeição é como alguns tumores que só doem quando se magoam. Dois irmãos que se tratam
com a maior indiferença, se um dia fazem uma viagem, e que um fica e outro volta, que o respondam.
Marido e mulher, que vivem aborrecidos um do outro, haja um dia precisão de sair um, e aparecerá
candente o sol do afeto, que estava nublado pela convivência.
Outro sinal da afeição é quando posta em evidência pela morte, pela ausência, ou por qualquer
motivo, quando em estado agudo, em crise de lágrimas, em aperto de garganta, a criatura tem o seu
sentimento pelo mais justo, pelo mais nobre, pelo mais sagrado. É nessas ocasiões em que o homem é
verdadeiramente puro, seja ele um celerado. Nesses momentos não tem inimigos, nem aversões, nem
rancores, nem ódios, e seria capaz de agraciar ao mundo inteiro. Todo ele é a própria emoção, e nem há
lugar para outra coisa. Está inundado. Só se vê através da pureza de suas lágrimas.
Outra característica é a necessidade de esvaziamento: é um açude cheio, que deve sangrar.
Transborda. Aí vem o grito, a lamentação, a lamúria, os impropérios, e até a blasfêmia; noutros a
confidência; uma certa passividade, porque todo o trabalho de eliminação está sendo feito pelas idéias.
Como na embriaguez, nessa crise aguda põe-se ao claro o temperamento, a educação, o caráter, e
sobretudo a condição presente da criatura. Um mesmo indivíduo que há anos sairia a correr pela rua,
desgrenhado, hoje ficaria inerte, petrificado ou doido de mudez, conforme à modificação que lhe
houvessem imprimido as voltas que o mundo dá.
Lalinha era das pessoas que, feridas numa afeição, ficam em certo estado passivo. A explosão é
própria dos sentimentos excessivamente fortes, um tanto de superfície; o manso deslizar é das águas
profundas e perenes.
Há temperamentos em que é tal a persistência do afeto, que lhes é mister personificá-lo de novo,
e assim se explicam alguns esquisitos casamentos de viúvos. É essa teimosia de imagem que faz a gente,
ainda por muito tempo, como que não acreditar no desaparecimento de uma pessoa, a cuja morte
entretanto assistimos com os nossos olhos.